Rogeria Alves Freire
Rogeria Alves Freire
Rogeria Alves Freire
São Paulo
2008
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA
São Paulo
2008
FOLHA DE APROVAÇÃO
Aprovado em:___________________________________________________________
Banca Examinadora
Profa. Dra.______________________________________________________________
Instituição:______________________Assinatura_______________________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição:______________________Assinatura______________________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição:______________________Assinatura______________________________
A minha mãe, Joaquina Alves Freire, pelo apoio e
incentivo que sempre me deu. Boa parte da motivação
para realizar este trabalho deve-se ao desejo de produzir
em você o orgulho de ter-me como filha, na mesma
proporção que a senhora me causa um imenso orgulho.
Ao Tersio de Oliveira Barreto, meu companheiro, por
estar sempre ao meu lado e, por sua compreensão e
carinho ao longo do período deste trabalho.
AGRADECIMENTOS
À Professora Flavia Maria Corradin, pela paciência e orientação atenciosa, marcada por
seriedade intelectual e alegre amizade na indicação dos caminhos para o desenvolvimento
deste trabalho.
Ao Professor Dr. Francisco Maciel Silveira, de cujas aulas na pós-graduação surgiram muitas
das idéias para este trabalho.
À Secretaria do Estado da Educação, pela bolsa do Programa Bolsa Mestrado concedida
durante dois anos e meio.
Ao Dirigente Regional de Ensino, da Diretoria de Ensino – Região de Caieiras, Professor
Celso de Jesus Nicoleti, pelo apoio e incentivo na realização desta pesquisa.
Um agradecimento especial à minha coordenadora, Claudia Bonavita, responsável pela
Oficina Pedagógica, sem cujo apoio e compreensão, a produção desta dissertação não seria
possível.
À equipe da Oficina Pedagógica pelo incentivo e compreensão.
A Eliane Junqueira, da Biblioteca da Casa de Portugal, pelas referências bibliográficas, pelo
incentivo e pela prontidão em auxiliar-me.
À Teresa Diniz, da Sociedade Portuguesa de Autores, pelo envio do material sobre a biografia
de Sttau Monteiro.
À Maria de Lourdes Rocha do Serviço de Documentação da Universidade dos Açores pelo
envio de material a respeito de Sttau Monteiro.
À Sofia Patrão do Museu Nacional do Teatro – Instituto Português de Museus – pelo envio de
vários programas de peças de Sttau Monteiro.
À Virgínia Maria Antunes que desde o ingresso no mestrado tem sido prestativa em auxiliar-
me nos estudos.
À Maura Böttcher Curvello, pela leitura do texto, pelas referências bibliográficas e
apontamentos que tornaram o texto mais coerente.
Ao Professor Silvio Marcos Souza pelas referências históricas, os vídeos e a disposição em
auxiliar-me.
À Marisa de Assis, pela amizade e carinho de sempre.
Meu reconhecimento aos amigos pelos comentários a partir da leitura parcial ou integral da
dissertação, sobretudo, pelo incentivo contínuo que serviu como motivação para que este
trabalho pudesse ser efetivado.
Aos meus irmãos e irmãs que batalharam muito para que eu estudasse: meu eterno
agradecimento.
À Natacha Freire Rosa, minha afilhada, por todos os auxílios na formatação do texto.
RESUMO
publicado em 1942, foi estilizado por Sttau Monteiro. Para tanto, examina alguns mecanismos
linguagem empreendidos por Mikhail Bakhtin, e das contribuições teóricas de Julia Kristeva,
Fonseca, published in 1942, was stylished by Sttau Monteiro. Thus, we describe some
intertextual mechanisms constant in the homonymous play adapted for the theater in 1964.
To start, we will discuss the concepto if intertextuality, from the Mikhail Bakhtin
studies about language, and the Julia Kristeva’s theoric contributions, besides other
Researcher, that have enlarged the bakhtian directions on dialogism. Within those principles
conception of the playwright intend to confirm that Sttau stylished Fonseca’s work.
I - Preliminares..................................................................................................................... 8
II – Intertextualidade............................................................................................................ 12
III.1 Translocução..................................................................................................... 27
III.2 Acréscimo de situação....................................................................................... 36
III.3 Supressão de situação........................................................................................ 64
III.3.1 Supressão de personagem............................................................................... 65
III.4 Supressão/acréscimo de situação...................................................................... 66
III.5 Acréscimo de personagem................................................................................ 70
III.5.1 Acréscimo de função e característica de personagem........................................ 71
III.6 Supressão/acréscimo de característica de personagem..................................... 72
III.7 Inversão............................................................................................................. 77
III.8 Paráfrase resumitiva.......................................................................................... 77
III.8.1 Paráfrase......................................................................................................... 83
V – Conclusão...................................................................................................................... 112
Bibliografia........................................................................................................................... 113
8
I – PRELIMINARES
Esta dissertação tem por objetivo o estudo do diálogo intertextual travado entre a peça
publicado em 1942.
Cabe iniciarmos pela apresentação de aspectos da vida e do estilo desses autores que
objeto artístico.
finaliza com o volume de narrativas Bandeira Preta (1956). Sua produção literária é marcada
pela diversidade de gêneros literários já que o autor se dedicou ao conto, à novela, à poesia,
ao teatro e ao romance.
Luís Infante de Lacerda Sttau Monteiro nasceu em 1926 em Lisboa e faleceu em 1993.
Destaca-se como um dos grandes autores do teatro português dos anos 60. Em suas peças, é
notória sua oposição ao fascismo salazarista e à guerra colonial, o que motivou sua prisão em
1961. Entretanto nem mesmo essa experiência impediu que o seu trabalho dramatúrgico
continuasse a propor a liberdade por meio de críticas severas à opressão política e social.
9
Nos anos 60, a dramaturgia em Portugal objetivava constituir uma postura crítico-
passado/presente.
Nesse contexto artístico, O Barão surge como um dos mais profundos julgamentos da
situação de Portugal nos anos 60. Monteiro se vale da dramaturgia para questionar e
denunciar um sistema político-social descomprometido com o povo, com a arte e com o país.
Os signos teatrais são utilizados pelo dramaturgo como artifícios encarregados de comunicar
inicialmente a idéia de adaptar O Barão tinha como destino o cinema. O dramaturgo, após a
leitura do conto, imaginou-o no palco: “[a obra era] tão evidentemente teatral que resolvi
imediatamente meter os ombros a tarefa de encenar, primeiro em papel e, depois no palco. [...]
a vida é muito complicada e nem sempre é possível largar tudo para oferecer uma rosa”
(MONTEIRO, 1968).
conceituarmos O Barão, de Branquinho da Fonseca, como conto e não novela, embora muitos
críticos não façam essa opção. Optamos por considerar O Barão, de Branquinho da Fonseca,
um conto já que a obra apresenta as características dessa fôrma em prosa, como sugere a
não ostenta um interesse particular, o conto decorre num restrito lapso de tempo,
horas ou dias. [...] No tocante à linguagem o conto prefere a concisão à prolixidade,
a concentração de efeitos à dispersão. [...] No conto, especialmente o chamado
tradicional, o epílogo guarda um enigma. A narrativa articula-se rumo de um
desfecho inesperado, mas coerente com o todo da fabulação (MOISÉS, 2004, p.88-
89).
girando em torno do objetivo do Barão de entregar a rosa à Bela Adormecida. Com base nesse
pressuposto, a obra não é uma novela, uma vez que não há pluralidade dramática, o texto não
Cumpre ressaltar que há divergência da crítica acerca dessa classificação. Para Moisés,
O Barão é “um verdadeiro conto, apesar da tendência [da crítica] para classificá-lo de novela”
(MOISÉS, 1981, p.230). António Manuel Ferreira, por seu turno, em Arte maior: os contos de
Branquinho da Fonseca (2004), retira do prefácio da sexta edição da editora Portugália a base
Ferreira nomeia, ainda, os autores que defendem a idéia de O Barão ser um conto,
Massaud Moisés, João Décio, Pierre Houcarde, Óscar Lopes, Wolfgang Kaiser, Eunice
A partir desses pressupostos nosso “diálogo entre os Barões” tem como eixo central a
análise de como o dramaturgo lança mão de um gênero literário diferente e o adapta para o
teatro. Em vista disso, a dissertação tem por meta: a) a análise tanto do conto O Barão, de
11
demonstrar quando e por que Sttau manteve-se fiel ao paradigma, e em quando e por que o
transcende.
desenvolvidos por Mikhail Bakhtin, Julia Kristeva, Affonso Romano Sant’Anna, Flavia Maria
citação.
Monteiro organizou e adaptou o conto de Fonseca para enfocar sua realidade coetânea de
maneira crítica.
II - INTERTEXTUALIDADE
Mikhail Bakhtin. Em 1929, ele publicou um estudo pioneiro intitulado Marxismo e filosofia
da linguagem. Também foi responsável, em grande parte, pelo que é até hoje a mais coerente
crítica do formalismo russo, O método formal na erudição literária (1928). Bakhtin reformula
sua teoria literária. Dessa maneira, o crítico antecipa as atuais explorações realizadas no
argumenta que, as linguagens, quaisquer que elas sejam - cotidiana, prática, científica,
artística – quando cotejadas - revelam diferentes pontos de vista sobre o mundo, a essa
centrada no sujeito do discurso, Bakhtin (2004) destaca que o ato verbal revela um processo
de intercâmbio lingüístico, no qual são produzidos os enunciados. O autor declara que todo
discurso, por mais simples que seja, encontra-se inevitavelmente permeado de vários
O termo dialogismo surge no contexto do Círculo de Bakhtin por volta de 1928 e 1929
determinado campo histórico e social. Esse inesgotável diálogo, promovido por meio dos
13
signos, se origina das pulsões e tensões culturais, ideológicas, históricas provocadas pelo
atos históricos. O texto revela-se, dessa forma, espaço das relações concretas entre os homens
na sociedade e na história.
Todas as palavras e formas que povoam a linguagem são vozes sociais e históricas,
que lhe dão determinadas significações concretas e que se organizam no romance
em um sistema estilístico harmonioso, expressando a posição sócio-ideológico
diferenciada do autor no seio dos diferentes discursos da sua época. (BAKHTIN,
2002, p.106).
transforma e ganha diferentes significados conforme o contexto em que ela surge, uma vez
que cada
palavra evoca um contexto ou contextos nos quais ela viveu sua vida socialmente
tensa; todas as palavras e formas são povoadas de intenções. Nelas são inevitáveis as
harmônicas contextuais (de gêneros, de orientações, de indivíduos)” (BAKHTIN,
2002, p.100).
Cada época e cada grupo social têm seu modo de discurso que funciona como um espelho que
reflete e refrata o cotidiano. Pois, “na realidade, toda a palavra comporta duas faces. Ela é
determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para
(BAKHTIN, 2004, 113). O teórico russo complementa que toda palavra serve de expressão de
texto pode ser visto como o “diálogo de várias escrituras” (KRISTEVA, 2005, p.66). O texto
que era anteriormente compreendido como uma relação individual ou intersubjetiva agora
adquire caráter coletivo, só compreendido na sua plenitude se as relações que ele estabelece
com outras vozes textuais, sociais e literárias for entendida. A intertextualidade é, portanto,
uma confluência de vozes que dialogam entre si; assim, “todo texto se constrói como mosaico
como dupla” (KRISTEVA, 2005, p. 68). E se a palavra é dupla, ela passa então a pertencer
O estatuto da palavra como unidade minimal do texto revela-se como mediador que
liga o modelo estrutural ao ambiente cultural (histórico), assim como regulador da
mutação da diacronia em sincronia (em estrutura literária). Pela própria noção de
estatuto, a palavra é espacializada; funciona em três dimensões (sujeito-destinatário-
contexto) como um conjunto de elementos sêmicos em diálogo ou como um
conjunto de elementos ambivalentes (KRISTEVA, 2005, p. 68).
Por isso, a intertextualidade não se restringe apenas ao diálogo entre textos, visto que um
texto pode representar a história, a ideologia e um tempo. Kristeva ressalta que o que foi
história. Essa possibilidade é palpável na literatura que se anuncia através dos escritos de uma
nova geração, onde o texto se constrói enquanto teatro e enquanto leitura” (KRISTEVA,
15
2005, p.92). Assim, um texto representa também o reflexo do tempo, do contexto histórico e
social carregado de valores, crenças e ideologias. Portanto, Kristeva adverte que “O termo
(KRISTEVA, 2005, p.71). Em outros termos, quando um autor produz um texto ele funde o
A autora acrescenta que, para o sujeito da escritura essas implicações são uma única e
concluir que a linguagem implícita no paradigma e no intertexto estabelece uma relação que
pode adquirir uma duplicidade de sentido, ao mesmo tempo em que preserva ou não a visão
textos é muito estreita, o intertexto será apenas a imitação ou paráfrase. Se, pelo contrário, o
constituintes deste discurso já não são palavras, mas sim coisas já ditas” (JENNY, 1979, p.
21-22), ou seja, a palavra intertextual adquire uma gama de significados, reunidos ao longo da
desse estudo, uma vez que as marcas de outros autores estão presentes em sua narrativa. Nelly
Fonseca. A presença de Dostoiévski, por exemplo, pode ser apreendida na estrutura narrativa
16
tradicional.
questionamento existencial.
Fonseca incorpora Nietzsche à sua obra de ‘forma epidérmica’ como afirma Coelho,
ou seja, “de fora para dentro” (COELHO, 1976, p.145). Fonseca se recusava a aderir ao
inibida por algum agente interno ou externo. Esta atmosfera do inatingível e do irrealizável
advém desta vontade de fazer que está bloqueada mas não se impõe com rudeza e paixão.
Coelho afirma que, em Branquinho, Freud é uma presença mesclada a muitas outras
trechos de uma entrevista de Branquinho da Fonseca realizada em 1954, quando ele propõe
Por isso, ao representar na obra problemas que dizem respeito aos artistas portugueses ou a
um período, Fonseca não pode deixar de incluir-se, como aquele que escreveu um texto com
bakhtiniano, pode-se sentenciar que palavra e discurso são indissociáveis, pois, ambos não
podem ser avaliados como elementos à margem da história. Se tais enunciados – discurso e
o signo ideológico por excelência; ela registra as menores variações das relações
sociais, mas isso não vale somente para os sistemas ideológicos constituídos, já que
a “ideologia do cotidiano”, que se exprime na vida corrente, é o cadinho onde se
formam e se renovam as ideologias constituídas (BAKHTIN, 2004, p.16).
Deste modo, a palavra, por ser um produto ideológico vivo, tornando-se signo ideológico ao
Essa idéia bakhtiniana pode ser identificada no intertexto que pretende focalizar a
intervalo entre as duas. E para esta ênfase, o dramaturgo resgata os diálogos estabelecidos por
assimilação de vários textos, operados pelo conto de Branquinho, como texto centralizador.
para a emissão de respostas. Nesse sentido, as vozes sociais estão todas imbricadas num
diálogo contínuo. Na adaptação de Sttau, há palavras que não são meramente termos isolados,
mas mensagens codificadas. Desse modo, “as relações dialógicas podem penetrar no âmago
18
duas vozes” (BAKHTIN, 1997, p.184). O que irá diferenciar o diálogo do intertexto com o
paradigma é o estilo e a fôrma usada pelos autores, uma vez que a cosmovisão dos autores é a
Tal pressuposto, observa Diana Luz Pessoa de Barros (2003, p.1), admite que
determinado enunciado seja formado pelos ecos, restos ou reverberações de outros enunciados
dialoga com outros ele pode refutar, confirmar, complementar ou negar, mas, isto não lhe
confere independência destes outros enunciados. E apesar de todo enunciado ser um processo
contínuo, vale ressaltar que não são apenas as forças ideológicas que se manifestam nele, mas
também os fatores que conduzem o ser e sua realidade, transformando, em última instância, a
e na peça homônima possui não apenas o significado relativo ao conto de fadas produzido
dentro de um determinado contexto. Ela adquire o que Jenny chama de “super palavra”, ou
exemplo que pode ser utilizado é de Carl Jung que relaciona a figura da bela adormecida ao
conceito de inconsciente coletivo. Na visão junguiana este conto de fada, como outros, tem
origem nas camadas profundas do inconsciente. Um leitor que teve acesso aos textos
junguianos fará uma leitura diferente daquele leitor que possui informações que se restringem
ao conto.
De acordo com Flavia Maria Corradin, em Antônio José da Silva, O Judeu: textos
versus (con) textos (1998), antes de compreender a paródia e outras categorias intertextuais é
necessário buscar como suporte uma definição para a própria literatura. Para tanto, a autora se
19
primordial do texto artístico, pois é por seu prisma que se obtém a mimetização da realidade”
determinada realidade e de outro a refrata” (CORRADIN, 1998, p.26). Portanto, essa figura é
ciência cabe o “difícil papel de reproduzir a realidade tal qual ela se apresenta” (CORRADIN,
1998, p. 25).
intertextualidade que ela caracteriza como “o domínio em que se processa a mimese – livresca
– e em segundo grau – da realidade literária”. Nesta leitura, ela reforça que “a atitude desses
autores que se entregam ao diálogo intertextual será sempre crítica” (CORRADIN, 1998, p.
28-29). Corradin argumenta que a partir do posicionamento crítico dos autores emergem as
Ao utilizar o recurso da paráfrase, o autor está produzindo apenas uma repetição, pois,
ele se apropria do paradigma e constrói uma obra que apresenta apenas reflexos do modelo.
Desta forma, a visão de mundo do autor é conservada e não se promove nenhuma ruptura ou
inovação, caminha-se em uma linha reta em processo contínuo. A autora enfatiza que, na
paráfrase, não existe a possibilidade de confronto porque as bases ideológicas e sociais não se
idêntico e o semelhante, pouco faz evoluir a linguagem. Ela se oculta atrás de algo já
O que conduz um autor a tal procedimento pode não ser apenas o desejo de
Neste caso, a repetição se torna uma forma de protesto e denúncia de um meio social que não
Sob este ponto de vista “a paráfrase é um discurso sem voz, pois quem está falando
está falando o que o outro já disse. É uma máscara que se identifica totalmente com a voz que
fala atrás de si”. (SANT’ANNA, 1998, p.29). O autor menciona que a paráfrase é um discurso
em repouso, mas o que se nota é que o intertexto é um organismo vivo, ativo, que realça
aspectos inexplorados no paradigma. Sendo assim, o intertexto se apresenta como uma forma
desviar da proposta inicial ou das visões e metas subjacentes neste paradigma. Dessa forma, o
essências da obra, pois, “após penetrar na palavra do outro e nela se instalar, a idéia do autor
não entra em choque com a idéia do outro, mas a acompanha no sentido que esta assume,
Corradin, no entanto, acrescenta que a estilização altera o modelo reformulando seus valores
de modo a trazer à tona todas as possibilidades aí contidas, porque “num primeiro momento,
se desvia do modelo para, em última instância, retornar a ele” (CORRADIN, 1998, p.57).
Sendo assim, o autor ao estilizar capta a essência do texto, observa o que não foi explicitado e
do paradigma. Para o teórico, esse nível intertextual se encontra entre a paráfrase e a paródia,
na medida em que a primeira porque promove desvio mínimo; a segunda, um desvio total.
21
essência do modelo.
texto de Fonseca de caráter inédito, em busca de promover sua estilização e, por outro, não
intertexto. Em última instância, até mesmo para uma compreensão parcial, o que não
representa uma dependência absoluta, mais uma necessidade básica do leitor mais atento,
Analisar um texto que dialoga com outro, sem elencar e compreender os mecanismos
sugiram o diálogo com o paradigma. Na peça de Luís de Sttau Monteiro, o título é o primeiro
esse dado ainda não é suficiente para determinar a natureza intertextual da obra. Faz-se
intencionalidade do autor.
(1974). A autora desenvolve uma proposta na qual acrescenta aos mecanismos intertextuais
22
translocução. Alguns desses mecanismos nos serão úteis para o estudo que pretendemos
realizar.
II.2 Citação
A citação raramente se configura como mera compilação, sem nenhum objetivo estilístico
mais elaborado. Em geral, o autor decide utilizá-la com o objetivo de indicar possibilidades de
interpretação. Por conseguinte, é uma maneira de o autor demarcar o caminho a ser percorrido
pelo leitor para que este chegue à alma do texto. Conforme José Luiz Fiorin, a citação “pode
confirmar ou alterar o sentido do texto citado” (FIORIN, 2003, p.30). Sendo assim, a citação
vínculos entre as duas obras. Em contrapartida, o elemento citado pode aparecer com o intuito
Ressalta Fiorin que “a citação ocorre quando um discurso repete ‘idéias’, isto é,
percursos temáticos e/ou figurativos de outros” (FIORIN, 2003, p.30). Existe claramente em
toda citação uma intencionalidade, ela nunca é casual, pois a sua presença ainda que possua
uma oscilação de sentido evoca uma posição de intercâmbios múltiplos com o paradigma. Ela
está sempre ligada a uma verdade discursiva que se relaciona com o modelo. Uma presença
23
evocativa que não é mera repetição, mas uma produtora incontestável de significados e
explorados neste, serão aprofundados naqueles. Pelo estudo dos mecanismos intertextuais
utilizados por Monteiro, é possível averiguar as articulações feitas. Pelo diálogo intertextual,
provoca-se o leitor a captar um sentido mais complexo do que o primeiro plano narrativo
parece denotar.
exemplo, pode funcionar como sugestão para a compreensão das obras. José Maria Rodrigues
narrativa de Fialho, como a citação do Hino da Marselhesa, apesar de o fazer por motivação
diferente.
O conto de fadas A Bela Adormecida é outro tipo de citação que ocorre no conto e na
peça. No primeiro, ela não aparece, mas é mencionada duas vezes: a primeira pelo Barão, que
se recusa a voltar a mencioná-la, e a segunda, pelo Inspetor que associa à expressão Bela
Adormecida a beleza de um sonho. O silêncio em torno desse nome sugere seu caráter
misterioso e relevante.
O objetivo do Barão fonsequiano é entregar a essa mulher uma rosa. Para tanto, ele
deixa a flor em sua janela. Essa entrega é adiada três vezes, sob diferentes pretextos. Porém o
leitor fica com a impressão de que a missão foi cumprida com sucesso.
freqüentes, e o leitor/espectador é informado pelo Barão de que ela se recusa a receber a rosa
outro, mas quando lhe diz que a rosa ficou por dar, ela desaparece.
24
Bruno Bettelheim, em A psicanálise dos contos de fadas (1980), sugere que nA Bela
imóvel e propõe que se deve aprender a enfrentar situações e experiências estranhas para que
A menção à Bela Adormecida parece então sugerir que se deve extinguir a apatia para que se
INTERTEXTO
Para dialogar com o conto O Barão, de Branquinho da Fonseca, Sttau Monteiro valeu-
Corradin, retomaremos, por isso, seus conceitos para verificar em que medida o intertexto
Cumpre iniciar a análise pelo estudo das rubricas que, em Monteiro, adquire caráter
Patrice Pavis em Dicionário de teatro (2005) considera rubrica todo texto não
isto é, nome das personagens, indicações das entradas e saídas, descrição dos lugares,
extrapolam essa regra e fazem das rubricas um espaço de questionamento. Essa postura
conjunto, porque as notas servem de apoio para os diálogos. A rubrica constitui, deste modo,
“um intermediário entre o texto e a cena, entre a dramaturgia e o imaginário social de uma
época, seu código das relações humanas e das ações possíveis” (PAVIS, 2005, p.207).
Contudo, Pavis não considera as didascálias como um texto. Somente Roman Ingarden em A
obra de arte literária (1965), vai dar-lhes esse valor, embora lhes atribua caráter secundário.
Para este último crítico, o drama escrito é composto pelas indicações cênicas, o texto
indicações das didascálias. Dar relevância às didascálias é uma forma de o autor atribuir a seu
mesmo estatuto que a fala das personagens, o que torna inadequado considerá-las secundárias,
rubrica que aponta a direção do movimento das personagens no palco por meio de um
desenho do autor. Se, para a maior parte dos teatrólogos, uma indicação como esta – a direção
para onde segue uma personagem – é secundária, em Monteiro ela será fundamental, porque
para o metafísico.
O conteúdo das didascálias deve ser comunicado integralmente, ou por atos e palavras
dos atores, ou pelos elementos do espaço cênico. Essas indicações correspondem, portanto, a
apresenta uma definição que condiz com o método de composição de Sttau, conforme
quando o autor não fornece nenhuma indicação é porque deseja se abster de dar
outras pistas para a interpretação além daquelas incluídas no texto das personagens.
Ele mantém a abertura, até mesmo a ambigüidade, de seu texto, e deixa o campo
livre ao leitor, não impondo de antemão qualquer interpretação que sirva de modelo
a representação. Com isso também mostra a importância que atribui às palavras
pronunciadas pelos atores, mais que a qualquer quadro figurativo ou a qualquer
sistema de empenho. Inversamente, certos autores atribuem um lugar considerável
às indicações cênicas, como se definissem antecipadamente a forma da
representação ou como se não pudessem imaginar o texto das personagens
independentemente do contexto no qual este seria produzido (RYNGAERT, 1996, p.
44-45).
27
Em vista disso, é com olhar especial sobre as indicações cênicas que examinaremos o diálogo
uma rubrica inicial para indicar o local e o tempo da ação dramática. Monteiro determina o
complexo arranjo de cenários em cada um dos atos. O palco é dividido em duas zonas
distintas, zona real e irreal, delimitadas pela luz verde e a luz tradicional, e as três zonas de
ação aparecem somente no segundo ato, quando o palco é reorganizado em três zonas. O
simultaneísmo das ações que ocorrem entre os planos da realidade e do sonho é retratado
desde o primeiro ato. A primeira zona está localizada à esquerda – subdividida em esquerda
baixa e alta; a segunda zona está no centro do palco e é designada como tapete rolante; a
terceira zona é a direita baixa. A mudança das personagens de uma zona para outra é
informada pela rubrica, e a iluminação pode ou não ser utilizada, já que depende do objetivo
da cena. No primeiro ato, as zonas referem-se a um local ou tempo definido; nos demais atos,
no entanto, isso não ocorre. A segunda zona, por exemplo, ora representa uma estrada, ora a
quinta do Barão.
III.1 Translocução
mecanismo pode ocorrer de três maneiras diferentes: a) transferência da fala do narrador para
a voz de alguma personagem, b) uma personagem não suprimida cuja fala se transfere para
outra personagem e c) a personagem suprimida que tem sua fala proferida por outra
personagem.
28
pela voz do narrador. Isso ocorre quando as recordações das personagens são transferidas para
outra” (CORRADIN, 1998, p.51); nesse sentido, a translocução é associada a vários outros
associados à translocução que ocorrem nos trechos transcritos como exemplo para a primeira
as indicações que se referem a cada uma das zonas de ação. Por isso, neste estudo, a
estrada até a casa do mesmo são apresentados pelo narrador. Na peça, essas informações são
organizadas pelas didascálias em zonas de ação. O tapete rolante localiza-se entre a primeira e
a terceira zona de ação. Nos excertos transcritos acima, a estrada é substituída pelo tapete
rolante do intertexto.
29
A iluminação mostra que o palco está dividido em dois planos, embora o dramaturgo
não tenha feito nenhuma referência a eles até esse momento isso se nota porque a luz que
ilumina a hospedaria diminui e outro plano surge iluminado. Luiz Fernando Ramos em O
parto de Godot: e outras cenas imaginárias (1999), ao analisar a peça Play, de Beckett,
presenças físicas e como falas”. (RAMOS, 1999, p.73). Cumpre observar que este é um
recurso que Monteiro explorará na peça, por meio das sombras dos cães e da projeção de
formas irregulares.
visualização de duas cenas que mantêm as idéias apresentadas no modelo. Dessa forma, Sttau
atores no palco; da composição de suas vestimentas; da entoação que devem dar às suas
No paradigma, o Barão afirma que Idalina lhe faz lembrar-se de certas coisas, mas ele
não esclarece que recordações são essas. A afirmação do Barão seguida dessa falta de
implícita que ainda não foi revelada. Esse ar de segredo parece aguçar a curiosidade do
Inspetor que fica instigado a querer saber mais. Seus desejos, porém, são frustrados, pois, o
Nota-se, assim, o cuidado do dramaturgo em delimitar, nas rubricas, o que deseja que
o espectador/leitor entenda acerca dos dois planos e de sua articulação na cena. Nesse sentido,
porque o que interessa ao dramaturgo não é o cenário em si, mas a divisão dos planos, tanto
assim que Monteiro não se preocupa em fazer descrições minuciosas do mobiliário. Importa,
Por conseguinte, o dramaturgo manifesta seu ponto de vista pela disposição física do
no paradigma, pelo narrador, faz-se, por isso, fundamental. Outro exemplo de translocução
pode ser identificado na sugestão do cenário, que “nada tem de naturalista” e na referência à
informa que as personagens estão na quinta, ou seja, nos arredores do solar. Na peça, quando
primeira zona de ação, onde o cenário corresponde a uma floresta, embora remeta ao mesmo
ato, devido ao jogo de cena que as três zonas de ação fazem quando permitem visualizar
situações e locais diferentes que envolvem a trama. As zonas de ação definidas pelo
dramaturgo são suficientemente abertas para permitir as mais variadas leituras e burlar uma
simbologia presente na peça seria imediata, bem como as críticas realizadas pelo dramaturgo.
que grades aparecem em contraluz, a sugerir uma floresta ou matagal. No entanto, esse pano
de fundo pode indicar a mera separação entre a quinta do Barão e o castelo da Bela
Os cães presentes no modelo são mantidos no intertexto. Além disso, na primeira zona
de ação, as sombras dos cães são acrescentadas e imprimem à cena determinado ritmo. As
32
sombras aparecerão em outros acréscimos de situação ora em ritmo acelerado, ora em ritmo
lento, ou com aspecto diabólico, acréscimo que também será analisado em momento
oportuno.
Conceber duas ou três cenas que acontecem paralela e simultaneamente, sem nenhuma
separação nítida, é uma proposta audaciosa. Monteiro, quando idealiza essa divisão do palco,
entre outros.
No paradigma, o Inspetor não sabe onde se encontra, mas pressupõe-se que continue
Supõe-se que a Marselhesa fora composta para o exército do Reno, em 1792, pelo
França, foi a principal canção marcial popular. Após o golpe militar de 1799, Bonaparte
1910. Para os portugueses, o hino era um modo de não se esquecerem do período napoleônico
libertação ouvido pelo Inspetor e transfere para a rubrica a ação do Inspetor que
versos da Marselhesa.
Na peça, a rubrica informa que a cena se passa no exterior, e, embora não esteja
declarado, infere-se que o Inspetor não tenha saído da quinta, pois está com Idalina,
personagem que sempre acompanha nos dois textos o Funcionário Público em seus momentos
Madona do campo santo, onde João Maria Guedes Flores, um revolucionário, favorável à
república, funda um clube em que se toca o hino dia e noite. (ALMEIDA, 1959, p.189). As
reuniões desse clube tinham como objetivo a queda da monarquia, e seus sócios publicavam
Marselhesa remete aos ideais da resistência à ditadura salazarista. O contista é mais sutil, ao
relacionar a figura do Inspetor com a Marselhesa. Essa crítica é resgatada posteriormente por
aquela noite era o momento certo para ele. Por isso assume uma posição desafio, canta
empertigado e esbraveja, como se estivesse dirigindo uma banda militar e o leitor poderia
inferir que se tratava de uma chamada para a organização de guerra civil. Além disso, a
discurso que vai servir de contexto (unidade maior) para a compreensão do que foi
incorporado” (FIORIN, 2003, p.34). Por sua vez, a alusão não se faz como uma citação
explícita, mas sim, como uma construção que reproduz a idéia central de algo já discursado e
que, como o próprio termo deixa transparecer, alude a um discurso já conhecido do público
em geral, por exemplo, o hino adquire sentidos diferenciados para Fialho, Fonseca e
transferida para a indicação cênica, e remete à direita baixa ou terceiro plano. Esse plano é
também serve para enfatizar a classe social do Barão. Ao visualizar a cama, imediatamente
subentende-se que aquele móvel representa o quarto, porém nem sempre o leitor/espectador
tem um objeto para auxiliá-lo na interpretação dos espaços, somente a leitura da rubrica
esclarece essa informação; daí sua importância na peça. Pode-se inferir que todas as ações de
caráter místico, como por exemplo, a ida ao inferno ocorre no terceiro plano.
ação dramática conduzida pela rubrica e comprova como o dramaturgo organizou as idéias do
paradigma e criou um estilo próprio ao dialogar com Fonseca. Embora tenha transferido parte
examinaremos adiante.
36
encenador/diretor e os atores sobre os detalhes que envolvem o modo como devem transmitir
torna-se, assim, indispensável para a compreensão do diálogo travado entre o conto e a peça.
Como já se pôde deduzir pelos exemplos transcritos, outro mecanismo importante para
trazer para o espaço do novo texto episódios, situações, personagens, falas características de
personagens não encontrados no texto que lhe serve de paradigma” (CORRADIN, 1998,
p.71). O recurso possibilita a ampliação dos fatos, o que pode gerar o alargamento dos
significados do paradigma.
[consiste em] uma ação secundária (mas completa, isto é, com princípio, meio e fim)”
O Barão: Rindo-se.
– Magnífico! Pergunto-lhe quem é, e responde-me que
é a Idalina! A Idalina!
Ri-se novamente.
E Eu? Sabes quem eu sou?
Idalina acena afirmativamente.
Então quem sou?
Idalina: – Não
O Barão: – Sim
O Barão: Rindo-se.
Porquê?
O Barão: – Verdes...
Idalina: – Amarelas...
Corre para a direita, graciosa, como se estivesse num
jardim.
De manhãzinha, quando os campos estão cobertos de
geada, vai-se ao jardim e os pés entram pela terra
dentro...
O Barão: Rouco.
Ao anoitecer as serras escondem o sol, e a escuridão...
Idalina: Interrompendo.
– Não gosto da escuridão...
O Barão: Rindo-se.
O Barão: Rindo-se.
Casam, têm filhos... e são muito felizes, como nas
histórias baratas...
Idalina: – Morrem...
O Barão: – Anh?
Fonseca, há apenas uma menção ao passado e ao fato de Idalina lembrar ao Barão “certas
coisas”, entre as quais a troca de amantes com o pai – tanto pai e filho arrumavam amantes
nas cidades do Porto e Lisboa, levavam-nas para a casa e trocavam entre si as mulheres. Não
Ao adicionar essa cena, Sttau Monteiro amplia o modo como o Barão e Idalina foram
argumentos utilizados para seduzi-la vão desde a descrição do conforto que poderá dar-lhe até
a possibilidade da construção de uma família. Caso não a convença com esses argumentos,
propõe-se a seqüestrá-la.
inserções ora têm sentido parafrásico, ora estilizador. No exemplo transcrito, nota-se que, ao
que ele a considera como mulher de uso dos criados – a relação entre o casal é de amor. Daí o
acréscimo dos laranjais, da flor amarela e das flores em geral sugerindo o puro desabrochar do
amor. Tal procedimento transforma-se no momento mais lírico, puro, sentimental e sensual da
peça, pois o desejo compulsivo do Barão pelo poder cede espaço aos valores do amor e da
sedução. Outro elemento que corrobora essa afirmação é a associação do episódio com
No intertexto, o dramaturgo estabelece uma analogia entre o amor que sente por
justificar-se pelo fato de o pai do Barão não ter uma boa relação com a família de sua amada,
Barão configura-se de modo a seduzir Idalina; ele ressalta possuir o maior palácio da região,
com o jardim cheio de flores, ter o desejo de constituir uma família, apresentando, assim, a
possibilidade de serem felizes. A partir do intertexto é possível apenas supor que a briga entre
famílias implícita no conto se trata de uma alusão à obra de Shakespeare. Contudo, vale
ressaltar que no conto não existem dados consistentes que confirmem uma alusão à obra
shakespeariana. Na releitura que Monteiro faz dessa passagem nota-se que ele tenta
transformar a possível alusão do paradigma em uma citação no intertexto, o que remete a uma
intenção de continuidade daquilo que era, até então, subliminar. Ao citar os nomes dos
protagonistas Romeu e Julieta, o dramaturgo tanto revela a forma como interpretou esta
promover mudanças internas sólidas contrariando a sua verdadeira essência parece ser feito
no decorrer do texto.
texto codificado por meio de símbolos e metáforas a fim de burlar a censura. Monteiro parece
Outra relação que se pode estabelecer entre a obra de Shakespeare e a peça remete ao
célebre questionamento de Julieta acerca da diferença entre ser e parecer – “O que chamamos
rosa, sob uma outra designação teria igual perfume” (SHAKESPEARE, 1998, p.38). Esse
41
palavras podem ao mesmo tempo revelar e ocultar, já que devem passar pela censura. Se o
nome da rosa não é necessário para alterar seu perfume, também um texto pode comunicar,
consciência ideológica. Também Sttau se vale de uma rede de símbolos e representações para
utilizada na peça para se referir aos sentimentos existentes entre o Barão e Idalina. Em ambas
meio. Estes aspectos saltam aos olhos quando é feita uma leitura da Correspondência de
Abelardo e Heloísa (1989), e do romance epistolar Júlia ou a nova Heloísa (1994), de Jean-
Em sua obra Rousseau funde a história de amor entre Abelardo e Heloísa e seu
envolvimento vivido pelo autor com Louise-Éleoneore de la Tour du Pil para escrever um
Em Júlia ou a nova Heloísa, St-Preux não consegue esconder o seu amor por Júlia.
Wolmar, o marido, aceita que Júlia ame outro, contanto que seja sincera com ele. Júlia não
pode declarar seu amor por St-Preux com quem mantêm uma relação por meio das cartas,
seu amante simplesmente é omitido de todo o texto. Talvez seja esse um dos elementos que
destaca o drama vivido por duas pessoas separadas por forças sociais, políticas e
institucionais. Prova dessa repressão pode ser encontrada nas correspondências de Abelardo e
vigilância que havia em torno deles. Nas cartas existem trocadilhos de nomes que ajudam a
e Júlia ou a nova Heloísa – não se restringe ao tema do amor proibido, mas também ao poder
que a palavra adquire em tempo de censura e repressão. Os significados das palavras podem
de seu amor. Em Rousseau, a omissão do nome do amado garante a privacidade entre Júlia e
St-Preux. A dissimulação por meio de um discurso cifrado garante a relação entre os amantes.
Monteiro.
Fonseca constrói suas personagens sem nomes próprios, todas são reconhecidas por
títulos, ofícios ou instituições. As únicas personagens com nomes próprios são Idalina e
natureza mais íntima. Ofícios, títulos, funções e instituições tornam o indivíduo anônimo. O
título de “Barão” parece inibir o acesso das pessoas à verdadeira essência do homem que ele
é. Sem nome ele não apresenta a sua intimidade de homem comum, mas somente o papel que
Barão de ter sido apenas um homem vitimado pelo amor. Se no paradigma a relação do Barão
e de Idalina é indefinida e sem importância; no texto dramático, esta história ganha relevo.
43
Outro aspecto importante que não deve passar despercebido é que, na esfera da
memória, o Barão apresenta-se como um homem maduro diante de Idalina ainda jovem. Esse
contraste pode sugerir que mesmo amorosamente envolvido, o Barão não se liberta das
românticos de Idalina. Assim, ele permanece retido no presente, na sua forma irredutível de
ser enquanto ela é capaz de entregar-se à fantasia. O Barão não se lança completamente ao
passado, ainda se mantém preso ao presente. Sob essa óptica, a figura de Idalina representa
uma aspiração e a tentativa de fortalecer o desejo reprimido de retornar às origens dos desejos
segundo plano sobre a equivalência do homem a uma árvore enquanto o Inspetor se dirige em
Outro acréscimo de situação pode ser verificado na disputa entre o Barão e seu pai.
O Barão: – Não
que o Barão está com Idalina, mas também pela angústia que o Barão associa ao seu Pai. No
intertexto, o Pai é personagem, embora apareça sempre iluminado pela luz verde que
Barão relembra quando o pai lhe oferecia dinheiro enquanto passava a mão no cabelo de
Idalina. O Pai quer demonstrar seu poder por intermédio do dinheiro que oferece ao filho, mas
o Barão despreza seu dinheiro. O ponto de vista do pai do Barão é capitalista, ele privilegia o
O acréscimo propõe, então, novos valores ao Barão. No conto, Idalina é para ele
mulher barata e disponível; na peça, ela não pode ser trocada por moeda. Essa releitura
alguns valores individuais que podem se tornar valores sociais. A relação do Barão com
Idalina parece sugerir que, se por um lado o tempo não promoveu mudanças universais ele é
45
capaz de gerar transformações restritas. Desse modo, o dramaturgo lança um olhar sobre o
A importância da rosa é outro acréscimo de situação que será analisado sob três
aspectos: a) a recusa da rosa no primeiro ato, b) a mudança da cor da rosa: de branca para
O Inspector: Cambaleando.
Um covarde! O senhor não passa dum covarde!
final do paradigma, ela aparece quando o Barão a colhe do jardim e tenta entregá-la à Bela
Adormecida. O leitor infere que a rosa foi entregue embora esta permaneça na janela do
No intertexto, ela aparece desde o primeiro ato, mas o Barão afirma que a Bela
Adormecida nunca desejou a sua rosa. Embora a moça seja chamada pelo mesmo epíteto, no
intertexto, não está realmente adormecida, e atua. Diferentemente da obra de Fonseca ou nas
versões mais conhecidas de Perrault ou dos Irmãos Grimm, na peça, a personagem aparece
desperta iluminada pela luz verde, e se posiciona imóvel, com olhar fixo no Barão.
Para o Barão, mais vale morrer de rosa na mão do que não lutar pelo seu ideal. Porque
sua existência tem como objetivo entregar a sua rosa, tudo o mais é vaidade. Assim, a rosa
torna-se para o fidalgo elemento indispensável para a veiculação dos seus ideais. Ainda
tratando do símbolo das flores, o discurso do Barão, no texto dramático, realiza uma crítica ao
Inspetor quando menciona “que os que sonham com flores num jardim são os que se
contentam com uma vida monótona, em que os sentimentos são vividos sem intensidade”,
menciona que “Embora cada flor possua pelo menos secundariamente, um símbolo próprio,
nem por isso a flor deixa de ser, de maneira geral, símbolo do princípio passivo”
O desejo de entregar a rosa se intensifica quando o Barão declara que morrer de rosa
na mão significa nunca ter vivido, ou seja, se ele desistir da entrega da rosa, sua vida perde o
sentido; por isso, a personagem persiste e parece adquirir um novo caráter quando afirma ser
melhor destruir a rosa se não houver quem possa recebê-la. Para o Barão a rosa precisa ser
que ela adquire no conto e na peça. Em ambas as obras, ela continua intimamente ligada ao
Barão, ao Inspetor e a história em si. Contudo, sua simbologia sofre algumas alterações que se
verificam na troca da cor e na nova relação que as personagens passam a ter com ela. A rosa
apresenta, na obra de Fonseca, uma rede complexa de sugestões, que pode associar-se à
representação que a rosa sugere na narrativa lhe imprime uma natureza incognoscível, porém,
Em Monteiro, não se pode afirmar seguramente que ocorra uma preservação de todas
essas representações que Fonseca imprime à rosa porque o dramaturgo teve a necessidade de
discutir o fenômeno da transformação e da estatização na sua obra. Assim sendo, cabe afirmar
que o autor refaz o percurso ideológico de Fonseca, produzindo a estilização por meio da
a importância da rosa porque ora ela está presente como objeto em si, ora está presente
Monteiro nesse exemplo, visto que o autor implanta mudanças no paradigma sem perverter ou
No conto, o Inspetor não tem a intenção de recolher uma rosa porque não tem para
quem oferecê-la, sua função se restringe a auxiliar o Barão no seu objetivo. A rosa que o
Barão pretende oferecer à Bela Adormecida é branca e é o objeto utilizado para ter acesso à
moça. A importância da rosa está ligada somente à figura do Barão, embora o Inspetor
verbalize que haja um mistério na entrega da mesma. Na peça, o Inspetor após ser muito
criticado pelo Barão muda a maneira de agir e diz timidamente que também tem uma flor. A
O leitor/espectador é informado, por meio das indicações cênicas, de que o Barão está
com um botão de rosa na mão, ou seja, haverá uma gradação, o botão de rosa deverá evoluir
para rosa. O dramaturgo vai no rastro do contista dando à rosa um tratamento ideológico
49
semelhante, isso porque, assim como no modelo, ela representa um ideal. Sttau utiliza a rosa
do paradigma na peça com a mesma conotação, mas, como um instrumento que se desenvolve
Monteiro, possui o mesmo valor, mas, reaparece como botão - no sentido embrionário -
É notório desde o inicio que o Barão e o Inspetor não estão na peça da mesma forma
como estavam no modelo. A decisão de Monteiro foi sugerir com mais vigor o processo de
individualização de ambos que vai sendo tratado por intermédio de diversos procedimentos
dramáticos. Sendo assim, a rosa assinala a evolução objetiva do Barão que migra dos
sentimentos puramente egoístas para trocas humanas mais profundas. Já na figura do Inspetor,
algum tempo. Já tinha os olhos habituados ao escuro e O presente! O passado! O que eu fiz e o que eu não
começava a ver através da noite. Ele levava uma rosa fiz! O que eu devia ter feito e o que eu não devia ter
erguida na mão; eu caminhava a seu lado como se feito!
soubesse para onde, mas afinal ia apenas atraído por Pausa.
um mistério que nem tentava imaginar. Mas não me roubam a rosa!
O ar fresco da noite dava-me prazer e leveza. Os cães
tinham voltado para ao pé de nós e mantinham-se a Idalina: Gritando.
nosso lado, como sombras rastejantes. Ouvi estalar um _Vem pra casa! Não destruas mais nada! Não mates
ramo de árvore e só nesse momento percebi que, na mais ninguém!
verdade, vinham pessoas atrás de nós. Naquele estado
de espírito, julguei outra coisa [...] E mostrou-me a O Barão: Cala-te! Eu, eu é que sei donde venho e para
rosa que continuava intacta na mão. Eu estava já onde vou!
suficientemente lúcido para aquilo começar a parecer- Surge iluminada a verde, na direita alta, a Bela
me ridículo. E atirei-lhe uma gargalhada na cara. Deu- Adormecida.
me um empurrão e caí de costas no meio dos cães. Enquanto não der a minha rosa, ninguém me agarra! A
Enquanto procurava levantar-me, eles lambiam-me minha rosa – a minha única rosa!
piedosamente a cara e eu atirava violentos insultos ao (p.64-69; 80; 114-115; 119-121).
Barão, que já não estava ali. Levantei-me e corri atrás
dele. Então pareceu-me ouvir, do lado de trás do muro
da quinta, vozes misturadas com o ladrar dos cães. Eu
andava já fora da estrada a procurar o Barão com quem
caça
uma fera, correndo, tropeçando nos torrões da terra
lavrada, nas valas, caindo, levantando-me, numa
espécie de furiosa sede vingança. Mas em vão: tudo
eram sombras fugidias, ramos de árvores que me
fustigavam a cara onde o suor corria em grande bagas,
ou folhas que me acariciavam ironicamente a face.
Bufava como ou toiro. [...] Lembrei-me daquela rosa
branca, erguida na sua mão como um símbolo de
pureza, e vi a beleza de tal gesto, cujo destino eu
ignorava, mas para o qual ele me tinha pedido auxílio.
E eu tinha-o atraiçoado e andava a persegui-lo como
um revólver na mão. Tive remorsos. Levantei-me e
comecei a caminhar, num passo apressado, pela estrada
adiante. Naquele momento eram para mim muito
confusas as intenções do meu companheiro com uma
rosa na mão, mas aquele gesto, agora, parecia-me
admirável. Não me tinha dito para quem era... Ah!
Chamou-lhe a Bela-Adormecida!... Como esta frase
teve a beleza de um sonho!
Por fim esqueci-me do Barão e, a cantar, no profundo
silêncio da noite, continuei a caminhar pela estrada. O
céu estava cheio de estrelas e a minha voz subia até
elas.
Aquela hora o Barão saltava o grande muro,
aproximava-se do castelo e escalava as paredes, até à
janela da Bela-Adormecida...
(63-66; 73,75 ou 63-75).
uma atmosfera assombrada que amplia as angústias do Barão e possibilitam verificar outro
acréscimo de situação.
51
político. Ele utiliza seu poder para o controle social ou, mais especificamente, para impor sua
homem sem consciência de sua natureza social, de seu prestígio e seu do poder.
possui uma rosa. Na peça, podemos verificar que as posições e condições das duas
Além disso, a perseguição se funde com a entrega da rosa e esta assume uma
conotação política porque, ao tentar entregar a rosa, o Barão desconfia de que seus
Barão reflete o que fez no passado. Em seguida, Idalina conclui que alguém tentará impedi-lo
e o adverte para não matar mais ninguém por causa dessa rosa.
A Tuna é um grupo musical constituído normalmente por um violino, duas violas, uma
ou duas flautas, e instrumentos de percussão. No conto, são mais de cinqüenta homens que se
grupo musical, do ruído ouvido ao longe. Além de o som assumir a função do transcurso do
tempo, informa que a Tuna está nos arredores e disposta a entrar a qualquer momento. A
sensação auditiva provocada pelo barulho monótono até o final da peça e a constante entrada
e saída dos músicos criam uma atmosfera letárgica que pode ser associada ao excesso de
recurso serve para Sttau como um meio de enfatizar a predominância do tempo psicológico. A
onomatopéia impõe um ritmo à cena. É por isso que o som é caracterizado com maior
cenas em que a presença do Barão prevalece. O ritmo apresenta menor intensidade quando a
importância da cena está relacionada à personagem Inspetor, além disso, as indicações cênicas
Nas duas obras, o Barão chama o Inspetor de preconceituoso porque este se recusa a
beber antes da refeição. Na peça, o acréscimo de situação ocorre quando vários assuntos são
Funcionário Público afirmando que este tem todos os preconceitos de sua geração. Essa
posição do Barão pode estar relacionada ao fato do Inspetor não gostar de ser chamado de
com o modelo, decide romper com essa ambigüidade revelando que o preconceito advém do
Barão e não do Inspetor. Ao afirmar que um homem nunca atraiçoa a sua cepa, o Barão
sentencia que o homem está condenado a repetir o que ditam suas origens e que a
hereditariedade irá predeterminar o destino do indivíduo. Este acréscimo traz à tona mais uma
Sttau, neste acréscimo, usa um tom sarcástico para criticar as deficiências da educação
e da psicanálise e, com isso, exibir as transformações ocorridas na sociedade dos anos 40 a 60.
Com a exposição dessas mudanças, o dramaturgo não cria uma oposição ao conteúdo do
54
modelo, mas sugere as modificações das leis culturais, políticas e sócio-econômicas. O leitor-
espectador que teve acesso às duas obras nota a discussão pacífica entre tempos e autores
diferenças, mudanças e/ou estagnações dos dois universos. Assim, o dramaturgo apresenta as
consideração que texto e contexto são interativos e vivem em constante transformação; assim,
texto e contexto são verso e reverso em que um pode servir de espelho para o outro. Portanto,
pertencem à terminologia da psicanálise, para chamar a atenção para mais uma característica
acréscimo Monteiro faz uma critica àquela instância em que a terminologia supera a
importância do fenômeno. Numa análise mais restrita, a fala do Barão pode ser interpretada
como uma crítica à psicanálise que era vista na época como a solução para os males da
civilização. Na voz do Barão, fica subentendido que a nomeação dos fenômenos psíquicos
não garante a resolução deles: “Puseram um nome ao que toda a gente sempre teve e estão
muito contentes, convencidos de que descobriram a pólvora e de que o mal foi curado porque
Nota-se outro acréscimo de situação no episódio que enfoca o triângulo amoroso entre
Monteiro porque o distanciamento entre ela e o Barão é reduzido de tal modo que ela se
interpõe entre o Barão e a Bela Adormecida. O dramaturgo cria uma segunda perspectiva
Portanto, se Idalina surge como possibilidade amorosa então a pena de amor frustrado
do Barão é reduzida, pois, Idalina é a mulher palpável, tangível, enquanto a Bela Adormecida
representa um amor impossível, inativo, gélido, sem reação e sem vida. Comparando as duas
figuras pode-se dizer que Idalina representa a realidade e a Bela Adormecida, a esfera da
fantasia.
paradigma a fim de criar uma espécie de ciranda de amores que também inclui Idalina. O
Idalina. O poder desses vínculos transparece quando a criada demonstra que é capaz até de ler
56
ocorre sob o signo do mistério, sem nenhum indício de envolvimento; o autor não esclarece a
natureza da relação; Fonseca deixa algo por dizer sobre o Barão e Idalina. Monteiro aproveita
dialogam intertextualmente, pois aquilo que é uma aparente ausência em Fonseca torna-se
faz com que a personagem o acompanhe nos momentos difíceis, por exemplo, o princípio de
No conto, a Tuna apenas tocava, uma vez que quem descobre o fogo é o Barão. E no
Público. Quando o fidalgo e o visitante conversam o Barão afirma que parecia que o Inspetor
cartas, outros são incumbidos de procurar o Inspetor no entorno do solar. Embora exista uma
amizade entre a Tuna e o Barão, este ainda a domina, isso se evidencia pelo fato de o Barão
ganhar no jogo de cartas. O jogo de baralho não pode ser considerado um divertimento
comum. As cartas do baralho refletem também a misteriosa relação do indivíduo com o seu
meio. As treze cartas de cada naipe simbolizam os treze meses lunares do ano, as treze
semanas de cada trimestre e os doze meses do calendário mais o ano como um todo. As cartas
de baralho formam coletivamente um pano de fundo, no qual o indivíduo se situa. Então, não
se deve surpreender que um jogo de cartas simbolize o próprio jogo da vida. Por fim, a
relação do indivíduo com ele mesmo e seu ambiente ocorre na relação que o fidalgo tem com
os componentes da Tuna.
incêndio. Quem descobre o incêndio é o Mestre Alçada, porém quem ouve o pedido de
socorro é o Barão. Idalina omite a informação de que havia levado o Inspetor para o quarto e
não participa da busca, o leitor/espectador não é informado do local onde a criada foi e de
repente ela aparece pela esquerda e tenta impedir o Barão de entrar no quarto. Verifica-se uma
mesma frase do modelo quando a criada repete “Saia daí! Deixe o homem dormir!”, mas a
rubrica informa que não há utilização dos três planos. Dessa forma, não se sabe onde a criada
estava, pois as informações contidas nas indicações cênicas omitem esse local, mas informam
que o Inspetor estava no quarto em chamas, ou seja, na direita baixa e que os outros
Inspetor ao inferno e o seu regresso para contar o que viu por lá. O Barão brinca ao desejar
saber como era o diabo e sobre o que ele e o Inspetor haviam conversado. O dramaturgo
acrescenta a importância do código dos barões e, a fim de explicar para o Funcionário Público
revelam que, enquanto o Barão se encontra no tapete rolante, o Inspetor está no primeiro
planos diferentes, não se compreende que não há um diálogo entre o Barão e o Inspetor,
personagem o Barão que o Funcionário Público foi ao inferno e voltou para contar o que viu.
incomunicabilidade em que o funcionário público vivia encerrado e revela seu drama oculto,
Na peça, após o incêndio, o Inspetor revela não simplesmente sua história de amor,
conseqüentemente, o que se verificará em sua nova relação com a rosa. O batismo pelo fogo é
a destruição dos dogmas e cultos exteriores. O fogo representa o grande purificador de tudo o
62
que é submetido ao seu calor, isto é, desfaz o invólucro material para que se entre em contato
com o interior.
das crenças. O calor fortalece, vivifica e purifica almas envoltas no frio da descrença e da
indiferença. Somente após esse batismo do fogo, o Funcionário Público passará por um
processo de amadurecimento que será simbolizado pela aquisição do ramo seco. No entanto, o
ramo necessita de muita água para verdejar e transformar-se em rosa, o que indica que haverá
um processo de evolução. Dessa forma, o ramo seco pode ser associado a duas idéias: ao
autoconhecimento, e, assim como a rosa, a um ideal a ser empunhado como uma bandeira.
aptidão para buscar seus próprios ideais. O ramo funciona como o presságio de uma rosa
homem que reside no inconsciente. Ao apresentar as sombras dos cães, o dramaturgo indica
No modelo, o Inspetor informa que deve fazer um relatório sobre a inspeção realizada,
existência mais íntima suscita a consciência de que o ser institucional nada questiona e que
simplesmente opera o seu ofício, tornando-se autômato. O resultado desse conflito é ressaltar
dar espaço a outro indivíduo. Assim, Sttau exibe um indivíduo com identidade própria, livre
uma forma de reflexão e de avaliação de suas dores, desejos, idéias, ou mais precisamente, da
de sua individualização, o Inspetor já não deseja apenas uma rosa para si, mas uma bandeira
que represente o desejo de muitos. Assim, extrapola o campo individual para abarcar o
coletivo.
de uma fôrma a outra. No texto de Sttau, não há cortes profundos que comprometam o
moleiro na peça.
com que possa retornar. Quando chega ao solar, tem a informação de que o Barão foi atingido
por um tiro. A imagem do trabalhador rural, representadas pelo Moleiro, o cuidado deste com
o animal que o ajuda a ganhar o sustento, e toda a situação que envolve as personagens são
suprimidos no intertexto.
(2000), afirma que “este episódio seria um elemento externo ‘ao movimento total’ da acção,
que se encaminha coesamente para a tentativa de entrega da rosa” (JESUS, 2000, p.93). Como
o foco do dramaturgo é induzir o leitor a acreditar que o Inspetor deu um tiro no Barão, ao
suprimir essa situação o dramaturgo elimina a hipótese de o Inspetor estar longe do solar, por
isso a única personagem que se encontra em outro plano quando o acidente acontece é o
Funcionário Público.
envolve com o Inspetor foi retirada da peça. No conto, ele serve para caracterizar a imagem
do trabalhador rural e a população que vive no entorno do castelo, sobre quem provavelmente
o Barão exercia influência. Embora o moleiro resista e recorra ao Santíssimo Sacramento para
alugar o burro, ele sabe exatamente quanto valia os taleigos e a farinha. O leitor do conto deve
66
conjecturar que o sofrimento resignado ou a aceitação da pobreza com vista a alcançar o céu
ilusória, porque a submissão provém justamente de uma classe sem recursos ideológicos,
que foi suprimido” (CORRADIN, 1998, p.82). Assim, esse mecanismo é uma espécie de
supressões/acréscimos de situação.
escuridão provoca a desorientação do primeiro, que não tem noção clara de onde está, não vê
mais nada com nitidez, pois a escuridão da noite impede que distinga claramente o local em
que está, o que favorece a criação de um espaço ideal para a imprecisão narrativa.
Na peça, o dramaturgo deseja que tudo esteja iluminado, para que não se infiltre
leitor/espectador a enxergar o que ele deseja explicitar em sua releitura do conto. Sttau adotou
acrescentada para o ambiente aparecer iluminado. Nos dois textos, a escuridão e a luz
sugerem complexidade e riqueza psicológica, tudo o que não era visto com nitidez agora é
iluminado ora pela luz branca, ora pela luz verde. Sttau, para romper com ambigüidade
instaurada por Branquinho, que associou a escuridão aos gestos e sentidos dos diálogos, lança
seguir:
objetivo do que está se passando ao redor. Não se trata de fome física apenas, mas de um
desejo inconsciente. O estado de tensão e de expectativa provocado pela fome faz com que ele
não seja capaz de prestar atenção às confidências de seu anfitrião. No intertexto, a fome que o
Inspetor sente é suprimida e, com esta, todas as suas divagações. Assim, a ambigüidade
proposta pela escuridão é rompida desde o momento em que o Barão conta histórias de
Coimbra e o Inspetor está atento aos fatos narrados, fazendo com que a sensação de fome seja
Somente na peça, o leitor/espectador recebe a informação de que o Barão não gosta de Lisboa
há anos. Desse modo, o dramaturgo acrescenta vários fatos pelos quais enfatiza a raiva do
Barão em relação à capital e o conceito que tem dos seus inimigos. A personagem revive o
passado porque não encontra no presente a sua identidade. O Barão, quando comenta sobre os
seus inimigos, não distingue o espaço real de Lisboa do sentimento de raiva. Estabelece,
assim, a intersecção do tempo com o espaço. Lisboa é associada ao passado, que lhe traz mal-
estar. Essa relação de mundos apresentada pelo Barão, no intertexto, entre Lisboa e Coimbra é
pela casa.
Barão, o Inspetor caracteriza o local como palácio, solar e casa. Nesta ambientação, o
narrador faz uma série de alusões, associa a grandiosidade da residência a uma estabilidade
econômica e por isso enaltece o solar antes de adentrá-lo. Na peça, o mesmo local é rebaixado
pelo Barão, o palácio é substituído por uma casa velha. Essa mudança pode ser considerada
descrições dadas pelo Inspetor são suprimidas. A casa é apresentada pelo Barão como velha e
gelada, o Inspetor não concorda com essa idéia, porém, quando é questionado, omite suas
provocando-lhe inveja.
Inspetor, como pesados e enormes, os aspectos físicos são detalhados, e o silêncio provocado
pelos corredores sem fim é acentuado. No intertexto, a descrição da casa e seus pertences
70
estão associados à história do Barão. Também no conto, tudo que o Barão olha a seu redor é
relacionado ao passado. A peça evidencia o que o conto apenas sugere, Sttau opta em
“casa”, que remete à família. A sala de jantar é o ambiente mais familiar da casa, é o alimento
que mantém a família viva e unida, por isso a mãe e o pai vêm-lhe à mente. A figura do pai
neste acréscimo é diferente do restante da obra, pois aqui a rememoração do pai está ligada a
sua infância. Portanto, os aspectos físicos da casa são suprimidos e os aspectos emocionais
são acrescentados.
intertexto, ele é personagem, participa e executa ações, embora apareça sempre no mundo das
recordações.
No conto, a Bela Adormecida é somente citada como uma mulher especial – a Única.
Na peça, ela é personagem, participa da ação, porém não profere nenhuma palavra e aparece
sempre no mundo das recordações. No seu silêncio, reside toda a força e a relevância que ela
possui em ambas as obras, com uma proeminência muito maior no intertexto. Como sua
71
função está relacionada ao contexto histórico-político, analisaremos seu papel com minúcia
no capítulo três.
objeto, é descrita pelo narrador como uma mulher alta, com ar desdenhoso, imponente, altiva,
oscilando entre baronesa e serva , e, em certos momentos, trata o Barão com secura arrogante.
Algumas vezes, o Barão a ignora; outras vezes, ela o faz mergulhar no passado, embora ele
sua relação com o Funcionário Público é alterada. A criada não considera o Inspetor como um
homem digno dela. Outra característica inédita da criada é que a personagem assume seu
amor e sua submissão ao Barão, quando diz ao Inspetor que prefere ser espezinhada pelo
Barão a ser amada pelo Funcionário Público. Outro posicionamento que comprova que a
criada está disposta a lutar pelo amor que sente pelo Barão é colocar-se entre ele e a Bela
Adormecida. Só na peça a personagem é meiga, porque deseja ser amada e escolhida pelo
pode fazer até pedidos ao Barão, descaracterizando sua função. Além disso, é apresentada em
Barão.
ferro, um homem onipotente. O narrador-personagem informa que parecia que o Barão lutava
com “as forças entre Deus e o Diabo”. Pela lente do Inspetor, captamos as contradições e
complexidades do Barão e também alguma carga de subjetividade inserida na imagem que ele
construiu do seu anfitrião. Apesar do olhar do Inspetor ser o intermediário que acrescenta ou
suprime dados do objeto contemplado o leitor-espectador não pode se restringir a esse olhar
(2005), aponta uma diferença entre a personagem do romance e a teatral, importante para a
personagem é um elemento entre vários outros, ainda que seja o principal. [...] No teatro, ao
contrário, as personagens constituem praticamente a totalidade da obra: nada existe a não ser
lançar mão da supressão de alguns fatos da narrativa pode, portanto, ser uma maneira de o
a dominar os outros segundo seus caprichos. No intertexto, é por meio dos diálogos que o
Barão vai revelando sua psicologia. Eliminando-se a opinião do narrador, o tirano inflexível,
diabólico, dá lugar a uma personagem mais humana, o amante de Idalina que tem ódio aos
sofrimento por não entregar a rosa à Bela Adormecida faz com que o Barão se torne mais
melancólico na peça.
organizada, metódica, de caráter submisso ao Barão, que não cumpre sua função de
inspecionar, e deixa claro que não tem objetivos determinados. Ele acompanha o Barão sem
questionar onde está indo e ingere vinhos, mesmo sem o desejar, pois sente-se atraído por seu
ora porque é noite, ora porque está com fome, ora porque está bêbado, ora por ter sido
abandonado.
estados de espírito, que são construídos aos poucos, provocados por diferentes fatores, que
acrescentadas à personagem, o Inspetor não aceita que o Barão fique reclamando e reage
irritado. A reação do Inspetor faz o Barão refletir, mesmo que não o demonstre e persista nas
suas lamúrias.
somente um ouvinte e declara acreditar que sua vida tenha sentido por causa de seu encontro
com o Barão. À medida que os diálogos transcorrem, o Inspetor faz uma reflexão sobre si
mesmo, concluindo não ser meramente um pesa-papéis. Além disso, no término da discussão,
tinha sua identidade original encoberta pelas regras institucionais. A sua personalidade estava
esmagada pela sociedade e pelas regras que impunha a si mesmo. O tempo vivido em prol da
pessoal. Com a chegada do Barão, o nome “Inspetor” desaparece e com isso as marcas do
Inspetor ora apresenta aversão pelo Barão e ora mostra demasiado deslumbramento. A
aversão ocorre assim que adentra o solar e o deslumbramento quando descobre a rosa.
ao lado do Barão, e Monteiro recupera essa personagem em construção para apresentá-lo mais
atuante, expressivo, com valores evoluídos e posturas modificadas, ou seja, um ser humano
mais desenvolvido e prestes a conquistar sua rosa representada pelo ramo seco. A posição do
76
apresentação.
No conto, a professora é apresentada por seus aspectos físicos, “nova, mas feia”,
também tem o hábito de recorrer ao Barão porque conhece seu poder, é típica representante
do mundo rural, e o Inspetor a considera uma mulher forte, otimista e infeliz. Na peça, essas
características são substituídas, a Professora grita com a velha que trabalha na hospedaria e
com o criado, mostra que tem autoridade, assume o status de quem sabe mais do que a
campo e da cidade, deixa o Inspetor tirar suas próprias conclusões a respeito do Barão e é
que o Inspetor realmente foi fazer ali, por fim, critica o sistema político e educacional quando
III.7 Inversão
em que as falas do modelo são contrárias seja por meio da inclusão de termos inadequados ou
No conto, o ramo seco é apenas o local onde um pássaro pousa. Na peça, o ramo seco
representa a flor que o Inspetor deseja dar. A relevância do ramo para o Funcionário Público
relaciona-se à mudança de papel que a personagem adquire no segundo ato. Essa inversão dos
necessidade de regar o ramo para que ele se transforme em flor. Somente no final da peça é
possível verificar a evolução. Neste caso, o dramaturgo realiza um jogo de palavras no qual
um galho de árvore pode se tornar o símbolo de um ideal de toda uma sociedade, que será
encurtados para que se realize a encenação” (CORRADIN, 1998, p.68). Esse mecanismo pode
ocorrer de três maneiras diferentes: rubrica e/ou personagem resume a fala do narrador;
outra personagem.
78
procuram estabelecer uma relação entre o desenvolvimento da ação e a fala do narrador, por
um sorriso de prazer. Eram mais de cinqüenta, as mãos. O Barão começa a arrastar-se para fora da
formando um semicírculo diante de nós. E, de repente, sala e surge repentinamente iluminada, na direita
fez-se um grande silêncio. Eu sentia a cabeça cada vez baixa, a Bela Adormecida. O Barão, como que
mais pesada do álcool e tentava, num esforço inútil, atraído irresistivelmente pela imagem, tenta arrastar-
compreender. Pareceu-me que aqueles homens nos se até junto dela, seguido pela Tuna, que não cessa de
olhavam com medo. Depois vi que era também com tocar o tum-tum. A meio caminho, a imagem
desprezo e ódio. Como se um duplo tivesse saído de desaparece o Barão levanta-se penosamente e grita:
mim e estivesse a observar-me de fora, eu via-me Quero Vinho! Tragam-me vinho! (p.69-73).
melhor a mim próprio do que via os outros. A criada
tinha posto sobre a mesa três grandes copos, de litro
cada um, e umas três ou quatro broas. Pôs também
duas facas. Depois encheu os três copos com vinho
tinto, de um garrafão que estava debaixo da mesa, e
saiu. Tudo isto fora feito num silêncio absoluto, como
um ritual respeitado.
Até que, por fim, ouvi a voz do Barão, de quem já
tinha me esquecido, quebrar o silêncio e com um
braço estendido, num gesto pesado e largo, fazer a
apresentação:
– A Tuna.
Julguei que estava a troçar de mim e daqueles pobres
campônios de aspecto tão estranho e selvático. Mas
não. Comecei a reparar num homenzinho que, na
minha frente, me espreitava com um sorriso de
escárnio. O Barão apresentava-me o tal homem que
trazia um pano preto sobre o olho esquerdo:
– Aqui tem o senhor Alçada, mestre da Tuna.
O senhor Alçada dobrou-se numa vênia exagerada e,
pondo-se outra vez direito, perguntou com entoação
ridiculamente solene, orgulhoso da sua arte,
desenrolando a língua travada pela gaguez ou pelo
medo:
– Senhor barão, às suas ordenas.
– O Verde-Gaio!– gritou o Barão numa voz fora de
tom, com se estivesse a pensar noutra coisa e de
repente ouvisse aquela pergunta do mestre da Tuna.
A um aceno do mestre, como num espetáculo de
mágica, debaixo de todos aqueles capotes saíram os
mais variados instrumentos: violinos, flautas, violões,
guitarras, ferrinhos, tambores, bandolins, harmônios,
gaitas de beiço e bezimbaus.
Eu não contava com aquilo. Saiu-me uma gargalhada
que não consegui dominar. O Barão deitou-me um
olhar de censura, sorrindo com uma frieza cortante.
Voltando-se para o tal senhor Alçada repetiu, agora
numa voz serena.
– O Verde-Gaio.
O outro virou-se para a multidão dos seus músicos
dispostos em meia-lua, e, quando eu esperava um
estrondo, uma dessas barulheiras infernais, rompe dali
uma marcha vibrante e alegre, cheia de vivacidade e
emoção lírica, num conjunto de quase perfeita
afinação. O Barão, inesperadamente, deu um salto
para o meio da sala e, plantado com as pernas abertas,
curvado para frente, com os punhos cerrados, os
braços flectindo em movimentos rápidos e firmes com
se batesse no peito entoava um regougar rouco com
urros de guerra africana. Senti-me também arrebatado.
Era admirável como tudo se tinha transformado
subitamente ao som daquela fanfarra imensa. Ergueu-
80
personagens possibilita inferir que o grupo adentra o solar provocando barulhos semelhantes a
sintética. A cena ocorre em ambiente diverso, em vez do som dos trovões, do bailado de
ursos, a Tuna apresenta-se pintada de laranja, branco e preto e como se tivessem saído de um
pesadelo. Ao resumir o texto, o dramaturgo mantém a mesma idéia de ritual do modelo, mas
efeito de estranheza no leitor. Na peça, não é especificado o número dos componentes que se
apresentam em alas desiguais. Além disso, cria-se uma expectativa no leitor/espectador, pela
Gaio1”, o grupo começa a tocar os diversos instrumentos e rompe uma marcha vibrante de
emoção lírica. Não se evidencia, no entanto, se a Tuna toca para o Verde-Gaio apresentar-se
divisão da broa e do vinho, dispostos sobre a mesa, como continuação do programa. Infere-se
que esse programa era familiar à população portuguesa. Além disso, no intertexto, a rubrica
informa que a Tuna toca o Verde-Gaio, mas as ações em distribuir a broa e o vinho entre os
componentes não estão relacionados a uma apresentação teatral, bem como havia sido
Nas duas obras, a Tuna não é um grupo autônomo com repertório próprio, estão a
serviço do Barão e por isso somente executam aquilo que lhes é solicitado.
1
A referência ao Verde-Gaio na peça remete a um grupo criado em 40, considerado arte oficial, ornamental, decorativa, contudo
próprio ornamento perdeu a sua função nobre o que revela o uso de cores berrantes e cartaz de propaganda turística (GRAÇA, 1944,
p.325). Trata-se, no entanto, de composições a serviço do Sistema de Propaganda Nacional – SPN para fortalecer o nacionalismo
desprezando a arte em si, como a Tuna que se põe a serviço do Barão. A associação entre Verde-Gaio e a Tuna parece uma crítica à
subserviência dos artistas da época.
82
leitor. Na peça, essa voz do narrador é resumida na rubrica e indica como os personagens
devem se comportar no palco e transformar em ação as idéias expressas pelo narrador, por
isso a face congestionada e a violência são sintetizadas pela ação de “bater”. Nota-se que o
Barão. Mas ao realizar a paráfrase resumitiva, percebe-se que o olhar rígido/ rigoroso do
No modelo, o Barão conhece a casa e sabe que ela tem deficiência de aquecimento, é
uma noite gélida, mês de novembro e por isso aconselha o Inspetor a não tirar o casaco. No
intertexto, as idéias são resumidas quando o Barão impede o Inspetor de tirar o sobretudo.
apresentada como uma pessoa importante. No intertexto, as características físicas são omitidas
em detrimento de seu aspecto psicológico. Ela é apresentada como uma mulher digna.
Os dois exemplos de paráfrase resumitiva acima revelam que as idéias propostas por
Branquinho são compartilhadas por Sttau. Por isso, as indicações cênicas apenas mantêm a
visão do modelo. A paráfrase resumitiva em Monteiro não é inocente e a soma das pequenas
III.8.1 Paráfrase
O local escolhido por Fonseca como cenário dos fatos que o Inspetor vivenciou é
mantido na peça. O dramaturgo faz uma paráfrase da informação dada pelo Inspetor no
paradigma, embora os vocábulos não tenham sido alterados. No texto dramático, a fala
relacionada à Serra do Barroso é separada por indicações cênicas para informar à personagem
como esta deve portar-se. Nota-se que o dramaturgo não menciona a entonação que poderia
ser diferenciada pelo Inspetor, bem como a mudança de sua expressão facial. Outro fato
Localizada na região noroeste transmontana de Portugal, também conhecida como Serra das
Cinco serras compõem seu horizonte: Larouco, Gerês, Cabreira, Alturas e Leiranco.
Este conjunto estende-se ao longo de oito quilômetros, cujo ponto mais alto se situa na
povoação de Alturas, com altitude de mil duzentos e setenta e nove metros no Alto da
Armada. Para Rodrigues Filho (2000, p.154), são “poucos os escritores a situarem suas obras
no Barroso, daí a importância em se perspectivar uma linha temática relacionada com tal
84
espaço”. A parada na estalagem onde a professora reside é apenas um caminho que dá acesso
à serra.
por Coelho (1976) que considera, em seus estudos, a localização espacial escolhida por
Fonseca como fundamental para a conotação mítica presente em O Barão. Para Coelho, o
verticalidade como expressão do ser. A montanha sugere uma “mandala”, morada dos vivos,
dos mortos, é a origem das colinas das fadas celtas e irlandesas. O herói adormecido no
interior de uma montanha, de onde sairá um dia para renovar as coisas sublunares. (COELHO,
desmoronamento.
Na peça, este aspecto – a associação entre o barão e o local onde ele se insere – é
bastante evidenciado nas diversas atitudes adotadas pelo Barão: “Eu ando com estas serras,
estes vales, estes céu que obriga os homens a endireitar a espinha” (MONTEIRO, 1964, p.25).
Branquinho reúne, em um local ermo, numa noite cheia de fatos inesperados, dois
narrado. As informações sobre Emília, no conto, são parafraseadas na peça. O caso de estupro
No conto, o Inspetor acusa o Barão de deixar cair a máscara pela qual esconde sua
forçam o uso de máscaras sociais, mas reforça que cada disfarce é limitado. Por isso,
Ocorre, portanto, que, ao tentar viver em conformidade com seus papéis, o Barão
Se, por um lado, o Barão tem poder; por outro, esse poder vai-se diluindo à medida que ele
imputa limitações a si mesmo a fim de seguir rigorosamente as diretrizes que cada papel
determina. A crítica do Inspetor questiona o poder efetivo do Barão e a possibilidade de, por
detrás de toda aquela mentalidade enrijecida e daquela couraça impenetrável, haver um ser
Na peça, a rubrica resume as idéias propostas pelo narrador ao detalhar como o Barão
exerce seu real ou falso poder ignorando a Professora. As aparições do humor oscilante do
Barão ocorrem em diversas passagens comprovando a existência das tais máscaras apontadas
A narrativa tem como personagem central o Inspetor sem nome, que não gosta de
viajar, mas é chamado à Serra do Barroso para proceder a uma sindicância na escola da
enunciador (Inspetor) que dialoga com um interlocutor (o público) acerca do fato de não
gostar de viajar.
Nota-se que Sttau apenas transcreve a apresentação do Inspetor de escola tal como
ocorre no conto. Tanto no conto de Branquinho quanto na peça de Sttau, o Inspetor apresenta-
se como alguém que irá narrar um episódio especial, ocorrido em uma noite insólita, em uma
região desconhecida. A negação está presente em ambos os textos: o funcionário público não
gosta de viajar e seus registros sobre os fatos ocorridos na serra do Barroso não são avaliados
pelo ponto de vista da filosofia, do folclore, nem tampouco da antropologia, informação dada
pela personagem no início dos textos. Contudo essa negação é inserida no texto sem nenhum
rejeitar uma idéia proposta. No caso, “não vou filosofar, não sou etnógrafo nem folclorista”,
presenciadas pelo Inspetor. Não despropositados, esses informes fornecem ao leitor uma
mais explorado pelo dramaturgo, pois, por meio desse recurso, o dramaturgo amplia os
intuito de Monteiro não é alterar a visão de mundo de Fonseca, mas adequar os mesmo fatos
paráfrase são realizados no intertexto, as idéias mantidas são a chegada no Inspetor na serra
do Barroso e a relevância desta no enredo dos dois textos. Outro mecanismo fundamental para
utilizadas por Monteiro ultrapassam a função de mera indicadora da entrada e saída e das
Fonseca sugerem os motivos que o levaram a eleger O Barão para um diálogo intertextual. Os
compreensível que o dramatrugo tenha escolhido a estilização como seu norte, pois quando
um autor estiliza, ele preserva a essência do modelo, mas tem a liberdade de acrescentar
Sendo assim, a paródia não seria a opção adequada para Monteiro, tendo em vista que
o objetivo do dramaturgo não era subverter o modelo. Por outro lado, a paráfrase iria impor
alguns limites que impediriam o autor de ir além do conteúdo do paradigma ; embora esta lhe
seja útil para resgatar muitas idéias, informações e propostas de Branquinho, ideologicamente
indispensáveis à peça.
acordo com a realidade vigente, e uma ampliação no significado do paradigma. Cabe, nesse
momento de nossa análise, verificar como o dramaturgo estilizou o conto de Fonseca e que
natureza ancilar”, uma vez que “adquire[m] um cunho transformador, isto é, ideológico”
(CORRADIN, 1998, p.220), é o caso dos acréscimos de situação, que assumem cunho sócio-
Romeu e Julieta. Além disso, as indicações cênicas favorecem a inclusão das impressões
parece ser a chave para a interpretação do texto de Monteiro. Já a seleção do poeta parece
significativa, Yevgeny Yevtushenko foi líder e porta-voz da geração pós-Stalin, devido a seus
ataques ao stalinismo e à burocracia, nos anos de (19)50 e 60. Ele ganhou fama internacional
com o poema Babi Yar, em que denunciava o anti-semitismo nazista e russo. Sua participação
no cenário intelectual ultrapassa a poesia, já que escreve novelas, encena e dirige filmes, e é
esperança e desilusão.
direito de cada um estabelecer e divulgar seus valores. Com base nesse pressuposto, parece
seguinte verso: (“the chronicle of planets” ou a crônica dos planetas a que se refere o poema).
Assim, a morte de um indivíduo não representa seu fim, mas a reminescência de sua natureza,
expressa nas escolhas feitas em vida, e em suas obras , o que se verifica nos versos “There are
left books and bridges/ and painted canvas and machinery./ Whose fate is to survive”). As
experiências pessoais se vão com a pessoa, mas as idéias que ousou divulgar permanecem.
Dessa forma, as pessoas não se fazem conhecer e não se eternizam, se não veiculam suas
idéias. Uma pessoa só se constitui como indivíduo se manifestar sua visão de mundo, seus
Palavras secretas não podem ser captadas, por isso o eu lírico lamenta a morte como
destruição de idéias daqueles que não se fazem ouvir. O caráter revolucionário do poema
quando enfatiza que o silêncio faz com que o homem perca sua individualização. Nesse
sentido, quando a pessoa não expressa suas idéias, ela se omite como indivíduo e como
suas idéias.
pelas personagens Barão e Inspetor, pois nenhum dos dois sabe realmente o que o outro
pensa, seja pelas palavras que proferem, seja pelos gestos que realizam. Por mais que o Barão
expresse sua indignação sobre seu passado e seus inimigos de Lisboa, um clima de mistério e
silêncio permeia a história do Barão que não parece ser divulgada. A consciência da omissão
de rosa na mão, nunca chegou a viver! Quando não há que fazer à rosa, quando não há a quem
Barão, entregá-la corresponde à manutenção do sistema; para o Inspetor, ela, enquanto idéia e
relação progressiva do Inspetor com a rosa, que ocorre nesta seqüência: primeiro ele afirma
que tem uma flor, em seguida se posiciona como um regente de uma orquestra,
posteriormente lamenta que tem uma rosa que ninguém quis, depois empunha o ramo seco
que toma por uma flor e, por fim, retira a rosa propriamente dita do seu casaco e a oferece ao
93
público. A posse da rosa representa uma idéia do Funcionário Público, uma ideologia; não é
mera imitação das atitudes do Barão porque adquire outro significado, é sua marca e seu meio
de adquirir o autoconhecimento. Ambos, Barão e o Inspetor, querem entregar uma rosa, mas
ecos no coletivo, quando promoveria transformações concretas. Sob essa óptica, o Barão
deverá ser interpretado como símbolo do Poder Permanente, em oposição a ele, o Inspetor
começa a treinar a própria voz e afirma, maravilhado pela descoberta: “Não se ouve nada,
nada, nada... só a minha voz. É a primeira vez que se ouve a minha voz” (MONTEIRO, 1964,
p.88).
“Mas mesmo os pesa-papéis têm qualquer coisa... tristeza pelo que são... ou... e... orgulho –
sim, meu irmão, sim, orgulho! – que chegue para não mostrarem o que lhes vai lá dentro
quando são abandonados na valeta” (MONTEIRO, 1964, p.85). Essa fala revela dois
que serve para inibir a realização pessoal. Instala-se no Inspetor o mal-estar individual que
Para o Barão, a rosa representa o poder, daí ele sentir-se seguro enquanto porta a rosa
e ser obstinado por entregá-la à Bela Adormecida, que, nesse sentido, pode ser associada à
pátria. E não é por acaso que Monteiro coloca a luz verde sobre a Bela Adormecida visto que
essa cor, que é usada simbolicamente na bandeira portuguesa, foi readaptada pelo salazarismo
sentido, é coerente afirmar que a moça, revestida de luz verde, recusar a rosa do Barão, sugere
preciso rejeitar o que é imposto pelo sistema a fim de criar novos caminhos para a construção
do indivíduo.
Assim, após vinte anos de opressão, esboça-se uma reação pela atitude da Bela
desperta e parcialmente atuante. Desse modo, o corpus inerte, metaforizado pelo sono
elementos que compõe o quadro político do momento, embora ainda não tenha voz para
expressar-se efetivamente.
Corrobora a tese de que o Barão representa o poder tirano e despótico, seu discurso na
peça. Frases como “Quem manda aqui sou eu!” (MONTEIRO, 1964, p.27) sugerem o caráter
ditatorial da personagem que não quer abrir mão do poder, mas sim impor-se aos que se
acercam dele. Essa idéia confirma-se quando o Barão expressa seu autoritarismo diante do
Inspetor: “O mundo acaba no portão da minha quinta – do portão para dentro mando eu,
ouviu?” (MONTEIRO, 1964, p.40). Além do autoritarismo inquestionável não são raras as
vezes que o Inspetor é rebaixado diante do fidalgo: “Acha que um homem pode ter vergonha
dum inspectorzeco do ensino primário? Uma mosca que justifica a vida vomitando relatórios”
(MONTEIRO, 1964, p.40). Esse despotismo do Barão será uma das justificativas com que o
Daí o Inspetor ousar criticar o Barão, chamando-o de covarde, quando este lamenta a
recusa de sua rosa. Sem perder sua altivez, o fidalgo declara: “Todos somos covardes”
(MONTEIRO, 1964, p.68). O pronome indefinido insinua que o silêncio mortificador não é
um problema de ordem individual, mas coletiva. Assim, a rosa é uma idéia a ser divulgada e
aquele que se deixa intimidar, um covarde. A dimensão crítica e social ganha corpo nessa
dos que têm uma rosa a entregar e não o fazem. Dissimuladamente, o dramaturgo sugere seu
desejo de romper com a censura, e modela uma crítica endereçada ao opressor e ao oprimido
divulgar suas idéias para manter o poder que possui. A resistência da Bela Adormecida
corresponde à oposição do povo aos ideais de um tirano, embora o mutismo dela comprove a
Para chamar à mobilização, Sttau parte da premissa de que a sociedade portuguesa é um corpo
imóvel que, com o passar dos anos, não avança rumo às novas propostas de reestruturação e
mudanças.
Em: “Enquanto não der a minha rosa, ninguém me agarra! A minha rosa – a minha
única rosa!” Ninguém me tira a minha rosa! [...] A rosa que ninguém quis! [...] A minha rosa
sou eu! (MONTEIRO, 1964, p.122), nota-se que a rosa adquire a conotação de alter ego do
contrário do Inspetor, para quem a rosa é instrumento de revolução, o fidalgo empunha a rosa
como símbolo de seu poder, como meio de garantir a manutenção do status quo.
No acréscimo de situação em que o Hino é cantado, a rubrica informa que o palco está
iluminado por sombras caleidoscópicas e formas irregulares. A escolha por organizar o palco
desafio, o Funcionário Público coloca-se próximo da ribalta, andando de um lado para o outro
Inspetor – líder revolucionário – estão separados por grades dispostas em duas filas paralelas
à ribalta.
o ideal ainda não se caracteriza como algo concreto, visto que a revolução desenvolver-se-ia
confirma o poder que este detém e como o fidalgo vê seu entorno e aqueles que sua vista
alcança. O solar possibilita a visão de toda a serra, do vale e por extensão, de todo Portugal.
Essa vista panorâmica é um signo da representação da predominância do poder. Por isso para
conhecer e compreender as relações que existem entre o poder político do Barão e o espaço
espaço passa ser determinante num sistema de controle econômico, político e social. Basta
observar o castelo no alto da serra que é um símbolo ainda mais imponente de um poder que
excedeu seus limites. Contudo, a autoridade e o poder Barão são freqüentemente questionados
no tocante à legitimidade. Sttau não efetiva o poder do Barão, pois ele o apresenta com
97
alguma dubiedade. O dramaturgo incita o leitor-espectador a reconhecer esse poder como algo
para uma discussão sociológica aberta em que houvesse um afastamento entre público e palco
capaz de evitar qualquer manipulação de idéias. Subjaz, nesse posicionamento, duas idéias: a
de romper com o teatro aristotélico que estimula a emoção, e a de aderir a um teatro que
década de sessenta tinha como característica evocar o passado para refletir sobre o presente,
“seguindo a ‘lição’ de Brecht nem sempre compreendida na sua exata configuração dramática,
teatral e política, mas intuindo nela a possibilidade de uma contestação ao regime vigente”
(SERÔDIO, 2004, p.104). Monteiro, influenciado por Brecht, se apropria do teatro para
convidar o povo português a refletir a respeito das questões ligadas ao coletivo e/ou
trouxe de Brecht para sua produção dramática. Nesse sentido, a arte do autor é colocada a
Desse modo, as artes e as ciências, depois de terem feito os vícios brotarem, são
necessárias para impedir que se tornem crimes, cobrindo-os com um verniz que não
permite que o veneno se espalhe tão livremente. Destroem a virtude, mas preservam
o seu simulacro público que é sempre uma bela coisa; em seu lugar introduzem a
polidez e a decência, e substituem o temor de parecer mau pelo de parecer ridículo.
(NASCIMENTO, 2006, p.190).
98
Por conseguinte, a arte possui dupla função no mundo: divertir e politizar. Mesmo que ela, a
Outro recurso utilizado com intenção semelhante é a citação dos textos clássicos da
Heloísa de Rousseau . Para a autora, a semelhança entre as heroínas das duas obras pode ser
verificada numa referência explícita em uma das cartas trocadas entre St.Preux e Julia:
“Sempre tive pena de Heloísa... – e o próprio título do romance – ainda que tenha sido
acrescentado posteriormente – pode parecer difícil compreender por que os mais ilustres
Heloisa para compor sua obra e cita algumas relações entre as obras que fortalecem sua
de Abelardo e Heloisa pode ser notada “no amor entre o professor de filosofia e sua pupila, na
cartas” (PRADO, 2000, p.22). Em ambas as obras, a união dos casais não é possível por causa
cartas.
99
Em Rousseau, a alienação pode ser constatada na vida das personagens Julia e seu
marido Wolmar, que mantém seus agregados sob rígidos preceitos e paralelamente simulam
Monteiro toma o Solar e a Tuna para representar o alucinógeno das festas coletivas
idéias do poder vigente. O Solar, a Tuna e outras indicações levam a crer que o fidalgo, a
exemplo das personagens de Rousseau, também pretende criar seu mundo ideal onde as
discurso do Barão faz um contraponto entre a serra do Barroso, que revigora as simbologias
que o protagonista tem para articular e ampliar suas escalas políticas por contar com maiores
recursos econômicos. Todo o processo de articulação vai desde a propagação ideológica até a
forma como o Barão mobiliza e organiza as pessoas para atuarem dentro das estratégias
traçadas por ele com o intuito de manter o seu poder permanente. Basta levar em consideração
que são as principais personagens sociais que se manifestam no espaço onde ele é poder
absoluto.
seduzi-la, referindo-se ao lugar como símbolo de beleza: “Um palácio grande, com muitas
100
janelas, muitas portas, muitos criados, e um jardim cheio de flores verdes, vermelhas,
amarelas” (MONTEIRO, 1964, p.45). As cores enfatizadas pelo Barão são as mesmas da
bandeira de Portugal que também são verdes, vermelhas e amarelas assim como as flores
mencionadas pelo Barão. Sendo assim, o espaço do Solar reafirma-se como metonímia de
Essa discussão sobre o solar enquanto ícone geopolítico implica uma leitura crítica das
imagens construídas na fala do Barão; explorar essas imagens leva inevitavelmente para os
implica perceber como ele pode ser identificado e interpretado pelo leitor a partir das
Fonseca. Isso porque em Fonseca o lugar é descrito e em Sttau o lugar é transferido para o
campo das sugestões psíquicas, ou seja, o ambiente físico se mistura ao ambiente psicológico.
Ao citar Abelardo e Heloísa, Monteiro não pretende chamar a atenção para a história
de amor, mas enfatizar o privilégio de uma classe social dominante que sufoca a liberdade de
expressão de outras classes. Abelardo e Heloísa trazem à baila o tema do conflito instituição
versus indivíduo representado pelo amor como o poder que dinamiza a individualidade.
Da mesma forma, a peça remete a Romeu e Julieta, que enfoca a força social
Uma das cenas mais famosas do texto de Shakespeare, escrito na Inglaterra do Antigo
Regime, está presente no intertexto e carrega reminiscências da censura. Para comprovar essa
afirmação, vale citar o trecho em que Julieta faz uma digressão a respeito do nome de seu
amado:
(Montecchio) submete-se ao amor pelo indivíduo Romeu. O amor individualiza aquele que
era apenas anônimo membro da família inimiga. As personagens Romeu e Julieta estão
casar-se às escondidas, Romeu e Julieta negam os privilégios sociais que servem como pilar
Aniquilar o nome significaria libertar-se da instituição familiar e tornar-se livre para conduzir
Romeu e Julieta, ele não o faz para evocar uma idéia romântica, mas sim para insinuar como o
“como se fosse aquilo que sou...e que já estava a pensar que não era: um pesa-papéis sem
estrutura que quer se firmar como poder permanente. Daí Fonseca e Monteiro questionarem a
Monteiro propõe com tenacidade esse debate talvez por ter experimentado a repressão
de sua expressão artística. Por conseguinte, a supressão dos nomes das personagens torna-se
uma crítica contundente que Fonseca e Monteiro fazem a um sistema que imobiliza o homem
leva o leitor/espectador a uma viagem crítica que vai além do social e encaminha-se para as
Mesmo a identidade do Barão se perde em seu título, ele veste a máscara do tirano,
continuando a tradição de seu pai e perde sua identidade original. A rosa, nesse caso, também
pode consistir em uma tentativa frustrada de dar um fim à angústia de viver a ausência de si
mesmo.
Nesse contexto, a substituição dos nomes das personagens por seus títulos reitera a
escolha do contista e do dramaturgo por acentuar que eles apenas representam instituições. As
Emblema? Símbolo? Mito? O Barão é tudo isso; mas antes de tudo isso,
independentemente de todos esses valores que lhe são dados pelo meio, pela raça,
pelo tempo (utilizemos, já agora, sem rebuço, o trípode do velho Taine!), é um ser
concreto, que nos parece ‘de carne e osso’ pelo modo como a estrutura da novela o
apresenta, gradualmente o desoculta, incompletamente o ilumina; é um ser que nos
perturba e revolta, e comove, com seus defeitos e suas qualidades, as suas obsessões,
os seus sonhos, a sua índole pessoal e intransmissível... Daí, a incomparável
espessura que ele tem como criação romanesca.
E, todavia, O Barão não é apenas o Barão. (MOURÃO-FERREIRA, 1969, p.142-
143).
103
Portanto, é pertinente afirmar que o Barão como instituição é poder permanente, a Professora
(1980), o aparelho ideológico do Estado influencia o homem quando este, ao executar uma
desdobra-se em uma ambigüidade, uma vez que ora se coloca contra o poder que o Barão
exerce, ora se mantém neutra sem emitir opiniões acerca do fidalgo. E é o contato inicial da
Ideológico do Estado. Nesse momento, ela se divide entre uma postura autoritária com os
funcionários e outra de subserviência em relação ao Barão e ao Inspetor, que ela pensava ser
amigo do Barão.
poder em que ela se insere consegue cerceá-la a ponto de inibir suas ações.
O Inspetor afirma que ninguém havia conversado com ele antes dela: “são todos
dizer que não tem amigos: “Amigos e amigas!? Mas o que julga o sr.Inspector que é uma
aldeia perdida nas serras?” (MONTEIRO, 1964, p.20). Essas primeiras trocas entre os dois é
que vão indicar o perfil opositor da Professora: uma resistência controlada, isto é, o indivíduo
tem uma objeção, contudo, não se manifesta porque suas ações são restringidas por um poder
Professora.
104
Nas referências que a Professora faz ao Barão não existem críticas consistentes, são sempre
da Professora durante uma conversa com o Inspetor, em que o assunto em pauta era o Barão:
“Se gostam dele? Há coisas de que não se gosta, nem deixa de gostar... existem e acabou-se!”
(MONTEIRO, 1964, p.19). Em outras palavras, ela insinua que é obrigada a acatar o poder
instituído, embora não concorde com ele. Essa passividade reitera a limitada posição política e
perfil de resistência cotidiana dissimulada, que apenas aceita a perpetuação do que existe
apesar do que pensa e fala. Ela não une toda a comunidade da aldeia para transformar suas
idéias numa ação revolucionária; pelo contrário, em certa medida ela mantém e reproduz o
sistema vigente.
que não se manifesta da mesma forma diante do Barão. Isso se verifica, por exemplo, no
episódio em que a presença do fidalgo na hospedaria inibe até os movimentos mais simples da
educadora. A cevada ruim que a Professora bebe, como se fosse café, com “satisfação” ao
ser humano é o animal mais adaptável” (MONTEIRO, 1964, p.23). O comentário do Inspetor
Por outro lado, o Inspetor representa outro tipo de resistência: a reformadora, porque
Nota-se, gradualmente, nas atitudes do Inspetor uma resistência reformadora, uma vontade
ativa de mudar a situação imposta. Este perfil não se comprova em fragmentos da peça, mas,
quando a unidade da obra é observada. Monteiro registra, ora de modo sutil, ora mais
105
espírito republicano das pessoas, pois, reconhece que todo vigor da sua individualidade não é
Por isso, o leitor/espectador da época deve inferir que, se por um lado existe o sistema
que oprime; por outro, existe uma sociedade que pode revoltar-se. Sendo assim, nada ocorre
Faz sentido, neste contexto, transformar um Inspetor da área da instrução no sujeito que entoa
mais um momento específico o dramaturgo fará outro apelo crítico de teor semelhante: pela
referência ao Verde-Gaio.
1940, o secretário da Propaganda Nacional, António Ferro, decidiu fazer “a sua política do
espírito no campo da dança, e deu a Francis Graça a possibilidade de realizar, em três meses,
o sonho que aquele há anos acalentava, ou seja, a criação de um grupo de danças folclóricas
teatralizadas. Assim nasceu o Verde Gaio” (SASPORTES, 1979, p.71), uma proposta do
governo para monitorar o interesse pela arte e fazer sucumbir outras manifestações artísticas.
Heloísa Paulo em Vida e arte do povo português (1994), destaca que com a
instauração do Estado Novo em 1933, outros órgãos foram criados com o objetivo da
elaboração “de uma determinada imagem-tipo do ‘ser português’, que é construída a partir de
regime” (PAULO, 1994, p.106). Para criar tradições identificadas com a visão do Estado
106
Novo, foi criado o Sistema de Propaganda Nacional – SPN, responsável por incentivar os
Portugal para envolver todas as comunidades do país. Para ser escolhida, essa deveria ser
submetida a “um júri [sic], formado a expensas do SPN, e sob a direcção do Presidente da
conhecimento sobre as manifestações artísticas propostas pelo órgão oficial, perceberá que o
Inspetor reconhece na Tuna a encenação de um programa oficial. O Verde Gaio, durante a sua
existência, possuía três vertentes de ação. Na primeira desenvolveu temas como “Ribatejo”,
“Imagens da Terra e do Mar”, que pretendia apresentar um painel vivo das províncias
porque se afasta do folclore e do apelo nacionalista. (PAULO, 1994, p.115-116). Essas três
vertentes compõem a idéia daquilo que o SPN entendia como uma arte popular que
caracterizava o povo português. É por isso que o Inspetor, nos dois textos, ri quando o Barão
anuncia o Verde-Gaio. A Tuna já havia adentrado o solar quando essa frase foi pronunciada,
trata-se de uma nova crítica no que diz respeito ao grupo oficial. Da mesma forma que este
grupo estava a serviço do António Ferro, a Tuna estava a serviço do Barão. E o riso do
Inspetor representa que ele compreende que a Tuna é utilizada para convencê-lo de que para
ser bom português é preciso gostar de arte desarticulada e sem propósitos críticos e
107
amordaçado.
O Inspetor não segura a gargalhada e o Barão lhe dirige um olhar de censura, tornando
Público muda de atitude e dá a impressão de que gosta da Tuna. A idéia por trás dessa
apresentação era levar o Inspetor a acreditar que os rituais do Barão e o ritmo de vida que ele
levava na serra do Barroso era ideal. A crítica do dramaturgo faz-se no fato do Verde-Gaio ter
Outra crítica feita pelo dramaturgo refere-se ao solar do fidalgo, esse, tanto no conto
como na peça, não têm realçados seus componentes históricos, mas é retratado como um lugar
a - espacial e atemporal.
Mais do que cenário histórico representado pela serra do Barroso, o local escolhido
para o desenvolvimento dos dois enredos e os diálogos intertextuais que ambos os autores
utilizaram em suas respectivas produções são pertinentes para a concretização dos argumentos
(2002), o autor parte da premissa de que "A história é a história do homem do seu tempo”
(BLOCH, 2002, p.31). O Solar é histórico no que se refere à narrativa do Barão acerca das
origens do seu despotismo, que começou com o Pai. O fidalgo dá ao Solar o estatuto de lugar
em que cabe o mundo: suas origens, suas idéias, a formação do seu poder e de uma
supremacia que começa nele e vai sendo reforçada por uma área geográfica que favorece seus
mecanismos de manipulação.
As confissões do Barão sugerem o retrato histórico do lugar à medida que ele relata as
origens do baronato, seus propósitos privados e o desejo compulsivo pelo poder, que começa
a ser exercido por seu pai. A necessidade de poder determina a origem de quase todos os seus
108
relacionamentos, marcados pelo desejo de manipular. Alguns deles, como no caso de Emília,
até gera dilemas morais, mas não o suficiente para inibir as atitudes do Barão rumo ao poder.
Portanto, o Barão é um homem que se integrou ao seu ambiente a ponto transferir seus
códigos éticos, políticos, sociais e afetivos para os elementos materiais – móveis, arquitetura
etc - e naturais – montanhas, terras, flores. Desse modo, tudo o que compõe a espacialidade
onde vive o fidalgo passa a existir como ícone histórico do processo de construção do seu
A relação entre o Barão e o Solar faz com que o Inspetor se transforme em estranho ou
invasor, já que representa novos códigos. Isso faz com que o Inspetor seja uma ameaça à
imunidade do Solar aos valores externos. Por isso, os movimentos do Barão em relação ao
Inspetor são sempre excludentes, por exemplo, só o Barão fala, deixando a identidade
histórica do Inspetor de lado. Outro sinal de exclusão é o fato de o Inspetor não integrar o
círculo social do Barão. Para garantir a permanência dos seus próprios valores, o Barão
compartilha com o Inspetor despoticamente apenas as suas experiências pessoais para não
concretiza como sujeito político e social. Sendo assim, o solar, como retrato da biografia do
Barão, incorpora e maximiza a realização dos interesses e desejos privados do fidalgo. Nesta
perspectiva, o espaço do solar só pode ser visto como um freio que impede a realização e
expressão de outros indivíduos. Sendo assim, o Inspetor se comporta como um ser dentro da
História que ainda não se reconhece como agente, mas mero receptor.
Resta mencionar que o Inspetor e o Barão possuem uma relação fronteiriça porque
entre os dois não existe um confronto direto, mas, um sistema de provocações freqüentes que
109
dramaturgo reafirma as críticas feitas por Fonseca acrescentando no intertexto sua própria
dramaturgo de construir um texto subliminarmente fortalecido por símbolos que não podem
Monteiro desaloja do plano dos ideais algumas mensagens que estavam contidas, mas,
não explicitadas, no modelo e lhes atribui carne, corpo, vida, enfim, coloca-as em pleno
Por isso alguns signos elaborados e confinados nos domínios do intertexto só podem ser
Outro fator que corrobora este tom enigmático do texto monteiriano é a existência da
ilusão reforçada pelos planos de ação na peça. A rubrica, além de informar que várias
recurso para sugerir dissimuladamente as ideologias que não apareceram nas falas das
O Barão sofre várias alterações no intertexto, mas, o que prevalece nele ainda é a idéia
de pater, pátria e propriedade. Isso se nota nas relações que ele mantém com o espaço, com as
pessoas presentes, que, em geral, ele coisifica e transforma em produtos de seus interesses.
Barão ou que o seu poder de fidalgo está sendo colocado em discussão e precisa ser
110
quando ele afirma que não pretende realizar mudanças radicais em seus domínios e nas
advertências que faz sobre poder: “Ah, meu amigo! Ser outro!... Regenerar-me... mas não é
como mudar de camisa...Quero, mas não posso. Não é só querer... Imbecis! (MONTEIRO,
1964, p. 41). Nessa passagem o fidalgo mostra a vitalidade das adesões e funções e a
E para se manter no poder permanente o Barão tem que tomar o controle total das
decisões a partir de mentiras, traições, mudanças de regras: “Haja o que houver, aconteça o
que acontecer! Faz parte do código dos barões... [...] Sabes o que é o código dos barões? É um
conto de Fonseca a relação do Barão com a Bela Adormecida e a rosa é mais limitada. No
conto a ênfase se concentra na entrega da rosa e nas dificuldades e frustrações que implicam
ela foi aceita ou rejeitada. Pode até existir uma sugestão de rejeição, mas, em Monteiro a
rejeição da rosa além de explicitada também é repetida inúmeras vezes por intermédio das
sucessivas recusas da Bela. Nessa perspectiva a negação da Bela anuncia que o poder do
Barão é limitada.
personagens. Para o Barão, ela é um ideal frustrado, mas intenso, pois, mesmo não sendo
alcançado, conta com a inesgotável persistência do Barão. Para o Inspetor, ela é um ideal que
Desse modo, ao estilizar o conto, o dramaturgo acrescenta o ramo seco e a rosa para desvelar
a Marselhesa.
111
O Inspetor não canta o hino da Primeira Internacional porque desde a década de 1920
fascismo. Entoar este hino significava efetivamente querer pôr fim ao modelo de Estado
Esses podem ter sido os motivos que impediram o dramaturgo de mostrar o Inspetor
exaltando o Hino da radical Internacional – simbolizada pela rosa. Sttau optou pela entoação
da ‘renovadora’ Marselhesa.
No final da peça o Barão sofre um atentado e duas reações a este fato ocorrem
suporte à vítima e, por outro, está o Inspetor vagueando em um plano como se fosse o culpado
pelo ataque ao Barão. E o público fica intrigado com o fato de o Inspetor ser portador de uma
arma. O dramaturgo planta essas pistas e outras que levam a crer que o Inspetor era o perigo
que estava nos domínios do Barão e que diante desse perigo nada poderia proteger o Barão:
nem a descendência, nem o título, nem tampouco o solar. Dessa forma, Sttau reafirma a
susceptibilidade do poder do Barão, aspecto que ele insinuou diversas vezes durante a
homem em sua condição de mortal, possui poder parcial por mais que conquiste o mundo que
lhe cerca.
guerra santa. A sua tendência ao engajamento levou-o duas vezes à prisão, o que confirma
V – CONCLUSÃO
Fonseca, além de estabelecer relações com outras obras, a fim de formular e fortalecer os
da rosa, pois, a ênfase dada a esse elemento estende-se à caracterização das personalidades e
das ideologias das personagens. A rosa é o norte ou sustentáculo de todos os eventos da peça.
Outro aspecto importante são as indicações cênicas. A rubrica em Sttau é o meio pelo
qual o dramaturgo estabelece o diálogo com o modelo, relê a conjuntura política e social de
artística era mantida sob a mira da censura. Por conseguinte, Monteiro consegue fazer suas
BIBLIOGRAFIA
Presença, 1980.
ALMEIDA, Fialho de. A madona do campo santo. In: A cidade do vício. 9.ed. Lisboa:
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo:
1997.
2002.
BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (orgs). Dialogismo, Polifonia,
BETTHELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1980.
Lisboa, 1985.
114
de Arte e Turismo. Edição do Secretariado da Propaganda Nacional, Lisboa, v.1, n.1, p.18-
19, jul.1941.
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva et al. Rio de
CORRADIN, Flavia Maria. Antônio José da Silva, o Judeu: textos versus (con)textos.
Gulbenkian, 1965.
aplicada à arte dramática. Org. e trad. Luiz Arthur Nunes e outros. Porto alegre: Ed. Globo,
1972.
MATTOSO, José. História de Portugal. O Estado Novo. Lisboa: Editorial Estampa, s/d. v.
7.
MOISÉS, Massaud. A criação literária. Prosa I. 20. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
______. Dicionário de termos literários. 12. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cultrix, 2004.
MONTEIRO, Sttau. Auto da barca do motor fora da borda. Lisboa: Ática, 1970.
______.Duas peças em um acto: A guerra santa. A estátua. 2.ed Lisboa: Ática, 1974.
Francisco C. Os clássicos da política. 14. ed. São Paulo: Ática, 2006. p.189-241.
PASCHKES, Maria Luísa de Almeida. A ditadura salazarista. São Paulo: Brasiliense, 1985.
PAULO, Heloisa. “Vida e arte do povo português”: uma visão da sociedade segundo a
propaganda oficial do Estado Novo, Revista de história das idéias: Instituto de história e
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad. J.Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
116
______. A análise dos espetáculos. Trad. Sérgio Sálvia Coelho. São Paulo: Perspectiva,
2005.
2000.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. Trad. Paulo Neves. São Paulo:
______. Ler o teatro contemporâneo. Trad. Andréa Stahel M. da Silva. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & cia. 5. ed. São Paulo: Ática,
1998.
Bertrand, 1974.
Bertrand, 1979.
117
SENA, Jorge de. Sobre o romance e a novela, com referencia especial à literatura inglesa. In:
____. Sobre o romance: Inglês, Norte-Americano e outros. Lisboa: Edições 70, 1986, p.63-
77.
SERÔDIO, Maria Helena. Dramaturgia. In: Literatura Portuguesa no século XX. Lisboa:
SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1998.
UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Trad. José Simões. São Paulo: Perspectiva, 2005.