Praticas e Reflexoes 7
Praticas e Reflexoes 7
Praticas e Reflexoes 7
IPHAN
Patrimônio:
Práticas e Reflexões
PATRIMÔNIO E FRONTEIRAS
ANAIS DA IV OFICINA DE PESQUISA
PATRIMÔNIO:
PR ÁTICAS E REFLEXÕES
PATRIMÔNIO e FRONTEIR AS
ANAIS DA IV OFICINA DE PESQUISA
1
Presidente da República
Dilma Roussef
Ministro da Cultura
João Luiz Silva Ferreira
Presidente do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional
Jurema de Sousa Machado
Departamento de Planejamento
e Administração
Marcos José Silva Rêgo
Departamento do Patrimônio Material
e Fiscalização
Andrey Rosenthal Schlee
Departamento do Patrimônio Imaterial
TT Catalão
Departamento de Articulação
e Fomento
Luiz Philippe Peres Torelly
Coordenação-Geral de Documentação
e Pesquisa (Copedoc)
Lia Motta
Ministério da Cultura
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
PATRIMÔNIO:
PR ÁTICAS E REFLEXÕES
PATRIMÔNIO e FRONTEIR AS
ANAIS DA IV OFICINA DE PESQUISA
3
Patrimônio: Práticas e Reflexões nº 7
Patrimônio e Fronteiras:
Anais da IV Oficina de Pesquisa
Organização
Claudia Feierabend Baeta Leal
Revisão Técnica
Bettina Zellner Grieco
Claudia Feierabend Baeta Leal
Lia Motta
Luciano dos Santos Teixeira
Projeto Gráfico
Marcela Perroni – Ventura Design
Diagramação
Bettina Zellner Grieco
Foto Capa
Oscar Henrique Liberal
ISBN 978-85-7334-290-1
CDD – 363.690981
Sumário
Apresentação 7
Programação 9
O patrimônio jesuítico e as fronteiras diluídas entre História e
Arqueologia: Ruínas de Brejo de São João/PI
Ana Stela de Negreiros Oliveira e
Nívia Paula Dias de Assis (Iphan/Pi) 11
5
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
6
Apresentação
Os anais da IV Oficina de Pesquisa do Iphan : patrimônio e fronteiras apresen-
tam trabalhos dos servidores do Iphan que participaram da Oficina, reali-
zada no Rio de Janeiro entre os dias 20 e 24 de setembro de 2010, organizada
pela Coordenação-Geral de Documentação e Pesquisa do Departamento de
Articulação e Fomento (Copedoc/Daf).
O tema central – patrimônio e fronteiras – foi sugerido na reunião final
dos Grupos de Trabalho da III Oficina de Pesquisa: a questão do nacional no
Iphan, realizada em 2009. Ao final daquele encontro, chamou-se a atenção
para um tema que permeava todas as discussões relativas ao valor nacional:
as fronteiras. Estiveram presentes ao longo dos debates as fronteiras interins-
titucionais, como a manutenção da dicotomia entre o patrimônio de natureza
material e imaterial; entre territórios considerando aqueles delimitados poli-
ticamente e os culturais, afetando muitas vezes os procedimentos entre uni-
dades do Iphan e entre a instituição e os poderes locais; métodos de trabalho
que levam fragmentação dos objetos de estudo em razão da aplicação de ins-
trumentos, como inventários temáticos; entre os olhares das distintas áreas
de conhecimento, que trazem o desafio da interdisciplinaridade. Decidiu-se
então que o tema da IV Oficina de Pesquisa do Iphan abordaria o tema fron-
teiras como lugar de encontro, de troca e de diálogo para o enriquecimento
das formas de percepção dos objetos, mas também de conflitos e disputa que
devem ser compreendidos como legítimos nos processos de atribuição de va-
lor de patrimônio.
A Oficina se estruturou em quatro eixos principais que contribuíram para
orientar as discussões, seja nos grupos de trabalho, seja na organização das
comunicações e das palestras dos convidados: Fronteiras Institucionais; Fron-
teiras da Preservação; Fronteiras Culturais e Fronteiras do Conhecimento. Tal
organização visava cobrir o maior espectro possível de questões relacionadas
ao tema, envolvendo aspectos administrativos e técnicos das ações do Iphan.
De especial relevo, estavam os desafios do funcionamento da Instituição em
rede, com todos os desafios surgidos dos limites e potencialidades das ações
compartilhadas, do Iphan com outros órgãos de preservação, do governo fe-
deral com estados e municípios, no tocante à preservação do patrimônio cul-
tural e da Instituição com outras correlatas, no Ministério da Cultura e fora
7
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
8
Programação
IV Oficina de pesquisa do IPHAN: patrimônio e fronteiras
Segunda-feira, 20/09/2010
09:00 Abertura:
Participantes Márcia Rollemberg – Diretora do Departamento de Articulação e Fomento
Lia Motta – Coordenadora-Geral de Documentação e Pesquisa
9:30 Mesa Redonda: Fronteiras Institucionais
Participantes Jurema Machado – Coordenadora Cultural Unesco Brasil
Rosina Parchen – Coordenadora do Patrimônio Cultural (SEEC/
PR) e Diretora do Comitê Brasileiro do Icomos
Jaime Antunes da Silva – Diretor-Geral do Arquivo Nacional
14:00 Comunicações – Fronteiras da Preservação: Território
Participantes Ana Stela Oliveira (IPHAN/PI): A presença da Companhia de Jesus no
Piauí Colonial
Juliano Martins Doberstein (IPHAN/PR): A Parte do Todo: o
regionalismo paranista e o estabelecimento da política federal de
preservação do patrimônio cultural brasileiro (anos 1920-1930)
Maria Tarcila Guedes (Copedoc/DAF): Patrimônio e fronteiras: a participação
brasileira nas Conferências Panamericanas
16:15 Comunicações – Fronteiras da Preservação: Instrumentos
Participantes Caroline Maciel Lauar (IPHAN/ES): Convento da Penha: o status da Paisagem
Cultural como instrumento efetivo de proteção no planejamento urbano”
Heliana Lima de Carvalho (IPHAN/RN): Estudos sobre o patrimônio naval do
Rio Grande do Norte: Inventário das Embarcações Tradicionais e do Ofício
da Pesca Artesanal do litoral oriental potiguar
Maria Emília Freire e Marcelo Freitas (IPHAN/PE): Patrimônio agroindustrial
em Pernambuco: usinas de açúcar e caminhos de ferro na formação da
paisagem cultural da Zona da Mata pernambucana
Terça-feira, 21/09/2010
09:00 Mesa Redonda: Fronteiras Culturais
Participantes Antônio Gilberto Ramos Nogueira – Professor do Departamento de História
da Universidade Federal do Ceará
Izabela Tamaso – Professora do Instituto de Ciências Humanas e Letras da
Universidade Federal de Goiás
Silvia Helena Zanirato – Professora do Curso de Gestão Ambiental da
Universidade de São Paulo e do Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Estadual de Maringá.
14:30 Grupos de Trabalho – Reuniões dos Grupos de Trabalho: Fronteiras institucionais/ Fronteiras Culturais
16:15 Grupos de Trabalho – Reunião Geral dos Grupos de Trabalho
9
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
Quarta-feira, 22/09/2010
09:00 Comunicações – Fronteiras culturais: apropriações do patrimônio
Participantes Emanuel Oliveira Braga (IPHAN/PB): Entre o cotidiano e o evento: patrimônio
imaterial e políticas públicas
José Leme Galvão Júnior (DEPAM): Rede cooperativa de arquiteturas de terra
Patrícia Gomes Marques (IPHAN/MS): Banho do São João de Corumbá/MS
Pedro Gustavo Clerot (Cogedip/DAF): Povos do Grande Serão Veredas: uma
fronteira literária nas Gerais
Selmo José Norte (DEPAM): Antigos Quilombos, invisibilidade social e uni-
versos simbólicos: especificidades étnicas e culturais definindo o processo
de tombamento
14:00 Comunicações – Fronteiras do conhecimento: interdisciplinaridade
Participantes Guilherme Carvalho da Silva (CNA/ DEPAM): Cascos e lascas: fragmentos
de um patrimônio
Luciano dos Santos Teixeira (Copedoc/DAF): Nas fronteiras da História: a
preservação do patrimônio entre a memória e o esquecimento
Renata Santos (Copedoc/DAF): Fronteiras e limites de um bem tombado: o
caso da Marina da Glória
16:15 Comunicações – Fronteiras do conhecimento e políticas públicas
Participantes José Clewton do Nascimento (IPHAN/CE): Intervenções urbanas em sítios
históricos cearenses: aproximações e distanciamentos entre o concedido e
o vivido – o caso de Sobral
George Alex da Guia (DEPAM): Fronteiras do conhecimento e gestão do
patrimônio cultural: porosidades e permanências
Simone Toji (IPHAN/SP): Entre o material e o imaterial: o patrimônio cultural
brasileiro e a expressão de um Estado contraditório
Quinta-feira, 23/09/2010
9:00 Grupos de Trabalho – Reuniões dos Grupos de Trabalho: Fronteiras institucionais/ Fronteiras Culturais
11:15 Grupos de Trabalho – Reunião Geral dos Grupos de Trabalho
Sexta-feira, 24/09/2010
9:00 Mesa Redonda: – Fronteiras da preservação
Participantes Juliana Santilli – Promotora de Justiça do Ministério Público/DF
Maria Laura Cavalcanti – Professora do Departamento de Antropologia
Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Paulo César Boggiani – Professor do Instituto de Geociências da Univer-
sidade de São Paulo e membro do Conselho Estadual de Monumentos
Geológicos do Estado de São Paulo
14:00 Encerramento – GTs
Plenária final
10
O patrimônio jesuítico e as fronteiras
diluídas entre História e Arqueologia:
Ruínas de Brejo de São João (PI)
Resumo
Este trabalho tem como objetivo discutir a atuação dos jesuítas na Capitania do Piauí
no século Xviii. Apesar da atuação da Companhia de Jesus no Brasil ser um tema
ainda pouco estudado, especialmente quando se trata das práticas econômicas, no
Piauí é marcante a atuação dos jesuítas como fazendeiros. Buscamos entender como
se deu a ocupação do espaço piauiense a partir da construção de estruturas de fazen-
das, caracterizar as edificações jesuíticas e identificar cultura material. Neste ponto
nos aproximamos do sentido ambivalente de fronteira proposto por Hartog (1999):
o espaço físico, correspondente ao atual estado do Piauí, seria uma zona tramitada
pelos religiosos e pelos povos indígenas, onde nem as adversidades geográficas signi-
ficariam limites às incursões que se dispunham realizar. Por outro lado, o alcance a
este mesmo espaço, por parte dos colonos e do próprio governador, era visto como
tarefa muito complicada. Múltiplas relações envolveram a Companhia de Jesus, gru-
pos indígenas, diferentes latifundiários e autoridades coloniais.
Ana Stela de Negreiros Oliveira é doutora em História do Brasil. Foi chefe do Escritório Técni-
co de São Raimundo Nonato-PI, e atualmente está lotada na Superintendência do IPHAN no Piauí,
em Teresina.
Nívia Paula Dias de Assis é mestre em História e Espaços pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN). Atualmente é professora assistente no curso de Arqueologia e Preservação Patrimo-
nial da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF).
11
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
12
Quase 300 anos após serem obrigados a abandonar as terras que hoje corres-
pondem ao estado do Piauí, os jesuítas que administraram algumas das mais
importantes fazendas de gado da Colônia durante o séc. Xviii, terminaram
por despertar instituições de apoio e fomento à pesquisa e a cultura neste Es-
tado. Trata-se de uma “releitura de capítulos da história colonial” que conta,
hoje, com uma perspectiva interdisciplinar voltada para a análise não somen-
te histórica, como também arqueológica.
Durante décadas, os trabalhos de arqueologia voltados para períodos histó-
ricos limitavam-se a corroborar afirmações contidas em fontes escritas. Com
o aprofundamento dos estudos sobre cultura material, porém, a Arqueologia
Histórica assume um novo perfil, o de produzir conhecimento confrontando
dados materiais e escritos. Com tal metodologia é possível que se obtenha não
somente confirmações, como também refutações de informações conhecidas.
A colonização do Piauí, iniciada em meados do século Xvii, trouxe à tona,
além do conjunto de intervenções econômicas pautadas na criação do gado,
novos modos de vida desenvolvidos ou mesclados em tal território. Bandei-
rantes paulistas, vaqueiros vindos da Bahia e de Pernambuco, missionários
jesuítas e escravos passaram a dividir um espaço até então ocupado somente
por povos indígenas.
Quando chegaram ao Piauí os primeiros vaqueiros colonizadores e asso-
ciados, provenientes da importante fazenda baiana Casa da Torre1, em finais
do século Xvii, instalaram-se definitivamente os latifúndios de gado em tal
cenário, sendo o principal fazendeiro da região limítrofe à Bahia2 , Domingos
Afonso Mafrense. Em 1711, após a sua morte, sem herdeiros, seu testamen-
to beneficiou com importantes fazendas de gado, a Companhia de Jesus. Os
jesuítas, por sua vez, que já haviam instalado alguns poucos núcleos missio-
neiros em tal território, terminaram por consolidar sua presença no mesmo
como “gestores de fazendas” e “negociantes de gado”.
Diante de tal contexto histórico, o trabalho desenvolvido pela Superin-
tendência do Iphan no Piauí, consiste em tombar os vestígios, ruínas e cul-
1 Garcia d’Ávila foi o fundador da Casa da Torre, mas coube ao segundo Garcia d’Ávila dar início à
penetração para o oeste, que foi continuada por seu sucessor, Francisco Dias d’Ávila, e o neto deste, o
segundo Francisco Dias d’Ávila, os quais completaram a penetração e a ocupação. A família tornou-se
assim grande proprietária de terras e muito poderosa devido aos acordos e acertos firmados com o go-
verno (CALMON, 1958).
2 Hoje região sudeste do Piauí, área geográfica que tem como base o rio Piauí, o principal curso d´água
da região, com nascente no divisor de águas com a bacia do São Francisco.
13
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
3 Tema também nas obras de NUNES (1975), MOTT (1985), MELO (1991) e LIMA (2005).
14
sítio arqueológico Brejo de São João. Tudo isso de modo a confrontar a hipó-
tese de que teria sido esta uma construção realizada pelos missionários jesuí-
tas no início do século Xviii. A partir do material arqueológico encontrado no
local constatou-se, a necessidade de dar continuidade às pesquisas nessa ruína
e ampliar a pesquisa para os municípios de Santo Inácio e Nazaré do Piauí.
Trata-se de uma pesquisa em nível preliminar, mas que vem possibilitan-
do o reconhecimento de uma importante área econômica dinamizada pelos
padres jesuítas durante toda a primeira metade do século Xviii. Tal trabalho
resultará, possivelmente, numa importante base de elementos indicativos so-
bre uma das principais unidades produtivas do interior da colônia: a fazenda
de gado. O estudo das ruínas do que teria sido uma das principais fazendas
pertencentes aos religiosos na capitania do Piauí, hoje analisada enquanto sí-
tio arqueológico, pode fornecer dados sobre a distribuição espacial das cons-
truções erigidas em função de tal atividade, e, a partir da cultura material
encontrada, – com a possibilidade de inferências fundamentais para análises
posteriores e mais avançadas –, pistas sobre o cotidiano de tais fazendas.
Em relação à importância de tal pesquisa, enquanto uma abordagem inter-
disciplinar inédita sobre a presença da Companhia de Jesus no Piauí, com o
recorte temporal abrangido, ela pode ser também caracterizada como traba-
lhando com o período auge de disputa pelo território equivalente à Capitania
do Piauí, entre autoridades e clérigos do Estado do Brasil e da Capitania do
Maranhão Grão-Pará.
15
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
4 O sistema de sesmarias foi abolido somente em 1822, e a ocupação da terra passou a ser feita pelo re-
gime de posse. É interessante destacar que uma data de sesmarias poderia conter mais de uma fazenda
de gado e sítios.
16
Assim sendo, as ditas fazendas passaram a ser administradas pelos jesuítas:
Em estudo realizado por Cláudio Melo, o autor informa que, quando o je-
suíta padre Manuel da Costa chegou ao Piauí para tomar posse das fazendas,
o patrimônio já estava sendo distribuído entre os filhos naturais de Domingos
Afonso Mafrense. De acordo com o autor, o processo do inventário durou
cinco anos (Melo, 1991).
Os jesuítas, logo no mesmo ano da morte de Domingos Afonso Mafrense,
tomaram posse das fazendas, sendo o primeiro administrador o padre Ma-
nuel da Costa. Já o reitor do Real Colégio da Bahia era o jesuíta italiano João
Antônio Andreoni5.
A mais importante das fazendas da Companhia veio a ser a Vila da Mocha,
primeira capital do Piauí, hoje cidade de Oeiras. De acordo com o testamento
de Domingos Afonso Mafrense, as fazendas foram doadas na condição de não
serem alienadas, devendo se construir no local uma capela ou morgado, e sua
5 O jesuíta chegou ao Brasil em 1681 e exerceu diversos cargos na instituição, desde diretor de estudos e
secretário particular do padre Vieira, quando este ocupou o cargo de visitador geral, a reitor do Colégio
da Bahia. Mas ficou conhecido por seu trabalho Cultura e opulência do Brasil, editado em Lisboa em 1711.
17
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
renda ser aplicada para ajudar donzelas, viúvas e pobres; com o que sobrasse,
seriam adquiridas novas fazendas (Sertão, 1867). Nas fazendas administra-
das pelos jesuítas, em 1739, já havia cerca de 30.000 cabeças de gado vacum e
164 trabalhadores.
Os fundos provenientes das fazendas piauienses davam sustentação a uma
das mais importantes fundações culturais do Brasil colonial, o Colégio da
Bahia. Deste modo, a nova constituição administrativa que seria abordada
nas terras piauienses terminaria por refletir em um quadro de indivíduos com
certo preparo intelectual.
Do importante Colégio da Bahia, a principal instituição a receber investi-
mentos, possivelmente teriam surgido práticas e controles contábeis articula-
dos diretamente à direção das próprias unidades produtivas.
Os religiosos demonstraram habilidade grande com o patrimônio herda-
do no Piauí exercendo grande influência na área em que atuaram; tudo isso,
porém, aproveitando-se do trabalho de escravo e vaqueiros, entre mestiços,
negros e índios domesticados.
Para Odilon Nunes, a administração das fazendas de Domingos Afonso
Mafrense pelos jesuítas constituiu-se fundamental para a coesão do territó-
rio, transformando-o em um todo homogêneo; o que impediu a dispersão por
pequenos donos, tendo em vista que isso poderia facilitar a atração de aventu-
reiros de regiões vizinhas. Esse fato tornou-se importante para o processo de
criação da Capitania, da Província e depois do Estado do Piauí (Nunes, 1975).
Por outro lado, a concentração de riquezas na Companhia de Jesus trans-
formou tal ordem em alvo de sérias medidas intervencionistas. A Coroa por-
tuguesa temia o poderio religioso, que se instalava na colônia, e percebia o
patrimônio já organizado pelos jesuítas como importante fonte de recursos
a ser utilizada.
Em 1758, o poder temporal dos jesuítas foi suprimido em todo o Brasil, e,
em 1759, o governo português decretou a expulsão da Companhia de Jesus de
todo o Império português.
Em 1760, os jesuítas do Piauí foram presos e remetidos para a Bahia; den-
tre eles, os padres João de Sampaio, Manuel Cardoso e José Figueiredo e os
leigos Jacinto Fernandes e Donato Antônio Ferreira, que residiam na cape-
la instituída por Domingos Afonso Mafrense. Encontravam-se mais dois em
Parnaguá, os quais foram presos e remetidos para a cidade de São Luís (Nu-
nes, 1975). Na relação dos bens que foram sequestrados dos jesuítas, assinada
18
pelo governador João Pereira Caldas, constavam 31 fazendas de gado vacum e
cavalar, três residências com suas roças e 49 sítios arrendados a particulares.
Após a expulsão desses missionários do Brasil, suas fazendas passaram
para a Real administração, sendo denominadas Fazendas do Fisco ou Fazen-
das do Real Fisco. As terras e propriedades confiscadas foram redivididas em
três inspeções: Canindé, Nazaré e Piauí, tendo cada uma sua sede, chamada
residência, onde morava o administrador responsável por aquela inspeção, o
qual era um enviado de Portugal e pago pelo erário real. Para cada fazenda,
foi nomeado um criador.
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
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Ana Amélia de Paula Moura
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
22
Figura 6 Metal.
Fonte: Acervo IPHAN.
Considerações finais
No estágio atual da pesquisa, estrutura-se em parceria com a Fundação Mu-
seu do Homem Americano6 uma primeira escavação arqueológica para o ano
de 2011, sendo que o objetivo final de tal trabalho, como já fora enunciado,
6 A Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM) foi criada no ano de 1986 em São Raimundo
Nonato, estado do Piauí. Trata-se de uma entidade científica, filantrópica, sociedade civil (OSCIP), sem
fins lucrativos. Atua formalmente ligada às instituições dos governos federal, estadual e municipal e tem
a responsabilidade técnico-científica de Unidade de Conservação.
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
Figura 7 Disposição de material arqueológico no interior das ruínas. Fonte: ASSIS (2009).
24
Referências
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do Piauí. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo XX, 1857.
Antonil, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982
Assis, Nívia Paula Dias de. Sítio arqueológico Brejo de São João: um estudo de caso sobre a pre-
sença da Companhia de Jesus no Piauí – séc. Xviii. 2009. Monografia (Graduação em Arque-
ologia e Preservação do Patrimônio) – Universidade Federal do Vale do São Francisco, 2009.
Assunção, Paulo de. Negócios jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São
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Calmon, Pedro. História da Casa da Torre: uma dinastia de pioneiros. 2. ed. Rio de Janeiro:
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Domingos Jorge Velho e a “Tróia Negra” 1689-1709. São Paulo: Companhia Editora Nacio-
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Sertão, Domingos Affonso. Testamento de Domingos Afonso Sertão, Descobridor do Piauí.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo XX, p. 140-64, 1867.
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Hartog, François. O espelho de Heródoto: ensaios sobre a representação do outro. Belo Hori-
zonte: Editora Ufmg, 1999
Le Goff, Jacques; Nora, Pierre (Dirs.). História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1988.
Leite, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa; Rio de Janeiro: Livraria
Portugália; Instituto Nacional do Livro, 1945. tomo V.
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1871). Passo Fundo: Upf, 2005.
Maxwell, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
Melo, Cláudio. Os jesuítas no Piauí. Teresina: [s.n.]. 1991.
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Silva Filho, Olavo Pereira da. Carnaúba, pedra e barro na Capitania de São José do Piauí. Belo
Horizonte: Ed. do Autor, 2007. 3 v.
25
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
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O patrimônio cultural de Jaguarão (RS)
e a definição das fronteiras meridionais
do Brasil
Resumo
Desde o final de 2008 o Iphan vem trabalhando no dossiê de tombamento do Con-
junto Histórico e Paisagístico de Jaguarão, no Rio Grande do Sul. Jaguarão localiza-
se na fronteira do Brasil com o Uruguai, e descende de um dos acampamentos mi-
litares fundados inicialmente por tropas espanholas, e depois ocupado por tropas
portuguesas, durante as disputas pelo território platino. Entretanto, mesmo com as
divisões políticas que definiram as fronteiras entre os dois países, há uma grande
vinculação entre as referências culturais desta região e os países vizinhos, que vai
desde as características ambientais (localiza-se em uma ampla região definida como
“Bioma Pampa”), hábitos sociais, culinários, tradições etc. Por este motivo, buscou-
se entender como se deu a ocupação territorial e a definição das fronteiras entre o
Rio Grande do Sul e o Uruguai, para compreender o sentido do patrimônio cultural
material e imaterial de Jaguarão.
Anna Eliza Finger é arquiteta e urbanista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), especialista em Conservação e Restauro de Monumentos e Conjuntos Históricos, pelo CECRE
– Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestre e doutora em Teoria e Crítica da Arquitetura pela Uni-
versidade de Brasília (UnB). Técnica do IPHAN em Brasília, lotada no Departamento de Patrimônio
Material e Fiscalização (Depam). Atual coordenadora-geral de Cidades do IPHAN.
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
28
O presente artigo apresenta a proposta de tombamento do Conjunto Históri-
co e Paisagístico de Jaguarão, no Rio Grande do Sul, como patrimônio nacio-
nal pelo Iphan. O Dossiê de Tombamento foi concluído em outubro de 2010,
estando o conjunto sob tombamento provisório, aguardando apreciação pelo
Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.
A proteção de Jaguarão vem abrir caminho para a proteção de uma série
de bens representativos do processo de ocupação territorial e definição das
fronteiras meridionais do Brasil, como os Conjuntos Históricos e Paisagísti-
cos de Bagé, Pelotas, Rio Grande, bem como do núcleo charqueador pelotense
e da Ponte Internacional Mauá (também em Jaguarão), previstos para serem
encaminhados a partir de 2011. Esses bens, além de seu valor arquitetônico,
urbanístico e paisagístico, do ponto de vista histórico estão relacionados a
dois movimentos principais, que serão aqui analisados:
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
30
para as charqueadas, permitindo o rápido desenvolvimento de cidades como
Jaguarão, Bagé e Pelotas, e a formação dos caminhos de articulação territorial,
entre eles o Caminho das Tropas e a implantação da malha ferroviária.
Foram abordadas ainda questões políticas, como as sucessivas revoluções
que mesmo após a independência das colônias, continuaram tendo a região
platina como palco (como a Revolução Farroupilha e a Revolução Federalis-
ta), e o estudo chegou até os dias atuais, com uma caracterização do atual
panorama socioeconômico, características ambientais, potencialidades regio-
nais, entre outros aspectos.
Nesse contexto, a proposta de tombamento do Conjunto Histórico e Pai-
sagístico de Jaguarão, situada na fronteira entre o Brasil e o Uruguai, foi justi-
ficada por este local ser um ponto essencial para a compreensão dos processos
de definição territorial do país, materializando também toda a cultura desen-
volvida a partir dos processos históricos ali ocorridos.
31
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
1 A Ponte Internacional Mauá foi financiada pelo Uruguai em decorrência de uma dívida de guerra com
o Brasil e executada no início do século XX. Este bem está sendo proposto ao Mercosul Cultural como o
primeiro a ser reconhecido como patrimônio transfronteiriço do Mercosul.
2 No Rio Grande do Sul a economia do charque permitiu o estabelecimento de uma classe social econo-
micamente fortalecida, mas que encontrava dificuldades junto ao Governo Central, sendo seus interes-
ses muitas vezes preteridos em favorecimento de outros interesses econômicos politicamente mais bem
representados, como o dos cafeicultores. A tensão entre os pecuaristas no sul e o governo chegou a de-
flagrar conflitos armados, como as revoluções Farroupilha e Federalista, até hoje de grande importância
para a história e cultura gaúcha.
32
permitia vigiar as movimentações das tropas inimigas) em função da já men-
cionada visão privilegiada do espaço no entorno, a cidade implantou-se entre
esses Cerros e o rio, estando constantemente protegida, ao mesmo tempo em
que podia desenvolver seu comércio no entorno do porto.
Respeitando as condições necessárias à defesa, espraiou-se sem obstruir a
visão a partir dos pontos estratégicos, que podem ser claramente observados
na Figura 1. Esses pontos ainda hoje são mirantes privilegiados para a obser-
vação do ambiente natural (composto pelo pampa e cortado pelo Rio Jagua-
rão), de sua área urbana, e também do Uruguai. É, portanto, indissociável a
relação entre a cidade e seu ambiente natural.
A cidade destaca-se pelas características retilíneas de seu arruamento,
possivelmente em função da forte influência espanhola e seu urbanismo, di-
ferenciando-se fortemente das cidades luso-brasileiras fundadas no mesmo
período. Observando a primeira planta da cidade, datada de 1815 (Figura 2), é
possível perceber uma impressionante semelhança entre o traçado urbano de
Jaguarão e plantas de cidades espanholas. Essa característica é reforçada pelo
Figura 1 Detalhe do “Projeto da Fortificação para a Cidade de Jaguarão”, datado de 1865. Na figura
observa-se a posição da povoação às margens do Rio Jaguarão, defronte à povoação uruguaia de Vila
Artigas (atual Rio Branco). Aparecem na figura os cerros que cercam a área urbana, para os quais foram
previstas fortificações, com destaque para os Cerros da Pólvora (acima, à esquerda) e das Irmandades
(abaixo, à direita). Foram previstas ainda outras instalações, bem como uma proteção à própria área
urbana, mas que não chegaram a ser executadas. Fonte: Arquivo do Exército.
33
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
3 A construção da Matriz, iniciada em 1846 e concluída no último quartel do século XIX é, inclusive,
muito posterior às igrejas das demais cidades luso-brasileiras formadas no mesmo período da povoação
do Espírito Santo do Cerrito de Jaguarão, demonstrando uma preocupação secundária em relação à
religião, e o enfoque na função militar da cidade.
34
to de observação e marco referencial para a identificação da cidade a partir
do mar ou dos rios navegáveis. E em função da igreja é que era demarcada a
praça principal e localizados outros equipamentos urbanos, ou seja, o inverso
do que aconteceu em Jaguarão.
Ali, a posição da igreja não apenas não influenciou seu traçado urbano,
como ao ser construída tardiamente, foi implantada com os fundos voltados
para o rio e fachada contínua, inserida entre os demais edifícios precedentes
(Figuras 3 e 4), situação pouco usual nas cidades de origem luso-brasileira.
O conjunto urbano de Jaguarão apresenta-se, portanto, como um sincre-
tismo de influências portuguesas e espanholas, que resultaram em um projeto
urbanístico único, ao qual se soma um conjunto de edificações coloniais, e-
cléticas, art-déco e modernistas, que variam em tipologias, formas de implan-
tação e acabamentos, testemunha dos diversos períodos históricos pelos quais
a cidade passou.
Foi destacado o século XIX, quando, assim como aconteceu em diversas
cidades brasileiras que testemunharam ou estiveram no ponto central de
grandes processos econômicos, Jaguarão também desenvolveu uma arquite-
tura eclética rica e opulenta durante o período áureo da pecuária e produção
Figura 3 Vista da cidade a partir da margem uruguaia do Rio Jaguarão. Observa-se o corpo principal
da Igreja Matriz, com os fundos voltados para o rio. Foto: Anna Finger, abril 2009.
35
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
Figura 4 Fachada da Igreja Matriz, inserida entre os demais edifícios, numa conformação que se
assemelha às ocupações espanholas e contrasta com as luso-brasileiras, onde a igreja geralmente é
destacada na paisagem. Foto: Anna Finger, abril 2009.
36
Figura 5 Edificação no
Centro Histórico de Jaguarão,
onde se observa a delicadeza
na platibanda vazada e demais
acabamentos. Foto: Anna
Finger, abril 2009.
37
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
Referências
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Processo de Tom-
bamento nº. 1.569-T-08: Conjunto Histórico e Paisagístico de Jaguarão, Rio Grande do Sul.
38
Entre o cotidiano e o evento:
patrimônio imaterial e políticas públicas*
Resumo
As políticas públicas referenciadas pelo patrimônio imaterial ampliaram o público
de beneficiados pelos recursos financeiros da área cultural, estabeleceram uma abor-
dagem democrática de diálogo junto às diversas comunidades herdeiras de tradições
diversas e acabaram contagiando o próprio patrimônio material. No entanto, quan-
do essas políticas públicas abordam as comunidades por meio do entendimento de
prática cultural como “bem”, “evento” e “lúdico”, corre-se o sério risco do velho uso
politiqueiro e oportunista do potencial existencial das populações tradicionais.
Emanuel Oliveira Braga é graduado em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia pela Uni-
versidade Federal do Ceará. Atua desde 2006 na gestão de políticas públicas para o patrimônio cultural,
como Técnico da Superintendência do IPHAN na Paraíba.
* Este artigo tornou-se realidade por conta da leitura atenciosa de Izabela Tamaso e Selmo Norte. Izabela
Tamaso acompanhou o texto desde o início, dando importantes contribuições, sugerindo autores fun-
damentais para o debate contemporâneo sobre o tema e incentivando a publicação. Lembro que o tom
ensaístico e o argumento ora desenvolvido é de minha inteira responsabilidade.
39
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
40
As palavras, sejam elas escritas ou faladas, têm uma história e, de certo
modo, também produzem a história. As palavras parecem surgir para res-
ponder a alguns questionamentos, a certos problemas que se mostram em
determinadas épocas e em contextos socioculturais específicos. Nomear é
ao mesmo tempo evidenciar um problema e, de certa maneira, já resolvê-lo.
Nomear, como diria o filósofo francês Michel Foucault, é ter poder sobre a
coisa nomeada, é criá-la.
Como ideia e prática nova, o que se considera “patrimônio imaterial”, ou
“patrimônio cultural imaterial”, obteve aplausos, com justiça, de meio mun-
do acadêmico e de agentes de políticas públicas culturais.
Não é de se estranhar tal alarde otimista dentro de um universo de mo-
vimentos internacionais que gostariam de serem vistos como pós-modernos1
para então poderem brilhar em rótulos tais como “flexíveis”, “democráticos”
e “ecléticos”. Não tardaria para que a Organização das Nações Unidades para
Educação, Ciência e Cultura (Unesco) aceitasse as reivindicações e as redes-
cobertas dos ideais dos vários “Mários de Andrade” presentes nas diversas na-
ções, desde o início do século XX, defendendo a proteção do rico patrimônio
existente nos modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades, e nos
rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade,
do entretenimento e de outras práticas da vida social.
A Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais (1982), organizada pelo
Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), bem como a Re-
comendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (1989) e a
Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003), am-
bas ministradas pela Unesco, apenas tornariam legítimas, institucionalmente,
demandas há muito reclamadas por alguns setores acadêmicos e ativistas da
preservação tributários de paradigmas da Antropologia e da História2 .
1 Aqui me refiro à problematização da tese do geógrafo David Harvey em Condição pós-moderna (1989):
“Vem ocorrendo uma mudança abissal nas práticas culturais, bem como político-econômicas, desde
mais ou menos 1972. (...) Mas essas mudanças, quando confrontadas com as regras básicas de acumu-
lação capitalista, mostram-se mais como transformações da aparência superficial do que como sinais
do surgimento de alguma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial inteiramente nova”. Ver
também o artigo “A expansão do patrimônio: novos olhares sobre velhos objetos, outros desafios...” de
Izabela Tamaso. Segundo a autora: “A nostalgia pelas ‘coisas velhas’, em muitos lugares, suplanta o desejo
pelo progresso e pelo desenvolvimento. Ou melhor, redireciona o desejo” (2006, p. 3).
2 Ver PELEGRINI; FUNARI (2008).
41
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
3 No Brasil e em outros países, optou-se pelo termo “salvaguarda” (e seus equivalentes idiomáticos) em
vez de “preservação” e “proteção” para que as políticas do patrimônio imaterial não ficassem atreladas à
interpretação de “congelamento” de manifestações culturais, intervindo nos critérios de dinâmica cul-
tural e interação social própria de cada contexto local. Ora, “salvaguardar” é, conforme o Dicionário
Aurélio, “pôr fora de perigo; proteger”. Quem “põe fora de perigo e protege”, consequentemente, “pre-
serva”, e quem “preserva”, “salva”, “guarda” e corre o risco semântico e pragmático de “congelar ou
manter a tradição”. Enfim, essas terminologias são escolhas muito mais voltadas para o estabelecimento
de um discurso plausível preocupado com o olhar crítico da academia acerca do conceito de “patrimônio
imaterial” do que um contraponto lógico ao que os vocábulos anteriormente usados pretendiam dizer.
4 As chamadas “comunidades tradicionais” ou “populações tradicionais” são grupos de pessoas que ha-
bitam território em comum e que formaram, ao longo do tempo, um sentimento de pertencimento a sua
terra, seus valores e suas tradições. De acordo com Diegues, as populações tradicionais são aquelas co-
munidades que possuem como principais características: “a) importância das simbologias, mitos e ritu-
ais associados à caça, pesca e atividades extrativistas; b) auto-identificação ou identificação pelos outros
de se pertencer a uma cultura distinta das outras; c) noção de território ou espaço onde o grupo social
se reproduz econômica e socialmente; d) moradia e ocupação desse território por várias gerações, ainda
que alguns membros individuais possam ter-se deslocado para centros urbanos e voltado para a terra de
seus antepassados” (2000, p. 87). Conforme Santana e Oliveira, tratando da questão com recorte jurídico
e nacional, “as populações tradicionais variam de acordo com cada região do Brasil, apresentando traços
culturais que a diferenciam da população que está em seu entorno; são comunidades tradicionais os
‘povos indígenas’, as comunidades ‘remanescentes de quilombos’, os ‘caboclos ribeirinhos’, as ‘comuni-
dades tradicionais urbanas’, as ‘populações tradicionais marítimas’, que se subdividem em ‘pescadores
artesanais’ e os ‘caiçaras’, entre outras” (2005, p. 4).
42
É importante dizer que o Brasil é considerado uma referência internacio-
nal quando o assunto é “patrimônio imaterial”: por meio da organização de
um encontro no Ceará com representantes de várias instituições nacionais,
que resultou em um documento conhecido como a Carta de Fortaleza, em
1997, e por meio da criação de uma legislação específica para os bens tratados
como “intangíveis”, no ano 2000, portanto, três anos antes da Convenção da
Unesco sobre o tema, realizada em 2003.
O contraponto do “patrimônio imaterial” ao também novíssimo “patri-
mônio material”5 se faz valer por meio de pesquisas, entrevistas com “mestres
do saber”, registro imagético de festas centenárias, oficinas de capacitação de
técnicas artesanais históricas, revitalização de praças e mercados públicos etc.
“É um barato” o patrimônio imaterial: as pessoas são ouvidas, valorizadas
e, em alguns casos, passam a ter o sustento da família baseado naquela an-
tiga prática empoeirada pelo tempo! É tão rico o processo, do ponto de vis-
ta da política pública democrática, que influencia as políticas de preservação
de bens edificados, das antigas igrejas barrocas tombadas há não sei quanto
tempo pelos institutos responsáveis pelo patrimônio histórico e artístico mu-
nicipal, estadual e/ou nacional e pelos intelectuais amantes das belas artes e
de pais católicos. Agora os mesmos espaços sagrados são documentados “ima-
terialmente” e projetos de educação patrimonial são pensados, repensados e
aplicados nas escolas próximas àquela igreja do século Xviii feita de adobe!
Lembro aqui da conclusão feita por Marcus Vinícius Garcia, em um artigo
que trata vivência da cultura popular em contextos urbanos e modernos:
5 O patrimônio material nasce dicotomicamente junto com a nova concepção da “imaterialidade” das
coisas. Antes se falava, usualmente, em patrimônio histórico e artístico e isso pretendia englobar toda a
categoria “patrimônio”. A dicotomia “material”/“imaterial” é tributária das Conferências e Convenções
(décadas de 1980 e 1990) citadas logo no início do presente artigo. Atualmente, fala-se em patrimônio
material quando determinado bem tem seu valor fundamentado em bens concretos, materiais. Pode-se
considerar “patrimônio material”: determinadas construções, como os casarões coloniais construídos
em adobe ou com uso de técnicas tradicionais; monumentos, como o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro
ou a ruína de uma antiga igreja; paisagens naturais, como o Parque Nacional de Iguaçu, no Paraná;
pinturas consideradas de grande valor artístico, como as de Di Cavalcanti e Picasso etc. Já quando se fala
em patrimônio imaterial estamos nos referindo a bens culturais que têm sua importância fundamen-
tada na atribuição de valor dada pela comunidade às suas práticas e conhecimentos. Os conhecimentos,
as técnicas e as festas, de grande referência para as diversas comunidades, são bens imateriais. Pode-se
considerar patrimônio imaterial, por exemplo: celebrações, como a Festa do Divino, a Festança de Vila
Bela/MT, ou um Ritual Indígena; formas de expressão, como Siriri e o Samba de Roda; feiras públicas,
como a Feira de Caruaru/PE e a de Campina Grande/PB; ofícios, como a técnica tradicional de produção
de panelas de barro e o modo artesanal de fazer a viola-de-cocho.
43
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
44
fica o valor de um bem cultural de natureza imaterial perante toda a sociedade
nacional. A partir dele, uma série de políticas públicas torna-se possível a fim
de proteger e salvaguardar, em nome da sociedade brasileira, tradições como
a Capoeira, o Samba de Roda, o Círio de Nazaré, o Modo de Fazer Viola de
Cocho, entre outras manifestações consideradas patrimônio imaterial.
No texto do citado Decreto, podemos perceber diferenças de diretrizes e
interpretações em relação ao Decreto Lei nº. 25, de 1937, que organiza o pa-
trimônio histórico e artístico nacional e institui o Tombamento. Em vez de
“fatos memoráveis da história do Brasil” e “excepcional valor arqueológico
ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”, temos na lei de Registro “modos de
fazer enraizados no cotidiano das comunidades” e “vivência coletiva do tra-
balho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social”.
Ora, há uma distância semântica considerável entre “fato memorável” e
“cotidiano” e entre “excepcional valor” e “vivência coletiva”. Primeiramente,
“fato memorável” e “excepcional valor” remetem à apreciação de coisas iso-
ladas, atípicas e eventuais, ao tempo em que “cotidiano” e “vivência coletiva”
remetem a sujeitos atuantes em contextos e processos histórico-culturais. Em
segundo lugar, as expressões da lei de Tombamento estão mais suscetíveis a
avaliações idiossincráticas de uma autoridade que nomeia e classifica o que
deve ser considerado “memorável” e “excepcional”, enquanto nas expressões
da lei de Registro, a avaliação está baseada apenas em pressupostos (quase
kantianos) de tempo, espaço e modalidade. Por quanto tempo vocês produ-
zem este tipo de panela neste espaço, indaga o “avaliador patrimonial”. Não
importa se o avaliador considera a panela ou o ofício de fazer panela de “bom
gosto”, “mau gosto”, “simples” ou “complexo”. O que importa é que a co-
munidade faz daquele modo (dinâmica tradicional) a panela em processo
de continuidade histórica naquela região e oferece à diversidade cultural do
planeta mais uma faceta do bicho-homem. A margem idiossincrática de apre-
ciação é bem menor, restringe-se a critérios de tempo, espaço e alteridade.
Pratica-se capoeira há décadas ou há séculos, apenas em regiões litorâneas ou
também está presente nos sertões brasileiros? “Tempo”, “espaço” e “modo”
estão em jogo apenas.
Não se pretende dizer aqui que os inventários do patrimônio imaterial
ou/e que a aplicação do Decreto nº. 3.551 sejam poucos criteriosos, nem que
a definição da capoeira como patrimônio cultural não esteja frágil a jogos
45
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
46
Um segmento profissional muito específico surge no contexto da reali-
zação dos eventos culturais financiados por recursos públicos. É a figura do
“produtor cultural”. São pessoas pertencentes a diversos extratos da classe
média urbana, geralmente com formações acadêmicas e artísticas em áreas
de ciências humanas e motivadas intelectual e financeiramente por “assun-
tos culturais” (teatro, cinema, artes plásticas, artesanato popular, etnomusi-
cologia etc.). São profissionais muito bem informados do funcionamento da
“máquina pública” nos níveis municipais, estaduais e federais. Conhecem os
procedimentos e técnicas para captação de recursos públicos da área cultural,
os cronogramas e as exigências dos chamados “editais”, onde há a divulgação
do oferecimento de financiamento de “projetos culturais”, veiculados, nor-
malmente, pela internet. Os produtores culturais engajam-se, quando não
fundam, organizações sociais sem fins lucrativos e/ou de interesse público
(Ongs, Oscips, etc) a fim de se captar os recursos públicos, servindo-se de
parte do orçamento dos projetos como pagamento de seus serviços técnicos
e/ou educacionais prestados a um dado grupo social (classificado como “co-
munidade”).
O fazer e refazer do evento cultural pelas políticas públicas culturais pro-
duz, assim, um mercado de profissionais que não dizem respeito diretamente
ao “objeto” que deu sentido à existência dessas políticas públicas. Por exemplo:
um determinado recurso público pode ter sido originado por uma demanda
de proteger as condições de existência de violeiros presentes em dado grupo
social. No entanto, os recursos não vão diretamente para as famílias dos vio-
leiros, nem para ações de reforma de uma escola local onde estudam os filhos
dos violeiros, por exemplo. Os recursos vão para uma “Associação Viva a Cul-
tura Caipira”, coordenada por um produtor cultural expert em formatar bons
“projetos de promoção cultural”, mas que não sabe executar sons em violas
nem produzir toadas. Muitas vezes, o dinheiro originado da política pública
cultural chega à mão do detentor de saberes tradicionais (no nosso caso, o
violeiro) por meio de “bolsas de incentivo” ou pagamento de “apresentações
culturais”, em valor menor daquele que o produtor cultural, coordenador da
associação responsável pela inscrição da “ação cultural”, vai receber ao final
do projeto. O produtor cultural é o “intermediário” entre o poder público e a
“comunidade”, é ele quem detém o métier do “fazer a cultura acontecer” aos
olhos dos governos municipais, estaduais e federais.
47
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
Embutidos em sínteses ainda mais amplas, pela força coletiva que os em-
purra ao posicionamento subalterno na estrutura de classes dessas so-
ciedades nacionais, em grande medida, os descendentes africanos e as
culturas negras não-africanas, ao lado das memórias ameríndias, serão
re-processadas discursivamente sobre a rubrica do folclore e da cultura
populares, sendo as últimas convertidas em patrimônios simbólicos da
nação miscigenada, em se tratando do Brasil. A invenção dessas tradições,
deflagrada no curso da cosmopolitização do regional e do prosaico, em-
preendida por elites intelectuais e artísticas (embebidas do imaginário da
unidade nacional), está no epicentro da sua, também, conversão ou rein-
venção em bens de entretenimento-turismo. (2004, p. 148)
48
cotidiano das mãos, o palco em detrimento da vivência, o show em detri-
mento do processo. O evento é o monumentalismo dos antigos critérios de
preservação trazido ao patrimônio imaterial. Muitas das atuais políticas cul-
turais tornam cada vez mais plausíveis as promoções de eventos, a visão da
cultura restrita apenas aos aspectos lúdicos e religiosos da vida, afastando-se,
assim, da revolução simbólica e ampla cidadania trazida no texto do Decreto
3.551/2000 e das recomendações internacionais. Como reforça Tamaso, ao ci-
tar as Cartas patrimoniais9 :
49
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
50
A noção de “política pública” apenas recentemente entrou no instrumen-
tal do poder institucional, nas assembleias legislativas e nas pautas partidá-
rias. As comunidades tradicionais, as comunidades quilombolas e as etnias
indígenas agora são contempladas por uma gama de leis, decretos e portarias
que buscam assegurar a posse de suas terras tradicionalmente ocupadas.
Em 1973, foi elaborado o chamado “Estatuto do Índio”, Lei nº. 6.001/73,
dispondo sobre as relações do Estado e da sociedade brasileira com os índios.
Considerando os índios “relativamente capazes”, o Estado, por meio de uma
instituição indigenista governamental (de 1910 a 1967, o Serviço de Prote-
ção ao Índio/SPI; atualmente, a Fundação Nacional do Índio/Funai), seria,
conforme o texto, o responsável pela garantia dos direitos das diversas etnias
presentes no país, até que elas estivessem “integradas à sociedade brasileira”.
A Constituição de 1988 traz no seu texto, Artigo 231, o reconhecimento das
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, de posse da União e de usufru-
to exclusivo dos recursos naturais necessários à “reprodução física e cultural”
do grupo.
No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (Adct) da mesma
Constituição, o Art. 68 prescreve o direito à propriedade definitiva aos rema-
nescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras,
“devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Tais avanços jurídicos
possibilitaram que o direito à terra não se limitasse aos contratos de compra
e venda de propriedades ou à herança de antigas posses originárias da cessão
de sesmarias, garantindo a permanência de quem ancestralmente construiu a
ocupação do território.
As demarcações das terras indígenas e quilombolas, por mais deficitárias
que possam parecer aos olhos de quem analisa o processo de colonização
do país, tornam-se possíveis com o apoio institucional desse dispositivo da
Carta Magna.
Mais recente ainda é o Decreto nº. 6.040, de 2007, que institui a “Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradi-
cionais”, definindo oficialmente as nomenclaturas “Comunidade Tradicio-
nal” e “Território Tradicional”, e estabelecendo as diretrizes para a futura
regulamentação dos diversos direitos dessas comunidades. Laraia, ao tratar
do conceito de “patrimônio imaterial” e suas implicações, deixa explícito que
“identidade e territorialidade são dois requisitos fundamentais para a defini-
51
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
ção da referência cultural” (2004, p. 17). O direito à posse e ao uso das terras
é o pressuposto para os demais anseios e demandas das comunidades, quanto
à sua organização socioeconômica tradicional e quanto aos seus conhecimen-
tos, usos e valores tradicionais.
Mesmo com o avanço no texto das legislações culturais, as comunidades
tradicionais ainda não conseguiram fazer-se representar efetivamente no
cenário político nacional, perdendo espaços culturais fundamentais para a
existência tradicional dos grupos. Os projetos políticos para o país ainda se
produzem de forma unilateral, enxergando apenas o aspecto desenvolvimen-
tista e econômico da situação, privilegiando o ponto de vista mercadológico.
A chamada “cultura” conseguiu angariar espaço nos debates políticos e nas
disputas orçamentárias, mas de modo discursivo e demagógico. Quando se
fala em política cultural, o recorte metodológico concebe bens isolados do
seu contexto, grupos de artistas, patrocínio de eventos, incentivos financeiros
mensais aos artesãos etc. Essa “cultura” se restringe a aspectos lúdicos e pro-
duções artesanais, está desatrelada do contexto da ocupação do espaço, dos
recursos naturais e da história das comunidades. Além dos chamados centros
históricos e monumentos artísticos e naturais, os outros espaços se tornam
vazios, onde o capital, respeitando as normativas da legislação ambiental,
pode avançar e acumular sem maiores preocupações.
Em um cenário nacional e internacional de “compensação”, a política
pública do patrimônio imaterial deveria contribuir com uma gestão mini-
mamente estrutural voltada para o acesso desses grupos (que detêm conhe-
cimentos tão preciosos à diversidade cultural universal) à saúde, educação,
moradia de qualidade e outras instâncias sociais que proporcionam uma vida
mais digna. Enxergaria que a cultura não é apenas o universo lúdico e sim a
plenitude cidadã de um modo de vida singular. E pensando e agindo, assim,
estaria muito mais em sintonia com as recomendações internacionais con-
temporâneas para a salvaguarda do patrimônio cultural do que promovendo
eventos suscetíveis ao velho cabresto eleitoreiro.
Para prevenir a miopia do evento cultural, é necessário que a política públi-
ca volte os olhos para o cotidiano e para o território cultural das comunidades
detentoras desses preciosos saberes da alegoria do patrimônio brasileiro. Ao
voltar os olhos para o cotidiano, a política pública se obrigará positivamente
a dialogar com outras áreas governamentais como saúde, educação, meio am-
52
biente, desenvolvimento agrário, minas e energia etc., disponibilizando con-
dições mais dignas de existência para os grupos formadores das diversidades
culturais das nações.
A miopia do evento, por mais danosa ao olho desprevenido, não há de
macular o rico processo desencadeado pelo contagiante patrimônio imaterial
que compôs tão bem com a parte bela do universo.
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54
Intervenções urbanas em sítios históricos
cearenses: aproximações e distanciamen-
tos entre o concebido e o vivido – o caso
de Sobral
Resumo
Tomando como objeto de estudo as intervenções realizadas na cidade de Sobral/CE,
buscamos, em nossa análise, evidenciar as aproximações e distanciamentos observa-
dos entre as representações constituídas pelas instâncias que regem as transformações
urbanas no âmbito do concebido, bem como as confrontações entre estas representa-
ções e as lógicas apresentadas pelo espaço vivido, definidas pelas ressignificações feitas
a partir das práticas sociais estabelecidas. Os resultados obtidos apontam para a ne-
cessidade de se entender que o “resultado final” do processo de implementação dos
projetos urbanos nas referidas cidades, difundindo como “ação de sucesso”, deverá
ser alvo de uma reflexão crítica, norteada pelas ressignificações atribuídas ao espaço
requalificado partir das práticas sociais estabelecidas pela dimensão do vivido.
José Clewton do Nascimento é arquiteto e urbanista formado pela Universidade Federal do Ceará,
mestre e doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Técnico do
IPHAN, lotado na Superintendência do IPHAN no Ceará. É Professor Adjunto do Departamento de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (DARQ-UFRN).
55
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
56
Apresentação
A identificação da existência de limites e fronteiras no campo do patrimônio
cultural, a definir em o próprio fazer da preservação, constitui a temática-
base das discussões a serem travadas no âmbito da IV Oficina IV Oficina de
Pesquisa do Iphan. Dentro deste contexto, o presente artigo pretende contri-
buir com discussões acerca do assunto, apresentando uma problemática rela-
cionada aos limites e fronteiras existentes entre as confrontações estabelecidas
entre as lógicas que regem a concepção de ações de intervenção nos sítios his-
tóricos urbanos (planos, programas, projetos urbanos, restauros), definidos
a partir de representações constituídas sobre esses espaços enquanto espaços
de significação cultural, e o uso e apropriações destes espaços, identificados
a partir das práticas sociais estabelecidas pela instância do vivido. Estas con-
frontações ora aproximam, ora alargam as fronteiras e limites estabelecidos
entre estas lógicas diferenciadas.
Buscaremos, neste artigo, estabelecer alguns pontos para análises dessas
relações de confrontação em um objeto empírico de estudo pré-definido, com
a intenção de suscitar discussões acerca de nossas ações, enquanto corpo téc-
nico profissional responsável pelas atribuições de preservação destes espaços
de significação cultural.
Objetivamos, portanto, inserir, no âmbito do foco do encontro, uma discus-
são sobre a relação entre política de planejamento urbano e política de patrimô-
nio, visto que se parte do pressuposto que esta articulação apresenta-se como
necessidade premente na atualidade, tendo como parâmetro o universo cada
vez mais amplo de ações, tais como: as intervenções no espaço urbano, atrela-
das aos planejamentos estratégicos; a elaboração de normas de preservação; a
incorporação destas normas nos Planos Diretores; a prática dos restauros etc.
As análises e discussões serão balizadas por alguns pressupostos teórico-
conceituais, que tomam por base o pensamento lefebvriano sobre a produção
do espaço, no qual se define que a noção de produção do espaço é formada pela
interação entre um constructo mental (concebido) e um constructo social (vivi-
do). Neste espaço produzido, evidencia-se uma postura de identificação da exis-
tência da relação de simultaneidades entre lógicas, em detrimento de uma visão
dualista que trabalha na perspectiva de exclusão de lógicas (Lefebvre, 2000).
Trabalharemos especificamente tendo como foco o espaço público na pers-
pectiva apresentada pelo sociólogo Rogério Proença Leite, que define espaço
57
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
58
do tombamento, algumas ações de inventariação foram realizadas, entre elas
a elaboração do Inventário de Configuração dos Espaços Urbanos – Inceu,
no ano de 2005.
Nos anos 2000, a cidade sofreu intervenções urbanas em seu núcleo his-
tórico, norteadas por uma política de gestão urbana de caráter empreende-
dorista, definida pelo Plano Estratégico proposto para o município. A ação
mais recente diz respeito a elaboração das Normas de Preservação do Sítio
Histórico Urbano – Npshu, que deverão ser incorporadas ao Plano Diretor
Participativo, elaborado a partir da revisão do Plano Diretor de Desenvolvi-
mento Urbano de 1999.
Para o presente artigo, realizaremos uma análise acerca das ações desen-
volvidas no sítio histórico de Sobral, a partir da confrontação de dois pontos:
O primeiro desses pontos está relacionado a análises vinculadas a leituras/
apreensões do espaço elaboradas pelos estudos realizados sobre a área defi-
nida pelo recorte espacial, definido pelos setores morfológicos “Beira Rio” e
“Acaraú”. As leituras deverão abranger os seguintes itens: Estudo para tomba-
mento federal; Elaboração do Inceu; Pddu e desdobramentos; Npshu/Sobral.
O segundo ponto consiste na confrontação das análises desenvolvidas no
primeiro item com uma análise realizada acerca das intervenções urbanas
em espaço públicos situados nos dois setores morfológicos definidos como
objetos empíricos de estudo, análises estas pautadas pela definição de espaço
público enquanto lugar (Leite, 2004). Desta forma, trabalharemos com a dis-
cussão acerca das formas como esses espaços são apropriados pelas práticas
sociais estabelecidas pela vivência desses espaços, a gerarem contra-usos, res-
significações, visando responder as questões formuladas na problematização
acerca do tema.
Análises
Estudo para tombamento:
O “Estudo para Tombamento do Conjunto Urbanístico da Cidade de Sobral
– Ceará”, elaborado pela então 4ª. CR/IPHAN/CE, no ano de 1988, utilizou
como procedimento metodológico uma abordagem definida como “análise
sequencial”, que privilegiou, para além dos dados objetivos sobre a área ana-
lisada, os denominados valores topoceptivos a partir dos níveis de percepção
e de formação de imagens mentais.
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
Este procedimento foi entendido pela ala tradicionalista como algo mais
vinculado a uma postura mais academicista, do que aos procedimentos re-
lativos à instituição Iphan, fato que gerou a elaboração, por parte desta ala
tradicionalista, de uma proposta alternativa à que foi desenvolvida a partir da
metodologia da “análise sequencial”.
O fato é que o sítio histórico de Sobral passa a ser inserido na lista de Patri-
mônio Nacional, a partir do ano de 1999, tendo como delimitação de área de
tombamento e de entorno, as áreas definidas pela primeira proposta, o que de-
fine o sítio histórico de Sobral como um vasto perímetro, onde se buscou garan-
tir os seguintes aspectos: a valorização do traçado urbano; o número máximo
das visadas para a Serra da Meruoca; e a presença do rio Acaraú (ver Figura1).
60
Figura 1 Poligonais de proteção
do Sítio Histórico Urbano de So-
bral. Desenho elaborado a partir
de base extraída do Google Earth.
Figura 2 Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município de Sobral/CE. Mapa referente ao item
“Reurbanização da Margem Oeste do rio Acaraú – Zona Central”. Fonte: PDDU Sobral, 1999.
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
Figura 3 Setores morfológicos do Sítio Histórico Urbano de Sobral, conforme INCEU (2005). Fonte: IPHAN/CE.
62
Segundo os estudos do Inceu a caracterização destes dois setores foi sinte-
tizada da seguinte forma:
• Zona Acaraú: “Neste setor predomina o uso residencial de tipologias
simples. É característico o baixo poder aquisitivo dos proprietários”
(Inceu, 2005).
• Zona Beira-Rio: “É composta por uma única via/calçadão. Margeia o
rio Acaraú na faixa definida pelas pontes Otto de Alencar e José Eu-
clides Ferreira Gomes. É uma área que estabelece relação direta com
o rio Acaraú, elemento/estruturante mais importante do sítio físico”
(Inceu, 2005).
Vale ressaltar que estas duas zonas constituem as áreas que irão receber
maiores impactos com relação ao projeto de urbanização da margem esquer-
da do rio Acaraú, que será alvo de apreciação no decorrer deste artigo.
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
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natureza das conclusões que enseja e pelo indiscutível diálogo que trava com a
Npshs. Também, e fundamentalmente, porque a referida peça constitui base
para a definição do microzoneamento do PDP/Sobral, atualmente em revi-
são” (Hurb/Unesco/Bid/Monumenta/Iphan/MinC, 2008, p. 19-20).
Com relação a questão da setorização do Sítio Histórico de Sobral, reforça-se a
qualificação desses setores, elaboradas pelo Inceu, a partir da afirmativa de que:
Vale ressaltar que para cada setor foram definidas diretrizes gerais de pre-
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
• Setor Acaraú: sua ocupação somente foi consolidada nos anos 1940
do século XX, o que determinou o pouco interesse de suas edificações
no âmbito da proposta de tombamento do SHU de Sobral. Tem como
elemento de destaque a Igreja de Santo Antônio. Nele também estão
previstas maiores possibilidades de renovação urbana do sítio.
• Setor Beira-Rio: é uma área que estabelece relação direta com o rio
Acaraú, elemento natural marcante na configuração do Shu de So-
bral. Margeia o recurso na faixa definida entre as pontes Otto de
66
Alencar e José Euclides Ferreira Gomes, compreendendo apenas a área
onde foi implantado o Projeto de Urbanização da Margem Esquerda.
As edificações de destaque neste setor são: a Escola de Cultura, Co-
municação, Ofícios e Artes de Sobral (Eccoa); a Biblioteca Municipal
e o Museu Madi.
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
68
quitetos Associados, representado pelos arquitetos Nelson Serra e Neves e
Antônio Carlos Campelo Costa, apresenta os seguintes aspectos gerais: a pos-
sibilidade de contribuição para a integração da área ribeirinha com a massa
edificada, sem, entretanto, descaracterizar a implantação desta, tradicional-
mente “de costas” para o rio; a utilização do rio como espaço/equipamento
de lazer, esportes e cultura, entendidos como fundamentais para a qualidade
de vida das diversas camadas sociais e faixas etárias; e, ainda que preservando
uma das características da cidade, dando as costas ao rio, procurou-se aprovei-
tar os locais estratégicos para pontos de convívio, belvederes, espaços cívicos
e de lazer, importantes para a fruição da paisagem.
No zoneamento apresentado pela proposta, observam-se ações em trechos
distintos. Com relação ao trecho definido pela área localizada entre a ponte
José Euclides ao limite noroeste da linha do tombamento, observam-se os
seguintes pontos:
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
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Figura 5 Margem esquerda do
rio Acaraú, antes da intervenção
de requalificação. Fonte: Prefeitu-
ra Municipal de Sobral.
Figura 6 Margem esquerda do rio Acaraú, após a intervenção de requalificação. Observamos na parte
inferior da imagem o conjunto escultórico do Marco do Tombamento. O “Tapete Verde” articula esse
conjunto com a Esplanada Cívica, composta pelo anfiteatro e o Museu MADI (parte superior da imagem).
Ao fundo, a Ponte José Euclides. Fonte: Prefeitura Municipal de Sobral.
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
Considerações finais
Como resultado das análises empreendidas no presente artigo, está a neces-
sidade da incorporação da dimensão do cotidiano no processo referente ao
diagnóstico e nas intervenções a serem realizadas acerca dos espaços repre-
sentativos de nosso patrimônio edificado, cotidiano este definido como “pro-
cessos interativos, representativos e simbólicos relacionados à experiência
vivida que constroem sociabilidades de rua, enquanto espaço, de uma vida
pública” (Leite, 2004, p. 19), a partir de uma abordagem que vise a busca da
72
FiguraS 7 a 10 Apropriações e ressignificações do espaço requalificado da margem esquerda do rio
Acaraú, estabelecidas pelas práticas sociais vivenciadas no referido espaço público. Fonte: Arquivo
Clewton Nascimento.
Figura 11 Urbanização da margem direita do rio Acaraú. Fonte: Arquivo Clewton Nascimento.
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
Referências
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Consórcio Fausto Nilo – Espaço Plano/Seinfra/Prefeitura Municipal de Sobral. Pla-
no Diretor de Desenvolvimento Urbano de Sobral. 1999.
Duarte Jr., Romeu. Novas abordagens do tombamento federal de sítios históricos – política, ges-
tão e transformação: a experiência cearense. 2005. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo) – Fau, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
Iphan; 4ª Superintendência Regional-Ce. Estudo para tombamento do Conjunto Urbanís-
tico da Cidade de Sobral – Ceará. v. I, II e III, 1998.
Inceu. Inventário de Configuração de Espaços Urbanos. Sobral. 2005.
Lefebvre, Henri. La production de l’espace. 4. ed. Paris: Anthropos, 2000.
Leite, Rogério Proença. Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urba-
na contemporânea. Campinas/SP: Editora Unicamp; Aracaju/SE: Editora UFS, 2004.
Nascimento, José Clewton do. (Re)descobriram o Ceará? Representações dos sítios históricos
de Icó e Sobral: entre areal e patrimônio nacional. 2008. 450 f. Tese (Doutorado em Arqui-
tetura e Urbanismo) – Ufba, Salvador, 2008.
Prefeitura Municipal de Sobral; Instituto dos Arquitetos do Brasil – Seção Ceará. Con-
curso público de anteprojetos para Conjunto Paisagístico de Sobral/CE. Bases do concurso, 2000.
Ribeiro, Ana Clara Torres. Sociabilidade, hoje: leitura da experiência urbana. Caderno CRH,
Salvador: UFBA, v. 18, n. 45, p. 411-422, set./dez. 2005.
Hurb – Pesquisas, Planos e Projetos; Unesco/Bid/Monumenta/Iphan/Minc/Governo
Federal. Elaboração de proposta de normas de preservação para o sítio urbano histórico de
Sobral. dez. 2007-jan. 2008.
74
Nas fronteiras da História:
a preservação do patrimônio entre
a memória e o esquecimento
Resumo
Pretende-se repensar as relações entre memória e história na construção de conhe-
cimento sobre o patrimônio cultural brasileiro na atualidade, tomando como base
as reflexões de Pierre Nora, François Hartog e Hans-Ulrich Gumbrecht. Os desafios
contemporâneos impostos aos órgãos de preservação – novos objetos, novos atores
sociais e novas práticas culturais – demandam o diálogo com autores que tematizam
o papel desempenhado pela memória e pelo conhecimento histórico na redefinição
do campo da preservação no Brasil. A teoria da história e os estudos sobre a memória
oferecem um repertório útil de conceitos, que valida sua apropriação em áreas de
saber limiares a ele, como o próprio patrimônio cultural.
Luciano dos Santos Teixeira é historiador, mestre em História, professor do Mestrado Profissional
IPHAN do Patrimônio Cultural (PEP-MP). Técnico do IPHAN, lotado na Coordenação-geral de Docu-
mentação e Pesquisa (Copedoc/RJ).
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
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Nós gostaríamos de preparar, a partir de hoje, o museu do amanhã e reunir os
arquivos de hoje como se já fosse ontem, tomados que estamos entre a amnésia
e a vontade de nada esquecer.
François Hartog (Tempo e Patrimônio)
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
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tos de vista, prevalecentes no instante de suas escritas, mas ajudam a cons-
truir as próprias práticas que são descritas, no momento em são escritas. Des-
sa forma, somos herdeiros de técnicas, métodos e procedimentos de rotina
das instituições às quais pertencemos porque foram produzidas narrativas
históricas que criaram e perpetuaram essa memória institucional.
Para avançarmos na compreensão desse processo, é preciso que se construa
uma historiografia da preservação no Brasil. A historiografia da preservação
implica necessariamente a compreensão das diversas narrativas que compuse-
ram a história da preservação no país, no esforço de se empreender aquela críti-
ca da memória a que nos referimos anteriormente. Não se trata apenas de uma
história da história da preservação, mas de um estudo aprofundado dos mode-
los pelos quais se construíram e ainda se constroem as práticas de preservação.
De maneira a melhor situar essas observações e na impossibilidade de de-
senvolvermos uma análise mais ampla da trajetória preservacionista no país,
pontuarei com um exemplo que pode servir de referência para uma compre-
ensão mais concreta do que estamos apresentando aqui. Pensemos, inicial-
mente, em um momento bastante conhecido: a fundação do Sphan (Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), criado pela lei 378, de 13 de
janeiro de 1937, mais tarde regulamentado pelo decreto-lei 25. Conhecemos
bastante, hoje, o papel que a criação do Sphan representou no contexto his-
tórico-político do governo Vargas, da participação dos intelectuais modernis-
tas nesse processo, das transformações econômicas e sociais por que o país
passava naquele momento e da política cultural empreendida por Gustavo
Capanema, particularmente durante o Estado Novo, dentro de um projeto
nacional mais amplo. Tudo isso está bem estudado, graças a excelentes traba-
lhos de investigação histórica (Silvana Rubino, Marcia Chuva, José Reginaldo
Gonçalves) desenvolvidos nos últimos anos.
Contudo, pouco ainda sabemos a respeito dos novos conhecimentos es-
pecíficos, advindos da história da arte, da arquitetura, da arqueologia, da
antropologia etc., além de um conjunto de procedimentos técnicos para os
quais não havia qualquer tipo de formação profissional no Brasil, que o esta-
belecimento de um novo campo de atuação, como o do patrimônio, exigia. A
confluência desses saberes, além das disputas ideológicas e corporativas intes-
tinas, contribuiu decisivamente para se definir a configuração inicial do cam-
po da preservação no país. Não apenas isso, são também pouco estudadas as
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
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Contudo, o tema do patrimônio não é apenas o objeto dos questionamen-
tos da historiografia, mas também o sujeito de transformações profundas
ocorridas nas representações do tempo fixadas pelos historiadores. O barroco
colonial, por exemplo, após as ações de preservação realizadas pelo Sphan,
não apenas se tornou um capítulo consagrado de nossa história artística, tor-
nou-se também a materialização de nossas origens nacionais, moldando dessa
forma todas as obras históricas produzidas dali por diante. E não me refiro
somente às obras acadêmicas e sim, principalmente, a essas outras formas
de escrita da história muito mais influentes na disseminação das visões de
mundo: as obras de divulgação da história do Brasil, os livros didáticos, os
catálogos de turismo, as coleções dos museus etc. Em suma, toda a vasta pro-
dução escrita onde se pretendia abordar nosso passado colonial passava agora
a ser balizada por essas referências visíveis e tangíveis que são os monumentos
históricos, mesmo quando se tinha a intenção de criticá-los.
Permitamo-nos um salto adiante no tempo e olhemos o agora, o mundo
contemporâneo. Quais os sentidos das práticas de preservação hoje? Que con-
cepções, valores e mesmo projetos informam essas práticas, nossas práticas?
Recorramos a dois importantes pensadores da história, cujas reflexões podem
lançar alguma luz nesse cipoal: François Hartog e Hans-Ulrich Gumbrecht.
O primeiro criou a categoria de regime de historicidade para explicar as mu-
tações não apenas dos discursos históricos, mas das próprias concepções de
tempo que cada época experiencia. Muito resumida e simplificadamente, po-
demos dizer que vivemos hoje, de acordo com Hartog, um regime presentista,
de extrema valorização do presente, a partir da falência dos grandes projetos
de mudança social que marcaram os séculos XIX e XX. Com as tradições do
passado cada vez mais distantes e um futuro cada vez mais repleto de incerte-
zas, o presente se torna o valor predominante, por nos ser a única experiência
possível. Gumbrecht, por sua vez, lança mão de outra categoria, o cronótopo,
para tentar explicar as mesmas mudanças observadas em nossa relação com
o tempo e a história. O cronótopo (cronos = tempo; topos = lugar) seria um
tipo de paradigma dominante em cada época, que estabeleceria uma certa
relação om o tempo. Haveria três grandes cronótopos em nossa história oci-
dental: o antigo, o moderno e aquele no qual estamos vivendo. No primeiro, a
relação com a história seria marcada pela exemplaridade: a história forneceria
os modelos para o nosso viver, as chamadas “lições da história”. No segundo
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
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de vestígios materiais daquilo que ainda está vivo e presente? Trata-se de um
procedimento que se tornou tão habitual para nós que nem sequer ousamos
indagar a respeito de seu real significado. Colocando em perspectiva histó-
rica, percebemos uma mudança na ordem do tempo (Pomian), cujos efeitos
nos atingem diretamente e da qual raramente temos consciência. Como diz
Hartog, o presente tornou-se a referência de si próprio – e, mais do que isso,
sua única referência.
Trazendo essas reflexões para dentro de uma instituição de preservação,
uma instituição de memória por excelência, como o Iphan, podemos per-
guntar de que maneira essas transformações incidem em nossas práticas. Em
primeiro lugar, naquilo que entendemos por memória. Recordando os anos
1980 e 1990, o tema da memória adquiriu enorme força, principalmente pela
discussão das chamadas memórias coletivas e pela figura do direito à memória.
Basta lembrar que a Constituição de 1988 consagrou entre os direitos cultu-
rais do cidadão brasileiro, o direito à memória. E essa consagração foi fruto
de longas discussões a respeito não somente, mas principalmente, do acesso
à informação a respeito dos desaparecidos políticos durante o regime militar.
Portanto, o direito à memória era visto sobretudo como um dever da memória
para o Estado brasileiro. Esse papel quase cívico do lembrar esmaeceu-se com
as mudanças na percepção do tempo que apontamos anteriormente. Por ou-
tro lado, a expansão da produção de registros de memória, criados intencio-
nalmente com esse fim, expandiu-se desmedidamente nos últimos vinte anos,
gerando o curioso quadro descrito por Gumbrecht acima: produz-se tanta
memória que somos capazes e achamos natural que registremos eventos que
nem sequer aconteceram ainda. Dessa forma, a memória não é mais o ato de
recordar o passado, mas a criação de vestígios que poderão vir a ser passado,
dada a assustadora instabilidade do presente.
A velha equação memória = identidade que, a partir de 1780, com a criação
da ideia de patrimônio nacional, tornou-se memória = patrimônio = identi-
dade, hoje deveria ser repensada, pois a explosão da produção de memórias,
a diversificação dos tipos de bens considerados patrimoniais e complexifica-
ção das identidades culturais colocam em cheque os referenciais teóricos que
adotamos para pensar e agir no campo da preservação. Talvez estejamos vi-
vendo uma mudança também no regime de memória. Como afirma Hartog,
“o patrimônio é um recurso para o tempo de crise”, “O patrimônio é uma
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
Referências
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virada cultural?”), item “Fronteiras e encontros”, p. 151-157.
Costa Lima, Luis. A Aguarrás do tempo. Estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
Gumbrecht, Hans-Ulrich. Production of Presence: what meaning cannot convey. Stanford:
Stanford University Press, 2004.
Hartog, François. Régimes d’Historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003.
______. Tempo e Patrimônio. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 22, n. 36. p. 261-273, jul./
dez. 2006.
Nora, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História – Revista
do programa de estudos pós-graduados em História e do Departamento de História da
Puc-Sp, São Paulo, n. 10, p. 7-27, 1993.
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Antigos Quilombos, invisibilidade social
e universos simbólicos: especificidades
étnicas e culturais definindo o processo
de tombamento
Resumo
Determinadas realidades sociais vivenciam condição liminar de grande complexi-
dade, o que exige de nós pesquisadores um refinamento conceitual para a correta
apreensão de seus universos simbólicos. No que diz respeito ao Iphan, a formulação
de um quadro analítico adequado é pressuposto fundamental para a devida defi-
nição do formato e características das eventuais salvaguardas que se façam neces-
sárias no âmbito desses universos. Esse é o caso exemplar dos antigos quilombos
brasileiros, cujo tombamento foi determinado pela Constituição Federal, ainda em
1988. Situados nos limites de fronteiras históricas, étnicas, geográficas e culturais,
nem sempre bem demarcadas, terminam por vivenciar uma paradoxal invisibilida-
de social, apesar de constitucionalmente reconhecidos – inclusive com seus direitos
fundiários garantidos em aparatos legais e institucionais próprios. Apresentando o
caso das comunidades quilombolas tradicionais como ponto de partida, a comuni-
cação estimulará a reflexão sobre bens culturais que fogem à tradicional concepção
de monumento e/ou patrimônio material, os assim chamados “prédios de pedra e
cal”, exigindo deste Instituto uma postura ao mesmo tempo inovadora e mais bem
elaborada teoricamente, no sentido de efetivamente contribuirmos com políticas de
proteção socialmente eficazes e culturalmente relevantes.
Selmo José Queiroz Norte é cientista social formado pela Universidade de São Paulo (USP), mestre
em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB), com estudos de doutoramento em Antro-
pologia Cultural na CUNY (City University of New York). Coordenou o “GT Quilombos” do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
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A Procuradora Geral da República Deborah Duprat, ao discutir as implica-
ções concretas e mais imediatas de um Estado pluriétnico (Pereira, 2002),
foi enfática quando apontou a Constituição da República Federativa do Brasil
como reveladora e possibilitadora de um “espaço ontológico do outro”, aquela
dimensão que engloba a possibilidade da diferença e da diversidade. A par-
tir de sua promulgação, pôs-se fim a uma fictícia e secular homogeneidade
cultural e étnica, alicerçada em uma perspectiva ideológica nacional de as-
similação – perpetuada por meio de uma política de forçosa invisibilidade, a
qual era o diferente invariavelmente submetido, atrelado a uma concepção de
“universalidade” que lhe retirava toda e qualquer possibilidade de conteúdo.
Vejamos:
Vê-se, assim, que a pluralidade do corpo social termina sendo bem retra-
tada no texto da Lei. A partir de 1988, com a publicação desse importante
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
1 O artigo de Cardoso de Oliveira foi posteriormente republicado no formato de livro, sob o mesmo
título, pela Editora UNESP, em 2006.
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tra a seguinte passagem de um recente artigo do jornal O Globo, publicado na
seção Opinião, sintomaticamente intitulado “Artimanha Fundiária”.
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
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alega pretensa inconstitucionalidade do Decreto nº. 4.887/2003, por meio do
qual o Estado regulamenta a titulação e o registro das terras das comunidades
de remanescentes de quilombos. A referida Adin foi apresentada ao Stf, em
junho de 2004, pelo então Partido da Frente Liberal (Pfl). Resultado de um
longo, amplo e minucioso processo de discussão, no âmbito de um grupo de
trabalho com 13 Ministérios, a Advocacia Geral da União e representantes da
sociedade civil, o Decreto foi um dos primeiros atos assinados pelo Governo
Lula e revogava legislação anterior que restringia a possibilidade das comuni-
dades quilombolas virem a exercer, efetivamente, o direito de propriedade das
suas terras. A Confederação Nacional de Agricultura (Cna), representando os
grandes proprietários de terra e o agronegócio no país, não admite o fato de
pequenas parcelas do território nacional virem a ser retiradas do mercado, já
que os títulos fornecidos a essas comunidades pelo Incra, o órgão responsável
pela regularização fundiária, após um detalhado processo administrativo, são
coletivos, pró-indivisos e, necessariamente, emitidos em nome da associação
dos moradores da área regularizada – o que impede a possibilidade futura de
vendas ou qualquer outra forma de cessão das terras recebidas.
Paralelamente à questão fundiária, devemos também considerar e analisar
a proteção patrimonial das comunidades remanescentes dos antigos quilom-
bos, visto que o texto constitucional é categórico no que determina o art. nº.
216, seção II – Da Cultura, mais precisamente, em seu § 5º, cujos enunciados
são resumidos a seguir:
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
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tudo, de uma terminologia adequada para a elaboração de suas ansiedades,
angústias e apresentação de pleitos devidamente elaborados ao poder público,
algo que lhes garantisse visibilidade e condições mínimas para o exercício da
cidadania. A antropóloga Ilka Boaventura Leite (2008), coadunando com o
mesmo raciocínio, é também emblemática em relação a esse entrave – concei-
tual, linguístico e político –, consequência de fatores históricos muito claros
e determinantes:
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
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nº. 4.887 que dá o passo interpretativo importante de desessencializar as
práticas socioculturais negras em sua virtualidade política como marca de
distintividade (Leite, 2005, grifo no original).
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
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áreas obedece à sazonalização das atividades, sejam agrícolas, extrativistas
ou outras, caracterizando diferentes formas de uso e ocupação dos ele-
mentos essenciais ao ecossistema, que tomam por base laços de parentes-
co e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade
(O’Dwyer, 2002, p. 18-19).
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IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras
2 O Programa Brasil Quilombola, ou PBQ, reúne ações do Governo Federal sob a supervisão da Secre-
taria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, envolve metas e recursos de 23 Ministérios
e órgãos federais, tendo como principais objetivos, segundo o material de lançamento do Programa: a
garantia do acesso à terra; ações de saúde e educação; construção de moradias; eletrificação; recuperação
ambiental; incentivo ao desenvolvimento local; pleno atendimento das famílias quilombolas pelos pro-
gramas sociais, como o Bolsa Família, e medidas de preservação e promoção das manifestações culturais
quilombolas. Lamentavelmente, foi divulgada a não continuidade do Programa, a partir de 2012.
98
de técnica em compreender as necessidades específicas de parcelas nacionais
que, por serem diversas, não são atingidas pela grande maioria das ações go-
vernamentais insistentemente homogeneizantes.
O Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tem muito a con-
tribuir nesse processo. A efetivação do tombamento dos antigos quilombos
servirá de posicionamento altamente significativo do Estado brasileiro, des-
tacando a importância estratégica das populações negras na formação da so-
ciedade brasileira, por meio da recuperação, registro e divulgação de riquezas
culturais de matriz africana muitas vezes desconhecidas ou perversamente ig-
noradas pelo país. Como bem ressaltado pelo então diretor do Departamento
de Patrimônio Material e Fiscalização do Iphan (2006-2011), Dalmo Vieira
Filho, o tema do tombamento dos antigos quilombos “[trata] de assunto que a
própria Lei maior prioriza e sobre o qual deve o Iphan oportunizar aumento
de seu horizonte institucional e uma atualização de seus processos de reconhe-
cimento de valor – na dimensão que a questão, sem dúvida, encerra” (2008).
A importância do patrimônio afro-brasileiro, ressalte-se, ultrapassa os
limites nacionais, podendo trazer informações essenciais que contribuirão
para um melhor entendimento da diáspora negra, além de fazer justiça a um
período ainda pouco conhecido da história africana. Intelectuais africanos
em visita ao Brasil nos anos recentes têm ficado surpresos com o conhecimen-
to tradicional único que foi acumulado e preservado pelas comunidades ne-
gras brasileiras, nas aéreas, por exemplo, da linguística e da religião – saberes
muitas vezes já inexistentes nos próprios países africanos de origem.
Referências
Abreu, Kátia de. Disparate antropológico. O Globo, Rio de Janeiro, 08 out. 2011.
Almeida, Alfredo Wagner Berno. Quilombos: sematologia face a novas identidades. In: Pvn
(Org.). Frechal: terra de preto – quilombo reconhecido como reserva extrativista. São Luís:
Smddh/Ccn, 1996.
Arruti, José Maurício. Quilombos. In: Pinho, Osmundo; Sansone, Livio (Orgs.). Raça: no-
vas perspectivas antropológicas. Salvador: Aba; Edufba, 2008. p. 315-350.
Artimanha fundiária. O Globo, Rio de Janeiro, 12 set. 2011. Opinião, p. 6.
Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: Promulgada em
5 de Outubro de 1988. Atualizada com as emendas constitucionais promulgadas. Brasília:
Senado Federal, 2010.
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Entre o material e o imaterial:
notas para pensar o patrimônio cultural
e a expressão de um Estado brasileiro
contraditório
Simone Toji
Resumo
Nos últimos tempos, cada vez mais a noção de patrimônio vem sendo acionada para
atender de modo integral a complexidade da vida cultural brasileira. Porém, den-
tro de órgãos de patrimônio como o Iphan, a tentativa de estruturar tal intento foi
consolidada por meio da criação de dois departamentos separados: o de Patrimô-
nio Material e o de Patrimônio Imaterial, separando procedimentos, instrumentos
e concepções do que devem ser as políticas de patrimônio. As fronteiras entre patri-
mônio material e patrimônio imaterial podem revelar a convivência de concepções,
práticas e instrumentos diversos dentro dos órgãos de patrimônio. A comunicação
propõe-se a pensar tal situação a partir da idéia de microfísica do poder, em Fou-
cault, juntamente com a concepção de hegemonia e contra-hegemonia, de Gramsci.
O atual Estado brasileiro, assim, pode ser visto enquanto contraditório ao expressar
em sua estrutura e na composição de seus funcionários as contradições existentes nas
lutas da própria sociedade.
Simone Toji possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e mestrado em
Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutoranda em Antropologia
Social pela Universidade de St Andrews. Técnica do IPHAN, lotada na Superintendência do IPHAN em
São Paulo.
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O presente texto procura refletir sobre a dicotomia de denominações esta-
belecida recentemente entre patrimônio material e patrimônio imaterial no
campo da cultura. Nesse sentido, estabelece seu foco de análise nos procedi-
mentos desenvolvidos na área técnico-administrativo do Instituto do Patri-
mônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), considerando as atividades e
vivências rotineiras no citado órgão enquanto elementos constituintes de um
processo sociopolítico em andamento.
Para tanto, o trabalho apoia-se na noção de hegemonia, de Gramsci, para
pensar o Estado como locus constituído de vários grupos sociais que disputam
legitimidade, sugerindo que a dualidade “material” e “imaterial” no campo
do patrimônio é uma forma de expressão dessas disputas.
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Um conjunto de práticas de patrimônio tem como foco principal de atuação
os objetos materiais, isto é, monumentos, edifícios e centros urbanos, enquanto
outro privilegia a noção de processo, ao atuar sobre as formas de transmissão
do conhecimento humano e sua realização no âmbito da expressão cultural, ao
tornar possível o reconhecimento patrimonial de saberes, modos de fazer e viver.
Outra polarização existente se dá a respeito dos conceitos que viabilizam
o reconhecimento patrimonial. A ideia de valor cultural, que nos primórdios
da criação do órgão se remetia às ideias do “belo”, do “monumental”, do “au-
têntico” e/ou do “excepcional”, atualmente se redefine por meio das ideias do
“documento” e do “testemunho”. O valor cultural oscila entre ser um senti-
do acionado somente pelo técnico, o profissional especialista da instituição
de patrimônio, até o sentido mais coletivo de compartilhamento mais amplo
do significado. Por outro lado, há o conceito de referência cultural, no qual
os sentidos produzidos pelos atores sociais orientam as ações de patrimônio,
pensando-se a atuação em termos da necessária interação da sociedade civil
com o Estado. Derivada desta oposição, há a prática de considerar o técnico
como principal acionador do processo de seleção, identificação e legitimação
do discurso e das ações de patrimônio, contraposta à posição de que a seleção
e identificação de bens culturais passíveis de serem patrimonializados não
prescindem do técnico, mas devem necessariamente partir da solicitação ou
da anuência dos grupos sociais envolvidos.
Por último, existe a oposição no modo de encarar como a sociedade se
apropria das propostas de patrimonialização, o órgão de preservação pode
considerar a realização da fiscalização permanente do bem com a finalidade
de manter uma dada concepção, ou pode considerar sua ação como acom-
panhamento das mudanças empreendidas sobre o bem com a finalidade de
documentar as transformações.
Os profissionais especialistas do Iphan não se conformam completamente
a um ou outro modelo apresentado. Na maioria das vezes, suas posições os-
cilam entre um polo ou outro conforme o caso e a conjuntura. A tipologia de
oposições apresentada nos ajuda a situar as discussões do campo do patrimô-
nio a partir de alguns legados institucionais, herdados pelo Iphan, e com os
quais os técnicos da instituição se deparam incessantemente.
Porém, a polarização mais expressiva no interior da instituição ocorreu
justamente, quando no ano de 2000 foi criado o Programa Nacional de Patri-
mônio Imaterial, momento em que o Iphan se divide internamente entre De-
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dos, o que provocou alterações na estrutura do Estado brasileiro, nem sempre
de modo coerente e coeso.
Como exemplo de relação contraditória entre instâncias do Estado, pode-
mos citar também os atuais desentendimentos públicos entre órgãos do poder
executivo no Brasil. A demarcação das terras indígenas Raposa Terra do Sol, em
Roraima, provocou agudos embates entre a Fundação Nacional do Índio (Fu-
nai) e o Ministério da Agricultura. Ações do Ministério do Meio-Ambiente têm
suscitado reclamações do Departamento Nacional de Infraestrutura de Trans-
porte (Dnit) sobre a construção de vias rodoviárias no norte do país. Voltando
ao Iphan, o reconhecimento do Queijo de Minas como patrimônio cultural
brasileiro é desacreditado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvi-
sa), que não autoriza a comercialização de queijo a partir de leite não-pasteuri-
zado, característica original do famoso modo artesanal de fazer queijo no país.
Considerações finais
Conforme sugerido pelas notas acima, a dicotomia das denominações “ma-
terial” e “imaterial” dentro do campo do patrimônio cultural está vinculada
ao processo de democratização do país, momento em que a constituição de
políticas públicas de atendimento à diversidade cultural se consolidam. Nesse
movimento, as estruturas do Estado brasileiro ainda não conseguiram se re-
formular de modo coerente e coeso, fazendo coexistir concepções e práticas,
por vezes, até divergentes dentro dos próprios órgãos públicos. Tal situação foi
denominada no texto como Estado contraditório.
Se o chamado “patrimônio imaterial” foi estabelecido dentro do movi-
mento para ampliar a possibilidade de atuação dos órgãos de patrimônio e
atender os direitos dos “diferentes grupos formadores da sociedade brasilei-
ra”, dentro de um Estado que tenta realizar as diretrizes democráticas postu-
ladas na Constituição de 1988, é preciso começar a integrar os instrumentos
e práticas herdados rumo a uma noção de patrimônio cultural abrangente e
não dicotômica.
Referências
Chuva, Márcia. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patri-
mônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora Ufrj, 2009.
Gramsci, Antonio. Obras escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
______. Os intelectuais e a organização da cultura. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.
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