Trincheira Dez 2022
Trincheira Dez 2022
Trincheira Dez 2022
Ano 5, Nº 24
O Instituto Baiano de Direito Processual Penal é uma associação civil sem fins econômicos
que tem entre as finalidades defender o respeito incondicional aos princípios, direitos
e garantias fundamentais que estruturam a Constituição Federal. O IBADPP promove o debate
científico sobre o Direito Processual Penal por meio de publicações, cursos, debates, semi-
nários, etc., que tenham o fenômeno criminal como tema básico.
9 LIRISMOS INSURGENTES
ARTIGOS
27 WALKIE-TALKIE
Pont
Coluna
e
.CONTRAPONTO Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho
bilidade construída pela linguagem no caminho da ferente com os que acreditam no discurso da men-
Verdade. Nada mais do que isso. tira, das notícias falsas, das notícias mentirosas?
Portanto, no espaço da ciência, parece exis- Essas, da sua parte, subvertem a ordem e
tir a Verdade, mas ela é demais para nós. Ela se constroem a exceção que, por evidente, não tem
sustenta, porém, no âmbito da crença. Eis por que como se sustentar. As mentiras são mentiras e não
é tão relevante o que Jesus Cristo disse e está em se sustentam, a não ser para os que nela acreditam,
João 14:6: “Eu sou o caminho, a verdade, a vida.” sustentam-nas e as difundem. Elas, como se sabe,
Perceba-se: está no âmbito da crença! Quem crê, produzem um efeito de verdade em quem acredita;
crê. E basta. E se deve respeitar, razão por que a e em nome dela, agem. Similar a uma seita. Em re-
tolerância religiosa é tão importante. Mas nada alidade, por trás está a ideologia e, por ela, o poder,
tem de ciência aí. pela manipulação de mentes e a sujeição de corpos.
O dilema, portanto – e isso é por demais Steve Bannon é o Joseph Goebbels de hoje,
importante –, não está na verdade ou mesmo na mas muito mais ardiloso porque como poucos
Verdade, embora o tema seja poroso e complexo. sabe as possibilidades das redes sociais com seu
O problema está – sem dúvida – no discurso sobre caráter global e informações instantâneas. Por
ela. Afinal, quem fala a verdade (ou da Verdade), elas, a mentira “vira” verdade, ainda que visível,
mesmo que de boa fé, está, da Verdade, dizendo escancarada, desbragada. Não importa. Quem as
uma mentira. Em suma, quem diz a verdade (com produz sabe que o receptor não só as aceita como
v minúsculo) achando que diz a Verdade (com V as quer, de modo a que possa levar adiante a sua
maiúsculo), mente. racionalidade tresloucada. É ou beira à paranoia,
A partir daqui vê-se logo que se trabalha não raro com delírios, como os do famoso Schre-
com uma “alusão à”; e se concertam os arranjos ber, de Freud. Essa gente que as produz sabe bem
para se possibilitar errar o menos possível. Os avi- o que está fazendo, inclusive que se trata de cri-
ões – sabidamente mais pesados que o ar – garan- me. A justificativa, agora (15.11.22), é que estão em
tem um segurança cada vez maior para quem voa guerra e, portanto, elas se legitimam só por isso. A
neles, embora de tanto em tanto tem-se notícia, realidade, contudo, é que não há guerra alguma, a
infelizmente, de alguma queda, com frequência não ser na cabeça deles, ainda atordoados com a
determinada por erro humano. Caem, porém. E a derrota nas eleições presidenciais que – como se
verdade se esvai. No processo penal, os arranjos passou com Trump e os trumpistas – não querem
não são tão precisos como na aeronáutica e os reconhecer, com as mais absurdas justificativas,
erros aparecem com uma frequência preocupan- todas improcedentes.
te. A subjetividade, por evidente, fala mais forte. As fake news, enfim, disseminam o ódio, afron-
E garante uma desculpa mais ou menos adequada tam a ordem constitucional e jurídica, assacam con-
para quem se esconde atrás da verdade ou mes- tra as instituições e, sobretudo, a democracia. Em
mo da Verdade. No fundo, é pura hipocrisia. nome dela devem ser eliminadas e processados os
Então, se não são poucos os que acreditam que, com elas, ofenderem bem jurídicos protegidos.
no discurso da verdade/Verdade, por que seria di-
5
Coluna
ELAS
NO FRONT
Uma mulher grávida de quatro meses é agre- Esse incremento ressoa ainda mais preocupante
dida com golpes de faca e queimaduras nas par- porque acontece também em outras regiões do
tes íntimas. Outra mulher grávida de seis meses é país, como aponta a mesma nota técnica. A situ-
agredida até desmaiar com socos que deformam ação assim colocada, antes baralhada em ficção,
seu rosto, na frente da filha de cinco anos. Elas são passa a firmar os contornos de um docudrama.
encaminhadas ao hospital, o quadro de saúde não é A alta generalizada da violência doméstica
revelado, os principais suspeitos são seus compa- chega em resistência aos mecanismos de pro-
nheiros. No meio de contos de cidades adormecidas, teção e assistência às mulheres previstos na Lei
esse é o cotidiano que se faz presente: um aterro de Maria da Penha – Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de
sujeição e impotências na vida de muitas mulheres. 2006 –, considerada pelo Fundo de Desenvolvi-
O que poderia ser um enredo-denúncia de mento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem)
obra de ficção pela crueza e selvageria das cenas, uma das três legislações mais avançadas do mun-
os noticiários apresentam como histórias reais. do sobre a matéria (BRASIL, 2009). Ela ainda per-
O cenário tem palco na Bahia e ocorre em 2022, siste em meio à edição recente de leis que inovam
ano em que a Rede de Observatórios da Seguran- ou recrudescem o tratamento criminal dado às
ça aponta um aumento considerável no índice de pessoas acusadas, com a previsão de novos tipos
feminicídio e violência contra as mulheres no Es- penais (v.g. o da violência psicológica)2 e de qua-
tado no período de um ano (RAMOS et. al., 2022)1. lificadoras de crimes específicos (v.g. a figura do
1
O relatório “Máquina de moer gente preta” indicou o mo- 2
FO artigo 147-B do Código Penal, introduzido pela Lei nº
nitoramento, pela Rede, de 301 eventos de feminicídio e 14.188, de 28 de julho de 2021, tornou penalmente típica a
violência contra as mulheres no período de agosto de 2021 conduta de “Causar dano emocional à mulher que a preju-
a julho de 2022, ao passo em que o relatório “Elas vivem”, dique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise
elaborado em referência ao interstício anterior, apontava o a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos,
registro de 200 casos. crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
6
Coluna: Elas no front
feminicídio)3. Nenhuma dessas ferramentas pare- As questões culturais que permeiam esse
ce importar a quem subjuga, maltrata e fere as delicado problema mundial tanto reflete quanto
mulheres. se retroalimenta dos retrocessos promovidos pelo
O que segue falhando? O que os nossos governo brasileiro nos últimos anos. Desde 2020
olhos, ouvidos, racionalidade; o que a nossa sen- houve a redução de aproximadamente 90% do or-
sibilidade não consegue alcançar? Até quando não çamento público disponível ao Ministério da Mu-
conseguiremos, enquanto sociedade, discernir a lher, Família e dos Direitos Humanos para as ações
linha tênue que separa a civilização da barbárie? de enfrentamento à violência contra as mulheres
Falar sobre a violência contra as mulheres é (FOLHA DE S. PAULO, 2022). Um levantamento re-
trazer questões nem sempre nítidas de opressão: alizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômi-
o senso comum relaciona a violência à que atinge cos (2022) apontou que, também no ano de 2020,
a integridade física e até arranca abruptamente a o Ministério da Mulher “deixou sobrar” 70% da (já
vida das mulheres – mas esses são os seus exces- reduzida) verba empenhada, o que sugere a au-
sos e não a opressão por si só. Quando inserimos a sência de prioridade do governo sobre a pauta.
violência apenas nesses excessos, outros tipos de Isso significa dizer que o debate em torno
agressão (a psicológica, a moral, a patrimonial) são do enfrentamento da violência contra as mulhe-
indevidamente naturalizados. O combate a essa res, embora envolva complexidades diversas, deve
violência deve se voltar, portanto, não apenas aos ter por foco o desenvolvimento de ações de sen-
atos que geram marcas físicas, ao que se vê, mas a sibilização, reflexão e conscientização acerca das
tudo o que subjuga e prejudica o espírito e a auto- questões de gênero que permeiam as interfaces
nomia das mulheres (GONZÁLEZ, 2006)4. do fenômeno, principalmente de seus aspectos
Em absoluto temos de escancarar os olhos culturais, para que as mentalidades e processos
para as questões culturais que perpassam essa sociais machistas sejam desconstruídos, permi-
grave violação dos direitos humanos das mulhe- tindo um desenho mais eficaz das políticas públi-
res e não nos atermos unicamente às questões cas a serem implementadas na área.
jurídicas e às implicações penais do fenômeno. É Não deixemos que flagelos políticos ditem
notório que, a despeito da luta travada pelos mo- as nossas vidas. A voz do milênio, Elza Soares, en-
vimentos sociais no campo, a sociedade brasilei- toando e interpretando a canção de Raul Seixas,
ra permanece sendo estruturalmente patriarcal, alerta que não podemos nos sentar “no trono de
machista e sexista, e validando o uso de mecanis- um apartamento com a boca escancarada, cheia
mos ideológicos que tratam a violência como um de dentes, esperando a morte chegar”. Lancemos
elemento estruturante das relações de poder.5 um Viva! a cada denúncia do ouro de tolo e siga-
Essa dinâmica social permite, ilegitimamente, que mos reconstruindo os caminhos abatidos em prol
as mulheres continuem experienciando uma cul- da segurança, da independência e da autonomia
tura de discriminação, aviltamento e opressão a das mulheres. O sol precisa raiar e nós queremos
partir de uma distinção de gênero. acordar sem o cansaço de sentir medo.
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Coluna: Elas no front
Thaís Salles
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Lirismos Insurgentes
ANDAR TRÔPEGO
Fernanda Furtado
Socióloga e advogada, especialista em Política e Estratégia pela UNEB,
e mestre em Direito Público pela UFBA. Autora da coletânea de poemas
“Primeira pessoa” (ed. Caravana, 2021).
Artigos
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Artigos
quando interrogado em eventual imputação de do direito. Somente assim o devido processo legal
falta grave na execução penal (STJ, 2022). estará resguardado, inclusive em processos ape-
O interrogatório é dividido em duas etapas. natórios administrativos e execução penal.
A primeira consiste na qualificação, sobre a qual
não incide o direito ao silêncio, enquanto na se-
gunda parte do interrogatório deverá ser respei- REFERÊNCIAS
tado o Aviso de Miranda. Nessa segunda parte do
interrogatório o réu será questionado sobre os fa- BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito Processual Penal. Rio
tos, e sobre os fatos o flagranteado, investigado, de Janeiro: Elsevier, 2007.
denunciado ou condenado podem exercer o direi- BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Painel Justiça em
to de não produzir prova contra si. Números, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/
A jurisprudências, aliás, atendeu aos pedi- wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-nu-
dos sobre a validade do silêncio parcial, como meros2021-12.pdf. Acesso em 23 set. 2022.
no caso em que decide responder apenas às BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2016), RHC 67.730/PE,
perguntas de(a) seu(ua) advogado(a) (STJ, 2022). Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJe 04/05/2016.
Isso ocorre pelo fato de que, após ser alertado BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2021-A). AgRg no HC
quanto ao direito de permanecer em silêncio, é 674.893/SP, Rel. Ministro João Otávio De Noronha, Quinta
faculdade do investigado/denunciado decidir a Turma, julgado em 14/09/2021, DJe 20/09/2021.
respeito de qual forma irá exercer essa garantia BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2021-B). HC n.
constitucional, que deve ser livre, desimpedida 614.339/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca,
de qualquer interferência, óbice, ou outra má- Quinta Turma, julgado em 9/2/2021, DJe de 11/2/2021.
cula que impeça a pessoa de poder realizar sua BRASIL, Superior Tribunal de Justiça (2022-A). Decisão Mo-
autodefesa (STJ, 2020). nocrática HC 768.988/RJ de relatoria do Ministro Reynal-
Vale lembrar, por fim, que o direito ao si- do Soares da Fonseca; julg.06/09/2022; publ.09/09/2022.
lêncio decorre do Direito de não produzir con- BRASIL, Superior Tribunal de Justiça (2022-B). Habeas
tra si mesmo (nemo tenetur se detegere), res- Corpus 703.978/SC, Sexta Turma, Rel. Min. Olindo de Me-
saltando-se, mais uma vez, que pode ser total, nezes, DJe 05/04/2022.
parcial ou seletivo. Infelizmente, tal nulidade é, BRASIL. Supremo Tribunal Federal, RE 1177984 RG, Rel. Ed-
segundo jurisprudência atual do STJ e do STF, son Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 02/12/2021, Public.
relativa (por mais absurdo que possa parecer 03/02/2022.
ser), de tal sorte que “eventual irregularidade na CARVALHO, Gabriela Ponte; DUARTE, Evandro Piza. As
informação acerca do direito de permanecer em abordagens policiais e o caso Miranda v. Arizona (1966):
silêncio é causa de nulidade relativa, cujo reco- violência institucional e o papel das cortes constitucionais
nhecimento depende da comprovação do preju- na garantia da assistência do defensor na fase policial. Re-
ízo” (STJ, 2016 e 2021-B). vista brasileira de direito processual penal, Belo Horizonte,
Partindo dessa conclusão, de que eventual v. 4, n. 1, p. 303-334, 2018.
nulidade é relativa, afastando a necessidade do ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte dos Estados Unidos,
respeito à forma, a defesa deverá comprovar o Blackburn vs. Alabama, 1960.
prejuízo, medida ilógica que se mostra “uma frau- ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte dos Estados Unidos,
de processual a serviço do punitivismo” (JUNIOR, Miranda vs. Arizona, em 1966.
2019, 1030). JUNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 18ª ed. São
Afirmar que uma nulidade somente pode Paulo: SaraivaJur. 2019.
ser declarada se existir comprovação de prejuízo ROSA, Alexandre de Moraes da. Guia de Processo penal
contraria o princípio da legalidade, afinal, “se há estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-A.
um modelo, ou uma forma prevista em lei, que 1ª ed. Florianópolis: Emais, 2021.
foi desrespeitada, o normal é que tal atipicidade SEMER, Marcelo. Sentenciando tráfico: o papel dos juí-
gere prejuízo, sob pena de se admitir que o le- zes no grande encarceramento.2ª ed. São Paulo: Tirant lo
gislador estabeleceu uma formalidade absoluta- Blanch, 2020.
mente inútil” (BADARÓ, 2007, p. 189). WARREN, Earl. Homem prevenido: os direitos de Miranda.
Finalmente, está colocada à mão do STF a Sub Judice: justiça e sociedade, Coimbra, n. 12, p. 103-114,
tomada da decisão definitiva sobre a matéria e jan./jun.. 1998.
acredita-se no respeito à garantia fundamental ao
silêncio e sobretudo no direito à ciência de fruição
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Respiro
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conta como sujeito. Outra canção toca na ferida: outras, tornando raras as rupturas politicamente
“todos iguais, tão desiguais, uns mais iguais que significativas, que possam produzir mobilidade
os outros”.3 das peças que compõem este complexo tabuleiro
Ainda assim, toda vida é precária, visto que de xadrez.
sempre surge e é sustentada dentro de determina- As populações que têm suas vidas descon-
das condições de manutenção, que não são eternas sideradas, em qualquer cenário estarão mais ex-
nem estáticas e exigem contínua renovação. Estes postas a doenças, pobreza, fome, deslocamentos
enquadramentos apontados por Butler, mostram forçados e violência, totalmente vulneráveis. Essa
como determinadas vidas são percebidas como exposição à violência inclui a praticada de forma
vidas, enquanto outras, embora aparentemente arbitrária pelo próprio Estado. A quem reclamar
vivas, não alcançam a esfera do reconhecimento. a injustiça quando o excesso é praticado pelo Es-
Maldonado-Torres (2019) assevera que estas pes- tado? Não é distante no tempo o que ocorreu no
soas estão fora da linha de existência, ou seja, estão Rio de Janeiro durante a intervenção federal, onde
condenadas à desconsideração como sujeitos. mandados de prisão, busca e apreensão genéricos
Nota-se que a distribuição diferencial da foram expedidos pelo Poder Judiciário, violando a
condição de ser a vida passível de luto tem im- previsão legal de que estes instrumentos devem
plicações sobre porquê e quando se sente horror, ser específicos quanto aos seus destinatários e
pesar, empatia, indiferença, menosprezo ou apa- finalidades. Ou seja, troca-se (involuntariamente)
tia em relação à perda de uma vida. Após a mor- uma violência potencial por outra, pois a ausência
te, isso continua a partir da maneira como se dá o do Estado gera novas violências em razão da sis-
ritual fúnebre, que é uma forma milenar de hon- temática e contínua negação de direitos, fazendo
rar a memória de quem morreu, o que acontece brotar e crescer novas formas de poder nas fissu-
com os mais diversos feitios, a depender da época, ras provocadas por sua ausência.
da cultura, da religião. Na pandemia, os rituais de Nestes cenários, a partir de Butler, é possível
despedida foram proibidos por razões sanitárias fazer um panorama atemporal, passível de compa-
e apenas os agentes funerários testemunhavam o rações com o que ocorre em território ucraniano
momento do sepultamento, sem pompas, home- em 2022. As representações midiáticas da guerra
nagens ou flores. Revisitando a imagem da Guar- apontam para um caminho em que outras subje-
da Municipal fluminense tocando “O bêbado e a tividades são construídas. As cenas das intermi-
equilibrista” enquanto o caixão de seu composi- náveis filas nas fronteiras com pessoas buscando
tor, Aldir Blanc, vítima de Covid-19 em 2020, era qualquer chance de fugir dos bombardeios como-
colocado no carro dos bombeiros, percebe-se que vem o mundo (quase) inteiro. Famílias separadas,
a pandemia provocou mais que mortes: produ- homens voltando do exterior para pegar em armas
ziu desaparecimentos (JONEFER, 2021) e imagens e todo o tipo de objetos virando barricadas contra
chocantes, como a vala aberta com a retroesca- estilhaços (até livros, como numa comovente foto-
vadeira em Manaus e o arremesso de corpos no grafia de uma janela anônima). Câmeras são parte
rio Ganges, na Índia – é a precariedade da vida de do aparato bélico, pois as imagens têm poder de
mãos dadas com a precariedade da morte. intimidação internacional (material e simbólica) e
A distribuição diferencial da condição de expressam novos modos de conduta militar, so-
precariedade é uma questão material, pois aque- mados ao contínuo discurso de aprofundamento
les cujas vidas não são “consideradas” potencial- do conflito. Usando a mesma chave do conceito de
mente lamentáveis e valiosas, são obrigados a su- performance, Butler explica estes enquadramen-
portar a carga da fome, da privação de direitos e tos como representações da realidade material da
uma exposição diferenciada à violência e à morte guerra, o que vai impactar a construção das me-
(BUTLER, 2019). Seria difícil decidir se essa “con- mórias do conflito em suas mais diversas versões.
sideração” de (des)importância da vida conduz à Os contextos de guerra trazem consigo
realidade material de pobreza e abandono ou se grandes movimentos de migrações forçadas, e
é o contrário. Mais adequado entendê-las como com isso, afloram situações de xenofobia que se
situações que se retroalimentam, reproduzindo manifestam nos mais diversos matizes. Diante das
os enquadramentos que mantém a precariedade “perguntas que a gente não faz”, Butler aponta
de algumas vidas em detrimento do privilégio de como caminho para solucionar os problemas da
vida política contemporânea a ampliação da crí-
3
Ninguém = ninguém. Engenheiros do Hawaii, 1992. tica à violência do Estado, e também a necessida-
14
Artigos
de de direcionar o foco das políticas identitárias reitos Humanos in SANTOS, Boaventura de Sousa; MAR-
para a precariedade da vida e suas distribuições TINS, Bruno Sena (orgs). O pluriverso dos Direitos Hu-
diferenciais. Assim se valoriza as distinções entre manos. 1ª edição. Coleção Epistemologias do Sul. Belo
os grupos populacionais e também intragrupo, em Horizonte: Autêntica Editora, 2019, p. 87-110.
sinal de respeito à diversidade, não permitindo
que essas diferenças continuem sendo fundamen-
to para aprofundar situações de desigualdade.
“Quanto vale a vida na última cena?” – per- LEONELLEA PEREIRA
gunta a mesma canção do início. “São segredos
que a gente não conta, contas que a gente não faz” Doutoranda em Direito na
pois o mundo tá cheio de gente que “faz de conta Universidade de Brasília
que não quer nem saber”... (UnB). Mestra em Estudos
Interdisciplinares sobre Gê-
nero, Mulheres e Feminis-
REFERÊNCIAS
mos (UFBA, 2019). Especialista em Ciências Penais
BARBOSA, Jonnefer. Sociedades do desaparecimento. São (UNIDERP, 2013) e também em Gestão de Políticas
Paulo: Hedra, 2021. Públicas de Gênero e Raça (UFBA, 2014). Gradu-
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra. Quando a vida é pas- ada em Direito (UEPB, 2010). Advogada (OAB/BA
sível de luto? 6ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasi- 32.346) na Presidência da OAB Subseção Irecê –
leira, 2019. BA (2022-2024). Professora do Curso de Direito da
MALDONADO-TORRES, Nelson. Da colonialidade dos Di- Faculdade Irecê – FAI.
Respiro
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Artigos
Inicialmente, adverte-se que o título é fru- não somente o cross-examination, uma das inci-
to do deformado procedimento da prova penal, dências do contraditório, exclusivamente na in-
mormente no tocante às “juntadas” de provas quirição, inclusive nas quesitações feitas no Brasil.
documentais e das manipulações fraudulentas, Mais específicas, porque tratam de uma espécie
convertidas em supostos documentos para burlar de provas: as provas digitais.
o contraditório. Além disso, não se tem efetiva- Quando tomadas em consideração as pro-
mente audiências para postulação das provas e a vas digitais, é preciso ir além das considerações
produção das provas admitidas ocorre ao largo da fundamentais e amplamente conhecidas acerca da
participação da defesa, ou seja, não raro, a defesa imprescindibilidade da cadeia de custódia, mor-
não tem acesso a conteúdo protegidos por sigilo e mente quanto à indispensabilidade do código hash
nem pode acompanhar a produção dessas provas. para auferir a autenticidade e a integridade do
Nessas situações, resta o factoide do “contraditó- material (PRADO, 2021; EBERHARDT; PIPPI, 2021)
rio diferido”, o qual consiste na informação (não devido aos potenciais de manipulação dos da-
raro sem cumprir com o mínimo de detalhes ne- dos, por exemplo, com o WhatsFake (CAMARGO;
cessários à participação) e análise do material. SCHUH, 2022), bem como da impossibilidade de
Daí a importância de interrogar os limites do a cadeia de custódia ser validada por algoritmos
contraditório, sobretudo nesses casos. não pertencentes ao Judiciário (CANI; MORAIS DA
Gary Edmond, Emma Cunliffe, Kristy Mar- ROSA, 2021).
tire e Mehera San Roque (2019) publicaram o mais O primeiro ponto relevante sobre o tema
relevante estudo empírico que se conhece acerca é precisamente o código hash. Ao contrário do
do contraditório: Forensic science evidence and que muitxs juristas pensam, ter acesso a um
the limits of cross-examination. De maneira mui- código hash nada diz sobre a integridade ou a
to sintética, xs autorxs avaliam o estado da arte autenticidade da prova digital. O código, forne-
sobre as análises de impressões digitais para, cido sem acompanhamento da diligência e sem
após abordar o case R v JP, julgado pela Court acesso ao material e o ferramental utilizado, é
of New South Wales, em 27 de janeiro de 2015, somente um amontoado de caracteres incon-
avaliam os limites da inquirição dos respectivos firmados e inconfirmáveis pela parte adversa. É
analistas ¹.A conclusão é de que a falta de conhe- o mesmo que uma senha padrão de papel reti-
cimentos dos peritos sobre o estado da arte do rada em uma fila: contém uma numeração, mas
tema, bem como o estado de negação sobre pos- nada diz acerca do local em que foi obtida, data,
síveis erros, são intransponíveis no cross-exami- hora, para que serve etc. Receber um código de
nation. Note-se que a constatação nada tem que hash desacompanhado de todas as demais infor-
ver com má-fé dos peritos. Portanto, os limites mações indispensáveis e inerentes ao exercício
do cross-examination são correlatos aos conhe- do contraditório - aqui entendido como direi-
cimentos das pessoas inquiridas. to a ser informado sobre os atos processuais e
A essa conclusão pretende-se acrescentar à “efetiva e igualitária participação” (LOPES JR.,
outras duas que são, ao mesmo tempo, mais gerais 2020, p. 113) a fim de aproveitar as chances pro-
e mais específicas. Mais gerais porque abrangem cessuais (GOLDSCHMIDT, 1935, p. 46-47) – de
nada serve para a defesa.
O segundo ponto é que o instrumento de
1
Embora algumas vezes os papiloscopistas sejam chama- referência do aparato de persecução penal para a
dos de “peritos”, entende-se que são analistas, pois, como
produção de provas digitais, a suíte de aplicações
destacou Francis Galton (1892, p. 16), precursor da siste-
matização dos exames em impressões digitais: é um méto- da Cellebrite, não faz o que se costuma dizer.
do rápido para obter vestígios, o qual não requer expertise Tornou-se senso comum (teórico dos juristas,
ou estudos aprofundados, somente experiência. diria Warat) dizer que os softwares da empresa
16
Artigos
são utilizados na “extração de dados”. Ora, extrair to de direito à propriedade intelectual, de modo
significa retirar, arrancar, tirar, puxar etc. Tais a que não se tenha uma auditoria sobre os limi-
ferramentas não retiram, nem arrancam, nem ti- tes, as possibilidades e as taxas de erro. O se-
ram e muito menos puxam os dados armazena- gundo, ainda menos comentado, é a delimitação
dos nos aparelhos eletrônicos. Muito pelo con- da decisão judicial que autoriza a “extração” de
trário, os dados são copiados e convertidos para tais dados. Tanto a decisão é descumprida com a
um formato próprio e proprietário: .ufed. Qual- execução da diligência, quanto a quebra da crip-
quer processo de conversão de dados, por um tografia é dada como “pressuposto lógico” do
lado, os torna distintos do que eram, e, por outro, seu cumprimento.
pode corromper o arquivo. Daí que o hash de um Finaliza-se este texto não com uma tese, mas
arquivo nunca será o mesmo daquele convertido com um conjunto de dúvidas: (a) a quebra da crip-
para outro formato. Caso xs leitorxs discordem, tografia de um aparelho eletrônico para acessar o
podem converter um arquivo .doc para .pdf e uti- conteúdo armazenado é lícita? (b) o direito de pro-
lizar algum programa, como o HashMyFiles, para priedade intelectual prepondera sobre o direito de
obter o código hash dos dois arquivos. Depois, defesa a ponto de não se ter sequer uma auditoria
basta comparar. pelos Estados nação? (c) conhecimentos e instru-
Assim, diante da falta de informações e re- mentos sem auditoria e informação pública sobre
cursos indispensáveis à avaliação e reação con- os limites, potenciais e taxas de erros podem ser
tra as provas digitais, sem as quais não é possível implementados na persecução penal? (d) a ausência
influenciar em nenhuma decisão, bem como por de técnicas e tecnologias menos restritivas dos di-
força da incontornável necessidade de converter reitos e garantias fundamentais é justificativa para
os dados para arquivos distintos, colocam-se no- o eficientismo punitivista? (e) cabe à defesa, diante
vos limites ao contraditório, não somente quan- de provas digitais, bradar sem ser ouvida?
do do cross-examination, mas em todas as fases
do processo. Xs amigxs fazzalarianos certamente
já estão pensando que, nesses termos, não existe REFERÊNCIAS
processo. Embora se continue com Goldschmidt,
concorda-se com tal conclusão. CAMARGO, Rodrigo Oliveira de; SCHUH, Anna Júlia da Rosa.
O papel da parte adversa, sobretudo da de- WhatsFake, print e prova no processo penal. Canal Ciências
fesa penal, ao não ter possibilidade de auferir tais Criminais, Porto Alegre, 11 ago. 2022. Disponível em: https://
dados, é o de enfeite de legitimação, ou, como es- canalcienciascriminais.com.br/whatsfake-print-e-prova-
creveu Kafka (2005, p. 100): “A defesa, na verdade, -no-processo-penal. Acesso em: 13 nov. 2022.
não é realmente admitida pela lei, apenas tolerada, CANI, Luiz Eduardo; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Podem
e há controvérsia até mesmo em torno da perti- os algoritmos racionalizar a cadeia de custódia?. Consultor
nência de deduzir essa tolerância a partir das res- Jurídico, São Paulo, 02 abr. 2021. Disponível em: https://
pectivas passagens da lei.” www.conjur.com.br/2021-abr-02/limite-penal-podem-
Por tudo isso, a proposta de alguns colegas, -algoritmos-racionalizar-cadeia-custodia-digital. Acesso
de aquisição de licenças de softwares de alto cus- em: 13 nov. 2022.
to pela OAB para o uso compartilhado por todxs EBERHARDT, Marcos; PIPPI, Marcos. Prova criminal: What-
xs advogadxs, parece apenas mais uma forma de sApp e cadeia de custódia. Consultor Jurídico, São Paulo,
legitimação de uma ferramenta de duvidosa vali- 13 out. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/
dade jurídica. Ora, o Cellebrite Reader é gratuito 2021-out-13/eberhardt-pippi-prova-criminal-whatsapp-
e permite a visualização dos dados convertidos -cadeia-custodia. Acesso em: 13 nov. 2022.
para .ufed. Eventual reiteração da diligência por EDMOND, Gary; CUNLIFFE, Emma; MARTIRE, Kristy; SAN
um assistente técnico, igualmente não é garantia ROQUE, Mehera. Forensic science evidence and the limits
de integridade e autenticidade. No máximo, será of cross-examination. Melbourne University Law Review,
possível confirmar a ocorrência de erros. Não se v. 42, n. 3, pp. 1-62, 2019.
pode desconsiderar que, por um lado, seria ape- GALTON, Francis. Finger print. Londres: MacMillan and
nas um passo, e, por outro, seria absolutamente Co., 1892.
insuficiente para reagir e influenciar nas decisões. GOLDSCHMIDT, James. Problemas jurídicos y políticos
Dois outros aspectos permanecem pouco del proceso penal. Conferencias dadas en la Universidad
explorados pela defesa. O primeiro é o acesso ao de Madrid en los meses de diciembre de 1934 y de enero,
código fonte dos softwares, encoberto a pretex- febrero y marzo de 1935. Barcelona: Bosch, 1935.
17
Artigos
KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. São LUIZ EDUARDO CANI
Paulo: Companhia de Bolso, 2005.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Doutor em Ciências Criminais
Saraiva, 2020. na Escola de Direito da Ponti-
PRADO, Geraldo. Notas sobre o fundamento constitucio- fícia Universidade Católica do
nal da cadeia de custódia da prova digital. Consultor Jurí- Rio Grande do Sul, bolsista da
dico, São Paulo, 26 jan. 2021. Disponível em: https://www. CAPES. Especialista em Direi-
conjur.com.br/2021-jan-26/prado-notas-cadeia-custo- to Penal Econômico pela Universidade de Coimbra.
dia-prova-digital. Acesso em: 13 nov. 2022. Advogado criminalista e Professor de Direito Penal
no Centro Universitário Avantis.
Respiro
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Artigos
O racismo é uma variável fundamental para ção da polícia, há muitos estudos (ATLAS DA VIO-
compreendermos o funcionamento do sistema pe- LÊNCIA, 2019) demonstrando a atuação discrimi-
nal brasileiro e o projeto genocida de Estado. Den- natória em relação ao negro.
tre suas especificidades, se faz perceber a crimina- Quanto à grande participação percentual
lização de mulheres negras pelo sistema penal, vez de pretos e pardos no sistema prisional, pode ser
que correspondem à maioria da população peni- vista como reflexo da atuação discriminatória da
tenciária feminina. Quando essas mulheres perdem polícia e do Poder Judiciário e, ao mesmo tempo,
sua liberdade, tornam-se vulneráveis e passam a fonte de ideologia discriminatória, uma vez que
viver em situação de marginalidade. Ainda que suas o grande número de negros apenados contribui
condições de vida nas prisões sejam degradantes a para a manutenção da imagem do negro como de-
sociedade não reage; e a relação entre a mulher ne- linquente (CAMPOS, 2009, p. 75).
gra e o sistema penal é naturalizada. A criminologia, assim, pode ser um lugar
Do mesmo modo, o judiciário encarcera a de produção de conhecimento que desnaturalize
população negra e pobre sem que isso, infelizmen- esse fato e evidencie a seleção criminalizante pro-
te, cause comoção. Quanto à discriminação em re- movida sobre essas mulheres.
lação ao negro, não é difícil notar como ela é uma Partindo do pressuposto de que o Estado
constante no funcionamento desse sistema. Não encarcera a maioria da população preta e pobre,
somente dados estatísticos, mas também a expe- superlotando o sistema prisional, se utilizando da
riência concreta cotidiana, refletida num grande lei de drogas, que privilegia uma política de re-
número de casos trazidos à tona pela imprensa, pressão ao tráfico e autoriza, de maneira expressa,
demonstra que a tão propalada igualdade entre os o uso seletivo do direito penal.
indivíduos não é observada no funcionamento do De acordo com os dados do INFOPEN pode-
sistema penal. Principalmente no tocante à atua- mos afirmar que mais de 60% da população prisional
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Artigos
feminina é composta por mulheres negras e pardas. tema de justiça criminal. O feminismo hegemôni-
De todo modo, podemos afirmar que os co, que possui perspectivas brancas e europeias,
crimes relacionados ao tráfico de drogas corres- como base para uma criminologia feminista, não
pondem a 60% das incidências penais pelas quais fornece respostas capazes de englobar os modos
as mulheres privadas de liberdade foram conde- de vidas e experiências dessas mulheres crimina-
nadas ou aguardavam julgamento, constata-se lizadas e invisíveis, deixadas à margem dentro e
que três em cada cinco mulheres que se encon- fora do sistema punitivo.
tram no sistema prisional respondem por crimes O sistema de justiça criminal, enquanto
ligados ao tráfico (BRASIL, 2017b). engrenagem de controle social dos corpos vul-
Perceptível que o aumento do encarcera- neráveis e punição diretamente articulada com a
mento feminino ocorreu, principalmente, devido atuação policial seletiva também opera com crité-
ao maior poder das políticas de repressão às dro- rios específicos na condenação de quem é suspei-
gas no Brasil e à crescente participação subalterna to, quem deve ser mantido em prisão provisória
da mulher na hierarquia do tráfico. e quem são aqueles que, em geral, são considera-
A partir do governo de extrema-direita/ das criminosas. O direito penal é um instrumen-
fascista de Jair Messias Bolsonaro, houve uma rigi- to ineficaz e totalmente falho para a proteção das
dez ainda maior das políticas de repressão ao uso e mulheres, pois reproduz e legitima os valores da
tráfico de drogas, com a aprovação do projeto de lei sociedade patriarcal, racista e misógina.
37/2013, que foi transformado na lei 13.840, em 2019. Portanto, é urgente e necessário debater
Esta nova política nacional sobre drogas, sobre a formação e desenvolvimento do fenômeno
de 2019, prevê o tratamento baseado apenas na social das drogas, do recente paradigma do proi-
abstinência e não mais na redução de danos; no bicionismo e a construção de caminhos para uma
apoio a comunidades terapêuticas de cunho reli- política de drogas antiproibicionista.
gioso e no estímulo à visão de que são as circuns-
tâncias do flagrante que devem determinar se o REFERÊNCIAS
indivíduo é um usuário ou um traficante. Esse mo-
delo privilegia a internação compulsória e distan- BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Levanta-
cia o cidadão do sistema público de saúde. mento nacional de informações penitenciárias: período de
Não obstante, a Agência Nacional de Vigilân- janeiro a junho de 2019. Depen, Brasília, DF, 24 jun. 2020.
cia Sanitária (Anvisa) permitiu o uso da maconha para CAMPOS, Luiz Augusto; FRANÇA, Danilo; FERES JUNIOR,
produção de medicamentos, o que é considerando João. Relatório das desigualdades raça, gênero e classe
um passo para a regulamentação da substância. (GEMMA). Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação
Compreende-se que não se pode discutir Afirmativa, 2018. 2. IESP. UERJ.
a política de guerra às drogas, sem pensar na re- CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil. Por-
levância que ela exerce no aumento do encarcera- to Alegre: Saraiva, 2014.
mento brasileiro, com destaque ao cárcere femi- INFOPEN. Levantamento de informações penitenciárias.
nino. São desafios interseccionais. Organização Tandara Santos; colaboração, Marlene Inês
De acordo com Salo de Carvalho (2014), o da Rosa. Brasília, Ministério da Justiça e Segurança Pública.
aumento do encarceramento é efeito direto da Departamento Penitenciário, 2017.
política criminal de drogas no Brasil, em que a le- IPEA. Atlas da Violência. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo:
galidade legitima o aprisionamento da juventude Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasilei-
vulnerável. Segundo o autor, isso acontece pela ro de Segurança Pública, 2019.
permanência de condutas idênticas tanto para
portar drogas como para traficar drogas.
Enquanto isso, a guerra às drogas segue MONALISA DE CASTRO
como a maior causa de encarceramento e crimi-
nalização de mulheres no Brasil e América Latina, Advogada associada ao Insti-
com perfil característico de mulheres pretas, par- tuto de Defesa da População
das, moradoras de regiões periféricas, com baixa Negra, pós-graduanda em
escolaridade e chefes de família. É pertinente a Tribunal do Júri. Pós-gradu-
análise desse fenômeno sob a ótica de um femi- ada em Direito Público. Ba-
nismo que discuta as peculiaridades das mulheres charel em Direito pela Universidade Federal Rural
latino-americanas que são selecionadas pelo sis- do Rio de Janeiro.
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Artigos
O estupro constitui uma chave de organiza- negros, a humanidade plena já está descartada de
ção social que opera de modo específico em socie- saída, em face do contexto de antinegritude em
dades constituídas a partir da violência da coloni- que vivemos (VARGAS, 2017). Ainda assim, entendo
zação, tanto em termos concretos como simbólicos que a questão precisa ser mantida, uma vez que
(Flauzina e Pires, 2020). Além de produzir e perpe- essa porta falsa - e é falsa porque não cumpre sua
tuar a hierarquia que estabelece homens brancos promessa - parece estar sempre entreaberta.
e mulheres negras e indígenas como extremos da Embora homens negros e brancos não pos-
distribuição de poder, em que as últimas são aque- sam ser igualados em termos de status de dignida-
las que, tal como os territórios invadidos, podem de ou cidadania, diante do contexto de antinegri-
ser igualmente violadas e apropriadas, as autoras tude já mencionado, ambos vivenciam, ao longo da
também destacam o estupro como um instrumento vida, uma imersão em códigos culturais em que a
que hierarquiza masculinidades. violência sexual está sempre colocada. Nesse sen-
Trazendo ainda mais complexidade ao tema, tido, FLAUZINA E PIRES (2020, p. 13) alertam:
apontam a prisão como um espaço em que os ho-
mens negros vivenciam a violência do estupro, A pedagogia do estupro frequenta ab-
tanto como vítimas quanto como perpetradores, e solutamente todos os espaços das múl-
tiplas masculinidades, em especial das
onde se parece sinalizar que ser estuprado, em úl-
cisheteronormativas: seus grupos de
tima análise, corresponderia a receber o tratamen- WhatsApp com comentários misóginos;
to que é destinado às mulheres. Refletindo sobre o a tela da pornografia que consomem que
contexto semelhante que se observa na África do os ensina o egocentrismo do falo e bru-
Sul, a vergonha dos homens estuprados decorreria, talização das mulheres, em especial das
sobretudo, dessa feminização (GQOLA, 2015, p. 8-9). negras, como forma de viver sua sexua-
lidade; as camas de suas casas, com os
Acerca desta dinâmica de hierarquização de
estupros maritais quotidianos que não
masculinidades, e considerando o aporte teórico entram no cômputo das denúncias; os
dos feminismos e a noção de penetração colonial, encontros fortuitos dos aplicativos que
me pergunto se o estupro (concreto ou simbólico), permitem ignorar e relativizar os limites
como uma forma específica de violência, está im- dados pelas mulheres. Estamos, portan-
plícito na própria definição ocidental de masculi- to, diante de uma ampla chancela social
da violência de gênero que abre espaço
no e feminino. Reconhecendo que a violência do
para a violência sexual ser praticada ha-
estupro também é perpetrada por homens bran- bitualmente pelos homens, sem qual-
cos contra homens negros1, seria possível consi- quer tipo de censura.
derar a hipótese de que este tipo de estupro te-
ria uma espécie de função hieráquica/corretiva,
em resposta àquele “roubo da onipotência fálica” Por sua vez, é na vida das mulheres de ma-
pensado por GONZÁLEZ (2020)? E, se o estupro neira geral que essa possibilidade sempre presen-
hierarquiza as masculinidades, a chave da violên- te do estupro atua produzindo uma verdadeira
cia sexual se colocaria como uma espécie de falsa performance de gênero, orientada pela insegu-
porta de acesso de homens negros para a mascu- rança e pelo controle. Tanto pela proximidade en-
linidade plena? É claro que esta última pergunta é tre as mulheres e seus violadores (já que a maior
terrível de ser colocada, uma vez que, para homens parte dos estupros ocorre no contexto doméstico
ou no círculo de pessoas conhecidas2), quanto pela
força dos mitos (GQOLA, 2015; FLAUZINA E PIRES,
1
Pensando na criação de imaginários, relembro o filme
brasileiro “Faroeste Caboclo”, em que o personagem principal
é vivido por um homem negro que é torturado por seu rival 2
Confira-se, a respeito, o anuário da segurança pública
amoroso, um homem branco, que o estupra. de 2022.
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Artigos
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Artigos
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Artigos
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Entrevista com:Eunice Prudente
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Em relação ao ensino jurídico no Brasil, públicas são respeitosas, mas no ensino univer-
como a Sra. avalia o atual panorama, e sitário privado os professores são humilhados
quais seus impactos nas condições de e dispensados quando ascendem ao doutorado.
exercício da advocacia?
No Poder Judiciário, na OAB, na Academia e
EUNICE PRUDENTE Sim, a qualidade do ensi- nas instituições jurídicas como um todo,
no jurídico tem impactos no exercício da advo- há um movimento por maior paridade
cacia. A responsabilidade sobre a qualidade do de gênero e equidade racial na composi-
ensino jurídico se deve ao Ministério da Saúde. ção dos espaços. É possível afirmar que, caso
a exigência do "exame de ordem" para o exer- implementadas, tais medidas têm o potencial
cício da advocacia já o demonstra. Se o MEC de transformar a cultura jurídica brasileira?
assumisse suas funções constitucionais/legais
e exigisse melhor qualidade e EUNICE PRUDENTE Sim, o res-
organização do ensino nem pre- peito e a adesão à diversidade
cisaríamos do mencionado exa- Urge melhorar étnica e de gênero transformará
me, aliás também obrigatório a cultura jurídica brasileira, pois
para o exercício da contabilida-
o ensino do direito, melhorará a qualidade do ensi-
de e facultativo para formados firmando disciplinas no do direito com a admissão de
em medicina, mas temos tam- propedêuticas professoras e professores com
bém muitos reprovados. Urge conhecimentos, possibilitando a
melhorar o ensino do direito,
sobretudo ciências descolonização do direito brasi-
firmando disciplinas propedêu- sociais, além de exigir leiro, ainda equidistante da cul-
ticas sobretudo ciências sociais, vagas nas escolas de tura e História dos brasileiros.
além de exigir vagas nas escolas Além de efetivar o Estado de Jus-
de direito para doutores e mes- direito para doutores tiça que buscamos. Implementar
tres com salários e vencimento e mestres com salários diversidade é contribuir para fi-
respeitáveis. Proponho que o respeitáveis. nalmente termos profissionais do
MEC realize concursos para os Direito ( Advocacia de qualidade,
professores e mantenha um cur- Judiciário, Defensoria, Procura-
rículo oficial assim as escolas de direito assim dorias ) que além dos conhecimentos técnicos e
o exame de ingresso seria oficial e nacional. jurídicos sejam humanistas.
Também possíveis dispensas dependeriam de
pronunciamento do MEC, pois as universidades
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Entrevista: Múltiplos Olhares
4
O sistema processual penal brasileiro Na perspectiva da Sra., o sistema de
é denunciado como um instrumento justiça criminal no Brasil tem espaço
estruturalmente racista, cujas funções para uma hermenêutica constitucio-
não declaradas incluiriam a manutenção de nal e processual penal que possa ser pen-
hierarquias raciais e a gestão de corpos con- sada sob o viés interseccional?
siderados indesejáveis. Há possibilidade de
reconstrução desse Processo Penal? EUNICE PRUDENTE Sim, o sistema de justiça
criminal no Brasil atua em plena inconstitu-
EUNICE PRUDENTE Sim, é possível recons- cionalidade. Precisa ser alterado por lei, pois
truir nosso Processo Penal sem revitimizar disposições constitucionais já o admitem.
sobretudo as mulheres e as meninas vítimas Uma nova política para encarceramentos,
de violência. Há projetos de lei em eterna fundamentada no regime e princípios ado-
apreciação no Congresso Na- tados pela atual Constituição
cional. Também a elaboração Federal (art. 5º, §2º); políticas
de um novo Código Penal com públicas para o uso e abuso de
participação da sociedade ci-
Implementar drogas lícitas e ilícitas; valori-
vil que hoje colabora tanto diversidade é zação das Defensorias Públicas
com a governabilidade. Tam- contribuir para , garantindo melhores venci-
bém atender os protocolos e mentos com atuação na assis-
determinações do Conselho finalmente termos tência jurídica, além da judi-
Nacional de Justiça no exer- profissionais do ciária inclusive na assistência
cício de controle externo do Direito que além trabalhista; garantia da atuação
Judiciário. de psicólogos e assistentes so-
dos conhecimentos ciais nas delegacias de polícia
técnicos e jurídicos diuturnamente. Não precisa-
sejam humanistas. mos de nova Constituição e sim
implementar a atual.
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O QUE REVERBEROU NAS REDES SOCIAIS
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