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Kastrup - Pensar A Ciência

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Sobre Filosofia Analítica dê uma olhada em:

https://institutoine.com.br/arquivos/_5eb455d864687.pdf

Pensar a Ciência
A queda da matéria e os contornos da próxima visão científica dominante de
mundo
(Science Ideated. The fall of matter and the contours of the next mainstream scientific
worldview.) (Ciência Idealizada)
(Pensar la ciencia. Los contornos de una nueva visión científica del mundo)
Bernardo Kastrup
2020

Capítulo 1. Pg. 21.

Por que o materialismo é um beco sem saída?


Como a falta de compreensão do assunto nos desencaminhou

Vivemos numa era da ciência que permitiu avanços tecnológicos inimagináveis para os
nossos antepassados. Ao contrário da filosofia, que para resolver uma questão depende
de alguma forma de certos valores subjetivos e do próprio senso do plausível, a ciência
coloca questões diretamente à natureza, na forma de experimentos. A natureza responde
então apresentando determinados comportamentos, para que as questões levantadas
possam ser resolvidas objetivamente.

Esta é ao mesmo tempo a força da ciência e o seu calcanhar de Aquiles: as experiências


apenas nos dizem como a natureza se comporta, não o que ela é essencialmente. Muitas
hipóteses sobre a essência da natureza são consistentes com os seus comportamentos
manifestos. Assim, embora tais comportamentos sejam informativos, eles não podem
resolver questões sobre o ser, sobre o que os filósofos chamam de “metafísica”.
Compreender a essência da natureza está fundamentalmente além do método científico.
Para isso só dispomos dos métodos – diferentes – da filosofia, que, por mais subjetivos
que sejam, constituem a nossa única forma de descobrir o que se passa.
 A ciência diz como a natureza se comporta. Não diz o que ela é.

O materialismo “científico” – a noção de que a natureza é fundamentalmente composta


de matéria externa e independente da mente – é uma metafísica, uma vez que faz
afirmações sobre o que a natureza é essencialmente. Portanto, ele é também uma
inferência teórica: não podemos observar empiricamente a matéria externa e, ao mesmo
tempo, separada da mente, pois a todo momento estamos trancados na própria mente.
Tudo o que podemos observar são os conteúdos da percepção, que são inerentemente
mentais. Mesmo o resultado dos instrumentos de medição não é acessível apenas
enquanto o percebemos mentalmente.

Inferimos a existência de algo além dos estados mentais porque, em princípio, isso
parece fazer sentido a partir de três observações canônicas:

1. Todos parecemos compartilhar o mesmo mundo além de nós.


2. O comportamento deste mundo compartilhado não parece depender da nossa
vontade.
3. Existem correlações estreitas entre as nossas experiências internas e quantidades
mensuráveis de atividade cerebral.

Um mundo fora dos estados mentais, que todos nós habitamos, daria provisoriamente
sentido à observação 1.
Como este mundo compartilhado seria, portanto, não-mental, não acomodaria a nossa
vontade (mental), o que explicaria de uma forma transitória a observação 2.
Finalmente, se configurações particulares da matéria neste mundo gerassem de alguma
forma a atividade mental, isso talvez também explicasse a observação 3.
Foi assim que a nossa cultura assumiu como certo que a natureza é essencialmente
material, não mental. Novamente, esta é uma inferência metafísica que visa explicar
provisoriamente as observações canônicas que acabamos de mencionar, e não um fato
científico ou empírico.

O problema é que esta inferência metafísica é insustentável por diversas razões. Para
começar, não há nada nos parâmetros dos arranjos materiais – digamos, a posição e o
momento dos átomos que constituem o nosso cérebro – em termos dos quais
pudéssemos deduzir, pelo menos em princípio, como é estar apaixonado, saborear uma
taça de vinho ou ouvir uma sonata de Vivaldi. Entre quantidades materiais e qualidades
experienciais existe uma lacuna (um corte, um gap) explicativa intransponível (seria
isso um exemplo de um gap epistêmico de Pattee?) que os filósofos chamam de
“problema difícil da consciência” (Chalmers, 2003). Muitas pessoas não reconhecem
esta lacuna porque pensam que a matéria já possui qualidades intrínsecas – como cor,
sabor, etc. –, o que contradiz o materialismo “científico”: segundo este último, cor,
sabor, etc., são gerados por nosso cérebro, dentro do nosso crânio. Eles não existem no
mundo externo, que se supõe ser pura abstração (ver capítulo 3 deste livro).

Em segundo lugar, o materialismo vive ou morre pelo que os físicos chamam de


“realismo físico”: deve haver um mundo físico objetivo lá fora, consistindo de entidades
com propriedades definidas, quer tal mundo seja observado ou não. O problema é que
nas últimas quatro décadas houve experiências que refutaram o realismo físico para
além de qualquer dúvida razoável (ver Capítulos 16, 17, 20 e 21). Assim, a menos que
redefinamos o significado da palavra materialismo de uma forma um tanto arbitrária, o
materialismo “científico” é fisicamente insustentável hoje.

Terceiro, é possível argumentar de forma convincente que os dados empíricos que


acumulámos sobre as correlações entre a atividade cerebral e a experiência interna não
podem ter lugar no materialismo. Existe um padrão amplo e constante que associa a
deterioração ou redução do metabolismo cerebral a uma expansão da consciência
desperta (awareness)*, a um enriquecimento dos conteúdos experienciais e à sua
intensidade sentida (ver Capítulo 25 – transcender o cérebro). É difícil, para dizer o
mínimo, ver como a hipótese materialista de que todas as experiências são de alguma
forma geradas pelo metabolismo cerebral poderia explicar tudo isto.
*No original, awareness, que além de “consciência desperta”, admite a tradução
de “toma consciência de” ou “consciência imediata ou atenta”.

Finalmente, de uma perspectiva filosófica, o materialismo não é, de forma alguma,


moderado – nomeadamente, é antieconómico, desnecessariamente extravagante – e
pode argumentar-se que é até incoerente. Deve-se admitir que coerência e moderação
são, até certo ponto, valores subjetivos. No entanto, se os abandonássemos, abriríamos a
porta a todo o tipo de absurdos, desde extraterrestres nas Plêiades que tentam alertar-nos
de uma catástrofe planetária até bules em órbita de Saturno, sem que fosse possível
refutar empiricamente qualquer uma destas coisas. Portanto, é melhor que nos
apeguemos a estes valores, ao custo de ter de os aplicar de forma consistente, mesmo ao
próprio materialismo.

O materialismo não é moderado porque, além ou em vez da mentalidade – que é tudo o


que conhecemos diretamente e em última análise – ele postula outra categoria de
“substância” ou “existência” fundamentalmente além da verificação empírica direta, a
saber, a matéria. Segundo o materialismo, a matéria é transcendente, mais inacessível do
que qualquer mundo espiritual aparente postulado pelas religiões universais. Isto só
seria justificável se não houvesse outra maneira de dar sentido às três observações
canônicas listadas acima com base exclusivamente na mente; mas existe.

O materialismo combina a necessidade de postular algo fora das nossas mentes pessoais
com a necessidade de postular algo fora da mente como uma categoria. Todas as três
observações podem fazer sentido se postularmos um campo transpessoal de atividade
mental além de nossas psiques pessoais (ver parte quatro – vai tratar do Idealismo
Analítico. Não seria isso o elemento T?) Certamente existe um mundo lá fora, além de
nós, onde todos habitamos; mas é um mundo mental, assim como somos agentes
intrinsecamente mentais. Ver as coisas desta forma contorna completamente o difícil
problema da consciência, uma vez que não precisamos mais preencher a lacuna
intransponível entre a mente e a não-mente, entre a qualidade e a quantidade: agora tudo
é mental, qualitativo e a percepção consiste em nada mais do que modular um conjunto
(pessoal) de qualidades para ajustá-lo a outro (transpessoal). (Não seria isso um
fechamento, uma redução a um monismo?) Sabemos que isto não é um problema
porque acontece todos os dias: os nossos próprios pensamentos e emoções, apesar de
serem qualitativamente diferentes, continuam a moldar-se uns aos outros.

Finalmente, pode-se dizer que o materialismo é incoerente. Como vimos, a matéria é


uma abstração teórica na e da mente. Assim, quando os materialistas tentam reduzir a
mente à matéria, estão, na verdade, tentando reduzi-la a uma das criações conceituais da
própria mente (Kastrup, 2018b). Isso lembra um cachorro perseguindo o próprio rabo.
Melhor ainda, é como um pintor que, depois de pintar um autorretrato, aponta para ele e
proclama que ele próprio é o autorretrato. O infeliz pintor teria então de explicar toda a
sua vida consciente interior em termos de padrões de distribuição de pigmentos numa
tela. Por mais absurdo que possa parecer, tem uma estreita analogia com a situação em
que os materialistas se encontram.

A popularidade do materialismo baseia-se numa confusão: de alguma forma, a nossa


cultura acabou por associá-lo à ciência e à tecnologia, ambas com um sucesso
surpreendente nos últimos três séculos. Mas o seu sucesso não é atribuível ao
materialismo; é atribuível, antes de tudo, à nossa capacidade de investigar, modelar e
depois prever o comportamento da natureza. A ciência e a tecnologia poderiam ter
funcionado igualmente bem – talvez até melhor – sem qualquer compromisso
metafísico ou outro compromisso metafísico consistente com tal comportamento. O
materialismo é, na melhor das hipóteses, um mochileiro ilegítimo; talvez até um
parasita, pois se alimenta da psicologia daqueles que fazem ciência e tecnologia
(Kastrup, 2016b).
Na verdade, para interagir diariamente com a natureza, os seres humanos precisam
contar a si mesmos uma história sobre o que é a natureza. Psicologicamente, é muito
difícil manter uma postura verdadeiramente cética quando se trata de metafísica,
especialmente quando se fazem experiências. Embora esta história interna seja
subliminar, ainda funciona como se fosse um sistema operacional básico. E acontece
que o materialismo, pelo seu poder intuitivo vulgar e pela sua superficialidade ingênua,
oferece uma opção barata e simples para essa narrativa interna. Além disso, sem dúvida
permitiu que cientistas e estudiosos do passado preservassem o significado numa época
em que a religião estava a perder o seu controlo sobre a nossa cultura (ibid.).

Mas agora, no século XXI, não há dúvida de que podemos fazer muito melhor. Estamos
agora em posição de examinar honestamente os nossos pressupostos ocultos, confrontar
objetivamente as evidências, trazer as nossas necessidades e preconceitos psicológicos à
luz da autorreflexão e depois perguntar se o materialismo tem realmente alguma
utilidade. A resposta deveria ser óbvia, mas não é. O materialismo é uma relíquia de
uma época mais ingênua e menos sofisticada, quando ajudava os pesquisadores a se
separarem daquilo que investigavam. Mas ele não está à altura de nosso tempo e de
nossa era.

Também não estamos sem opções, agora que podemos dar sentido a todas as
observações canónicas apenas com base em estados mentais (Kastrup, 2019, bem como
a quarta parte deste livro). Isto constitui uma alternativa mais persuasiva, moderada e
coerente ao materialismo, e que também pode acomodar melhor as evidências
disponíveis. Os fundamentos desta alternativa são conhecidos, pelo menos, desde o
início do século XIX (Kastrup, 2020); possivelmente até por milênios. Hoje cabe
inteiramente a nós explorá-los e, francamente, agir em conjunto quando se trata de
metafísica. Deveríamos saber que não deveríamos continuar apegados – grotescamente
– ao insustentável.

Capítulo 2. Pg. 31.

O que é surpreendente sobre o materialismo

Como Graziano, meus amigos consideram uma ilusão mística qualquer posição
metafísica não materialista. Isso sempre me surpreendeu. Só com o passar dos anos
comecei lentamente a perceber como duas pessoas inteligentes podem sustentar
julgamentos tão tendenciosos contra uma metafísica muito mais razoável: o problema
reside no facto de não compreenderem esta outra metafísica, mas antes de não
compreenderem entender o materialismo.

Pg. 33.

O materialismo é tão flagrantemente absurdo que suspeito fortemente que a maioria dos
materialistas casuais o substituem por uma ou outra má interpretação privada e implícita
das suas próprias mentes, que elimina alguns absurdos ao preço de ignorar
convenientemente certas contradições. Em outras palavras, é a total falta de
plausibilidade do materialismo que – ironicamente – o faz parecer crível, uma vez que
esta falta de plausibilidade obriga muitos a interpretá-lo mal sem se aperceberem, seja
qual for a forma secreta pela qual faz sentido para eles.
Para agravar o problema, muitas pessoas – mesmo as inteligentes – não parecem ser
capazes de reconhecer a natureza da sua própria consciência elementar através da
introspecção autorreflexiva. É por isso que ele mistura a matéria com as qualidades da
experiência, como meu amigo quando pensava que as cores, os sons e os cheiros do
meu jardim eram a coisa em si, em vez de meros fenômenos produzidos pelo cérebro. É
precisamente este erro que não param para examinar que para eles confere
plausibilidade ao materialismo: pensam que o mundo material é o conteúdo da
percepção, embora o materialismo afirme inequivocamente que não o é.

Capítulo 3. Pg. 36.

Um materialismo de qualidades?

Mas poderíamos conceber – por mera curiosidade – uma forma alternativa, mas
coerente, de materialismo que acomodasse a falsa interpretação que discutimos acima?
Isto é, poderíamos conceber um “materialismo qualitativo” segundo o qual as
qualidades da percepção estivessem realmente presentes no mundo externo – quer
constituíssem plenamente esse mundo ou fossem meramente propriedades objetivas
dele – enquanto as experiências fossem geradas pelo cérebro? A resposta é
definitivamente não".

Se as cores e outras qualidades perceptivas estão realmente presentes no mundo


exterior, então de alguma forma a nossa imagem mental interna pode incorporar
exatamente as mesmas qualidades independentemente do mundo exterior.

Página 37.

Portanto, as mesmas qualidades devem ser intrínsecas à matéria, quando ocorrem fora
do nosso crânio, e epifenômenos de certas disposições materiais, quando ocorrem no
interior. Isto não me parece coerente.

O princípio que define todas as formulações do materialismo metafísico é que o mundo


clássico e macroscópico, para além da nossa capacidade mental, é ele próprio objetivo;
isto é, suas propriedades são independentes da observação. De acordo com o
materialismo qualitativo, isto significa que as qualidades perceptivas de um objeto –
como a sua cor – são objetivas, intrínsecas ao próprio objeto, e não criações privadas
das nossas mentes pessoais. Portanto, essas qualidades só podem mudar se o próprio
objeto mudar. Mas as ilusões visuais refutam isso de imediato.

Capítulo 4. Pág. 41.

A consciência não pode ter evoluído

De acordo com o materialismo "científico", as qualidades sentidas da experiência não


têm uma função de sobrevivência.
A amplamente validada teoria da evolução nos diz que as funções desempenhadas por
nossos órgãos surgiram para aumentar a capacidade de sobrevivência. Por exemplo, a
bile e a insulina produzidas respectivamente pelo fígado e pelo pâncreas nos ajudam a
absorver nutrientes e assim a sobreviver. Na medida em que é produzida pelo cérebro, a
consciência fenomenal – ou seja, nossa capacidade de experimentar subjetivamente o
mundo e a nós mesmos – não é exceção: ela também deve nos fornecer alguma
vantagem de sobrevivência, caso contrário, a seleção natural não a teria fixado em nosso
genoma. Em outras palavras, nossa sensibilidade consciente – na medida em que é
produzida pelo cérebro – deve desempenhar uma função benéfica, caso contrário,
seríamos zumbis inconscientes.

O problema é que, de acordo com as premissas do materialismo "científico", a


consciência fenomênica não pode ter - por definição - nenhuma função. De fato, de
acordo com o materialismo, todas as entidades são exaustivamente definidas e
caracterizadas em termos puramente quantitativos. Por exemplo, as partículas
elementares subatômicas são exaustivamente caracterizadas em termos de valores de
massa, carga e spin. Da mesma forma, o comportamento de campos abstratos é definido
inteiramente em termos de quantidades como frequências e amplitudes de oscilação.
Partículas e campos, por si só, têm propriedades quantitativas, mas não qualidades
intrínsecas como cor ou sabor. Apenas nossas percepções deles – ou assim argumentam
os materialistas – são acompanhadas por qualidades de alguma forma geradas por
nossos cérebros.

Segundo o materialismo, as quantidades que caracterizam as entidades físicas são


aquelas que permitem que sejam causalmente efetivas; ou seja, produzir efeitos. Por
exemplo, são os valores de carga de prótons e elétrons que produzem o efeito de sua
atração mútua. Nos reatores de fissão nuclear é o valor da massa dos nêutrons que
produz o efeito de separação dos átomos. E assim por diante. Todas as cadeias de causa
e efeito na natureza devem ser descritíveis em termos de quantidades, pois apenas as
quantidades figuram nas equações matemáticas subjacentes à teoria física. O que não é
uma quantidade não pode fazer parte de nossos modelos físicos e, portanto – na medida
em que se supõe que tais modelos sejam causalmente fechados – eles não podem
produzir efeitos. De acordo com o materialismo, todas as funções são sustentadas por
quantidades.

No entanto, nossa consciência fenomênica é eminentemente qualitativa, não


quantitativa. Há algo em ver a cor vermelha que é capturada ao registrar a frequência da
luz vermelha. Se disséssemos a uma pessoa cega de nascença que o vermelho é uma
oscilação de aproximadamente 4.300 Hertz, ela ainda não saberia como é ver a cor
vermelha. Da mesma forma, a sensação de ouvir uma sonata de Vivaldi não pode ser
transmitida a uma pessoa surda de nascença, mesmo que mostrássemos a ela todo o
espectro de potência completa da sonata. As experiências são qualidades sentidas – o
que os filósofos e pseudocientistas chamam de qualia – que não podem ser totalmente
descritas por quantidades abstratas.

Como já explicamos, as qualidades não têm função no materialismo, pois se assume que
os modelos físicos definidos quantitativamente são causalmente fechados, ou seja, são
suficientes para explicar todos os fenômenos naturais. Portanto, a capacidade de
sobrevivência de um organismo não deve ser influenciada pelo fato do processamento
de dados que ocorre em seu cérebro ser ou não acompanhado de experiência: em
qualquer caso, o processamento produzirá os mesmos efeitos; o organismo se
comportará exatamente da mesma maneira e terá as mesmas chances de sobreviver e se
reproduzir. Os qualia são extras supérfluos na melhor das hipóteses.

Assim, de acordo com as premissas fisicalistas, a consciência fenomênica não pode ter
sido favorecida pela seleção natural. Na verdade, nem deveria existir; todos nós
deveríamos ser zumbis irracionais cuidando de nossos negócios exatamente da mesma
maneira que agora, mas sem uma vida interior. Se a evolução é verdadeira – e temos
todos os motivos para acreditar que seja – então nossa própria sensibilidade consciente
contradiz o materialismo “científico”.

Esta conclusão inevitável é muitas vezes ignorada pelos materialistas, que muitas vezes
tentam atribuir artificialmente funções à consciência fenomênica. Aqui estão três
exemplos ilustrativos:

1. A consciência permite a atenção.


2. A consciência discrimina memórias episódicas (passadas) de percepções vívidas
(presentes), fazendo-as sentirem-se de forma diferente.
3. A consciência motiva o comportamento que conduz à sobrevivência.

Nós, cientistas da computação, sabemos que nada disso requer experiência, já que
rotineiramente implementamos essas três funções em computadores de silício
presumivelmente inconscientes.

Em relação ao ponto 1, de acordo com o materialismo, a atenção é um mero mecanismo


para concentrar os limitados recursos cognitivos de um organismo em atividades
prioritárias. É algo que os sistemas operacionais de computador fazem o tempo todo –
usando técnicas como interrupções, filas, escalonamento de tarefas, etc. – de forma
puramente algorítmica e definida em termos quantitativos.

Com relação ao ponto 2, existem inúmeras formas de discriminar fluxos de dados sem a
necessidade de acompanhamento de experiência. O seu computador doméstico está
tendo problemas para separar as fotos das férias do ano passado da transmissão, ao vivo,
da webcam? Basta etiquetar ou rotear de diferentes formas, sem qualia, os fluxos de
dados da memória e os processos em tempo real.

Finalmente, com relação ao ponto 3, dentro da lógica do materialismo, a motivação é


simplesmente um cálculo, resultado de um algoritmo quantitativo encarregado de
maximizar o lucro ao mesmo tempo em que minimiza o risco das ações de um
organismo. Os computadores são “motivados” a fazer tudo o que fazem – caso
contrário, não o fariam – sem acompanhamento de qualia.

Como ilustram esses três exemplos, todas as funções cognitivas concebíveis podem ser
executadas, de acordo com as premissas materialistas, sem experiência concomitante.
No entanto, vemos regularmente publicações científicas propondo um papel para a
consciência. Em uma recente postagem no blog da Oxford University Press, por
exemplo, foi afirmado que "a função da consciência é gerar representações
possivelmente contrafactuais de um evento ou situação", que "aponta para as origens da
consciência no curso da evolução" (Kanai , 2020).
Se alguém ler com atenção, no entanto, perceberá que o autor define a "função da
consciência" de uma forma muito contra intuitiva que contradiz a maneira como
qualquer leitor interpretaria as seguintes palavras:

Quando consideramos as funções da consciência, são as funções habilitadas


pelos estímulos que entram na consciência ou as funções que só podem ser
executadas em humanos ou animais despertos. As funções, neste sentido, não
devem ser confundidas com a questão do tipo de efeitos que as experiências
conscientes (ou qualia) têm sobre os sistemas físicos (ibid).

Em outras palavras, o que o autor chama de "funções da consciência" não são as tarefas
cognitivas realizadas pela consciência, mas simplesmente aquelas visíveis à
consciência, ou seja, comunicáveis por meio da introspecção consciente. Por que
chamar essas tarefas de "funções da consciência" se não são o que a consciência faz,
mas apenas o que ela "vê"? De acordo com a definição contra intuitiva do autor, a
consciência fenomênica não é expressamente o agente causal por trás dessas tarefas –
uma vez que o autor explicitamente exclui da definição a eficácia causal dos qualia –
mas sim sua mera audiência. Assim, a teoria do autor está completamente errada
quando se trata do valor de sobrevivência de ter qualia, ou das origens evolutivas da
própria consciência fenomênica.

A impossibilidade de atribuir uma eficácia causal e funcional aos qualia constitui uma
contradição interna fundamental na visão de mundo do materialista "científico". Há
duas razões principais pelas quais essa contradição tem sido tolerada até agora:
primeiro, parece haver uma surpreendente falta de compreensão entre os materialistas
sobre o que o materialismo realmente implica. Em segundo lugar, trocadilhos falaciosos
– como os discutidos acima – parecem perpetuar a ilusão de que temos hipóteses
plausíveis para a aparente função de sobrevivência da consciência.

A consciência fenomenal não pode ter evoluído. Só pode ter estado lá desde o início,
como um fato irredutível e intrínseco da natureza. Quanto mais cedo o aceitarmos, mais
cedo progredirá nossa compreensão da consciência.

Capítulo 5.
A consciência como mero acidente?

Uma resposta a Jerry Coyne

O biólogo Jerry Coyne (2020) criticou meu argumento – discutido no capítulo anterior
deste livro – de que, sob as premissas do materialismo “científico”, a consciência
fenomênica não pode ter sido resultado da evolução darwiniana. A essência do meu
argumento é que, de acordo com o materialismo, apenas parâmetros quantitativos como
massa, carga, momento, etc. figuram em nossos modelos do mundo – pense nas
equações matemáticas que fundamentam a física – que, por sua vez, são assumidos ser
causalmente fechado. Portanto, as qualidades da experiência não podem desempenhar
nenhuma função. E as propriedades que não desempenham nenhuma função não podem
ter sido favorecidas pela seleção natural.

Coyne oferece uma série de supostas refutações às minhas afirmações. Começa


argumentando que as experiências subjetivas e qualitativas que acompanham o
processamento cognitivo de dados que ocorre em nossos cérebros podem ter sido
simplesmente “subprodutos (“enjuta”*) de outras características que foram
selecionadas”, ou mesmo “características ‘neutras’ que vieram a predominar por deriva
genética aleatória” (Coyne, 2020).

* Enjuta é um termo usado em biologia evolutiva para se referir àquelas


características de espécies que não foram formadas como consequência de
adaptação biológica diante de pressão seletiva, mas como subproduto do
aparecimento de outras adaptações ou de deriva genética. O termo foi
introduzido por Stephen Jay Gould e Richard Lewontin em 1979, inspirados
pelos enjutas da Basílica de São Marcos em Veneza. De acordo com Gould e
Lewontin, pode-se pensar que as enjutas pintados na dita basílica eram
elementos ornamentais que foram criadas para esse fim, enquanto que, na
realidade, são a consequência necessária da sustentação de uma cúpula sobre
uma estrutura quadrada (em ângulo reto) com arcos.

Vamos fazer um balanço do que Coyne está dizendo. Para começar, ele está
implicitamente, mas claramente reconhecendo minha afirmação de que a consciência,
de acordo com o materialismo, não desempenha nenhuma função. Ele então argumenta
que a consciência poderia ter evoluído como um subproduto ("enjuta") da complexidade
do cérebro ou mesmo ser uma mera característica acidental.

A ideia das enjutas na biologia evolutiva é controversa. Muitos biólogos e filósofos a


criticam, inclusive Daniel Dennett (1995, 1996), tão admirado por Coyne. Ian Kluge,
em sua resenha do livro de Sam Harris, Free Will (livre arbítrio), também observou o
seguinte:

Poderíamos argumentar, é claro, que a consciência e a sensação de livre arbítrio


são enjutas biológicas, ou seja, subprodutos acidentais de outros
desenvolvimentos evolutivos em nossos cérebros. Um dos problemas com esta
resposta é que toda a questão das enjutas está atolada em um debate sobre sua
definição, ou seja, não está totalmente claro o que é um enjuta e o que não é.
Pior ainda, todos os exemplos de enjutas (...) realmente cumprem uma função,
ou seja, são necessários para conseguir algo, mas é justamente essa necessidade
que lhe nega o epifenomenalismo (s.f).

Seja como for, vamos ignorar caridosamente o que foi dito acima e conceder a Coyne
que as enjutas evolutivas podem ocorrer e que ocorrem. A questão então é se é plausível
que a consciência fenomênica seja uma dessas enjutas.

Não acredito. Posso imaginar que certas estruturas ou funções biológicas relativamente
triviais ou baratas (em termos metabólicos) sejam acidentais, mas a suposta capacidade
maravilhosa do cérebro de produzir as qualidades da experiência a partir da matéria
inconsciente não é de forma alguma trivial. Na verdade, é algo pouco menos do que
fantástico, a afirmação mais surpreendente do materialismo “científico”, o segundo
problema não resolvido mais importante da ciência de acordo com a revista Science (G.
Miller, 2005); e que acontece seja um subproduto?

Os materialistas não têm ideia – nem mesmo em princípio - de como o cérebro material
pode produzir experiências. Por isso apela para a inescrutável complexidade do cérebro
- e se esconde atrás dela - como se fosse uma nota promissória. A consciência
fenomenal – eles argumentam – é de alguma forma um epifenômeno* emergente
daquela complexidade insondável que um dia seremos capazes de entender. Mas se
fosse esse o caso, não seria razoável postular que algo que exige tal nível de
complexidade seja apenas mais um subproduto acidental. Você não pode ter os dois.

* A palavra epifenômeno refere-se a condição ou a algo "sobre" ou "acima" do


fenômeno, derivando de uma causa primária. É produto direto do termo
«fenômeno». Exemplo: a "mente" é produzida por algum fenômeno, e nossa
compreensão exclusivamente científica endereça os processos cerebrais como
«fenômeno» da "mente" . Assim com os fenômenos da mente são nomeados
como epifenômeno, pois ao mesmo tempo que o cérebro por si só não gera uma
consciência, os impulsos eletromagnéticos também não são nada sem os
neurônios havendo então a necessidade da existência mente/corpo
(homem/mundo, cognição/afeto segundo Henri Wallon [2007]) ao mesmo tempo
para que haja a consciência, que nada mais é do que o resultado dessa
interação[1]. Essa definição difere de corrente filosóficas dualistas que afirmam
que a "mente" é um fenômeno por si mesmo, independente do cérebro, ela é a
razão única, ou causa de si mesma[2].

Nesse ponto, Coyne provavelmente argumentaria que o cérebro precisava se tornar


complexo, de qualquer forma, já que a seleção natural favorece uma maior capacidade
cognitiva. E essa consciência veio de mãos dadas. Mas não temos motivos para
acreditar que a complexidade necessária para um processamento de dados cognitivos
mais eficaz fosse do mesmo tipo que a complexidade necessária para o suposto
surgimento da consciência fenomênica. Afinal, a complexidade subjacente em um
melhor processamento de dados cognitivos destina-se a... bem, um melhor
processamento de dados cognitivos, não à consciência.

O processamento de dados e os estados experienciais são, em princípio, domínios


totalmente diferentes e até mesmo imensuráveis. Em uma extremidade da escala de
complexidade, sabemos que os computadores mais poderosos não precisam ter estados
experienciais para realizar suas funções. No outro extremo, posso imaginar uma bactéria
tendo estados experienciais, mesmo sendo um dos organismos vivos mais simples. O
próprio Coyne insiste neste ponto:

Nos animais, sejam eles bactérias ou humanos, qualquer sensação inclui uma
espécie de qualia. Por exemplo, o que o crustáceo Daphnia sente quando detecta
um peixe predador em sua lagoa? (2020)

Ironicamente, Coyne não vê que essas palavras flertam com uma forma de
pampsiquismo ou idealismo: a consciência já existe até mesmo nos organismos
unicelulares mais simples; nem mesmo requer um sistema nervoso. Uma admissão tão
abrangente e surpreendente contradiz a narrativa materialista dominante – ou seja, que a
consciência é um produto ou epifenômeno de sistemas nervosos (complexos) – que
Coyne acredita estar defendendo. Se “nos animais, sejam eles bactérias ou humanos,
qualquer sensação inclui uma espécie de qualia, então a consciência não é resultado da
complexidade evoluída do cérebro, pois não requer nenhum. Dito isso, não está claro
para mim qual é a posição de Coyne nessas questões cruciais; seu argumento não parece
seguir nenhuma linha consistente de raciocínio. Ele é realmente um materialista? Ele
entende o que é materialismo?

Seja como for, dizer que algo tão fantástico como o surgimento da consciência
fenomênica da matéria inconsciente pode ser um mero enjuta equivale a tornar a
evolução infalsificável: se até a mais inexplicável de todas as funções atribuídas à
matéria – a única coisa que escapou de todas as tentativas de descobri-lo, apesar de
décadas de pesquisa e especulação – pode evoluir, seja útil ou não, então tudo poderia
ter evoluído. Também poderíamos levantar os braços e abandonar completamente a
teoria da evolução, pois ela não nos permitiria fazer discriminações ou previsões de
qualquer tipo.

Logo em seguida, Coyne nega, com grande ênfase,

que o materialismo exige que todas as entidades sejam mensuráveis. Aqui temos
uma pergunta: você tem fígado? A resposta não é baseada em uma medição, mas
na observação. Nunca ouvi falar de nenhuma definição de “materialismo que
exija medições quantitativas (2020).

É uma passagem bastante embaraçosa, pois revela a surpreendente falta de compreensão


de Coyne sobre as questões filosóficas mais básicas em disputa. Aqui ele está aludindo
à percepção nada controversa de que, de acordo com o materialismo "científico", tudo
pode ser exaustivamente caracterizado por quantidades, como carga, massa, momento e
assim por diante. O que ele está dizendo então é que, uma vez que as qualidades
existem claramente – sim, Jerry, concordo com isso – o materialismo não deve só
permitir quantidades mensuráveis para que as qualidades também possam existir.
Portanto, minha afirmação de que o materialismo tenta reduzir tudo a termos puramente
quantitativos só pode estar errada.

Eu gostaria de estar inventando isso, mas temo que não seja o caso.

A questão, claro, não é que não podemos olhar para nosso fígado sem pesá-lo ou
colocar uma fita métrica nele, mas que, de acordo com o materialismo, o fígado, em si
mesmo, não é feito das qualidades que experimentamos na tela da percepção quando
olhamos para ela. Em vez disso, não há dúvida de que é feito de partículas
exaustivamente definidas em termos quantitativos. Supõe-se que o cérebro evoque,
dentro dos limites do crânio, as qualidades que associamos ao fígado apenas quando o
representamos internamente na tela da percepção. Não é nenhum segredo, ou mesmo
controverso, que isso é o que o materialismo tradicional implica. O surpreendente é que
precisamente Coyne – defensor declarado do materialismo – esteja tão confuso sobre
isso.

Na verdade, o argumento de Coyne ilustra precisamente o ponto de vista que explorei


nos capítulos 2 e 3 deste livro, cujas versões originais já havia publicado antes de Coyne
escrever suas críticas: o que ele defende não é o materialismo, mas sua idiossincrática e
incoerente incompreensão de tal concepção do mundo. Isso seria perdoável em um
leitor casual não familiarizado com a metafísica, mas não em um homem que
obviamente se considera um participante sério no debate. Na verdade, é vergonhoso que
um materialista militante tão ruidoso e agressivo consiga entender mal o que distingue o
materialismo – ou seja, que todas as qualidades são supostamente epifenômenos – é
vergonhoso.

Para o cúmulo da ironia, Coyne cita uma passagem de entrada sobre o “Materialismo”
da Enciclopédia de Filosofia de Stanford que, de certa forma, ele acredita refutar minha
“definição de materialismo”. Destaco este trecho:

Certamente, os fisicalistas não negam que o mundo possa conter muitos


elementos que à primeira vista não parecem físicos, elementos de natureza
biológica, psicológica, moral ou social. Mas eles insistem que, no final, tais
elementos são físicos ou se tornam físicos.

Por alguma razão, Coyne acha que isso anula minha interpretação. Mas, como esperado,
apenas o confirma: segundo o materialismo, o fígado “à primeira vista não parece físico
(...). Mas (...), no final das contas, ou é físico ou torna-se físico”. E o que é "o físico" no
materialismo? São entidades exaustivamente definidas por quantidades – como massa,
carga, momento, relações geométricas, etc. –, não por qualidades; os últimos são
considerados epifenômenos. Portanto, "no fundo" o fígado também é constituído por
entidades físicas puramente quantitativas - não qualitativas -, precisamente como
afirmei no início e como o resto da comunidade filosófica sabe desde o primeiro ano da
minha licenciatura. É constrangedor me encontrar na posição de ter que explicar o que é
o materialismo a um materialista militante.

Coyne segue citando Patricia Churchland, uma eliminativista que justamente defende
que certas qualidades que acreditamos vivenciar não existem de forma alguma, muito
pelo contrário, à posição – grotescamente sustentada por Coyne – de que o materialismo
envolve qualidades. As contradições internas de seu raciocínio são esmagadoras. Na
verdade, ele continua afirmando que “já temos um grande corpo de evidências de que a
consciência e os qualia são de fato fenômenos que requerem um cérebro materialista e a
manipulação desse cérebro pode mudar ou eliminar a consciência” (Coyne, 2020). Essas
afirmações exemplificam as falácias clássicas que consistem em pressupor a conclusão
(petição de princípio) e confundir correlação com causalidade. Permita-me, leitor,
expandir isso.

O que parece estar além da capacidade de compreensão de Coyne é que o dualismo


entre mente e matéria no qual ele implicitamente se baseia – particularmente quando ele
fala sobre os efeitos mentais de “manipular (fisicamente) aquele cérebro” – não existe.
Para um idealista como eu, não existe cérebro ou matéria fora da mente ou independente
dela. O cérebro "material" é, ao contrário, a mera aparência extrínseca, em alguma
mente, da atividade mental interna de alguma outra mente.

Quando um neurocirurgião manipula o cérebro de um paciente, com a correspondente


modulação de sua experiência interna, ou quando um medicamento o faz após ser
ingerido, o que ocorre é que um processo mental transpessoal - cuja aparência
extrínseca é a sonda do cirurgião ou o comprimido ingerido – modula um processo
mental pessoal, ou seja, a experiência interna do sujeito. Isso não é mais surpreendente
do que um pensamento modulando uma emoção, ou vice-versa. Para um idealista,
existe apenas a mente, sendo a matéria nada mais do que a aparência de certos
processos mentais de um determinado ponto de vista.
O nexo causal entre matéria e mente de que Coyne parte para defender seu peculiar mal-
entendido do materialismo só é válido dentro de seu peculiar mal-entendido da
metafísica não-materialista. As ideias de Coyne parecem basear-se inteiramente em
mal-entendidos sobre quase todas as questões importantes.

Portanto, acredito que Jerry Coyne não é um participante sério em qualquer discussão
sobre a natureza da mente e da realidade. Como disse Edward Feser, o que Coyne
escreve sobre filosofia e religião tende a ser uma “antologia de falácias” (2016). Na
verdade, suas tentativas desajeitadas de defender o materialismo são um desserviço à
posição que ele defende, uma metafísica que – embora fatalmente falha – certamente
merece um tratamento menos confuso e mais profissional.

O misterioso reaparecimento da consciência


Uma resposta a Michael Graziano
PÁG. 85.

Página 90.

Portanto, exatamente como afirmei em meu artigo original, o que Graziano nega é a
“essência amorfa e fantasmagórica” que associamos coloquialmente à ideia de “alma”,
que pouco tem a ver com a consciência fenomenal. Isto é o que pretendia ser uma
refutação da minha crítica. Ironicamente, Graziano defende minha tese melhor do que
eu no meu artigo. Então, qual é o motivo de todo esse escândalo? O problema é que
a. defender a tese de que algumas de nossas representações internas são imprecisas,
b. afirmar que na verdade não temos algumas das experiências que conscientemente
pensamos ter, ou
c. afirmar que um senso de identidade etéreo e fantasmagórico é ilusório são
argumentos relativamente triviais e banais, nenhum dos quais poderia ser uma grande
manchete, porque não abordam o problema difícil da consciência.
Os problemas “fáceis” que Graziano está tentando resolver têm pouco ou nada a ver
com o desafio de dar sentido à consciência fenomenal. Se Graziano nunca tivesse
tentado retratar seu trabalho de outra forma, provavelmente eu nunca teria ouvido falar
dele e não estaríamos tendo essa discussão.

Graziano conclui sua peculiar “resposta” lançando-me o que parece ser uma
provocação:

Posso compreender a aversão visceral, talvez até o medo, daquelas pessoas que
pensam que esta abordagem científica usurpa o seu sentido de mistério.

Talvez eu devesse estar, de fato, apavorado. Minha única esperança é que, no final, a
razão e a clareza de pensamento prevaleçam sobre os jogos de palavras enganosos, a
confusão conceitual e o rebuliço.

Página 93.
Não é um espírito, apenas uma máquina
Uma resposta a Keith Frankish
Capítulo 13 Pg. 127.

Uma visão de conjunto do idealismo analítico


Como uma metafísica apenas da consciência, cem por cento compatível com a
ciência, resolve o problema do materialismo e do pampsiquismo

Defendo uma formulação analítica moderna do idealismo metafísico – descritivamente


chamado de “idealismo analítico” – segundo a qual o fundamento da existência é a
consciência fenomênica. Todo o resto – afirmo – é redutível a configurações e padrões
de excitação da consciência. Isso não significa que colheres e termostatos caseiros
sejam conscientes por si mesmos: isso é pampsiquismo. Nem significa que a realidade
esteja apenas na sua mente individual ou na minha: isso é solipsismo. Reconheço, pelo
contrário, que outros seres vivos têm uma vida interior consciente e própria. Reconheço
também que existe algo lá fora, além das mentes individuais, que continuaria a existir
mesmo que ninguém estivesse olhando. Porém, na minha opinião, esse “algo lá fora” é
de natureza experiencial, ou seja, consiste em atividade mental transpessoal. Tal
atividade mental só nos aparece como o universo inanimado. Nessa perspectiva, o
idealismo analítico é consistente com a definição de “idealismo objetivo” proposta por
David Chalmers (2019).
https://pt.wikipedia.org/wiki/David_Chalmers
Chalmers nasceu e cresceu na Austrália, e desde 2004 é professor de Filosofia,
Diretor do Centro de Consciência, e um Fellow na Universidade Nacional da
Austrália. Desde uma idade precoce, destacou-se em matemática e completou
sua educação com uma licenciatura na Universidade de Adelaide e um Bacharel
em matemática e informática. Ele então estudou brevemente no Lincoln College
da Universidade de Oxford como Rhodes Scholar antes de estudar para o
doutoramento na Indiana University em Bloomington Douglas Hofstadter. Entre
1993 e 1995, ele foi um Fellow em Filosofia, Neurociência e Psicologia, no
programa dirigido por Andy Clark na Universidade de Washington, em st.
Louis, e seu primeiro cargo como professor foi em UC Santa Cruz, entre agosto
de 1995 a dezembro de 1998. Chalmers posteriormente foi nomeado Professor
de Filosofia e Diretor do Centro de Estudos da Consciência da Universidade do
Arizona, patrocinadora do Toward a Science of Consciousness, conferência onde
ele fez o sua lendária "estreia" em 1994.
O livro de Chalmers, "The Conscious Mind" (1996), é amplamente considerado
(por ambos os defensores e opositores) um trabalho essencial sobre a
consciência e sua relação com o problema mente-corpo na filosofia da mente.
No livro, Chalmers afirma que todas as formas de Fisicalismo (redutivista ou
não-redutivista), que têm dominado a moderna filosofia e ciência não são
suficientes para provar a existência (ou seja, presença na realidade) da
consciência em si. Ele propõe uma alternativa dualista (mas que também poderia
ser caracterizada por formulações mais tradicionais, como dualismo de
propriedades, monismo neutro, ou teoria do duplo aspecto). O livro foi descrito
pelo The Sunday Times como "um dos melhores livros de ciência do ano".
Ao mesmo tempo, os resultados experimentais emergentes do campo dos fundamentos
da física deixam claro que tudo o que está lá fora, seja lá o que for, não tem um estado
definitivo além da atividade mental individual antes de ser observado (ver os capítulos
16 e 17 deste livro). Em outras palavras, o ambiente em si mesmo não compreende
objetos com forma, posição, momento precisos, etc. Pelo contrário, consiste em
possibilidades ou tendências sobrepostas. De um ponto de vista metafísico, interpreto
isto da seguinte forma: a atividade mental transpessoal que nos rodeia é melhor
compreendida como um conjunto de processos mentais ambíguos do mesmo tipo que
aqueles que experienciamos, por exemplo, quando ponderamos diferentes decisões
possíveis sem ter a certeza de qual optar. Portanto, embora exista de facto um mundo lá
fora, ele não é físico no sentido que normalmente atribuímos a esta palavra; as
propriedades físicas resultam, em vez disso, de uma interação entre nossos próprios
processos mentais e os processos mentais transpessoais nos quais vivemos. Esta
interação é o que os físicos chamam de “observação” ou “medição”, que amplifica
cognitivamente uma das possibilidades (relevar – colocar em relevância) sobrepostas
que existem e leva à impressão de que habitamos um mundo físico específico. Assim, o
mundo físico nada mais é do que uma imagem na mente individual do observador; cada
um de nós percebe nosso próprio mundo físico, definido pelo contexto de nossas
próprias observações (medições). O idealismo analítico pode, portanto, ser considerado
um “idealismo subjetivo” (Chalmers, 2019) no que diz respeito à qualidade física. Que
não seja mal interpretado: acredito que partilhamos um ambiente comum independente
de todos nós, embora esse ambiente comum não inclua, por si só, as propriedades que
associamos às qualidades físicas.

Tudo isto, claro, levanta a questão: Qual é a nossa relação, como indivíduos com
mentalidade, com a hipotética mente transpessoal que nos rodeia a todos? Como alguém
que considera a sobriedade um valor orientador fundamental na filosofia, afirmo que,
em última análise, existe apenas uma consciência universal. Acredito que nós,
juntamente com todos os outros seres vivos, nada mais somos do que complexos
mentais dissociados – alteres – desta mente universal essencialmente unitária. Isto é
semelhante à forma como uma pessoa com transtorno dissociativo de identidade
manifesta múltiplos centros deslocados da consciência desperta. O limite da dissociação
é o que nos separa do nosso ambiente e também dos outros. A forma como essa
fronteira se apresenta na tela da percepção é o que consideramos nossa pele e outros
órgãos sensoriais. Conforme vivenciado de dentro – isto é, de uma perspectiva de
primeira pessoa – cada ser vivo, juntamente com o universo inanimado como um todo, é
uma entidade consciente. Mas, tal como vivenciadas do exterior – isto é, da perspectiva
de uma segunda ou terceira pessoa – as nossas respectivas vidas interiores assumem a
forma daquilo que chamamos de “matéria” ou “qualidade física”. Na verdade, na minha
opinião, “matéria” – toda matéria – é simplesmente o nome que atribuímos ao
aparecimento da vida interior consciente do outro lado da sua fronteira dissociativa. É
por isso que existem correlações tão estreitas entre a experiência interior e padrões
mensuráveis de atividade cerebral.

Finalmente, um elemento importante do idealismo analítico é que os processos mentais


transpessoais, que sustentam e servem de base para o universo inanimado, não
envolvem necessariamente metacognição. Isto pode precisar de esclarecimento: a
metacognição é a nossa capacidade humana de avaliar explicitamente a nossa própria
atividade mental, o que requer algo mais do que pura consciência fenomenal. Uma
experiência é metacognitiva se, além de ter a experiência, o sujeito sabe que a tem. A
metacognição permite deliberação, raciocínio e planejamento. Já os processos mentais
puramente instintivos são aqueles que, apesar de conscientes, carecem de metacognição.
Ora, como as leis da natureza parecem estáveis e previsíveis, afirmo que a atividade
mental transpessoal subjacente ao universo inanimado é instintiva, e não metacognitiva.
Afinal, o comportamento instintivo é regular e previsível, exatamente como parecem ser
as leis da natureza. Assim, a consciência universal não tem necessariamente um plano:
ela pode estar fazendo o que está fazendo apenas porque tem a disposição inata para
fazê-lo.

É justo situar o idealismo analítico no contexto histórico do idealismo alemão, embora


eu não partilhe da ideia de que a consciência universal seja racional e deliberada. O
idealismo analítico alinha-se muito bem com as ideias de Arthur Schopenhauer
expressas em sua obra-prima, O mundo como vontade e representação (Kastrup, 2020).
Assim como Schopenhauer pensava que em toda a natureza existe uma vontade “cega”
que na tela da percepção se apresenta como matéria, afirmo que os processos mentais
instintivos – muito provavelmente de natureza volitiva, como os movimentos do
universo e a evolução sugerem um impulso volitivo – eles estão subjacentes à qualidade
física. Na linha de Schopenhauer, e distanciando-me de Immanuel Kant, considero que
podemos tirar inferências corretas sobre a natureza dos noúmena – isto é, das coisas em
si – através da introspecção pessoal; pois, a menos que estejamos preparados para
aceitar uma descontinuidade arbitrária na natureza, se minha atividade mental interna se
apresentar à observação externa na forma da matéria que constitui meu sistema nervoso,
então a matéria do resto do universo deverá ser também a aparência extrínseca da vida
interior consciente (universal). Como afirma Schopenhauer: “Devemos aprender a
compreender a natureza a partir de nós mesmos, e não a nós mesmos a partir da
natureza”.

No contexto da filosofia analítica contemporânea, o idealismo analítico pode ser visto


como uma variação do cosmopsiquismo (Chalmers, 2019). É importante notar, contudo,
que não vejo a fenomenalidade como um aspecto ou propriedade fundamental da
matéria, mas como outro dos seus vários aspectos ou propriedades. Para mim, o que
chamamos de “matéria” nada mais é do que a aparência extrínseca da fenomenalidade
interna, observada através de uma fronteira dissociativa. Não há mais nada aqui. Para
dizer a mesma coisa de uma forma diferente: “matéria” é o rótulo útil que colocamos no
conteúdo de uma modalidade particular de experiência: a percepção. Portanto,
parafraseando o Bispo Berkeley, no que diz respeito à matéria, “ser é, de fato, ser
percebido”, mesmo que a atividade mental subjacente à matéria continue a existir, seja
ou não observada de fora, isto é, quer seja ou não percebida como matéria.

Tal como Kant e Schopenhauer, penso que os conteúdos da percepção – refiro-me às


disposições particulares das qualidades perceptivas, como a cor, o sabor, o cheiro, etc. –
nada mais são do que representações ou fenómenos do mundo tal como ele é. O que
chamo de “aparências extrínsecas” é equivalente, pelo menos em grande parte, às
“representações” de Schopenhauer e aos “fenômenos” de Kant. Afirmo que estas
representações ou fenómenos surgem da interação entre a nossa capacidade mental
privada e dissociada e a capacidade mental transpessoal que constitui o ambiente que
nos rodeia; na linguagem moderna, surgem de “observação” ou “medição”. Ao postular
que as representações ou os fenómenos são aquilo que a vida interior consciente parece
através de uma fronteira dissociativa, tento completar as ideias de Kant e Schopenhauer:
nenhum deles parece ter explicado precisamente como as representações ou os
fenómenos surgem dos noúmena ou da vontade, respectivamente.

Seguindo Kant e Schopenhauer, o idealismo analítico sustenta que o próprio espaço-


tempo nada mais é do que uma estrutura cognitiva desenvolvida na mente individual de
quem percebe, que é, portanto, povoada de representações. O próprio mundo – os
noúmena de Kant ou a vontade de Schopenhauer – é incomensurável com o espaço-
tempo e não é constituído pelas qualidades da percepção – contra as quais o próprio
Schopenhauer tomou precauções – poderíamos pensar que são pensamentos
transpessoais movidos por impulsos volitivos instintivos. Estes pensamentos
transpessoais aparecem-nos, à primeira vista, como uma tapeçaria de cor, sabor, cheiro,
etc., uma vez que codificar a nossa percepção do ambiente desta forma tem vantagens
evolutivas significativas (Kastrup, 2018a).

De acordo com o idealismo analítico, a estrutura do espaço-tempo e as percepções


básicas que a povoam são mecanismos cognitivos que desenvolvemos como espécie, e
não existências independentes. Assim sendo, estão integrados no organismo - não são
transmitidos pela cultura - e não são mais fluidos que o próprio organismo. Dito isto – e
apoiado pela psicologia moderna – acredito que a nossa experiência comum do mundo
envolve muito mais do que percepções básicas. O que realmente vivenciamos é, em
grande parte, uma narrativa que construímos e depois projetamos nas percepções. Em
outras palavras, não apenas apreendemos “pixels” puros – aqui entendidos de forma
geral e metafórica, de modo que se poderia falar, por exemplo, de “pixels” auditivos –
mas os dividimos, agrupamos e os tecemos de acordo com uma história que contamos
subliminarmente para nós mesmos. Ao contrário das percepções básicas, esta narrativa
interna é transmitida através da cultura e da educação. É precisamente uma daquelas
histórias ligadas à cultura que leva a maioria das pessoas hoje a olhar para o mundo
exterior e a ver objetos distintos feitos de matéria fora da mente. Afinal, a distinção dos
objetos é puramente nominal (Mathews, 2011), enquanto o estado mental independente
do mundo nada mais é do que uma abstração teórica (Kastrup, 2018b). Esta substituição
da concretude do mundo por abstrações teria soado ridiculamente absurda há apenas
algumas centenas de anos.

A ideia de que a consciência fenomênica desligada do espaço é o fundamento da


existência é extremamente excitante, pois evita todos os problemas insolúveis da
metafísica atual. O cerne do “problema difícil”, por exemplo, é este: primeiro, inferimos
que o mundo é feito de matéria externa e independente da consciência; então,
imaginamos que certos padrões de organização da matéria – como o nosso cérebro –
podem, de alguma forma, dar origem à consciência; finalmente deduzimos que o
dinamismo material do ambiente externo modula as experiências geradas pelo cérebro
através dos órgãos sensoriais. Este último é o que chamamos de “percepção”. O
problema é que não há nada nos parâmetros quantitativos abstratos que descrevem e
definem a organização material em termos dos quais possamos deduzir as qualidades da
experiência. Eu poderia descrever exaustivamente o sistema material que conhecemos
como “maçã” em termos de massa, momento, carga, posições espaço-temporais, etc., de
suas partículas constituintes, mas nada disso me daria qualquer ideia do que se sente ao
ver a cor vermelha ou ao saborear a doçura da maçã. Fundamentalmente, não podemos
preencher a lacuna entre as quantidades físicas lá fora e as qualidades experienciais
aqui dentro.

No idealismo analítico, porém, o que está lá fora também são experiências, embora estas
sejam qualitativamente diferentes daquelas que estão na tela da percepção. Em outras
palavras, o que se sente ao ser o mundo aí fora é qualitativamente diferente da sensação
de percebê-lo. Mas colmatar (fechar) a lacuna entre dois conjuntos diferentes de
qualidades é empiricamente trivial: testemunhamos isso acontecer o tempo todo. Por
exemplo, as qualidades dos nossos pensamentos podem ser diretamente traduzidas nas
qualidades das nossas emoções: o que se sente ao ter o pensamento de que, digamos, a
vida não tem sentido é então traduzida na emoção sentida de desesperança ou desespero.
A qualidade do pensamento, embora diferente da emoção, leva diretamente a esta
última. Portanto, não há dificuldade na hipótese de que os pensamentos transpessoais
que existem por aí, ao influenciarem o limite dissociativo do nosso respectivo alter –
cuja representação é a nossa pele e outros órgãos sensoriais – sejam traduzidos em
qualidades de percepção. Já não existe mais uma lacuna intransponível.

O igualmente insolúvel “problema da combinação de sujeitos” (Chalmers, 2016a) do


pampsiquismo constitutivo também é evitado pelo idealismo analítico. Não há
necessidade de explicar como é que os sujeitos microscópicos da experiência
fundamentalmente desunidos – tais como aqueles que hipoteticamente correspondem às
partículas subatômicas que constituem os nossos cérebros – se combinam para constituir
o sujeito macroscópico aparentemente unitário que parecemos ser. O idealismo analítico
já parte de um sujeito universal, portanto não é necessário combinar nada. O desafio a
ser enfrentado é o oposto: como é possível que uma consciência universal se divide
aparentemente em múltiplos sujeitos individuais como você e eu? É uma questão
legítima, mas a sua solução já nos foi fornecida pela natureza na forma do distúrbio
psiquiátrico chamado “dissociação”. Quer compreendamos ou não os mecanismos
internos desta doença, sabemos empiricamente que o espaço mental pode aparentemente
dividir-se em múltiplos centros co-conscientes cognitivamente desunidos da consciência
desperta. Digo “na aparência” porque também sabemos, empiricamente, que esta
divisão é reversível e aparente: há casos de pacientes que superaram a dissociação e
reintegraram os seus alteres num espaço mental unitário e internamente conectado. A
sugestão aqui é que a consciência universal pode passar por algo semelhante à
dissociação, através da qual múltiplos alteres desunidos como você e eu se formariam.
O que chamamos de “vida” ou “biologia” é a aparência extrínseca, a representação desta
dissociação; isto é, a vida é o aparecimento de um processo dissociativo em nível
universal quando observado desde o outro lado de sua fronteira dissociativa. Isto, na
minha opinião, é o quanto há na vida.

O idealismo analítico é de enorme relevância para as nossas vidas, seja como indivíduos
ou como membros de um coletivo. Afinal, nossas ideias metafísicas, mesmo que
implícitas e não examinadas, colorem todos os aspectos de nossas vidas, desde nossos
valores morais até nosso senso de significado. A noção de que a existência é
fundamentalmente senciente e unitária tem implicações extraordinárias na forma como
vemos uns aos outros e como consideramos o planeta em que vivemos e o universo em
geral. Para citar um exemplo óbvio, a escola filosófica do existencialismo parece
pressupor a separação, o que é essencialmente negado pelo idealismo, embora o
idealismo permita a aparência de separação.

Mas a implicação mais relevante do idealismo analítico tem a ver com a forma como ele
molda a nossa compreensão da morte. Se a vida é o aparecimento extrínseco de
processos dissociativos ao nível universal, então a morte – o fim da vida – é o fim da
dissociação; isto é, a reintegração da nossa vida interior consciente num contexto mais
amplo. Num sentido importante, isto vira de cabeça para baixo a nossa compreensão da
morte: ela deixa de ser o fim ou a constrição infinita da consciência e representa
exatamente o oposto, uma expansão. Na verdade, existem provas empíricas
convincentes de que este é o caso, conforme argumentado no Capítulo 25 deste livro.
(Eu não acredito nisso.)
O idealismo analítico também pode moldar a nossa compreensão da identidade pessoal.
Como Schopenhauer explicou há cerca de duzentos anos, cada um de nós tem uma
espécie de dupla identidade ou “dupla existência” (ver Kastrup, 2020). A primeira
identidade é o que Schopenhauer descreve como o “olho eterno do mundo”, que “olha
para todas as criaturas que conhece”. O filósofo Itay Shani descreveu essencialmente a
mesma coisa em termos analíticos modernos com o rótulo de “subjetividade nuclear”,
que é “o dativo (…) da experiência, (ou seja, aquele a quem as coisas são dadas, ou
descobertas, a partir de uma perspectiva” (2015). A subjetividade nuclear não implica
conteúdos – nem nome, nem local de nascimento, nem profissão, nem idade, nem
memórias episódicas, etc. – nem narrativas da própria identidade. Pelo contrário,
consiste num espaço vazio subjetivo com o seu sentido indiferenciado inerente de uma
qualidade primordial. Pode-se imaginar como seria se alguém ficasse completamente
amnésico, mas ainda consciente, enquanto estivesse em uma câmara ideal de privação
sensorial.

Por ser indiferenciada e livre de conteúdo, a subjetividade nuclear é idêntica em cada


um de nós: todos nós somos “o único olho no mundo que olha para todas as criaturas
que conhecemos”. Na verdade, a continuidade inquebrável da nossa subjetividade
central ao longo do tempo é a razão pela qual acreditamos que somos a mesma entidade
desde o nascimento, embora todo o resto – o corpo, pensamentos, opiniões,
autoimagem, memórias, etc. – mudou numerosas vezes desde então.

Colocando na minha terminologia, a subjetividade nuclear é intrínseca à consciência


universal; pode até haver um sentido importante em que seja a consciência universal.
Portanto, a morte – o fim da dissociação – não muda nada a esse respeito. A morte
ocorre dentro da subjetividade nuclear, não acontece com ela. O recipiente ou “dativo
da experiência” permanece o mesmo quando os conteúdos da nossa vida interior
consciente são reintegrados num contexto mais amplo. O “eterno olho do mundo” é
literalmente eterna.

Mas Schopenhauer também reconheceu que, enquanto estamos vivos, todos temos um
segundo modo de existência que corresponde ao nosso corpo físico: a aparência ou
representação extrínseca dos nossos conteúdos individuais e dissociados da consciência.
Este segundo modo, é claro, não sobreviverá à morte. Nossa narrativa de nossa própria
identidade será vislumbrada com a morte, assim como ao acordar vislumbramos a
identidade dos avatares dos nossos sonhos.

Isto é, em poucas palavras, idealismo analítico, uma visão filosófica cujas origens
podem ser rastreadas – através de Jung (ver Kastrup, 2021), Schopenhauer (ver Kastrup,
2020), Swedenborg, Parmênides (ver capítulo 31 deste livro) e muitos outros. – às
origens da própria civilização.
Capítulo18, Página 165.
Inferências razoáveis da mecânica quântica
Uma resposta ao “uso indevido da quântica na literatura psíquica”

Este artigo é uma resposta ao “Quantum Misuse in Psychic Literature” (“Uso indevido
da quântica na literatura psíquica”), de Jack A. Mroczkowski e Alexis P Malozemoff,
publicado no Journal of Near-Death Studies no outono de 2019. Embora eu simpatize
com a causa e os propósitos de Mroczkowski e Malozemoff, e reconheço o problema
que tentam resolver, defendo que as suas críticas muitas vezes vão longe demais e
acabam por aumentar a confusão. Abordo nove aspectos técnicos específicos dos quais
Mroczkowski e Malozemoff acusam escritores populares nos campos da cura e da
parapsicologia de supostamente deturpá-los. Também defendo que – ao contrário do que
sustentam Mroczkowski e Malozemoff – as afirmações destes escritores são muitas
vezes razoáveis e, em regra, consistentes com o estado atual dos fundamentos da
mecânica quântica.

Agradeço esta oportunidade de responder ao artigo acima mencionado. Deixe-me


começar por reconhecer que simpatizo com a causa de Mroczkowski e Malozemoff
(doravante os “autores”). Poucos estudiosos negarão que a mecânica quântica (MQ)
tenha sido usada para cometer abusos e, por isso, é louvável que estes autores tenham
tentado reparar esta situação. O propósito dos autores de encorajar outros a “evitar
argumentos com referências impróprias à física” (p. 132) é impecável e oportuno. Há
muitas partes do seu artigo com as quais concordo.

No entanto, penso que os autores vão longe demais nas suas críticas. Na minha opinião,
alguns dos casos de abuso são tentativas legítimas – embora por vezes mal expressas –
de enfatizar que a MQ desafia os preconceitos comuns da maioria das pessoas sobre a
natureza da realidade. Estes preconceitos definem o que é normalmente considerado
plausível ou implausível, razão pela qual levam muitas pessoas a descartar
possibilidades importantes em áreas como a saúde e a parapsicologia.

Embora a MQ esteja presente há mais ou menos um século, suas repercussões ainda não
permearam outras disciplinas científicas. Mesmo dentro da própria física, a comunidade
dos “fundamentos da física” – estudiosos que avaliam as implicações metafísicas da
MQ – é relativamente pequena. Nesta perspectiva, é difícil – pelo menos em princípio –
criticar as tentativas de chamar a atenção do público em geral para os graus de liberdade
natural que os MQ podem abrir.

Por estranho que pareça, a cultura popular continua a ser dominada pelos
constrangimentos de um realismo local ingénuo que o MQ relegou definitivamente para
o caixote do lixo da história. Portanto, não é apenas legítimo, mas creio até imperativo,
que aqueles que se consideram líderes desempenhem um papel relevante na expansão
dos horizontes culturais neste sentido. O impulso formidável recebido pelo realismo
local ingénuo deve ser contrariado, caso contrário as pessoas continuarão a viver com
uma visão limitada e – o que é mais importante – errônea da realidade. Embora alguns
escritores populares possam ter-se expressado de forma imprecisa, lidar com as
implicações diabólicas da MQ, sejam elas acessíveis ou rigorosas, é um desafio
formidável. Os próprios autores – que, ao contrário da maioria dos escritores populares
que criticam, têm a vantagem de serem especialistas na matéria – admitem não terem
conseguido ultrapassar tal desafio. Eles compensam esse defeito acrescentando
esclarecimentos acessíveis apenas a especialistas. Porém, para o leitor médio, esses
esclarecimentos em nada contribuem para evitar mal-entendidos, apenas servem aos
autores para evitar responsabilidades e fugas.

O atoleiro em que os leitores são colocados é este: por um lado, os líderes de


pensamento nas áreas onde as implicações da MQ são relevantes devem chamar a
atenção do seu público para as possibilidades que estas implicações abrem; por outro
lado, devem fazê-lo de forma minimamente precisa. Existe uma tensão significativa
entre estes dois objetivos e não existe uma fórmula mágica para resolver o problema. O
melhor caminho a seguir poderá ser o envolvimento num diálogo crítico em que os
académicos procurem equilíbrio (dinâmico). Este é o espírito da presente resposta.

Nas seções seguintes comentarei nove aspectos técnicos específicos levantados pelos
autores.

18.1. O mundo físico como uma ilusão

Os autores sugerem que a caracterização do mundo físico como ilusório não é


justificada pelo MQ. Avaliar se esta sugestão está correta requer, primeiro, uma
compreensão do que significa afirmar que o mundo é uma ilusão.

A maioria das pessoas comuns consideraria que seria real – o oposto de ilusório – se as
suas propriedades físicas mensuráveis existissem independentemente de serem ou não
observadas e, em caso afirmativo, de como são observadas. Um ato de observação deve
revelar uma realidade física auto existente, e não a criar ou a determinar . Esta suposição
de independência da observação – tecnicamente chamada de “não contextualidade” – é
o que está subjacente à intuição das pessoas comuns sobre a concretude do mundo.
Afirmar que o mundo é uma ilusão, portanto, significa negar a não-contextualidade: se
as propriedades físicas do mundo dependem verdadeiramente de como são observadas –
em oposição à existência em si mesmas – então o mundo é uma ilusão.

O que o MQ diz sobre isso? Em termos operacionais, a não-contextualidade significa


que o resultado de uma medição não deve depender da forma como outra medição
separada, mas simultânea, é realizada. De acordo com a teoria quântica, entretanto, este
não é o caso. A questão mais relevante, então, é se a teoria quântica está correta.

Desde os influentes experimentos de Alain Aspect, as previsões da teoria quântica a


respeito deste assunto foram confirmadas inúmeras vezes. O ano de 1998 foi
particularmente frutífero, com duas importantes experiências realizadas na Suíça (Tittel
et al.) e na Áustria (Weihs et.al.). Experiências mais recentes desafiaram novamente a
não-contextualidade (Lapkiewicz et al., 2011; Manning et al. al., 2015). Num
comentário sobre esta pesquisa (Ananthaswamy, 2011), o físico Anton Zeilinger é
citado: “Não faz sentido assumir que aquilo que não medimos num sistema tem uma
realidade (independente).” Finalmente, investigadores dos Países Baixos (Hense et al.,
2015) e um grande estudo internacional (9BIG Bell Test Collaboration, 2018)
realizaram com sucesso certos testes que colmatam todas as lacunas possíveis e
demonstram definitivamente que a teoria quântica está correta.

A única saída possível para os defensores da não-contextualidade é especular sobre a


existência de propriedades físicas ocultas, “dispersas” no espaço-tempo. Acontece,
contudo, que certas previsões da teoria quântica são incompatíveis com a não-
contextualidade, mesmo para uma grande e importante classe de tais especulações
(Leggett, 2003). Algumas experiências confirmaram estas previsões (Groeblacher et al.,
2007; Romero et al., 2010) com resultados tão significativos que a imprensa científica
se sentiu obrigada a pronunciar: “A física quântica diz adeus à realidade” (Cartwright,
2007).

A interpretação sobrevivente da MQ que, em princípio, ainda poderia preservar a não-


contextualidade é a mecânica bohmiana (Bohm, 1952a, 1952b). Mas esta interpretação é
atormentada por outros problemas. Por exemplo, ao contrário da MQ comum, com as
suas extensões na teoria quântica de campos, a mecânica bohmiana carece de uma
versão relativística. Outros argumentos técnicos convincentes contra a mecânica
bohmiana foram revistos pelos físicos Raymond Streater e Lubos Motl (Mot, 2009,
Streater, 2007, pp. 103-112). Finalmente, há evidências de que experiências recentes
refutaram empiricamente esta interpretação (Wolchover, 2018).

Deve-se admitir que não apenas a mecânica de Bohm, mas também os resultados
experimentais que refutam a não-contextualidade, ainda são controversos. No entanto, é
justo dizer que nunca a ideia de um mundo físico real, independente da observação,
pareceu tão precária. A não-contextualidade, se não estiver morta, passa por sérios
problemas.

Consequentemente, parece inteiramente razoável afirmar que, no que diz respeito ao


MQ, o mundo físico vivido pelas pessoas comuns é semelhante a uma “ilusão”. Antes
de serem observadas, as grandezas físicas observáveis são apenas potenciais –
modelados por ondas de probabilidade – em oposição a uma existência determinada.

18.2. Realidades físicas pessoais

Os autores criticam a afirmação de Deepak Chopra de que “o mundo físico, incluindo os


nossos corpos, é uma resposta do observador. Criamos os nossos corpos à medida que
criamos a experiência do nosso mundo” (citado em Mroczkowski e Malozemoff, 2019,
p. 144). Chopra prossegue reconhecendo que “estas são suposições enormes, os
ingredientes de uma nova realidade, mas baseiam-se em descobertas da física quântica
de quase cem anos atrás” (ibid.) Mais uma vez, a questão é se existem fundamentos –
não uma prova ou evidência irrefutável, mas apenas alguns fundamentos para esta
afirmação de Chopra – dentro da MQ.

Como os autores reconhecem, a MQ tem muitas interpretações metafísicas diferentes.


Na física não há consenso sobre qual interpretação é a mais provável, muito menos a
mais certa. Mas uma das interpretações mais sóbrias e honestas é a “mecânica quântica
relacional” (MQR) de Carlo Rovelli (1996). Segundo a MQR, não existem grandezas
físicas absolutas, ou seja, independentes do observador. Em vez disso, todas as
quantidades físicas – todo o mundo físico – são relativas ao observador de uma forma
análoga ao movimento.

Rovelli resume o MCR da seguinte forma:

(Posto que) diferentes observadores dão relatos diferentes da mesma sequência


de eventos, (…) cada descrição da mecânica quântica deve ser entendida em
relação a um observador particular. Assim, uma descrição pela mecânica
quântica de um determinado sistema (estado e/ou valores de grandezas físicas)
não pode ser considerada uma descrição “absoluta” (independente do
observador) da realidade, mas sim uma formalização, ou codificação, das
propriedades de um sistema em relação a um determinado observador (1996, p.
1648).

A implicação é que cada pessoa, como observador individual, “habita” o seu próprio
mundo físico, definido pelo contexto das suas próprias observações. Esta afirmação está
muito próxima da noção sugerida por Chopra de que cada pessoa vive numa realidade
física criada em resposta às suas próprias observações.

No entanto, um leitor pode questionar se a MQR é verdadeira. Qualquer resposta


definitiva a esta questão estaria no campo dos fundamentos da física. No entanto, o
resultado de uma experiência muito recente e significativa parece ter demonstrado o
aspecto central e definidor do MQR: que o mundo físico, na verdade, depende do
observador de uma forma análoga ao movimento (Proietti et al., 2019; Emerging
Tecnologia do arXiv, 2019).

Portanto, dada a situação atual no MQ, as alegações de Chopra – embora especulativas


– não são extravagantes nem infundadas no que diz respeito à MQ. Por mais contra
intuitivo que possa parecer, a ideia de mundos físicos relativos pode até ressoar com a
experiência de que todas as pessoas compartilham um ambiente comum. Abordo essa
ideia de forma mais extensa no capítulo 6 do meu livro The Idea of the World (Kastrup,
2019, pp. 93-122).

18.3. Escolha e aleatoriedade

Os autores criticam certos escritores populares por sugerirem que a intenção poderia
influenciar diretamente a transição do mundo físico de uma existência potencial para
uma determinada, ou seja, no chamado “colapso da função de onda”, associado de
alguma forma a um ato de observação. Os autores argumentam que, segundo MQ, o
colapso produz resultados aleatórios, o que “impede uma pessoa de escolher ou almejar
um determinado resultado desejável” (Mroczkowski e Malozemoff, 2019, p. 137).

Acho que esse raciocínio é falho aqui. Primeiro, é importante considerar que a
aleatoriedade é um conceito altamente ambíguo: uma vez que é definida como a
ausência de padrões ou propensões reconhecíveis – existindo testes formais de
aleatoriedade para verificar se este é o caso – um processo verdadeiramente aleatório
pode, em teoria, produzir qualquer padrão. A probabilidade de encontrar um padrão
num processo verdadeiramente aleatório pode ser pequena, mas não zero. Na verdade,
porque consiste essencialmente no reconhecimento da ignorância causal, a aleatoriedade
é uma noção extraordinariamente acomodatícia.

Tendo este aspecto em conta, insistir que um processo é aleatório não exclui qualquer
resultado. É fisicamente coerente – plausível ou não – a capacidade da intenção de
influenciar a obtenção de resultados de colapso sem violar a teoria quântica. Por
exemplo, se medirmos o spin de um elétron ao longo de uma determinada direção, o
resultado será ½ ou -½. E se reiniciarmos o experimento – certificando-nos de que as
condições iniciais são as mesmas – e reproduzirmos a medição, o resultado será
novamente ½ ou -½. Uma série dessas medições gerará uma sequência de números. É a
cadeia de números que deve atender aos critérios de aleatoriedade.

Mas é claro que uma cadeia tecnicamente aleatória não exclui a possibilidade de que as
medições individuais dentro dela possam ser influenciadas pela intenção, de modo que
passem despercebidas na cadeia global. E mesmo que seja percebido um viés estatístico,
nenhum cético levantará as sobrancelhas, uma vez que, em teoria, processos aleatórios
podem produzir por puro acaso – como já foi argumentado – qualquer padrão
concebível. Isso efetivamente torna a afirmação do autor infalsificável.

18.4. Sincronicidade

As previsões quânticas são válidas apenas em nível estatístico. Os resultados de


medições individuais – isto é, observações ou eventos individuais – são não-
determinísticos e imprevisíveis; a teoria quântica não privilegia nenhum resultado, seja
ele qual for, a nível individual. Foi este espaço causalmente indeterminado que Jung e o
físico ganhador do Prêmio Nobel Wolfgang Pauli preencheram com sua noção de
“sincronicidade”: coincidências sem causas significativas que supostamente refletem
padrões arquetípicos subjacentes não apenas na psique humana, mas também no mundo
físico como um todo. (Jung, 1985; Jung e Pauli, 2001).

Os autores negaram “que a teoria quântica possa explicar todas as coincidências


consecutivas que fundamentam a sincronicidade” (Mroczkowski e Malozemoff, 2019,
p. 150). Acredito que esta afirmação, embora estritamente correta, é enganosa no
sentido de que comete a falácia do espantalho. A questão não é que a MQ explique
positivamente as sincronicidades, mas que – ao contrário da física clássica – deixa um
espaço aberto às sincronicidades. Além disso, segundo MQ, a natureza é
essencialmente não-determinística, isto é, num nível fundamental não há
necessariamente nenhuma necessidade causal. Esta noção abre portas para outros
princípios organizacionais ainda desconhecidos pela ciência.

Os autores argumentam repetidamente que o colapso da função de onda leva a


resultados aleatórios. Mas, essa aparente aleatoriedade também não contradiz a
sincronicidade: considerando esta última, os teóricos postularam que a natureza se
organiza de acordo com padrões arquetípicos globais. Estes padrões globais podem ser
facilmente conciliados com a aparente aleatoriedade ao nível dos eventos quânticos
individuais, como ilustro com a seguinte analogia.

Imagine que lançamos três dados várias vezes. Após cada lançamento, cada dado
individual exibe aleatoriamente um número de um a seis. Em outras palavras, o
comportamento de cada dado é aparentemente aleatório de lançamento para lançamento.
Mas agora suponhamos que, quando depois de cada lançamento olhamos juntos para os
três dados, vemos que todos mostram um número par ou todos mostram um número
ímpar. Este é um exemplo hipotético de um padrão síncrono global que pode ocorrer
mesmo que os eventos constituintes individuais, considerados isoladamente, cumpram
os critérios de aleatoriedade. Nas palavras de Jung: “Dentro da aleatoriedade do
lançamento dos dados, emerge uma ordem ‘psíquica’” (Jung e Pauli, 2001, p. 62).

Se este tipo de alinhamento síncrono global ocorresse entre eventos quânticos no mundo
em geral, os físicos não perceberiam. Pois, embora possam testar acontecimentos
individuais no laboratório e verificar que, separadamente, os acontecimentos são
aleatórios, não são capazes de discernir um padrão global dentro da complexidade do
mundo físico em geral; há muitos “dados” para serem examinados em condições
controladas de laboratório.

A relação entre sincronicidade e MQ, como já observei, foi reconhecida pelo próprio
Pauli. Depois de revisar a versão final do ensaio de Jung sobre sincronicidade, Pauli
escreveu: “Descobri (…) que (…), do ponto de vista da física moderna, (o ensaio) é
agora irrefutável” (Jung e Pauli, 2001, página 71).

18.5. Vazio

Muitos escritores populares enfatizaram que, vista de perto, a matéria revela-se, em


grande parte, um espaço vazio. Se compararmos o volume total de um átomo com o
volume agregado das suas partículas subatómicas elementares que têm massa – como os
quarks e os leptões – percebemos que, na verdade, o átomo está praticamente vazio. Os
autores, no entanto, argumentam que tal conclusão “não está relacionada com a física
quântica moderna” porque a função de onda (das partículas subatômicas) preenche o
espaço” (Mroczkowski e Malozemoff, 2019, p. 144).

Acho que o raciocínio dos autores é falho por vários motivos. Primeiro, parecem
assumir que a função de onda é ôntica, isto é, que corresponde a uma entidade que
existe objetivamente dispersa no espaço. No entanto, na física não há consenso de que
este seja o caso. Muitos físicos sustentam, em vez disso, que a função de onda é
epistêmica, isto é, que se limita a capturar a extensão do conhecimento humano sobre o
comportamento futuro da natureza. Se esta última posição for verdadeira, então não há
nada objetivamente real que “preencha o espaço” dentro de um átomo.

Seja como for, quando se afirma que um átomo está “quase vazio” está se referindo ao
fato de que a maior parte do espaço dentro do átomo não tem massa. Um vazio bem
iluminado ainda é considerado um vazio porque os fótons não têm massa. Da mesma
forma, um vazio preenchido com campos eletromagnéticos é vazio porque os campos –
ferramentas matemáticas abstratas – não contam como “ocupantes” do espaço de acordo
com a intuição popular sobre o “vácuo”. Ora, como a massa é uma quantidade física
mensurável – “observável” –, só se pode falar da sua existência após o colapso da
função de onda, ou de qualquer coisa que seja considerada um colapso, porque nem
mesmo sobre este fenómeno há consenso na física atual. O que resta então é um
conjunto de partículas subatômicas elementares que têm massa e ocupam apenas uma
pequena fração do volume total do átomo.

É inegável que a física subatómica do século XX introduziu conhecimentos que


contradizem as intuições populares sobre a solidez da matéria. Estas intuições remontam
a visões atomísticas gregas obsoletas. Neste contexto, parece-me válido que alguns
escritores populares apontem aos seus leitores que, contrariamente às suposições
comuns, a matéria é na verdade “principalmente espaço vazio”.

18.6. A consciência como agente de colapso

Os autores criticam a noção de consciência como agência, através da observação, da


transição do mundo físico da pura potencialidade para entidades físicas definidas.
Dizem eles: “Esta interpretação ainda não foi comprovada e não foi aceita pela maioria
dos físicos quânticos” (Mroczkowski e Malozemoff, 2019, p. 138). Embora estritamente
correta, esta afirmação também incorre na falácia do espantalho: a maioria dos físicos
quânticos não provou nem aceitou qualquer interpretação do MQ. Não creio que este
estado de coisas impeça os autores de aludir ou especular sobre as implicações da MQ.

Se a consciência não causa o colapso da função de onda - aconteça o que acontecer


através de tal colapso - então uma entidade inanimada de alguma natureza deve ser
responsável. No entanto, a afirmação de que objetos inanimados, como detectores
eletrônicos, podem fazer medições na MQ é fundamentalmente problemática, porque a
divisão do mundo em objetos inanimados discretos é puramente nominal, para começar.
Uma rocha é parte integrante da montanha que contribui para a sua formação? Se for
esse o caso, parece ser um objeto isolado simplesmente por estar separado da
montanha? E se é assim, faz-se uma medição quântica – ou seja, uma observação que
causa o colapso da função de onda – toda vez que ela entra em contato com a montanha
novamente à medida que ela ricocheteie para baixa na encosta? Uma breve consideração
destas questões mostra que os limites de um detector são arbitrários.

Na verdade, como argumentou John von Neumann (1996) pela primeira vez, quando os
objetos inanimados interagem, eles simplesmente ficam entrelaçados em termos da MQ
– isto é, eles se juntam de tal maneira que o comportamento de um colapso está
inextricavelmente ligado ao outro –, mas não fornece nenhuma medição real. Portanto,
o mundo inanimado é um sistema físico unitário e indivisível governado pela MQ e não
existem detectores que façam medições; existe apenas um mundo inanimado. Nas
palavras de Erich Joos: “Devido às propriedades da não-localidades dos estados
quânticos, uma descrição de um fenômeno que seja consistente em termos quânticos
deve, em última análise, incluir todo o universo” (2006, p. 71).

Deixe-me usar um exemplo concreto para ser mais específico. No conhecido


experimento de fenda dupla, os elétrons são disparados através da fenda dupla. Quando
vistos em fendas, os elétrons se comportam como partículas individuais. Mas quando
observados depois de terem passado pelas fendas, os elétrons se comportam como
potencialidades sobrepostas. Em 1998, investigadores do Instituto Weizmann em Israel
mostraram que quando os detectores são colocados nas fendas, os elétrons comportam-
se como partículas individuais (Buks et al., 1998). À primeira vista pode parecer que
este resultado demonstra que a medição não requer um observador consciente.

Porém, o resultado dos detectores só é conhecido quando uma pessoa o observa


conscientemente. A hipótese de uma medição antes desta observação consciente carece
de um fundamento convincente, tanto no sentido teórico como empírico. Afinal, a MQ
não oferece nenhuma razão para que o sistema inteiro (elétrons, fendas e detectores
combinados) não deveria estar em uma superposição entrelaçada antes que alguém
observe o resultado na saída dos detectores (von Neumann, 1996). Simplesmente não é
possível saber o seu estado. Como as pessoas não conseguem abstrair do seu
conhecimento, elas são incapazes de saber que os detectores realizam medições e
causam o colapso da função de onda.

Portanto, na medida em que as pessoas podem conhecer, antes de serem representadas


pela percepção consciente, o mundo consiste de uma superposição unitária de
potencialidades. Esta superposição – indivisível, porque o emaranhado quântico impede
que os elementos da superposição sejam descritos separadamente uns dos outros – é
incompatível com a existência de objetos e eventos individuais separados com
propriedades determinadas.

18.7. Decoerência

Os autores sustentam que um fenômeno quântico denominado “decoerência” “é


responsável por (destruir) os efeitos de interferência quântica mais singulares, e essa
decoerência sempre ocorre antes de qualquer observação consciente” (Mroczkowski e
Malozemoff, 2019, p. 138). Eles parecem sugerir que a decoerência evita o postulado de
que a consciência é a agência do colapso. Em outras palavras, na opinião dos autores, só
a decoerência por si só explica a transição de um sistema quântico da mera
potencialidade para determinadas quantidades físicas. Mas esta é uma falácia bem
conhecida.

Se assumirmos a existência de um ambiente macroscópico que consiste em


determinadas quantidades físicas – isto é, um ambiente clássico – do qual um sistema
microscópico quântico sobreposto é inicialmente isolado, então é certo que qualquer
contato com o ambiente destruirá a superposição. As informações sobre potencialidades
sobrepostas serão “filtradas” e dispersas no ambiente.

O problema, contudo, é que a decoerência, para começar, não pode explicar como o
estado do ambiente se torna determinado – isto é, clássico –, pelo que não resolve o
problema da medição nem exclui o papel da consciência. Como Wojciech Zurek, um
dos pais da decoerência, reconheceu:

Uma resposta exaustiva (à questão de por que percebemos um mundo clássico


em vez de potencialidades sobrepostas) deveria incorporar, sem dúvidas, um
modelo de “consciência”, uma vez que o que estamos perguntando diz respeito à
nossa impressão (a do observador) de que só “somos conscientes” de uma das
alternativas (1994, p. 29).

E como observou Joos: “Os efeitos da decoerência assemelham-se ao colapso” (2006, p.


77). Na verdade, num artigo destinado a destacar o papel da decoerência na emergência
de um mundo clássico a partir de um substrato quântico, Joos conclui que é necessária
alguma forma de colapso da função de onda ou de universos paralelos (ibid., página 75).
A decoerência não é suficiente.

Em suma, a decoerência não evita nem exclui a possibilidade de que a consciência seja
a agência por trás do colapso.

18.8. Microscópico versus macroscópico

Outra linha de argumento frequentemente apresentada pelos autores é que os fenómenos


quânticos nos quais os escritores populares se baseiam ocorrem principalmente a um
nível microscópico. Eles parecem inferir que do domínio microscópico nenhuma
conclusão fundamental ou metafísica aplicável ao mundo macroscópico das mesas e
cadeiras pode ser extrapolada.
Embora existam diferenças operacionais inegáveis entre o comportamento do mundo
das mesas e cadeiras e o dos sistemas quânticos microscópicos isolados, elas não podem
ser fundamentais, mas se manifestam puramente como epifenômenos. Afinal, o mundo
é quântico, uma vez que os objetos e eventos macroscópicos são meramente resultados
compostos da dinâmica microscópica. Para citar Joos novamente:

(Um) método de varrer os problemas interpretativos para debaixo do tapete é


assumir, ou melhor, postular, que a teoria quântica é uma teoria de microobjetos,
enquanto no reino macroscópico a descrição clássica deve ser válida por decreto
(ou devo dizer por um pensamento ilusório?). Tal abordagem leva a paradoxos
interminavelmente discutidos na teoria quântica. Tais paradoxos só surgem
porque esta abordagem é conceitualmente inconsistente. (…) Além disso, micro-
objetos e macro-objetos estão acoplados de uma forma tão estreita e dinâmica
que nem sequer sabemos onde poderia ser encontrada a fronteira entre os dois
supostos domínios. Por estas razões, parece óbvio que não há limite entre os dois
(200, páginas 74-75).

E continua: “Qualquer que seja a interpretação (da MQ) que se prefira, a visão clássica
do mundo está excluída” (ibid., p. 76). É esta interpretação que encoraja alguns
escritores populares a especular sobre os novos graus de liberdade natural que podem
surgir no mundo macroscópico quando as implicações da MQ são consideradas. Não há
nada de errado – pelo menos em princípio – nesta extrapolação, uma vez que não existe
uma fronteira real entre o microscópico e o macroscópico. A distinção entre os dois
níveis é arbitrária, nominal, motivada por conveniência e puramente epistêmica.

18.9. Transferência de informação superluminal

Os autores frequentemente aludem ao “teorema da não-comunicação” da teoria da


informação quântica para enfatizar que o emaranhado quântico – apesar de sua “ação
fantasmagórica à distância” – não pode ser usado para transmitir informações mais
rapidamente do que a luz. Esta conclusão é, obviamente, inteiramente correta. O
problema é que os autores parecem cair em outra falácia do espantalho ao inferirem que
escritores populares confiaram na comunicação superluminal para explicar os
fenômenos da psi. A este respeito, mencionam a referência de Pim van Lommel à noção
de “consciência não-local”.

O espantalho aqui é o seguinte: a própria ideia de consciência não-local implica que a


realidade é fundamentalmente una e que, portanto, a comunicação é, para começar,
ignorada. Nas palavras de Jonathan Schaffer: “Há evidências físicas de que o cosmos
forma um sistema emaranhado, assim como há razões para tratar todos sistemas
emaranhados como irredutíveis” (2010, p. 32).

Portanto, no nível mais fundamental da realidade – onde os fenômenos psi deveriam


ocorrer – não há necessidade de transmitir informações. No estado alterado de
consciência em que se encontram aqueles que têm uma experiência de quase morte, eles
são um contendo toda a existência, portanto a informação em questão já está “dentro
deles”, por assim dizer. Nada precisa ser comunicado de um lugar para outro porque a
informação já está, por hipótese, “em todo lugar”. Aqui não estamos nos referindo tanto
a uma transferência de informação, seja superluminal ou outra, mas a algo semelhante à
“ordem implicada” de Bohm (1980).
Observe que não estou necessariamente argumentando a favor dos fenômenos psi, nem
os defendendo, pois não estou suficientemente familiarizado com o assunto para
assumir uma posição informada. Limito-me a salientar que o argumento a favor destes
fenómenos apresentado por alguns escritores populares, embora baseado em
implicações da MQ, não implica necessariamente – ao contrário do que afirmam os
autores – uma comunicação superluminal. A alusão ao emaranhamento pretende apoiar
a possibilidade de que todo o cosmos seja essencialmente um todo unitário, e não
necessariamente apelar à transferência de informação através do próprio
emaranhamento.

Um comentário

Um tema recorrente no raciocínio dos autores é a afirmação de que certas ideias –


particularmente aquelas relacionadas aos fundamentos da física – não são geralmente
aceitas pelos físicos, mas que são motivo de bastante controversas. Ressalta-se que, a
menos que a comunidade física chegue a um consenso sobre uma determinada posição,
ninguém mais deverá especular sobre ela. O problema, claro, é que não há consenso
quanto a qualquer posicionamento em relação às interpretações da MQ, não apenas em
relação àquelas que os autores criticam. Portanto, se conseguissem o que queriam, todo
o debate popular sobre as implicações da MQ cessaria.

Não creio que este resultado seja construtivo. Embora não haja consenso sobre certas
questões, sobre outras coisas muito importantes que - como os físicos já sabem - não
vem ao caso existem clareza e confiança suficientes. Refiro-me, por exemplo, ao
ingênuo realismo local que foi categoricamente refutado, algo que por si só já tem um
grande impacto em quase todos os campos da atividade humana. É o elefante na sala.
Não creio que os autores devam fechar os olhos a isso até que os físicos e os filósofos
tenham chegado a um consenso relativo a uma alternativa; não acredito que escritores
populares nas áreas da saúde e da parapsicologia – para citar apenas dois – devam fingir
que as coisas podem continuar como sempre, como se o realismo local ingénuo fosse
verdadeiro. Embora os físicos sejam a autoridade quando se trata de modelos do
comportamento da natureza, eles não são os donos dos seus resultados. As descobertas
da MQ revelam o funcionamento interno da natureza e, portanto, não pertencem a
ninguém, uma vez que todos os humanos são seres naturais nascidos deste universo e
neste universo. Todas as pessoas têm o direito – talvez a exigência moral – de integrar
estas descobertas nas suas meditações sobre a vida, o universo e todas as coisas;
incluindo – para horror da autoproclamada polícia cética – escritores populares nas
áreas da saúde e da parapsicologia.

Além disso, a especulação selvagem – e muitas vezes infundada – não é privilégio de


não-físicos. Hoje, a própria física está a entregar-se ao mais assustador banquete de
especulação alguma vez inventado pela mente humana: múltiplos tipos de universos
paralelos, cada um compreendendo potencialmente uma infinidade multidimensional de
tais universos; dez dimensões espaciais, muitas delas supostamente enroladas em
pequenos nós compactos de extraordinária complexidade topológica; visões
excessivamente conflitantes sobre a natureza do tempo, como aquelas que postulam que
ele não existe, que é a única coisa que realmente existe (enquanto o espaço é ilusório),
ou que existe, mas não é fundamental e surge de processos quânticos microscópicos ; a
acomodação de noções completamente desconhecidas através de rotulagem simples,
como matéria escura e energia escura; opiniões contrárias sobre a origem e evolução
inicial do universo... Dadas todas essas hipóteses seriamente analisadas, é difícil para os
físicos adotarem uma autoridade moral e criticarem os não-físicos simplesmente com
base no fato de que estes últimos estão envolvidos em especulação física. Comparadas
com as conjecturas de muitos físicos profissionais atuais, as alusões aos fenómenos
quânticos nos cuidados de saúde e na parapsicologia parecem bastante moderadas e
conservadoras.

Reconheço que não foi isso que os autores pretenderam nem corresponde ao espírito da
sua crítica. Para eles, o problema em si não é que os escritores populares estejam
envolvidos em especulação física, mas que estejam a tentar apropriar-se indevidamente
da autoridade da física para fazer passar afirmações falsas ou implausíveis como factos
científicos. Este tipo de apropriação indébita é sem dúvida perniciosa e merece a minha
condenação nos termos mais duros.

No entanto, como venho argumentando nesta resposta, não acho que seja isso que os
escritores selecionados pelos autores estejam fazendo. O que estes últimos afirmam nos
seus trabalhos parece-me, em geral, bastante razoável - embora mal expresso -, dados os
resultados mais recentes da física.

Ao tentarem fazer algo sem dúvida válido e importante, suspeito que os autores, ao
exagerarem nas suas críticas, podem ter contribuído para a própria confusão que
procuravam combater. Este resultado é lamentável, mas não deve impedir os esforços
para separar o joio do trigo e lançar alguma luz sobre a confusão que rodeia os
fundamentos do MQ.
Capítulo 19. Página 187.
Pensando além do reino quântico
Como a mente pode dar sentido à física quântica de diversas maneiras

As previsões contra intuitivas da teoria quântica foram confirmadas experimentalmente


com um rigor sem precedentes (Merali, 2015 –“Quantum ‘spookness’ passes toughest
test yet”, Nature, vol. 525, pg. 14-15). No entanto, a questão de como interpretar o
significado destas previsões permanece controversa. No momento em que este livro foi
escrito, uma tabela da Wikipédia resumindo diferentes interpretações da mecânica
quântica incluía nada menos que quatorze entradas. Novas interpretações aparecem
regularmente.
https://www.nature.com/articles/nature.2015.18255#:~:text=The%20most%20rigorous
%20test%20of,part%20of%20the%20quantum%20world.

O problema é que a teoria quântica contradiz a nossa compreensão intuitiva do que


significa real. De acordo com a teoria, se duas partículas reais A e B são preparadas de
uma maneira especial, o que Alice vê quando observa a partícula A depende de como B
observa simultaneamente a partícula B, embora ambas as partículas – assim como Alice
e Bob – estejam separadas por uma distância arbitrária. Esta “ação fantasmagórica à
distância”, como Einstein a chamou, contradiz a causação local ou a própria noção de
que as partículas A e B são “reais”, no sentido de existirem independentemente da
observação. Mas acontece que certas propriedades estatísticas das observações (Leggtt,
2003) – confirmadas experimentalmente (Cartwright, 2007) – indicam a última: que as
partículas não existem independentemente da observação. E como a observação
consiste, em última análise, naquilo que é apreendido na tela mental da percepção, a
consequência pode ser que “o universo é inteiramente mental”, como Richard Conn
Hery afirma sem rodeios num artigo publicado na revista Nature (2005).

O problema, claro, é que a hipótese de um universo físico cuja própria existência


depende das nossas mentes contradiz as intuições científicas dominantes.
Consequentemente, os físicos se apressam em interpretar a teoria quântica de uma
forma que dá origem a uma realidade física separada da mente. Uma forma popular de
fazer isso envolve postular entidades imaginadas, empiricamente inverificáveis e
teóricas, definidas como independentes do observador. É claro que isto vai além da
interpretação: acrescenta bagagem redundante à teoria quântica, no sentido de que a
teoria não precisa de nenhuma destas coisas para prever com sucesso o que ela prevê.

Alguns ficam constrangidos com tais tentativas de modificar a mecânica quântica para
se adequar à visão de mundo de alguém, em vez de adaptar a visão de mundo à
mecânica quântica. Portanto, a questão natural é: se nos atermos à teoria quântica pura,
o que ela nos diz sobre a realidade? O físico Carlo Rovelli tentou responder
rigorosamente a esta questão, e o resultado é o que hoje é conhecido como “mecânica
quântica relacional” (RCM) (1996).

Segundo a MCR, não existem grandezas físicas absolutas, ou seja, independentes do


observador. Em vez disso, todas as quantidades físicas – todo o mundo físico –
dependem do observador, tal como o movimento. Isto é motivado pelo facto de, de
acordo com a teoria quântica, diferentes observadores poderem explicar de forma
diferente a mesma sequência de acontecimentos. Infere-se que cada observador “habita”
o seu próprio mundo físico, definido pelo contexto das suas próprias observações
privadas. Esta previsão surpreendente foi até confirmada experimentalmente (Proietti e
Fedrizzi, 2019; Proietti el al., 2019; Tecnologia Emergente do arXiv, 2019), o que
apenas impulsionou A MQR.

O preço da honestidade no reconhecimento das implicações da mecânica quântica é uma


série de incertezas filosóficas. Primeiro, a ideia de que o mundo físico que habitamos é
um produto das nossas observações privadas parece implicar no solipsismo, anátema em
filosofia. Em segundo lugar, a MQR implica que “uma descrição completa do mundo se
esgota nas informações relevantes (Shannon) que os sistemas têm uns sobre os outros”
(Rovelli, 1996). Ainda assim, segundo Shannon (1948), a informação não é uma coisa
em si. Pelo contrário, é constituído pelas configurações discerníveis de um substrato.
Contudo, se não existe um substrato físico absoluto, o que constitui então a informação?
Terceiro – talvez o mais problemático de todos – o princípio da MQR de que todas as
quantidades físicas são relativas levanta uma questão óbvia: relativa a quê? Só vemos
significado numa quantidade relativa como o movimento porque assumimos que
existem corpos físicos absolutos que se movem uns em relação aos outros. Mas a MQR
nega todos os absolutos físicos que possam substanciar o significado das quantidades
relativas.

Observe que a raiz de todas essas incertezas filosóficas é a suposição não examinada de
que existem apenas quantidades físicas. Se as quantidades físicas surgem da observação
pessoal e são tudo o que existe, então, com efeito, infere-se o solipsismo. Se as
quantidades físicas são baseadas em informação e são tudo o que existe, então a
informação carece, na verdade, de um substrato. Se as quantidades físicas são relativas e
são tudo o que existe, então, na verdade, não existem valores absolutos que
fundamentem o seu significado. Voltarei brevemente a esta questão mais tarde.

Por enquanto, parece que tomar a iniciativa de abraçar a teoria quântica pura e simples,
sem acompanhá-la com assobios e sinos imaginários, nos leva a incertezas filosóficas
insolúveis. No entanto, essa conclusão é falsa. Para ver como podemos sair desse
atoleiro, basta sermos rigorosos no que diz respeito ao âmbito epistêmico da física.
Andrei Linde, um físico de Stanford famoso por introduzir o conceito de “inflação
cósmica”, forneceu uma pista importante ao observar o seguinte.

Nosso conhecimento do mundo não começa com a matéria, mas com as


percepções. (…) Mais tarde descobrimos que as nossas percepções obedecem a
certas leis que podem ser formadas da maneira mais conveniente se assumirmos
que existe uma realidade subjacente além das nossas percepções. (…) Esta
suposição é quase tão natural (e talvez tão falsa) quanto a nossa suposição
anterior de que o espaço é apenas uma ferramenta matemática para a descrição
da matéria (1998, p. 12).

Portanto, na ausência de um substrato absoluto e independente do observador, o mundo


físico da MQR só pode ser o conteúdo da percepção. Nada mais do que isso.

Lembremos agora que as incertezas filosóficas da MQR se baseiam na suposição de que


existem apenas quantidades físicas, isto é, os conteúdos da percepção. Contudo – e esta
é a chave da minha abordagem – juntamente com os conteúdos da percepção existem,
claro, também categorias mentais não perceptuais, como os pensamentos. Muitos
físicos postulam que os pensamentos deveriam ser explicáveis em termos de
quantidades físicas e, por redução, fazer parte do mundo físico. Mas é um pressuposto
filosófico que não altera o facto científico de que a mecânica quântica não prevê
pensamentos, mas apenas o desenvolvimento da percepção, embora o que é previsto – e
depois percebido – seja resultado da instrumentação.

A hipótese, que desenvolvi detalhadamente noutro local (Kastrup, 2019), é que o


pensamento – cujas ambiguidades características são talvez o que os estados de
superposição quântica representam em última análise – está subjacente em toda a
natureza, não apenas aos organismos vivos. O mundo físico de um organismo
observador pode surgir de uma interação – um padrão de interferência – entre os
pensamentos deste organismo e os pensamentos transpessoais que fundamentam o
universo inanimado ao seu redor. Embora não haja dúvida de que cada organismo –
segundo o MQR – pode habitar o seu próprio mundo de percepções, todos os
organismos estão rodeados por um ambiente comum de pensamentos, o que evita o
solipsismo, pelo menos em essência.

A ousada afirmação de Conn Henry de que “o universo é inteiramente mental” não é


apenas inferida de observações experimentais recentes, mas também pode apontar o
caminho para uma base filosófica elegante para talvez a interpretação mais sóbria e
rigorosa da mecânica quântica. A mente, ao que parece, pode fornecer uma saída para o
atoleiro quântico de mais de uma maneira.
Capítulo 20, Página 193.
O Universo como um painel de instrumentos cósmicos
A mecânica quântica relacional sugere que a física poderia se rum ciência de
percepções, não de uma realidade independente do observador.

Uma das implicações teóricas mais estranhas da mecânica quântica é que diferentes
observadores podem fornecer relatos diferentes – embora de validade idêntica – na
mesma sequência de acontecimentos. Como destacou o físico Carlo Rovelli em sua
“mecânica quântica relacional” (RCM) (1996), isso significa que não deveria haver
quantidades físicas absolutas, independentes do observador. Todas as quantidades
físicas – o universo físico como um todo – devem ser relativas ao observador. A noção
de que tudo é relativo ao observador. A noção de que todos partilhamos o mesmo
ambiente físico deve, portanto, ser uma ilusão.
A noção de que todos compartilhamos o mesmo ambiente físico deve ser revista.

Esta previsão contra intuitiva – que parece flertar perigosamente com o solipsismo –
tem clamado por verificações experimentais há décadas. Mas só recentemente a
tecnologia avançou o suficiente para permitir isso. Assim, Massimiliano Proietti e seus
colaboradores da Universidade Heriot-Watt, no Reino Unido, parecem ter finalmente
confirmado a MCR: como prevê a mecânica quântica, é muito possível que não exista
um mundo físico objetivo (Proietti e Fedrizzi, 2019; Proietti et al ., 2019; Tecnologia
emergente do arXiv, 2019).
https://www.technologyreview.com/2019/03/12/136684/a-quantum-experiment-
suggests-theres-no-such-thing-as-objective-reality/

No entanto, as nossas percepções do mundo além de nós mesmos são bastante


consistentes entre os observadores: se o leitor estivesse sentado ao meu lado neste exato
momento, ambos descreveríamos o meu escritório de uma forma muito semelhante e
mutuamente consistente. É claro que os observadores devem compartilhar algum tipo de
ambiente, mesmo que não seja físico, isto é, não descritível por quantidades físicas.

Possíveis soluções para este dilema foram propostas. Por exemplo, eu afirmo que as
quantidades físicas se limitam a descrever as nossas percepções e, portanto, depende de
cada um de nós como observadores (Kastrup, 2019). O que realmente está lá fora,
subjacente às nossas percepções, não é constituído por estados mentais físicos, mas sim
por estados transpessoais. A qualidade física percebida nada mais é do que uma
representação cognitiva daquele ambiente mental que passa a existir através de um ato
de observação.

Esta não é uma ideia nova. Na verdade, é muito antiga. Por exemplo, já no início do
século XIX, Arthur Schopenhauer argumentava que o mundo físico de objetos discretos
no espaço-tempo é uma mera representação subjetiva na mente de um observador
(Kastrup, 2020). O que realmente existe é o que Schopenhauer chamou de “Vontade”:
estados mentais transpessoais com caráter volitivo (volição - escolha ou decisão feita)
que transcendem nossa capacidade de sentir ou medir diretamente. É o carácter volitivo
destes estados que explica a evolução do universo de acordo com as cadeias causais: o
universo move-se e muda impulsionado pelos padrões da sua própria vontade
subjacente.
Apesar das objecções que se possam ter às ideias de Schopenhauer, elas parecem dar
sentido às previsões contra intuitivas da MCR: a física foi desenvolvida para descrever
apenas estados perceptivos, e não estados mentais endógenos, como a volição. É por
isso que as descrições físicas dependem sempre do observador: não captam o mundo
como ele é em si, mas apenas como aparece a cada um de nós, dados os nossos
respectivos pontos de vista dentro do ambiente. Mas não me entenda mal: ainda existe
um ambiente comum de estados transpessoais volitivos no qual estamos todos imersos,
só que esse ambiente não é o que a física descreve diretamente.

Compreender a MCR inferindo que o nosso ambiente é essencialmente mental – uma


noção chamada “idealismo objetivo” – evita o solipsismo. No entanto, levanta um
problema aparentemente difícil: se o que realmente existe são estados volitivos
transpessoais, por que ver ou ouvir é tão diferente de desejar ou temer? Se as minhas
percepções representam estados subjacentes semelhantes ao desejo e ao medo, por que
vejo apenas formas e cores?

Se pudéssemos fornecer uma justificativa convincente para esta transição qualitativa,


seríamos capazes de aproveitar o idealismo objetivo para dar sentido ao MCR e aos
mais recentes resultados experimentais. Mas podemos fazer uma coisa dessas?
Acontece que sim, em abundância e em mais de uma maneira.

Nos últimos anos, o grupo de Donald Hoffman na Universidade da Califórnia, em


Irvine, mostrou que o nosso aparelho perceptivo não evoluiu para representar o mundo
com veracidade, tal como o mundo é em si mesmo; se víssemos o mundo como ele
realmente é, estaríamos condenados à rápida extinção (Hoffman, 2009; Hoffman e
Singh, 2012). Em vez disso, vemos o mundo de uma forma que favorece a nossa
sobrevivência, e não a precisão das nossas representações. Na analogia de Hoffman, o
conteúdo das percepções é como ícones no computador: um conjunto de metáforas
visuais que facilitam o trabalho ao ilustrar as propriedades salientes dos arquivos e
aplicativos como eles realmente são.

Abordando o problema de um ângulo diferente, Karl Friston e seus colaboradores


mostraram que, se um organismo quiser representar os estados do ambiente externo para
navegar adequadamente nesse ambiente, terá que fazê-lo de uma forma codificada e
inferencial ( Friston, Sengupta e Auletta, 2014). A razão é que se o organismo refletisse
os estados do ambiente externo nos seus próprios estados internos, ele não seria capaz
de manter a sua integridade estrutural: os seus estados internos tornar-se-iam demasiado
dispersos e o organismo dissolver-se-ia numa sopa entrópica. A codificação perceptiva é
necessária para que o organismo resista à entropia e, assim, permaneça vivo.

O que estas duas linhas de argumentação sugerem é que a tela da percepção se parece
muito mais com um painel de instrumentos do que com uma janela para o ambiente.
Fornece informações relevantes sobre o meio ambiente de forma indireta e codificada
que nos ajuda a sobreviver. As formas e cores que vemos, os sons que ouvimos, os
sabores que provamos são como indicadores: apresentam-nos, à primeira vista,
informações que se correlacionam – de uma forma que está fundamentalmente além da
nossa capacidade cognitiva – com estados mentais do ambiente.

Em vez de ter de sentir diretamente a miríade de estados mentais que nos rodeiam – o
que nos faria sentir tão sobrecarregados e desorientados como um telepata no meio de
uma multidão – nós habilmente os codificamos nos pixels da tela de percepção. Ou –
para usar outra metáfora – somos pilotos de avião que, em vez de olharmos pelo para-
brisas no meio de uma tempestade, voamos utilizando os instrumentos da aeronave.

A evolução proveu a cada um de nós um painel de indicadores que nos informa sobre o
meio ambiente em que vivemos. Mas não temos uma janela para ver diretamente o que
está lá fora; tudo o que temos são os indicadores. O erro que cometemos é o de tomar,
equivocadamente, os indicadores pelo meio ambiente.

A física modela e prevê o comportamento dos indicadores. Embora estejamos todos


imersos num ambiente comum, cada um de nós interage com ele de uma forma
diferente, a partir de uma perspectiva diferente. Portanto, cada um de nós reúne
informações diferentes sobre o meio ambiente e, por isso, os nossos respectivos
indicadores nem sempre coincidem. Mas isso não significa que não exista um ambiente
comum, mas sim que esse ambiente não é (estritamente) físico.

Enquanto insistirmos que o mundo, tal como ele o é, deve ter as formas e contornos das
imagens projetadas na tela da percepção, a mecânica quântica continuará a parecer
paradoxal. Enquanto acreditarmos que a teoria física modela o ambiente partilhado
subjacente às nossas percepções – em oposição a que modela as nossas próprias
percepções – a mecânica quântica continuará a permanecer incompreensível. Só há uma
saída razoável: considerar nossas percepções como um painel de indicadores que
fornece as informações mais importantes, mesmo que indiretamente, sobre o universo
mental que existe.

Pg. 253.
SÉTIMA PARTE
PERSPECTIVAS MAIS AMPLAS

Capítulo 29

Metafísica e persuasão
Uma perspectiva externa sobre o papel social da filosofia acadêmica

Estes aspirantes a filósofos chegaram a um ponto nas suas vidas em que as suas
intuições metafísicas idiossincráticas se tornaram mais ou menos congeladas. É
revelador que as ideias resultantes são muito mais satisfatórias para eles do que as
opiniões que herdaram da nossa cultura – como o materialismo “científico” e o
dualismo religioso – o que é alarmante: trata-se de pessoas leigas, mas razoáveis, que
acreditam sinceramente que podem fazer melhor sem a ajuda de ninguém do que se
curvando à corrente dominante. E, o que é ainda mais alarmante, que muitas vezes
conseguem.

Página 267.
A noção de concebibilidade – frequentemente utilizada hoje em dia na ontologia e na
filosofia da mente para estabelecer ou refutar a possibilidade metafísica – baseia-se no
conjunto particular de experiências subjetivas que um filósofo teve na sua vida.
Portanto, é ingénuo – talvez até pretensioso – assumir que a incapacidade pessoal de
alguém para conceber o que está implícito num argumento refuta categoricamente esse
argumento. Pois não apenas na filosofia continental, mas também na filosofia analítica,
as conclusões de alguém talvez revelem tanto sobre si mesmo quanto sobre o objeto de
sua investigação.

Página 286.
Capítulo 31.
O singnificado e o destino da cultura ocidental
Reflexões sobre a obra de Peter Kingsley e sua relação com a minha

31.1. A origem e o telos de uma cultura


31.2. Parmênides mal interpretado
31.3. A verdadeira lógica como encantamento
31.4. A metafísica de Parmênides
31.5. A razão não é a verdadeira lógica
31.6. O telos da cultura ocidental
31.7. O fracasso do ocidente
31.8. A cultura ocidental de facto e o valor do error
31.9. A fulga da prisão

Pg. 286.
31.10. Transcender a razão através do raciocínio

Acontece que, se levada às últimas consequências, a razão se debilita e se relativiza.


Através do raciocínio podemos demonstrar, de múltiplas formas redundantes, que a
razão não é absoluta: que, embora aplicável e útil em muitas situações, ela é relativa,
uma invenção conveniente, e não um fato da realidade gravado em pedra. Escrevi um
livro inteiro sobre isso, Meaning in Absurdity [O Sentido do Absurdo] (Kastrup, 2012).
 A razão não é absoluta.

A relatividade da razão não é uma ideia nova. O Ocidente vem refinando-a há muito
tempo, pelo menos desde o famoso trilema de Agripa*, também conhecido como
“trilema de Muenchhausen”. Acadêmicos contemporâneos como Graham Priest
desenvolveram as ideias associadas (2006). No século XX, Kurt Goedel demonstrou
que nenhum sistema axiomático – como, por exemplo, a aritmética – pode ser completo
e exato: ou não conseguem expressar todas as verdades sobre si mesmos, ou
contradizem-se (1931). E como a física – a nossa descrição do universo – se baseia em
sistemas axiomáticos, parece estabelecer-se uma limitação fundamental na capacidade
da razão de compreender a realidade de forma completa e precisa. Finalmente, as ideias
da mecânica quântica do início do século XX levaram a um longo e profundo debate
académico sobre os fundamentos da lógica (ver, por exemplo: Putnam, 1968; Dummett,
1976): é empírica? É inventada? De onde vem, afinal? Todos estes desenvolvimentos
ilustram até que ponto a razão pode ser levada a minar a si mesma, a partir de dentro,
sob condições estritamente racionais.
* O Trilema de Münchhausen, também conhecido como Trilema de Agripa
(referência ao cético grego de mesmo nome), é um termo usado pela filosofia
para ressaltar a alegada impossibilidade de se provar qualquer verdade garantida
mesmo nos campos da lógica e matemática. É o nome de um argumento da
teoria do conhecimento que remonta ao filósofo Hans Albert e, mais
tradicionalmente, segundo Diógenes Laércio, a Agripa o Cético.
O termo é uma ironia dirigida ao Barão de Münchhausen, que supostamente
escapou de um pântano em que se encontrava atolado ao puxar seu próprio
cabelo.
Trata-se de um trilema porque apresenta um impasse diante de três alternativas,
nenhuma das quais é considerada aceitável para a meta de demonstrar
fundamento filosófico para uma teoria:
 regressão infinita
 escolha arbitrária
 petição de princípio ou argumento de autoridade

Estudo tudo isso e muito mais em Meaning in Absurdity, minha primeira incursão na
verdadeira lógica. Convido os leitores interessados (e Kingsley) a lê-lo com atenção.
Aqui reproduzo um trecho:

É irónico que a ciência, através da busca consciente e consistente de uma visão


materialista e fortemente objetiva da natureza, conduza à própria evidência que
torna tal visão insustentável. Como veremos mais adiante, é um tema recorrente
em diferentes ramos da ciência e da filosofia que a busca por um sistema
racional de pensamento acaba levando à sua própria derrota. Há algo de perene
na ideia de que qualquer visão literal da natureza, se levada a cabo até às suas
últimas ramificações, acaba por destruir-se por dentro. É como se todo modelo
literal carregasse o germe da sua própria falsificação; como se a natureza
resistisse a ser limitada ou rotulada de outra forma. O que quer que digamos que
é, indica que não é; digamos o que não é, mostra o que poderia ser. Estes são
mecanismos integrados de crescimento e renovação na natureza que ignoramos
por nossa conta e risco. A natureza é tão fluida e elusiva quanto um pensamento.
Na verdade, ela é um pensamento: um pensamento composto e insondável em
que vivemos e para o qual contribuímos. O mundo é um “sonho” compartilhado.
Nele, como num sonho comum, o sonhador é ao mesmo tempo sujeito e objeto;
o observador e o observado [Kastrup, 2012, p. 44].

O caminho ocidental para transcender a razão passa pela busca da razão mais estrita e
consistente possível.

31.12 Conceitos versus experiência

Poderíamos dizer que compreender e abraçar o idealismo nada mais é do que um jogo
conceitual abstrato, que não é transformador. As conclusões conceituais não penetram
no corpo, mas giram em nossas cabeças como laços de pensamento; eles não mudam
muito a maneira como nos sentimos e nos comportamos. Somente a experiência direta é
transformadora, pois permeia todo o nosso ser. Para saber o que é a realidade, você
precisa experimentá-la diretamente, e não apenas compreendê-la com o intelecto. Caso
contrário, você ficará preso a meras descrições – como um aspirante a viajante que só
conhece os destinos a partir de informações contidas em folhetos – e nunca descobrirá
do que se trata. Nas palavras de Kingsley: “Enquanto não tivermos uma experiência
direta da realidade, estaremos (…) totalmente desamparados. Não há nada que
possamos entender.”

Estou de acordo. Somente a experiência direta é transformadora. No entanto, dada a


mentalidade da cultura ocidental, é preciso primeiro dar-se permissão intelectual para
viver a experiência, para estar aberto a ela de um ponto de vista racional, para ter
qualquer possibilidade de experimentá-la. É preciso estar conceitualmente preparado
para aceitar a experiência quando ela vier, porque, caso contrário, nossos mecanismos
de defesa racionais serão desligados imediata e instintivamente. É essencial que
primeiro quebremos as nossas defesas através de mêtis (uma espécie de sabedoria
engenhosa que pode ser usada para enganar, encantar ou persuadir) para, desta forma,
adaptar a experiência à meticulosa mente ocidental, isto é, ao raciocínio, porque o
intelecto é o guardião do coração. No ocidente, o que o intelecto rejeita como
impossível, absurdo, supersticioso ou extravagante fica na nossa cabeça e nunca é
assimilado.

É por isso que abraçar o idealismo como metafísica é um primeiro passo crucial no
ocidente. Devemos primeiro nos permitir intelectualmente vivenciar o que hoje é
considerado impossível ou absurdo, porque só então reconheceremos e aceitaremos
verdadeiramente a experiência quando ela vier.

31. 13 Além do idealismo

Na verdade, é plausível que, mesmo sem experiência direta, possamos compreender


algumas das características mais contra-intuitivas da realidade que Kingsley descreve.
Por exemplo: “A inteligência e o engano (…) estão ligados na estrutura do universo.
Tudo ao nosso redor é um truque refinado”; ou “a origem do universo é agora”; ou
“tudo é um, completo, imóvel”, etc. Se alguém se aderiu intelectualmente ao idealismo,
estas afirmações aparentemente contraditórias, até mesmo completamente absurdas,
podem tornar-se compreensíveis através de uma argumentação adequada; através dos
encantamentos adequados que gentilmente pegam o intelecto pela mão e o levam além
dos limites do seu domínio; uma espécie de métis muito mais sutil e delicado do que o
necessário para defender o próprio idealismo; Em suma, uma verdadeira lógica.

Os argumentos baseados na verdadeira lógica devem ultrapassar e transcender o limite


da racionalidade, ultrapassar o limiar do raciocínio estrito, explícito e inequívoco. Eles
são uma espécie de feitiço conceitual destinado a nos levar além do pensamento
conceitual. E é extraordinariamente difícil de as compor corretamente, porque o menor
erro derruba todo o edifício.

Por exemplo, é verdade que a realidade se constrói a partir da crença, da crença pura, se
não há crença não há nada. Mas se alguém fizer esta afirmação e não acrescentar mais
nada, estará condenado a ser mal compreendido e ignorado. Porque cairemos e
morreremos se pularmos de um prédio, mesmo que pensemos que podemos voar; o
mundo não parece condescender com nossas crenças. A questão aqui, contudo, não é
que a realidade seja constituída por crenças pessoais e egóicas. As crenças
fundamentais não são acessíveis através da inspeção; elas estão subjacentes não apenas
a uma pessoa, a uma espécie, a todos os seres vivos, mas a absolutamente tudo. Não são
as nossas crenças, mas as crenças que nos trazem à existência em primeiro lugar.

Outro exemplo: como diz Kingsley, o engano está presente na estrutura do universo.
Isto é inteiramente verdade, mas se ele ou eu não disséssemos mais nada, o intelecto dos
nossos leitores rejeitaria a afirmação óbvia de que o mundo físico é simplesmente
natural, apenas faz o que as leis naturais o obrigam a fazer; não é o produto do engano
de nenhum deus lá no céu. No entanto, a verdadeira questão é outra: uma vez que a
realidade se desenrola na consciência, e a consciência é também a sua própria
testemunha, a única maneira das coisas parecerem reais é a consciência enganar-se a si
mesma e acreditar que a sua própria imaginação é um fenómeno externo. A primeira
diretriz da consciência é enganar-se a si mesma, pois, se não o fizer, nada resta senão
um vazio. Esta é a questão.

Mas há muito mais. Este “mais” não é nada fácil de descrever em palavras para não
parecer absurdo e contraditório. Bem, no raciocínio sempre falta uma parte importante
da história; em alguns casos, até mesmo a história inteira.

Por exemplo, os meus leitores confrontaram-me por vezes com as implicações do


idealismo analítico*, uma das quais é que a consciência – a sua consciência – nunca
morre. Eles dizem: “As pessoas estão morrendo o tempo todo, como você pode negar
isso?” Ao que às vezes respondo, num esforço de mêtis: “Você já reparou que só
morrem os demais, nunca você?” Quando o leitor para para pensar sobre esta resposta,
inevitavelmente não chega a nenhuma conclusão significativa. O leitor poderia me
dizer, com toda a razão: “Claro, idiota, porque só consigo perceber que outras pessoas
morrem enquanto estou vivo!” Mas se por um momento a armadura conceptual do leitor
for apanhada desprevenida e a resposta escapar à mente racional, isso pode revelar uma
visão profunda, mas inefável; uma ideia impossível de expressar em palavras, mas
reconhecida como inequivocamente verdadeira. Não posso explicar isso aqui; Só posso
tocar suavemente o cristal que é a sua armadura conceitual e esperar que ele se quebre
para que você possa ver além dele.
* https://avidaintelectual.blogspot.com/2023/06/introducao-ao-idealismo-
analitico.html
4. Idealismo analítico
O fato de existir um mundo exterior à minha mente individual não significa que
esse mundo não seja mental. Se eu posso sensatamente concluir que você tem
uma mente individual distinta da minha mente individual, por que seria
insensato concluir que o mundo exterior também não possa ser mental? Ok, não
é uma mente individual como a sua e a minha, mas o mundo exterior poderia ser
composto de, digamos, "processos mentais transpessoais".
Segundo Kastrup e seu idealismo analítico, esses processos mentais
transpessoais se assemelham à condição de um grande e geral transtorno
dissociativo de identidade ("transtorno de personalidade") no qual nós, mentes
individuais, somos os alter egos desse ego geral (universo). A natureza, a
biologia, a vida, nada mais é do que a aparência desse grande transtorno
dissociativo do campo da subjetividade.
E como fica o cérebro? Ora, o cérebro, a partir dessa nova concepção metafísica,
e a exemplo de todo as demais "representações codificadas", é uma imagem dos
estados mentais, e não o gerador deles. Mas se o cérebro é uma imagem, então
ele é apenas uma imagem, ou seja, é necessariamente uma representação
limitada, circunscrita, da consciência. Quanto mais experiências conscientes,
mais atividade cerebral, mas só até determinado ponto, pois o cérebro é ele em si
um elemento limitante, um elemento da dissociação. E se é assim, então
deveríamos esperar que haja em determinado ponto uma relação inversamente
proporcional entre cérebro e mente: a partir desse ponto, quanto menos atividade
cerebral, menos dissociativa ("transtornada") a experiência mental e, portanto,
mais ampla, será tal experiência.
Este é o desafio enfrentado pelos autores que querem transcender a racionalidade, o
desafio de revelar um pouco mais da realidade do que encurralá-la em conceitos
explícitos e inequívocos. Não há dúvida de que isso requer uma espécie de
encantamento ou feitiço: palavras que não captam a mensagem dentro de si mesmas, de
forma explícita e razoável, mas que de alguma forma tocam em algo na mente do leitor
que precipita uma súbita torrente de intuições. Isto é o que o encantamento da
verdadeira lógica pode alcançar se for feito corretamente.

Eu tentei isso de forma impressa. É disso que trata meu livro More than Allegory
(Kastrup, 2016a). Apesar do subtítulo, Sobre Mito Religioso, Verdade e Crença, é um
livro sobre a realidade; sobre aspectos da realidade que não podem ser capturados pela
filosofia analítica. No livro, utilizo a verdadeira lógica para tentar transmitir ideias que
transcendem o raciocínio. E ainda assim, procuro apresentar essas ideias sendo gentil
com a racionalidade, ou seja, procuro ajudar o leitor a ir além do intelecto sem
representar uma ameaça ao intelecto, sem afugentar nosso raciocínio conceitual; pelo
contrário, transformando-o num aliado. Na verdade, tento fazer com que ideias
irracionais pareçam tão razoáveis quanto possível. Este é o mêtis do livro. (mêtis: uma
espécie de sabedoria engenhosa que pode ser usada para enganar, encantar ou
persuadir.)

Para se ter uma ideia de como enfrentei esse desafio, reproduzo abaixo um trecho do
livro em que trato a questão abordada nas seguintes afirmações de Kingsley: “A
inteligência e o engano (…) estão ligados na estrutura do universo”, “a origem do
universo é agora” e “tudo é um, completo, imóvel”.

Apesar da sua intangibilidade, toda a existência deve caber no momento


presente, pois o presente é tudo o que existe. Mesmo o passado e o futuro, como
mitos vividos no presente, existem agora. Assim, do quasi-nada do agora, de
alguma forma, tudo surge. (…) O momento presente é o ovo cósmico descrito
em muitos mitos religiosos. (…) Ele é uma singularidade da qual nasce toda a
existência e que lhe dá uma forma. Ela semeia nossas mentes com imagens
fugazes de consenso que então explodimos na volumosa massa do passado e do
futuro que projetamos. Essas projeções são como um grande big bang cognitivo
que se desenrola em nossas mentes. Eles estendem a intangibilidade da
singularidade à substancialidade dos acontecimentos no tempo. Mas, ao
contrário do Bib Bang teórico da física atual, o big bang cognitivo não é um
acontecimento isolado num passado distante. Acontece agora, agora, agora. Isso
só acontece agora. (…) A existência só parece substancial por causa das nossas
inferências, suposições, confabulações e expectativas intelectuais. O que
realmente temos diante de nossos olhos agora é incrivelmente evasivo. O
volume das nossas experiências – a maior parte da própria vida – é gerado pela
nossa criação interna de mitos. O volume das nossas experiências – a maior
parte da própria vida – é gerado pela nossa criação interna de mitos. Criamos
substância e continuidade a partir da pura intangibilidade. Transmutamos um
quase vazio na solidez da existência através de um truque baseado no engano
cognitivo e no qual desempenhamos tanto o papel do mágico como do público.
Na realidade, nada acontece realmente, uma vez que a esfera de ação do presente
não é suficientemente grande para que qualquer acontecimento se desenrole
objetivamente. Pensarmos na vida como uma série de eventos substanciais
pendurados em uma linha do tempo histórica é uma fantástica alucinação
cognitiva. As últimas palavras de Roger Ebert, iluminadas pela lucidez que só a
aproximação da morte pode trazer, parecem descrevê-lo da forma mais
adequada: “Tudo isto são enganos elaborados”. E quem você acha que é o
palhaço? (Kastrup, 2016a).

31.14. Olhe para frente

Para mim, o valor do trabalho de Kingsley tem sido exatamente o oposto daquilo que
ele tentou abertamente almejar: em vez de me convencer de que o ocidente está morto e
deve ser lamentado, renovei agora a fé de que não só está vivo, mas também é viável.
Talvez esta tenha sido sempre a intenção secreta de Kingsley com seu livro. Bom, nada
motiva mais pessoas como eu do que enfrentar uma atitude contrária; nada mobiliza
mais energia para a ação do que ouvir que os nossos esforços são inúteis.

Nós, os autores, somos escravos dos nossos demônios – que incitam os espíritos
interiores com sua autonomia e agenda própria -, o que é simbolizado por uma corrente
circular em meu brasão. Meu próprio demônio é particularmente cruel, então eu não
poderia parar meu trabalho, mesmo que Kingsley ou qualquer outra pessoa tivesse me
convencido, do ponto de vista intelectual, de que não tinha sentido. Não consigo parar.
Mas o mais importante é que o fato de meu demônio ter mais energia do que nunca
depois de ler Kingsley me sugere que ainda há esperança. Talvez o seu próprio demónio
o tenha enganado (os demónios são mestres em tais truques): ao anunciar a morte da
cultura ocidental, Kingsley pode tê-la revitalizado inadvertidamente, sugerindo a mim e
a muitos outros que redobrássemos os nossos esforços para provar que este não é o fim,
que ainda há muito a fazer. Talvez esse fosse o plano do demônio de Kingsley o tempo
todo...

Meu profundo envolvimento com os pensamentos de Kingsley me deu maior clareza


sobre o papel que meus vários livros desempenham num contexto histórico e cultural
mais amplo. Alguns deles – Espiritualidade Racionalista (2011a), Porque o
materialismo é uma mentira? (2014), Brief Peeks Beyond (2015) e The Idea of the
World (2019) – cumprem integralmente as premissas e condições do pensamento
racional, do raciocínio estrito, de forma a convencer o leitor de que o idealismo é a
interpretação mais razoável da realidade. Outros – Dreamed up Reality (2011b),
Meaning in Absurdity (2012) e More so Allegory (2016a) – são exemplos da verdadeira
lógica: procuram usar o raciocínio para transcendê-lo, para ajudar a vislumbrar certas
paisagens mentais ou ideias que não podem ser capturadas com palavras explícitas e
inequívocas.

O ocidente está vivo, parece perdido. Eu sei disso porque meu demônio sabe disso. Eu
próprio incorporo a quintessência do racionalismo ocidental: possuo o mais alto grau
académico, tanto em ciências como em humanidades, de duas das melhores
universidades da Europa; Fui criado e educado no pensamento ocidental; Trabalhei em
algumas das mais renomadas instituições científicas ocidentais, ganhei a vida no mundo
cruel dos negócios ocidentais de alta tecnologia; As correntes vitais dos meus
antepassados – os meus próprios mortos – do norte, do sul e do oeste da Europa,
convergem no rio das minhas veias e da minha vida. E, no entanto, apesar de tudo isso,
reconheço a origem de Kingsley (ou pelo menos acho que sim); não estou perdido (ou
pelo menos espero que não). Portanto, se me tomar como exemplo representativo – é
tudo o que posso fazer, uma vez que não tenho acesso à vida interior de outras pessoas –
o Ocidente ainda segue sendo, logo abaixo da superfície, muito vital. Temos um futuro
e um destino a cumprir.

Vamos avançar.

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