Bramanismo No Discurso Portugues
Bramanismo No Discurso Portugues
Bramanismo No Discurso Portugues
ISSN: 1413-7704
secretaria.tempo@historia.uff.br
Universidade Federal Fluminense
Brasil
Este artigo visa analisar o modo como os discursos bramânicos que circulavam no espaço
indiano (nos quais a pureza ritual e a endogamia eram topoi recorrentes) foram perce-
bidos, experienciados e apropriados pelos agentes ao serviço da coroa de Portugal. Entre
outros aspectos, interessa-me perceber em que medida é que esses discursos tiveram
paralelo em (ou dialogaram com) os discursos linhagísticos que alimentaram os estatutos
de limpeza de sangue, cada vez com maior expansão e aplicação no contexto metropoli-
tano ibérico e seus respectivos territórios imperiais
Palavras-chave: Limpeza de sangue – nobreza – bramanismo
1
Artigo recebido e aprovado para publicação em julho de 2010.
2
Professora do ICS – Universidade de Lisboa. E-mail: angela.xavier@ics.ul.pt
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Ângela Barreto Xavier Dossiê
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O lustre do seu sangue
Bramanismo e tópicas de distinção no contexto português
nho, 1991, pp. 155-166. Mais atento às riquezas naturais do que às gentes, a Summa Oriental de
Tomé Pires constitui, para as primeiras décadas da presença portuguesa, uma descrição igualmente
incontornável (v. A Suma Oriental de Tomé Pires e o Livro de Francisco Rodrigues, leitura e notas de
Armando Cortesão, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1978).
4
O Livro de Duarte Barbosa. op. cit., vol. 1, pp.183-187.
5
João de Barros, Ásia, 2ª Década, L. 5, cap. 2; 4ª Década, L. 7, cap. 11; L. 8, cap. 15.
6
Diogo Ramada Curto, “Representações de Goa: Descrições e Relatos de Viagem”, In: Rosa Maria
Perez e Joaquim Pais de Brito (orgs.), Histórias de Goa. Lisboa, Museu de Etnologia – CNCDP, 1997.
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Ângela Barreto Xavier Dossiê
7
“Dissolver a Diferença. Conversão e Mestiçagem no Império Português”, In: Cabral, Wall et al.,
Itinerários. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2008. pp. 709-727; “‘Nobres per geração’. Os des-
cendentes dos portugueses na Goa seiscentista”, Ângela Barreto Xavier e Catarina Madeira Santos,
Cultura Intelectual das Elites Coloniais, número temático da revista Cultura – História e Teoria das
Ideias, 2ª série, vol. XXV; “David contra Golias na Goa seiscentista e setecentista. Escrita identitária
e colonização interna”, Ler História, nº 49, 2005.
8
O conceito imaginação aqui evocado vincula-se aos sentidos que lhe são atribuídos por Ronald
Inden em Imagining India (C. Hurst & Co. Publishers, 1990), mas também por Benedict Anderson,
em Imagined Communities: reflections on the origins and spread of nationalism (Verso, 1991).
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Bramanismo e tópicas de distinção no contexto português
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Ângela Barreto Xavier Dossiê
Tópicas bramânicas
Dado o carácter introdutório deste estudo, este leque de questões e as escalas
para as quais remetem serão aqui discutidos de forma simultaneamente vaga e
restrita. Na realidade, de momento limitar-me-ei a explorar uma selecção impres-
sionista de representações do bramanismo, produzidas nos séculos XVI e XVII,
articulando-os com topoi presentes nos discursos sobre a nobreza, a linhagem e a
pureza do sangue, produzidos na mesma altura.
Para discutir parte destas questões no contexto imperial português dispo-
mos, já, de alguns importantes estudos. Desde logo, os trabalhos que, nas déca-
das de 1980 e 1990 elegeram as representações (sobretudo as representações
incorporadas nos relatos de viagem) como objecto de estudo.12 Depois, os estu-
dos de Ines Županov, centrados, sobretudo, no universo de produção jesuíta, e
identificado no clássico ensaio “On mimicry and man. The ambivalence of colonial discourse” de
Homi Bhaba (The location of culture, Routledge, 1994) em que a realidade ocidental surge como o
template original que o ‘colonizado’ devia imitar (ou podia, eventualmente, parodiar), procuram-se
identificar zonas de contacto que podem ter sido produtoras, de uma outra forma, da própria situa-
ção colonial e da sua durabilidade, zonas nas quais a apropriação de ideias ‘indígenas’, de tecnologias,
de práticas, é agora entendida como modalidade dinâmica, produtora e reprodutora da interacção
colonial. Sob alguns ângulos, a proposta de Michael Taussig, em Mimesis and Alterity: A Particular
History of the Senses (1993), segundo a qual há lugares coloniais nos quais é difícil dizer quem é o
imitador e quem é o imitado, é inspiradora dessa vontade de identificar situações de encontro colo-
nial que potenciaram o recurso a múltiplas e inesperadas formas de imitação colonial.
12
Trabalhos clássicos nesta área são os de Luís Filipe Barreto, Descobrimentos e Renascimento. For-
mas de Ser e Pensar nos séculos XVI e XVII, Lisboa, INCM, 1983; Luís Graça, A visão do Oriente
na literatura portuguesa de viagens: os viajantes portugueses e os itinerários terrestres, 1560-1670,
Lisboa, INCM, 1983; Mª Augusta Lima Cruz, “La Vision de l’Indien chez les premiers chtoniqueurs
portugais de l’Asie: la fixation d’une image”, La Decouverte, le Portugal et l’Europe, Actes du Collo-
que. Paris, FCG, 1990, p. 235-241; W.G.L. Randles, “‘Peuples Sauvages’ et ‘États despotiques’: la
pertinence, au XVIe siècle de la grille aristotélicienne pour classer les nouvelles societés révélées
par les Découvertes au Brésil, en Afrique et en Asie”, Mare Liberum: Revista de História dos Mares,
nº 3, Dez. 1991, p. 229-307; Luís de Albuquerque, António Luís Ferronha, José da Silva Horta, Rui
Loureiro, O confronto do olhar. O encontro dos povos na época das navegações portuguesas. Séculos
XV e XVI, Lisboa, Ed. Caminho, 1991; Sanjay Subrahmanyam, “O gentio indiano visto pelos por-
tugueses no século XVI”, Oceanos, nº 19/20, Setembro 1994; Idem, “O romântico, o oriental e o
exótico: notas sobre os portugueses em Goa”, in: Rosa Maria Perez e outros (coord.), Histórias de
Goa. Lisboa, Museu Nacional de Etnologia, 1997, pp. 29-43; Diogo Ramada Curto, “Representações
de Goa: Descrições e relatos de viagem, in: Rosa Maria Perez e outros, coord., Histórias de Goa. Lis-
boa. Museu Nacional de Etnologia, 1997, p. 45-85. Ver, ainda, a boa sintese europeia providenciada
por Joan-Pau Rubiès, Travel and Ethnology in the Renaissance. South India through European Eyes,
1250-1650, Cambridge, CUP, 2005.
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daqueles que reconhecia como diferentes. Como outros escritores do seu tempo,
insiste na verdade da sua relação, e no método de conhecimento por ele utilizado
(a conversação com a população local, a experiência, a observação), trabalhando
retoricamente a sua informação de modo a tornar a diferença compreensível ao
leitor português. Este jogo entre o familiar e o diferente caracterizou, de facto, os
primeiros momentos do encontro de Barbosa com a Ásia, tornando o seu livro
muito rico em informação.15
Um dos primeiros portugueses a registar aspectos característicos do grupo
bramânico, de entre as semelhanças que Barbosa encontra entre os brâmanes,
gostaria de destacar a questão da linhagem. “O que é filho de bramene será bra-
mene” e “não são feitos de outras gentes como nós”16 são dois enunciados nos
quais Barbosa parece diferenciar o regime de identidade e distinção dos brâma-
nes do universo social que era o seu. Ou seja, no início do século XVI – e ao con-
trário do que alguma literatura mais recente tem desenvolvido sobre a construção
britânica da identidade bramânica17 – era claro para os portugueses que contacta-
vam com estes grupos que o reconhecimento da identidade de brâmane passava
necessariamente pelo critério linhagístico. Mas Barbosa também se refere com
curiosidade à obsessão pela limpeza – “têm por grande cerimónia o lavar. Dizem
que, por ali, se salvam” – a qual, na época, também devia diferenciar as práti-
cas destes grupos das da maior parte dos portugueses que aí se estabeleciam. É
evidente que Barbosa representava um português do tipo médio, não podendo
as suas palavras – e o seu espanto – serem tomados como representativos de
toda a comunidade de portugueses. O carácter local do seu registo não lhe retira,
porém, relevância, até porque muitos dos tópicos que aí foram narrativizados
reaparecem em vários lugares da literatura de viagens, da correspondência, das
histórias e crónicas, e de outra tratadística sobre a Índia, suas gentes e seus costu-
mes, tanto de origem portuguesa, quanto de autoria europeia.
15
Infelizmente não se conhece o manuscrito original do tratado de Duarte Barbosa, mas sim várias
cópias manuscritas – e impressas – em línguas diferentes, tendo sido uma delas a base da primeira
versão impressa, incluída na compilação Della Navigationi e Viaggi de Ramusio.
16
O Livro de Duarte Barbosa. Edição crítica e anotada por Maria Augusta de Veiga e Sousa, 2 vols.,
Lisboa IICT-CNCDP, 2000, vol. 2, pp. 115-118.
17
Pamela Price, “Ideology and Ethnicity under British Imperial Rule: Brahmans, Lawyers and Kin-
Caste Rules in Madras Presidency”, Modern Asian Studies, vol. 23, nº 1, 1989, pp. 151-177.
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de sua religião, não podiam comer nem dormir senão em sua própria casa, e,
quando se tocavam com gente fora de sua geração, tinham suas purificações e
cerimónias”, era recorrentemente sublinhada. Segundo Barros, parte dos costu-
mes e/ou ritos desses brâmanes eram marcados, de facto, pela sua obsessão com
os lavatórios.23 Essa associação entre proibição de contacto privado com pessoas
de fora do seu grupo e a execução de rituais de limpeza aparece noutras narrati-
vas quinhentistas laicas e em variados lugares da escrita como sendo constituti-
vos da “identidade bramânica”.24
Enfim, na primeira metade do século XVI, os temas da hereditariedade da
identidade, da distinção assente sobre a pureza do sangue, e sobretudo do corpo,
e da associação entre brâmanes e poder político, são recorrentes quando, na
literatura de viagens, na cronística, e noutros lugares, os brâmanes se tornavam
objectos de discurso. A partir de finais do século XVI, altera-se o modelo de apro-
priação discursiva deste grupo social e suas práticas. De objectos de discurso que
povoavam narrativas mais alargadas, os brâmanes e as suas práticas tornaram-se,
eles próprios, nos protagonistas de um outro tipo de textos.
É sabido que com a entrada dos religiosos no registo das experiências tidas
localmente (e há testemunhos desse tipo de registo desde o início do século XVI,
aí se destacando os relatórios enviados pelo bispo de Dume ao rei D. Manuel, pelo
padre Miguel Vaz a D. João III, e por outros missionários) o volume de informa-
ção sobre as práticas religiosas e sociais dos indianos aumenta exponencialmente,
explodindo com a chegada da Companhia de Jesus àqueles territórios.
Nesse contexto, e porque identificados com o sacerdócio local, os brâmanes
tornaram-se nos principais interlocutores (e rivais) dos eclesiásticos cristãos, o
mesmo acontecendo com o seu universo religioso e as suas práticas sociais, os quais
se converteram num importante objecto do discurso cristão. As percepções das
práticas religiosas locais foram formatadas e decifradas, num primeiro momento,
em função daquilo que era considerado definidor da religião (livros, sacerdotes,
23
João de Barros, Ásia, 1ª Década, L. VI, cap. 7; L. VII, cap. 6; 2ª Década, L. II, cap. 8. A par destas
descrições, os brâmanes de diversas partes da Índia são sujeitos a muitas outras referências, na
maior parte altamente depreciativas, sendo as mais fortes de entre estas a ideia de que tinham uma
forte inclinação para a falsidade, topos que atravessou toda a presença portuguesa na Índia e os
discursos sobre estes grupos, mas para aquilo que nos interessa aqui analisar, esta tópica explicita-
mente negativa não é particularmente relevante.
24
João de Barros, op. cit., L. IV, cap. 7; L. V, cap. 4; L. VI, cap. 15.
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templos, rituais), mas o seu registo fez-se, também, em função dos templates (nem
sempre coincidentes, aliás) disponibilizados pelos próprios brâmanes.
Considerem-se, a esse propósito, as reflexões deixadas pelo jesuíta Gonçalo
Fernandes Trancoso, em 1616, sobre a religião dos brâmanes, publicadas por
Josep Wicki em 1973 sob o título Tratado do Padre Gonçalo Fernandes Trancoso
sobre o Hinduísmo Maduré 1616.25 Propostas contemporâneas de Trancoso são
as de Jacopo Fenício (1558-1632), jesuíta que esteve na corte de Calecute nos
primeiros anos do século XVII, autor do Livro da Seita dos Índios Orientais, de
João Delgado Figueira, inquisidor de Goa e autor do parecer sobre “a duvida de
certos synaes gentílicos”, de 1619, de frei Francisco Negrão, franciscano que teria
escrito algo de semelhante na sua perdida crónica franciscana, do padre Francisco
Garcia, compilador de O Homem das trinta e duas perfeições, e, evidentemente, a
Informatio de quibusdam moribus nationis Indicae, de Roberto di Nobili, entre as
várias cartas e textos que produziu no contexto da controvérsia que o opôs a Tran-
coso. Posterior era o tratado escrito por frei Manuel Barradas, c. 1634, e enviado a
Manuel Severim de Faria, intitulado Da seita dos Índios orientais e principalmente
dos Malabares, o qual se trata, na sua maior parte, de uma glosa de Fenício.26
A controvérsia sobre a qual assentou a escrita do tratado de Trancoso – em
torno aos atributos religiosos e sociais das práticas rituais dos indianos – foi mag-
nificamente trabalhada por Ines Županov no livro Disputed Mission.27 O que aqui
se persegue, ao analisar Trancoso, é ligeiramente diferente daquilo que interessou
esta autora, pelo que não vou aqui repetir o que aí foi analisado. O que agora
se pretende é identificar os contornos da tópica bramânica de Trancoso, com o
objectivo de perceber de que forma é que esta participou da communis opinio
portuguesa, seiscentista, sobre as articulações entre identidade e hereditariedade,
contribuindo dessa forma para forjar e/ou reforçar certos modelos de distinção.
O livro de Gonçalo Fernandes Trancoso é apresentado por Josep Wicki como
se desdobrando em duas partes, uma primeira na qual o seu autor se concentra
em analisar os costumes e cerimónias, os quais considera parte de um “modo
de proceder” mais geral que incluía as “siensias e lleis”, e uma segunda parte
25
Tratado do Pe. Gonçalo Fernandes Trancoso sobre o Hinduísmo (Maduré 1616), ed. de Josep Wicki,
Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1973.
Para se ter uma visão mais completa do que se produziu, nessa época, sobre a religião e os costumes
26
dos indianos, veja-se o elenco de fontes referenciado por Ines Županov em Disputed Mission…
27
Ines Županov, Disputed Mission, op. cit.
81
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quá, donsella (...) vós nasestes de boa família, por eu casar convosco” era o voca-
tivo deste mantra, no qual se reiterava, mais uma vez, o bom nascimento. Mas
igualmente análogos terão sido os momentos em que se confirmava perante os
parentes a probidade dos noivos, a troca de objectos que confirmavam a pertença
mútua dos cônjuges, ou os ritos pelos quais se pedia “vida e pureza”.31 Essa pureza
continuava, ao longo da vida, desde que ritualmente preservada pelas cerimó-
nias que marcavam o quotidiano destes brâmanes imaginados pelos jesuítas e
por outros religiosos portugueses a partir da conjugação de várias prescrições
textuais oriundas de “autores” diversos com as suas próprias experiências com
brâmanes locais. No capítulo dedicado aos lavatórios rituais (dois por dia, e os
que deviam ser feitos em dias especiais), Trancoso explica: “Se quereis saber o
fruito de se lavar, hé que dá limpesa ao corpo e ao intendimento, e os peccados
que se cometerem de noite em sonhos e por pensamentos ruins bota fora.”32
À preservação do estatuto de brâmane correspondia o reconhecimento social
da sua supremacia, suscitando axiomas como “somente o que hé brâmane está
sempre purificado e nenhuma das outras castas o está”. 33
No “compendio de ditos de graves autores”, Trancoso elenca as “penitensias”
que os brâmanes faltosos deviam fazer para regressarem à comunidade bramâ-
nica, segundo vários textos, de proveniência distinta, mas que circulavam no
Malabar seiscentista, servindo de referencial para os sacerdotes que presidiam
aos tribunais de casta.
Para além de questões da vida concreta, em relação às quais os brâmanes se
deviam comportar de determinada maneira, os temas da imundície e da pureza
voltam a estar presentes nestes textos. A imundície, entendida como poluição,
encontrava-se em momentos concretos da vida de cada brâmane (da vida men-
sal das mulheres, nomeadamente), implicando, por conseguinte, determinados
comportamentos por parte de quem os vivia, tais como a total abstinência do
contacto. Mas ela também resultava de comportamentos activos, tais como o
contacto inesperado (ou desejado) como membros de castas consideradas mais
baixas, quer na comensalidade, quer em situações de maior intimidade (ex. “todo
31
Idem, pp. 72-91.
32
Idem, p. 100.
33
Idem, p. 245.
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o bramane que tocar carnalmente a parechi que hé molher da mais baixa casta, se
não fizer o sandaraiana virudam não se irá o tal pecado”).34
Ines Županov mostrou-nos bem que o objectivo de Trancoso, ao compilar
estas reflexões, era provar que os ritos realizados pelos brâmanes tinham uma
dimensão religiosa, razão pela qual deviam ser abandonados depois da conversão
– ao contrário do que era defendido por Roberto di Nobili e outros defensores da
accomodatio, para quem havia uma separação entre a esfera religiosa e a esfera
social, o que permitia, precisamente, a manutenção destas práticas depois da con-
versão, sem com isso lesar a nova identidade cristã. Ou seja, as referências à here-
ditariedade da identidade bramânica e aos rituais de purificação surgem neste
contexto, devendo ser entendidas como parte desse processo argumentativo. É
essa identidade argumentativa do texto que o torna, contudo, tão interessante, já
que, seguindo os preceitos retóricos da época, Trancoso preocupou-se em elen-
car o maior número de exemplos possíveis (podendo ter incorrido, é certo, em
deslizes de tradução, ou falseado alguma informação), deixando-nos, por isso
mesmo, uma antologia da tópica bramânica que circulava no mundo social do
Malabar do seu tempo.35
Se os manuscritos deixados por Gonçalo Fernandes Trancoso, Roberto di
Nobili, pelo padre Manuel Barradas ou por Jacopo Fenício instituíram os ritos e
costumes dos indianos (e sobretudo dos brâmanes) como objecto autónomo de
discurso, providenciando cortes em profundidade sobre os mesmos,36 e inven-
tando discursivamente os brâmanes e o bramanismo, uma dinâmica distinta,
tipicamente orientalista, preside à redacção da Ásia Portuguesa por Manuel Faria
de Sousa, síntese de meados do século XVII, inspirada em João de Barros.37
34
Idem, pp. 236 e ss., p. 252.
35
Ver, a esse propósito, Velcheru Narayana Rao, David Shulman, Sanjay Subrahmanyam, Textures
of Time: Writing History in South India 1600-1800, Other Press, 2003.
36
Para além dos já citados estudos de Ines Županov, ver, ainda, “One civilty, multiple religions:
Jesuit mission among St. Thomas Christians in India (16th-17th centuries)”, JEMH, 9, 3-4, 2005,
pp. 284-325; e também Joan-Pau Rubiès (2006), “Theology, ethnography, and the historicization
of idolatry”, Journal of the history of ideas, 67 (4). pp. 571-596; (2001) “The Jesuit discovery of
Hinduism: Antonio Rubino’s account of the history and religion of Vijayanagara (1608)”, Archiv
für religionsgeschichte, 3 (1), pp. 210-256; David N. Lorenzen, Who invented Hinduism: essays on
religion in History, Yoda Press, 2006; “Gentile Religion in South India, China, and Tibet: Studies
by Three Jesuit Missionaries”, Comparative Studies of South Asia, Africa and the Middle East, 27.1,
2007, pp. 203-213.
37
Manuel de Faria e Sousa, Ásia Portuguesa, Porto, Livraria Civilização, 1945, vol. I.
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Idem.
39
Manuel Faria e Sousa, Ásia Portuguesa, vol. IV, pp. 250, 261.
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partilhar a mesa com pessoas de outra casta, em comer alimentos preparados por
estas, em casar, e em variadas outras práticas de sociabilidade.40
Tópicas da nobreza
A cronologia destes discursos é semelhante à dos debates em torno à nobreza
que se desenvolvem em Portugal, sobretudo a partir de meados do século XVI –
interdependentes, aliás, das dinâmicas de mobilidade social que se verificam nesse
período – os quais podem ser divididos em dois subtipos: os debates em torno
à origem natural ou política da nobreza (no contexto dos quais se pode situar a
tratadística sobre a linhagem, a antiguidade da nobreza e a pureza de sangue, e a
produção genealógica) e os debates em torno à nobreza das letras em contraponto
com a nobreza de armas, que tinha evidentes conexões com o primeiro.41
Será que estes discursos sobre brâmanes e bramanismo interagiram com aqueles
que, no reino, contemporaneamente, se estavam a desenvolver sobre a identidade
nobiliárquica? Ou será que estamos perante discursos paralelos, com lugares de
semelhança, mas entre os quais não é possível identificar trânsitos de significados?
No ensaio bibliográfico que João de Figueirôa-Rego fez na introdução à sua
dissertação de doutoramento, A honra alheia por um fio. Os estatutos de lim-
peza de sangue nos espaços de expressão ibérica (sécs. XVI-XVIII), o espectro de
influência que a limpeza de sangue adquiriu no mundo ibérico e seus impérios
é amplamente demonstrado,42 nomeadamente ao nível de práticas institucionais
que incorporaram os estatutos de limpeza de sangue como critério de aferição
da qualidade dos candidatos a determinados ofícios, posições ou identidades.
Os incontornáveis estudos de Fernanda Olival já tinham alertado para a maneira
como os estatutos de limpeza de sangue, ao serem aplicados a várias instituições,
40
Idem, pp. 258-260. Noutros lugares, porém, Faria e Sousa junta informação que parece contradizer
esta (e relatos anteriores), segundo a qual os brâmanes do Malabar podiam sustentar várias mulheres,
ainda que não brâmanes, o mesmo não podendo acontecer, contudo, com as mulheres brâmanes.
41
Ver, a esse propósito a dissertação de doutoramento de Luís Fernando de Sá Fardilha, A Nobreza
das Letras: Os Sãs de Meneses e o Renascimento Português, Porto, FLUP, 2003 (manuscrito polico-
piado), a propósito do uso das letras como instrumento de prestígio nobiliárquico que complemen-
tava os feitos das armas.
42
João de Figueirôa-Rêgo, “A honra alheia por um fio. Os estatutos de limpeza de sangue nos espa-
ços de expressão ibérica (secs. XVI-XVIII)”, Braga, Universidade do Minho, dissertação manuscrita
e policopiada, 2009. Agradeço ao autor, reconhecida, por me ter facultado o seu trabalho, ainda em
vias de publicação.
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49
Nuno Gonçalo Monteiro, op. cit., tema retomado e explorado mais intensivamente em O Crepús-
culo dos Grandes, Lisboa, INCM, 1995.
50
Jose Guillén Berrendero, Mecanismos de Honor y Nobreza en Castilla y Portugal, Madrid, 2009;
“Honor and Service. Alvaro Ferreira de Vera and the idea of nobility in the Portugal of the Habs-
burgs”, e-Journal of Portuguese History, vol. 7, n. 1, 2009.
51
Ver a esse propósito, João de Figueirôa-Rêgo, Reflexos de um poder discreto, Lisboa, CHAM, 2008.
52
O objectivo de Diogo do Sá, no Tratado dos Estados Eclesiásticos e Seculares, não era reflectir sobre
as origens destes estados, mas sim, definir o perfil moral dos seus ocupantes, em diálogo directo
com os perfis morais dos não cristãos, sobretudo judeus e hereges. Assim sendo, o seu tratado faz
parte da literatura especular, orientadora de condutas, não abordando de maneira equivalente a
questão da origem da nobreza e da sua transmissão.
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Ângela Barreto Xavier Dossiê
que se interpõe entre a verdadeira nobreza e o seu simulacro”. Osório lembra que
o vocábulo tinha um “uso assaz dilatado”, pelo que no seu tratado o seu signifi-
cado limitar-se-ia ao “lustre do sangue”, ou seja, “os méritos mais grados, benéfi-
cos e acomodados à vida em sociedade”.53
Ao contrário de Rodrigues, para quem a “nobreza natural” é a menos válida
para aferir a nobreza de alguém, Osório começa por dizer que “a nobreza não
se cifra na opinião, mas sim na natureza”, uma potência que supunha, contudo,
a realização das virtudes que encerrava. Mais, este adjectivo podia aplicar-se a
territórios e a famílias, do que resultava que o nascimento em “pátria ilustre” e de
“geração nobre” tornava alguém potencialmente mais nobre do que aquele cuja
proveniência não era aquela.54
Para sintetizar aquilo que ele próprio designa como a natureza e a origem
da nobreza, o futuro bispo de Silves escreveria que a nobreza é “a índole natu-
ral que é inata nas almas mais excelentes, índole que, se estimada e confirmada
pela antiguidade dos tempos alcança esplendor e senhorio de todo o género”.55
Acrescentaria, ainda, que a antiguidade permitia “seleccionar” o que merecia ser
preservado pela memória, para isso dando como exemplo os áticos, que não só
proclamavam a sua antiguidade (“a razão que sejam estimadas por mais ilustres
as castas que procederam durante dilatados anos”), como a ornavam com o facto
de terem nascido em território grego, não admitindo “qualquer castiçamento
com bárbaros ou forasteiros”.56
Neste momento de síntese, Osório define a boa nobreza como aquela que era
antiga, tinha linhagem pura e era nascida em território digno, três tópicos que
iriam ser centrais nas posteriores discussões sobre a nobreza (ou a não nobreza)
das populações nascidas no mundo ibérico e nos seus territórios imperiais. Con-
tudo, o autor defende a historicidade da definição que ele próprio propõe, ao
argumentar que era impossível que “este lustre de raça dure para sempre”, razão
pela qual havia muitas famílias de linhagens antigas que tinham desaparecido
do conúbio dos nobres, enquanto novas famílias nobres podiam surgir, abrindo
caminho para a incorporação de novos candidatos a nobre.
53
Jerónimo Osório, Tratados da Nobreza Civil e Cristã. Lisboa, INCM, 1996, p. 89.
54
Idem, p. 93.
55
Idem, p. 107.
56
Idem, pp. 105-106.
90
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O autor explica isto com recurso a uma outra teoria fundadora da nobreza –
a mesma de Rodrigues, mas aqui apresentada com maior sofisticação –, assente
sobre as virtudes excepcionais de um sujeito que, depois, dava origem à linha-
gem nobre, sujeito esse que podia (e devia) ser reconhecido nobre pelo seu sobe-
rano. Não surpreende, pois, que Osório prossiga enunciando que virtudes eram
essas (justiça, grandeza de ânimo, liberalidade, erudição),57 ao que contrapunha
os vícios que conduziam à perda da nobreza natural (tirania, crime, iniquidade,
cobardia, frouxidão, avareza).58
Dessa forma, e a partir de um mesmo princípio, Osório harmonizava duas
modalidades de aquisição de nobreza que se situavam em dois pólos antagóni-
cos: a linhagem e o mérito. Considerando a virtude de ânimo (a fonte do mérito)
como origem última da nobreza, Osório hierarquiza e distingue aqueles cujos
progenitores e antepassados o tinham já mostrado (ou seja, a continuidade linha-
gística da nobreza) e os que a tinham demonstrado recentemente.
Ao fazê-lo, Osório recorreu várias vezes à associação entre casta e nobreza, e
entre casta e lustre do sangue, bem como à expressão “castiçamento”, derivada da
mesma raiz, a qual remetia para uma dinâmica de misceginação, por ele enten-
dida negativamente. A associação entre estes vocábulos, ainda que não tivesse um
papel central na teoria da nobreza desenvolvida por Osório dá conta de um tem-
plate que iria ser transferido como quadro perceptivo dos grupos sociais que os
portugueses encontraram na Índia, os quais, ao serem identificados como “casta”
passavam a remeter para um determinado universo de identificação, distinção e
exclusão, no qual a linhagem tinha um papel central.59
O Tratado da Nobreza Civil não pode ser lido sem ter em conta o Tratado
da Nobreza Cristã, que lhe é complementar, permitindo a Osório, contudo,
desenvolver melhor aquilo que entende por virtude de ânimo da qual procedia
a nobreza, a “incontestável e constante fonte de virtude, que conserva com segu-
rança a dignidade, não graças ao aparato, mas mercê da verdade”. Segundo Osó-
rio, numa formulação radical e semelhante à de Rodrigues, que iria, mais tarde,
ser aproveitada pelas populações oriundas dos territórios imperiais entretanto
57
Idem, pp. 112-123.
58
Idem, pp. 124-128.
59
Ver as considerações feitas a esse propósito por Rui Loureiro em Luís de Albuquerque et. al., O Con-
fronto do Olhar. O Encontro dos povos na época das navegações, Lisboa, Caminho, 1991, pp. 160 e ss..
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porque a linhagem seja causa eficiente, como o é a virtude remunerada pelo Prín-
cipe, se não porque já o Príncipe enobreceu aquela geração em cabeça do pri-
meiro e lhe deu a eles a mesma nobreza. E assim estes, que são nobres por linha-
gem, não têm mais privilégios que o primeiro daquela sua linhagem. Porém, tem
uma estima maior por se haver aquele seu princípio dilatado e continuado nos
descendentes com a propagação natural e antiguidade no tempo. De tal maneira
que quanto mais se dilatar e mais antiguidade tiver, tanto de mais estima irão
cobrando os descendentes deste primeiro autor da tal nobreza”.63
Contudo, Vera insiste no facto de ter havido desde sempre uma opinio favorá-
vel à transmissão da nobreza pelo sangue (Aristóteles, Quintiliano, Piccolomini) e
uma outra que privilegiava as “assinaladas façanhas” (Boécio, Plutarco, Petrarca).
Citando frei Amador de Arrais, Vera diz “lastimosa coisa é não ter o homem
mais nobreza própria que quanta deriva de seus avós”,64 dedicando, inclusive, um
capítulo aos que “degeneraram da nobreza que herdaram”, ao qual contrapõe um
outro relativo aos que eram “baixos e humildes”, alcançando “grandes honras e
dignidades”, “por seus merecimentos”.65
Ao longo do seu tratado, Vera recorre aos autores e exemplos clássicos para
sustentar a sua argumentação, muito raramente evocando casos asiáticos. Con-
tudo, no final do seu tratado, ao fazer uma síntese das causas da nobreza (vir-
tude, valor, letras) refere-se à “gente escolhida da casta real e santa”, ao invocar os
que eram nobres por virtude, i.e., os sacerdotes, religiosos e pessoas consagradas
a Deus. Além disso, e apesar de insistir na origem política da nobreza, acaba
por aceitar, à maneira de Jerónimo Osório, que aqueles que “são nobres por suas
linhagens e por si, são mais qualificados e estimados do que os outros a que se
concedeu a nobreza. A razão é porque aquela virtude dos primeiros está mais
aumentada e quase perpétua em seus descendentes”.66
Estes primeiros exemplos não permitem afirmar que houve transacções direc-
tas entre a tópica bramânica – tal como ela surgia declinada nas representações
63
Álvaro Ferreira de Vera, Origem da Nobreza Politica, Lisboa, Livro Aberto, 2005, p. 24.
64
Idem, pp. 51, 53.
65
Idem, caps. VIII e IX.
66
Idem, pp. 63-64.
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67
Ver, a propósito das disputas que se discutem em seguida, o capítulo 7 de Ângela Barreto Xavier, A
invenção de Goa, op. cit., e “David contra Golias…”, op. cit., e ainda Ines Županov, “Conversion histo-
riography in South Asia – counter space for alternative histories in 18th century Goa”, Medieval History
Journal, Theme Issue Conversions, ed. Monika Juneja e Kim Siebenhüner, 12, 2, 2009, pp. 303-325.
68
Sobre Mateus de Castro, ver Giuseppe Sorge, Matteo de Castro (1594-1677) profilo di una figura
emblematica del conflitto giurisdizionale tra Goa e Roma nel secolo 17, Bologna, CLUEB, 1986;
Ângela Barreto Xavier, A Invenção de Goa, op. cit., cap. 7; e Patrícia Souza Faria, “Mateus de Castro:
um bispo ‘brâmane’ em busca da promoção social no império asiático português (século XVII)”,
Revista Eletrónica de História do Brasil, vol. 09, n. 2, Jul-Dez 2007, pp. 31-43.
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acabariam por disputar, entre si, e com o recurso à tópica cristã, a maior nobreza
(e pureza?) da sua identidade.
É isso que opõe António João Frias, da aldeia de Talaulim, filho de Pascoal
João Frias, o qual, alcançara já, depois de muitas outras benesses, o foro de cava-
leiro fidalgo em 1690,69 a Leonardo Paes, igualmente bem sucedido no seu cur-
sus honorum. No seu Promptuario de Deffinicoes Indicas, na parte designada “Da
gente da India”, discorre sobre as “castas”, afirmando a antiguidade da linhagem
charodo (descendente de Indo, um dos filhos de Noe), em contraponto com os
brâmanes, sobre quem se recusa a escrever, argumentando que estes eram estran-
geiros à Índia. Mas Paes dedica uma das partes do livro a desmontar a argumen-
tação bramânica, nomeadamente as ideias de que “as nobrezas das famílias se
medem pelas antiguidades”, e de que eles eram mais antigos. Nessa mesma parte,
Paes pretende desmontar a ideia veiculada pelos brâmanes de que só eles tinham
acesso ao colégio da Propaganda Fide, ao tribunal do Santo Oficio, à Secreta-
ria e Chancelaria do Estado da India, ao convento de Santa Mónica, um elenco
que providencia uma primeira etnografia das exclusões no Estado da Índia que
tinham por base o “sangue indiano” que não era de origem brâmane.70
Em suma, as “representações do bramanismo” (parte de uma outra forma-
ção discursiva – o Orientalismo) podem ser entendidas como um “discurso
transverso”, que se “encontrou” com os discursos de linhagem e pureza produzi-
dos no contexto metropolitano e imperial da coroa de Portugal, possivelmente
fazendo parte, ambos, da genealogia do racismo. A confluência de ambos os
discursos em determinados textos produzidos por brâmanes cristianizados de
Goa reflectiu uma outra etapa deste processo, e a sua corporeização em novas
modalidades discursivas que tinham como objecto, agora, outros corpos (já não
apenas o corpo do cristão-novo, já não apenas o corpo do brâmane, mas sim o
corpo do brâmane convertido).
A estes processos não terão sido alheias às dinâmicas identitárias que se
desenvolviam na Índia nesse mesmo período. Esta pertença regional dos discur-
sos produzidos pelos indianos convertidos ao Cristianismo de Goa parece-me
inquestionável, assim como as pontes que se podem estabelecer entre os formatos
69
João de Figueirôa-Rêgo, “A honra alheia por um fio”, op. cit., 1.2. “O Império português na Índia:
brâmanes e chardós”.
70
Leonardo Paes, Promptuario de Diffinições Indicas, Lisboa, 1713, tratado III, caps. 3 e 4, tratado IV.
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por eles escolhidos e a escrita que circulava nas regiões vizinhas. Efectivamente, a
extensão desta problemática aos espaços imperiais obriga a dar uma maior aten-
ção a discursos paralelos que se podiam estar a desenvolver nesses lugares inde-
pendentemente da relação colonial (a pureza e a genealogia, por exemplo, tive-
ram um papel central na definição da identidade bramânica, nesta mesma altura,
à semelhança do que acontecia, aliás, no mundo judaico). De facto, o puzzle que
aqui pretendo construir só adquire sentido se estiver em diálogo com esses outros
puzzles, nomeadamente, as histórias concretas por detrás de tais experiências dis-
cursivas, as quais podem ser iluminadas pelos excelentes trabalhos de Sheldon
Pollock, Sanjay Subrahmanyam, David Shulman, Velcheru Narayna Rao, Sumit
Guha, Kapil Raj, ou Rosalind O’Hanlon e Christopher Minkowski, sobre os pro-
cessos intelectuais e políticos que caracterizaram a Índia ‘pré-britânica’.71
Por fim, e com o objectivo de complexificar ainda mais estas já complicadas
equações (inserindo o tema da imitação colonial num contexto inter-imperial),
interessa-me, e tendo presentes os magníficos estudos de Thomas Trautmann e de
Tony Ballantyne, de certo modo ainda na sequência do Imagining India de Ronald
Inden, colocar ainda outras questões.72 Por um lado, e à semelhança do que fize-
ram estes autores, gostaria de saber se brâmanes e bramanismo ocuparam um
lugar homólogo no contexto imperial português aos que os arianos e o arianismo
terão ocupado, segundo estes autores, no mundo britânico, “aproximando” colo-
71
Sheldon Pollock, ed., Literary Cultures in History:Reconstructions from South Asia, Berkeley, U.
of California Press, 2003; “Literary Culture and Manuscript Culture in Precolonial India”, in Simon
Eliot, Andrew Nash, Ian Willison, eds., History of the Book and Literary Cultures, London: British
Library, 2006, pp. 77-94; Sumit Guha, “Speaking Historically: The changing voices of historical
narration in Western India, 1400-1900”, American Historical Review, 109, 4 (October 2004 ), 1084-
1103; “Serving the barbarian to preserve the dharma: the ideology and training of a clerical elite
in peninsular India, c. 1300-1800”, Indian Economic and Social History Review, October/December
2010, vol. 47 no. 4, pp. 497-525; Sanjay Subrahmanyam, Penumbral Visions: making polities in early
modern South India, University of Michigan Press, 2001; Richard Maxwell Eaton, A Social History
of the Deccan: 1300-1761: eight Indian lives, Gordon Johnson, gen. ed., New Cambridge History of
India, vol. 8, Cambridge, CUP, 2005, pp. 184 e ss.; Rosalind O’Hanlon e Christopher Minkowski,
“What makes people who they are? Pandit networks and the problem of livelihoods in early-mo-
dern India”, Indian Economic Social History Review, vol. 45, no. 3, September 2008, pp. 381-416.
72
Thomas Trautmann, Aryans and British India, Berkeley-Los Angeles-London, University of Cali-
fornia Press, 1997; Tony Ballantyne, Orientalism and Race, Basingtoke, Palgrave MacMillan, 2005;
Ronald Inden, Imagining India, Cambridge, Blackwell, 1990. Falar de pureza ritual e de brama-
nismo evoca, necessariamente, Louis Dumont e o seu Homo hierarchicus (1968), mas não é este o
template de leitura da cultura e da sociedade indiana que aqui se adopta.
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