RTDoc 12-08-2021 20 - 11 (PM)
RTDoc 12-08-2021 20 - 11 (PM)
RTDoc 12-08-2021 20 - 11 (PM)
1.Introdução
Página 1
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
A violência contra a mulher não vitima apenas esta, mas toda a sociedade. O sofrimento
causado por tal prática não fica preso às paredes do lar e sempre gera mais violência,
pois crianças e adolescentes que crescem nesse ambiente aprendem, com o modelo que
assistem, a usar, geralmente, a violência como linguagem.
A Lei Maria da Penha representa o marco de um novo tempo, pois deixou de tratar os
casos de violência doméstica contra a mulher como irrelevantes e passou a tratá-los com
mais respeito, dando às mulheres mais dignidade.
Existe uma forte cultura machista na sociedade brasileira no tocante aos papéis que
homem e mulher devem exercer. Desde os tempos da Pré-história, a divisão de tarefas
era marcada pelo gênero, e o patriarcalismo consolidou o pensamento de que o gênero
masculino é superior ao feminino, argumentando-se que o homem possui força física e
que a mulher é frágil. Sobre a argumentação, Bourdieu (2014, p. 19) esclarece que:
A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino,
e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista
como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e,
principalmente, da divisão do trabalho.
É sabido que a questão biológica não é a única responsável pela ideia de hierarquia do
homem em relação à mulher, mas apenas o estopim. Fatores como o contexto
ontológico, social e psicológico também devem ser considerados, como explica Beauvoir
(2009, p. 57):
Outra forma de diferenciar os sexos é a sociedade em que vivemos, que faz questão de
demonstrar a dominação masculina e a violência entre os sexos. Segundo Campos e
Corrêa (2007, p. 99):
O gênero é o resultado absorvido pelo corpo sexuado dos significados culturais a partir
da perspectiva binária, na qual se reflete a relação entre o sexo e o conjunto de suas
representações sociais, objetivando a adequação do sexo biológico a determinado papel
social.
Pelo argumento de Butler (2010) percebe-se que o fortalecimento do gênero ocorre por
meio da socialização dos agentes e tem relação com a família, a escola e o meio social, a
começar de proibições e imposições comportamentais. A imposição do gênero começa a
ser estabelecida na infância, por meio dos conjuntos gestuais e papéis sociais.
Página 3
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
As pesquisas sobre violência de gênero datam da década de 1970, quando tratavam das
relações entre direito e feminismo. Etimologicamente, a origem da palavra violência vem
do latim e está ligada ao verbo violare, em que vis significa força, potência e também
devassar. O conceito de violência não é uníssono, por isso, vários autores a definem de
inúmeras maneiras.
Gerhard (2014) elucida que a violência se manifesta por meio da opressão, da tirania e
pelo abuso da força, isto é, sempre que alguém é constrangido a fazer ou deixar de fazer
algo. Segundo Nucci (2013, p. 609), “violência significa, em linhas gerais, qualquer
forma de constrangimento ou força, que pode ser física ou moral [...]”. Diante disso,
percebe-se que também é considerada a violência moral, psicológica e sexual. Para
Saffioti (2011, p.17), “trata-se da violência como ruptura de qualquer forma de
integridade da vítima: integridade física, integridade psíquica, integridade sexual,
integridade moral”.
Antes de falar da violência de gênero é importante também que se entenda gênero, que
não deve ser percebido como sinônimo de mulheres, mas, sim, a maneira como as
diferenças biológicas são construídas socialmente e como se entrelaçam relações sociais
e emblemáticas de poder. Essa construção social do gênero envolve a superação do
binarismo biológico, ou seja, as diferenças biológicas e físicas entre macho e fêmea,
oposto de feminino e masculino.
Toda violência de gênero é uma violência contra a mulher, mas o contrário não é
verídico, pois a violência de gênero implica um preceito social dos papéis masculino e
feminino. O problema não está no fato da atribuição de papéis ao homem e à mulher, e
sim ao valor e ao peso diferenciados de cada um, ou seja, à valorização do papel
masculino em prejuízo à mulher. Segundo Almeida (2007, p. 25), o conceito de violência
de gênero é hodierno, “também incorporado por organismos internacionais e remete a
estrutura de gênero, ultrapassando o caráter descritivo”. Para Saffioti (2001, p. 83):
Assim, a violência de gênero tem sentido amplo e tem como uma de suas espécies a
violência doméstica. Os estudos jurídicos sobre o tema, em sua maioria, versam de
maneira reducionista e dividida. A Assembleia Geral das Nações Unidas, de 1993,
conceituou a violência contra as mulheres, como: “Qualquer ato de violência de gênero
que resulte ou possa resultar em dano físico, sexual, psicológico ou sofrimento para a
mulher, inclusive ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, quer
ocorra em público ou na vida privada”.
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher
qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (BRASIL, 2006).
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou
saúde corporal;
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que
lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar,
a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça,
coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a
sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao
matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem,
suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e
reprodutivos;
Página 5
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
Verifica-se que nem todas as formas descritas na lei estabelecem uma forma de
agressão física, assim, pode-se dizer que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006
(LGL\2006\2313)), além de limitar o conceito de violência doméstica, igualmente o
estendeu. A análise do referido artigo leva à conclusão de que a violência doméstica está
presente sob quatro formas principais: violência física, sexual, psicológica e patrimonial.
Veronese e Costa (2006) explicam que uma não precisa estar contida na outra, e que o
ciclo da violência e as formas podem estar interligadas e chegar o feminicídio.
Uma das formas mais frequentes de violência intrafamiliar é a violência física, que,
muitas vezes, não aparece somente como punição e disciplina, mas como refrigérios de
tensões provenientes de várias insatisfações de seus agentes. Pode, ainda, ser fruto de
sadismo ou de manifestações análogas, como uso de drogas (VERONESE e COSTA,
2006).
1
Segundo dados do Instituto Maria da Penha (Relógios da Violência ), a cada 7,2
segundos uma mulher é vítima de violência física no Brasil. A pesquisa realizada pelo
Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, constatou que
mais de 500 mulheres são vítimas de agressão física a cada hora no Brasil. A pesquisa,
realizada em 2017, constatou que 9% das brasileiras relatam ter levado chutes, batidas
ou empurrões no ano passado. Todavia, 52% delas afirmam não ter feito nada após os
atos, conforme demonstra a figura 1.
Página 6
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
Página 7
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
A violência sexual contra a mulher é bárbara e pode ser considerada uma violência de
gênero, por se tratar de uma expressão extrema de poder do homem em detrimento à
mulher, que coisifica o corpo feminino. Inúmeras definições existem acerca do tema.
Segundo Strey (2001, p. 48), a violência sexual “[...] constitui-se no mais democrático
de todos os fenômenos sociais”.
Qualquer ato sexual ou tentativa do ato não desejada, ou atos para traficar a
sexualidade de uma pessoa, utilizando repressão, ameaças ou força física, praticados por
qualquer pessoa independente de suas relações com a vítima, qualquer cenário,
incluindo, mas não limitado ao do lar ou do trabalho (OMS, 2002).
Esse tipo de violência revela uma transgressão dos direitos sexuais e reprodutivos da
mulher. Muitas vezes confundida com um dos deveres do casamento, inúmeras vezes
vista como legítima, considerando que o homem tem direito de exercê-la, motivo pelo
qual doutrina e jurisprudência resistiram em admitir que pudesse haver violência sexual
nos laços familiares (DIAS, 2018).
Pesquisa realizada pelo Instituto Patrícia Galvão e pelo Instituto Locomotiva, com o apoio
da Secretaria de Políticas para as Mulheres e da Campanha Compromisso e Atitude pela
2
Lei Maria da Penha , em 2016, revelou que 39% das mulheres entrevistadas já foram
pessoalmente submetidas a algum tipo de violência sexual. Feita a projeção,
constatou-se ser possível estimar que 30 milhões de brasileiras já foram vítimas de
violência sexual.
Para Timm e Santos (2011, p. 197), a violência sexual “é uma violação dos direitos
Página 8
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
Sobre o poder categórico nas relações de gênero, Foucault (1979) considera que este
possui subdivisões e entrelaçamentos. Para o filósofo, o poder não está situado em uma
instituição ou em uma pessoa, nem é algo que se possa ceder através de contratos. Para
o filósofo, o poder é relação e exercício. Como relação, o poder abre margem à
resistência.
Para Foucault (2001, p. 183), o poder “deve ser analisado como algo que circula, ou
melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, [...] o
poder funciona e se exerce em rede”.
Para McLaren (2004), o feminismo pode se apoderar das teorias de Foucault, pois nelas
existe uma diferenciação entre poder e dominação, uma vez que o poder não é
partilhado de forma igualitária. “Enquanto o poder é fluido e sempre sujeito a reversão,
estados de dominação são estáticos, relações de poder ossificadas” (McLAREN, 2004, p.
220).
Página 9
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
[a] violência suave, insensível, invisível as suas próprias vítimas, que se exerce
essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou,
mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do
sentimento (BOURDIEU, 2014, p. 07-08).
O alicerce da violência simbólica são as estruturas que a sustentam viva, estruturas que
tutelam a superioridade do homem, como a sociedade e a igreja, além de tantas outras
que colaboram para perpetuação dessa relação de dominação, impondo valores e
comportamentos. Homens e mulheres não se dão conta do quanto estão praticando a
violência simbólica, uma vez que incorporaram o habitus:
Nos estudos de Butler (2010) sobre a desconstrução do gênero, ela questiona se o sexo
teria uma história ou se seria uma estrutura concedida, sem questionamentos. Segundo
Dias e Costa (2013), o trabalho mais importante para o feminismo foi o de Judith Butler,
filósofa estadunidense, que trouxe a biologia para o campo do social, tornando-se um
nome expressivo nos estudos de gênero.
o gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado
num sexo previamente dado, […] tem de designar também o aparato mesmo de
produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos.
Assim, não existe sentido na distinção do sexo de gênero, pois o gênero não pode ser
instituído como a inscrição cultural em um sexo predeterminado pela natureza, uma vez
que se inscreve na cultura. Segundo Butler (2010, p. 26), “sexo é natural e gênero é
construído. [...] nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino”.
Butler (2010) considera que o gênero não decorre do sexo e que a distinção sexo/gênero
é arbitrária. Para a filósofa, “talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que
a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma” (BUTLER, 2010, p.
25). Assim, o sexo não é natural, mas é também discursivo e cultural da mesma forma
que o gênero.
Assim como Butler (2010), Beauvoir (2009) também aborda aspectos mais complexos e
amplos para elaborar o conceito de mulher, não ficando presa aos aspectos da biologia e
anatomia do corpo feminino. Em sua obra O segundo sexo, considerada um marco
teórico da chamada segunda onda do feminismo no Brasil, Simone de Beauvoir justifica
que o gênero e especificamente o termo mulher são conceitos construídos na sociedade
e, por isso, a filósofa não considera tais expressões sendo do sexo biológico feminino.
Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana
assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino (BEAUVOIR, 2009,
p.99).
A filósofa defende que é a sociedade que decreta o gênero de cada ser humano, e isso
não pode ser visto como biológico e sim como construído socialmente. Assim, Beauvoir
(2009) tenta desmontar a ideia de natural e procura a igualdade entre os gêneros.
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico
define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da
civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que
qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo
como um Outro (BEAUVOIR, 2009, p. 10).
A procura pela igualdade de direitos entre mulheres e homens é uma vontade mundial
que já se iniciou com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Reduzir as
desigualdades de gênero também tem sido uma preocupação presente.
Com o passar dos anos, as mulheres conquistaram alguns direitos, como explica Lira
(2015, p. 1):
Página 11
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
3
Estudos de Lutz (2014) comprovam que, em 1918, o movimento da classe média
brasileira reclamou o direito da mulher ao voto, sendo que em 1932 foi assegurado seu
direito ao voto e de se eleger. As mudanças em favor da mulher foram acontecendo
gradativamente, mas foi com a Constituição Federal de 1988 que elas tiveram seus
direitos como cidadãs e trabalhadoras realmente assegurados.
Em 2006, foi sancionada a Lei 11.340, batizada de Lei Maria da Penha, criada com o
objetivo de proteger vítimas de violência doméstica e familiar, buscando mecanismos
para coibir qualquer tipo de violência, seja física, sexual, psicológica, seja outra. A nova
legislação ofertou instrumentos para proporcionar proteção à vítima e para garantir
assistência social, além de resguardar seus direitos patrimoniais e familiares. De acordo
com Martins et al (2015), a lei concebeu 11 serviços e medidas de proteção à mulher.
Não satisfeito com o resultado alcançado com a Lei Maria da Penha, o legislador aprovou
a Lei 13.104/15 (LGL\2015\1496), conhecida como Lei do Feminicídio, que acresceu ao
artigo 121, § 2°, do Código Penal (LGL\1940\2), o inciso VI, tornando hediondo o crime
praticado contra as mulheres em virtude da condição de gênero. A nova tipificação foi
definida de acordo com a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência
Contra a Mulher:
Erradicar ou diminuir a violência contra mulher não fica preso ao clamor popular que
obriga a criação de normas e sanções que não trazem resultados efetivos. É necessário
que as normas constitucionais e infraconstitucionais sejam destacadas no cotidiano da
sociedade (MIRANDA, 2011).
O Small Arms Survey realizou uma pesquisa no período de 2004 a 2009 e constatou que
El Salvador liderava a lista de índice de taxas de feminicídio, com 12 homicídios para
cada 100 mil mulheres, em seguida vinham Jamaica, Guatemala e Guiana (ONU
Mujeres, 2013). A pesquisa realizada pela CEPAL, em 2009, colocou a República
Dominicana no topo da lista, com 329 mortes de mulheres causadas pelo companheiro
ou ex-companheiro (CEPAL, 2011).
Fonte:
Página 14
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
[https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/cresce-n-de-mulheres-vitimas-de-homicidio-no-bras
Acesso em: 29.03.2018.
Não obstante a cultura de desrespeito ao gênero feminino ser secular e estar enraizada,
apenas 15 países da América Latina têm previsão legal acerca do tema. Apesar de serem
recentes, as legislações preveem altas penas para o crime (DIAS, 2018).
A Costa Rica, primeiro país a criminalizar o feminicídio, em 2007, com a Lei 8.589, que
tipifica a violência contra a mulher, tipificando o feminicídio como “quem dê morte a uma
mulher com a que mantenha uma relação de matrimônio, em união de fato, declarada
ou não” (PORTO 2016, p. 76).
No Chile, o Código Penal (LGL\1940\2), modificado pela Lei 20.480, de 2010, prevê o
instituto como um agravante, com pena de prisão perpétua qualificada; porém, Montes
(2016) destaca que a legislação considera apenas os crimes praticados por
companheiros e ex-companheiros, ou pelo pai de um filho da vítima. A lei não prevê os
casos cometidos por namorados, os que matam menores e os que não tinham nenhum
vínculo com as assassinadas. Essa restrição tem ocasionado a não punição adequada de
crimes motivados na questão de gênero. A precariedade da legislação chilena está
impedindo que o país contenha a violência. Estatísticas do governo demonstram que, em
2016, foram registrados 12 feminicídios e que, em 2015, foram registrados 45 casos
(MONTES, 2016).
Na legislação argentina ao tratar da violência de gênero não faz referência que a vítima
seja mulher, dando a entender na interpretação do dispositivo que a lei também acolhe
os direitos violados da população LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e
intersexuais).No Brasil, foi introduzida a Lei 11.340/06 (LGL\2006\2313), Lei Maria da
Penha, criada com o objetivo de proteger vítimas de violência doméstica e familiar,
buscando mecanismos para coibir qualquer tipo de violência, seja física, sexual,
psicológica, seja outra. A nova legislação ofertou instrumentos para proporcionar
proteção à vítima e para garantir assistência social, além de resguardar seus direitos
patrimoniais e familiares. De acordo com Martins et al (2015), a lei concebeu 11 serviços
e medidas de proteção à mulher.
Página 15
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
Muitas vítimas padeceram até o Estado notar a gravidade da violência sofrida pela
mulher e tomar uma atitude para amparar as dezenas de vítimas diárias, com a criação
da Lei 11.340/06 (LGL\2006\2313), que foi batizada de Lei Maria da Penha em
homenagem a uma das vítimas da violência doméstica que lutou pelas mulheres
buscando amparo jurídico contra tal violência.
Uso intencional da força física ou do poder ou ameaça, contra si próprio, contra outra
pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer
possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de
desenvolvimento ou privação.
Insta frisar ainda que toda história da Lei 11.340/06 (LGL\2006\2313), desde as
convenções internacionais que lhe sirvam de supedâneo, toda história de luta do
movimento feminista, aponta o homem como maior agressor do gênero feminino.
Agressões perpetradas por outras mulheres se inserem dentro de uma certa normalidade
no plano da estatística criminal, que não justificariam uma lei própria para dissuadi-las
Página 16
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
e, nesse caso, podem estar protegidas por meio de tipificação genérica de violência
doméstica do art. 129, § 9º, do Código Penal (LGL\1940\2), sem as restrições de
benefícios penais contidas na Lei 11.340/06 (LGL\2006\2313) (PORTO, 2012, p. 31).
Mas, não se pode deduzir que somente a mulher é potencial vítima de violência
doméstica, familiar ou de relacionamento íntimo. Também o homem pode sê-lo,
conforme se depreende da redação do § 9º do art. 129 do Código Penal (LGL\1940\2),
que não restringiu o sujeito passivo, abrangendo ambos os sexos.
O estudo do IPEA confirmou que as conquistas de proteção à mulher são reais, mas
também demonstrou que ainda existe um longo caminho a ser percorrido, em especial a
institucionalização de serviços de proteção às vítimas. Conforme demonstrado pela
figura 3, verifica-se que, em 2015, foram registrados 17.871 atendimentos a casos de
estupros contra pessoas do sexo feminino e em 71% deles as vítimas eram crianças
entre 0 e 12 anos, ou adolescentes entre 13 e 19 anos, segundo o Sistema de
Informação de Agravos de Notificação (Sinan), órgão ligado ao Sistema Único de Saúde
(SUS) e ao Ministério da Saúde.
Página 17
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
denúncias, a eficácia da lei não foi tão grande, pois os números de assassinatos contra
mulheres continuaram com índices elevados, razão pela qual foi criado o crime
Feminicídio, que inseriu qualificadoras do crime de homicídio (CONCEIÇÃO, 2016).
A criação das leis Maria da Penha e do Feminicídio, juntamente com outras medidas que
promovem a precaução, o combate e a erradicação da violência contra a mulher, ajudam
a assegurar à mulher o direito à vida e o direito sobre seu corpo.
Nucci (2016, p. 617) explica que o feminicídio é “uma continuidade da tutela especial,
considerando homicídio qualificado e hediondo a conduta de matar mulher, valendo-se
de sua condição de sexo feminino”. Nesse entendimento, tanto o Feminicídio quanto a
Lei Maria da Penha são amparos especiais, uma vez que a violência está ligada ao
gênero da vítima – mulher.
A nova lei (Lei 13.104/2015 (LGL\2015\1496)) modificou o artigo 121 do Código Penal
(LGL\1940\2) (Decreto-lei 2.848/1940 (LGL\1940\2)) incluindo o Feminicídio como uma
qualificadora do crime de homicídio:
Homicídio simples
Homicídio qualificado
§ 2º Se o homicídio é cometido:
Feminicídio
Todavia, entende-se que a característica do crime seria mista, pois quando o crime fosse
praticado em razão de menosprezo ou discriminação ao fato da vítima estar na condição
de mulher, estaria caracterizada como subjetiva, uma vez que o motivo, a razão do
delito seria o gênero da pessoa. No entanto seria objetiva quando o Feminicídio
configurasse por meio de violência doméstica ou familiar, pois aqui não seria a violência
de gênero que caracterizaria a qualificadora, mas sim o modo de execução do crime.
Para configurar o feminicídio a morte tem que ser, segundo Gomes (2015, p. 193),
[...] violenta, não acidental e não ocasional de uma mulher em decorrência justamente
da sua condição de gênero, como ápice de violências cotidianas, revelando-se como um
somatório de [...] vulnerabilidades sofridas ao longo da vida.
[...] outra característica que define femicídio é não ser um fato isolado na vida das
mulheres vitimizadas, mas apresentar-se como o ponto final em um continuum de
terror, que inclui abusos verbais e físicos e uma extensa gama de manifestações de
violência e privações a que as mulheres são submetidas ao longo de suas vidas. Sempre
que esses abusos resultam na morte da mulher, eles devem ser reconhecidos como
femicídio.
O termo femicide foi usado pela primeira vez em 1976, no Tribunal Internacional de
Crimes contra Mulheres, em Bruxelas, para qualificar o assassinato de mulheres por
serem mulheres; mas somente em 1990 o termo foi conceituado como “o assassinato de
mulheres realizado por homens motivado por ódio, desprezo, prazer ou um sentido de
propriedade sobre as mulheres” (CAPUTI; RUSSEL, 1992, p. 34).
Juntamente com a visibilidade trazida pela tipificação, o Estado passaria a ter obrigação
de evitar a morte de mulheres, por meio de políticas públicas de prevenção e
erradicação da violência e, caso o crime aconteça, o Estado deve agir de maneira eficaz
Página 20
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
Segundo Cabañas e Rodríguez (2002) apud Gebrim e Borges (2014), a norma jurídica
neutra do homicídio alcança quem tira a vida de uma mulher por razões de gênero, mas
não é possível vislumbrar o contexto de tais mortes nem seu caráter social, pois ficam
registradas como um simples homicídio. Assim, o tipo penal ajudaria o acesso à justiça,
incluindo conceitos novos e facilitando para modificar a maneira dos juízes aplicarem a
lei.
Outro equívoco seria o fato de esperar que um tipo penal garanta uma política criminal
ou que mude a forma de interpretação jurídica, pois é preciso que se considerem os
diferentes grupos de mulheres:
Outro grande problema da tipificação é a maneira como ela é feita, uma vez que quase
nunca considera as diferentes realidades vividas pelas mulheres. Isso porque, por mais
que todas vivam numa sociedade patriarcal, sentem a opressão da diferença das
relações de poder entre homens e mulheres de formas distintas. Consequentemente, a
violência hoje conhecida como feminicídio também é vivida de vários modos nos seus
diferentes contextos, que devem ser analisadas em cada caso (PRAXEDES SILVA, 2015,
p. 57).
Há ainda o fato de a lei considerar sujeito ativo do referido crime apenas os homens,
Página 21
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
Percebe-se que ambos os lados têm argumentos sólidos, com vantagens e desvantagens
da tipificação do feminicídio, mas o mais importante é que Estado e sociedade passem a
ter um compromisso sério com a erradicação desse tipo de violência, não sendo possível
enxergar o problema apenas do ponto de vista criminal, mas, sim, de forma global e
integral.
5.Considerações finais
Apesar do grande avanço, não é possível crer que no novo diploma legal, por si só, fará
desaparecer o problema da desigualdade instalada na sociedade brasileira, que continua
a subjugar as mulheres e a infringir seus direitos em todos os níveis. Para mudar essa
triste realidade é necessário que o Poder Público introduza medidas efetivas de
erradicação da violência e do feminicídio, para que se dê um basta no extermínio de
mulheres pelo simples fato de serem mulheres.
Referências
ALMEIDA, Luciana Costa dos Santos. Retratação na Lei Maria da Penha: a busca pela
Página 22
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
ALMEIDA, L.R de; SILVA, A.T.M.C da; MACHADO, L.D.S. Jogos para capacitação de
profissionais de saúde na atenção à violência de gênero. Rev. Bras. Educ. Médica, 37
(1): 110-119, 2013.
BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha: Lei 11. 340/2006: aspectos assistenciais,
protetivos e criminais da violência de gênero. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2014.
CAMPOS, Amini Haddad; CORRÊA, Lindalva Rodrigues. Direitos humanos das mulheres.
Curitiba: Juruá, 2007.
CAMPOS, Carmen Hein de. Lei Maria da Penha: desafios para a integração de novos
sujeitos de direitos. Estudos feministas e de gênero: articulações e perspectivas. Santa
Catarina, 2014.
CAPUTI, Jane; RUSSEL, Diana E. H. Femicide: sexist terrorism against women. In:
CAPUTI, Jane. Femicidio: la política de matar mujeres. Nueva York: Twayne, 1992.
Disponível em: [www12.senado.leg.br/ril/edicoes/51/202/ril_v51_n202_p59.pdf].
Acesso em: 02.04.2018.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: edições
Graal, 1979.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. 14. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 2001. 3 v, v. 1.
GARITA, A. I. Ministra da Justiça e Paz da Costa Rica fala sobre feminicídio no Brasil.
ONU Mulheres, 22.11.2013. Disponível em:
[http://revistatema.facisa.edu.br/index.php/revistatema/article/viewFile/236/pdf].
Acesso em: 15.03.2018.
GEBRIM, Luciana Maibashi; BORGES, Paulo César Corrêa. Violência de gênero. Tipificar
ou não o femicídio/feminicídio?, ano 51, n. 202 abr.-jun. 2014. Disponível em:
[www12.senado.leg.br/ril/edicoes/51/202/ril_v51_n202_p59.pdf]. Acesso em:
15.03.2018.
GERHARD, Nadia. Patrulha Maria da Penha. Porto Alegre: Age Editora, 2014.
KRUG, E.G. et al. (Org.). Relatório mundial sobre violência e saúde. Geneva:
Organização Mundial de Saúde, 2002. Disponível em:
[www.facnopar.com.br/conteudo-arquivos/arquivo-2017-06-14-14974728811632.pdf].
Acesso em: 01.03.2018.
Página 24
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
LYRA, Roberto. Como julgar, como defender, como acusar. Rio de Janeiro: José Konfino,
1975.
McLAREN, Margaret A. Foucault and feminism: power, resistance, freedom. In: TAYLOR,
Dianna; VINTGES, Karen. Feminism and the final Foucault. Chicago: University of Illinois
Press, 2004. Disponível em:
[www.encontro2012.sp.anpuh.org/resources/anais/17/1342407030_ARQUIVO_MauricioPelegrini-Anpuh2
Acesso em: 20.03.2018.
MELLO, A. R. de. Feminicídio: conceitualizar para politizar. In: PINTO, A. S.; MORAES, O.
C. R. de.; MONTEIRO, J. (Org.). Dossiê Mulher 2015. Rio de Janeiro: Instituto de
Segurança Pública, 2015.
MINAYO, M. C. de S.; SOUZA, E. R. de. Violência para todos. Cadernos de Saúde Pública,
Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 65-78, jan.-mar. 1993.
MONTES, Rocío. Chile não consegue conter feminicídios: a morte de 12 mulheres só este
ano revela um problema até agora invisível e leis fracas. 2016. Disponível em:
[https://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/01/internacional/1459469465_370317.html].
Acesso em: 24.04.2018.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais comentadas. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2013.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2016.
OMS, Organização Mundial da Saúde. Relatório mundial sobre violência e saúde. Editado
por Etienne G. Krug, Linda L. Dahlberg, James A. Mercy, Anthony B. Zwi e Rafael
Lozano. Genebra, 2002. Disponível em:
[www.opas.org.br/wp-content/uploads/2015/09/relatorio-mundial-violencia-saude.pdf].
Acesso em: 20.03.2018.
Página 25
Feminicídio: uma análise da violência de gênero no Brasil
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência doméstica e familiar contra a mulher: análise
crítica e sistêmica / Pedro Rui da Fontoura Porto. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2012.
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. 2. reimp. São Paulo:
Perseu Abramo, 2011.
SANDES, Iara Boldrini. Aplicação das medidas protetivas da Lei Maria da Penha em favor
do homem. 2011. Disponível em:
[https://jus.com.br/artigos/20152/aplicacao-das-medidas-protetivas-da-lei-maria-da-penha-em-favor-d
Acesso em: 12.04.2018.
SANTOS JÚNIOR, Elcio Gomes; FRAGA, Thaís Carneiro. O feminicídio (Lei n. 13.104, de 9
de março de 2015 (LGL\2015\1496)) no ordenamento jurídico brasileiro como norma
penal simbólica. IDEA Revista, v. 6, n. 1, 2015.
SCOTT, Joan. Él género: una categoría útil para el análisis histórico. En el género: la
construcción cultural de la diferencia sexual. México, Miguél Porruá, 2000. Disponível
em: [www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/phc1kv31/0QQ61oHh0K8f059A.pdf].
Acesso em: 12.04.2018.
STREY. M. N. Violência e gênero: um casamento que tudo para dar certo. In: GROSSI, P.
K.; WERBA, G. C. (Org.). Violências e gênero: coisas que a gente não gostaria de saber.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.
WHO – WORLD HEALTH ORGANIZATION. World report on violence and health. Genebra,
2002. 334 p. Disponível em:
[www.scielo.br/pdf/sausoc/v23n3/0104-1290-sausoc-23-3-0787.pdf]. Acesso em:
20.03.2018.
2 Disponível em:
[www.compromissoeatitude.org.br/confira-pesquisa-inedita-sobre-violencia-sexual-contra-as-mulheres-
Acesso em: 23.03.2018.
Página 27