Jeito de Freira - 2020
Jeito de Freira - 2020
Jeito de Freira - 2020
JEITO DE FREIRA
UMA ETNOGRAFIA DA VOCAÇÃO
RELIGIOSA FEMININA NO SÉCULO XX
Feminismos e Ciências
Coordenação: Miriam Pillar Grossi e Tânia Welter
CONSELHO EDITORIAL
Alinne de Lima Bonetti (UFSC)
Anna Carolina Horstmann Amorim (UEMS)
Anna Paula Uziel (UERJ)
Anelise Fróes da Silva (UNDP Brasil)
Carla Giovana Cabral (UFRN)
Carmelita Afonseca Silva (UNICV)
Caterina Alessandra Rea (UNILAB)
Crishna Mirella Correa (UEM)
Eduardo Steindorf Saraiva (UNISC)
Elisete Schwade (UFRN)
Fátima Weiss de Jesus (UFAM)
Flávio Luiz Tarnovski (UFMT)
Isadora Vier Machado (UEM)
Felipe Bruno Martins Fernandes (UFBA)
Jimena Maria Massa (Universidade Nacional de Córdoba)
Luiz Mello (UFG)
Marcelo José de Oliveira (UFV)
Mareli Eliane Graupe (UNIPLAC)
Marlene Tamanini (UFPR)
Maria Begoña Sanchez (Universidad de Cadiz)
Marinês da Rosa (UNEMAT)
Melissa Barbieri de Oliveira (UNIOESTE)
Miriam Adelman (UFPR)
Miriam Pillar Grossi (UFSC)
Myriam Aldana Vargas Santin (Católicas pelo Direito de Decidir)
Maria Violeta de Siqueira Holanda (UNILAB)
Olga Regina Zigelli Garcia (UFSC)
Patrícia Rosalba Moura Costa (UFS)
Pedro Rosas Magrini (UNILAB)
Paula Pinhal de Carlos (UNILASALLE)
Rosa Blanca Cedillo (UFSM)
Rozeli Maria Porto (UFRN)
Simone Nunes Ávila (AHF Brasil)
Tânia Welter (Instituto Egon Schaden)
LIVROS PUBLICADOS
JEITO DE FREIRA
UMA ETNOGRAFIA DA VOCAÇÃO
RELIGIOSA FEMININA NO SÉCULO XX
Florianópolis, 2020
© 2020, Miriam Pillar Grossi
Coordenação editorial
Tânia Welter
Revisão
Fernanda Cardozo
Imagem da capa
Andrea Eichenberger
Artista visual e pesquisadora. Graduada em Artes Plásticas pela UDESC. Mestre em
Etnologia e doutora em Antropologia pela Université Paris Diderot - Paris VII -
Sorbonne Paris Cité, com tese de doutorado em cotutela internacional com a UFSC.
http://www.andreaeichenberger.com
Grafismo da orelha
Felipe Bruno Martins Fernandes
Diagramação e Capa
Rita Motta
Formato: PDF
Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: https://nigs.ufsc.br/
ISBN: 978-65-86602-10-4 (e-book)
Inclui referências bibliográficas
CDU: 391/397
A primeira versão deste texto foi o relatório final da pesquisa intitulada Re-
ligiosas: Vocação e Identidade, realizada em 1986/1987, com apoio do IV Concur-
so de Dotações para Pesquisa sobre Mulher, o qual foi organizado pela Fundação
Carlos Chagas com recursos da Fundação Ford. Escrito em Paris em novembro
de 1987 – ao mesmo tempo em que finalizava minha tese de doutorado1 –, ele foi
a base do meu ensaio para o concurso de Professora Adjunta que realizei em de-
zembro de 1989, para ingresso na carreira de Professora na Universidade Federal
de Santa Catarina.
Este texto permaneceu inédito por mais de três décadas. A decisão de pu-
blicá-lo se fez em diferentes momentos. Há uma década, no segundo semestre de
2010 – portanto vinte e três anos após sua redação –, tivemos no Núcleo de Iden-
tidades de Gênero e Subjetividades (NIGS) da UFSC o Grupo de Estudos sobre
Gênero, Sexualidade e Religião. E, graças ao incentivo recebido na época, pensei
que seria importante publicá-lo. Levei mais dez anos para finalmente concreti-
zar o projeto de publicá-lo. Assim, no momento em que estamos preparando os
trinta anos da criação do núcleo, sua publicação tem como objetivo também re-
cuperar uma parte da história das pesquisas sobre gênero e religião que estiveram
na origem do NIGS e que foram objeto de várias pesquisas em nossa equipe. Ao
compartilhar este texto, desejo também mostrar que é possível “fazer etnografia”
desde o início de uma carreira em antropologia.
1
Tese intitulada Discours sur les femmes battues: représentations de la violence contre les femmes au
Rio Grande do Sul. Defendida na Université Paris Descartes, Paris V, em abril de 1988, sob orienta-
ção de Louis Vincent Thomas.
Algumas das ideias deste texto foram retrabalhadas em dois artigos: o pri-
meiro deles publicado nos Cadernos de Pesquisa (n. 73, ano 1990)2; e o segundo,
na revista Horizontes Antropológicos (n. 1, ano 1995)3.
2
GROSSI, Miriam Pillar. Jeito de Freira: estudo antropológico sobre a vocação feminina. Cadernos
de Pesquisa, São Paulo, n.73, p. 45-58, 1990.
3
GROSSI, Miriam Pillar. Conventos e celibato feminino entre camponesas do Sul do Brasil. Hori-
zontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 1, n.1, p. 47-60, 1995.
AGRADECIMENTOS
4
Na época ainda era ilegal feminilizar documentos e procedimentos na vida universitária, o que
felizmente mudou no século XXI.
sumário
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................12
Capítulo 1
DIÁRIOS E SONHOS: QUESTÕES METODOLÓGICAS...............................................13
1.1 O objeto.......................................................................................................................13
1.2 A pesquisa ..................................................................................................................15
1.3 Minha relação com o objeto de estudo....................................................................16
Capítulo 2
DA FAMÍLIA AO CONVENTO.............................................................................................24
2.1 Vocação: um projeto familiar? .................................................................................24
2.1.1 Campesinato, religiosidade e Igreja...............................................................25
2.1.2 Imigração e vocações ......................................................................................28
2.1.3 Vocação: saída econômica? ............................................................................29
2.2 Vocação: um chamado de Deus?..............................................................................34
2.2.1 O fascínio ..........................................................................................................35
2.2.2 O pedido............................................................................................................37
2.2.3 O mistério..........................................................................................................37
2.2.4 A renúncia.........................................................................................................38
2.2.5 A entrega............................................................................................................39
2.2.6 A aventura.........................................................................................................40
2.2.7 O compromisso................................................................................................41
2.3 A construção social das vocações............................................................................42
Capítulo 3
TORNAR-SE FREIRA..............................................................................................................44
3.1 Aspirantado.................................................................................................................45
3.1.1 Pré-requisitos ...................................................................................................47
3.1.2 Territórios .........................................................................................................49
3.1.3 Atividades .........................................................................................................49
3.1.4 Jeito de freira ....................................................................................................50
3.1.5 A salvação .........................................................................................................52
3.1.6 O lúdico ............................................................................................................53
3.1.7 Aprendendo a ser freira...................................................................................53
3.2 Postulantado...............................................................................................................54
3.3 Noviciado....................................................................................................................55
3.4 Vestimenta ou primeira profissão ...........................................................................57
3.4.1 Antigamente......................................................................................................57
3.4.2 O ritual ..............................................................................................................59
3.4.2.1 A entrada na Igreja .............................................................................60
3.4.2.2 O chamado ..........................................................................................60
3.4.2.3 A vestimenta........................................................................................61
3.4.3 Vestimenta para as progressistas ...................................................................61
3.5 Juniorato......................................................................................................................62
Capítulo 4
SER FREIRA..............................................................................................................................65
4.1 Santidade.....................................................................................................................65
4.2 Os votos.......................................................................................................................68
4.2.1 Castidade...........................................................................................................69
4.2.2 Pobreza...............................................................................................................72
4.2.3 Obediência........................................................................................................73
4.3 A vivência dos votos no cotidiano do convento.....................................................74
4.3.1 Poder da Madre................................................................................................74
4.3.2 Controle do pensamento.................................................................................77
4.3.3 Hierarquia.........................................................................................................78
4.3.4 Territórios como reflexo da hierarquia..........................................................80
4.3.5 Relação mãe/filha.............................................................................................80
4.3.6 Família...............................................................................................................82
4.3.7 O cotidiano........................................................................................................83
4.3.8 O trabalho ........................................................................................................84
4.3.9 O retiro .............................................................................................................85
4.3.10 A morte ...........................................................................................................85
4.4 Uma identidade marcada pela santidade................................................................86
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................................89
INTRODUÇÃO
[ VOLTA AO SUM ÁR IO ]
12
C A P ÍT U L O 1
DIÁRIOS E SONHOS:
QUESTÕES METODOLÓGICAS
1.1 O objeto
5
Todos os dados deste texto se referem aos anos 1980, inclusive a nomenclatura para designar as
etapas escolares.
13
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
14
Diários e sonhos: questões metodológicas
propriedade que a identifique como grupo religioso. Foi a partir da negação des-
sa “grandiosidade” material que essa nova corrente religiosa, fundamentada na
Teologia da Libertação, construiu sua identidade como Congregação Religiosa
Feminina, optando pela negação total dos bens materiais e se instalando em ca-
sebres de favelas.
No entanto, como meu contato com esse grupo “avançado” foi bem menor
do que com o grupo “tradicional” e como creio que a própria trajetória de vida das
freiras “progressistas” não se constituiu diferentemente das freiras tradicionais –
quase todas têm mais de 45 anos e construíram suas identidades religiosas durante
as décadas de 1950 e 1960 numa congregação tradicional (com a qual romperam
na década de 1970) –, utilizo as observações feitas nesse segundo grupo apenas
como contraponto às minhas observações junto ao Convento tradicional. Assim,
sempre que no texto não for explicitado que se trata das freiras “progressistas”,
estarei falando do grupo tradicional, que creio ser ainda concentrador da maior
parte de símbolos da carreira religiosa feminina.
1.2 A pesquisa
6
Como já mencionado, finalizava, durante esta pesquisa, a escrita de minha tese de doutorado,
Discours sur les femmes battues (defendida em abril de 1988). Ver nota 1.
15
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
expectativas – expectativas, aliás, não unicamente das freiras, mas de grande parte
de meus amigos, estes horrorizados com a possibilidade de que eu “me perdesse”
e fosse misteriosamente atraída pela carreira religiosa.
A pesquisa de campo durou nove meses: de outubro de 1986 a junho de
1987. Durante dois meses – fevereiro e março –, permaneci quase que todo o
tempo no hotel do Convento e acompanhei regularmente todas as atividades in-
ternas. No resto do período, passei vários fins de semana prolongados (de quinta
a segunda-feira) no Convento, privilegiando os períodos de festas religiosas e de
rituais da congregação7.
O ponto de vista que assumi neste texto foi o de preservar o discurso das
freiras como indivíduos que, apesar de manifestarem opiniões que refletem a
ideologia de suas congregações, são também indivíduos com agência – e, por-
tanto, expressam, por momentos, pontos de vista particulares. Para preservar as
interlocutoras desta pesquisa, omiti os nomes de todas elas, assim como as loca-
lidades e referências ao nome das Congregações. Mudei propositalmente o nome
daquelas que me deram depoimentos para evitar qualquer identificação8.
Como contraponto às histórias de vida e aos relatos das próprias freiras,
utilizo alguns livros lidos por elas – que me foram emprestados para leitura – e
alguns documentos produzidos pelas Congregações, materiais que me ajudam a
compreender como é construída a visão de mundo das religiosas.
7
Em março de 1987, ingressei, como professora concursada, na Fundação Universitária Regional
de Blumenau (FURB). Lá conheci muitos colegas ex-padres e ex-freiras que compartilharam co-
migo muitas lembranças de suas formações religiosas e me deram informações preciosas para esta
pesquisa.
8
Os nomes de todas as interlocutoras foram trocados por nomes fictícios com o objetivo de preser-
vá-las eticamente, mesmo no caso daquelas que já faleceram. A medida vai ao encontro do Código
de Ética da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), criado na gestão 1986/1988 e permanen-
temente discutido e aperfeiçoado na prática antropológica até hoje.
16
Diários e sonhos: questões metodológicas
“tradicionais”, relação que evoluiu de uma frieza calculista, no início, a uma gran-
de troca afetiva, no final, e que implicou um grande envolvimento pessoal com al-
gumas de minhas interlocutoras. Os sentimentos que me tomaram durante esses
nove meses foram os mais diversos possíveis. Transcrevo aqui fragmentos do meu
diário de campo para ilustrar a evolução de minha relação com o objeto estudado.
No início, o sentimento era de vazio, de impotência:
Não sei até que ponto vou poder descobrir grandes coisas observando de
fora. Fico só imaginando o que se passa lá dentro, e acho que aí só pode
rolar muito da minha fantasia (diário de campo, 04/10/1986).
Desde ontem aqui sinto que o tempo é longo, que as coisas parecem se re-
petir e que é dificílimo observar o interior do Convento. Ouvem-se sons,
cânticos pontuam o dia, mas a vida corre num silêncio entrecortado pelo
barulho de alguns carros... Sinto-me presa na estrutura e incapaz de andar
bisbilhotando pelos cantos. Temo que cada passo possa reverter-se contra
mim (diário de campo, 1º/11/1986).
À tardinha, subi o morro e fui em direção ao local dos retiros: caminhei por
um caminho árduo e cheguei a um pasto incrível cravado nas montanhas.
Fiquei ali, sentindo a magia do local, olhando as nuvens escuras e vendo o
anoitecer. Senti que ali eu estava no meio do mundo, que tudo era possível,
que finalmente eu compreendia a força do chamado divino de que elas tan-
to me falavam; era na realidade um sentimento de plenitude incomum que
podia ser atingido de mil formas. Voltei pelo caminho, já era noite fechada,
e eu percebia as coisas de forma diferente... À noite teve a missa de sábado
17
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
de Aleluia na catedral da cidade, igreja lotada, toda a cidade devia estar lá.
As freiras usando seu traje da congregação. As postulantes e aspirantes com
roupas de festa. Elas voltaram caminhando da cidade, chegaram rindo e
brincando. Aguardavam em frente à porta. Uma delas a abriu, e a cena era
linda: só velas iluminando tudo, e em cima da mesa havia uma cestinha em
frente a cada cadeira. Tudo decorado lindamente, tocava uma música sacra
no toca-discos, e todas se abraçavam emocionadas (até eu me emocionei)
(diário de campo, 18/04/1987).
A minha pessoa naquele hotel durante meses a fio, se no início era incômo-
da, depois deixou de ser novidade. Nenhuma delas compreendia quem eu era: que
eu não morasse com meus pais e nem fosse casada. A única coisa que me “salvava”
aos olhos delas era minha condição de “professora”, que justificava em parte meu
celibato e minha independência econômica. E, por ser professora, aproximava-me
também do projeto de vida delas, pois a maioria estudava para o magistério. Pude
compreender como elas me percebiam no dia anterior ao ritual da Vestição, quan-
do irmã Madalena, gerente do hotel, perguntou a mim e a uma amiga que me
acompanhava se éramos católicas – e, como respondemos afirmativamente, ela
disse: “vocês ainda são moças, pode ser que Jesus chame vocês”.
A partir desse momento, ficou claro que elas me viam como moça, ou seja,
solteira e virgem, e que eu era uma candidata potencial à vida religiosa – percep-
ção que se confirmou na minha última estada no Convento. Durante a festa das
Bodas, quando perguntei se me faltava assistir a alguma festa da Congregação,
responderam-me: “agora só faltam as tuas festas”. Não havia dúvida de que para
elas eu devia entrar no Convento.
O dilema que me assolou durante todo o tempo da pesquisa, de contar ou
não o objetivo da minha permanência no convento, teve outros desdobramentos a
partir do contato com a outra congregação, a “progressista”, cujo local de moradia
e atuação era a Grande Florianópolis. Como eu admirava o trabalho e a opção de
18
Diários e sonhos: questões metodológicas
vida delas, sentia-me à vontade para explicar meus objetivos e me colocar frente
a elas numa posição bastante igualitária, pensando que elas me tratariam de igual
para igual. Contei-lhes, portanto, o objetivo do meu trabalho. Mas, se minha sin-
ceridade funcionou com algumas, foi fruto da interdição do contato mais intenso
com a Congregação como um todo. A partir da resistência desse grupo, dei-me
conta de que o estudo de uma congregação religiosa era realmente algo muito
difícil de se realizar.
As freiras progressistas me colocavam permanentemente em dúvida, exi-
gindo de mim uma postura “política” e questionando minha posição puramente
“acadêmica”. A maior parte delas aceitou ser entrevistada e gravar seu depoimento
de vida, sem grandes desconfianças em relação a meu trabalho. No entanto, em
nível mais institucional, foi-me fechada uma série de contatos, particularmente
frente a meu interesse em conhecer melhor os mecanismos internos da Congrega-
ção, campo que eu percebi ser totalmente fechado à pesquisa. Quando dialogava
individualmente, o contato se dava facilmente; mas, quando se tratava de questões
de organização e estrutura interna da Congregação, o contato era-me sistematica-
mente fechado, como me aconteceu durante a Assembleia Geral anual.
Transcrevo também aqui um pouco do sentimento que me tomou na inte-
ração com “as progressistas”, sentimento que se revestiu de grande ambiguidade e
desconforto, o que certamente influiu na relação relativamente difícil que mantive
com elas e que me impediu de aprofundar melhor minha pesquisa sobre esse gru-
po que considerava “avançado”.
Desde o primeiro contato, senti que não seria fácil, que havia uma forte
rejeição delas à minha demanda de pesquisá-las:
Fiz hoje minha primeira entrevista com Irmã Alice, superiora da congrega-
ção progressista. Saí do encontro muito remexida. Aliás, há dois dias, quan-
do as procurei pela primeira vez, eu já me tinha sentido muito perturbada
(diário de campo, 29/10/1986).
19
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
20
Diários e sonhos: questões metodológicas
Creio que esse sonho trabalha com muitos dados que povoaram meu in-
consciente durante o trabalho de campo, mas analiso apenas duas questões, para
mim as mais importantes no que tange à minha relação com o objeto de pesquisa.
A primeira se refere às minhas próprias dúvidas sobre o significado da vo-
cação religiosa que me impediam a compreensão teórica da questão. O sentimen-
to que tive no sonho de que “tinha chegado minha hora” e de que eu não me ar-
rependia disso mostra como, em algum momento, eu acreditei que pudesse haver
“um chamado de Deus” e que achava não ter conseguido trabalhar realmente com
as categorias das freiras. Mas depois, ao perceber que tudo não passava de “um
21
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
estúdio de cinema”, percebo que eu me enganara, que não existia chamado algum,
o que reforçava minhas interpretações a respeito da “construção social da vocação
religiosa”, como trabalho no primeiro capítulo. Por outro lado, desculpabilizou-
-me por não ter entrado no convento e por ter, assim, rompido com a relação pri-
vilegiada que as freiras haviam tido comigo e que me parecia ser a razão de tanto
investimento delas em mim. Afinal, elas mesmas comentam no sonho “que eu não
daria uma boa freira” porque provinha de meio urbano, o que confirmava uma de
minhas hipóteses: a de que as carreiras religiosas nos conventos de Santa Catarina
se produzem a partir do ethos rural.
A segunda questão se refere à minha culpabilização em estar “enganando”,
“retirando” algo das freiras. Quando a Madre me explica que elas estão filmando
a vida do Convento para mostrar ao mundo como elas vivem, no fundo eu estou
compreendendo que é isso que eu estou fazendo; e que, ao retransmitir o que eu vi e
senti no contato com elas, estou contribuindo talvez para mostrar ao mundo como
é sua vida, o que em si não é negativo e pode até contribuir com os propósitos da
Congregação, pois segundo a Madre os vídeos servem para “atrair mais vocações”.
Nove meses: analogia mais do que evidente com o tempo de gestação, longa
gestação de mim mesma. Lembro-me de que, antes de iniciar a pesquisa, tentava
explicar à minha terapeuta por que tinha escolhido estudar as freiras depois de
ter estudado mulheres espancadas. Naquela época, pensava que era apenas outra
dimensão do sofrimento feminino: como se as mulheres espancadas concentras-
sem, na sua experiência de vida, a representação do sofrimento no casamento,
enquanto as religiosas representariam a dor de não optar pelo casamento9. Mesmo
que essa assertiva fosse em parte verdadeira na época da pesquisa de campo, sinto
que me enganei redondamente no que tange à dor como conceito unicamente de
sofrimento. A dor é também êxtase e fonte de prazer, tema que tem sido bastante
analisado a respeito dos escritos de Santa Teresa de Ávila, monja mexicana que
viveu no século XVI e que hoje é considerada uma das teóricas pioneiras do femi-
nismo latino-americano.
Além disso, marcada pelo ideal feminista, imaginava que o convento era
um espaço de resistência das mulheres à dominação masculina, mas percebi, ao
longo da pesquisa, que o mundo das religiosas não é o mundo utópico de uma
9
Utilizo aqui “dor” no sentido que trabalha Julia Kristeva (1986), particularmente no capítulo em
que analisa a obra de Marguerite Duras.
22
Diários e sonhos: questões metodológicas
[ VOLTA AO SUM ÁR IO ]
10
“A sociologia da religião tal como ela é praticada hoje – quer dizer, pelos produtores que parti-
cipam em graus diferentes do campo religioso – pode ela ser uma verdadeira sociologia científica?
E eu respondo: dificilmente; quer dizer, a menos que ela seja acompanhada por uma sociologia
científica do campo religioso” (tradução minha).
23
C A P ÍT U L O 2
DA FAMÍLIA AO CONVENTO
11
Desenvolvi essa questão no projeto relativo a esta pesquisa, intitulado Religiosa: Vocação e Identi-
dade (1986). Ver a esse respeito também Azzi e Rezende (1982).
24
Da família ao convento
25
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
12
Tradicionalmente os homens do engenho enviavam um filho para o seminário, um filho para a
faculdade de Direito (que se tornaria político), e deixavam um filho como administrador da pro-
priedade familiar. Para as filhas, o convento era a solução na falta de pretendente que fosse rico o
suficiente.
26
Da família ao convento
27
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
13
É o caso da formação de três Congregações Religiosas Femininas em Santa Catarina: Irmãzinhas
da Imaculada Conceição (Nova Trento – 1880), Irmãs Catequistas Franciscanas (Rodeio – 1915) e
Irmãs Franciscanas do Apostolado Paroquial (Lages – 1957).
28
Da família ao convento
14
O projeto de Luiz Augusto Campis no Mestrado em Sociologia da Universidade Federal da Paraí-
ba (UFPB) analisa essa subordinação. Sua dissertação foi defendida em 1994, com o título Agroin-
dústria e Pequena Propriedade: o caso do milho híbrido no Vale do Rio Pardo.
15
O trabalho de Anita Moser (1985) sobre a indústria Hering em Rodeio analisa profundamente a
relação das mulheres com a fábrica. Agradeço-lhe também algumas informações dadas num conta-
to informal em junho de 1987.
29
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
16
Devo também muitos desses aprendizados às aulas da disciplina de Antropologia do Campesina-
to a que tive o privilégio de assistir em 1984, ministradas por Klaas Woortmann no PPGAS/UFSC.
A respeito dessa discussão, conferir Woortmann (1990).
17
A ausência de organizações operárias, sindicatos e mobilizações trabalhistas na região do Vale do
Itajaí-Mirim é significativa de uma “neutralização” das relações de classes – relações que são masca-
radas pelas relações étnicas, para as quais o “trabalho” detém um valor central na identidade e nas
representações simbólicas dos descendentes de imigração alemã.
30
Da família ao convento
31
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
No caso das órfãs, só quando o pai viúvo se casa novamente e encontra uma
substituta para as tarefas domésticas – a madrasta – é que as jovens obtêm sua
liberação para seguir a carreira religiosa:
Meu pai ficou viúvo quando eu tinha 18 anos... meu irmão estava com tifo
negro... eu tinha 7 irmãos para criar, porque minha irmã mais velha era
casada... o pai não me deixava ir pro convento. Quando eu tinha 24 anos,
ele casou de novo, e aí minha madrasta pediu para ele me deixar vir... (Irmã
Cecília, 76 anos, 2ª filha de 9 irmãos).
Num outro caso, o compromisso entre pai e filha se coloca nos seguintes
termos: é preciso devolver ao pai, na forma de trabalho familiar, o que foi despen-
dido durante a infância:
Eu tinha 14 anos e queria ir pro Convento, mas o pai dizia: “tu és muito pre-
guiçosa, não trabalhaste ainda que chegue”. Aí eu fiquei lá ajudando o pai
na roça, até meus irmãos crescerem. Com 18 anos, eu saí, fui pro convento
com minha prima (Irmã Ângela, 28 anos, 9ª filha de 12 irmãos).
Eu vim mais de vinte vezes aqui com meus pais, porque eu sou a caçula,
para visitar Irmã Lídia, minha irmã (a 3ª). As outras duas irmãs mais velhas
também vieram para o convento, mas saíram... Eu só estudei até o 4º ano
na Escola Rural, mas nunca trabalhei na roça, porque sempre fui doente.
Fiquei esperando completar 15 anos para poder vir para o aspirantado. An-
tes, as irmãs não deixam. Meus pais vêm aqui essa semana pagar para as
mestras das aspirantes (Lourdes, aspirante, 16 anos, 15ª filha de 15 irmãos).
32
Da família ao convento
18
Irmã Zeca, em um texto mimeografado sobre “As freiras e o feminismo” (NUNES, 1982), defende
a tese de que a virgindade das religiosas era “uma recusa de gerar filhos para o Senhor”, logo uma
forma de libertação da mulher. Não creio, no entanto, que, se essa atitude tenha existido, o tenha
sido de forma consciente por todas aquelas que abraçaram a vida religiosa no Brasil.
19
Os casos de permanência de oposição do pai após a consagração são tão raros que me chamou a
atenção o caso da noviça Josefina, que fez seus primeiros votos em 1987. Toda a congregação se mo-
bilizou para rezar pedindo a Deus que o pai aceitasse a decisão da filha, que, após anos de resistência
do pai, aos 24 anos foi para o aspirantado. Quatro anos depois, ao se tornar freira, o pai se recusou a
participar da cerimônia, vindo apenas a mãe com um irmão. Josefina chora deslavadamente durante
toda a cerimônia; e depois, na festa, corta um pedaço do bolo para o pai, dizendo: “é para levar para
casa e mostrar ao pai que não tenho mágoa dele”.
20
Utilizo aqui o termo lacaniano “o nome do pai”, marco no reconhecimento da própria identidade.
33
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
prol do “verdadeiro Pai”, que se confunde com esposo, no que parece uma perfeita
resolução dos conflitos edípicos. A congregação é, assim, vista como uma família,
com valores similares aos existentes nas regras de aliança e consanguinidade no
parentesco, em um modelo patriarcal:
Essa frase, repetida por cada uma das meninas durante o ritual da vestição,
encerra a essência da vocação religiosa como um chamado inexplicável de Deus,
do qual não se pode escapar. A maioria dos livros de histórias de santos lidos na
adolescência conta que, quando “se é escolhido”, a “recusa de servir a Deus” pode
transformar-se em “sofrimento ou maldição”. Essas leituras constroem o modelo
do que é entendido coletivamente como o “chamado de Deus”, de que modo ele
se manifesta e de que modo os “santos” identificaram a vocação neles próprios21.
21
Dois livros que foram lidos pela maioria das aspirantes são de Irineu Costella: “Seja Louco como
Francisco” (em coautoria com Pedro Salame e Paulo Salame) e “Seja Louca como Clara”, ambos pela
Editora da Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes.
34
Da família ao convento
Mas ainda raras são aquelas que formulam hoje em dia alguma crítica à
“construção ideológica” da vocação, como o depoimento acima. Por isso, expli-
citarei inicialmente aqui as concepções tradicionais e ainda amplamente aceitas
de vocação na maioria das congregações; e só num segundo momento voltarei a
discutir a questão sob o ângulo “progressista”.
O que caracteriza de forma inequívoca a vocação é um desejo muito forte
de se tornar religiosa. Esse desejo se reveste de várias formas: fascínio, cópia, ne-
gação, entrega, renúncia, etc.
2.2.1 O fascínio
35
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
22
“A gente nem reconhece mais uma freira na rua”. “Hoje é fácil ser freira”. São comentários que
ouvi frequentemente de leigos durante minha pesquisa, como se o hábito encerrasse todo o imagi-
nário dos “não iniciados” sobre a vida religiosa – imaginário também construído pelas religiosas ao
longo dos séculos e reforçado por símbolos universais de mistério, como o da cor preta.
36
Da família ao convento
2.2.2 O pedido
Porque a vocação, tem que pedir a Deus. Ele dá, mas tem que querer. Por-
que Deus não impõe, ele fez o homem com a capacidade de escolher. Eu
pedia toda noite para ter uma vocação de verdade, forte mesmo. E ele me
deu (Irmã Cecília, 76 anos).
2.2.3 O mistério
37
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
O relato da Irmã Cristiana ilustra bem esse sinal misterioso que se encerra
em si próprio, sem que seja possível decifrar outras razões:
2.2.4 A renúncia
Não tenho dados sobre o sacerdócio católico. Baseio-me nos depoimentos de dois interlocutores
23
pastores batistas que atuam na região de minha pesquisa, ambos com 24 anos. Os dois me justifi-
38
Da família ao convento
2.2.5 A entrega
caram sua escolha por terem sido reprovados no vestibular de Medicina e Engenharia: “Aquilo pra
mim foi um sinal de Deus de que me queria pra ele, no sacerdócio”, ou seja, pela exclusão do mundo
do trabalho e da ambição profissional.
24
Marie Thérèse Cevasco, pesquisadora francesa que estuda os textos de Santa Teresa de Ávi-
la, mostra como as descrições da santidade são relatos em que se faz presente uma profunda
39
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
Esta comparação do amor “humano” com o “divino” está presente nos ritos
de entrada na vida religiosa. Antigamente, no ritual da vestição, a simbologia era
transparente: a noviça entrava na Igreja toda de branco, com um véu cobrindo o
rosto até a cintura, “parecia uma noiva”. Hoje elas já não se vestem mais de “noiva”,
mas mantêm uma grinalda de flores brancas e são acompanhadas até o altar pelos
pais – e lá entregues à Madre, que representa Deus. No ritual dos votos perpétuos,
“casamento com Cristo”, cada Irmã recebe uma aliança, que usa na mão esquerda
por toda a vida25.
2.2.6 A aventura
Quando resolvi ser freira, o meu sonho era ser missionária na África... Eu
queria tanto viajar! Depois eu acabei entrando na congregação da minha
cidade, e o máximo que eu fiz foi ir ao Nordeste do Brasil. Mas hoje isso
não me importa mais, eu estou feliz vivendo aqui (Irmã Mônica, 45 anos).
Eu queria tanto ir para longe que cheguei a escrever para Madre Teresa de
Calcutá, que eu tinha visto pela televisão quando ela esteve no Brasil. Eu re-
cebi uma resposta dizendo que eu podia ir para o Nordeste, mas meu pai não
deixou ir para tão longe, e eu acabei sendo levada pelo padre da Congregação,
que passava de caminhão na minha região (Irmã Ângela, 28 anos).
sensualidade. Também no diálogo entre Thérèse e Lucie na cozinha do convento, no filme Thérèse, a
conversa sobre a relação delas com Cristo parece muito com a de duas moças sobre seus respectivos
namorados (Thérèse, dirigido por Alain Cavalier – Cannes, 1986).
25
Nos túmulos do cemitério, há três datas – o nascimento, o casamento com Cristo (simbolizado
por duas alianças) e a morte da Irmã –, por si só significativas da importância dos votos perpétuos.
40
Da família ao convento
Quando eu entrei, a coisa que eu mais queria era ir pro Nordeste, viver
ajudando aquele povo... Mas agora já não quero tanto. Dizem que é muito
difícil, que não se tem tudo pronto como aqui: comida, casa arrumada, rou-
pa lavada... Às vezes elas passam uma semana fora, andando no lombo de
burro, nem água elas encontram. É uma vida muito dura... (Irmã Olga, 28
anos, 2º ano do Juniorato).
2.2.7 O compromisso
41
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
42
Da família ao convento
[ VOLTA AO SUM ÁR IO ]
43
C A P ÍT U L O 3
TORNAR-SE FREIRA
44
Tornar-se freira
parte do que denomino, no próximo capítulo, “ser freira”, pois as candidatas ainda
podem retirar-se facilmente da Congregação, uma vez que assumem o compromis-
so anualmente e não de forma permanente, como é feito após os votos perpétuos.
Como em todo ritual de iniciação (VAN GENNEP, 1974), o futuro membro
do grupo deve abandonar sua identidade construída dentro da comunidade de
origem, adotando o modelo seguido pelas outras pessoas do grupo. Nesse perío-
do de passagem ou liminar, não se é mais o que se era, e ainda não se é membro
integrante da Congregação. É um período que se reveste de humilhações, de pri-
vações, de provas e de sofrimentos e que serve para igualar todos os futuros mem-
bros do grupo. O que permite pertencer ao grupo – no caso, ser religiosa – é que
todos os integrantes passaram pelas mesmas provas, mostrando que são dignos e
capazes de pertencer à comunidade (entregar-se a Deus). Assim como mostrou
Pierre Clastres (1978), a violência nas sociedades primitivas, que são grupos igua-
litários, serve para mostrar que todos são iguais, que todos passaram pelo mesmo
sofrimento e que, por isso, merecem participar daquela comunidade. O mesmo
mostrou Evans-Pritchard (1978) a respeito dos rituais de iniciação entre os Nuer,
rituais violentos aos quais alguns Nuer não sobrevivem, o que significa que eles
não são fortes o suficiente para pertencer ao grupo.
3.1 Aspirantado
45
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
Infelizmente não foi possível recuperar a página da citação de Charles Suaud, aluno de Bourdieu,
26
que teve forte impacto em minha análise. Lembro que este texto foi escrito em uma época na qual
46
Tornar-se freira
3.1.1 Pré-requisitos
não havia internet; e, como esse livro estava esgotado (havia lido os artigos em revistas), tive de lê-lo
na biblioteca da Sorbonne, onde muitas vezes o cansaço e a falta de treinamento científico me leva-
ram a negligenciar o registro de dados precisos das referências. O desespero de não os ter no mo-
mento da escrita da tese e de artigos foi um dos aprendizados de disciplina na elaboração de fichas
de leitura que levei para meus cursos de metodologia nas últimas três décadas.
47
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
Eu não tinha como conseguir o dinheiro do dote, que era de 4.000 cruzeiros
em 1980. Eu já trabalhava com as Irmãs lá na minha cidade, mas minha fa-
mília não podia me ajudar, era muito pobre mesmo. Agora eles emigraram
para uma cidade maior no Norte, onde mora um irmão meu. Aí eu fui pra
rua, esmolar com o povo para conseguir a quantia necessária. Não foi fácil
(Irmã Regina, 23 anos).
Minha família era muito pobre, e minha mãe nem meus irmãos queriam
me ajudar a entrar no convento. Então, eu fui trabalhar como doméstica
27
Conferir o trabalho de Alice da Silva (1990) sobre os panos de prato como fundamentais na cons-
trução da identidade das mulheres mineiras.
48
Tornar-se freira
na casa de uma senhora para fazer um pouco do ginásio, porque não tinha
como pagar os estudos do aspirantado na Congregação. Depois que eu aca-
bei de estudar, eu precisava ainda de todo o enxoval para poder entrar, aí
eu fui às lojas de São Joaquim com os jogos de lençol de casal bordados que
eu tinha feito na casa da minha mãe e consegui trocar pelo que precisava
trazer pra cá.
3.1.2 Territórios
3.1.3 Atividades
49
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
hora diária intitulado “recreio”, no qual cada uma delas pode realizar a tarefa que
desejar numa sala junto com as outras: bordado, leitura, etc. O dia assim delimita-
do impede qualquer pensamento ou atividade que não diga respeito unicamente
à construção do projeto religioso. O mesmo constatou também Charles Suaud
(1978) ao descrever a vida em um dia dentro de um pequeno seminário na Fran-
ça, dizendo que era uma sucessão de atividades profanas, intermediadas por tem-
pos de reza ou atividades religiosas.
Ao misturar atividades profanas com religiosas, vão-se habituando o corpo
e a mente a ver, em toda ação, uma oferta a Deus. Esse encadeamento de ações
vai criando algo como um movimento instintivo, que impossibilita que elas des-
vinculem uma atividade religiosa de uma ação cotidiana. Vejamos o exemplo dos
microrrituais do “levantar-se”: acordar logo ao escutar a sineta, levantar imediata-
mente, rezar, vestir-se, escovar os dentes, ir à missa na capela, preparar o café, rezar
em pé antes de sentar-se à mesa, sentar, comer em silêncio, levantar e lavar a sua
louça, guardá-la no armário pessoal (a xícara em cima do prato, o talher enrolado
no guardanapo ao lado), etc. Todas essas atividades (algumas não duram mais de
5 minutos) são cronometradas com rezas, sendo impossível desvinculá-las do seu
caráter religioso. A primeira reza do dia, ainda na cama logo ao levantar-se, é uma
oferta do dia e de suas tarefas a Deus, o que estimula a associação do cotidiano
à prática religiosa. O exemplo da padroeira do Postulado – Santa Teresinha de
Jesus – estimula esse tipo de associação, tal como sua história é apreendida pelas
aspirantes e postulantes:
“Casa de freira é assim: a gente arruma tudo deste jeito”, explicava-me uma
das irmãs mais jovens diante de meu espanto no depósito de toalhas e lençóis,
frase à qual se seguiu uma longa explicação prática de como se dobrava daquele
jeito singular toda a roupa de cama do convento.
50
Tornar-se freira
51
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
3.1.5 A salvação
52
Tornar-se freira
elas o encaram como qualquer exame escolar, não acreditando que, por ser um
exame para a carreira religiosa, seja necessário um complemento especial; nem
que Cristo – lá de cima – controle a seriedade de suas “futuras esposas”. Da mesma
forma, observei que, em vários outros momentos rituais dessa ordem religiosa,
não imperava uma única lógica na realização das atividades rituais, havendo uma
aparente falta de seriedade, por parte de candidatas e freiras, frente ao sagrado.
De fato, parece que há um jogo entre o profano e o sagrado: a “cola” (que equivale-
ria à falta de seriedade, mentira, etc.) se justifica como necessária e justa para fazer
um exame “que se repete igual todo ano”.
3.1.6 O lúdico
53
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
3.2 Postulantado
54
Tornar-se freira
Para algumas, o aspirantado durou poucas semanas, como o caso das irmãs
com maior instrução, que entraram quase que diretamente no postulantado. Al-
gumas nem passam pelo aspirantado, como o caso de uma irmã que já tinha con-
cluído o curso Normal no colégio mantido pela Congregação em Florianópolis:
3.3 Noviciado
O noviciado é um ano de síntese e reflexão.
55
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
Lembro-me daqueles dias de calor em que a gente tinha que ficar encerrada,
rezando e rezando, o tempo não passava nunca.. Eu não acreditava que um
dia a gente fosse sair dali. E o que mais a gente queria era ser ativa, estar
nas obras da Congregação, trabalhando e ajudando o próximo. Não guardei
nenhuma lembrança boa daquele momento como guardei de outros... (Bár-
bara, 45 anos, irmã que deixou o convento após 10 anos de votos).
28
“Bandeirantes” era a designação para jovens adolescentes que participavam do movimento
escoteiro para mulheres na década de 1970, na continuidade da categoria mais jovem, chamada
“fadinha”. Tratava-se de um movimento jovem muito forte durante minha adolescência em Porto
Alegre, tradicionalmente vinculado à Igreja Católica, e que, naquele período de ditadura militar no
Brasil, se aproximava da corrente da Teologia da Libertação. Ao rever estas páginas, em 2020, não
deixo de me espantar com a categoria “colonial” usada pelo movimento escoteiro brasileiro.
56
Tornar-se freira
3.4.1 Antigamente
A categoria “antigamente” remetia, nas falas de minhas interlocutoras, às regras das congregações
29
religiosas femininas antes do aggiornamento da Igreja Católica, instituído pelo Papa João XXIII nos
anos 1960.
57
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
Esse ritual era seguido rigidamente pela maior parte das Congregações do Brasil,
como se lembram duas irmãs de diferentes Congregações:
No meu tempo, era muito mais bonito. A gente entrava na igreja toda de
branco, com o véu tampando o rosto até o peito. Parecia noiva. Depois a
gente ia à sacristia e trocava, punha o hábito todo preto, véu preto, só um
pano branco na frente... (Irmã Cecília, 76 anos).
O dia mais bonito foi na nossa entrada... Do lado de fora, estava toda a fa-
mília, os amigos. Eu chorava, era uma grande despedida. E, quando nós en-
tramos lá dentro, estavam todas as irmãs reunidas entoando cânticos, tudo
decorado com lírios brancos, elas nos abraçando e dando boas-vindas...
(Irmã Rosália, 80 anos).
E, na hora que a gente tava na frente, o padre dizia o nome que a gente ia
chamar. Quem escolhia eram as superioras, que diziam pra eles. O meu
nome de antes era L.; eu gostava mais dele do que do que me deram, mas
depois, quando dava para trocar, eu não quis mais, tantos anos com o mes-
mo nome... (Irmã Cecília, 76 anos).
Nessa época, havia também o corte ritual dos cabelos, que significava o
despojamento total de si mesmas, segundo exemplo de Santa Clara, introduzido
pelas cisterianas e adaptado por todas as ordens. Hoje, as meninas já chegam com
os cabelos curtos; e há inclusive algumas freiras com o cabelo na altura dos om-
bros, o que mostra que os cabelos não detêm mais essa simbologia30.
O corte dos cabelos compridos parece deter o mesmo significado em diferentes culturas. No
30
Ocidente, tradicionalmente os cabelos compridos são representados como de acordo com as meni-
nas e adolescentes; “não fica bem uma mãe de família usar os cabelos compridos” parece ser uma
58
Tornar-se freira
3.4.2 O ritual
crença popular bastante difundida no Brasil. O mesmo se poderia falar da Índia, onde os cabelos
compridos, muito valorizados no imaginário sobre as mulheres, não são considerados adequados
para mulheres casadas (pelo menos é desaconselhável que elas os usem soltos), tal como aprendi nos
anos de doutorado em que vivi na Maison de l’Inde, na Cité Internationale de Paris.
31
No filme Thérèse, que se passa no século XIX, a entrada da nova freira é feita individualmente: a
menina vestida de noiva, com um véu cobrindo o rosto (como me contou a Irmã Iolanda), um bu-
quê de flores nas mãos, o pai acompanhando-a até o altar, e toda a parentela reunida. “Que bom ver
vocês aqui no dia mais feliz da minha vida! Vocês, que vieram de tão longe...” – é a fala de Thérèse
no dia de sua entrada no claustro. No filme Agnes de Deus (dirigido por Norman Jewison, 1985),
também há uma cena semelhante da entrada de uma menina no claustro, numa cerimônia de ves-
tição nos dias de hoje.
59
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
3.4.2.2 O chamado
60
Tornar-se freira
3.4.2.3 A vestimenta
32
Para preservar eticamente o grupo estudado, retirei desta citação de uma fala ritual todas as refe-
rências à Congregação estudada.
33
Nas congregações tradicionais, a necessidade do coletivo é muito forte, o que justifica que, no
ano da pesquisa, não tenha havido nenhum “casamento com Cristo”, pois havia apenas uma ou duas
junioristas com cinco anos de vida religiosa.
61
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
a cerimônia se fará junto à comunidade na qual ela atua. É também uma cerimô-
nia pública para a qual são convidados os pais, familiares, amigos e outros reli-
giosos. Já os votos definitivos são feitos no âmbito privado, apenas junto com as
outras irmãs da Congregação, durante suas Assembleias Gerais anuais.
3.5 Juniorato
Após esse primeiro ritual, a noviça torna-se irmã, mas não tem ainda todos
os direitos no interior do grupo. Para isso, ela precisa passar por uma nova etapa,
que dura cinco anos, denominada Juniorato. Durante esse período, elas podem
voltar atrás e abandonar a carreira religiosa sem que seja necessário “pedir ao
Papa”. Por isso, elas renovam anualmente os votos. Nesse período, as irmãs quase
não assumem tarefas de responsabilidade na congregação; não podem afastar-se
da província principal e ir para outras regiões do país. Nesse período, há a pos-
sibilidade de abandonar a vida religiosa no final de cada ano de votos, de mútuo
acordo entre a Congregação e a irmã que deixa o convento. É claro que, como
em todo o sistema capitalista, a relação entre congregação e freira pressupõe um
contrato – que não é apenas verbal, uma vez que, a cada ano, a irmã assina no
livro da Congregação seu compromisso por um ano de trabalho e de dedicação à
comunidade. Assim, se a religiosa deseja abandonar o convento, ela deve fazê-lo
no final do ano letivo e não assumir um novo compromisso no mês de janeiro que
a obrigue a prestar seus serviços materiais e espirituais à Congregação por mais
um ano, como explica uma juniorista:
Por isso é que a gente precisa pensar muito antes de renovar os votos, por-
que, uma vez renovados, não adianta querer sair. Precisa esperar até o final
do ano. Mas quem renova é porque tem fé e não vai deixar a vocação pelo
caminho (Irmã Edith, 24 anos).
62
Tornar-se freira
Eu tive que parar de estudar no ginásio porque minha mãe, viúva, não tinha
condições de manter meu estudo aqui com as irmãs. Aí eu vim trabalhar
34
Obrigatoriedade que, aliás, não agrada a muitas meninas oriundas no meio rural, onde a escola
é vista como algo supérfluo e destinado a crianças que “têm cabeça” para o estudo. O desespero de
ter de estudar até o final do 2° grau era visível para algumas aspirantes que, com 15 anos, estavam
cursando o 5° ano do 1° grau.
35
Relembro que, nos anos 1980, não se usava computador de forma corrente.
63
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
aqui... Uma destas irmãs mais jovens me perguntou: “por que tu não entras
no convento, estudas e depois te mandas?”. Imagina eu, tendo que viver vida
de freira só pra acabar os estudos? Tudo controlado, tem que obedecer todo
o tempo. Deus me livre! Elas [as candidatas] vêm pra cá, de tudo quanto é
lugar, já pensando em aproveitar pra estudar. Elas ficam um monte de anos
fazendo de conta que querem ser freiras e, quando conseguem o diploma
de magistério, dizem que “descobrem que não têm vocação”. Tem um monte
que faz isso (Úrsula, 25 anos, funcionária).
No final dos cinco anos de Juniorato, são realizados os votos perpétuos, que
significam o casamento com Cristo, momento a partir do qual elas são considera-
das Irmãs da Congregação, com todos os direitos que cabem às Irmãs professas.
Acaba-se o período liminar e de integração à comunidade religiosa, e começa a
vida de freira.
[ VOLTA AO SUM ÁR IO ]
64
C A P ÍT U L O 4
SER FREIRA
4.1 Santidade
Para seguir a carreira, não precisa ser perfeita, mas tem que desejar santidade.
65
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
36
Influenciada pela Psicanálise, uma das hipóteses iniciais da pesquisa era que a vida religiosa es-
timulava a formação de um superego muito forte. Todavia, o tempo em campo e os dados obtidos
não foram suficientes para confirmar essa questão teórica.
66
Ser freira
subsiste néanmoins que le corps féminin “en Eglise” ne peut être que
douleur, même si celle-ci est offerte à Dieu pour les frères humains
(LORENZO, 1984).
Menina nova ainda, ela deu mostras de disposição sérias e de grande pie-
dade. Encontrava seu prazer na oração, no trabalho, e na solidão (MADRE
[Fundadora]37, 1952, p. 7).
[...] O ideal que de então em diante se lhe antepunha aos olhos, era servir
a Deus sacrificando-se pelo próximo como digna filha do pobre e alegre
santo de Assis... (idem, p. 8).
[... ] onde devia dispensar seus cuidados a doentes e alienados. Por quase
sete anos ficou lá edificando a todos com sua grande caridade, não pen-
sando em si própria, mas sacrificando-se unicamente pelo bem do próxi-
mo... Durante o verão seguinte irrompeu naquela região a cólera morbus.
Impuseram aos ombros da [Irmã Fundadora] este encargo difícil e peri-
goso. Aceitou esta incumbência com alegria, porque viu nisso o campo de
trabalho já tanto tempo esperado onde podia satisfazer plenamente ao seu
desejo de sacrificar-se... socorria qual anjo de caridade a população desola-
da... (idem, p. 9).
Aqui, omito propositalmente o nome a que a obra de referência é atribuída, com o objetivo ético
37
de preservar a Congregação.
67
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
Para si não conhecia privilégios, senão deveres. Servir aos outros, sacrificar-se
por eles, eis a base de sua vida. O dar-se desinteressadamente, qual mãe,
tornava-a tão veneranda e amável (idem, p. 48).
4.2 Os votos
As Irmãs noviças, pelos primeiros votos que irão emitir, estão se dispondo
a experienciar no cotidiano da vida e dos acontecimentos o jeito de Jesus
Cristo, segundo São Francisco de Assis38.
68
Ser freira
Vejamos agora como os três votos são vividos e representados pelas duas
ordens religiosas estudadas.
4.2.1 Castidade
O voto de castidade, para mim, eu sinto assim: quanto mais eu amo esta
causa, me dedico a este povo, me entrego a esta luta e crio garra com ele
e luto junto com ele, custe o que custar, eu estou exercitando meu voto de
castidade (Irmã Rita, 38 anos).
De fato elas vivem de corpo e alma essa entrega total da vida pessoal em
prol da militância. Essa aproximação ao conceito de castidade, que significa en-
trega a todos, pode parecer contraditória num primeiro olhar, mas na realidade
encerra a essência do sagrado, que é “a entrega total a Deus”.
Autores como Maffesoli (1985) – que estuda os rituais sagrados primitivos
sob a ótica das práticas sexuais – e Cevasco (s.d.) – que trabalha sobre os textos de
Santa Teresa de Ávila –, convergem nas suas interpretações sobre a aproximação
do sagrado com a sexualidade. Nos textos de Santa Teresa de Ávila, por exemplo,
toda referência de entrega a Deus é uma referência de entrega dos sentidos que
assume um caráter extremamente erotizado. Já Maffesoli faz um inventário das
39
Livreto Primeira Profissão (fevereiro, 1987).
69
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
práticas “profanas” dentro dos rituais sagrados, mostrando que o sexo é fonte de
êxtase ritual e que, em inúmeras comunidades religiosas, a entrega a Deus atra-
vés da sexualidade foi prática corrente pelo menos até o final da Idade Média. O
romance As Brumas de Avalon, de Marion Bradley, mostra, de forma fascinante,
como a Igreja Católica se reapropria, durante a Idade Média, de símbolos e de
práticas religiosas pagãs – nas quais as mulheres detinham o poder por se aproxi-
marem simbolicamente da terra e da fertilidade –, transformando-as em práticas
cristãs isentas de toda e qualquer sexualidade. A Igreja, ao mesmo tempo em que
destrói as religiões pagãs nas quais a sexualidade fazia parte dos rituais de fertili-
dade e de entrega à divindade representada sob uma ótica feminina, constrói sua
prática sob o signo da culpa e reconstrói a ideia de “entrega total” sob a ótica de
sublimação.
Esse rápido resumo da transformação de práticas rituais em que a sexuali-
dade era elemento essencial da “entrega total” em práticas em que o sexo é total-
mente excluído – pois totalmente sublimado na oração ou no trabalho – pode-nos
auxiliar a compreender como o discurso que hoje a Igreja progressista constrói
sobre o significado da castidade para as religiosas não é antagônico ao discurso
que dominou a Instituição Católica durante alguns séculos.
Creio não ser necessário deter-me ao discurso tradicional sobre a castidade,
pois este carece de maiores elaborações teóricas pela maneira como foi assumido
pela Igreja ao longo dos séculos, determinando não apenas o comportamento dos
religiosos, mas também dos leigos e particularmente das mulheres e dos casais,
como nos mostra Maria Teresa Ribeiro (1986). No entanto, o discurso progressis-
ta me suscita indagações sobre as transformações ideológicas na Igreja a respeito
da vida religiosa feminina, sobretudo porque o discurso progressista se reveste
de uma dupla moral no que tange a comportamentos masculinos e femininos ao
transformar o caráter da sublimação da sexualidade feminina (que continua sob
controle) e ao introduzir a possibilidade de vivência da sexualidade por parte de
padres que consideram legítimo o casamento40.
40
Mesmo sabendo que a comparação padre/religiosa não é uma comparação biunívoca, pois o
correto seria comparar freiras com frades (ambos vinculados a ordens religiosas), creio ser pos-
sível fazer essa comparação no caso das freiras apostólicas, pois elas assumem tarefas “no mundo”
e muito seguido ocupam o próprio lugar do padre em tarefas catequéticas e de organização das
comunidades cristãs.
70
Ser freira
Eu vejo muitos padres que são ótimos no trabalho, um trabalho bonito, mas
nesta parte afetiva... não sei, eles parece que precisam desta parte, de casar,
de ter uma mulher, de sexo (Irmã Rita, 38 anos).
41
Faço referência aqui precisamente à questão da homossexualidade feminina que algumas freiras
americanas relatam num livro recentemente traduzido e lançado com sensacionalismo no Brasil:
“Freiras Lésbicas”. A possibilidade de vivenciar assumidamente a homossexualidade nos conventos
me parece vinculada às mudanças de mentalidade nos EUA a respeito da homossexualidade pro-
vocadas pelas ações dos novos movimentos sociais, particularmente o feminismo e o movimento
gay. Apesar do vasto imaginário popular sobre tais práticas nos conventos, creio que as práticas ho-
mossexuais são quase que inexistentes nos grupos que estudei – o que não exclui uma sublimação
enorme da afetividade em outras atividades. Os relatos de ex-freiras confirmam essa hipótese. O
mesmo observou Catherine Baker (1979) entre as contemplativas na França.
71
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
Assim são compreendidos hoje os votos emitidos pelas religiosas como sen-
do uma forma de testemunho público e político do religioso, uma vez que
se concretizam neles atitudes críticas aos valores propugnados pelo sistema
dominante. “As promessas de pobreza, castidade e obediência são conside-
radas pela literatura sobre o assunto, como formas de se negar a exploração
capitalista do proletariado, a ‘sexualização’ geral, comercializada, degradada”,
que estabelece “o consórcio sexo-dinheiro como forças conjugadas na tarefa
opressora”, a exacerbação da liberdade individual (LIBÂNIO, 1980, p. 70).
Não é raro vermos, para o clero casado (sic), a expressão de que o casamen-
to implica necessariamente um aburguesamento. E “aburguesamento” com
amplos desdobramentos: desde o aburguesamento econômico (são todos
muito bem aproveitados como treinadores de pessoal das grandes empresas
e bancos) até o aburguesamento político. E mais, padres que casaram foram
marginalizados do trabalho pastoral popular não só porque casaram, mas
também porque eram vistos como os que concederam no “aburguesamento
afetivo” de mulher e filhos e não mais se dedicavam integralmente à causa
da pastoral popular.
4.2.2 Pobreza
42
Livreto Primeira Profissão (fevereiro, 1987).
72
Ser freira
4.2.3 Obediência
Assim sucede com o perfeito obediente: não pergunta por que razão é
mandado, não se preocupa com saber aonde deverá ir; em nada procura
subtrair-se ao seu dever. Chega-se às normas, isto lhe aumenta a humilda-
de; quanto mais os outros o louvam, tanto mais apoucado ele se considera.
Eu nunca reclamei de nada, porque, pra ser freira, tem que obedecer. Assim
como na família a gente aprende a obedecer à mãe, na Congregação tem de
obedecer às superioras... (Irmã Cecília, 76 anos).
73
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
74
Ser freira
75
Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
43
Cabe aqui lembrar os trabalhos da década de 1980/1990 de Gilberto Velho (cf. VELHO, 1981,
1994) sobre o significado da noção de projeto individual na constituição das camadas médias brasi-
leiras para entender que estávamos, naquele momento, em um processo profundo de transformação
da sociedade urbana brasileira e que a Congregação representava, ainda naquele momento, o mode-
lo holista de sociedade analisado por Louis Dumont em Homo Hierarchicus (1978).
44
A respeito das categorias holismo e individualismo, conferir Dumont (1978).
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Ser freira
quando não representa uma única voz. No entanto, o peso da Instituição Igreja e
do sentimento de culpa é muito forte, o que limita também o que Pierre Bourdieu
(1979) chama de campo de possibilidades delas. Vejamos, por exemplo, a queixa
de Rita. Ocupando um cargo de responsabilidade junto às creches instaladas em
várias comunidades periféricas, Rita se sente cansada desse tipo de trabalho de
assessoria que realiza há vários anos e deseja começar um novo projeto junto aos
colonos sem-terra em outra região do país. Pergunto-lhe por que não fez o que
deseja, e ela me explica que “não pode abandonar seu cargo de responsabilidade”,
uma vez que, no momento, “não há ninguém que possa substituí-la” e que “o povo
necessita dela” no lugar onde está agora. Aqui a obediência é “ao povo”, às necessi-
dades da luta política – estes imperativos a qualquer projeto individual45.
O Poder da Madre não se limita apenas a fazer com que as inferioras hierár-
quicas sigam a vontade de Deus. Ele se estende ao controle total do que acontece
no interior do convento e no interior de cada uma das irmãs. No aspirantado, por
exemplo, as meninas devem escrever num caderno os resumos dos livros e outras
reflexões pessoais. Esse caderno deve ser enviado à Madre Superiora, que aparen-
temente os lê e, assim, acompanha o desenvolvimento da vocação das aspirantes.
De fato, com isso elas reforçam o poder da Madre, que, além de todas as suas
obrigações, zela sobre o próprio pensamento de suas comandadas. E as meninas,
ao saberem que a Madre vai ler o que elas escrevem, devem evidentemente cons-
truir um tipo de discurso possível de ser controlado. Elas aprendem, com isso, não
apenas a pensar e a escrever o que é “possível” e “louvável”, mas a interiorizar a
própria lógica do sistema totalitário da instituição, o que mostra como o controle
é uma das formas de reforçar a hierarquia46.
45
Destaco aqui as pesquisas de Elisete Schwade (1993) sobre a militância católica no MST (Movi-
mento Sem-Terra), em que valores holistas tradicionais do campesinato e individualistas modernos
são articulados em permanência.
46
Modelo de construção de individualismo moderno descrito por Norbert Elias em O Processo
Civilizador (cf. ELIAS, 1978, 1982) e mais tarde pensado por Michel Foucault (1988) como processo
de assujeitamento do indivíduo moderno.
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Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
4.3.3 Hierarquia
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Ser freira
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Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
vivido nas suas famílias de origem. É claro que sempre houvera exceções à regra
(o que apenas a confirma), isto é, de “colonas” atingirem cargos de direção e as-
cenderem no ramo “intelectual” da Congregação.
Segundo os relatos, essa foi também uma das razões que levaram o grupo
progressista a se afastar de sua congregação de origem, que era reconhecidamente
a congregação que exigia o maior dote para a entrada de aspirantes.
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Ser freira
Assim como as irmãs amam a madre como filhas, a madre ama a Virgem
Maria como se esta fosse sua mãe: “à piedade da Madre teria faltado algo de essen-
cial, se não tivesse uma dedicação filial à bem-aventurada Virgem Maria” (idem,
p. 42), porque, se o Papa representa Cristo, no imaginário das freiras a Madre
representa a Virgem Maria.
Entre as irmãs, o que deve existir é o amor fraterno, porque, além de tudo,
nelas está Cristo, o esposo:
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Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
Nessa citação é também possível ver como vai reforçando-se a ideia de que
as mulheres são “por essência” frágeis e de que necessitam do apoio masculino. “A
plantinha de São Francisco sabia ser mãe e aceitava ser filha. De todos tinha algo
a ouvir e a aprender” (idem).
4.3.6 Família
Eu só conheço o caso de uma viúva jovem que pediu ao Santo Padre para
entrar no convento e conseguiu. Ela não tinha filhos... porque, se vem uma
freira com filhos para criar, vão ficar dizendo que as freiras têm filhos...
(Irmã Cecília, 76 anos).
Vejo velhinhas de cabelos brancos. São como avós que contam histórias
afagando os cabelos das netinhas. Vocês, jovens, precisam ouvir as histórias
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Ser freira
4.3.7 O cotidiano
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Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
semana é que elas se dedicam à limpeza da casa; e, no dia a dia, tentam revezar-se
no preparo das refeições.
4.3.8 O trabalho
É pelo trabalho que elas vão se sagrar boas religiosas. Antigamente o traba-
lho era muito mais difícil, não havia férias nem descanso nos fins de semana. Nos
hospitais, elas trabalhavam dia e noite. Atualmente, as irmãs têm direito a 22 dias
de férias, dos quais oito são utilizados num retiro anual obrigatório junto com as
outras irmãs. A congregação se encarrega de todas as despesas com as irmãs, as
quais recebem apenas uma pequena quantia (mais ou menos Crz$ 300,00 no 1º
semestre de 1987) para a compra de produtos de uso pessoal, como sabonete, pas-
ta de dente e eventualmente alguma roupa. Afinal, como me explicou Irmã Glória,
“tudo dura, não é que nem gente do mundo de fora, que tá sempre comprando
roupa; a gente usa até gastar”.
Os trabalhos que realizam as freiras são basicamente nas áreas de educa-
ção e saúde, além do trabalho doméstico dentro das comunidades e em Igrejas,
seminários e mosteiros. Sobre esse tipo de trabalho das freiras para os padres,
no Canadá e na Itália o movimento feminista produziu alguns documentos que
analisam a exploração das mulheres religiosas pela Igreja Católica. As canadenses
fizeram um filme intitulado Empregada do Padre, no qual mostram o trabalho das
freiras que auxiliam os padres nas paróquias. As italianas escreveram um livro so-
bre o mesmo tema, As Empregadas de Cristo. Esse mesmo tipo de crítica à explo-
ração da mão de obra feminina religiosa pela Igreja mal começa a ser formulado
por algumas irmãs progressistas ligadas à Conferência dos Religiosos do Brasil
(CRB), críticas ainda muito reservadas ao espaço restrito das próprias religiosas.
Maria Lygia Quartim de Moraes, num artigo sobre as políticas públicas e a condi-
ção feminina no Brasil, faz uma simpática observação à exploração das mulheres
religiosas no quadro das explorações das mulheres brasileiras:
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Ser freira
4.3.9 O retiro
A gente faz adoração durante o carnaval porque Jesus Cristo precisa ser re-
confortado de todos os pecados cometidos nesta época lá fora. A adoração
começou no domingo e vai até hoje, terça-feira (Irmã Inês, 65 anos).
4.3.10 A morte
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Três décadas depois:
algumas conclusões
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Jeito de Freira: Uma Etnografia da vocação religiosa feminina no século XX
[ VOLTA AO SUM ÁR IO ]
88
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[ VOLTA AO SUM ÁR IO ]
95
Miriam Pillar Grossi é professora titular do
Departamento de Antropologia da Universi-
dade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Presidente da ANPOCS - Associação Nacional
de Pós-Graduação em Ciências Sociais
(2019/2020). Foi vice-presidente da Interna-
t i o n a l U n i o n o f A n t h ro p o l o g i c a l a n d
Ethnological Sciences (IUAES- 2013/2018) e
presidente da Associação Brasileira de
Antropologia (ABA 2004/2006). Coordena-
dora do Núcleo de Identidades de Gênero e
Subjetividades (NIGS) da UFSC. Ocupou a
cátedra Ruth Cardoso junto à Columbia
University de janeiro a maio de 2017, com
apoio da Fulbright/CAPES. Doutora em
Anthropologie Sociale et Culturelle -
Université de Paris V (1988), com estágios
pós-doutorais no Laboratoire d' Anthropo-
logie Sociale - Collège de France (1996/1998),
na University of California-Berkeley e EHESS
(2009/2010).
E
ste livro apresenta uma etnografia da vida religiosa
feminina, realizada entre 1986 e 1987, que visou enten-
der as motivações que levavam jovens mulheres a
escolher a entrada em uma congregação religiosa como
projeto de vida, na contracorrente do ideário individualista
moderno, influenciado pelos movimentos feministas, que
passou a reger a sociedade brasileira no último quarto do
século XX. A pesquisa revelou a complexidade da vida religio-
sa feminina, sendo tanto um espaço de resistência quanto de
submissão à rígidas normas institucionais que refletem a
dominação masculina no interior da Igreja Católica.
ISBN: 978-65-86602-10-4
9 7 8 6 5 8 6 6 0 2 1 0 4