Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Praticas e Reflexoes 7

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 109

Ministério da Cultura

IPHAN

Patrimônio:
Práticas e Reflexões

PATRIMÔNIO E FRONTEIRAS
ANAIS DA IV OFICINA DE PESQUISA
PATRIMÔNIO:
PR ÁTICAS E REFLEXÕES

PATRIMÔNIO e FRONTEIR AS
ANAIS DA IV OFICINA DE PESQUISA

1
Presidente da República
Dilma Roussef
Ministro da Cultura
João Luiz Silva Ferreira
Presidente do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional
Jurema de Sousa Machado
Departamento de Planejamento
e Administração
Marcos José Silva Rêgo
Departamento do Patrimônio Material
e Fiscalização
Andrey Rosenthal Schlee
Departamento do Patrimônio Imaterial
TT Catalão
Departamento de Articulação
e Fomento
Luiz Philippe Peres Torelly
Coordenação-Geral de Documentação
e Pesquisa (Copedoc)
Lia Motta
Ministério da Cultura
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

PATRIMÔNIO:
PR ÁTICAS E REFLEXÕES

PATRIMÔNIO e FRONTEIR AS
ANAIS DA IV OFICINA DE PESQUISA

Rio de Janeiro, Copedoc/DAF/IPHAN, 2016

3
Patrimônio: Práticas e Reflexões nº 7
Patrimônio e Fronteiras:
Anais da IV Oficina de Pesquisa

Organização
Claudia Feierabend Baeta Leal
Revisão Técnica
Bettina Zellner Grieco
Claudia Feierabend Baeta Leal
Lia Motta
Luciano dos Santos Teixeira

Projeto Gráfico
Marcela Perroni – Ventura Design
Diagramação
Bettina Zellner Grieco
Foto Capa
Oscar Henrique Liberal

Elaborado por Biblioteca Noronha Santos/IPHAN

I59p Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Brasil).


Coordenação-geral de Documentação e Pesquisa (4: 2010: Rio
de Janeiro, RJ)

Patrimônio e fronteiras: Anais da IV Oficina de Pesquisa / Institu-


to do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Brasil). Coordenação-
geral de Documentação e Pesquisa. Rio de Janeiro: IPHAN/DAF/
Copedoc, 2016.
108 p.: il.; 16x23 cm. – (Patrimônio: Práticas e Reflexões; 7).

ISBN 978-85-7334-290-1

1. Patrimônio cultural. 2. Instituto do Patrimônio Histórico e


Artístico Nacional. I. Título. II. Série.

CDD – 363.690981
Sumário
Apresentação 7
Programação 9
O patrimônio jesuítico e as fronteiras diluídas entre História e
Arqueologia: Ruínas de Brejo de São João/PI
Ana Stela de Negreiros Oliveira e
Nívia Paula Dias de Assis (Iphan/Pi) 11

O patrimônio cultural de Jaguarão (RS) e a definição das fronteiras


meridionais do Brasil
Anna Finger (Depam) 27

Entre o cotidiano e o evento: patrimônio imaterial e políticas públicas


Emanuel Oliveira Braga (Iphan/Pb) 39

Intervenções urbanas em sítios históricos cearenses: aproximações


e distanciamentos entre o concedido e o vivido – o caso de Sobral
José Clewton do Nascimento (Iphan/Ce) 55

Nas fronteiras da História: a preservação do patrimônio entre


a memória e o esquecimento
Luciano dos Santos Teixeira (Copedoc/Daf) 75

Antigos Quilombos, invisibilidade social e universos simbólicos: espe-


cificidades étnicas e culturais definindo o processo de tombamento
Selmo José Norte (Depam) 85

Entre o material e o imaterial: notas para pensar o patrimônio


cultural e a expressão de um Estado brasileiro contraditório
Simone Toji (Iphan/Sp) 101

5
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

6
Apresentação
Os anais da IV Oficina de Pesquisa do Iphan : patrimônio e fronteiras apresen-
tam trabalhos dos servidores do Iphan que participaram da Oficina, reali-
zada no Rio de Janeiro entre os dias 20 e 24 de setembro de 2010, organizada
pela Coordenação-Geral de Documentação e Pesquisa do Departamento de
Articulação e Fomento (Copedoc/Daf).
O tema central – patrimônio e fronteiras – foi sugerido na reunião final
dos Grupos de Trabalho da III Oficina de Pesquisa: a questão do nacional no
Iphan, realizada em 2009. Ao final daquele encontro, chamou-se a atenção
para um tema que permeava todas as discussões relativas ao valor nacional:
as fronteiras. Estiveram presentes ao longo dos debates as fronteiras interins-
titucionais, como a manutenção da dicotomia entre o patrimônio de natureza
material e imaterial; entre territórios considerando aqueles delimitados poli-
ticamente e os culturais, afetando muitas vezes os procedimentos entre uni-
dades do Iphan e entre a instituição e os poderes locais; métodos de trabalho
que levam fragmentação dos objetos de estudo em razão da aplicação de ins-
trumentos, como inventários temáticos; entre os olhares das distintas áreas
de conhecimento, que trazem o desafio da interdisciplinaridade. Decidiu-se
então que o tema da IV Oficina de Pesquisa do Iphan abordaria o tema fron-
teiras como lugar de encontro, de troca e de diálogo para o enriquecimento
das formas de percepção dos objetos, mas também de conflitos e disputa que
devem ser compreendidos como legítimos nos processos de atribuição de va-
lor de patrimônio.
A Oficina se estruturou em quatro eixos principais que contribuíram para
orientar as discussões, seja nos grupos de trabalho, seja na organização das
comunicações e das palestras dos convidados: Fronteiras Institucionais; Fron-
teiras da Preservação; Fronteiras Culturais e Fronteiras do Conhecimento. Tal
organização visava cobrir o maior espectro possível de questões relacionadas
ao tema, envolvendo aspectos administrativos e técnicos das ações do Iphan.
De especial relevo, estavam os desafios do funcionamento da Instituição em
rede, com todos os desafios surgidos dos limites e potencialidades das ações
compartilhadas, do Iphan com outros órgãos de preservação, do governo fe-
deral com estados e municípios, no tocante à preservação do patrimônio cul-
tural e da Instituição com outras correlatas, no Ministério da Cultura e fora

7
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

dele. Tais limites, como se observou reiteradamente, não se restringiam às


competências, mas também às diferentes abordagens adotadas por distintos
órgãos. Nesse sentido, a mais significativa e importante fronteira estava na
relação do Estado com a sociedade, ou mais exatamente, nas múltiplas rela-
ções entre os representantes desse Estado com os cidadãos e grupos sociais
diversos.
As comunicações dos 18 técnicos inscritos nas mesas, assim como dos de-
mais vinte e cinco debatedores que participaram da Oficina, em um total de
43 técnicos de todas as unidades do Iphan presentes, estimulada ainda pe-
las intervenções qualificadas dos nove palestrantes convidados, revelaram os
conflitos de competência, por vezes os impasses e as inúmeras dificuldades
enfrentadas no dia a dia da Instituição, no desenvolvimento das atribuições
próprias do órgão. Por outro lado, diversos exemplos mostraram igualmente
a riqueza das trocas, das parcerias e dos diálogos que transcendem essas fron-
teiras. Como dito por um dos participantes durante o evento, fronteiras não
são apenas limites, mas zonas de contato entre diferentes interlocutores.
As reflexões desenvolvidas antes – na preparação das apresentações e na
leitura dos textos previamente sugeridos pela Copedoc – e durante a Oficina
– nos gts e mesas de discussão, resultaram no aprofundamento da compreen-
são do papel da Instituição como mediadora e tradutora de diálogos intensos,
às vezes difíceis, mas sempre necessários, entre universos tão díspares que
compõem o que chamamos de nação brasileira. Ficou mais uma vez evidente
a importância da pesquisa como elemento-chave na elaboração e redefinição
das políticas de preservação do patrimônio, bem como fomentadora de dis-
cussões relevantes para a esfera institucional.
A publicação desta obra expressa não apenas a continuidade e a consolida-
ção de um espaço para a pesquisa dentro do Iphan, mas também uma maior
consciência crítica sobre as responsabilidades ética e política das instituições
de preservação no Brasil, mediante a intensificação das trocas e parcerias en-
tre seus agentes e da difusão de um conhecimento mais qualificado de suas
próprias práticas.

Coordenação-Geral de Documentação e Pesquisa


Copedoc/DAF/IPHAN

8
Programação
IV Oficina de pesquisa do IPHAN: patrimônio e fronteiras

Local: Palácio Gustavo Capanema – Salão Portinari, 2º andar


Data: 20 a 24 de setembro de 2010
Organização: Coordenação-Geral de Documentação e Pesquisa/DAF

Segunda-feira, 20/09/2010
09:00 Abertura:
Participantes Márcia Rollemberg – Diretora do Departamento de Articulação e Fomento
Lia Motta – Coordenadora-Geral de Documentação e Pesquisa
9:30 Mesa Redonda: Fronteiras Institucionais
Participantes Jurema Machado – Coordenadora Cultural Unesco Brasil
Rosina Parchen – Coordenadora do Patrimônio Cultural (SEEC/
PR) e Diretora do Comitê Brasileiro do Icomos
Jaime Antunes da Silva – Diretor-Geral do Arquivo Nacional
14:00 Comunicações – Fronteiras da Preservação: Território
Participantes Ana Stela Oliveira (IPHAN/PI): A presença da Companhia de Jesus no
Piauí Colonial
Juliano Martins Doberstein (IPHAN/PR): A Parte do Todo: o
regionalismo paranista e o estabelecimento da política federal de
preservação do patrimônio cultural brasileiro (anos 1920-1930)
Maria Tarcila Guedes (Copedoc/DAF): Patrimônio e fronteiras: a participação
brasileira nas Conferências Panamericanas
16:15 Comunicações – Fronteiras da Preservação: Instrumentos
Participantes Caroline Maciel Lauar (IPHAN/ES): Convento da Penha: o status da Paisagem
Cultural como instrumento efetivo de proteção no planejamento urbano”
Heliana Lima de Carvalho (IPHAN/RN): Estudos sobre o patrimônio naval do
Rio Grande do Norte: Inventário das Embarcações Tradicionais e do Ofício
da Pesca Artesanal do litoral oriental potiguar
Maria Emília Freire e Marcelo Freitas (IPHAN/PE): Patrimônio agroindustrial
em Pernambuco: usinas de açúcar e caminhos de ferro na formação da
paisagem cultural da Zona da Mata pernambucana
Terça-feira, 21/09/2010
09:00 Mesa Redonda: Fronteiras Culturais
Participantes Antônio Gilberto Ramos Nogueira – Professor do Departamento de História
da Universidade Federal do Ceará
Izabela Tamaso – Professora do Instituto de Ciências Humanas e Letras da
Universidade Federal de Goiás
Silvia Helena Zanirato – Professora do Curso de Gestão Ambiental da
Universidade de São Paulo e do Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Estadual de Maringá.
14:30 Grupos de Trabalho – Reuniões dos Grupos de Trabalho: Fronteiras institucionais/ Fronteiras Culturais
16:15 Grupos de Trabalho – Reunião Geral dos Grupos de Trabalho

9
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Quarta-feira, 22/09/2010
09:00 Comunicações – Fronteiras culturais: apropriações do patrimônio
Participantes Emanuel Oliveira Braga (IPHAN/PB): Entre o cotidiano e o evento: patrimônio
imaterial e políticas públicas
José Leme Galvão Júnior (DEPAM): Rede cooperativa de arquiteturas de terra
Patrícia Gomes Marques (IPHAN/MS): Banho do São João de Corumbá/MS
Pedro Gustavo Clerot (Cogedip/DAF): Povos do Grande Serão Veredas: uma
fronteira literária nas Gerais
Selmo José Norte (DEPAM): Antigos Quilombos, invisibilidade social e uni-
versos simbólicos: especificidades étnicas e culturais definindo o processo
de tombamento
14:00 Comunicações – Fronteiras do conhecimento: interdisciplinaridade
Participantes Guilherme Carvalho da Silva (CNA/ DEPAM): Cascos e lascas: fragmentos
de um patrimônio
Luciano dos Santos Teixeira (Copedoc/DAF): Nas fronteiras da História: a
preservação do patrimônio entre a memória e o esquecimento
Renata Santos (Copedoc/DAF): Fronteiras e limites de um bem tombado: o
caso da Marina da Glória
16:15 Comunicações – Fronteiras do conhecimento e políticas públicas
Participantes José Clewton do Nascimento (IPHAN/CE): Intervenções urbanas em sítios
históricos cearenses: aproximações e distanciamentos entre o concedido e
o vivido – o caso de Sobral
George Alex da Guia (DEPAM): Fronteiras do conhecimento e gestão do
patrimônio cultural: porosidades e permanências
Simone Toji (IPHAN/SP): Entre o material e o imaterial: o patrimônio cultural
brasileiro e a expressão de um Estado contraditório
Quinta-feira, 23/09/2010
9:00 Grupos de Trabalho – Reuniões dos Grupos de Trabalho: Fronteiras institucionais/ Fronteiras Culturais
11:15 Grupos de Trabalho – Reunião Geral dos Grupos de Trabalho
Sexta-feira, 24/09/2010
9:00 Mesa Redonda: – Fronteiras da preservação
Participantes Juliana Santilli – Promotora de Justiça do Ministério Público/DF
Maria Laura Cavalcanti – Professora do Departamento de Antropologia
Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Paulo César Boggiani – Professor do Instituto de Geociências da Univer-
sidade de São Paulo e membro do Conselho Estadual de Monumentos
Geológicos do Estado de São Paulo
14:00 Encerramento – GTs
Plenária final

10
O patrimônio jesuítico e as fronteiras
diluídas entre História e Arqueologia:
Ruínas de Brejo de São João (PI)

A na Stela de Negreiros Oliveira e Ní via Paula Dias de A ssis

Resumo
Este trabalho tem como objetivo discutir a atuação dos jesuítas na Capitania do Piauí
no século Xviii. Apesar da atuação da Companhia de Jesus no Brasil ser um tema
ainda pouco estudado, especialmente quando se trata das práticas econômicas, no
Piauí é marcante a atuação dos jesuítas como fazendeiros. Buscamos entender como
se deu a ocupação do espaço piauiense a partir da construção de estruturas de fazen-
das, caracterizar as edificações jesuíticas e identificar cultura material. Neste ponto
nos aproximamos do sentido ambivalente de fronteira proposto por Hartog (1999):
o espaço físico, correspondente ao atual estado do Piauí, seria uma zona tramitada
pelos religiosos e pelos povos indígenas, onde nem as adversidades geográficas signi-
ficariam limites às incursões que se dispunham realizar. Por outro lado, o alcance a
este mesmo espaço, por parte dos colonos e do próprio governador, era visto como
tarefa muito complicada. Múltiplas relações envolveram a Companhia de Jesus, gru-
pos indígenas, diferentes latifundiários e autoridades coloniais.

Ana Stela de Negreiros Oliveira é doutora em História do Brasil. Foi chefe do Escritório Técni-
co de São Raimundo Nonato-PI, e atualmente está lotada na Superintendência do IPHAN no Piauí,
em Teresina.

Nívia Paula Dias de Assis é mestre em História e Espaços pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN). Atualmente é professora assistente no curso de Arqueologia e Preservação Patrimo-
nial da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF).

11
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Imagem da página anterior


Bloco gravado. Detalhe.
Fonte: Acervo IPHAN.

12
Quase 300 anos após serem obrigados a abandonar as terras que hoje corres-
pondem ao estado do Piauí, os jesuítas que administraram algumas das mais
importantes fazendas de gado da Colônia durante o séc. Xviii, terminaram
por despertar instituições de apoio e fomento à pesquisa e a cultura neste Es-
tado. Trata-se de uma “releitura de capítulos da história colonial” que conta,
hoje, com uma perspectiva interdisciplinar voltada para a análise não somen-
te histórica, como também arqueológica.
Durante décadas, os trabalhos de arqueologia voltados para períodos histó-
ricos limitavam-se a corroborar afirmações contidas em fontes escritas. Com
o aprofundamento dos estudos sobre cultura material, porém, a Arqueologia
Histórica assume um novo perfil, o de produzir conhecimento confrontando
dados materiais e escritos. Com tal metodologia é possível que se obtenha não
somente confirmações, como também refutações de informações conhecidas.
A colonização do Piauí, iniciada em meados do século Xvii, trouxe à tona,
além do conjunto de intervenções econômicas pautadas na criação do gado,
novos modos de vida desenvolvidos ou mesclados em tal território. Bandei-
rantes paulistas, vaqueiros vindos da Bahia e de Pernambuco, missionários
jesuítas e escravos passaram a dividir um espaço até então ocupado somente
por povos indígenas.
Quando chegaram ao Piauí os primeiros vaqueiros colonizadores e asso-
ciados, provenientes da importante fazenda baiana Casa da Torre1, em finais
do século Xvii, instalaram-se definitivamente os latifúndios de gado em tal
cenário, sendo o principal fazendeiro da região limítrofe à Bahia2 , Domingos
Afonso Mafrense. Em 1711, após a sua morte, sem herdeiros, seu testamen-
to beneficiou com importantes fazendas de gado, a Companhia de Jesus. Os
jesuítas, por sua vez, que já haviam instalado alguns poucos núcleos missio-
neiros em tal território, terminaram por consolidar sua presença no mesmo
como “gestores de fazendas” e “negociantes de gado”.
Diante de tal contexto histórico, o trabalho desenvolvido pela Superin-
tendência do Iphan no Piauí, consiste em tombar os vestígios, ruínas e cul-

1 Garcia d’Ávila foi o fundador da Casa da Torre, mas coube ao segundo Garcia d’Ávila dar início à
penetração para o oeste, que foi continuada por seu sucessor, Francisco Dias d’Ávila, e o neto deste, o
segundo Francisco Dias d’Ávila, os quais completaram a penetração e a ocupação. A família tornou-se
assim grande proprietária de terras e muito poderosa devido aos acordos e acertos firmados com o go-
verno (CALMON, 1958).
2 Hoje região sudeste do Piauí, área geográfica que tem como base o rio Piauí, o principal curso d´água
da região, com nascente no divisor de águas com a bacia do São Francisco.

13
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

tura material, do patrimônio jesuítico no Piauí, sendo objeto de análise desse


artigo o sítio arqueológico Brejo de São João. Este se localiza na região onde
teria sido instalada uma das sedes das fazendas herdadas por tais religiosos.
O interesse por tal temática surge em decorrência das informações levantadas
durante a pesquisa realizada em 2007, intitulada O povoamento colonial do
sudeste do Piauí: indígenas e colonizadores, conflitos e resistência (Olivei-
ra, 2007). A mesma trouxe à tona indícios de uma participação econômica
expressiva dos chamados “padres fazendeiros”, que teriam administrado por
mais de meio século prósperas fazendas de gado na então Capitania do Piauí3.
Tal estudo em específico foi o que desencadeou, em conformidade com re-
latos sobre ruínas de construções históricas às margens do rio Piauí, no sudeste
do Estado, a 1ª. Campanha Arqueológica na região e o seu reconhecimento
oficial enquanto sítio arqueológico. Por ocasião da mesma, realizou-se pros-
pecção, evidenciação das estruturas arquitetônicas, demarcação das áreas de
interesse arqueológico, levantamento topográfico e fotográfico, coleta de ma-
terial de superfície e elaboração de plantas e perfis dos vestígios monumentais.
Durante o ano de 2008, numa tentativa de sistematizar melhor tal tra-
balho, foi elaborado pelo Iphan o projeto “Pesquisa Histórico-Arqueológica
sobre os Caminhos do Gado e a Presença dos Jesuítas no Território Piauien-
se”. O que possibilitou no ano seguinte, mediante pesquisa bibliográfica, do-
cumental e arqueológica, a produção de um primeiro trabalho monográfico
específico sobre o tema: Sítio Arqueológico Brejo de São João: um estudo de
caso sobre a presença da Companhia de Jesus no Piauí – séc. Xviii.
Nele, dados arqueológicos puderam ser contrastados com informações
provenientes da História. O recorte realizado dizia respeito aos missionários
da Companhia de Jesus na Capitania do Piauí e a análise, por sua vez, esteve
pautada nos tipos de edificações construídas durante o período, bem como a
forma como se dava a distribuição espacial das mesmas e as técnicas constru-
tivas empregadas.
Procurou-se, desse modo, entender como se deu a ocupação do espaço co-
lonial piauiense: a partir da construção de estruturas de fazendas (laicas e re-
ligiosas); caracterizando as edificações erigidas; realizando um levantamento
sobre o tipo de cultura material utilizada pelos missionários da Companhia
de Jesus na Capitania do Piauí; e ainda buscando reunir informações sobre o

3 Tema também nas obras de NUNES (1975), MOTT (1985), MELO (1991) e LIMA (2005).

14
sítio arqueológico Brejo de São João. Tudo isso de modo a confrontar a hipó-
tese de que teria sido esta uma construção realizada pelos missionários jesuí-
tas no início do século Xviii. A partir do material arqueológico encontrado no
local constatou-se, a necessidade de dar continuidade às pesquisas nessa ruína
e ampliar a pesquisa para os municípios de Santo Inácio e Nazaré do Piauí.
Trata-se de uma pesquisa em nível preliminar, mas que vem possibilitan-
do o reconhecimento de uma importante área econômica dinamizada pelos
padres jesuítas durante toda a primeira metade do século Xviii. Tal trabalho
resultará, possivelmente, numa importante base de elementos indicativos so-
bre uma das principais unidades produtivas do interior da colônia: a fazenda
de gado. O estudo das ruínas do que teria sido uma das principais fazendas
pertencentes aos religiosos na capitania do Piauí, hoje analisada enquanto sí-
tio arqueológico, pode fornecer dados sobre a distribuição espacial das cons-
truções erigidas em função de tal atividade, e, a partir da cultura material
encontrada, – com a possibilidade de inferências fundamentais para análises
posteriores e mais avançadas –, pistas sobre o cotidiano de tais fazendas.
Em relação à importância de tal pesquisa, enquanto uma abordagem inter-
disciplinar inédita sobre a presença da Companhia de Jesus no Piauí, com o
recorte temporal abrangido, ela pode ser também caracterizada como traba-
lhando com o período auge de disputa pelo território equivalente à Capitania
do Piauí, entre autoridades e clérigos do Estado do Brasil e da Capitania do
Maranhão Grão-Pará.

A presença da Companhia de Jesus no Piauí Colonial


Antes da instalação da Capitania do Piauí, toda a região situada a oeste do rio
São Francisco era conhecida por “Sertão de Dentro” ou “Sertão de Rodelas”.
Tendo pertencido a diferentes capitanias em períodos diversos – inicialmente
a administração estava a cargo de Pernambuco, sendo que deveria ser des-
membrada em 1695, mas, de fato, isso não ocorreu – somente a partir de 1715
esteve sob a jurisdição da Capitania do Grão-Pará e Maranhão; já a jurisdição
eclesiástica esteve dependente da Bahia. Em 1718, foi criada a Capitania de
São José do Piauí, mas instalada somente em 1758 (Costa, 1974, p. 54).
Em meados do século Xvii, começaram as penetrações colonizadoras no
sudeste do Piauí, inicialmente feitas por bandeirantes e religiosos. A partir de
então, até o início do século Xix, numerosas expedições foram organizadas,

15
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

com a finalidade de expulsar o nativo de suas terras, escravizá-lo nas fazendas


de gado e reduzi-lo em aldeamentos. Os primeiros colonizadores começaram
a expandir seus currais rumo aos vales dos rios Piauí, Gurguéia, Canindé e
Parnaíba. Ressalte-se que era intensa a presença de sertanistas de contrato na
Capitania do Piauí.
Dentre os sertanistas que chegaram até o território correspondente ao atu-
al Estado do Piauí, destaca-se a presença dos bandeirantes da Casa da Tor-
re. De acordo com Serafim Leite (1945, p. 551), Domingos Afonso Mafrense,
cujas incursões pelo interior do Brasil lhe renderam a alcunha “Sertão”, foi
o descobridor e povoador da região do rio Piauí. Perseguiu e dominou os
Gueguê desde o São Francisco até o Piauí, na entrada que participou com
Francisco Dias D’ Ávila, já tendo como objetivo a conquista do território para
o estabelecimento das fazendas de gado. (Carvalho, 1938).
A partir de 1676, ocorreram as concessões das primeiras sesmarias de ter-
ras que beneficiaram Domingos Afonso Mafrense, Julião Afonso Serra, Fran-
cisco Dias de Ávila e Bernardo Pereira Gago. Essas terras foram doadas pelo
governador de Pernambuco, Dom Pedro de Almeida, com ao todo, 10 léguas
de terras para cada um nas margens do Gurguéia (Nunes, 1975, p. 72). Pos-
teriormente, Mafrense recebeu sesmarias nas margens do rio Parnaíba, em
Parnaguá (1681), no Gurguéia e Paraim (1684) e, novamente, às margens do
Parnaíba (1686). A expansão das fazendas de gado teve início com essas imen-
sas doações feitas aos senhores da Casa da Torre4 .
As fazendas constituíam o principal móvel de ocupação do espaço piauien-
se, sendo que, desde 1697, vinte anos após a entrada da Casa da Torre no ser-
tão do Piauí, havia sido constatada a existência de 129 fazendas de gado e
153 sítios às margens dos rios e lagoas, com uma sociedade, de certa forma,
organizada (Carvalho, 1938).
Quando Domingos Afonso Mafrense retornou à Bahia, onde possuía re-
sidência, deixou cerca de 30 fazendas de gado que seriam administradas por
vaqueiros de sua confiança. Após sua morte, em 1711, sem herdeiros, deu-se
a conhecer que ele havia instituído em testamento todas as terras e gados que
possuía no Piauí para serem administradas pelo reitor do Colégio da Bahia.

4 O sistema de sesmarias foi abolido somente em 1822, e a ocupação da terra passou a ser feita pelo re-
gime de posse. É interessante destacar que uma data de sesmarias poderia conter mais de uma fazenda
de gado e sítios.

16
Assim sendo, as ditas fazendas passaram a ser administradas pelos jesuítas:

Nomeio e instituo por meus testamenteiros, em primeiro lugar, o Rv. Pa-


dre Reitor da Companhia de Jesus desta cidade da Bahia, que ao presente
for, e adiante lhe for sucedendo, e não aceitando este, nomeio ao licenciado
Francisco Ximenes, e em terceiro lugar a Antonio da Silva Livreiro, meu
vizinho, e em quarto ao capitão Belchior Moreira, aos quais e cada um in
solidum dou todo o meu poder, que em direito posso [...]
Declaro que sou senhor e possuidor da metade das terras, que pedi no
Piauí, com o coronel Francisco Dias de Ávila e seus irmãos, as quais terras
descobri e povoei com grande risco de minha pessoa, e considerável des-
pesa, com adjutório dos sócios, e sem eles, defendi também muitos pleitos,
que se moveram sobre as ditas terras, ou parte delas... que nas ditas terras,
conteúdas nas ditas sesmarias, tenho ocupado muitos sítios com gados
meus, assim vacum como cavalar, e todos fornecidos com escravos e ca-
valos, e o mais necessário: o que tudo constará dos meus papeis, fábricas,
com a quantidade dos gados pelas entregas de cada uma das fazendas, e
assim mais muitos sítios dados de arrendamento a várias pessoas; e outros
muitos estão ainda por povoar e desocupados, que também se poderão
ir dando de arrendamento, ou ocupando com gados meus, como melhor
parecer a meu sucessor (Sertão, 1867).

Em estudo realizado por Cláudio Melo, o autor informa que, quando o je-
suíta padre Manuel da Costa chegou ao Piauí para tomar posse das fazendas,
o patrimônio já estava sendo distribuído entre os filhos naturais de Domingos
Afonso Mafrense. De acordo com o autor, o processo do inventário durou
cinco anos (Melo, 1991).
Os jesuítas, logo no mesmo ano da morte de Domingos Afonso Mafrense,
tomaram posse das fazendas, sendo o primeiro administrador o padre Ma-
nuel da Costa. Já o reitor do Real Colégio da Bahia era o jesuíta italiano João
Antônio Andreoni5.
A mais importante das fazendas da Companhia veio a ser a Vila da Mocha,
primeira capital do Piauí, hoje cidade de Oeiras. De acordo com o testamento
de Domingos Afonso Mafrense, as fazendas foram doadas na condição de não
serem alienadas, devendo se construir no local uma capela ou morgado, e sua

5 O jesuíta chegou ao Brasil em 1681 e exerceu diversos cargos na instituição, desde diretor de estudos e
secretário particular do padre Vieira, quando este ocupou o cargo de visitador geral, a reitor do Colégio
da Bahia. Mas ficou conhecido por seu trabalho Cultura e opulência do Brasil, editado em Lisboa em 1711.

17
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

renda ser aplicada para ajudar donzelas, viúvas e pobres; com o que sobrasse,
seriam adquiridas novas fazendas (Sertão, 1867). Nas fazendas administra-
das pelos jesuítas, em 1739, já havia cerca de 30.000 cabeças de gado vacum e
164 trabalhadores.
Os fundos provenientes das fazendas piauienses davam sustentação a uma
das mais importantes fundações culturais do Brasil colonial, o Colégio da
Bahia. Deste modo, a nova constituição administrativa que seria abordada
nas terras piauienses terminaria por refletir em um quadro de indivíduos com
certo preparo intelectual.
Do importante Colégio da Bahia, a principal instituição a receber investi-
mentos, possivelmente teriam surgido práticas e controles contábeis articula-
dos diretamente à direção das próprias unidades produtivas.
Os religiosos demonstraram habilidade grande com o patrimônio herda-
do no Piauí exercendo grande influência na área em que atuaram; tudo isso,
porém, aproveitando-se do trabalho de escravo e vaqueiros, entre mestiços,
negros e índios domesticados.
Para Odilon Nunes, a administração das fazendas de Domingos Afonso
Mafrense pelos jesuítas constituiu-se fundamental para a coesão do territó-
rio, transformando-o em um todo homogêneo; o que impediu a dispersão por
pequenos donos, tendo em vista que isso poderia facilitar a atração de aventu-
reiros de regiões vizinhas. Esse fato tornou-se importante para o processo de
criação da Capitania, da Província e depois do Estado do Piauí (Nunes, 1975).
Por outro lado, a concentração de riquezas na Companhia de Jesus trans-
formou tal ordem em alvo de sérias medidas intervencionistas. A Coroa por-
tuguesa temia o poderio religioso, que se instalava na colônia, e percebia o
patrimônio já organizado pelos jesuítas como importante fonte de recursos
a ser utilizada.
Em 1758, o poder temporal dos jesuítas foi suprimido em todo o Brasil, e,
em 1759, o governo português decretou a expulsão da Companhia de Jesus de
todo o Império português.
Em 1760, os jesuítas do Piauí foram presos e remetidos para a Bahia; den-
tre eles, os padres João de Sampaio, Manuel Cardoso e José Figueiredo e os
leigos Jacinto Fernandes e Donato Antônio Ferreira, que residiam na cape-
la instituída por Domingos Afonso Mafrense. Encontravam-se mais dois em
Parnaguá, os quais foram presos e remetidos para a cidade de São Luís (Nu-
nes, 1975). Na relação dos bens que foram sequestrados dos jesuítas, assinada

18
pelo governador João Pereira Caldas, constavam 31 fazendas de gado vacum e
cavalar, três residências com suas roças e 49 sítios arrendados a particulares.
Após a expulsão desses missionários do Brasil, suas fazendas passaram
para a Real administração, sendo denominadas Fazendas do Fisco ou Fazen-
das do Real Fisco. As terras e propriedades confiscadas foram redivididas em
três inspeções: Canindé, Nazaré e Piauí, tendo cada uma sua sede, chamada
residência, onde morava o administrador responsável por aquela inspeção, o
qual era um enviado de Portugal e pago pelo erário real. Para cada fazenda,
foi nomeado um criador.

A inspeção de Canindé situava-se ao longo do rio Canindé, sendo com-


posta pelas seguintes fazendas: Ilha, Pobre, Baixa dos Veados, Sítio, Tran-
queira, Poções, Saco, Saquinho, Castelo, Buriti, Campo Largo e Campo
Grande. A inspeção de Nazaré estava situada ao longo do rio Parnaíba e
era composta pelas seguintes fazendas: Tranqueira de Baixo, Gameleira,
Guaribas, Matos, Lagoa de São João, Olho d’água, Mocambo, Serrinha,
Jenipapo, Algodões e Catarens. Por sua vez, a inspeção Piauí estava locali-
zada às margens do rio Piauí; era constituída pelas fazendas Salinas, Bre-
jinho, Grande, Boqueirão, Gameleira, Cachê, Serra, Cachoeira, Espinhos e
Julião (Lima, 2005, p. 24-25).

A inspeção Piauí corresponde à região da antiga fazenda jesuítica de Brejo


de São João, situada no município de Pajeú do Piauí, nas proximidades do rio
Piauí. Já a inspeção Canindé tinha sede no atual município de Santo Inácio do
Piauí e Nazaré, no interior do município de Nazaré do Piauí.
Com a saída das fazendas da administração da Companhia de Jesus, fi-
cou evidente a desorganização de sua administração, especialmente nas da
residência do Piauí, onde ocorreram denúncias de que a mata estava sendo
destruída e o gado diminuindo. Durante este período, vários documentos
existentes no Arquivo do Piauí relacionam também denúncias de violência
nas fazendas localizadas nas cabeceiras do rio Piauí. São relatos de assassina-
tos, disputas de terras e raptos de mulheres.
Múltiplas relações envolveram Companhia de Jesus, grupos indígenas, di-
ferentes interesses latifundiários e autoridades coloniais. Os padres, portanto,
atuaram dentro do modelo econômico implantado no Brasil colonial, só que
com privilégios, sendo que na maioria das vezes com isenção de taxas e im-
postos (Assunção, 2004, p. 25).

19
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Sítio Arqueológico Brejo de São João


Acreditamos que a Arqueologia pode ajudar na compreensão da atuação da
Companhia de Jesus no Piauí. Através dos vestígios arqueológicos, foi possível
trabalhar a relação entre a História e a Arqueologia, principalmente quando
as fontes históricas não dão conta do processo.
Em recente pesquisa realizada pelo Iphan, foi possível identificar ruínas
das antigas sedes de Canindé e Piauí. As ruínas da sede da inspeção das fazen-
das das margens do rio Piauí estão localizadas no assentamento Brejo de São
João, em Pajeú do Piauí, e as de Canindé na cidade de Santo Inácio-PI. Ainda
não foi possível identificar a localização da fazenda sede de Nazaré.
Na missão organizada pelo Iphan em Brejo de São João, em dezembro de
2007, foram realizados trabalhos de prospecção, coleta de superfície e levan-
tamento fotográfico das ruínas.
A datação mais antiga para este sítio ficou por conta de uma pedra (lajota)
com a gravação escrita do ano de 1738. Se considerado o período histórico em
que os jesuítas possuíram fazendas no Piauí, bem como os relatos sobre o mo-
mento em que os mestres de obra da Companhia de Jesus estiveram erguendo
as residências e capelas das três principais edificações da ordem na então Ca-
pitania (1735 a 1745), os dados apresentam-se coincidentes.
Quanto às técnicas construtivas utilizadas pelos mesmos, como o uso pre-
dominante da pedra na construção de paredes e cercas para delimitar terri-
tório, ou ainda a preferência por plantas quadrangulares, elas também estão
presentes no sítio.
Deste modo, há indícios de que se trata de uma construção realizada por
jesuítas. A datação, os materiais construtivos e o tipo de ambiente ocupado
pelos missionários na Capitania do Piauí contribuem para tais afirmações.
Quanto à questão da funcionalidade que teria tido tal ruína, ainda não foi
possível um detalhamento no que diz respeito à utilização exclusiva para fins
religiosos ou se a habitação dos padres estava acoplada, visto que os dados
históricos as descreve como construções integradas na Capitania do Piauí.
De modo geral, a ausência de registros sobre monastérios no Piauí, resi-
dências específicas para padres, durante esse período, bem como a descrição
da residência e capela acopladas, em Brejo de Santo Inácio, leva a crer que
também em Brejo de São João tais conjugações fossem possíveis.
Logo, acrescentadas aos dados historiográficos, as informações arqueológi-
cas sobre as ruínas do sítio Brejo de São João ajudam a caracterizar o espaço da

20
Ana Amélia de Paula Moura

Figura 1 Interior da estrutura.


Fonte: Acervo IPHAN.

Figura 2 Vista da área


arqueológica.
Fonte: Acervo IPHAN.

21
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Figura 3 Muro de pedra.


Fonte: Acervo IPHAN.

Figura 4 Faianças com


decalque.
Fonte: Acervo IPHAN.

Figura 5 Bloco gravado.


Fonte: Acervo IPHAN.

22
Figura 6 Metal.
Fonte: Acervo IPHAN.

Capitania do Piauí, no período correspondente a ocupação dos padres jesuítas.


Sobre a posse de certos utensílios, ainda que de forma limitada, algumas
fazendas laicas piauienses, como as de Serra Negra, Abelheiras ou São Domin-
gos, tidas como prósperas, usufruíram de certos objetos. Tiveram relatadas
bacias esmaltadas, canecas de prata e até mesmo móveis como camas de mola
e ferro, e cadeiras estrangeiras. Considerando-se também a prosperidade eco-
nômica das fazendas jesuíticas, bem como o significativo grau de instrução e
refinamento que provavelmente possuíam tais missionários, oriundos de uma
das mais importantes instituições educacionais do Brasil (Colégio de Salva-
dor), é possível que grande variedade de vestígios referentes aos mesmos ainda
sejam identificados após a escavação do sítio estudado.
Na prospecção arqueológica realizada, foi encontrada grande quantidade
de material arqueológico, tais como vestígios cerâmicos, material lítico, ferro,
blocos decorados e fragmentos de louça.

Considerações finais
No estágio atual da pesquisa, estrutura-se em parceria com a Fundação Mu-
seu do Homem Americano6 uma primeira escavação arqueológica para o ano
de 2011, sendo que o objetivo final de tal trabalho, como já fora enunciado,

6 A Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM) foi criada no ano de 1986 em São Raimundo
Nonato, estado do Piauí. Trata-se de uma entidade científica, filantrópica, sociedade civil (OSCIP), sem
fins lucrativos. Atua formalmente ligada às instituições dos governos federal, estadual e municipal e tem
a responsabilidade técnico-científica de Unidade de Conservação.

23
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

é o de levantar informações sobre o dinâmico período pecuarista, vivido em


tempos coloniais, no qual os jesuítas estiveram à frente das principais ações
e tomadas de decisões. Através da análise histórica e da própria configuração
espacial dos locais de produção “construídos” e “vividos” na Capitania do
Piauí, procura-se hoje, num contexto onde o próprio estado busca “(re)co-
nhecer” seu patrimônio histórico, trazer subsídios para que não somente as
ruínas do sítio arqueológico Brejo de São João, como também toda a história
de “apropriação cultural, econômica e social” que ocorrera no mesmo possa
ser evidenciada.
A contribuição do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
complementar-se-á quando as informações levantadas puderem ser reunidas
de forma a justificar a importância histórica e o valor cultural apresentados
por tais ruínas, justificando desse modo, o seu reconhecimento como patri-
mônio histórico. Logo, dar continuidade para tombamento federal do Patri-
mônio Jesuítico.

Figura 7 Disposição de material arqueológico no interior das ruínas. Fonte: ASSIS (2009).

24
Referências
Alencastre, José Martins Pereira d'. Memória Cronológica, Histórica e Geográfica da Província
do Piauí. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo XX, 1857.
Antonil, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982
Assis, Nívia Paula Dias de. Sítio arqueológico Brejo de São João: um estudo de caso sobre a pre-
sença da Companhia de Jesus no Piauí – séc. Xviii. 2009. Monografia (Graduação em Arque-
ologia e Preservação do Patrimônio) – Universidade Federal do Vale do São Francisco, 2009.
Assunção, Paulo de. Negócios jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São
Paulo: EdUsp, 2004.
Calmon, Pedro. História da Casa da Torre: uma dinastia de pioneiros. 2. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1958. (Coleção Documentos Brasileiros).
Carvalho, Pe. Miguel. Descrição do sertão do Piauí remetida ao Ilmº e Rmº Sr. Frei Fran-
cisco de Lima Bispo de Pernambuco por Pe. Miguel de Carvalho, datada de Piauí, 02 de
março de 1697. In: Ennes, Ernesto. A guerra nos Palmares (subsídios para a sua história).
Domingos Jorge Velho e a “Tróia Negra” 1689-1709. São Paulo: Companhia Editora Nacio-
nal, 1938. (Brasiliana, 1).
Sertão, Domingos Affonso. Testamento de Domingos Afonso Sertão, Descobridor do Piauí.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo XX, p. 140-64, 1867.
Costa, F. A. Pereira da. Cronologia histórica do Estado do Piauí. Rio de Janeiro: Artenova, 1974.
Hartog, François. O espelho de Heródoto: ensaios sobre a representação do outro. Belo Hori-
zonte: Editora Ufmg, 1999
Le Goff, Jacques; Nora, Pierre (Dirs.). História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1988.
Leite, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa; Rio de Janeiro: Livraria
Portugália; Instituto Nacional do Livro, 1945. tomo V.
Lima, Solimar de Oliveira. Braço forte: trabalho escravo nas fazendas da nação no Piauí (1822-
1871). Passo Fundo: Upf, 2005.
Maxwell, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
Melo, Cláudio. Os jesuítas no Piauí. Teresina: [s.n.]. 1991.
Mott, Luiz R. B. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. Teresina: Projeto Petronio
Portella, 1985.
Nunes, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. Rio de Janeiro: Artenova, 1975. v. 1.
Oliveira, Ana Stela de Negreiros. O povoamento colonial do sudeste do Piauí: indígenas e
colonizadores, conflitos e resistência. 2007. Tese (Doutorado em História) – Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2007.
Pinto, Estevão. Indígenas do Nordeste. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935. tomo
1. (Brasiliana, 44).
______. Indígenas do Nordeste. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. tomo 2. (Bra-
siliana, 112).
Silva Filho, Olavo Pereira da. Carnaúba, pedra e barro na Capitania de São José do Piauí. Belo
Horizonte: Ed. do Autor, 2007. 3 v.

25
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

26
O patrimônio cultural de Jaguarão (RS)
e a definição das fronteiras meridionais
do Brasil

A nna Eliz a Finger

Resumo
Desde o final de 2008 o Iphan vem trabalhando no dossiê de tombamento do Con-
junto Histórico e Paisagístico de Jaguarão, no Rio Grande do Sul. Jaguarão localiza-
se na fronteira do Brasil com o Uruguai, e descende de um dos acampamentos mi-
litares fundados inicialmente por tropas espanholas, e depois ocupado por tropas
portuguesas, durante as disputas pelo território platino. Entretanto, mesmo com as
divisões políticas que definiram as fronteiras entre os dois países, há uma grande
vinculação entre as referências culturais desta região e os países vizinhos, que vai
desde as características ambientais (localiza-se em uma ampla região definida como
“Bioma Pampa”), hábitos sociais, culinários, tradições etc. Por este motivo, buscou-
se entender como se deu a ocupação territorial e a definição das fronteiras entre o
Rio Grande do Sul e o Uruguai, para compreender o sentido do patrimônio cultural
material e imaterial de Jaguarão.

Anna Eliza Finger é arquiteta e urbanista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), especialista em Conservação e Restauro de Monumentos e Conjuntos Históricos, pelo CECRE
– Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestre e doutora em Teoria e Crítica da Arquitetura pela Uni-
versidade de Brasília (UnB). Técnica do IPHAN em Brasília, lotada no Departamento de Patrimônio
Material e Fiscalização (Depam). Atual coordenadora-geral de Cidades do IPHAN.

27
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Imagem página anterior


Vista da cidade a partir da margem uruguaia do Rio Jaguarão. Observa-se o corpo principal da Igreja
Matriz, com os fundos voltados para o rio.
Foto: Anna Finger, abril de 2009.

28
O presente artigo apresenta a proposta de tombamento do Conjunto Históri-
co e Paisagístico de Jaguarão, no Rio Grande do Sul, como patrimônio nacio-
nal pelo Iphan. O Dossiê de Tombamento foi concluído em outubro de 2010,
estando o conjunto sob tombamento provisório, aguardando apreciação pelo
Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.
A proteção de Jaguarão vem abrir caminho para a proteção de uma série
de bens representativos do processo de ocupação territorial e definição das
fronteiras meridionais do Brasil, como os Conjuntos Históricos e Paisagísti-
cos de Bagé, Pelotas, Rio Grande, bem como do núcleo charqueador pelotense
e da Ponte Internacional Mauá (também em Jaguarão), previstos para serem
encaminhados a partir de 2011. Esses bens, além de seu valor arquitetônico,
urbanístico e paisagístico, do ponto de vista histórico estão relacionados a
dois movimentos principais, que serão aqui analisados:

1. As disputas territoriais entre Portugal e Espanha pela posse e contro-


le do território ao sul das suas possessões na América, e, após os proces-
sos de independência, entre o Brasil e as antigas colônias espanholas;
2. O desenvolvimento de uma cultura específica em decorrência dire-
ta dos processos históricos ali ocorridos, pautada em grande medida
no desenvolvimento da agropecuária, que relacionam a região sul do
Brasil com os demais países da Região Platina.

O avanço e definição da fronteira meridional do Brasil


A formação do Conjunto Histórico e Paisagístico de Jaguarão está intrinse-
camente relacionada aos processos de expansão das ocupações portuguesa e
espanhola no território americano, e nas estratégias implementadas para ga-
rantir a posse do território.
Durante o período conhecido como União Ibérica (1580-1640), a priori,
as disputas territoriais pelos territórios americanos foram suspensas, uma
vez que toda a extensão das novas terras pertenceria então à Coroa Espanho-
la. Mas, justamente nesse período, foram descobertas as primeiras minas de
prata na região andina e os primeiros caminhos de acesso a elas a partir da
navegação pelos afluentes do Rio da Prata, e, com restauração do reino de
Portugal, iniciou-se um longo processo de disputas pelo controle do território
banhado pela Bacia do Rio da Prata.
Como naquele momento ainda não haviam sido descobertas jazidas de

29
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

ouro em território português, a coroa lusitana partiu para a ocupação das


terras ao sul do seu último ponto estabelecido: a Capitania de São Vicente,
através da fundação de portos e povoações (mais tarde elevadas a vila) nas
baías de Paranaguá e da Babitonga, na Ilha de Santa Catarina, em Laguna,
Rio Grande e também no Estuário do Rio da Prata (Colônia de Sacramento,
1680), rompendo a demarcação estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas. Esse
movimento de expansão deflagrou uma série de confrontos entre os dois pa-
íses – que implicou na revogação do Tratado de Tordesilhas e no firmamento
de outros documentos para tentar solucionar a questão das fronteiras – e dei-
xou marcas no território ainda hoje perceptíveis, como o estabelecimento de
postos militares e a fundação de povoações que deram origem a diversas das
cidades da região, tanto no Brasil quanto no Uruguai e Argentina.
Ao mesmo tempo, as atividades econômicas que ainda hoje caracterizam
a região platina contribuem para aproximar culturalmente o sul do Brasil
dos países vizinhos. O desenvolvimento da pecuária, por exemplo, decorre
de fatores históricos (a inserção do gado na região das missões jesuíticas e seu
posterior abandono, permitindo a formação das “vacarias” que deram origem
às estâncias de gado), mas também ambientais, pois na região do pampa essa
produção encontrou um local extremamente propício para seu desenvolvi-
mento. Também seu processamento posterior foi favorecido, pois se no in-
verno as temperaturas caem significativamente, os verões quentes permitiam
a produção do charque em grandes quantidades, de boa qualidade e a baixos
custos, já que o gado não precisava ser deslocado por grandes distâncias e,
desta forma, não perdia peso.
Assim, a instrução do Processo de Tombamento de Jaguarão buscou ca-
racterizar o processo de ocupação territorial e desenvolvimento socioeconô-
mico e cultural da região platina do Brasil, através da análise de aspectos his-
tóricos, econômicos e ambientais.
Entre os aspectos históricos, foi caracterizada a ocupação desde o período
pré-colonial, as primeiras investidas, os conflitos entre as duas coroas e os di-
ferentes tratados firmados para tentar solucionar a questão, até a identificação
de locais detentores de elementos que materializem esse processo, como vilas,
fortificações, locais de batalhas, entre outros.
Entre as questões socioeconômicas, foram destacadas a formação dos reba-
nhos de gado que deram origem às estâncias e, mais tarde, forneceram o gado

30
para as charqueadas, permitindo o rápido desenvolvimento de cidades como
Jaguarão, Bagé e Pelotas, e a formação dos caminhos de articulação territorial,
entre eles o Caminho das Tropas e a implantação da malha ferroviária.
Foram abordadas ainda questões políticas, como as sucessivas revoluções
que mesmo após a independência das colônias, continuaram tendo a região
platina como palco (como a Revolução Farroupilha e a Revolução Federalis-
ta), e o estudo chegou até os dias atuais, com uma caracterização do atual
panorama socioeconômico, características ambientais, potencialidades regio-
nais, entre outros aspectos.
Nesse contexto, a proposta de tombamento do Conjunto Histórico e Pai-
sagístico de Jaguarão, situada na fronteira entre o Brasil e o Uruguai, foi justi-
ficada por este local ser um ponto essencial para a compreensão dos processos
de definição territorial do país, materializando também toda a cultura desen-
volvida a partir dos processos históricos ali ocorridos.

O Conjunto Histórico e Paisagístico de Jaguarão/RS


A povoação da região às margens do Rio Jaguarão foi iniciada em 1792, com
a fundação de uma guarnição militar espanhola no local conhecido como
Cerro da Pólvora (hoje dentro da área urbana da cidade, onde se localizam
as ruínas da Enfermaria Militar). Em 1801, essa guarda foi tomada pelos por-
tugueses que, no ano seguinte, se instalaram nesse ponto, dando origem à
povoação do Espírito Santo do Cerrito de Jaguarão.
Ao longo de sua história, a cidade foi palco de disputas e batalhas, inicial-
mente entre as coroas portuguesa e espanhola e, após a independência, quando
as fronteiras já estavam relativamente bem definidas, entre a elite pecuarista
regional e o Governo Central. E, devido a esse constante clima de instabilida-
de, para aumentar a presença oficial e o controle sobre o território, a povoação
foi elevada a vila em1832, e, já em 1855, foi reconhecida como cidade.
Pela sua localização na fronteira e sua posição estratégica para a defesa do
território, a cidade se desenvolveu voltada para o Uruguai, pois ao mesmo
tempo em que o Rio Jaguarão (que nesse trecho delimita a divisão política
entre os dois países) oferecia proteção, o relevo permitia a observação da mo-
vimentação militar naquele território a partir dos postos militares instalados
nos Cerros. Por esse motivo a cidade cresceu envolta em uma atmosfera mili-
tar, e apesar de as fortificações originais não existirem mais, outros elementos

31
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

marcam essa presença, como as ruínas da antiga Enfermaria Militar e um


novo quartel do exército, construído já no século XX, que abriga um contin-
gente significativo de militares se comparado ao porte do município.
Mas, a despeito das disputas políticas e militares, a população transitava
entre os dois lados de maneira praticamente irrestrita, e o comércio de fron-
teira – em grande parte irregular e pautado nos laços de parentesco e nas
propriedades rurais que os pecuaristas mantinham nos dois lados da fron-
teira – garantia a manutenção dos laços culturais que os governos tentavam
separar politicamente.
Como em outros pontos da fronteira, Jaguarão e Rio Branco se desen-
volveram de maneira interdependente. Esta dependência se estendia a toda
a região sul do Brasil e ao Uruguai, e ganhou destaque com a construção da
Ponte Internacional Mauá1 e a implantação da linha férrea, que conectou a
malha gaúcha ao porto de Montevidéu, por onde eram transportados os pro-
dutos pecuários (principal atividade econômica da região), como alternativa
aos portos brasileiros e suas altas tarifas. Assim, a construção da Ponte e a
implantação da linha férrea representam ainda a resistência das elites pecu-
aristas gaúchas, em constante disputa, inicialmente com a coroa portuguesa
e, mais tarde, com a administração centralizada no Rio de Janeiro e domina-
da pelos cafeicultores da região sudeste2 . A opção de passagem por Jaguarão,
mesmo com as dificuldades apresentadas pela transposição do rio, em detri-
mento de outras localidades de “fronteira seca”, demonstra a importância da
cidade durante aquele momento.
Quanto à implantação da malha urbana de Jaguarão, é nítida a interação
entre esta e o ambiente natural. Tendo as guardas militares se instalado em
pequenas elevações (os Cerros das Irmandades e da Pólvora, sendo que neste
último haviam sido instaladas as primeiras guardas, em função da visão pri-
vilegiada do espaço no entorno, que abrangia o lado oposto do Rio Jaguarão e

1 A Ponte Internacional Mauá foi financiada pelo Uruguai em decorrência de uma dívida de guerra com
o Brasil e executada no início do século XX. Este bem está sendo proposto ao Mercosul Cultural como o
primeiro a ser reconhecido como patrimônio transfronteiriço do Mercosul.
2 No Rio Grande do Sul a economia do charque permitiu o estabelecimento de uma classe social econo-
micamente fortalecida, mas que encontrava dificuldades junto ao Governo Central, sendo seus interes-
ses muitas vezes preteridos em favorecimento de outros interesses econômicos politicamente mais bem
representados, como o dos cafeicultores. A tensão entre os pecuaristas no sul e o governo chegou a de-
flagrar conflitos armados, como as revoluções Farroupilha e Federalista, até hoje de grande importância
para a história e cultura gaúcha.

32
permitia vigiar as movimentações das tropas inimigas) em função da já men-
cionada visão privilegiada do espaço no entorno, a cidade implantou-se entre
esses Cerros e o rio, estando constantemente protegida, ao mesmo tempo em
que podia desenvolver seu comércio no entorno do porto.
Respeitando as condições necessárias à defesa, espraiou-se sem obstruir a
visão a partir dos pontos estratégicos, que podem ser claramente observados
na Figura 1. Esses pontos ainda hoje são mirantes privilegiados para a obser-
vação do ambiente natural (composto pelo pampa e cortado pelo Rio Jagua-
rão), de sua área urbana, e também do Uruguai. É, portanto, indissociável a
relação entre a cidade e seu ambiente natural.
A cidade destaca-se pelas características retilíneas de seu arruamento,
possivelmente em função da forte influência espanhola e seu urbanismo, di-
ferenciando-se fortemente das cidades luso-brasileiras fundadas no mesmo
período. Observando a primeira planta da cidade, datada de 1815 (Figura 2), é
possível perceber uma impressionante semelhança entre o traçado urbano de
Jaguarão e plantas de cidades espanholas. Essa característica é reforçada pelo

Figura 1 Detalhe do “Projeto da Fortificação para a Cidade de Jaguarão”, datado de 1865. Na figura
observa-se a posição da povoação às margens do Rio Jaguarão, defronte à povoação uruguaia de Vila
Artigas (atual Rio Branco). Aparecem na figura os cerros que cercam a área urbana, para os quais foram
previstas fortificações, com destaque para os Cerros da Pólvora (acima, à esquerda) e das Irmandades
(abaixo, à direita). Foram previstas ainda outras instalações, bem como uma proteção à própria área
urbana, mas que não chegaram a ser executadas. Fonte: Arquivo do Exército.

33
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Figura 2 Planta da Guarda


do Cerrito, 1815.
Fonte: Instituto Histórico e
Geográfico de Jaguarão.

fato de que em Jaguarão buscou-se não apenas ordenar o espaço já ocupado,


mas estabelecer um planejamento para a forma que a cidade deveria assumir,
com a definição prévia do arruamento e o macro-parcelamento.
Também merece destaque o fato de a atual Praça Alcides Marques, que à
época levava o nome de “Praça Militar”, ser configurada de forma semelhan-
te às Plazas Mayores espanholas, pois, apesar de abrigar atualmente a Igreja
Matriz, essa só foi edificada mais tarde3, sendo que à época da elaboração da
cartografia existia no local apenas um barracão coberto por palha, ao qual
sequer se deu destaque quando da elaboração da cartografia.
Essas características diferem sensivelmente do urbanismo português,
onde a ocupação ocorria de forma mais livre, pois, apesar de existirem orien-
tações gerais visando garantir o alinhamento e ordenamento da cidade, não
era comum um planejamento urbano tão preciso previamente à implantação
dos edifícios, com a divisão em quadras e lotes. Pelo contrário, as plantas que
documentam as cidades portuguesas, em sua maior parte, retratam as situa-
ções urbanísticas no momento de sua elaboração, registrando a ocupação das
cidades, mas sem lançar propostas para sua expansão.
Além disso, nas cidades de origem portuguesa o principal espaço urbano
era invariavelmente determinado pela construção da Igreja Matriz, geralmen-
te implantada em um aclive e que assumia também a função de principal pon-

3 A construção da Matriz, iniciada em 1846 e concluída no último quartel do século XIX é, inclusive,
muito posterior às igrejas das demais cidades luso-brasileiras formadas no mesmo período da povoação
do Espírito Santo do Cerrito de Jaguarão, demonstrando uma preocupação secundária em relação à
religião, e o enfoque na função militar da cidade.

34
to de observação e marco referencial para a identificação da cidade a partir
do mar ou dos rios navegáveis. E em função da igreja é que era demarcada a
praça principal e localizados outros equipamentos urbanos, ou seja, o inverso
do que aconteceu em Jaguarão.
Ali, a posição da igreja não apenas não influenciou seu traçado urbano,
como ao ser construída tardiamente, foi implantada com os fundos voltados
para o rio e fachada contínua, inserida entre os demais edifícios precedentes
(Figuras 3 e 4), situação pouco usual nas cidades de origem luso-brasileira.
O conjunto urbano de Jaguarão apresenta-se, portanto, como um sincre-
tismo de influências portuguesas e espanholas, que resultaram em um projeto
urbanístico único, ao qual se soma um conjunto de edificações coloniais, e-
cléticas, art-déco e modernistas, que variam em tipologias, formas de implan-
tação e acabamentos, testemunha dos diversos períodos históricos pelos quais
a cidade passou.
Foi destacado o século XIX, quando, assim como aconteceu em diversas
cidades brasileiras que testemunharam ou estiveram no ponto central de
grandes processos econômicos, Jaguarão também desenvolveu uma arquite-
tura eclética rica e opulenta durante o período áureo da pecuária e produção

Figura 3 Vista da cidade a partir da margem uruguaia do Rio Jaguarão. Observa-se o corpo principal
da Igreja Matriz, com os fundos voltados para o rio. Foto: Anna Finger, abril 2009.

35
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Figura 4 Fachada da Igreja Matriz, inserida entre os demais edifícios, numa conformação que se
assemelha às ocupações espanholas e contrasta com as luso-brasileiras, onde a igreja geralmente é
destacada na paisagem. Foto: Anna Finger, abril 2009.

do charque. E a delicadeza na ornamentação dos edifícios (Figura 5) contrasta


com a rudeza da produção do charque e da escravidão, mão de obra funda-
mental para o desenvolvimento dessa economia.
É interessante notar que os mesmos escravos que durante o verão produ-
ziam o charque, durante o inverno trabalhavam na edificação da cidade, e
ainda tiveram participação decisiva em conflitos armados como a Revolução
Farroupilha. Mas, apesar de sua importância para a formação do Rio Gran-
de do Sul, após a abolição da escravatura, o imenso número de ex-escravos
passou a constituir uma população marginalizada e pouco reconhecida no
Estado, ao qual não é dado o devido crédito pelo trabalho desempenhado,
sem o qual certamente não teria sido possível, ao Estado alcançar o desenvol-
vimento econômico e cultural atual.

A atuação institucional do IPHAN em Jaguarão


Apesar de até o ano de 2010 Jaguarão não contar com nenhum bem protegido
pelo Iphan, a preservação de seu conjunto arquitetônico e urbanístico vem
sendo feita, em grande medida, pela própria população, tendo sido oficial-
mente encampado pela Prefeitura Municipal através de projetos e leis específi-
cas, como demonstra a Lei Municipal nº. 4.682/2007, que instituiu o Plano de
Preservação do Patrimônio Histórico, Arquitetônico e Turístico de Jaguarão.

36
Figura 5 Edificação no
Centro Histórico de Jaguarão,
onde se observa a delicadeza
na platibanda vazada e demais
acabamentos. Foto: Anna
Finger, abril 2009.

E, recentemente, quando do lançamento do Pac para as cidades históricas, foi


uma das primeiras a aderir.
Nesse aspecto, a prefeitura tem se mostrado uma parceira fundamental
para as ações de preservação, e, ao contrário do que ocorre em diversas ci-
dades brasileiras, em Jaguarão não apenas a administração municipal, mas
também os moradores cobram do Iphan o tombamento de seu centro histó-
rico. Assim, seu tombamento em nível federal vem ao encontro das iniciativas
locais, que anseiam pelo reconhecimento de sua importância.

A valoração do conjunto e proposta de tombamento


A história da cidade de Jaguarão esteve ligada a dois momentos significativos
da história do Brasil: o processo de definição das fronteiras territoriais do sul
do Brasil e o desenvolvimento de uma cultura que relaciona o país a outros
países da América do Sul. Nesse contexto, transcrevemos aqui um trecho da
justificativa de proteção, conforme apresentada no Dossiê de Tombamento do
Conjunto Histórico e Paisagístico de Jaguarão:

(...) o tombamento de Jaguarão como patrimônio nacional, ao mesmo


tempo em que reconhece a extensão dos processos econômicos e sociais
do Brasil, que chegaram até as fronteiras mais distantes, é também o reco-
nhecimento de um sistema cultural distanciado da “capital” e da “corte”,
que a despeito das disputas políticas, se desenvolveu entre a população
dos dois lados da fronteira, que se reconhece verdadeiramente como ir-
mãos. Essa influência platina faz com que a cultura local tenha, por vezes,

37
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

mais semelhanças com outros países da América do Sul como o Uruguai,


o Paraguai e a Argentina, do que com os elementos tradicionalmente re-
conhecidos como referenciais para a “cultura brasileira”. E nesse contexto,
Jaguarão representará um capítulo pouco conhecido e menos ainda apro-
priado pela história brasileira quando contada a partir dos bens reconhe-
cidos atualmente como patrimônio nacional.
Espera-se assim que o reconhecimento de Jaguarão como Patrimônio Cul-
tural brasileiro contribua não apenas para explicitar e reforçar os laços
existentes com nossos hermanos, mas também para a percepção de que o
Brasil é formado por diferentes nuances culturais, com múltiplas origens,
que contribuem igualmente para sua formação (IPHAN, anexo I – Dossiê
de Tombamento, p. 181).

Mas, além de materializar o episódio de expansão da ocupação portu-


guesa para além dos tratados oficiais e a definição das fronteiras brasileiras,
tais como as conhecemos hoje, Jaguarão representa, ainda, todo um processo
econômico e social que marcou a região sul do Brasil e os países platinos. A
economia do gado reflete ainda processos semelhantes ao restante do Brasil,
como a escravidão e o rápido desenvolvimento econômico e cultural ocorri-
dos no século Xix graças ao rápido enriquecimento de uma elite a partir de
determinado processo econômico.
Em Jaguarão, estão presentes ainda testemunhos dos “projetos nacionais”,
como a estratégia para a segurança nas fronteiras através da forte presença
militar, e a implantação da malha férrea, que, ao mesmo tempo em que co-
nectava a cidade ao restante do país, permitia a ligação entre o Brasil e o Uru-
guai, tornando-se um importante ponto de articulação internacional.
Quanto ao patrimônio material sobre o qual recairá a proteção do tom-
bamento, é caracterizado como um dos acervos urbanísticos e arquitetônicos
atualmente mais íntegros e bem preservados do Brasil, notável ainda no que
tange à relação entre o traçado viário, acervo edificado e ambiente natural.

Referências
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Processo de Tom-
bamento nº. 1.569-T-08: Conjunto Histórico e Paisagístico de Jaguarão, Rio Grande do Sul.

38
Entre o cotidiano e o evento:
patrimônio imaterial e políticas públicas*

Emanuel Oliveira Braga

Resumo
As políticas públicas referenciadas pelo patrimônio imaterial ampliaram o público
de beneficiados pelos recursos financeiros da área cultural, estabeleceram uma abor-
dagem democrática de diálogo junto às diversas comunidades herdeiras de tradições
diversas e acabaram contagiando o próprio patrimônio material. No entanto, quan-
do essas políticas públicas abordam as comunidades por meio do entendimento de
prática cultural como “bem”, “evento” e “lúdico”, corre-se o sério risco do velho uso
politiqueiro e oportunista do potencial existencial das populações tradicionais.

Emanuel Oliveira Braga é graduado em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia pela Uni-
versidade Federal do Ceará. Atua desde 2006 na gestão de políticas públicas para o patrimônio cultural,
como Técnico da Superintendência do IPHAN na Paraíba.

* Este artigo tornou-se realidade por conta da leitura atenciosa de Izabela Tamaso e Selmo Norte. Izabela
Tamaso acompanhou o texto desde o início, dando importantes contribuições, sugerindo autores fun-
damentais para o debate contemporâneo sobre o tema e incentivando a publicação. Lembro que o tom
ensaístico e o argumento ora desenvolvido é de minha inteira responsabilidade.

39
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Imagem da página anterior


Seu Zé de Lelinha (José Vitório dos Reis) e seu machete.
Fonte: Acervo IPHAN.

40
As palavras, sejam elas escritas ou faladas, têm uma história e, de certo
modo, também produzem a história. As palavras parecem surgir para res-
ponder a alguns questionamentos, a certos problemas que se mostram em
determinadas épocas e em contextos socioculturais específicos. Nomear é
ao mesmo tempo evidenciar um problema e, de certa maneira, já resolvê-lo.
Nomear, como diria o filósofo francês Michel Foucault, é ter poder sobre a
coisa nomeada, é criá-la.
Como ideia e prática nova, o que se considera “patrimônio imaterial”, ou
“patrimônio cultural imaterial”, obteve aplausos, com justiça, de meio mun-
do acadêmico e de agentes de políticas públicas culturais.
Não é de se estranhar tal alarde otimista dentro de um universo de mo-
vimentos internacionais que gostariam de serem vistos como pós-modernos1
para então poderem brilhar em rótulos tais como “flexíveis”, “democráticos”
e “ecléticos”. Não tardaria para que a Organização das Nações Unidades para
Educação, Ciência e Cultura (Unesco) aceitasse as reivindicações e as redes-
cobertas dos ideais dos vários “Mários de Andrade” presentes nas diversas na-
ções, desde o início do século XX, defendendo a proteção do rico patrimônio
existente nos modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades, e nos
rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade,
do entretenimento e de outras práticas da vida social.
A Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais (1982), organizada pelo
Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), bem como a Re-
comendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (1989) e a
Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003), am-
bas ministradas pela Unesco, apenas tornariam legítimas, institucionalmente,
demandas há muito reclamadas por alguns setores acadêmicos e ativistas da
preservação tributários de paradigmas da Antropologia e da História2 .

1 Aqui me refiro à problematização da tese do geógrafo David Harvey em Condição pós-moderna (1989):
“Vem ocorrendo uma mudança abissal nas práticas culturais, bem como político-econômicas, desde
mais ou menos 1972. (...) Mas essas mudanças, quando confrontadas com as regras básicas de acumu-
lação capitalista, mostram-se mais como transformações da aparência superficial do que como sinais
do surgimento de alguma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial inteiramente nova”. Ver
também o artigo “A expansão do patrimônio: novos olhares sobre velhos objetos, outros desafios...” de
Izabela Tamaso. Segundo a autora: “A nostalgia pelas ‘coisas velhas’, em muitos lugares, suplanta o desejo
pelo progresso e pelo desenvolvimento. Ou melhor, redireciona o desejo” (2006, p. 3).
2 Ver PELEGRINI; FUNARI (2008).

41
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Logo surgiriam, dentro dos Estados nacionais (participando do bolo or-


çamentário das políticas públicas), os inventários, os mapeamentos e os pro-
jetos de salvaguarda 3 de celebrações, modos de fazer, lugares sociais e formas
de expressão que até aquele momento (final do século passado) eram preocu-
pações exóticas de determinadas pessoas integrantes de comunidades tradi-
cionais4 , de folcloristas utópicos e de ações pontuais de órgãos públicos que
lidam com a “preservação da cultura”. Além disso, como observa Tamaso: “a
nova política de preservação tem provocado interesse de inúmeros pesquisa-
dores. Os antropólogos, sobretudo, têm olhado para o ‘patrimônio imaterial’
como mais uma possibilidade no mercado de trabalho” (2006, p. 7).
Da mesma forma que, no Brasil da década de 1930, a concepção de patri-
mônio histórico e artístico foi uma ideia disseminada e concretizada apenas
em círculos bem restritos de intelectuais “amantes de belas artes”, geralmente
com formação acadêmica em arquitetura, o patrimônio imaterial também
surge, a partir da década de 1970, como um embrião desenvolvido dentro de
pequenos círculos eruditos onde quem “dá as cartas” desta vez é o discurso
antropológico e folclórico.

3 No Brasil e em outros países, optou-se pelo termo “salvaguarda” (e seus equivalentes idiomáticos) em
vez de “preservação” e “proteção” para que as políticas do patrimônio imaterial não ficassem atreladas à
interpretação de “congelamento” de manifestações culturais, intervindo nos critérios de dinâmica cul-
tural e interação social própria de cada contexto local. Ora, “salvaguardar” é, conforme o Dicionário
Aurélio, “pôr fora de perigo; proteger”. Quem “põe fora de perigo e protege”, consequentemente, “pre-
serva”, e quem “preserva”, “salva”, “guarda” e corre o risco semântico e pragmático de “congelar ou
manter a tradição”. Enfim, essas terminologias são escolhas muito mais voltadas para o estabelecimento
de um discurso plausível preocupado com o olhar crítico da academia acerca do conceito de “patrimônio
imaterial” do que um contraponto lógico ao que os vocábulos anteriormente usados pretendiam dizer.
4 As chamadas “comunidades tradicionais” ou “populações tradicionais” são grupos de pessoas que ha-
bitam território em comum e que formaram, ao longo do tempo, um sentimento de pertencimento a sua
terra, seus valores e suas tradições. De acordo com Diegues, as populações tradicionais são aquelas co-
munidades que possuem como principais características: “a) importância das simbologias, mitos e ritu-
ais associados à caça, pesca e atividades extrativistas; b) auto-identificação ou identificação pelos outros
de se pertencer a uma cultura distinta das outras; c) noção de território ou espaço onde o grupo social
se reproduz econômica e socialmente; d) moradia e ocupação desse território por várias gerações, ainda
que alguns membros individuais possam ter-se deslocado para centros urbanos e voltado para a terra de
seus antepassados” (2000, p. 87). Conforme Santana e Oliveira, tratando da questão com recorte jurídico
e nacional, “as populações tradicionais variam de acordo com cada região do Brasil, apresentando traços
culturais que a diferenciam da população que está em seu entorno; são comunidades tradicionais os
‘povos indígenas’, as comunidades ‘remanescentes de quilombos’, os ‘caboclos ribeirinhos’, as ‘comuni-
dades tradicionais urbanas’, as ‘populações tradicionais marítimas’, que se subdividem em ‘pescadores
artesanais’ e os ‘caiçaras’, entre outras” (2005, p. 4).

42
É importante dizer que o Brasil é considerado uma referência internacio-
nal quando o assunto é “patrimônio imaterial”: por meio da organização de
um encontro no Ceará com representantes de várias instituições nacionais,
que resultou em um documento conhecido como a Carta de Fortaleza, em
1997, e por meio da criação de uma legislação específica para os bens tratados
como “intangíveis”, no ano 2000, portanto, três anos antes da Convenção da
Unesco sobre o tema, realizada em 2003.
O contraponto do “patrimônio imaterial” ao também novíssimo “patri-
mônio material”5 se faz valer por meio de pesquisas, entrevistas com “mestres
do saber”, registro imagético de festas centenárias, oficinas de capacitação de
técnicas artesanais históricas, revitalização de praças e mercados públicos etc.
“É um barato” o patrimônio imaterial: as pessoas são ouvidas, valorizadas
e, em alguns casos, passam a ter o sustento da família baseado naquela an-
tiga prática empoeirada pelo tempo! É tão rico o processo, do ponto de vis-
ta da política pública democrática, que influencia as políticas de preservação
de bens edificados, das antigas igrejas barrocas tombadas há não sei quanto
tempo pelos institutos responsáveis pelo patrimônio histórico e artístico mu-
nicipal, estadual e/ou nacional e pelos intelectuais amantes das belas artes e
de pais católicos. Agora os mesmos espaços sagrados são documentados “ima-
terialmente” e projetos de educação patrimonial são pensados, repensados e
aplicados nas escolas próximas àquela igreja do século Xviii feita de adobe!
Lembro aqui da conclusão feita por Marcus Vinícius Garcia, em um artigo
que trata vivência da cultura popular em contextos urbanos e modernos:

5 O patrimônio material nasce dicotomicamente junto com a nova concepção da “imaterialidade” das
coisas. Antes se falava, usualmente, em patrimônio histórico e artístico e isso pretendia englobar toda a
categoria “patrimônio”. A dicotomia “material”/“imaterial” é tributária das Conferências e Convenções
(décadas de 1980 e 1990) citadas logo no início do presente artigo. Atualmente, fala-se em patrimônio
material quando determinado bem tem seu valor fundamentado em bens concretos, materiais. Pode-se
considerar “patrimônio material”: determinadas construções, como os casarões coloniais construídos
em adobe ou com uso de técnicas tradicionais; monumentos, como o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro
ou a ruína de uma antiga igreja; paisagens naturais, como o Parque Nacional de Iguaçu, no Paraná;
pinturas consideradas de grande valor artístico, como as de Di Cavalcanti e Picasso etc. Já quando se fala
em patrimônio imaterial estamos nos referindo a bens culturais que têm sua importância fundamen-
tada na atribuição de valor dada pela comunidade às suas práticas e conhecimentos. Os conhecimentos,
as técnicas e as festas, de grande referência para as diversas comunidades, são bens imateriais. Pode-se
considerar patrimônio imaterial, por exemplo: celebrações, como a Festa do Divino, a Festança de Vila
Bela/MT, ou um Ritual Indígena; formas de expressão, como Siriri e o Samba de Roda; feiras públicas,
como a Feira de Caruaru/PE e a de Campina Grande/PB; ofícios, como a técnica tradicional de produção
de panelas de barro e o modo artesanal de fazer a viola-de-cocho.

43
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Essa discussão remete à clássica questão de Walter Benjamin (1985, 115):


“qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não
mais o vincula a nós?” Certamente, não vivemos mais o tempo da expe-
riência profunda, no sentido em que este pensador a atribuiu, principal-
mente no meio urbano. No entanto, essa movimentação de alguns seg-
mentos em torno das “culturas tradicionais” transparece uma tentativa de
vínculo consciente e busca de reconhecimento dos patrimônios culturais
imateriais que constituem o Brasil. (2004, p. 126).

Além do aspecto da valorização do sujeito que referencia um bem edifi-


cado (igreja, praça, mancha urbana), o patrimônio imaterial dialoga com o
material na própria estruturação das legislações nacionais de proteção. No
Brasil e em outros países signatários das recomendações dos organismos in-
ternacionais de preservação do patrimônio cultural, o arcabouço formal do
Tombamento6 , com seus números e livros de tombo e suas instruções técnicas
de certificação dos bens materiais, foi bastante aproveitado na elaboração de
decretos que instituem os Registros do Patrimônio Imaterial. O modelo do
Registro, assim como o do Tombamento, está divido em livros classificados
por temas que necessitam de argumentação técnica documentada para a apre-
ciação e aprovação de conselheiros ilustrados.
Em nosso país, este Decreto é o de nº. 3.551, de 20007, de responsabilidade
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), autarquia
federal ligada ao Ministério da Cultura, resultado de encontros8 e debates na-
cionais vivenciados por representantes de instituições que lidam com políticas
públicas patrimoniais. O Decreto é o instrumento jurídico e político que certi-

6 Tombamento é o ato administrativo de reconhecimento do valor cultural de um bem de natureza


material, que o transforma em patrimônio oficial e público (municipal, estadual ou nacional) e institui
regime jurídico especial de propriedade, levando-se em conta sua função social. O nome “tombamento”
advém da Torre do Tombo, arquivo público português, onde são guardados e conservados documentos
importantes de Portugal. Várias nações usam esse tipo de instrumento, com suas variantes locais, para
preservação de seus patrimônios culturais de natureza material.
7 Sobre tal legislação, compartilho da lúcida observação feita por Roque de Barros Laraia: “por mais
oportuno que tenha sido este Decreto, por mais nobre que sejam seus objetivos, entre eles o de regu-
lamentar o artigo 216 da Constituição Federal, é ele uma manifestação tardia por parte do Estado em
reconhecer o valor de nosso patrimônio cultural imaterial. Oito décadas o separam dos anseios dos
modernistas preocupados com a valorização de nossa cultura” (2004, p. 12).
8 Dentre os quais podemos destacar a Carta de Fortaleza, documento produzido em um seminário in-
ternacional organizado pelo IPHAN na capital do Ceará em 1997, fruto de debates acerca de “possíveis
formas de proteção ao chamado patrimônio imaterial”

44
fica o valor de um bem cultural de natureza imaterial perante toda a sociedade
nacional. A partir dele, uma série de políticas públicas torna-se possível a fim
de proteger e salvaguardar, em nome da sociedade brasileira, tradições como
a Capoeira, o Samba de Roda, o Círio de Nazaré, o Modo de Fazer Viola de
Cocho, entre outras manifestações consideradas patrimônio imaterial.
No texto do citado Decreto, podemos perceber diferenças de diretrizes e
interpretações em relação ao Decreto Lei nº. 25, de 1937, que organiza o pa-
trimônio histórico e artístico nacional e institui o Tombamento. Em vez de
“fatos memoráveis da história do Brasil” e “excepcional valor arqueológico
ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”, temos na lei de Registro “modos de
fazer enraizados no cotidiano das comunidades” e “vivência coletiva do tra-
balho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social”.
Ora, há uma distância semântica considerável entre “fato memorável” e
“cotidiano” e entre “excepcional valor” e “vivência coletiva”. Primeiramente,
“fato memorável” e “excepcional valor” remetem à apreciação de coisas iso-
ladas, atípicas e eventuais, ao tempo em que “cotidiano” e “vivência coletiva”
remetem a sujeitos atuantes em contextos e processos histórico-culturais. Em
segundo lugar, as expressões da lei de Tombamento estão mais suscetíveis a
avaliações idiossincráticas de uma autoridade que nomeia e classifica o que
deve ser considerado “memorável” e “excepcional”, enquanto nas expressões
da lei de Registro, a avaliação está baseada apenas em pressupostos (quase
kantianos) de tempo, espaço e modalidade. Por quanto tempo vocês produ-
zem este tipo de panela neste espaço, indaga o “avaliador patrimonial”. Não
importa se o avaliador considera a panela ou o ofício de fazer panela de “bom
gosto”, “mau gosto”, “simples” ou “complexo”. O que importa é que a co-
munidade faz daquele modo (dinâmica tradicional) a panela em processo
de continuidade histórica naquela região e oferece à diversidade cultural do
planeta mais uma faceta do bicho-homem. A margem idiossincrática de apre-
ciação é bem menor, restringe-se a critérios de tempo, espaço e alteridade.
Pratica-se capoeira há décadas ou há séculos, apenas em regiões litorâneas ou
também está presente nos sertões brasileiros? “Tempo”, “espaço” e “modo”
estão em jogo apenas.
Não se pretende dizer aqui que os inventários do patrimônio imaterial
ou/e que a aplicação do Decreto nº. 3.551 sejam poucos criteriosos, nem que
a definição da capoeira como patrimônio cultural não esteja frágil a jogos

45
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

políticos onde o nacional e o local, o autêntico e o sincrético, o institucional


e o comunitário, e o interesse público e o individual são teses e antíteses de
processos simbólicos onde vários agentes sociais estão envolvidos. Apenas,
constata-se que o espírito da lei do Registro motiva uma abordagem ampla
da diversidade de possibilidades existenciais, enquanto os critérios “excep-
cional” e “memorável” da lei de Tombamento estão sujeitos aos melindres
de uma miríade de interpretações subjetivas de um determinado segmento
social: os intelectuais apreciadores de história e arte. Quantas obras de arte e
casas de arquitetura popular foram destruídas e quantas técnicas construti-
vas foram esquecidas, ao longo do tempo, porque não tinham o aval público,
institucional e científico de “memorável” e “excepcional”?
Entretanto, a revolução simbólica trazida pela amplitude existencial do
Decreto nº. 3.551 (afluente de contribuições de paradigmas antropológicos
e de convenções internacionais, nacionais e locais sobre a plausibilidade
democrática da elaboração e aplicação de políticas públicas patrimoniais)
encontra-se ameaçada por uma prática quase tão recente quanto à ideia de
“patrimônio imaterial”. Trata-se da motivação, organização e execução dos
chamados “eventos culturais”.
Quem já não participou direta ou indiretamente de um evento cultural ou,
pelo menos, não soube de notícia vinculada pela grande mídia e mídia local
sobre algum festival, show ou espetáculo da “cultura popular”, do “folclore da
região”, da “tradição de um lugar” que estaria acontecendo dia tal, na praça
fulano de tal?
Práticas centenárias e de cotidiano diluído no calendário das comunida-
des tradicionais (caipiras, sertanejas, urbanas, ribeirinhas, etc.) sobem ao pal-
co, exibem-se para um público da própria comunidade ou de fora, com data
e hora marcada. Geralmente, no início, não são esses grupos que levantam a
ideia do evento cultural. São projetos de política cultural, financiados pelos
poderes públicos municipal, estadual e/ou federal, sob coordenação de uma
empresa ou organização sem fins lucrativos, voltados para a valorização de
determinadas danças, cantos e coreografias presentes em uma determinada
região e considerados como símbolos locais. Sobre a “moda” dos eventos cul-
turais, lembremos a provocação oportuna de Néstor Canclini: “se o patrimô-
nio é interpretado como repertório fixo de tradições, condensadas em objetos,
ele precisa de um palco-depósito que o contenha e o proteja, um palco-vitrine
para exibi-lo” (1998, p. 169).

46
Um segmento profissional muito específico surge no contexto da reali-
zação dos eventos culturais financiados por recursos públicos. É a figura do
“produtor cultural”. São pessoas pertencentes a diversos extratos da classe
média urbana, geralmente com formações acadêmicas e artísticas em áreas
de ciências humanas e motivadas intelectual e financeiramente por “assun-
tos culturais” (teatro, cinema, artes plásticas, artesanato popular, etnomusi-
cologia etc.). São profissionais muito bem informados do funcionamento da
“máquina pública” nos níveis municipais, estaduais e federais. Conhecem os
procedimentos e técnicas para captação de recursos públicos da área cultural,
os cronogramas e as exigências dos chamados “editais”, onde há a divulgação
do oferecimento de financiamento de “projetos culturais”, veiculados, nor-
malmente, pela internet. Os produtores culturais engajam-se, quando não
fundam, organizações sociais sem fins lucrativos e/ou de interesse público
(Ongs, Oscips, etc) a fim de se captar os recursos públicos, servindo-se de
parte do orçamento dos projetos como pagamento de seus serviços técnicos
e/ou educacionais prestados a um dado grupo social (classificado como “co-
munidade”).
O fazer e refazer do evento cultural pelas políticas públicas culturais pro-
duz, assim, um mercado de profissionais que não dizem respeito diretamente
ao “objeto” que deu sentido à existência dessas políticas públicas. Por exemplo:
um determinado recurso público pode ter sido originado por uma demanda
de proteger as condições de existência de violeiros presentes em dado grupo
social. No entanto, os recursos não vão diretamente para as famílias dos vio-
leiros, nem para ações de reforma de uma escola local onde estudam os filhos
dos violeiros, por exemplo. Os recursos vão para uma “Associação Viva a Cul-
tura Caipira”, coordenada por um produtor cultural expert em formatar bons
“projetos de promoção cultural”, mas que não sabe executar sons em violas
nem produzir toadas. Muitas vezes, o dinheiro originado da política pública
cultural chega à mão do detentor de saberes tradicionais (no nosso caso, o
violeiro) por meio de “bolsas de incentivo” ou pagamento de “apresentações
culturais”, em valor menor daquele que o produtor cultural, coordenador da
associação responsável pela inscrição da “ação cultural”, vai receber ao final
do projeto. O produtor cultural é o “intermediário” entre o poder público e a
“comunidade”, é ele quem detém o métier do “fazer a cultura acontecer” aos
olhos dos governos municipais, estaduais e federais.

47
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Outra figura central na conjuntura do modus operandi dos eventos cultu-


rais é o político local. “Eventual”, se mais uma vez recorrermos ao Aurélio, é
aquilo “que depende de um acontecimento incerto, casual, fortuito, aciden-
tal”. Ora, nada mais próximo do usual oportunismo politiqueiro e nada mais
distante do ideal apregoado pelas políticas públicas (contemplar uma ampla
participação da sociedade, visando melhorias das condições de existência da
mesma) do que aquilo “que depende de um acontecimento incerto, casual,
fortuito, acidental”.
Nos eventos culturais, antes das apresentações dos “grupos folclóricos”,
políticos ligados aquele projeto falam durante um bom tempo sobre seus fei-
tos e seus objetivos durante tal mandato, sendo vaiados ou aplaudidos pelo
público dependendo do momento político vivido naquela localidade.
Esses grandes artistas, historicamente excluídos da aclamada cidadania,
passam a se sentir contemplados eventualmente por esses holofotes e pelos
aplausos do crescente público que comparece aos espetáculos. Alianças poli-
tiqueiras são firmadas e algumas associações folclóricas começam a se com-
prometer com o jogo eleitoral daqueles que aplicam recursos públicos na or-
ganização periódica dos festivais. O representante do poder público local na
área de cultura, para esses grupos que detêm determinadas artes tradicionais
e estão em condições socioeconômicas limitadas, tende a ser a releitura do
sempre presente senhor, coronel e político local de outras épocas. Conforme
análise sociológica de Edson Farias:

Embutidos em sínteses ainda mais amplas, pela força coletiva que os em-
purra ao posicionamento subalterno na estrutura de classes dessas so-
ciedades nacionais, em grande medida, os descendentes africanos e as
culturas negras não-africanas, ao lado das memórias ameríndias, serão
re-processadas discursivamente sobre a rubrica do folclore e da cultura
populares, sendo as últimas convertidas em patrimônios simbólicos da
nação miscigenada, em se tratando do Brasil. A invenção dessas tradições,
deflagrada no curso da cosmopolitização do regional e do prosaico, em-
preendida por elites intelectuais e artísticas (embebidas do imaginário da
unidade nacional), está no epicentro da sua, também, conversão ou rein-
venção em bens de entretenimento-turismo. (2004, p. 148)

O evento casa-se com a manifestação (“fazer uma festa com as mãos”?)


cultural, onde observamos e valorizamos apenas a festa em detrimento do

48
cotidiano das mãos, o palco em detrimento da vivência, o show em detri-
mento do processo. O evento é o monumentalismo dos antigos critérios de
preservação trazido ao patrimônio imaterial. Muitas das atuais políticas cul-
turais tornam cada vez mais plausíveis as promoções de eventos, a visão da
cultura restrita apenas aos aspectos lúdicos e religiosos da vida, afastando-se,
assim, da revolução simbólica e ampla cidadania trazida no texto do Decreto
3.551/2000 e das recomendações internacionais. Como reforça Tamaso, ao ci-
tar as Cartas patrimoniais9 :

Observe-se que a recomendação da Unesco para a salvaguarda das cultu-


ras tradicionais e populares não se limita aos bens de natureza intangível.
Recomendou a Unesco que “a cultura tradicional e popular, enquanto ex-
pressão cultural, deveria ser salvaguardada pelo e para o grupo (familiar,
profissional, nacional, regional, étnico, etc.) cuja identidade exprime”.
(Tamaso, 2006, p. 10, grifo nosso).

Concebendo o bem cultural como objeto, e descontextualizado das re-


ferências (que não são apenas lúdicas e religiosas) da comunidade que o fez
surgir, o poder de fogo das políticas públicas voltadas para a preservação des-
se mesmo bem se perde sem conseguir apontar dados concretos, planilhas e
mapas ilustrando o contexto cultural dos grupos detentores dessas possibili-
dades de existência, em alguns casos, em processo de extinção. Além disso, o
recorte “bem cultural”, por ser elaborado, em alguns casos, sem a interlocu-
ção das comunidades tradicionais, fica atrelado aos códigos das corporações
do conhecimento técnico, letrado e acadêmico. Enquanto o foco patrimonial
estiver voltado para “violas caipiras”, “panelas de barro”, “rituais”, “festas” e
“igrejas”, a dinâmica de uso desses objetos e práticas está fadada ao desapare-
cimento ou, pior, ao artificialismo da continuidade da prática justificada em
si mesma, do preservar porque é considerado “cultural”, tutelado pelo Esta-
do e por críticos, porque é importante, mas não se sabe exatamente porque
é importante e porque deve ser preservado. Canclini já tinha observado tal
miopia dentro do universo das políticas culturais. A crítica do autor refere-se
ao recorte do objeto a ser trabalhado como “cultura popular”:

9 Ver CURY (2000).

49
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Interessam mais os bens culturais – objetos, lendas, músicas – que os agen-


tes que os geram e consomem. Essa fascinação pelos produtos, o descaso
pelos processos e agentes sociais que os geram, pelos usos que os modifi-
cam, leva a valorizar nos objetos mais a sua repetição que sua transforma-
ção. (Canclini, 1997, p. 211).

O enfoque da política pública sobre o bem em vez do contexto, do lúdico


em vez do cotidiano, possibilita que a salvaguarda de determinado patrimô-
nio seja feita prioritariamente pelo prisma da valorização e secundariamente
pelas condições de existência dos grupos sociais formadores das diversidades
culturais das nações.
De um modo mais amplo, podemos enxergar a política pública como a
“compensação social” do Estado às mazelas produzidas por todas as formas
de liberalismo existentes desde o século Xviii.
No século XX, quando, através da própria experiência histórica, tornou-
se manifesta a “fantasia” da tese de Adam Smith sobre a “mão invisível” do
mercado10, as preocupações com o crescimento exorbitante da miséria, prin-
cipalmente na periferia das grandes cidades dos países subdesenvolvidos, ga-
nharam foco no debate econômico e social. O papel do Estado reviveu com
toda a força, sendo o complexo da administração pública o grande responsá-
vel pelo estado de bem estar social das populações, principalmente servindo
de suporte de sobrevivência das classes mais pobres. As classes médias e mais
abastadas criaram para si um mundo privado e fechado. Passaram, então,
a se resguardar o máximo possível dos tentáculos institucionais do Estado,
ajeitando-se em colégios particulares, hospitais particulares, condomínios
fechados, usufruindo todo o tipo de bens privados, enquanto os bolsões de
miséria se acumulavam nas filas da previdência social, nos hospitais públicos,
nos colégios públicos de ensino fundamental e médio, aproveitando o que
podiam dos impostos do Estado e das políticas públicas oferecidas.
As comunidades tradicionais historicamente ficaram à margem dos pro-
jetos políticos oficiais do Estado brasileiro, perdendo o direito de uso de suas
terras, expondo-se à violência institucional da polícia, além da pistolagem
patrocinada por alguns setores da elite rural e urbana do país.

10 Ver POLANYI (1980).

50
A noção de “política pública” apenas recentemente entrou no instrumen-
tal do poder institucional, nas assembleias legislativas e nas pautas partidá-
rias. As comunidades tradicionais, as comunidades quilombolas e as etnias
indígenas agora são contempladas por uma gama de leis, decretos e portarias
que buscam assegurar a posse de suas terras tradicionalmente ocupadas.
Em 1973, foi elaborado o chamado “Estatuto do Índio”, Lei nº. 6.001/73,
dispondo sobre as relações do Estado e da sociedade brasileira com os índios.
Considerando os índios “relativamente capazes”, o Estado, por meio de uma
instituição indigenista governamental (de 1910 a 1967, o Serviço de Prote-
ção ao Índio/SPI; atualmente, a Fundação Nacional do Índio/Funai), seria,
conforme o texto, o responsável pela garantia dos direitos das diversas etnias
presentes no país, até que elas estivessem “integradas à sociedade brasileira”.
A Constituição de 1988 traz no seu texto, Artigo 231, o reconhecimento das
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, de posse da União e de usufru-
to exclusivo dos recursos naturais necessários à “reprodução física e cultural”
do grupo.
No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (Adct) da mesma
Constituição, o Art. 68 prescreve o direito à propriedade definitiva aos rema-
nescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras,
“devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Tais avanços jurídicos
possibilitaram que o direito à terra não se limitasse aos contratos de compra
e venda de propriedades ou à herança de antigas posses originárias da cessão
de sesmarias, garantindo a permanência de quem ancestralmente construiu a
ocupação do território.
As demarcações das terras indígenas e quilombolas, por mais deficitárias
que possam parecer aos olhos de quem analisa o processo de colonização
do país, tornam-se possíveis com o apoio institucional desse dispositivo da
Carta Magna.
Mais recente ainda é o Decreto nº. 6.040, de 2007, que institui a “Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradi-
cionais”, definindo oficialmente as nomenclaturas “Comunidade Tradicio-
nal” e “Território Tradicional”, e estabelecendo as diretrizes para a futura
regulamentação dos diversos direitos dessas comunidades. Laraia, ao tratar
do conceito de “patrimônio imaterial” e suas implicações, deixa explícito que
“identidade e territorialidade são dois requisitos fundamentais para a defini-

51
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

ção da referência cultural” (2004, p. 17). O direito à posse e ao uso das terras
é o pressuposto para os demais anseios e demandas das comunidades, quanto
à sua organização socioeconômica tradicional e quanto aos seus conhecimen-
tos, usos e valores tradicionais.
Mesmo com o avanço no texto das legislações culturais, as comunidades
tradicionais ainda não conseguiram fazer-se representar efetivamente no
cenário político nacional, perdendo espaços culturais fundamentais para a
existência tradicional dos grupos. Os projetos políticos para o país ainda se
produzem de forma unilateral, enxergando apenas o aspecto desenvolvimen-
tista e econômico da situação, privilegiando o ponto de vista mercadológico.
A chamada “cultura” conseguiu angariar espaço nos debates políticos e nas
disputas orçamentárias, mas de modo discursivo e demagógico. Quando se
fala em política cultural, o recorte metodológico concebe bens isolados do
seu contexto, grupos de artistas, patrocínio de eventos, incentivos financeiros
mensais aos artesãos etc. Essa “cultura” se restringe a aspectos lúdicos e pro-
duções artesanais, está desatrelada do contexto da ocupação do espaço, dos
recursos naturais e da história das comunidades. Além dos chamados centros
históricos e monumentos artísticos e naturais, os outros espaços se tornam
vazios, onde o capital, respeitando as normativas da legislação ambiental,
pode avançar e acumular sem maiores preocupações.
Em um cenário nacional e internacional de “compensação”, a política
pública do patrimônio imaterial deveria contribuir com uma gestão mini-
mamente estrutural voltada para o acesso desses grupos (que detêm conhe-
cimentos tão preciosos à diversidade cultural universal) à saúde, educação,
moradia de qualidade e outras instâncias sociais que proporcionam uma vida
mais digna. Enxergaria que a cultura não é apenas o universo lúdico e sim a
plenitude cidadã de um modo de vida singular. E pensando e agindo, assim,
estaria muito mais em sintonia com as recomendações internacionais con-
temporâneas para a salvaguarda do patrimônio cultural do que promovendo
eventos suscetíveis ao velho cabresto eleitoreiro.
Para prevenir a miopia do evento cultural, é necessário que a política públi-
ca volte os olhos para o cotidiano e para o território cultural das comunidades
detentoras desses preciosos saberes da alegoria do patrimônio brasileiro. Ao
voltar os olhos para o cotidiano, a política pública se obrigará positivamente
a dialogar com outras áreas governamentais como saúde, educação, meio am-

52
biente, desenvolvimento agrário, minas e energia etc., disponibilizando con-
dições mais dignas de existência para os grupos formadores das diversidades
culturais das nações.
A miopia do evento, por mais danosa ao olho desprevenido, não há de
macular o rico processo desencadeado pelo contagiante patrimônio imaterial
que compôs tão bem com a parte bela do universo.

Referências
Andrade, Mário de. Anteprojeto para criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artísti-
co Nacional. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília: Iphan, n. 30, p.
270-287, 2002.
Arantes, Antonio Augusto. Produzindo o passado: estratégias de construção do patrimônio
cultural. São Paulo: Brasiliense, 1984.
Canclini, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
São Paulo: EdUsp, 1997.
Cury, Isabelle (Org.). Cartas patrimoniais. Rio de Janeiro: Iphan, 2000.
Diegues, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec; Nu-
paub; Usp, 2000.
Farias, Edson. (Re)tradicionalização ou (re)significações de tradições?. In: Teixeira, João
Gabriel L. C.; Garcia, Marcus Vinícius C.; Gusmão, Rita. (Orgs.). Patrimônio imaterial,
performance cultural e (re)tradicionalização. Brasília: Ics; UnB, 2004.
Garcia, Marcus Vinícius C. Um espaço para respiração: a cultura popular e os modernos
citadinos. In: Teixeira, João Gabriel L. C.; Garcia, Marcus Vinícius C.; Gusmão, Rita.
(Orgs.). Patrimônio imaterial, performance cultural e (re)tradicionalização. Brasília: Ics;
UnB, 2004.
Harvey, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
São Paulo: Loyola, 1996.
Instituto do Patrimônio e Artístico Nacional (Iphan). Coletânea de leis sobre preserva-
ção do patrimônio. Rio de Janeiro: Iphan/ MinC, 2006. (Edições do Patrimônio).
Laraia, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.
______. Patrimônio imaterial: conceitos e implicações. In: Teixeira, João Gabriel L. C.;
Garcia, Marcus Vinícius C.; Gusmão, Rita. (Orgs.). Patrimônio imaterial, performance
cultural e (re)tradicionalização. Brasília: Ics; UnB, 2004.
Londres, Maria Cecília. O patrimônio em processo. Rio de Janeiro: Ed. Ufrj; MinC; Iphan,
1997.
Pelegrini, Sandra C. A.; Funari, Pedro Paulo. O que é patrimônio cultural imaterial. São
Paulo: Brasiliense, 2008.

53
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Polanyi, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 1980.
Ramos, Alcida Rita. Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Niterói: EdUff, 2004.
Sahlins, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
Santana, Luciano Rocha; Oliveira, Thiago Pires. O patrimônio cultural imaterial das po-
pulações tradicionais e sua tutela pelo Direito Ambiental. Jus Navigandi, Teresina (PI), ano
9, n. 750, jul. 2005.
Sant’anna, Márcia G. de (Org.). O registro do patrimônio imaterial: dossiê final das atividades
da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: Iphan, 2000.
Tamaso, Izabela. A expansão do patrimônio: novos olhares sobre velhos objetos, outros desa-
fios.... Série Antropologia, Brasília: UnB, n. 390. 2006.

54
Intervenções urbanas em sítios históricos
cearenses: aproximações e distanciamen-
tos entre o concebido e o vivido – o caso
de Sobral

José Cle w ton do Nascimento

Resumo
Tomando como objeto de estudo as intervenções realizadas na cidade de Sobral/CE,
buscamos, em nossa análise, evidenciar as aproximações e distanciamentos observa-
dos entre as representações constituídas pelas instâncias que regem as transformações
urbanas no âmbito do concebido, bem como as confrontações entre estas representa-
ções e as lógicas apresentadas pelo espaço vivido, definidas pelas ressignificações feitas
a partir das práticas sociais estabelecidas. Os resultados obtidos apontam para a ne-
cessidade de se entender que o “resultado final” do processo de implementação dos
projetos urbanos nas referidas cidades, difundindo como “ação de sucesso”, deverá
ser alvo de uma reflexão crítica, norteada pelas ressignificações atribuídas ao espaço
requalificado partir das práticas sociais estabelecidas pela dimensão do vivido.

José Clewton do Nascimento é arquiteto e urbanista formado pela Universidade Federal do Ceará,
mestre e doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Técnico do
IPHAN, lotado na Superintendência do IPHAN no Ceará. É Professor Adjunto do Departamento de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (DARQ-UFRN).

55
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Imagem da página anterior


Apropriações e ressignificações do espaço requalificado da margem esquerda do rio Acaraú,
estabelecidas pelas práticas sociais vivenciadas no referido espaço público.
Fonte: Arquivo Clewton Nascimento.

56
Apresentação
A identificação da existência de limites e fronteiras no campo do patrimônio
cultural, a definir em o próprio fazer da preservação, constitui a temática-
base das discussões a serem travadas no âmbito da IV Oficina IV Oficina de
Pesquisa do Iphan. Dentro deste contexto, o presente artigo pretende contri-
buir com discussões acerca do assunto, apresentando uma problemática rela-
cionada aos limites e fronteiras existentes entre as confrontações estabelecidas
entre as lógicas que regem a concepção de ações de intervenção nos sítios his-
tóricos urbanos (planos, programas, projetos urbanos, restauros), definidos
a partir de representações constituídas sobre esses espaços enquanto espaços
de significação cultural, e o uso e apropriações destes espaços, identificados
a partir das práticas sociais estabelecidas pela instância do vivido. Estas con-
frontações ora aproximam, ora alargam as fronteiras e limites estabelecidos
entre estas lógicas diferenciadas.
Buscaremos, neste artigo, estabelecer alguns pontos para análises dessas
relações de confrontação em um objeto empírico de estudo pré-definido, com
a intenção de suscitar discussões acerca de nossas ações, enquanto corpo téc-
nico profissional responsável pelas atribuições de preservação destes espaços
de significação cultural.
Objetivamos, portanto, inserir, no âmbito do foco do encontro, uma discus-
são sobre a relação entre política de planejamento urbano e política de patrimô-
nio, visto que se parte do pressuposto que esta articulação apresenta-se como
necessidade premente na atualidade, tendo como parâmetro o universo cada
vez mais amplo de ações, tais como: as intervenções no espaço urbano, atrela-
das aos planejamentos estratégicos; a elaboração de normas de preservação; a
incorporação destas normas nos Planos Diretores; a prática dos restauros etc.
As análises e discussões serão balizadas por alguns pressupostos teórico-
conceituais, que tomam por base o pensamento lefebvriano sobre a produção
do espaço, no qual se define que a noção de produção do espaço é formada pela
interação entre um constructo mental (concebido) e um constructo social (vivi-
do). Neste espaço produzido, evidencia-se uma postura de identificação da exis-
tência da relação de simultaneidades entre lógicas, em detrimento de uma visão
dualista que trabalha na perspectiva de exclusão de lógicas (Lefebvre, 2000).
Trabalharemos especificamente tendo como foco o espaço público na pers-
pectiva apresentada pelo sociólogo Rogério Proença Leite, que define espaço

57
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

público enquanto lugar, ou seja, “(...) como demarcações físicas e simbólicas


no espaço, cujos usos os qualificam e lhes atribuem sentidos de pertencimen-
tos, orientando ações sociais e sendo por estas delimitados reflexivamente”
(2004, p. 35).
Neste âmbito, torna-se necessário destacarmos o cotidiano como elemen-
to fundamental a ser trabalhado. Segundo Leite, o cotidiano

(...) refere-se a processos interativos, representativos e simbólicos relacio-


nados à experiência vivida que constroem sociabilidades de rua, enquanto
espaço de uma vida pública. Nesse sentido, a ‘rua que interessa’ (...), não é
o espaço urbano em si, mas o espaço social da rua, cujos significados cons-
truídos pelas ações cotidianas o diferenciam e o tornam uma categoria
sociológica inteligível”. (2004, p. 19).

Tendo em vista esses referenciais, e levando em consideração que em boa


parte dos casos de ações direcionadas ao nosso patrimônio cultural – aqui
tratando especificamente do patrimônio edificado – partem de uma represen-
tação constituída de que este patrimônio é tratado como uma “relíquia”, onde
ainda prevalece a visão de que é necessário garantir a sua autenticidade, a par-
tir, predominantemente, de seus aspectos formais, propomos uma discussão
desta representação criada, inserindo nesta discussão uma reflexão acerca das
formas como esses espaços são apropriados pelas práticas sociais estabelecidas
pela vivência desses espaços, a gerarem contra-usos, ressignificações.
Nesse sentido, passamos a estabelecer problematizações acerca do tema,
sintetizadas nas seguintes questões:
• É possível trabalhar o espaço representativo do patrimônio enquanto
lugar, no sentido de se buscar a superação de oposição entre o conce-
bido e o vivido?
• No campo específico das representações do patrimônio, como atri-
buir significação a essas apropriações, identificando-as como elemen-
tos constituintes dos lugares?
Discutiremos essas questões, tendo como objeto empírico de análise a ci-
dade de Sobral, cidade de porte médio, localizada no norte do estado do Cea-
rá – no semiárido nordestino, definida como cidade-pólo de desenvolvimento
dessa região.
A cidade está inserida no rol de cidade patrimônio nacional, tombada des-
de 1999 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A partir

58
do tombamento, algumas ações de inventariação foram realizadas, entre elas
a elaboração do Inventário de Configuração dos Espaços Urbanos – Inceu,
no ano de 2005.
Nos anos 2000, a cidade sofreu intervenções urbanas em seu núcleo his-
tórico, norteadas por uma política de gestão urbana de caráter empreende-
dorista, definida pelo Plano Estratégico proposto para o município. A ação
mais recente diz respeito a elaboração das Normas de Preservação do Sítio
Histórico Urbano – Npshu, que deverão ser incorporadas ao Plano Diretor
Participativo, elaborado a partir da revisão do Plano Diretor de Desenvolvi-
mento Urbano de 1999.
Para o presente artigo, realizaremos uma análise acerca das ações desen-
volvidas no sítio histórico de Sobral, a partir da confrontação de dois pontos:
O primeiro desses pontos está relacionado a análises vinculadas a leituras/
apreensões do espaço elaboradas pelos estudos realizados sobre a área defi-
nida pelo recorte espacial, definido pelos setores morfológicos “Beira Rio” e
“Acaraú”. As leituras deverão abranger os seguintes itens: Estudo para tomba-
mento federal; Elaboração do Inceu; Pddu e desdobramentos; Npshu/Sobral.
O segundo ponto consiste na confrontação das análises desenvolvidas no
primeiro item com uma análise realizada acerca das intervenções urbanas
em espaço públicos situados nos dois setores morfológicos definidos como
objetos empíricos de estudo, análises estas pautadas pela definição de espaço
público enquanto lugar (Leite, 2004). Desta forma, trabalharemos com a dis-
cussão acerca das formas como esses espaços são apropriados pelas práticas
sociais estabelecidas pela vivência desses espaços, a gerarem contra-usos, res-
significações, visando responder as questões formuladas na problematização
acerca do tema.

Análises
Estudo para tombamento:
O “Estudo para Tombamento do Conjunto Urbanístico da Cidade de Sobral
– Ceará”, elaborado pela então 4ª. CR/IPHAN/CE, no ano de 1988, utilizou
como procedimento metodológico uma abordagem definida como “análise
sequencial”, que privilegiou, para além dos dados objetivos sobre a área ana-
lisada, os denominados valores topoceptivos a partir dos níveis de percepção
e de formação de imagens mentais.

59
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Este procedimento foi entendido pela ala tradicionalista como algo mais
vinculado a uma postura mais academicista, do que aos procedimentos re-
lativos à instituição Iphan, fato que gerou a elaboração, por parte desta ala
tradicionalista, de uma proposta alternativa à que foi desenvolvida a partir da
metodologia da “análise sequencial”.
O fato é que o sítio histórico de Sobral passa a ser inserido na lista de Patri-
mônio Nacional, a partir do ano de 1999, tendo como delimitação de área de
tombamento e de entorno, as áreas definidas pela primeira proposta, o que de-
fine o sítio histórico de Sobral como um vasto perímetro, onde se buscou garan-
tir os seguintes aspectos: a valorização do traçado urbano; o número máximo
das visadas para a Serra da Meruoca; e a presença do rio Acaraú (ver Figura1).

Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano:


O “Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Sobral”, elaborado a partir
do ano de 1999 pelo “Consórcio Fausto Nilo – Espaço Plano”, definiu as pro-
postas prioritárias a serem desenvolvidas na cidade, a partir da necessidade do
fortalecimento do setor industrial e na ênfase a ser dada à cidade como centro
de negócios, propiciando o estabelecimento de uma infraestrutura de suporte
às áreas de comércio e serviços.
O referido Plano foi desenvolvido em um contexto onde foi observada
uma forte campanha em prol da transformação da cidade em lugar da com-
petitividade, na qual a função atribuída ao patrimônio cultural objetivou a
sua utilização enquanto elemento que deveria contribuir para tornar a cidade
mais atrativa: uma cidade que se preocupa com a sua história, tendo em vista
a manutenção dos espaços mais significativos, e a transmissão dos conheci-
mentos por eles possibilitados (ver Figura 2).
Como estratégias, ações e projetos, foram identificadas três linhas de ação,
a saber: 1. Sobral será um município de serviços regionais de qualidade; 2.
Sobral terá uma economia industrial forte e descentralizada, com produtos de
valor agregado cada vez maior; 3. Sobral será um município atraente e equili-
brado física e socialmente. Com base nestes aspectos, sintetiza-se:

O município de Sobral deve obter o seu desenvolvimento econômico sus-


tentável com justiça social através da oferta de serviços regionais de qua-
lidade e de produtos industrializados de valor agregado cada vez maior,
fornecendo aos moradores e visitantes uma cidade atraente e equilibrada
física e socialmente. (Pes/Sobral, 1999, p. 48)

60
Figura 1 Poligonais de proteção
do Sítio Histórico Urbano de So-
bral. Desenho elaborado a partir
de base extraída do Google Earth.

Figura 2 Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município de Sobral/CE. Mapa referente ao item
“Reurbanização da Margem Oeste do rio Acaraú – Zona Central”. Fonte: PDDU Sobral, 1999.

Essas premissas vão estar presentes no corpo do discurso orientador das


ações vinculadas aos Termos de Referência a serem implementados na cidade,
onde o expoente maior é o Termo elaborado para o projeto de urbanização da
margem esquerda do Rio Acaraú, que evidenciaremos adiante.

61
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Inventário de Configuração de Espaços Urbanos (INCEU):


O Inventário de Configuração de Espaços Urbanos (Inceu), elaborado no ano
de 2005, partiu do entendimento de que era necessário considerar, no caso do
estudo para o sítio histórico da cidade de Sobral, dois níveis de apreensão do
espaço urbano: o da percepção visual e o da representação geométrica. Desta
forma, segundo o estudo realizado, o sítio histórico de Sobral foi dividido em
nove partes temáticas, a partir da análise de sete categorias, a saber: planta
baixa, planos verticais, sítio físico, elementos edilícios, elementos de engenha-
ria urbana, elementos complementares e estrutura interna do espaço.
Os nove setores identificados foram os seguintes: Zona do Patrocínio;
Zona do Rosário; Zona São Francisco; Zona da Gangorra; Zona Menino
Deus; Zona Santo Antônio; Zona Acaraú; e Zona Beira-Rio (ver Figura 3).
No presente artigo, as análises serão restritas às Zonas “Acaraú” e “Beira
Rio”, zonas estas que estarão em relação direta com a intervenção da margem
esquerda do Rio Acaraú, definida como prioridade no Plano Diretor de De-
senvolvimento Urbano, de 1999, objeto de análise do item anterior.

Figura 3 Setores morfológicos do Sítio Histórico Urbano de Sobral, conforme INCEU (2005). Fonte: IPHAN/CE.

62
Segundo os estudos do Inceu a caracterização destes dois setores foi sinte-
tizada da seguinte forma:
• Zona Acaraú: “Neste setor predomina o uso residencial de tipologias
simples. É característico o baixo poder aquisitivo dos proprietários”
(Inceu, 2005).
• Zona Beira-Rio: “É composta por uma única via/calçadão. Margeia o
rio Acaraú na faixa definida pelas pontes Otto de Alencar e José Eu-
clides Ferreira Gomes. É uma área que estabelece relação direta com
o rio Acaraú, elemento/estruturante mais importante do sítio físico”
(Inceu, 2005).

Vale ressaltar que estas duas zonas constituem as áreas que irão receber
maiores impactos com relação ao projeto de urbanização da margem esquer-
da do rio Acaraú, que será alvo de apreciação no decorrer deste artigo.

Normas de Preservação do Sítio Histórico Urbano de


Sobral – NPSHU/Sobral:
Conforme texto apresentado em um dos relatórios de trabalho, o propósito da
elaboração das Normas de Preservação do Sítio Histórico Urbano de Sobral
– Npshu/Sobral, não consistia apenas em transformar o documento em nor-
mas de orientação para técnicos do Iphan e da Pms, mas, sobretudo, visava
“o concerto de condutas envolvendo os proprietários dos imóveis e os profis-
sionais que encaminham propostas de intervenção na área tombada e em seu
entorno, de modo a garantir maior eficiência nos esforços pela preservação do
sítio”. (Hurb/Unesco/Bid/Monumenta/Iphan/MinC, 2008, p. 5)
Neste sentido, a incorporação do produto final do trabalho ao Plano Di-
retor Participativo, documento em desenvolvimento no período de elabora-
ção das Npshu/Sobral, tornou-se condição imprescindível para o alcance dos
objetivos propostos. Desta forma, a orientação para elaboração dos estudos
deveria pautar-se numa aproximação entre as análises realizadas sobre o sítio
histórico e uma política de planejamento urbano ampla. Essa orientação pode
ser percebida a partir da listagem dos produtos que fizeram parte do estudo
proposto, a saber:

• Produto 1: Plano de Trabalho e Diagnóstico das Demandas de Inter-


venção e Critérios de Análise;

63
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

• Produto 2: Relatório de Síntese dos Estudos realizados, Relatório de


Análise dos Setores Morfológicos e Relatório de Análise da Interação
da Dinâmica Urbana do Sítio com a Dinâmica da Cidade;
• Produto 3: Relatório de Apresentação e Justificativa das Diretrizes de
Preservação Indicadas para o Sítio Histórico Urbano de Sobral-CE,
Relatório de Registro das Reuniões Públicas e Minuta de Normas de
Preservação para o Sítio Histórico Urbano de Sobral-CE.

Tomando como base esses produtos, identificamos alguns trechos de rele-


vância para o quadro de análises traçados neste artigo, aos quais passamos a
nos debruçar, tendo em vista estabelecer uma discussão relacionada aos ob-
jetivos traçados.
Iniciaremos as discussões a partir do item “Considerações sobre os Crité-
rios do Tombamento”, contido na Etapa 1 do Relatório 2, denominada “Diag-
nóstico de Demandas de Intervenção e Critérios de Análise”. No referido
item, afirma-se, com base na Carta de Petrópolis de 1987, que:

A natureza dinâmica da vida citadina deve ser considerada como ‘par-


te integrante de um contexto amplo que comporta as paisagens natural
e construída, assim como a vivência de seus habitantes num espaço de
valores produzidos no passado e no presente, em processo dinâmico de
transformação, devendo os novos espaços urbanos ser entendidos na sua
dimensão de testemunhos ambientais em formação. (Grifo nosso).

A chamada de atenção dada pelo estudo da Npshu/Sobral no que se refere


à necessidade de se levar em consideração a realidade vivida desses espaços
abre a perspectiva de uma postura crítica frente ao método utilizado e aos
resultados gerados pelo Estudo para Tombamento federal do Shu de Sobral
que, segundo a equipe responsável pela elaboração da Npshu/Sobral, mesmo
apresentando uma nova postura frente à perspectiva tradicionalista de defini-
ção dos espaços representativos de nosso sítios históricos, continua a realçar
sobremaneira o caráter tipológico da compreensão do espaço edificado.
Ainda com relação ao produto resultante do Relatório 2, chamamos aten-
ção para o item “Inventários como instrumentos de preservação”, no qual foi
informado o quadro de Inventários realizados, a saber: Inbi-Su, Iba, Infac
e, em especial, o Inceu – Inventário de Configurações de Espaços Urbanos,
da Cidade de Sobral. Este último foi considerado de modo particular, “pela

64
natureza das conclusões que enseja e pelo indiscutível diálogo que trava com a
Npshs. Também, e fundamentalmente, porque a referida peça constitui base
para a definição do microzoneamento do PDP/Sobral, atualmente em revi-
são” (Hurb/Unesco/Bid/Monumenta/Iphan/MinC, 2008, p. 19-20).
Com relação a questão da setorização do Sítio Histórico de Sobral, reforça-se a
qualificação desses setores, elaboradas pelo Inceu, a partir da afirmativa de que:

A utilização dos setores morfológicos conforme definidos no Inceu tem


caráter qualitativo-conceitual, ou seja, serve como reconhecimento, di-
vulgação e assimilação do conteúdo do inventário citado, reforçando,
através dos parâmetros conceituais de leitura da configuração morfoló-
gica, a apreensão, por parte da população local, da identidade dos seto-
res e, com isso, facilitando a preservação de suas características originais
(Hurb/Unesco/Bid/Monumenta/Iphan/MinC, 2008, p. 15).

Nesse sentido, optou-se pela manutenção da delimitação dos setores mor-


fológicos, de acordo com metodologia aplicada no Inceu, à qual foram incor-
porados experiências e ajustes da Pms e do Escritório Técnico de Sobral (ET/
Sobral). Os ajustes considerados foram:

• A redefinição, de modo geral, dos limites dos setores, que passaram


a coincidir com os eixos das vias, de modo a facilitar a aplicação dos
critérios e normas;
• A extensão de setores existentes (Patrocínio, Rosário, São Francisco,
Menino Deus, Acaraú e Beira-Rio) para além de sua delimitação ori-
ginal, incorporando às áreas de proteção rigorosa áreas antes perten-
centes ao entorno. Esta decisão reforça a intenção de atribuir a im-
portância merecida à área de entorno, facilitando a compreensão da
população acerca da necessária aplicação da Npshs;
• A atribuição de novo nome ao setor Menino Deus, que passa a se cha-
mar Corredor Cultural, em conformidade com as estratégias de pla-
nejamento e gestão em execução pela Pms;
• A supressão do setor Santo Antônio e a incorporação do mesmo aos
setores Acaraú e Corredor Cultural;
• A criação do setor Fábrica de Tecidos, antes parte do entorno.

Vale ressaltar que para cada setor foram definidas diretrizes gerais de pre-

65
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

servação das características morfológicas que lhe são particulares, em espe-


cial dos seus temas-destaque, ou seja, os seus edifícios/espaços referências. Os
setores morfológicos passam, portanto, a serem definidos da seguinte forma:
Setor Patrocínio; Setor Rosário; Setor Sé; Setor Gangorra; Setor Fábrica de
Tecidos; Setor Acaraú; Setor Beira-Rio; Setor Corredor Cultural (ver Figura
4. Confrontar com Figura 3).
Dentre estes setores, destacamos as descrições dos setores alvo de estudo
neste artigo, a saber:

• Setor Acaraú: sua ocupação somente foi consolidada nos anos 1940
do século XX, o que determinou o pouco interesse de suas edificações
no âmbito da proposta de tombamento do SHU de Sobral. Tem como
elemento de destaque a Igreja de Santo Antônio. Nele também estão
previstas maiores possibilidades de renovação urbana do sítio.
• Setor Beira-Rio: é uma área que estabelece relação direta com o rio
Acaraú, elemento natural marcante na configuração do Shu de So-
bral. Margeia o recurso na faixa definida entre as pontes Otto de

Figura 4 Setores morfológicos, conforme NPSHU/Sobral. Fonte: HURB/ UNESCO/BID/MONUMENTA/


IPHAN/MinC, 2008.

66
Alencar e José Euclides Ferreira Gomes, compreendendo apenas a área
onde foi implantado o Projeto de Urbanização da Margem Esquerda.
As edificações de destaque neste setor são: a Escola de Cultura, Co-
municação, Ofícios e Artes de Sobral (Eccoa); a Biblioteca Municipal
e o Museu Madi.

Como produto também deste relatório, foram elaboradas “Diretrizes e


Critérios Gerais de Intervenção”, através dos quais se prima por uma regula-
mentação dos critérios gerais para proposição, avaliação e aprovação de pro-
jetos de intervenção arquitetônica, urbanística e/ou paisagística no Shu de
Sobral, o que significa dizer que toda e qualquer intervenção, a despeito de sua
natureza ou localização, deverá seguir esse quadro de regras.
Ao analisarmos este quadro de parâmetros, observamos que o teor de boa
parte das diretrizes tem por objetivo garantir os elementos configuradores da
morfologia urbana que visam a manutenção de uma representação formal
dos elementos destaques desse conjunto. Essa questão também pode ser ob-
servada quanto às premissas estabelecidas pelas “Diretrizes e Critérios de In-
tervenção por Setor, Zona e Situação de Intervenção”. Nas diretrizes definidas
para os dois setores morfológicos estudados no presente artigo, identificamos
diretrizes relativas a “proibição da edificação de elementos que, por seu porte
e feição, venham a comprometer os efeitos perspectivos de realce dos elemen-
tos-destaque, manutenção das características configurativas fundamentais de
relação intervolumétrica das intervenções com o tema-destaque, manutenção
dos efeitos perspectivos dos citados tema-destaque e edificações referenciais”,
No setor Beira-rio, a recomendação quanto ao paisagismo nos chamou
atenção, visto que é proposto o “incentivo à manutenção da feição árida do
setor, de modo a não produzir impedimentos à apreensão visual de seus tema-
destaque e edificações referenciais, bem como do Shu como um todo”.
Diante do exposto, observamos que as análises apreendidas e apresentadas
no documento das Npshu/Sobral, revelam uma orientação de leitura com um
forte vínculo com a análise dos espaços a partir de sua forma urbana, e os des-
dobramentos relacionados com essa análise – no caso, a elaboração das Nor-
mas de preservação propriamente ditas – acabam por firmar essa orientação.
Entendemos que, para além dessa perspectiva formal apresentada pelo
produto resultante da Npshu/Sobral, há a necessidade de complementação
no que tange à leitura e apreensão dos espaços públicos localizados no referi-

67
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

do Sítio Histórico, o que pretendemos apresentar no próximo item, tomando


como base conceitual a definição de espaço público enquanto lugar, e como
objeto empírico, a margem esquerda do rio Acaraú, espaço este que contem-
pla dois setores morfológicos definidos nas Npshu/Sobral: o Setor Acaraú e o
Setor Beira-Rio.

Análise do espaço público “Margem Esquerda do Rio Acaraú”:

Termo de Referência integrante do Plano Diretor de Desenvolvi-


mento Urbano de Sobral, elaborado em 1999
O referido Termo tem como projeto estruturante a reurbanização da margem
oeste do rio Acaraú, pensado, a princípio, em dois segmentos: o parque do Rio
Acaraú e a via paisagística, no intuito de promover uma “urbanização mode-
rada” nas margens do rio, e o incremento de áreas de lazer e espaços urbanos.
Partiu-se das seguintes premissas:

• a tentativa de requalificação urbana de uma área de significação histó-


rico-cultural, porém em processo de degradação, levando-se em con-
sideração necessidade de integração deste espaço à vida contemporâ-
nea, numa nítida intenção de se vincular passado e presente;
• a garantia de uma imagem urbana vinculada ao seu patrimônio his-
tórico-arquitetônico, que apresenta-se como referência no contexto
da cidade;
• a necessidade de revalorização da imagem da área não somente sob o
ponto de vista físico, mas também simbólico.

As premissas do Termo de referência serviram como base para a elabora-


ção de um Edital de Concurso Público de Anteprojetos a nível nacional para
a área, conforme veremos no item seguinte.

Concurso de Anteprojetos – urbanização da margem Esquerda


do Rio Acaraú:
O referido concurso teve como referência o Edital elaborado por representan-
te das instituições promotoras do certame, a saber: 4ª. SR/Iphan/Ce, Prefei-
tura Municipal de Sobral e Instituto dos Arquitetos do Brasil – Seção Ceará.
A proposta vencedora, elaborada pelo Escritório Nelson & Campelo Ar-

68
quitetos Associados, representado pelos arquitetos Nelson Serra e Neves e
Antônio Carlos Campelo Costa, apresenta os seguintes aspectos gerais: a pos-
sibilidade de contribuição para a integração da área ribeirinha com a massa
edificada, sem, entretanto, descaracterizar a implantação desta, tradicional-
mente “de costas” para o rio; a utilização do rio como espaço/equipamento
de lazer, esportes e cultura, entendidos como fundamentais para a qualidade
de vida das diversas camadas sociais e faixas etárias; e, ainda que preservando
uma das características da cidade, dando as costas ao rio, procurou-se aprovei-
tar os locais estratégicos para pontos de convívio, belvederes, espaços cívicos
e de lazer, importantes para a fruição da paisagem.
No zoneamento apresentado pela proposta, observam-se ações em trechos
distintos. Com relação ao trecho definido pela área localizada entre a ponte
José Euclides ao limite noroeste da linha do tombamento, observam-se os
seguintes pontos:

• criação de uma enseada para prática de esportes aquáticos;


• a construção de um pequeno “farol”, a funcionar como marco visual
de demarcação do início da área de urbanização;
• conformação de um caminho que leva ao “farol”;
• a previsão de estacionamento de veículos e área de embarque e desem-
barque de embarcações;
• a previsão, junto à enseada, de uma escola de esportes aquáticos, an-
coradouro, lanchonetes, bares, equipamentos urbanos, todos sob uma
mesma coberta com linguagem arquitetônica contemporânea (estru-
tura metálica com pérgolas em madeira).

Com relação ao trecho central, sob proteção federal, observam-se os se-


guintes aspectos:

• o tratamento proposto é singelo, quase um caminho, preservando o


verde da margem do rio e o casario existente, sem elementos que se
destaquem na paisagem.
• Nos pontos extremos deste trecho, coincidentes com os limites da área
tombada foram localizados marcos simbólicos referentes à cidade de
ontem e de hoje: a Esplanada Cívica e o Marco do Tombamento.

69
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Na área definida pela Esplanada Cívica, ocorreu paulatinamente a implan-


tação dos equipamentos de maior porte da proposta, dentre os quais se in-
cluem os edifícios da Eccoa, Biblioteca pública Lustosa da Costa e o Museu
Madi. Nos dois primeiros, as premissas de intervenção revelam a orientação
de aliar passado e presente de formas distintas. Na Eccoa, buscou-se revalo-
rizar a importância do edifício como componente de uma imagem referência
na paisagem: o antigo complexo fabril tem sua volumetria preservada, e o es-
paço interno adaptado para receber a nova função. Nesse âmbito, a proposta
visou aliar passado e presente a partir da perspectiva da integração do edifício
antigo às necessidades da vida contemporânea.
Com relação ao edifício da Biblioteca Pública Lustosa da Costa, o mesmo
teve sua construção ocorrida ao longo do processo de urbanização da mar-
gem do rio, tendo sido implantado em área que apresentava construções em
estado de arruinamento. O projeto proposto buscou tomar partido da idéia
de soerguer o edifício a partir dessa “base arruinada”, de forma a identificar
o surgimento de um “novo” a partir dessa “ruína”. Nesse contexto, o edifício
da Biblioteca passa a representar o surgimento desse novo momento, a partir
de uma base pré-existente.
Já no terceiro edifício, o museu Madi, que se encontra incorporado ao con-
junto do anfiteatro, cuja composição já é definida a partir de uma linguagem
modernista, com o uso predominante do concreto. Desta forma, esse con-
junto apresenta uma liberdade maior de expressão com relação ao aspecto da
busca de referências no antigo. Uma liberdade que, no entanto, segundo os
defensores do projeto, não desrespeita a presença desse antigo. Ao contrário,
valoriza o conjunto, por incorporar mais um elemento de alta qualidade es-
pacial no conjunto.
A intervenção na margem esquerda do rio Acaraú é tida como um ponto
de inflexão dentro dos projetos urbanos realizados na cidade de Sobral, pois
representa, de uma maneira clara, na materialidade, a transformação de uma
imagem de um espaço deteriorado, desqualificado, em uma imagem de re-
qualificação, de regeneração de uma área intrinsecamente ligada à história
de Sobral, que é devolvida para o cidadão e reintegrada à vida cotidiana da
cidade. (Ver Figuras 5 e 6)
Os usos, as apropriações e as ressignificações percebidas nesse espaço em
que se busca esta disciplinarização, nos remetem, entretanto, à reflexão sobre
a necessidade de, enquanto agentes produtores e transformadores do espaço

70
Figura 5 Margem esquerda do
rio Acaraú, antes da intervenção
de requalificação. Fonte: Prefeitu-
ra Municipal de Sobral.

Figura 6 Margem esquerda do rio Acaraú, após a intervenção de requalificação. Observamos na parte
inferior da imagem o conjunto escultórico do Marco do Tombamento. O “Tapete Verde” articula esse
conjunto com a Esplanada Cívica, composta pelo anfiteatro e o Museu MADI (parte superior da imagem).
Ao fundo, a Ponte José Euclides. Fonte: Prefeitura Municipal de Sobral.

urbano, darmos atenção a essas práticas sociais relacionadas ao referido lugar.


Elas têm muito a dizer sobre a natureza desses espaços. No caso aqui tratado,
observamos que, para além dos usos pensados para a área, outros são identifi-
cados, estes últimos relacionados em sua maioria com o cotidiano das pessoas
que habitam nas suas proximidades: o tapete verde vira campo de futebol,

71
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

“solarium”; o play-ground, para além de sua função atribuída, transforma-se


em “varal”, local de secar roupa.
Para além dessas apropriações inesperadas, verificamos também as per-
manências de determinados hábitos na área, como a atividade do lavar roupa,
de um lado e de outro do rio, bem como a travessia dos barcos, interligando a
área urbanizada à outra margem, no bairro Dom Expedito, e vice-versa. (Ver
Figuras 7 a 10).

O “efeito replicador”: urbanização da margem direita do rio Acaraú


Como forma de identificar o “efeito replicador” ocasionado pela constituição
de uma imagem positiva vinculada ao sucesso da intervenção da margem es-
querda do rio Acaraú, atrelada à requalificação urbana e disciplinarização de
um espaço outrora degradado, observamos a elaboração e execução da urba-
nização da “outra margem” do rio, de cunho marcadamente popular. Como
elementos característicos desta intervenção, podemos citar que: o desenho
urbano segue as premissas da urbanização da margem esquerda (passeios, ci-
clovia, tapete verde); a relação que se estabelece com o bairro existente, é defi-
nida pela uniformização do passeio da via contígua e pela abertura de acessos
ligando o passeio da via paisagística a algumas vias existentes; a construção
de um anfiteatro; a construção de um muro marcando o limite entre o espaço
público e o privado; a aridez do espaço público.
Simultaneamente ao espaço que, aos poucos, é disciplinarizado a partir da
lógica estabelecida na outra margem do rio, podemos observar a presença dos
barqueiros, das lavadeiras, das habitações populares... Em breve, a certeza de
estarmos analisando também as apropriações e re-significações estabelecidas
neste espaço transformado a partir das práticas sociais estabelecidas pelo es-
paço vivido. (Ver Figura 11).

Considerações finais
Como resultado das análises empreendidas no presente artigo, está a neces-
sidade da incorporação da dimensão do cotidiano no processo referente ao
diagnóstico e nas intervenções a serem realizadas acerca dos espaços repre-
sentativos de nosso patrimônio edificado, cotidiano este definido como “pro-
cessos interativos, representativos e simbólicos relacionados à experiência
vivida que constroem sociabilidades de rua, enquanto espaço, de uma vida
pública” (Leite, 2004, p. 19), a partir de uma abordagem que vise a busca da

72
FiguraS 7 a 10 Apropriações e ressignificações do espaço requalificado da margem esquerda do rio
Acaraú, estabelecidas pelas práticas sociais vivenciadas no referido espaço público. Fonte: Arquivo
Clewton Nascimento.

Figura 11 Urbanização da margem direita do rio Acaraú. Fonte: Arquivo Clewton Nascimento.

73
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

superação de oposições, e a não exclusão de partes integrantes.


No caso específico de Sobral, observamos que o Estudo para Tombamento
Federal auferiu novas significações ao espaço edificado, a partir da incorpo-
ração dos valores topoceptivos, e que a elaboração das Npshu ampliou este
quadro, ao considerar que o núcleo histórico de Sobral é composto por setores
diferenciados/diversificados que necessitam de abordagens particularizadas,
observadas a partir do contexto de conjunto (interação entre setores).
Entretanto, consideramos que, para além da apreensão do espaço sob o
ponto de vista da morfologia urbana, devemos apontar a necessidade do en-
tendimento deste espaço como objeto constituído pela interação entre pai-
sagens natural e construída, assim como pela “vivência de seus habitantes
num espaço de valores produzidos no passado e no presente, em processo
dinâmico de transformação”, conforme apontam as premissas da Carta de
Petrópolis, de 1987.

Referências
Carta de Petrópolis, 1987. In: Iphan. Cartas patrimoniais. Organização de Isabelle Cury. 3.
ed. Rio de Janeiro: Iphan, 2004.
Consórcio Fausto Nilo – Espaço Plano/Seinfra/Prefeitura Municipal de Sobral. Pla-
no Diretor de Desenvolvimento Urbano de Sobral. 1999.
Duarte Jr., Romeu. Novas abordagens do tombamento federal de sítios históricos – política, ges-
tão e transformação: a experiência cearense. 2005. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo) – Fau, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
Iphan; 4ª Superintendência Regional-Ce. Estudo para tombamento do Conjunto Urbanís-
tico da Cidade de Sobral – Ceará. v. I, II e III, 1998.
Inceu. Inventário de Configuração de Espaços Urbanos. Sobral. 2005.
Lefebvre, Henri. La production de l’espace. 4. ed. Paris: Anthropos, 2000.
Leite, Rogério Proença. Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urba-
na contemporânea. Campinas/SP: Editora Unicamp; Aracaju/SE: Editora UFS, 2004.
Nascimento, José Clewton do. (Re)descobriram o Ceará? Representações dos sítios históricos
de Icó e Sobral: entre areal e patrimônio nacional. 2008. 450 f. Tese (Doutorado em Arqui-
tetura e Urbanismo) – Ufba, Salvador, 2008.
Prefeitura Municipal de Sobral; Instituto dos Arquitetos do Brasil – Seção Ceará. Con-
curso público de anteprojetos para Conjunto Paisagístico de Sobral/CE. Bases do concurso, 2000.
Ribeiro, Ana Clara Torres. Sociabilidade, hoje: leitura da experiência urbana. Caderno CRH,
Salvador: UFBA, v. 18, n. 45, p. 411-422, set./dez. 2005.
Hurb – Pesquisas, Planos e Projetos; Unesco/Bid/Monumenta/Iphan/Minc/Governo
Federal. Elaboração de proposta de normas de preservação para o sítio urbano histórico de
Sobral. dez. 2007-jan. 2008.

74
Nas fronteiras da História:
a preservação do patrimônio entre
a memória e o esquecimento

Luciano dos Santos Teixeira

Resumo
Pretende-se repensar as relações entre memória e história na construção de conhe-
cimento sobre o patrimônio cultural brasileiro na atualidade, tomando como base
as reflexões de Pierre Nora, François Hartog e Hans-Ulrich Gumbrecht. Os desafios
contemporâneos impostos aos órgãos de preservação – novos objetos, novos atores
sociais e novas práticas culturais – demandam o diálogo com autores que tematizam
o papel desempenhado pela memória e pelo conhecimento histórico na redefinição
do campo da preservação no Brasil. A teoria da história e os estudos sobre a memória
oferecem um repertório útil de conceitos, que valida sua apropriação em áreas de
saber limiares a ele, como o próprio patrimônio cultural.

Luciano dos Santos Teixeira é historiador, mestre em História, professor do Mestrado Profissional
IPHAN do Patrimônio Cultural (PEP-MP). Técnico do IPHAN, lotado na Coordenação-geral de Docu-
mentação e Pesquisa (Copedoc/RJ).

75
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Imagem da página anterior


Ouro Preto/MG. Vista. a.d., s.d.
Fonte: ACI/RJ. Série Inventário.

76
Nós gostaríamos de preparar, a partir de hoje, o museu do amanhã e reunir os
arquivos de hoje como se já fosse ontem, tomados que estamos entre a amnésia
e a vontade de nada esquecer.
François Hartog (Tempo e Patrimônio)

Qual o lugar da história dentro do campo da preservação? Não me refiro aqui


à questão corporativa do lugar do historiador no Iphan ou em qualquer outro
órgão de preservação, mas ao lugar da história no âmbito das disputas intelec-
tuais que ocorrem na definição das políticas do patrimônio.
O propósito desta comunicação é encaminhar uma agenda de projetos de
pesquisa que abarque valores, ações e concepções teóricas na constituição da
teia de relações que formam o campo da preservação no Brasil. Pensar a histó-
ria nas instituições de preservação implica dizer que as instituições de preser-
vação – e, no Brasil, a referência principal ainda é o Iphan – são carregadas de
historicidade, não apenas no sentido mais óbvio das investigações históricas
que elas inspiram, mas principalmente porque toda prática social é dotada de
historicidade, ou seja, que estamos neste instante escrevendo um pedaço dessa
história, repleta de noções e valores culturais, decisões políticas e implicações
sociais, cujos sentidos só adquirem visibilidade quando observados histori-
camente. Mais, que o processo de renovação das instituições de preservação,
atualmente em curso, passa necessariamente pela problematização desse per-
curso, pelo entendimento aprofundado de seus mecanismos internos de fun-
cionamento e das relações complexas com a sociedade que as produziu.
Portanto, trata-se de um convite ao exercício do pensar histórico, dentro
do esforço de encararmos nossas próprias práticas profissionais, sociais e cul-
turais como momentos de um processo histórico amplo, não-linear, denso,
contraditório, rico de conflitos e possibilidades. Esse pensar histórico não se
limita aos procedimentos específicos de uma disciplina, porém se vincula a
uma dimensão mais abrangente de crítica da memória [retornarei esse ponto
mais a diante]. Tarefa que é essencial para a construção de um saber reflexivo
sobre a história da preservação do patrimônio cultural.

77
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Na execução dessa tarefa, começarei lançando mão de uma categoria que


pode ser muito útil para a articulação entre história, memória e preservação:
a narrativa. Tomaremos esse termo na acepção dada por Luiz Costa Lima:

(...) sumariamente, por narrativa estaremos entendendo o estabelecimen-


to de uma organização temporal, através de que o diverso, irregular e
acidental entram em uma nova ordem; ordem que não é anterior ao ato
da escrita mas coincidente com ela; que é pois constitutiva de seu objeto
(1989, p. 17).

A narrativa, no sentido acima descrito, tem uma função ordenadora do


real, que constitui seu objeto no ato mesmo de o descrever. Para ilustrar essa
interpretação do que seja a narrativa e de sua importância na constituição
da realidade histórica, lembro a fala do historiador Simon Schama na Flip
2009, quando se referindo à campanha presidencial norte-americana de 2008,
chamava a atenção para um momento que, em seu ponto de vista, foi deci-
sivo para o êxito final de Barack Obama: o momento em que os republica-
nos, precebendo sua derrota iminente, usaram como último recurso o apelo
à inexperiência administrativa de Obama. Os republicanos diziam que o can-
didato democrata era só discurso. Ora, argumentou Schama, foi justamente
esse o ponto mais forte da campanha de Obama: ele representava um novo
discurso, que anunciava uma possível nova realidade para os Estados Unidos.
De fato, Obama era puro discurso. Mas, da mesma forma, a história ame-
ricana foi marcada por esses discursos fundadores, a começar pela ideia de
fronteira [apenas pra citar o texto clássico de Turner sobre o significado da
fronteira na história americana, indicado como leitura básica dessa oficina].
Turner defende que a ideia da conquista da fronteira balizou e motivou todo
o movimento de colonização norteamericano rumo à Costa do Pacífico. Nes-
se sentido, o discurso antecedeu e preparou o projeto de expansão terriorial
estadunidense.
Cito esse exemplo apenas com a intenção de demonstrar a importância da
narrativa e dos discursos na modelagem das práticas sociais. Em relação ao
patrimônio, as narrativas da história da preservação no Brasil tiveram e têm
a função de organizar temporalmente a concepção de patrimônio cultural
hegemônica no país, dando-lhes um sentido. Em outras palavras, os relatos a
respeito da história da preservação não apenas expressam determinados pon-

78
tos de vista, prevalecentes no instante de suas escritas, mas ajudam a cons-
truir as próprias práticas que são descritas, no momento em são escritas. Des-
sa forma, somos herdeiros de técnicas, métodos e procedimentos de rotina
das instituições às quais pertencemos porque foram produzidas narrativas
históricas que criaram e perpetuaram essa memória institucional.
Para avançarmos na compreensão desse processo, é preciso que se construa
uma historiografia da preservação no Brasil. A historiografia da preservação
implica necessariamente a compreensão das diversas narrativas que compuse-
ram a história da preservação no país, no esforço de se empreender aquela críti-
ca da memória a que nos referimos anteriormente. Não se trata apenas de uma
história da história da preservação, mas de um estudo aprofundado dos mode-
los pelos quais se construíram e ainda se constroem as práticas de preservação.
De maneira a melhor situar essas observações e na impossibilidade de de-
senvolvermos uma análise mais ampla da trajetória preservacionista no país,
pontuarei com um exemplo que pode servir de referência para uma compre-
ensão mais concreta do que estamos apresentando aqui. Pensemos, inicial-
mente, em um momento bastante conhecido: a fundação do Sphan (Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), criado pela lei 378, de 13 de
janeiro de 1937, mais tarde regulamentado pelo decreto-lei 25. Conhecemos
bastante, hoje, o papel que a criação do Sphan representou no contexto his-
tórico-político do governo Vargas, da participação dos intelectuais modernis-
tas nesse processo, das transformações econômicas e sociais por que o país
passava naquele momento e da política cultural empreendida por Gustavo
Capanema, particularmente durante o Estado Novo, dentro de um projeto
nacional mais amplo. Tudo isso está bem estudado, graças a excelentes traba-
lhos de investigação histórica (Silvana Rubino, Marcia Chuva, José Reginaldo
Gonçalves) desenvolvidos nos últimos anos.
Contudo, pouco ainda sabemos a respeito dos novos conhecimentos es-
pecíficos, advindos da história da arte, da arquitetura, da arqueologia, da
antropologia etc., além de um conjunto de procedimentos técnicos para os
quais não havia qualquer tipo de formação profissional no Brasil, que o esta-
belecimento de um novo campo de atuação, como o do patrimônio, exigia. A
confluência desses saberes, além das disputas ideológicas e corporativas intes-
tinas, contribuiu decisivamente para se definir a configuração inicial do cam-
po da preservação no país. Não apenas isso, são também pouco estudadas as

79
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

reações e tensões vividas entre o Sphan e os diversos atores sociais envolvidos


nas políticas de preservação. Nos estudos já divulgados, a sociedade aparece
quase sempre como personagem coadjuvante de uma história escrita a partir
do estado brasileiro. Somente uma abordagem historiográfica séria e profun-
da poderá destrinchar os meandros e vieses que permeiam a memória institu-
cional. Qual o papel, por exemplo, que o Conselho Consultivo do Sphan teve
na mediação dessa relação entre o Sphan e a sociedade brasileira?
Cito um outro exemplo, que vivi pessoalmente: o estudo do chamado “pa-
trimônio jesuítico”, cujo resultado bastante incompleto se transformou no
livro Assentamentos jesuíticos: território e significação, publicado em 2008.
Lembro-me que, ao ingressar no Iphan em 2006, logo me engajei nesse proje-
to e nas reuniões que a equipe tinha com a então gerente de pesquisa, Marcia
Chuva. Um dos pontos que levantávamos era a necessidade de uma investiga-
ção historiográfica dos autores que trabalharam a presença jesuítica no Brasil.
A historiadora Aline Bezerra havia feito um amplo levantamento documental
dos processos de tombamento, bem como uma reflexão preliminar a partir
da análise desses processos. Foi feito, então, um duplo mapeamento: um ma-
peamento no sentido mais literal, da ocupação territorial dos jesuítas no ter-
ritório da então América portuguesa e um outro mapa, das abordagens que
consolidaram uma certa visão da participação dos jesuítas em nossa história.
Visão que influenciou diretamente a maneira pela qual os técnicos ligados
ao Sphan encararam essa presença jesuítica. Muitos de nós conhecemos o
texto de Lucio Costa sobre a arquitetura jesuítica, publicado na Revista do
Patrimônio, mas pouco sabemos sobre os historiadores em que Lucio Costa
se baseou para formar sua interpretação dessa arquitetura. Essa era a tarefa
que nos propúnhamos em 2006: fazer uma arqueologia – no sentido dado por
Michel Foucault – desse conhecimento histórico, ou melhor, das práticas dis-
cursivas que levaram à preservação de diversos bens relacionados aos jesuítas.
Infelizmente, com a saída do bolsista do Pep em 2007, Sergio Barra, não pude-
mos continuar o projeto, que teve pelo menos um interlocutor que conseguiu
levar adiante uma pesquisa em seu estado: a historiadora Ítala Byanca, então
na superintendência do Amapá. Cito esse exemplo apenas como registro de
uma experiência possível de atividade integrada da Copedoc com as superin-
tendências do Iphan, articulado em torno de uma discussão conceitual e com
implicações práticas bastante claras.

80
Contudo, o tema do patrimônio não é apenas o objeto dos questionamen-
tos da historiografia, mas também o sujeito de transformações profundas
ocorridas nas representações do tempo fixadas pelos historiadores. O barroco
colonial, por exemplo, após as ações de preservação realizadas pelo Sphan,
não apenas se tornou um capítulo consagrado de nossa história artística, tor-
nou-se também a materialização de nossas origens nacionais, moldando dessa
forma todas as obras históricas produzidas dali por diante. E não me refiro
somente às obras acadêmicas e sim, principalmente, a essas outras formas
de escrita da história muito mais influentes na disseminação das visões de
mundo: as obras de divulgação da história do Brasil, os livros didáticos, os
catálogos de turismo, as coleções dos museus etc. Em suma, toda a vasta pro-
dução escrita onde se pretendia abordar nosso passado colonial passava agora
a ser balizada por essas referências visíveis e tangíveis que são os monumentos
históricos, mesmo quando se tinha a intenção de criticá-los.
Permitamo-nos um salto adiante no tempo e olhemos o agora, o mundo
contemporâneo. Quais os sentidos das práticas de preservação hoje? Que con-
cepções, valores e mesmo projetos informam essas práticas, nossas práticas?
Recorramos a dois importantes pensadores da história, cujas reflexões podem
lançar alguma luz nesse cipoal: François Hartog e Hans-Ulrich Gumbrecht.
O primeiro criou a categoria de regime de historicidade para explicar as mu-
tações não apenas dos discursos históricos, mas das próprias concepções de
tempo que cada época experiencia. Muito resumida e simplificadamente, po-
demos dizer que vivemos hoje, de acordo com Hartog, um regime presentista,
de extrema valorização do presente, a partir da falência dos grandes projetos
de mudança social que marcaram os séculos XIX e XX. Com as tradições do
passado cada vez mais distantes e um futuro cada vez mais repleto de incerte-
zas, o presente se torna o valor predominante, por nos ser a única experiência
possível. Gumbrecht, por sua vez, lança mão de outra categoria, o cronótopo,
para tentar explicar as mesmas mudanças observadas em nossa relação com
o tempo e a história. O cronótopo (cronos = tempo; topos = lugar) seria um
tipo de paradigma dominante em cada época, que estabeleceria uma certa
relação om o tempo. Haveria três grandes cronótopos em nossa história oci-
dental: o antigo, o moderno e aquele no qual estamos vivendo. No primeiro, a
relação com a história seria marcada pela exemplaridade: a história forneceria
os modelos para o nosso viver, as chamadas “lições da história”. No segundo

81
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

cronótopo, teríamos o predomínio do futuro, no qual o sentido do presente


seria dado em função desse futuro. Seria o momento das grandes narrativas,
das grandes explicações do mundo. Atualmente, com o esgotamento desse
cronótopo moderno, estaríamos entrando em nova fase, quando a materiali-
dade do presente e a aceleração do tempo histórico assumiriam a prevalência.
Resumindo de maneira muito esquemática, poderíamos associar, portanto,
cada um desses cronótopos a um tipo diferente de ênfase: no passado (cronó-
topo antigo), no futuro (cronótopo moderno) e, finalmente, no presente (na
falta de um termo específico, cronótopo atual).
Note-se que, de formas distintas, ambos os autores realizam diagnósticos
semelhantes a propósito da contemporaneidade. Neles, uma espécie de espes-
samento (ou alargamento) do presente é considerada como característica fun-
damental de nossa época. Observemos ainda que esse espessamento do pre-
sente não implica no abandono dos sentidos do passado e do futuro, mas que
o presente se torna a referência para o passado e o futuro, e não mais o contrá-
rio. Com isso, ocorre uma ampliação de possibilidades atuais pelo acúmulo
de resíduos de memória – pois como afirma Pierre Nora, “existem lugares de
memória porque não existe mais memória” – que convergem e convivem no
presente. Em outras palavras, o presente estaria saturado de outras tempora-
lidades, concomitantes, por vezes sobrepostas, por outras conflitantes.
Onde isso tudo converge com as preocupações que esboçamos anterior-
mente? Em primeiro lugar, por nos fornecerem um novo lugar de inteligibi-
lidade que nos possibilita olharmos as questões de preservação para além das
mudanças superficiais dos tipos de objetos e das preocupações mais imedia-
tistas. Entendendo, por exemplo, as motivações por detrás do incremento da
demanda social pela valorização de lugares, manifestações culturais e proces-
sos históricos, até muito recentemente negligenciados não apenas pelo estado
brasileiro mas igualmente pelos próprios grupos sociais. Em segundo, por nos
colocarem desafios e indagações cujas respostas podem significar mudanças
estruturais na maneira de pensarmos as ações de preservação. E recorro, a
título de exemplo, a um questionamento oferecido pelo próprio Gumbrecht
em recente seminário realizado aqui próximo, em Mariana: por que nos pre-
ocupamos tanto em registrar fenômenos que mal vivenciamos, tais como os
anais de congressos e seminários, cujos resumos e demais materiais nos são
disponibilizados antes mesmo de acontecerem? Por que tamanha produção

82
de vestígios materiais daquilo que ainda está vivo e presente? Trata-se de um
procedimento que se tornou tão habitual para nós que nem sequer ousamos
indagar a respeito de seu real significado. Colocando em perspectiva histó-
rica, percebemos uma mudança na ordem do tempo (Pomian), cujos efeitos
nos atingem diretamente e da qual raramente temos consciência. Como diz
Hartog, o presente tornou-se a referência de si próprio – e, mais do que isso,
sua única referência.
Trazendo essas reflexões para dentro de uma instituição de preservação,
uma instituição de memória por excelência, como o Iphan, podemos per-
guntar de que maneira essas transformações incidem em nossas práticas. Em
primeiro lugar, naquilo que entendemos por memória. Recordando os anos
1980 e 1990, o tema da memória adquiriu enorme força, principalmente pela
discussão das chamadas memórias coletivas e pela figura do direito à memória.
Basta lembrar que a Constituição de 1988 consagrou entre os direitos cultu-
rais do cidadão brasileiro, o direito à memória. E essa consagração foi fruto
de longas discussões a respeito não somente, mas principalmente, do acesso
à informação a respeito dos desaparecidos políticos durante o regime militar.
Portanto, o direito à memória era visto sobretudo como um dever da memória
para o Estado brasileiro. Esse papel quase cívico do lembrar esmaeceu-se com
as mudanças na percepção do tempo que apontamos anteriormente. Por ou-
tro lado, a expansão da produção de registros de memória, criados intencio-
nalmente com esse fim, expandiu-se desmedidamente nos últimos vinte anos,
gerando o curioso quadro descrito por Gumbrecht acima: produz-se tanta
memória que somos capazes e achamos natural que registremos eventos que
nem sequer aconteceram ainda. Dessa forma, a memória não é mais o ato de
recordar o passado, mas a criação de vestígios que poderão vir a ser passado,
dada a assustadora instabilidade do presente.
A velha equação memória = identidade que, a partir de 1780, com a criação
da ideia de patrimônio nacional, tornou-se memória = patrimônio = identi-
dade, hoje deveria ser repensada, pois a explosão da produção de memórias,
a diversificação dos tipos de bens considerados patrimoniais e complexifica-
ção das identidades culturais colocam em cheque os referenciais teóricos que
adotamos para pensar e agir no campo da preservação. Talvez estejamos vi-
vendo uma mudança também no regime de memória. Como afirma Hartog,
“o patrimônio é um recurso para o tempo de crise”, “O patrimônio é uma

83
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

maneira de viver as rupturas, de reconhecê-las e reduzi-las, referindo-se a


elas, elegendo-as, produzindo semióforos” (2003).
Em resumo, a compreensão dos modos historicamente condicionados pe-
los quais se tem interpretado a preservação do patrimônio, em diferentes mo-
mentos da história do país, não tem a função de nos oferecer modelos prontos
para enfrentarmos os desafios do presente, mas, por outro lado, fornecem-nos
um repertório crítico de possibilidades de ação, devidamente contextualiza-
das, ajudando-nos a pensar, além disso, os limites, a orientação e o alcance
das estratégias que adotamos em nossas práticas profisionais.

Referências
Araújo, Valdei Lopes. Para além da autoconsciência moderna: a historiografia de Hans Ulri-
ch Gumbrecht. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 22, n. 36, p. 314-328, jul./dez. 2006.
Burke, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. cap. 6 (“Além da
virada cultural?”), item “Fronteiras e encontros”, p. 151-157.
Costa Lima, Luis. A Aguarrás do tempo. Estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
Gumbrecht, Hans-Ulrich. Production of Presence: what meaning cannot convey. Stanford:
Stanford University Press, 2004.
Hartog, François. Régimes d’Historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003.
______. Tempo e Patrimônio. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 22, n. 36. p. 261-273, jul./
dez. 2006.
Nora, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História – Revista
do programa de estudos pós-graduados em História e do Departamento de História da
Puc-Sp, São Paulo, n. 10, p. 7-27, 1993.

84
Antigos Quilombos, invisibilidade social
e universos simbólicos: especificidades
étnicas e culturais definindo o processo
de tombamento

Selmo José Queiroz Norte

Resumo
Determinadas realidades sociais vivenciam condição liminar de grande complexi-
dade, o que exige de nós pesquisadores um refinamento conceitual para a correta
apreensão de seus universos simbólicos. No que diz respeito ao Iphan, a formulação
de um quadro analítico adequado é pressuposto fundamental para a devida defi-
nição do formato e características das eventuais salvaguardas que se façam neces-
sárias no âmbito desses universos. Esse é o caso exemplar dos antigos quilombos
brasileiros, cujo tombamento foi determinado pela Constituição Federal, ainda em
1988. Situados nos limites de fronteiras históricas, étnicas, geográficas e culturais,
nem sempre bem demarcadas, terminam por vivenciar uma paradoxal invisibilida-
de social, apesar de constitucionalmente reconhecidos – inclusive com seus direitos
fundiários garantidos em aparatos legais e institucionais próprios. Apresentando o
caso das comunidades quilombolas tradicionais como ponto de partida, a comuni-
cação estimulará a reflexão sobre bens culturais que fogem à tradicional concepção
de monumento e/ou patrimônio material, os assim chamados “prédios de pedra e
cal”, exigindo deste Instituto uma postura ao mesmo tempo inovadora e mais bem
elaborada teoricamente, no sentido de efetivamente contribuirmos com políticas de
proteção socialmente eficazes e culturalmente relevantes.

Selmo José Queiroz Norte é cientista social formado pela Universidade de São Paulo (USP), mestre
em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB), com estudos de doutoramento em Antro-
pologia Cultural na CUNY (City University of New York). Coordenou o “GT Quilombos” do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

85
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Imagem da página anterior


Serra da Barriga – Quilombo dos Palmares. (União dos Palmares/AL).
Fonte: ACI/RJ. Processo de Tombamento nº. 1069-T-82, v. 3.

86
A Procuradora Geral da República Deborah Duprat, ao discutir as implica-
ções concretas e mais imediatas de um Estado pluriétnico (Pereira, 2002),
foi enfática quando apontou a Constituição da República Federativa do Brasil
como reveladora e possibilitadora de um “espaço ontológico do outro”, aquela
dimensão que engloba a possibilidade da diferença e da diversidade. A par-
tir de sua promulgação, pôs-se fim a uma fictícia e secular homogeneidade
cultural e étnica, alicerçada em uma perspectiva ideológica nacional de as-
similação – perpetuada por meio de uma política de forçosa invisibilidade, a
qual era o diferente invariavelmente submetido, atrelado a uma concepção de
“universalidade” que lhe retirava toda e qualquer possibilidade de conteúdo.
Vejamos:

A Constituição de 1988 [possibilita essa mudança fenomenológica] de


forma absolutamente explícita. Primeiro, impondo ao Estado o dever de
garantir ‘a todos o pleno exercício dos direitos culturais’, apoiando e in-
centivando ‘a valorização e a difusão das manifestações culturais [...] po-
pulares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes
do processo civilizatório nacional’ (art. 215, caput e § 1º), que se traduzem
em suas ‘formas de expressão e em seus modos de criar, fazer e viver (art.
216, I e II). Tratou exaustivamente e em caráter pragmático do território
cultural necessário ao exercício desses direitos pelas populações indígenas,
emprestando-lhes significado especial, divorciado da pauta patrimonial,
porquanto espaço essencial à existência de uma coletividade singular (art.
231, caput e § 1º). Por essa razão, o texto constitucional assegura a invio-
labilidade desse território de forma quase absoluta, admitindo alguma re-
lativização apenas na hipótese de ‘relevante interesse público da União’, a
ser definido em lei complementar (art. 231, § 6º), exigindo-se autorização
do Congresso Nacional e aquiescência da comunidade afetada (art. 231, §
3º. É importante ressaltar que, ao assumir o caráter pluriétnico da nação
brasileira, que não se esgota nas diferentes etnias indígenas, como eviden-
cia o parágrafo 1º do art. 215, a Constituição de 1988 tornou impositiva a
aplicação analógica do tratamento dado à questão indígena e aos demais
grupos étnicos. Assim, diante desse novo padrão de respeito à heteroge-
neidade da regulamentação ritual da vida, impõe-se a exata compreensão
das pautas de conduta que agora orientam os diversos atores sociais, em
particular os agentes públicos e políticos. (Pereira, 2002, p. 24)

Vê-se, assim, que a pluralidade do corpo social termina sendo bem retra-
tada no texto da Lei. A partir de 1988, com a publicação desse importante

87
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

e progressista marco legal, membros do Ministério Público da União e um


crescente número de legisladores passaram a aliar-se aos cientistas sociais e,
particularmente, a antropólogos, na defesa dos direitos das populações deten-
toras de especificidades étnicas e culturais.
Mas o reconhecimento do direito à diferença, ainda que inscrito na Carta
Magna de 1988, não é suficiente para que se faça valer o cumprimento das
determinações constitucionais ou consiga garantir, por si só, a sobrevivência
física e social das populações tradicionais brasileiras. Frente ao modelo de
desenvolvimento nacional e um desenho ainda bastante conservador e ul-
trapassado de projeto de nação, essas comunidades vêem-se, vinte e três anos
depois, ameaçadas cotidianamente em seus direitos de ir e vir e no pleno exer-
cício de sua diversidade cultural, étnica e, muitas vezes, lingüística.
O antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, ao discutir a questão do re-
conhecimento moral da diferença, da diversidade, e da identidade étnica, em
palestra proferida na I Jornada de Estudos sobre Etnicidade, promovida pela
Universidade Federal de Pernambuco, no ano de 2005, questionava de manei-
ra provocadora: “O que dizer sobre o reconhecimento das identidades sociais?
O que significa a uma pessoa ou grupo ter sua identidade reconhecida?”, para,
logo a seguir, quase simultaneamente às indagações iniciais, lançar um alerta:
“Nessas últimas décadas a teoria sobre o fenômeno da identidade mostrou
um significativo desenvolvimento, mas não se pode dizer o mesmo sobre a
questão do reconhecimento! (Cardoso de Oliveira, 2005) 1.
De 2005 a 2011, especificamente no que tange às comunidades remanes-
centes dos antigos quilombos, apesar de todos os direitos garantidos pela
Constituição e da existência de legislação específica aprovada no decorrer das
últimas duas décadas, muito pouco se avançou. Podemos até mesmo arriscar
a dizer que se ampliou o hiato entre a letra da lei e a aplicação efetiva do que
está determinado constitucionalmente. Em termos concretos, apesar de teori-
camente contarem com a proteção constitucional do Estado, a violência con-
tra os representantes dessas populações vêm se agravando com a ocorrência de
repetidos assassinatos de suas lideranças. São também reveladoras as pressões
que determinados setores da mídia nacional vêm interpondo no processo de
regularização fundiária das comunidades quilombolas, como bem demons-

1 O artigo de Cardoso de Oliveira foi posteriormente republicado no formato de livro, sob o mesmo
título, pela Editora UNESP, em 2006.

88
tra a seguinte passagem de um recente artigo do jornal O Globo, publicado na
seção Opinião, sintomaticamente intitulado “Artimanha Fundiária”.

A discussão sobre o reconhecimento de supostos quilombos, pressuposto


para a regulamentação fundiária de comunidades ocupadas por autoale-
gados descendentes de escravos, é exemplo desse tipo de imbróglio jurí-
dico, em tese resolvido pela Carta de 1988. Na verdade, em vez de dar-lhe
termos definitivos, a consolidação na lei de direitos reivindicados por cha-
mados quilombolas teve o efeito de criar mais confusão em torno de uma
demanda que se arrasta por décadas. [...] Em 2003, na esteira de uma série
de medidas na linha “politicamente correta” que marcou a chegada do PT
ao Planalto, o então presidente Lula assinou o Decreto 4.887, que define os
remanescentes de quilombos como “grupos étnico-raciais, segundo cri-
térios de autoatribuição, com trajetória própria, dotados de relações ter-
ritoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada
com a resistência à opressão histórica sofrida”. Por seus termos vagos e
por atribuir aos próprios quilombolas o direito de se autodefinir como tal,
sem qualquer outro tipo de comprovação, o decreto tirou o tema do foco
jurídico para jogá-lo no conveniente ringue da ideologia. Além disso, deu
ao Executivo o poder de desapropriar terras, inclusive privadas, para fazer
as titulações. [...] Complexa, a discussão não foi esgotada pela legislação.
Isso levou o DEM a entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalida-
de contra o Decreto 4.887. O assunto está na pauta do Supremo Tribunal
Federal, prestes a ser analisado. Caberá à Corte, blindada contra a ação
de grupos de pressão e ao largo de interesses ideológicos, analisar o tema
e dar-lhe o mais acertado encaminhamento. (O Globo, Rio de Janeiro, 12
set. 2011. Opinião, p. 6).

O texto, na íntegra e com destaque, foi amplamente reproduzido por um


grande número de boletins de entidades representativas do agronegócio, entre
eles Suinocultura Industrial, Farsul – Federação da Agricultura do Rio Grande
do Sul, Faes – Federação de Agricultura do Espírito Santo. Menos de um mês
após a publicação do Editorial, o mesmo jornal O Globo volta ao assunto, des-
sa vez em artigo assinado pela Senadora Kátia Abreu (Psd/Go), como a com-
plementar o raciocínio inicial da peça jornalística anterior. Com o agressivo
título de “Disparate Antropológico”, a senadora, também presidente da Con-
federação Nacional de Agricultura – Cna, não poupa nem mesmo os agentes
do Estado, em críticas que parecem estar estrategicamente direcionadas ao
processo governamental de regularização dos territórios quilombolas:

89
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Imaginem a seguinte situação. Em uma cidade qualquer de nosso país, há


um terreiro de umbanda, em que a mãe de santo é branca, assim como
vários membros desse culto religioso. Seguem certos ritos que os irmana
em uma mesma crença, herdada de antepassados negros. Vivem entre ou-
tras casas, em harmoniosa relação de vizinhança. Nada nesta descrição é
inusitado, considerando o algo grau de interação racial e cultural de nosso
país. Se perguntássemos a qualquer pessoa que congregação é essa, a res-
posta seria simples. Trata-se de um culto, herdeiro de uma tradição cul-
tural africana, que abriga pessoas das mais distintas procedências raciais,
sociais e sexuais. A ninguém ocorreria, porém, dizer que se trata de um
“quilombo”. Seria disparatado. No entanto, é o que está acontecendo no
país. Já não se trata de uma descrição da realidade, mas de uma construção
fictícia fruto do que certos antropólogos e a Fundação Cultural Palmares,
vinculada ao Ministério da Cultura, encarregada da certificação de qui-
lombos, consideram como ‘ressemantização’. Segundo essa nova doutri-
na, de forte conotação ideológica, quilombo, e por extensão quilombola,
veio a significar uma comunidade de tipo cultural, mais precisamente dita
etnográfica. O que passa a contar é a identidade cultural em questão, rele-
gando, mesmo, a uma posição secundária a identidade propriamente ra-
cial. Quilombo passa a ser uma comunidade cultural que tem práticas que
se exerceriam em um determinado território, que deveria, ainda segundo
essa doutrina, possuir uma ampla área em que suas práticas culturais po-
deriam ser reproduzidas. Quilombo passa a ser um terreiro de umbanda,
uma escola de candomblé, uma reunião de famílias negras em um terri-
tório qualquer. Quilombo não é mais um lugarejo distante dos centros
urbanos, fortificado, que servia de lugar de vida para escravos fugidios
e, inclusive, indígenas. A ficção tomou o lugar da realidade. O que a
Constituição de 1988 considerou quilombo cessa de ter validade, segundo
uma “interpretação” do texto constitucional que subverte completamente
o significado das palavras. [...] O texto constitucional é subvertido graças
à colaboração de antropólogos, promotores e funcionários da Fundação
Cultural Palmares que aderiram a uma nova ideologia. Colocaram-se na
função de novos constituintes e passaram a ditar uma nova política que
torna a letra e o espírito da lei algo que pode ser simplesmente desconsi-
derado. Qualquer coisa pode caber nessa palavra: quilombola (Abreu,
2011, grifos nossos).

As duas manifestações jornalísticas podem ser melhor compreendidas e


contextualizadas em função da proximidade da data de julgamento pelo Su-
premo Tribunal Federal da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 3.229, que

90
alega pretensa inconstitucionalidade do Decreto nº. 4.887/2003, por meio do
qual o Estado regulamenta a titulação e o registro das terras das comunidades
de remanescentes de quilombos. A referida Adin foi apresentada ao Stf, em
junho de 2004, pelo então Partido da Frente Liberal (Pfl). Resultado de um
longo, amplo e minucioso processo de discussão, no âmbito de um grupo de
trabalho com 13 Ministérios, a Advocacia Geral da União e representantes da
sociedade civil, o Decreto foi um dos primeiros atos assinados pelo Governo
Lula e revogava legislação anterior que restringia a possibilidade das comuni-
dades quilombolas virem a exercer, efetivamente, o direito de propriedade das
suas terras. A Confederação Nacional de Agricultura (Cna), representando os
grandes proprietários de terra e o agronegócio no país, não admite o fato de
pequenas parcelas do território nacional virem a ser retiradas do mercado, já
que os títulos fornecidos a essas comunidades pelo Incra, o órgão responsável
pela regularização fundiária, após um detalhado processo administrativo, são
coletivos, pró-indivisos e, necessariamente, emitidos em nome da associação
dos moradores da área regularizada – o que impede a possibilidade futura de
vendas ou qualquer outra forma de cessão das terras recebidas.
Paralelamente à questão fundiária, devemos também considerar e analisar
a proteção patrimonial das comunidades remanescentes dos antigos quilom-
bos, visto que o texto constitucional é categórico no que determina o art. nº.
216, seção II – Da Cultura, mais precisamente, em seu § 5º, cujos enunciados
são resumidos a seguir:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e


imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de refe-
rência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira, nos quais se incluem [...] os conjuntos urbanos e
sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontoló-
gico, ecológico e científico. [Nesse sentido], [...] Ficam tombados todos os
documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos
quilombos. (Brasil, 1988).

A despeito da determinação constitucional explícita, muitas dúvidas sur-


giram e continuam ainda nos dias de hoje a alimentar embates, debates e
reflexões na arena jurídica e no campo acadêmico, não só em relação ao “tom-
bamento das reminiscências históricas dos antigos quilombos”, mas também
no que diz respeito à interpretação do que realmente queria preconizar o

91
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

constituinte no Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias


(Adct), ao estabelecer que: “Aos remanescentes das comunidades dos qui-
lombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade de-
finitiva, devendo o Estado emitir-lhe os títulos respectivos”. Uma primeira
estranheza, a perdurar em determinados círculos institucionais governamen-
tais, num misto de estranhamento e até mesmo desinformação, é a confusão
que se faz com dois tópicos que são distintos e, assim, devem necessariamen-
te ser compreendidos: o tombamento, sob responsabilidade do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), não resolve as eventuais
pendências fundiárias existentes, assim como a regularização fundiária, a
cargo do Incra, não necessariamente implica no tombamento de territórios
quilombolas. Muito já se perguntou sobre o porquê dos dois temas se en-
contrarem em seções distintas e, aparentemente, não relacionadas da Carta
Magna. Para dirimirmos essas dúvidas e alcançarmos o sentido maior que
impregnou a preocupação do constituinte com as parcelas negras da popula-
ção brasileira, faz-se imprescindível a leitura de “Quilombos”, um brilhante
ensaio produzido por José Maurício Arruti (2008). Ao fazer um exercício ge-
nealógico de recuperação semântica e conceitual do termo quilombo, trans-
formado em objeto de reflexão das ciências sociais, no geral, e da Antropolo-
gia, mais especificamente, no final dos anos de 1970 e no início dos anos 1980,
o autor termina por nos revelar, ainda, os bastidores dos últimos instantes
dos dezoito meses em que funcionou a Assembleia Nacional Constituinte. Na
década de 1970 até o início dos anos 1980, os estudiosos preferiam utilizar a
nomenclatura de “comunidades negras incrustadas” em referência às comu-
nidades negras que estavam então sendo estudadas, evitando as noções de
“isolados negros” e de “quilombos”, basicamente por duas razões principais:
i. Incerteza sobre a adequação da conceituação e ii. Evitar o preconceito so-
cial fortemente arraigado nesses dois termos. Era, entretanto, praticamente
consensual entre esses pesquisadores a “hipótese de que as comunidades em
estudo seriam resíduos de antigos quilombos, que se preservaram graças a seu
isolamento histórico” (Pereira, 1981). A mesma indecisão e/ou imprecisão
conceitual, que caracterizou os intelectuais que trabalhavam à época com a
temática, estendia-se também aos militantes do movimento negro. Por oca-
sião da Constituinte, os mesmos padeciam não só de estratégias políticas e
rumos socialmente pavimentados, e devidamente compactuados, mas, sobre-

92
tudo, de uma terminologia adequada para a elaboração de suas ansiedades,
angústias e apresentação de pleitos devidamente elaborados ao poder público,
algo que lhes garantisse visibilidade e condições mínimas para o exercício da
cidadania. A antropóloga Ilka Boaventura Leite (2008), coadunando com o
mesmo raciocínio, é também emblemática em relação a esse entrave – concei-
tual, linguístico e político –, consequência de fatores históricos muito claros
e determinantes:

Ao contrário da questão indígena, note-se que não houve anteriormente


qualquer jurisprudência que reconhecesse os negros como fazendo parte
do País. Um silêncio de um século é então rompido em 1988. A população
negra brasileira – sua existência e persistência – foi, naquele momento,
reconhecida e reafirmada, em vez de ser subsumida na idéia de embran-
quecimento do País, tão propalada nas primeiras décadas do século XX
pela teoria da mestiçagem, que norteou o pensamento social brasileiro e as
políticas públicas ao longo de todo o século (Leite, 2008, p. 970).

Ao recuperar depoimentos do antropólogo e deputado federal constituinte


José Carlos Sabóia, Arruti argumenta que foi nesse contexto de poucas defi-
nições que se deu a redação do artigo 68 do Adct, incorporado à Carta Cons-
titucional por meio de incansável esforço, “no apagar das luzes, em uma for-
mulação ‘amputada’, de forma improvisada, sem uma proposta original clara.
Existia um acordo tácito em torno da idéia de que o ‘artigo 68’ deveria ter um
sentido de reparação dos prejuízos trazidos pelo processo de escravidão e por
uma abolição que não foi acompanhada de nenhuma forma de compensação,
como o acesso à terra, mas a partir daí tudo estava em discussão” (Arruti,
2008, p. 8). Por revelar detalhe etnográfico precioso pouco conhecido e nos
possibilitar a percepção de como se deram os momentos finais da redação e
edição do texto constitucional, segue a formulação original do artigo 68, con-
forme redigida pelo Deputado Carlos Alberto Caó:

Acrescente, onde couber, no Título X (Disposições Transitórias), o seguin-


te artigo: ‘Art. _ Fica declarada a propriedade definitiva das terras ocu-
padas pelas comunidades negra remanescentes de quilombos, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos. Ficam tombadas essas terras bem
como os documentos referentes à história dos quilombos no Brasil. (apud
Silva, 1997).

93
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Vê-se que a intenção primeira dos deputados federais constituintes en-


gajados com as reivindicações do movimento negro era, de forma sintética,
permitir uma reparação, ainda que tardia, ao cerceamento da liberdade e to-
das as formas de violência, físicas e psicológicas, sofridas pelos negros ances-
tralmente aprisionados e negociados como mercadoria ou objetos, como que
desprovidos de alma, corpo, sentimentos ou vontades. A motivação repara-
dora, por meio da imediata cessão das terras habitadas pelas comunidades
descendentes de quilombos, fez-se acompanhar de determinação que garante
o reconhecimento pelo Estado do valor da cultura negra como parte consti-
tuinte importante, porém renegada, da nação brasileira. Nota-se, ainda, que
houve um desmembramento na forma como o artigo foi inicialmente pro-
posto, fazendo com que o trecho referente ao “tombamento dos documentos
relativos à história dos quilombos” permanecesse no corpo principal da Car-
ta, enquanto a espinhosa parte relativa à regularização fundiária fosse “exi-
lada” nos chamados atos das disposições transitórias. É preciso ressaltar que
a determinação de regularização fundiária contida no artigo 68 encontra-se,
desde 2003, como vimos, regulamentada, por meio do Decreto nº. 4.887/03,
pormenorizado na Instrução Normativa nº. 57 do Incra, de 20 de outubro de
2009, regulamentando o procedimento para identificação, reconhecimento,
demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por rema-
nescentes das comunidades dos quilombos.
Ilka Boaventura Leite (2005), citando a jurista Elizabeth Guimarães Tei-
xeira Rocha (“O Decreto 4887 e a Regulamentação das Terras dos Remanes-
centes das Comunidades dos Quilombos”), traz à nossa consideração que:

“A expressão esculpida na letra fria da ratio – remanescentes das comu-


nidades dos quilombos – se tivesse sido tomada em sua literalidade frus-
traria o sentido intenso à uniformidade interpretativa e estaria a conjurar
danos totais às ideias e aos princípios da Carta Magna, mormente por se
saber que o mais trágico legado da escravatura consistiu, precisamente,
no asfixiamento da identidade étnica e na fragmentação da consciência
coletiva negra diligenciados pelo Estado”. [...] Conforme conclui a jurista,
é a partir desse avanço que os legisladores concebem o âmbito normativo
do artigo 68, transcendendo o próprio texto constitucional e alcançando
desde um decreto-lei a dimensão unitária dos valores que regem a Consti-
tuição, que concebe o País como pluriétnico e multicultural. É o Decreto

94
nº. 4.887 que dá o passo interpretativo importante de desessencializar as
práticas socioculturais negras em sua virtualidade política como marca de
distintividade (Leite, 2005, grifo no original).

A pesquisadora salienta, por último, que a citada jurista, ao refletir sobre


o Decreto nº. 4.887/03,

sustenta que houve um substantivo alargamento crítico que amplia o fim


contemplado pela norma, intocável em sua materialidade, e justifica, pe-
las razões expostas, a titulação coletiva pro indivisa e ad perpetuam sobre
aquelas terras como um meio de assegurar a perpetuidade da propriedade
às gerações futuras, bem como o patrimônio histórico-cultural brasileiro
(Leite, 2008, p. 970-971).

Vemos que, apesar das duas principais determinações em relação à cultura


negra terem sido mutiladas, ou “desmembradas” (como costumam dizer os
deputados que fizeram parte do processo constituinte), no formato final do
texto da Carta, a intenção motivadora dos legisladores não sofreu prejuízo, já
que tanto a regularização fundiária das populações descendentes de escravos,
como o destaque da riqueza simbólica da cultura negra, por meio do tom-
bamento de documentos e reminiscências históricas podem ser entendidos
dentro de uma preocupação maior de reparação e justiça, viés que perpassa
boa parte da Constituição de 1988.
Permiti-me uma breve digressão na contextualização do tema, por consi-
derar imprescindível um entendimento geral, ainda que rápido, do contexto
político que possibilitou que o Art. 68 da Adct e o § 5º do art. 216 fossem de-
vidamente inseridos na Carta Magna. Sem entendermos as motivações maio-
res da Assembléia Nacional Constituinte, que aprovou a chamada Constitui-
ção Cidadã, podemos incorrer no risco de desvirtuar, na prática da elaboração
das urgentes políticas públicas, a proposição constitucional maior de proteção
e acolhimento social de camadas que foram secularmente excluídas da vida
social brasileira.
Mas como tem, afinal, o Iphan equacionado a determinação constitucio-
nal de tombamento de todos os documentos e sítios detentores de reminis-
cências históricas dos antigos quilombos? Há que se registrar que o Instituto
foi – de certa forma – tomado de surpresa pela determinação constitucional
de tombamentos, digamos, compulsórios. Entendeu-se inicialmente que tal

95
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

determinação subvertia toda a prática de ações de salvaguarda patrimonial


levadas a efeito pela instituição desde os seus primórdios, no início dos anos
1930 – considerando Inspetoria de Monumentos Nacionais como a mola pro-
pulsora para a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
cional – Sphan, em janeiro de 1937. Apesar da aparente anomalia, tida por
muitos como uma ameaça aos ritos processuais de proteção patrimonial dis-
ciplinados pelo Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, compreendeu-
se posteriormente que o tombamento dos antigos quilombos obedecia à lógi-
ca distinta daquelas tão claramente expressas na Lei de 1937. Estudos iniciais
levaram, em 2000, ao tombamento do Quilombo do Ambrósio, localizado na
Serra da Canastra, Município de Ibiá, Minas Gerais, aprovado pelo Conselho
Consultivo do Patrimônio Cultural, em 09 de novembro de 2000. Saliente-se
que o referido tombamento foi o único a acontecer dentro dos novos marcos
constitucionais, já que o tombamento em 1986 da Serra da Barriga, no estado
de Alagoas, onde teria se localizado o Quilombo ou República dos Palmares,
teve mais o caráter simbólico de se homenagear a resistência negra, ou seja, foi
uma forma do Estado reconhecer a importância histórica do ocorrido.
Recentemente, o Iphan vem desenvolvendo esforços no sentido de avan-
çar na atribuição que lhe foi determinada pela Constituição, tendo inclusive
criado um Grupo de Trabalho no ano de 2011 com o objetivo de avançar
no refinamento conceitual e teórico exigido pelo tema. Uma das diretrizes
dos estudos tem sido o posicionamento fundador proposto pela Associação
Brasileira de Antropologia, no Grupo de Trabalho sobre Terra de Quilombo,
em 1994, em um dos primeiros exercícios da associação de antropólogos para
melhor definir o tema, estabelecendo alguns parâmetros para a atuação de
seus associados nesse campo de estudos e pesquisas então emergente:

Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo não se refere a resí-


duos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de compro-
vação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma po-
pulação estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram
constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas,
sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas
de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida carac-
terísticos e na consolidação de um território próprio. No que diz respeito
à territorialidade desses grupos, a ocupação da terra não é feita em termos
de lotes individuais, predominando seu uso comum. A utilização dessas

96
áreas obedece à sazonalização das atividades, sejam agrícolas, extrativistas
ou outras, caracterizando diferentes formas de uso e ocupação dos ele-
mentos essenciais ao ecossistema, que tomam por base laços de parentes-
co e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade
(O’Dwyer, 2002, p. 18-19).

Nunca é demais o esforço para enfatizarmos as diferenças basilares dos


quilombos, sejam eles denominados “antigos” ou “remanescentes das comu-
nidades de quilombos”, partilhando sempre de algumas características co-
muns, fundantes e estruturantes. É exatamente essa diversidade que faz com
que essas comunidades tenham inserção e organização sociais diferenciadas
do restante da comunidade nacional, em complexidade multifacetada a mere-
cer um esforço atento e amplo por parte do Estado, nem sempre preparado ou
instrumentalizado para lidar com as diferenças. Volto a citar Ilka Boaventura
Leite, que bem demarca este ponto:

O quilombo como um direito constitucional passou então a abranger um


conjunto muito amplo de práticas e experiências, atores e significados –
sempre carregando o sentido ou desdobrando-se dele, dos mais diversos
modos de reação às formas de dominação instituídas pelo processo colo-
nial escravista –, ampliando-se para um conjunto incalculável de situa-
ções dele decorrentes. Foi, sem dúvida, o prolongamento dessas reações
até os contextos pós-coloniais o que conferiu ao quilombo um significado
trans-histórico – o que o destituiu dos marcos cronológicos ou espaciais
rígidos –, propiciando a sua correlação ou relação de continuidade com os
direitos pleiteados durante o período recente de redemocratização do País.
(2008, p. 974-975).

Discorri neste artigo sobre a existência de direitos fundamentais consti-


tucionalmente estabelecidos há mais de duas décadas, os quais, por si só, de-
veriam garantir também o direito à vida, o direito à diversidade cultural, o
direito a territórios próprios, o direito ao reconhecimento de seu patrimônio
cultural e, mais importante, o direito à diferença por parte das comunidades
quilombolas. Houvessem sido, de fato, garantidos mecanismos sociais e polí-
ticos para a regularização fundiária das comunidades quilombolas, criando,
assim, condições que tivessem possibilitado um pertencimento territorial e
cultural próprios, poderíamos ter políticas públicas mais eficazes do que as
hoje existentes. Surpreendentemente, apesar de o governo federal ter criado

97
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

em 2005 uma política específica para as comunidades remanescentes de qui-


lombos, o Programa Brasil Quilombola2 – com objetivos ousados e relativa-
mente inovadores, em se tratando de populações tradicionalmente invisíveis
para o Estado –, chegamos em 2011, último ano da política, tal qual inicial-
mente planejada, sem que a maioria dos objetivos propostos tenha sido real-
mente alcançada.
Recentemente, no dia 28 de outubro de 2011, foi publicada no Diário Oficial
da União a Portaria Interministerial nº 419, de 26/10/2011, regulamentando a
atuação dos diversos órgãos do Governo Federal no licenciamento ambien-
tal, incluídos os impactos sofridos pelas populações tradicionais em função
dos grandes empreendimentos no âmbito do Programa de Aceleramento do
Crescimento – Pac. No art. 2º, inciso XI, define-se “terra quilombola” como
as “áreas ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, que
tenha sido reconhecida [sic] pelo Relatório Técnico de Identificação e Deli-
mitação – Rtid, devidamente publicado”. Quando consideramos que exis-
tem hoje aproximadamente 1.800 comunidades quilombolas cadastradas pela
Fundação Cultural Palmares, sendo que dessas menos de 10% têm o Rtid
publicado, percebemos que muito ainda há a se realizar e se corrigir em ter-
mos de ações que possam efetivamente contemplar essas populações – cada
vez mais em situação de risco.
Como bem coloca um dos principais pesquisadores das comunidades qui-
lombolas hoje no Brasil, Alfredo Wagner B. de Almeida, “no estado atual de
conhecimento [1996] se percebe os quilombos menos como conceito, sociolo-
gicamente construído, do que através de uma definição jurídico-formal histo-
ricamente cristalizada” (1996, p. 34). O papel do cientista social, em momento
tão crucial, é colaborar na apreensão e melhor interpretação dessa realidade
empírica, evitando que as políticas públicas do Estado possam ser compro-
metidas por qualquer forma de preconceito racial porventura ainda existente
em determinados círculos do poder público ou, até mesmo, por incapacida-

2 O Programa Brasil Quilombola, ou PBQ, reúne ações do Governo Federal sob a supervisão da Secre-
taria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, envolve metas e recursos de 23 Ministérios
e órgãos federais, tendo como principais objetivos, segundo o material de lançamento do Programa: a
garantia do acesso à terra; ações de saúde e educação; construção de moradias; eletrificação; recuperação
ambiental; incentivo ao desenvolvimento local; pleno atendimento das famílias quilombolas pelos pro-
gramas sociais, como o Bolsa Família, e medidas de preservação e promoção das manifestações culturais
quilombolas. Lamentavelmente, foi divulgada a não continuidade do Programa, a partir de 2012.

98
de técnica em compreender as necessidades específicas de parcelas nacionais
que, por serem diversas, não são atingidas pela grande maioria das ações go-
vernamentais insistentemente homogeneizantes.
O Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tem muito a con-
tribuir nesse processo. A efetivação do tombamento dos antigos quilombos
servirá de posicionamento altamente significativo do Estado brasileiro, des-
tacando a importância estratégica das populações negras na formação da so-
ciedade brasileira, por meio da recuperação, registro e divulgação de riquezas
culturais de matriz africana muitas vezes desconhecidas ou perversamente ig-
noradas pelo país. Como bem ressaltado pelo então diretor do Departamento
de Patrimônio Material e Fiscalização do Iphan (2006-2011), Dalmo Vieira
Filho, o tema do tombamento dos antigos quilombos “[trata] de assunto que a
própria Lei maior prioriza e sobre o qual deve o Iphan oportunizar aumento
de seu horizonte institucional e uma atualização de seus processos de reconhe-
cimento de valor – na dimensão que a questão, sem dúvida, encerra” (2008).
A importância do patrimônio afro-brasileiro, ressalte-se, ultrapassa os
limites nacionais, podendo trazer informações essenciais que contribuirão
para um melhor entendimento da diáspora negra, além de fazer justiça a um
período ainda pouco conhecido da história africana. Intelectuais africanos
em visita ao Brasil nos anos recentes têm ficado surpresos com o conhecimen-
to tradicional único que foi acumulado e preservado pelas comunidades ne-
gras brasileiras, nas aéreas, por exemplo, da linguística e da religião – saberes
muitas vezes já inexistentes nos próprios países africanos de origem.

Referências
Abreu, Kátia de. Disparate antropológico. O Globo, Rio de Janeiro, 08 out. 2011.
Almeida, Alfredo Wagner Berno. Quilombos: sematologia face a novas identidades. In: Pvn
(Org.). Frechal: terra de preto – quilombo reconhecido como reserva extrativista. São Luís:
Smddh/Ccn, 1996.
Arruti, José Maurício. Quilombos. In: Pinho, Osmundo; Sansone, Livio (Orgs.). Raça: no-
vas perspectivas antropológicas. Salvador: Aba; Edufba, 2008. p. 315-350.
Artimanha fundiária. O Globo, Rio de Janeiro, 12 set. 2011. Opinião, p. 6.
Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: Promulgada em
5 de Outubro de 1988. Atualizada com as emendas constitucionais promulgadas. Brasília:
Senado Federal, 2010.

99
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Cardoso de Oliveira, Roberto. Caminhos da Identidade: ensaios sobre etnicidade e multi-


culturalismo. Revista AntHropológicas, ano 9, v. 16, n. 2, p. 9-40, 2005.
Leite, Ilka Boaventura. Territórios Quilombolas – reconhecimento e titulação das terras. Bo-
letim Informativo Nuer, v. 2, n. 2, p. 97-102, 2005.
______. O projeto político quilombola: desafios, conquistas e impasses atuais. Estudos Femi-
nistas, Florianópolis, v. 16, n. 3, p. 965-977, set./dez. 2008.
O’Dwyer, Eliane Cantarino (Org.). Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de
Janeiro: Editora Fgv, 2002.
Pereira, Deborah Macedo D. de Brito. O estado pluriétnico. In: Lima, Antonio Carlos de
Souza; Barroso-Hoffmann, Maria. Além da tutela: bases para uma nova política indige-
nista III. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002. p. 23-33.
Pereira, João B. Borges. Estudos antropológicos das populações negras da Universidade de São
Paulo. São Paulo: Usp/Fflch, 1981. Mimeo.
Silva, Dimas S. da. Frechal: cronologia da vitória de uma comunidade remanescente de Qui-
lombo. Boletim Informativo Nuer, v. 1, n. 1, 1997.
Vieira Filho, Dalmo. Sobre o tombamento dos quilombos: atualizando a discussão. [S.l.]: De-
pam/Iphan, 2008. Mimeo.

100
Entre o material e o imaterial:
notas para pensar o patrimônio cultural
e a expressão de um Estado brasileiro
contraditório

Simone Toji

Resumo
Nos últimos tempos, cada vez mais a noção de patrimônio vem sendo acionada para
atender de modo integral a complexidade da vida cultural brasileira. Porém, den-
tro de órgãos de patrimônio como o Iphan, a tentativa de estruturar tal intento foi
consolidada por meio da criação de dois departamentos separados: o de Patrimô-
nio Material e o de Patrimônio Imaterial, separando procedimentos, instrumentos
e concepções do que devem ser as políticas de patrimônio. As fronteiras entre patri-
mônio material e patrimônio imaterial podem revelar a convivência de concepções,
práticas e instrumentos diversos dentro dos órgãos de patrimônio. A comunicação
propõe-se a pensar tal situação a partir da idéia de microfísica do poder, em Fou-
cault, juntamente com a concepção de hegemonia e contra-hegemonia, de Gramsci.
O atual Estado brasileiro, assim, pode ser visto enquanto contraditório ao expressar
em sua estrutura e na composição de seus funcionários as contradições existentes nas
lutas da própria sociedade.

Simone Toji possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e mestrado em
Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutoranda em Antropologia
Social pela Universidade de St Andrews. Técnica do IPHAN, lotada na Superintendência do IPHAN em
São Paulo.

101
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Imagem da página anterior


Igreja de São Nicolau (Magé/RJ). Vista. a.d., s.d.
Fonte: ACI/RJ. Série Inventário.

102
O presente texto procura refletir sobre a dicotomia de denominações esta-
belecida recentemente entre patrimônio material e patrimônio imaterial no
campo da cultura. Nesse sentido, estabelece seu foco de análise nos procedi-
mentos desenvolvidos na área técnico-administrativo do Instituto do Patri-
mônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), considerando as atividades e
vivências rotineiras no citado órgão enquanto elementos constituintes de um
processo sociopolítico em andamento.
Para tanto, o trabalho apoia-se na noção de hegemonia, de Gramsci, para
pensar o Estado como locus constituído de vários grupos sociais que disputam
legitimidade, sugerindo que a dualidade “material” e “imaterial” no campo
do patrimônio é uma forma de expressão dessas disputas.

Breve trajetória de constituição da dualidade


“material” e “imaterial” no campo do patrimônio
A criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan)
a partir do Decreto-lei nº. 25 de 1937 inaugurou a constituição do campo do
patrimônio por meio do investimento em objetos:

Do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional


Artigo 1º – Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o con-
junto dos bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja
de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da histó-
ria do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico. (grifos nossos).

Conforme aponta Chuva (2009), as décadas de 1930 e 1940 foram funda-


mentais para a construção e consolidação do chamado “patrimônio histórico
e artístico nacional”, por meio do saber técnico arquitetônico, desenvolvido
no Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan).
Somente na década de 1970 é que haverá uma substancial alteração no
campo do patrimônio, com a incorporação da experiência do Centro Na-
cional de Referências Culturais (Cnrc) às práticas do Serviço de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Sphan), criando a Fundação Pró-Memória. A
partir daí, uma noção mais abrangente de patrimônio cultural, baseada num
conceito de cultura de inspiração antropológica, começou a ser gestada.
Tal efervescência culminou com a edição, na própria Constituição Federal
de 1988, dos termos “material” e “imaterial” nos artigos 215 e 216, referentes
ao patrimônio cultural brasileiro:

103
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material


e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de re-
ferência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira (...) (grifos nossos).

O campo do patrimônio passou, então, a trabalhar com a ideia de “patri-


mônio cultural brasileiro”, que, por sua vez, seria constituído das dimensões
“material” e “imaterial” em seu interior.
A criação do Programa Nacional de Patrimônio Imaterial e do instrumento
de Registro, através do Decreto nº. 3551 de 2000, veio a consolidar a dualidade
dos caracteres “material” e “imaterial”, levando à institucionalização dos De-
partamentos de Patrimônio Material (Depam) e de Patrimônio Imaterial (Dpi)
dentro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

A diversidade de práticas no IPHAN


Conforme apontado anteriormente, o marco legal da Constituição de 1988
e a formação do campo do patrimônio imaterial enquanto política pública
consolidaram a dicotomia “material” e “imaterial” constituinte do chamado
“patrimônio cultural brasileiro”. Compelido a reconhecer as expressões cul-
turais de “grupos formadores da sociedade brasileira” ainda não contempla-
dos, como grupos de origem afro-brasileira, indígena e/ou imigrante, o Esta-
do brasileiro ganhou novas atribuições, passando a ser responsável também
pelo atendimento e respeito à diversidade cultural.
No caso do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan), atualmente abrigado dentro do Ministério da Cultura, tal operação
exigiu a convivência entre perspectivas diferentes de compreender o que é pa-
trimônio e de exercer direções diferentes de acautelamento dentro da mesma
organização estatal.
A fusão entre o antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-
nal (Sphan) e o Centro Nacional de Referência Cultural (Cnrc), por meio
da Fundação Pró-Memória, no final dos anos de 1970, não resultou numa
redefinição generalizada da noção de patrimônio e de sua prática coerente e
coesa dentro de uma mesma política pública de patrimônio. Pelo contrário, as
práticas de patrimônio foram justapostas e passaram a se polarizar e a dividir
os posicionamentos dos técnicos dentro do Iphan. De uma maneira muito
simplista, mas de certo valor tipológico, é possível tracejar alguns pares de
oposição que expressam essas diferenças.

104
Um conjunto de práticas de patrimônio tem como foco principal de atuação
os objetos materiais, isto é, monumentos, edifícios e centros urbanos, enquanto
outro privilegia a noção de processo, ao atuar sobre as formas de transmissão
do conhecimento humano e sua realização no âmbito da expressão cultural, ao
tornar possível o reconhecimento patrimonial de saberes, modos de fazer e viver.
Outra polarização existente se dá a respeito dos conceitos que viabilizam
o reconhecimento patrimonial. A ideia de valor cultural, que nos primórdios
da criação do órgão se remetia às ideias do “belo”, do “monumental”, do “au-
têntico” e/ou do “excepcional”, atualmente se redefine por meio das ideias do
“documento” e do “testemunho”. O valor cultural oscila entre ser um senti-
do acionado somente pelo técnico, o profissional especialista da instituição
de patrimônio, até o sentido mais coletivo de compartilhamento mais amplo
do significado. Por outro lado, há o conceito de referência cultural, no qual
os sentidos produzidos pelos atores sociais orientam as ações de patrimônio,
pensando-se a atuação em termos da necessária interação da sociedade civil
com o Estado. Derivada desta oposição, há a prática de considerar o técnico
como principal acionador do processo de seleção, identificação e legitimação
do discurso e das ações de patrimônio, contraposta à posição de que a seleção
e identificação de bens culturais passíveis de serem patrimonializados não
prescindem do técnico, mas devem necessariamente partir da solicitação ou
da anuência dos grupos sociais envolvidos.
Por último, existe a oposição no modo de encarar como a sociedade se
apropria das propostas de patrimonialização, o órgão de preservação pode
considerar a realização da fiscalização permanente do bem com a finalidade
de manter uma dada concepção, ou pode considerar sua ação como acom-
panhamento das mudanças empreendidas sobre o bem com a finalidade de
documentar as transformações.
Os profissionais especialistas do Iphan não se conformam completamente
a um ou outro modelo apresentado. Na maioria das vezes, suas posições os-
cilam entre um polo ou outro conforme o caso e a conjuntura. A tipologia de
oposições apresentada nos ajuda a situar as discussões do campo do patrimô-
nio a partir de alguns legados institucionais, herdados pelo Iphan, e com os
quais os técnicos da instituição se deparam incessantemente.
Porém, a polarização mais expressiva no interior da instituição ocorreu
justamente, quando no ano de 2000 foi criado o Programa Nacional de Patri-
mônio Imaterial, momento em que o Iphan se divide internamente entre De-

105
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

partamento de Patrimônio Material e Departamento de Patrimônio Imate-


rial, cada qual com instrumentos e procedimentos próprios. O Departamento
de Patrimônio Material atuando por meio do instrumento de Tombamento
e o Departamento de Patrimônio Imaterial, por meio do instrumento do Re-
gistro. No Iphan, a composição divergente das formas de patrimonialização,
em seus vários níveis, levou à institucionalização de algumas concepções em
disputa entre as diferentes perspectivas.
Resumidamente, foram apontadas algumas expressões de divergência
dentro do Iphan para apontar que no interior de certos órgãos do Estado
podem conviver perspectivas diferentes de concepção e ação, seja por meio da
divisão ideológica de seu corpo de funcionários, seja pela própria institucio-
nalização das diferenças.
Conforme a trama múltipla de posições de poder encontradas dentro do
Iphan, a noção de hegemonia, a partir de Gramsci (1978), pode nos ajudar a
sistematizar os movimentos divergentes já apresentados.
O aproveitamento das noções de hegemonia e não hegemonia sobre a atual
estrutura fragmentada do poder estatal oferece apoio para se entender que
algumas organizações do Estado brasileiro podem ser ocupadas ao mesmo
tempo por diferentes grupos sociais e possuir regimes de produção da legiti-
midade, por vezes, diferentes. Assim, dentro de um mesmo órgão público, po-
demos encontrar grupos hegemônicos e grupos não hegemônicos, conforme
as práticas e ações realizadas por seus funcionários e conforme a conjuntura
do governo em exercício e da ação da sociedade civil. De modo que, como
acompanhamos no caso do Iphan, é possível existir a própria institucionali-
zação de diferentes posições.

O Estado contraditório brasileiro


O atual Estado brasileiro, assim, pode ser visto enquanto contraditório, no
sentido de expressar em sua estrutura e na composição de seus funcionários
as contradições existentes nas lutas da própria sociedade. A hipótese que aqui
se levanta é que o processo de democratização no Brasil provocou a intensi-
ficação da institucionalização de contradições no interior das estruturas do
Estado. Em sucessivos governos, foram criados ações, programas, órgãos, de-
partamentos e cargos para dar conta da crescente demanda pelo atendimento
de direitos de agentes e grupos da sociedade brasileira ainda não contempla-

106
dos, o que provocou alterações na estrutura do Estado brasileiro, nem sempre
de modo coerente e coeso.
Como exemplo de relação contraditória entre instâncias do Estado, pode-
mos citar também os atuais desentendimentos públicos entre órgãos do poder
executivo no Brasil. A demarcação das terras indígenas Raposa Terra do Sol, em
Roraima, provocou agudos embates entre a Fundação Nacional do Índio (Fu-
nai) e o Ministério da Agricultura. Ações do Ministério do Meio-Ambiente têm
suscitado reclamações do Departamento Nacional de Infraestrutura de Trans-
porte (Dnit) sobre a construção de vias rodoviárias no norte do país. Voltando
ao Iphan, o reconhecimento do Queijo de Minas como patrimônio cultural
brasileiro é desacreditado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvi-
sa), que não autoriza a comercialização de queijo a partir de leite não-pasteuri-
zado, característica original do famoso modo artesanal de fazer queijo no país.

Considerações finais
Conforme sugerido pelas notas acima, a dicotomia das denominações “ma-
terial” e “imaterial” dentro do campo do patrimônio cultural está vinculada
ao processo de democratização do país, momento em que a constituição de
políticas públicas de atendimento à diversidade cultural se consolidam. Nesse
movimento, as estruturas do Estado brasileiro ainda não conseguiram se re-
formular de modo coerente e coeso, fazendo coexistir concepções e práticas,
por vezes, até divergentes dentro dos próprios órgãos públicos. Tal situação foi
denominada no texto como Estado contraditório.
Se o chamado “patrimônio imaterial” foi estabelecido dentro do movi-
mento para ampliar a possibilidade de atuação dos órgãos de patrimônio e
atender os direitos dos “diferentes grupos formadores da sociedade brasilei-
ra”, dentro de um Estado que tenta realizar as diretrizes democráticas postu-
ladas na Constituição de 1988, é preciso começar a integrar os instrumentos
e práticas herdados rumo a uma noção de patrimônio cultural abrangente e
não dicotômica.

Referências
Chuva, Márcia. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patri-
mônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora Ufrj, 2009.
Gramsci, Antonio. Obras escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
______. Os intelectuais e a organização da cultura. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

107
IV Oficina de Pesquisa: Patrimônio e Fronteiras

Impresso no Rio de Janeiro, em 2016,


por Rotaplan Gráfica e Editora Ltda.,
para a Coordenação-Geral de Documentação e Pesquisa,
Departamento de Articulação e Fomento,
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

108

Você também pode gostar