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Responsabilidade Profissional: Cinco Estrelas e Bandeira Azul. Dos Conceitos A Um Relanceio Ao Contexto de Enfermagem Perioperatória

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Responsabilidade Profissional: cinco estrelas e bandeira azul.

Dos conceitos a um relanceio ao contexto de enfermagem


perioperatória

1
Lucília Nunes

Este2 é um assunto acerca do qual se poderiam escrever muitos livros e,


decerto, ainda ficariam coisas importantes por abordar. Por isso, o
presente artigo só pode ter a pretensão de apontar e sugerir alguns
aspectos, como contributos ao pensamento ou subsídios ao caminho. Está
estruturado em três blocos articulados: o primeiro, que se refere à
conceptualização da responsabilidade, o segundo que se debruça sobre a
responsabilidade profissional do enfermeiro e, o terceiro, reportando ao
contexto específico da enfermagem perioperatória.

1 – DA RESPONSABILIDADE

§ Atentando à etimologia, responsabilidade deriva do latim re-spondere,


comprometer-se (spondere) perante alguém, e é usado como “a capacidade-e-
obrigação de responder ou prestar contas pelos próprios actos e seus efeitos,
aceitando as consequências”(3), mas, conforme os contextos - jurídico, ético,
psicológico, sociológico, religioso... - pode adoptar diferentes significações. Inclui
assim, e simultaneamente, as ideias de uma capacidade - a responsabilidade é
função do nível de discernimento de que se pode fazer prova – e de uma
obrigação - a de responder pelos actos praticados e pelos compromissos

1
Professora Coordenadora na Escola Superior de Saúde, Instituto Politécnico de Setúbal. Enfermeira
Especialista em Saúde Mental e Psiquiátrica. Mestre em Ciências de Enfermagem e em História Cultural
e Política. Licenciada e doutorada em Filosofia.
2
A escolha dos termos do título: cinco estrelas para reportar à excelência (utilizado no artigo «Cinco
estrelas»: acerca das competências morais no exercício de enfermagem. Revista Nursing, Novembro
2002) e a bandeira azul como símbolo de qualidade, que distingue o esforço de várias entidades no
sentido da melhoria do ambiente, da informação e da segurança dos cidadãos.
3
Cf. CABRAL, Roque – «Responsabilidade», in Logos, vol. 4: 724.

1
assumidos. Quando se evoca a responsabilidade, a ideia que surge é a de que se
pretende reconhecer como responsável aquele que é o autor dos seus actos – ou
seja, um acto pode ser atribuído a alguém. Mas a responsabilidade é também a
que se exerce no compromisso assumido ou perante uma missão que nos é
atribuída; quando a obrigação é de cumprir certos deveres ou de assumir certos
encargos ou compromissos; portanto, quando se trata de responder por algo que
nos foi confiada ou por alguém que temos ao nosso cuidado. A forma desta ideia,
na deontologia de enfermagem, é concretizada no dever de «responsabilizar-se
pelas decisões que toma e pelos actos que pratica ou delega»4.

§ Seguimos5 o pensamento de Ricœur quando afirma que a responsabilidade sofre


de ambiguidade e a apresenta em dois sentidos: no mais débil, diz-se
responsável o que é o autor dos seus actos (aqui recomenda utilizar o termo
imputação) e no, sentido mais forte, a “verdadeira responsabilidade não é senão
a que se exerce a respeito de alguém ou alguma coisa frágil, que nos será
confiada”6. Neste sentido, é preciso que alguma coisa ou alguém me seja
confiado, por Outro, para que eu possa ser tido por responsável. “A ideia de
“tomar a cargo” é absolutamente central: algo ou alguém “tem de ser posto à
minha guarda, sob a minha protecção”7. Trata-se de um “jogo entre estrutura
pessoal e alteridade dado que é sempre por um Outro que sou responsável, um
Outro que, em acréscimo, poderá eventualmente pedir-me contas”8.

§ Ser responsável ultrapassa, desta forma, a capacidade de designar a si mesmo


como o «verdadeiro autor» de uma acção cometida ou de assumir a acção
realizada – delineia-se “como ter a cargo uma certa zona de eficácia, onde a
fidelidade à palavra dada é posta à prova”9. Equacionar a eficácia aponta para os
resultados tal como a eficiência resulta do processo no cumprimento da tarefa.

4
Estatuto da Ordem dos Enfermeiros (EOE), artº 79, alínea b).
5
Cf. Justiça, Poder e Responsabilidade: articulação e mediações nos cuidados de enfermagem. Loures:
Lusociência, 2005. Note-se que esta análise de conceito se baseia exactamente neste livro, Parte I,
capítulo 3, Responsabilidade.
6
AESCHLIMANN, J-C – Entretien. In Éthique et responsabilité. Paul Ricœur, p.25.
7
Idem, p.25.
8
Idem, p.25.
9
Ibid, p.31.

2
Ter a seu cargo “uma zona de eficácia”, de certa forma espacializa a missão,
fazendo-nos reencontrar a questão de delimitar, estabelecer fronteiras, dos
limites, e igualmente dos resultados. A noção de compromisso, retomada a partir
de uma ética da promessa10, filia-se à palavra dada e ao empenhar-se a si mesmo
por um Outro, que se confia11 ao cuidado, pelo qual se é responsável. Um Outro,
com implícita vulnerabilidade ou incapacidade, um Outro que pode pedir(-me)
contas, um Outro em relação ao qual me comprometi.

§ Será elementar a afirmação de que a vida em sociedade pressupõe um complexo


de relações, algumas das quais juridicamente ordenadas. A figura e a noção de
responsabilidade assumiu contornos reguladores, assentes no princípio de reparar
o prejuízo causado, pois quando se fere um interesse protegido torna-se
imperioso o seu ressarcimento por parte de quem o lesou. Se a natureza do
ressarcimento é patrimonial, configura-se a responsabilidade civil, duplamente
baseada em não lesar o próximo e em reparar o dano causado12. A
responsabilidade civil supõe necessariamente este dever de reparação, por razões
de pleno interesse individual e social - se um determinado comportamento de
uma pessoa (agente) contribui para o prejuízo sofrido por outra (vítima), não é
qualquer acto humano (como, por exemplo, pedir desculpa) que é considerado
apto a gerar o efeito ressarciatório. Se somos responsáveis pelas consequências
dos nossos actos, a noção de imputação leva-nos à de retribuição, quer enquanto
obrigação de reparar o mal, quer a de cumprir uma pena, e tem grande
relevância no plano jurídico, quer no direito penal (uma vez que é pela imputação
da falta ao seu autor que se chega à punição) quer no direito civil, embora aqui
ressalte a obrigação de reparar o mal – a indemnização. Em direito civil a
responsabilidade define-se pela obrigação de reparar o dano que se causou por
um erro ou falta cometida nos casos definidos pela lei e, em direito penal, a
responsabilidade é definida pela obrigação de suportar o castigo. Também no

10
Ibid., p.31.
11
Na relação que o enfermeiro estabelece com o seu cliente, a confiança se estabelece a entrega e a
aceitação de encargo (por isso, confiado), pelo que estaremos na esfera da responsabilidade fiduciária,
exactamente assente sobre os vínculos que a confiança entretece. E esta e uma das bases da nossa
esfera profissional.
12
Cf. RANGEL, Rui Manuel de Freitas - A reparação judicial dos danos na responsabilidade civil : um olhar
sobre a jurisprudência. Coimbra: Almedina, 2002.

3
plano disciplinar está subjacente a identificação da falta e da consequente
punição, deixando de igual modo para o plano do direito civil a reparação.

§ Considerar a questão dos actos ilícitos reconduz-nos à imputabilidade face ao que


é contrário ao direito (com salvaguarda, da objecção de consciência) sendo
possível que um agente viole uma norma, tenha culpa e possa fazê-lo com dolo
ou negligência. Assim, o dolo e a negligência, enquanto modalidades da culpa
para o Direito civil, diferem porque, no primeiro, o acto é praticado com a
intenção de produzir um resultado danoso e, na segunda, existe falta de cuidado
sem intenção, por exemplo, por não se prever e, em consequência, não se tomar
as devidas precauções. A partir da figura da culpa evidenciam-se diversas raízes
para a acção negligente, de que decorre o incumprimento ou o cumprimento
defeituoso da obrigação: a) a imprudência, quando se procede de uma forma
precipitada ou sem prever os resultados, portanto, inadvertidamente; b) a
omissão, no sentido da falta de algo cuja realização teria evitado o dano e c) a
imperícia, quando existe inaptidão, inabilidade ou inexperiência para a prática de
determinado acto (do que resulta fazer mal feito ou fazer errado).
Apesar de podermos entender próximas estas categorias, consideramos que uma
acção faltosa ou não conforme ao dever pode surgir por uma delas ou mais do
que uma, em simultâneo: por exemplo, é possível associar a imperícia a uma
acção imprudente, pois a primeira se reporta à incompetência no processo e a
segunda à não-previsão de resultado.

§ Os requisitos da responsabilidade, na perspectiva jurídica são que: a) exista


uma conduta contrária à ordem (civil, criminal ou deontológica) constituída em
facto; b) uma violação da obrigação contratual ou a violação de um direito de
outrem, algo que não foi o que deveria ter sido; c) a imputação do acto ao
agente, considerado seu verdadeiro autor; d) o dano ou prejuízo causado; e) o
nexo de causalidade entre a conduta e o dano.
Assim, a configuração da responsabilidade exige três elementos objectivos, a
saber, um fato ilícito, um prejuízo causado e um nexo causal entre os dois. A
questão do nexo causal é importante, estabelecendo a relação entre o resultado
e a acção e permitindo afirmar que esta acção produziu aquele resultado. O dano,

4
que engloba o mal ou ofensa que uma pessoa cause a outra, aparece como
resultado de uma causa ou cadeia causal, tendo de existir um vínculo (o nexo
causal) entre ambas. Assim, para que seja exigível a responsabilidade civil não
basta que alguém tenha agido com culpa, nem que outro alguém tenha sofrido
um prejuízo; deve reunir-se a existência de um vínculo de causa-efeito entre a
culpa e o dano, isto é, considera-se necessário que o dano sofrido seja a
consequência da culpa cometida13. Do ponto de vista jurídico, o ponto nuclear da
culpa parece ser a previsibilidade, pois esta capacidade de previsão dos eventos
passíveis de ocorrerem, segundo as regras técnicas ou as da experiência,
condiciona a ilicitude (costuma ser definida como a censurabilidade) da acção
culposa.

2 – DA RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL DO ENFERMEIRO

§ Data de 21 de Abril de 1998 a publicação do documento legislativo que criou a


Ordem dos Enfermeiros, em cujo Preâmbulo se declara que “as modificações
operadas nas competências exigidas aos enfermeiros e, por isso mesmo, no seu
nível de formação académica e profissional têm vindo a traduzir-se no
desenvolvimento de uma prática profissional cada vez mais complexa,
diferenciada e exigente”14. Esta noção de desenvolvimento de um determinado
tipo de praxis, descrita como complexa, diferenciada e exigente, foi permitindo
assumir elevadas responsabilidades nas áreas da concepção, organização e
prestação dos cuidados de saúde proporcionados à população. A relevância dos
enfermeiros é enquadrada no “funcionamento do sistema de saúde e na garantia
do acesso da população a cuidados de saúde de qualidade, em especial em
cuidados de enfermagem”. Nos Estatutos15, afirma-se o desígnio fundamental da
Ordem: “promover a defesa da qualidade dos cuidados de enfermagem prestados
à população, bem como o desenvolvimento, a regulamentação e o controlo do
exercício da profissão de enfermeiro, assegurando a observância das regras de

13
MAZEAUD; TUNC - Tratado Teorico y Práctico de Ia Responsabilidade Civil, Delictual y Contractual.
Buenos Aires, EJEA, 1977, t. ll, v. 2, p.1.
14
Preâmbulo do Decreto-lei nº 104/98 de 21 de Abril.
15
Cf. Decreto-lei nº 104/98 de 21 de Abril (Estatutos da Ordem dos Enfermeiros), Artigo 3º, nº 1.

5
ética e deontologia profissional”. Assim, a profissão de enfermeiro é regulada, no
modelo de auto-regulação.

§ Entende-se16 a auto-regulação como uma garantia da protecção do interesse


público e do bem comum, tanto (1) no accesso à prática profissional, como (2) na
monitorização e desenvolvimento da prática e (3) na regulamentação e controle
do exercício. Mais entendemos que a auto-regulação permite o desenvolvimento
de ganhos em saúde, é parte integrante do desenvolvimento da qualidade, guia o
planeamento dos cuidados, assegura uma gestão racional e adequada às
necessidades dos cidadãos em cuidados de enfermagem, protege valores éticos e
deveres deontológicos, clarifica a missão e o contributo para a saúde das pessoas.

§ É essencial conhecer e respeitar as normas que regem a profissão, mais


concretamente, o Regulamento do Exercício Profissional do Enfermeiro (REPE,
1996) e o Código Deontológico (publicado com o Estatuto da Ordem, 1998) -
constituem a moldura reguladora da profissão. Decorrentes da existência da
Ordem, hoje, inclui-se o Regulamento do Exercício do Direito à Objecção de
Consciência (REDOC, 2000), o enquadramento conceptual e Padrões de Qualidade
dos cuidados de Enfermagem (2003), bem como as competências do enfermeiro
de cuidados gerais (2003) e as orientações emanadas pela Ordem (como a da não
substituição de enfermeiros por não enfermeiros ou das atribuições da enfermeira
circulante).

§ É reconhecido à Ordem o poder de instaurar procedimento disciplinar, quando


esteja em causa a dignidade ou o prestígio da profissão17, ou a saúde dos
indivíduos, ou sejam susceptíveis de violar as normas legais do exercício da
profissão18 - assim se entende que quaisquer pessoas, singulares ou colectivas,
possam dar conhecimento à Ordem da prática, por enfermeiros nela inscritos, de
factos susceptíveis de constituir infracção disciplinar19. As diferentes atribuições

16
NUNES, Lucília – Da regulação profissional ou a missão das folhas. Revista Enfermagem em Foco, 2007.
17
EOE, alínea 1), 1/art.º 76.
18
EOE, 3/ art.º. 53.
19
EOE, 2/art.º 55. Considera-se infracção disciplinar “toda a acção ou omissão que viole, dolosa ou
negligentemente, os deveres” (Regimento Disciplinar, art.º 5º)

6
da Ordem são concretizadas através das competências dos diversos órgãos, no
respeito pela separação de poderes que a lei exige – assim, o poder disciplinar é
exercido pelo Conselho Jurisdicional20.

§ Sabemos hoje que os percursos deontológicos foram consagrando uma


codificação convencional, com feição imperativa, na lógica de que um dos traços
da autonomia profissional advém exactamente de se estabelecer a própria
disciplina. Existe a consciencialização da utilidade social da profissão (chamamos-
lhe, mais frequentemente, mandato social) e dos inerentes deveres
profissionais. Assume-se que, ao inscrever-se na Ordem, isto é, ao solicitar
autorização para o exercício profissional, o enfermeiro assume o dever de
“responsabilizar-se pelas decisões que toma e pelos actos que pratica ou
delega”21 e a partir daqui, reflecte-se sobre o próprio conceito de
responsabilidade, sobre a responsabilidade pelos actos praticados e delegados
bem como sobre a responsabilidade pelos outros, especificamente por aqueles
que se confiam aos nossos cuidados. Releve-se que o articulado dos nossos
deveres constitui também e simultâneamente, porque fomos nós que decidimos
acerca deles, a marca da nossa autonomia.

§ Ser responsável significa responder pelos nossos actos - pelas decisões, que os
antecedem, e pelas consequências, que se sucedem. Todavia, a partir do
momento em que a responsabilidade é assumida como função, também é
necessário responder pelos actos de outros, pelos quais somos responsáveis, em
virtude de pertencerem a um território sobre o qual exercemos poder - é o caso
do responsável hierárquico. Por isso, é sempre útil (para não dizer indispensável)
fixar as responsabilidade á-priori, esclarecê-las o melhor possível para que cada

20
EOE, artº 54. Sendo o poder disciplinar exercido relativamente a todos os membros da Ordem, reforce-
se que só os membros são enfermeiros e “estão sujeitos à jurisdição disciplinar da Ordem” (EOE, 1/ do
art.º 53), podendo a responsabilidade disciplinar perante a Ordem coexistir com quaisquer outras
previstas por lei. A responsabilidade disciplinar pode prescrever de duas formas: por decorrerem “três
anos após a finalização dos actos ou omissões que a constituíram” (EOE, artº 56, nº 1), se não houve
lugar a quaisquer diligências visando o respectivo apuramento ou se, tendo sido apresentada queixa à
Ordem, “não for desencadeado procedimento disciplinar ou de inquérito no prazo de quatro meses”
(EOE, artº 56, nº 2). Mesmo que o membro inscrito solicite o cancelamento da inscrição, tal não fará
“cessar a responsabilidade disciplinar por infracções anteriormente praticadas” (EOE, artº 56, nº3).
21
EOE, Artigo 79, alínea b).

7
um possa formular as suas obrigações num quadro definido. É por isto, também,
que é importante a descrição de funções atribuídas, do que cabe a cada um. O
encadeamento da responsabilidade é a base de toda a hierarquia, muito mais que
o ajustamento dos poderes.

§ Existem intervenções de enfermagem autónomas e interdependentes22.


Partindo do REPE, julgo que o que mais as distingue é a figura de Quem
prescreve a intervenção (o prescritor, diria) – ou se trata do enfermeiro, por sua
iniciativa e única responsabilidade, ou do enfermeiro age na sequência de outro
profissional, de planos ou de orientações previamente definidas, em que ajuiza e
realiza a execução técnica, de acordo com o juízo que realizou, para aquele caso
concreto. E é responsável pela sua acção. Usualmente, considero que a
expressão «está prescrito, está prescrito» é um bom exemplo dos tempos em
que o enfermeiro considerava ter acções dependentes – um outro profissional
prescreve e assume tudo, incluindo o que designava que fosse feito – e não é
assim: o enfermeiro não é o profissional que age sob a responsabilidade de
outrem. Intervenções interdependentes não significam que o enfermeiro não
precisa de assumir os actos que pratica, mesmo que realizados na sequência da
iniciativa de outro profissional. Por isso, cabe ao enfermeiro garantir que os seus
actos visam sempre o interesse do doente, no respeito pela deontologia e no
quadro legal em vigor.

§ A responsabilidade é sempre individual. Ou seja, e apesar de falarmos muito em


equipa e trabalho de equipa, não existe um conceito reconhecido de
responsabilidade em equipa, nas esferas da responsabilidade disciplinar, civil e
penal. Notemos, porém, o aspecto particular da responsabilidade das instituições

22
Conforme Artigo 9.º do REPE - Intervenções dos enfermeiros – “1 - As intervenções dos enfermeiros
são autónomas e interdependentes. 2 - Consideram-se autónomas as acções realizadas pelos
enfermeiros, sob sua única e exclusiva iniciativa e responsabilidade, de acordo com as respectivas
qualificações profissionais, seja na prestação de cuidados, na gestão, no ensino, na formação ou na
assessoria, com os contributos na investigação em enfermagem. 3 - Consideram-se interdependentes as
acções realizadas pelos enfermeiros de acordo com as respectivas qualificações profissionais, em
conjunto com outros técnicos, para atingir um objectivo comum, decorrentes de planos de acção
previamente definidos pelas equipas multidisciplinares em que estão integrados e das prescrições ou
orientações previamente formalizadas.” (Decreto-lei n.º 161/96, de 4 de Setembro, alterado pelo
Decreto-lei n.º 104/98, de 21 de Abril)

8
e, sobretudo, no serviço público – pois que têm uma missão e uma identidade
de instituição pública. E o dever da instituição é responder perante o público
pela missão que tem e pelos modos como gere os meios e recursos de que
dispõe.

3 – DE ENFERMAGEM PERIOPERATÓRIA: O TEATRO DE OPERAÇÕES

§ Aparentemente, o Bloco Operatório pode ser definido como “o local funcional


onde um número grande de indivíduos, representando três grupos diferentes –
enfermagem, anestesia e cirurgia – presta cuidados a um todo, holístico e
central: o doente. Essas três disciplinas teêm diferentes formações, objectivos,
incentivos e culturas. O ambiente ideal do Bloco Operatório realçaria as
interacções colegiais e recompensaria eficiência.”23.

§ Há quem considere, indevida e inadequadamente, que o paradigma do “capitão


do navio”24 ainda se aplica, hoje, aos enfermeiros em Bloco Operatório - com esta
expressão estou a usar a ideia de que o cirurgião seria o responsável do que
acontece na sala, e o enfermeiro não. Notaria que a ideia do "capitão do navio"
não tem a força do passado, quando se considerava que o cirurgião era o
responsável técnico e legal pelo trabalho de toda a equipa “sob o seu comando”.
Aliás, esta ideia encontra-se ligada à análise sociológica da instituição totalitária25,

23
“The operating room is the functional location where a large group of individuals representing three
diverse groups—nursing, anesthesia, and surgery—deliver care to the common, unifying, and key
individual: the patient. These three disciplines have disparate training, goals, incentives, and cultures.
The ideal operating room environment would enhance collegial interactions and reward efficiency.
Unfortunately, this is rarely obtained or appreciated.” Robert Udelsman, The Operating Room: War
Results in Casualties. http://www.anesthesia-analgesia.org/cgi/content/full/97/4/936?ck=nck
(28.06.2007, 22h)
24
“Captain of the Ship” or Nusing Liability? Clinical Information, Hotline, Vol. 7, Fev. 2002.
http://www.valleylab.com/education/hotline/pdfs/hotline_0202.pdf (28.06.2007, 22h15).
25
Um dos sinais, seria, por exemplo, as barreiras que se levantam às trocas ou transacções com o
exterior, tanto ao nível das entradas como das saídas. Essas barreiras podem ser físicas (sob a forma de
muros altos, arame farpado, janelas gradeadas, guichets ou balcões de atendimento, biombos, pessoal e
sistemas mais ou menos sofisticados de vigilância e segurança, áreas de acesso interditas ao público,
etc.), culturais ou simbólicas (regulamentos, valores, práticas, ritos, vestuário, normas de acesso,
sistemas de sinalização). Servem fundamentalmente para demarcar as fronteiras do sistema de acção
interno e definir a identidade organizacional. Cf. Graça, L. - Evolução do Sistema Hospitalar: uma
Perspectiva Sociológica. 2000. http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos92.html (28.06.2007, 23h).

9
e o hospital foi claramente, durante séculos, uma instituição totalitária26, com
maior ou menor conivência dos profissionais de saúde. Não é por acaso que ainda
hoje se continua a falar tanto da humanização do hospital, o que não deixa de ser
sintomático da persistência histórica de certos traços ‘totalitários’ da sua
organização e funcionamento27 - “Pode-se mesmo dizer que o hospital de hoje
conserva certos traços do sistema tradicional e do sistema profissional liberal.”28
Mas, reforce-se, hoje as coisas não são assim. Não obstante o cirurgião ser o
responsável técnico pelo tratamento dos doentes, pela cirurgia, cada profissional
é responsável pelo exercício do seu trabalho. Muito mais tratando-se de
profissões auto-reguladas, como é o caso de enfermagem e da medicina. E tem
igual dignidade, bem como o dever de “trabalhar em articulação e
29
complementaridade” , para o objectivo comum.

§ No Bloco Operatório, as diferentes actividades são reagrupadas segundo um


plano concebido expressamente para responder ao fim ou missão do próprio
Bloco. Por exemplo, as relações entre as pessoas, numa sala, organizam-se em
torno de um plano, tendo cada interveniente a sua esfera de acção. Quem
assume o quê? depende do cargo e do conteúdo funcional. Como? Em ligação ao
processo de gestão de equipas e actividades. Quando? De acordo com os tempos
do processo. Quem assume os actos que realiza? Cada profissional. Os
resultados? Cada profissional, enquanto consequência das suas acções, ou a
organização, no que tiver relação com os sistemas e as decisões de
administração. E se bem que, em termos operativos, a acção seja decidida e

26
Em síntese, as características, , da instituição totalitária são: 1) as pessoas estão colocadas sob uma
única e mesma autoridade (são exemplos o director do hospital psiquiátrico, o capitão do navio da
marinha mercante, o comandante do aquartelamento militar, a madre superiora do convento, o reitor do
seminário, o director do estabelecimento prisional); 2) cada fase da actividade quotidiana desenrola-se,
para cada indivíduo, numa relação de grande promiscuidade com um elevado número de outros
indivíduos, submetidos às mesmas regras, procedimentos, deveres e obrigações; 3) todos os períodos
de actividade são regulados segundo um programa estrito, isto é, todas as tarefas estão "encadeadas",
obedecem a um plano imposto "de cima" por um sistema explícito de regulamentos; 4) as diferentes
actividades assim impostas são reagrupadas segundo um plano único e racional, concebido
expressamente para responder ao fim ou missão oficial da instituição. O traço essencial destas
instituições é a aplicação ao indivíduo dum tratamento colectivo, de acordo com um sistema burocrático.
Vidé GRAÇA, Luis, Idem, http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos85.html (29.06.2007, 21h)
27
WALTON, E. - L'hôpital et le modèle théorique de l'institution totalitaire. Gestions Hospitalières, 276
(1998) 341-345.
28
GRAÇA, Luis. http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos92.html (29.06.2007, 21h30).
29
CF. Deveres para com outras profissões, EOE, Artigo 91.

10
construída nesse especial teatro de operações contando com os factores de
incerteza e de complexidade, parece certo que cada um sabe do seu papel e da
sua área de competência. De onde, a importância do trabalho em equipa
multiprofissional.

§ A equipa, conceito que mereceria, por si só, múltiplas análises, “é um grupo


organizado ligado por uma tarefa comum definida pela instituição. Trata-se,
assim, de um conjunto intersubjetivo em estado de tensão entre três pólos: o
30
grupo, a instituição e a organização.”
Sigamos esta ideia. Por um lado, a equipa (pólo de agregação e de investimento
dos profissionais, campo intersubjectivo, sustentado por vínculos interpessoais e
pela crença de ter uma entidade - fantásmica, diria Decobert - própria) inscreve-
se num enquadramento institucional (que define uma missão, representações e
objectivos comuns, coloca limites e regras, modelando uma forma de mentalidade
e legitimando certos tipos de práticas). Ademais, os modelos instituídos
transparecem e tornam-se enunciados quase indiscutíveis com a expressão «aqui,
fazemos desta forma», de tal modo que uma parte da prática e as respectivas
representações não podem ser verdadeiramente pensadas ou postas em causa.
Além do pólo da equipa e do pólo institucional, insere-se o terceiro pólo, o
organizacional, que confere a cada um dos membros da equipa o seu lugar
próprio, determinados papéis e vínculos de trabalho, pois é o que fixa os
dispositivos de continuidade das práticas. Três pólos, como afirma Pinel31, sempre
em tensão, que se constituem como eixos em que um pode predominar sobre os
outros, fazendo aparecer traços32 diferentes.

§ A enfermagem perioperatória constitui-se como um processo sistemático, com


uma série de passos interligados, seguindo um roteiro para assegurar cuidados de

30
Cf. PINEL, Jean-Pierre - Ensinar e educar em instituições especializadas: abordagem clínica dos vínculos
de equipe. http://pepsic.bvs-psi.org.br/pdf/epc/v23n4/v23n4a08.pdf (30.06.2007, 23h)
31
Cf. PINEL, idem.
32
Por exemplo, se o pólo do grupo predomina, a equipa é mais coesa, e os profissionais tendem a
libertar-se dos limites e das regras da instituição. Se o pólo institucional predomina, o conjunto tende a
um funcionamento ideológico de fechamento e, algumas vezes, um fanatismo de contorno sectário.
Quando o pólo organizacional predomina, a característica mais evidente é do desvio burocrático dos
papéis. Certas características institucionais aumentam os riscos de desvinculação profissional, ao
constituirem ou preferirem grupos ou profissionais com percursos aleatórios.

11
de enfermagem, adequados e individualizados, desde o período pré ao pós
operatório. O período pré-operatório inicia-se no momento em que o cliente é
informado da necessidade do procedimento cirúrgico e as acções de enfermagem
neste período visam objectivar as condições físicas e psicológicas mais adequadas
- a figura paradigmática deste período é a visita pré-operatória tendo, entre
outros objectivos, a finalidade de esclarecer dúvidas, com vista a evitar enganos
ou atrasos e a reduzir a ansiedade dos clientes. A base para a identificação dos
diagnósticos de enfermagem perioperatória centra-se nesta visita pré-operatória
realizada pelo enfermeiro. Todo o percurso da pessoa, desde a entrada à saída do
Bloco, é acompanhado pelos enfermeiros, e, hoje, realiza-se em alguns locais a
visita pós-operatória na lógica de avaliar o realizado e recolher elementos que
permitam melhorar a qualidade dos cuidados e da intervenção.

§ Dentro da sala, e de acordo com as recomendações33, no que se refere à dotação


adequada de pessoal de enfermagem identificam-se classicamente três figuras: o
enfermeiro de anestesia, o enfermeiro instrumentista e o enfermeiro circulante.
Este é um aspecto acerca do qual não sobram dúvidas: a dotação de pessoal é
relevante para assegurar qualitativamente os cuidados e os ambientes favoráveis
à prática34 são uma necessidade incontestável para a persecussão dos múltiplos
objectivos das organizações de saúde e para a satisfação dos cidadãos.

§ Considerem-se as orientações da Ordem dos Enfermeiros face às


atribuições do enfermeiro circulante - transcrevemos alguns excertos do
documento:

33
Orientações da Ordem (www.ordemenfermeiros.pt/images/contents/issues/13_sup13.pdf) e da AESOP,
nesta matéria.
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Expressão que foi lema do Dia Internacional do Enfermeiro, ICN, 2007 -
www.ordemenfermeiros.pt/images/contents/issues/13_sup13.pdf. De acordo com o ICN, ambientes
desfavoráveis à prática afastam os enfermeiros, limitam o seu desempenho e prejudicam a qualidade
dos cuidados e, pelo contrário, "ambientes favoráveis à prática" promovem a excelência dos cuidados,
captam e retêm enfermeiros (daí, a designação de «hospitais-imân»). Na análise do ICN à crise na força
de trabalho na enfermagem - Global Nursing Review Initiative - os ambientes favoráveis à prática e o
desempenho organizacional emergiram, em conjunto, como uma das propostas globais para a acção. Ao
examinar os ambientes favoráveis à prática emergem duas considerações: a identidade profissional dos
enfermeiros e as características dos próprios ambientes. Os enfermeiros são profissionais que perfilham
uma filosofia holística de cuidados, característica esta que modela as suas expectativas e torna os
ambientes de trabalho desafiadores.

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1 – o bloco operatório é uma unidade de prestação de cuidados de saúde onde, pela
especificidade da natureza dos cuidados aí desenvolvidos, se concentram riscos de
variada ordem, tornando a manutenção e segurança do ambiente cirúrgico em funções
centrais desenvolvidas pelos enfermeiros em contexto peri-operatório;
2 – por manutenção e segurança do ambiente cirúrgico entende-se o conjunto de
intervenções que se tornam a garantia da observância de todas as medidas ambientais
e de segurança:
– para o doente, que se submete a cirurgia invasiva e procedimentos anestésicos,
cujas necessidades estão devidamente identificadas;
– para os restantes profissionais da equipa, para quem o foco de atenção é o conjunto
dos procedimentos cirúrgicos e anestésicos que garantam ao doente cirúrgico o
usufruto do melhor que a cirurgia a que se submete pode proporcionar.
É neste escopo que assentam as atribuições do enfermeiro circulante, sendo este o
profissional que, no conjunto da equipa cirúrgica, tem como atribuições específicas
a redução dos riscos inerentes à natureza dos cuidados no bloco operatório,
pela promoção da segurança do doente e dos restantes profissionais e o
suporte necessário à qualidade do acto cirúrgico no que ao ambiente diz
respeito. O enfermeiro circulante é o profissional de enfermagem que, no
desempenho das suas competências, tem como foco de atenção as necessidades do
doente cirúrgico, e assenta a sua tomada de decisão nos conhecimentos científicos e
técnicos que lhe permitem conhecer e compreender a complexidade do ambiente em
que desenvolve as suas intervenções, incluindo em situações de emergência ou de
limite.”35

§ Com base nestes pressupostos, apontam-se as atribuições próprias do enfermeiro


circulante:
“- identificar as necessidades individuais do doente, em contexto peri-operatório, e
intervir em conformidade;
– planear, organizar, delegar, comunicar, coordenar e avaliar as actividades da restante
equipa de enfermagem e de outros profissionais funcionalmente dependentes;
– gerir e partilhar informação necessária e pertinente relativa ao doente e ao ambiente,
com a restante equipa multiprofissional;
– controlar o tempo (turnover), garantindo que este recurso seja utilizado em função das
necessidades e no sentido da rentabilização máxima dos recursos existentes;

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ORDEM DOS ENFERMEIROS – Orientações para as atribuições do enfermeiro circulante. Lisboa, 2004.
(negrito nosso)

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– controlar e limitar a circulação de pessoas no decurso do acto cirúrgico;
– providenciar materiais adequados e o equipamento necessário ao tipo de cirurgia, e
verificar a correcta funcionalidade.”36

§ Assim, e de acordo com as orientações da Ordem dos Enfermeiros, a função de


manutenção da segurança do doente e do ambiente necessário ao acto
cirúrgico só pode ser assegurada por enfermeiros e a responsabilidade de
assegurar tal função cabe ao enfermeiro circulante. A finalidade última é a
protecção da pessoa submetida a cirurgia ou a procedimentos anestésicos, na
perspectiva de garantir a confiança na segurança e na qualidade dos cuidados de
enfermagem em Bloco Operatório – aquilo a que, em última instância, todos os
cidadãos teêm o direito de esperar quando recorrem aos serviços.

§ É do mais elementar senso comum a constatação de que a pessoa, inconsciente,


anestesiada, fica totalmente entregue, à mercê da acção dos profissionais. A
situação de vulnerabilidade reforça o dever de protecção e de cuidado
(juridicamente designado «dever de garante») que se aplica de modo peculiar,
pois o próprio não pode tomar conta de si, assegurar os seus direitos ou proteger-
se. Quando se pensa que esta posição de garante visa impedir o dano ou a
possibilidade de lesar um bem, percebe-se que pode ser imputada apenas àqueles
que, em virtude da sua qualidade própria ou da sua especial proximidade,
estejam em posição de agir. Se quisermos, o dever de garante decorre do
princípio de protecção, pois atende a um imperativo de agir na prevenção de um
risco, e cabe aos que tenham obrigação de cuidado, que assumiram a
responsabilidade do cuidado, e tenham real poder de agir (poder enquanto
capacidade para).

§ Num certo ambiente enquadrador, que existe para dar resposta às necessidades
da pessoa a ser submetida a intervenção ou a acto cirúrgico, toda uma equipa
age e interage, no sentido de assegurar a segurança. A segurança do acto
cirurgico, cabe ao cirurgião e a quem o ajuda. A segurança da assépsia na
técnica, cabe à enfermeira intrumentista. A segurança da pessoa, desde o

36
Idem.

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acolhimento e identificação à administração de fármacos anestésicos, cabe à
enfermeira de anestesia. A segurança da sala e dos factores externos à pessoa e
à técnica, cabem à enfermeira circulante. E assim por diante, cada um dos
intervenientes tem um papel próprio, interagindo todos em sinergia. “O que é
claro é que o Bloco Operatório representa uma unidade funcional única onde
anestesistas, os cirurgiões, e os enfermeiros devem desenvolver as relações de
sinergia necessárias para prestar um cuidado eficiente, compassivo, rentável e
seguro””37.

§ A preparação e a divulgação de práticas recomendadas38 pode ser lida


exactamente nesta linha de pensamento de promover a qualidade e aumentar a
segurança. Mais ainda, quando as recomendações se reportam à segurança –
uma ampla área de intervenção, pois trata-se de reforçar o uso correcto das
barreiras universais, do respeito pelas regras de segurança (considerando o
ambiente, a preparação da sala e dos sistemas e equipamentos, entre outros), da
realização correcta dos cuidados perioperatórios (utilização única dos dispositivos
de uso único, normas de reutilização dos dispositivos reutilizáveis, contagem do
instrumental cirúrgico e dos materiais texteis e não-texteis, entre outros), do
adequado acompanhamento no trajecto do doente (visita pré-operatória,
acolhimento no Bloco, chegada à sala, transferência no pós-operatório imediato),
da verificação dos elementos essenciais da relação com os profissionais
(informação, validação da compreensão, consentimento, relação de ajuda e
atitude de escuta), dos procedimentos de respeito pela dignidade da pessoa
(respeito pelo pudor, ou o acompanhamento de pessoa significativa, por exemplo)
ou da documentação rigorosa dos cuidados (o registo do que aconteceu na sala,
incluindo os presentes, por exemplo).

§ Tal como a AESOP (Associação de Enfermeiros de Sala de Operações


Portugueses), outras organizações se pronunciaram e deram enfoque à

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Idem, “What is clear is that the operating room represents a unique functional unit where
anesthesiologists, surgeons, and nurses must develop synergistic relationships designed to deliver
efficient, compassionate, cost-effective, and safe care to patients.” (tradução livre).
38
IFPN / EORNA- Recomendações para o desenvolvimento de padrões de boa prática. Segurança dos
doentes – o nosso primeiro objectivo. Em http://www.aesop-enfermeiros.org

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segurança. Foi o caso da AORN (Association of periOperative Registered Nurses) e
da sua tomada de posição39 sobre a segurança dos doentes, considerando que
esta é a responsabilidade primária da enfermeira perioperatória, que a relação
com o cliente tem o laço da confiança na enfermeira e na equipa cirúrgica e que
proteger a segurança e promover resultados óptimos mais fortalecerá esse laço.

§ Não restam dúvidas que a equipa multiprofissional tem, no Bloco Operatório,


uma relevância particular e que a comunicação é vital. Assim como a entreajuda,
sendo que um dos problemas que pode, eventualmente, surgir no desempenho
das actividades de enfermagem, e que afecta evidentemente a segurança, é, no
seio da equipa presente na sala, confundir-se colaboração com substituição de
outros profissionais. Sendo certo que existe o dever de complementaridade,
isso é bastante diferente de substituir outro profissional o que, em última
instância, pode conferir um perfil de usurpação de funções.

§ Outra das dimensões decorrentes do contexto do Bloco Operatório reporta à


responsabilidade ambiental. A produção elevada de lixos, a utilização de
agentes de esterilização e desinfecção, papéis, resíduos orgânicos, etc, tanto tem
um impacto económico como ecológico. Os enfermeiros teêm a responsabilidade
ética de proteger o ambiente, de participar e promover a conservação dos
recursos, de seguir as regras da triagem de resíduos e as políticas referentes à
saúde ambiental.

§ As condições latentes, criadas por sistemas ou processos com imperfeições,


podem combinar-se com falhas dos profissionais e produzir acidentes e erros. E
é reconhecido que os erros em contexto de Bloco Operatório resultam de
múltiplos factores.
“Entre os factores que contribuem estão: a) comunicação inadequada entre os
membros da equipa, b) dados incompletos sobre a saúde dos clientes, c) culturas
tradicionais, hierárquicas e autocráticas, d) decisões relacionadas com os clientes
tomadas apenas pelos médicos, e) mudanças rápidas e frequentes da tecnologia
utilizada, f) estilos de gestão intimidatórios, g) ausência ou inconsistência das políticas
e procedimentos, h) a fadiga, i) a realização de multi-funções, j) pressão do tempo e
constrangimentos, k) cirurgia de emergência, l) diferenças culturais entre os clientes e

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http://www.aorn.org/PracticeResources/AORNPositionStatements/Position_PatientSafe

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os membros da equipa ou entre os membros da equipa, m) equipas com dotação
reduzida, n) cultura de culpa, o) arrumação confusa de medicação e materiais, p)
instrucções pouco claras, q) treino e orientação insuficiente, r) características dos
clientes, requerendo procedimentos pouco habituais, s) falhas em incluir o cliente e
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família na avaliação e tomada de decisão.”

§ A redução de erros e a protecção da segurança implicam algumas estratégias41, e


aspectos a ter em conta, de entre as quais enunciamos:
a) incluir, sempre que possível, o cliente e os seus significantes, encorajando a
participar activamente no processo de cuidados (e aqui, naturalmente, toda a
intervenção desde a visita pré-operatória, o consentimento livre e
esclarecido, até à manutenção da informação para o exterior da sala
enquanto decorre e após o acto cirúrgico);
b) melhorar o acesso à informação sobre os clientes (potenciado pela passagem
de informação entre o enfermeiro do serviço de internamento e o do Bloco,
assim como da sala do Bloco para o recobro, ou a unidade de recuperação
post-anestésica, ou o serviço de internamento);
c) reduzir a necessidade de confiança na memória (pela utilização de checklists,
pela utilização de protocolos validados, pela marcação do local operatório,
pela sinalização de alguma alteração ao procedimento habitual – como do
membro a puncionar por rotina, entre outros);
d) promover os aspectos relacionados com a segurança clínica – na confirmação
da identidade, na validação do procedimento cirúrgico e do local correcto, no
estado de funcionamento do instrumental cirúrgico, na disponibilidade dos
equipamentos e materiais necessários ou potencialmente necessários em
caso de intercorrência previsivel ou possível, na contagem e recontagem dos

40
http://www.aorn.org/PracticeResources/AORNPositionStatements/Position_PatientSafe. Tradução livre
de: “Among contributing factors are inadequate communication among team members, incomplete
review of patient health records and diagnostic studies, traditional hierarchical and autocratic cultures,
patient-related decisions made only by physicians, rapidly and frequently changing technology,
intimidating management styles, absent or inconsistently applied policies and procedures, fatigue,
multitasking, time pressures and constraints, emergency surgery, cultural differences between patients
and staff members and among staff members, staffing shortages, a blaming culture, confusing
packaging of medications and supplies, unclear instructions, insufficient orientation and training, patient
characteristics requiring unusual setup or requirements, and failure to include the patient and family
members in assessment and decision making.”
41
As fontes de algumas destas estratégias são IFPN / EORNA- Recomendações para o desenvolvimento
de padrões de boa prática. Segurança dos doentes – o nosso primeiro objectivo. Em http://www.aesop-
enfermeiros.org e a Position Statement da AORN, Patient safety, http://www.aorn.org.

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materiais, na validação ou verificação das etapas anteriores (ou seja,
pressupôr o mínimo para reduzir a possibilidade de incorrer em erro);
e) considerar, na aquisição ou contratação de novas tecnologias, as cláusulas
que incluam o apoio à formação do pessoal (considerar sempre como
essencial assegurar a formação do pessoal que vai manusear e colaborar na
utilização dos equipamentos ou materiais);
f) normalizar procedimentos tanto quanto possível (e mantê-los actualizados e
de acordo com os mais recentes resultados da investigação);
g) documentar as observações, as intervenções e os resultados, cumprindo o
dever de registar e assegurar a continuidade dos cuidados e possibilitando o
estudo posterior das situações, a recolha de evidências;
h) participar em processos de garantia e melhoria da qualidade – em ligação a
desenvolver políticas e procedimentos dirigidos a identificar e corrigir práticas
inseguras (pode abarcar os aspectos da segurança na selecção e aquisição
dos produtos e materiais, o correcto armazenamento e identificação dos
fármacos, a análise dos circuitos e dos próprios procedimentos);
i) manter zelosamente as melhores condições de funcionamento, não facilitando
nos processos, o que pode ser potenciado por uma liderança assertiva da
equipa e na sala.

§ Um dos aspectos relevantes é o clima de trabalho na equipa, no geral, e dentro


da sala, em particular. Estabelecer uma cultura de segurança e de
profissionalismo é um modo eficaz de reduzir erros e prevenir danos. A sala de
Bloco Operatório é um local de acesso restrito, em segurança, com permanência
dos profissionais que asseguram os cuidados e se responsabilizam pela sua área
de competência. Naturalmente, o sucesso na criação e manutenção deste clima
depende do envolvimento de todos os membros da equipa - requer-se, pelo
menos, sentido de confiança entre os profissionais, a disseminação e verificação
da informação a todos os níveis de equipa e gestão, uma actuação proactiva e um
compromisso com a qualidade. E a avaliação sistemática do que foi realizado, do
que correu bem e é de repetir, do que não correu bem e há que melhorar. Se
pensarmos em termos de princípios, e resssalvadas as diferenças de cada
contexto, a responsabilidade profissional dos intervenientes, no sentido de

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responder pelos actos e consequências, na esfera das atribuições de cada um, e
em articulação e complementaridade, pode ser desenvolvida e acautelada por
processos de gestão do risco42.

Em conclusão, a assunção fundamental é que o enfermeiro tem obrigações para


com a sociedade e para com os clientes em ordem a prestar cuidados de elevada
qualidade, na melhor gestão dos meios e recursos de que dispõe e considerando-se
a si mesmo como primeiro recurso. A pessoa sujeita a intervenção cirúrgica confia-
se, espera e tem direito a cuidados de qualidade. E o enfermeiro em contexto
perioperatório segue os princípios orientadores da actividade profissional43 - age no
respeito pelos direitos humanos, busca a excelência do exercício e assume a
responsabilidade inerente ao papel assumido perante a sociedade – e cumpre os
seus deveres, conforme a moldura reguladora da profissão, decidindo com
prudência e cuidado. Apetece evocar Unamuno e dar enfoque a que, hoje, “Somos
mais pais do nosso futuro do que filhos do nosso passado”.

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Controlar o risco, na prática, promove a prestação de cuidados de qualidade, o que corresponde a
realizar plenamente a obrigação para com a sociedade. O objectivo da gestão do risco enquanto
processo que identifica, analisa e trata potenciais perigos num contexto de prática circunscrita é
identificar e eliminar riscos potenciais antes que alguém seja ferido ou lesado e desenvolver e avaliar
políticas e procedimentos que definam guidelines na instituição e para a prática directa. Estas
actividades são úteis na protecção da organização, em caso de processo legal mas, mais importante do
que isto, servem para proteger o público tanto quanto os profissionais.
43
EOE, Código Deontológico do Enfermeiro, Artigo 78, nº 3.

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