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Trincheira Dez 2022

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Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal

Ano 5, Nº 24

Ponto e Contraponto com


Jacinto Coutinho: "Ou o
Brasil acaba com as fake
news, ou as fake news
acabam com o Brasil " P. 4

Elas no Front com


Thaís Salles: "Por
favor, diga que não
morreu mais uma
mulher" P. 6
ISSN 2675-2689 (Impresso) ISSN 2675-3189 (Online)

Múltiplos Olhares com


Eunice Prudente P. 21
Ano 5 - N.º 24,
Fevereiro/2022
Boletim Revista do Instituto ISSN: 2675-2689 (impresso)
Baiano de Direito Processual Penal ISSN: 2675-3189 (online)

EXPEDIENTE Diagramação e Capa


Conselho editorial Mariana Chagas
Ana Cláudia Pinho, Elmir Duclerc Ilustração Lirismos Insurgentes
e Vinícius Romão Natalie Jamile
Comitê editorial Selo Trincheira Democrática
Anna Luiza Lemos, Bruno Moura, Flávia S. Túlio Carapiá (ilustração)
Pinto Amorim, Jonata Wiliam Sousa da Silva,
Lara Teles, Liana Lisboa, Mônica Antonieta Avenida Tancredo Neves, n. 620, Caminho das
Magalhães da Silva Árvores, CEP 41.820-020, Condominio Mundo
Plaza, Torre Empresarial, 5º andar, sala
Coordenação da edição 510, Salvador - Bahia
Bruno Moura, Flavia S. Pinto Amorim, Periodicidade: Bimestral
Jonata Wiliam, Mônica Antonieta e Impressão: Impactgraf
Rebecca Santos
Edição CONTATO
Luara Lemos http://www.ibadpp.com.br/
Projeto Gráfico publicacoes@ibadpp.com.br
Bianca Vatiele Ribeiro
@ibadpp

ASSOCIE-SE AO IBADPP PARA RECEBER O BOLETIM TRINCHEIRA DEMOCRÁTICA

Para se associar e receber as edições físicas do Boletim Trincheira Democrática é preciso


ser professor e/ou possuir artigo científico publicado na área das ciências criminais. Par-
ticipe: http://www.ibadpp.com.br/associar.

O Instituto Baiano de Direito Processual Penal é uma associação civil sem fins econômicos
que tem entre as finalidades defender o respeito incondicional aos princípios, direitos
e garantias fundamentais que estruturam a Constituição Federal. O IBADPP promove o debate
científico sobre o Direito Processual Penal por meio de publicações, cursos, debates, semi-
nários, etc., que tenham o fenômeno criminal como tema básico.

Publicações: Coordenador-chefe: Jonata Wiliam;


Diretoria Executiva coordenadoria-adjunta: Mônica Antonieta, Flávia
Pinto, Lara Teles, Liana Lisboa e Anna Luíza
Presidente: Vinícius Assumpção Lemos, Bruno Moura; membra: Rebecca Lima Santos
Vice-Presidente: Lucas Carapiá Ações perante os Tribunais: Coordenadora-chefe:
Secretário: Thiago Vieira Mariana Madera; coordenadoria-adjunta: Caio
Secretária Adjunta: Thaize de Carvalho Mousinho Hita, Rafaela Alban, Rafael Santana,
Tesoureira: Gabriela Andrade Ismar Barbosa Nascimento Júnior
Tecnologia da Informação: Coordenador-chefe:
Conselho Consultivo Thiago Vieira; coordenadora-adjunta: Daniela
Saulo Mattos, Lorena Machado, Renato Schindler, Portugal
Luiz Gabriel Batista Neves, Luciana Monteiro Pesquisa: Coordenadora-chefe: Karla Oliver;
Conselho de Representação Nacional: Marina Cer- coordenadoria-adjunta: João Pablo Trabuco,
queira, Antônio Vieira, Elmir Duclerc Luíza Guimarães; membra: Verônica França de
Brito
Departamentos Comunicação: Coordenadora-chefe: Iara Miranda;
membra: Bianca Nogueira
Coordenação Geral de Departametos: Brenno Brandão
Cursos: Coordenadora-chefe: Diana Furtado; Assessoria da Presidência: Akhenaton Argolo
coordenadoria-adjunta: Iara Maria Miranda,
Fernanda Furtado, Igor Raphael Santos e Grupo de Estudos em Feminismos e Processo Penal:
Reinaldo Santana Jr; membra: Carolina Lima Coordenadora-chefe: Laís de Almeida Lacerda;
Amorim coordenara-adjunta: Charlene Borges
Diálogos: Coordenador-chefe: Misael Bispo
França; coordenador-adjunto: Emanuel Vinicius Observatório da Equidade: Charlene Borges, Ana
Santos Silva Luiza Nazário, Saulo Mattos, Firmiane Venâncio
EDITORIAL
O QUE HÁ DE SE ESPERAR?

Nenhum tempo é tempo direito fundamental, mais uma vez apontando


bastante para a ciência para o firme compromisso e missão institucional
de ver, rever. do IBADPP de promoção de equidade.
Tempo, contratempo Avançando para a publicação em junho, invocan-
anulam-se, mas o sonho do o mês das mães, Liana Lisboa não deixou maio
resta, de viver. “passar batido”, e assinalou que “para além do
cárcere, maio também não é o mês das mães de
A roda do tempo segue implacável. Nestes doze outros tantos jovens, tão pretos/pardos e pobres
meses que compuseram o ano de 2022, sucessão quanto aqueles que lotam os estabelecimentos de
de eventos incidiram e nos fizeram refletir, chorar, privação de liberdade do país. Dono da terceira
sorrir e contemplar. Entrincheirados nas fileiras maior população prisional do mundo, o Brasil tam-
democráticas, tínhamos prenúncios do porvir, e bém carrega a vergonha de ter a violência como a
a esperança se fez muito presente. Entre eleições principal causa de morte de jovens”, e entre versos
e copa do mundo, muito se desejou, expectativas e prosas, evidenciou que “as vozes protagonistas
foram alimentadas, e planos foram feitos, realiza- dos grupos de mães insistem em serem ouvidas
dos ou frustrados. No Boletim Trincheira Demo- pelo sistema de justiça penal na luta contra o ter-
crática essas pulsões estiveram também latentes, rorismo de Estado – seja ele praticado dentro ou
e refletiram grandes prismas no pensamento do fora dos estabelecimentos penais.”
processo penal crítico. E após anúncios trágicos, sopros de esperança,
Foi assim que Bruno Moura, nos idos de feverei- denúncias de invisibilização e conclames por
ro de 2022, anunciou no editorial que marcou a igualdade, chegamos à 23ª publicação do ano 5
estreia do quinto ano do Boletim Trincheira De- do Trincheira, apresentando uma edição espe-
mocrática, em sua 19ª edição, que “as notícias não cial, cuja capa já deu o tom: “democracia é um
são boas”, assinalando que “A democracia vista na pacto social”. No editorial coletivamente assi-
sua acepção mais ampla deveria garantir que as nado por Bruno Moura, Flávia Amorim, Mônica
interações sociais ocorressem de forma livre, sem Antonieta e Rebecca Santos, o caminho já apon-
discriminações e sob o prisma da igualdade. Con- tava as “marchas para outubro”, remetendo para
tudo, o processo de higienização social acontece o pleito eleitoral que se avizinhava e vaticinando
nas entrelinhas, muitas vezes disfarçado de con- que “a marcha para outubro não ordena hierar-
trole penal. A infinidade de tipos penais é apenas quia militar, armas e tiros, mas exige a percep-
um cardápio utilizado ao gosto do freguês, a carta ção clara do futuro que se encontra em disputa”.
na manga de uma seletividade que pode até justi- (...) “Entre tantos desafios colocados nas elei-
ficar, mas não explica porque a transgressão recai ções de outubro certamente o processo penal
sempre sobre os mesmos corpos”. estará posto, pois é nele que sempre reside as
Em abril de 2022, na 20ª edição do Trincheira, soluções fáceis e superficiais para a complexida-
Mônica Antonieta afirmou que “abril chega como de de problemas que não podem ser resolvidos
um sopro de esperança!”, compreendendo que “na pela caneta que assina uma lei.”
atualidade, não há mais espaço para a crença da Agosto foi superado, e em setembro vivenciamos o
existência de um sujeito universal cartesiano, e a X Seminário Nacional do Instituto Baiano de Direito
aceitação das diferenças impõe uma releitura, no- Processual Penal, com pluralidade de gênero, raça e
tadamente, dos processos de decidibilidade que representações nos paineis, densidade nas discus-
sustentam todo o ordenamento jurídico.”, concla- sões no campo das ciências criminais e do processo
mando pela promoção da igualdade racial como penal, através de 8 paineis, 4 rodas de conversa, 46
palestrantes (44 nacionais e 2 internacionais), re- Olhar para o futuro não implica obliviamento do
cepcionando novos/as membros/as eméritos do passado, mas sim o seu aprendizado e constante
instituto, nas figuras da professora Alessandra Pra- evolução. Esta retrospectiva, portanto, nos mostra
do e do professor Luciano Góes, e contando com que do lado de cá, a luta continua. A busca por um
mais de 500 pessoas inscritas, mostrando o estron- processo penal mais humano, a absorção dos sabe-
doso sucesso do já reconhecido seminário. res críticos, a escuta qualificada e atenta do que di-
Somando-se a este sucesso que foi o X Seminário zem os segmentos sociais e os grupos minorizados,
do IBADPP, na sequência nós tivemos a edição de e o desencastelamento do saber acadêmico são
outubro de 2022 do Trincheira Democrática, com elementos que nos conduzirão à manhã desejada.
editorial assinado por Jonata Wiliam em parceria No ocaso do ano de 2022, a pergunta que rema-
com Rebecca Santos, prenunciando que “amanhã nesce é: “o que há de se esperar do ano vindouro?”
há de ser outro dia”, e convocando a reflexão acerca e a prece que deixamos, a partir de uma inabalável
do “futuro do processo penal do futuro”, conceben- esperança, é para que jamais percamos a capaci-
do que “esse amanhã, a utopia que faz caminhar, dade de indignação; que não nos falte força para
tudo nos leva a um patamar da reflexão sobre para as construções necessárias, e que o Trincheira
onde iremos a partir daqui. E talvez a resposta seja Democrática siga resistindo, produzindo conhe-
justamente essa: entender o que significa “daqui”, cimento, oportunizando o diálogo crítico e como
ter vozes conscientes, publicações críticas e a pro- espaço de luta contra todas as formas de opres-
dução do conhecimento e valorização dos saberes são. Encerramos o quinto ano do Trincheira com
plurais, capazes de iluminar o caminho, e lembrar os votos de continuidade, evolução e fortaleci-
de sonhar, de acreditar que o Processo Penal mais mento deste importante espaço.
justo e humano que desejamos está nas decisões Vida Longa ao IBADPP! Viva o Boletim Trincheira
que escolhemos não silenciar.” Democrática!

Jonata Wiliam Sousa da Silva


SUMÁRIO

4 COLUNA PONTO E CONTRAPONTO POR JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO


OU O BRASIL ACABA COM AS FAKE NEWS, OU AS FAKE NEWS ACABAM COM O BRASIL

6 ELAS NO FRONT COM THAÍS SALLES


POR FAVOR, DIGA QUE NÃO MORREU MAIS UMA MULHER

9 LIRISMOS INSURGENTES

ARTIGOS

10 AVISO DE MIRANDA E DIREITO TOTAL, PARCIAL E SELETIVO AO SILÊNCIO

13 CONTAS QUE A GENTE NÃO FAZ: QUANTO VALE A VIDA?

16 LIMITES DO CONTRADITÓRIO NA ANÁLISE DE PROVAS DIGITAIS

19 INTERSECCIONALIDADES: TRÁFICO DE DROGAS E A SELETIVIDADE PENAL DA COR/RAÇA E GÊNERO

21 AS CONVERSAS DIFÍCEIS E URGENTES: EXISTE MASCULINO E FEMININO SEM HAVER ESTUPRO?

23 DIREITO E RELAÇÕES RACIAIS, EXUÊUTICA JURÍDICA E CONSTITUCIONALISMO NEGRO: DISPUTAS, RASURAS E


REINVENÇÕES DA JURIDICIDADE

25 MÚLTIPLOS OLHARES COM EUNICE PRUDENTE

27 WALKIE-TALKIE
Pont
Coluna

e
.CONTRAPONTO Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

Ou o Brasil acaba com as fake news,


ou as fake news acabam com o Brasil
“De quantas verdades se faz uma mentira?” sendo como é (ver que é sempre o verbo ser que
(José Eduardo Agualusa. As mulheres do meu pai. a define), é demais para os humanos. Em suma, a
Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007, p. 19) Verdade está lá, no seu lugar, na sua totalidade,
mas os humanos não têm linguagem suficiente
O título, como se percebe, é uma metáfora para dar conta dela.
da famosa frase atribuída a Auguste de Saint-Hi- Assim sendo, sempre que dela falam, estão
laire (1779-1853), botânico francês que perambu- falando a respeito de uma parte daquela totali-
lou pelo Brasil por seis anos (1816-1822) e teria dade, ou seja, tratam de uma parcialidade, sendo
expressado que: “ou o Brasil acaba com a saú- certo que a referida parcialidade da qual se tra-
va, ou a saúva acaba com o Brasil.” O Brasil, em ta é, aparentemente (e tão só assim na aparência),
definitivo, não acabou por conta da saúva, mas, um todo em si, mas dela, a parcialidade; e não da
hoje, pode ser deformado a tal ponto, com as totalidade que se pretende expressar. Logo, se a
fake news – pensando-se em democracia – que Verdade está no todo; e o todo é demais para os
seria possível usar o verbo acabar. A mentira, es- humanos (que quando muito expressam uma par-
palhada como verdade, ressignifica o seu lugar te desse todo); parece evidente que se não fala do
no contexto democrático; e coloca em risco a todo e sim da mera parte do todo. E a mera parte
subsistência da ordem posta, das instituições e do todo – repita-se –, não é o todo; logo, é de ou-
da própria democracia. tra verdade que se trata. Mesmo assim, trata-se;
Mentira não é verdade. E disto ninguém du- diz-se; fala-se a respeito dela.
vida. Mas se é assim, por que muitos acreditam Neste ponto, a linguagem (com a qual se tra-
nela como se verdade fosse? Quem sabe ingenu- ta, diz-se, fala-se...) assume papel substancial. Afi-
amente ou em face de uma cegueira propositada, nal, reside ali a falta. Ora, faltam palavras para tra-
mesmo que arriscando se colocar como ridículo? tar, para dizer, para falar a Verdade. E com isso só
As perguntas, nesta direção, iriam ao infinito, tor- se pode tratar, dizer, falar sobre a parcialidade; e
nando cada vez mais complexa a resposta. O certo, a parcialidade, porque não é a totalidade, não é a
contudo, é que isso está acontecendo no mundo e, Verdade. É, quem sabe, com um belo esforço, uma
particularmente, no Brasil. aproximação – talvez uma aproximação até bem
Se é complexo entender por que muitos próxima –, mas não é a totalidade, logo, não é a
acreditam nas mentiras escancaradas, quem sabe Verdade. Mesmo assim, arrisca-se tratar dela como
seria salutar indagar – pelos indícios – sobre o ou- se fosse; diz-se sobre ela com a crença de que é da
tro lado da moeda, isto é, sobre a verdade (ou a Verdade que se está falando. Mas não é. Todos –
Verdade, com V maiúsculo, para não deixar muita ou quase todos – os mais esclarecidos sabem disso,
margem às dúvidas); e logo se estaria no coração mas não querem arriscar o salto no escuro daquilo
do problema, ou seja, aquele de que a Verdade que é a falta de explicações; e assumir que o que se
existe (pelo menos para quem acredita nela), mas, tem disponível é a parcialidade, ou seja, uma possi-
Coluna: Ponto e Contraponto

bilidade construída pela linguagem no caminho da ferente com os que acreditam no discurso da men-
Verdade. Nada mais do que isso. tira, das notícias falsas, das notícias mentirosas?
Portanto, no espaço da ciência, parece exis- Essas, da sua parte, subvertem a ordem e
tir a Verdade, mas ela é demais para nós. Ela se constroem a exceção que, por evidente, não tem
sustenta, porém, no âmbito da crença. Eis por que como se sustentar. As mentiras são mentiras e não
é tão relevante o que Jesus Cristo disse e está em se sustentam, a não ser para os que nela acreditam,
João 14:6: “Eu sou o caminho, a verdade, a vida.” sustentam-nas e as difundem. Elas, como se sabe,
Perceba-se: está no âmbito da crença! Quem crê, produzem um efeito de verdade em quem acredita;
crê. E basta. E se deve respeitar, razão por que a e em nome dela, agem. Similar a uma seita. Em re-
tolerância religiosa é tão importante. Mas nada alidade, por trás está a ideologia e, por ela, o poder,
tem de ciência aí. pela manipulação de mentes e a sujeição de corpos.
O dilema, portanto – e isso é por demais Steve Bannon é o Joseph Goebbels de hoje,
importante –, não está na verdade ou mesmo na mas muito mais ardiloso porque como poucos
Verdade, embora o tema seja poroso e complexo. sabe as possibilidades das redes sociais com seu
O problema está – sem dúvida – no discurso sobre caráter global e informações instantâneas. Por
ela. Afinal, quem fala a verdade (ou da Verdade), elas, a mentira “vira” verdade, ainda que visível,
mesmo que de boa fé, está, da Verdade, dizendo escancarada, desbragada. Não importa. Quem as
uma mentira. Em suma, quem diz a verdade (com produz sabe que o receptor não só as aceita como
v minúsculo) achando que diz a Verdade (com V as quer, de modo a que possa levar adiante a sua
maiúsculo), mente. racionalidade tresloucada. É ou beira à paranoia,
A partir daqui vê-se logo que se trabalha não raro com delírios, como os do famoso Schre-
com uma “alusão à”; e se concertam os arranjos ber, de Freud. Essa gente que as produz sabe bem
para se possibilitar errar o menos possível. Os avi- o que está fazendo, inclusive que se trata de cri-
ões – sabidamente mais pesados que o ar – garan- me. A justificativa, agora (15.11.22), é que estão em
tem um segurança cada vez maior para quem voa guerra e, portanto, elas se legitimam só por isso. A
neles, embora de tanto em tanto tem-se notícia, realidade, contudo, é que não há guerra alguma, a
infelizmente, de alguma queda, com frequência não ser na cabeça deles, ainda atordoados com a
determinada por erro humano. Caem, porém. E a derrota nas eleições presidenciais que – como se
verdade se esvai. No processo penal, os arranjos passou com Trump e os trumpistas – não querem
não são tão precisos como na aeronáutica e os reconhecer, com as mais absurdas justificativas,
erros aparecem com uma frequência preocupan- todas improcedentes.
te. A subjetividade, por evidente, fala mais forte. As fake news, enfim, disseminam o ódio, afron-
E garante uma desculpa mais ou menos adequada tam a ordem constitucional e jurídica, assacam con-
para quem se esconde atrás da verdade ou mes- tra as instituições e, sobretudo, a democracia. Em
mo da Verdade. No fundo, é pura hipocrisia. nome dela devem ser eliminadas e processados os
Então, se não são poucos os que acreditam que, com elas, ofenderem bem jurídicos protegidos.
no discurso da verdade/Verdade, por que seria di-

JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO

Professor Titular de Direito Processual Penal da Faculdade de ou Direito da


Universidade Federal do Paraná (aposentado). Professor do Programa de Pós-
graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul – PUCRS. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da
Faculdade Damas, Recife. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da
UNIVEL, Cascavel. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR), Mestre (UFPR);
Doutor (Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Presidente de Honra do
Observatório da Mentalidade Inquisitória. Advogado. Membro da Comissão de
Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do
CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.

5
Coluna

ELAS
NO FRONT

Por Thaís Salles

Uma mulher grávida de quatro meses é agre- Esse incremento ressoa ainda mais preocupante
dida com golpes de faca e queimaduras nas par- porque acontece também em outras regiões do
tes íntimas. Outra mulher grávida de seis meses é país, como aponta a mesma nota técnica. A situ-
agredida até desmaiar com socos que deformam ação assim colocada, antes baralhada em ficção,
seu rosto, na frente da filha de cinco anos. Elas são passa a firmar os contornos de um docudrama.
encaminhadas ao hospital, o quadro de saúde não é A alta generalizada da violência doméstica
revelado, os principais suspeitos são seus compa- chega em resistência aos mecanismos de pro-
nheiros. No meio de contos de cidades adormecidas, teção e assistência às mulheres previstos na Lei
esse é o cotidiano que se faz presente: um aterro de Maria da Penha – Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de
sujeição e impotências na vida de muitas mulheres. 2006 –, considerada pelo Fundo de Desenvolvi-
O que poderia ser um enredo-denúncia de mento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem)
obra de ficção pela crueza e selvageria das cenas, uma das três legislações mais avançadas do mun-
os noticiários apresentam como histórias reais. do sobre a matéria (BRASIL, 2009). Ela ainda per-
O cenário tem palco na Bahia e ocorre em 2022, siste em meio à edição recente de leis que inovam
ano em que a Rede de Observatórios da Seguran- ou recrudescem o tratamento criminal dado às
ça aponta um aumento considerável no índice de pessoas acusadas, com a previsão de novos tipos
feminicídio e violência contra as mulheres no Es- penais (v.g. o da violência psicológica)2 e de qua-
tado no período de um ano (RAMOS et. al., 2022)1. lificadoras de crimes específicos (v.g. a figura do

1
O relatório “Máquina de moer gente preta” indicou o mo- 2
FO artigo 147-B do Código Penal, introduzido pela Lei nº
nitoramento, pela Rede, de 301 eventos de feminicídio e 14.188, de 28 de julho de 2021, tornou penalmente típica a
violência contra as mulheres no período de agosto de 2021 conduta de “Causar dano emocional à mulher que a preju-
a julho de 2022, ao passo em que o relatório “Elas vivem”, dique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise
elaborado em referência ao interstício anterior, apontava o a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos,
registro de 200 casos. crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,

6
Coluna: Elas no front

feminicídio)3. Nenhuma dessas ferramentas pare- As questões culturais que permeiam esse
ce importar a quem subjuga, maltrata e fere as delicado problema mundial tanto reflete quanto
mulheres. se retroalimenta dos retrocessos promovidos pelo
O que segue falhando? O que os nossos governo brasileiro nos últimos anos. Desde 2020
olhos, ouvidos, racionalidade; o que a nossa sen- houve a redução de aproximadamente 90% do or-
sibilidade não consegue alcançar? Até quando não çamento público disponível ao Ministério da Mu-
conseguiremos, enquanto sociedade, discernir a lher, Família e dos Direitos Humanos para as ações
linha tênue que separa a civilização da barbárie? de enfrentamento à violência contra as mulheres
Falar sobre a violência contra as mulheres é (FOLHA DE S. PAULO, 2022). Um levantamento re-
trazer questões nem sempre nítidas de opressão: alizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômi-
o senso comum relaciona a violência à que atinge cos (2022) apontou que, também no ano de 2020,
a integridade física e até arranca abruptamente a o Ministério da Mulher “deixou sobrar” 70% da (já
vida das mulheres – mas esses são os seus exces- reduzida) verba empenhada, o que sugere a au-
sos e não a opressão por si só. Quando inserimos a sência de prioridade do governo sobre a pauta.
violência apenas nesses excessos, outros tipos de Isso significa dizer que o debate em torno
agressão (a psicológica, a moral, a patrimonial) são do enfrentamento da violência contra as mulhe-
indevidamente naturalizados. O combate a essa res, embora envolva complexidades diversas, deve
violência deve se voltar, portanto, não apenas aos ter por foco o desenvolvimento de ações de sen-
atos que geram marcas físicas, ao que se vê, mas a sibilização, reflexão e conscientização acerca das
tudo o que subjuga e prejudica o espírito e a auto- questões de gênero que permeiam as interfaces
nomia das mulheres (GONZÁLEZ, 2006)4. do fenômeno, principalmente de seus aspectos
Em absoluto temos de escancarar os olhos culturais, para que as mentalidades e processos
para as questões culturais que perpassam essa sociais machistas sejam desconstruídos, permi-
grave violação dos direitos humanos das mulhe- tindo um desenho mais eficaz das políticas públi-
res e não nos atermos unicamente às questões cas a serem implementadas na área.
jurídicas e às implicações penais do fenômeno. É Não deixemos que flagelos políticos ditem
notório que, a despeito da luta travada pelos mo- as nossas vidas. A voz do milênio, Elza Soares, en-
vimentos sociais no campo, a sociedade brasilei- toando e interpretando a canção de Raul Seixas,
ra permanece sendo estruturalmente patriarcal, alerta que não podemos nos sentar “no trono de
machista e sexista, e validando o uso de mecanis- um apartamento com a boca escancarada, cheia
mos ideológicos que tratam a violência como um de dentes, esperando a morte chegar”. Lancemos
elemento estruturante das relações de poder.5 um Viva! a cada denúncia do ouro de tolo e siga-
Essa dinâmica social permite, ilegitimamente, que mos reconstruindo os caminhos abatidos em prol
as mulheres continuem experienciando uma cul- da segurança, da independência e da autonomia
tura de discriminação, aviltamento e opressão a das mulheres. O sol precisa raiar e nós queremos
partir de uma distinção de gênero. acordar sem o cansaço de sentir medo.

humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicu- REFERÊNCIAS


larização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro
meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autode- BRASIL. Relatório global do UNIFEM aponta Lei Maria
terminação”, prevendo a aplicação da pena de reclusão, de da Penha entre as três mais avançadas do mundo.
6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se o fato não consti- 2009. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/
tui crime mais grave. navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/
3
A Lei n.º 13.104, de 9 de março de 2015, incluiu o inciso VI area-imprensa/ultimas_noticias/2009/04. Acesso em:
ao artigo 121 do Código Penal, prevendo, como qualifica-
18 nov. 2022.
dora, a prática de homicídio “contra a mulher por razões
da condição do sexo feminino”, quando envolver “violência BLANCH, J.M. Violencia social e interpersonal. "Dossier
doméstica e familiar” e “menosprezo ou discriminação à de Lecturas" Del Máster Interdisciplinar de Estúdio
condição de mulher”. e Intervención em Violencia Domestica. Barcelona:
4
A autora expõe o quanto outras nuances da violência po- Universidad Autónoma de Barcelona, 2001.
dem ser ainda mais nocivas do que os golpes físicos, por- CHAUÍ, Marilena; ITOKAZU, Ericka Marie; CHAUÍ-BERLINCK,
que, ao prejudicarem o espírito, podem deixar marcas in-
Luciana (Orgs.). Sobre a violência: Escritos de Marilena Chauí,
visíveis e danos emocionais irreparáveis.
5
Sobre o aspecto estruturante das violências, cf. CHAUÍ, vol. 5, 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
2017; BLANCH, 2001. FOLHA DE S. PAULO. Bolsonaro cortou 90% da verba de

7
Coluna: Elas no front

combate à violência contra a mulher. 2022. Disponível INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS –


em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/09/ INESC. Análise do orçamento das políticas públicas
bolsonaro-cortou-90-da-verba-de-combate-a-violencia- para as mulheres – 2019 a 2021. Nota técnica. 2022.
contra-a-mulher.shtml. Acesso em: 17 nov. 2022. Disponível em: https://www.inesc.org.br/wp-content/
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA – FBSP. uploads/2022/03/8-de-Marco_Orcamento.docx.pdf.
Violência contra as mulheres em 2021. Nota técnica. 2022. Acesso em: 17 nov. 2022.
Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp- RAMOS, Sílvia, et. al. Elas vivem: dados da violência contra
content/uploads/2022/03/violencia-contra-mulher- a mulher. Rio de Janeiro: CESeC, 2022.
2021-v5.pdf. Acesso em: 13 mar. 2022. _______. Máquina de moer gente preta: a responsabilidade
GONZÁLEZ, Oly M. Grisolía. Violencia intrafamiliar: um da branquitude. Rio de Janeiro: CESeC, 2022a.
daño de incalculables consecuencias. Revista CENIPEC,
2006, p. 223-245.

Thaís Salles

Mestre em Segurança Pública, Justiça e Cidadania pela Universidade Federal


da Bahia (UFBA); Analista e Assessora Jurídica do Tribunal de Justiça da Bahia
(TJBA); Membra do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

8
Lirismos Insurgentes

ANDAR TRÔPEGO

Você ficou menor pra caber


Em outro sonho e seu
Próprio sonho ficou grande
Como um sapato que herdamos
De outra pessoa.
Os espaços foram preenchidos
Com algodão e papel velho
Pra ocultar o descompasso
Impedir a formação de bolhas.
Os bêbados e as mulheres castradas
Têm em comum o andar trôpego
Não compartilham, contudo, a proteção
Divina que faz tudo acabar bem
Torna os bêbados e as crianças
Supostamente invencíveis
Infinitamente duráveis
Como os móveis de madeira da minha vó
A casa da minha vó que sobrevive a ela
Meu avô bêbado que sobrevive a ela
A casa, os móveis e os homens invencíveis
Às mulheres não cabe vencer
Sua sorte é de outra ordem.

Fernanda Furtado
Socióloga e advogada, especialista em Política e Estratégia pela UNEB,
e mestre em Direito Público pela UFBA. Autora da coletânea de poemas
“Primeira pessoa” (ed. Caravana, 2021).
Artigos

Aviso de Miranda e direito total,


parcial e seletivo ao silêncio
Por José Flávio Ferrari Roehrig e Caio César Domingues de Almeida

O Aviso de Miranda consiste no alerta do ré a confissão informal pelos policiais militares no


funcionário público ao interrogado de que tem o momento da prisão em flagrante, sem a necessá-
direito de permanecer em silêncio e é aplicável a ria prévia advertência do direito de permanecer
todo interrogatório realizado, formal ou informal. em silêncio, conforme garantido no artigo 5º, inc.
Em todos os momentos da abordagem esta- LXIII, da Constituição Federal de 1988. Mais um
tal, ainda que na cena do crime ou no flagrante, o caso típico entre tantos outros.
suspeito deverá ser “expressa e formalmente ad- Vale lembrar que o professor Marcelo Se-
vertido dos direitos inerentes à condição, isto é, mer (2020, p. 222) fez importante pesquisa das
o de não ser obrigado a produzir prova contra si sentenças criminais em caso de tráfico de drogas
mesmo” (ROSA, 2021, p. 513). e chegou ao dado de que pelo menos 6,25% das
Segundo o que foi decidido no caso Mi- sentenças apuradas a confissão informal foi uti-
randa vs. Arizona (1966), o fundamento para o lizada pelo juízo na convicção sobre os fatos. Isto
direito se situa na vulnerabilidade do direito a é, número significativo de confissões informais
não auto incriminação quando a pessoa é leva- são transportadas para a sentença, sem nenhum
da sob detenção, sobretudo diante da utiliza- contraditório e com base apenas na presunção da
ção de “técnicas de pressão nos interrogados validade dos atos administrativos.
sob detenção”, fazendo o alerta, de antemão, de Pode parecer que a amostragem nos conduz
que as técnicas são psíquicas, e que “o sangue a números insignificantes, mas é equivocada, por-
do acusado não é a única pedra de toque de um que, anualmente, mais de um milhão de processos
interrogatório inconstitucional” (Blackburn vs. são instaurados para apurar crimes previstos na
Alabama, 1960). Isto é, deve-se afirmar o direito Lei de Drogas (CNJ, 2021).
ao silêncio quando o interrogado está subjugado São muitos os casos em que informações
pelo poderio estatal. são obtidas em interrogatório informal, os quais
Tampouco o Aviso de Miranda deve ser res- não são fiscalizados ou efetivamente contro-
tringido ao direito ao silêncio. Na mesma opor- lados1. Sem a efetiva e obrigatória fiscalização,
tunidade a Suprema Corte dos Estados Unidos portanto, sobretudo das confissões quanto a sua
decidiu que pessoa deve ser esclarecida, antes de voluntariedade e espontaneidade, a confissão
qualquer interrogatório, a) que tem direito a guar- torna-se uma prova a ser buscada a partir das
da silêncio; b) que qualquer coisa que diga pode técnicas eleitas pelos agentes públicos, permi-
ser usada contra ela em tribunal; c) que tem di- tindo que a busca dessa prova se institucionalize
reito à presença de um advogado; e d) que se não em violência policial (física e psicológica) (CAR-
tiver possibilidade de pagar ser-lhe á designado VALHO; DUARTE, 2018).
um antes de qualquer interrogatório, se assim ela Ainda prevalece no Brasil a visão de que os
desejar (Miranda vs. Arizona, 1966). atos administrativos são presumivelmente legíti-
No Brasil, o STF decidirá sobre essa temá- mos, manipulando as premissas do aviso. Essa é
tica no RE 1.177.984/SP. Resolverá “a controvérsia a orientação que temos até então sobre o aviso
acerca da obrigatoriedade de o Estado informar ao de Miranda nos atos administrativos (STJ, 2021-
preso do direito ao silêncio no momento da abor- A). No entanto, não podemos ignorar o avanço do
dagem policial, e não somente no interrogatório tratamento da questão em alguns casos, que tem
formal” (STF, 2022). Isto é, decidirá se o alerta deve reconhecido a necessidade do Aviso de Miranda
ser observado também nos atos pré processuais,
como no caso da abordagem policial. 1
Esse fato já foi alertado no caso Miranda vs. Arizona (1966):
O caso que será apreciado pelo STF apura “Os interrogatórios ainda têm lugar em privado. A privacidade
cometimento de tráfico de drogas e posse de arma resulta em secretismo e este por sua vez numa lacuna do
de fogo. A defesa esclareceu que foi extraída da nosso conhecimento quanto ao que de fato se passa”.

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Artigos

quando interrogado em eventual imputação de do direito. Somente assim o devido processo legal
falta grave na execução penal (STJ, 2022). estará resguardado, inclusive em processos ape-
O interrogatório é dividido em duas etapas. natórios administrativos e execução penal.
A primeira consiste na qualificação, sobre a qual
não incide o direito ao silêncio, enquanto na se-
gunda parte do interrogatório deverá ser respei- REFERÊNCIAS
tado o Aviso de Miranda. Nessa segunda parte do
interrogatório o réu será questionado sobre os fa- BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito Processual Penal. Rio
tos, e sobre os fatos o flagranteado, investigado, de Janeiro: Elsevier, 2007.
denunciado ou condenado podem exercer o direi- BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Painel Justiça em
to de não produzir prova contra si. Números, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/
A jurisprudências, aliás, atendeu aos pedi- wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-nu-
dos sobre a validade do silêncio parcial, como meros2021-12.pdf. Acesso em 23 set. 2022.
no caso em que decide responder apenas às BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2016), RHC 67.730/PE,
perguntas de(a) seu(ua) advogado(a) (STJ, 2022). Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJe 04/05/2016.
Isso ocorre pelo fato de que, após ser alertado BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2021-A). AgRg no HC
quanto ao direito de permanecer em silêncio, é 674.893/SP, Rel. Ministro João Otávio De Noronha, Quinta
faculdade do investigado/denunciado decidir a Turma, julgado em 14/09/2021, DJe 20/09/2021.
respeito de qual forma irá exercer essa garantia BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2021-B). HC n.
constitucional, que deve ser livre, desimpedida 614.339/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca,
de qualquer interferência, óbice, ou outra má- Quinta Turma, julgado em 9/2/2021, DJe de 11/2/2021.
cula que impeça a pessoa de poder realizar sua BRASIL, Superior Tribunal de Justiça (2022-A). Decisão Mo-
autodefesa (STJ, 2020). nocrática HC 768.988/RJ de relatoria do Ministro Reynal-
Vale lembrar, por fim, que o direito ao si- do Soares da Fonseca; julg.06/09/2022; publ.09/09/2022.
lêncio decorre do Direito de não produzir con- BRASIL, Superior Tribunal de Justiça (2022-B). Habeas
tra si mesmo (nemo tenetur se detegere), res- Corpus 703.978/SC, Sexta Turma, Rel. Min. Olindo de Me-
saltando-se, mais uma vez, que pode ser total, nezes, DJe 05/04/2022.
parcial ou seletivo. Infelizmente, tal nulidade é, BRASIL. Supremo Tribunal Federal, RE 1177984 RG, Rel. Ed-
segundo jurisprudência atual do STJ e do STF, son Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 02/12/2021, Public.
relativa (por mais absurdo que possa parecer 03/02/2022.
ser), de tal sorte que “eventual irregularidade na CARVALHO, Gabriela Ponte; DUARTE, Evandro Piza. As
informação acerca do direito de permanecer em abordagens policiais e o caso Miranda v. Arizona (1966):
silêncio é causa de nulidade relativa, cujo reco- violência institucional e o papel das cortes constitucionais
nhecimento depende da comprovação do preju- na garantia da assistência do defensor na fase policial. Re-
ízo” (STJ, 2016 e 2021-B). vista brasileira de direito processual penal, Belo Horizonte,
Partindo dessa conclusão, de que eventual v. 4, n. 1, p. 303-334, 2018.
nulidade é relativa, afastando a necessidade do ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte dos Estados Unidos,
respeito à forma, a defesa deverá comprovar o Blackburn vs. Alabama, 1960.
prejuízo, medida ilógica que se mostra “uma frau- ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte dos Estados Unidos,
de processual a serviço do punitivismo” (JUNIOR, Miranda vs. Arizona, em 1966.
2019, 1030). JUNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 18ª ed. São
Afirmar que uma nulidade somente pode Paulo: SaraivaJur. 2019.
ser declarada se existir comprovação de prejuízo ROSA, Alexandre de Moraes da. Guia de Processo penal
contraria o princípio da legalidade, afinal, “se há estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-A.
um modelo, ou uma forma prevista em lei, que 1ª ed. Florianópolis: Emais, 2021.
foi desrespeitada, o normal é que tal atipicidade SEMER, Marcelo. Sentenciando tráfico: o papel dos juí-
gere prejuízo, sob pena de se admitir que o le- zes no grande encarceramento.2ª ed. São Paulo: Tirant lo
gislador estabeleceu uma formalidade absoluta- Blanch, 2020.
mente inútil” (BADARÓ, 2007, p. 189). WARREN, Earl. Homem prevenido: os direitos de Miranda.
Finalmente, está colocada à mão do STF a Sub Judice: justiça e sociedade, Coimbra, n. 12, p. 103-114,
tomada da decisão definitiva sobre a matéria e jan./jun.. 1998.
acredita-se no respeito à garantia fundamental ao
silêncio e sobretudo no direito à ciência de fruição

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Artigos

JOSÉ FLÁVIO ROEHRIG CAIO CÉSAR DE ALMEIDA

Pós-graduado em Direito Advogado criminalista, Mes-


Penal e Criminologia pela trando em Direitos Huma-
PUC-RS, pós-graduando em nos pela PUC-PR; pós-gra-
Execução Penal pelo CEI, duando em Direito Penal e
professor de Execução Penal Criminologia pelo CEI; pro-
e assessor de juiz do TJ-PR. fessor de Direito Penal e Processo Penal.

Respiro

Charge por: Mahnaz Yazdani @mahnaz.yazdani

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Artigos

Contas que a gente não faz: quanto


vale a vida?

Por Leonellea Pereira

“Quem souber quanto vale, fale em alto e


bom som”1: a concepção da fragilidade da vida não dição reconhecida, por isso são vidas absoluta-
é o primeiro pensamento que vem à mente para mente precárias, ou seja, não são passíveis de luto
muitas pessoas quando se fala em guerra ou ou- (BUTLER, 2019).
tras situações extremas em que a morte se torna A colonialidade do conceito de Direitos Hu-
o epicentro. Outra canção entoa2 “que a guerra manos, especialmente no panorama que se des-
gera empregos/Aumenta a produção/Uma guerra cortina após a Segunda Guerra Mundial, torna o
sempre avança a tecnologia/Mesmo sendo guer- seu alcance restrito, desumanizante e eurocêntri-
ra santa/Quente, morna ou fria/Pra que exportar co – diferente do que é pregado quando se fala em
comida? Se as armas dão mais lucros na exporta- universalidade. O discurso que ganha força com
ção”. Assim, atrocidades são justificadas e mortes a criação da ONU e da Declaração Universal dos
vistas como mera consequência para alcançar um Direitos Humanos para condenar o genocídio de
resultado político e econômico. judeus, a xenofobia, o racismo, a eugenia, não ser-
Regras de Direito Humanitário são viola- viu aos países africanos – colônias da Inglaterra,
das e pouco se faz de forma objetiva para punir Alemanha, França, Portugal, Itália, Espanha e Bél-
os responsáveis (especialmente se quem o faz tem gica – que só alcançaram sua emancipação políti-
assento permanente no Conselho de Segurança ca muito depois de 1948, alguns só em meados da
da ONU!). Nunca é demais recordar que o único década de 1970 (MALDONADO-TORRES, 2019).
critério para ser titular de Direitos Humanos é Há vidas que valem mais que outras? Butler
ser uma pessoa humana. Pode parecer óbvio, mas (2019) mostra que a lógica distorcida que raciona-
há indivíduos que ainda hoje não tem essa con- liza a morte dessas “vidas desconsideradas”, quer
fazer crer que essas perdas são necessárias para
1
Quanto vale a vida? Engenheiros do Hawaii, 1993. proteger a vida dos “vivos”, dos que tem reconhe-
2
A canção do senhor da guerra. Legião Urbana, 1992. cimento do seu valor. Ou seja: nem todo mundo

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Artigos

conta como sujeito. Outra canção toca na ferida: outras, tornando raras as rupturas politicamente
“todos iguais, tão desiguais, uns mais iguais que significativas, que possam produzir mobilidade
os outros”.3 das peças que compõem este complexo tabuleiro
Ainda assim, toda vida é precária, visto que de xadrez.
sempre surge e é sustentada dentro de determina- As populações que têm suas vidas descon-
das condições de manutenção, que não são eternas sideradas, em qualquer cenário estarão mais ex-
nem estáticas e exigem contínua renovação. Estes postas a doenças, pobreza, fome, deslocamentos
enquadramentos apontados por Butler, mostram forçados e violência, totalmente vulneráveis. Essa
como determinadas vidas são percebidas como exposição à violência inclui a praticada de forma
vidas, enquanto outras, embora aparentemente arbitrária pelo próprio Estado. A quem reclamar
vivas, não alcançam a esfera do reconhecimento. a injustiça quando o excesso é praticado pelo Es-
Maldonado-Torres (2019) assevera que estas pes- tado? Não é distante no tempo o que ocorreu no
soas estão fora da linha de existência, ou seja, estão Rio de Janeiro durante a intervenção federal, onde
condenadas à desconsideração como sujeitos. mandados de prisão, busca e apreensão genéricos
Nota-se que a distribuição diferencial da foram expedidos pelo Poder Judiciário, violando a
condição de ser a vida passível de luto tem im- previsão legal de que estes instrumentos devem
plicações sobre porquê e quando se sente horror, ser específicos quanto aos seus destinatários e
pesar, empatia, indiferença, menosprezo ou apa- finalidades. Ou seja, troca-se (involuntariamente)
tia em relação à perda de uma vida. Após a mor- uma violência potencial por outra, pois a ausência
te, isso continua a partir da maneira como se dá o do Estado gera novas violências em razão da sis-
ritual fúnebre, que é uma forma milenar de hon- temática e contínua negação de direitos, fazendo
rar a memória de quem morreu, o que acontece brotar e crescer novas formas de poder nas fissu-
com os mais diversos feitios, a depender da época, ras provocadas por sua ausência.
da cultura, da religião. Na pandemia, os rituais de Nestes cenários, a partir de Butler, é possível
despedida foram proibidos por razões sanitárias fazer um panorama atemporal, passível de compa-
e apenas os agentes funerários testemunhavam o rações com o que ocorre em território ucraniano
momento do sepultamento, sem pompas, home- em 2022. As representações midiáticas da guerra
nagens ou flores. Revisitando a imagem da Guar- apontam para um caminho em que outras subje-
da Municipal fluminense tocando “O bêbado e a tividades são construídas. As cenas das intermi-
equilibrista” enquanto o caixão de seu composi- náveis filas nas fronteiras com pessoas buscando
tor, Aldir Blanc, vítima de Covid-19 em 2020, era qualquer chance de fugir dos bombardeios como-
colocado no carro dos bombeiros, percebe-se que vem o mundo (quase) inteiro. Famílias separadas,
a pandemia provocou mais que mortes: produ- homens voltando do exterior para pegar em armas
ziu desaparecimentos (JONEFER, 2021) e imagens e todo o tipo de objetos virando barricadas contra
chocantes, como a vala aberta com a retroesca- estilhaços (até livros, como numa comovente foto-
vadeira em Manaus e o arremesso de corpos no grafia de uma janela anônima). Câmeras são parte
rio Ganges, na Índia – é a precariedade da vida de do aparato bélico, pois as imagens têm poder de
mãos dadas com a precariedade da morte. intimidação internacional (material e simbólica) e
A distribuição diferencial da condição de expressam novos modos de conduta militar, so-
precariedade é uma questão material, pois aque- mados ao contínuo discurso de aprofundamento
les cujas vidas não são “consideradas” potencial- do conflito. Usando a mesma chave do conceito de
mente lamentáveis e valiosas, são obrigados a su- performance, Butler explica estes enquadramen-
portar a carga da fome, da privação de direitos e tos como representações da realidade material da
uma exposição diferenciada à violência e à morte guerra, o que vai impactar a construção das me-
(BUTLER, 2019). Seria difícil decidir se essa “con- mórias do conflito em suas mais diversas versões.
sideração” de (des)importância da vida conduz à Os contextos de guerra trazem consigo
realidade material de pobreza e abandono ou se grandes movimentos de migrações forçadas, e
é o contrário. Mais adequado entendê-las como com isso, afloram situações de xenofobia que se
situações que se retroalimentam, reproduzindo manifestam nos mais diversos matizes. Diante das
os enquadramentos que mantém a precariedade “perguntas que a gente não faz”, Butler aponta
de algumas vidas em detrimento do privilégio de como caminho para solucionar os problemas da
vida política contemporânea a ampliação da crí-
3
Ninguém = ninguém. Engenheiros do Hawaii, 1992. tica à violência do Estado, e também a necessida-

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Artigos

de de direcionar o foco das políticas identitárias reitos Humanos in SANTOS, Boaventura de Sousa; MAR-
para a precariedade da vida e suas distribuições TINS, Bruno Sena (orgs). O pluriverso dos Direitos Hu-
diferenciais. Assim se valoriza as distinções entre manos. 1ª edição. Coleção Epistemologias do Sul. Belo
os grupos populacionais e também intragrupo, em Horizonte: Autêntica Editora, 2019, p. 87-110.
sinal de respeito à diversidade, não permitindo
que essas diferenças continuem sendo fundamen-
to para aprofundar situações de desigualdade.
“Quanto vale a vida na última cena?” – per- LEONELLEA PEREIRA
gunta a mesma canção do início. “São segredos
que a gente não conta, contas que a gente não faz” Doutoranda em Direito na
pois o mundo tá cheio de gente que “faz de conta Universidade de Brasília
que não quer nem saber”... (UnB). Mestra em Estudos
Interdisciplinares sobre Gê-
nero, Mulheres e Feminis-
REFERÊNCIAS
mos (UFBA, 2019). Especialista em Ciências Penais
BARBOSA, Jonnefer. Sociedades do desaparecimento. São (UNIDERP, 2013) e também em Gestão de Políticas
Paulo: Hedra, 2021. Públicas de Gênero e Raça (UFBA, 2014). Gradu-
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra. Quando a vida é pas- ada em Direito (UEPB, 2010). Advogada (OAB/BA
sível de luto? 6ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasi- 32.346) na Presidência da OAB Subseção Irecê –
leira, 2019. BA (2022-2024). Professora do Curso de Direito da
MALDONADO-TORRES, Nelson. Da colonialidade dos Di- Faculdade Irecê – FAI.

Respiro

Charge por: Gilmar @cartunista_das_cavernas

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Artigos

Limites do contraditório na análise


de provas digitais
Por Luiz Eduardo Cani e João Alcantara Nunes

Inicialmente, adverte-se que o título é fru- não somente o cross-examination, uma das inci-
to do deformado procedimento da prova penal, dências do contraditório, exclusivamente na in-
mormente no tocante às “juntadas” de provas quirição, inclusive nas quesitações feitas no Brasil.
documentais e das manipulações fraudulentas, Mais específicas, porque tratam de uma espécie
convertidas em supostos documentos para burlar de provas: as provas digitais.
o contraditório. Além disso, não se tem efetiva- Quando tomadas em consideração as pro-
mente audiências para postulação das provas e a vas digitais, é preciso ir além das considerações
produção das provas admitidas ocorre ao largo da fundamentais e amplamente conhecidas acerca da
participação da defesa, ou seja, não raro, a defesa imprescindibilidade da cadeia de custódia, mor-
não tem acesso a conteúdo protegidos por sigilo e mente quanto à indispensabilidade do código hash
nem pode acompanhar a produção dessas provas. para auferir a autenticidade e a integridade do
Nessas situações, resta o factoide do “contraditó- material (PRADO, 2021; EBERHARDT; PIPPI, 2021)
rio diferido”, o qual consiste na informação (não devido aos potenciais de manipulação dos da-
raro sem cumprir com o mínimo de detalhes ne- dos, por exemplo, com o WhatsFake (CAMARGO;
cessários à participação) e análise do material. SCHUH, 2022), bem como da impossibilidade de
Daí a importância de interrogar os limites do a cadeia de custódia ser validada por algoritmos
contraditório, sobretudo nesses casos. não pertencentes ao Judiciário (CANI; MORAIS DA
Gary Edmond, Emma Cunliffe, Kristy Mar- ROSA, 2021).
tire e Mehera San Roque (2019) publicaram o mais O primeiro ponto relevante sobre o tema
relevante estudo empírico que se conhece acerca é precisamente o código hash. Ao contrário do
do contraditório: Forensic science evidence and que muitxs juristas pensam, ter acesso a um
the limits of cross-examination. De maneira mui- código hash nada diz sobre a integridade ou a
to sintética, xs autorxs avaliam o estado da arte autenticidade da prova digital. O código, forne-
sobre as análises de impressões digitais para, cido sem acompanhamento da diligência e sem
após abordar o case R v JP, julgado pela Court acesso ao material e o ferramental utilizado, é
of New South Wales, em 27 de janeiro de 2015, somente um amontoado de caracteres incon-
avaliam os limites da inquirição dos respectivos firmados e inconfirmáveis pela parte adversa. É
analistas ¹.A conclusão é de que a falta de conhe- o mesmo que uma senha padrão de papel reti-
cimentos dos peritos sobre o estado da arte do rada em uma fila: contém uma numeração, mas
tema, bem como o estado de negação sobre pos- nada diz acerca do local em que foi obtida, data,
síveis erros, são intransponíveis no cross-exami- hora, para que serve etc. Receber um código de
nation. Note-se que a constatação nada tem que hash desacompanhado de todas as demais infor-
ver com má-fé dos peritos. Portanto, os limites mações indispensáveis e inerentes ao exercício
do cross-examination são correlatos aos conhe- do contraditório - aqui entendido como direi-
cimentos das pessoas inquiridas. to a ser informado sobre os atos processuais e
A essa conclusão pretende-se acrescentar à “efetiva e igualitária participação” (LOPES JR.,
outras duas que são, ao mesmo tempo, mais gerais 2020, p. 113) a fim de aproveitar as chances pro-
e mais específicas. Mais gerais porque abrangem cessuais (GOLDSCHMIDT, 1935, p. 46-47) – de
nada serve para a defesa.
O segundo ponto é que o instrumento de
1
Embora algumas vezes os papiloscopistas sejam chama- referência do aparato de persecução penal para a
dos de “peritos”, entende-se que são analistas, pois, como
produção de provas digitais, a suíte de aplicações
destacou Francis Galton (1892, p. 16), precursor da siste-
matização dos exames em impressões digitais: é um méto- da Cellebrite, não faz o que se costuma dizer.
do rápido para obter vestígios, o qual não requer expertise Tornou-se senso comum (teórico dos juristas,
ou estudos aprofundados, somente experiência. diria Warat) dizer que os softwares da empresa

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Artigos

são utilizados na “extração de dados”. Ora, extrair to de direito à propriedade intelectual, de modo
significa retirar, arrancar, tirar, puxar etc. Tais a que não se tenha uma auditoria sobre os limi-
ferramentas não retiram, nem arrancam, nem ti- tes, as possibilidades e as taxas de erro. O se-
ram e muito menos puxam os dados armazena- gundo, ainda menos comentado, é a delimitação
dos nos aparelhos eletrônicos. Muito pelo con- da decisão judicial que autoriza a “extração” de
trário, os dados são copiados e convertidos para tais dados. Tanto a decisão é descumprida com a
um formato próprio e proprietário: .ufed. Qual- execução da diligência, quanto a quebra da crip-
quer processo de conversão de dados, por um tografia é dada como “pressuposto lógico” do
lado, os torna distintos do que eram, e, por outro, seu cumprimento.
pode corromper o arquivo. Daí que o hash de um Finaliza-se este texto não com uma tese, mas
arquivo nunca será o mesmo daquele convertido com um conjunto de dúvidas: (a) a quebra da crip-
para outro formato. Caso xs leitorxs discordem, tografia de um aparelho eletrônico para acessar o
podem converter um arquivo .doc para .pdf e uti- conteúdo armazenado é lícita? (b) o direito de pro-
lizar algum programa, como o HashMyFiles, para priedade intelectual prepondera sobre o direito de
obter o código hash dos dois arquivos. Depois, defesa a ponto de não se ter sequer uma auditoria
basta comparar. pelos Estados nação? (c) conhecimentos e instru-
Assim, diante da falta de informações e re- mentos sem auditoria e informação pública sobre
cursos indispensáveis à avaliação e reação con- os limites, potenciais e taxas de erros podem ser
tra as provas digitais, sem as quais não é possível implementados na persecução penal? (d) a ausência
influenciar em nenhuma decisão, bem como por de técnicas e tecnologias menos restritivas dos di-
força da incontornável necessidade de converter reitos e garantias fundamentais é justificativa para
os dados para arquivos distintos, colocam-se no- o eficientismo punitivista? (e) cabe à defesa, diante
vos limites ao contraditório, não somente quan- de provas digitais, bradar sem ser ouvida?
do do cross-examination, mas em todas as fases
do processo. Xs amigxs fazzalarianos certamente
já estão pensando que, nesses termos, não existe REFERÊNCIAS
processo. Embora se continue com Goldschmidt,
concorda-se com tal conclusão. CAMARGO, Rodrigo Oliveira de; SCHUH, Anna Júlia da Rosa.
O papel da parte adversa, sobretudo da de- WhatsFake, print e prova no processo penal. Canal Ciências
fesa penal, ao não ter possibilidade de auferir tais Criminais, Porto Alegre, 11 ago. 2022. Disponível em: https://
dados, é o de enfeite de legitimação, ou, como es- canalcienciascriminais.com.br/whatsfake-print-e-prova-
creveu Kafka (2005, p. 100): “A defesa, na verdade, -no-processo-penal. Acesso em: 13 nov. 2022.
não é realmente admitida pela lei, apenas tolerada, CANI, Luiz Eduardo; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Podem
e há controvérsia até mesmo em torno da perti- os algoritmos racionalizar a cadeia de custódia?. Consultor
nência de deduzir essa tolerância a partir das res- Jurídico, São Paulo, 02 abr. 2021. Disponível em: https://
pectivas passagens da lei.” www.conjur.com.br/2021-abr-02/limite-penal-podem-
Por tudo isso, a proposta de alguns colegas, -algoritmos-racionalizar-cadeia-custodia-digital. Acesso
de aquisição de licenças de softwares de alto cus- em: 13 nov. 2022.
to pela OAB para o uso compartilhado por todxs EBERHARDT, Marcos; PIPPI, Marcos. Prova criminal: What-
xs advogadxs, parece apenas mais uma forma de sApp e cadeia de custódia. Consultor Jurídico, São Paulo,
legitimação de uma ferramenta de duvidosa vali- 13 out. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/
dade jurídica. Ora, o Cellebrite Reader é gratuito 2021-out-13/eberhardt-pippi-prova-criminal-whatsapp-
e permite a visualização dos dados convertidos -cadeia-custodia. Acesso em: 13 nov. 2022.
para .ufed. Eventual reiteração da diligência por EDMOND, Gary; CUNLIFFE, Emma; MARTIRE, Kristy; SAN
um assistente técnico, igualmente não é garantia ROQUE, Mehera. Forensic science evidence and the limits
de integridade e autenticidade. No máximo, será of cross-examination. Melbourne University Law Review,
possível confirmar a ocorrência de erros. Não se v. 42, n. 3, pp. 1-62, 2019.
pode desconsiderar que, por um lado, seria ape- GALTON, Francis. Finger print. Londres: MacMillan and
nas um passo, e, por outro, seria absolutamente Co., 1892.
insuficiente para reagir e influenciar nas decisões. GOLDSCHMIDT, James. Problemas jurídicos y políticos
Dois outros aspectos permanecem pouco del proceso penal. Conferencias dadas en la Universidad
explorados pela defesa. O primeiro é o acesso ao de Madrid en los meses de diciembre de 1934 y de enero,
código fonte dos softwares, encoberto a pretex- febrero y marzo de 1935. Barcelona: Bosch, 1935.

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Artigos

KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. São LUIZ EDUARDO CANI
Paulo: Companhia de Bolso, 2005.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Doutor em Ciências Criminais
Saraiva, 2020. na Escola de Direito da Ponti-
PRADO, Geraldo. Notas sobre o fundamento constitucio- fícia Universidade Católica do
nal da cadeia de custódia da prova digital. Consultor Jurí- Rio Grande do Sul, bolsista da
dico, São Paulo, 26 jan. 2021. Disponível em: https://www. CAPES. Especialista em Direi-
conjur.com.br/2021-jan-26/prado-notas-cadeia-custo- to Penal Econômico pela Universidade de Coimbra.
dia-prova-digital. Acesso em: 13 nov. 2022. Advogado criminalista e Professor de Direito Penal
no Centro Universitário Avantis.

JOÃO ALCANTARA NUNES

Graduado em Direito pela


Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Rio Grande do Sul.
Capacitado no III Programa
Brasileiro sobre Reforma Pro-
cessual Penal. Advogado criminalista.

Respiro

Charge por: André Dahmer @andredahmer

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Artigos

Interseccionalidades: tráfico de drogas e a


seletividade penal da cor/raça e gênero
Por Monalisa Santana de Castro

O racismo é uma variável fundamental para ção da polícia, há muitos estudos (ATLAS DA VIO-
compreendermos o funcionamento do sistema pe- LÊNCIA, 2019) demonstrando a atuação discrimi-
nal brasileiro e o projeto genocida de Estado. Den- natória em relação ao negro.
tre suas especificidades, se faz perceber a crimina- Quanto à grande participação percentual
lização de mulheres negras pelo sistema penal, vez de pretos e pardos no sistema prisional, pode ser
que correspondem à maioria da população peni- vista como reflexo da atuação discriminatória da
tenciária feminina. Quando essas mulheres perdem polícia e do Poder Judiciário e, ao mesmo tempo,
sua liberdade, tornam-se vulneráveis e passam a fonte de ideologia discriminatória, uma vez que
viver em situação de marginalidade. Ainda que suas o grande número de negros apenados contribui
condições de vida nas prisões sejam degradantes a para a manutenção da imagem do negro como de-
sociedade não reage; e a relação entre a mulher ne- linquente (CAMPOS, 2009, p. 75).
gra e o sistema penal é naturalizada. A criminologia, assim, pode ser um lugar
Do mesmo modo, o judiciário encarcera a de produção de conhecimento que desnaturalize
população negra e pobre sem que isso, infelizmen- esse fato e evidencie a seleção criminalizante pro-
te, cause comoção. Quanto à discriminação em re- movida sobre essas mulheres.
lação ao negro, não é difícil notar como ela é uma Partindo do pressuposto de que o Estado
constante no funcionamento desse sistema. Não encarcera a maioria da população preta e pobre,
somente dados estatísticos, mas também a expe- superlotando o sistema prisional, se utilizando da
riência concreta cotidiana, refletida num grande lei de drogas, que privilegia uma política de re-
número de casos trazidos à tona pela imprensa, pressão ao tráfico e autoriza, de maneira expressa,
demonstra que a tão propalada igualdade entre os o uso seletivo do direito penal.
indivíduos não é observada no funcionamento do De acordo com os dados do INFOPEN pode-
sistema penal. Principalmente no tocante à atua- mos afirmar que mais de 60% da população prisional

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Artigos

feminina é composta por mulheres negras e pardas. tema de justiça criminal. O feminismo hegemôni-
De todo modo, podemos afirmar que os co, que possui perspectivas brancas e europeias,
crimes relacionados ao tráfico de drogas corres- como base para uma criminologia feminista, não
pondem a 60% das incidências penais pelas quais fornece respostas capazes de englobar os modos
as mulheres privadas de liberdade foram conde- de vidas e experiências dessas mulheres crimina-
nadas ou aguardavam julgamento, constata-se lizadas e invisíveis, deixadas à margem dentro e
que três em cada cinco mulheres que se encon- fora do sistema punitivo.
tram no sistema prisional respondem por crimes O sistema de justiça criminal, enquanto
ligados ao tráfico (BRASIL, 2017b). engrenagem de controle social dos corpos vul-
Perceptível que o aumento do encarcera- neráveis e punição diretamente articulada com a
mento feminino ocorreu, principalmente, devido atuação policial seletiva também opera com crité-
ao maior poder das políticas de repressão às dro- rios específicos na condenação de quem é suspei-
gas no Brasil e à crescente participação subalterna to, quem deve ser mantido em prisão provisória
da mulher na hierarquia do tráfico. e quem são aqueles que, em geral, são considera-
A partir do governo de extrema-direita/ das criminosas. O direito penal é um instrumen-
fascista de Jair Messias Bolsonaro, houve uma rigi- to ineficaz e totalmente falho para a proteção das
dez ainda maior das políticas de repressão ao uso e mulheres, pois reproduz e legitima os valores da
tráfico de drogas, com a aprovação do projeto de lei sociedade patriarcal, racista e misógina.
37/2013, que foi transformado na lei 13.840, em 2019. Portanto, é urgente e necessário debater
Esta nova política nacional sobre drogas, sobre a formação e desenvolvimento do fenômeno
de 2019, prevê o tratamento baseado apenas na social das drogas, do recente paradigma do proi-
abstinência e não mais na redução de danos; no bicionismo e a construção de caminhos para uma
apoio a comunidades terapêuticas de cunho reli- política de drogas antiproibicionista.
gioso e no estímulo à visão de que são as circuns-
tâncias do flagrante que devem determinar se o REFERÊNCIAS
indivíduo é um usuário ou um traficante. Esse mo-
delo privilegia a internação compulsória e distan- BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Levanta-
cia o cidadão do sistema público de saúde. mento nacional de informações penitenciárias: período de
Não obstante, a Agência Nacional de Vigilân- janeiro a junho de 2019. Depen, Brasília, DF, 24 jun. 2020.
cia Sanitária (Anvisa) permitiu o uso da maconha para CAMPOS, Luiz Augusto; FRANÇA, Danilo; FERES JUNIOR,
produção de medicamentos, o que é considerando João. Relatório das desigualdades raça, gênero e classe
um passo para a regulamentação da substância. (GEMMA). Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação
Compreende-se que não se pode discutir Afirmativa, 2018. 2. IESP. UERJ.
a política de guerra às drogas, sem pensar na re- CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil. Por-
levância que ela exerce no aumento do encarcera- to Alegre: Saraiva, 2014.
mento brasileiro, com destaque ao cárcere femi- INFOPEN. Levantamento de informações penitenciárias.
nino. São desafios interseccionais. Organização Tandara Santos; colaboração, Marlene Inês
De acordo com Salo de Carvalho (2014), o da Rosa. Brasília, Ministério da Justiça e Segurança Pública.
aumento do encarceramento é efeito direto da Departamento Penitenciário, 2017.
política criminal de drogas no Brasil, em que a le- IPEA. Atlas da Violência. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo:
galidade legitima o aprisionamento da juventude Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasilei-
vulnerável. Segundo o autor, isso acontece pela ro de Segurança Pública, 2019.
permanência de condutas idênticas tanto para
portar drogas como para traficar drogas.
Enquanto isso, a guerra às drogas segue MONALISA DE CASTRO
como a maior causa de encarceramento e crimi-
nalização de mulheres no Brasil e América Latina, Advogada associada ao Insti-
com perfil característico de mulheres pretas, par- tuto de Defesa da População
das, moradoras de regiões periféricas, com baixa Negra, pós-graduanda em
escolaridade e chefes de família. É pertinente a Tribunal do Júri. Pós-gradu-
análise desse fenômeno sob a ótica de um femi- ada em Direito Público. Ba-
nismo que discuta as peculiaridades das mulheres charel em Direito pela Universidade Federal Rural
latino-americanas que são selecionadas pelo sis- do Rio de Janeiro.

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Artigos

As conversas difíceis e urgentes: existe


masculino e feminino sem haver estupro?
Por Vanessa Nunes Lopes

O estupro constitui uma chave de organiza- negros, a humanidade plena já está descartada de
ção social que opera de modo específico em socie- saída, em face do contexto de antinegritude em
dades constituídas a partir da violência da coloni- que vivemos (VARGAS, 2017). Ainda assim, entendo
zação, tanto em termos concretos como simbólicos que a questão precisa ser mantida, uma vez que
(Flauzina e Pires, 2020). Além de produzir e perpe- essa porta falsa - e é falsa porque não cumpre sua
tuar a hierarquia que estabelece homens brancos promessa - parece estar sempre entreaberta.
e mulheres negras e indígenas como extremos da Embora homens negros e brancos não pos-
distribuição de poder, em que as últimas são aque- sam ser igualados em termos de status de dignida-
las que, tal como os territórios invadidos, podem de ou cidadania, diante do contexto de antinegri-
ser igualmente violadas e apropriadas, as autoras tude já mencionado, ambos vivenciam, ao longo da
também destacam o estupro como um instrumento vida, uma imersão em códigos culturais em que a
que hierarquiza masculinidades. violência sexual está sempre colocada. Nesse sen-
Trazendo ainda mais complexidade ao tema, tido, FLAUZINA E PIRES (2020, p. 13) alertam:
apontam a prisão como um espaço em que os ho-
mens negros vivenciam a violência do estupro, A pedagogia do estupro frequenta ab-
tanto como vítimas quanto como perpetradores, e solutamente todos os espaços das múl-
tiplas masculinidades, em especial das
onde se parece sinalizar que ser estuprado, em úl-
cisheteronormativas: seus grupos de
tima análise, corresponderia a receber o tratamen- WhatsApp com comentários misóginos;
to que é destinado às mulheres. Refletindo sobre o a tela da pornografia que consomem que
contexto semelhante que se observa na África do os ensina o egocentrismo do falo e bru-
Sul, a vergonha dos homens estuprados decorreria, talização das mulheres, em especial das
sobretudo, dessa feminização (GQOLA, 2015, p. 8-9). negras, como forma de viver sua sexua-
lidade; as camas de suas casas, com os
Acerca desta dinâmica de hierarquização de
estupros maritais quotidianos que não
masculinidades, e considerando o aporte teórico entram no cômputo das denúncias; os
dos feminismos e a noção de penetração colonial, encontros fortuitos dos aplicativos que
me pergunto se o estupro (concreto ou simbólico), permitem ignorar e relativizar os limites
como uma forma específica de violência, está im- dados pelas mulheres. Estamos, portan-
plícito na própria definição ocidental de masculi- to, diante de uma ampla chancela social
da violência de gênero que abre espaço
no e feminino. Reconhecendo que a violência do
para a violência sexual ser praticada ha-
estupro também é perpetrada por homens bran- bitualmente pelos homens, sem qual-
cos contra homens negros1, seria possível consi- quer tipo de censura.
derar a hipótese de que este tipo de estupro te-
ria uma espécie de função hieráquica/corretiva,
em resposta àquele “roubo da onipotência fálica” Por sua vez, é na vida das mulheres de ma-
pensado por GONZÁLEZ (2020)? E, se o estupro neira geral que essa possibilidade sempre presen-
hierarquiza as masculinidades, a chave da violên- te do estupro atua produzindo uma verdadeira
cia sexual se colocaria como uma espécie de falsa performance de gênero, orientada pela insegu-
porta de acesso de homens negros para a mascu- rança e pelo controle. Tanto pela proximidade en-
linidade plena? É claro que esta última pergunta é tre as mulheres e seus violadores (já que a maior
terrível de ser colocada, uma vez que, para homens parte dos estupros ocorre no contexto doméstico
ou no círculo de pessoas conhecidas2), quanto pela
força dos mitos (GQOLA, 2015; FLAUZINA E PIRES,
1
Pensando na criação de imaginários, relembro o filme
brasileiro “Faroeste Caboclo”, em que o personagem principal
é vivido por um homem negro que é torturado por seu rival 2
Confira-se, a respeito, o anuário da segurança pública
amoroso, um homem branco, que o estupra. de 2022.

21
Artigos

2020) que cercam o estupro e fazem dele um re- REFERÊNCIAS


gulador social, as mulheres são obrigadas a evitar
andar sozinhas à noite, a calcular o tipo de trans- FLAUZINA, Ana; PIRES, Thula. Uma conversa de pretas so-
porte a ser utilizado em determinada situação e bre violência sexual. In: ARAUJO, Silmeia; PIMENTEL, Sil-
horário, a limitar o tipo de roupa, de maquiagem e via. Raça e Gênero: discriminações, interseccionalidades e
até o tom de voz que será utilizado, a modular os resistências, 2020, p.65.82.
tipos de relações afetivas que serão dadas como GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-ameri-
seguras ou inseguras, a restringir seu padrão de cano: ensaios, intervenções e diálogos. Org. Flávia Rios e
comportamento sexual, a controlar suas possibi- Márcia Lima. 1ª ed. Rio de janeiro: Zahar, 2020.
lidades de uso de álcool e drogas, entre diversos GQOLA, Pumla. Rape: a South African nightmare. MFBooks,
outros possíveis desdobramentos. Tal conjunto de 2015 (tradução).
regras de comportamento produz uma perfor- VARGAS, João. “Por Uma Mudança de Paradigma: Antine-
mance específica de feminino, o que parece indi- gritude e Antagonismo Estrutural”. Revista de Ciências So-
car que, assim como o modelo de masculino que ciais. Fortaleza, v. 48, n.2, p. 83-105, jul/dez, 2017.
conhecemos, o modelo de feminino ao qual nos ________. Terror sexual é genocídio: o estupro da mulher
acostumamos também depende do estupro para negra como elemento estrutural e estruturante da diáspora.
seguir existindo. Talvez o estupro seja o próprio Revista Latino-americana de criminologia. v. 1 n. 2 (2021).
evento (concreto ou simbólico) que sustenta o
sistema de gênero ocidental. VANESSA NUNES LOPES
Por isso, é fundamental fomentar discus-
sões acerca desse sistema de gênero, conside- Mestranda em Direito Públi-
rando sua interface com a raça e com o legado co (UFBA). Defensora Pública
da escravização. Só assim poderemos mapear no Estado da Bahia.
com mais profundidade as maneiras pelas quais
gênero e raça seguem ajustados para desenhar o
contorno do humano e do não humano desde o
período colonial até a atualidade, bem como para
que possamos começar a responder às tantas
perguntas que a associação entre masculinidades
e violência sexual nos provocam.

22
Artigos

Direito e Relações Raciais, Exuêutica Jurídica


e Constitucionalismo Negro: disputas, rasuras
e reinvenções da juridicidade
Por Samuel Vida

No campo jurídico brasileiro prevalecem as minatório. Exige-se radical reorientação epistemo-


concepções do direito moderno e seu imaginá- lógica (MOORE, 2007) para revisitar a formação e
rio teorético-metodológico como bem-sucedida desenvolvimento do direito moderno, suas teorias,
invenção racional e emancipatória. Neste ensaio, sua normatividade e suas instituições, desentra-
identifico este fenômeno como juridicismo (WA- nhar as conexões com o racismo e seu papel funda-
RAT, 1986; VIDA, 2018), que em seus aspectos gerais mental na estabilização, normalização, reprodução
implica a crença na racionalidade, universalidade e e perpetuação das desigualdades raciais, cartogra-
comprometimento ético do direito com valores hu- far as estratégias negras de insurgência político-ju-
manistas como o bem comum e a manutenção da rídica, seus fracassos e conquistas, suas rasuras e
ordem social. Esta percepção funda a mitologia ju- repercussões redefinidoras e alargadoras da juridi-
rídica moderna (GROSSI, 2004) e pauta a imagina- cidade. Isto só é possível mediante a ruptura com
ção jurídica, a técnica jurídica, a prática profissio- a epistemologia monocultural (SEMPRINI, 1999) e
nal e a percepção social da juridicidade. Em nome com o pacto epistemológico da branquitude.
da razão, da civilização, do progresso, da ciência, No campo de pesquisa Direito e Relações Ra-
do desenvolvimento e da defesa da sociedade ig- ciais implica desentranhar a racialidade dos câno-
noram-se a materialidade das conexões entre o fe- nes jurídicos e escapar da armadilha que reproduz
nômeno jurídico e as muitas formas de dominação, leitura parcial da experiência moderna e desconsi-
os interesses econômicos, os valores etnocêntricos dera o fato histórico das relações raciais como fe-
e raciais, o que possibilita, normaliza, reproduz e nômeno vertebrador e viabilizador da modernida-
perpetua as desigualdades e promove a injustiça. As de. Tanto negativamente, pela conquista, genocídio,
idealizações de pureza, segurança e certeza jurídi- pilhagens epistêmicas (FREITAS, 2016) e subalterni-
cas expurgam do território celestial da juridicidade zação, quanto pela dimensão positiva das interfe-
os pecados da contestação, a pluralidade cultural rências da insurgência negra e indígena, além das
e civilizacional, a dimensão conflitiva das disputas inscrições incontornáveis no desenvolvimento da
societais, as estratégias de resistência às domina- cultura material contracolonial (BISPO, 2015), das
ções, as insurgentes apropriações idiossincréticas teorizações alternativas, das rasuras institucionais
(SANCHIS, 1997), as criações disruptivas, as nego- e práticas jurídico-políticas transgressoras.
ciações e acomodações que correm paralelas ou A construção de horizonte jurídico eman-
confluem das insurgências. cipatório passa por duplo movimento de ruptu-
Na contramão desta idealização a investiga- ra que tenho nomeado como Exuêutica Jurídica
ção crítica desvela processos históricos de comple- (VIDA, 2018), num giro epistemológico voltado
xidade e impureza em suas dinâmicas constitutivas, para a experiência afrodiaspórica e seu repertório
e do permanente tensionamento e interinfluência epistêmico reorientador e mobilizador de novos
entre dominação e emancipação. Neste exercício caminhos e possibilidades.
indisciplinado um dos principais desafios postos à A abordagem sobre o Constitucionalismo
pesquisa jurídica diz respeito ao resgate das cone- Negro (VIDA, 2018) se desenvolve como perspectiva
xões entre a experiência jurídica moderna e as rela- da Exuêutica Jurídica. Primeiro, identifica na histó-
ções raciais. A obra seminal de Dora Lúcia Bertúlio ria os registros ocultados do protagonismo jurídi-
(2019), delimitou o alicerce desta empreitada. Des- co-político negro, tornando-os visíveis, inteligíveis
de então, não se trata apenas de denunciar as ini- e comunicáveis. Segundo, a partir da experiência
quidades toleradas ou legalizadas, assim como não do protagonismo dos Sujeitos Constitucionais In-
basta erigir uma barricada em torno de um neces- surgentes (VIDA, 2018), exercita a disputa herme-
sário (mas, sempre insuficiente) direito antidiscri- nêutica sobre os sentidos e alcances da juridicidade

23
Artigos

como fenômeno moderno afetado pela exigência O Constitucionalismo Negro funcionou


de reconhecimento da cidadania plena das pessoas como um dos vetores da expansão e desenvolvi-
negras, como condição de possibilidade da demo- mento do direito constitucional moderno (FEE-
cracia e forma de legitimação político-jurídica dos LEY, 2013). Tensionando as mitologias jurídicas da
arranjos institucionais existentes e advenientes. igualdade formal, provocando constrangimentos e
Neste sentido, o Constitucionalismo Negro recu- dissensões acerca da legitimidade das constrições
pera a agência negra por liberdade e pela limita- discriminatórias, induzindo a produção de juris-
ção do arbítrio do poder estatal, reinserindo na prudência alargadora da interpretação/aplicação
história do constitucionalismo a memória ances- das normas constitucionais.
tral da resistência e protagonismo negro.
Na esfera internacional, destacam-se a Re- REFERÊNCIAS
volução do Haiti e a Constituição de Dessalines,
de 1805, a primeira a assegurar o reconhecimento BERTULIO, Dora Lucia de Lima et al. Direito e relações ra-
da cidadania aos negros, constrangendo o cons- ciais: uma introdução crítica ao racismo. Dissertação de
titucionalismo canônico escravocrata e racista Mestrado. UFSC. 1989.
da Inglaterra, Estados Unidos e França. Também BISPO DOS SANTOS, A. Colonização, Quilombos: modos e
se destaca a luta anticolonial e de libertação na significações. Publicação INCT; Brasília, 2015.
África, disputando o emergente Direito Consti- FEELEY, Malcolm M. The Black Basis of Constitutional Deve-
tucional Internacional, esboçado pela ONU e pela lopment. In: Crime, Law and Society. Routledge, 2017. p. 75-101.
Declaração Universal dos Direitos Humanos, que FREITAS, J. H. O arco e a arkhé: ensaios de literatura e cul-
inaugura a complexa experiência constitucional tura. Salvador: Ogum’s Toques Negros, 2016.
africana, que tem nas constituições da Namíbia e GROSSI, Paolo; JÚNIOR, Arno Dal Ri. Mitologias jurídicas da
da África do Sul, suas últimas manifestações. modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
Na esfera nacional, impõe-se o resgate da MOORE, Carlos. Racismo & Sociedade: novas bases
Revolta de Búzios, em 1798, na Bahia, exemplo sig- epistemológicas para entender o racismo. - Belo Horizonte:
nificativo do constitucionalismo brasileiro e das Mazza Edições, 2007.
aspirações por reconhecimento e direitos plenos SANCHIS, Pierre. O campo religioso contemporâneo no
de cidadania negra. Também se reivindica a ins- Brasil. In: ORO, A. P.;
crição na história constitucional da Independên- STEIL, C. A. (Orgs.) Globalização e religião. Petrópolis: Vo-
cia da Bahia, consumada no 2 de Julho. Durante a zes, 1997. p. 103-116.
experiência republicana, as mobilizações pelo di- SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Bauru: Edusc, 1999.
reito à educação, pela garantia do direito à Liber- VIDA, Samuel Santana. Quem dorme com os olhos dos ou-
dade Religiosa, a apresentação de programa cons- tros, não acorda a hora que quer: colonialidade jurídica,
titucional à constituinte de 1945, via Convenção constitucionalismo e direito à liberdade religiosa na diáspo-
Nacional do Negro, organizada pelo TEN (Teatro ra-a cidade negra e os sujeitos constitucionais das religiões
Experimental do Negro), sob a liderança de Abdias de matrizes africanas em Salvador. Dissertação de Mestrado
do Nascimento, além da vitoriosa participação na – Universidade de Brasília - 2018.
Constituinte de 1987/1988. WARAT, Luis Alberto. As funções constitucionais do saber
Uma das dimensões mais significativas do jurídico e os caminhos da transição democrática. Seqüên-
Constitucionalismo Negro se desenvolveu através cia: estudos jurídicos e políticos, v. 7, n. 12, p. 47-54, 1986.
da instrumentalização dos institutos jurídicos e
processuais disponíveis, numa atitude de insur-
gência adotada pelas pessoas negras. Esperan- SAMUEL SANTANA VIDA
ça Garcia, em 1770, peticionando e reivindicando
seus direitos; Emanuel Mundurucu, revolucioná- Professor da Faculdade de Di-
rio negro brasileiro, exilado nos EUA, inauguran- reito da UFBA, coordenador
do em 1833 as inciativas jurídicas de contestação do Programa Direito e Rela-
da ordem racista estadunidense; Luiz Gama e sua ções Raciais, Mestre em Di-
jornada nos tribunais em defesa da liberdade, na reito, Estado e Constituição –
segunda metade do século XIX; os antológicos ca- UnB, Doutorando em Direito, Estado e Constituição
sos Dred Scott v. Sandford, em 1857, Plessy v. Fer- - UnBPrograma Direito e Relações Raciais, Mestre
guson, em 1896, Brown v. Board of Education, em em Direito, Estado e Constituição – UnB, Doutoran-
1954, no constitucionalismo estadunidense. do em Direito, Estado e Constituição - UnB

24
Entrevista com:Eunice Prudente

Possui graduação em Direito, pós graduação, mestrado e


doutorado, todos pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo. Professora na Faculdade de Direito da USP

1
Em relação ao ensino jurídico no Brasil, públicas são respeitosas, mas no ensino univer-
como a Sra. avalia o atual panorama, e sitário privado os professores são humilhados
quais seus impactos nas condições de e dispensados quando ascendem ao doutorado.
exercício da advocacia?
No Poder Judiciário, na OAB, na Academia e
EUNICE PRUDENTE Sim, a qualidade do ensi- nas instituições jurídicas como um todo,
no jurídico tem impactos no exercício da advo- há um movimento por maior paridade
cacia. A responsabilidade sobre a qualidade do de gênero e equidade racial na composi-
ensino jurídico se deve ao Ministério da Saúde. ção dos espaços. É possível afirmar que, caso
a exigência do "exame de ordem" para o exer- implementadas, tais medidas têm o potencial
cício da advocacia já o demonstra. Se o MEC de transformar a cultura jurídica brasileira?
assumisse suas funções constitucionais/legais
e exigisse melhor qualidade e EUNICE PRUDENTE Sim, o res-
organização do ensino nem pre- peito e a adesão à diversidade
cisaríamos do mencionado exa- Urge melhorar étnica e de gênero transformará
me, aliás também obrigatório a cultura jurídica brasileira, pois
para o exercício da contabilida-
o ensino do direito, melhorará a qualidade do ensi-
de e facultativo para formados firmando disciplinas no do direito com a admissão de
em medicina, mas temos tam- propedêuticas professoras e professores com
bém muitos reprovados. Urge conhecimentos, possibilitando a
melhorar o ensino do direito,
sobretudo ciências descolonização do direito brasi-
firmando disciplinas propedêu- sociais, além de exigir leiro, ainda equidistante da cul-
ticas sobretudo ciências sociais, vagas nas escolas de tura e História dos brasileiros.
além de exigir vagas nas escolas Além de efetivar o Estado de Jus-
de direito para doutores e mes- direito para doutores tiça que buscamos. Implementar
tres com salários e vencimento e mestres com salários diversidade é contribuir para fi-
respeitáveis. Proponho que o respeitáveis. nalmente termos profissionais do
MEC realize concursos para os Direito ( Advocacia de qualidade,
professores e mantenha um cur- Judiciário, Defensoria, Procura-
rículo oficial assim as escolas de direito assim dorias ) que além dos conhecimentos técnicos e
o exame de ingresso seria oficial e nacional. jurídicos sejam humanistas.
Também possíveis dispensas dependeriam de
pronunciamento do MEC, pois as universidades

25
Entrevista: Múltiplos Olhares

4
O sistema processual penal brasileiro Na perspectiva da Sra., o sistema de
é denunciado como um instrumento justiça criminal no Brasil tem espaço
estruturalmente racista, cujas funções para uma hermenêutica constitucio-
não declaradas incluiriam a manutenção de nal e processual penal que possa ser pen-
hierarquias raciais e a gestão de corpos con- sada sob o viés interseccional?
siderados indesejáveis. Há possibilidade de
reconstrução desse Processo Penal? EUNICE PRUDENTE Sim, o sistema de justiça
criminal no Brasil atua em plena inconstitu-
EUNICE PRUDENTE Sim, é possível recons- cionalidade. Precisa ser alterado por lei, pois
truir nosso Processo Penal sem revitimizar disposições constitucionais já o admitem.
sobretudo as mulheres e as meninas vítimas Uma nova política para encarceramentos,
de violência. Há projetos de lei em eterna fundamentada no regime e princípios ado-
apreciação no Congresso Na- tados pela atual Constituição
cional. Também a elaboração Federal (art. 5º, §2º); políticas
de um novo Código Penal com públicas para o uso e abuso de
participação da sociedade ci-
Implementar drogas lícitas e ilícitas; valori-
vil que hoje colabora tanto diversidade é zação das Defensorias Públicas
com a governabilidade. Tam- contribuir para , garantindo melhores venci-
bém atender os protocolos e mentos com atuação na assis-
determinações do Conselho finalmente termos tência jurídica, além da judi-
Nacional de Justiça no exer- profissionais do ciária inclusive na assistência
cício de controle externo do Direito que além trabalhista; garantia da atuação
Judiciário. de psicólogos e assistentes so-
dos conhecimentos ciais nas delegacias de polícia
técnicos e jurídicos diuturnamente. Não precisa-
sejam humanistas. mos de nova Constituição e sim
implementar a atual.

26
O QUE REVERBEROU NAS REDES SOCIAIS

27
http://www.ibadpp.com.br/
publicacoes@ibadpp.com.br
@ibadpp

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