ESTELA

CAMILLE FLAMMARION
1 PARTE PREFACIO Encontram na vida, certas vezes, alguns seres que impressionam pela perfeio das idias, pela nobreza dos sentimentos, profundeza e extenso do saber, pela impecvel segurana dos julgamentos, evidente superioridade sobre o comum dos seus contemporneos, e ante a quais se levado a desejar as semelhar, pensar igual a eles, viver do modo por que vive, ser feliz da sua mesma felicidade. Esses seres privilegiados sobrepujam, de bem longe, o seu sculo e pairam muito acima da raa humana que pulula em nosso planeta. So grandes pelo esprito, bons e indulgentes de corao, desinteressados de todas as vaidades terrestres. Dos dois heris da histria que vai ser narrada, um me havia mostrado esse aspecto de carter. Possua, em grau supremo, a fora moral e intelectual, e se consagrara especialmente ao estudo do cu, tendo extrado dos conhecimentos astronmicos uma filosofia religiosa, na qual muitos dos seus discpulos acreditaram pressentir a religio do futuro. Ouvindo-o, ou lendo seus escritos, ou ainda quando o encontrava, repetidas vezes disse a mim prprio: Eis o filsofo que eu quisera ser. Tipo de superior intelectualidade exerceu durante toda a sua vida grande influncia sobre meu esprito, e por vexes parece continua a agir sobre mim, depois do seu retorno das regies etreas. Ela era mais sublime ainda. Infatigvel curiosa dos grandes problemas, olharem aberto para o Desconhecido, seu encanto juvenil e cativante impressionava a todos que dela se aproximavam. Tanto quanto ele desvia no cu, mas era particularmente dotada dessa idealidade sutil e misteriosa d qual o homem jamais atinge, e parecem reservada, na Terra, as delicadezas do sistema nervoso da mulher. Sua voz era musical; a beleza mais Anglica do que material, e sua Alma, seria, luz interior que, transparecendo atravs dos olhos, iluminava longe. Ela compreendeu a grandeza, a magnificncia da Astronomia. Educada pelo mundo e para o mundo, de acordo com a instruo religiosa em um internato de freiras muito da moda, apercebeu-se de que suas crenas

no estavam aliceradas em base slida; de que as descobertas da Cincia as modificavam gradualmente, transformando-as; de que, no mundo, quase tudo era mentira em seu redor: hipocrisia, ambies, intrigas, ignorncia e coisas fteis. A nulidade intelectual das pessoas distintas que a cercavam, associada d adorao cnica do - bezerro de ouro - revoltaram sua esclarecida conscincia. Ento, no hesitou em abandonar as primitivas idias, a fortuna, o luxo, prazeres, a ociosidade, as alegrias mundanas, e preferir uma vida. Simples, estudiosa e contemplativa, e consagrar-se, na solitude, daquele que lhe apareceram qual um apstolo da Verdade. E com ele viveu enlevada na contemplao das inenarrveis maravilhas do Universo. Jamais conheci criaturas mais perfeitamente felizes do que Rafael e Estela. Seu Esprito era alimentado pela Cincia; seus coraes vibravam unssonos; sua vida foi um cntico de amor. Depois do baile Chegando ao aposento, enquanto prximo ainda se faziam ouvir o rodar da carruagem e o patear cadenciado dos cavalos, Estela atirou o pesado casaco de peles sobre uma poltrona, e permaneceu de p, frente lareira, onde crepitavam tocos de boa lenha, unindo seu clido claro luz dos candelabros de velas. Loura, olhos pretos talhe mdio, algo esguio, era elegante, realmente bela. No pde conter um sorriso, indefinivelmente feminino, a rever no espelho as espduas, de acentuada alvura, seu busto admirvelmente modelado, um gracioso lunar no pescoo e os cachos um tanto vaporosos da opulenta cabeleira de louro veneziano, por onde passavam os tons fulvos do Oriente. De sbito, porm, em seu esprito uma imagem perpassou, acendendo-lhe repentino rubor nas faces, e fazendo-a levar as mos altura do corao, como que a comprimir o acelerado palpitar. Depois, sentou-se no leito, pendeu a cabea, apalpando nas mos, cotovelos encostados ao peito, e assim permaneceu esquecida de despir-se, toda entregue os devaneios, abandonada a um voluptuoso langor. Esse longo baile, que a envolvera em seus turbilhes durante quase seis horas, no a fatigara, porm, muito a excitara. Sentir-se, pela primeira vez, embriagada na vertigem da valsa; pela primeira vez, sentir-se conduzida por uma criatura mais forte do que, ela, e nos braos da qual deixara parte do seu ser!

Em virtude de um hbito mundano encantador e de uma das mais prodigiosas mentiras convencionais da nossa civilizao, um homem, um desconhecido a enlaara, seminu, sob os olhares cegamente enlevados da sua famlia; apertara-a contra si; havia, mediante certos movimentos, roado a ponta do bigode nos fios ondulantes da sua nuca; havia respirado o primaveril perfume emanado da sua carne; havia, por vezes, comprimido seu busto com aumentada energia; teria podido (e porque no o havia feito?) sussurrar aos seus ouvidos uma declarao de amor. Sua tutora, austera, prudente, religiosa, educada em rgidos princpios, sempre tivera o cuidado de afastar da tutelada as leituras profanas; nunca um jornal entrara em sua casa; jamais a deixara assistir a representaes de peas teatrais; vez alguma permitira que sasse rua desacompanhada, nem mesmo para dirigir-se ao templo, com o fim de confessar-se. Assim, essa jovem, prxima dos quatro lustros de idade, era um lrio virginal, cultivado vista, num jardim to fechado que nem as borboletas celestes, nem as abelhas puras, nem o sopro dos ventos a podiam atingir. E eis que, de sbito, abandonado o Himalaia de exageros, lanada num mundo ande as canes que interpretava com graa falam de amantes; conduzida a um baile estonteante de rudo e luz, animado pelas penetrantes melodias de uma orquestra envolvente; presa inocente dos apetites sensuais de jovens que a passavam de mo-a-mo, qual flor esquisita, de perfume delicado, deliciosa, para ser contemplada de perto. Um deles, principalmente, a retivera por muito tempo, a pretexto de combinaes de cotillon, e a monopolizara., por assim dizer, durante uma boa parte da noite. Esse jovem Duque, pertencente ao que se convencionou chamar alta sociedade, da qual era sem dvida dos mais ldimos expoentes, somente naquela mesma noite lhe fora apresentado. Vestia ele pelos ltimos figurinos, esforando-se por apresentar sempre as mais recentes novidades em referencia indumentria; usava camisa de peitilho mais alvo do que neve, abotoaduras de grandes prolas, e o lao da gravata a qualquer hora da noite estava to bem ajeitado quanta a gardnia que ostentava a lapela. De elegante porte, estatura acima de mediana, cabelos frisados e de tonalidade castanho-escuro, barba fina e cortada em ponta, olhos pretos e brilhantes, semblante moreno-mate, mos pequenas e claras - era alvo dos olhares femininos, que o admiravam. Era, alm disso, exmio valsista, qualidade rara. Foi um sonho estonteante para ela, que tudo isso observara no jovem, sem notar defeitos, salvo o de um ligeiro tique - o levantai de vez em quando o canto direito dos lbios, o que no Ihe ficava de todo mal, pois a boca era bem desenhada e deixava entrever dentes muito claros.
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Certamente, no era a primeira vez que o encontrava. Tinha certeza de hav-lo j visto. Onde? Em qualquer festa de caridade, em alguma reunio anterior, na pera, num concerto musical, ou na igreja, talvez? No. Fora no Bosque, a cavalo, num passeio matinal do ltimo Vero. A princpio, pouco lhe falara durante o baile. Entretanto, quase adivinhara que ele estava corrente de tudo, conhecia de tudo, sabia tudo narrar com um tato especial. Uma palavra de admirao sobre o penteado a encantara. Talvez que outra, de mais experincia, notasse algo de banalidade nessas gentilezas, inditas para ela que as julgava inspiradas unicamente pela sua presena. Depois, durante o jantar, ele sustentara brilhantemente a palestra, sem afetao, dizendo com leal camaradagem sobre os companheiros de sua convivncia, indicando os quadros que provavelmente seriam os mais destacados no Salo de Pintura, aprovando a ltima pea teatral, to mal julgada pela imprensa, narrando um desastre ocorrido nas cavalarias do seu amigo, o Conde Frascati, fazendo prognsticos a respeito da prxima corrida no Hipdromo, tratando do exagero econmico dos emprstimos russos, e discutindo o futuro das colnias francesas. Sim, esse homem conhecia de tudo. E porque no concordava em entrar na poltica, fazer-se deputado e ministro, ele, cujos antepassados remontavam ao tempo das Cruzadas? E' verdade que a alta magistratura do Pas no nada invejvel; que a independncia est banida, podendo-se observar que, dos seis presidentes eleitos depois do estabelecimento do governo republicano em Frana, quatro pediram demisso e um outro foi assassinado. Contudo, evidentemente, e ela compreendia que era essa a opinio de seus tios - todas as carreiras estavam abertas para a jovem Duque: a diplomacia e a poltica, o jornalismo e a tribuna, se ele quisesse dar-se ao trabalho de aproveitar os dotes naturais que, possua e fazer alguma coisa, a despeito dos esplndidos rendimentos de que dispunha e de outros a herdar. No momento, porm, nenhuma dessas coisas o atraa; tranquilamente se entregava vida mundana da sua classe: levantava-se do leito s dez horas do dia, passeava a cavalo, almoava, fazia suas visitas de cortesia ou amizade, jantava em casa de amigos, desperdiava metade das noites no Clube ou em reunies, jogava bastante, e afinal se recolhia cerca de duas horas da madrugada. Se alguma preocupao o dominava, era a de triplicar seus haveres, com um bom casamento, e restaurar o velho castelo que lhe deixara o pai. Apreciava a Arqueologia, da qual falava como se fosse um Violliet-leDuc ou um Charles Garnier. Estela fora a rainha desse baile.
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Sua beleza e juventude, um encanto particular que se evolava de toda a sua personalidade, atraam a ateno de todos e de todas. Foi-lhe apresentado, alm do elegante Duque de Jumiges, o filho de riqussimo banqueiro e mais um deputado de futuro promissor. Os trs pareciam disput-la, mas, evidentemente, ao Duque coubera a preferncia da formosa moa. Inteiramente enleada na recordao do seu lindo cavalheiro, a jovem comeou a despir-se lentamente, maquinalmente, diante da lareira, deixando cair, uma a uma, as peas da vestimenta sobre o atapetamento; enrolando a luxuriante cabeleira, que se espalhara pelas espduas, pouco a pouco se sentiu invadida pelo sono. Quatro horas soaram num pequeno relgio Lus XV. Estendendo-se sobre o macio frescor do leito, pareceu-lhe que ia adormecer desde logo, em meio ao silncio do dormitrio, agora iluminado apenas pela claridade vinda do trio. Tal no aconteceu, porm. As plpebras reabriam constantemente. No, no estava fatigada, apesar de haverem seus tios achado e dito que a festa se prolongara e ter chegado o momento de deix-la. No tinha sono. Seu pretenso desejo de dormir fora apenas uma iluso, uma vaga obedincia aos hbitos rotineiros. Descobriu os braos cuja alvura se iluminou e se coloriu de suave rosa pelo fulgor da lareira. Enrodilhada no seu devaneio, s ento reparou que, pela primeira vez, se deitara vestindo em cmisa-de-dia, a camisa do baile, de finas e vaporosas rendas, e notou que jamais se vira assim to bela; e essa descoberta, no lhe aproximou o sono. Estela era uma jovem recentemente sada de um convento e ainda muito devota refletindo sobre as sensaes do baile, recordou as opinies severas do seu confessor, e as achou acertadas. O! Valsa! Dana voluptuosa e acariciante, despertar da carne na luz e no movimento, no s (oh! Contentamento do ser vivente!) um primeiro pecado? No na dana que o homem e a mulher se encontram pela primeira vez na vida? No so a os nossos sentidos invadidos de ternura? Os olhos pela beleza das formas, o ouvido pela msica, o olfato por perfumes capitosos, o tato de todo o corpo pelo ritmo cadenciado que conduz um par em espirais ondulantes? A moa a princpio dana pelo prazer de danar, de movimentar-se, de sonhar girando, servindo de cavalheiro um condiscpulo do convento; mas, esse prazer se transforma um dia e se desdobra, quando se sente escolhida par sua beleza e se v admirada do seu par masculino. E, depois, certa noite, o prazer se transforma ainda, e desta vez em outra sensao inteiramente nova, que lhe parece indelvel: a valsa, ondulante e leve, desfolha em seu giro as mulheres e as fiares. Na vida tudo contraste e tudo se assemelha.
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As impresses sentidas em suas primeiras noites de mundanidade estavam certamente bem longe das emoes religiosas que experimentara nas austeras cerimnias da Igreja; contudo, nestas os seus sentidos todos haviam sido cativados: a vista, pelo grandioso estilo gtico que leva o pensamento s alturas, e pela misteriosa luz que filtra dos vitrais; o olfato, pelo perfume do incenso; o ouvido, pela penetrante suavidade de certos cnticos litrgicos que se casam melodia misteriosa do rgo; todo o seu ser, em suma, to sensitivo, par um conjunto de impresses que so sabiamente combinadas para obteno de melhor efeito. Estela era piedosa, sincera, crente, delicada de sentimentos e de sensaes. No internato, destacara-se pelo seu fervor. Abandonara-se s aspiraes divinas, aos mistrios, ao desconhecido, ao ideal. Frura as santificaes da religio. Essa mesma natureza, assim impressionvel, libara tambm sensaes inditas nessa reunio do mundo, em que tudo parecia ter sido bem organizado para agradar e seduzir. E esse prazer, to diferente dos transportes msticos, tinha, entretanto, com estes, secretas relaes. Us prazeres mundanos so um pouco perigosos: o pudor da virgem enrubesceu aos menores alarmes; a sensibilidade de sua alma aumentou. Aconteceram, por um bizarro contraste, que a jovem, no seu leito de rendas, iluminado pelas dbeis chamas da lareira, associou aos primeiros arrepios de volpia, que acreditou sentir, os conselhos do seu confessor e a imagem do seu Anjo de Guarda. E julgou ouvir uma voz interior repetir-lhe que a Dana um pecado... Principalmente a Valsa. E depois, adormeceu. Ningum recebeu a confidncia dos seus sonhos. O Mundo e a Igreja Estela d'Ossian era religiosa e gostava da vida social. Educada no Convento Oiseaux, passara a infncia na alegre casa-decampo d'Issy (desaparecido hoje seu belo parque, para dar espao a novas ruas e construes ), e depois fora transferida, com os demais condiscpulos, para o Internato da rua Svres, onde lhe decorreu a juventude, sob a austera e atenta direo das religiosas congregadas de Notre Dame, cannicas regulares de Santo Agostinho. Em Issy, as alunas, as menores, as violetas, as debruadas, as amarantos (assim designadas conforme o adorno dos cabees dos uniformes) acompanham maquinalmente, a exemplo do que ocorrem nos pensionatos, s aulas e exerccios cotidianos que enchem, de modo em absoluto montono, as horas e os dias; em Paris, aonde vo aos onze anos, as verdes, as azuis, as
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amarelas e as vermelhas (designaes correspondentes cor dos distintivos) comeam a viver e a pensar. No diremos das brancas, as maiores, pouco numerosas, prestes da partida de regresso aos lares. Alm das frias, todos esses pssaros tm dias de visita s suas famlias, de modo que jamais se sentem de todo isoladas do mundo. No prprio Convento aprendem a apresentar-se, cantar, piano ou violino, e at dana. O quarteiro dos Invlidos, no fim do bairro de Sannt-Germain, com os trs grandes parques Oiseaux, Sacr-Coeur e Archevque, tm a semelhana de uma solitude longnqua, to distante de Paris quanto a Bretanha ou a Vendeia; contudo, no se sente tristeza da clausura: respira-se ali certo ambiente de mundanidade; pela convivncia, conversa-se com as amiguinhas, narrando impresses recebidas fora, observaes colhidas pela curiosidade juvenil que se abre ao espetculo da vida, e que sabe prxima a sada do Convento, muitas vezes poucos meses antes do casamento. Os estudos no so muito fatigantes, porque entremeados de perodos de recreio; as obrigaes religiosas tm a regularidade de um relgio: a prece pela manh, aps a toalete e a ao de graas, antes e depois das refeies, em comum; orao antes de cada aula, estudo ou exerccio; ouvir missa todas as manhs, na ampla capela - cuja torre alta e quadrada domina o parque, qual a de uma orgulhosa catedral; confisso mensalmente e comunho cinco ou seis vezes durante o ano. Alm disso, ouvem sermes, que mantm o esprito na f e confirmam todos os ensinamentos ministrados antes da primeira comunho. Assim aprendem que Jesus Cristo morreu na cruz para remisso de nossos pecados; que ressuscitou para glorificao nossa; que est no Cu, sentado direita de Deus-Pai; que o bem-aventurado corpo da Virgem Maria foi transportado pelos Anjos no dia da Assuno; que existem anjos no Cu e na Terra; que os santos esto no Paraso; que nossas almas, salvam por Jesus Cristo, devem, aps nossa morte, ir ao Purgatrio - cujas chamas lustrais as purificaro das derradeiras manchas (a menos que pecados imperdoveis s precipitem no Inferno, por toda a eternidade); que no fim do mundo os corpos ressuscitados, dignos do Cu pela pureza angelical de suas almas, vivero sempiternamente na glria do Paraso. Estela, no mesmo regime das companheiras, vivera assim, assim pensara, at sair do Convento, ao completar as dezoito primaveras. Era correta e pura em seus sentimentos, e acreditava em tudo quanto lhe haviam ensinado. A idia de uma dvida nunca germinara em seu esprito; vivia e pensava seriamente, sem o temperamento e a educao das jovens do fim de sculo Estava convicta de que os ensinamentos da Religio tinham base to slida
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quanto os da Cincia; de que o Catecismo possua a exatido do Tratado de Aritmtica, de Geografia ou de Cosmografia. Quando dizia que sete vezes doze so oitenta e quatro, ou que a soma dos ngulos de um tringulo igual a dois ngulos retos, ou que a Crsega uma ilha do Mediterrneo - acento e oitenta quilmetros da costa francesa e a setenta e sete da italiana., ou que a Terra um planeta que em um ano faz o giro em torno do Sol e, em vinte quatro horas, sobre ela mesma; sabia que tais afirmaes estavam rigorosamente demonstradas, e jamais lhe ocorreu idia de que algum as pudesse contestar. O mesmo acontecia com relao s afirmaes da religio. Admitia por demonstrado cabalmente que Jesus Cristo desceu aos infernos, subiu ao cu e est assentado direita de Deus seu Pai, e que descer, sobre nuvens, para julgar os vivos e os mortos; que os diabos no inferno passam eternidade atormentando os condenados; que Josu fez parar o Sol; e que a serpente tentou Eva, sua pena a dos ramos da rvore do Bem e do Mal. Em seu condor no duvidava de ensinamento algum. Se acaso lhe viesse idia de comparar os dois gneros de verdades, as da religio decerto teriam parecido mais absolutas do que as da cincia. Por vezes, gostava de recolher-se ao silncio da igreja e preferia fazer preces na Capela dos Santos Anjos. Acreditava que seu anjo de guarda lhe esquadrinhava a conscincia em busca de pecados imaginrios, e acusava-se ao confessor de desatenes em aula, de sinais de impacincia com os condiscpulos, de pequenas golas - e ento sentia na alma a pureza do anjo de seus sonhos. Enlevava-se a sonhar que ressuscitaria assim, em seu corpo de virgem nas dezoito auroras da sua idade, sem afundar a curiosidade, sem visionar qualquer roupagem, e ia ao extremo de achar belo o confessor calvo e senil, e imagin-lo, tambm ele, no Paraso, junto dos bispos, dos papas, dos mrtires e dos profetas. Dir-se-ia que, com leve esforo, abraaria a vida religiosa, semelhana de suas mestras, consagrando-se por toda a vida ao bom Deus. Nos dias de comunho, Pscoa, missa do galo (a da meia-noite), nas grandes festividades, Estela sentia verdadeiramente a hstia, depois de tocarlhe a lngua e descer pela garganta, penetr-la de um sentimento de absoro na divindade. De que Jesus fosse Deus e de que ela o comesse msticamente, no lhe restava dvida. Durante as missas cantadas, certos cnticos da Igreja, muito melodiosos e suaves, qual o Panis Angelicus ou o Salutaris, transportavam-na a celestes xtases. Seu confessor era um santo homem, escolhido com grande acerto pelo arcebispo de Paris para direo dessas jovens almas femininas, e que
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(circunstncia bem rara no clero da metrpole, e em Roma, e Madrid) era um sacerdote sem mcula, crente sincero, simples e convicto. Prudente e reservado, nunca lhe aconteceram fazer, durante a confisso, uma dessas perguntas vergonhosas que fazem enrubescer o jovem ou a moa antes que a tenham compreendido, e que desviam do chamado tribunal da conscincia mais de uma alma pura, afastando-a bruscamente para cogitaes carnais, por uma pergunta infeliz, bisbilhoteira ou criminosa. O padre Ildefonso reunia virtude do bom sacerdote e ao desapego das naturezas simples, a afetuosa bondade de um av: as pequenas educandas eram suas netas. Seu nico desejo consistia em conservar-lhes a f, a qual, segundo entendia, era o nico elemento moral capaz de mant-las castas e honestas, quando trocassem o convento pelas liberdades do mundo. Deixando o Internato, impossibilitada de conservar o mesmo confessor, Estela, a conselho deste, escolheu para diretor espiritual um padre jesuta, muito afamado, da parquia de Santa Clotilde. rf de pai e me, habitando o segundo pavimento do prdio que os tios, os condes de Noirmoutiers, ocupavam a Rua Vaneau, entrava na vida com a independncia de uma grande fortuna e o sentimento da responsabilidade pessoal. Muito aristocrtica nos gostos, deixou-se fcilmente deslizar pelos mundanismos, no prazer de brilhar em meio elegncia. No podia compreender os homens sem que acompanhassem as modas mais recentes, sem que tivessem a palestra espirituosa, sem que se comprimissem em torno dela, dando-lhe nas conversaes e em primeira mo a ltima nota social digna de registro. Das amizades do convento conservara trs amigas: uma ainda mais religiosa do que ela, cenobita por natureza; outra que comeava a ocupar-se com estudos de Fsica, Qumica, Astronomia; a terceira, de temperamento mais artstico, que se dedicava pintura. Estela era a mais formosa e mais mundana, mal preparada para isso, alis. Nenhuma arte a fascinara; a literatura de certo modo a seduzia. Aprendera, com grande facilidade, vrios idiomas estrangeiros, nos quais lia e falava com a mesma facilidade do francs. Quanto s cincias no se detivera e, tal qual a maioria dos habitantes da Terra, sempre vivera sem se interrogar sobre o terreno em que pisava. Essa ignorncia normal lhe bastava, e suas convices religiosas satisfaziam de modo completo aos devaneios que, por vezes, a elevavam acima das mundanices habituais do seu viver. J na alvorada dos quatro lustros, poca em que comea esta histria, Estela ainda fazia preces todas as noites, e a primeira vez que as esqueceu foi na do longo baile de que falamos. Todo o domingo era vista, com a tia,
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assistindo missa das dez horas, em Santa Clotilde. Os deveres religiosos e os prazeres da sociedade, ela os associava muito bem na vida e no pensamento, em acordo perfeito, ajudada pelo prprio diretor espiritual, o hbil jesuta a quem a elite do bairro Sannt-Germain devia os melhores casamentos. Homem do mundo at ponta das unhas, o abade Lafert era muito procurado, excelente conviva, prosa agradvel. Dizia-se mesmo, com algum exagero talvez, que esses casamentos to bem conseguidos e por ele realizados, lhe haviam trazido, bem ou mal, cerca de quarenta mil libras de rendimentos. Suas qualidades exteriores no o impediam de ser, comparado com o padre Ildefonso, embora em outra ordem de idias, um confessor muito honesto para as jovens. Estela confiou-lhe todos os pensamentos, todos os projetos, e nada empreendia sem ouvir a opinio do seu querido e venerado mentor. O jantar de Epicuro Quinze dias depois da festa a que nos referimos, duas dezenas de convivas estavam reunidos em volta da suntuosa mesa da Marquesa. La Rochelle. Um luxo inaudito, ao qual nem sempre um perfeito bom gosto se aliava, presidia a esses deboches gastronmicos. Por toda a parte, macia prataria, admirvelmente cinzelada; em profuso, cristais da Bomia, de cores vivas. Seis copas diante de cada conviva; centro da mesa ocupado por elegante vaso em cujos bordos estavam presas guirlandas de cravinas, gernios e camlias, vindas pela manh, de Nice. Os lacaios, em libr de luxo, permaneciam imveis por detrs da fila de convivas, atentos ao menor aceno e, principalmente, s conversaes. Ondas de luz desprendiam-se dos lustres, tocheiros e candelabros guarnecidos de velas, luz cariciosa, lisonjeira para as nveas espduas e os rostos primaveris. O gs e a eletricidade estavam relegados para a copa e a despensa. Qual chama volante, perguntas e respostas, juzos e reflexes diversas no permitiam arrefecer a palestra generalizada, de resto mundana, ridcula e banal. A mocidade predominava, mas notavam-se alguns comendadores e pessoas de certa, idade, colocados ao centro, gente esta que no estava menos alegre, nem menos animada do que a juventude das extremidades. Serviam-se as ltimas iguarias e prxima estava sobremesa, mas tudo se fazia sem pressas, pois o jantar seria seguido de divertimentos ntimos,
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predominando o jogo e um pouco de msica. O que maravilhava a criadagem era a soma das fortunas ali reunidas. Salvo duas ou trs excees, nenhuma ou nenhum dos convivas desfrutava menos de cinquenta mil libras de rendimentos; muitos dispunham de cem mil; alguns, trezentas e quatrocentas mil. Tais fortunas eram conhecidas e cotadas. Somados os capitais e remunerados ao juro de trs por cento, chegava-se ao total de cento e dez milhes para as vinte pessoas ali agrupadas. No se falava nisso sem chiliques de admirao, e a prpria dona da casa ensoberbecia no mesmo grau dos seus domsticos. A plenitude do mais nobre orgulho ela a exteriorizava no porte, na maneira de comer, beber e falar. Seus dedos estavam congestionados de anis; as orelhas, pescoo e espduas resplendiam de pedrarias preciosas. At certo ponto, podia-se consider-la a mais rica de todos, pois sua fortuna avaliava-se em catorze milhes de francos. To colossal riqueza adquirira-a ela mesmo, s, ou quase sozinho, em negcios especiais que entendia maravilha, associando sucessivamente sua inteligncia de cinco ou seis capitalistas bem selecionados, e tambm (diziase boca pequena) em alguns servios diplomticos em proveito de uma potncia vizinha. Era muito formosa e de inteligncia notvel, principalmente em combinaes financeiras. Casada, em primeiras npcias, com um diplomata brasileiro, desposara, num segundo matrimnio, na idade de meio sculo, um jovem deputado, herdeiro de invejvel nome e recebia ao que se chama todo o Paris, do mundo dos pndegos. A conversao recaiu sobre um casamento celebrado, vspera, na Igreja da Madalena, e talvez no seja suprfluo apanhar alguns fragmentos, que daro um resumo do ambiente anticientfico e artificial em que vivia a nossa donzela idealista e sensitiva. - E a misria em pouco tempo, ao primeiro filho, dizia um anafado cavalheiro de amplas suas brancas, tez corada, lbios espessos e sensuais. Que se pode esperar de um lar, em Paris, com quarenta mil francos de rendimentos? - Eu creio, disse o duque falando bem prximo da sua bela vizinha Estela, eu creio que Henriqueta ama profundamente o marido, e que sero felizes, porque o dinheiro no faz a felicidade. O amor... - Que dizeis senhor duque? Indagou a dona da casa. - Dizia minha senhora, que coisa alguma vale tanto quanto uma boa e sincera afeio, e, quando dois entes se adoram, a vida deve ser encantadora, mesmo sem fortuna.

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- Ns conhecemos isso, replica um general sentado direita da marquesa. Quando eu tinha. A vossa idade, meu caro duque, pensava tal qual, principalmente quando o acaso colocava a meu lado uma encantadora vizinha. Os enamorados so sempre muito desinteressados, mas os provrbios no erram: Quando falta o feno na grade da manjedoura... Para mim, esse casamento ridculo. Uma jovem bela, e de sociedade, apaixonar-se por um jovem que nada tem de seu! E' inconcebvel que os parentes se deixem assim levar pelo capricho dos seus meninos. Mas, que querem? A autoridade dos pais no existe mais. - E' esse o meu parecer, disse o tio de Estela. As fortunas devem ser associadas. - Meu general, replicou ento o duque, se eu estivesse enamorado, no perguntaria quanto a minha noiva teria de dote. Compreendo, pois, e muito bem, que uma jovem proceda de igual modo para com o rapaz, principalmente quando esse moo est bem colocado, inteligente e distinto, nas condies de Herv. - Eu vos compreendo, retrucou o general, partilhais da opinio de Alfredo Musset: Quando se apetece o belo, sem vestido.. - Quereis dizer da opinio de Shakespeare, no Mouro de Veneza. Sim, sem dvida. - Muitas vezes nos enganamos pelas promessas de dote, sentenciou um financista. As fortunas nem sempre so o que aparentam. Veja-se o exemplo do Baro Chirch, que acaba de render a bela alma ao deus Pluto. Diziam-no riqussimo, e, no entanto, deixou apenas sessenta milhes. - Julgava que tivesse menores haveres, comentou o deputado. - Enganai-vos. Ele deixa oitocentos milhes. - Que homem! Exclamou a marquesa com entusiasmo. Acumular oitocentos milhes. E' verdadeiramente de um gnio. - De certo no ter dado cem mil francos para favorecer o progresso das cincias, interrompeu o jornalista. - Sabeis quem comprou os seus cavalos? - Ningum ainda. Ser vendida quinta-feira, no Tattersall. - Eu cobiaria o seu par de alazes, disse a condessinha. - Pois eu exclamo um belo jovem, s ambiciono o campeonato de bicicleta. Completei quinta-feira, oitenta quilmetros! - Afirmaram-me que, na semana passada, Artur fez setenta e oito. - Singular prazer! Comentou a mulher do financista. Nada mais agradvel que andar sempre para frente, sozinho, e pedalar at perder o flego.

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- H melhor! Afirmou uma jovem gorduchinha, de loura cabeleira flutuante. - E qual Senhorita Solange? - O tandem. - Eu te acredito, cochichou ao vizinho da ponta da mesa o Capito Lomond. O casamento no tandem no deve tardar. - Ontem, em Neuilly, todo um cortejo de npcias chegou pretoria em bicicleta, inclusive a noiva. - Muito bem! Viva a bicicleta; abandonemos os cavalos! - Sabeis a novidade das sete horas? Indagou o jornalista. - Um dos meus amigos foi preso, ou o Ministrio caiu, respondeu o Senhor de Taupin. - Exatamente, como se houvsseis posto o dedo em cima. Cado o Ministrio, por motivo do imposto sobre os domsticos. - Justssimo. Compreendeis que se taxem os domsticos? - Exige o imposto sobre cavalos, ces, portas, janelas, ar, luz, po, vinho, sobre toda a vossa casa, desde a adega at o teto, sobre a prpria pessoa, desde as palmilhas ao chapu, sobre o caminho por onde anda campos que contemplais o ar que respirais, e tudo, tudo! Porque no criar imposto sobre os domsticos? O aumento perptuo das despesas pblicas, o desperdcio cego, levam fatalmente majorao dos tributos. E' a esterilizao da nossa bela Frana; a runa geral; a bancarrota prxima. Que fazer? - Enfim, o Ministrio caiu. E no tinha ele quase dois meses?... - Consta que o presidente vai renunciar. - Era bem simples ter um rei, disse o deputado. Vede a Inglaterra. - Poltica! Poltica! Interjecionou a dona da casa. Vamos ter contrariedade. Bem sabeis que isso proibido. - A poltica, disse do extremo da mesa o jovem e j volumoso advogado, a poltica o sai da, que eu quero o lugar, tal qual nos negcios, o dinheiro dos outras. Alis, nada tem de imoral, por isso que est convencionado. - Tendes razo, senhora, reps o general. Prefiro os cancs do mundo teatral. Quem j foi ver a nova pea do Bouffes? No espetculo de ontem, a Eminha estava positivamente nua. Adivinhava-se tudo. Para que serve a censura? E na verdade, ela muito bem feitinha, a mestia. - Por Deus, general! E acreditais que, sem essa circunstncia, ela se mostraria? Mas, se deixassem vontade as mulheres de extra-sociedade!... - E mesmo as da sociedade, disse o Sr. de Taupin. - Ema tem formosas pernas, o que no impediu que o seu deputado a mandasse s urtigas.

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- Receberemos amanh o vscondinho em nosso clube? Perguntou um magricela, que no ousava mover a cabea com receio de que lhe desabasse o monculo do olho esquerdo. Que achais Jumiges? - Certamente, respondeu um vizinho cuja cabea parecia anquilosada, graas ao colarinho que lhe chegavam s orelhas, os padrinhos do recipendirio so gente chic. - Alm disso, ele da linha mais distinta, disse o duque. - E o bravo Patarouf? - Oh! Esse vale por dois. - E o Baro de Hautecombe? - Um pesado, no civilizado de todo, um criador de abelhas; mas encontrou escora, apesar disso, e isso vale por uma voz de comando para ser recebido. - Senhora marquesa, disse o financeiro, no fostes vista quarta-feira, na pera, na repetio do Tannhauser, de Wagner. - No me entusiasmo por Wagner, vs o sabeis. Nada de esnobismo! Podereis dizer-me porque o pano Orlees baixou tanto, ontem? - Para contar desde j com os lucros das futuras compras e vendas. - Tenho convites para o Instituto, quinta-feira, interrompeu a Senhorita Ceclia Street. Quem quer ir? - E mortalmente enfadonho, respondeu o Visconde de Valvin, mas de bom-tom, tanto quanto Wagner. Iremos, certamente. - Sempre fui da opinio de Alfredo de Musset, a respeito dos discursos acadmicos, disse o general. A uma sesso da Academia Francesa, prefiro a de segunda-feira, na Academia de Cincias. E' mais substanciosa. - E vs, Senhorita Estela, apreciais os sbios? - Jamais os vi Ah, sim, certa vez, quando menina, levaram-me para ver Chevreul sada de um banquete. Que feira!... - Sbios, disse seu vizinho, conheo trs; desagradveis, incivis, fastidiosos. No se encontra meio de palestrar com eles, que, alis, no respondem aos nossos assuntos. - Se fossem somente fastidiosos! Algum, h dias, escreveu que as celebridades so as que maiores males causam. E no errou. Por exemplo, o inventor da plvora... - Mas, nem todos inventaram a plvora. - Os sbios, intervieram a Baronesa Castelviel, constituem mundo parte e fechado quele a que ns outros pertencemos. J lhes fiz vrias vezes, convites, sem que jamais me pudesse envaidecer da sua presena em minha casa. Por isso, no os convido mais, nem nos Pirineus, nem em Paris. De resto, so todos uns pobretes, bem mal-postos.
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- Mais do que pobres muitas vezes verdadeiros mendigos, tal qual a maior parte dos escritores, poetas e artistas. E, afinal, que fariam da riqueza? S lhes poderia trazer preocupaes, pois no passam de trabalhadores, de obreiros. As fortunas s se tornam realmente teis aos que no tm nada para fazer. - No penso desse modo, interrompeu o jornalista, e, quanto a mim, a propsito do baro de quem tanto se fala (o que morreu, possuindo oitocentos milhes), consider-lo-ia muito mais digno de apreo, se houvesse deixado apenas cem, e consagrado setecentos aos progressos da Cincia. - No falemos mais em sbios, annimos ou pedantes. De resto, no ignorais que a Cincia faliu. Acabou-se. Viva a alegria! - E depois so bem ridculos, com os seus casaces e bons de pala, disse uma encantadora ingnua. Um deles descobriu que a cauda de no sei mais que animal exala o cheiro de resina de opopnax. - No foi na Faculdade de Medicina que a cena se passou, senhorita, replicou o visconde, foram no Teatro Variedades. - A Cincia e os sbios, sentenciaram o general, no sirvo para grande coisa na vida, eu o reconheo; mas, acho erro met-los sempre a ridculo, no teatro, nos romances, e mesmo um pouquinho em outros gneros. Pode-se viver ignorando a Fsica, a Qumica, a Histria Natural, a Botnica, etc.; podese, em suma, viver ignorando tudo, sem que de tal desconhecimento resulte mal maior. Contudo, a Cincia tem prestado servios sociedade; no lhe devemos os caminhos de ferro, os navios a vapor, o telgrafo, o telefone, a fotografia, e tantas outras coisas agradveis, teis, necessrias, e mesmo indispensveis em nossos dias? Entendo, pois, que se deveria sempre render justia aos sbios. E no por mim que o digo, vs o sabeis, porque nunca me preocupei em mudar o meio-dia para duas horas da tarde. Minha mxima a de Epicuro: Gozemos a vida! Pura e simplesmente. Carpe diem, se no esqueci o latim que ento se usava. - Isso de Horcio, emendou o duque. Mas, Horcio ou Epicuro se assemelham bastante, e confessemos que a sua maneira de compreender a vida a da maioria dos homens. - Estamos todos de acordo Cincia e sbios, eis o que o mundo tem de mais sensaboro e mais intil. Falemos de assuntos mais alegres. Sabeis que resultado magnfico foi obtido na pista de Catford, por Stocks. No curso de um ensaio de recorde de cinquenta milhas, ele bateu uma srie de recordes mundiais, includos o de hora, o dos cinquenta quilmetros e o das dez milhas. A primeira milha foi feita em um minuto, cinquenta e nove segundos e 1/5; a segunda milha em trs minutos, cinquenta e dois segundos e 2/5; e bateu o recorde mundial, percorrendo as dez milhas em vinte minutos e as vinte
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milhas em quarenta minutos e cinquenta e sete segundos! Em uma hora, fez quarenta e seis quilmetros e setecentos e onze metros, ultrapassando assim de duzentos metros o resultado de Bouhours. Esbaforido por esse treino formidvel, Stocks se deteve ao fim de quarenta e quatro milhas, em uma hora e trinta e quatro minutos e onze segundos e 4/5. - E' maravilhoso!... Fostes caada do marqus? - Sim. Um enorme porco-selvagem, atacado pelos monteiros e hbilmente descontado pelo primeiro picador Renard, s cinco horas do Prs-du-Rozoir. Soberbo cervinho. Tudo perfeito. Equipagens muito chiques. - Quarta-feira prxima, corrida de ces na floresta de Fontainebleau. - Os passeios em carrinhos foram inaugurados tera-feira ltima. - O visconde fez a sua primeira batida de caa. Registrou cento noventa e cinco perdizes. - Fostes ao campo de tnis do parque? Estava encantador. - No, mas teria ficado satisfeitssimo de reencontrar o Duque de Leuchtenberg. - Sabeis, disse o homem especado, sem mudar de posio, sabeis que a casa de Leuchtenberg a mesma dos Beauharnais, originria da Orleanesa, que encontra sua raiz em Guilherme de Beauharnais, Senhor de Miramion e de La Chausse, em 1309. Eugenio de Beauharnis, filho do Visconde Alexandre de Beauharnais e de Josefina Tascher de La Pagerie, depois Imperatriz dos Franceses, foi adotado por Napoleo I. Prncipe francs, foi eleito Duque de Leuchtenberg e Prncipe d'Eischtaedt. Seu filho Maximiliano esposa a Gr-Duquesa Maria, filha do Imperador Nicolau I, da Rssia, e toma o nome de Prncipe Romanovski, com a qualificao da Alteza-Imperial para toda a sua descendncia. - Como ter sido possvel, no ato de casamento de Napoleo Bonaparte existir uma certido de idade constatando que ele nascera a 5 de Fevereiro de 1768, quando a data oficial a de 15 de Agosto de 1769? - Ele se fazia mais velho para aproximar-se de Josefina, remoada a seu turno no mesmo ato. Um outro conviva tomou a palavra para descrever, com enfadonhos detalhes, o desenho do braso de um noivado do seu conhecimento, minuciando as cores, o que havia nas quatro divises do escudo, no cimo, na base, nos lados e risca central, tendo, o do noivo, nos suportes, dois lees, e, no da noiva, trs cabeas de lobo, tudo cheio de variaes coloridas. Isso provocou um jocoso comentrio do general. - Minha cara baronesa, continuais com as vossas duchas, apesar do frio glacial que faz? - Sem dvida, todas as manhs. - E sempre com o Dr. Calais? - Sim. Ele ducha muito bem. Acho seu jacto excelente.
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- Pois eu mudei. Vou atualmente a Passy. O Dr. Chevreuse mais afvel. Alm disso, a casaca e a gravata branca lhe do aspecto mui distinto no seu mister. - No compreendo que mulheres se coloquem assim nuas diante de homens quase desconhecidos, sussurrou o general ao ouvido da sua vizinha, embora confesse que no deve ser desagradvel a profisso de aplicar duchas. - Eis uma salada deliciosa! - Virgem primeira colheita, explica o dono da casa. - Podereis mesmo dizer! extra virgem, ajuntou o general, e mesmo virgem nctar, pois creio haver trs categorias da primeira qualidade. - A que vos estais referindo? - Ao azeite. - Foi patinao, esta manh, Senhorita Estela? - Sem dvida! Essas nevadas me atraem. E' absolutamente soberbo. Gelo excelente e batido qual um assoalho de salo. Patinava-se em fileiras de dez pessoas. - Sempre muita gente, no? E a fina flor! - E se combinssemos para amanh cedo? Perguntou o duque. - Impossvel. Temos convites de jornalistas para o duelo de amanh, e jantaremos na Grande Jatte. Depois de amanh, serve? - Pois sim, combinado! 's dez horas, no lago. - Onde acompanhar os sermes da Quaresma, este ano, cara baronesa? - Na Notre-Dame. - Ah, eu prefiro a Madalena. Os chapus so muito mais chiques. E da por diante pouco se entendia. Todos falavam quase ao mesmo tempo. O duque retomou a palestra a meia-voz com a sua vizinha, a propsito da guirlanda de flores rubras que corria ao longo da mesa, assegurando no gostar da cor vermelha, e apreciar as flores azuis. Assim tambm no apreciava as mulheres morenas, porque so muito masculinizadas. Para ele, a verdadeira mulher, arrebatadora, filha de Eva, a fada, a encantadora, era a loura, principalmente a de olhos negros, sonho delicioso que faz esquecer todo o Universo. Havia visto suficientemente o mundo, Par poder avaliar a real beleza. Acusavam-no de bem afortunado, mas havia sempre exagero. Aos cinco lustros de idade, ou antes, depois de meio decnio de observao, havia encontrado apenas sete ou oito mulheres verdadeiramente louras, do seu preferido, do louro de Veneza, e neste pequeno nmero somente uma representava totalmente o seu ideal. - Acusa-vos, senhor Duque, de grande jogador.

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- Outro exagero. Jogo unicamente para passar tempo, uma vez que no tenho entretenimento mais agradvel. Falando verdade, no tenho amor ao jogo. - Mas jogais todas as noites? - Sim; um pouco, porm no meu crculo, a exemplo dos meus amigos. - E sois felizes no jogo? - Principalmente de quinze dias a esta parte. Tenho mascote, - Mascote? - Sim. Uma ponta de fita azul. Vede-a, insistiu ele, ei-la aqui. Estela sentiu que devia desviar por instantes o rosto do olhar indiscreto do seu interlocutor, e fez meno de beber na taa de champanha. O duque, apercebendo-se do gesto, acrescentou imediatamente: - Imagina-se que eu nada fao, mas trabalho enormemente. Passeio a cavalo, pela manh, ou fao esgrima, quando chove. Toco piano, quando posso; cao trs meses por ano. Compus uma pea teatral, em colaborao com o meu amigo Serdo, e traduzimos Schiler. No ano passado, redigi a crnica esportiva para o Gaulois. Presentemente, leio Schopenhauer. Durante bem longo perodo, aprofundei-me na Numismtica, para classificar as moedas romanas, e vou agora desenhar fachadas Renascena para o Castelo. Minha me muitas vezes me diz jamais ter visto quem trabalhe tanto quanto eu. - E a dana? - E' o que prefiro a tudo! - Porque no vos fazeis eleger deputado? - No h deputado de acatamento, em condies de ser ministro, seno entre os casados. Um ministro solteiro no pode dar recepes. Dir-me-eis conhecermos um, talvez o mais poderoso de todos, que ainda no se casou. Mas, sonho. Quanto a mim, no me casarei nunca, a menos que... E a nica... Experiment-la- por mim os mesmos sentimentos que lhe consagro de h muito... Desde o dia em que a encontrei pela primeira vez? E, alm disso, seu corao lhe pertencer ainda? Nesse momento, a dona da casa deu, erguendo-se, sinal de que o jantar havia terminado. Os convivas dirigiram-se para os sales cintilantes de luz e onde as mesas de jogo j estavam preparadas. Bem depressa foi ouvido o anncio dos primeiros visitantes: Senhores Aimelafille e Piedevache, senhor e senhora de la Mouchardire, senhoras Abelard e Condessa de Saint-Phal. - A propsito, disse a marquesa ao jornalista, prestai ateno no vosso noticirio mundano de amanh, especialmente em citar exclusivamente os nomes com partcula de fidalguia.
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O duque havia oferecido o brao a Estela. - Que pesar! Suspirou ele, no se valsar esta noite. Tendes danado muito nestes ltimos dias? - No, depois da outra reunio. - Assim tambm ocorre comigo. - Tendes ido ao teatro, senhor Duque? Vistes a pea dos Cmicos a que se referiu o general? - No, senhorita. Tenho passado minhas noitadas no Crculo, e, conforme o hbito, jogando. E a no fao seno ganhar, graas minha mascote, a qual no me deixar nunca, nem mesmo na Armada, onde, como deveis saber, sou oficial. Se tivermos guerra, estou certo de que no serei ferido. - Imploremos para que no haja guerra. E horrvel. - Bem ao contrrio, senhorita, cr que a teremos, e bem proximamente. Acreditais que possamos passar longo tempo com a Alscia e a Lorena nas mos dos alemes? Por isso, h momentos na vida em que no desagradvel expor-se a perigos. - Principalmente com a mascote, ironizou Estela. - A verdadeira mascote, senhorita, no somente esse pedao de fita azul arrancado num movimento de cotilhon; uma imagem encantadora que no mais abandonou meu corao. - O senhor toma caf? Indagou um alto lacaio todo agaloado que seguiu os convidados sada da sala de jantar. Esponsais Mundanos Estela e o duque amiudadamente se encontravam nas reunies mundanas, e a crnica anunciava j uma prxima unio matrimonial. E teria sido difcil achar dois seres mais bem talhados para uma vida comum de mundanismo e esplendor. Portador de soberbo nome, o duque tinha o seu braso a redourar; herdeira de enorme fortuna, Estela estava, pela educao, preparada para ser uma deliciosa duquesinha. Ambas as famlias acariciavam tal projeto, e cada ama procurava aproximar docemente os jovens um para o outro. Desse modo, eram as famlias as autoras do casamento; mas eles julgavam seguir os impulsos pessoais. Amavam-se? Um pouco, por parte de Estela; nada, por parte do duque. Elegante, frio, correto, bom jogador - nos baralhos e no amor, tinha por ambio - o dote. Quanto mulher propriamente, por mais atraente que fosse j conhecera numerosas, e delas estava meio farto. timo comediante, quase de boa-f, fora do hbito de fingir. Seu ttulo nobilirquico valia bem uma fortuna, e, sua vez, a riqueza lhe era absolutamente indispensvel, primeiro 19

para pagar as dvidas feitas, depois - para ocupar o destaque ambicionado por ele no grande-mundo. Estela achava-o um jovem perfeitamente fino. Era o primeiro que se lhe prendera ao pensamento, e sentiam-se pouco a pouco atrada para ele, pela distino, amabilidades, esprito e atenes delicadas. Ainda no ouvira falar em projetos de casamento; mas, interrogada de sbito que fosse sobre seus sentimentos a respeito, no teria surpresas. Nos seus devaneios, no encontrava nenhum obstculo, salvo, por vezes, a paixo do duque pelo jogo. Os trs meses do Inverno passaram assim: no dia de Ano-Novo recebera, com amvel carta do duque, das serras da Blgica, gigantesca cesta de lilases brancos; aps, na ceia de Reis, tendo-lhe cabido a fava simblica, foi feita rainha. A Pscoa foi um pretexto escolhido pelas duas famlias para estreitar os laos j muito fortes, e desta vez ela recebeu o duque em sua casa, no baile fantasia organizado por seus tios. Noite de raro esplendor, uma das que fizeram mais rudo em todo o Paris naquele Inverno. Vrias centenas de pessoas se comprimiam nos sales magnficamente decorados, e todas as fantasias rivalizavam em originalidade, brilho e ostentao. O duque escolhera um costume diretrio, que lhe assentava muito bem; Estela mandara desenhar expressamente para si um delicioso costume veneziano. Suas amigas mais ntimas estavam l; flores resplandecentes deslizando quais alegres liblulas atravs do deslumbramento de luzes, risos e canes. A orquestra iniciou a festa com uma das ouverture da Carmem. Todas as amigas de Estela deviam cantar. Foi Ceclia quem, na sua encantadora fantasia de Colombina, comeou, com uma cano muito em moda naquela poca. O acompanhamento foi feito por ela prpria na ctara, agradando muito. - Que isso? Perguntaram-lhe. - Chama-se Um sonho, respondeu. Creio que j a conhecem. No a cantarei to bem quanto condessa. - Cantar sim, disseram. E' muito interessante. E ela cantou: Rapelle-toi le temes de nos chansons Oc nous bravions le rire des pinsons; Le temes o plein d'ivresses printanires L'amour jaisait l'cole buissonire. (Recorda os tempos de nossas canes - em que atacvamos rindo os tentilhes - os tempos em que, cheios da embriaguez primaveril - o amor nos fazia gazear escola.).

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Souviens-toi, souviens-toi de l'heure brve Oc tu m'as dit que tu m'aimas! Souviens-toi! Souviens-toi!... Ie joli reve Reviendra-t-il jamais? (Recorda-te, recorda-te do momento fugaz - em que disseste que me amavas! - Recorda-te! Recorda-te!... O lindo sonho - nunca mais voltar?). Os aplausos cobriam as ltimas palavras e encorajaram a jovem cantora, que demonstrara grande delicadeza na maneira de dizer essas coisas emotivas. Um poeta reprovou 1'heure brve ao ouvido de seu vizinho, que rejeita a fraqueza do termo em relao rima necessria, acrescentando que a msica atenuava tudo. Voltou o silncio e a linda Colombina sublinhou, com maior finura ainda, a estrofe seguinte: Tes yeux brillants prennaient un air moqueur Et ton sourire assnssinait moa coeur, Et je guettais, voltigeant sur ta lvre, L'aveu charmant qui redoublait ma fivre. Souviens-toi.. , (Teus brilhantes olhos tomavam um ar brejeiro e teu sorriso feria meu corao. - E eu espreitava adejante em teus lbios - a linda confisso que redobrava minha febre. - Recorda-te...). O auditrio estava identificado com o assunto, e os aplausos estrugiram em trovoada. Encorajou-se mais ainda, e cantou com calor a ltima estrofe, muito bem acompanhada por seus dedos, geis no manejo da citara de lnguidos sons: Nous nous aimions toujours cemme deux foux. Et Ies baisers dont nous tions jaloux,Noas desirons encore nous Ies rendre;Nos coeurs sons jait, voistu, pour se comprendre. Souviens-toi! souviens-toi!... O jolti rve,Ne t'en va elas jamais! (Amamo-nos sempre quais dois loucos, e ainda hoje desejamos dar-nos os beijos que tanto ansivamos. - Vem, nossos coraes foram feitos para se compreenderem. - Recorda-te. O lindo sonho, - no me abandones mais!). Divinamente cantado por essa cabecinha vaporosa, o estribilho foi saudado com verdadeiro estrpito. Ceclia estava rubra qual um papa figo. Nunca se vira em festa igual. O ambiente era simptico. O xito no depende muitas vezes do auditrio? Conversava-se agora. - A pequena Colombina est boa para casar, disse um senhor a seu vizinho, acompanhando-a com um olhar vivo, enquanto ela voltava ao seu lugar. - Ela no tem dezessete de idade. - Acredita que... Acrescentou em voz baixa ao ouvido de seu interlocutor. - No tenho dvidas. E' uma criatura honesta, absolutamente. Alm do mais, admirvelmente educada.

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- E' curioso, as meninas cantam cada coisa... Chega-se a acreditar que conhecem um pouco. Reparou com que entusiasmo ela disse: Amamo-nos sempre quais dois loucos! Acredita que no compreenda isso? - Tenho certeza. Pura imaginao. O senhor no querer condenar seus filhos a cantar apenas cnticos religiosos! - E' o mesmo: convenha em que elas escolhem assuntos bastante escabrosos e tambm em que no tm a aparncia de estar cantando em chins. - Oh! Veja a Senhorita Adriana d'Hauteville ao piano. Aprecia um semblante com olheiras? Eu sim. Ela adora as velhas canes da av. - E' um pequeno trecho de Jean - Jacques Rousseau anunciou Adriana. E preludiou lentamente. Depois cantou, com acentuada expresso de ardente paixo: Le coeur me palpite Quand j'entends ta voix. Tout mon sang s'agite Ds que je te vois. Ouvres-tu la ouche f Les eieux vont s'ouvrir. Hi ta main me touche Je me Bens mourir (Palpita-me o corao quando ouo tua voz. - Todo o meu sangue se agita - quando te vejo. - Abres a tua boca? - Os cus vo-se abrir. - Se tua mo me toca - eu me sinto morrer!). - Ah! Meu Deus, disse alegre o gordo senhor, que ir acontecer? Se comea assim!... - Veja que no de hoje, replicou seu vizinho, o Visconde de Valvin, uma cano do tempo da av. - As mulheres sempre foram iguais. Nunca me convencer de que ela no escolheu propositadamente essa cano, pois a compreende muito bem. - Acreditais realmente que ela tenha algum em cujos braos se sintam morrer? - No vou at a, mas acredito que ela no desejaria outra coisa. E, depois, pediram a essas jovens que iniciassem a festa. Isso no tem importncia. A Senhorita d'Ossian, que devia comear, nunca teria ousado tanto. Mas, onde estar ela? Procuraram-na com os olhos e no a encontraram. Fora para o quarto de vestir, acompanhada de Ceclia, mudar a toalete de jantar e vestir a fantasia que preparara expressamente para essa noite. Era um costume veneziano do sculo XVII que fazia ressaltar singularmente o esplendor de sua tez e o ouro fulvo da cabeleira. Despindo-s e vestindo-se diante do alto espelho do seu quarto, conversava com a amiga e lhe respondia s perguntas. - Sabes ,que sers a mais linda duquesinha que j se viu, quer em Veneza, quer em Versalhes? - Oh! Isso ainda no est decidido...

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- Est nas tuas mos que assim seja. Tudo te vai bem. Sabes que ficas muito melhor sem espartilho. Mas que perfume est usando? O ambiente de teu quarto est todo perfumado! - Eu? Sabes bem que no gosto de perfumes. Nunca escolhi um. - No possvel. Serei indiscreta? - Afiano-te. Nunca comprei o mais insignificante perfume. - No queres dizer-me. E' curioso que as lindas mulheres faam um segredo de Estado de suas guas de toucador! J adivinhei... ... espera...verbena... ris... no... eu sei. E' uma das primeiras flores da Primavera. No ms de Maio floresce na sebe do parque de meu tio... E.. sabugueiro, quando o boto abre. Colhi no ano passado. - Mas Ceclia, tu no sabes o que dizes. Vamos! No teria segredos contigo, e ainda menos de to pouco valor. Mas estamos vadiando, disse atirando a mantilha de seda dourada sobre os braos nus; devem ter notado minha ausncia. Depressa! Desamos! Procuravam-na, com efeito. Apareceu encantadora em seu elegante costume, e um instante aps sentava-se ao piano. Cantou, por sua vez, com voz adoravelmente pura, um pouco trmula: Los levres et le coeur sont dos eoupes divinos Oc les tres humains s'abrevent a longs traits. La livre est le desir qui boule nos poitrines, Le coeur est le trsor oc dorment nos secrets. (Os lbios e o corao so taas divinas, onde os seres humanos mitigam sua sede. - O lbio o desejo ardente que queima nossos peitos, - o corao o tesouro em que dormem nossos segredos.). A msica era deliciosa e todos ficaram encantados. A austera rigidez da Condessa de Noirmoutiers, no vendo nessas quatro linhas um sentido dbio, como em quase todas as canes em voga nas reunies musicais, partilhou da admirao de todo o auditrio pela sua encantadora sobrinha. Um tenor sucedeu a Estela; a seguir foi vez de um cantor de canonetas cmicas; depois, uma jovem da melhor sociedade cantou, com muita delicadeza, uma cano ligeira que tinha por ttulo: E' o vento. Em seguida, uma insinuante morena, de bands lisos e cabea de Madona, cantaram com um jovem SaintCyrien apaixonado duo de amor. As danas iam ter incio. As amigas de Estela cercaram-na em uma saleta antes de se lanarem ao turbilho que j lhes fazia fremir as pernas. Contudo, a curiosidade as dominava. - Ento est decidido, disse Adriana. Vais casar-te? - Ainda no disse: sim.
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- E' preciso to pouco! Ele perfeito, bem o sabes. - Sim. Homem de sociedade, alta nobreza, pessoa elegante, distintssimo: o que eu sempre sonhei. Sou de tua opinio. Cada uma de ns tem o seu tipo, o seu ideal. Creio que encontrei o meu. E tu, nunca sonhaste? - Eu, disse Ceclia, que escutava, desejaria desposar um oficial alto, magro, de bigodes; viajar, percorrer a Frana. , E' uma vida adorvel. Brilhase em toda parte, qual rainha; monta-se a cavalo; no se firmam relaes ntimas com ningum, -se livre e independente. Apenas quero um oficial com muitas probabilidades de chegar a general. Os moos no me interessam. - Olhem o Dr. Pusap, que se desprendeu de seus estudos abstratos, divertindo-se em fazer quiromancia. Ceclia estende-lhe tua mo esquerda. - De boa vontade, senhorita. Acabo de ouvir o sonho de sua amiga. Nada me impede confirm-lo. - No, senhor. Diga francamente tudo o que vir. - Pois bem. Desposar um homem estvel, at um pouco pesado, provvelmente da magistratura superior; no viajar e ter filhos. - Quantos, senhor adivinho? - Cinco. - Juro que no. No acredito tudo. - E tem muita razo. Sonhe, durma em paz, dance e deixe o destino andar. - E eu? Disse Adriana, tirando as luvas. Serei enganada por meu marido? - Para responder-lhe preciso ver a mo de seu marido. Pode trazer-mo? Meu marido? Ainda no o conheo. Responda-me pela minha mo. E' mesmo a mo esquerda? - Quer ento um marido da mo esquerda? - Nunca disse isso. Desejo um marido da mo direita, que s pense em mim; que no tenha ocupaes; que no seja de negcios, principalmente das finanas; que viva de suas rendas, em Paris; que tenha uma frisa na pera e na pera Cmica; que tenha bons cavalos, e aprecie flores; um marido quieto e apaixonado somente por mim; que s se ocupe comigo e me presenteie amide. - Moreno ou louro? - Louro e de olhos azuis; a vida em comum calma e tranqila. - Veja bem aquela linha que parte do monte de Vnus... - Onde est isso, o monte de Vnus? - Ali ao lado da palma, em baixo do polegar. Jpiter est na base do ndice; Saturno na base do dedo mdio; sob o anular est Apolo, e Mercrio na base do dedo mnimo. A linha da vida contorna, como se v o monte de Vnus. E' a primeira perna da letra M; a segunda perna a linha da cabea, e a quarta, que atravessa a mo no sentido da largura, a linha do corao. Esta linha que desce do dedo mdio e vai at ao pulso a linha da fortuna, ou da
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felicidade, a terceira perna, do M de que falamos. A senhorita tem-na bem acentuada, porm cortada aqui, veja, e ali tambm. - E que significa isso? - Que no ter sua vida inteiramente calma, como Desejaria. Seu marido... - Ah! Acredita? - Receio. E senhorita mesma... Se no tiver princpios... Seus olhos so muito negros e muito vivos. E' um temperamento oculto. H pouco acentuou admiravelmente a cano de Rousseau. Uma terceira amiga se adiantara. - Eu, disse ela, no gosto que me leiam mo. No me casarei. - Solange, tens medo! Disse a morena. - Medo de qu? - Medo de que se veja em tua mo coisas que ocultas. - Certamente que no. Nada tenho a ocultar. Mas um pecado procurar conhecer o futuro. - No preciso ver sua mo para predizer que vai casar senhorita, e que far um casamento muito acertado. Mas nunca possuir a verdadeira felicidade, apesar de toda a sua prudncia. Nesse momento o Duque de Jumiges irrompeu com seus amigos no meio do lindo grupo. - Senhoritas, procuram-nas por toda a parte, para danar. Por acaso vo passar toda a noite contando novidades? - No falamos da vida alheia, replicou Ceclia. Este senhor nos fala do nosso futuro. - E ns viemos para lev-las. - No antes que ele fale do meu futuro, afirmou Estela. E estendeu sua mo ao Dr. Pusap. - Senhorita d'Ossian, disse, ser a mais feliz. - Ah! Exclamou o duque, aproximando-se. Sim. Porm, tal qual o destas jovens, seu destino ser muito diverso daquele que acredita ter diante de si. Sua vida mudar completamente. Veja aquela linha que se volta ali. Modificao completa, transformao radical. Justamente o oposto de suas idias atuais. Mas felicidade perfeita, repito-lhe, isso est claro quanto luz do Sol. - Durante muito tempo? Ser completamente feliz e no ter a tristeza de envelhecer. - E o senhor, duque? - No ser muito feliz. Vida muito agitada, assemelhando-se um pouco a todas as existncias comuns. E, voltando-se para o Capito Lomond, acrescentou ao ouvido: - Morte trgica. - Eis a dois horscopos difceis de conciliar, disse o duque. Felizmente no h nada de real; isso simplesmente um modo como outro qualquer de
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passar o tempo. Mas, esse tempo passa e a orquestra nos chama. Vamos ao salo branco! - E' bem estranho, pensou Estela; j me fizeram uma predio anloga h quatro anos. Ser a vida escrita com antecedncia? O duque ofereceu o brao sua noiva e todos voaram para o baile j muito animado. As noites continuaram assim durante toda a Primavera. No havia uma promessa formal entre aqueles que muitos denominavam os dois noivos. Estela no se decidia. Em um dia da semana de Pscoa, por uma bela tarde, a jovem estava sentada, em companhia de seu, tio e sua tia, em frente ao chal da cascata do Bois de Boulogne. Amava esse recanto do bosque, to verdejante, to alegre, com suas perspectivas vizinhas, o prado de Longchamps, o moinho da Bagatelle, a colina de Saint-Cloud, os vapores azulados do Sena. Perceberam o duque, que passou rpidamente sem os ver, montado em uma bicicleta, e que mudou bruscamente a direo para desaparecer qual relmpago na avenida das Accias. - Ento, minha Estela, sonhas? disse a Condessa de Noirmoutiers. - Efeitos da Primavera, replicou o tio. - Continuas sempre sem te decidir? - Tenho muito tempo; sinto-me bem na companhia de meus tios. - Sem dvida, mas tu no segues os passos da tua tia-av, a Duquesa de Lesdijuires, que era av aos trinta e dois anos. - E que, acrescentou o conde, tomou por emblema uma laranjeira carregada de flores e frutos, com esta divisa: o fruto no impede a flor. - Somos menos apressados hoje em dia, respondeu Estela. Ps-se a conversar todos trs a respeito de suas relaes, dos ltimos casamentos, das propostas que j tinham recebido para ela. Estela continuou a afirmar que nunca pensava em abandon-los. Sua conversao foi interrompida pela chegada de uma boda ruidosa que desceu correndo do pequeno montculo da cascata e que se precipitou na direo das mesas do terrao do caf. Os recm-casados foram os nicos que no tomaram parte no barulho e seguiam de longe seus convidados, conversando muito seriamente. Vieram sentar-se perto deles, sem se preocuparem com o sqito da boda, o qual se dispersou ao longe. - Isso que coincidncia, disse o conde. Queres dar um pequeno passeio a p em torno do lago? No falaram mais em casamento nesse dia. Porm, um ms mais tarde, Estela d'Ossian e o Duque de Jumiges eram noivos, para todos os efeitos, perante as duas famlias. Ela, na verdade, no dera absolutamente o seu consentimento; reservava-se, dizia, alguns meses ainda, at o Vero, e, quando
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o duque lhe falara das alianas de noivado, adiara o assunto, rindo com o seu lindo sorriso Quando ficar oito dias sem jogar; no quero rival; de duas paixes ao mesmo tempo, uma demais. Mas, evidentemente, dizia apenas um gracejo. O casamento estava quase marcado pelas duas famlias para Setembro ou Outubro. E as festas continuaram. No domnio do Desconhecido Certa noite de Inverno, depois de um belo dia de geada seca e pleno de sol, Estela, ao despentear-se para alisar sua linda e luxuriante cabeleira, ouviu ligeiras crepitaes, semelhantes ao rudo que faz a neve fina e dura lanada pelo vento contra a vidraa, e sentiu ao mesmo tempo seus cabelos eriaremse at raiz. Foi no internato, aproximadamente s suas catorze primaveras, que fizera essa primeira observao. Depois dessa ocasio, o fenmeno se renovara com freqncia. Vrias vezes sua cabeleira se mostrara rebelde a toda tentativa de penteado, e se embaraara obstinadamente, com perda de toda flexibilidade. Algumas vezes, em seu velado gabinete de toalete, notara no espelho palpitantes clares acompanhando as crepitaes passagem do pente. Certa vez, a camisa de dormir, de fina batista, instantaneamente se lhe colara ao longo das costas com uma aderncia extraordinria e, tentando desprend-la, sentira picadas na carne, ouvira crepitaes e viram pequenas fascas aqui e ali: Divertiam-se, ento, passando rpidamente as mos ao longo da leve pea ele vesturio sobre o corpo, e fazia brotar clares muito vivos, semelhantes a clares fosforescentes. Essas mesmas crepitaes e essas fascas se produziram sacudindo uma saia de l cor de rosa que acabara de tirar. Voluntriamente rodeava-se de chamas. Chegara a observar luzes espontneas em sua carne, e por vezes eflvios luminosos escapavam de seus dedos. Algumas vezes tambm os lenis aderiam um ao outro e, quando os separava, deixavam ver pequenas fagulhas. Quando pela primeira vez transmitira essas observaes tia, esta se limitou a rir bem, acusando-a de iluso e quase alucinao. Em diversas circunstncias voltara ao mesmo assunto, sem obter explicao alguma. Um dia em que seu tio, intrigado, a interrogava discretamente sobre essas diversas observaes, ela notou que, embora sem partilhar da mesma incredulidade, ele via em tudo isso apenas efeitos de imaginao, acrescentando, porm, que talvez houvesse algum fenmeno eltrico. No desejo de instruir-se em assunto que a tocava to de perto, e que, sem dvida, pensava, no lhe era exclusivo, contara na mesa, ao lado do duque, a histria como vinda de uma de suas amigas. O homem, mundano, que nunca ouvira falar sobre o assunto, acolheu a narrao com um sorriso de incredulidade, e afirmou com ar desdenhoso que
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a tal amiga tinha imaginao muito divertida, mas que nada podia haver de verdadeiro em tudo isso. No entanto, ela estava certa do que constatara. Sua natureza era muito personalista, e no se perdia nas vagas. Amava os devaneios, mas no se abandonava a eles. Viajantes narram que, nas runas do velho castelo de Bden, se ouvem, noite, ao claro da Lua, harpas elias que vibram suavemente ao sopro da brisa. Estela no era uma harpa elia vibrando inconscientemente passagem do vento. Sentia-se com uma energia muito prpria e comeava a achar-se bastante diferente das mundanas e mundanos insignificantes, com os quais estava em contacto. Sentia-se chamada a uma vida ao mesmo tempo mais original e mais sria. Sob a beleza clssica, bastante fria na aparncia, escondia um temperamento muito impressionvel. Era uma Diana, porm Diana que uma centelha poderia animar e arder com incendirio fogo. Quanto mais observava o mundo, mais se encontrava diferente, pela natureza; gostos, tendncias de seu esprito, nas vibraes de seu corao. A resposta desdenhosa e a ignorncia evidente do duque chamaram-lhe a ateno, tanto mais que nunca, quando o interrogava sobre um assunto cientfico qualquer, ele pudera dar-lhe uma resposta satisfatria. Esses homens do mundo seriam ento desprovidos de toda instruo real? Viveria ento toda a vida sem nada saber, sem nada aprender? Em certos dias de enervamento, deixava-se levar por um vago devaneio, e por vezes passava horas esquecidas de cio na biblioteca de seu tio, a bisbilhotar aqui e acol, s vezes romances, pelos quais no tinha grande inclinao, e com mais freqncia livres de Cincia ou de Histria. Muito exigente na escolha, raramente lhe acontecia encontrar alguns captulos seriados suficientemente belos ou interessantes para cativar sua ateno e inmeras vezes folheava uma obra sem l-la. Mas, quando por acaso um livro tinha o dom de agradar-lhe, no o abandonava enquanto no o terminava. Estendia-se no div, a cabea e os braos apoiados em travesseiros, e mergulhava na leitura, esquecida das horas e de seus projetos. Num dia, em que nada encontrara ao seu gosto, dispunha-se a voltar ao salo e partir para um passeio ao bosque, quando, sobre uma diviso de estante prxima porta, o ttulo de um livro elegantemente encadernado em vermelho lhe feriu de repente a vista. Esse livro tinha por ttulo: O Domnio do Desconhecido, e no trazia nome de autor algum. Apenas o prefcio estava assinado, anonimamente, alis, e sem nenhuma preocupao de glria: Um Solitrio. A primeira pgina comeava por esta frase: O que conhecido pelo homem pode ser representado por uma ilha minscula, em redor da qual se

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estende, at ao infinito, um oceano sem limites. Esse infinito o que nos falta conhecer. Algum j disse que se o homem procura s vezes a verdade em um livro, a mulher procura nele acima de tudo suas iluses. Nesse livro Estela encontrou tudo. Era a primeira resposta multido de questes que ela muitas vezes se apresentara a si prpria. Folheou-o e viu, pelos ttulos no alto das pginas, uma grande variedade de assuntos curiosos: A Vida e a Morte - O Diabo e os Demnios -As Bruxarias do Sabat - Processos de Bruxaria - O Oculto - O Magnetismo - Os Sensitivos Aurora Boreal e Agulha Imantada - As Aparies - Os Pressentimentos - Os Sonhos - Que o tempo? - O Cu - O Alm - As Aspiraes -. O Corpo Astral, etc., etc. Porm, um ttulo atraiu seu olhar, ttulo composto por duas palavras simples Eletricidade humana. E por esse captulo iniciou a leitura. Foi para ela uma revelao, um despontar de sol, um desdobramento de horizontes sem fim. A crislida que desperta aos raios do Sol primaveril e se agita febrilmente e quebra o invlucro para iniciar seu vo no espao livre, no sofre metamorfose mais completa do que a transformao de todo o ser experimentada pela jovem, medida que devorava as pginas desse livro. Parecia-lhe que pressentia tudo, que estava preparada, pela sua vida anterior, sua natureza pessoal, suas reticncias mundanas, seus gostos reais, suas aptides, para beber nessa fonte de gua viva. Todos os fenmenos que sentira em si prpria estavam explicados e descritos com mincias. Aprendeu, por essa leitura, que a eletricidade desempenha um papel importante, e pouco conhecido, na vida de todos os seres, fluido que se transforma no sistema nervoso e se manifesta ate nos fenmenos de ordem psquica que e uma espcie de magnetismo que age entre as almas e entre os corpos que os efeitos antes to curiosos que ela observara j haviam sido estudados em manifestaes mais intensas em outros seres, tais a Anglica Cottin, por exemplo, que, conforme relatrio de Arago Academia de Cincias, atraa mveis qual o m atrai o ferro, e a vidente de Prevost, caias vises sonamblicas eram extraordinrias. Os fenmenos eltricos que se desenvolvem em certas condies interessaram-na particularmente. Leu no referido livro que, no Canad, quando fazia frio muito seco, as jovens se divertiam s vezes, estendendo os lbios ao se beijarem, dando esses beijos, assim, origem a uma fasca bastante viva, e que, friccionando os ps em tapete, era possvel acender um bico de gs, aproximando a ponta do dedo. Essas questes de Fsica e Fisiologia a apaixonaram e lhe fizeram entrever um novo mundo.

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Ainda no terminara o captulo sobre a eletricidade humana e j ansiava ler todo o livro, da primeira ltima pgina. Levou-o para seu quarto e esqueceu o passeio ao bosque, planejado e organizado desde vrios dias, com suas amigas. Era a primeira vez que se apaixonava por um livro, e esse livro era cientfico. Os romances que tentara ler no haviam conseguido cativ-la. Em geral, a fico desagradava-lhe. Parecia-lhe que os romancistas contavam na maioria das vezes fatos que todo mundo conhecia, falavam sem nada dizer, escreviam coisas que ningum aprendia, discutiam assuntos banais. Naquele livro encontrara um fundo substancial, uma realidade de ordem superior, a prpria Natureza com seus imensos problemas. O autor estudava o ser humano, o corpo, a alma, as foras, o Espao, o Tempo, o Universo. As pginas sobre as radiaes invisveis, as vibraes e as aes distncia intrigaram-na ao mais alto grau. No ouviu bater hora do jantar e foi preciso que sua tia fosse busc-la no quarto. No falou do emprstimo que tomara na biblioteca do tio e, to logo terminou o jantar, retirou-se, para continuar a leitura, que s terminou alta hora da noite. No dia seguinte, ao almoo, no pde conter-se por mais tempo e interrogou o tio. Este, a princpio, a repreendeu vivamente, por ter apanhado um livro na biblioteca sem pedir autorizao. Poderia, agindo assim, cair-lhe nas mos uma obra imprpria para uma jovem. Quanto ao livro de que lhe falava, achava-o demasiado grave para ela. - Suponhamos, por exemplo, acrescentou, estendendo-lhe um in-18, publicado, 1859, que escolhesses este livro! Estela leu o ttulo: O amor das mulheres aos tolos. - Ah! Disse ela, no acredite que eu o folheasse sequer. - Pode-se, entretanto, defender a tese, que no de todo paradoxal. E' at caso muito comum. Napoleo no foi compreendido por suas duas esposas. - Nunca eu amaria um tolo! - Est bem. No ntimo fiquei satisfeito de teres lido essa obra interessante, que acaba de abrir tua imaginao horizontes inteiramente novos sobre o Alm. Esse escritor tem sobre muitos outros a vantagem de no ser banal e ocupar-se com problemas sugestivos, como se diz. E' um dos meus autores favoritos e tenho todas as suas obras. Aprecio o seu saber luminoso e vivo. No necessrio ser obscuro para ser profundo, nem fastidioso para ser sbio. Falaram dos interessantes captulos sobre o magnetismo terrestre, misteriosa fora vital de nosso planeta. Havia uma bssola na pea vizinha. A convite de seu tio, Estela colocou-a sobre a mesa e observou a leve oscilao e seu rumo um pouco a oeste do Norte. O Conde Noirmoutires explicou que este rumo vazia conforme a regio, no sendo o mesmo em
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Paris, Roma ou Madrid, que varia tambm de ano para ano, de sculo para sculo e que existe na pequena agulha imantada a manifestao de uma intensa vida planetria. Ensinou-lhe tambm que tal direo da agulha oscila regularmente em certas horas do dia, movimento que tem uma certa correlao com as manchas solares e at com os planetas. Um lao magntico liga o Sol a Terra e os mundos entre si, apesar da distncia e do vcuo aparente que os separam. Em seguida, apanhou uma faca de sobre a mesa e ps a lmina por cima da bssola: a lmina de ao atraiu as pontas da agulha, porm mais fortemente a extremidade Norte do que a extremidade Sul. Aproximou uma tesoura; a ponta repelia a extremidade Sul da agulha e atraa a extremidade Norte, enquanto o cabo da tesoura atraa a extremidade Sul e repelia a extremidade Norte. Os dois extremos de uma chave atraam as duas pontas da bssola. Esta frgil agulha se mostrava animada de uma vida ativa, agitava-se febrilmente sob influncia do ferro, deixava-se cativar numa espcie de frenesi ou fugia com aparncia de repulsa. De um lado, parecia querer desejar tal aproximao com af; de outro, desdenhava, temia, recusava-se. - So observaes que j podias ter feito no pensionato, acrescentou o conde, mas quero acreditar que elas nunca te interessaram e nem nunca te mostraram a vida magntica do nosso planeta. D'Almbert dizia, com razo, que uma pedra que cai faz o filsofo divagar, chamando sua ateno para a atrao da Terra. Vendo quanto curiosidade de sua linda sobrinha despertara com essas primeiras experincias, ele a conduziu para o seu gabinete de estudo e lhe mostrou um barrotim imantado de grande fora. Suspenderam uma pena de ao ao fio preso a uma rgua de madeira fixada em prateleira da biblioteca e a mantiveram sem contacto a alguns centmetros de uma das extremidades do barrotim. Era maravilha ver os trmulos da pena, sua tenso para atingir o m, a brusca reviravolta quando se lhe apresentou o outro plo, suas preferncias e suas recusas, e por vezes um tremor convulsivo to violento que, em dado momento, Estela, tomada de piedade, exclamou: - Basta, meu tio, o senhor a maltrata. Esta ao distncia e sem contacto do m sobre o ferro ou dos ms uns sobre outros; a vida latente de sbito revelada pela aproximao de um barrotim imantado; as linhas de fora que tendem para um mesmo ponto do globo; a rotao lenta desse sistema no interior e superfcie da Terra; a correspondncia da agulha imantada com a aurora boreal; a luz polar que ela assinala do fundo de uma adega e a correspondncia de todos esses fenmenos magnticos com o Sol - no seria suficiente para ferir a imaginao, mesmo o esprito mundano de uma jovem que nunca se impressionara com os grandes problemas da Natureza? Nesse dia, muito se falou de cincia, e Estela
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compreendeu que a cincia algumas vezes interessante e desperta na alma idias dignas de ateno. - A eletricidade, dizia o conde, uma fora imensa, ainda quase inexplorada. O Solitrio tem razo de proclamar que ela o agente supremo da vida. Age constantemente em torno de ns e sobre ns, no somente durante os dias ou noites de tempestade que precedem as descargas dos raios e em que os nossos nervos esto em um estado de agitao, que varia conforme os temperamentos, porm continuamente, mais ou menos, porque nunca est ausente. A eletricidade cria e mata; benfeitora ou malfazeja, conforme sua maneira de agir; uma chuva tempestuosa ativa instantaneamente os fenmenos da vegetao, desperta a fora, a beleza, os perfumes das flores, enquanto que o brusco estrondo do raio reduz o carvalho a lascas ressecadas e semeia a morte com a rapidez da sua prpria fulgurao. E' eletricidade que circula em nosso sistema nervoso e em nossos msculos; por ela que agimos; ela que impulsiona - os nossos gestos e que brilha em nosso olhar. E' ela que une a alma ao corpo; , falando com propriedade, a substncia de nossa alma; age entre os espritos, entre os coraes, entre os corpos. Leste, em um captulo do Solitrio, que cada um de ns irradia em torno de si ondas eltricas invisveis. As simpatias e as antipatias so explicadas pelo encontro dessas ondas, que podemos comparar s sonoras vibraes das cordas do violino, da harpa ou do piano. Faamos vibrar uma de tais cordas e produziremos um som. Se a onda sonora encontra em seu caminho uma outra corda em estado de vibrar harmonicamente com ela, esta segunda corda emitir um som sem necessidade de que algum a toque. E' uma experincia que se podem fazer todos os dias. Emite, pela voz, um som forte em uma sala, e os objetos em estado de vibrar com a nota emitida respondero; os outros ficaro mudos. Coloquemos dois ms semelhantes, podendo girar sobre as pontas, a alguma distncia um do outro. Toquemos um deles e faamo-lo oscilar, e o outro oscilar tambm. Se duas almas vibrarem em perfeita harmonia suas ondas mentais quando se aproximam se unem. Se a dissonncia no encontro das vibraes resulta a antipatia, No sabemos por que, mas todos os raciocnios sero inteis. Este homem me antiptico, aquela mulher me irrita os nervos. No se deve procurar corrigir essa primeira impresso, pois nossas ondas no se harmonizaro. Os semelhantes se atraem, os opostos se repelem: Nossas almas no so puros Espritos. So substncias fludicas. Agem e se comunicam entre si por meios materiais, porm matria sutil, invisvel, impondervel.
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Sim, a eletricidade ainda um domnio inexplorado, notadamente a eletricidade humana. As crepitaes e os clares que observaste em ti prpria so os indcios de uma sensibilidade especial. Estou certo de que poderias reconhecer os dois plos de um m. Quanto a mim, tenho a certeza de que, colocando-te ali, de p, diante da chamin, de costas para mim, seri-me-a suficiente estender o brao at o teu ombro, e querer fortemente, para que no te possas manter ereta e caias de costas. No o ensaiarei, entretanto. - Tudo isso muito curioso, disse Estela, e constitui para mim um mundo novo. Sabe o que mais me impressionou nesse livro do Solitrio? - As comunicaes com o planeta Marte? - No, ainda no as compreendi; um pouco forte para a minha ignorncia. O que mais chamou a minha ateno foi o captulo das aparies e o da transmisso de pensamento distncia, entre outras, a histria da beatificao de Afonso Maria de Liguri e a discusso, apoiada em provas, da sua apario ao papa. - Certamente conheces o fato. Estando este santo bispo em Scala, no Reino de Npoles, caiu um dia em transe, em estado de morte aparente, na poltrona em que habitualmente se sentava ao voltar da missa. Tornando ao estado normal, deparou seus servidores, que o acreditavam morto, ajoelhados diante dele. Meus amigos, disse-lhes, o Santo Padre acaba de expirar. Dois dias aps, um correio confirmava a notcia. hora da morte do papa coincidiu com a em que o bispo tornara ao seu estado normal. Ora, durante essa ausncia, Afonso de Liguri havia aparecido ao soberano pontfice, com quem falara, tinha sido visto e ouvido e assistira o papa at o momento em que este exalara o ltimo suspiro. No processo de beatificao, esse dom de bilocao ou ubiqidade foi classificado milagre e apresentado por prova de santidade. - Sim, lembro-me. Porm nesse caso no existe mais milagre do que na florao de uma rosa ou na ecloso de um passarinho do ovo e o acontecimento mais raro. Eis tudo, mais raro talvez do que um eclipse total do Sol em Paris. Essa histria sempre me impressionou por no me parecer contestvel, uma vez que se passou em pleno sculo de incredulidade, em 1774, tendo por objeto a morte de Clemente XIV (Ganganli), no ano seguinte ao Breve com o qual esse papa ousou suprimir a Ordem dos Jesutas. Foi em nosso sculo, em 1816, que a beatificao se realizou. E', pois, assaz recente; Liguri morreu em 1787, treze anos depois dessa apario. No meu modo de pensar, fatos dessa natureza uma prova em favor das teorias do Solitrio sobre a eletricidade humana e sobre o que chama nosso corpo astral - substncia fludica que ocupa todo o sistema nervoso do ser vivente, da qual tem a mesma forma e do qual verdadeiramente o duplo.

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Esse duplo que nossa alma dotada de esprito pode, s vezes, destacar-se do corpo e at mesmo afastar-se. - Encontrei tambm uma histria mais recente, extrada de um inqurito sobre o que se denomina - no sei bem porque - alucinaes telepticas, escrito por uma jovem cujo nome me interessou (pois que se assina Estela), em data de 18 de Janeiro de 1884,.narrativa que me fez passar um ligeiro arrepio por todo o corpo. Conta ela que, numa bela noite, estando sentada prximo da lareira, entretida na leitura de um livro de aventuras muito alegres e que lhe despertara forte riso, nesse instante, ouviu girar a maaneta da porta do salo onde se achava, e viu entrar um seu primo, que aparentava sentir muito frio, sem agasalho, embora nevasse. Levantou-se, para lhe colocar uma poltrona perto ao fogo e o recriminou por se haver deixado gelar daquela maneira. Em vez de responder, acrescenta narradora, ele colocou a mo sobre o peito e sacudiu a cabea, o que parecia indicar que no tinha frio, e sim que sofria do peito e era presa da afonia que lhe sobreviera ultimamente. Mais uma vez lhe reprovava a imprudncia, quando o Dr. G... , em cuja casa morava ento com minha me, entrou e indagou com quem eu falava. Respondi: E ao fastioso Bertie, que se constipou a ponto de no poder pronunciar uma palavra; empreste-lhe, pois, um casaco, e mande-o para casa. Jamais esquecerei o horror e a estupefao pintados no semblante do bom doutor, que acabara de assistir os ltimos momentos do meu primo, morto meia hora antes. Sua primeira impresso foi de que eu acabara de saber da catstrofe naquele instante, e perdera a razo. No me tocou, porm, no assunto, e, tratando-me por minha filha (eu contava trs lustros de idade), me fez sair do salo, enquanto me dava explicaes cientficas das vises, tidas por iluso de ptica. A casa em que Bertie acabara de falecer ficava a distancia de um quarto de hora, mais ou menos, feito o percurso a p. Havia bem trs ou quatro minutos que meu primo viera, quando o doutor entrou. Eu ouvira girar a maaneta da porta, vira abrir e fechar essa porta, feito o que, Bertie atravessara o salo, caminhara suavemente at chamin, sentando-se a na poltrona que eu puxara para ele. Acendi as velas sobre a lareira e conversei durante algum tempo, embora sem receber qualquer resposta, o que atribua sua perturbao vocal. - De acordo com essa narrativa, acrescentou Estela, tal apario difere da de Santo Afonso de Liguri - em que este estava vivo, e assim continuou, enquanto que o primo da minha homnima acabara de falecer. Acredita ento que se possa aparecer estando morto? - H em tudo isso, replicou o conde, um mundo a estudar, e compreendo que o Solitrio tenha includo esses problemas em seu Domnio do
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Desconhecido. Confesso-te que eu mesmo me sinto atrado, desde h algum tempo, por esse gnero de pesquisas, e comecei a comparar numerosas dessas observaes com a esperana de lhes achar falhas e poder atribui-ias a coincidncias fortuitas ou a iluses; porm, elas tm resistido crtica, porque as averiguaes foram feitas de maneira cautelosa. Procura-se atribu-las imaginao, sugesto, etc., etc.; mas, tais explicaes no me satisfazem. O que sabemos bem pouca coisa; o que ns ignoramos imenso. Todos esses fatos prosseguiu o conde, me parecem to interessantes quanto inexplicveis, e compreendo que o livro do Solitrio te haja impressionado, notadamente a ti, pequena sensitiva. Mas, vejo com satisfao que raciocinas igual a um homem, e realmente h uma hora que raciocinamos quais dois homens. Por minha parte, declaro ser francamente discpulo desse emancipado das orlas da cincia clssica; na maioria dos casos, suas teorias eltricas encontram adequada aplicao. As transmisses de pensamento, e mesmo as de sensaes distncia, so casos reais. As aparies oferecem aspectos mltiplos e diversos. Sem dvida os cpticos encontraro sempre meios de sair do embarao, afirmando que, nesses casos, nada existe de real; que so coincidncias, iluses ou at histrias inventadas para distrair. Pode-se afirmar tudo. Lembro-me de que muito me diverti com a leitura de um espirituoso opsculo, escrito para demonstrar, muito engenhosamente, alis, que Napoleo nunca existiu. Esse livro sobre o Domnio do Desconhecido, as palestras que tivera com o tio a propsito das questes relacionadas com o assunto, trabalharam tanto o esprito da nossa jovem pensadora, que oito dias depois sentia outra personalidade e, nesta, a prova de que a sua vida, tornando-se intelectual, lhe proporcionava satisfaes inesperadas e esquisitas. Ao mesmo tempo, o problema da eletricidade humana parecia associar vagamente sua prpria pessoa alma do autor de to curiosa obra. Senhorita Eva Estela penetrou nos domnios da Cincia por um caminho indireto. Sua curiosidade assim despertada quase por acaso, por fenmenos estranhos e pouco estudados at ento, no devia extinguir-se mais. Interessava-se por tudo, queria tudo aprender, tudo saber. As coisas da vida mundana, as conversaes de salo, os bailes, os jantares, o teatro, tornaram-se sem brilho aos seus olhos e perderam todo atrativo. Falara ao seu diretor espiritual a respeito do livro do Solitrio, da apario de Liguri ao Papa Clemente XIV, e de alguns outros fatos relatados na obra. O confessor admitia a apario do santo, mas insinuou que os outros casos provvelmente eram iluses ou talvez
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at tentaes do demnio. Entretanto, no lhe proibira absolutamente a leitura dos livros do Solitrio, prevenindo-a, contudo contra seus erros teolgicos que, acrescentou com benevolncia, no tinham importncia para ela - que no pretendia cogitar de Teologia. Podeis ler seus livros, acrescentou; elevam a alma e combatem o materialismo. Mas no chegueis ao extremo de considerlos iguais s palavras evanglicas. Ele no um verdadeiro sbio. Os verdadeiros sbios so todos catlicos praticantes. Os outros, os independentes, so meio sbios, pois duas verdades no podem opor-se uma outra, e desde que a palavra de Deus nos deu a conhecer a verdade, toda a cincia que no esteja de acordo com a f no passa de cincia falsa. E', em muitos pontos, o caso desse autor. Desconfiai tambm de sua imaginao, que vos pode arrastar longe. Em uma palavra: embora no se trate de um romancista, lede-o como se l um romance honesto, sem acreditar que tudo haja acontecido. Era uma autorizao, incompleta, porm suficiente, e ela no precisava de mais para continuaram a leitura que a interessava; em verdade, hesitara e talvez no continuasse a leitura sem essa velada autorizao. Seu tio lhe prometera emprestar um segundo livro do Solitrio, intitulado A aurora de um novo dia. Reclamou-o naquela mesma noite, e iniciou vidamente a leitura das pginas. Comeava pela histria da Terra. As pocas sucessivas estavam claramente expostas, segundo os fsseis caractersticos de cada perodo, e assistia-se ao desenvolvimento gradativo da vida, desde os rudimentares seres primitivos (os moluscos, os acfalos) ao homem. A seguir, este era descrito, desde a era da pedra at as conquistas intelectuais da civilizao moderna. A rvore genealgica da vida terrestre desdobrava-se em sua amplitude, com as lacunas que as descobertas da Cincia preenchem pouco a pouco. Admiravase em tudo uma lei simples e providencial de progresso manifestada com a evidncia da luz meridiana. Nenhuma deduo que no fosse baseada em fatos observados. As analogias do corpo humano com os mamferos superiores estavam explicadas. Remontava-se, insensivelmente, da nossa poca s anteriores, e at aos tempos primitivos, quando o nosso planeta comeou a condensar-se no espao, nos flancos da nebulosa solar! Quando se compara com o criacionismo aonde tudo foi criado em paralelo no que cita a bblia!!!!!!!!! Estela leu, e, pela primeira vez, dvidas religiosas atravessaram seu esprito. Releu uma terceira vez e certificou-se de que a cpia estava curtssima. Seu confessor lhe aconselhara desconfiar da imaginao do Solitrio, e, em um lampejo, ela percebeu que, no paralelo precedente, a
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imaginao estava - fora de dvida - direita, e no esquerda. A Histria Cientfica fundada na observao direta de fatos da Natureza, enquanto que a Histria Religiosa apenas oferece por base - fices, de um belo simbolismo oriental, porm fices puras, ingnuas, indemonstrveis e mesmo contraditrias. A jovem pesquisadora perguntou a si prpria: Se realmente o Sol, a Lua e as estrelas foram criadas em um dia - e o quarto - para luzir sobre a Terra; Se em verdade Deus se dera ao trabalho de modelar um corpo de argila, para deste formar Ado; Se em realidade Eva foi tirada de uma costela do Homem assim criado; Se verdadeiramente a serpente falara. Depois, de ligao em ligao, aprofundou os conhecimentos bblicos, e achou que o autor da narrao tratava Deus um tanto familiarmente, e no via nele' mais do que um homem. Releu diversas vezes em sua Bblia que Deus passeava pelo jardim, tarde, quando se levantou um vento leve e que Ele prprio fez vestimentas para cobrir Ado e Eva. Nunca estudara a Bblia com essa ateno, e no duvidava do que seus olhos liam. E ento ficou surpreendida com outras singularidades, tal a condenao da serpente a arrastar-se da em diante, e perguntou a si prpria, sem poder achar resposta para seus questionamentos. Por fim, no se podendo conter por mais tempo, foi consultar seu diretor espiritual. Ele a deixou expor todas as dvidas, sem proferir uma nica palavra. Depois, no fim, quando ela esperou as explicaes: Minha querida filha, disse-lhe, vs pecais por orgulho. Essas questes no so nem do vosso sexo, nem da vossa idade. Com que direito pretendeis perscrutar os desgnios de Deus? Os mistrios da nossa Santa Religio no so discutveis. A revelao divina jamais se discute. Acreditai-vos superior aos Apstolos e aos Padres da Igreja, e supondes que santos inspirados por Deus, tais So Paulo, Santo Agostinho, So Toms de Aquino, ou que espritos eminentes, do valor de Pascal, Bossuet, Fenelon, e tantos outros, hajam sido impostores? Pensais que N. S. Jesus - Cristo, que se proclamou - ele mesmo - filho de Deus tenha sido um farsante? Semelhantes dvidas so sacrilgios. Cumpri vossos deveres; segui-os mandamentos de Deus e da Igreja, no esqueais a prece da noite e o exame de conscincia, e encontrareis os benefcios da graa e a tranqilidade da f. Humilhai-vos com os nossos grandes doutores, com Tertuliano - que no hesitou em dizer: Credo quia absurdum ( creio porque absurdo ). Ns no podemos compreender os mistrios. E, principalmente, no lede mais esses livros que perturbam inutilmente o esprito. Tendes outras coisas a fazer
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no mundo, em vez de investigaes pseudo cientficas. Deixai a Geologia aos gelogos e a Teologia aos telogos. Sois boa musicista, creio. Isso no pecado. Os prazeres permitidos de uma sociedade honesta e distinta, qual o mundo a que pertenceis por nascimento, dar-vos-o mais satisfaes do que essas vs querelas renovadas, de herticas, j condenados por todos os Conclios. Em breve teremos a estao das viagens. Ide contemplar as maravilhas da Natureza; beira-mar ou entre as montanhas, adorareis Deus em suas obras, e voltareis s de corpo e de esprito. De outra maneira, seria estiolar-se nas bibliotecas onde cada livro est impregnado de p e micrbios. At vista, minha querida filha, fazei vosso ato de contrio e recebei a minha bno paternal. Pela primeira vez, a jovem crist saiu do confessionrio sem experimentar a suave emoo interior da graa, cuja penetrao em tantas outras ocasies inundara sua alma de reconfortadoras claridades. Julgou aperceber-se de qual sua f vacilava e, embora sentindo o desejo de avanar no saber, lastimava ter comeado. Recordou os inefveis prazeres da sua primeira comunho e acreditou ter tornado a encontrar a graa. Antes de transpor os umbrais da igreja estava convencida de que era prefervel no continuar as leituras inquietantes, e que o melhor era no mais nelas pensar. Tomou essa resoluo. Mas, a luz exterior, o ar pleno, o Sol de Maio, as visitas da tarde fizeram evaporar tais impresses, e quando naquela mesma noite reviu a - Aurora de um novo dia sobre h mesinha do seu aposento azul, no se pde conter de retomar o livro nas mos, folhe-lo e continuar a leitura. Aps haver exposto a histria do nosso planeta, o Solitrio mostrava que a Humanidade terrena, a despeito dos progressos que j fizera, ainda est em idade infantil. Ela material, grosseira, inconseqente e brutal. Menos dividida do que nos tempos primitivos das tribos, quando estas se mantinham constantemente em guerra de aldeia a aldeia, qual acontece ainda em nossos dias nas regies da frica Central; menos dividida tambm do que em tempos mais recentes em que o Rei de Frana, o Duqu de Normandia e o Duque de Borgonha viviam em lutas permanentes, em que Paris se batia contra Ruo e Dijori, da mesma forma que Florena contra Veneza, Berlim contra Frankfurt, Edimburgo e Dublin contra Londres, e igualmente do que nos primeiros dias da monarquia francesa em que o rei de Paris se batia contra o rei de Soissons; essa pobre Humanidade est, no entanto, longe ainda de despojar-se do antigo e brbaro erro de regionalismos, e ganhou muito pouco tambm em liberdade real, porque quase todos os seus recursos so consagrados a manter certos grupos, encerrados em fronteiras artificiais e variveis,. Sentimentos de rivalidades, animosidades e rancores que a esgotam e esterilizam. A
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inteligncia est ainda to embrutecida, que os povos honram os diplomatas que, pela mentira e fraude, fizeram desencadear as guerras mais ruinosas para se cobrirem de homenagens e glrias. Ainda se vem reis e imperadores asseverando a seus sditos que a guerra de instituio divina, e que o mais inteligente proceder consiste em derramar o sangue sobre o altar da ptria. O militarismo, assim exagerado, vale por um crime, uma vergonha, uma loucura grosseira e mals. Todos os governos da Europa, reunidos, tm menos inteligncia do que um bando de lobos, e, se verdadeiramente raciocinam sobre a sua prpria conduta, proclamam em princpio o roubo e o assassnio. Prefiro acreditar que so inconscientes e vtimas do atavismo. Os homens so educados no porte de punhais nos bolsos para se degolarem feito brutos. Os soldados da Europa despendem doze milhes por dia, exercitando-se: doze milhes por dia, quatro bilhes quatrocentos trinta e cinco milhes por ano, dinheiro pago pelos que trabalham. A Europa est atualmente endividada em cento vinte e um bilhes (sendo a parte da Frana - trinta bilhes). Tal militarismo uma escola de ociosidade que rouba trabalhadores aos seus ofcios. Insensata e dividida, essa Humanidade terrestre. Os ces, os gatos, as toupeiras, as ostras, as cenouras, as abboras so menos estpidas. Os animais e as plantas lutam pela vida; os homens pugnam pela glria de ser mortos! Ao mesmo tempo, continuava o autor, todos esses seres vivem sem saber e sem indagar onde esto. Sua principal ocupao o dinheiro, sem limites na aquisio, embora dele no caream porque tm a existncia assegurada; ou ainda quando o despendem nas mil futilidades suprfluas em que dissipam sua existncia. Uns, incessantemente premidos pelas necessidades da vida material, trabalham constantemente, sem ter tempo para pensar; outros, mais privilegiados na aparncia, no so mais intelectuais. Ningum procura esclarecer o esprito, instruir-se a respeito do Universo e da Criao. Esto satisfeitos com a sua ignorncia nativa, da qual saem por exceo. Suas impresses se limitam superfcie, e os escritores mais populares so os que narram em estilo imaginoso s funes do estmago e do ventre. Do crebro, nada. A arte, o teatro e o romance no so inspirados por ideal algum. O povo mais espiritual da Terra escuta e aplaude canes to idiotas quanto grosseiras. A matria espessa e pesada domina tudo. Eis o que leu com os seus prprios olhos, e sentia ser verdade. A Humanidade se lhe mostrava bem diferente do que lhe parecia at ento. A Humanidade, acrescentava o Solitrio, no tem mais do que um lustro de idade. Certamente no atingiu ainda a da razo, que, na criana, desperta geralmente aos sete. E como j tem mais de dez mil sculos, altamente provvel que s atinja o seu apogeu intelectual dentro de muitos milhes.

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O papel do pensador o de preced-la. As almas que pensam so raras e formam uma exceo de elite, cuja felicidade consiste na pesquisa pura da Verdade e no desinteresse pelas paixes grosseiras e pelas vaidades do mundo. O sentimento religioso existe no fundo dessa indagao da Verdade. Mas Deus pressentido pelo Pensamento um Ser transcendente, sublime e inidentificvel, to acima da nossa faculdade de compreenso quanto o infinito est acima do finito. O homem inventou um deus antropomorfo. Mon Dieu n'est pas le tien et je m'en glorifie J'en adore un plus grand que tu ne comprends pas! (Meu Deus no o teu; disso me glorifico. Adoro um Deus maior que no compreendes.). O Esprito reina to pouco na Humanidade, que ela s acredita nas aparncias. No h muito tempo, todos os habitantes da Terra pensavam habitar uma superfcie plana fixada na base do Cu e suportando o Universo. Para eles, a Terra tudo, o Cu, nada. Igualmente, acreditam na matria visvel. Para eles um bloco de ferro slido, embora seja composto de molculas invisveis e impalpveis, que no se tocam; ignoram que o agente essencial do Universo a fora e no a matria. A gravitao universal que sustenta os mundos no Espao invisvel e impondervel; se a suprimirmos na concepo, o movimento do Universo deter-se- e a vida desaparecer. O que eles denominam o mundo visvel , alis, um quase contra-senso. Na multido de raios que o Sol envia a Terra, apenas um sobre cem se torna acessvel nossa retina e faz vibrar nosso nervo ptico. Uns vibram muito rpidamente, outros muito lentamente e o que vemos um quase nada em relao ao que existe. Entretanto, os nossos literatos e filsofos falam dessas impresses incompletas e relativas qual se elas representassem o absoluto. Assim tambm com relao ao corpo humano. Vem nele o que. A Anatomia e a Fisiologia permitem conhecer, e no percebem que esse conjunto de tecidos no constitui o ser humano. A Alma invisvel. As foras com que a Alma age sobre o corpo e o mundo exterior invisvel. Procura-se explicar tudo pelo corpo visvel e suas funes, e no se obtm nenhum resultado satisfatrio. Da as incompetncias e as cegueiras das cincias denominadas positivas, em referncia a tudo que pertence ordem psquica, que , no entanto - tudo de essencial no homem. Comeamos a reconhecer o erro das aparncias. E' tempo de nos ocuparmos com a realidade. E' a nova era da Cincia que se abre agora ante nosso horizonte agrandado. Vimos de nascer alvorada de um novo dia. Abramos nossas asas. Voemos na luz e no infinito!

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Estela prosseguiu lendo. Quer se trate das mulheres, dos reis ou do povo para impor-se, mister agradar. E esse autor lhe agradava, pela originalidade, pela independncia. Sentia-se, pela sua prpria natureza, inclinada s curiosidades intelectuais, e se por vezes se perdera, em tempos anteriores, nas nuvens do misticismo, fora por ter acreditado na autenticidade da revelao crist. Comeava a sentir agora que, se essa revelao muito se aproximara da verdade, contudo no a continha, nas fices encantadoras do paraso terrestre - esse elegante smbolo de um perodo da histria oriental. Apegou-se leitura da segunda obra com o sentimento de que, longe de lhe ser proibida, essa curiosidade era uma obrigao para o adiantamento de seu Esprito. A raa humana pareceu-lhe realmente infantil e pouco intelectual. Sentia-se acima das vulgaridades universais pelo desprendimento espiritual e pelo seu anseio de saber. Leu vidamente os diversos captulos, e chegou ao que era de algum modo a concluso e trazia por ttulo: A libertao do Pensamento pela Astronomia. O autor mostrava a Terra como ilha perdida no infinito. Mirades de mundos se balanavam no Espao, uns habitados atualmente por Humanidades anlogas nossa; outros por espcies inferiores: larvas, elementos rudimentares, monstros, animais, embries do pensamento; ainda outros por seres to superiores ao homem e mulher terrestres quanto ns o somos aos peixes do mar ou aos moluscos inconscientes; outros mais, outros povoados, hoje desertos, cemitrios de Humanidades extintas; outros, enfim, em preparativos para as glrias do porvir. Compreendia-se assim que o nosso pequeno e medocre planeta no passa de um tomo na imensidade, e que a nossa existncia atual representa um segundo na hora da eternidade. Os mundos sucedendo mundos, os espaos aos espaos, em todas as direes, por toda a parte aonde era possvel dirigir um olhar, sem fim em qualquer sentido. O centro desse infinito estava em toda a parte e a circunferncia em parte alguma. Sobre a Terra e em Srio, estava-se no centro. Era possvel avanar em linha reta em uma direo qualquer, com a velocidade do relmpago, e viajar com essa velocidade durante diz mil sculos, sem mudar de lugar, sem adiantar um passo, sem se aproximar de forma alguma de limites que no existem. Um telegrama enviado hoje, para as fronteiras do Espao, jamais chegaria. E ento, sobre essa pequena Terra, ilha gigante nos raios do nosso Sol, cada um se sente como que perdido, abandonado. Emocionada por esse peso de infinito que lhe pesava sobre o corao, Estela abriu a janela que dava para os castanheiros de um grande parque. O ar estava fresco e perfumado; noite, silenciosa nesse quarteiro deserto. A Lua, em quarto crescente, flutuava qual pequenina barca luminosa, sobre os vapores do horizonte ocidental, vagamente iluminado pelas luzes de Paris;
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Vnus e Jpiter brilhavam na constelao dos Gmeos, acima de Castor e Plux, e as quatro estrelas de Leo pareciam no seu alinhamento mostrar ao longe, a leste, a aresta da Virgem, por cima da qual brilhavam Arcturos, a constelao e as pequenas estrelas da Coroa boreal. As estrelas mais resplandecentes cintilavam bonanosas e atraam o olhar e o pensamento. Com os cotovelos' apoiados janela, contemplou-as, identificando-as pelos nomes, e sua imaginao voou at elas. A beleza da noite, a calma atmosfrica, os lumes do cu, a imensidade do Espao, transportaram seu pensamento s altas regies que acabara de visitar na sua leitura. Paris que dormia os edifcios dos quais se notava algumas cpulas escuras, a torre quadrada do Convento dos Pssaros, as prprias igrejas, tudo lhe parecia coisas inferiores, terrestres e humanas. O mistrio do cu estrelado arrebatou sua alma, qual um sonho divino. E pela primeira vez sentiu que a verdade pairava l, em cima; que ningum a encontrou c em baixo; que as religies so tentativas incompletas, e que se uma dentre elas pretendesse confiscar o Deus - das estrelas, seria vtima de infantil puerilidade. Sentiu ento sua alma elastecer-se verdadeiramente e elevar-se no espao, rumo das culminncias puras do ter, e pareceu-lhe receber um novo batismo, que se tornava nefita de uma religio nova - que no tinha nada de terreno, e, ainda, que planava nas regies sublimes em que brilhavam as estrelas gmeas de Castor e Plux. Depois, experimentou a sensao de estar s no mundo; de que o Universo era demasiado imenso; de que o silncio da noite estrelada era apavorante; de que Deus, inacessvel, a abandonara. Ao entusiasmo e contemplao do cu estrelado sucedeu a emoo de uma imensidade, grande demais para suportar, e foi invadida por uma profunda melancolia. E porque continuasse a contemplar as estrelas, seus olhos se velaram de lgrimas. E permaneceu muito tempo assim, de cotovelos apoiados janela. E, quando se retirou, o crescente, bem tombado para a direita, j desaparecia atrs das rvores e continuava a descer na noite, levada no inexorvel movimento dos astros e das coisas. Perodo de transio. A Condessa de Noirmoutiers recebia todas as quartas-feiras, noite, e havia trs meses que o Duque de Jumiges no faltava a uma s dessas reunies, ora mundanas e brilhantes, ora simples e restritas. Cada visita sua era precedida por um ramalhete do mais fino gosto, formado das mais raras flores, e, embora a formosa Estela ainda se no houvesse pronunciado, parecia que s faltava fixar a data do casamento. As famlias estavam de acordo. Nas noites de baile, os dois jovens s danavam um com o outro. Nas reunies
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ntimas; Jumiges jogava assiduamente sua partida de xadrez com o conde, e conversava-se em camaradagem sobre as ltimas indiscries da sociedade parisiense. O duque estava ao corrente de tudo, sabia tudo e tudo podia narrar. No faltava a uma estria teatral, e conhecia minuciosamente todas as peas em moda, das quais fazia a crtica imediata. Com freqncia escolhido para rbitro de certas querelas, havia sido testemunha em trs duelos desde o incio daquele ano. A largura de sua gravata e o comprimento do cordo de seu monculo eram tomados por padro do que convinha adotar pela gente distinta. Isso chegou a tal ponto que, por ter em dia de chuva dobrado para cima a bainha da cala, embora pouco andasse a p, todos os seus jovens amigos do Clube comearam a fazer outro tanto, mesmo nos dias de bom tempo, e no era raro encontr-los assim em pleno salo, em conseqncia de um esquecimento que, alis, parecia se ter tambm tornado moda. Nos cafs concertos no havia cano nova que no fosse conhecida, apreciada e citada a propsito por esse mundano universal que, no fazendo coisa alguma, no dispunha de um instante de liberdade. A maior parte de seu tempo era tomada por visitas; todas as suas horas pertenciam s exigncias desse mundo elegante, de que se ufanava, com razo, de ser o representante mais completo. A essa noite no havia alm de trinta pessoas no salo, e o duque sustentava com muita correo o dedal da conversa. Falava das ltimas canes ouvidas e divertia-se analisando com muito esprito. Porm, sob essa mentalidade mundana de conveno e sob essa aparente correo, Estela notou de novo falhas e vcuos. Pareceu-lhe que tais opinies no passavam de belas frases. Nada exprimiam. Bolhas de sabo que uma ponta de alfinete fura e faz desvanecer. Ouvindo-o, feria-a tambm a vulgaridade das idias: nenhum sentimento intelectual ou esttico. Quando muito, algumas sensaes superficial e assaz obtusa. Estela no conhecia a literatura naturalista contempornea; mas, nessas conversaes de salo, recebia uma impresso que a feria, sem que o percebesse nitidamente. No se tomavam, alis, precaues para narrar os ltimos sucessos do teatro ou do romance. Estela ficou admirada desse gosto predominante pelas coisas abjetas e nscias. Falava-se um pouco de tudo. Um brilhante oficial, o Capito Lomond, criticou certas obras literrias, recentemente aparecidas, e elogiaram outras. Mas a discusso comeou a animar-se; a condessa pediu um pouco de msica. Os primeiros trechos foram ouvidos sem entusiasmo e em ambiente de distrao generalizada, embora tivesse o violino estreante o talento de Sivori. Porm, a seguir, o dua de Mireillle, maravilhosamente cantado com ternura e paixo, cativou todas as opinies, e o pequeno auditrio pareceu esquecer, pela harmonia, as discusses literrias que o dividira momentos antes.
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Contudo, a prpria msica no podia passar de um intermdio, e no tardou que as conversaes fossem reiniciadas. Estela acabara de acompanhar ao piano a ideal e deliciosa serenata de Don Juan, muito agradavelmente cantada por sua amiga Ceclia, e, sentada ao piano, ficara conversando a meia voz com ela, enquanto se reatava a palestra entre seu tio, o duque e o oficial. Embora falando, ela escutava, com um ouvido, essa conversao entre homens, e certamente nenhum dos trs interlocutores imaginava estar sendo escutado por uma mulher, e muito menos por uma donzela. - Sim, sustentava o oficial, a literatura nova, fim de sculo, como se diz; so o romance e o teatro novos, progresso literrio ao qual ainda no estamos mais afeitos do que msica de Wagner. Mas no se pode negar que haja em tudo isso uma evoluo radical. No apreciamos mais o xarope de orchata de Lamartine e Gounod, nem os Cupidos rseos e nus dos quadros de Bouguereau. - Tambm aprecio a fora e a virilidade, respondeu o senhor de Noirmoutiers. No obstante, sou de opinio de que o escritor de quem ora falais no devia deleitar-se tanto no esterco. Se encontrais uma imundice na rua, vs vos desviais logo, e no meteis os ps nela. Porque meter nisso o nariz? - Porque real. Existe qual o resto. Uma pintura verdadeira deve mostrar tudo. - Vejamos. Folheando esses livros que os senhores citam a todo o momento, no se chega pgina trinta sem encontrar a palavra. - E o povo no emprega correntemente essa expresso em suas discusses e at em suas conversaes? - As pessoas grosseiras, em que vos podem elas interessar? Ento o vosso amigo um fotgrafo e um fongrafo? - Isso nem sempre o torna um porngrafo. - Henrique o chamava, h dias, porngrafo; mas, desconhecendo o grego, usam muitos desses barbarismos. - Sou da opinio do capito, replicou o duque. Um autor deve fazer as suas personagens falar linguagem que lhes peculiar. Porque os historiadores de Waterloo s ousaram repetir a expresso de Cambrone depois que Victor Hugo a empregou em Os Miserveis? - A trivialidade no necessria para desenhar caracteres, ainda os mais grosseiros. Vede Balzac. - Outros tempos, outra linguagem, retrucaram o oficial. Precisamos hoje justamente de palavras que impressionem os burgueses, e que os firam, acrescentarei eu. Sem isso, eles nunca lero. Sabeis bem que, em geral, o burgus no passa de um pateta. - E os outros, os rastacueras, os Peruvianos, e o resto? Vejam o teatro! continuou o duque.
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- Sim, fui com a condessa ver as trs ltimas peas. Pois bem, para falar nova lngua francesa, no encontro, com efeito, seno uma expresso suficientemente adequada, e ousarei dizer, para estar mais altura da vossa linguagem: sendeiro, ou, se preferis: porcaria. E' linda a vossa evoluo literria! - No existe para as ditas peas nem um bilhete de entrada disponvel. Veja-se bem que o gosto atual. 500.000 francos de receita! - Meu caro duque, pode-se ter 100.000 francos de xito, sem se ter dois centavos de valor real. Quanto ao gosto da maioria, eu o nego. No est a, nunca estar a o gosto francs. Vai-se l, como se l, por mera curiosidade. Os franceses apreciam a finura das idias, a delicadeza das sensaes, a alegria, um pouco de sal chistoso, se assim querem, como diziam nossos pais, os requintos, os contos de Lafontaine, as histrias galantes de Boccio, ou da Rainha de Navarra, as gravuras de Fragonard e Moreau, tudo o que quiserem, mas no apreciam a indecncia, mormente a licenciosidade sem esprito, nem a estimaro jamais. Esses livros e essas peas teatrais nos criam uma bem falsa reputao no estrangeiro. No se podem ver sem tristeza esses folhetins de jornais, essa literatura rasteira, porque a moral de um povo depende muito da qualidade do que l. - Oh! Meu caro conde, no est mais no Lago e na Tarde ou na Graa de Deus. No se segue mais, agora. Nas ondas do ar O carro da Noite que avana! O amor no um sonho. Ns evolvemos, desde h meio sculo. E' o progresso. - Os jovens, meu caro duque, no olham muito longe no passado; acreditam que o mundo recomea com eles. J fui assim tambm; mas, agora, sei que no fazemos seno continuar. Vossos autores naturalistas no parecem desconfiar de que reeditam, bem menos originalmente, o nosso velho Rabelais, e ressuscitam Aristfanes. Nada de novo debaixo do Sol. Reconduzem-nos h mais de 20 sculos para trs. E a isso chamais progresso? Estranho erro. E' igual ao dos vossos pintores que vem em tudo a cor violeta. Questo de retina. Daltonismo. Os jovens acreditam renovar a face da Terra; os velhos se lamentam de uma decadncia imaginria; por mim, acredito no progresso, vejo em sua rota caminhos onde o carro se atola. A memria humana curta. Cada sculo imagina que a sua luta a mais importante de todas. Sempre houve realistas. Acredite-me, o nico e verdadeiro progresso o da Cincia. A literatura e a arte so formas mutveis; no nelas que se deve procurar uma ascese. Chamai-me Fdias, se quiserdes. Prefiro essa modalidade de injria s
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incongruncias nauseantes desse grosseiro campons a quem um de vossos autores favoritos achou de bom gosto dar o nome de Jesus, Cristo. - Ento, senhor conde! Replicou o capito. um velho gnero, eis tudo. No digo que no sculo XX no se retorne a imitaes de ordem corntia, e a Homero; retorna-se a Napoleo, to vilipendiado h vinte ou trinta anos. Porm, os autores da nova escola no rebuscam perfrases. E' o pintor Manet plagiado. H pouco eu lia um captulo bem traado, e fiquei nesta frase, quando me foram buscar: Nini recusou o lugar no atelier, por isso que sua vizinha destapava gargalos de garrafas. No achais este modo de dizer completamente expressivo? - Como dissestes? Inquiriu o conde. O oficial repetiu a frase, mas os dois interlocutores confessaram no compreender, e pediram explicao do sentido. - Ah! o que se chama esvaziar o gargalo. E' efetivamente esquisito, disse o conde. - Aprovo esse gnero; Bernardin de Saint Pierre e Chateaubriand esto longe de ns, acrescentou o duque. E' um grande erro imaginar que a Humanidade atual tenha necessidade do ideal: ela tem outra coisa em mente. Vede, no fundo, o misticismo e o idealismo: afetao, a corrida ao Alm, um gnero de desporte igual a outro qualquer. Ningum acredita nisso, ningum necessita disso. Viva o realismo! E' s o que existe de verdadeiro! - Entretanto, vede todas essas jovens encantadoras. Acreditais que elas no sonhem um pouco? O primeiro que souber prender a mais interessante de todas, acrescentou o oficial, designando Estela com o olhar, no deve ser muito brusco. - O primeiro, o primeiro... replicou o duque, virando costas ao conde. Com as jovens, sabem-se l a quantos se anda? Ouviu-se um golpe de notas no piano, e Estela anunciou um trecho a quatro mes, com Ceclia. - A propsito de novidade, retornou o duque, ouviu a ltima cano do Alcar? Meu caro um furor! - No, replicou o capito. H uma eternidade que no ponho l os ps. - Oua a ltima oitava dos versos. Esquecia-me de dizer que se trata de um jovem que quis seduzir certa rapariga, irm de um seu amigo. E o duque recitou os versos de uma canoneta em estilo de gria, toda cheia de frases equivocas. - Hein? A est a verdadeira literatura realista. Que pensais? - No se suspeitaria, replicou o conde, que a Frana produziu Molire, La Brnyre, Lafontaine, Voltaire, Beaumarchais, Crbillon, Chamfort e alguns outros escritores delicados que sabiam associar o esprito alegria. Tambm os h entre os modernos e os nossos contemporneos. Pois bem, continua a
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pensar que o valor de um povo reside em suas elites e no em seus varredores de esgoto. Estela e Ceclia iniciaram seu trecho a quatro mos. Os trs interlocutores retomaram seus lugares, prximo do aquecedor. - Viu o novo cavalo do circo? Disse o duque. E' uma maravilha. Olga o monta com uma elegncia admirvel e chegou a faz-la valsar ao som de um trecho da valsa O Beijo. Ficamos boquiabertos. E' um encanto. Uma elegncia de formas extraordinria. Dana, faz trejeitos, cumprimenta, cai morto. Ide ver isca na sexta-feira. - E a Praa Blanche? - No vou mais de uma vez por semana ao Chair Noir e ao Moulin Rouge. - Nunca me veio idia de dar uma volta por esse quarteiro, interveio o conde. - Contudo, bastante divertido, acrescentou o oficial. Gripe d'Egout deliciosa. - Que vem a ser isso? Perguntou a Senhora de Noirmoutiers. E' uma jumenta? - No. Uma senhorita que dana de um modo um tanto descabelado e cujas pernas rivalizam em contores fantsticas com as de sua amiga a comilona. So incomparveis para um grande jogo de cena e caem completamente estateladas no cho, sem se machucarem. Temos tambm Nini, pata no ar. - A propsito. Sabem que fim levou o Prncipe Lonou? - Eclipse total. Crivada de dvidas. Conselho judicirio. - Com cem mil libras de rendimento! - Gastava duzentas mil. Um dia destes, tomou emprestado vinte cinco luses. - Minha senhora, foi Exposio do Imprio? - Certamente, sim, muito nos interessou, embora na realidade tivesse poucas coisas. Foi uma grande poca! Suas menores recordaes nos comovem profundamente. Mostraramme l um sabre do General Morland. Ser autntica a histria do tonel de rum? - Tudo quanto h de mais verdadeiro. Quando ele foi morto em Austerlitz, Napoleo mostrou-se muito sentido e ordenou que seu corpo fosse transportado para Paris; mas os cirurgies, nada tendo do que era necessrio para embalsam-la, encerraram-no em um tonel de rum, que foi esquecido em uma adega da Escola de Medicina at 1814. O corpo foi encontrado em perfeita conservao, porm o rum fez crescer os bigodes de um modo to extraordinrio que caam abaixo 3a cintura. - E que se fez com o rum? - A crnica pretende que os ajudantes dos enfermeiros o beberam.
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- A marquesa toda entusiasta do Imprio, e continuou a Sra. de Noirmoutiers. renovou todos os mveis do salo e s usa toaletes de 1810. No pudemos ir sua ltima reunio. Parece que foi das mais animadas. - Principalmente, no fim, informou o capito. Foram cantadas as ltimas canes. - E' o que nos disseram ontem. Parece que o senhor no aborreceu de todo. - Oh! Isso nada tem de extraordinrio. Apenas rir. Houve uma cano, bisada, tendo por assunto uma recm-casada que falava das vestes ntimas. O que mais divertiu foi o fato de essa cano terminar com um bailado bastante ligeiro, lembrando uma clebre quadrilha das damas da Corte de Compienha, e ter a encantadora mulherzinha, em seu movimento final, feito cair sobre uma das orelhas coroa de flores de laranjeira. Depois, agraciaram-nos com duas canes cacetes. - Pois bem, disse o conde, se realmente, como se diz, a literatura fosse expresso da sociedade, isso seria para desesperar da Frana. - Foi em algum caf-concerto que viu esse espetculo? - Absolutamente; foi em um sarau da marquesa. Estvamos sentados atrs de oito filas de senhoras muito decotadas. Um verdadeiro ramalhete. Entretanto, meu vizinho observou-me que, para alguns raros elegantes, grande nmero dessas damas tinham costas bastante brutas. - Ora essa! Costas brutas? - Sim, largas, pesadas e sem estilo. Acrescentem-se os penteados escorridos que no mostra ao menos uma ponta de orelha algo espiritual. - E todas essas canes so-ditas diante de donzelas '? - Elas riem iguais a ns outros, e sabem muitas outras! Literatura popular a que todo o mundo conhece. - Confesso, pela minha parte, replicou o duque, que nem sempre compreendo as obras-primas da nova literatura dos senhores estetas sibilinos. Que significa isto, por exemplo? O Conde fez um salto da poltrona, qual se fosse acionado por oculta mola, exclamando. - Quem praticou semelhante mistificao? - Estevo Bienarm. - Muito bem. Voto para que seja condecorado e para que se lhe encadernem os livros cem uma poro de fechos inviolveis. Quando quiser ler um poeta, escolherei na minha biblioteca Hugo, Mussuet, Byron, Leconte de Lisle, Prudhomme ou Cope. Vale por uma confisso de que prefiro a incoerncia e a divagao s licenciosidades imundas. Esta reunio em casa da Condessa de Noirmoutiers indica, e assim as precedentes, o meio em que Estela vivia; bolhas de sabo, fumos, banalidades.
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Estela saa muitas vezes completamente desiludida dessas reunies, que pretendiam tornar divertidas. A ignorncia desses jovens mundanos ociosos, a de seu noivo. Em particular, e sua indiferena por todas as curiosidades da Natureza e da Cincia, eram para ela um primeiro motivo de desapontamento, que se agravava e lhe causava uma espcie de humilhao, toda vez que para isso se apresentava uma oportunidade. Em circunstncias vrias, foi levada s mesmas reflexes, observando todos esses brilhantes jovens que a rodeavam. No sabiam coisa alguma, no se preocupavam de coisa alguma, estavam satisfeitos com a sua nulidade intelectual. Por um belo entardecer de fins de Maro, aps um passeio pelo bosque Saint-Germain; voltavam em break o conde, a sobrinha e toda a alegre companhia. A noite comeara a cair gradativamente antes do retorno a Paris. As estrelas j brilhavam em vivas claridades e era possvel admirar no cu, do lado do Poente, um claro que se levantava obliquamente do ponto em que o Sol desaparecera e terminava em seta a uma grande altura. Essa claridade, de aspecto estelar, era muito suave e tranqila, e parecia formada para alm das estrelas. Estela, que a contemplava desde que a noite tombara, chamou para ela a ateno de suas amigas e de toda a alegre caravana. Procurava informarse, indagando coma se denominava essa luz, o que era se estava longe da Terra, pensando em voz alta, por assim dizer. Ningum soubera responder. Apenas um deles se lembrara de dizer que era a Via-Lctea. Constatou-se, entretanto, um pouco mais tarde, que tal no era, pois a Via-Lctea desdobrava em outra direo, enquanto que a primeira claridade se extinguia gradativamente. Somente na manh seguinte, durante a primeira refeio, que ela soube, pelo tio, que s tratava da luz zodiacal. E embora nessa luz, no vrtice e nas proximidades, cintilantes estrelas ou planetas atrassem o olhar, ningum, de todo o fino e elegante grupo mundano, ningum soubera dar o nome de um s desses astros, ningum pudera responder seriamente a qualquer das perguntas feitas. Era evidente que nenhum deles jamais as vira nunca elevara seu pensamento at l; em tempo algum procurara saber o nome desses astros que brilham constantemente sobre nossas cabeas. Adriana, que lhe estava ao lado, no ocultou seu grande espanto com as indagaes de Estela. A Astronomia, disse a quem pode interessar? Aos loucos! Olha, no sei sequer o que seja a Ursa Maior... Nisso ou naquilo me indiferente! Em outro dia, ouvira uma espcie de profisso de f feita por seu noivo a um dos amigos ntimos. Certo artigo da Revista dos Dois Mundos, da autoria de Renan, era objeto de momentnea discusso e o duque conclura sua resposta com estas palavras: No fim de contas, a verdadeira filosofia est no
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rir de tudo e de todos - no momento exato em que a jovem sonhadora entrava no salo. Ouvira apenas essa frase, porm s vezes uma s palavra ensina mais do que um longo discurso. Nunca sentira tanto a banalidade da vida mundana, a nulidade das pessoas desocupadas, o vcuo de suas conversaes, a estreiteza do quadro dentro do qual se movem suas idias, a pouca extenso do horizonte habitual desses liliputianos, a grosseria de suas sensaes. Nenhum ideal. Nenhuma grandeza. Cegueira intelectual. As conversaes desses homens e dessas mulheres mostravam que tomavam gros de areia por montanhas. Concepes de formigas. Parecia-lhe, lendo os livros agora seus preferidos, sair de um calabouo e respirar o ar e a liberdade dos grandes planaltos. Era realmente um mundo novo que se desdobrava diante dela. Como podiam tantos seres inteligentes viver sem exercitar a inteligncia, sem nada aprender, sem outra leitura que a de frivolidade, sem biblioteca? Era um problema para Estela. Notara, pela primeira vez, que os apartamentos no tm biblioteca, apesar de entulhados de numerosos mveis inteis. Porque seu tio s jurava pelo Solitrio e recorria sempre aos seus escritos para a soluo de todos os enigmas, Estela acabou um dia por lhe dizer: - Mas, quem esse Solitrio? Seus livros so encontrados em todas as mos e ningum jamais o viu. No reside em Paris? - Provvelmente no. Nunca ouvi falar da sua pessoa. - Contudo, deve existir, viver em alguma parte. Nunca se v seu retrato, entre os autores contemporneos, dos quais , sem contradita, o mais clebre. Encontrei citaes suas em numerosos jornais estrangeiros, tanto entre amigos nossos do Brasil, quanto entre ingleses, americanos e russos. - Talvez no resida na Frana. - Entretanto, seu estilo bem francs. - Talvez tenha morrido - Seu ltimo livro data de seis meses. Onde compra esses livros? - Nas livrarias. - No seria possvel, em uma delas, conhecer o seu endereo? Estimaria muito obter um autgrafo traado pela mo do seu autor favorito, meu tiozinho. - Com o editor, talvez. Mas, que curiosidade! Em que te pode interessar a sua pessoa? E' muito provvel que nunca tenhas ocasio de encontr-lo. E depois, vs, as mulheres, sois, muitas vezes, bizarras. - Ser ele da Academia? - Certamente no. No primeiro sculo de existncia da Academia Francesa houve trs grandes homens em Frana, universalmente clebres: Descartes, o poderoso filsofo; Pascal, o imortal pensador; e Molire, o mestre do Teatro. Essas trs glrias sem rival foram esquecidas, todas trs, pelos fundadores do cenculo.
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- Ser deputado ou senador? - Menos ainda. Vejamos, reflete: porque queres que seja alguma coisa sendo algum? No vais perguntar-me agora se jovem, velho, alto, baixo ou condecorado? Academias e condecoraes no so pueris infantilidades? Minha querida, mete na cabea que um autor um autor, um sbio um sbio, um poeta um poeta, e que, se realmente tem valor pessoal, ele trabalha e ignora as ambies mundanas. Fala Humanidade e aos sculos. No um bom burgus, um cidado do meio social. Pode estar morto ou vivo, pouco importa. E, depois, queres que te confesse? Todos os grandes homens, sem exceo, perdem muito, quando vistes de perto. Em minha opinio, deve ser um urso, um selvagem, um druida das florestas gaulesas. No te desejaria que o visses entrar em um salo: nem ao menos saberia atravess-lo. Terias a mais bonita desiluso que se possa imaginar. Certamente no sabe danar, mexericar, patinar, namorar, nem montar a cavalo ou em bicicleta. Faria triste figura ao lado dos teus elegantes e seria dos mais desajeitados para dirigir um cotillon. L seus livros para maior bem do teu esprito, admira o pensador, mas no procures o homem. O tio e a sobrinha com freqncia conversavam assim, entre eles, sobre o seu autor favorito. Haviam adotado as opinies dele sobre os homens e as coisas, servia-se de expresses peculiares com as quais caracterizavam a civilizao moderna, entendiam-se em meia-palavra, pensavam ao modo dele, falavam maneira dele. Seus livros tornou-se a sua sociedade intelectual e ntima to exclusiva que, em uma viagem feita ao Vero seguinte, verificaram que a metade das obras do Solitrio estava na maleta do tio e a outra metade na mala da sobrinha. Tal qual ele, sentiam que a Cincia a soberana do mundo, que por ela e nela se deve viver e que ela no deve ser estranha direo das conscincias. Esse apstolo da Cincia se tornara em amigo de seus espritos e quase de seus coraes. Os Pirineus Essas leituras, esses devaneios, essas pesquisas, essas lutas com a sua conscincia, essa agitao interior, fatigaram Estela um pouco, certamente muito mais do que as reunies noturnas ou os jantares da ltima estao. Seus olhos eram menos vivazes, seu semblante perdera o brilho, seu andar se tornara quase lnguido. Chegara o ms de Junho. Os sales de pintura iam fechar suas portas; j havia corrido o Grande Prmio-; falava-se diriamente em projetos de viagem e vacilava-se entre Dieppe, a Sua e os Pirineus, quando o convite de uma famlia, ligada de longa data com a do Conde de Noirmoutiers, a famlia de Castelvieil, chegou Rua Vaneau, pedindo-lhes
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irem passar algumas semanas nas montanhas de Bagnres-de-Luchon. O solar de Castelvieil h muito tempo era apenas um torreo em runas, porm, fora construdo, quase em frente, sobre a outra vertente ao vale de Burbe, pequeno castelo moderno, junto de verde floresta e banhado por um curso d'gua que surgia de antro selvagem e, depois de atravessar o parque, tombava em cascata no fundo de um barranco. A senhora de Castelvieil convidava seus amigos para repousarem das fadigas de Paris na frescura das montanhas. O local oferecia um encanto particular que, dizia ela, devia ser muito apreciado pelos parisienses. E' que, se desejasse reencontrar um aspecto de vida mundana para amenizar a solido, bastava, tarde, descer at ao cassino de Luchon, ouvir msica do quinteto, dar uma volta pelas lojas floridas das oleias de Etigny. Quanto aos banhos, era fcil tom-los todos os dias e a qualquer hora. Depois, minuciou as encantadoras excurses a fazer em todos os arredores, fonte do Amor, alameda dos Suspiros, ao vale de Lys, cascata do Inferno, ponte Nadi, cascata do Corao, ao lago ao vale do Arboust, cascata das Moas, e descrevia com entusiasmo a beleza das montanhas, o suave rudo das quedas d'gua, o frescor dos bosques, o verdor dos prados, a atmosfera s e perfumada desses imensos campos e as vistas admirveis que ali se encontrasse a cada passo. Acrescentava que, se a senhorita d'Ossian gostava de passeios a cavalo, s teria embaraos para escolher entre as ascenses possveis de se fazer em todos esses stios dos Pirineus. No houve dificuldade na deciso, e, antes que Junho terminasse o trio da Rua Vaneau se instalava num vago do rpido que conduz ao Pirineus. Foi uma encantadora viagem de colegiais em frias; tudo foi esquecido, as diverses de Paris, e os livros e a Filosofia. Era a primeira vez que Estela se afastava para to longe. O carro restaurante, diante do quais as paisagens passavam e desapareciam vertiginosas, foi para ela a mais curiosa distrao da viagem: as idias que tanto a absorveram, nesses ltimos meses, desapareceram com a fumaa do usem e com as rpidas imagens dos campos apenas entrevistas. Chegaram a Bordus, quase sem se aperceberem da distncia percorrida e ali permaneceram dois dias. Visitaram, em seguida, Baiona e Biarriz, detiveram-se um dia em Pau, o dia seguinte em Lourdes, e desceram em Luchon com a inteno de a demorar alguns dias antes de se instalarem no castelo. Porm, na manh seguinte chegada, os Castelvieil vieram busc-los. O domnio ocupava, com efeito, uma posio maravilhosa sobre a vertente da montanha, no meio de bosques e pastagens, com uma vista muito ampla sobre a vale, para alm do antigo torreo. Encantadores passeios a p, em carruagem ou a cavalo, permitiam excursionar alegremente pelas estradas e caminhos que acompanham todos os cursos d'gua, subindo o Pique, o One,
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o Lys e seus numerosos afluentes. As excurses foram iniciadas desde o dia seguinte. Visitaram a cascata Sidnia, a igreja de Saint-Mamet, a cascata de Montauban, e fizeram volta de Luchon. Nos dias seguintes, afastaram-se at o vale de Arboust, visitaram S. Aventino com a sua igreja do sculo XI, Cazaux, Garro, o lago dominado pelo pico de Nero. E assim continuou cada dia. Todos esses caminhos atravs do macio dos Pirineus so ao mesmo tempo pitorescos e graciosos. No so mais os grandes lagos da Sua, nem as geleiras prodigiosas dos Alpes do Oberland; so menos vastos, menos altos, mais densos de pinheiros; porm os vales por toda a parte so mais verdejantes, menos povoados de chals ou de vilas, mais agrestes, mais desertes, mais arborizados, sulcados de ribeiros e por quase toda a parte animados, especialmente em Junho, com o rudo das quedas d'gua e das cascatas. A cada dia surgiam novas excurses, que em nada se pareciam s da vspera. Nesse ar vivo das montanhas as caminhadas mais longas no fatigam, preparam um sono reparador, e, a cada manha cem o despontar do Sol, cada um se dispe para novas subidas e visitas a essas paisagens encantadoras. Havia j uma quinzena que vivia assim, em plena Natureza, sem o mais leve pensamento de voltar ao cassino de Luchon, e projetava-se uma viagem de longo curso, conforme a expresso do senhor de Castelvieil, a Arreau, Barges, Luz, S. Salvador, Gavarnie e Cauterets, quando, olhando o mapa, Esteta exclamou. - Porque no irmos Espanha? Parece-me que no muito longe. - At muito perto daqui, replicou o senhor de Castelvieil, e, indo at l, no faramos uma viagem de tomo curso. Reparem, to perto que, pelo caminha que ali est, disse aproximando-se da janela e estendendo a mo para a esquerda, podemos almoar l, o dia que quiserem, e voltar tranquilamente para jantar em casa. - Em verdade! Exclamou Estela. Porque ainda, no fizemos isso? E onde podemos almoar nessas condies? - Em uma pequena cidade espanhola, pitoresca e bulhenta, onde se pescam excelentes trutas. Acrescentarei mesmo que o caminho at crista doa Pirineus, a Portillon, uma verdadeiro castelo, sombreada de rvores seculares de nossa floresta de Houeil de Hourtino, e que, por um contraste quase teatral, quando se chega vertente espanhola, tem-se de repente sob os olhos uma paisagem absolutamente diferente, o calor em vez da brisa fresca, o vale de Aran em vez da nossa floresta francesa, e subitamente, tal qual uma mudana de decorao, a Espanha em vez da Frana. Embora contra a vontade de Lus XIV e Napoleo, os Pirineus no so uma palavra v. - Oh! Vamos l amanh! - exclamou Esteta toda alegre, no esperemos. H muito que faz bom tempo, e se a chuva chega adeus excurses!
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A fronteira da. Espanha no dista cinco quilmetros dos domnios de Hourtino e a cidade de Bosot fica a trs quilmetros para alm. Puseram-se a caminho s sete horas; a subida foi um pouco lenta, porm a descida rpida. s dez horas, chegaram ao centro de uma populao mesclada e barulhenta. Era dia de festa e feira. Os sinos soavam; as praas estavam repletas de feirantes, cavalos, muares, mercadorias; os albergues com os seus terraos desbordantes de gente atarefada. As ruidosas exclamaes da lngua espanhola se entrecruzavam atravs das buliosas ruas; o Sol dardejava seus raios de fogo sobre todas essas cores e toda essa algazarra; o riacho cintilava com, jovial cascateio' sobre as rochas do seu leito rpido. Era realmente um povo todo diferente, uma Natureza inteiramente diversa, um outro mundo. Enquanto fazia horas para o almoo, nossos excursionistas foram visitar a velha igreja romana, e chegaram a meio a missa, cantada em estilo misto e bizarro que nada tinha da grandeza do canto gregoriano. A turba de mulheres e homens estava ajoelhada sobre as lajes. Detiveram-se prximo ao portal, para no perturbar o ofcio. Durante a elevao da hstia, um menino no coro, que se achava em uma tribuna junto ao rgo, fez girar uma roda guarnecida de campainhas que tilintavam alegremente, enquanto os fiis se prosternavam at ao cho. Os raios de Sol desciam em jactos oblquos de luz atravs da pequena igreja e vinha lanar tons variegados sobre toda a assistncia. Fora, ouvia-se o mugir dos bois, a zoada confusa dos mercadores, os gritos das crianas, o latirem dos ces, o canto repetido dos galos. Uma antfona do ritual, sustentada pelo solo afinal abafou o conjunto. Ao voltar para o albergue, no puderam, como teriam desejado, encontrar mesa vaga no terrao, beira do riacho: a estalagem estava repleta; mas, pelo calor ardente, pela luz ofuscante que o Sol fazia cair em cheio, no lamentou muito ser forados a tomar lugares na sala comum, onde estavam sentados mesa uma cinquentena de mercadores, e terem de se contentar com os pratos um pouco vulgares do cardpio do hotel. Essas fisionomias crestadas pelo Sol e pelos ventos, esses semblantes to animados, os vaivens atarantados dos servidores, que no sabiam a qual chamado atender em primeiro, as iguarias desconhecidas que lhes serviam, o vinho de Espanha, um tanto pesado, que coloria os copos - toda essa variedade acrescentava excurso um imprevisto que divertia imensamente Estela, encantada com a sua idia desse passeio a um recanto da velha Ibria. A tarde foi preenchida com uma caminhada ao longo da margem esquerda do Garona, sob as grandes rvores que o margeiam, e, quando voltaram ao carro que os esperava, j havia terminado a feira, cessara o barulho das horas precedentes, e a pequena cidade espanhola parecia metamorfoseada em tranqila aldeia de provncia. Toda essa gente
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madrugadora, e, quando o pr do Sol se aproxima, tumultuoso movimento do dia se apazigua e se extingue, semelhana dos ninhos de pssaros. Retomaram o caminho de Frana, para no chegar muito avanada a noite, e a tempo tambm de aproveitar a brisa da tarde. E porque os cavalos subiam a passo a estrada espanhola de Portillon, nas proximidades do ponto mais elevado, que forma a fronteira, Estela assinalou, para alm de uma clareira, velha torre que dominava o vasto e grandioso panorama do vale de Oran e que, iluminada pelos raios do Sol poente, se destacava em vermelha sombra sobre a floresta. Interrogou o Baro de Castelvieil. - E' a Torre do Solitrio, respondeu. E' habitada por um famoso original. Esse nome - Solitrio - sulcou o crebro da jovem, qual um relmpago. - O senhor disse a Torre do Solitrio - repetiu. De que solitrio? - Um filsofo, um astrnomo, um sonhador. Vive ali inteiramente isolado, entre o cu e a Terra. Sabe que estamos aqui a 1300 metros de altura? E veja, a sua torre ainda domina bastante a eminncia. - O solitrio! Repetiu por sua vez o Conde de Noirmoutiers. Escute, no um escritor, um autor? No tem publicado vrios livros? - O Domnio do Desconhecido, acrescentou vivamente Estela, A Aurora do Novo Dia, como e muitos outros... - Justamente, ele. Leu ento essas obras, senhorita? - Como! Exclamou Estela, o Solitrio reside l? Oh! Parem a carruagem para que eu possa observar! E' uma torre em runas! Exclamou. - Sim, replicou o baro. No se sabe verdadeiramente como pode algum morar ali, exposto a todos os ventos. E no Inverno no nada divertido, senhorita; s se encontra neve... Entretanto, esse filsofo instalou um observatrio munido, dizem, de excelentes instrumentos, e passa a vida estudando o cu. Puseram-se novamente em caminho os excursionistas, conversando de mil coisas diversas, que a alma da sonhadora no ouvia. Crtica e discusso Na manh seguinte, ao almoo, no houve nada mais imediato para Estela do que falar sobre a excurso da vspera, sobre Bosost, a vale de Oran, o Portillon e... a Torre do Solitrio. O Dr. Bernard, antigo interno de hospitais, mdico do estabelecimento termal, almoava nesse dia no castelo. Era um conviva alegre, de conversao muito agradvel, excelente caador, cptico em tudo, at em Medicina, s vezes um pouco acerbo em suas crticas aos homens e s coisas, nada idealista, de um positivismo seguro, no se enrodilhando em qualquer espcie de admirao, exceto pela msica de
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Wagner, pois era um melmano, qual a a maioria dos mdicos, e julgava tudo com calma e circunspeo. Tambm estava presente o vigrio de Bagnres, que freqentava o castelo, e um comandante de Engenharia, antigo aluno da Escola Politcnica, a quem denominavam o Politecniano. A refeio no campo, sombra doe altos arvoredos, no longe da fonte rumorejante em torno da qual cantavam os pssaros, decorreu no meio de atraente e variada palestra. Estela no conseguira, entretanto, apesar de mui hbil diplomacia, obter que se fosse, depois do caf, dar um pequeno passeio a p, para os lados da Torre do Solitrio, que, partindo de pequeno porto do parque, distava apenas meia hora do castelo. O senhor e a senhora de Castelvieil tinham visto o sbio vrias vezes, verdade, e teriam podido tentar a excurso; mas no tinham desejo algum de faz-lo, por acharem o carter do Solitrio dos mais insociais. Alm disso, acrescentaram elos, essa visita no vos pode interessar em coisa alguma. - Nunca vi um observatrio! - E depois, disse por sua vez o Conde de Noirmoutiers, minha sobrinha no disse tudo. O Solitrio seu autor favorito, como, alis, tambm o meu, agora o confesso, e ela no ficaria zangada por ver um grande homem em trajes caseiros. Contudo, preveni-a de que seu ideal, seguramente, muito perderia com isso. As mulheres se apaixonam por um ou qual autor e imaginam ingenuamente tornar a encontrar o encanto, a vida, a seduo do estilo no rosto, na voz ou no tipo do indivduo. No nesse sentido que deviam interpretar a definio de Bufam: O estilo o homem. Mas, todos o sabem, as filhas de Eva so curiosas apesar de tudo, e minha sobrinha saiu bem ao av. - s vezes elas tm razo, disse o doutor, e nem sempre se enganam em suas esperanas. Ningum contestar, por exemplo, que a senhor Anatlia Franca, que vimos no ano passado em Luxam, seja um homem to agradvel de conhecer quanto os seus escritos. - No seria esse o caso do nosso Solitrio, replicou o baro, porque no verdadeiramente atraente, nem amvel. D a impresso de desprezar a Terra toda. No sai do seu cu, no d ateno a nada fora da Cincia, no ama coisa alguma. - Eu, que o li muito, repliquei o Conde Noirmoutiers, eu o compreendo. O mais nobre emprega que se pode fazer da vida, no estudar o enigma do Universo? A Astronomia parece-me ser uma cincia empolgante, suficiente para absorver inteiramente a vida de um homem. - Sim, certamente, interveio o politecniano, e chego a perguntar-me porque prossegue ele tantos estudos ao mesmo tempo. A Astronomia deve ser, com efeito, uma cincia bastante vasta para encher todos os instantes,
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trabalhando dezoito horas por dia, e agir-se-ia melhor escolhendo um ramo para nele especializar-se. Como ento mistura ele pesquisas, alis, muito diferentes e, parece-me, pouco cientficas? No se preocupa ele com as pretensas foras psquicas, ocultismo, magnetismo, hipnotismo, espiritismo, telepatia, e outras fantasias, que sei eu? Farsa tudo isso! No clssico para um sbio. - E' a reflexo que fiz durante algum tempo, Iendo certos dos seus livros, replicou o conde, e julgo ter encontrado a explicao. A Astronomia, per si, no se limita medida matemtica das posies dos astros: consiste precpuamente na pesquisa das condies da vida na superfcie dos outros mundos. Essa vida em Marte, Vnus, Jpiter, Saturno ou nos outros sistemas solares, seja atual, passada ou futura, nos interessa, no somente porque pede assemelhar-se nossa, mas por isso que transfigura para ns o aspecto do cu estrelado, mostrando-nos em todas as regies do Espao infinito moradas atuais, passadas ou futuras de seres viventes e pensantes, de todos os graus de inteligncia. Esse novo cu da Cincia substitui o antigo cu teolgico. Desde ento natural associar-lhe o problema dos nossos destinos, e estou certo de que o senhor abade no me contestar, de vez que o antigo cu de Ptolomeu, de So Toms e de Pascal cedeu lugar ao de Herschel e Le Verrier. Que h, peie, de surpreendente em que um astrnomo, que tem o hbito de viver nesse cu, se pergunte se nossas almas 'so imortais e se esses mundos so a moradas da imortalidade? E' o grande problema do Alm que tem a sua importncia. A procura de testemunhos da existncia da alma e da sua sobrevivncia no o complemento lgico da Astronomia? Se todo ser humano morre completamente, em que a imensidade do Universo nos pode interessar? Se no restam nada de ns outros, se somos efmeros cogumelos do globo terrqueo, vivendo alguns dias, em que nos pode adiantar tudo isso? A Cincia no passa de uma burla, e assim a nessa prpria vida, sim, um logro idiota e ridculo. Eis como me explico essas preocupaes do Solitrio, que lhes parecem, e bem assim a muitos outros, pouca cientficas. Acrescentarei ainda que se a Astronomia nos interessa por si mesma, muito mais ela o faz pelos horizontes filosficos que nos desvenda. Que o Universo? Que existe em todos esses mundos? Qual o nosso verdadeiro lugar, o nosso destino, em todo esse plano maravilhoso? Eis a questes que certamente nos apaixonam mais da que o clculo logartmico da posio de uma estrela. - No quis interromper o senhor conde, interveio o vigrio, mas tenho certas reservas a opor, Non est hic locus. Direi somente que a F resolve certos problemas inacessveis Razo, e que os sbios deveriam deixar esse cuidado aos telogos. A verdade uma luz que, agitada, corre o risco de se apagar.
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- E o senhor, doutor, disse o comandante, que pensa? - Oh! De l de cima nada tenho a dizer. Os senhores conhecem os meus sentimentos. Morrerei, como diz o senhor vigrio, na impenitncia final. - Sim, confirmou a baronesa, sabemos que o nosso amvel doutor no acredita em nada. - Mas, minha senhora, no se deve crer em nada. A palavra crena anticientfica. S se admite o que est demonstrado; eis tudo. - E que h realmente demonstrado, replicou o sacerdote, realmente conhecido em sua essncia? - A discusso nos levar longe, respondeu o mdica. Mas, com toda a certeza, o que no me parece demonstrado (e peo ao senhor abade que me desculpe a franqueza, porm lhe respondo pergunta) - a existncia da alma tanto quanto a de Deus. E quereis que desvende o fundo do meu pensamento? Pois bem: a tempo despendido com essa divagao tempo perdido. - Da mesma forma que com o bilhar e com a pesca de anzol? Disse rindo o Baro de Castelvieil. - Muito mais, podemos divertir-nos com o bilhar, apanhar Peixes com o anzol; mas nessas questes no h divertimento, nem se apanha coisa nenhuma. - Creio que o doutor faz pilhria nossa custa neste momento, disse o abade com um sorriso contrafeito. - No penseis isso. Afirmo-vos que essas questes insolveis absolutamente no me interessam. Nunca pude compreender, por minha parte, que algum se preocupe com a eventualidade do que nos possa acontecer aps a morte. A vida e os seus afazeres, eis tudo. Tenho visto muitos doentes, muitos velhos, muitos moribundos. A inteligncia frgil. E' uma chama fcil de extinguir. Fcilmente se extingue por um nada, e temos muitas vezes muitos trabalho para reacend-la. - Desculpe, mas vs no a reacendeis quando ela est extinta. - E quando salvamos um afogado? E quando reanimamos um asfixiado? E quando o desmaio, a sncope, a febre cerebral ou a febre tfica cedem volta da lucidez? Digam-me, pois, onde estava a alma do doente? Onde est a do louco? Digam-me onde est a do velho caduco, em perodo de segunda infncia, ou onde est a do idiota, do cretino, da criana atrofiada? Minha experincia no data de ontem. Para mim, a faculdade de pensar uma propriedade do crebro, tanto no homem quanto no animal. Ausncia de crebro ausncia de pensamento. E no h outra coisa a investigar. - E essa doutrina vos satisfaz? - A mim, sim. Mas no est nisso a questo. Perguntai a um inseto se preferiria ser o pssaro que o devora, indagai ao pssara se preferiria ser o
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caador, inquiri ao atxico se preferiria ter as pernas em bom estado, interrogai mulher sexagenria se preferiria ter vinte primaveras, e as respostas afirmativas nada significariam. No se trata do que se desejaria ser; trata-se do que se . Se h imaginaes s quais a realidade no satisfaz, tanto pior para elas. A Natureza nada pode, no caso. Mas, vou mais longe e digo que se pode estar, que se deve estar inteiramente satisfeito com o que existe. No somente no me inquieto com o que os psiclogos denominam o Alm, mas tambm no compreendo que se possa desejar recomear a vida sob uma forma ou sob outra. Se apresentasse a questo: Que preferis ao morrer - dormir completamente, no existir mais de maneira alguma - ou recomear exatamente a vida tal como foi - quem no escolheria o Nada? A vida antes de tudo uma fadiga, e no h mal algum em dela libertar-se. Os mais felizes no o so em realidade. H mais horas ms do que boas, mais d sofrimentos,, de aborrecimentos, de desiluses, do que de satisfaes perfeitas. Pela minha parte, embora no tenha muito de que me queixar da sorte ficaria desolado de viver, mesmo assim, eternamente. Oh! O repouso! Coma se pode tem-lo, e no o desejar? - Isso no seria o repouso, se no sentsseis mais nada: seria o Nada, sem esperana. - Qualquer que, seja o gnero de vida que se possa imaginar para depois da morte, desde o momento que houvesse vida, haveria luta. Pois bem, suficiente ter lutado durante seis ou oito decnios. Prefira o aniquilamento, o repouso eterno, conforme o diz, senhor abade. - Eu no, replicou a condessa. Prefiro a vida, qualquer que ela seja. - Viver, agir, sentir, amar, sofrer at, antes isso do que o nada, secundou a baronesa. - E eu tambm, acrescentou Estela. - Oh! Minhas senhoras, tendes liberdade de desejar tudo quanto vos agrade. Nossos sentimentos, porm, em nada alteram a ordem das coisas. Em minha opinio de positivista que sou esses devaneios da imaginao, essas pesquisas no Desconhecido, no so cientficas. Quero que um sbio no saia da sua cincia. Seja mdico, cirurgio, qumico, fsico, botnico, fisiologista, anatomista, arquelogo, filsofo ou astrnomo: quanto mais se concentrar na sua especialidade mais provecto ser. Mas no me falem dos generalizadores. - O senhor prefere a anlise sntese, caro doutor, e no ser errado. Reconhea, entretanto, que til haver, de tempos em tempos, espritos sintticos, que abarquem mais vastos horizontes e combinem vrias luzes em benefcio do progresso geral do esprito humano.

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- Quem muito abarca pouco abraa, disse o politecniano. Tal era possvel no tempo de Aristteles, mas, hoje, com a diviso do trabalho, impossvel reunir o conjunto dos conhecimentos humanos. - Oh! Ningum tem essa pretenso. Julgo somente, a propsito do Solitrio, que um astrnomo pode ser - deveria dizer, deve ser - filsofo. A Astronomia precisamente uma cincia bastante imensa para deixar de engrandecer as idias. Um astrnomo que no interpreta a que v no passa de um autmato, simples mquina de calcular ou um aparelho de fotografia. Admito tanto menos um astrnomo-mecnica quanto um astrnomo catlico. Quer um, quer outro, so incompletos. - Obrigado pela nossa parte, disse o sacerdote. Por mim, confesso que o vosso Solitrio no um astrnomo igual aos outros; mais um astrsofo. - Chamem-lhe como quiserem, replicou o conde. Haver mesmo quem o trate at por astrfilo. - Oh! Exclamou a baronesa, um iluminado! - E eu tenho uma recriminao muito mais grave a fazer-lhe, interveio vivamente o politecniano. E' um literato. Tem escrito romances. - Romances! - Se no romances, pelo menos narraes literrias, histrias. Um sbio se compromete, escrevendo dessa maneira. - O senhor acha que ele escreve mal! - No. Ao contrria, reconheo sua esttica e aprecio seu estilo. Aprecio a forma literria e concedo que poucos escritores sejam to puristas. Mas, justamente por causa dessa correo, um literato, um artista; no mais a de uma sbia. - Um sbio deve escrever mal? O fato que em geral... - Um sbio no deve escrever. Escreve-se no deve faz-lo para confundir-se, com os literatos, no deve oferecer ao pblico obras de imaginao. Concordo em que um sbio escreva tratados tcnicos especiais. - Ele os fez, e mais de um que so clssicos nos Observatrios. - Essas obras so lgicas, naturais. As outras so erros sem as quais ns no o discutiramos. J leu o seu Cosmas? - Ia falar justamente dele. Pois bem, a meu juzo, esse livro lhe trouxe muita honra. Imaginou uma narrao, uma histria, como dizeis, um romance, se assim quiserem, no qual exps suas idias sobre o cu, seus conhecimentos sobre Marte, sua doutrina palingensica. Vs no podeis negar que, desde algum tempo, as noes astronmicas publicadas nessa obra tenham penetrado o pblico. Esse pblico hoje conhece Marte, fala de suas neves polares, de seus canais, de suas estaes, sabe que existe no cu, no longe de ns, um planeta anlogo a Terra e que podero ser habitado por seres pouco diferentes de ns outros. Os jornais, at os menos cientficos, j tratam agora de Marte
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qual se fosse um pas que interessa a todo o mundo, Tquio ou Madagascar. A quem deve isso? Ao livro Cosmas, que foi lido por cem mil leitores. Se o Solitrio se tivesse contentado com o seu enorme alfarrbio clssico, a Aerografia, do qual no foram impressos mais de duzentos exemplares, e que no saiu da esfera dos Observatrios, ningum, hora presente, teria ouvido falar das maravilhosas observaes feitas sobre esse globo vizinho por tantos astrnomos, inclusive ele. De minha parte, aprovo-o por se fazer ler em vez de deixar a luz debaixo do alqueire e acho estpido recrimin-lo. Preferia at vlo um pouco mais vulgarizador, a exemplo de Fontenelle, Buffon, Lalande, Humboldt, Arago, Darwin, Haeckel. Mas ele no corteja o sufrgio universal. O que escreve, f-lo com cuidado, eis tudo, com sinceridade e com f. E a recriminam! Esses julgamentos so realmente bizarros. Sempre as divises, as categorias, as selees. para serdes lgicos, deveis tambm recriminar Galileu, Descartes, Leibnitz, d'Alembert, Laplace e Cuvier por terem sabido escrever. Como quereis, deve-se ser ou literato sbio! Em outros termos, o literato deve ser ignorante, os escritores devem falar para nada dizer, para reamassar sempre as mesmas histrias que no se alteraram desde o dilvio! Eis o que chamais literatura: prosa ou versos que nada ensinam, romances que s tm por objeto recomear sempre os mesmos contos de pessoas que se abraam para enganar, que noivam, comem e bebem, que se batem em duelo ou que assassinam, em uma palavra, a descrio das aes humanas. Mais banais e mais vulgares, e, algumas vezes, porm muito raramente, de sentimentos algo mais refinado e nobre! Tal qual no teatro! Sempre a mesma pea, sempre o adultrio: o marido, a mulher e o amante. Sempre o quarto de dormir e sala de jantar. Eis toda a Humanidade. Para vs, um escritor no deve sair da pele das pessoas que vemos viver em torno de ns, e, principalmente, nada deve ensinar de cincias exatas; um crime elevar o esprito humano a esferas mais altas! Eu vos confesso que essa classificao me parece uma pura estupidez, perdoai-me a expresso, pois no encontra outra melhor, uma idiotice. Recriminar a um astrnomo, a um mdico, a um naturalista, a um gelogo, a um qumico, o imaginar ele uma elegante moldura para expandir suas idias, o que ele acredita ser a verdade, um falso raciocnio. Vs dizeis que os seus colegas o apelidaram de literato e que os literatos o rejeitaram por sbio. Que lhe pode fazer isso? Em que lhe pode interessar a opinio de Pedro ou de Paulo? Ele no tem ambio, nada deseja, independente. Sabe que influi sobre os espritos do mundo inteiro; tem disso provas irrecusveis, e o que lhe importa. Faz o bem e caminha para frente. S podem ser acompanhadas as criaturas que andam. Esse homem um instrumento do progresso. E' um precursor, e um apostolo.

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- Que advogado me saiu o meu caro conde! Certamente h muita verdade no que diz. Pode-se estar errado em encurralar os autores a modo de carneiros, e encerr-los em uma trincheira da qual lhes seja vedado sair. E' um erro de apreciao, e evidentemente no haveria mal algum em que os escritores fossem instrudos, e em que os sbios soubessem escrever e tivessem idias gerais. Contudo, mantenho a minha opinio: o gnero romance no me parece apropriado para um cientista. - Todos os gneros so bons, menos o gnero fastidioso, disse Voltaire. - No penso assim, e farei uma outra objeo. Quando o senhor l um tratado de Fsica, de Histria Natural, de Geologia, de Entomologia, no est exposto a enganar-se, avana passo a passo no estudo e tem a certeza de aprender a cincia pela qual se interessa. Mas se o autor dilui essa cincia em um quadro que lhe estranho e acrescenta fices, acreditais que o leitor saiba sempre distinguir o verdadeiro do falso e no acabar por se enganar? Um romance cientfico , em minha opinio, muito perigoso, e continuo a pensar que bem melhor fazer cincia de literatura. Como quereis que um ignorante reconhea o que fantasia e o que cincia? E no acabe formando idias falsas? - E' preciso, creia eu, que em um romance cientfico tudo quanto se refira Cincia seja absolutamente exato. Reconhecereis que esse o caso dos livros do Solitria. Desafio que algum descubra em suas obras um erro ou uma invencionice. No h nelas uma frase, uma palavra, que possa ser desmentida. Semelhante alegao, que pode parecer arbitrria, o resultado de longo trabalho e baseada no clculo, na observao ou na experincia, as trs fontes dos nossos conhecimentos positivos. E' preciso ser bem ingnuo, nada perspicaz, para no destacar desse cientfico incontestvel a narrao destinada a orn-lo e tornar-lhe atraente a leitura. Confesso que existem esses espritos cndidos, porm em pequeno nmero, e muitos dentre eles no compreenderiam com maior proveito um tratado tcnico; veriam a que ali no existe. Conheci um honrado homem que aps ter lido certo tratado de Astronomia muito bem feito, o de Delaunay, veio dizer-me que, segundo compreendera, a Terra no girava. No entanto, o livro era de pura Cosmografia. - E eu, replicou o mdico, tive um doente, doente imaginrio, que passava o tempo tateando o pulso, observando a lngua, estudando a sua prpria alimentao e a ler livros de Medicina. Um belo dia, sentindo qualquer coisa no corao e no sei mais que embarao gstrico, reconheceu-se atingido de quase todos os sintomas da gravidez! Esse tambm lera mal. Nenhum autor pode orgulhar-se de ser compreendido de igual modo por todos os seus leitores. E principalmente nenhum pode ufanar-se de agradar a todo o mundo.
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- Tudo que os senhores queiram, disse a politecniano, mas nunca me faro apreciar o seu cenobita da montanha. - Mas, interrompeu Estela, por acaso no til a um sbio conhecer assuntos diferentes na aparncia, mas que se esclarecem mutuamente? Por exemplo, um filsofo poderia ignorar a Astronomia e crer que a Terra existe sozinha no Universo? Ou um fsico poder ignorar a Qumica? - Sem dvida que no, senhorita; mas, repito: esse original no um sbio, um literato, um poeta, um jornalista. - Pais bem, eu, disse o vigrio de Bagnres, que a muito custo se contivera at ento, irei mais longe e declararei que esse homem um malfeitor! A essa afirmao bastante inesperada, apesar do calor da discusso, o conde saltou da cadeira... - Malfeitor! Esse grande escritor, esse sbio, esse gnio!... - Gnio do mal! Sim, senhor conde, um malfeitor. Ele perturba as conscincias, mina a tradio, destri a obra secular dos preceptores da Humanidade. A Revelao nada tem a recear, pois que de instituio divina, e as portas do inferno no prevalecero contra ela. E' um demolidor. E o que oferece em troca? - A Verdade, pura e simplesmente, respondeu o conde. Nesse momento abriram-se as portas do salo onde ia ser servido o caf. A baronesa levantou-se, o abade ofereceu-lhe galantemente o brao, e todos os convivas os acompanharam. - Vejo, disse Estela a seu tio, que no iremos visitar esse Observatrio. - Falais a todo instante em independncia, disse o baro. Como se pode ser independente sem fortuna? Eis ai outra questo. Nosso Solitrio vive l em cima numa indiferena e num desinteresse extraordinrios. - Oh! A esse respeito, acrescentou a baronesa, um tipo original. No se importa com coisa alguma.. No tem ambio de nenhuma espcie, nem sequer a da glria, que, no entanto, nobre, pois os livros que deu a imprimem, dizem, foi preciso arrancar. Quanto a dinheiro, vota-lhe o mais absoluto desdm. No um pouco manaco? Ningum se isola assim impunemente da Humanidade. - Com que vive esse indivduo? Replicou o abade, pois, no fim de contas, primo que vive filosofia. - Isso no o preocupa. Trabalha no que lhe agrada e tudo. - Dizem-no de uma sobriedade pitagrica. Bebe gua e se nutre com flores de accia, interveio a baronesa. E' um anacoreta, um vegetariano. ' - Vive sozinho? - Sim, disse o doutor. Alis, vivendo isolado o homem permanece livre. A ambio uma escravido e as prprias afeies so cadeias.
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- Por mim, replicou o conde, no posso deixar de admirar sua obra. E de mais a mais (disse olhando para o sacerdote a quem no perdoava o dito) a religio da Cincia nunca far correr rios de sangue! Sua filosofia astronmica abriu novos horizontes Humanidade. Tem numerosos adeptos espalhados pelo mundo inteiro. Interrogai os viajantes: em qualquer pas da Terra, seja na Amrica, frica, sia ou Austrlia, no se fala no firmamento sem que seja lembrado o seu nome, seu nome annimo podemos dizer, pois, no seu desprendimento por tudo, nem sequer se deu ao trabalho de assin-lo. E' o Solitrio, como quem diz o desconhecido. - E' um nome, uma vez que clebre. Todos os nomes no foram a princpio alcunhas? - Talvez no o tenha. - Disseram-nos que um enjeitado, que cresceu nos arredores de Luchon, sem nunca ter tido famlia. - Que horror! Exclamaram ao mesmo tempo a baronesa e a condessa. - E' um erro: chama-se Dargilan, informou o doutor. - Conhece-o ento? - Perfeitamente. Vejo-o algumas vezes, embora no compartilhe de suas idias. - Conhece-o bem? Exclamou Estela, cujos olhos negros brilharam quais dois carbnculos. - E, senhorita, caso sinceramente o deseje, ficar encantada em lhe apresentar um dia, em companhia de seus tios, e at iremos todos, se preferem. O passeio daqui l encantador, como deve ter notado ontem. - E se fossemos hoje tarde? Interrogou Estela. O mau tempo no tarda a vir e desejaria tanto ver um telescpio! - Acho prudente preveni-lo, senhorita. J vos disseram que o seu carter no dos mais cmodos, e nada mais verdadeiros. E' um original, quase um misantropo. Mas, como tenho de visitar um doente entre os guardas da Alfndega, posso fazer um pequeno desvio, ir Torre, e combinar a apresentao para amanh, por exemplo. - No, para amanh no, disse a baronesa. - Por qu? Replicou o baro. Ah! Tens razo amanh sexta-feira, 13! Ambos tinham pavor desse nmero e desse dia, e no sentariam treze mesa nem por todo o ouro do mundo. Estela, que j se apercebera de certas fraquezas de seus espritos, no insistiu. - Depois de amanh! Disse, olhando para o doutor. O Solitrio

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No depois de amanh, s quatro horas da tarde, pouco mais ou menos, a pequena caravana ia bater porta do Observatrio do Solitrio. A velha torre era uma runa romana ainda slida, encravada em antigo convento de h muito tempo abandonada. Recebera aquela pequena propriedade ao atingir a maioridade, por fora de clusula testamentria que datava do ano do seu nascimento. A pessoa do misterioso donatrio ficara para sempre desconhecida. Julgava, entretanto, poder venerar nela a memria de seu pai. Algumas semanas depois de haver recebido a carta do tabelio que o informara desse legado, instalara-se no antigo mosteiro, mantendo ao seu servio o velho jardineiro e a mulher deste, que ali estavam desde tempo imemorial. O Solitrio da Torre nascera numa regio selvagem de Cevennes. Criana encontrada em linda manh numa pequena gruta, que mais tarde se tornou a famosa Gruta de Dargilan, e que ento no passava de uma anfratuosidade na montanha do estril Noir, beira de rstico caminho - passara a infncia nesse vale pitoresca e solitrio da Fonte, perdendo-se com os pastores na gruta de Nabrigas onde por diversas vezes encontrava, entre destroos fsseis do ursus spelaeus, utenslios e armas pr-histricas de nossos antepassados da idade da pedra. Certo dia, um pastor, perseguindo uma raposa, reconheceu que a gruta de Dargilan era muito mais extensa do que a de Nabrigas, e mais tarde caprichosas escavaes fizeram-na rivalizar com as de Han e Aldelsberg. Regio relegada, na fronteira do Aveyron e da Lozre, ainda hoje atravessada apenas por um caminho pouco freqentado entre Rozier e Meyrueis. Raras aldeias, alguns lugarejos, algumas quintas aparecem aqui ou ali, no campo, quer se atravesse os ridos planaltos, quer se acompanhe os vales ensombrados. A criana passara ali sua primeira idade, sem ir alm dos rochedos ruiniformes de Montpellier-le-Vieux, no meio de pastores e campnios. Um dia, a ama de leite que o recolhera herdara, sem que soubesse a provenincia real, uma pequena casa com jardim e prado que descia at ao ribeiro. Por morte desta honesta mulher o pequeno Rafael (nome que se encontrara preso com alfinete aos cueiros) herdara a propriedade por sua vez. Crescera no meio da Natureza, entre as paisagens pitorescas e selvagens de Cevennes, atravessando por vezes, tarde, ao cair da noite, os planaltos solitrios, admirando o pr do Sol, o despontar da Lua, o aparecimento das estrelas, enquanto a brisa perfumada das montanhas enchia seus jovens pulmes que a respiravam com delcia. Nas noites de Lua cheia, as fantsticas silhuetas dos rochedos de Montpellier-le-Vieux pareciam uma petrificao de fantasmas sadas do Inferno. Deslizando em uma prancha na correnteza do Tarn, via na imaginao mil castelos, fericos, empoleirados ao longo das cristas escarpadas, inacessveis ninhos de guias, nos quais, entretanto,
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disputara diversas vezes com seus companheiros os filhotes aos abutres. Na calma das noites silenciosas, aprendera a conhecer as estrelas, s quais os pastores tinham dado nomes. Contemplava-as, sentia seu pensamento elevarse at elas, e as interrogava. O vigrio da aldeia vizinha, a quem ajudava na missa, ensinara-lhe a ler, escrever e contar; e desde os dois lustros de idade lia o latim nos clssicos. O vigrio tinha um pequeno culo de alcance com o qual Rafael observara as montanhas anulares da Lua, os satlites de Jpiter, algumas curiosidades siderais, cuja contemplao imperfeita excitara o seu ardor. Amava o cu com paixo, e s almejava uma felicidade: poder estud-lo. Antes de atingir quatro lustros de idade escrevera um poema, que primeiramente circulara manuscrito nas redondezas locais, e do qual o jornal de Millau publicara trechos, e Ihe foi afinal pedido pelo amigo de um editor de Paris, em vilegiatura s margens do Tarn. Logo que recebeu, aos vinte e um, a doao, certamente muito inesperada, do velho convento dos Pirineus, vendeu a pequena casa em que morava com o jardim e o prado que a rodeavam, e comprou em troca uma boa lente astronmica, um tubo de cobre e uma aparelhagem com mecanismo de relgio. Dedicou-se a construir com isso um instrumento ao seu gasto, o que conseguiu com felicidade, e desde ento se entregou de corpo e alma sua paixo dominante: a contemplao e o estudo das maravilhas do cu. E em tal cifrou toda a sua vida. Reunira tambm no Observatrio, compradas a preos de ocasio, as obras mais importantes das cincias contemporneas e da Filosofia, e, tendo bem depressa entrado em correspondncia com os principais sbios do mundo inteiro, recebera as memrias originais, os resultados de pesquisas e as observaes de todos os observatrios, de sorte que a sua biblioteca estava abundantemente fornida, sob o ponto de vista de seus estudos favoritos. No tinha tendncia alguma para prodigalidade, nem para mobilhar os aposentos, nem para roupas, nem para sua mesa; era muito frugal, no comia carne e preferia a gua ao vinho; era biblioteca e aos seus instrumentos que consagrava todas as pequenas importncias no absolutamente indispensveis sua vida material. Seu oramento era dos mais modestos. No tinha mais fortuna do que o dinheiro que ganhava e nada lhe eram to desagradvel quanto perder tempo em ganhar dinheiro. Entretanto, era preciso viver. Seu nome rpidamente ganhara celebridade, desde a publicao de seu primeiro livro, aos dezenove anos de idade, e com freqncia recebia propostas de diretores de revistas, da Frana e de outros pases, pedindo-lhe crnicas mensais sobre o mais interessante assunto da atualidade cientfica. Aceitara duas: uma de Paris e
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outra de Londres, e lhes enviava o mesmo artigo, com pequenas diferenas. O jornal de Paris pagava trezentos francos, e o de Londres duzentos. Esse rendimento de seis mil francos anuais lhe era suficiente. Acrescentava-se a isso os direitos autorais sobre a venda de suas obras, que a Livraria Hachette lhe enviava anualmente, obras pouco populares, com exceo das duas ltimas, pois ele no cortejava a opinio pblica. Os aposentos do velho convento eram simples, lajeados, pobres, frios, caiados de branco, bem conservados. Eram sofrveis no Vero. Deviam ser glaciais no Inverno. Acostumada ai luxo, ao conforto e elegncia, Estela surpreendeu-se um pouco tristemente, entrando nesse alojamento de uma habitao to pobre e to humilde. Q doutor f-los penetrar na biblioteca, e subiu, ele prprio, torre, procura do astrnomo, que no se apresentara embora os esperasse. Uma grande porta aberta lhes mostrou um gabinete da Fsica, no qual notaram avantajada mquina eltrica, de modelo antigo. - Vs, minha linda sobrinha, disse o conde de Noirmoutiers, que o nosso Solitrio no demonstra a menor pressa em nos vir receber. - Talvez se esquecesse, acrescentou o baro. Talvez at haja sado! - O senhor conhece o original: o mundo no existe para ele. - Que singular existncia, a de passar a vida, assim, na abstrao! - Nunca pude compreender as pessoas do mundo que procuram convivncia dos sbios, replicou a baronesa. No falamos a mesma linguagem. H dois anos, quando aqui viemos, aconteceu mesma coisa. Estava absorvido em um clculo e nos fez esperar meia hora. - Se fossemos passear no bosque, acrescentou a condessa, estaramos melhores do que aqui - frio quanto uma adega. Com esse vestido to leve, Estela, vais constipar-te. Nesse instante o doutor desceu. - O Sr. Dargilan est ocupado l em cima, falou, e pede que subamos. - Eu bem disse que ele no se incomodaria! Acrescentou a baronesa, fazendo um movimento de ombros. Atravessaram vasta sala arruinada, cujas lajes eram desiguais e desunidas, e, passando por uma poterna baixa, comearam a galgar os degraus gastos de velha escada de pedra. Em algumas pontes as pedras haviam cado e sido substitudas por tbuas. Tudo era bem diferente dos assoalhos encerados e dos macios tapetes dos apartamentos de Paris ou dos castelos modernos. Quando chegaram ao topo da torre e penetraram sob a cpula, perceberam empoleirado em um escabelo, o olho na luneta, o autor do Domnio do Desconhecido, pobre e negligentemente vestido com uma simples japona de l, continuando tranquilamente uma observao.
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- Peo-lhes que me desculpem, disse, estarei convosco dentro em pouco; estou terminando uma observao. E continuou a espiar o espao qual se estivesse sozinho. - Meu caro mestre, disse o Conde de Noirmoutiers, no se incomode conosco. Compreendemos o seu trabalho e o respeitamos. Ns outros somos uns inteis que passamos a existncia sem algo produzir. Se s houvesse gente da nossa espcie, a Humanidade ainda seria do gnero troglodita ou smio, e no saberamos nada de coisa alguma. Dargilan, a quem o rudo das palavras aborrecia, renunciou continuar e desceu da sua banqueta giratria. - Meu caro doutor, disse, estendendo a mo ao mdico, agradece-lhe por haver trazido os seus amigos, e sentir-me-ei feliz mostrando-lhes alguma coisa. Porm, acrescentou um pouco secamente, sabes, tanto quanto eu, que as pessoas do mundo nada podem ver em nossos instrumentos. Disse isso com simplicidade, sem menosprezo; porm Estela se sentiu melindrada. Estava linda; vestira uma de suas toaletes mais elegantes, e ele nem sequer a olhara. E' possvel seja este homem, dizia-se a si mesma quem escreveu to lindas pginas e me transportou ao cu? Esse aspecto extravagante correspondia exatamente descrio que ouvira fazer: vestes grosseiras, andar pesado e desajeitado, cabeleira e barba hirsutas, tez de cor embaciada. No momento de transpor a porta do jardim do observatrio, ao pensar que ia encontrar-se frente a frente com o seu autor predileto, seu corao palpitava com fora. No entanto, via um homem de aspecto comum, e, alm do mais, desagradvel. Foi a primeira a falar-lhe e sem perturbao. - Senhor, disse-lhe, viemos estorvar suas observaes. Cabe-me a culpa. Fui eu quem desejou ver o seu observatrio. Perdoe e permita que nos retiremos. Enquanto Estela falava, ele fixa e tranquilamente, dirigira seu olhar aos olhos dela. Esse olhar, de um brilho assaz estranho, a impressionou tanto que no o pde sustentar, e foi com grande esforo que conseguiu concluir a frase. Baixou os olhos, e lhe pareceu que ia receber uma ordem. - Amo o cu, replicou o Solitrio; a ele consagro o meu viver. E' tudo para mim, o resto nada. Alis, tudo est no cu, inclusive a Terra e tudo o que ela contm. E uma vez que a senhorita tambm ama a Cincia, no uma estranha aqui. Chegastes ao momento em que fazia uma observao bastante rara. Quer tomar o lugar que eu ocupava h pouco e dizer-me o que vai ver no campo da lente? Ela tentou de novo dirigir-lhe o olhar para agradecer; mas, no momento em que seus olhos se encontravam pela segunda vez, sentiu-se percorrida, da cabea aos ps, por um choque eltrico, rpido qual relmpago. Suas pernas
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vacilaram. Apoiou-se num suporte do escabelo e subiu lentamente. Entretanto, refez-se dessa emoo to sbita e examinou a imagem celeste que brilhava na luneta. - Vejo Vnus, disse. O astrnomo pareceu surpreso. - A senhorita, sua sobrinha, mais instruda do que eu pensava, disse ao conde. - Ela leu todos os livros do Solitrio, respondeu o senhor de Noirmoutiers, sem parecer ter-se apercebido do descaso e da falta de polidez da reflexo. - Ah! Exclamou ele ainda mais surpreendido. E' que em geral (perdoe-me a franqueza), em relao Astronomia, os habitantes da Terra nada sabem, no desconfiam de nada, vivem s cegas no meio do Universo. Nem sequer conhecem o terreno em que pisam. - O crescente est muito plido, disse Estela, que recuperara de modo completo o domnio de si prpria. A extremidade superior mais aguda que a inferior. Venha ver, meu tio, quanto Vnus est admirvel no cu azul. Senhor Dargilan, assim que vemos os habitantes de Marte? - J Vedes meu caro mestre, disse o doutor, que no exagerei. Tendes a uma discpula muito convicta. O Conde de Noirmoutiers tomara lugar, olhando no campo visual, e, por sua vez; extasiava com a beleza do fenmeno. - Sabe o que mais me impressiona em tudo isso? E' que os astrnomos sabem sempre onde esto as estrelas, de dia e de noite, e assentam rpidamente as lentes sobre as posies exatas. E tambm que podem calcular com antecedncia tudo que acontece no cu. Confesso, nesse ponto sou igual minha sobrinha: admiro a Astronomia. A fisionomia de Dargilan iluminou-se. No sabendo dissimular nenhuma impresso, deixava geralmente transparecer o aborrecimento que lhe causavam as raras visitas que recebia de tempos a tempos. Sabia que, em geral, teria de lidar com curiosos e ignorantes, o que era tempo perdido. Ora, nada, lhe era to desagradvel quanto o perder seu tempo. O senhor e a senhora de Castelvieil, e assim a Condessa de Noirmoutiers, aperceberam-se muito bem das nuvens que a sua visita produzira na fisionomia habitualmente melanclica do astrnomo. A baronesa que, de h muito tempo, comeara uma coleo de autgrafos, e a muito custo conseguia enriquec-la, trouxera o seu lbum. Mas no ousava abrir fogo. Dirigiu-se ao doutor para confiar-lhe a sua pretenso e pedir-lhe que sondasse o terreno. O doutor encaminhou a conversao para o assunto, dizendo que um dos seus clientes de Luchon lhe mostrara, na vspera, um lbum muito lindo em
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que se viam interessantes autgrafos de Victcr Hugo, Sully Prudhomme, Cope, Alphonse Daudet, Anatole Franco, Richepin ; croquis de Jean Paul Laurens, de Carolus Duran, de Benjamim Constam, Barthcldi, Rochegresse; pginas musicais de Gounod, Saint-Saens, Massenet; sentenas escritas por Faye, Pasteur, Berthelot, Brouardel... - Uma coleo de autgrafos! Interrompeu Dargilan, confessai que moda bem intempestiva. O senhor admite sem dvida que os homens de quem falam ocupam o seu tempo de modo til para a Humanidade, e justamente essa a causa da nossa estima por eles. Parece-me que desvi-los de seus trabalhos, para pedir que escrevam em um caderno, cometer uma ao ma'. No posso admitir Le Verrier dando autgrafos em lugar de descobrir Netuno; e assim Darwin em vez de demonstrar a seleo natural, Hugo em vez de escrever a 'Legenda dos Sculos, Pasteur em vez de procurar os micrbios das molstias contagiosas, dison e Graham Bell em vez de inventar o fongrafo e o telefone... No, no louvo que se venha tomar o tempo dos sbios, dos que estudam, dos poetas e artistas com fantasias de tal gnero, em vez de respeitlas como se deve. Compreendo, at certo ponto, as colees de quadros, desenhos, medalhas, moedas, selos postais, leques, deuses chineses, de tudo, enfim, que se possa reunir sem perturbar algum, mas desaprovo a mania dos autgrafos que no se podem obter sem furtar precioso tempo a homens que tm mais afazeres. A senhora de Noirmoutiers ouvira toda a arenga sem replicar, porm sua fisionomia, j bastante perturbada,.mudara vrias vezes de cor. Sentia-se cada vez mais contrafeita na presena do astrnomo, e, tomando o brao do marido, dirigiu-se para uma porta. A baronesa e Estela os acompanharam, enquanto que o Baro de Castelvieil e o doutor permaneciam com Dargilan. A porta dava acesso a amplo terrao, de onde a vista se estendia sobre admirvel paisagem. Era a vertente sudoeste dos Pirineus, com as vastas plancies espanholas do vale do Oron estendendo-se, longe, s brumas do Meio-Dia. Junto do terrao, a floresta, com os cantos dos pssaros e o suave rudo de uma queda d'gua vizinha. Os perfumes das matas enchiam a atmosfera, iluminada com os raios do Sol que declinava para o Ocaso. Aquele era realmente um canto ferico perdido nas selvagens solides pirenaicas. - Que stio encantador! Disse a baronesa, e o vosso Solitrio um poeta em seus livros, acrescentou dirigindo-se a Estela. Mas, convenhamos em que um rstico de franqueza um tanto brutal. Ainda prefiro o mundo, apesar das suas comdias e suas perfidiazinhas. Pelo menos tem formas agradveis. E' a segunda vez que venho aqui, porm ser a ltima. Decididamente no nos compreendemos. O vosso Solitrio o meu antpoda. No faz muito caso de ns, apesar da nossa antiga nobreza.
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- A instruo uma bela coisa, replicou a condessa; contudo, a ela, prefiro a educao. - Sou do seu parecer, disse o senhor de Noirmoutiers; acho, porm, que no se deve ser severo com ele. E' um homem simples, rstico, que diz quanto pensa, arriscando-se a ferir suscetibilidades, mas que, certamente, ficaria desolado se causasse algum aborrecimento. E' um grande esprito. Perturbmo-lo em meio a importante trabalho, pelo qual ainda estava absorvido, e notava-se que apenas nos prestava meio ouvido conversao. Nesse momento, o doutor chegou por sua vez ao terrao. - E' um corao excelente, acrescentou, porm, um impulsivo nas atitudes. Pensa em voz alta, e tem opinies muito arraigadas. Uma delas, por exemplo, que todos devemos trabalhar, entreter-nos em alguma coisa. As pessoas que nada fazem horrorizam-no. - Mas doutor, replicou a baronesa, que quer que faamos? Empregamos o tempo do melhor medo possvel; realmente, no podemos fazer grande coisa. Somos iguais aos que tm rendimentos. - Pois bem, esse solitrio, que trabalha noite e dia, sem se deter; que jamais fruiu distraes, nem deseja prazer algum; para o qual as horas, os dias, as semanas do ano so dez vezes mais curtos - imagina que todos os seres humanos deveriam assemelhar-se-lhe. E' um socialista no seu modo. S conhece e s compreende o trabalho. Da, a ser insocivel para as pessoas do mundo, no h muita distncia. Sabeis que fez h pouco? O baro e eu ficamos um instante conversando com ele; pois, de repente, nos deixou s, tornou a subir na sua escadinha e recomeou a observar Vnus, da qual fez um croquis? Estela contemplava silenciosamente a imensa paisagem, e experimentava impresses at ento desconhecidas. Suas recentes leituras dos livros do Solitrio surgiam inteiramente ntidas em sua memria; sentia-se deslumbrada com a grandeza do conjunto, com as novas perspectivas abertas sobre o Universo, e ao mesmo tempo atradas para ouvir falar o predileto autor. Esse homem, que at ento lhe parecera um mito, continuava, para ela, sendo diferente de todos os outros. Pela primeira vez na sua vida, no ouvira uma palavra amvel e gentil, no recebera nenhum galanteio; pela primeira vez fora diretamente desdenhada, e no produzira movimento algum de admirao. Esse selvagem era spero e quase grosseiro. Em compensao, sentira uma comoo estranha, da qual se desembaraara com dificuldade. Pensava nele. Vivia ali isolado, no meio de seus estudos, fora do mundo, privado de tudo o que constitui as delcias da vida, entregue de corpo e alma a uma paixo imaterial, desprovido de qualquer ambio de fortuna ou de gloria, e ela estava prestes a sentir piedade por semelhante situao e a admir-lo. As vestes desbotadas e gastas que acabava de ver tocavam sua
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bondade feminina. Seu ar de tristeza, seu todo descuidado, faziam um contraste absoluto com o que at ento vira em torno de si. Essa solido, essas velhas paredes e essa pobreza deram-lhe mais viva impresso do que lhe causaria a de um palcio em centro de capital. Sentia agitar-se em seu seio uma espcie de fibra maternal. Contemplando a paisagem, dizia, de si para si, que habitava ali, perdido entre as montanhas, um ser notvel, nico talvez em seu gnero, estranha e singularmente esquecido no abandono da Humanidade. Dargilan, por seu lado, continuara a observao e terminara o respectivo desenho. Chegou, por seu turno, ao terrao no momento em que se procurava reconhecer e declinar os nomes dos stios mais interessantes da paisagem e dos cumes de algumas das elevaes pirenaicas. Pareceu fazer um esforo sobre si prprio para sorrir e colocar-se ao nvel de seus visitantes, e, saindo repentinamente de sua absoro habitual: - Vedes mais uma vez, senhora baronesa, disse dirigindo-se esposa de Castelvieil, que os cientistas no passam de ursos. E' preciso perdo-los. Um Observatrio seria triste priso paia qualquer dama da sociedade. - Apesar disso, eu o preferiria a um hospital, replicou o doutor. Mais vale ser astrnomo do que mdico. Quem diz cincia, diz estuda. Os sbios no passam vida em canaps. - Os mdicos no vivem menos dentro do mundo, respondeu Dargilan, enquanto que os astrnomos esto fora dele. A Humanidade nos interessa muito mediocremente. No tem grande valor intelectual ou moral. Nossa simplicidade protesta no meio de todas as afetadas convenes que enchem e constituem a vida mundana. Que figura quereriam fizesse no mundo um homem que no sabe danar; nem conhece jogos de qualquer gnero, que nunca usou luvas, nem cartola, e para o qual o fumo uma vil mistura que estraga a boca e o paladar? Repito minha senhora, os sbios so ursos e ningum lhes rouba essa reputao. - O fumo rende um milho de francos por dia ao oramento francs, replicou o baro, prova de que, em geral, tido por bom. - Dei minha opinio, replicou Dargilan. O consenso pblico favorvel ao fumo, s bicicletas, ao jogo da Bolsa, aos cavalos de corrida, ao teatro (que constitui, disseram-me, a base de todas as palestras mundanas), Cmara dos Deputados, aos cafs-concerto, aos saraus, aos bailes e mil outras atraentes coisas sem as quais no saberiam passar, e que por vezes desfilam diante dos meus olhos quando abro um jornal. Ns, abstratores de quintessncia, no somos conhecidos da opinio pblica. E preferimos a nossa solido a toda essa loucura complicada. A conversao se prolongou assim por alguns instantes. Pouco depois, os visitantes do Observatrio despediram-se do astrnomo, desculpando-se pela
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perturbao que lhe teriam causado. Estela pediu para contemplar Vnus mais uma vez na lente. Dargilan verificou que o planeta no sara do alcance visual e conduziu a jovem para junto do escabelo. Extasiou-se novamente com a refulgente beleza do crescente planando sobre o azul. Depois, afastou-se com pesar e estendeu a mo ao seu querido autor, a quem no pensava rever. Dargilan tomou-lhe as pequenas mos entre as suas, fixando-a com aqueles olhos cujo fulgor Esteta no podia suportar. Ela reparou, ento, que no eram castanhos, nem azuis, mas aproximados do verde do horizonte do mar combinado com o amarelo vivo dos olhos felinos. Desses pontos amarelos explodia uma espcie de fulgurao rpida. O choque experimentado foi to violento que ela retirou as mos com vivacidade, e sentiu instantaneamente a semelhana de um grande vcuo no peito. - Senhor conde, disse Dargilan, uma vez que vossa sobrinha se interessa to particularmente pelas coisas do cu, eu vos anuncio que, dentro de cinco dias, quinta-feira, Saturno ser encoberto pela Lua, constituindo um espetculo raro e digno de observao. Se o tempo estiver bom, eu me empenho em que volteis aqui. O fenmeno ocorrer entrada da noite, prxima das nove horas. O cu estrelado Estela voltara ao castelo toda sonhadora, silenciosa, a alma ligada por um lao invisvel ao imenso panorama pirenaico sobre o qual seus olhares haviam passeado do cimo do terrao do Solitrio. Naquela tarde, aps o retorno dessa primeira visita, durante o jantar a conversao quase versou toda sobre o Solitrio e seu Observatrio. Discutiase at com certa vivacidade. O Baro e a Baronesa de Castelvieil eram de opinio que no se voltasse mais l. Declararam-no um selvagem absolutamente insocivel, grosseiro, digno de sua origem plebia e rstica. Refalou-se na sua procedncia desconhecida e falta de famlia. O Conde de Noirmoutiers era o nico a defend-lo, dando-o por um ser parte, ao qual tudo era desculpvel. Estela permanecia muda, com a certeza ntima de que dentro de alguns dias iria observar a ocultao de Saturno. A Condessa de Noirmoutiers estava indecisa; faria o que seu marido decidisse. O mdico no tinha voz na reunio, pois fora de regresso a Luchon, e no podia estar de volta to depressa. Nos dias seguintes, almoo e jantar, s se falava no original habitante do velho convento da fronteira espanhola. Se a jovem sonhadora tivesse podido

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esquec-lo um instante, os que a rodeavam lho recordariam sem cessar, a agrado. Na noite do fenmeno de Saturno, s oito e meia, o senhor e a senhora de Noirmoutiers e sua sobrinha chegavam ao Observatrio. Estela reparou que as vestes do Solitrio no estavam mais cuidadas, nem menos pobres, e que a barba e a cabeleira eram realmente rsticas e emaranhadas. No fizera alterao alguma em sua toalete para receb-los. - Vedes meu caro mestre, disse o conde, que no esquecemos o seu convite. Sabemos que muita indiscrio perturb-lo, no meio de seus importantes trabalhos; porm minha sobrinha fantica pela Astronomia. - A senhorita tem razo, respondeu Dargilan. A cincia do cu sublime e no lhe dar desiluses. A atmosfera est muito pura esta noite. Admirar Saturno qual se estivesse em uma gravura. E' uma das mais estupendas maravilhas do cu. Eu prprio no revejo esses anis sem emoo, embora os observe desde h muito tempo. Senhora condessa, experimente ver: o astro est no campo visual. Se imagem no se apresentar perfeitamente ntida, acrescentou, gire lentamente esta pequena cremalheira at atingir seu grau de viso. - Oh! Realmente, confesso, exclamou a senhora de Noirmoutiers, admirvel! No, nunca mais esquecerei esta beleza, esta luz! Este anel celeste extraordinrio! - Dentro de um quarto de hora, explicou o astrnomo, a Lua vai passar exatamente diante. Todos tero tempo de observar tranquilamente esse curioso planeta. O conde e Estela observaram por sua vez, maravilhados. Falou-lhes dos anis, de sua natureza e movimento. Depois, Dargilan pediu licena para fazer por si observao exata do contacto entre o bordo escuro da Lua e o anel, indicado pelo clculo, assim como da reapario do planeta pelo bordo iluminado. Em seguida, foi vez de Marte, que j passara pelo meridiano, e o astrnomo procurou reconhecer as neves polares e as principais manchas geogrficas. Porm, a imagem carecia de nitidez, pois a atmosfera da cpula estava um pouco aquecida. A lente foi ento voltada para os principais crculos lunares visveis naquela noite, que era a antevspera do quarto crescente. O senhor e a senhora de Noirmoutiers demoraram-se bastante tempo contemplando os efeitos de luz prateada sobre as chanfraduras lunares to curiosamente recortadas. Enquanto seu tio e sua tia observavam na lente, Estela sara para o terrao, a fim de olhar o conjunto da abbada estrelada. O Solitrio no tardou em segui-la.
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Era uma bela noite de Vero. Tudo era calmo e silencioso; as estrelas resplendiam no cu, apenas esmaecidas no poente pela claridade do amplo crescente lunar. Haviam-se acendido uma a uma, e agora constelavam o imenso zimbrio. Arctrus com os seus raios de ouro; Vega da Lira duma alvura to viva que parecia quase azulada; Altair e seus dois satlites da guia; as sete estrelas da Ursa Maior;, as quatro do quadrado do Pgaso; os trs brilhantes de Andrmeda; todas as constelaes do Vero; a cadeira de Cassope; Perseu, com a sua cabea de Medusa; o Delfim; o Cisne; a estrela Polar; a Coroa Boreal, prendiam alternativamente o olhar e o pensamento. A montanha estava muda, e os derradeiros pssaros j haviam cessado o seu cantar. S o rouxinol enviava ainda Lua seus trinados infatigveis que pareciam, detendo-se, mergulhar toda a Natureza em um silncio atento. Ento, a brisa, vinda das altas matas da vertente sul dos Pirineus, trazia, num ligeiro sussurro, o odor florestal das azinheiras mesclado ao fresco perfume das accias. - Pode-se sentir bem a vida nesta solido! Exclamou Estela. Os olhos do astrnomo, iluminados pela Lua, brilharam com intenso fulgor. Estela compreendeu que podia acostumar-se com esse olhar, porm, toda vez que o encontrava, um leve fluido eltrico lhe percorria o corpo. - Julguei, respondeu Dargilan, que a senhorita preferiria, sem discusso, Paris a estas montanhas. - Para viver, certamente, replicou Estela; mas, esta tranqilidade da Natureza agradvel aps os prazeres mundanos do Inverno. - No vi Paris e algumas grandes cidades seno de passagem, acrescentou o Solitrio, e no posso compreender como se viva no meio desses amontados de pedras. Muros, janelas, caladas, lojas, bulevares, avenidas, ruas e praas pblicas, tudo formigando de pessoas atarefadas: que vida fictcia, artificial e superficial! E nos sales, visitas e teatro, existe mais verdade? Esses alojamentos, atapetados, fechados entre ruas e alamedas, parecem irrespirveis. Quanto prefiro uma vista sobre essas vertentes, essas florestas, essas pradeiras, uma paisagem, um bosque, uma fonte, um riacho, plantas, flores e pssaros, e, acima de tudo, esse ar to puro! Aqui, nestas alturas, a vida em plena Natureza e ante a imensidade. E' um grande sossego para o pensamento. Nada de agitaes, de tormentos, de tolas vaidades, de interesses grosseiros, nem pequenezes vulgares; nada de hipocrisia, de mentiras, de invejas, nem de dios. O esprito reina acima do corpo. Vive-se desembaraado da Humanidade. Tudo puro, tudo grande. A Natureza uma consoladora, a floresta um repouso, os ninhos gorjeiam. As giestas, os musgos, os fetos e as urzes formam tapetes imensos nas clareiras; sob os carvalhos, os ulmeiros, os freixos e as faias. Sob os pinheiros de ramos
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estendidos, onde o solo permanece estril, existe um tapete em que agradvel estender-se e sonhar. Vs ouvis esse rouxinol: cantar at que a flor de lis esteja em desabroche. Vs respirais o perfume longnquo dos sabugueiros; dentro de alguns dias as accias, que j se cobrem de rebentos, estaro plenas de flores; depois viro as tlias e as roseiras. Tudo sempre bom, at a chuva, as tempestades e a neve do Inverno. Essa queda d'gua que ouvis no se detm quase nunca. No bosque a fonte murmura, a florinhas parece sonhar junto das grandes rvores, e, por cima dessa decorao grandiosa, se estende a imensido dos cus. Mas, senhorita, acrescentou, falolhe como se j a conhecesse de h muito tempo. Estela tambm pensou que j o conhecia desde muito tempo. - Esse cu estrelado maravilhoso! Replicou, animando-se. Sempre amei a Astronomia e compreendo quanto merece a nossa adorao. Nada mais belo no mundo! E parece-me neste momento, tal qual a vs, que para bem compreend-la no de uma grande cidade que se deve olhar o cu, porm de uma calma solido igual a esta. Li todos os seus livros. Contudo, isso, este eterno silncio no foi feito para entristecer o pensamento? - O silncio do cu mais eloquente do que todas as vozes humanas. Sentir-me-ia um sacrlego se o comparasse aos discursos dos mais brilhantes advogados, s oraes do mais fogoso tribuno. Prefiro a toutinegra. Oh! Esses oradores que defendem, a frio, o falso e o verdadeiro, cujas eloqentes palavras no passam de burlas e que tantas vezes se vendem queles que os pagam! Comovem a Humanidade com palavras e fazem subir o lodo para turvar a gua. Todos esses belos faladores que exploram a popularidade causam-me na verdade um santo horror. - E eu que fui deputado, aparteou o senhor de Noirmoutiers, que chegara havia instantes ao terrao. - H, sem dvida, sinceros e honestos, continuou Dargilan; falo em geral e exprimo francamente o meu pensamento. O aspecto desta abbada celeste me transporta de admirao. Talvez esta sublimidade me torne injusto para com os demais. A senhorita d'Ossian me dizia que o cu silencioso. Oh! Esse silncio uma sublime linguagem. As impresses que se sentem aqui no so seriamente as de um salo parisiense ou de uma sala de espetculos! O astrnomo levantou a mo no rumo das sete estrelas do Norte, e continuou, em um tom suave, sem exaltao aparente: - Penso em voz alta convosco, exclamou. - Somos da vossa famlia intelectual, respondeu o conde; momos vossos discpulos. Admiramos o vosso cu e desejaramos conhec-lo tanto quanto o conheceis.

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- Vede todas essas estrelas perdidas no infinito. No possvel contempl-las sem nos recordarmos de que elas brilham l desde e comeo do mundo, e de que nossos pais dos sculos passados, mortos h tanto tempo, as saudaram, tal qual o fazemos hoje, no silncio das noites de outrora. Essas sete estrelas da Ursa Maior guiaram a expedio dos Argonautas conquista do Toso de Ouro. Job, Homero, Hesodo e o meigo Verglio as cantaram. Jesus as contemplou nas noites que passou no deserto. Todas essas longnquas estrelas estiveram associadas aos acontecimentos da Humanidade. Viram as pirmides no tempo de Cheops e de Bonaparte; brilharam sobre os Atenienses e os Romanos. Quantos olhares se cruzaram nessas alturas! Quantos juramentos ouviram! Os olhos humanos se fecham; os coraes cessam de bater; mas, esses olhos do cu, esses coraes da vida infinita esto sempre l, brilham, palpitam sempre! No posso contemplar essas estrelas sem me sentir associado a toda a histria da Humanidade e sem pensar que tudo passa menos elas, tudo: naes, ptrias, idiomas, religies, idias, geraes, paixes, seres e coisas, tudo, menos elas, smbolos da Eternidade. E uma outra vida que se desenvolve distante, uma vida da qual somos ao mesmo tempo estranhos e partcipes. Como quereis que no as ame? - Jamais tinha visto o cu qual o v nesta noite, exclamou Estela. Fostes vs quem me ensinou a ler nesse grande livro, e somente agora que creio compreender. Minha impresso de que as estrelas me falam pela primeira vez. Seria uma coisa bela, suave, mas talvez triste, uma Terra onde sempre reinasse a noite. O astrnomo pareceu tocado pela observao, e olhou a jovem com interesse. - Desejaria escolher uma estrela, acrescentou. Olhe! Aquela! - A alva estrela da Lira! Vega. E' uma das mais belas do cu. - Pois bem, eu a escolhi! Confiar-lhe-ei meus pensamentos. E aquela outra, menos alva, Arctrus, no ? - Sim, Arctrus, de raios de ouro, mais velha do que Vega, que muito jovem; a rubra Aldebar tem j idade avanada. Quanto a Arctrus, a constelao onde ela diamante parece o rebanho dos sete bois do Monte, e por isso se chama Boeiro. - Os sete bois? Indagou o senhor de Noirmoutiers. - Sim, os latinos chamavam a essas estrelas da Grande Ursa os septem trionesn. Dai surgiu palavra setentrio para designar o Norte. - Qual , disse a condessa, que chegara ao terrao naquele momento, qual aquela espcie de ninho, de monto de pequenas estrelas, ali, entre aquela bela estrela a Grande Ursa? - E' a cabeleira de Berenice. Conheceis a histria?
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- No. - Certamente vos recordam de Berenice, irm e esposa do rei... - Irm e esposa? - Sim. Naquele tempo, no Egito, era um costume da alta sociedade. Eram jovens e amorosos. Tolomeu Evergeta fora combater seu vizinho, Seleucis II, rei da Sria. Na sua tristeza, Berenice, cuja cabeleira era admirvel, acreditou tornar os deuses favorveis fazendo um grande sacrifcio, e prometeu a Vnus cortar os cabelos se o seu bem amado fosse vitorioso. O rei retornou vencedor e encontrou Berenice despojada do seu mais belo ornamento. Para cmulo de infelicidade a cabeleira, depositada sobre o altar de Vnus, fora roubada. O desespero do rei s foi acalmado com a interveno do astrnomo Cnon, que, naquela mesma noite, mostrou ao jovem casal a cabeleira de Berenice brilhando no cu, aonde fora levada por Vnus. Calmaco fez disso assunto de um poema, que Catulo traduziu em elegia. - E' um episdio encantador, retrucou o senhor de Noirmoutiers. No me admira mais que o cu lhe interesse tanto: est cheio de histrias, recordaes, lendas... - De verdades, replicou Dargilan. O episdio da cabeleira de Berenice uma infantilidade. Encontramos no cu fatos de toda natureza, trgicos at, se quisermos ir ao fundo das coisas. -Vede, por exemplo, aquelas estrelas de Cassope. Pois bem, no ano da matana de Bartolomeu, toda a Europa viu nela um fenmeno extraordinrio: um mundo em fogo. Acol, perto daquela pequena estrela, brilhou de repente um astro luminoso, enorme. Foi a 11 de Novembro de 1572. A nova estrela era to resplandecente, que permanecia visvel em pleno dia. Durante cinco meses dominou os astros de primeira grandeza, para depois enfraquecer gradualmente o brilho at desaparecer de chofre, ao termo de dezessete meses. Isso foi causa de grande inquietao em toda a cristandade. Naquele tempo ainda se acreditava que a Terra fosse o centro da Criao. O observador Ticho-Brahe combatia a hiptese do cnego Coprnico. Os astrlogos imaginaram que a apario misteriosa fosse estrela dos Magos, e anunciaram o retorno do Homem-Deus a Terra e o fim do mundo. Desde ento a estrela no se viu mais; porm, talvez assistamos qualquer dia a uma conflagrao da mesma ordem e no perderemos de vista o local desse incndio celeste, que talvez tenha marcado o fim de um mundo ou de todo um sistema de mundos. O cu est longe de ser um painel de silncio e de morte. Por toda a parte, nesse espao imenso, o historiador da Natureza assiste a espetculos prodigiosos. Olhai, l tambm, em Cassope, distinguis aquela pequena estrela, quase imperceptvel a olho nu?... Sim, aquela. Pois bem, ela viaja no cu com uma velocidade superior a duzentos quilmetros por segundo! H
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quarenta sculos, era vizinha da estrela Alfa que Vedes ali, e dentro de sessenta sculos atingir aquela outra do lado Este. Imaginai o que possa ser uma velocidade de doze mil quilmetros por hora! Os choques no so impossveis. Eles explicaro as conflagraes peridicas, as quais j foram observadas em nmero de vinte cinco, e explicaro tambm a ressurreio de sis extintos. Que obuses!... E Vedes, ainda ali, sempre nesta mesma regio do cu, esta brilhante estrela de Perseu? E' Algol, a estrela do Diabo, a cabea da Medusa. E' bem curiosa ela, tambm. De dois em dois dias decai da segunda para a quarta grandeza. E' um eclipse produzido pela passagem de um corpo escuro diante desse longnquo sol. A durao mnima de seis minutos. E' um sistema que gira no plano do nosso raio visual, e graas a essa coincidncia que o conhecemos. - Por conseguinte, os astrnomos j conhecem sistemas solares diferentes do nosso? Interrogou o conde. - Sim. Diversos, qual o de Algol, da estrela Delta de Cafeu, que Vedes tambm ali, na estrela U de Ophiucus, que foram descobertas por gravitarem no plano do nosso raio visual. Outros os de Srio, Procion, Castor, foram descobertos pelos deslocamentos da estrela, devidos atrao de seus satlites. No podemos mais supor que o nosso sistema planetrio seja uma exceo no Universo. - Oh! Que linda estrela cadente! Exclamou Estela. - Ela desapareceu, explicou o astrnomo, prximo de uma estrela, bastante curiosa tambm, da constelao de Cefeu, a que William Herschel chamava Garne Sdus, o astro gren, e que de um vermelho translcido admirvel. E' smile de um carvo ardente. Varia da quarta sexta grandeza. Vemos nela um sol que se extingue. Viveu em sculos passados, brilhou sobre primaveras e flores, e agora lana os ltimos clares de uma lenta agonia. No posso observ-lo sem pensar nos mortos que l esto. Esse olho extinto do passado nos observa sem nos ver, pobre cristalino j descorado pela agonia. Foi jovem antes de ns. E' um astro do passado. - O cu tambm vive seus dramas e suas tragdias, disse o conde. - Mostrar-vos-ei ao telescpio estrelas to rubras que parecem gotas de sangue, prolas de rubis brilhando na imensidade. E' um escrnio de jias infinito. O cu, imagem da Noite e da Morte! A imobilidade aparente das estrelas no firmamento! O silncio secular e a antiga solido das profundezas estreladas! No h no mundo erro mais ingnuo do que a nossa impresso! No se compreende o cu. E' a vida, o movimento, a fora, a energia, a luz, o calor, o sol! Que digo o sol? E' um turbilho de sis sem nmero,
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precipitando-se atravs dos abismos do Infinito, uma fantstica conflagrao de mundos desconhecidos arrebatados na imensidade; nossas revolues humanas, nossos terremotos, nossas tempestades e trovoadas, so sorrisos de crianas comparadas a esses movimentos de foras colossais. O cu a Terra multiplicada milhes de vezes, e a Terra um caminho do cu. Estamos no cu. A Terra que habitamos faz parte dele. E' um planeta, um globo suspenso no espao, tal qual est a Lua,. Vnus ou Jpiter. Eis a verdade. Todas as idias humanas, de que a vida est cheia, so falsas. A Humanidade se satisfaz com elas, porque ignorante. - Meu caro mestre exclamou o conde, o verdadeiro poeta da noite. Na minha infncia li e admirei as Noites, de Young, e lembro-me ainda de sua invocao: Oh! Noite majestosa augusta ancestral do Universo, tu que, nascida antes do astro dos dias, deves sobreviver-lhe ainda, onde comearei, onde terminarei teu panegrico? Tua fronte caliginosa coroada de estrelas, as nuvens matizadas pelas sombras e enroscadas em mil contornos compem a tua imensa roupagem. Sim, uma bela invocao. Parece-me, porm, a se canta uma noite artificial, feitura das mos dos homens. No diz ele que o firmamento se assemelha ao peitoral do sacrificador, semeado de pedras preciosas e distintivas dos orculos? No diz tambm que a noite um vu que a Providncia estende entre o homem e sua vaidade? Prefiro a Natureza, o Universo real, prefiro a Astronomia, singela, da qual o revelador. - No sou senhor conde, poeta nem revelador. Exprimo quanto sinto, humildemente, sem a menor pretenso. Perante o Infinito, somos to totalmente esmagados que no resta lugar para o orgulho. Um astrnomo ftuo dar-me-ia a impresso de um asno carregado de relquias. E depois, que humilhao a nossa! J pensastes alguma vez no quanto grosseira a nossa msera organizao humana? Obrigados a comer! No, verdadeiramente, para a perfectibilidade ainda nos falta muito. Felizmente a alma domina o corpo, e a cincia nos purifica, alm de que a vida passa depressa, muito depressa para o estudioso do cu. - Mas, tendes sempre o que aprender nesse cu? - Vivendo mil sculos, no saberamos tudo, no aprenderamos metade, nem a quarta, nem a centsima parte. E' o Infinito a conquistar. Lembrai-vos do enigma proposto por Timeo de Locres h vinte sculos: Que um crculo, cujo centro est em toda a parte e a circunferncia em parte alguma? A resposta era: Deus. Podemos, com o Cardeal De Cusa e Pascal, atribuir essa mesma definio ao Universo infinito. E quantas grandezas, quantas maravilhas, quantas riquezas! O presente, o passado e o porvir, tudo est alm. Vede aquelas estrelas da constelao de Hrcules: para l que marchamos, que o Sol nos conduz qual passageiros de
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um navio. Vede esse fragmento da Via-Lctea, que parece partida em dois rios celestes: h at uma fuma no cu estrelado; se o vosso pensamento voar ao fundo dessa caverna e de l contemplar a Terra, ver o nosso planeta, no qual no dia de hoje, e sim qual o foi h cinco mil sculos. Olhai aquela terceira estrela de Andrmeda; vos a credes branca e simples; pois bem, quando quiser eu a farei vir ao campo do telescpio, e vs vereis com os vossos prprios olhos a maravilha que : um sol de ouro em torno do qual gira lentamente um sol verde-esmeralda, em torno do qual e por sua vez gira rpidamente um sol azul-safira. Imaginai as coloraes fantsticas dos mundos iluminados por esse trplice sol! Quanto o nosso pobre Sol terrestre plido ao lado dessas riquezas!... Vede, na constelao do Cisne, aquela linda estrela: Albreo. H ali o consrcio de dois astros esplndidos, um que lana em torno de si jactos deslumbrantes de uma luz dourada, outro, estrela azul, que irradia uma colorao de safira. E acol, no Delfim, est um topzio que mistura as suas chamas s de uma esmeralda. E mais adiante est Mizar: dois diamantes celestes que deixam muito longe os mais luminosos diamantes da Terra. Vede no Cisne, que contemplamos h pouco e que se estende resplendente de alvura, em plena Via-Lctea: ali se encontra a primeira estrela cuja distncia da Terra pde ser medida; uma das mais prximas de ns: gira a setenta mil milhes de quilmetros daqui, e a seta de luz que atravessa o espao com a velocidade do relmpago, e percorre trezentos mil quilmetros por segundo, voa com essa velocidade durante 2555 dias antes de nos chegar. Assim, o resplendor que recebemos neste momento se desprendeu h esse tempo, e vemos a estrela, no qual atualmente, porm qual era na poca em que partiu a fotografia que nos chega hoje... Pela Astronomia vivemos no Tempo e no Espao, no Infinito e na Eternidade! E tudo isso gira, vagueia, e se precipita no mistrio, no desconhecido, e com que velocidade! Com que vertigem! Cem, duzentos, trezentos mil metros por segundo! E' isso loucura? E' sabedoria? Aonde vo todos esses sis, todos esses mundos? Onde est a meta? Onde est o fim? Onde est o comeo? E aonde vamos ns mesmos com o nosso Sol? Para onde, pois, tudo o que existe na Criao inteira, astros, sis, planetas, meses, dias, estaes, primaveras, perfumes, ninhos dos arvoredos, crianas de bero, velhos com um p na tumba, para onde, pois, corre tudo isso com tanta velocidade? Abismo! Insondvel... Inflamava-se, esquecia a Terra, elevava-se e planava no prprio cu, e, sem se fixar nisso, assim descrevia aos circunstantes as descobertas da Cincia, que tm verdadeiramente algo de prodigioso e que por vezes calavam fundo, na jovem ouvinte, chegando ao auge quando Dargilan falou da anlise qumica dos mundos pelo exame da luz respectiva, e dos movimentos
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vertiginosos que lanam todos esses astros atravs da imensido, uns se aproximando de ns, afastando-se outros, e chovendo no Infinito qual uma chuva de meteoros impelidos em turbilhes pelos ventos do cu, pela fora da atrao. Estela ouvia, interrogava, admirava, caminhava de surpresa em surpresa, e no seu deslumbramento perdia de vista a Terra e a sua Humanidade, e compreendia que a mais nobre misso do esprito humano a pesquisa da Verdade. Todos os apetites materiais da vida vulgar, todas as vaidades do mundo, todas as glrias, todas as ambies, todos os interesses desciam a seus olhas insignificncia real; e uma luz nica lhe parecia digna de cativar a alma: a luz da Cincia. Descendo do Observatrio para o Castelo, a Humanidade lhe pareceu mesquinha, e o Solitrio, pobre e isolado, pareceu-lhe brilhar no cu qual um Esprito puro, envolto numa aurola luminosa. Ele, o silencioso, o mudo, o absorto, deixara-se arrastar pela sua paixo dominante, e cantava o Cu qual o poeta celebra o Amor. Sim, era um ser, de primeira vista, quase brutal; porm, sob essa rude aparncia, que alma apaixonada, que embriaguez de cincia, que superioridade de inteligncia, que desprendimento de tudo que falso e incerto, pelo culto puro da Verdade! 2 PARTE Os outros mundos Celebrar em todos os tons a alegria de viver. Nem uma nuvem no cu. Rubra, luminosa, esplendente no horizonte ocidental, azul quase escuro no znite, a celeste cpula, aonde no se apercebia ainda nenhuma estrela, passava insensivelmente por todas as gamas desta colorao, que funde todas nuances no imenso azul atmosfrico. Era uma apoteose universal apagando se lentamente para dar lugar s revelaes da noite. Quando voltaram ao equatorial, o astrnomo j tinha descido da banqueta de observao. - Olhai senhor, disse, o planeta est no campo do instrumento, e marcha em sentido contrrio ao do movimento da Terra. Se o contorno do disco de Marte no aparecer muito claro, regulai a ocular segundo j sabeis. - A neve do plo superior est ofuscante de alvura, disse o senhor de Noirmoutiers, bem mais ntida do que naquela noite. - Notais um pouco mais em baixo uma pequena mancha escura, rodeada por um rebordo cor parda-prola?
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- Sim, est bem ntida e perfeitamente redonda. No, antes - um pouco ovalada. - E' o lago do sol. E, esquerda, um debrum fusco que desce obliquamente, a princpio assaz largo e parecendo terminar em ponta? - Perfeitamente. Ser esse o mar da Ampulheta, que nos haveis descrito? - No, a rotao j o arrastou. A pequena ponta que Vedes o golfo das Prolas. - Meu tio, exclamou Estela, tu j viste suficiente. E' a minha vez. Em pouco, o cu estar escuro... - No, no h perigo, pela ausncia de qualquer nuvem. Podes muito bem esperar cinco minutos. Nunca vi os famosos canais e quero tentar descobrir um. Senhor Dargilan, creio descobrir uma linha que se eleva obliquamente direita do lago do Sol. - Vejamos. O Astrnomo subiu escadinha e identificou a linha. - Pois bem, disse, o senhor tem razo, um canal; o Araxe, que se vai lanar no mar das Sereias. Ainda o distinguiremos melhor daqui a minutos, pois o planeta, ao girar, vai traz-lo bem para diante de nossos olhos. - Gira ento bastante depressa para que possamos not-lo to rpidamente. - Deveis saber que a rotao diurna calculada atualmente com um centsimo de segundo de aproximao. - Que maravilhosa preciso! O dia l no um pouco maior do que aqui? - Esta rotao de 24 horas, 37 minutos, 22 segundos e 65 centsimos de segundo, informou Estela. - Senhorita, merece um primeiro prmio, disse o astrnomo. - Ento, meu tio, j viu bastante? E' a minha vez? - Sim, minha pequena. Vem, cedo-te o lugar. Estela no se fez rogar. Colocou rpidamente a ocular em foco e procurou por sua vez reconhecer os detalhes da geografia de Marte. O primeiro detalhe que lhe chamou a ateno foi neve alvssima do plo austral. - E' a de l realmente igual neve daqui? - Sim, senhorita. Sabei que vemo-la fundir-se literalmente ao Sol, medida que o Vero avana... -- O Vero... Dos Marcianos? - Naturalmente. Nossas estaes lhes so completamente estranhas. Contudo eles possuem aproximadamente as mesmas estaes que ns, quanto intensidade; sabeis, tanto quanto eu, que elas apenas so duas vezes mais longas do que as da nossa Terra.

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- Talvez seja isso que faz que a neve derreta inteiramente, conforme o senhor disse no outro dia. So na verdade estonteantes de alvura das neves de Marte. Em comparao, os continentes so bem amarelos. Quanto seria interessante saber o que 1- por l.., talvez a mesma Natureza de aqui. - Provavelmente tudo dissimulou. No h motivo para que as nossas espcies vegetais e animais existam l. Embora seja o mesmo Sol que ilumina esse mundo e o nosso, no o mesmo ar que o envolve, no so as mesmas as condies vitais. A temperatura de l talvez seja pouco mais ou menos a daqui. Mas, quantas outras diferenas! Quase nunca chove. - Ah! Vejo o lago do Sol. Parece exatamente o do mapa. No est mais sobre a linha central, e sim esquerda. Ah! Vejo o canal. Oh! No um s, porm dois. - E onde v o segundo? - Por baixo do... Araxe (no assim que denominais?), partindo do mesmo ponto, porm divergindo direita. - Est certo. No quis preveni-la, mas est bem ntido esta noite. E' o canal das Eumnides. No extremo do Araxe deveis distinguir pequeno mar, que lembra um pouco o Adritico. E' o mar das Sereias. - Os canais sero rios que tenham suas desembocaduras nesses mares? - No, nunca comeam em terra firme; vo de um mar a outro. - Oh! Como estou contente por ver tudo isso! Poderei voltar muitas vezes? - Cada vez que desejar, senhorita. Mas receio bem que o tempo se modifique. Experimente fazer um desenho de tudo que viu. - Um desenho! No o conseguiria nunca. - Por qu? E' s tentar. Repare eis ali um crculo preparado e lpis. Estela tomou o papel e um lpis e, assinalando primeiro o local to evidente da neve polar, desenhou o lago negro circular do Sol, o terreno pardo que o rodeia, o mar superior, os dois canais que percebera o mar das Sereias. Os croquis careciam de exatido, de nitidez e de preciso; contudo, assemelhava-se bastante imagem telescpica para que se conhecesse nele um desenho de Marte e no o de um outro planeta. Estela sentiu-se lisonjeada com a apreciao do astrnomo e pela crtica sria que ele se deu ao trabalho de fazer, e prometeu a si mesma sair-se melhor na prxima vez uma hora antes, o astrnomo fizera um desenho muito preciso, e a comparao dos dois mostrou que o da jovem no era ridculo. Estela notara presa ao muro, uma grande carta geogrfica de Marte, um mapa-mndi, no qual os mares, os continentes, os canais, os lagos, litorais, os golfos e at as ilhas estavam representados cem mincias. Aproximou-se,

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examinou demoradamente esse mapa e, pousando o dedo sobre determinado ponto, exclamou. - Eis aqui com certeza o que vimos h pouco pelo telescpio. - Exatamente, replicou o Solitrio. A senhorita reconheceu admirvelmente. - Mas ns no vimos toda essa redeznha de pequenos canais! - No, e por vrias razes. Primeiro, porque preciso circunstncias atmosfricas excepcionais, para distingui-los; depois, preciso ter uma vista exercitada, o hbito de observaes astronmicas. Sabeis que a distncia grande. O planeta est esta noite a noventa e cinco milhes de quilmetros: um expresso, correndo com a velocidade de um quilmetro por minuto, gastaria noventa e cinco milhes de minutos para chegar l, o que d aproximadamente 66.000 dias ou 18 decnios! A lente de que nos servimos h pouco aumenta quinhentas vezes, o que reduz aquela distncia a 190.000 quilmetros, isto , diminuio igual metade da distncia da Lua - vista a olho nu. E' ainda um pouco longe para distinguir os pequenos detalhes. Alm disso, prosseguiu o astrnomo, esses canais no so permanentes. Em certas estaes, os melhores instrumentos pticos no os poderiam mostrar. S se enchem d'gua na poca da fuso das neves, e distribuem essas guas na irrigao dos continentes. No h ali chuvas, nem mananciais, nem rios. Os canais so os nicos a fazer a circulao das guas. - Que admirvel traado geomtrico! Observou o conde, depois de examinar por instantes o mesmo mapa. Est a um belo trabalho de drenagem em pleno cu. - No gua o que vemos, replicou Dargilan, e sim o produto de gua, pradarias que crescem em poucos meses sob a influncia da humidade, de igual modo que vemos, em balo, os cursos d'gua desenhados pelos almargeais que bordam cada lado de um delgado filete de gua. Muitas dessas manchas verde-escuras, que denominam os mares, podem ser tambm plancies cobertas de vegetao. - Quando se imagina que podem que devem existir l habitantes, disse o senhor de Noirmoutiers, seres humanos que pensam igual a ns, melhor do que ns talvez, e, quem sabe? Se perguntem, vendo nossa Terra em seu cu, se existimos...! - Pela minha parte no tenho dvidas, replicou o Solitrio. Marte mais antigo e mais adiantado do que a Terra no seu ciclo vital; est tambm, podemos dizer mais evolvidos do que o nosso planeta, considerando-se o conjunto de condies de habitabilidade, e a durao dos perodos que medem a existncia, pois, sendo os perodos anuais, l, duas vezes maiores do que os

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daqui proporcionam bem melhor curso de vida do que os nossos fecundidade do trabalho intelectual... - Qual a sua durao? - Os ciclos anuais, nesse mundo vizinho, so quase de 687 dias. - De 686 dias, 23 horas, 30 minutos e 41 segundos, interrompeu Estela. - Que memria! Disse o Solitrio sorrindo. Assim, quase duas vezes mais lento do que aqui. No h nada de surpreendente em que se viva ali duas vezes mais do que entre ns. Mas, acrescentou, dizia eu que esse planeta , em certos pontos, mais agradvel, mais elevado do que o nosso. Assim, entre outros, presumo que os corpos, sendo ali menos pesados, so menos grosseiros, mais delicados, mais sensveis, mais etreos, mais puros. No quero fazer o julgamento dos organismos terrestres; porm, no necessria longa reflexo para aperceber-se de que a espcie humana ainda est muito vizinha da animalidade, e bem tosca. O peso da matria desempenha papel importante na sua organizao e em todos - os seus apetites. Fazei idia de que se pudssemos ir pesar um quilo, em Marte, averiguaria que os 1000 gramas pesavam apenas 376. A senhorita d'Ossian ter, suponho, 6o quilos; transportada, tal qual est, para Marte, no pesaria ali mais de 22. Parece-me que a Humanidade marciana deve ter gostos superiores em tudo. Nada nos autoriza a pensar que a evoluo da conscincia no Universo tenha dado o mximo da sua medida no esprito humano terrestre. Tudo nos convida a crer, ao contrrio, que h seres incomparvelmente superiores a ns outros quanto organizao e quanto ao esprito. - A mim, o que impressiona mais na Astronomia viva da nossa poca, interveio o senhor de Noirmoutiers, , de um lado, a sua preciso matemtica e, de outro, a imensa luz que esparge em nossa viso do Universo. O cu no mais sombrio. - E a mim o que mais admira, replicou Estela, a tolice da maioria dessa pesada espcie humana de que fala o mestre, dessa raa pouco inteligente, que no somente desconhece o total de tais verdades cientficas, mas tambm, quando estas lhe so expostas, no se interessa por elas e at as toma por invenes da imaginao. Quantas criaturas humanas viram Marte na forma pela qual ns outros o vimos hoje? - Um em cada milho, senhorita. - Somente! E' uma grande minoria de elite, e agradeo a meu tio ter-me permitido fazer parte desse nmero. - Sim, um milionsimo. Falamos da populao total do globo. A talvez um pouco mais de 38 franceses e 336 europeus que tenham visto Marte qual o acabamos de ver; certamente esse nmero no excede de 1.500 em toda a Terra. Talvez no haja 15.000 pessoas ao corrente dessas questes, que possam conversar conosco como o fazemos e que compreendam exatamente o
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que dizemos, sem diminuir nem exagerar nossas idias. E a Terra tem 1. 5oo milhes de habitantes! Eis porque o pensador um solitrio. Quanto mais se eleva, mais se insula. No encontra fcilmente um esprito preparado para compreend-lo. E com freqncia os que o ouvem s contam dele extravagncias, porque no falam a sua linguagem. - No estou bem certa de j a compreender, disse Estela, e s vezes, quando estou a ss em meu quarto, e procuro relembrar o que ouvi, parece-me que fao uma traduo. E depois tambm tenho as minhas idias. No digo nada para evitar que ria de mim. - Tm-se intuies s vezes, respondeu gravemente o astrnomo. - Pensando em todos esses mundos inumerveis que povoam o espao, pergunto-me se no existir um que, acaso, seja exatamente igual a Terra. - Exatamente igual? - Sim; de formao idntica da Terra, de um Sol semelhante ao nosso, mesma distncia, com os mesmos elementos, em circunstncias idnticas, os mesmos ciclos anuais, os mesmos dias, a mesma temperatura, a mesma atmosfera, a mesma histria geolgica, os mesmos continentes; e assim, sucessivamente, as mesmas espcies vegetais, animais e humanas; sim, a mesma Humanidade, as mesmas raas, as mesmas naes, a mesma evoluo, o mesmo desenvolvimento fsico e intelectual; e, por conseqncia, seria povoado, exatamente igual Terra, de seres semelhantes a ns outros, habitando pases anlogos, usando nossos nomes, vivendo identicamente nossa maneira, reproduzindo em fac-smile sobre outra terra do cu tudo que fazemos, tudo que dizemos e at tudo que pensamos nesta Terra. - Um mundo ssia? - Sim. Um viajante que l fosse ter, neste momento, encontraria Paris, tal qual , cada aldeia da Frana como atualmente, e tambm encontraria a ns trs ocupados em conversar familiarmente sobre o terrao de um observatrio dos Pirineus. - E tambm l, replicou o tio, Lus XIV teria construdo a cpula dos Invlidos para receber o fretro de Napoleo, e este teria deixado a ilha de Elba para morrer em Santa Helena, passando por Warteloo? - Sim, tudo se passaria exatamente como aqui. - E uma encantadora jovem, chamada Estela d'Ossian, tambm l perguntaria a si, neste momento, se no existe em uma outra terra do cu uma outra Estela, cujo corao pulsasse exatamente qual o seu, e que com certeza tambm estaria vestida com a mesma roupa, feita pela mesma costureira? - Eu bem sabia que zombariam da minha idia. Ainda tenho outras. No direi mais nada.

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- Senhorita, replicou o Solitrio, no impossvel que entre os milhes e milhes de terras habitadas que existem, existiram ou existiro na imensidade do Universo, as foras da Natureza tenham feito nascer um mundo idntico ao nosso. - Vs! Meu tio. - No impossvel, mas improvvel. Que muitos, um grande nmero talvez tenha tido origem igual a Terra, admissvel, quase certo, dadas a unidade de substncia e a unidade de fora. Porm, as bifurcaes so inevitveis. Entretanto, circunscrevendo o raciocnio, sente-se que no impossvel existir no Espao um sistema solar anlogo ao nosso, e, nesse sistema, um planeta que tenha seguido exatamente a mesma evoluo do nosso. No, no infinito dos espaos isso no impossvel. - E, ajuntou Estela, esse mundo-ssia poderia ter um pouco em avano sobre o nosso, por exemplo, de um nu dez ciclos anuais? - Seguramente; poderia. - De sorte que, neste momento, Estela seria o que eu serei o ano que vem ou daqui a dois lustros? - Curiosa! Exclamou o tio. - Oh! Meu tio, talvez no seja muito divertido o que eu serei daqui a um decnio. Mas, na realidade, a Astronomia um ninho cheio de pssaros. Um voa, outro o segue, depois um terceiro, sem fim. Vejam, pensando nesse mundo-ssia, fui levada a perguntar-me se ns fazemos o que queremos, se somos livres. - Grande problema, respondeu o astrnomo. E' bem certo que o porvir existe em grmen no presente; que no h efeitos sem causas; e o Esprito que conhecesse as causas poderia de antemo escrever a Histria. - Senhor Dargilan, indagou Estela, que voltara observao de Marte, o senhor disse em um de seus livros que essas neves que vemos em redor do plo se fundem durante o Vero. Neste momento se acham sob o Inverno? - Esto na Primavera. Se observardes novamente o planeta dentro de alguns meses, vereis essas neves quase completamente liquefeitas. - As estaes l so as mesmas daqui, e duas vezes mais longas? - Sim, senhorita. - E a atmosfera? - Mais leve mais pura. Ali h quase sempre bom tempo. - Se mais leve do que aqui, deve ser um mundo encantador. - Julga serem todos esses mundos habitados iguais a Terra? Interrogou o conde. - Sim e no. Sim, se levais em considerao a imensa durao dos tempos. No, se apenas encarais a hora atual. No h razo alguma para que todos os mundos estejam habitados presentemente. Nossa poca no tem mais
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importncia do que as precedentes nem do que as que se seguiro. E' um orgulho infantil da nossa parte imaginar que, por vivermos neste instante, a nossa poca tem um valor especial. Ela passar tal quais. Tomemos uma data a cem milhes de sculos no passado. Essa data to importante quanto a nossa. A Terra no existia. Mas havia outros mundos habitados, outras formas de vida, outros seres, outros Espritos. Consideremos uma poca a cem milhes de sculos no futuro. Ento a Terra no existir mais. Haver outras terras, outros sis, outros dias, outras noites, outros pensamentos, outras almas. As foras da Natureza no podem permanecer inativas. Nada se perde; nada se cria. Tudo se transforma. A vida e o pensamento, sob formas conhecidas ou desconhecidas, resultam das manifestaes da Energia. Para conceber exatamente o conjunto da vida universal, mister considerar o Tempo tanto quanto o Espao. Existem no cu tmulos e beros. Aqui cemitrios. L, germens flutuantes. Parece verossmil que entre os planetas do nosso sistema, Vnus, Marte e a Terra sejam os nicos atualmente habitados, achando-se. Vnus menos adiantada do que o nosso mundo, enquanto que Marte mais adiantado. Vede essas fotografias da Lua, essas crateras, esses crculos de rochas, esses desertos. No a imagem da morte? Enquanto que Marte e Vnus! Reparai! Acrescentou fixando o dedo sobre o grande mapa de Marte, em todos os Veros, na poca da liquefao das neves, Vede de que modo gua se distribui na superfcie das terras pela urdidura geomtrica de canais. Esses dois mundos so to vivos quanto a Terra - Como seria interessante entrar em relaes com esses vizinhos do cu, corresponder-nos com eles por meio de sinais quaisquer! - E' o que nos ser dado um dia. No desesperemos. O esprito humano que soube inventar os instrumentos de ptica, a fotografia, a anlise espectral, a telegrafia, o telefone, o fongrafo, encontrar seguramente um cdigo de correspondncia com Marte ou Vnus. Talvez no seja por meio de aparelhos pticos. Ainda h muitas foras a descobrir. O magnetismo interplanetrio poder desempenhar um grande papel em todos esses futuros modos de comunicao. J o Sol nos dirige diversos despachos csmicos e os prprios planetas agem sobre a agulha imantada. - Mas nunca ser possvel comunicar-nos pessoalmente com Marte ou Vnus, para ali nos transportarmos em carne e osso? - No, certamente. E' essa uma das raras negativas que podemos emitir. O Espao interplanetrio infranquevel para os nossos corpos terrestres. A atmosfera circunda o nosso globo semelhana da cobertura a um casulo, e percorre com ele o espao. O ter o vcuo, o impondervel. Porm, se
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podemos estar convictos de que nunca nos ser possvel transportar-nos corporalmente de um mundo a outro, seria temerrio negar que essas viagens possam jamais ser feitas por seres espirituais e imponderveis, por Almas, Almas humanas, e que um dia uma comunicao seja estabelecida entre Marte e a Terra pelas foras psquicas. Assim se entretinham com freqncia o Solitrio, Estela e o Conde de Noirmoutires. A alterao levada solido e aos trabalhos absorventes do astrnomo filsofo, por essas visitas um pouco mundanas, no fora to desagradvel quanto, a princpio, fizera supor o seu carter original e misantrpico. A primeira visita perturbara-o em seus hbitos e no lhe causara prazer algum; a segunda ainda lhe fora bastante indiferente; a terceira parecera-lhe quase natural; as seguintes entraram na sua vida com agrado, pois proporcionavam repouso sua longa e solitria tenso de esprito. O conde e a sobrinha, que de muito tempo lhe haviam assimilado as idias e a maneira especial de encarar a Natureza, deixaram de ser estranhos para ele; faziam parte da famlia intelectual de seus numerosos leitores e estavam associados s suas pesquisas e s suas esperanas. A inteligncia de Estela, seu anseio de cincia e sua curiosidade filosfica interessavam-no, e sem dvida tambm, ignorando-o, sentia ele o encanto juvenil dessa flor de sol, que vinha trazer to delicioso raio de luz quela vida at ento montona, tranqila e obscura, smile da de um anacoreta. Se essas visitas cessassem bruscamente, alguma coisa certamente faltaria nova atmosfera desse Observatrio que se tornara um pouco mais animado, algo mais vivo, bem menos silencioso. Gradativa, e mui naturalmente, os hspedes do Castelo, o mdico de Luchon e um qumico que vivia nas montanhas, adquiriram o hbito de passar uma ou duas vezes por semana algumas horas no Observatrio, ora noite, quando o cu estrelado convidava observao de suas curiosidades infinitas, ora tarde. Faziam-se alguns passeios pela floresta ou se reuniam na biblioteca, folheando livros, passando em revista desenhos e fotografias celestes; realizavam-se experincias de eletricidade no gabinete de Fsica (e a particular sensibilidade de Estela encaminhara o sbio no rumo de uma nova descoberta); conversavase, discutia-se, esquecendo-se por vezes as horas. O senhor e a senhora de Castelvieil que, pelos seus preconceitos sociais e opinies religiosas, se consideravam antpodas do sbio, algumas vezes tomavam parte na reunio e terminaram acostumando-se rudeza que a princpio tanto os chocara, e at interessando-se por algumas observaes telescpicas. Essas reunies representavam para todos eles uma vida nova, uma vida intelectual e, para Estela, em particular, a perfeita felicidade do esprito e que ela desejaria durasse sempre. As descries celestes do astrnomo, suas

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pesquisas nos horizontes infinitos, mergulhavam-na em um sonho, sonho em viglia, que por vezes a perturbava durante noites inteiras. Sim, sonhava. Meditava nos esplendores da verdade astronmica, e pensava tambm no astrnomo, que lhe aparecia envolto em uma aurola, superior pelo seu valor pessoal, pela sua cincia, pelo seu carter comparado ao de todos os homens que tivera ocasio de encontrar no mundo, desde a sua sada do Convento. Apesar das previses de seu tio, o escritor nada perdera, visto de perto. Sua simplicidade igualava grandeza de sua alma. Admiravalhe a vida de trabalho, o devotamento to absolutamente desinteressado gela Cincia, e, para ela, personificava a glria mais pura da Humanidade. Associava-o ao prprio cu, e no podia mais contemplar uma estrela sem que visse aparecer a sua imagem; pensava nele sem cessar. Quanto essas impresses eram diferentes daquelas que sentira, vagamente, quando o jovem Duque de Jumiges a arrebatara no turbilho de um baile! Grave e profundo sentimento nascia agora em seu corao, e lhe dava a noo de uma nova dignidade. Sentia sua alma engrandecida e nobilitada. Parecia reconhecer-se destinada por sua natureza a amar um grande esprito ou no amar ningum. Sem que o buscasse, o Solitrio a atraa qual o m que estende, atravs de muralhas, o seu irresistvel campo de atrao, e fora obedincia. E muitas vezes, em momentos dolorosos em que uma sensao de vcuo atravessava repentinamente todo o seu ser, e em que sentia o sangue logo afluir ao corao, ela repetia a si prpria a pergunta que fizera ao jovem filsofo: Somos livres? As horas que passava junto dele eram, desde ento, as suas nicas horas de ventura. Nas conversaes de seu tio e sua tia j se comeava a falar, porm, no retorno a Paris. A fagulha Para a manh seguinte ao dia em que a carta precedente foi escrita, estava marcado um encontro no velho retiro, para a observao de Vnus, em plena tarde de Vero. O planeta estava ento em seu brilho mximo e apresentava ao telescpio uma fase elegante, anloga do crescente lunar no seu quarto dia de lunao. Estela, cuja imaginao remigiava agora, de dia ou de noite, atravs dos espaos siderais, galgava alegremente a encosta sombreada, sentindo-se feliz par viver aquele esplndido dia de Vero. Trajava um vestido claro e leve, tinha as mos e os braos protegidos do calor atmosfrico por luvas brancas que os cobriam inteiramente; uma pelerine caa sobre os ombros e os braos, deixando destacados o seu talhe elegante, a cintura e a cauda da
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saia. Vendo-a de longe, com a sua pequena sombrinha, galgar o atalho onduloso, dir-se-ia uma dessas brilhantes borboletas dos trpicos que volteiam graciosamente, de flor em flor, e parecendo prender-se a Terra unicamente pelas cores e perfumes. Encontrou o astrnomo no seu escabelo, absorvido por um desenho dos pontos mnimos do crescente de Vnus. Apenas a percebeu chegar, desceu, esquecendo a Vnus do cu pela sua estrela da Terra. Sua toalete fascinou-o um pouco, e com esforo refreou a saudao efusiva que lhe vinha aos lbios; mas, imediatamente, lhe estendeu a mo e falou do planeta, sem aluses mitolgicas. E porque Estela observava, quase no alto do escabelo, em uma posio oblqua e fatigante, tomou-lhe o brao para sustent-la um instante! Mas repentinamente retirou a mo, todo inquieto e singularmente constrangido. Estela, entretanto, parecia no se haver apercebido de nada. A luva, embora se prolongasse um pouco acima do cotovelo, deixava o brao nu at ao ombro, oculto exteriormente pela pelerine cada. Rafael julgara segurar a parte protegida do brao, o que para ele j representava uma grande temeridade! E eis que sentira em sua mo a macia carne polida de um brao nu, que ele segurara bastante ao alto. A sensao voluptuosa e sbita, experimentada pelos dedos, expandiu-se instantaneamente por todo o seu sistema nervoso, e lhe percorreu o corpo qual arrepio de fogo. Seu primeiro movimento foi de retomar esse brao. No o ousou, e desceu do escabelo para ir olhar pela janela. - Senhor Dargilan, por acaso observa Vnus com freqncia? Perguntou, alis sem malcia. Ela deve interessar menos do que Marte ou Jpiter. Fez a graduao para a sua vista?... Parece-me que h vejo um pouco confusa! Era chamar o astrnomo para o seu posto. Ele retornou, fez girar ligeiramente a ocular e certificou-se de que a imagem estava bem ntida para a vista de Estela. Mas o seu pensamento estava fora do telescpio. O contacto que acabara de sentir, a obrigao de permanecer bem prximo da jovem, a fim de chamar sua ateno para os detalhes do disco de Vnus que ela desejava identificar; a elegncia da leve toalete de Vero; a colorao de suas faces animadas pela caminhada e que fazia ressaltar mais ainda a alvura do pescoo; e depois o delicado perfume da carne emanado daquela flor de beleza, e que alguns dias antes j havia ferido o seu olfato; toda essa sinfonia de impresses o afundou em um estado de perturbao anti-cientfica e de desassossego to insuportvel, que teve de pretextar uma desculpa qualquer, e pediu a Estela que lhe permitisse concluir um clculo. Sentou-se a uma pequena mesa e traou algarismos. Mas, logo, muito prximo dele, sobre o escabelo, ante seus olhos, dois pequeninos ps apareciam, calados de pantufos negros, abertos, e, atravs de
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sedas cor de rosa e rendas transparentes, se deixava adivinhar a pele branca e acetinada. O amor torna as mulheres mais animosas, mais ousadas, mais empreendedoras e torna, ao contrrio, os homens mais tmidos, mais desajeitados. Esse efeito contrrio de um mesmo sentimento sobre cada sexo pode parecer estranho, mas muito fcil de observar - pois toca um tanto a todos, e os nossos dois amorosos no faziam nisso exceo regra geral. E, assim, tambm o amor torna a mulher mais alegre e o homem mais srio. Estela parecia no ter notado a agitao sbita e extraordinria de seu companheiro, e naquele momento estava muito entregue sua observao astronmica. A encantadora toalete de Vero nada tinha de particular para a sua elegncia habitual; sem dvida ela no compreendera o efeito que o contacto de seu brao produzira sobre ele, e era muito inocentemente que procurava descobrir as asperezas montanhosas da boda interior do crescente de Vnus, impacientando-se s vezes com o tremor das imagens no ar aquecido, com a ofuscante luz do Sol, e nas mudanas de posio, erguendo um pouco o brao, ou mostrando acima do tornozelo. Rafael ia pr-se a salvo, quando o bom semblante do tio Noirmoutiers apareceu no alto da escada: - Ento, Estela! Disse, precedeste-nos bem um quarto de hora. Olha a tua tia que vem restituir ao senhor Dargilan o novo livro de Joo Rameau. Que delicioso poeta, e que bem compreende a alma da Natureza! - Olhe meu tio, replicou Estela, descendo do escabelo, Vnus apresenta um lindo crescente. Repare. E' mais fino que o da Lua. Dargilan, ao p do escabelo, estendeu a mo jovem para ajud-la a descer os ltimos degraus, e Estela, deixando nesse apoio o peso do corpo, sentiu que aquela mo forte tremia. Olhou ento o Solitrio e lhe viu o semblante alterado e em extremo plido. O jovem sbio estava preso, ligado por invisvel fio, que lhe amarrava o corpo e a alma. Da mesma forma que duas eletricidades contrrias determinam pela sua aproximao um fulminante claro, o contacto sentido havia breve instante, pela mo de Rafael tocando de imprevisto o brao desnudo da jovem, confundira de algum modo os fluidos de ambos, semelhana da eletricidade que, em estado de tenso nas nuvens tempestuosas, tendem a seu tempo a produzir o raio. A fasca incendiara a plvora. Havia algumas semanas que reparara naquela jovem, no somente pela beleza e elegncia, mas, antes de tudo e de incio, pela sua curiosidade cientfica, pelo esprito to maravilhosamente aberto ao estiado dos grandes problemas, e tambm pela bondade de alma, pois nunca lhe ouvira dizer uma palavra malvola a respeito do quer que fosse. Fora tocado primeiramente por
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esse belo carter, e um primeiro amor, vago e indefinido, nascera em seu corao. Tinha vivido at ento inteiramente esquecido de si mesmo; o estudo havia absorvido os seus dias e as suas noites, absorvendo tambm as foras da sua juventude. Passava as noites ao culo dos seus telescpios e os dias sobre tbuas de logaritmos, livros ou memrias cientficas. Nada o interessava alm da Cincia, e fora dela nada lhe parecia digno de tomar, por instante sequer, a ateno de um esprito srio. Que o Universo? Qual o nosso destino? Era esse o imenso problema sempre enunciado diante dele e enchendo constantemente o seu pensamento. O pouco que havia visto da Humanidade lhe mostrara nessa raa seres incoerentes, nada razoveis, muitas vezes maus, vivendo sobre a Terra sem saber - como - nem por que - custa uns dos outros, e, alm disso, bastante nulos em qualidades. Sem ser misantropo, ficara estranho aos homens e olhara de muito longe o mundo humana, qual simples espectador. A Humanidade no o interessava em absoluto. Crescendo em sua alma, a luz intelectual teria consumido todas as pequenas paixes vulgares, se elas tivessem podido ali nascer. E eis que repentinamente um raio de Sol iluminara a paisagem humana, raio muito suave, de uma claridade celeste, vaporoso, impondervel, porm real. Essa luz trazia algo de Cu e de Terra. Sua vista se fartara a esse raio. Estela era uma luz que lhe fazia pressentir uma Humanidade desconhecida, de cuja existncia ele nunca suspeitara. Sua curiosidade e sua ignorncia no lhe pareceram desprezveis. Apreciava ouvir sua voz to clara, que cantava, parecendo musical; gostava de ver o seu olhar lmpido, dilatado diante do infinito; agradava-lhe responder s suas perguntas ingnuas, e, quando ela passava alguns dias sem aparecer, parecia-lhe que algo lhe faltava, e sua melancolia habitual se tornava mais profunda. Sim, desde muitas semanas sentia-se atrado por esse fascnio, essa graa e essa beleza, e quisera ter resistido ao encantamento. Julgava-se forte, inteiramente conquistado pela Cincia; jamais sonhara em amor; imaginava-se invencvel. Porm a atrao agia. O fascnio da imagem de Estela se tornava a luz da sua vida. Durante suas observaes, seus clculos, suas pesquisas, seus trabalhos mais rduos, a doce imagem lhe aparecia de sbito, seu corao batia precipitadamente, seus pensamentos cientficos tombavam qual o trigo ceifado, e todo trabalho se lhe tornava impossvel. Queria desterrar esse sentimento que j o absorvia semelhana da gua que embebe a esponja, e no podia. Era delicioso entregar-se a ele, mas a sua querida Cincia seria sacrificada. Estudos, comeados de h muito tempo, sobre os movimentos das diversas zonas dos anis de Saturno, e estavam a ponto de terminados, ficaram
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interrompidos subitamente, e lhe era impossvel ligar dois raciocnios ao mesmo tempo. Esperara resistir, fazendo-se glacial, insensvel, quase brutal, junto de Estela; em vo. Eros ia vencer; Eros tinha vencido. Enquanto a Cincia transformara Estela, o amor, a seu turno, transformara Rafael. Quanto mais elevada a alma, tambm mais cu nela se contm e mais capaz de amar. Na noite daquela data, nada pde observar por nada se interessou, nenhum trabalho soube realizar, passou febril, sem uma hora de sono. Nos dias seguintes, o estado de agitao e superexcitao pioraram. Dargilan, enamorado, era o mais infeliz dos homens. Perdera toda aptido para o trabalho intelectual e estava incapaz de concentrar ateno cinco minutos consecutivos no mesmo assunto. Um nico pensamento, uma s imagem, lhe tomava a alma noite e dia. Era uma espcie de nova atmosfera para a sua respirao. At ento, vivera no meio das estrelas, que conhecia pelo nome e pela histria de cada uma; o Universo celeste fora a sua vida, absorvera-o sem cessar, e entre os esplendores estelares sua alma adquirira o hbito de viajar, resistir e assim viver; mas, repentinamente, de igual modo que a claridade da aurora apaga as estrelas, assim o pensamento luminoso de Estela fizera eclipse em toda a sua vida anterior, e lhe inundara o ser de uma nova luz. Luz inefvel e divina que o encantava e enfeitiava, e na qual todo o seu ser se banhava com delcias, em uma expanso de alegria sobre-humana. S pensava nela. Tornara-se o seu objeto, o seu complemento e parecia pertencer-lhe. Oh! Quanto queria quela adorvel criatura, quanto desejaria respir-la de um hausto e absorv-la em uma aspirao frentica, prend-la em seus braos, envolv-la em imensa carcia e aniquil-la em si prprio, dois seres formando um s, que os associa e os confundem, duas chamas em uma, ardente, inextinguvel. Cu de aurora, de luz e de eterna primavera, mas de repente atravessado por uma espessa nuvem tempestuosa: o amor, o amor absoluto, sem esperana de felicidade! Aquela parisiense elegante e delicada aquela mundana de luxo refinado, aquela mulher de boudoir, no fora, feita, dizia-se consigo Dargilan, para a vida simples, sria, severa do sbio, para a simplicidade, a pobreza, o trabalho. Um capricho de instante a interessara pela Cincia, mas tal no poderia passar de uma extravagncia, e seria engan-la fazer-lhe acreditar que pudesse ser durvel. Torn-la companheira de um pesquisador solitrio, seria enterr-la viva. E depois, que ambio! Algum dia, ela o amaria? J no estava noiva? No. E' impossvel. E' bela, adorvel, divina. E' preciso esquec-la! Porque t-la conhecido! Porque t-la visto! Fatalidade! A vida absurda. E assim, durante uma longa semana, se agitou, dia e noite essa alma, presa da paixo mais desordenada e incapaz de se desprender do torniquete de
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ouro que a aprisionava. Despertando, durante as noites de insnia, era a imagem de Estela que lhe aparecia; sucumbido de fadiga em sono de alguns momentos, era o mesmo pensamento que o embalava; debruando-se durante a noite profunda varanda do terrao, era a forma difana de Estela que ele via desenhar-se, voluptuosamente desdobrada, nos flocos da Via-Lctea, e durante o dia, abrindo um livro, no lhe era possvel ler meia pgina sem sentir repentinamente um grande vcuo em todo o seu ser, e a respirao interrompida qual se o ar lhe faltasse. Ainda no atingira a idade em que, na mulher amada, o amante, muitas vezes, ama o prprio eu. Estudara, analisara at, notadamente no comeo, a encantadora desconhecida. Trs coisas, em sua opinio, lanavam entre as duas existncias um abismo intransponvel. A primeira era a grande fortuna de Estela. Parecia-lhe inaceitvel que a mulher fosse mais rica do que o homem, e nunca pudera compreender a condio dos dotes. Aceitar dinheiro de uma criatura a quem se ama, a quem se estima, que se associa prpria existncia, parecia-lhe monstruosidade, e ao mesmo tempo uma humilhao para ambos. Se, pois, algum dia se casasse a primeira condio, muito naturalmente, seria desposar uma jovem sem dote. A segunda coisa que distanciava da sua vida a daquela deliciosa criana, era a sua educao mundana, as idias superficiais de que o seu crebro deveria estar repleto, sua incapacidade provvel de compreender verdadeiramente a Cincia e a Filosofia, seus hbitos de grande conforto e de luxo, em uma palavra, um conjunto de condies inteiramente apostas s da vida que ele vivia. Por fim, uma terceira razo, que no dizia pessoalmente a Estela, sempre o mantivera afastado de toda idia de casamento: supunha que as mulheres no gostam da solido, do silncio, da vida laboriosa em si, e que mulher alguma poderia sentir-se satisfeita na sua tebaida. Se for feliz por amar Estela, se experimentava um sentimento mais agradvel, mais delicioso, uma felicidade imensa, qual jamais sentira, mesmo nos transportes ao seio das maravilhas infinitas, essa felicidade, contudo, lhe parecia ocultar um abismo. De princpio, duvidava que ela pudesse partilhar do seu amor (os homens nada sabem adivinhar), depois, imaginava que, se chegasse a declarar sua paixo e a ser ouvido, no ousaria, no quereria ir mais longe. Sua alma estava assim prisioneira de um terrvel impasse, do qual lhe parecia impossvel sair. Por diversas vezes esteve a ponto de ir ao Costeio. Jamais ousou. Oito dias haviam decorrido nesse doloroso combate, quando Estela voltou, sozinha ainda, precedendo seu tio e sua tia. Ao passar diante da porta aberta da biblioteca, em direo escada da cpula, ouviu um grande suspiro
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e voltou: o astrnomo ali estava sentado mesa de trabalho, a cabea apoiada e oculta nas mos. Estela bateu na porta: ele no ouviu. Entrou. - Bom dia, caro mestre, exclamou. Perturbo a vossa meditao. Em que pensais? Dargilan levantou-se. voz de Estela, seu corao comeou a vibrar com violncia. O semblante era plido e desfeito. Tomou-lhe a mo e nela apoiou demoradamente os lbios ardentes. - Pensava na... Na atrao, respondeu. A atrao rege o Universo, e vs sois disso um vivo testemunho. Vs o demonstrais com evidncia maior do que Newton. Esteta pareceu no compreender esse gnero de declarao astronmica. - O senhor est com febre, respondeu. Trabalhais demasiado. Porque fatigar-se assim? - No, no tenho trabalhado muito; ao contrario, contestou, apertando nas suas a pequena mo enluvada que se lhe abandonara. Meu esprito no est mais na Cincia. Uma tristeza imensa invadiu minha alma... Deteve-se, no ousando dizer mais. Porm, ela estava to perto dele, seus olhares to ternamente se encontraram, a respirao estava to aproximada, que, de repente, ele a tomou nos braos e lhe deu na boca um longo beijo. - Amo-vos! Exclamou... E estou louco. Perdoai-me. No governa mais minha razo. Abriu os braos e recuou, como se pretendesse fugir para longe. Estela permaneceu imvel e silenciosa, com as mos cruzadas. O Solitrio voltou, e, inclinando-se humildemente diante dela, disse: - Perdoar-me-eis? - Meu Solitrio, viveis no cu. Que podereis desejar de melhor? Invejo a vossa existncia. Levantando o busto, ele a contemplou mais calmo. - Sim, vivo no cu, no cu esplndido e infinito. No, nada mais belo, nada melhor; porm, sinto-me isolado. - Essa solido absoluta indispensvel aos vossos estudos? - E quem consentiria em partilh-la? - H trs meses que estou aqui, e parece-me que vim ontem. - E' a durao normal de uma estada nos Pirineus, replicou Dargilan, que No compreendeu, ou no quis compreender. No ficaria aqui um ano, vs, a beleza parisiense por excelncia. - Eu, aqui, ficaria... Sempre, a pronunciou tranquilamente. Dominado por opinies diametralmente opostas, Dargilan no compreendeu o amor oculto sob as palavras da jovem, que eram, contudo, os mais doces que ele ouvira. Manteve-se na mesma posio, silencioso, diante dela, qual se, por sua vez, ela o houvesse hipnotizado.
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- Senhorita Estela, replicou, sois ainda uma criana. Vs, aqui, sereis o meu verdadeiro cu, o meu arrebatamento perptuo, minha nica felicidade possvel. Mas, isso constitui a vossa desventura. Fostes educadas no mundo e para o mundo. Paris vos to indispensvel quanto o ar que respirais. Ah! No existe nada perfeito neste mundo. A atrao sois vs! O cu sois vs! Minha estrela,, for-me-eis esquecer a Astronomia e todas as cincias. - Que estais dizendo? Replicou ela vivamente. A Astronomia no a vossa vida? - No mais, agora. Nesse momento, o senhor e a senhora de Noirmoutiers chegaram por sua vez biblioteca. - Meu tio, disse Estela, o Sr. Dargilan est aqui, mostrando-me alguns livros; no se afastem. - Como est vermelha, minha sobrinha! Porque corres sempre, assim, a tanta pressa? Vais apanhar palpitaes. Estela, para dominar-se, comeou a folhear um livrinho do sculo XVII que se encontrava em uma estante da biblioteca, ao alcance da mo. Na primeira pgina, aberta ao acaso, lera estas duas palavras - Sede de Amor, encimando uma gravura que mostrava dois cupidos tirando gua de um mesmo poo, e trazendo por epgrafe estas outras do Evangelho: Non sitiet in eternum. Prometeu a si mesma continuar, algum dia, a leitura desse livrinho, e, destacando uma linda margarida dentre as flores do campo que prendera cintura, marcou a pgina assim aberta ao acaso. Duque e Duquesa. Enquanto esses acontecimentos se passavam nos Pirineus, o Duque de Jumiges, que esquecemos em Paris, preparava seu casamento para o ms de Setembro, no pondo em dvida, por um instante sequer, as suas altas qualidades pessoais e o amor de Estela por ele. Certo de ser aceito, descontara por antecipao uma parte do dote daquela que considerava sua noiva; uma cadeira de deputado vagara no seu Departamento: declarara-se republicano, atirara uma sessentena de mil francos na arena, e fora eleito por pequena maioria; o ms de Setembro se aproximava com o termo de suas esperanas. No abrigava dvidas. Ignorava-o que, em geral, em amor no o homem quem elege. Assim, a primeira carta que escrevera ao conde em fins de Junho, logo aps a partida de Paris, ficara sem resposta (o que ele atribua s peripcias da viagem), e as respostas recebidas segunda e terceira estavam longe de fixar a data almejada.

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As perguntas que lhe eram dirigidas por seu tio e sua tia, Estela respondia, a cada vez, no ter pressa de casar; que o duque lhe agradava mediocremente; que no queria decidir a sorte da sua vida, sem ter maduramente refletido nela. Primeira vista, no ltimo Inverno, durante a estao das festas onde o Jovem duque brilhara com tanto esplendor, acreditou que o amava. A idia de ser chamada Senhora Duquesa de Jumiges era-lhe agradvel. Encarara sob uma perspectiva rsea suas recepes em um suntuoso palcio do bairro Saint-Germain, seu camarote da pera, sua carruagem no Bosque, seu chal beira-mar no Vero, seu castelo e suas caadas no Outono, o terrao de Monte Carlo em Dezembro e Janeiro. Mas, em seguida e gradualmente, a nulidade intelectual do belo jovem a impressionara e acalmara. A leitura das obras do Solitrio a princpio, o conhecimento que fizera em seguida, de modo to inesperado, do autor favorito, deram s suas idias outra direo, conforme vimos. E agora amava o Solitrio, tanto quanto o admirava, e sentia-se pertencer de corpo e alma misteriosa influncia que ele exercia sobre ela. O conde e a condessa, seus tutores, no suspeitavam naturalmente de nada, e bem assim o senhor e a senhora de Castelvieil. Foi um cair das nuvens para todos, quando, premida por uma quarta carta do duque, e sitiada de perguntas, Estela declarou decididamente que no se casaria. Foi efeito de raio para ambas as famlias, que viam o aniquilamento de um sonho longamente acariciado. Empregaram todos os meios para impedir semelhante determinao; pelo raciocnio e a persuaso, frisaram todas as vantagens de uma unio que consideravam admirvelmente combinada: o duque tinha todos os trunfos no seu jogo; acabava de ser eleito deputado; aliara-se a Republica, podia tornar-se ministro um dia, etc. Mas no conseguiram sequer atenuar a deciso que Estela declarou ser - irrevogvel. - Capricho de moa! Exclamou o baro, quando Estela voltou ao seu aposento. No insistamos mais por hoje, nada obteremos. Ela est fixada numa idia qualquer. - Um casamento to bom! Repetiu a condessa. Seria a felicidade assegurada. Ela mudou muito, desde o Inverno passado. - Simples capricho, j vos disse, acrescentou o baro. Oito dias depois do regresso a Paris, voltar aos antigos projetos. Deixemo-la agir. Esperemos. No comuniquem a recusa ao duque: Seria arruinar tudo. - Certamente que no, disse o conde. Vou responder que Estela ainda no se decidiu; que se julga muito jovem para casar; que aguarde pacientemente o nosso breve retorno a Paris. E' o atalho a seguir no momento.
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E, com efeito, foi em termos vagos que o Conde de Noirmoutiers julgou conveniente responder, pela quarta vez, ao Duque de Jumiges. Este que contava absolutamente com o casamento para o Outono, eram, conforme se viu, de carter bastante ftuo. Era mais vaidade do que orgulho, ou mais orgulho vulgar do que nobre altivez de raa. A ltima resposta teve o dom de feri-lo profundamente e lan-lo em clera extrema. No ficara em Paris seno para fazer preparativos para o casamento, e se contentara, para frias, com uma estada de dez dias em Granville. Na vspera, perdera forte quantia no joga. Quando, s dez horas, o criado particular lhe trouxera a carta carimbada de Bagnres-de-Luchon, saa de uma noite, ou antes, de uma madrugada de insnia. Levantou-se, foi ao gabinete do toalete, onde a gua fresca no conseguiu atenuar a agitao desordenada de seu crebro; voltou ao quarto, que mediu a grandes passadas; releu a carta, amarrotou-a raivoso e atirou-a ao cesto. Depois, chamou o criado, por longo toque da campainha. - Batista, apronta a minha maleta, a maleta para excurses de oito dias. Seguiremos esta noite, s 10,22 no rpido de Bordus. O cu estava cinzento e pesado o aspecto do tempo. Montou a cavalo e fez um passeio ao Bosque; almoou no Crculo; foi ao banqueiro; regulou a dvida de jogo; fez uma visita amante, a qual danava nessa noite o bailado de Maledeta, jantou com ela, e chegou gare de Orlees 15 minutos antes da partida do trem. No depois de amanh seguinte, tocava a campainha do pequeno Castelo de Castelvieil. - Pergunte ao senhor Conde de Noirmoutiers se pode receber-me, disse ao entregar seu carto de visita ao domstico. Cinco minutos aps estavam em presena um do outro. - Qu! Vs, meu caro duque? - No me esperava! Achei que uma visita seria melhor do que uma quinta missiva. - Ficamos, minha senhora e eu, satisfeitos com a vossa visita, alm de que no um estranho para o Baro e a Baronesa de Castelvieil. - E a senhorita d'Ossian? - No est aqui. Foi a uma excurso pelas montanhas. - Sozinha? - Com uma de suas amigas. - Ah! Exclamou, fixando os olhos do conde. Podeis explicar-me a causa de sua mudana? Que h nisso tudo? - Meu caro duque, tende vinte cinco primaveras e eu cinquenta invernos. Vejo-vos muito excitado. O que me perguntais o que perguntamos

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diriamente minha sobrinha. Sabemos tanto quanto vs. Ela no tem pressa de casar, eis tudo, em minha opinio. - No acredito nisso. Lembro-me do que ela era na ltima Primavera. No se engana a um namorado. Ela ama a um outro! Quero falar-lhe. Quero ouvi-la e quero que ela me oua. - Quereis, quereis... No a quereis tomar fora, suponho? - Senhor Conde, no me deu a sua palavra? - Minha sobrinha no uma escrava. Seu corao lhe pertence. Disse-vos o que pensava. Vossos desejos so os meus. No os modifiquei. Se Estela caprichosa e no se decide por enquanto, queira esperar. Que pretendeis que eu faa na caso? - Podeis aconselh-la. Se ela nada ouve, podeis pedir-lhe uma explicao sincera. seu tio, seu tutor. Ela menor. - Asseguro-vos que no tendes melhor amigo do que eu, nem melhores aliados do que ns todos. Mas, neste momento, ela no quer ouvir falar em casamento. Essa opinio no durar. Aguardai o nosso retorno a Paris. - No posso v-la, falar-lhe? - Est ausente. - Por quanto tempo? Esperarei. Estou em Luchon. Voltarei amanh. Desejo, absolutamente, falar-lhe, e ela no pode recusar uma entrevista. - Est bem, meu caro duque, volte amanh. Certamente ela estar aqui; partiu esta manh e nunca passou uma noite fora. At amanh! - At amanh! Queira apresentar os meus respeitos senhora condessa. Apenas o duque sara, entrou no salo a Condessa de Noirmoutires, seguida logo pelo senhor e a senhora de Castelvieil. A visita do duque fulminara os habitantes do castelo, qual um raio. Que o dissera? Que pretenderia fazer? O conde narrou a conversao e declarou ser absolutamente necessrio dar uma resposta formal no dia seguinte. Aps uma discusso um pouco longa, ficou decidido que era necessrio prevenir Estela, fazei descer e interrog-la. Estela chegou muito plida, no seu matinal vestido branco e sentou-se, qual uma acusada, perante os seus juzes. O conde lhe narrou visita do noivo, seu estado de superexcitao, sua promessa de voltar no dia seguinte. - Graas a meu pequeno subterfgio, acrescentou o conde, ele acreditou ou pareceu acreditar na tua ausncia. Mas, amanh, no possvel fingir. Bem sabes, minha filha, o quanto te amamos. A unio que recusas so muito desejveis. Jamais encontrarias um partido to conveniente, sob todos os pontos de vista. No recomearemos os nossos argumentos de outros dias. No s mais uma criana. Sabes o que perdes recusando esse ttulo e esse nome. Vejamos! Reflete ainda. No faas loucura. Tens at amanh para decidir. J ests um pouco comprometida aos olhos do mundo, pelo menos.

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- Estou inteiramente decidida, respondeu Estela, e no mudarei de agora at amanh. No amo o duque. S me casarei por amor. - Amor... romance. Isso nos contos de fadas. No se casa mais por amor. Encontrar jamais em teu caminho um homem perfeito, com a perfeio que almejas, e digno da tua confiana? E' duvidoso. - Tenho refletido muito desde h trs meses. O duque e um jogador... - E' um homem do mundo, e do melhor. Tu no tens a pretenso de reformar a Humanidade. - E um ignorante... - Sabe o que preciso saber, que todos os da sua classe sabem. Um homem do mundo no tem necessidade de ser professor da Sorbone. - Enfim, meu tio, j lhe disse, h dias: ele no me agrada. Eu seria infeliz toda a minha vida se o desposasse. Vs no desejais minha desgraa. - Minha querida filha, sabe quanto te amamos. Somos os teus melhores amigos, acredita. Vejamos. Faremos o que quiseres. Pensaste em algum outro partido? Na brilhante soire do ltimo Inverno, em que foste verdadeira rainha, bem me recordo de que outros dois jovens te fizeram uma corte quase to assdua quanto do duque. Preferirias um deles? A impresso que neles produziste no mistrio para ningum, e tu os viste em nossas reunies. - Sei, antes de tudo, que eles me buscam pelo meu dote, e no por mim prpria. Demais,, eu no quero casar, pura e simplesmente. - O duque teima, em absoluto, em ter uma entrevista contigo. - Espero que o senhor me evite essa contrariedade. Para que serviria essa entrevista? O senhor pode transmitir-lhe a minha resposta. A conversao continuou algum tempo ainda nesse tom, sem modificar em nada as resolues de Estela, e o dia transcorreu bastante triste, todos os nervos tensos, num diapaso mais do que agudo. Estela s reapareceu ao jantar, apenas o tempo estritamente necessrio para a refeio, e depois se encerrou nos aposentos de dormir. - Um casamento de convenincias! Repetia ela a si prpria. Entregar meu corpo a esse estranho! Nunca! Nunca! E na manh seguinte, durante a visita do duque, recusou descer para dar a este uma explicao qualquer. A Cincia, a honra e o Amor. Alguns dias depois, o Dr. Bernard chegava casa de Dargilan, fisionomia inquieta, ar grave e agitado. - Venho hoje, disse, v-lo em misso de embaixador e tambm de amigo. Sou interrogado, e no sei que responder. A sobrinha do Conde Noirmoutiers
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acaba de recusar um casamento esplndido, para o qual estava quase comprometida desde o Inverno passado. Foi uma complicao no Castelo, onde no houve mais sossego. Esta manh fui chamado para a senhorita d'Ossian, que est febril. Adivinho, ou creio adivinhar. No h efeito sem causa. Parece-me, caro astrnomo, que no sois estranhos a toda esses agitao. No venho pedir confidncias, porm fao um apelo aos vossos sentimentos de honra e lealdade. Recusando esse casamento, essa jovem parece destruir sua vida. - Meu caro doutor, respondeu Dargilan, no quero e no devo ocultar nada. Sim, fixei-me na senhorita d'Ossian; ela entrou na minha vida. Sim, experimento por ela um profundo sentimento de admirao, e - porque no confessar logo? - uma atrao muito sria. Seduziu-me pelo seu encanto, todo novo para mim, pelas delicadezas do seu esprito, pela elevao de sua alma, pela sua bondade, e tambm pela sua radiante beleza. Quinze dias depois, eu nada mais vi no cu, nem na Terra, e o meu esprito no mais me pertenceu. E' a maior felicidade que haja experimentado, e, acrescentou com voz perturbada, tambm a maior infelicidade da minha vida. No a devo amar. De resto, ela no suspeita de nada. - Tudo que me dizeis j o adivinhara. Mas, no acreditais que ela tenha podido pensar em um casamento convosco? - Um casamento! Replicou o astrnomo, erguendo-se da cadeira. Que idia louca e quimrica! No posso no a devo amar. - E por qu? - Porque a estimo, porque a considero, porque no me sinto no direito de modificar, num quer que seja os rumos da sua vida. Estou estupefato com o que me contastes. Ela estava comprometida? - So as duas famlias que desejam essa unio, alis, perfeitamente equilibrada, pelo menos sob o ponto de vista das aparncias mundanas. A senhorita d'Ossian nada resolvera definitivamente, nem rejeitara as propostas; mas, hoje, as recusou de modo peremptrio. - Espanta-me, isso que me dizeis. - Parece-me, contudo, que, se vs a amais, o que ela acaba de fazer no vos deve ser desagradvel. - No me compreendeis. No adivinhais ento o que pode ser uma paixo inspirada por uma criatura de tal nvel? No compreendeis a luta atroz que lacera minha alma? Sim, amo-a loucamente, amo-a at morte, e... - Mas, que isso? Que tendes? Na verdade, no compreendo nada. Que vos irrita? Contra quem estais encolerizados? Boa pea, se isso amor!...

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- No. Vs no compreendeis. E' preciso pr os pontos nos . Pois bem: se ela fez quanto dizeis porque tambm me ama! - E isso que vos deixa nesse estado de furor? - No, doutor; mas a vossa cegueira me causa piedade. No compreendeis ento que, primo, me estais ouvindo? Sim, primo, ela no se poda tornar minha amante; e, segundo, no posso despos-la? Compreendestes agora se h ou no motivo para enlouquecer? Dargilan caminhava olhar alterado, com gestos de alucinado. - Vs no podereis despos-la, respondeu o doutor com calma. E por qu? - No somos da mesma raa. - Nem assim compreendo mais alguma coisa! O senhor est completamente louco! - No. Escutai-me. Ela bela e elegante; rica; foi educada no mundo e para o mundo. Sua divinal pessoa, seu carter, suas aptides hereditrias, todo o seu ser se encontra em anttese minha situao. Sou um apagado rstico, pobre; vivo no deserto. A Cincia - era - minha nica paixo. A maior loucura que poderamos fazer, um e outro, seria unir nossas existncias to dspares. Pela minha parte, nunca a impelirei para esse abismo. - Vs a amais? - Sim, absolutamente. Meu amor sincero e profundo, a ponto de que por ela que a amo, e no por mim, e de almejar a sua felicidade antes da minha prpria. Devo sacrificar-me. - No a desposareis, mesmo se ela vos amasse no mesmo grau em que a amais, mesmo que ela o quisesse? - No. E' impossvel! A vida nesta montanha seria para ela um exlio, um exlio de toda a sua brilhante existncia, o que ela no tardaria em lamentar amargamente. - Seu dote de sessenta mil libras de rendimento. - Quanto? - Sessenta mil libras de rendimento. - Ento se torna mais impossvel do que nunca. Dinheiro aqui, ouro, fortuna? Desposar uma jovem que tenha dote! No penseis nisso! - Contudo, o que se v, e no constitui crime. A vossa celebridade no vale alguma coisa? Porque recusar a riqueza? - Por que... Porque anjo o estudo. No conheo felicidade alguma, do esprito, superior ao estudo, e no penso em outra desde que possuo uma. A Cincia, a Cincia, a Cincia!... Repetiu, continuando a caminhar, a levando a mo direita em gesto imperioso.

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- Mas, em que a fortuna vos impediria de satisfazer a vossa paixo dominante? - Em tudo. Atendei e conversemos. Estou mais calmo. Perguntais...? Respondo que a riqueza e o trabalho jamais andam juntos. Primeiramente, o simples fato de ser rico j oferece um bom travesseiro para dormir. Sabeis to bem quanto eu que, em geral, as pessoas que nasceram ricas no trabalham, nem amam o trabalho, so incapazes de ao. No lhes deve ser mui difcil contrair hbitos de luxo e acostumar preguia. E' uma tendncia perigosa. A riqueza , pois, m conselheira. Depois, admitis, no verdade? Que se temos dinheiro para nos servirmos dele. Se o guardamos, de nada serve, e intil se torna possu-lo. No verdade que, por isso, estamos de acordo em que cada um se serve do seu dinheiro? - Evidentemente, no compreendo a avareza dos seres que passam a vida empilhando ttulos de renda para morrer sobre eles. E' o cmulo da estupidez. - Portanto, dele devo servir-me. Dizei-me: em que se emprega o dinheiro? A gerir essa fortuna no legtimo desejo de no a perder... A acompanhar a cotao dos ttulos de renda... A comprar propriedades?... A sustentar estabelecimentos de caridade? No dinheiro de S. Pedro?... Mantendo danarinas?... Dedicando-se a corridas de cavalos?... Dando-se caa de lebres e coelhos? Vejamos, em que, em sua opinio? - Entendo que... Na objeto do desejo de cada um... - Em suma, antes de tudo preciso manter um modo de vida correspondente fortuna. Se tem sessenta ou oitenta mil francos de renda, no conveniente residir em um casebre igual a este. E' necessrio um todo de servios domsticos, no Inverno, em Paris, Nice ou Npoles; no Vero, em um castelo, algumas viagens, etc. E' indispensvel, sob pena de fracasso, uma instalao condigna, cozinheira, camareiro, cocheiro, e outros serviais ainda, se so casado. Ides responder-me que no desagradvel estar bem instalado e ter todas as correspondentes facilidades. Esperai! Conversaremos ainda, j que viestes para tal fim. Habitamos, por suposio, uma propriedade de alguns hectares (simplifico o mais possvel) embelezada por belo parque, repuxos, bom pomar, uma boa horta. Estou a ouvir desde aqui as perguntas cotidianos Senhor! H um tanque vazando; quer que chame o pedreiro?... Senhor, a carruagem foi derrubada pelo novo cavalo, que muito espantadio; parece tambm que a aveia est misturada... A senhora perguntou hoje que fim teve os pssegos de prximo do pavilho: o vento os derrubou... Devo avisar tambm ao senhor que deu odio na parreira... Um canto do muro que fecha o parque foi derrubado por malfeitores; o senhor no acha que seria melhor abrir uma vala e colocar uma grade de ferro?... Quer que solte os cavalos? - pois o senhor no estabeleceu hora de atrel-los... O arquiteto deseja falar com o
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senhor a respeito da nova chamin... A cozinheira previne a senhora de que inadivel mudar de aougueiro... Senhor, no possvel sair com este chapu... Senhor, o cocheiro est a cair de bbado... O senhor encomendou o feno?... E eu poderia fcilmente continuar essa ladainha, falar dos dias em que madame, cansada das pedincharias e dos roubos, despede todos os domsticas de uma vez, ou dos aborrecimentos que ela teve, quando soube que a jardineira era conhecida em todo o pas pela sua conduta escandalosa, e que o cocheiro e a criada de quarto viviam iguais a marido e mulher? Esses amos so, pois, cegos e imbecis a ponto de no perceberem que so roubados por essa gente que os escarnece? Em que se ocupam eles, seno dos seus interesses e da conduta dos seus domsticos? Vejamos caro doutor, como pretendeis que um homem de cincia trabalhe nessas condies? So preocupaes inteis ao funcionamento do crebro, aceitveis, quando muito, para homens sem o que fazer ou que se interessam pelas couves e beterrabas. Quanto mais servos, mais aborrecimentos cotidianos. Lembrai o provrbio: A quem terra tem, guerra vem, e eu no aprecio a guerra.. A tranqilidade e a independncia do esprito so os primeiros dos bens. Onde encontrareis independncia com riquezas? Nelas vejo apenas escravido disfarada. No se almoa, nem se janta duas vezes. Ento, para que servem? Achareis esses medocres detalhes insignificantes, mas a vida se compe de detalhes, tal qual a hora se compe de minutos. Que direi agora da vida real e fatal do homem e da mulher da sociedade? Fortuna obriga! As relaes, as visitas, os jantares, as reunies noturnas, a correspondncia epistolar, eis em que mincias a minha vida se escoaria! E' preciso tambm dar recepes. Onde encontrar, fora da, tempo para trabalhar? E no falo das intrigas mundanas, nem das vaidades, das questes de amor-prprio, das ambies que se sucedem. E' preciso ter um lugar no que se denomina mundo, ser pelo menos de uma das cinco Academias do Instituto; conceder um ou dois dias, seno trs, por semana, s exigncias das glorias fazer parte de grupinhos, perderem, em uma palavra, a independncia. No esqueamos tambm que convencional o caar e matar pequenos animais inofensivos, Em resumo, o homem e a mulher do mundo dissipam sua vida, perdem seu tempo. Pois bem, nada me parece mais estpido que o tempo perdido. A vida curta. Passemo-la seguindo os nossas gostos, o bem menor; gozemo-la cada um segundo as suas faculdades; mas no a desperdicemos em ninharias: Porque buscar cuidados? A independncia, eis o maior bem. Que se consagrem ao trabalho queles que o amam: ser isso a maior vantagem para a Humanidade. Deixemos os prazeres do mundo, os seus
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atrativos dourados ou prateados de todo o gnero, aos desocupados e aos intrigantes. Recorde a histria de Smilis, corteso de Trajano: aps ter deixado a Corte e abandonada todos os empregos para viver tranquilamente no campo, fez gravar estas palavras em sua tumba: Habitei na Terra 76 anos, e s vivi sete. Viver com a Natureza fruir o Universo inteiro, sem tormentos, sem dios, sem rivalidades, sem guerras, sem desgostos, na felicidade completa, principalmente quando essa vida intelectual e estamos rodeados das mais belas produes do esprito humano, da Cincia e da Filosofia. Por conseguinte, para que procurar a fortuna, quando se vive to pouco tempo, quando se morre to fcilmente? - Contudo, nem sempre a fortuna um embarao. Pode-se ter um administrador, e no cuidar de nada. - Um administrador que vos substitua e trinque a fortuna, impondo em tudo as suas idias e as suas preferncias. Ento ser com ele o maior trabalho e se perder a mor parte do tempo com ele. Se quiserdes aproveitar fortuna, no podeis deixar de vos ocupar com ela. Ambos ficais unidos. - Aos vossos argumentos no falta lgica. Nunca encontrei um carter igual ao vosso. Preferis a pobreza riqueza? - No. Nem pobreza, nem riqueza. Nem misria, nem opulncia. A simplicidade. Nada de intil. A felicidade que a mo no alcana quimrica. Estando certo de ganhar honestamente a minha vida, de ter o necessrio para a minha fome e minha sede, de estar ao abrigo do Sol, do frio e das intempries, de estar convenientemente vestido, nada mais desejo sacrificar vida material; no quero que ela invada, na mnima coisa, a minha vida intelectual, que coloco muito acima; cuido de guardar minha liberdade. - Ento, no ama a senhorita Estela. Pelo menos no lhe quereis sacrificar a vossa independncia? - Ao contrrio, principalmente por ela que falo assim. Com a sua fortuna, os seus hbitos, educao e gostos, ela seria muito infeliz vindo para a minha situao. Imaginai-a morando neste deserto! - Ainda uma palavra, meu caro astrnomo. Consagrais a vida ao estudo das maravilhas do cu. No gostareis de possuir um telescpio superior, um observatrio melhor provido, um preparador que vos evitasse pesadas tarefas e vos ajudasse nos clculos, e at mesmo um observador que trabalhasse convosco, que pudesse fazer descobertas e trouxesse Cincia resultados teis? - Meu caro doutor, eu poderia, se achasse til, ganhar duas, trs, quatro ou talvez dez vezes mais dinheiro; para tal seria suficiente atender aos pedidos de jornais que desejam publicar artigos meus, ou escrever obras para o grande

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pblico. Deixo aos comerciantes os prazeres pecunirios que tanto lhes interessam. - Se algum admirador da Cincia vos trouxesse cem mil francos, recusareis? - No. Eu os consagraria com felicidade Cincia. Mas, tornar-me o que chamais rico, desposar uma jovem com dote, mudar de vida, jamais! O homem deve ter a altivez de no se deixar comprar por uma esposa; deve ganhar a vida para a sua mulher e seus filhos, deve ser o senhor. Quando me lembro de que h em Paris homens que pagam os alugueres, sua carruagem, seus prazeres, com o dinheiro da esposa, fica simplesmente revoltada. Encontrareis mulheres que trazem bolsa sempre, tanto para acudir ao marido quanto ao amante. Os casamentos modernos valem por certas unies livres - o que h de mais imoral no mundo. So feiras, e muitas vezes s avessas. - Est bem. Admito. H em tudo isso um sentimento aceitvel: uma forma de altivez igual outra qualquer, afinal. Mas, se estais convencido de que a fortuna pode prejudicar a tranqila felicidade de um ser puramente intelectual, podeis desposar a senhorita Estela, sem dote. Nada mais simples do que recusar um dote. - Recusar o dote? E ela? No se trata unicamente de mim. No quero riqueza; o meu ponto de vista. Porm, com que direito eu a privaria da que lhe pertence? Com que direito lhe suprimiria o bem-estar da sua vida costumeira? Isso sim, seria um belo egosmo! Seria precipit-la no desconhecido, preparar a sua desgraa! E, depois, sua educao; seus hbitos de elegncia, as suas necessidades de luxo, as suas idias, os seus preconceitos, que sei eu? Nunca pensei em casar. A histria da Cincia nos oferece exemplos que se podem tomar por modelos. Newton e Pascal jamais tiveram mulheres na sua vida. Para o homem de cincia necessrio um tipo de mulher criada expressamente para ele. Um sbio, um filsofo, um pensador que tivesse para companheira mulher que No o compreendesse, no partilhando inteiramente da sua vida intelectual, seria mais desditoso, mais miservel, mais deserdado que um gal. Ora, a mulher intelectual um pssaro raro. - Parece, contudo, que encontrastes exatamente esse pssaro raro. Ela renunciou a todas as suas crenas pelas vossas. Ama a Cincia, tem um verdadeiro culto pela Astronomia... E por vs. - Falo, compreendei-me bem, da sua educao mundana. Ela no poderia ser feliz aqui, renunciando a tudo quanto constituiu para ela o encanto da existncia. A minha vida no a dela. Seria o mesmo que unir um habitante de Mercrio com outro de Netuno. O mundo lhe necessrio. Eu sou um

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selvagem, um brbaro. Pobre flor! Consentir que a transplantasse para a areia do deserto seria conden-la morte. No sou assassino. - Meu caro Dargilan, sois de uma exagerao fantstica. Porque o homem e a mulher que se amam no podem ser bem dessemelhantes? Sabeis, em verdade, que eles o so sempre. O homem e a mulher so dois seres muito diferentes, tanto pelo esprito quanto pelo corpo, e a est uma condio de felicidade. Completam-se um ao outro. O crebro masculino e o crebro feminino absolutamente no funcionam de igual maneira. - Por favor, no faleis de sexo cerebral no caso. Vs outros, os mdicos, sois abominvelmente incisivas. - Obrigado por eles. - No h de qu; mas vejamos que pretendeis com os crebros sexuados. - Est bem. Lamento contradizer um sbio do vosso quilate; porm, o homem e a mulher absolutamente no pensam de idntica maneira. A mulher no tem lgica. E' toda sentimento. Raciocine, pois, com o sentimento! Vo dizer-lha que dois e dois so quatro? Ela No acreditar; em que lhe importa que dois e dois sejam quatro? Seus nervos nisso no tm interesse. Ela sente, e tudo. Sabe que, em amor, um e um so um, ou trs, nunca dois. Vau mais longe. Acreditais seja pelo crebro que as mulheres sentem? Estudastes anatomia? Pois bem, vou explicar por onde sentem e em que diferem absolutamente de ns outros. - No, meu caro doutor, intil. Estais saindo da questo. Eu vos digo que um negro no desposa uma sueca. - Sempre o exagero. Considerai-vos um negro? - Sim. Ela branca; eu sou moreno. Ela formosa; eu sou feio. Ela no atingiu quatro lustros de idade; eu conto seis. Ela flor; eu sou urso. Ela alegre; eu sou a tristeza. Ela luz; eu sou noite. - Mas, diabos levem! Ela no vos ama tal qual sois? - No, impossvel. Se ela o cr, ela se engana a si prpria. Que eu a ame, eu, que a adore, que por ela esteja louco, muito natural; que eu morra por ela, ainda possvel. Porm, amar-me, ela! Que erro! A ave do paraso pode amar a priso? Ela o meu sonho de amor, permanecer o anjo do meu cu. - Portanto, uma jovem pura, adorvel. O senhor vai agir igual a tantos outros: deixar passar a felicidade sem a deter. - No quero causar a sua infelicidade. - Ento, est entendido. Jamais consentireis unir vossas duas existncias? - Jamais! Amo-a muito, para que tal admita! - E tudo quanto desejava saber. Adeus! E o doutor, levantando-se, foi em direo porta.
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- Que ides fazer? - Dar a vossa resposta senhorita d'Ossian, pas recebi as suas confidncias. Eu j vos disse: ela est no leito, bastante adoentada. - E da? - E da... No a vereis mais. Herica abnegao Na manh seguinte da conversao precedente, o Conde e a Condessa de Noirmoutiers decidiram muita bruscamente a volta imediata a Paris. Fatigada, enervada, doente, Estela no abandonara seu aposento havia mais de uma semana. O doutor afirmou, porm, que ela poderia suportar a viagem, acrescentando que o derivativo resultante da mudana de ares talvez lhe fosse at favorvel. Aconselhou fazer-se um desvio de itinerrio at Rayan, mas Estela recusou isso, formalmente. A partida foi marcada para a manh seguinte. Ela s pensava nele. Ele s pensava nela. Sim, seus fluidos, e assim suas almas, estavam associados, e da em diante viveriam ambos da mesma atmosfera. O astrnomo sonhava s com a sua Estrela, e a Estrela brilhava apenas para o astrnomo. O amor serem dois, formando um. Dargilan sentia que uma juventude sem amor semelhante manh sele Sol. Embora no houvesse retribudo o beijo que lhe dera, ela o recebera deliciosamente; estavam ligados para sempre; ela absorvida nele, ele absorvido nela. Todavia, seu esprito cientfico de astrnomo havia perdido a faculdade de trabalho, que, at ento, constituis toda a sua vida. Sentia-se muito infeliz. Tentou, apesar disso, retomar os estudos sobre Saturno. Essas ltimas noites de Setembro estavam to belas! Ensaiou; mas, seus pensamentos, distrados, abriram asas e voaram para longe. Na noite da deciso tomada no Castelo para o regresso, a viva luz do luar em plenilnio impedia qualquer observao telescpica, e o contemplador, debruado balaustrada do terrao, pensava na bem-amada, enxergando s a ela. O agreste perfume das campinas vizinho, recentemente ceifado, impregnava a atmosfera, deslizando qual um sopro embalsamado. A paisagem era silenciosa e solitria. Se ela viesse aqui, nesta noite to maravilhosa, dizia de si para si, quanto eu seria feliz! E teve a idia de atrai-la, apenas pela fora psquica, da qual fizera tantos estudos na primeira obra lida por Estela. Voltou-se para a direo do Castelo, e estendeu os braos.

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Vem! Vibrou ele em fervente amor, vem, minha bem-amada! Unamo-nos por um instante em face deste belo cu. Amo-te, quero-te, no posso viver sem ti. Vem para junto de mim; quero sentir-te, respirar-te, a ss, a ss nesta solitude! Estela, depois de feitos os preparativos da viagem, deitara-se e adormecera. Levantou-se, vestiu-se, envolveu-se em um mant, desceu a escada, abriu uma porta e saiu no parque. Seu ser estava como que mergulhado numa espcie de estado sonamblico. Galgou lentamente a senda que conduzia pequena porta de comunicao com a montanha. Dargilan a viu chegar pelo ptio do jardim, ouviu quando subiu a escada, e esperou. Seu corao pulsava violentamente. Estela apareceu diante dele, branca e pura, qual viso celeste, e parou. Seus olhos estavam abertos, e ele sabia que o sono normal cedera lugar ao sono hipntico. Tinha diante de si uma criatura que teria obedecido cegamente a todas as suas ordens; porm, de forma alguma queria um autmato. Ento, sem toc-la, e colocando unicamente um brao por detrs do busto, com receio de uma queda, soprou fortemente sobre a sua fronte e a tomou logo nos braos estupefata por se encontrar ali, Estela procurou a princpio, inutilmente, recordar-se da causa que ali a conduzira. Sendo todas as coisas que via em torno de si j familiar, no sentiu espanto algum ao reconhec-las. Dargilan, que a sustentava nos braos, cobriu-a de beijos. Estela no estava inteiramente acordada; permanecia em um desses estados superficiais de hipnose que parecem meio-sonho. - Chamastes-me, disse ela, e eu vos ouvi. Adormecera naquele momento. Creio lembrar-me de ter sentido um violento choque eltrico, igual ao de certas ocasies em que me olhais fixamente. Mas, como vim? - No posso viver sem a minha Estrela. o anjo do meu cu. Nunca fui to feliz quanto neste momento. Oh! Fiquemos juntos! A Lua silenciosa iluminava a paisagem adormecida os seus ps. Seus olhares se elevavam alternativamente da Terra para as estrelas, e juntos percorriam a vasta imensido. A Criao parecia um sonho divino desvendado s para eles. Assim permaneceu muito tempo, to prximos um do outro que de longe apenas uma sombra seria visvel, falando pouco, quase silenciosos. A eloqncia do amor no se apregoa, murmura-se. Em amor, quanto mais baixo se fala, melhor se ouve. A boca Permanece no silencio para ouvir-se falar o corao. E o poeta diz a verdade. Eram seus coraes que falavam, e essa doce e misteriosa linguagem, esse pensamento em comum perante o cu imenso, naquela noite de Vero to calma e to suave, era uma volpia infinita. Seu
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amor assemelhava-se a um perfume puro, elevando qual a flor de lia ao cimo da montanha solitria. De repente, deslizou ao longe uma estrela errante, parecendo cair sobre o castelo. - Fiz o meu pedido... Disse Estela. Subitamente o astrnomo pousou dois dedos sobre os amados lbios. - Ai de mim! Suspirou, sou o mais infeliz dos homens! - No reis to felizes h pouco? - O mais feliz dos homens por vos conhecer e por vos amar... O mais infeliz por no ser digno de vs e ter de vos renunciar. - Que dizeis...?! - Silncio! O amor a maior contradio social do nosso msero planeta. No me estais destinada! Apertou-a amorosamente contra o peito. - Estou louco, prosseguiu; eu quero e no quero; eu vos amo muito! Sentimento divino e diablico! O Cu e o Inferno se combatem em mim. No posso viver sem o meu amor, nem viver com ele. Estela sois bela e pura. Vossa presena aqui, h esta hora, veio consagrar minha vida de anacoreta. Um anjo me apareceu. Sereis eternamente para mim um anjo descido dos cus e a vossa aurola planar sempre aqui qual celeste luz. Doravante inspirareis todos os meus pensamentos. Mas, Estela, meu amor, que tendes? - Reconduzem-me, amanh, a Paris, disse. Desejaria ficar aqui. Meus parentes so cruis. - Amanh! Declarou o astrnomo com voz estrangulada. - Amanh, pela manh, dentro de algumas horas! - No te levaro! Vais ficar. Guardo-te, acrescentou apertando-a perdidamente em seus braos. Mas, de repente, irresistvel sensao s apoderou de todo o seu ser; desprendeu-se do contacto desse jovem corpo tpido e perfumado. - Eu te amo; eu te amo para sempre'. E de novo uniu longamente os lbios a.os dela. Estela correspondeu ao beijo e o envolveram nos seus amorosos braos. - Tambm eu, tambm eu te amo h muito tempo. Rafael estava, nesse momento, agitado pelo mais violento emoo, oscilando qual um navio ao mais forte temporal. Duas determinaes inteiramente opostas o dominavam com alternativas. Por fim, uma transfigurao, que parecia vir do cu, acalmou de repente o seu tormento. O rosto da eleita do seu corao, daquela divina companheira, estava reclinado em seu peito, oculto pela penumbra, enquanto o seu ficara iluminado em cheio pela alva claridade lunar.
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- Pousa as tuas mos nas minhas, disse Dargilan, e olha-me. Apenas recebeu a fora do olhar e da vontade que lhe eram dirigidos, Estela recaiu em sono hipntico. As lgrimas pararam em suas plpebras, parecendo presas aos longas e negros clios. - Vai! Disse, volta ao teu aposento e repousa em uma poltrona. Quando o relgio bater meia-noite, acorda. S ento irs para o teu leito. Vai'. A bela esttua retomou o caminho e cumpriu pontualmente as ordens do mestre. Acordou, com efeito, to logo soou meia-noite, e acreditou ter sido joguete de um sonho. Luar intenso iluminava o aposento. Reviu, em viso confusa e perturbada, a cena que se passara, e durante a qual no estivera, de todo, desprendida do estado de hipnose. Mas, qual se obedecesse a um dado impulso, voltou automticamente ao leito e dormiu o sono normal. Vendo-a partir, descer lentamente, qual sombra alva, o caminho da montanha, o Solitrio sentiu, por sua vez, que lgrimas lhe subiam aos olhos e escureciam a vista. E' preciso ser forte! Disse, falando a si mesmo. Meu santurio est abenoado pela sua presena. A felicidade dominar a dor. Ela me ama'. Estaremos unidos em Deus. Cu, eterno e infinito, eu te tomo por testemunha do meu amor! Depois, um instante decorrido, esteve a ponto de precipitar-se no seu encalo e reconduzi-la ao terrao. No! Disse. A verdade deve ser pura! E acrescentou, elevando os olhos para a estrela da Lira: Talvez seja inacessvel! Algumas horas mais tarde o trem de Paris conduzia os trs turistas dos Pirineus. Chegando Rua Vaneau, Estela ficou enferma e no pde abandonar o leito. Ad augusta per angusta Doena de langor apoderou-se do corpo enfraquecido da pobre Estela. O amor lhe pareceu o nico interesse srio, o nico bem da vida. Sentira a luz e via a noite recomear. O mdico no pde fazer diagnstico algum, e procurou impedi-la de permanecer no leito, e fortific-la um pouco, receitando certas iguarias capazes de despertar o apetite adormecido. Nada lhe agradava. Tudo lhe era pesado e fatigante. Flor definhada e descolorida estavam em fraqueza extrema; tomara horror a todos os prazeres mundanos, no saa do seu aposento, recebendo apenas algumas das suas melhores amigas, e at cessou toda confidncia com a querida Ceclia. Entretanto, esta amiga muito devotada, e que a queria com sincera afeio, continuou a visit-la assiduamente, procurando desviar pra outros
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rumos o curso das idias constantes. Porm, no tardou a reconhecer que todos os esforos eram inteis. Acreditou ento dever atacar diretamente e com todas as armas aquela paixo, para ela inexplicvel, absurda e funesta. As discusses tornaram-se freqentes. Um dia, deduziu, ao ouvir certas palavras, que Estela ia fugir ao encontro dele talvez. Teve uma crise de nervos que terminou em lgrimas, mas a clera explodiu novamente em seus olhos. - No te compreendo, continuou Ceclia. H razo para que digam que as moas so loucas. Escolher esse selvagem! Como queres que te aprovem? Tu, a quem basta levantar o dedo para ser duquesa ou marquesa, rainha do mundo mais elegante? - Tu jamais amaste. - Sim! O amor cego, todos o sabem. Porm, em ti mais do que cegueira. E' uma tolice que far de ti a mais infeliz das mulheres e da qual te arrependers por toda a tua vida. Tu! Preferir a misria riqueza? - E que mais? - Sim, a misria. No tenhas dvida. Sem criados, pois afinal de contas esse velho jardineiro e sua mulher ou nada quase a mesma coisa. No vais cozinhar com essas mos! - E porque no? - Lavar loua, engraxar seu calado! - Maria Madalena no enxugou os ps do Cristo com a sua cabeleira, e o prprio Jesus no lavou os ps aos seus apstolos? - Ests completamente louca. E pensas que ele te amar com mos avermelhadas e encardidas? E depois cairs doente, fatigar-te-s, esgotar-tes, ficars feia, morrers. Oh! Meu Deus! Vamos, minha Estela, eu te suplico, ainda tempo, raciocina, reflete, o caso srio, a tua vida! E' a tua morte, talvez. Estela vejo mais longe do que tu. Quanto eu te lamento! Tomou-a em seus braos, soluando. - Ele ou o.convento, replicou. A verdade ou coisa nenhuma. - O convento! Exclamou Ceclia, Carmelita! Pois bem, irei contigo. Essas discusses entre as duas amigas se tornaram freqentes, sem produzir mudana alguma no estado de alma de Estela. Durante os dois primeiros meses, escreveu algumas vezes ao Dr. Bernard, a pretexto de consulta, porm, em verdade, na esperana de ouvir o eco longnquo de uma voz amada. No recebeu dele nenhuma palavra escrita; apenas, dois dias aps seu retorno Capital, uma rosa e um pensamento ligados. O Outono chegara, trazendo seus dias cinzentos para o cu de Paris, e a tristeza do adeus do Sol. Uma carta lhe trouxe a noticia de que o Solitrio estivera doente, de que se achava em convalescena, de que se insulara mais

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do que nunca em seus estudos e de que preparava um livro sobre o amor no alm da vida. Podemos ensaiar a sondagem desse abismo vivo que se chama - o corao humano, e jamais encontraremos nele uma alegria ou dor iguais s que pode causar o sentimento do amor. Bem depressa os parentes de Estela julgaram compreender que ela estava decidida a tomar o vu de freira. A jovem sentia que para amar a vida era preciso partilh-la com outrem; e teria achado a morte menos assustadora do que o eterno deserto do corao. s vezes comparava o mundo ao Oceano, dizia que a gua das suas ondas eram amargas e agitadas, porm essa mesma gua se tornava pura e doce elevando-se para o cu na evaporao solar. Desejaria evaporar-se no espao. Dargilan, por seu lado, tivera todas as foras abatidas pelas emoes e lutas da conscincia, e tambm fora obrigado a recolher-se ao leito por vrias semanas, agitado por febre violenta. Ficara em estado de torpor inconsciente. Depois, gradualmente, os trabalhos intelectuais e as rduas pesquisas cientficas absorveram seus pensamentos durante uma parte do dia. Nas noites lmpidas, observaes astronmicas urgentes ocupavam-lhe vrias horas. Encontrava o quase esquecimento. Em face daquelas grandezas sublimes, o corao se acalmava. Por volta de meia-noite, quando regressava ao quarto de dormir, esquecia os trabalhos, folheava livros ou revistas, e se deitava para dormir; mas, ento, cada noite, inevitvelmente, o sono se recusava a vir e a imagem adorada de Estela, evocada pela sua ardente paixo, surgia ante ele, circundada por uma dourada aurola. Conheceu as longas e cruis insnias, a obsesso das idias fixas que lhe atenazavam o crebro, os desesperos, os abismos do corao, dos quais no se vem o fundo, a tortura das angstias morais, as tristezas amargas da alma desorientada. Noite e dia, seu pensamento ia desvanecer-se no vcuo. Quando a fadiga quebrava seus nervos e lhe trazia um pouco de sono, ento a alma se desprendia, voava, ia visitar a bem-amada. Aconteceu, em meio do Inverno, que todas as noites, quando uma hora da madrugada, precedidas dos quatro quartos de aviso, batia no sino sonoro de um velho relgio de castelo, em um jardim da Rua Vaneau, Estela, quer estivesse adormecida, quer estivesse acordada, via aparecer ao p de seu leito o rosto de Rafael, contemplando-a fixamente. A apario durava alguns segundos. Depois, o semblante amado se desvanecia, qual plida claridade fosforescente. E Estela sentia que era adorada.

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Algumas vezes tambm, durante a noite, um sopro leve a tocava, e ela despertava sob a impresso de um beijo, do qual seus lbios imveis guardavam por muito tempo a esquisita doura. Ela vivia qual num sonho perptuo, s vezes atravessado por deslumbramentos luminosos. O trabalho misterioso de sua carne lhe fazia pressentir uma vida desconhecida, parecendo ao mesmo tempo encantada e inacessvel. Porm, ela se concentrava, - envolvendo-se com o vu das noivas do Alm, guardando-se qual um tesouro em um tmulo. Os banquetes e as reunies do ano anterior tinham retomado o seu curso; mas todas as solicitaes de seus tios resultaram inteis. Soube com satisfao do casamento do Duque de Jumiges, com uma de suas amigas, to rica quanto ela. Cada vez mais encerrada no seu insulamento, dedicou-se leitura das obras do Solitrio, de Pascal, de d'Alembert, Rousseau, Goethe, Shakespeare, Ossian, Lamartine, Musset. Por quais ramificaes ocultas os conventos e estabelecimentos religiosos conseguem estar to exatamente ao corrente das fortunas particulares, dos dotes e das heranas? E' o que o autor desta narrao ignora. Mas, por uma coincidncia notvel, no fizera trs meses ainda que a senhorita d'Ossian manifestasse, a bem raras pessoas, a inteno de abandonar o mundo, e j sua tia comeara a receber a visita de diversos eclesisticos que, sob pretexto de donativos para obras-pias, tinham elogiado, perante a jovem, as vantagens de certas casas religiosas onde acabavam de entrar a filha do General X..., a sobrinha do Ministro Y... Ou a filhinha da Duquesa de Z..., viva, dotada. O Conde e a Condessa de Noirmoutiers no acreditavam ainda nessa determinao. Entretanto, repetidas vezes falara Estela da sua maioridade prxima e se informara do estado de sua fortuna. Soubera que as suas sessenta mil libras de renda representavam um capital de mais de dois milhes. Um dia, dirigiu-se ela prpria ao velho notrio da famlia e lhe exps o desejo de abandonar sua riqueza. - Renunciar! Exclamou o notrio. Que est dizendo, senhorita? - Sim, fazer uma doao. - Para qu? Para quem? Com que fim? - Desejo afastar-me do mundo. A conversao se prolongou sobre o assunto por mais de uma hora de discusso complicada. O excelente homem, pressentindo sob tudo isso algum mistrio, prometeu a si prprio falar com o tio Noirmoutiers e despediu a sua original cliente, assegurando ocupar-se do caso e a necessidade de fazer primeiramente a avaliao exata da fortuna. E, com efeito, poucos dias aps, soube pelo conde a histria dos Pirineus.

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Decidira Estela seriamente encerrar sua vida em um mosteiro? Ouvira falar de alguns, estava at informada dos exerccios com que ali se ocupavam; porm deixava as coisas correrem sem nada resolver, e o ms de Abril, o ms da sua maioridade, chegou sem que ela houvesse tomado deciso alguma. Enquanto isso insensivelmente, sua vontade se fixara de modo irrevogvel. Resolvera ser pobre e, aps muitas discusses, deu ordem ao seu notrio para vender todas as suas aplices e distribuir o produto conforme o julgamento e as luzes dele prprio. O homem da Lei e o tutor tiveram ento freqentes entendimentos para a execuo dessa estranha vontade. Decidiram vender os ttulos de renda, de acordo com as intenes formais da jovem, qual mostrariam as contas de venda; mas, imediatamente, comprarem outros, ao portador, e deposit-los no Banco de Frana em nome do Conde de Noirmoutiers, do qual era Estela a herdeira nica. Conforme o modo de pensar desses dois homens, a fortuna ficaria disposio de Estela em dia prximo, quando o que chamavam sua loucura cedesse lugar ao regresso da razo. Porm, deix-la-iam na persuaso de que as suas intenes tinham sido fielmente executadas, e at lhe indicariam o emprego e a distribuio das importncias. - E' igual, disse o conde, e eu preciso confessar que o amor o que h no mundo de mais desarrazoado e mais louco. - Se fosse razovel, no seria amor, replicou o velho notrio. Mas isso passar. Tudo passa. - No tem observado, acrescentou o conde, que, em geral, as mulheres no raciocinam? - Jamais igual a ns outros, em todos os casos. Mas provvel que elas julguem raciocinar, e o fazem sua maneira. No me refiro s enamoradas. Nessa hiptese, elas nem sonham em raciocinar. - E os enamorados, ento? - Caluda! J se escoaram mais de seis lustros... E, demais, os homens tm desculpas: as mulheres so to belas! - Basta! Basta! Senhor notrio. Seis longos meses tinham decorrido. Os parentes e as ltimas amigas de Estela esperavam a cada dia receber a sua deciso, sobre a escolha do convento. Falava-se de Lourdes e de Pau. Estela observou que, desde o dia em que sua fortuna deixou de lhe pertencer, os padres cessaram as visitas. Na sua solido dos Pirineus, Dargilan, por sua vez, cara em negra melancolia. Foi a muito custo que, no decorrer do Inverno, chegou a escrever algumas cartas aos grandes espritos com os quais mantinha correspondncia. Dirigira duas a Victor Hugo. Sem dvida exprimiu, sem de tal aperceber-se, um estado de alma bem perturbada, pois a resposta do poeta (uma das ltimas
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cartas que escrevera meses antes da sua morte) terminava por esta divisa dos conjurados do Ernani. Ad Augusta per Augusta. Victor Hugo Felicidade suprema Em uma noite de princpios de Maio, Dargilan observava em sua luneta um magnfico conjunto de estrelas situado na constelao de Hrcules, e, em meio ao silncio absoluto da noite, estava ocupado em escutar e contar as pancadas do pndulo para determinar a distncia desse conjunto a uma estrela vizinha, que brilhava um pouco a Leste, quando um leve rudo, semelhante ao roar de seda, feriu o seu ouvido atento, e, voltando-se para o lado de onde parecia vir o frufru, percebeu a figura de Estela a alguns passos dele. Aproximava-se lentamente, como se deslizasse sobre o solo. Sua alvura assemelhava-se de ligeira nuvem semitransparente, iluminada pela Lua; o semblante, porm, no era to alvo e parecia levemente rosado. Os olhos eram difceis de reconhecer, mas olhavam de frente, e, quando a figura passou diante dele, o astrnomo viu bem que a cabea se voltava e os olhos continuavam a contempl-lo. Sentiu na fronte algo parecido ao sopro vivo do beijo de um anjo, e viu a apario desvanecer-se, dissolvendo-se: em breve restava apenas uma leve claridade no lugar do corao e essa claridade suavemente se elevou no cu pela abertura existente na cpula. Rafael teve medo. Julgou que a apario anunciava a morte de Estela, e, abandonando o seu escabelo de observao, foi soluar na poltrona. Sua natureza muito impressionvel, desde tanto tempo superexcitada por uma srie de agitaes violentas, confundira o duplo de um vivo com um fantasma de morto, embora conhecesse exatamente as diferenas to caractersticas que distinguem essas duas ordens de apario. O copo astral tem, com efeito, nesses dois estados opostos, aspectos bem dessemelhantes. Abandonando-se ao desespero, no duvidou de uma catstrofe, e, quando a noite cedeu lugar aurora, o Sol o encontrou abismado em dor e desolao. Incapaz de realizar qualquer trabalho recolheu-se, depois do meio-dia, biblioteca, onde comeou a folhear alguns velhos livros. Sua mo pegou, entre outras, uma obra do sculo XVII, encadernada em pergaminho, que trazia por ttulo: Os Emblemas do amor divino e humano reunidos, publicada em Paris, em 1631, com privilegio dos doutores de Teologia, trazendo em cada pgina uma linda figura em talho-doce, representando todos os sentimentos do amor sob imagens religiosas, sendo cada figura comentada por uma pequena
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composio de doze versos. Olharam maquinalmente essas ingnuas gravuras. De repente, entre duas folhas, percebeu uma pequena flor fanada. Lembrou-se de que, por ocasio da penltima visita de Estela, quando, num arrebatamento, lhe dera o beijo que decidira do seu destino, ela apanhara um livro da estante em frente. Sim, aquela flor era a da sua Estrela, no podia ser outra. E beijou ternamente a flor, sem poder desprend-la dos lbios. Era dela a pequenina flor. Ela a tocara e a colocara ali, e nela o seu pensamento ficara. Pobre Estela, to ternamente, to apaixonadamente ficara! Onde estaria? Que seria feito dela? Sim, ela tambm o amava. Mas, depois de tantos meses, sabendo que ele no queria, no podia despos-la, no se teria ela decidido pelo duque, ou qualquer outro partido ao agrado da famlia? Era um absurdo o que ele fizera! Ela lhe pertencia, e lhe dera sua alma, seu corao, seu amor. Porque no tomara posse desse todo? Que estranhos escrpulos, para ele, o Solitrio, o desdenhoso de todas as convenes mundanas, o apstolo do absoluto. E fora por excesso de amor que a respeitara! E no tornara a cham-la! E a perdera! Que loucura! Rev-la-ia ainda? E para que rev-la, se no poderia mais ser sua companheira no caminho da vida, pois que estava condenado a uma solido eterna? Rev-la, correr a Paris, chegar Rua Vaneau, procurar a silhueta da sua sombra na janela, espreitar sua sada, segui-la, apresentar-se de chofre diante dela... No; ela nunca mais lhe escrevera. Esquecera-o. E, depois, aquela apario'. Talvez estivesse morta ou agonizante!... E a frase, que tantas vezes repetira para justificar sua conduta, voltava-lhe outra vez aos lbios: Ela cr que me ama, a encantadora parisiense; imagina poder partilhar da minha vida de trabalho e o meu deserto; ilude-se; teria sido sua infelicidade. Agi bem! Agi muito bem! Sentado na velha poltrona, a cabea apoiada na mo, meditava, sonhava, lastimava tudo, o passado, o presente, o abandono do futuro, e as lgrimas obscureciam os seus olhos quase desmesuradamente abertos. Mas, eis que um leve rudo se faz ouvir outra vez, semelhante ao da noite anterior. - Estela! - Rafael! Lanaram-se aos braos um do outro; cobriram-se de beijos. - Estela! Es tu, s tu, sim, tu! No ests morta? - Morta? No, afiano-te, e no tenho desejo algum de morrer. - Mas, porque ests por aqui? - Venho de Luchon... Ou melhor, de Paris. - Como? - S. - S?

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- Sim. Quero viver a tua vida. O cu contigo, para sempre. O esquecimento do mundo, das suas vaidades, das suas mentiras. Sou digna de ti. Sou pobre, enfim... Abandonei a minha fortuna. Minha primeira educao est apagada. Cabe-te refaz-la tua imagem. Venho a ti, tua cincia, ao teu cu o meu senhor, o meu deus, o meu tudo. O resto no existe mais. Rafael, eu te amo! E novamente se lanou ao seu pescoo, deixando sua arrebatadora cabecinha abandonada sobre o robusto peito do sbio. - Minha Estela bem-amada. E' possvel! No posso acreditar na imensido da minha felicidade. Tu, para sempre comigo! Oh, vem! Mas, toma cuidado! Meu amor te devorar. E lhe cobriu de beijos a fronte, os olhos, as faces, os lbios. Ali estavam, unidos nos braos um do outro, famintos de amor, embriagados por uma alegria fantstica, brios de uma embriaguez infinita, transportados s regies transcendentes de onde o Universo se torna invisvel para o ser, que perde a faculdade de enxergar permanecendo absorvido na sua prpria felicidade. Certamente, naquele momento, nada, fora deles, existia para os seus pensamentos. Estreitamente enlaados, seus lbios no se desprenderam, e Estela se abandonara, apaixonadamente aniquilada, no seu amor. Mas a exaltao das emoes ultrapassou suas foras fsicas, e Rafael sentiu o peso de seu belo corpo aumentar em seus braos. A cabea reclinara e os olhos estavam fechados. No falava mais. Ele a susteve com vigor, impedindo-a de cair, e, delicadamente, com mil precaues, levou-a para seu aposento, depondo-a sobre o leito. Estela no despertou! Inquieto e agitado procurou as causas daquela sncope, pensou em pedir o auxlio dos dois velhos jardineiros; porm, antes, abriu as janelas de par em par, a fim de que penetrasse no aposento o ar balsmico do bosque. Mas o sopro daqueles lbios adorados apenas era sensvel e as mos comeavam a ficar frias. Pensou, ento, que talvez ela estivesse comprimida em suas vestes, e, com as mos inbeis e febris, desabotoou o corpete, desapertou a cintura, num meio - despir. Receando ento que ela se resfriasse, tornou a fechar as janelas. A bela criana continuava adormecida. Sua cabeleira magnfica se desenrolara e estendera pelo travesseiro, qual aurola de seda. Dargilan conseguiu, enfim, aps algumas tentativas infrutferas, retirar a terrvel couraa com que a maioria das mulheres, sob o nome de espartilho, deformava o talhe havia sculos. Somente ento o peito da desmaiada se encheu de ar, e, com um suspiro, despertou e abriu os olhos.

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Que suplcio fora aquele estado para Rafael! Mas tambm, doce compensao, que tentativa deliciosa, que riqueza de revelaes, quantos tesouros descobertos! Ele, que nunca vira mais do que gravuras ou esttuas! Aquelas formas primorosas, aquela brancura Lctea, toda uma atmosfera de voluptuosidade mergulhavam-no em um xtase embriagador e apaixonado. Aquela deslumbrante criatura lhe aparecia mais bela do que todas as estrelas do cu. Parecia-lhe estar ali o que Deus havia formado de mais esplndido e mais admirvel. A viso do Infinito nos cus brilhou ante seu esprito maravilhado, e seu amor por Estela lhe pareceu mais imenso que o Infinito. E porque ela tivesse aberto os olhos e lhe sorrisse mais tranqilo a respeito do seu estado, abraou-a ternamente. Estava quase inteiramente despida. Ento Rafael ficou a contempl-la, ador-la na sua esplndida beleza. Anjos do Paraso! Nunca assististes em redor do trono do Altssimo a uma adorao mais embriagadora do que a primeira contemplao da Mulher por este amante ofuscado. Talvez em outras esferas haja Deus criado ser mais perfeitos; porm, em todas as suas viagens imaginrias, de estrelas em estrelas, e em todos os seus sonhos de populaes extraterrestres, jamais o astrnomo imaginara algo semelhante. Ajoelhara-se ante o leito, bem a adorar a sua divindade querida; tomaralhe a mo para nela apoiar os lbios ferventes, e depois os beijos subiram, acariciando os braos, o colo alabastrino. O amor no apenas o mais ideal dos sentimentos, o maior e o mais sublime. E' tambm a mais deliciosa das sensaes e a mais violenta das paixes. Prova-se o divino nctar, bebe-se na taa encantada, mergulha-se em embriaguez infinita. Os dois amantes conheceram o que jamais haviam divisado, e, esquecidos da Terra obscura, viram-se transportados a uma regio de delcias, onde, banhados de claridades, embriagados de luz, adormeceram no xtase de um sonho encantado. Quando despertaram, a noite era profunda e constelada. Uma linda estrela branca, Vega, da Lira, enviava pela janela, em saudao, seus raios cintilantes. - Repara! Olha, exclamou Estela. E' a minha estrela, bem sabes, aquela que eu escolhi!... - A Lira, replicou, interrompendo-lhe as palavras com beijos. Pois bem! Conheo agora uma lira mais encantadora e mais melodiosa, que bem me far esquecer a de Pitgoras. - Ser que observareis o cu, esta noite, meu astrnomo? - Qual, meu amor? Parece-me agora que existem dois. E o outro est to longe... E to frio!

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Naquela noite, pela primeira vez o Solitrio esqueceu inteiramente as estrelas e a Astronomia. S na manh seguinte tiveram tempo de conversar. Estela contou-lhe suas penas, seus tormentos, suas inquietudes, suas lutas com a famlia, sua determinao inquebrantvel, sua partida de Paris, sua viagem. Amava-o, como acabara de dar prova; mas tambm amava a Cincia, a Natureza, a poesia das coisas, os mistrios da Criao. Oh! Quanto seria feliz compartilhando a sua vida, trabalhando com ele, pensando igual a ele! Hesitara e sofrera durante muito tempo. Sua atrao sobre ela dominara tudo. Hesitaes vs. O esprito procura, mas o corao quem encontra. - No avalias o que sonhei a noite passada, fora de pensar em ti! Pois bem, anteontem, chegada havia algumas horas a Luchon, deito-me por volta das onze, esperando adormecer e repousar (o banho relaxara-me os nervos); tento espancar todas as idias que me passam pela cabea, porm permaneces tu, sempre tu! Por fim, adormeo e, de repente, estou aqui, l em cima, sob a tua cpula, onde fazias tuas observaes. Vi que no pensavas em mim naquele momento. Creio meu querido, que a mulher ama bem melhor do que o homem. Tu me esquecias, estavas inteiramente ocupado com uma observao, sem dvida atraente. Afinal, percebeste a minha presena e te dignaste olharme. Sabes que eu teria muitos cimes da tua Cincia, se no formasse em diante um s ser contigo? Eu te seguirei por toda parte, qual a tua sombra, e ainda mais, mesmo noite. - Mesmo noite? - Mau! No era isso que eu pensava. Sou mais idealista do que tu no meu amor. - Parece-te? - Estou certa. H uma diferena entre ns dois. - Lamentaste? Preferirias ser Rafael? Eu ficaria encantado se fosse Estela: s linda! - No. Permanece o que s meu belo Rafael, sempre, durante um sculo. E continuaram conversando, dizendo-se as mil coisas deliciosas que os amantes gostam de ouvir. Dargilan narrou que a vira realmente, naquela antevspera, mas receara uma catstrofe, o que explicava as primeiras palavras de espanto pronunciadas sua chegada - quando ainda se achava sob a influncia da apario noturna; pensava constantemente na sua querida Estela e a amava bem mais fortemente, mais apaixonada, mais seriamente do que ela poderia faz-lo, pois o homem indubitvelmente sabe amar melhor do que a mulher... - Oh! Isso impossvel. No podes saber como eu te amo, tu no ests no meu corao.
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O dia passou em palavras de amor, em carcias sem fim; o dia e a noite... Pela segunda vez, o astrnomo esqueceu ainda, inteiramente, o cu e as estrelas. E' delicioso amar, principalmente para o sbio, para o poeta. Quanto mais vasta a esfera das contemplaes intelectuais, mais ampla tambm a capacidade de amar. O amor antes de tudo vale quanto lhe tenhamos dado: sua riqueza a da nossa alma. O amor de Rafael por Estela era igual ao que dedicava ao cu imenso. E porque a Cincia era lgida, silenciosa, sem eco, encontrava na sua divina Estela todo o complemento do amor que a Cincia por si mesma no lhe pudera dar. Aos jbilos do seu esprito juntavam-se as emoes do seu corao; aos seus contentamentos intelectuais vinham reunirem-se as delcias de um sentimento de afeio profunda e sem reservas. Sua alma ofuscada, atnita, nunca suspeitara tal intensidade de alegria e felicidade. Parecia-lhe que, s ento, nascia para a vida real, que at ento esperara, sem encontr-la, a verdade por fim possuda. Os primeiros dias daquela vida a dois, to enfeitiante e to nova para o Solitrio, passaram em contnua carcia de suas almas e seus corpos. Diante daquela beleza feminina, ao mesmo tempo casta e perturbadora, quase inatingida por seus sonhos, permanecia em delicioso xtase, que se renovava sem cessar. Toda a juventude, contida por tanto tempo, despertava em chama inextinguvel. Saboreou as inenarrveis delcias de ver e de possuir uma beleza perfeita, entregue a todos os seus desejos. Aquelas formas esbeltas e puras, to harmoniosas, mrmore vivo, que, dos ps cabea, apareciam na sua nobre pureza de linhas, encantavam o seu olhar de artista, tanto quanto sua paixo amorosa. Eram transportes sem fim. A ardente imaginao multiplicava as sensaes. Estela morria e renascia animada, ela tambm, por um ardor encantada, e todo o seu ser, fremente, desfalecia sob os beijos apaixonados. Uma noite, ela pediu a escurido completa da primeira noite para saborear de outra forma, concentrada nessa treva, para aniquilar-se completamente, pensava ela. Exigiu tambm fossem fechadas de todo s janelas. Porm esquecera os efeitos eltricos que, em outros tempos, observara no seu prprio corpo. Isso foi para Rafael uma nova revelao, e, naquela noite, pde fazer estudos que no adivinhara em suas pesquisas cientficas, at ento um pouco bisonhas, sobre a eletricidade humana. Define-se a eternidade pela negao do tempo, no lhe senda aplicvel qualquer medida de durao. Tambm para eles a noo do tempo no existia. Os dias e as noites voavam como horas, ou minutos, instantes inapercebidos. Eternidade em cada beijo! O calendrio foi suprimido. No antes do oitavo ou nono dia, pela manh j bastante avanada, foi que Esteta disse de repente,

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procurando fazer esquecido o langor de seus olhos: Mas, meu amor, pensou ter desposado um astrnomo! Desde a chegada de sua bem-amada, Dargilan perdera inteiramente de vista a sua Cincia, todavia to querida; no se lembrara um s instante dos trabalhos habituais, que at ento haviam sido tarefa exclusiva e assdua de toda a sua vida. A observao de sua companheira despertou-o de um sonho. - Em que dia estamos hoje? Perguntou. Procuraram, calcularam, mas em vo; foi absolutamente impossvel acertar a quantos dias se abraavam. Concluram pelos oito dias, mas o jardineiro, interrogado durante o almoo, asseverou que j eram decorridos dez. S ento o sbio se lembrou da observao astronmica interrompida pela apario noturna de Estela. Uma chuva tempestuosa, que desabara compacta durante mais de hora, limpara a atmosfera, e era de prever um belo cu, perfeitamente ntido, para a noite prxima. Ficou combinada que reiniciariam juntos a observao interrompida, e Estela saltou de alegria idia de ser associada ao estudo das maravilhas siderais, em companhia de seu bem-amado. Abraou-o mais uma vez. - Se continuas a abraar-me, nunca poderei voltar ao trabalho. - Prometo no te tocar mais... A vida de casal noite, o equatorial foi dirigido para um magnfico agrupamento de estrelas da constelao de Hrcules, denominado Messier 92. - Porque esse nome? Interrogou Estela. E' necessrio que me ensines tudo. - Este nome o de um observador modesto que passava as noites em uma torre da comunidade do Palcio de Cluny, em Paris, nas runas das antigas termas de Juliano. Essas construes existem ainda. So venerveis. Messier ficava ali todas as noites em busca de cometas, e, pesquisando cometas, encontrou nebulosas, das quais publicou, em 1783 e 1784, o primeiro catlogo, elevando-se cifra de 103. Olha eis aqui justamente o exemplar do prprio Messier, com as suas anotaes manuscritas. E estendeu a Estela um pequeno livro encadernado em vermelho. - Oh! Que escrito antigo! Exclamou. Emociono-me, ao folhear essas pginas seculares. - Olha o nmero 92.

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- Ei-lo. Est bem visvel: 18 de Maro de 1781. Nebulosa bem ntida e de grande luminosidade, entre o joelho e a perna esquerda de Hrcules. No tem nenhuma estrela. O centro brilhante, rodeado de nebulosidade; assemelha-se ao ncleo de um cometa. Tem, com pouca diferena, a mesma luminosidade e grandeza da que est na cintura de Hrcules, e traz o N.3 do meu catlogo. Sabes o que mais me impressiona nesta descrio? E' o joelho e a perna esquerda de Hrcules. Pode-se ver isso no cu? - Olha tu mesma. Vem ver. -Conduziu-a ao terrao e lhe mostrou a constelao. - Olha! Est perto da minha estrela! - Justamente. Perto da Lira. A coincidncia bastante curiosa. Precisamente nesse rumo tinha eu os olhos quando da tua apario. Vs Hrcules? - Onde? - Observa aquela estrela brilhante, avermelhada: indica o lugar da cabea. Essa estrela se chama Alfa. - Sim, vejo. Ento aquela estrela Alfa de Hrcules? - E tem uma histria, das mais estranhas, por motivo da natureza inteiramente bizarra da sua luz. Narrar-ta-ei mais tarde. Agora, olha ali uma estrela tambm brilhante, porm mais clara: tem o nome da letra grega - Beta e indica o ombro direito de Hrcules. Do outro lado, aquela segunda estrela, sim, aquela, marca o ombro esquerdo e se chama Delta. Aquela terceira assinala a anca direita e se denomina Zeta. Continuando em linha reta, aquela outra corresponde coxa... Enquanto Dargilan lhe mostrava a estrela, Estela Ihe deu prolongado beijo na boca. - Ah! Se no ficas quieta, no continuaremos. Prometeste que no me tocarias. - Eu te reprometo. - Onde estvamos? - Na coxa de Hrcules. Prestei bem ateno. Continua. - Sim, a estrela Eta. Depois a perna se encolhe com aquele alinhamento, de sorte que o homem est de joelhos. Agora, olha ali, depois de Delta; aquele outro alinhamento de estrelas desenha o brao esquerdo, segurando um ramo, enquanto o direito sustenta a maa. Pois bem, com essas estrelas podes traar o esboo de um homem ajoelhado. - Inclinado, com a cabea para baixo? - Precisamente; vejo que o reconheces. No se deve pensar em encontrar nas constelaes pinturas de Rafael, Miguel ngelo ou Rubens. No. So simples agrupamentos de linhas, esboos, como os podem desenhar as crianas, que com dois traos de carvo fazem duas pernas, com outros quatro um corpo, com outros dois os braos, com um crculo a cabea. Eis tudo. Ao
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traar esses croquis, corporificando nesses alinhamentos representaes de seres reais ou fictcios, a imaginao de nossos antepassados povoou esses espaos silenciosos de uma vida extraterrestre, mais ou menos bizarra e fantstica. Viviam muito mais e muito melhor do que ns outros, com a Natureza. A solido das noites, o vento, a tempestade, o raio, a fecundidade da flor ou da mulher, os devaneios do sono, o murmrio do riacho, os frmitos da folhagem, os mananciais sombreados, as quietas fontes - tudo para eles se povoava de uma espcie de vida area, fugitiva e imperceptvel, e at nas profundidades celestes encontraram, inventaram, pressentiram formas mais ou menos extraordinrias. Sim, se observas com ateno, se segues esses alinhamentos, se julgam que neles nada h que as constelaes na realidade no existem, e se pensas que os nossos avs quiseram desenhar no cu figuras quaisquer, para serem assim identificadas, tu encontrars este esboo do corpo de Hrcules ou do Ajoelhado, qual o denominavam os Gregos, da mesma forma que ao lado, na tua querida Lira, adivinhars um instrumento de msica, alongado, do qual Vega indica o brao, o cimo, uma lira, ctara ou harpa, da mesma forma que naquelas estrelas da Coroa, ali, ao outro lado de Hrcules, vs uma coroa formada com grande exatido, e mais distante adivinha um delfim, e um pssaro sustentado por duas asas abertas. Essas denominaes, paralelos e criaes mitolgicas so graciosas e poticas. Os modernos quiseram complet-las, improvisando figuras nos intervalos inocupados pelos antigos, mas foram pouco felizes, pesades, tediosos com as suas invenes canhestras: o atelier do escultor, o fornilho do qumico, o cavalete do pintor, o relgio, a mquina pneumtica, o sextante, o otante e tambm a raposa, o ganso e o gato. Tudo isso artificial se parece ligado por fices. Quanto era bem mais vivo a mitologia pag, com os seus doze signos do zodaco, avanando gravemente ao longo da esfera, com a Virgem conduzindo a Arista, Andrmeda encadeada, Cassope no seu trono, ou o cavalo Pgaso lanado no espao, e o jovem Perseu sustentando na mo a sangrenta cabea de Medusa! Mas, no esqueamos o nosso monto de estrelas de Messier. Vem admirar ao telescpio. - Parece uma pequena nuvem luminosa, disse Estela, uma poeira de pequenas estrelas. Oh! Eu o vejo bem agora. E' prodigioso! - Cada um desses pequenos pontos um sol semelhante ao que nos ilumina. E' uma aglomerao de estrelas, milhares de sis iguais ao nosso. O menor desses pontos luminosos um milho de vezes maior do que a Terra. - E' possvel? Milhares de sis'. Ento esse conjunto deve ocupar um espao imenso. E' muito luminoso no centro. Est longe daqui?
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- Certamente seriam necessrios mais de trs mil sculos num trem expresso para chegar at l. Quanto extenso, um universo. Em comparao, a Terra no passa de um gro de p. - O Espao escuro em torno. E' o fundo do cu? - Fundo do cu? Que queres dizer? - E' verdade. O Espao no tem limites. E essas estrelas que vemos ali, de todos os tamanhos, a diversas distncias do conjunto, esto mais perto de ns ou mais longe? - Mais perto, sem dvida. No vs uma, bastante luminosa, um pouco direita? - No, no vejo bem, respondeu, desviando a cabea da ocular. Dargilan se aproximou para observar no equatorial. Estela se mantinha em p, ao lado dele, e suas cabeas se tocaram. - Tu s preciosa, disse Dargilan, abraando-a pelo pescoo. Eu estava procurando... Mas no, os sabugueiros ainda no floriram. - Meu Rafael! Amo-te! - Querida, meu encanto, queres que te diga o meu pensamento? Pois bem, no h nada mais lindo de que uma bela jovem. - Senhor Astrnomo!... E as estrelas? Naquela primeira noite de trabalho, a observao astronmica, apenas comeada, foi subitamente interrompida. A vida de casal continua A noite seguinte estava to bela quanto da vspera. - E o agrupamento de Hrcules? Disse Estela. Ontem interrompeste subitamente a observao que fazamos. Lamenta. - Realmente? Lamentas muito, muita mesmo? - No queres compreender que adoro a Astronomia. O amor e a Cincia devem caminhar lado a lado. Vou hoje cpula. Quem me amar que me siga! Um instante depois, a magnfica poro de estrelas estava novamente no campo do equatorial. - Dizias-me haver ali uma pequena estrela vizinha, bastante brilhante. Vejo-a. - Pois bem, minha querida, quando teu duplo passou por mim naquela noite, estava ocupado em ouvir os movimentos do pndulo, contando-os, para saber quantos segundos de distncia h entre o conjunto e a estrela. - Com que fim? - Para sab-lo, desde logo, e determinar assim a posio exata do aglomerado; depois, para verificar se nessa distncia houve alterao. - Ento, j foi medida?
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- Sim, e esse um dos encantos da Astronomia. Nossos olhos se encontram hoje sobre pontas celestes em que se detiveram j espritos que veneramos. Assim, Messier observou e descreveu esse conjunto em 18 de Maro de 1781; William Herschel em 15 de Agosto de 1783; Lalande em 25 de Maio de 1795 (no mais aceso perodo das jornadas tumultuosas de Pradial, ano III); Bode j o observara em 1777; um astrnomo poeta, observador exato e preciso ao mesmo tempo, Darrest, mediu com todo o cuidado e minuciosamente e o descreveu em 23 de Outubro de 1863; extasiou-se com o seu esplendor, e, na sua bela linguagem latina, o denominou acervus adspectu jucundissimus. Pois bem, naquele ano, a distncia entre o conjunto e a estrela era de trinta e trs segundos e meio. Se quiseres, vamos medi-la ambos esta noite. - De que modo? - Oh! Muito simples. Basta ouvires os batidos daquele pndulo e contar em voz alta quando eu te disser. - Aquele pndulo? Marca dezessete horas? - E' um pndulo sideral. Ainda aqui, vs que os astrnomos vivem fora do mundo. No temos as horas vulgares. Se quisesses saber a hora, para o pblico, consultando este relgio, terias que fazer um clculo bastante longo. O que vs ali a hora das estrelas, a hora da sua passagem pelo meridiano. - Quanto divertido! Ento no temos mais a hora dos outros! E' tambm o que se me afigura desde h onze dias: parece que aqui cheguei agora mesmo. Nosso corao um pndulo sideral. Ser que todos os astrnomos tm essa hora simultaneamente? - Sim. Quer se observe o cu na Amrica, na frica, sia ou Europa, quela hora a que nos rege. Somos uma sociedade parte. E, como te disse, tal sociedade permanece atravs dos sculos. Foi essa hora que Herschel consultou quando, h mais de um sculo, observou esse mesmo conjunto no cu. Quer observemos da Inglaterra, qual o fez Herschel; da Dinamarca, de igual modo que Darrest; da Alemanha, a exemplo de Bode; de Paris repetio de Messier; dos Pirineus qual o fazemos esta noite, estamos sempre no cu, e no conhecemos e jamais conheceremos as divises de fronteiras... - Viva a Astronomia! Os astrnomos so felizes mortais. Mas, porque no se adota para o pblico essa diviso do dia em vinte quatro horas, em vez de duas vezes doze horas, feito crianas? - Porque seria muito simples, muito lgico, muito razovel. Queres contar as batidas do pndulo? - Sim. Um, dois, trs, quatro... - Espera. Comears no momento exato em que eu disser: top! - Pronto. Estou...
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- Top! - Um, dois, trs, quatro... Trinta e trs trinta e quatro. - Top! - Trinta e quatro e meio. H um segundo mais do que em 1863. Ser necessrio repetir a observao um grande nmero de vezes, para assegurar a exatido. Suponhamos que esta diferena de um segundo esteja certa. No parece nada, um segundo! Pois bem, enorme! Essa diferena nos indica que o conjunto, ou a estrela vizinha, ou ambos talvez, se deslocaram na direo este - oeste. E, com elementos suficientes de clculo, encontraramos sem dvida um movimenta considervel, no somente de cem mil quilmetros por hora, qual a Terra na sua translao anual em torno do Sol, mas de duzentos, trezentos, quatrocentos mil quilmetros por hora, ou mais. A medida em si prpria parece um pouco prosaica. Contar um, dois, trs, quatro no uma operao transcendente. Porm, quantas vezes o resultado interessante quando nos mostra, assim, todos esses sis lanados no espao com uma velocidade vertiginosa! - Mas, pela minha parte, no acho as cifras to fastidiosas como se diz. Resolvi problemas no Internato e aprendi Geometria. At vou estudar logaritmos. - Para isso no, senhorita meu - anjo; oponho-me formalmente. As matemticas no so assunto para mulheres. - J tirano! - Sim, minha querida. Toma da Cincia tudo o que ela tem de agradvel, mas no te tornes muito tcnica, pois emagrecerias. Estou encantado por saber que no tens horror s cifras, porm no sejas matemtica: isso no indispensvel nossa felicidade. - Serei o que quiseres. Sabes o que gostaria de ver esta noite? Eu o tenho sonhado mais de uma vez. No ano passado me falaste de estrelas coloridas, to belas quanto s pedras preciosas: esmeraldas, safiras, rubis, granates, topzios, ametistas. Apenas as entrevi; queres mostrar-mas? - Justamente pensei nisso. Quero apresentar-lhe, minha senhora, a estrela R da Lebre e a estrela R do Leo. Ateno: olhe. - Que colorao estranha sobre esse fundo de cu quase preto! E' um rubi, uma gota de sangue luminoso! Quase tenho medo. - E' um sol que se extingue. - Todas as estrelas ficaro rubras, extinguindo-se? - Provvelmente. - Ento aquela muito velha. No foram criadas ao mesmo tempo em que as estrelas brancas, que a minha bela Vega, por exemplo?

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- Ou ento envelheceu mais depressa. Mas, tu no crs que todas as estrelas tenham sido criadas no mesmo dia, acrescentou, sorrindo. - No. Teus livros me fizeram compreender a eternidade. Conhecem-se muitas estrelas vermelhas? - Tens diante de ti um catlogo mencionando 766. Formam minoria no cu. Em geral, as estrelas so brancas. - No seria uma primeira criao, uma tentativa de resultado mal sucedido? - Porque resultado mal sucedido? - Porque j esto quase mortas. - Mas se elas datam de uma eternidade anterior s outras! De mais a mais, todas as estrelas que vemos no cu estaro extintas um dia, todas, sem exceo. - E ento? - E ento o cu continuar constelado tal qual hoje; apenas no sero mais as mesmas estrelas. - E quem criar as novas? - Vem, olha! Durante esta conversao o astrnomo dirigira a luneta para uma nebulosa, em estado gasoso, que se encontra na constelao do Drago, bem no plo da eclptica, e a primeira cuja anlise espectral demonstrou a constituio gasosa. E', com toda certeza, uma nebulosa, e no um aglomerado de estrelas que a distncia torna nebuloso; ali est um universo em formao, uma gnese de mundos vindouros. - Plido floco de gs! Disse ela. - Tendo condensao central; o sol desse futuro sistema. - E' um pouco azulado. - Sim. E' uma nvoa csmica - Pequena e pobre. - Mais vasta do que todo o nosso sistema solar, embora a rbita de Netuno mea perto de nove milhes de quilmetros de dimetro. Assistimos daqui sua criao. - A que distncia? - Desconhecida. A luz talvez gaste algumas dezenas ou milhares de sculos para nos chegar de l.. - Ento ns a vemos tal qual era no momento em que partiu o raio luminoso que nos chega hoje. Talvez agora esteja transformada em sol e em planetas, e, no entanto, vemos o que era ento e no o que hoje. - Sim. So as vozes do passado que ouvimos. - Como se conversssemos como um ser que morreu h dezenas de sculos. - E se seus planetas so habitados, v-se, de f, a Terra e todo o nosso sistema solar tal qual foram antes da criao do homem.
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- Meu amor, comea a compreender o que dizias que os espetculos da Terra no passam de um sonho ante os do eterno Universo. E' necessrio que te faa uma confisso. Esses abismos do Alto me causam vertigem, igual que senti no ano passado, no alto do pico Poujastou. Estava emocionada e trmula. - Nunca estive to longe pelo pensamento, acrescentou. - Queres ver um quadro mais maravilhoso ainda? Olha! - Oh! pasmoso! Que imensidade! E' uma nebulosa tambm? Que maravilha! - Sim, uma verdadeira maravilha, uma das mais admirveis da abbada celeste. - Tambm est longe? - A uma distncia desconhecida, no Infinito. Eu te prometi pedras preciosas. Olha aquelas. - Topzio e esmeralda. Que brilho! E'... - A estrela tripla gama de Andrmeda. - Vejo mesmo trs: uma azul, pequenina, ao lado da verde. - Olha agora aquela. E' a estrela dupla de Albreo. - Oh! Exclamou Estela, seria impossvel pintura reproduzir essas luminosas cores... A menos que molhasse um pincel no arco-ris para pintar sobre uma lmina de marfim translcido. - E esta? Chamam-lhe a pulqurrima, a mais bela. E' o nome que a tua madrinha te deveria ter dado. - No te agrada Estela. - Muitas vezes associei os dois nomes, pensando em ti e no cu. No para mim a mais bela das estrelas? - Mostra-me outra estrela dupla. - Eis aqui outra minscula, muito delicada. E' a Eta de Cassope. - Oh'. A encantadora miniatura! Quanto lindo! - Pois bem! Imagina, contemplando-a, que um milho quatrocentos e cinquenta mil terras das dimenses da nossa mal representariam o peso desse encantador parzinho, na aparncia to minscula e to modesta. De igual modo que a gota de orvalho reflete o Universo, esse pequeno diamante duplo, perdido na imensidade dos cus, resume a universal atrao dos mundos e a vida infinita. Continuaram, nessa primeira noite, a fazer uma viagem pelo mar telescpico, e foi com alegria que o apstolo do cu desvendou, perante os olhos maravilhados de sua companheira, o opulento escrnio dai curiosidades siderais. Depois falaram dessa infinidade de sis, dos sistemas que gravitam em torno deles, e a respeito dos seres que podem existir nessas inumerveis moradas.
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Estela se preocupou com esses seres desconhecidos. J sabia, pelos livros do seu querido autor, que a forma humana terrestre uma conseqncia das condies da vida na superfcie do nosso globo. Aprendera mais: que a vida comeou, na Terra, por uma combinao do carbono com o hidrognio, o oxignio e o azoto; que os organismos aqui so todos compostos do carbono, porm podemos imaginar seres de outra constituio, que seriam, por exemplo, combinaes de slica com o oxignio, formados de clulas orgnicas absolutamente diferentes das nossas. Interrogou-o sobre os sentimentos extraterrestres de que esses seres pudessem ser dotados. Dargilan falou-lhe da variedade, j to curiosa, de seres do nosso mundo: das formigas, s quais a Natureza d asas no dia de suas npcias e que se elevam na atmosfera eletrizada para amar e morrer; das plantas que, em outros mundos, poderiam ser animadas e pensar; de seres que, formados de amianto, seriam incombustveis; de paisagens que poderiam ser luminosas, noite, por fosforescncia; de olhos cujo sistema ptico, diferente do nosso, permitiria ver o que no vemos, e no ver o que vemos; etc., etc. Concluram que os habitantes dos outros mundos no se assemelham aos da Terra. E Estela sentiu algum desgosto. - Queres ver Jpiter? Perguntou Dargilan. Como est passando exatamente pelo meridiano, vou p-lo no campo da luneta, e poders examinlo vontade. Seus quatro satlites esto bem colocados, dois direita, um esquerda, e, se observares com ateno, um adiante, acompanhado da respectiva sombra negra. - E' sobre esse globo, mil e duzentas vezes mais volumoso do que a Terra, que eu pesaria cento e trinta e seis quilos, enquanto que vinte e dois em Marte? - Vs tantas diferenas apenas em trs mundos do nosso sistema e sob o s ponto de vista do peso. E' preciso nos resignemos com o fato de os habitantes de outros globos no se nos assemelharem, e que mudaremos de feitio, se os habitarmos algum dia. - Que rudo esse?... - E' o movimento do maquinismo de relgio. Um rudo surdo, ligeiramente cadenciado, resultava da marcha do mecanismo do relgio encerrado no p da luneta. Esta, arrastada por aquele movimento qual uma agulha colossal, girava em sentido contrrio ao da rotao da Terra, e conservava o astro imvel no campo visual. O observador, ocupado com o estudo de um astro, segue esse astro no seu curso aparente e, de certo modo, a Terra gira sob seus ps sem que ele de tal se aperceba. Esse rudo, montono, igual ao sussurro da gua de um rio, acentua mais do que diminui o silncio. E' a calma, o isolamento, o recolhimento de um
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santurio. A criatura se sente longe de tudo. Por vezes a observao penosa e difcil. Trata-se de esperar, em uma posio nalguns casos fatigante, um fenmeno celeste, apanh-lo de relance, apreciar o momento exato da passagem de um ponto sobre o ltimo fio do retculo da luneta, de medir uma distncia infinitamente pequena na aparncia, infinitamente grande na realidade. O astrnomo, na plenitude da noite silenciosa, , ao mesmo tempo, juiz e sacerdote, juiz das leis do Universo, sacerdote do Eterno. Isolado em face do Infinito, v girar em torno dele os cus e os mundos, e, ensaiando deter seu pensamento sobre a ordem invisvel que rege o Cosmos, ele prprio se sente arrebatado no inexorvel movimento das coisas. Quando o rudo de relgio cessa, o silncio absoluto que lhe sucede parece, por vezes, lanar o contemplador na imensidade do Espao e abandon-lo ao Nada. Rafael e Estela saram ao terrao para observar Jpiter, a olho nu, em meio s estrelas. - Olha que luz sbita! - Olha depressa! - Um blido. Nunca vi um. - Observemos, e, principalmente, nem uma palavra! Um magnfico blido, com efeito, atravessava lentamente o cu de Este a Oeste. Tiveram tempo, sem perd-lo de vista, de v-lo aumentar ainda, at igualar quarta parte do dimetro lunar, mudar de cor, do verde esmeralda para o branco incandescente, e explodir, aps ter lanado um claro muito vivo sobre toda a paisagem. - Caluda!. Fez Rafael, colocando dois dedos sobre os lbios de Estela, que comeava a exprimir sua admirao. Escuta. Nem uma palavra! De repente um rudo surdo chegou aos seus ouvidos, seguido de um longo rufar de trovoada. Via-se ainda, sob a forma de uma leve nuvem branca o lugar em que o blido explodira. - Oitenta e um. - Oitenta e um qu? - Oitenta e um segundos. Nesta atmosfera, a velocidade do som de 33o metros por segundo. O blido explodiu a 26.700 metros daqui, a 22 quilmetros de altura, aproximadamente. - Fizeste bem, impedindo-me de falar'. Exclamou Estela. Meu Deus! Que beleza! Que majestade no percurso celeste! Eu me extasiaria sem termo! Nunca teria ouvido o rudo da exploso. Que um blido? - E', em geral, um bloco de minrio em que o ferro predomina, e que, atravessando o espaa celeste, nos encontra em seu caminho e penetra em nossa atmosfera. Sabes que o nosso planeta voga na imensido com uma velocidade de trinta quilmetros por segundo. A velocidade dos blidos de quarenta a cinquenta quilmetros. Quando eles encontram o nosso planeta de
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frente, as duas velocidades, adicionando-se, representam, pois, setenta a oitenta quilmetros por segunda. - Por segundo! E' inimaginvel! - E isso que causa a exploso, pela espantosa compresso de ar que o blido determina diante dele. Geralmente explode como acabas de ver. - Se chegassem at superfcie da Terra, poderiam causar acidentes. - H exemplos. O Palcio da Justia, de Paris, foi incendiado, em 1618, pela queda de um blido. - So, algumas vezes, muito grandes? - Alguns pesam milhares de quilos. Em geral, so pequenos fragmentos. Vou buscar alguns espcimes que possuo na minha coleo. - Oh! Exclamou Estela, tomando-os religiosamente nas mos, um aps outro; no sem emoo que toco estes enviados do cu. De onde vm? - De diversas fontes, sem dvida. Da Lua... Dos planetas... De antigos vulces da Terra, pois o clculo demonstra que, lanados com certa violncia, os blocos poderiam projetar-se a distncias imensas, e no recair seno depois de centenrios de sculos e at viajarem eternamente, sem nunca mais voltar a Terra... Talvez tambm de exploses solares, que observamos daqui, conforme sabes. Alguns podem provir de estrelas, trazendo-nos novidades. Oh! Novidades antigas. Para vir da estrela mais prxima, um cometa, um blido, um uranlito, no levaria menos de setenta mil sculos... - Setenta mil sculos! Oh! Quanto seria bom estarmos deitados ambos em um blido durante todo esse tempo!... Meu Solitrio abrace-me. Vs me esqueceis'. A vida de casal se perpetua Estela, rpidamente, e com amor e paixo, se associara de modo completo e sem reservas vida do Solitrio, vida laboriosa da qual no tivera antes a mnima idia e que, de sbito, nela substitura a ociosidade mundana de outros tempos. Sentira, a vida afirmar-se, acumular, transbordar na felicidade e na alegria. Pareceu-lhe mesmo que no vivera at ento. Apaixonados no nvel de dois loucos trabalhavam, entretanto como dois sbios. Estela o ajudava nas pesquisas; lia austeros livros de Cincia; tornouse sua secretria; traduzia para ele memrias cientficas inglesas, alems, italianas, espanholas, que ele No tinha tempo de folhear; observava com ele; desenhava as curiosidades do cu; achava at prazer em manejar algarismos. Nunca, porm, se tornou mulher sbia, autora pedante, crtica-literria. Permaneceu sempre feminina, fantasista, artista elegante, graciosa, sem
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ambio intelectual aparente, mas seduzida cada vez mais pelas descobertas to brilhantes e to rpidas da cincia contempornea. Pouco a pouco, no seu esprito, dividiu a Humanidade em duas categorias: o dos que conheciam as noes essenciais da Astronomia, e a dos que as ignorava. Os primeiros, dizia ela, sabem onde esto e vivem na luz; os outros so cegos e toda a Criao para eles letra morta. Essa diviso era para ela to absoluta quanto o dia e a noite. Descobriu que o Solitrio melanclico do ano precedente possua um carter muito alegre, agradvel e quase infantil. As nuvens da sua fronte se evaporaram com o novo sol. O jovem filsofo era feliz, perfeitamente ditoso. Com efeito, jamais Estela vira em fisionomia humana uma to luminosa serenidade. Sentia-se que o aborrecimento, a inveja, a ambio, um desgosto qualquer, jamais empanara, sombreara ou engelhara aquela fisionomia pura. E' certo que o sonhador ficava s vezes pensativo durante horas inteiras, e ela via passar sob essa fronte as idias profundas, que nele se associavam sempre pesquisa do grande problema. Mas essa fronte era calma, esses olhos eram brilhantes e claros, o canto da boca sorria tambm, e a fisionomia, aberta e tranqila, porejava a felicidade interior do Esprito - constantemente ocupado em pesquisas de ordem intelectual. - Fica sabendo, meu Rafael, disse-lhe certo dia, sem mim a Cincia ter-teia devorado. - De que modo? - Sim. Durante o longo inverno da minha espera pensei nisso muitas vezes. Para os sbios iguais a ti, honestos, desinteressados, para os quais a Cincia um fim sublime, e no um meio de conquistar lugares e honras, a vida se torna um devotamento perptuo, uma abnegao absoluta de tudo. Via-o bem. Ela te dominava inteiramente e tu nada fruas da vida. A Cincia, vs tu, uma bela mulher, uma admirvel mulher, de semblante sedutor, que se faz adorar pelo amante, apaixona-o ao mais alto grau, faz que abandone tudo, leva-o a esquecer tudo e tudo desprezar por ela. Ele a ama, e lhe d sua vida total, suas foras, a sua alma. Um dia, ele sente leve enroscar a seus ps, rodeando-lhe os tornozelos. Esse envolvimento sobe, prende as pernas, o corpo, vai at ao corao, at aos braos, paralisados pelos tentculos, at os ombros, at ao pescoo, e a serpente, sorridente, constringe o pobre amante, sufoca-o, esmaga-o, tritura-o e a vtima sucumbe hipnotizada, sorrindo ainda ao divino monstro... Meu pobre amigo, se eu no viesse no tardarias a descer aos baixos da terra, sem ter visto o Sol. Tu havias nascido para a felicidade; faltava-te alguma coisa, um nada: eu. - Meu querido pequenino nada, tu s meu tudo. Veio iluminar e florir o meu deserto.
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Tomou-a nos braos, e a cobriu de beijos. - Meu bem-amado, sou coisa tua. Sim, tu mo fizeste pressentir, o amor uma, escravido; porm, bom ser tua escrava. E assim, constantemente permutavam todas as ntimas impresses. O antigo silncio do claustro cedera lugar ao gorjeio dos pssaros. Ele e ela pensavam em voz alta. E muitas vezes observaram que seus pensamentos se aproximavam tanto, que se ouviam sem se falar. E assim tambm um mesmo sentimento intuitivo pareceu emergir em seus coraes: o de j terem vivido, conservado certas idias, certas preferncias adquiridas em uma existncia anterior, e de j se haverem conhecido. Uma afinidade misteriosa parecia unilos por laos predestinados. Estela amava-o sem reservas, tinha-o na alma, no prprio sangue, vivia nele; ele vivia nela. Tornara-se a atmosfera do Solitrio, o ar que ele respirava. Um dia, algumas semanas depois da chegada, disse-lhe de chofre: - Querido amor, quando nos casaremos? - Quando quiseres. - Na igreja? Na pretoria apenas? - Conforme preferires. Nos Estados Unidos, na Inglaterra, muitas vezes suficiente uma curta cerimnia, perante um pastor. Algumas vezes celebrada em casa meia-noite. No h muito, li a narrao de um casamento religioso realizado pelo telefone. Muitas vezes, bastam colocar as assinaturas em um livro do consulado, Todas essas convenes so respeitveis, mas no passam de convenes sociais. Poderamos tambm ir um dia casar em Bosost. - Na Espanha? - E' mais perto do que Luchon. - Mas... s espanhol? - No. - s francs? - Certamente; porm, sou antes europeu do que francs; mais cidado do globo do que europeu - e mais ainda cidado do sistema solar - e muito mais ainda cidado do cu. A Terra pequena, e o nosso sistema solar, no qual o nosso planeta no passa de uma formiguinha, , ele prprio, bastante medocre. - Conheo as tuas idias internacionais e interplanetrias. - Para o astrnomo no h fronteiras em nosso globo; no podem existir. De resto, as pretensas fronteiras existem apenas nos mapas, no papel. Os campos no mudam de lugar, nem os cultivadores, nem as aldeias. So os polticos, que vivem de impostos, os que fazem acreditar em fronteiras. Por nossa parte, ns estamos bem no cu. - No podemos, no entanto, ir celebrar nossa unio em Marte ou em Vega. Sabes aonde gostaria fossemos um dia?
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- No o adivinho sequer. - Que pensarias de Ceilo? E' o pas mais belo do mundo. Chamam-lhe paraso terrestre. - Ns j estamos no paraso. Creio no haver nada mais agradvel do que isto aqui. A Frana, a Espanha ou a ndia so iguais, para os enamorados. Farei tudo quanto queira minha querida, e quando o quiseres, principalmente se... No completou a frase. Seu pensamento a penetrara com a expresso do olhar. Estela compreendeu e enrubesceu. Lanou-se ao pescoo de Dargilan. - Quanto o amaremos! Exclamou. E como ser lindo! - Seriamente, minha querida, pensou em regularizar, como se diz, a nossa posio social? - No. Mas eu gosto de conversar contigo e gostaria at de discutir. Infelizmente somos sempre da mesma opinio. Tu me dizes sempre - sim! Pois bem! Parece-me que estamos um pouco casados, e muito seriamente e, queres que acrescente todo o meu pensamento?... Muito santamente. Vivemos na verdade. A nossa religio parece-me mais verdadeira do que a do papa Alexandre VI e de sua filha Lucrecia Brgia. Parece-me tambm incomparvelmente mais digna de estima do que a do Cardeal Dubois, confidente do Regente, do Bispo Cauchon, que fez queimar por herege a admirvel Joana d'Arc, e de Monsenhor Talleyrand Perigord, Bispo de Autun. Teu cu mais certo que o de Josu e do tribunal pontifcio que condenou Galileu e declarou hertica a crena no movimento da Terra. Sinto-me mais prxima do Deus infinito do que os tesafos com a inconcebvel audcia de julgar que o criam e o comem. Posso caminhar com a cabea mais erguida e o corao mais puro do que a beata rainha Catarina de Mdicis, e do que a rainha virgem Elisabeth, da Inglaterra. E depois, o nosso casamento, tal qual , tem de particular que... No nos pode vir idia de divrcio. Entretanto, um dia, Dargilan lhe falou das leis necessrias ao bom governo das sociedades, da convenincia de obedecer a essas leis; Estela compreendeu que podia ser, ao mesmo tempo, a amante e a esposa do seu bem-amado, que o seu amor no ficaria diminudo com uma formalidade social, e algum tempo depois o pretor de Luchou os declarou unidos em nome da lei, a eles que j o eram precpua e indissoluvelmente pelo corao. Amavam-se. Diz-se que o amor nasce de um nada e morre por tudo. Sim, quando o fogo que ilumina a celeste centelha fraco para o seu mister. Mas o verdadeiro amor se alimenta e se renova sem cessar na sua prpria fogueira, sem nunca se esgotar. Sentia por ele uma paixo violenta, e por vezes as
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crispaes nervosas de suas mos, estreitando as dele, parecia entregar-lhe toda a sua alma, toda a sua vida, deixando-a, aps um paroxismo de amor, inanimada, feito morta. Acaso no o amor, perpetuamente, o sol da alma, luz, calor e criao? Ambos estavam emparaisados, viviam em um cu ideal e divino. Os enamorados no tm sempre um pouco de loucos? A ardente e inextinguvel paixo poderia existir sem as mil extravagncias do esprito e dos sentidos? Deliciosas infantilidades, carcias extravagantes, no sois o que a vida tem de melhor? Para que tantas fadigas no trato das cincias, artes, poltica, se a vida passa to depressa e to facilmente interrompida? Que vale toda essa confuso? No mais bem nada fazer, sonhar, amar e colher flores'? Tal , parece, a reflexo que poderia atravessar o esprito de um filsofo epicurista assistindo aos entretenimentos de Rafael e Estela nessas hours of idleness cantadas por Lorde Byron, o voluptuoso poeta. Nosso filsofo, outrora austero, tinha tesouros de sensibilidade que se revelavam todos os dias. Era uma natureza terna e carinhosa, at ento incompreendida por ele mesmo. Seus recreies amorosos renovavam-se sem cessar e associavam-se de um modo encantador aos seus trabalhos. Nunca deveriam conhecer o tdio, nem a lassido. Um dia, aps o almoo, sobremesa, Estela ofereceu-lhe, na ponta dos lbios rosados, uma linda cereja da qual segurava o cabo entre s dente. O convite era tentador. Envolveu o lindo corpo entre os braos e apanhou delicadamente a cereja com um beijo. E depois outra, e mais outra. Imaginou por sua vez guardar aqueles caroos de cereja para plant-los! Saam de sua boca, e pareciam-lhe mais preciosos que diamantes. E, uma vez firmado nessa idia, concebeu o projeto de formar, no grande jardim inculto do antigo convento, um pequeno vergel exclusivamente plantado de frutos que houvessem tocado seu corpo, seu corpo adorado! Os caroos de pssegos e damascos, de cerejas ou rainhas - Cludia, amndoas, nozes, avels, receberam uma espcie de consagrao amorosa, pelo contacto com aquela carne amada, e foram sucessivamente confiados, no decorrer desse primeiro Vero, ao seio da terra geradora. Que encanto seria ver essas pequenas rvores sarem do solo na prxima Primavera, acompanhar cada ano o seu progresso, crescendo, desenvolvendo-se, e um dia comer os seus frutos'. - Meu Rafael, tu s verdadeiramente um louco completo. Mas, deixava-o agir; e esses frutos preciosos tomavam, ao contacto do corpo querido; uma espcie de parentesco com ela, e era com recolhimento, com um cuidado zeloso que Rafael procurava no antigo vergel do convento os melhores lugares para semear a terra virgem com essas sementes npcias. J via no futuro as cerejeiras, aveleiras, balanando as ramagens verdes ao sopro
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dos ventos primaveris, darem flores e frutos. Mas, pensou, desejaria ter tambm um pequeno bosque vindo de Estela, para deitar-me um dia sua sombra, um bosquezinho de grandes rvores! E por uma bela tarde trouxe castanhas e sementes de carvalho, apanhadas na floresta, para receberem tambm o batismo do seu contacto carnal, e, em outro canto do jardim, as plantaram em um pequeno cerrado. E, sem calcular sequer o tempo necessrio para que as rvores atingissem as verdadeiras dimenses, experimentou uma satisfao estranha s em colocar tambm, ali, algo de sua bem-amada, que tomaria corpo e viveria no futuro, guardando segredos encantadores, quais as rvores antigas da floresta de Dodona guardam os dos orculos. O solo era excelente; escolheu para cada espcie de rvore uma situao apropriada sua natureza vegetal, deixou os carvalhos e os vegetais mais rsticos na proximidade do Observatrio, sobre a fria elevao, e os damascos e pssegos a um canto abrigado, junto ao riacho, onde o Sol de Espanha certamente os amadureceria. Estela ouvia-o, no sem um secreto prazer; era feliz por sentir que ele queria envolver completamente a vida 6 a morada com todos os ecos possveis da sua terna msica de amor. Desde a Primavera seguinte, com efeito, viram sair da terra pequenos carvalhos, castanheiros, pessegueiros, pereiras, cerejeiras e aveleiras. E um dia em que contemplava com amor o nascente viveiro vegetal, meditando sobre a sua origem, exclamou. - Paraso! Sabes que paraso quer dizer jardim. Jardim de delcias! Este velho convento no tinha mais nome. Chamaremos de Paraso. Viviam acima de tudo pelo esprito, pela imaginao, pela arte de amar, preocupando-se pouco com os grosseiros prazeres da mesa, que tm grande importncia na vida dos homens em geral, e tambm no se preocupavam muito com o que se costuma chamar conforto. Embora cuidando da sua pessoa, conservando com zelo o enxoval, alis, finssimo, Estela se habituara simplicidade e frugalidade do Solitrio. Imitando-o, nunca provara um licor ou caf. No sentiam a falta dessas espcies de exigncias modernas. Continuavam a viver alm das nuvens, planando no cu luminoso e infinito. Poder-se-ia acreditar que eram as duas asas de uma s alma. Mil fatos, na aparncia insignificante, davam aos dois as provas recprocas e constantes da mais profunda ternura, assim exemplificados: Um dia (de incio, ficavam juntos; mas, depois de alguns visitantes, adotaram a colocao comum), enquanto almoavam em face um do outro, ela estava assaz alegre e rira durante a refeio, quando de repente sua fisionomia se convulsionou, seus olhos ai encheram de lagrimas rompeu em soluos. - Que tens? Perguntou Dargilan. J observei essas mudanas bruscas de humor, sem poder compreender uma palavra.
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- Observava-te, respondeu ela. Vejo o brilho dos teus olhos... E rompeu de novo em soluos, escondendo a cabea entre as mos. - Tu s extraordinria! Exclamou Dargilan. - Meu amor, trabalha muito! Oh! Esses olhos! Se eu os perdesse! Quando penso que um dia mor... E no pde completar a frase. Seu semblante estava inundado de lgrimas. Algumas vezes, observava-o em silncio, contemplava-o, por melhor dizer, depois se precipitava sobre ele, apartava-o com violncia em seus braos e cobria as faces, seus olhos, sua fronte, de beijos multiplicados. E ele nunca passava perto dela sem lhe fazer uma terna carcia, e jamais saa, mesmo por uma hora, sem abra-la; nunca adormecia, nem despertava, sem que o seu ltimo pensamento da noite, e assim o primeiro pensamento de cada novo dia, no fosse exclusivamente para ela. Tal existncia era sria, e se tornava deliciosa, encantada. O amor verdadeiramente uma luz celestial. A admirvel natureza que os rodeava era um quadro digno daquele blandicioso idlio. Ambos compreendiam e amavam esses grandiosos espetculos. Em seus passeios sob os arvoredou, os coraes cantavam com os ninhos desabrochavam com os raios do Sol, elevavam-se com os perfumes das plantas e das flores. As formas tormentosas das nuvens que correm pelo cu, carregadas pelas correntes chuvosas do sudoeste; o sadio e penetrante odor das rvores depois da chuva; as rajas mornas que sopram entre os galhos; a iluminao das. Paisagens do pr do Sol; o vento que perfuma e purifica; o murmrio longnquo das torrentes; o rudo agudo e montono dos grilos ao cair da noite; o chamado dos cucos; o grito estridente do pssaro zombeteiro que foge; as borboletas que perseguem; toda essa vida intensa e perptua da imensa Natureza se associava deles, e, por vezes, sentiam senhores desses soberbos Pirineus - que lhes abriam todos os seus tesouros de vitalidade -, senhores do solo e das Alturas. Estela amava o luar, luz doce e virginal, que parece reunir a Terra ao Cu, e que, saturando a atmosfera de uma espcie de vapor etreo, derrama encanto misterioso no sono da Natureza. As brancuras so mais alvas; os escuros se tornam mais negros. Figuras fantsticas se desenham nas rvores da estrada; os abismos dormem aos ps dos rochedos. Sobre o caminho esbranquiado, as sombras de ambos formavam uma s, uma cambra dupla, caprichosamente varivel. Nas noites de Vero, o ambiente permanecia aquecido pelo calor do dia, e eles iam silenciosos, ao longo do caminho alvacento, entre as rvores, seguindo os muros, olhando suas sombras mveis, mudando de poses, formando silhuetas diversas. - Olha, dizia Dargilan, parece que te abrao, e, no

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entanto no te toco. A est a imagem da Histria. Acredita-se tudo saber, nada se sabe do fundo das coisas. - Observa como vamos bem unidos! Respondia Estela. Queres que eu fique menor? Basta que me abaixe um pouco. Reconhecer-te-ia de longe, s pelo perfil da tua sombra. Ele se voltava para contempl-la. A carne de seu pescoo tinha a alvura do leite; o brao, que ela acabava de levantar, e do qual pendia a manga, valia por um mrmore de Paros; os olhos brilhavam, e os pequenos dentes pareciam prolas iluminadas. Era preciso parar. O amoroso sbio enlaava-a e a cobria de beijos. Estela ficava mais formosa quela celeste luz. Nunca seu belo corpo lhe parecera de to estonteante alvura. Desejaria v-la toda, qual Vnus saindo das ondas, naquela claridade. - Senhor astrnomo, no se pode fazer um passeio sentimental convosco. Vs outros, os homens, nos amais com os sentidos. - Ns outros, os homens? Dir-se-ia que conheceste um regimento! - Rafael! - Pois bem, sim, somos homens. No eu: sabes que te amo com a alma. - No acredito mais. Tu no podes ficar quieto. Sabes meu Rafael, que para mim representas todos os homens, em grau mais perfeito. Pois bem, o mais perfeito de entre vs - ainda muito material. Eu no tenho necessidade dessas demonstraes. Seria to bom irmos assim, de mos dadas, tranquilamente sem... - Sem?... Sem nos abraarmos? - No, abraando-nos, se queres - porm docemente, gentilmente, sem essa ferocidade que te assalta, s vezes, qual se quisesse devorar-me. - Minha Esteta querida, falas assim porque mulher. Sabes em que pensava quando te arranquei o broche h instante? No era em ti. Ests contente agora? Pensava na bela Helena. - Que dizes? - Sim. No sei se ela era to eltrica, igual a ti; mas, recordo que os Gregos davam o nome de eltron a um metal, liga de ouro e prata, e que dele Helena mandara fazer uma taa, moldada na forma do seio, para oferec-la a Paris. - Meu poeta, esquece a Astronomia. Eu no. Olham, as estrelas empalidecem ao claro da Lua. Porm a minha no esmaece. Vs ali? Nunca me disseste por que lhe chamaram Vega. - Examina aquela estrela resplandecente com as duas menos brilhantes que a acompanham. Os rabes compararam essa disposio a um abutre que

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fecha as asas, como se quisesse deixar-se cair, e a est porque lhe chamavam - caindo, Waki. Essa palavra se transforma em Wega e depois Vega. - E' bem comparado. Quando Vega est abaixo das duas estrelas, parece um pssaro caindo, com a cabea para diante e as asas para trs, enquanto que, ao lado, a guia tem as asas estendidas, planando sobre as margens do rio lcteo. Em seus passeios, palestras e leituras, Esteta se iniciou gradualmente em todas as curiosidades da Astronomia. Depois se tornou, ela prpria, excelente observadora. Aps ter admirado os prodigiosos efeitos de luz produzidos sobre as montanhas da Lua, pelo despontar e pr do Sol, o rendilhado maravilhoso dos crculos lunares, as belas noites em que o quarto crescente recebe a iluminao oblqua, que tanto relevo d s paisagens do nosso satlite, quis tambm observar as manchas do Sol e ensaiou desenh-tas. Certo dia, uma dessas manchas estava to grande que era possvel observ-la sem luneta, bastando proteger a vista com um simples vidro azul enfumaado. Era um lindo dia de vero e o ardor do Sol era intenso. - Essa mancha, que parece um ponto, disse ele, quatro vezes maior do que o dimetro total da Terra. - O Sol quente! Exclamou Estela. Dizes, no verdade? Que estamos a 148 milhes de quilmetros de distncia. Os habitantes de Mercrio, que se acham quase trs vezes mais prximos do que ns, devemos estar assados. Quando era criana, pedia para tocar a Lua com as minhas mozinhas. Nunca pediria para tocar o Sol. - Se tivesses o brao bastante comprido para chegar l, minha bela, no sentirias a queimadura. - E por qu? - A impresso nervosa no instantnea: ela se transmite ao longo dos nervos com velocidade de 28 metros por segundo. A sensao da queimadura no chegaria ao teu crebro em menos de 167 vezes 365 dias. - Realmente, nada iguala Astronomia, para nos imergir a cada instante nos abismos do Tempo e do Espao. Mas, escuta o canto dos pssaros: maravilhoso neste momento. - Sim, delicioso! E ainda da Astronomia, porque o Sol que gorjeia na garganta dos pssaros. O amoroso sbio, j o vem no perdia tempo em pensar nas mincias da vida material. Absorvido pela sua cincia, e absorvido duplamente pelo seu amor, esquecia preocupar-se com o futuro, e vivia em negligncia infantil. Sua jovem companheira no pensava melhor. Talvez houvesse mais apego de um pelo outro nessas situaes modestas, do que haveria luxo e abundncia. Certo dia, entretanto, um sentimento doloroso o convidou bruscamente a descer das alturas. Era numa bela tarde de Vero. Tinham partido para as
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montanhas, procura de fsseis, com que formavam uma coleo. A luz era viva e punha em relevo todos os tons. A Natureza cantava uma adorvel sinfonia. Ao sair da sombra das rvores e chegando ao caminho, o filsofo reparou que as luvas de Estela estavam com orifcios, que o veludo do seu corpete havia desbotado e o cabo da sombrinha estava partido. Durante toda a noite, refletiu, e, na manh seguinte, observou outros vestgios que tiveram o dom de perturb-lo profundamente. J alguns meses antes, fora tocados por um ato de abnegao bem comovente. Estela herdara de sua me dois esplndidos brilhantes, que ele lhe vira algumas vezes nas orelhas. Apresentou-se ocasio, certa noite, de fazer uma experincia sobre a refrao e ele lhos pediu, para esse fim. Estela mostrou ficar muito embaraada, e respondeu, a princpio, que no sabia onde estavam; enrubesceu, perturbou-se. Entretanto, ele sabia perfeitamente bem que lhos traria de boa vontade, mesmo que fosse para queim-los e at reduzi-los a carbono. - Me ocultas alguma coisa! Exclamou. - Sim. -Lembras-te, no Inverno passado, do teu grande desejo de comprar, para a tua biblioteca, as Memrias da Real Sociedade Astronmica de Londres. Vi quanto a almejavas, e tambm que renunciaste compra por motivo do elevado preo da bela coleo. - Dois mil e quinhentos francos! - Sim. Pois bem: fiz acreditasses que aquela sbia sociedade tas presenteava. E tu me encarregaste de agradec-las na, qualidade de tua secretria. Isso foi o que eu nunca fiz, por que... Fui a Luchon com os meus diamantes... Um joalheiro me ofereceu exatamente dois mil e quinhentos francos, e ali os deixei. No foi grande sacrifcio, porque eu no os uso mais. Meus diamantes... So os teus olhos. De outra vez, durante uma doena da jardineira, que reclamava os cuidados assduos do marido, j velho e alquebrado, junto dela, surpreendera-a escovando as roupas e notara na respectiva prateleira os seus calados que acabavam de ser lustrados por ela. Experimentou, pela primeira vez, o sentimento de um novo dever, e sentiu caber-lhe um imperioso encargo maior. Grandes jornais de pases estrangeiros lhe havia, muitas vezes, dirigido pedidos de colaborao, aos quais no dera resposta, preferindo trabalhar nas suas queridas pesquisas cientficas, do que aumentar os rendimentos. Pareceu-lhe, agora, que devia resignar-se a consagrar mais algumas horas por ms a esse aspecto, para ele desagradvel, dos interesses materiais. Sua Estela, to amante e to devotada, sofria talvez, em silncio, a sua mudana de condio, do que ele, na sua
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brutal cegueira, no se apercebera. Anjo adorado! O homem um monstro de egosmo. Desde esse momento sua deciso foi tomada. Em vez de enviar o artigo mensal apenas a Paris e a Londres, o endereou, simultaneamente, ao NovoieVremia, de So Petersburgo; ao Pesti-Hirlap, da Hungria; ao Scolo, de Milo; ao Aftonbladet, de Estocolmo; a La Nacion, de Buenos Aires; ao Universal, do Mxico; e, em vez de quinhentos francos, por ms, passou a receber, da em diante, mil e quinhentos, sem perder mais de trs dias nesse mltiplo trabalho. s vezes, perguntava-se se no errara, recusando uma fortuna; mas, sentia que a obrigao do trabalho uma lei natural, til, necessria mesma para manter a atividade do crebro, e no se lastimou. De resto, sentia-se feliz de ser, por assim dizer, forado a redigir essas notas sobre os grandes fatos da cincia contempornea, e, ao mesmo tempo, de espalhar pelo mundo os conhecimentos cientficos e de educar os espritos no culto da verdade pura. Sem embargo, recusou outras solicitaes de Berlim, Viena, Atenas, Constantinopla e Amsterd, achando o seu oramento mais do que suficiente. A partir de ento, a vida material para ambas foi mais confortvel, mais cuidada, mais agradvel. Tomou um camareiro e uma cozinheira; ordenou a Estela que renovasse seu guarda-roupa; ocupou-se at com as suas toaletes; quis que ela retomasse a sua antiga revista de modas, e fizesse os vestidos em Paris. Porm a vida intelectual continuou sempre em primeiro plano. Em lembrana dos diamantes, to generosa e simplesmente sacrificados Cincia, ele lhe fez a surpresa de excelente e magnfico piano Ehrard que, um belo dia, Estela encontrou entronizado na biblioteca. Com que alegria retomou sua querida msica, absolutamente relegada. No seu esquecimento de tudo, nada lastimara; mas, isso, para ela, valeu por uma nova vida. Sabia interpretar com sentimento apurado as inspiraes musicais, que so uma poesia da alma. Dargilan a ouvia com o jbilo interior de quem contempla a harmonia de um lindo poente. Que horas deliciosas passaram um e outro, na audio das celestes sinfonias dos grandes mestres, que souberam traduzir, em sonoridades maravilhosas, as foras da Natureza e as paixes da Humanidade! Sua vida cientfica foi ainda mais embelezada, mais encantadora. Um grande qumico disse que a verdadeira felicidade lhe aparecia sob a forma do sbio, que consagra suas viglias penetrao dos segredos da Natureza descoberta de verdades novas. Tanto quanto o qumico, e o fsico, e o naturalista -, o gelogo e o astrnomo experimentam tal ventura perfeita; mais profundamente ainda, o primeiro - remontando os cursos das idades; o segundo - avanando no infinito do Espao, e a sua vida intelectual se estende, por assim dizer, em imensidades sempre renovadas.
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Insensivelmente, gradativamente, a felicidade de Rafael se tornou a felicidade de Estela. - Meu amor, dizia ela com freqncia, se me oferecessem todos os tesouros da Terra, todos os prazeres imaginveis, jamais consentiria em tentai, sequer, trocar a minha vida pela da rainha mais invejada. O Cu, a Cincia, a Natureza, os escritos dos homens superiores, nossa afeio - que vem do Infinito e que nos inebria... Eis a verdadeira felicidade. E' supremamente boa! s vezes temo que no perdure. Onde se parte de Lourdes para chegar a Deus O Dr. Bernardo, nos seus passeios pelos arredores de Luchon, ia, de tempos em tempos, passar uma hora com eles, conversar sobre as novidades cientficas, levar-lhes tambm um ligeiro eco do mundo dos despreocupados. Era sempre o cptico que conhecemos, e os mais belos espetculos telescpicos no lhe faziam vibrar qualquer corda sensvel de admirao por uma Causa inteligente. Um dos fatos que tinham mais fortemente agido sobre seu esprito, para reforai e cristalizar, de algum modo, o seu atesmo, foi a histria de Lourdes, que se passara na sua vizinhana e sob seus olhos. Nivelava as religies, os sistemas teocrticos que, em todos os pases, tm to longamente subjugado as conscincias sem esclarec-las, com a Religio, com o sentimento religioso em si, com o Desmo puro. No podendo ser catlico julgava-se, conforme vimos no direito de ser ateu. Muitas vezes, discutia com o filsofo. Um dia, a discusso se acalorou logo, porque, ao chegar ao aposento dos dois esposos, onde fora recebido familiarmente, percebeu uma obra intitulada Nossa Senhora de Lourdes, por Henrique Lasserre. - Como! Exclamou. A senhora l dessa qualidade de livros? - Leio um pouco de tudo. Esse me interessou. No sou a nica. Veja: est no tricentsimo milheiro. - E' o maior xito de livraria, desde a inveno da imprensa, acrescentou Dargilan. - E a explorao da apario da Senhora P. pequena idiota um dos melhores negcios comerciais da nossa poca, replicou acremente o mdico. O Oficial que deve ter rido! Acrescentou, principalmente quando viram gravadas em letras de ouro, sobre uma placa de mrmore, as palavras de sua amiga Bernardete: Vai-te lavar e come erva, confidncia verdadeiramente divina e merecedora de ser conservada religiosamente. No achais que a origem de Lourdes lembra um pouco a do romance da senhorita de la Merlire, em La Salette?
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- O amor tem muitas vezes desempenhado grande papel nas coisas da devoo, disse Dargilan. Podemos recordar tambm a histria de Maria Alacoque, em Paray-le-Monial, e do Padre de la Colombire, quando da fundao do Sacr-Caeur. Seja como for, a Sra. P... Teve uma inspirao que trouxe milhes ao seu pas. Deve-se-lhe reconhecimento. - Certamente. No se tem sido ingrato para ela, e todo mundo se entende, por meia palavra, sobre esse ponto. Mas, como quereis que os protestantes no ridicularizem abertamente a culto moderno da Virgem Maria? O que se passa em Lourdes idntico ao que se passava, h vinte sculos, no templo de Esculpio, em Epidauro. A mesma credulidade, os mesmos fenmenos nervosos, o mesmo alimento superstio popular pelos sacerdotes encarregados do dolo. - A mentira religiosa me revolta, tanto quanto a vs, replicou Dargilan, e por isso que um homem honesto, fazendo uso da sua razo, no se pode encarcerar nas frmulas de nenhuma religio, pois em toda a mentira se infiltrou. E' humano. E depois, confessemos, a Humanidade gosta de ser iludida. E' quase uma necessidade para ela. Precisa de iluses, e os que lhe mentem prestam servio. Veja esses bispos que, aps a guerra de 1870, fizeram erguer esttuas Virgem prximo das cidades onde os prussianos no entraram Langres. Haure, Poitiers, etc., asseverando ter sido - ela -quem as protegeu. Entretanto, eles sabem, to bem quanto o sabemos ns dois, que isso no verdade. Veja o ex-voto e os crios de Nossa Senhora das Vitrias para os nmeros premiados na loteria e bons resultados nos exames! Essas supersties ingnuas esto ainda to vivas quanto no tempo da deusa Cbele. Os sacerdotes disso vivem. E a audcia da pretensa promessa nacional, em Montmartre!... Porm, esses erros da nossa pobre espcie no impedem acreditar no Deus absoluto e ntegro de Jesus, de So Paulo, de Plato, de Marco Aurlio, Kepler, Newton, Pascal, Linneu, Euler, Hugo, nem to-pouco impedem os erros dos adoradores de Buda, Osris, Jpiter e tantas outras divindades imaginrias. O Desconhecido paira mais alto. - A crena um sentimento. No cincia. Lalande e Laplace eram ateus. Vs sois poetas. - Meu caro doutor, o astrnomo que v no cu apenas massas e distncias no suspeita sequer da realidade, pois a realidade a vida universal, irradiando no Espao atravs da eternidade. Recusar Cincia o sentimento potico ignorar o corao de todos os sbios que o experimentam; no ter lido nem Kepler, cujas excelsitudes so to sublimes; nem Linneu, vendo a sombra de Deus passar perante a face da Natureza; nem Euler - que aconselhava aos pregadores fazerem os seus sermes sobre as maravilhas dos cus; nem Pascal, perdendo-se no seio do infinito at loucura; nem a mor parte dos
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sbios em todos os ramos da Cincia. Sem dvida, houve, e h notriamente hoje, sbios inteiramente cpticos e to secos quanta madeira morta; h outros que so anti-religiosos, por protesto contra os cultos; h outros tambm que fazem da Cincia o que se faz como um ramo de negcio, e tm por nico fito na vida o dinheiro, os empregos e as honrarias. Que prova isso? Nada contra a Cincia em si, que os afoga na sua grandeza; de igual modo que a declarao fantstica da Sra. P... E o embasbacado da pequena Bernardete nada prova contra o Criador da Via-Lctea. A Cincia, ao contrrio, a soberana inspiradora, porque engrandece at ao infinito os horizontes do nosso pensamento. A emoo da alma, perante o cu estrelado, diversamente profunda para o esprito que v o insulamento do Homem e da Terra no seio da imensidade sem limites, povoada por milhares de outros mundos, do que para o olho ignorante que apenas divisa pontos luminosos encravados em uma abbada. Nem h mesmo comparao possvel entre os dois sentimentos. E' preciso jamais ter sentida o calafrio do infinito e da eternidade, esse calafrio do qual s vezes nos surpreendemos ter sado vivos - quando nos atravessou, para atrever-se a acusar a Cincia de ser antpoda da poesia. O estudo do cu me d de Deus uma idia mais elevada e mais sublime do que poderiam faz-lo todas as definies humanas. O Infinito prova Deus. Mas o Deus dos astrnomos no pode ser o Deus dos exrcitos, de Filipe II, de Maom; no derrama sangue, nem em nome da Cruz, nem do Crescente; no conduz s infmias da Inquisio; no faz queimar vivo um hertico; no aprova a matana de So Bartolomeu; no sustenta o erro; no condena Coprnico e Galileu; porque Ele a Suprema Justia e a Suprema Verdade, e paira impecvel na sua pura luz. E' por acreditar em Deus que no sou cristo. Todas essas inpcias revoltam a minha adorao. Teria sido cristo no tempo das Cruzadas, quando, voz de Pedro, o Eremita, todos os coraes palpitavam pelo tmulo do Cristo; quando o rei So Lus simbolizava, pela candura e piedade, o estado de alma dos crentes; quando, nas irradiaes da divina f, os homens se imolavam com convico pela posse do Cu. Teria sido cristo no tempo em que a prece elevava no xtase as arcadas gticas das escuras catedrais e se espalhava qual incenso puro, nos santurios das igrejas. Teria sido cristo com os mrtires das catacumbas, quando as aspiraes da religio nova santificavam a Humanidade, e a Palavra Divina vinha arrancar as almas torpeza da decadncia romana. Sim, eu seria cristo com Vicente de Paulo, com Francisco de Assis, com Ambrsio de Milo, com Fenelon, com os espritos superiores e os grandes coraes; porm no o sou com So Domingos, o Inquisidor; com o Papa Urbano VIII, que condenou Galileu; com
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Alexandre VI, o Brgia; com os massacradores da noite de So Bartolomeu; com o Bispo Cauchon, que acendeu a fogueira de Joana Arc; com a piolhenta Benedito Jos Labre; com os administradores da gruta de Lourdes. - Mas, replicou o mdico, tambm podeis ter sido com Napoleo e a Concordata'. - Quer dizer que a religio pode ser considerada uma organizao social, til aos bons costumes e ao funcionamento de um governo ponderado. E' a opinio geral. O papa, os bispos, a disciplina eclesistica, so til auxiliar do poder, e a educao crist das crianas as mantm, por muito tempo, em uma s concepo do dever. Eu vo-lo conceda. Diz-se: Sejamos catlicos na Frana, protestantes na Inglaterra, muulmanos no Egito, budistas no Japo e na China, como diramos Sejamos bons cidados e obedeamos s leis. Mas, para mim, isso no religio. Trata-se de ser sinceros. No aprecio, de modo algum, aquele que vai igreja para mostrar que equilibrado, para ser escolhido pela mame de uma rica herdeira ou fazer negcios. O interesse desprezvel. Tenho a religio em mais alto apreo do que uma simples decncia social. O sentimento religioso reside na aspirao da alma para a Verdade, na sede de conhecer nossos destinos futuros, nas convices espirituais que a Cincia nos pode fornecer. O sentimento religioso essencialmente pessoal. E' sincero ou no . E como duas verdades no podem ser contrrias uma outra, necessrio primeiramente que as nossas crenas estejam de acordo com o que conhecido, e, mais do que tudo, com o que sabemos sobre a construo do Universo. No absolutamente sob o ponto de vista de tesofa que falo meu caro doutor, mas no de cientista. Tenho o mesmo desprezo vosso pelos homens que especulam com a fraqueza e a ingenuidade humanas, sejam sacerdotes ou polticos; abomino a hipocrisia. Para mim, porm, o espetculo da Natureza demonstra a existncia de um Esprito dirigente. No existe o acaso. Todo fenmeno efeito de uma causa. Os fatos observados, os ninhos dos pssaros, a coragem das mes, a postura dos ovos - pelas moscas ou pelas borboletas, o alimento de um mamfero, a atrao dos sexos, a organizao do corpo humano - tudo prova uma finalidade, um plano no estado atual das coisas terrestres. A imensido do cu, o nmero incalculvel de sis e de sistemas, testemunha uma grandeza ante a qual o homem no mais do que um tomo. A justia existe na mecnica celeste. Nela, erro algum possvel. A histria da vida terrestre, desde as mais antigas pocas geolgicas at nossos dias, mostra um progresso gradativo e constante. Esse progresso uma leti qual a Natureza obedece. Essa lei de ordem intelectual.

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As matemticas, a geometria, a fsica, a ptica, que exprimem em frmulas o estado de coisas existentes, indicam uma organizao intelectual do Universo. Nossa faculdade de contar, abstrair, nosso sentimento do justo e injusto, do verdadeiro e do falso, a bondade, a maldade, no podem ser produtos da qumica cerebral. O mundo psquico tem uma existncia to certa quanto o mundo material. Assim falou o filsofo. Quando abordava o tema, dizia tudo o que tinha a dizer, e, geralmente, deixavam-no falar sem interromp-lo. Entretanto, o mdico manifestara, mais de uma vez, sinais de impacincia. - Meu caro amigo, disse de jacto, com acintoso ar de desdm, est bem prximo de deixar vossa esposa ir missa. - No sou intolerante. Se ela o desejar... - Meu Rafael, que ests dizendo? Exclamou Estela. - E' uma conveno idntica outra qualquer, replicou docemente o astrnomo. A senhora Littr vai missa, e Littr, ateu, a deixa ir. Porm, a linda Estela pareceu revoltada. - Sim, exclamou, a maioria das mulheres vo missa, e levam as filhas e os filhos, mesmo sabendo que se acha em contradio absoluta com as idias dos maridos. A est justamente o que impede e impedir, por muito tempo, o avano do progresso. Os filsofos trabalham em vo, porque suas prprias companheiras destroem esse labor. Elas menosprezam pura e simplesmente o homem cujo nome usa. Os padres sabem-no bem, e sorriem superiormente. No sou dessas mulheres. E se eu no tivesse j apreciado a tua extraordinria bondade, tua tese ter-me-ia feito cair das nuvens. O amor torna os homens fracos. A mulher deve ser superior ao homem no seu amor. Aproximou-se dele. Dargilan levantou-se, envolveu-lhe o fino talhe nos braos e pousou os lbios em seu pescoo perfumado. O Sol lanava seus dourados raios atravs dos vidros, e sua luz parecia aureolar de um nimbo areo a cabeleira vaporosa de Estela. - Tu no me amas somente pelo corao, disse, amas-me tambm pelo esprito. Estava seguro da tua resposta, porm quis ouvi-la. Meu caro doutor, acrescentou, Vede que somos, todos trs, da mesma opinio sobre esse ponto, e que no iremos missa. - Dr. Bernardo, ajuntou Estela, meu marido um anjo. Tenho a sua religio. No terei outra. - No compreendo meu caro doutor, prosseguiu Dargilan, no admitais comigo que o mundo visvel apenas uma aparncia, ocultando o mundo invisvel. Sabeis, no entanto, que uma bigorna um conjunto de tomos intangveis, em movimento, e que no se tocam entre si. O ser humano,
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verdadeiro, no o corpo que ns vemos, composto, por sua vez, de partculas invisveis em circulao perptua. E' uma substncia de ordem psquica, que difere essencialmente dos produtos fisiolgicos; que percebe e age diversamente, e que, sem embargo disso, obedece, qual a Natureza inteira, lei suprema do progresso. Podeis comer bem, beber ou respirar, seja o que for; em hiptese alguma, os efeitos dessa atividade vital daro nascimento a um teorema de geometria, a uma pesquisa metafsica igual s que tm apaixonado todos os grandes espritos, ou a um ato de devotamento. O raciocnio que constata que o quadrado dos tempos de revoluo dos planetas est entre si na relao do cubo das distncias; a anlise das faculdades da alma ou o sentimento que, em caso de perigo, faz escolher a morte para salvar um ser querido, nada tm de comum com as secrees orgnicas. E' outra coisa. Objetareis que no se v a alma. Admito o argumento, porm, repito: no vemos nada do que existe realmente. Vedes a fora que sustenta a Terra no Espao? Vedes a gravitao universal? Vedes o magnetismo csmico? Vedes o magnetismo humano? A questo esta: a alma existe? Sobrevive ela morte do corpo? Em que se torna? Onde estaremos que seremos daqui a um sculo, h dez sculos, durante a eternidade? No h outro problema alm desse. E' o que todas as religies pretendem resolver. E' n grito supremo do corao humano em todas as eras, em todas as raas. Os telogos afirmam que a religio crist resolveu o problema, e que a Cincia faliu na sua misso de resolv-lo. Esto errados. Quanto aos sbios que contestam, caem em erro mais profundo ainda. Os primeiros, pelo menos, apresentam o problema e, dogmticamente, proclamam hav-lo resolvido. Os segundos, que se intitulam representantes da Cincia, nem sequer o apresentam, e parecem ignor-lo. Admitem que possam estar satisfeitos com os progressos materiais e sociais da Humanidade, e resolvem, a seu modo, os nossos desejos de imortalidade, predizendo uma era de felicidade para os nossos descendentes no cenrio do monda. Que nos saberamos a esse respeito, uma vez que no existiremos mais? A solidariedade humana, o reinado da justia no porvir: eis a, na opinio deles, a grande satisfao moral que a Cincia nos pode dar. E' o aniquilamento, de vez que a Humanidade terrestre acabar. Quanto imortalidade pessoal, ou bem a negam absolutamente, afirmando que a faculdade de pensar no passa de uma funo do crebro e desaparece com a cessao do seu funcionamento, ou ento declaram que a cincia positiva nada pode procurar nesse domnio, que lhe estar sempre fechado, domnio do agnosticismo, que declara ser o Absoluto inacessvel ao esprito humano.

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A est o erro, o louco e inqualificvel erro dos sbios, quanto dos telogos. Estes acreditam saber tudo, e tudo ignoram; aqueles sabem um pouco e no imaginam que a Cincia possa ir mais longe. Se considerarmos esses doutrinrios em bloco, vemos que os crentes so simples iluminados, admitindo tudo sem provas, e que os cientficos so ateus e materialistas, mais ou menos convictos, Porm, a verdade, no a encontro nem entre uns, nem entre os outros. Se as cincias exatas, a observao, o estudo dos fenmenos, nada nos ensinarem a respeito da existncia da Alma e sua imortalidade, nunca sabero mais nada porque - ainda uma vez - s se pode saber o que se aprende. No existe revelao sobrenatural. Que Moiss, Jesus, Maom, Brama, Buda, Confcio, Plato, ou um inspirado qualquer nos afirme tudo quanto queira: um homem sensato s pode admitir tais afirmaes quando estiverem de acordo com o seu saber. Se elas lhe aparecerem inaceitveis, ele no as aceitar. E' sempre necessrio, para uma crena qualquer, partir de um primeiro ponto inicial - aceito pela razo. E' pois, em ltima anlise, a razo quem julga, e ningum contestar que a razo esclarecida seja superior razo ignorante. Ainda que um telogo ensine, qual se tem feito durante tantos sculos, que o cu uma abbada slida, por cima da qual reina a Trindade, rodeada de anjos e de santos, e que nossas almas vo para l depois da morte, ou ento para o purgatrio ou para o inferno - sabemos que semelhante concepo do Universo falsa e no a aceitamos. Nossas idias e nossas crenas devem, antes de tudo, estar de acordo com a verdade cientfica demonstrada. A antiga concepo geocntrica e antropocntrica est irremedivelmente condenada em nossos dias. No h muito tempo, porm, que o debate ficou encerrado. O problema da Alma o primeiro de todos. Prima at sobre o da existncia de Deus. Entre nossa existncia e a de Deus, a que nos interessa mais a nossa. Vs viveis, o principal para vs. O mesmo ser dentro de dez ou cem decnios. Quanto a Deus, podeis discuti-lo, afirm-lo ou neg-lo: no o sentir qual vos sentis a vs prprios. Repito: s existe realmente uma questo capital para ns outros, dominando todas as outras: - a do nosso ser pessoal. A est, pois, o que devemos estudar: em primeiro lugar, o ser; em segundo, o Universo. Como age a alma? - Se o puderdes explicar, disse o mdico, eu farei erigir a vossa esttua em vida. - Sabeis to bem e at melhor do que eu continuou Dargilan, que a eletricidade desempenha um papel imenso, apenas entrevisto, o qual, para o ser humano, comea com a gerao... Vs compreendeis...

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Uma atmosfera de eletricidade nos envolve. O sistema nervoso no est circunscrito ao nosso crebro, nossa medula, aos nossos nervos: irradia em torno. Nosso pensamento age distncia, no somente com a nossa voz ou o nosso olhar, porm muito mais longe, e silenciosamente. Nossa alma reside em um corpo astral, que se pode desprender do corpo terrestre. Nunca procurastes explicar as simpatias e antipatias? Aes da alma distncia, harmonias ou cacofonias de vibraes. E os pressentimentos, e os sonhos premonitrios, e os fatos psquicos, e a telepatia? A descoberta da atrao das sensibilidades e das vontades, da penetrabilidade das conscincias, ser, no sculo prximo, bem mais importante e fecunda do que a de Newton para os corpos celestes. E fundar a psicologia cientfica. A Cincia se purifica. O ser psquico desenvolver-se- nas suas sensaes e no conhecimento de si prprio, tal qual acorreu com o ser fsico. Abri as pginas da histria geolgica da Terra. A princpio a luz brilhava sem que olhos se abrissem para v-la. Aps milhares de sculos, o nervo ptico rudimentar, informe, quase insensvel, do trilobita, aparece. Insensivelmente, o rgo se esclarece, apura, aperfeioa, at chegar transparncia cristalina do olho humano e sua potncia ptica. Pois bem, a nossa Humanidade ainda animal, e o nosso ser psquico apenas desperta. Ele se sente, procura, sonha. E' um olho interior, lento no esboar-se, ainda cego, mas que procura, quer a luz. Ir aperfeioando-se sem cessar, e ento se mostrar. No nos fiemos nas aparncias: so falsas e enganosas. Sem dvida, parece que a nossa faculdade de pensar nasceu com o corpo, e com ele morrer. Sim, parece-nos; mas errado. Se a lagarta pensasse, acreditaria morrer no sudrio necromorfo da crislida, pois no poderia adivinhar que a borboleta e ela so um s e mesmo ser. Seus olhos chegariam a ver as borboletas? Dizeis sempre s admitir o que vemos. Ento, para que serviriam o esprito, a reflexo, o entendimento, a razo? Sabeis o que vemos, mesmo em Fsica, em relao luz? Nada, ou quase nada. As vibraes etreas, capazes de impressionar nossa retina e de serem sentidas pelo nosso nervo ptico, esto compreendidas entre dois limites muito reduzidos. Conheceis o espectro solar, do vermelho ao violeta, e sabeis que todos os raios visveis aos olhos humanos esto compreendidos nesse espectro. Sabeis tambm que os raios se prolongam tanto alm do violeta, quanto alm do vermelho; que os primeiros, invisveis, porm de grande potncia qumica, so visveis, paia o olho fotogrfico, e foram fotografados com os seus riscos ou sulcos espectrais; e que os segundos, igualmente
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invisveis para ns outros, so calorficos e foram fotografados tambm, com o auxlio do bolmetro. Ora, sede, pois, lgico, e confessai que o mundo visvel est longe de representar o mundo real. Atentai para o espectro atualmente conhecido: mede um metro. Vedes, ao centro, uma zona branca? E' o espectro visvel: mede cinco centmetros. Todos os outros raios nos passam despercebidos. No sejamos, pois, to positivistas. E porque vemos to pouco do prprio mundo fsico? Porque estamos muito prximos ao Sol. Nossos olhos, formados nesse meio to luminoso, so quase cegos; nossa sensao ptica rude, brutal, grosseira, e a amplitude das vibraes acessveis ao nosso nervo ptico muito reduzido. No vemos quase nada do que existe. Quando, saindo da viva luz de um lindo dia de Vero, entramos em um subterrneo, nele nada podemos distinguir. Se os nossos olhos se tivessem desenvolvido no ambiente de uma claridade mais suave, mais temperada, semelhana do que ocorre em Urano ou Netuno, par exemplo, seu campo de captao seria incomparvelmente mais extenso. Mas, assim: estamos na Terra. No uma corda vibrante de harpa ou de violino a que possui o nosso organismo; uma barra de ferro. No vibramos. Nessa condio a que chamamos noite, est o estado real do Universo. Ardemos com a proximidade do nosso Sol. Observai este escoro do sistema planetrio: Enquanto Jpiter, Saturno, Urano, Netuno e os planetas transnetunianos descrevem com majestade suas rbitas imensas na extenso - Mercrio, Vnus, a Terra e Marte giram, dentro da prpria rbita do astro deslumbrante, e com dificuldade que os distinguimos. Nosso modo de percepo acanhado e incompleto; a Cincia, porm, o desenvolve, revelando nossa razo o mundo invisvel, imensidade na qual o mundo visvel no passa de ligeira e frgil bolha de sabo. Paradoxo to estranho quanta incontestvel: a noite o facho da Cincia. Sem a noite, no conheceramos o Universo, nunca teramos visto as estrelas. O dia apaga a imensido dos cus. E os nossos olhos, formados nessa luz solar, no vem nada, quase nada, e, sobre cem vibraes, s sentem algumas. Sim, o mundo invisvel base de tudo mundo real, aberto Cincia, e no um mundo imaginrio ou sobrenatural. O sobrenatural no existe. A religio do porvir ser a religio da Cincia, da Cincia que nunca mente! Aqueles que duvidam da Cincia esto em errado caminho. S se sabe o que se aprende, e nunca saberemos o que nunca nos foi dado aprender. Para fonte de aprendizagem, seja do que for s temos a Cincia, e nada paralela. E' uma grande iluso imaginar outras fontes, reais, de conhecimento. - Evidentemente, replicou o medico. S h a Cincia. No devemos, no podemos afirmar seno o que soubermos. Eis porque no tenho temperamento
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religioso. No duvido da Cincia, e digo que ela no nos prova a alma, nem a imortalidade. - Sua misso no est terminada.; apenas comea. E' uma iluso julg-la pelo que nos tem dado at hoje. A Humanidade jovem, muito jovem, criana ainda, e tem milhares e milhares de sculos pela frente. Se compararmos sua vida durao de uma vida humana normal, poderemos estimar sua idade atual em um lustro, no mximo. Atingir a idade da razo, ou seja, os sete, quando souber pensar. Ainda no chegamos l. Ama-se a barbrie, a runa e a misria. E' um prazer para a maioria dos homens. No se pensa no se raciocina ainda. Tm-se esse lustro de idade, muito. Meu caro Dr. Bernardo imitais os escritores que pretendem julgar uma raa nessa idade. E' um pouco ingnuo. A conscincia, a razo, est ainda em estado rudimentar em nossa Humanidade terrestre. No podemos formar uma idia do que ser a Humanidade quando, a milhares de sculos, a conscincia tenha atingido o seu pleno desenvolvimento. Haver tanta distncia entre o nosso estado atual e esse futuro, quanto atualmente entre os animais inferiores e o homem. No, a Cincia ainda no nos deu o segredo da vida e da morte, porm no-lo dar. Se no chegar a esse ponto, porque a Humanidade terrestre estar condenada a uma eterna incapacidade. Isso pouco provvel porque, se o nosso saber atual ainda pobre, confessai que nos d belos dividendos; que comea a penetrar no Invisvel; que seus frutos j so maravilhosos; que temos alguns direitos de contar com o futuro. A Cincia nos salvar da bancarrota das religies. Constato que vos chocais, e assim muitos outros, com essa bancarrota das religies; mas, preciso ver as coisas de mais alto. O Cu de Moiss, de Jesus, de Buda, de Maom, no existe; os dogmas so erros. Que prova isso? Prova que os homens caram em engano, que as religies, prometendo a verdade e pretendendo no-la terem dado, falharam - eis tudo. Porm, isso nada prova contra os nossos destinos. No se podia adivinhar a natureza real do cu, a constituio do Universo infinito antes das descobertas da Astronomia. A Astronomia o facho, o nico, que pode esclarecer as nossas noes sobre o cu. E', pois, aos astrnomos a que compete lanar as bases da religio do futuro. - Admiro as vossas convices, replicou o mdico. S me convencerei, porm, da sua veracidade, se, mas vier repetir depois de morto, morte que no desejo, nem presumo. Tenho uma vintena de idade acima da vossa. - Virei eu, interveio Estela. Rafael no morrer.

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- No falemos disso, minha querida, replicou Dargilan. Retornemos ao que dizamos. A existncia de outros mundos, desconhecidos dos fundadores de religies, abre s nossas almas os horizontes do invisvel. Habitamos atualmente um astro do cu, e prosseguiremos. Cada um de ns a Parca de si mesmo, e tece o seu futuro. Nossa vida atual a semente da futura. Seremos o que tenhamos querido ser e merecido ser. Cada conscincia sente bem que no pode ser de outra forma. Vs No quereis levar em conta as aspiraes da Humanidade inteira, de todos os tempos e de todas as raas, e no dais explicao alguma da ordem das coisas. Nem razo, nem finalidade na Criao! Pretendeis que quando adormecemos no bom sono, conforme lhe chamais, no despertamos mais; que o grande Talvez seja um grande Nada. Nesse caso, nossa existncia seria sem finalidade. - A finalidade da vida gozar e procriar. Acreditai-me, acrescentou o mdico, examinai bem a Humanidade, e mesmo os animais - ou as flores, se preferem poesia - observai bem, pesquisai bem, e ver a a finalidade da vida, a inteno da Natureza. - E depois? - As crianas se tornam adultas por sua vez, e continuam a obra da carne. -E tudo? - Descobris alguma outra coisa? Dizei se quiserdes que as geraes sucessivas tragam um progresso Humanidade. - O futuro da raa no pode ser uma finalidade, uma vez que a Humanidade acabar com a Terra, e antes dela. -Pois bem, no h finalidade. - E admitis que possa ser isso a mesma coisa - naturalmente - para todos os mundos do Infinito? - Certamente. A lei a mesma para todos. Se houvesse, em qualquer mundo que fosse, for dotado do privilgio da imortalidade, poderamos pretender tambm com eles a mesma regalia. - Assim, na vossa opinio, o Universo inteiro no serve para nada? - Serve para o que existe. O Sol faz germinar as flores, amadurecer os frutos, iluminar a vida terrestre. Os outros sis iluminam, iluminaram ou iluminaro outras existncias. Vive-se por viver, eis tudo. Vede a nossa prpria Humanidade. Em que se ocupa? Em disputar seu lugar sob o Sol. Cada um cuida dos seus interesses, e s pensa, em geral, no dinheiro, que os representa. Em que passariam os homens a sua vida eterna, No importa em que mundo? Em lutar pela vida, em fazer negcios, em tosar o vizinho, exatamente tal qual aqui. Isso no vale a pena. Direi at mais. Deus no seria

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inteligente se outorgasse a imortalidade a seres de nossa espcie, a menos que ele se divirta com a nossa estupidez. - No tendes mais o que fazer de um deus qualquer, uma vez que no reconhece plano algum, nenhuma finalidade na Natureza. - E' o meu modo de pensar, vs o sabeis. Dizei-me onde est a Providncia, quando o raio mata os fiis junto dos altares; quando as igrejas flagelam os penitentes; quando as geadas de Maio destroem em uma breve manh todo o trabalho dos lavradores; quando chuvas diluvianas arrunam as colheitas; quando o ciclone semeia a devastao e a morte; quando o mar deglute navios; quando a criana - rsea e sorridente - arrebatada das mes; quando o incndio carboniza, em horrveis torturas, uma sociedade mundana reunida para fins de caridade? Admitireis tambm um deus - Moloque, que exige vtimas inocentes? Vergonha e cretinice! A Providncia est longe de ser evidente. No diviso seno acontecimentos brutais e cegos. Os bons so castigados; os espertos triunfam. Vedes, acaso, outra coisa? Vs amais o mistrio. - No nego o mistrio, acrescentou o filsofo, levantando-se. Existe em tudo. Nossa vida uma preparao ininteligvel para um destino desconhecido, que comea no tmulo. Paia julgar disso seria necessrio conhecer o conjunto do Universo e das Humanidades. As nossas idias de formigas so insuficientes. No meio de um obscuro caos, povoado de sombras incertas, nossa raa procura resolver o enigma do seu destino, e ainda no o conseguiu. Uma claridade, porm, comea a aparecer, anunciando a aurora, dissipando as sombras. Essa luz cresce e prepara o despontar de um sol esplendoroso. Eu sado nela a luz da Astronomia, fora da qual a Humanidade viveu na cegueira at aqui, e que chamada a nos revelar os arcanos da Criao, descobrir o verdadeiro, a desenvolver perante nossas almas os horizontes celestes abertos realizao de todas as nossas esperanas. Enquanto os homens se agitam no meio de suas ambies infantis, de suas vs querelas polticas e de seus interesses efmeros, a Cincia, calma e tranqila, prossegue o seu labor e se eleva, de conquista em conquista, rumo do conhecimento da Verdade. Pleno cu Rafael e Estela viviam em pleno paraso. Sua felicidade era sem nuvens. O Cu, a Cincia e o Amor enchiam suas almas. Um ano passava qual um ms, este qual um dia e o dia qual um minuto. Interessava-se por todas as descobertas, to mltiplas, to engenhosas, da cincia moderna, e j
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lamentavam a brevidade desta vida fugitiva, que os arrastava no seu rpido turbilho e os impedia de fruir longamente as coisas. As observaes astronmicas os atraam, toda vez que a pureza do cu era favorvel, e, por vezes, espreitavam durante horas inteiras uma clareira no cu, que lhes permitisse observar um fenmeno raro e passageiro; um eclipse de Lua, por exemplo, um desaparecimento de satlites de Jpiter, um mnimo de estrela variante, um cometa deslizando atravs das estrelas. Enquanto observavam, conversavam, comunicavam suas mtuas impresses, animavam o cu dos seus pensamentos. Certa noite de Outubro, depois de uma semana de chuva e frio, a atmosfera subitamente se acalmara purificada e at um tanto amornada. Quase fazia calor. A noite estava resplandecente de inmeras estrelas. As Pliades, precursoras de constelaes de Inverno, j se mostravam a Leste, trmulas quais filhotes em um ninho, agrupadas em torno de Alcone. A Via-Lctea atravessava o cu, descendo no Oeste, trazendo a cruz do Cisne nas suas nuvens de opala. O astrnomo e sua companheira observavam, sob a cpula silenciosa, um grupo de estrelas de duodcima grandeza, perdido no Infinito e que se mostrava qual um poo no meio de negro deserto. Um pouco fatigados com as mincias de uma observao atenta e escrupulosa que haviam terminado, saram para o terrao e ficaram maravilhados com a luminosidade extraordinria das estrelas. - Quanto noite est formosa hoje! Exclamou Estela entusiasmada. Estas estrelas, to luminosas assim, parecem at prximas de ns. Dir-se-ia que distingo a nebulosa de Andrmeda. - E a Via-Lctea! Replicou Rafael, seus dois ramos se destacam como dois braos de rio, rio de diamantes. Vs a Flecha e o Delfim? Que magnfico brilho esta noite! Mas, em que pensas? Acrescentaram passados instantes. Ests to silenciosa. Em que sonhas? - Pensava em que a Terra onde estamos um desses astros, um astro obscuro, minsculo, e que esse cu estrelado nos rodeia por toda a parte; pensava nas estrelas que esto sob nossos ps. Quais so as constelaes que brilham l em baixo neste momento? - As que esto em oposto a estas. Vs aquela brilhante estrela avermelhada, quase no horizonte sul; Fomalhaut. Caminhando naquela direo e fazendo a volta ao mundo, encontraremos mais longe, no cu austral, Achernar, que est abaixo do nosso horizonte, o Tucano, o Cruzeiro do Sul, o Centauro, a Hidra, a Virgem. - Pensava que estivssemos no meio do cu, que h estrelas abaixo e acima de ns, e que habitamos um astro.

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- Sim, como se habitssemos Vnus, Marte, Jpiter ou Saturno. Se estivssemos em Andrmeda ou nas Pliades, estaramos igualmente no meio do cu. Sempre se est no meio do cu. O centro do Infinito est em toda a parte. - Se a Terra fosse transparente, veramos neste momento as constelaes que esto sob nossos ps, e a Via-Lctea nos rodearia qual um turbante. Estamos realmente, absolutamente no cu. Era essa idia que me preocupava quando me perguntaste em que sonhava. E estamos, ali, no vcuo, carregados qual se estivssemos sobre uma barquinha. Cada uma dessas inumerveis estrelas um sol! Nossa situao no pode ser mais modesta. Que imensido! Ser que nesse exrcito de sis as estrelas mais brilhantes so as mais prximas? - No. Todos esses longnquos sis diferem uns dos outros em dimenses, em brilho, em natureza de luz, em idade, em fora, em potncia. - Conhece-se a distncia da minha estrela? - E' uma das que se tentou medir. Achou-se 204 trilhes de quilmetros. E' a distncia do Sol acrescida de um milho trezentos setenta e cinco mil vezes. Um trem direto, com a velocidade de um quilmetro por minuto, que levaria mais de dois sculos e meio para chegar ao Sol, correria durante 371 milhes de anos antes de chegar a Vega. O raio luminoso que recebemos, e que viaja com a velocidade espantosa de trezentos mil quilmetros por segundo... Adivinha a tua idade quando esse raio partiu de sua fonte em nossa direo? - Sabes que no sou forte em clculo. Tenho vinte cinco anos. - Pois bem, quando esse raio que estamos recebendo partiu, estavas no terceiro ano e quatro meses. Esse raio correu no cu em linha reta desde o momento em que partiu at chegar a tocar hoje em teus olhos. E' uma das estrelas mais prximas de ns. Dessa distncia, que nos parece espantosa, recebemos sua luz, recebemos seu calor. Sua atrao se combina com a do Sol, e bem assim com a dos outros sis, vizinhos, Srio, Prcion, Aldebar, Alfa do Centauro, Arctrus, para constituir de algum modo a base fundamental da nossa regio sideral. Os sis so os pivs do Universo. Nosso sol e todos os seus vizinhos se sustm entre si pela atrao mtua, e cada um circula no espao obedecendo ao conjunto das atraes. S o nosso planeta joguete de doze movimentos diferentes. Habitamos um astro mvel igual a todos os outros, balanado no vcuo pela fora universal.

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- E' justamente essa idia que me impressiona diante desse cu estrelado. Habitarmos um astro acrescentou Esteta, marcando pausadamente cada slaba. Sabes que se tem necessidade de repeti-lo para ficar convencido. As aparncias so to contrrias realidade! Habitamos um astro. Estamos no cu! Na luz de todos esses sis gravitam terras habitadas qual a nossa. No posso contemplar as estrelas sem pensar nesses seres desconhecidos, nessa vida longnqua e misteriosa, e nessa noite estrelada que se torna viva para minha alma. Oh! Gostaria de saber de que modo e por quem so esses milhes de mundos povoados! Esses seres desconhecidos podem assemelhar-se-nos? Tm eles os nossos sentidos? Pensam iguais a ns outros? Quando divago sobre essa vida universal, formidvel, fico emocionada. Quanto seria interessante uma comunicao com Marte, to prximo daqui! Porque no se chega a isso? Estela falava com o fervor de outros tempos, quando fazia suas preces; sentia-se em comunicao com a Natureza, contemplava as estrelas com amor, e parecia-lhe poder abrir asas e voar at elas. Sua alma vibrava na luz celeste, cujos raios atravessavam a imensidade, e acreditava sofrer tambm a atrao universal. Seus olhos encantados iam de Vega s Pliades, de Altair Capela, detendo-se sobre as mais brilhantes estrelas, pousando sobre as constelaes, arrebatando o pensamento no abismo sideral, e sentia-se to longe de tudo, que esquecia at o afeto mais caro, o seu mestre adorado, seu deus terrestre. Depois, ficou silenciosa, meio hipnotizada pelo cu. E calou-se, com os olhos fitos na estrela predileta. De repente, sem sair do enlevo, repetiu com voz grave, falando a si prpria: - Estamos no cu! Que se procura? Ali est, a realidade! A realidade sublime! O' minhas estrelas queridas! Eu vos vejo, eu vos amo, eu sinto que vos perteno. Porque procurar margem da verdade? Porque inventar sistemas? Sou pequena, minscula, invisvel, ignorada; mas tambm existo, penso e amo. Minha alma brilha; uma outra luz; v-se a atrao? Ali est vida, a vida universal, eterna. Que se procura? Ali esto as moradas da imortalidade. E' um arquiplago de ilhas celestes. J habitamos esse arquiplago. No estamos margem do cu, nem fora, nem abaixo; estamos em pleno cu. Se vivermos depois da morte, l que viveremos; no se deve inventar fbulas e contos. Se no vivemos, se os habitantes de todos os mundos nascem neles para neles morrer, a vida no tem finalidade e o Universo para nada serve. E' uma lanterna mgica, tola e burlesca. Vega, minha Vega! E vs todas, estrelas cintilantes, sis do infinito, sois os fachos da Eternidade!
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Estamos aqui, continuou, poderamos estar l, no Cisne, na guia, na Lira; nosso Sol poderia ser uma dessas estrelas; outra eis tudo; vivemos na irradiao de uma estrela; nosso Sol uma estrela igual s outras; estamos no cu. A Humanidade cega! Entretanto, tudo bem claro, bem evidente, incontestvel. A est o Universo; no o inventamos. A Humanidade imagina que no est no cu. Onde tinham os olhos os grandes espritos que a dirigiram? Que viram ento os fundadores de religies para pr a Terra em baixo e o Cu em cima, para terem separado o nosso planeta do resto do Universo, a vida c a morte l, e para suporem que o nosso ponto imperceptvel nos mundos era a finalidade da Criao? Porque no se desprendeu do erro vulgar das aparncias, para ver simplesmente a realidade? A vida no se extingue. No se far acreditar jamais que a nossa existncia seja sem finalidade alguma, e que todas as existncias inmeras, que se sucedem de estrelas em estrelas, atravs de toda essa imensidade, sejam tambm sem finalidade alguma. No. Agora vi a verdade, vi a luz. Sinto mais do que nunca a minha insignificncia; porm no uma insignificncia absoluta. Somos os infinitamente pequenos no infinitamente grande! Estela parou de falar, o olhar sempre mergulhado em plena Via-Lctea. - Meu amor, acrescentou, quando alo o vo para essas esferas sublimes, parece-me que a alma vai caminhando sobre poeira de astros! Rafael a escutara sem a interromper, feliz por ver que a contemplao desse maravilhoso cu a conduzira, qual uma intuio natural, doutrina religiosa que ele deduzira de suas anlises cientficas. Aproximou-se suavemente dela, tomou-a com ternura nos braos, e disse, sem procurar esconder a emoo. - Acabas de fazer uma bela viagem pelo cu, minha querida. Quanto o compreendes j! - Rafael, respondeu ela, parecendo continuar ainda os seus pensamentos, quer te diga o que me impressiona neste momento, em regresso dessa viagem de que falas? Pois bem, ao partir foi o fato claro, evidente, incontestvel de que a Terra um astro do cu; ao voltar ... Um outro fato no menos claro, no menos evidente, no menos incontestvel... - Qual? - A ignorncia, a indiferena, a toleima da Humanidade. Que risvel raa! Em que pensam todos esses seres? - Em nada, ou quase nada. A Terra um astro do cu; estamos atualmente no cu. Ningum o suspeita. Ningum sabe nada. A Terra nos leva no seu curso. Cada manh, quando o dia recomea, esse globo fez mais um giro, o pensamento o v girar.
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Ningum se preocupa. Nosso planeta est povoado de criaturas que no sabem onde esto. - E que no o indagam sequer lhes indiferente! - Acreditam que os habitantes de Marte ou de Vnus sejam tambm indiferentes quanto os da Terra? - A ignorncia nativa e satisfeita dos terrqueos deve ser um caso particular, uma espcie de anemia produzida pelo solo, igual papeira e ao cretinismo na regio de certos vales dos Alpes. O fato que eles vivem sem ter idia alguma da realidade. No sabem que habitam na irradiao de uma estrela. Se, por vezes, alguns deles olham para o cu, vem apenas um teto. A Cincia no existe para eles, e os sbios so uns originais. Notaste de que modo distribuem-nos as honras e a glria: primeiro para aqueles que os matam, depois para aqueles que os divertem, e um pouco, por exceo, para aqueles que lhes so teis. Poderiam ser ainda muito mais... ininteligentes, por exemplo, realmente cegos. - A diferena muito grande? - Sim. Um dia eles sabero servir-se dos olhos. Podemos desculp-los, porque seus interesses materiais, seus negcios, segundo dizem, os ocupam tanto, que quase no podem pensar em outra coisa. Passam vida correndo atrs da fortuna e morrem durante a carreira. E' pouco espiritual, sem dvida, mas, que queres? A vida terrestre assim mesmo. Os homens no tm tempo de pensar. - Entretanto, belo esse grande espetculo da noite estrelada. Que paz profunda! Que tranqilidade! Que grandeza! Oh! As Pliades subiram muito no cu enquanto conversvamos. Cintilam menos do que h pouco, parecem mais calmas. Conto sete. - Vs aquela que os antigos acreditavam terem visto desaparecer ao tempo da guerra de Tria. E' a mais fraca, e a vista comum no a distinguem. Os olhos mais apurados contam oito, nove, dez, s vezes at mais. - Quantas so na realidade? - Muitos milhares. O telescpio descobre minsculas da dcima quinta dcima stima grandeza. A fotografia revela outras mais imperceptveis ainda, porque o olho fotogrfico, a chapa sensibilizada, nova retina do astrnomo, ficando em exposio para o cu, durante algumas horas, acaba por ver o que a nossa vista no veria jamais. Essas Pliades formam um universo. - Parecem isoladas. Tenho a impresso de que a alma poderia fcilmente voar entre elas, qual um pssaro em uma rvore. Algumas vezes imagino que vo at l, e que olho em torno de mim o abismo do infinito por vezes, tenho medo. Sinto atravessar-me um calafrio. Pode a alma ter vertigens? Experimentei-as ante a sensao do Infinito, de igual modo que as sentira ante
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a da Eternidade. Tive de fechar os olhos do meu Esprito, no olhar mais, cessar o pensamento. Oh! O Infinito! Sinto-o, porm no chego a compreend-lo... - No entanto, muito mais fcil conceb-lo do que o finito. Ensaia representar-te um espao finito, experimenta supor um limite, uma fronteira qualquer a essa imensidade, e no o conseguirs tua imaginao passar a barreira. O Espao infinito. Vs aquele ponto do cu, l em cima. Voemos, como dizes, voemos at l, pelo pensamento. O claro vai depressa. Pois bem, supe que viajamos com uma velocidade mais rpida ainda, com a da luz. Ser-nos- necessrio, com essa velocidade de trezentos mil quilmetros por segundo, quarenta minutos para atingir Jpiter; uma hora para chegar at Saturno; quatro horas para tocai em Netuno; sete lustros e mais um ano para atingir a estrela polar; e um sculo paia chegar quela estrela. Continuemos nosso vo em linha reta, para alm daquela estrela, durante mais outro sculo, e, sempre mais longe, durante dez sculos, cem sculos, mil sculos, sem parar, sempre avante, com a mesma velocidade de trezentos mil quilmetros por segundo. Perdemos de vista a Terra, o sistema solar, o prprio Sol, tornado estrela e, pouco a pouco, desaparecido; tambm perdemos de vista as principais estrelas que observamos da Terra, e todas as constelaes que, gradativamente, se deslocaram pela mudana de perspectiva; atravessamos regies estelferas desconhecidas ao nosso planeta; depois, imensos desertos desprovidos de sis; roamos, em nosso vo, por mundos mais maravilhosos do que os anis de Saturno; fantsticos cometas - morcegos do cu e sis de clares fulgurantes, faris incandescentes lanando todas as cores do prisma atravs da imensidade; adivinhamos moradas estranhas, povoadas de seres sobrenaturais para ns outros, extraterrestres, extra-solares; porm, nenhuma atrao nos deteve, e continuamos nosso vo, em linha reta, durante dez mil, cinquenta mil, durante cem mil, um milho, dez milhes de sculos, sempre com a mesma velocidade de trezentos mil quilmetros por segundo. Onde estamos? Que caminho percorremos? Onde est, a fronteira? Onde o Universo termina? No avanamos um passo! Estamos no vestbulo do Infinito! Poderamos viajar assim, nessa mesma direo ou em outra qualquer, durante a eternidade inteira: no nos aproximaramos jamais do trmino. Que existe para alm? Novos cus. E mais alm? Novos cus ainda. E' o Infinito. Sem fim. Nem alto nem baixo: o Znite igual ao Nadir. Nem direita, nem esquerda, nem direo alguma. As estrelas so pontos de referncia, espcie de marcos sobre o caminho eterno, sobre os quais podemos fazer uma espcie de triangulao dos cus; mas no h um s ponto fixo na,
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imensidade, ao quais essas posies possam ser relacionadas. Essa viagem que acabamos de fazer, as prprias estrelas a fazem: elas tombam em todos os sentidos com velocidades prodigiosas. Ns mesmos viajamos no Espao, desde tempos imemoriais, e a nossa viagem no tem fim. Antes de nascer, a Terra j viajava, uma vez que fazia parte da nebulosa solar, em rumo para o seu destino. Depois do fim do mundo terrestre, as runas do nosso planeta continuaro a viajar nas suas novas associaes solares. O espao infinito; o movimento indestrutvel. Olha esta estrela, Alfa do Cisne, que caminha em nossa direo e que cai diretamente sobre ns, podemos assim dizer, com uma velocidade de 2 bilhes de quilmetros por ano. Entretanto, nunca nos atingir, porque vogamos para a constelao de Hrcules. Arctrus se precipita para o Sol, com uma velocidade de trs bilhes de quilmetros por ano. Existe, na Grande Ursa, uma estrela que voa com a velocidade de vinte oito milhes de quilmetros por dia, ou sejam dez bilhes de quilmetros por ano. Tudo isso corre, cai, circula atravs da imensidade sem limites. E' a poeira, a poeira celeste, chuva de diamantes impelida por um sopro divino... E tambm chuva de almas, pois l existem populaes incontveis. E que o nosso Sol? Um tomo. E que a Terra? Um nada. - E que somos? - Que somos? Meu amor... Emanaes de Deus, quando compreendemos esses esplendores. Sabes a idia que me veio a pouco, passeando minha vista por essa multido inumervel de estrelas? Parecem tocar-se, na via-lctea, por exemplo. Ao telescpio, as mais pobres regies do cu se enchem quase que por encanto. Pela fotografia celeste suficiente deixar a chapa exposta cinco ou seis horas para que fique coberta de pontos luminosos. Deixando-h bastante mais tempo, obter-se- uma verdadeira superfcie solar, todos os pontos luminosos se tocando. Pois bem, penso que, na realidade, todas as estrelas esto ligadas umas s outras, vizinhas, contguas, tal quais as molculas da nossa carne. - De que modo, se a mais prxima est a quarenta mil bilhes de quilmetros do nosso Sol? - Essa distncia no nada. Seus raios de luz, de calor, de eletricidade, suas atraes, seu magnetismo, se combinam. Parecenos que daqui ao Sol h um vcuo de cento e quarenta e nove milhes de quilmetros, e daqui Lua outro vcuo de trezentos oitenta e quatro mil quilmetros um erro; o vcuo no existe. O Sol mantm a Terra no Espao, ilumina-a, aquece-a, fecunda-a. Laos invisveis unem entre si todos os mundos. Nosso universo sideral deve formar um grande corpo, um imenso
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organismo, do qual os sis e os mundos so as molculas, os tomos materiais. No existe. Afastamento real entre os mundos. Esto entre si na mesma relao que os tomos de um pedao de ferro, de uma rvore ou de um corpo humano, que no se tocam e tambm vibram e se agitam em um movimento perptuo. O Universo um ser vivo. Cada mundo uma molcula do grande corpo. E as Almas circulam de um mundo para outro, eflvios animando o Universo. Sem elas, os mundos seriam inanimados. As foras psquicas, de igual maneira que as foras fsicas, atravessam essas distncias, longitudes que no so a que nos parecem. A est a grande unidade fsica e psquica. Olha a Via-Lctea: todas as estrelas se tocam. E o universo sideral visto de longe. Esse campo tenebroso a Noite. As almas o atravessam para passar de um mundo para outro. Esses mundos so os tomos do corpo do Universo. Temos sob os olhos uma grande unidade viva. - E que a morte? - A morte a porta pela qual a alma chega ao seu destino. J viste alguma vez um morto? Que inefvel sorriso no seu descansado semblante! No apenas o repouso dos msculos e dos nervos, no dizer dos mdicos. Existe algo mais, uma expresso de alvio da vida, de contentamento ntimo, de desdm pela matria, de um estado transcendente, que resta na fisionomia logo aps a partida da alma. Desprendendo-se, j entreviu a luz etrea. E' uma impresso anloga que o aeronauta experimenta em balo quando chega acima das nuvens: sai do escuro, do espesso, do lodoso, e, encontrando-se de repente em uma luz embriagadora, frui uma alegria penetrante que o enche de felicidade. No desejaria mais tornar a descer. Assim, e mais desprendida ainda, cintila a alma ao sair desta vida. Em um instante viu a luz, e a impresso permanece por muito tempo sobre o semblante inanimado, enquanto o luto e as lgrimas rodeiam o defunto de lgubre aparato. A vida igual a um sonho. As realidades que acreditamos ver em torno de ns no passam de aparncias mentirosas: a Astronomia, a Fsica e a Qumica o provam. Durante a vida no temos conscincia de nossas existncias anteriores, de igual modo que, em sonho, no nos lembramos de nossos sonhos precedentes. Mas, saindo desta vida, nos desprendemos do vu sensual e nos lembramos do passado. O astrnomo se deteve, contemplando silenciosamente a magnfica noite estrelada. Depois, de sbito, voltando-se para a companheira. - Olha! Exclamou, esqueci dizer-te que amanh, noite, h uma brilhante reunio no Cassino de Luchon. A Comdia Francesa deve representar uma excelente pea. E' uma ocasio rarssima. Queres ir?
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- Rafael! Exclamou Estela fechando-lhe a boca com a mo, no zombes da tua. Mulherzinha. Vem falar-me no teatro dos homens, quando temos este diante de ns! Cincia - Verdade Felicidade Levavam uma vida muito retrada e sua mtua felicidade lhes era suficiente. Apesar disso, o renome universal do Solitrio atraa por vezes, com especialidade no Vero, distraes inesperadas. Sbios ilustres, grandes escritores, filsofos de todos os pases, ao fazerem viagem Frana ou Espanha, desviavam-se do seu itinerrio para lhe fazer uma visita e passar algumas horas no observatrio pirenaico. De certa vez, veio expressamente de Londres um clebre fsico ingls para realizar, com ele e Estela, algumas experincias sobre foras ocultas. Em outra ocasio, um dos mais famosos inventores dos Estados Unidos veio consult-lo a respeito da fundao de um Observatrio magntico nos antpodas. Um rei, clebre pelas tendncias cientficas, quis passar por Luchon e Bosost, no intuito de visitar o autor do Domnio do Desconhecido e palestrar com ele. Em outra oportunidade, um de seus antigos camaradinhas do Aveyron, agora deputado e ministro, vieram oferecer-lhe, em nome do Governo, a cruz da Legio de Honra. Dargilan no teria solicitado aquela distino, porm aceitou, e Estela a reuniu, em lugar especial, s insgnias de Comendador da Estrela Polar e s de uma vintena de outras Ordens. - A est quem me reconcilia um pouco com a Poltica, disse ao seu amigo ministro; estou encantado de ver que podeis ter s vezes uma iniciativa pessoal. Confessai, entretanto, que, habitualmente, as coisas no se passam assim. Li trs jornais de tendncias diferentes. Parece-me que tanto sob a Repblica,, quanto sob o Imprio ou a Monarquia, e no estrangeiro, tanto quanto na Frana, os ministros so constantemente importunados por uma turba de intrigantes por causa de empregos, honrarias e condecoraes, e que essas coisas lhes so arrancadas, sem que eles tenham realmente a liberdade de escolher por si, e procurar recompensar o verdadeiro mrito. Reparai bem, no falo por mim, pois no mereo coisa alguma, e tenho todos os meus desejos realizados, e com excesso, na minha felicidade sem nuvens. Mas, em geral, vs, os ministros, no me parecem livres, e vos deixais conduzir. Se eu tivesse a honra e a infelicidade de ser Governo, comearia por jamais condecorar aqueles que o pedissem por no dar lugar alguns queles que acotovelam para chegar primeiro; por suprimir os pau de cebo e os bombos de auto-reclame; por tentar descobrir - eu mesmo - trabalhadores, os verdadeiros

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valores intelectuais. Porm, isso seria lgico, e ides responder-me que a lgica no deste mundo. - Espero que a minha administrao se distinga das precedentes, sob esse ponto de vista, replicou o ministro, e que saberei encontrar os homens de valor em qualquer lugar onde se ocultem... Se ficar o tempo suficiente para tal, acrescentou rindo. Sei bem, quanta a ti, que no ds grande importncia a essas espcies de testemunhos. - Entre nossa gente, essas fitas de diversas cores e essas pequenas placas de prata esmaltada so verdadeiros brinquedos um pouco infantis. A nossa verdadeira recompensa est em ns mesmos. - No entanto, ainda o nico meio de que podem lanar mo os governos para bem assinalar a estima por um sbio, um artista, um inventor, um grande cidado, um soldado que derramou seu sangue pela Ptria. Alm do mais, , para a maioria, um estmulo certamente til ao progresso. - Uma vez que foram inventadas, deveriam, ao menos, ser equitativamente adjudicadas. Um dia, o Venervel da Loja de cidade vizinha foi visit-lo, na misso de embaixador do Grande Oriente de Frana, e convida-lo a ingressar na Maonaria. Recusou, muito simplesmente, declarando que preferia a liberdade de esprito a todos os ritos; que, em nossa poca, assiste a cada um o direito de externar o pensamento e de caminhar para frente; que um homem independente no deve ser maos, nem clerical. A mais inesperada de todas as visitas foi a que recebeu s primeiras horas da manh de um lindo dia de Vero: a de um sacerdote, facilmente reconhecvel, apesar de vestido com hbitos burgueses, o qual declinou, de inicio, a sua qualidade. - Meu caro mestre, disse, deixo a Frana, vou exercer o meu ministrio na Sua, e vim pedir-lhe a sua bno. - Minha bno! - Sim. Abjurei os meus erros. Reconheci a verdade de que pontfice. - Mas eu no sou pontfice de coisa alguma. - O senhor o , semelhana de Jesus. Retorno religio dos primeiros cristos. - No creio em sacerdotes, nem em cultos. Para mim, a religio do futuro ser. Sem culto. - E a que Jesus proclamou no poo da Samaritana. Ele tambm no acreditava em sacerdotes. Expulsou-os, com os outros vendilhes do Templo. - No me dizia o senhor ir exercer o seu ministrio na Sua? Continua ento sacerdote? - Sim e no. Inclino-me para o velho catolicismo que no tinha a confisso auricular, as indulgncias e o purgatrio. Se no for o que eu penso, escolherei a religio dos Coptas.

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- Que necessidade tem ento o senhor de ai encarcerar no crculo estreito de um sistema religioso? - Meu caro mestre, vale por um Padre da Igreja, e sado na vossa pessoa o cardeal de Cusa reencarnado. Vossa religio, que verdadeira, que a de Buda e de Jesus, ainda a eleita por espritos superiores, por almas esclarecidas e delicadas, que compreendem a Cincia, a Natureza, a grandeza de Deus. Entretanto, aguardando o evento dessa religio pura, o vulgo ainda necessita de fices e de exterioridades. um encaminhamento ao qual quero consagrar-me. Aprendi, acrescentou, pelos meus prprios sermes, que o homem absoluto nos seus julgamentos, que apresenta as questes em tom autoritrio, s pode ser um ignorante, pais, desde que se analisem as coisas, no se pode mais ter certeza alguma sobre a maioria dos problemas da vida. Conversaram e discutiram, mas, de repente, o sacerdote se deteve de moda a parecer que no dissera tudo quanto tinha vindo dizer. Estela acabava de aparecer. Embora setenta e dois meses j se tivessem passado aps a ltima visita ao seu confessor, ela o reconheceu logo. - Sim, senhoria.., sim, minha senhora, disse, levantando-se e saudando com respeito: Sou eu! Tenho a religio do vosso marido, acrescentou, e vim confiar-lho, No sou a nico sacerdote no qual a Astronomia, modifica a Teologia. - Senhor Lafert, disse Estela,, eu vos devo muito reconhecimento, A ltima vez que, solteira ainda, vs me haveis ralhado severamente, naquele sombrio confessionrio de Santa Clotilde, aconselhastes que eu mudasse de ares, que viajasse, que fosse respirar a atmosfera pura das montanhas. Foi seguindo esse conselho que vim para c. - Soube-o logo, replicou o sacerdote, e tambm tive conhecimento, no Outono seguinte, das vossas veleidades aparentes de entrar para um retiro de freiras e, depois, na Primavera, da vossa fuga, que foi um grande acontecimento parisiense. Falou-se a respeito pelo menos durante oito dias! Muitas vezes me perguntei se sereis perfeitamente felizes, e, tambm confesso, tive a indiscrio de vir constat-lo pessoalmente. Pois bem, esto ambos com a verdade, e so recompensados com uma perfeita felicidade. - No mais sacerdote, senhor abade? - Sim e no. Sabeis senhor Dargilan, que o celibato dos sacerdotes no uma questo de dogma, e sim de simples disciplina eclesistica. Confesso que vou imit-lo. Aps ter feito tantos casamentos, conta de terceiros, fao agora o meu. Desposo uma das minhas antigas penitentes.
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- O senhor tem, creio eu, certa independncia de fortuna. - No meu quarteiro todo mundo sabe isso, porm no sou do lenho de que se fazem os bispos. Conversaram algum tempo ainda. O abade pediu para ver um novo livro filosfico, de grande xito, que o astrnomo acabara de receber da Alemanha. Enquanto Dargilan foi apanhar o livro na pea ao lado, o abade levantou-se da sua poltrona e veio sentar-se no sof em que Estela se achava. - Cuidado, senhor abade! Exclamou Estela afastando-se um pouco e puxando uma almofada de veludo bordado, o senhor estava sentado sobre os cabelos do meu marido. - Sobre os cabelos do seu marido? - Sim, essa almofada est cheia dos seus cabelos. Sou eu quem lhe corta o cabelo e lhe faz barba. Ningum toca na sua cabea. Como v, fiz uma linda almofada. Mas, no tenho mais onde p-loa. So de seiva extraordinria! Crescem velozes! - Ah! Suspirou ele, tomando a almofada. A idia rara. E' uma originalidade que a senhora Lafert certamente no ter. - Tanto mais, senhor abade, continuou Estela olhando para a sua fronte calva e o semblante glabro, que no sois muito ricos desse material. - Oh! Replicou o sacerdote sorrindo, minha felicidade no depende de um cabelo. Ento bem verdade que compartilhais de todas as idias do vosso ilustre marido? - Sim, absolutamente. Elas esto gravadas em minha alma a tal ponto, senhor abade, que eu, por elas, enfrentaria o martrio - e com verdadeira satisfao, acrescentou de olhar inflamado. Dargilan voltou, trazendo o livro, que comearam a folhear. Depois, o abade perguntou se poderia visitar o Observatrio. Percorreu com maior interesse ainda as estantes da biblioteca. Na ocasio das despedidas, tirou do bolso a ltima obra do Solitrio, As Regies da Imortalidade; pediu uma dedicatria na primeira pgina e rogou senhora Dargilan que a pusesse tambm sua assinatura. A carruagem que o trouxera voltava para Luchou. Despediu-se de ambos e apertou fortemente, nas suas, a mo que o astrnomo lhe estendia. - Esse aperto de mos, disse, a bno que lhe vim pedir. Fora dessas visitas diversas, bastante raras, alis, o Observatrio permanecia geralmente solitrio e digno das contemplaes e dos estudos de nossos dois astrnomos, pois, da mesma forma que a irm de Williarn Herschel, a esposa de Dargilan, conforme vimos, estava possuda de uma paixo absoluta pela Cincia. A vida de ambos continuou desenrolando-se em pleno cu, no meio das harmonias da Natureza.
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E ambos conheciam (o que raro nas mulheres) a felicidade da bibliofilia. Tomar em mos um bom livro, de caprichada edio, bem impresso, amplas margens, bom papel, encadernao elegante, gravuras de mestres, no muito pesado para manuseio, e contemplar esse livro antes de encetada a leitura, costas apoiadas em confortvel poltrona, lmpada com a luz projetada de trs para diante, percorr-lo, avali-lo, e depois ler vontade, saboreando todas as qualidades de pensamento e de estilo; tornar a encontr-lo mais tarde nas estantes de uma biblioteca aberta, acessvel a todos os caprichos da mo, em companhia de muitos outros no menos apreciados, era prazer refinado para o esprito, que tornava sempre muito breve e muito fugitiva as horas passadas na biblioteca. Oh! Quanto os livros so bons amigos! Escolhemo-los ao nosso gosto, consultamo-los, so fiis, instruem, esclarecem, guiam-nos, consolam-nos. E' uma sociedade intelectual, inteligente, distinta, de todos os tempos, de todos os pases, que associamos ao nosso esprito em horas de devaneio, de meditao e de repouso. Durante os primeiros tempos de sua felicidade, no lhes veio idia de fazer uma viagem, pequena sequer, alm de algumas excurses aos arredores de Luchou, ao vale de Lys, ao lago preto, ao lago verde, ao lago azul, ao lago do ao porto de Venasque, a Bosost, ao vale d'Aran, Maladetta. Somente uma vez foram at Cautereta e ao circuito de Gavarnie, e haviam admirado na sua grandeza as montanhas coroadas de bosques, os rios torrenciais, as cascatas impetuosas, o caos dos desmoronamentos pirenaicos, o grande circuito diademado de neve e os cimos soberbos que tentaram atingir, em uma ascenso brecha, de Roland. Porm no chegaram a distanciar-se at Pau, e voltaram ao seu ninho sem o ter perdido de vista. No quarto ano, decidiram ir at Bordus, e esquecer o cu durante quinze dias. Pelo mais feliz dos acasos ia dar-se em Luchou uma ascenso em balo. Tomaram lugar na barquinha e viram que o aerstato os levava naquela direo e os deixava prximo a Baione. Deteve-se em Biarriz, que lhes pareceu um paraso criado expressamente para os enamorados. Aps a cadeia grandiosa dos Pirineus, que, durante o percurso, se desenrolara sob seus ps em toda a luxuriante beleza, chegou de repente a uma praia maravilha diante de um mar to graciosa e calma quanto o Mediterrneo, na baa de Mnaco, durante os belos dias de Primavera. Se Bordus no fosse o objetivo da viagem, deixaria embalar pelo rudo caricioso das vagas, que vinham docemente espraiar-se na areia dourada. Amantes apaixonadas da Natureza, a grande cidade ativa, turbulenta, comercial, interessou menos do que as verdejantes montanhas e o mar: Encontraram ali todo um novo mundo. A imensa ponte sobre o Garona, o rio sulcado de navios, o porto, as ruas, as praas agitadas e os edifcios prenderam
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sua ateno durante trs dias. Uma das coisas que mais lhes feriu a curiosidade foi visita sepultura de So Miguel, onde esto expostos uns sessenta cadveres colocados em p, contra a parede da tumba., conservados no smile de mmias egpcias, com surpreendentes mincias. So seres humanos, salvos da decomposio pela propriedade da terra do cemitrio onde haviam sido inumados. Foram encontrados quase intactos, decorridos sculos do sepultamento, e expostos ali, a ttulo de curiosidade macabra. A pele, os cabelos, a barba, tudo est conservado. Notam-se, entre eles, velhos, crianas, uma senhora grvida, um homem que deve ter sido enterrado vivo. Essa espcie de exposio fnebre, de cadveres apinhanhados, causou jovem no s espanto, toas desgosto. Pensou no seu belo corpo, e, na nane seguinte, sonhou com vermes de cemitrio e foi assaltada por um espantoso pesadelo. Quis deixar Bordus na manh seguinte; desceram o Gironda, reviram o mar luminoso, respiraram os eflvios dos bosques de pinheiros, foram visitar a ilha de Yeu e a quase ilha de Noirmoutiers, onde Estela encontrou as origens da famlia de sua me. Depois cuidaram da volta aos livros amados, s suas observaes astronmicas, e s se detiveram na pequena estao de Montrejeau, onde visitaram o local em que, a 9 de Dezembro de 1858, caiu do cu uma pedra, da qual o astrnomo guardava preciosamente um fragmento em suas colees. Foi com um jbilo inteiramente novo que retomaram seus queridos hbitos. Alguns dias depois, Estela fez testamento no qual pedia fosse o seu cadver incinerado. O que eles mais estimavam, depois do trabalho intelectual, que d ao esprito suas melhorei alegrias, era a contemplao da Natureza. Estela se entregava, s vezes, diante do cu estrelado, de um poente, da imensa paisagem que se descortinava ao meio-dia da Torre, a interminveis devaneios. As formas cambiantes das nuvens que deslizam pela atmosfera, impelidas pelo vento, atraam seus olhares e seus pensamentos. Contemplavaas em silncio, vendo elevarem-se no horizonte longnquo. A impassibilidade tranqila da Natureza, no eterno movimento das coisas, conduz meditao. A alma se recolhe de algum modo para dentro de si mesmo, e parece obedecer a uma lei fatal. Que mistrio a vida! Dizia com freqncia, que insondvel mistrio! As nuvens passam Terra gira, as estaes e os meses se sucedem, os seres nascem, vivem, se agitam, morrem. E tudo isso por qu? Que somos ns? Nuvens talvez. E sua alma se perdia em devaneios sem fim. E assim se passavam os tempos. Certo dia de Outubro, sobremesa de opparo almoo, Rafael parecia mais alegre que de costume.

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Que achaste destes pssegos, meu amor? Excelentes, deliciosos. Que suco'. Que olor! H um pouco de ti dentro deles. Que ests dizendo? No adivinhas? - No, de forma alguma. No so muito grandes, mas, de fato, excelentes. - So nossos filhos. - Rafael, falas sempre por enigmas. - Pensa um pouco... - Ah! Nossas arvorezinhas? As flores rosadas da ltima Primavera? So elas? J? Parece que foi ontem, o teu amoroso capricho de batismo de sementes de cerejas e de pssegos. - E ento? As nossas arvorezinhas tm sete Outonos. Sabes quais as que cresceram mais depressa?... Os pessegueiros... Os pessegueiros rosados. - Isso no me admira. Contigo! Parecem mentira, sete Outonos! Meu corao diz - sete dias. Comamos aquele entre os dois. Decididamente o pssego timo, a melhor das frutas. Estes tm um gostinho adocicado bastante curioso. No acreditas que no paraso terrestre Eva tenha sido tentada por pssegos, em vez de mas? - E as nossas outras frutas? Os damascos, as mas, as avels, as amendoeiras, os castanheiros? - At agora s os pessegueiros deram flores e frutos. Os outros se reservam para o ano prximo. J esto todos crescidos. Os pessegueiros esto com 2 metros e 5o de altura; as ameixeiras ultrapassaram, porm ainda no floriram; uma nogueira mede 2 metros, o carvalho e o castanheiro 2 metros e meio. Deitando-se ao p dessas pequenas rvores j sem bastante sombra. A Natureza caminha e prossegue no seu labor. O Sol, a chuva e o solo nutridor agem sobre o ser vegetal: criam-no e desenvolvem-no. Essas rvores vivem, viver alm de ns sobre esta terra, e, nos sculos vindouros, talvez, o viajante, extraviado por estas montanhas, vir repousar ao p de um velho carvalho de ramagens imensas, sem suspeitar da hora de amor qual essa rvore secular deveu o nascimento. Contudo, sua sombra sagrada guardar, em seus estremecimentos, alguma recordao do nosso mistrio, ser meiga e benfazeja ao viajor fatigado. E se algum par amoroso vier sentar-se sob sua folhagem, sentir-se- tocado levemente por um sopro de volpia, por nossas sombras etreas, quando elas vierem rever estas recordaes queridas. - No fales de morte, meu Rafael. Estamos bem vivos. No morreremos. Tu no morrers nunca. Vamos, no mantenhas essas idias tristonhas. D-me mais um pssego. O amoroso filsofo denominara suas arvorezinhas de rvores estelares. Tratava-s com amor. No oitavo ano, uma Primavera suave e chuvosa as desenvolveu considervelmente; recolheram-se, alm dos pssegos, damascos e cerejas. As
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aveleiras, ameixeiras, amendoeiras, castanheiros e nogueiras cresciam conforme sua espcie. No dcimo ano j constituam verdadeiras rvores. Estela conservara relaes com muitas de suas amigas, notadamente com Ceclia, Adriana e Solange, que j encontramos no incio desta histria. Todas trs estavam casadas, tendo feito o que se chamam, no mundo, brilhantes casamentos. Desposaram homens ricos, mundanos, sem profisso fixa. O marido de Ceclia no tinha outro cuidado que administrar os haveres, bem elevados; sua vida comeava e acabava nos sales da elegncia parisiense. O marido de Adriana enveredara nos negcios e nas finanas. O terceiro era um deputado militante, muito em destaque no Parlamento. Mantinham correspondncia bastante freqente com Estela, mesmo depois do incio irregular do seu romance; estimavam-na pela sua sinceridade e originalidade, e tudo teriam desculpado nela. Entretanto, havia muito tempo que no recebia notcias dela, quando, por uma coincidncia assaz estranha, trs cartas lhe chegaram ao mesmo dia. Essas cartas so bastante curiosas, para que deixemos de reproduzi-las aqui. Os homens, que cada uma delas havia desposado, eram tipos diametralmente opostos aos que elas tinham sonhado quando solteiras. Viagem de frias Rafael e Estela viviam assim, desde um decnio, em ventura perfeita, incomparavelmente mais feliz, conforme acabamos de ver por algumas cartas, que, alis, falavam de males bem conhecidos. Sua felicidade era absoluta. A contemplao da Natureza, o aspecto sempre varivel das paisagens, os devaneios perante o Infinito, a observao telescpica dos outros mundos, os desenhos de Marte, Jpiter, Saturno, o estudo de curiosos conjuntos de estrelas, os problemas sem fim da Astronomia, e tambm, na Natureza terrestre, interessantes observaes sobre ninhos de pssaros, sobre as datas de renovao das folhas e florao das rvores, sobre as flores, sobre as estaes, e, nas longas noites de Inverno, a leitura de autores favoritos, as arrumaes na biblioteca, segundo o gosto ou o capricho do momento, a msica, na qual Estela sabia animar de grande sentimento as obras-primas dos mestres, haviam ocupado a vida de ambos, j quase inteiramente tomada pelo absorvente sentimento de mtuo amor que encantava perpetuamente seus coraes. Viviam na sociedade dos grandes Espritos que iluminaram a Humanidade, ou s.; divertiam algumas vezes em leituras profanas que os distraam das elevadas contemplaes do pensamento. A biblioteca se tornava cada vez mais variada. Poder-se-ia observar freqentes vezes, fora do respectivo lugar, todas as mais belas produes do esprito humano.
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Viviam, assim, na atmosfera de seu amor, no meio das flores de um jardim cuidado, sempre ocupados, sem nunca terem conhecido o tdio, a coberto de desgostos e decepes, estranhos a toda ambio e a todo deseja exterior, conhecendo da Humanidade o que ela tem de bom e de agradvel, habitando mais no cu do que na Terra. Esse decnio de ventura passara igual h dez dias. Depois da primeira viagem a Bordus, habituaram-se a voar, cada ano, durante algumas semanas, para longe de seu ninho dos Pirineus. Visitaram primeiro a Sua, no intuito de colher uma impresso comparativa dos Alpes e dos lagos, relativamente s paisagens pirenaicas, com as quais estavam acostumados; sonharam ternos sonhos junto das margens do lago de Como; foram Itlia, permanecendo alguns dias em Veneza, onde inolvidveis impresses ficaram indelveis em suas almas encantadas. O balouar voluptuoso das gndolas; as serenatas no grande canal; o luar sobre as lagoas; os velhos palcios de mrmore, surgindo das guas; a Praa de So Marcos; a baslica oriental, de um misticismo sensual na sua luz multicolor; o elegante palcio do Doges; a ponte dos Suspiros - fazem de Veneza a moradia expressamente preparada para o prazer dos amantes. No ano seguinte, visitaram a Espanha, sua vizinha. A seguir, foram Esccia, com a pitoresca cidade de Edimburgo, os lagos e as montanhas de Ossian, que os atraiu. Em outro ano, preferiram no sair da Frana e percorreram o Auvergue, as gargantas do Tarn, terra natal de Rafael, e voltaram por Paris, a fim de passar alguns dias no quarteiro onde Estela vivera a infncia. Os grandes formigueiros humanos, Paris, Londres, Madrid, Lio, Marselha, havia-lhes-lhes interessado, porm no seduzido. Retornavam cada vez com um acrscimo de felicidade ao seu caro paraso, onde a contemplao do cu Lhes reservava constantemente novas maravilhas. Nesse dcimo ano de sua era de ventura, decidiram fazer uma viagem ao Tirol, visitaras montanhas do Arlberg e do Brener, Innsbrck, Hall, Salzburg, Ischl, Gmnden, Hallstadt, os lagos e as geleiras da pitoresca regio. Innsbrck os deteve por vrios dias. Suas ruas bizarras, to diferentes das ruas das cidades francesas; sua situao prxima dos Alpes germnicos; seus cantos tiroleses; seu velho castelo de Amras, cheio de antigas armaduras e colees; a igreja dos Franciscanos, com o seu tmulo de Maximiliano e suas colossais esttuas de bronze, em vestes e armaduras de tempos j idos, desde Clvis, Teodorico, Artur de Inglaterra, at Carlos, o Temerrio, Filipe, o Bom, Eleonora de Portugal e Joana, a Louca, me de Carlos V, excitaram ao mais alto ponto sua curiosidade. Acharam essa igreja extraordinria e absolutamente fantstica, noite, ao plido claro das lmpadas das capelas e pouco se surpreenderiam, quando erravam pelos correres sombrios, se vissem
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essas hericas esttuas descendo dos pedestais para despertar Maximiliano em seu tmulo. Essas viagens eram para ambos um assunto de deliciosa variao em seu eterno tema de amor. Iam gelas ruas, campos ou bosques, montanhas ou praias, sem se preocuparem com o resto da Humanidade, tal se estivessem ss no mundo e em sua prpria casa. Vendo passar, acreditar-se-ia em uma viagem de npcias, sem suspeitar que o noivado durasse havia dois lustros. As horas fugiam para elas rpidas e fericas. Nunca estavam prontos, a qualquer hora da manh, para o caf ou para o trem; faltavam s caravanas excursionistas; se passeavam um pouco, esqueciam igualmente a hora do jantar - amorosos, apaixonados, frementes, to encantados de viver e to jovens quanto no primeiro dia. Quando suas mos no se tocavam, seus olhos cantavam. Transeuntes voltavam-se sua passagem, acompanhavam-nos com o olhar, invejavam-nos. Eles no viam ningum. Visitaram o Tirol, de igual modo que a Itlia, a Espanha e a Esccia, felizes de juntos correrem o mundo; de respirar unidos um ar que parecia sempre feito s para eles; habitar, em comum, novos aposentos imprevistos; contemplar, num simultneo olhar, novos stios; viver fundidos em novas molduras maravilhosamente escolhidas para apaixonados, cujos olhos, alis, embelezam e poetizam tudo. Essa vida a dois era tudo para eles. As cidades e as paisagens ficavam em segundo plano. De Ragatz a Innsbrck, a via-frrea, vinda de Zurich, desce primeira o vale do Reno superior, dirigindo-se pira o Norte e lago de Constana, vira depois a Leste e sobe pelo vale de III aos declives de Arlberg, que ascende lentamente at ao tnel, a mil e trezentos metros de altura. De um lado e de outro do caminho, existe um extenso vale, muito largo, com belos prados e verdes pastagens na confluncia do III e do Reno, e que se vai estreitando gradualmente at ao cimo do Arlberg. medida que se sobe, espera-se a desapario das aldeias e habitaes humanas; porm, ao contrrio, elas se sucedem e estendem ao longo dos riachos e fica-se atnito de ver, at nos planos mais elevados, a exemplo de Santo Antnio e Landech, em regies onde o Inverno reina trs quartas partes do ano, atraente povoaes, verdes pastagens, igrejas de torres elevadas, graciosos chals encravados nas encostas das montanhas. A descida do Arlberg, at Innsbrck, segue-se ainda um vale que se prolonga para alm durante muitas horas. O grande vago da cauda dos trens, que diariamente atravessam sem cessar essa pitoresca regio, permite admirar vontade a suntuosa paisagem, as montanhas longnquas, as cidades que passam os prados, os capoeires e todas as curiosidades do caminho. O vale do Inn gradativamente se elastece e, depois, deixando-o, se chega a outros vales no meio de abruptas montanhas, e se contorna em seguida a torrente impetuosa do Salzbach, que rui em
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mltiplas cascatas, e corre com impetuosidade atravs das rochas desmoronadas. Quedas d'gua, riachos e florestas passam. Um velho castelo, pendurado no cimo de imensa rocha a pique, parece mirar de cima as pequenas coisas que passam a seus ps. O vale se agranda, abre-se a plancie, surge Salzburg. Nossos viajantes tambm a se demoraram. Poucas cidades podem comparar-se a ela, pela beleza da situao. O Curso do rio Salzbach, que a atravessa, as duas montanhas do Monchsberg e Capuzinerberg que a flanqueiam de um lado e de outro, sua alta e formidvel cidadela, as fachadas esbranquiadas ao Sol, os jardins floridos, os terraos, as cpulas de igrejas e conventos, as afeias de rvores seculares, os caminhos que a prolongam para longe, a graciosa grandeza das paisagens debruadas a alguma distncia por soberbas montanhas, e todos os arredores magnficos e pitorescos haviam-nos transportado a uma regio de contos de fadas. A alimentao era excelente, e os vinhos de tima qualidade. Teriam esquecido o cu se no o tivessem levado consigo. Pareceu-lhes, aps alguns dias de estada, que tinham tendncias Sibaritas. Ficaram sobremodo encantados com uma excurso ao lago do Rei, ao Koenigs-See, na Baviera, quase s portas de Salzburg, o mais lindo lago da Alemanha que rivaliza, pelo tamanho, com os da Sua e da Itlia, apresentando um carter muito mais selvagem, pois as montanhas que o rodeiam so verdadeiras muralhas infranqueveis. O imenso lago, de um verde escuro, jaz ao fundo dessa enorme bacia de rochas que o aprisionam e lhe do um invarivel frescor, mantido tambm pela profundidade das guas. Um dos declives menos vertical e coberto de bosques at superfcie do lago. Verdes galhos caem a guisa de cabeleiras que se banham em ondas. Ao fundo, a barca chega a um promontrio dedicado a So Bartolomeu, onde se encontra antigo castelo de caa e uma capela, e, atravessando-se pequena lngua de terra, chego-se a um segundo lago rodeado por um circuito grandioso, que faz lembrar o circuito de Gavarnie com a sua cascata. O percurso de Salzburg ao lago foi to encantador quanto o prprio lago. E um dos mais pitorescos que se podem ver, embora na plancie. A aldeia de Berchtesgaden, com as suas casas italianas, seus prticos, vestimentas de cores fortes, soas lojas de pequenos objetos de madeira e marfim, projeta uma flor luminosa em meio ao verdor dos prados e dos bosques. Detiveram-se na primeira aldeia que atravessaram na Baviera, por motivo de uma velha igreja. Desceram um instante da carruagem, rodearam a igreja, e, vendo na praa um pequeno monumento coberto de inscries, aproximaram-se. Leram que fora erigido em memria aos soldados do lugar, mortos durante a guerra de 1870. O Sol era radioso no cu azul e crianas brincavam sombra de um grande
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porto. Pobre aldeia! Alguns metros de diferena no traado da fronteira e pertenceria ustria em vez de Baviera, e aqueles seus filhes no teriam ido derramar o sangue por uma causa desconhecida em terra estranha. Alguns tomos de bom-senso e honestidade na cabea de Bismarck teriam deixado a Europa em paz, e no se teria feito a Civilizao recuar de um sculo! Rafael e Estela quase se sentiram impelidos a ajoelhar diante desse pequeno monumento de aldeia, testemunhando o seu pesar pelas vtimas da ambio de alguns malfeitores, e tambm para rogar a Deus que impedisse, doravante, as guerras em seu primeiro grmen pelo gro de areia de - Cromwell. Voltando ao hotel, encontraram, em cima de certa mesa, sem dvida esquecido por algum ingls, uma obra do sbio Sr. Humphry Davy, cujo ttulo lhes atraiu a ateno: Os ltimos dias de um filsofo, e, folheando-o, seus olhos se detiveram sobre a admirvel descrio dos Alpes da Ilria, que Estela comeou a ler em voz alta para Rafael. - Como curioso! Acrescentou, fizemos mesma viagem que esse sbio realizou h trs quartos de sculo. Que simpatia! No h nada a acrescentar, pensamos exatamente iguais a ele. - Se leres mais algumas pginas, vers que ele esteve para morrer l. Espero que no o imitemos at ao fim da viagem. - Por qu? S lhe faltou morrer, dizes? Ficarias realmente contristado de morrer agora? Sabes que sempre tive a opinio dos antigos, que no desejavam envelhecer, e asseguravam que os deuses chamam a si os seus eleitos. - Estela! Amo-te! - E no nos amaremos para sempre? Em Marte ou em Vega? - Um toma, vale mais do que dois te darei, diz o provrbio. E eu sei que te tenho. - Oh, sim! Ter-me-s para sempre, assim o quero! - No gostarias de ser homem, em uma existncia futura, enquanto eu seria tua mulher; seres eu, por exemplo, enquanto que eu seria tu? - No. Estou muito satisfeita sendo tua mulherzinha. Isso me suficiente. E tu? - Eu tambm. - Ento, no tenhamos pressa de mudar de corpos. Sabes, porm, como disseste um dia, que breve chegaremos ao nosso meridiano. Ser agradvel descer? - Tu no tens seis lustros, se bem que quase. Tenho oito. E' a juventude. E depois, com o nosso amor, envelheceremos algum dia? - Que astro pode permanecer no meridiano, sem descer? Onde est o Josu que a deter?
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- Josu, s tu. - Sinto que te amarei sempre, e cada vez mais. Porm tu! Se no me amasses mais, se me amasses menos! Dizem que os homens no sabem amar igual mulher. Um dia terei rugas, cabelos brancos. A juventude no pode ser eterna. Pois bem, se tu me amasses somente um pouco menos, sofreria tanto que preferiria morrer. - Estela! Porque essas idias estranhas? - Porque sou muito feliz. Meu Rafael, eu te amo tanto! E atirou-se ao seu pescoo. Seus olhos estavam cheios de lgrimas. - Sim, amo-te, prosseguiu, fui e sou muito feliz. E eu sei, sim, eu sei que essa felicidade acabar. H um segredo que nunca te confessei. - Um segredo? - Sim, pois sempre hesitei, renunciei falar-te. Oh! No entanto no grave. No te atormentes. E' at muito simples. E' o seguinte: Estava ainda no Internato. Tinha dezesseis anos de idade. Em um dia de sada, minha me, j atingida pelo mal que deveria abat-la, foi com minha tia consultar uma espcie de sonmbula de quem se falava muito ento. Pedi, por minha vez, licena para interrog-la. Pois bem! Predisse minha vida tal como se passou at este momento. Sim. Grande amor. Grande mgoa. Mudana de existncia. Vida intelectual. Felicidade perfeita. E... - E? - E morte durante uma viagem. - Acreditas isso? - Sim, visto que tudo quanto me anunciou aconteceu ao p da letra. E tu tambm, meu querido, acreditas na viso do futuro, em pressentimentos, em sonhos premonitrios. Muitas vezes me disseste que quantos conhecessem as causas das nossas determinaes poderiam ver o porvir to fcilmente quanto vemos o passado. - Certamente. No h efeito sem causa; porm ela no podia anunciar a poca da tua morte. Certamente tu te enganas. - No. Ela me anunciou que a minha felicidade terminaria por uma grande viagem. Nunca fizemos uma viagem to longa quanto esta. - Oh! E Edimburgo? Se contasses os quilmetros! E, depois, no tencionamos ir ao prximo inverno ao Egito? - E' verdade, disse ela. Estava louca. - Se tu me houvesses confiado esse famoso segredo, no ano passado, na Esccia, j se acreditarias a pique da vspera da morte. - Nem tinha pensado. Mas, porque me lembrei disso hoje? - A culpa de Sir Humphry Davy. - Sim. Esqueamos esses receios imaginrios. No dia seguinte, foram ao lago Traun, em Gmunden.
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O curso do rio, to rpido na sada do lago, o prprio lago, ridente e gracioso na grande bacia de Gmunden, severo e quase triste na pequena bacia de Ebensee; a enorme massa calcrea do Traunstein; o caminho, subindo a Traun, do lago a Ischl e o stio esplndido de Ischl na sua moldura de colinas, montanhas e geleiras, trouxeram ainda viagem novas impresses, encantadoras e variadas. Dali acompanhou o Traun, pelo lago de Hallstadt, at Aussee. A via frrea serpenteia atravs de uma srie de sombrios barrancos que parecem encerr-la a cada instante em um antro, e, medida que sobe nesse estreito vale cavado pela torrente, o viajante acredita afastar-se gradativamente do mundo dos vivos para extraviar-se em regies inspitas que a espcie humana ainda no habitou. O desfiladeiro selvagem, no fundo do qual borbulha o Traun, termina por desembocar em um trplice vale superior, no meio do qual adormece a graciosa aldeia de Aussee. Torna-se a encontrar ali os costumes pitorescos das filhas de Ischl, mas persiste a impresso do prolongamento do fim do mundo. Ali trs lagos atraram ainda os nossos viajantes: o Grundlsee, que se atinge aps a travessia de um bosque, e que se mostra enquadrado em montanhas semeadas de chals e bordejado de cabanas de pesca e de banhistas; mais adiante, subindo sempre o Traun, o lago de Toplitz, agreste, sombrio, solitrio e silencioso; e alm, mais perdido ainda na montanha, o pequeno Kammersee onde o rio tem a nascente. No se cansavam de admirar, remirar, divagar particularmente na travessia do melanclico Toplitz, que parece to longe de tudo, to estranho a toda animao humana, que se acreditaria estar na Lua e no na Terra. Na montanha plena de bosques, onde terminam os trs lagos, estava-se a uma altitude de 600 metros. Atravessando o Arlberg subiram, at 1300. Em Pilato; permaneceram dois dias, a mais de 2000 metros. O ar leve das montanhas embriaga pela sua pureza, de igual modo que a viso das alturas fascina pela majestade. Muitas vezes, especialmente desde alguns dias, entre os cimos dos montes cerrados de bosques, perceberam a alva geleira do Dachstein, que, nos Alpes do Salzkammergut, eleva sua crista de neve a 2900 metros de altura. Tinham a mais viva ambio de ir at l, e escutavam com entusiasmo as narrativas dos turistas que desciam. Sua inteno era ir a Hallstadt. Hallstadt pequena aldeia incrustada no flanco de um rochedo, isolado ao fundo do lago, um pouco semelhante Veneza era suas lagoas, silencioso e solitrio, onde no passa estrada de ferro, e aonde s se chega da estao utilizando barcos. Uma enorme queda d'gua se precipita bem no meio da aldeia, por detrs das mui modestas moradias, no longe da igreja e do cemitrio, ou melhor, das duas igrejas e dos dois cemitrios, porque esta pobre povoao de mil e quatrocentas almas est dividida entro duas religies rivais,
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o Catolicismo e o Protestantismo. Hallstadt to singularmente situada ao fundo do lago e ao p setentrional das montanhas, que no v o Sol, de 17 de Novembro a 2 de Fevereiro. Os arquelogos conhecem o antigo cemitrio cltico ali descoberto. Este lugar habitado desde muitos sculos, principalmente por causa da explorao das minas de sal. Ali tambm naquela solido alpestre, em face ao lago e s montanhas, desejariam eles permanecer por muito tempo. Mas o tempo estava esplndido e o pice nervoso do Dachstein continuava a atrai-los. Alm do mais, uma grave e apaixonante questo astronmica cativava desde algum tempo o pensamento do sbio e era tambm sonho de sua companheira. Calculara que as estrelas cadentes de 10 de Agosto deviam ser extremamente numerosas naquele ano, e que um cometa, originariamente associado ao terceiro cometa de 1862, devia de novo encontrar a Terra e espargir uma verdadeira chuva de estrelas nas camadas superiores da atmosfera. Era um espetculo celeste que vira somente uma vez, e em ms condies, quando, a 27 de Novembro de 1872, estilhaos do cometa de Biela encontraram nosso globo e sulcaram o cu de tal quantidade de meteoros, que se podiam comparar a uma queda de flocos de neve, sendo que certos observadores avaliaram seu nmero em mais de sessenta mil. Tambm Estela desejava ardentemente assistir a esse espetculo. Quanto mais alto estivessem nas montanhas, melhor seria o posto de observao. Ao projeto de ascenso ao Dachstein associou-se logo o da observao das estrelas errantes. Mas, seria possvel passar a noite na geleira? A questo foi examinada com os guias, e, aps diversas combinaes discutidas e rejeitadas, resolveram levar quatro deles, carregar cobertores, vveres e uma tenda, e instalarem-se no alto da montanha, a menos que o vento e a neve a tal se opusessem em absoluto. Depois de alguns dias de preparativos, decidiu-se a empreender a ascenso e deixaram Hallstadt antes da alvorecer, acompanhado dos condutores. Em sete horas, pelo Echarn-Thal, o Alte-Herd, o Propfevand, o Thiergarten e o Ochsenwies-Hhe, atingiram o mirante de Simony-Hut, a dois mil metros de altitude. A vista se estendia maravilhosa, sobre todo esse macio dos Alpes orientais. A ascenso fora fatigante, e decidiram passar ali a tarde e a noite, tanto mais que um vento violento comeara a soprar. A barraca em que esperavam dormir foi sacudida pela tempestade, que uivou durante toda a noite, e no lhes permitiu um instante de repouso. Podia julgar no alto de um pico deserto ou em um navio sem refgio, abandonada em pleno oceano. Levantaram-se pela manh, antes do Sol, no intento de voltar sem prosseguir a ascenso. No entanto, porque o venta amainasse de um momento
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para outro e um Sol radioso alegrasse a atmosfera amornada, continuaram a marcha com os guias, atravessaram a geleira de Hallstadt e chegaram a duas horas junto do Dachsteinwand. Ento, com o auxlio de cavilhas de ferra plantadas na rocha e da corda metlica, atingiram o alto em hora e meia de marcha. O panorama desvendou-se esplndido aos seus olhos maravilhados; a vista se estendia da Schneeberg floresta da Bomia, sobre os picos, as montanhas e as colinas. O ar estava muito puro, seco e frio. Permaneceu longo tempo em contemplao, na embriaguez das alturas, mergulhados na mais viva admirao. O tempo estava realmente esplndido. O furaco da vspera fugira para longe, e tudo anunciava uma bela tarde e uma noite bem propcia s observaes. Os guias cuidaram de instalar uma tenda sob a qual os dois turistas pudessem dormir. Uma ligeira anfractuosidade servia muito bem para tal instalao. Em algumas horas a tenda foi slidamente amarrada, numerosas peles de cabra e de antlopes foram superpostas e forradas, e fogos foram acessos. O Sol adormeceu em um leito de prpura e ouro. Seus ltimos raios envolveram o imenso panorama em uma iluminao fericas que, suave e insensivelmente, se extinguiu, enviando um adeus da luz Natureza. A sombra da Terra subiu lentamente no horizonte oriental, trazendo o crepsculo, e as primeiras estrelas se acenderam. Rafael e Estela estavam ss no alto da montanha; os guias se haviam retirado, antes do pr do Sol, para um velho abrigo cavado na rocha; um pouco mais abaixo, do lado do levante; comeram por sua vez, estafados que estavam de fadiga, e deviam, na manh seguinte, antes do nascer do Sol, despertar os turistas, desmontar a tenda e preparar o regresso. Naquela solido das alturas e profundo silncio da Natureza, os dois contempladores, emocionados pela grandeza e magnificncia do poente, admirando as maravilhosas nuanas da Terra e do cu que sucediam desapario do astro-rei, viram-se envolvidos, em breve, nas trevas da noite, atenuadas por um brando luar, sem se aperceberem da fuga das horas. E apenas tiveram tempo de pensar nas estrelas errantes e no cometa, quando sua ateno foi atrada na direo das constelaes de Andrmeda, Cassope e Perseu por foguetes celestes, preldios de fogo de artifcio firmamental. Fulgentes estrelas errantes comearam a atravessar a atmosfera. O astrnomo reconheceu logo que no se enganara em seus clculos, e que o ponto de irradiao correspondia exatamente s coordenadas da rbita do cometa. De resto, mal anoitecera, um foco de vaga luminosidade foi percebido nas profundidades do cu, precisamente no ponto calculado. O astro cometrio, do

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qual as estrelas errantes eram as desagregaes, vinha ento em direo a Terra, qual o estado-maior de um exrcito no meio das suas falanges. A chuva de estrelas comeara, e, gradativamente, se tornavam to numerosa que fora impossvel cont-las. Apesar do luar, que eclipsava um grande nmero delas, a comparao com flocos de neve no era exagerada. Unicamente se compreendia que estavam muito longe. Entretanto, algumas se mostravam to brilhantes que pareciam chegar at montanha, a ponto de os turistas se perguntarem se uma ou outra no iria cair a Terra. Deslumbrantes blidos vinham da mesma regio, cresciam, tornavam-se vermelhos e verdes, e estouravam. O ncleo cometrio aumentara e invadira uma parte da constelao de Cassope. Absorvidos, um e outro, na observao celeste, os dois amantes separaram-se aps alguns instantes, procurando, por assim dizer, abranger todo o cu ao mesmo tempo. No se olhavam um ao outro, lanavam mil exclamaes, no afastavam os olhos das estrelas. Seus crebros estavam superexcitados, sem que de tal se apercebessem, seja pelo espetculo inslito e extraordinrio que se ia desenvolvendo no espao, seja talvez tambm por causa da intensa eletrizao da atmosfera que fazia passar em suas artrias uma nova corrente de vida. De repente, voltando-se para o lado de Estela a fim de acompanhar a queda de uma estrela que, a guisa de foguete, parecia cair lentamente at a Terra, Rafael gritou: - Estela! Que tens? Ests em labaredas! E precipitou-se sobre ela. - Tu tambm. Exclamou Estela. Com efeito, penachos luminosos levantavam-se de suas cabeas, dos ombros, de suas mos erguidas. Precipitando-se, instintivamente, sobre ela a fim de apagar as chamas, conseguiu extingui-las, com efeito; porm os penachos luminosos passaram todos para a sua prpria cabea, que ficava mais alto do que a da companheira. Seus cabelos eriaram, prolongando-se em filetes inflamados, Estela teve medo e pausou vivamente suas mos sobre a cabea de Rafael. Essas mos, por sua vez, se cobriram de chamas, feio da labareda do ponche, ardendo sobre a cabea do seu bem-amado. Contudo, no sentiram calor algum, mas frmitos lhes atravessaram as carnes. Rafael tomou. Estela em seus braos e a beijou sobre a boca. Ento, o contacto de seus corpos lhes deu uma sensao nova, jamais experimentada nos auges do seu amor. Cada um deles foi invadido por um imenso desejo de substituio. Estela sentiu que, mais do que nunca, lhe pertencia totalmente; s existia, na felicidade de pertencer a ele; s vivia pela fuso nele. Rafael, que a conservava em seus braos num beijo sem fim, experimentou a mesma

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sensao de que ela o absorvia e sua personalidade ia desaparecer para fundirse com ela, a adorada, em um ser nico. Clares sulcavam a atmosfera. Todo o cu parecia atravessado por palpitaes magnticas da aurora boreal. A neve estava rsea e parecia aquecida. Naquela noite de 10 de Agosto produzira-se uma inverso de temperatura, qual, s vezes, acontece nas montanhas. A frialdade baixara plancie e baforadas de calor passavam sobre eles, aumentando ainda a tenso eltrica de seus nervos. Ao penetrar na atmosfera, o cometa determinara uma eletrizao prodigiosa daquele cimo elevado dos Alpes, de alturas areas, e dos dois seres sensitivo que pairavam naqueles cimos. As chamas continuavam a voltear sobre suas cabeas, seus ombros, seus braos e suas mos. Foram para a barraca e fecharam-na. Deitando-se sobre as peles forradas, vira brotar milhares de fascas. A Natureza inteira estava saturada de eletricidade. A carne de Estela estava impregnada; clares fosforescentes percorriamna; sua cabeleira deslumbrava.. Todo o seu corpo, sobre o qual descobrira, ela mesma, em outros tempos, curiosas manifestaes de eletricidade humana, estava em um paroxismo indescritvel. - Meu amor! Meu amor! Meu amor' exclamou envolvendo com os braos o pescoo de seu bem-amado e atraindo com violncia os lbios de encontro aos seus, nunca te amei tanto quanto nesta noite. D-me a tua vida, pois eu te dou toda a minha existncia! O cu estava abrasado e a sua rutilante claridade aparecia avermelhada atravs dos interstcios da tenda. Espritos celestes - poeira terrestre O Dr. Bernardo acabava de almoar tranqilamente no Cassino de Luchon, quando, lendo o jornal, as seguintes linhas feriram sua ateno com a intensidade de letras de fogo: AUSTRIA - A noite extraordinria de 10 de Agosto, de que j falamos ontem, e que foi assinalada em todo o Tirol por fenmenos eltricos to estranhos, relmpagos de calor sem trovoada, por uma verdadeira chuva de estrelas e pela apario de deslumbrante luz nas elevadas camadas do cu, por volta de duas horas da madrugada, tambm foi infelizmente marcada por um triste acidente. Dois franceses, um sbio muito conhecido, Rafael Dargilan, e sua jovem esposa, que tinham deixado Hallstadt na antevspera, para uma ascenso ao
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Dachstein,foram encontrados mortos no vrtice da montanha. Quiseram passar a noite sobre a geleira para assistir ao despontar do Sol. Os guias, que dormiram a uma centena de passos abaixo, encontraram-nos inanimados sob a tenda. H um labirinto de conjeturas sobre a causa da morte. A essa leitura, o mdico saltou da poltrona, atravessou feito louco o salo de leitura, desceu a escadaria, chegou ao parque, entrou por uma alia, depois por outra, voltou sobre seus passos, errou pela estrada, voltou para casa, foi estao e tomou o trem de Tolosa. Uma vez em caminho, traou o seu itinerrio: Nimes, Lio, Genebra, Zurich, Unnsbruck, Salzburg, Ischl. Calculara bem, e dois dias seguintes partida chegara a Hallstadt. Fez que lhe contassem todas as mincias do acontecimento. O chefe dos guias, tendo chamado, sem receber resposta, penetrou na tenda e, a princpio, os julgou profundamente adormecidos. Aproximando-se, porm, notou que seus olhos estavam abertos. Repousavam um ao lado da outro; o brao esquerdo de Rafael estendido sob a cintura de Estela, e sua mo direita segurando a esquerda da bem-amada. Um pedao de tela do cnhamo se desprendera da tenda e estava cado sobre eles. Foram conduzidos a Hallstadt, mas infrutiferamente se tentou desunir as mos; e, sem separ-los um do outro, colocaram-nos sobre o leito onde, trs dias antes, tinham dormido. Piedosa mulher colocara cabeceira duas velas em pequena mesa, coberta com toalha de altar, trazendo galhos de arbusto bentos. O mdico instalou-se perto deles, e quis ficar a ss para vel-los; agradeceu aos hspedes do hotel os cuidados pstumos que piedosamente dispensaram aos dois infortunados. Sentou-se aos seus ps e os contemplou com profunda afeio. Se no fosse a macilenta palidez, poder-se-ia acreditar que dormiam. Uma tranqila expresso de ventura parecia animar suas bocas levemente entreabertas. Estela estava linda. Longamente os contemplou assim, unidos em um mesmo abrao, que sobreviveu morte. Meditava na rara felicidade do homem amado por alma e corpo virgens, por um ser enamorado to somente de um mesmo e perptuo amor; na felicidade daquela mulher por ter sido adorada exclusivamente; e achava que tal existncia favorecera, com um raro privilgio, esse par encantador que havia adormecido em plena glria de amor, num ininterrupto noivado, e que parecia sorrir ainda ao seu feliz destino. No foi possvel fechar-lhes os olhos, que permaneceram obstinadamente fixados no cu. Depois, perante esses restos imveis, lembrou-se de que precisava agir na misso de executor testamentrio. Recordou-se de ter ouvido Estela dizer, por diversas vezes, que havia tomado disposies relativas sua ltima hora e
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fizera um testamento, do qual no se separava. Uma grande mala de viagem estava ali entre as duas janelas do aposento. O mdico procurou, encontrou um mao de chaves, e abriu a dita mala. Continha roupas, fotografias do Tirol, alguns livros publicados recentemente. A idia de que um testamento pudesse estar ali perdia a seus olhos a probabilidade inicial; mas, tendo comeado as pesquisas, continuou, sem grande esperana. De repente sua mo tocou em objeto bem no fundo da mala. Retirou-o. Era um cofrezinho de pau rosa. Pareceu-lhe haver algo escrito sobre o cofre. Aproximou-se das velas acesas cabeceira do leito morturio e leu, traado em azul pela mo de Estela, estas duas palavras: Minha fortuna. Esse pequeno cofre no se separava dela. Conservava-o na gaveta da sua mesa de trabalho, sobre a qual escrevia, e habituara-se a lev-lo nas viagens, lembrana dos avaros carregando o seu tesouro. Intrigadssimo com essas duas palavras, o mdico hesitou sobre se devia abrir o cofre ou ignorar-lhe o contedo. Lembrou-se da antiga fortuna de Estela e pensou nos dois milhes que, um decnio antes, representava seu dote. Ento, escrupulosamente, o recolocou onde estava. Mas, seu esprito achava-se agitado por mil pensamentos contraditrios. Era, no entanto, urgente uma deciso. Devia. Simplesmente levar esses pobres corpos a Luchon e conduzi-los ao cemitrio? Uma voz parecia dizer-lhe que o amigo devia fazer alguma coisa mais. Contemplou os cadveres, imaginando que talvez algum sinal pudesse manifestar-se nos semblantes adormecidos. Dargilan tantas vezes mantivera comunicaes com o Alm. Porm, nada. Impassibilidade absoluta. Os dois plidos rostos permaneciam imveis, de olhos abertos para a Eternidade. De sbito ouviu um leve rudo. Voltou cabea e notou que o feixe de chaves, deixado na fechadura da mala, oscilava e tilintava. Seu olhar se deteve sobre um ponto brilhante: era uma pequenina chave de oura. Apanhou o molho. A chave abriu o cofrezinho. No havia ali ttulo algum de renda, porm modestas e queridas lembranas: uma rosa e um amor-perfeito entrelaados, que Rafael lhe enviara aps a partida de Luchon, no primeiro ano de seu encontro; uma carteirinha em cetim alaranjado, sobre o qual Estela bordara suas iniciais com cabelos de Rafael - prendendo fragmentos de unhas, algumas relquias preciosas, uma laranja dessecada, um pequeno ramalhete de centureas, trs retratos de Rafael, um lencinho e outros pequenos nadas deliciosos para o seu corao. No fundo do cofre havia um envelope fechado sobre o qual estava escrito: Este o meu testamento. Rasgou o envelope e leu:
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Amo Rafael. S a ele amo no mundo. Cremos na indestrutibilidade da fora psquica que nos anima; no acreditamos na ressurreio dos corpos: o corpo p e volta ao p. Espero reencontrar Rafael na existncia que a continuao desta depois da morte, e prosseguir junta a nossa vida intelectual, feliz e amante; queria tambm que nossos corpos no fossem separados. Com o meu bem-amado, na perspectiva da decomposio desses pobres corpos na horrvel noite do tmulo, prefiro a incinerao. Desejo que nossas cinzas sejam intimamente misturadas e reunidas na mesma uma. Se eu morrer antes dele - o que peo a Deus todos os dias - rogo a Rafael que faa incinerar meu corpo, conservar minhas cinzas e ordene, por testamento, seja seu corpo tambm incinerado, conforme inteno a mim manifesta, e reunir suas cinzas s minhas, em ntima fuso, na mesma, uma. Se ele morrer antes de mim, encontrar-me-o morta algumas horas depois. Sobreviver-lhe estaria acima das minhas foras. Seria ento fcil, nesse caso, queimar-nos juntos e satisfazer minha vontade. Escrito de meu prprio punho, em nosso paraso terrestre, aos s de Novembro de 189... ESTELA DARGILAN. Naquele mesmo cofre, o doutor encontrou pequeno frasco cheio de um licor verde transparente, no qual reconheceu um dos venenos mais terrveis da: farmacopia. Pobre filha! Disse, quanto o amava! Que ternura e que sincera simplicidade! O homem no sabe amar assim. E ela teria feito conforme escreveu!Enfim! Morreram unidos: Ela no o previu. Desde ento o mdica s se preocupou em executar as vontades to ntidamente expressas dor esse testamento. Passou a noite em claro, velando os dois corpos. Naquele triste silncio apenas ouvia o embate das guas do lago ao p da varanda. Relmpagos longnquos lanavam, de vez em quando, um claro sbito atravs das janelas, e surdos troves j se faziam ouvir. Uma tempestade se aproximava uma dessas terrveis tempestades das montanhas, cujas trovoadas rolavam com estrondo e repercutiam de eco em eco, sim fim, e que rpidamente transformam todos os riachos em torrentes impetuosas. Os clares passaram a cintilantes. De repente, iluminaram com uma claridade violceo-esbatida os dois semblantes plidos, que pareciam, assim, espelhar a luz de um outro mundo. Um raio desgarrou-se das nuvens e se precipitou em fascas fulgurantes, seguidas imediatamente por exploses formidveis. Chuva diluviana caiu sobre o lago. Parecia que o mundo material opunha uma ltima
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vez suas foras cegas e violentas ao mundo intelectual, simbolizado na vida e n pensamento dos dois seres que ali dormiam. Na manh seguinte, j serenado o cu, o Sol brilhou em todo o esplendor por cima das montanhas. O mdico se dispunha a tomar providncias para amortalhar os cadveres, quando bateram porta. Era o hoteleiro, acompanhado de dois homens, vestidos de preto, que haviam chegado ao mesmo tempo. No queriam tomar a dianteira um do outro, e pareciam evitar-se mutuamente. - Ambos os senhores podem entrar, disse, tanto mais que nada terei a pedir-lhes. Cada um dos senhores o ministro de uma religio respeitvel; mas, meus furados amigos no eram catlicos, nem protestantes. No lhes tributaremos cerimnia religiosa alguma. O padre catlico retirou-se logo; sem responder uma s palavra. O pastor ficou. - Compreendemos, disse, que no se seja catlico. Entretanto, pode-se ser cristo. Jesus a mais nobre figura da Humanidade. Ns no admitimos o culto das imagens, as cerimnias infantis, as supersties romanas. Mas no se pode orar a Deus? - Aqui no lugar de entabular discusses, replicou o doutor. As religies que vieram representar, o padre e o senhor, se aproximam por um sentimento comum, por uma terceira doutrina, mais vasta, pela religio natural, pelo espiritualismo puro, que no reconhece culto algum. Foi religio dos meus amigos, e devo respeit-la. Certamente tereis por esses infortunados o mesmo respeito que eu, senhor pastor. Este compreendeu inteiramente o pensamento do mdico, e retirou-se por sua vez. Os corpos dos dois amantes, sempre inseparveis, foram envolvidos em uma s mortalha e colocados em um mesmo atade. Foi preparada uma barca para transport-los outra margem do lago, estao da estrada de ferro, de onde o doutor resolvera conduzi-los a Zurich e onde poderiam ser cremados. Era o mesmo caminho que eles haviam tomado, to alegremente, para vir, quinze dias antes. O trem em correspondncia com o Expresso Oriental devia passar meia-noite. Prximo de onze horas, a barca funerria se ps em marcha. Dois remadores ocupavam cada lado, um bateleiro sentou-se ao leme, e o mdico se manteve em p, a fronte descoberta, cabeceira do atade, na parte posterior da embarcao; uma criana, na frente, empunhava uma lanterna. Um simples pano preto recobria o esquife. O doutor o encimara com um escudo, trazendo, em fundo negro, duas grandes estrelas, talhadas em lminas de um pedao de sal da mina prxima, e que, pela alvura, parecia mrmore de
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Paros. A barca avanava em silncio sobre o lago solitrio, iluminado unicamente pela luz avermelhada da lanterna e pela claridade resplandecente da Lua cheia, que se espalhava em mil palhetas sobre as facetas brancas das guas. Dir-se-ia ver deslizar uma estrela dupla de celeste brancura, precedida de um cometa avermelhado. O bateleiro remava. Silenciosos, num movimento regular e montono, no ousando elevar a voz, meditando sobre o inexorvel poder da morte, que reinava por baixo deles, nas profundidades daquele lago, onde mais de um deles imergira de vez, e por cima, nas geleiras das montanhas, onde se encontra aqui e acol grosseiras cruzes de madeira plantadas em memria de acidentes. Sobre esse lago sombrio, cujos limites eram marcados pela irregular e longnqua moldura das montanhas negras, a Natureza, calma e recolhida, parecia agora associada ao luto do fnebre comboio. Nem uma voz se fazia ouvir, nem um canto de pssaro, nem um rudo de inseto, nenhum rumor, alm do ritmo cadenciado dos remadores. Assim chegaram outra margem. O trem saiu dos estreitos desfiladeiros da montanha e se deteve. Piedosamente e sem pronunciar uma palavra, os bateleiros depuseram o atade. Quando o comboio novamente se ps em marcha na noite escura, o mdico se perguntou a si prprio se no estaria sendo vtima de um espantoso pesadelo nesses ltimos quatro dias. Em Zurich, aps a incinerao, recolheu ele mesmo as cinzas de seus dois amigos, misturando-as intimamente, e as colocou em uma de prata. A vontade de Estela fora religiosamente cumprida. Recordou-se do Observatrio de Dargilan, da eminncia dos montes pirenaicos, denominada seu paraso, dos amenos passeios de tarde que fizeram juntos, da paisagem que preferiam ter diante deles, do pequeno bosque de rvores estelares plantado pelo Solitrio, das horas deliciosas que haviam passado nesse jardim campestre e retirado. Piedosamente conduziu para l a uma que continha as cinzas. Um ancio, que parecia abismado em profunda mgoa, estava diante do mdico no momento em que chegou ao Observatrio. Era o tio de Estela, o Conde de Noirmoutiers, que Bernardo no reconheceu de incio. Ao saber a notcia da morte dos dois esposos, viera ignorando as mincias da catstrofe. No tornara a ver a sobrinha aps a fuga de Paris; sua mulher recusara responder s cartas que Estela escrevera depois do casamento; ele, porm, nunca deixara de amar aquela criana louca, conforme lhe chamava, e de estimar Dargilan. Agora, vinha abraar a uma que continha suas cinzas, e tambm obter do doutor um entendimento rio sentido de assegurar a continuao e o desenvolvimento da obra fundada pelo astrnomo, com a renda do capital de trs milhes, resultante dos juros acumulados durante uma dcada fortuna que a jovem apaixonada abandonara.
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Alguns dias depois, encerraram a uma funerria em um cubo de pedra e fizeram incrustar essa pedra em um orifcio do rochedo. Nenhuma inscrio foi gravada; apenas duas iniciais entrelaadas eram visveis. As rvores do amor cresceram; o carvalho, prximo do rochedo, tem hoje em dia ramas verdejantes; no seio daquela solido, a Natureza reina soberana; o vento sopra na floresta; os pssaros cantam junto dos ninhos; o regato murmura; a Criao continua seu curso eterno; o Sol do meio-dia espalha raios tpidos coados pela folhagem, e, noite, a Lua clara vem acariciar ternamente com seus raios prateados esse pequenino recanto da Terra onde a vida de dois seres felizes escoou em to perfeita felicidade. Eternidade Infinito O p fica para a Terra. A alma volta para o cu. No xtase de um supremo abrao, enquanto a apoteose area iluminava a montanha e a Natureza inteira recebia, passagem do meteoro, uma super excitao eltrica que pareceu incendi-la, os deis amantes sentiram-se morrer em um rpido aniquilamento. Mas, suas almas tinham sobrevivido e voado, transportadas, no Espao, pelo cometa que, tendo apenas tocado o nosso globo, de leve, continuava sua carreira celeste para as constelaes. Quais dois pssaros pairando acima dos cumes, e mais intimamente aproximados ainda, enlaados em um par inseparvel, pareciam dormir sonhar, estendido sobre a nuvem deslumbrante que subia para o cu sideral. Rafael foi o primeiro a despertar, e reparou que levava Estela em seus braos. Tinham um corpo semelhante ao corpo terrestre, porm impondervel, substncia eltrica, corpo fludico astral, ao qual o Esprito est ligado e que, durante a vida terrestre, serve de unio entre o Esprito puro e o organismo material. Estela despertou sorridente na aurora que a envolvia, inconsciente da transformao por que acabavam de passar. Nenhum deles soube, alis, um cometa os conduzia. Da mesma forma que, na barquinha do aerstato, viajamos com a velocidade ao vento, sentindo-nos absolutamente imveis, assim a velocidade do seu vo celeste continuava desconhecida para eles, que se julgavam voluptuosamente deitados na imobilidade de um sonho eterno. O astro cometrio, cuja cauda havia pouco envolvera a Terra, afastava-se rpidamente do nosso globo e se dirigia para o nosso vizinho, o planeta Marte. Aconteceu que, pela combinao de movimentos celestes, o astro vaporoso rodeou Marte, tal qual cercara a Terra, e foi com grande surpresa que os dais amantes vira aproximar-se deles um mundo que no era o nosso: vastas plancies avermelhadas, grandes linhas de verduras, inumerveis canais, habitaes areas, seres leves - voando nos ares. Sentiram-se descer ali muito
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suavemente, quais essas estrelas errantes, que, s vezes, parecem to lentas, e deslizam, deixando na atmosfera um fumo luminoso, quase imvel. O corpo astral tem a propriedade, em certos mundos, de condensar os fluidos da atmosfera e constituir com eles novos corpos orgnicos. Uma das vantagens desta faculdade a de no obrigar os seres a nascerem crianas num seio de me. Nasce-se, no criana, e sim em plena adolescncia. E' l que vive atualmente Rafael e Estela. Primeira etapa depois da Terra, Marte lhes deu uma deliciosa moradia. E' um mundo pouco diferente, porm mais avanado no progresso, e de residncia bem mais agradvel do que o nosso, porque no est submetido s intempries, s tempestades, s revolues atmosfricas que agitam perpetuamente a Terra e nos distribuem to violentos contrastes de climas e de estaes. O ar quase sempre puro e sem nuvens. atmosfera, nutritiva. Ali no se come no se mata. Os dias e as noites se sucedem tal qual aqui, mas os ciclos anuais decorrem quase duas vezes mais lentamente, e as condies gerais da vida so mais suaves e mais generosas. s vezes, ambos contemplam de l o nosso planeta, brilhante estrela da noite, seguindo lentamente no cu Sol aps o ocaso. Lembra-se de aqui haver vivido, porm no lamentam a partida. Seus corpos terrestres eram roupagens que abandonaram. Sentem, sabem que a vida eterna e que os mundos sos as etapas dessa existncia sem fim, cuja transformao infinita quanto prpria eternidade. De l tambm, reconhecem Vega, sua brilhante estrela, e pressentem que um dia viver junto, longamente, em um paraso mais perfeito ainda. Vega para eles o smbolo da felicidade eterna. H verdades superiores a Terra; h sentimentos superiores vida. A felicidade de contemplar o Universo, de estudar a Natureza, sentida nos outros mundos no mesmo grau do nosso, e a Cincia reina l quanto aqui. O Amor, vitorioso da Morte, se perpetua nas existncias sucessivas, e continua a brilhar alm da Terra, numa luz inextinguvel. A vida terrestre passa qual sombra: As religies responderam s aspiraes das nossas almas, cada uma segundo sua poca e com a sua ignorncia. Nascidas e desenvolvidas antes da descoberta da verdade astronmica, da imensidade dos cus, da insignificncia do nosso planeta, elas acreditaram que a Terra e o Homem eram o centro e o fim da Criao, e foram edificadas sobre este erro fundamental. Elas s puderam preparar a verdadeira religio, que ser mais elevada, mais ampla, mais pura do que os velhos sistemas, e em perfeito acordo com a Cincia e a Razo. Jesus foi um precursor. Se ele tivesse vindo a este mundo depois de Coprnico e Galileu, talvez nos tivesse verdadeiramente aberto o Cu. medida que o saber aumentar sobre o nosso planeta, a Religio se esclarecer
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e desenvolver. Grandes Espritos surgiro no futuro para o progresso da Humanidade. S h uma verdade: a verdade astronmica, a realidade universal dos mundos e dos seres. A religio do porvir ser a religio da Cincia; reuniro em seu seio todos os seres pensantes; sero a mesma sobre a Terra, sobre Marte e todos os mundos habitados. Rafael e Estela sabem-no hoje. FIM.

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