Memorias de Um Amor Inesperado - Ciara Smyth
Memorias de Um Amor Inesperado - Ciara Smyth
Memorias de Um Amor Inesperado - Ciara Smyth
Vanessa Raposo
CIARA SMYTH estudou teatro, licenciatura e fez trabalho social na
faculdade. Ela achava que não sabia o que queria ser quando
crescesse. Então se tornou escritora e agora não precisa crescer.
Ciara gosta de montar quebra-cabeças, tocar violino mal e ter
conversas seríssimas com seus bichos de estimação. Ela vive em
Belfast há mais de dez anos e ainda não conhece bem a região.
Dedicatória
1.
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8.
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36.
37.
38.
Agradecimentos
Créditos
Para Steph,
Nunca vou dançar de novo
1.
***
Pra ser justa com ele, meu pai não falou nada no carro durante a
volta para casa. Ele me entregou um sanduíche de bacon
embrulhado em papel-alumínio e deixou que eu comesse em paz.
Assim que paramos em nossa garagem, ele puxou o freio de
mão e inspirou fundo pelo nariz, fechando os olhos. Um sinal claro
de que tinha coisas sérias para discutir. Revirei os olhos e fiquei
olhando pela janela, esperando pelo que quer que ele precisava
tanto falar comigo antes da minha ressaca passar.
— Você já tem idade o bastante para tomar suas próprias
decisões. Eu não te tranco no quarto nem tento te impedir de sair.
Se eu sou capaz de te respeitar, você poderia reservar a mesma
cortesia para mim.
— Você ficou a noite inteira elaborando esse discurso?
— Meu Deus, Saoirse, você às vezes é tão difícil. Você não é
mais uma criança, então pode parar de agir como uma.
Ele respirou fundo várias vezes, para me mostrar como era
paciente e contido ao lidar comigo.
— Imagino que você esteja precisando dormir um pouco, então
vê se dorme, mas hoje à noite nós vamos jantar juntos e ter uma
conversa.
— Sobre o quê? — perguntei de forma intensa.
Ele passou as mãos no cabelo e, quando voltou a falar, sua voz
já não soava tão firme.
— Você sabe do que eu tô falando. Sobre o casamento.
Existem… outras implicações, ok? Coisas que preciso conversar
com você.
— Então me fale agora.
— Não assim. Você tá de ressaca, com um bafo que poderia
provocar um incêndio e precisa descansar. Ah, e… — Ele fez uma
pausa, e o silêncio foi tipo o momento nos filmes de terror antes do
cara mascarado saltar na frente de alguém pra esfaquear a barriga
da pessoa. — Na sexta, a Beth vem aqui pra jantar. Você vai
participar.
— Valeu pelo convite, mas não tenho interesse.
— Pois que arranje interesse — disse ele. — Você vai participar.
Tem se comportado como uma menina malcriada de treze anos.
Sua mãe teria vergonha.
As palavras quase me tiraram o fôlego. Apertei a mandíbula com
tanta força que pensei que meus dentes pudessem trincar.
— Sabe, pai, eu não me preocuparia tanto com isso. Em alguns
anos, eu vou ter esquecido o seu nome, e você e Beth podem me
enfiar em uma casa de repouso com a mamãe e seguir em frente
com as suas vidas.
Ele não respondeu dizendo que jamais faria isso. Eu não teria
acreditado em suas palavras. Ele não disse nada.
Eu desci do carro e marchei para dentro de casa, batendo a
porta ao passar. No meu quarto, me enfiei debaixo das cobertas.
Apesar de estar exausta, fiquei por horas me revirando na cama
antes de conseguir dormir. Não o ouvi entrar.
Então, essa é a parte que eu não contei ainda. Minha mãe não
deixou o meu pai. Ela não me abandonou. Ela não fugiu com o líder
de uma gangue de motociclistas nem com um vendedor de canetas.
Ela foi diagnosticada com demência precoce. Setembro passado,
meu pai decidiu que não era mais capaz de cuidar dela e que ela
precisava de cuidados em tempo integral. Ela tem 55 anos e às
vezes se esquece de como se lavar. Ela esqueceu meu nome muito
tempo atrás. Você acha que sua mãe é capaz de te amar se ela não
sabe quem você é?
Uma outra questão sobre esse tipo de demência é que ela é,
com frequência, hereditária. Não há como ter certeza disso, mas há
uma boa chance de que vá acontecer comigo também. Às vezes me
sinto como se eu vivesse com um cronômetro sobre a cabeça.
Então agora você entende o motivo para eu não ligar de ir para uma
universidade chique como Oxford. O motivo de não haver sentido
em ter relacionamentos com meninas que podem gostar de mim
também.
Eu estou esperando pelo dia em que meu cérebro vai pegar
fogo. Uma faísca que lentamente queimará tudo o que é importante
até virar cinzas.
4.
***
Meu pai estava com uma expressão feliz quando manquei escada
abaixo. Tentei abrir um sorriso, uma cortesia pela vaga culpa que eu
sentia por jogar a história da mamãe na cara dele, apesar de ele ter
feito isso primeiro. Eu sou boa demais para esse mundo.
— Obrigada pelo jantar — falei, enfiando o garfo em um pedaço
de peixe branco insosso e grelhado.
Comemos em silêncio. Percebi que ele não estava bravo por
mais cedo. Provavelmente também se sentia culpado, mas nenhum
de nós era do tipo que pedia desculpas. A gente varria nossos
problemas pra debaixo do tapete.
Um tapete que já estava cheio de calombos.
Houve um tempo em que éramos próximos, quando as coisas
eram fáceis. Meu pai é dez anos mais novo que a minha mãe e
sempre foi o “pai divertido”. Os dois costumavam discutir por causa
disso. Mais de uma vez, entreouvi minha mãe reclamando por ter
sempre que fazer o papel de vilã. Ela revirava os olhos para nós
quando nos esparramávamos no sofá para assistir a filmes de terror
ou quando respondíamos em voz alta, com uma seriedade digna de
vida ou morte, a perguntas em programas de auditório toscos na TV.
Nós tínhamos piadas internas e playlists compartilhadas. Agora,
acho que minha mãe talvez se sentisse excluída de nosso clubinho
bobo. Ela sempre foi tão tensa, e nós simplesmente deixamos que
assumisse este papel em vez de convidá-la para as brincadeiras.
Mas, apesar de eu ter certeza de que meu pai acreditava que fui eu
que me afastei primeiro, foi ele quem ergueu muralhas imensas
entre nós. Eu não conseguiria escalá-las nem se tentasse. E eu não
tinha o desejo de tentar.
Quando nossos pratos já estavam praticamente vazios, ele se
ajeitou em seu assento e deu uma tossida.
— Então. — Ele limpou a garganta. — Então.
— Então?
— Então, eu preciso conversar com você sobre umas coisas.
Empurrei minha cadeira e levei meu prato até a cozinha. Meu pai
veio atrás, mas parou no portal.
— Olha, eu realmente não tô a fim de ouvir. — Me apoiei na
lava-louças, mantendo uma distância segura entre nós para que eu
não o estrangulasse. Havia tido uma noite tão boa ontem, e não
queria que meu pai estragasse a ressaca deliciosa de beijar uma
linda garota com uma conversinha sobre como ele havia encontrado
uma nova esposa maravilhosa para substituir a antiga que estava
quebrada. — Estou indo pra faculdade logo mais e vou morar lá. Eu
não vou ficar aqui de qualquer forma. Faça o que quiser.
Eu ainda não tinha certeza de que iria para Oxford, mas, na lista
de prós e contras na minha cabeça, meu pai se casar com Beth
estava fazendo a balança pesar para o lado que me fizesse dar o
fora dessa ilha. Talvez, quando eu partisse, ele arranjasse uma nova
filha também. Uma sem genes defeituosos. Às vezes eu pensava
em ligar para Izzy para perguntar a respeito de Oxford. Ela tem uma
maneira incrível de fazer tudo parecer simples. Se eu conversasse
com ela, sei que me daria uma resposta perfeita e eu logo saberia o
que fazer. Ela devia virar terapeuta, como a minha mãe. Eu pensava
em ligar, mas nunca fazia isso.
— Você vai voltar nos feriados. — Ele fez uma cara amuada. —
Você precisa conhecer a Beth. Não dá pra fingir que ela não existe.
— Ó, homem de pouca fé...
Meu pai me ignorou.
— Queremos nos casar antes de você ir. Já temos uma data: dia
31 de agosto. Sorte a nossa que as aulas em Oxford começam um
pouco mais tarde do que a maioria das universidades. Então temos
bastante tempo para resolver essa situação antes de você ir.
O silêncio foi tão completo que eu conseguia ouvir o gato do
vizinho miando lá fora. Isso me fez pensar em Ruby. Eu preferiria
escalar um outro muro de dois metros e meio do que ter essa
conversa.
— Sei que é uma grande mudança — disse meu pai quando
percebeu que eu não ia responder. — Você vai gostar da Beth
quando a conhecer.
Ele realmente conseguiu dizer isso na cara dura.
— Ela vai se mudar pra cá antes do casamento? — perguntei.
“Antes de eu me mudar” era o que estava implícito na pergunta.
Eu não acho que conseguiria tolerar a visão de Beth substituindo as
coisas da minha mãe pelas dela. A visão de suas roupas
preenchendo o lado do armário que era da minha mãe. Ela
dormindo no lado da cama que pertencia à minha mãe.
Meu pai ficou muito interessado em tirar pedaços de tinta seca
do portal com a unha.
— Essa é uma outra questão que eu queria conversar. — O
desgaste estava começando a aparecer em seu rosto, como um
policial de um esquadrão antibomba suando sem saber qual dos fios
pode levá-lo à morte certa. — Nós vamos ter que nos mudar.
Por um momento, entendi que “nós” se referia a ele e Beth, e
tive uma visão gloriosa da minha pessoa ostentando uma casa só
para mim.
— Já demos uma olhada em alguns lugares, mas não queremos
chegar a uma conclusão sem você.
— Tá falando sério? — Eu me ouvi gritar. — Isso não é justo.
As palavras deixaram a minha boca, embora eu soubesse que
eram infantis; embora eu soubesse que nada nessa história já tenha
um dia sido justo. Passei pelo meu pai que nem um furacão, a
caminho da sala. Ele se virou para me olhar, mas permaneceu do
outro lado do cômodo.
— Saoirse...
— Essa casa é minha, e você vai vendê-la só pra poder se
engraçar com a sua nova esposa em um lugar sem as memórias da
mamãe. É isso o que a Beth quer? Ou é só pra você não precisar se
sentir mal sempre que olhar pras coisas da mamãe?
Olha, eu sei que isso é exatamente o oposto do que eu estava
pensando um segundo atrás, mas eu sou uma pessoa complicada,
ok? Tenho uma capacidade imensa de me irritar por qualquer coisa
que meu pai faça. Eu não queria que a Beth se mudasse para cá, e
também não queria que meu pai se mudasse com ela.
Ele se apoiou no portal da cozinha. Quando voltou a falar, sua
voz estava cansada e quase me senti mal por ele. Mas só quase.
— Não sei como você pode pensar essas coisas. A história não
é assim. Precisamos nos mudar.
Esperei por mais informações com uma expressão que meu pai
chama de “cara de Carrie, a Estranha ”. A que parece que estou
prestes a botar fogo no quarto e ficar observando enquanto tudo
queima. (Um conselho: apenas assista a Carrie, a estranha com os
amigos. Talvez você pense “Beleza, é só mais um filme de terror!”,
mas o verdadeiro terror começa quando você se pega assistindo
àquela cena da menstruação com o seu pai.)
— Nós refinanciamos a casa quando fizemos a divisão de bens.
Assim, sua mãe receberia a metade para bancar o tratamento dela,
e eu e você ficaríamos financeiramente protegidos. Mas tem sido
caro demais. Eu não consigo mais pegar tantos freelas quanto
antigamente, e nossa poupança está zerada. Como você vai se
mudar no ano que vem, faz sentido arranjar um lugar menor.
Eu odeio esse papinho. Meu pai faz parecer que está tentando
me convencer de que sua decisão é inteiramente prática e sem
qualquer bagagem emocional, mas eu já ouvi isso antes.
Lembrei de já ter ouvido essa história antes de eles me contarem
que iriam se divorciar. Já sei até o que você está pensando: Ora,
seu pai não está tendo um caso se ele se divorciou da sua mãe,
Saoirse. Mas não era para ser de verdade. “O motivo é só o
dinheiro”, eles disseram. “Nós não estamos nos separando.” “A
gente se ama muito.”
Eu havia me escondido atrás da porta da cozinha, observando
os dois através de uma fenda. Nessa época, eu estava sempre
escutando por trás das portas. Meus pais estavam discutindo a
respeito de grana de novo. Alguma besteira sobre proteger a casa
como um bem. Na verdade, tinha sido ideia da minha mãe: os
cuidados dela custavam caro. Provavelmente ela não idealizava
meu pai juntando as escovas de dentes com outra pessoa.
— Você não vai pra uma daquelas instituições estatais —
dissera meu pai, dando um murro na ilha da cozinha. — A gente
toma conta de você.
— Deus, Rob, só me matem se isso for necessário um dia, por
favor.
— Não diga essas coisas, amor, não é engraçado.
Minha mãe se levantou da cadeira e se aproximou dele. Vi o
rosto dela quando colocou as mãos nos ombros do meu pai e o
olhou profundamente, sem hesitação.
— Não é brincadeira. Eu prefiro morrer a obrigar você e a
Saoirse a me alimentar, a me limpar. Não quero que ela passe o
resto da vida cuidando de mim.
— Pois eu sinto muito, mas eu sou bonito demais pra ir pra
cadeia e não acho que a nossa filha de treze anos tenha força
suficiente no tronco pra te estrangular — respondera o meu pai. Eu
podia ouvir um sorriso fraco em sua voz enquanto ele tentava aliviar
o clima.
Minha mãe o beijou, e eu desviei o olhar. Quando olhei de volta,
mamãe estava com o rosto enterrado no pescoço dele e percebi que
ela estava chorando.
Nunca consegui conversar com os meus pais sobre o que estava
acontecendo naquela época. Todas as coisas que eu entreouvia,
adivinhava ou descobria. Minha mãe às vezes tentava conversar
comigo. Ela me dizia que podíamos falar sobre qualquer coisa:
nenhum sentimento ou pensamento era proibido. Eu sempre
respondia que estava bem. Não queria deixá-la triste porque eu
sabia o quão triste ela já estava. No dia em que soube do divórcio,
corri para a casa de Izzy e me acabei de chorar no chão de seu
quarto, enquanto Hannah acariciava as minhas costas. Quando
consegui respirar de novo, Izzy fez pipoca pra gente, escovou
nossos cabelos, e a gente acompanhou a cantoria de Mamma Mia! .
Quando voltei para casa, consegui dizer à mamãe que eu estava
bem e quase ser sincera.
***
***
— Que tal um filme, então? — Meu pai ficou parado de pé, com as
mãos na cintura, nos observando e parecendo muito satisfeito
consigo mesmo. — A gente ainda não assistiu a Gonjiam: Hospital
Maldito .
— Nem pensar — falei com frieza. — Não gosto desses filmes
de terror com hospitais psiquiátricos. São ofensivos.
— Ofensivos como? — Ele revirou os olhos.
— Como não seriam ofensivos? Por acaso pessoas com
transtornos mentais são sempre assustadoras? — perguntei,
ficando incomodada.
— Talvez seja um comentário sobre como o sistema de saúde
mental causa danos iatrogênicos a populações traumatizadas —
disse meu pai, claramente satisfeito com seu palavreado chique.
— E aí elas morrem e viram fantasmas assustadores? —
intrometeu-se Beth, cética.
Nós dois a encaramos por um instante.
— Exatamente — falei. — Mesmo que o que você disse seja
remotamente verdade, como transformar os espíritos dessas
pessoas em vilões seria sensível?
— Bem, e se...
Então percebi que havia sido sugada para mais um debate. Meu
pai já sabia que eu odiava “terror manicomial”. Minha mãe também
odiava. Ela era uma terapeuta, afinal. Mamãe odiava a ideia de
trancafiar pessoas pelo resto de suas vidas só porque elas tinham
certas dificuldades. Ela sempre dizia que não era um gesto de
compaixão ou cuidado, era medo. E o que foi que fizemos com ela?
Se estivesse aqui, se minha mãe estivesse bem, ela saberia como
calá-lo imediatamente. Eu queria que ela estivesse aqui para dizer
algo inteligente e reflexivo que faria meu pai ficar quieto e então
assentir e dizer “você está certa, amor”. Ela era tão boa nisso.
Queria ela aqui ao meu lado. Mas eu estava sozinha.
Decidi apertar o botão de emergência para dar o fora dessa noite
horrorosa.
— Não tenho tempo pra isso. Preciso ir num lance de aniversário
de uma pessoa — falei
— Que aniversário? — Meu pai me olhou com desconfiança. Ele
conferiu o relógio. — Está meio tarde.
— Valeu, vovô. É um lance de aniversário da Ruby.
— Quem é Ruby?
— Uma garota. Uma amiga. Ela é nova.
Tive certeza de que ele ia encrencar. Então eu teria que sair de
fininho e começar toda uma nova treta. Já tínhamos feito esse jogo
na última semana; eu não estava pronta para uma nova rodada.
Mas, em vez disso, meu pai tinha um brilhinho no olhar.
— Hummm — disse ele, lentamente —, uma nova “amiga”.
Ruby, hein?
Ele deu uma piscadela e morri de vergonha alheia.
— Pai, não...
— Saoirse é lésbica — ele explicou cheio de importância para
Beth, que, em sua defesa, não pareceu saber como responder a
essa informação. Se eu estivesse mais bem-humorada, teria
brincado que uma simples reverência de joelhos já seria o bastante.
— Pai, a Ruby não...
— Vai lá, Saoirse, dá o fora daqui. E vê se dá um oi pra Ruby por
mim. — Ele falou o nome dela de um jeito que soava como se um
coro de “com quem será que a Saoirse vai casar” fosse começar se
eu não fugisse imediatamente.
Cerrei os dentes para me impedir de dizer algo que pudesse
virar outra discussão.
— Total, vai ser a primeira coisa que vou fazer. Dizer a ela que o
meu pai, que ela nunca conheceu, mandou um oi. Não é nem um
pouco esquisito.
— Ora, ora... — Ele deu um sorriso bobo. — Imagino que seu
velho aqui vai ser a última coisa em sua mente quando você a vir.
Amor jovem e coisa e tal.
— Por favor, para. — Estremeci.
Beth acenou timidamente em despedida. Enquanto eu saía, meu
pai gritou que ainda tinha bons argumentos a fazer a respeito do
filme Na companhia do medo . Bati a porta ao passar.
Que bom que eu tinha feito um delineado nos olhos, afinal.
6.
Por meia desta, declaro que “aquela estrela ali” deverá receber o
nome de Ruby Quinn. Assinado: Brian Cox, Detentor de Estrelas.
SAOIRSE
Por que seu nome tá no meu telefone como “Deus do
Sexo”?
DEUS DO SEXO
Ah, é. Tinha esquecido disso.
SAOIRSE
Vou mudar pra algo mais apropriado.
— Qual é, pai.
— Não sei não. Você é uma péssima motorista. — Ele agarrou
as chaves junto ao peito.
— Por que você me incluiu na cobertura do seguro do seu carro
se eu não teria permissão pra dirigir?
— Pro caso de uma emergência.
— Isso é uma emergência. Eu já comprei os ingressos e a
Lamborghini tá na oficina.
— Acho que você não entende bem o que o termo “emergência”
significa.
— Eu também não gosto dessa situação, mas é necessário. —
Consegui brigar pelas chaves que ele agarrava com força e as
sacudi. — Não vou bater numa árvore nem cair do píer. Ninguém vai
morrer. Vai ficar tudo bem.
— O meu medo não é de você morrer. A gente mora em uma
área de velocidade máxima de trinta quilômetros por hora. Tô mais
preocupado é de você bater na traseira do carro de alguém e a
conta do meu seguro premium explodir.
— Sua preocupação é tocante — murmurei, mas ele não me
parou.
— Não se esqueça de ligar o farol, está escuro — papai gritou às
minhas costas. Ele achava mesmo que eu era idiota.
Deixei o carro morrer seis vezes a caminho da casa de Oliver,
mas, quando cheguei lá, já estava meio que conseguindo me virar.
Ruby me esperava nos portões, com um par de meias listradas e
um macacão bordado com blusa cropped por baixo. Dava para ver
uns bons quinze centímetros de pele na brecha. Não sabia que era
possível ficar atraída pela lateral da cintura de alguém até conhecer
Ruby. Eu vestia regata preta e calças jeans pretas — de um modelo
que eu nunca usava porque era simplesmente perfeito e já tinha
saído de estoque, então ficava com medo de vestir. A gente parecia
a Wandinha Addams e a Píppi Meialonga saindo num encontro.
Me sentia meio boba por pensar isso, mas eu estava um pouco
constrangida por buscá-la no carro do meu pai. Eu não conhecia
ninguém da minha idade, tirando Oliver, que tivesse o próprio carro,
até porque não vivíamos em uma série americana. Mesmo assim
me sentia idiota. E não ajudava que o carro fosse velho, bege e
tivesse uma marca de batida de quando dei ré numa quina de casa,
porque na época eu ainda não sabia bem como usar os retrovisores
laterais. Não é que eu achasse que precisava ser rica ou que Ruby
fosse se importar, mas de alguma forma é um pouco esquisito saber
que a pessoa com quem você está ficando tem muito mais grana.
Ruby beijou a minha bochecha ao entrar no carro e então
pareceu um pouco constrangida. Estávamos numa fase
desconfortável. A gente tinha começado logo de cara com a
pegação pesada, mas por algum motivo as coisas deram uma
recuada depois que decidimos ir a encontros de verdade. Eu cem
por cento queria me jogar nela (com consentimento) e grudar os
nossos corpos inteirinhos um no outro, mas era mais fácil me sentir
sexy quando a gente nem se conhecia direito. Agora que havíamos
tido conversas de verdade, incluindo uma sobre eu molhar as
calças, era como se ela soubesse que eu não era uma estranha
misteriosa e sensual — era, na verdade, uma esquisitona sem jeito
com problemas de compromisso.
— Preparada para o número seis: noite de filmes? — falei o
título como se fosse um narrador fazendo uma recapitulação.
— Aham. Nem um pouquinho apavorada — acrescentou Ruby.
Decidimos pular para o número seis quando vi que Pânico
estava sendo exibido em um drive-in a céu aberto daqui. A lista não
precisava ser completada em nenhuma ordem em particular, e isso
era perfeito demais para que eu ignorasse. Além disso, decidimos
que eu poderia escolher um filme de terror para o nosso encontro no
cinema. Vinha assistindo a todas as comédias românticas que Ruby
amava e queria compartilhar com ela um dos meus filmes favoritos.
Posso ter me recusado a mencionar que na semana seguinte
estaria passando Casablanca . Tive que assistir com Hannah e foi o
filme mais chato que já vi na vida.
No carro, Ruby parecia um pouco distraída. Ela não parava de
receber mensagens e, mesmo que eu soubesse que deviam ser da
mãe, senti minha curiosidade crescendo. Eu não sabia nada sobre a
vida de Ruby em casa e tinha um pouco de medo de perguntar.
Uma indagação inocente sobre seus amigos levaria naturalmente a
questionamentos sobre os meus. O que levaria a Izzy e Hannah. O
que levaria a dor e sentimentos e ruína. Como o ser humano
maduro que sou, tentei clandestinamente ver quem estava enviando
mensagens para ela. Não encontrei um bom ângulo.
— Desculpa — disse ela, percebendo meu olhar de esguelha. —
Já vou guardar o celular, prometo.
— De boa — respondi como se nem estivesse prestando
atenção.
Ding . Mais uma mensagem. Estiquei o pescoço para tentar ver
o nome do remetente.
— para! — gritou ela.
Pisei no freio com força.
Um guincho.
Uma buzina.
Um “vai se ferrar ” bem alto.
Parei a praticamente um centímetro do carro à nossa frente. Não
tinha percebido quando ele freou ou quando o sinal ficou vermelho.
Meu coração batia tão forte que eu praticamente podia ouvi-lo.
— Você tá legal? — perguntei sem fôlego.
Ruby riu com alívio.
— Tô bem. A gente tava só a uns vinte e cinco quilômetros por
hora. Mas quem sabe seja uma boa ideia manter os olhos na pista,
né. É só a minha mãe.
Corei, completamente mortificada.
— Eu não tava...
— Nem tenta fingir.
— Desculpa — falei, voltando a andar quando o sinal abriu.
Eu queria perguntar por que a mãe dela era simultaneamente
tão carente e ainda assim não havia ligado para Ruby no aniversário
dela. As duas pareciam conversar muito , mas ela tinha saído de
férias sem a filha. Era bizarro.
Ruby apertou a minha coxa, e a minha alma quase saiu pela
boca.
— Como a gente não morreu, vou te perdoar. Mas bisbilhotar o
que eu tô fazendo não é nada fofo.
Ela não parecia irritada, o que era mais do que eu merecia. Eu
estava mesmo agindo como uma fofoqueira esquisita, afinal.
— Ah, claro, a menos que eu seja o Hugh Grant. — Joguei o
nome na roda para mostrar que vinha fazendo o meu dever de casa.
Ela sorriu.
— O Hugh Grant de Quatro casamentos ou o Hugh Grant de
Notting Hill ?
— Notting Hill — falei. — Assisti ontem à noite. Juro que na parte
em que ele aparece no set de filmagem achei que fosse entrar no
modo Atração fatal . Ele tem todo o jeito de um perseguidor.
— Ah, não! Para. Os dois foram feitos um para o outro.
— Dos treze aos dezesseis anos, eu achava que tinha sido feita
pra Chloë Grace Moretz e nem por isso saí por aí seguindo ela no
trabalho.
Ruby riu, e uma pequena chama brilhou dentro de mim.
— Mas gostei do monólogo — falei.
— “Sou só uma garota”? Por quê?
— Porque é sempre o Hugh ou o Protagonista Branco da vez
quem faz o monólogo nesses filmes, mas em Notting Hill é a garota
quem consegue fazer o grande discurso.
— O Hugh tem um monólogo também. Mais ou menos. Ele tem
o momento dele. Na conferência de imprensa, não?
— É, mas ninguém lembra dessa parte.
Quando papai me disse que minha mãe teria que ir para uma
instituição especializada, que nossa casa não era mais segura, que
não conseguíamos providenciar supervisão suficiente, não aceitei.
Claro, a saúde dela estava se deteriorando, isso eu via. Nós
vivíamos em estado de alerta constante. Quase mais nada existia
em nossas vidas. Mas eu aceitava isso. Ela era a minha mãe. A
gente daria um jeito. A gente precisava se esforçar mais, falei.
Chorei e gritei que só a tirariam dali por cima do meu cadáver.
Ou do dele, de preferência. Mas não muito tempo depois de ele
mencionar isso, as coisas mudaram. Eu estava na escola, meu pai
estava no trabalho, e os cuidadores que vinham seis vezes ao dia
ainda estavam a caminho. Mamãe saiu de casa e se perdeu. Ela
vivia tentando sair e era difícil de lidar com isso porque não dava
para manter um olho nela o dia inteiro e não dava para só trancá-la
num quarto. Isso não seria justo nem seguro. Mas também era
perigoso deixá-la andar por aí. Ela estava muito confusa.
Naquele dia, a cuidadora chegou em casa e encontrou a porta
da frente aberta. Não achou mamãe em lugar nenhum. Ela ligou
para o meu pai e ele não atendeu. Então chamou a polícia e ligou
para mim na escola. Tentei entrar em contato com papai sem parar,
inclusive pelo número do seu escritório, mas disseram que ele
estava numa reunião com um cliente e que tinha deixado o telefone
na mesa.
Foi Hannah quem me ajudou no fim das contas. Ela ligou para o
pai para que nos buscasse na escola e então saíram dirigindo pela
cidade à procura de mamãe. Hannah segurou minha mão enquanto
perambulávamos sem rumo pelo calçadão, pelas praias, pelo bairro
todo. Ainda estávamos procurando quando meu pai finalmente deu
as caras. Quis gritar com ele e fazê-lo se sentir culpado por não
estar presente, mas a sua expressão derrotada me fez desistir
disso.
Até esse dia, sempre achei que morássemos num lugar
pequeno. Uma cidadezinha litorânea. Quando percebi que minha
mãe podia estar em qualquer lugar, a cidade me pareceu infinita.
Não chorei o dia inteiro, mas provavelmente machuquei a mão de
Hannah com a intensidade com que eu a apertava. No fim das
contas, alguém a achou e ligou para a polícia. Foram buscar minha
mãe no meio-fio de uma estrada de pista dupla. O rosto dela estava
arranhado, um fio de sangue escorria de seu couro cabeludo e suas
calças estavam ensopadas de urina. Nunca descobrimos o que
aconteceu com ela, como arranjou aqueles arranhões. Se havia
caído ou se alguém a tinha machucado. Havia uma parte de mim
que queria trancá-la num quarto de nossa casa só para me certificar
de que ela continuaria ali, em um lugar onde eu poderia vê-la
sempre.
Eu ainda me ressentia do alívio que vi no rosto de meu pai
quando falei que não discutiria mais a necessidade de levá-la para
uma casa de repouso.
Mais do que tudo, tentei fingir que não senti alívio também.
***
Levar o cisne até a praia foi até que fácil, apesar da água gelada em
nossos tornozelos. Carregá-lo pela areia, para além do cercado, e
então de volta para o mar é que foi difícil. Teve grunhido, suor e
muita baixaria.
— Olha que legal — ofeguei quando finalmente zarpamos.
Estávamos espremidas lado a lado no cisne e pedalávamos mar
adentro. Nenhuma de nós ainda sentia frio.
— Acho que estive ignorando “ladra profissional” como opção de
carreira. O que você acha?
Eu ri. Então Ruby riu. E aí não conseguimos parar mais.
— A gente roubou um cisne de três metros — disse ela, entre
gargalhadas.
— A gente roubou um cisne de três metros e quatro estrelas —
corrigi. Então ri de novo. Nem era assim tão engraçado. É que a
situação ridícula e a euforia estavam nos deixando bobas.
— Acho que isso não rola em nenhum dos filmes — Ruby disse
finalmente quando ambas nos acalmamos. Ela deixou a mão boiar
na superfície da água.
Assim como na noite do drive-in, quando pensei que estávamos
presas à mercê de um serial killer no banco de trás do carro,
considerei mencionar que, se estivéssemos em um filme de terror,
ela poderia perder a mão para um demônio aquático ou ser puxada
para fora do barco por um assassino, e aí eu teria que deixá-la para
trás e pedalar até a praia. Mas imaginei que isso pudesse estragar o
momento.
— Vou incluir no meu livro de memórias — falei em vez disso. —
Quando fizerem um filme da minha vida, isso vai estar numa das
primeiras cenas.
— Ah, então você se acha interessante o bastante pra fazerem
um filme seu? — provocou.
— Talvez não agora, mas quando eu tiver curado o câncer ou
instaurado a paz mundial, vão ter que dar ao povo o que ele quer.
— E o que você quer ser, sabe, “quando crescer”? — perguntou
Ruby.
O que eu podia responder? Não possuía grandes planos ou
paixões que desejasse seguir. Não me permitiria isso. E não podia
dizer a Ruby o motivo por que fazer planos meio que não tinha
muito sentido nas minhas circunstâncias.
— Não tantas coisas quanto você — falei brincando.
Ruby sorriu, mas não disse nada. Ela esperou que eu falasse
mais. Era algo normal. Uma conversa completamente normal. Na
escola, não se falou de outra coisa o ano inteiro. Em que curso você
vai tentar entrar, o que você quer fazer, etc.? Ninguém cansa desse
assunto porque, embora todo mundo pergunte a todo mundo, o
objetivo não é saber o que os outros vão fazer, mas sim discutir o
que você mesmo deseja da vida.
Não achava que essa tinha sido a intenção de Ruby ao fazer a
pergunta. Eu ia ter que oferecer algo diferente. Mas isso era
permitido. Não estava quebrando nenhuma regra. No máximo dando
umas cutucadinhas para ver se estavam firmes.
— Pra ser sincera, eu não sei — falei.
— Também me sinto assim.
— Você se sente assim porque tudo parece uma boa ideia pra
você. — Ruby considerava toda carreira que surgia, mesmo numa
conversa casual, como uma possibilidade; ela via potencial em tudo.
Eu não era assim. — Nada parece uma boa ideia pra mim.
Percebi, enquanto as palavras tropeçavam para fora de minha
boca, que elas soavam terrivelmente próximas de uma admissão
piegas dos meus verdadeiros sentimentos, e isso era perigosamente
próximo de ter uma conversa profunda e significativa que eu não
deveria ter. Não se eu quisesse seguir minhas regras. E eu queria, é
claro. Porque elas estavam funcionando.
Ruby pegou a minha mão e esfregou o polegar pela minha
palma.
— Não, eu me sinto assim porque... — Então se interrompeu e
virou a minha mão para olhá-la. — Você tem uma cicatriz aqui —
disse ela, surpresa. — Como não percebi antes?
Era bem escondida pois seguia uma linha da mão. Já tinha até
testado se dava para sentir quando se apalpava a área, e não dava.
— Bem. Ela tem uma história — falei, me agarrando à
oportunidade de mudar de assunto. — Eu entrei num prédio em
chamas, sabe.
— Aham. — Ruby revirou os olhos.
— Não, é sério. Pra salvar uns gatinhos.
— Gatinhos, sei.
— Isso aí. Seus favoritos. E órfãos. Você gosta de órfãos? Eu
sou uma baita de uma heroína.
— E você saiu desse valente resgate com nada além de uma
cicatriz comprida na mão?
— Isso. Sou uma heroína imune a chamas. O que mais posso
dizer?
— Que tal se você me disser algo real para variar?
Os olhos de Ruby cravaram nos meus. Sua pintinha azul era
como se uma gota da noite tivesse caído do céu direto para a sua
bochecha. O rosto dela era cheio de curvas suaves e a pele era
luminosa. Ela talvez fosse a garota mais linda que eu já vi na vida.
— Que tal isso? — Peguei seu queixo entre meu indicador e
polegar, aproximando o rosto dela para que eu pudesse sussurrar
contra seus lábios.
Queria dizer o quanto gostava dela, queria contar sobre o puxão
no estômago que parecia me atrair em sua direção. Mas não podia
deixar as palavras saírem de minha boca porque seria como libertar
algo que eu não era capaz de controlar.
Em vez disso, falei:
— Quero te levar pra um lugar especial.
Era a minha parte favorita da praia, distante das áreas turísticas,
uma pequena enseada com cascalho áspero em vez de areia. Ao
subir pela angra rochosa, dávamos de cara com uma piscina natural
completamente cercada com menos de dois metros de profundidade
e cerca de 1,50 m de largura. Por algum motivo, a água ali era mais
quente do que no resto do mar. Mais quente não significava quente.
Isso era importante. Deixamos o cisne em uma fenda na rocha e o
grande pássaro branco fugitivo cambaleou para todo o lado
conforme escalamos a pedra.
Ruby soltou um suspiro baixinho.
— É especial mesmo.
Nossa própria piscina particular iluminada pelas estrelas.
Sentei na beira da água e deixei meus pés balançarem ali. Ruby
esticou as pernas e as sacudiu. Talvez eu não tivesse lá me
esforçado muito na hora de pedalar, pra ser sincera, mas Ruby tinha
aqueles pernões musculosos de ginasta, então no fim das contas eu
só a atrasaria. Ela esticou os braços por cima da cabeça, e tentei
não encarar os lugares que ficaram expostos quando a bainha de
sua blusa subiu. Em vez disso, dei um tapinha no chão ao meu lado,
onde Ruby se sentou e mergulhou os dedos na água.
— Que gostoso — disse ela, e apoiou a cabeça no meu ombro,
um pouco de seu cabelo bagunçado fazendo cócegas no meu
queixo.
— Bom saber — falei lentamente. — Porque eu acho que a
gente devia dar um mergulho sem as roupas.
A cabeça de Ruby se levantou na hora.
— Você tá zoando.
Fiz que não.
— Combina muito com uma comédia romântica, não acha?
— Não tá na lista.
— Você já fez isso antes? — perguntei, tentando não demonstrar
ciúmes pela pessoa que talvez tivesse nadado pelada com a
minha... com Ruby.
— Não.
Se ferrou, pessoa imaginária.
— Com certeza tá congelando. — Ela olhou com pesar para a
água. Embora a piscina fosse pequena demais para ter ondas, era
escura e sinistra e fazia sons gorgolejantes quando o mar fluía pelas
pedras.
— Um minuto atrás você disse que estava gostoso — zombei.
Os olhos dela buscaram os meus, tentando verificar se eu
estava falando sério. Sustentei seu olhar.
— Vamos. — Ela saltou e rugiu como se estivesse se
preparando para uma batalha contra os elementos.
— Tem certeza disso? Não tá friozinho demais pra você? —
zoei, me levantando e jogando meu suéter em uma saliência alta da
rocha.
— Se eu perder um mamilo por causa do frio, vou te
responsabilizar pessoalmente — disse Ruby, tirando os tênis.
— Pois eu aceito total responsabilidade pelos seus mamilos.
Me contorci para fora dos shorts e senti uma fisgada de dúvida
quando uma onda de água gelada espirrou contra as pedras e os
borrifos atingiram minhas pernas. Ruby pegou as pontas de sua
camisa com ambas as mãos e puxou sobre a cabeça. Eu não sabia
se tinha permissão de olhar ou não. A constelação de sardas
salpicando seu torso dava a impressão de que alguém as tinha
soprado das mãos para a sua pele como se fosse granulado. Sua
cintura fazia um arco e seus quadris eram cheios e largos. Uma
protuberância de abdômen macio pendia do cós de sua calcinha
rosa de bolinhas um número menor. Estava justa, quadris e barriga
fofos esticando o tecido. Se isso não soa lindo pra você, é só porque
não a viu.
Ela estava vestindo um sutiã azul listrado e eu não queria ser
tipo um garoto perdido no vestiário, com os olhos fixos no seu peito,
mas o volume de seus seios desaparecendo sob o tecido me fez
desejar algo com tanta força que era como se houvesse uma
criatura indomável dentro de mim, tentando escapar de meu
estômago com suas garras, explorando com mãos gananciosas.
Pensei em me aproximar, mas havia uma reciprocidade implícita
quando o assunto era ter permissão para ver alguém só com roupas
de baixo. Puxei a minha camisa por cima da cabeça e a mantive em
mãos, cobrindo a maior parte do meu corpo por um instante antes
de deixá-la cair. Estava com medo de que Ruby não fosse gostar do
que veria. Minhas bochechas esquentaram quando os olhos dela
vasculharam o meu corpo. Acho que vi a mesma expressão que
irradiava de mim refletida em seus olhos, e isso fez eu me sentir
bonita. Eu me soltei, deixando os ombros caírem e os braços
relaxarem ao lado do corpo.
— Não olha — ela disse quando levou as mãos às costas para
abrir o sutiã. Fechei os olhos.
Momentos depois, ouvi o som de mergulho, combinado com um
grito e seguido por uma sequência de respirações aceleradas e
esbaforidas. Abri os olhos. Ruby estava nadando furiosamente, o
rosto duro com a dor de ser submersa em água gelada.
— É... Pensando bem, acho que não vou entrar não. — Fingi
recolocar a camisa.
— Ai. Meu. Deus. Pode. Entrar aqui. Agora. Ou. Juro. Que eu. Te
Mato — disse Ruby, as palavras saindo com dificuldade entre
ofegos.
Ela nadou em outra direção para se aquecer, discretamente me
dando privacidade para remover a pouca roupa que eu ainda usava.
Era esquisito não vestir nada em um lugar público. Tentei me
lembrar de alguma outra vez na vida em que estive completamente
pelada ao ar livre e, a menos que tivesse feito isso quando bebê,
essa era a primeira vez. O ar frio era gostoso e fazia cócegas em
lugares que não eram expostos com frequência. Imaginei que a
água seria menos agradável. Hesitei por um segundo na beira da
piscina natural, contemplando o pulo. Então decidi deixar as minhas
roupas na beirada e tentar mergulhar aos poucos, centímetro por
centímetro.
— Ahhhhh! — gritei.
— Tá dentro? — perguntou Ruby. Ela estava virada para o lado
oposto a mim, usando a beira da piscina como descanso para os
braços.
— Ainda não.
— Só pula.
Eu não conseguia. Entrei mais um pouquinho.
— Ai, Deus.
A água encostou em partes que não estavam acostumadas a ver
o mundo lá fora e eu respondi com um gritinho agudo.
— Chegou na pepeca, né? — perguntou Ruby, cheia de
sabedoria.
— Não me faz rir. É uma operação delicada — falei, mas não
consegui segurar as risadinhas e perdi o apoio, escorregando para
dentro d’água e arranhando minha perna em um trecho de rocha
saliente. Terceiro nocaute pro meu pobre joelho.
— Aiii. Ah, tá gelada e dói.
Ruby se virou, boiando na água. Conseguia vê-la dos ombros
para cima. Ela bateu os braços na minha direção, tentando não rir.
— Melhora depois de um minuto. Já não tô mais com tanto frio.
Bati as pernas e nadei em pequenos círculos ao redor da piscina
rochosa, até meus batimentos desacelerarem um pouco e eu parar
de sentir como se o frio estivesse se enterrando em meu corpo.
— Essa ideia foi sua — disse Ruby, rindo, quando viu a minha
cara.
— Eu tenho ideias ruins.
Não falei sério, pois eu estava numa piscina natural, pelada com
uma garota também nua, e isso era basicamente a melhor coisa que
já tinha me acontecido na vida. Nadei para perto dela e flutuamos
preguiçosamente na água. Sua perna deslizou contra a minha e,
com a morte iminente por congelamento fora da jogada, a criatura
do desejo retornou. Era a vontade mais intensa que eu já tive. Me
aproximei o bastante para Ruby colocar as minhas mãos em sua
cintura e eu a puxei para mais perto. A pele dela era sedosa sob a
água. Embora nossas pernas batendo para nos manter flutuando
não permitissem que nos aproximássemos ainda mais, cada ponto
de contato de pele com pele queimava, tanto que a água escura
deveria até estar brilhando. Minhas mãos em sua cintura, as mãos
dela em meus quadris, nossas pernas roçando umas nas outras.
Ela me puxou para mais perto para me beijar e eu perdi o fôlego.
Não era apenas os lábios dela nos meus, mas todo o seu corpo
deslizando e escorregando no meu, de uma maneira que era
delicada, mas que parecia me incendiar. O gorgolejar da água presa
sob a rocha e o sussurrar das ondas desapareceram. Ela enlaçou
as pernas ao redor da minha cintura. Eu a beijei de volta até não
aguentar mais. Queria deslizar minha mão por ela inteira, queria
encontrar lugares secretos em seu corpo e queria que ela fizesse o
mesmo comigo, mas, em vez disso, nos separamos.
O desejo por mais também era uma sensação boa. Como uma
dor gostosa.
Saímos da água sem nos olharmos. Por algum motivo, mesmo
que eu tivesse sentido o seu corpo enroscado no meu, a ideia de
ser vista era diferente. Juntei o cabelo como se fosse uma corda e o
torci, a água espirrando nos meus pés. Os dentes de Ruby batiam
conforme ela se vestia.
Em roupas úmidas, ela beijou o meu nariz.
— Você tem boas ideias — disse.
Era um tipo de beijo diferente dos que trocamos na água, mas
provocou uma sensação muito boa também.
18.
SAOIRSE
Você acha que pessoas que foram amigas
por anos podem um dia se apaixonar do nada?
SAOIRSE
PS: é sério. Como é que você fez isso
dessa vez? Não te vejo há séculos.
MEU SENHOR E SALVADOR, OLIVER QUINN
Saoirse, me sinto lisonjeado,
mas não gosto de você desse jeito.
MEU SENHOR E SALVADOR, OLIVER QUINN
E eu tive uma ajudante.
SAOIRSE
Tô vendo Harry e Sally . O cara confessou
estar apaixonado listando um monte de coisas
que ela faz. Ah, e diz pra Ruby que ela é
uma traidorazinha safada.
MEU SENHOR E SALVADOR, OLIVER QUINN
Me mantenha fora das conversas sacanas
de vocês duas, por favor, obrigado.
SAOIRSE
Mas você acha ou não? Que melhores
amigos podem de repente começar a gostar um
do outro? Se você não tinha interesse na pessoa
desde o começo, então não tá apenas
aceitando o que tem?
MEU SENHOR E SALVADOR, OLIVER QUINN
Mas as pessoas mudam. Talvez não
fossem certas uma para a outra quando
se conheceram, mas, com a experiência
e o passar do tempo, elas se aproximaram.
Tipo, tem gente que se casa, se divorcia
e anos depois se casa de novo.
Tudo é possível.
SAOIRSE
Não sabia que você era tão romântico.
MEU SENHOR E SALVADOR, OLIVER QUINN
Sou um homem de profundidade oculta.
SAOIRSE
Então por que você ainda não
arranjou uma namorada?
MEU SENHOR E SALVADOR, OLIVER QUINN
Não sei. Ninguém me vê dessa forma,
acho. Eu sou o festeiro, não o namoradinho.
SAOIRSE
Eu acho que você vai dar um
bom namorado algum dia.
MEU SENHOR E SALVADOR, OLIVER QUINN
Por causa do meu belíssimo visual e da minha incrível técnica de
fazer amor?
SAOIRSE
Não, por causa do seu carro maneiro e do seu cofre
recheado de moedas de ouro.
24.
Um dos itens não feitos de nossa lista requeria que uma de nós
ensinasse alguma habilidade à outra. Sabe como é, tipo quando o
personagem mais atlético (o cara, geralmente) se posiciona atrás da
personagem adoravelmente desajeitada (a mulher, claro) e a ajuda
a usar um taco de golfe. Ou quando a personagem rica e cheia de
cultura leva um joão-ninguém mediano ao teatro e o ensina a
apreciar a beleza de uma ópera. Descobrimos que nenhuma de nós
fazia o tipo atleta, a menos que a gente considerasse o passado de
ginasta de Ruby — e longe de mim topar plantar bananeira. E
nenhuma de nós era rica e cheia de cultura. Na verdade, éramos
duas pessoas distintamente sem habilidade, sem nenhum grande
talento na vida. Nenhum fraco por pintura a óleo, violino, canto, nem
mesmo por videogames, podcasts ou pela produção de fanzines
com temas de zumbi; ou seja, basicamente qualquer coisa que
tornaria uma personagem peculiar e interessante.
— Você acha que nós somos só duas pessoas muito sem
graça? — me lamentei sobre o potinho de sorvete de baunilha
derretendo na minha mão.
Estávamos sobre uma toalha de piquenique colocada na areia,
na penumbra do fim da tarde, eu deitada de bruços e Ruby sentada
com os joelhos colados ao peito. O ruído de pessoas recolhendo
suas bolsas de praia e filhos tocava ao fundo.
— É claro que não — disse Ruby, sacudindo a cabeça. — Você
sempre chega à pior conclusão possível.
— Tem certeza? Porque nós duas estamos comendo sorvete de
baunilha — ressaltei. — Eu nunca nem provei a maioria dos outros
sabores.
— Bem, tecnicamente sou só eu quem está comendo sorvete.
Olhei para ela e então para as minhas mãos. Ruby tinha roubado
meu sorvete sem que eu nem notasse.
— Sua ladra — falei, esticando o braço para pegar de volta.
— Nem pensar. Você tava deixando derreter.
— Tá bom. — Desisti. — Devo ter algum tipo de habilidade ou
hobby. Eu... Eu posso... Hum... Não. Não tenho nada.
— Idem — concordou Ruby, alegremente lambendo a colher.
— E ainda assim a gente não é sem graça?
— Não. A gente é normal.
— Nas comédias românticas, as garotas sempre têm uma
habilidade especial.
— É, bem, elas são geralmente jornalistas de revistas femininas
ou assistentes pessoais. Qual é a das comédias românticas com as
jornalistas?
— Verdade. Talvez eu devesse virar jornalista de revista
feminina? — Agora eu é que soava como Ruby.
— E você por acaso lê revista feminina?
— Não. Já sei todas as 99 dicas para enlouquecer o meu
homem. — Eu me virei e me sentei, cobrindo os ombros com o
cardigã. O calor do dia ia embora com a brisa gelada que batia
sobre as ondas.
— Talvez a gente devesse encontrar uma nova paixão pra você,
gata.
— Gata — repeti, zombando do seu sotaque inglês. Ela me deu
um peteleco com o indicador. — Então o que a gente faz? Não
temos nada a ensinar uma pra outra. A menos que você queira ouvir
o que aprendi sobre a Prússia pros testes finais de história. Mas, pra
ser sincera, parece que as provas foram há séculos, então na real
não me lembro mais de um monte de coisa.
— E se nós duas aprendêssemos alguma coisa nova? —
sugeriu Ruby.
Ela esticou as pernas, enterrando os dedões na areia, e os
últimos raios de sol a iluminaram como se a luz viesse de dentro.
— Ukulele? — sugeri.
— Não, algo mais prático, que possamos realmente usar na vida
real.
— Contabilidade?
— Certo, algo menos prático. Tipo... cozinhar? Podíamos fazer
aulas de culinária. — Ela se iluminou. — É uma ótima ideia. É algo
que nós duas podemos usar, vai ser divertido e, toda vez que você
fizer um fettuccine fresco, vai pensar em mim.
Imaginei meu eu do futuro na cozinha de um apartamento
aconchegante. Haveria música e velas, e Ruby estaria brincando
com o nosso cachorro enquanto eu flambava a comida.
Nosso cachorro? Que ideia ridícula.
Ruby era claramente muito mais uma fã de gatos.
Mas a ideia de cozinhar era boa. Não tinha considerado como eu
iria me alimentar caso fosse para a faculdade ou me mudasse.
Ainda não tinha recebido resposta de nenhum dos trabalhos para
onde mandei currículo, mas com certeza não ia demorar para
precisarem de mão de obra adolescente totalmente desqualificada,
certo? Mesmo se eu decidisse ficar em casa, saber preparar algo
que não fosse uma pizza congelada provavelmente seria útil. Devia
ter feito isso anos atrás, para me poupar da tortura de tentar engolir
seja lá o que meu pai tivesse fervido até a morte para o almoço.
— Você é genial — falei, beijando o nariz cheio de sardas de
Ruby, com ainda mais sardas agora do que quando nos
conhecemos.
— Eu sei. — Ela retribuiu mordiscando o meu lábio inferior. —
Você deveria celebrar o dia em que me conheceu.
— E celebro — falei com seriedade. — Peguei uma garrafa de
vodca grátis naquela noite.
— Você é tão romântica. — Ruby bateu os cílios para mim. — É
por isso que eu te a...
Nós duas paralisamos, quase que de forma cômica.
— É por isso que nós — ela recomeçou, o momento de paralisia
sumindo sem ser reconhecido, uma falha na Matrix — somos tão
boas nesse negócio de comédia romântica.
Alguns dias depois, nos vimos de pé na cozinha das aulas de
economia doméstica da minha antiga escola. Em nossa companhia
estavam quatro casais héteros na casa dos trinta anos que se
olhavam de maneira apaixonada — anéis brilhantes nos cegando na
mão esquerda de cada mulher — e um homem muito velho sozinho.
Ruby me cutucou quando o viu e fez uma carinha triste, então
escolhemos o banco atrás dele. Éramos nós e ele de um lado da
sala, e os casais apaixonados do outro.
Era estranho estar na escola. Tinha aquela sensação sinistra de
prédio abandonado nas férias, mas percebi que essa provavelmente
seria a última vez em que eu usaria este edifício de fato, a menos
que eu contasse o dia que viesse pegar meus resultados. Não tinha
pensado a respeito disso no último dia de aula, talvez por saber que
eu voltaria lá para fazer os testes em poucas semanas ou talvez
porque estivesse me concentrando muito no quanto queria que o
sinal tocasse logo para eu meter o pé.
Estava todo mundo nos corredores disparando spray de espuma
uns nos outros ou pedindo para que assinassem suas camisas com
canetinha. Tudo o que eu queria era dar o fora, terminar meus
estudos e evitar as amigas que já havia deixado para trás. Enquanto
descia a escadaria que dava para o portão da frente, espiei Izzy de
canto de olho. Ela segurava um marcador permanente, e tive a
impressão de que ia me pedir para assinar sua camisa, embora não
nos falássemos havia meses. Izzy era assim. A emoção do dia a
levaria a pensar que, de algum modo, poderíamos fazer as pazes.
Mas achei o carro do meu pai no estacionamento e praticamente
voei para a porta. Não estava mais brava com ela. Estive brava com
a amiga que sabia que meu coração seria partido e não me contou.
Mas Izzy não era mais essa amiga e eu só não me importava. Não
queria ser grosseira e me recusar a assinar, mas também não
queria assinar e fingir que olharia com carinho para as memórias de
nós duas, como se os últimos oito meses não tivessem acontecido.
Relacionamentos mudavam, e o passado não era algo estático
que se pode manter para sempre, como uma fotografia. Mais
ninguém parecia entender isso. Só porque algo aconteceu, não quer
dizer que vai significar a mesma coisa para você para sempre. O
passado muda com você. A amizade pela qual você tinha carinho, a
esposa que você adorava, a filha que você criou. Tudo pode perder
o significado com muita facilidade, o que queria dizer que nunca
teve significado em primeiro lugar, você é que não tinha percebido.
Mas se nada tem significado, então o melhor mesmo é se divertir
o tanto quanto possível.
Apertei a mão de Ruby e ela beijou a minha bochecha. Não
consegui deixar de me perguntar se os outros casais tinham
percebido. Às vezes esqueço que sou lésbica. Tipo, no sentido de
que esqueço que isso é algo estatisticamente incomum e que há
gente com opiniões fortes a respeito do assunto. Apesar de já ter
lidado com comentários inconvenientes ou abertamente cruéis, em
especial na escola quando me assumi, a maior parte das pessoas
na minha vida não se importava com isso. Mas os outros ainda
notavam. Via isso quando Hannah e eu caminhávamos na rua. As
pessoas olhavam para nossas mãos dadas. De relance. Às vezes
sorriam, de vez em quando faziam cara feia, na maioria das vezes
só seguiam em frente, reparando na próxima coisa. Mas isso
sempre fez eu me sentir observada. O diabo está nos detalhes.
Como no fato de ser notada fazendo algo que seria invisível se
estivesse com um garoto.
— Bom dia, pessoal. Eu me chamo Janet, sua instrutora hoje. —
Uma mulher pequena e roliça com um sorriso entusiasmado entrou
na sala energicamente, esfregando as mãos.
O casal do lado oposto a nós largou tudo o que estava fazendo
para prestar uma extasiada atenção a ela. O senhor à nossa frente
aumentou o volume de seu aparelho auditivo.
— Vocês são todos iniciantes aqui, correto? — perguntou a
mulher. Ela tinha o fervor de uma daquelas pastoras americanas, e
tive a impressão de que cozinhar era um negócio que ela realmente
amava muito. Não esperou por uma resposta. — Ao final dessa
manhã, vocês deixarão de ser iniciantes. Aprenderão habilidades
básicas que podem levar para casa e praticar. E se, ao fim do dia,
sentirem uma coceirinha dizendo “Minha nossa, eu amo esse
negócio de cozinhar”, podem se inscrever no meu curso de seis
semanas que vai começar em setembro. Nele, aprenderão as
respostas para perguntas populares como: “Que raios é uma
vieira?”, “Consigo preparar em casa em vez de ter que pagar vinte
euros por um aperitivo num restaurante?” e “Por que todo mundo
age como se fazer risoto fosse tão difícil quando não passa de arroz
empapado?”.
Dei uma olhadela na direção de Ruby, que estava escondendo a
boca por trás de um punho.
— Mas hoje... — A mulher baixou o tom de voz e o senhor
sacudiu seu aparelho auditivo como se estivesse quebrado. — ...
nós vamos aprender a fazer... — Ela fez uma pausa dramática e eu
mordi os lábios para não gargalhar alto. — empadão de frango! —
ela gritou a última palavra, e o senhor deu um pulo.
O casal de puxa-sacos no lado oposto a nós começou a aplaudir,
mas deixou os aplausos morrerem quando ninguém se juntou a
eles.
— Não tem por que ficar empolgada assim por causa de
empadão de frango — falei para Ruby.
— Talvez seja o melhor empadão de frango das nossas vidas. —
Ruby sacudiu as mãos para mim de forma performática e todos os
quatro casais puxa-sacos fizeram “shh” para nós ao mesmo tempo.
Foi meio assustador.
Janet nos guiou pelos passos necessários para preparar a
massa e descascar as batatas. Os passos mais importantes haviam
sido escritos em um panfleto, mas ela ainda ficou na frente da
classe explicando por que você devia começar a cozinhar as batatas
em água fria em vez de jogar água fervente direto na panela. Os
puxa-sacos anotavam tudo. Ruby e eu inspecionávamos o papel
com as instruções.
— Quer ir descascando enquanto eu tento transformar esse
negócio em migalhas de algum jeito? — perguntei, avaliando os
ingredientes para a massa com desconfiança.
— Ok, mas e ele? — Ruby meneou a cabeça na direção do
senhor, que estava com o descascador de batatas em uma das
mãos e a folha de papel na outra.
Ruby me encarou com olhos de cachorrinho pidão. Suspirei e
assenti.
Meia hora depois, nossas barrigas doíam de tanto rir.
Morris, nosso novo amigo idoso, era no geral simpático, mas
parecia profundamente desconfiado de pessoas alegrinhas tipo
Janet. Quando ela bateu palmas porque os puxa-sacos fizeram um
molho comestível, ele disse, num tom que pensava ser um sussurro
conspiratório, mas que, na verdade, soou como um trovão sobre os
tinidos da cozinha:
— Acho que ela é uma daquelas pessoas que conseguem ficar
chapadas com drogas legais que a gente ouve falar no noticiário.
Eu meio que esperava que Janet fosse responder que estava
chapada sim, pela vida, mas ela educadamente fingiu não ouvir.
Gente velha pode falar praticamente o que quiser mesmo.
— E por que vocês estão passando as férias de verão aqui,
ajudando um velho como eu a cozinhar, meninas? — Morris
perguntou enquanto esperávamos nossas tortas esfriarem o
suficiente para que pudéssemos cortar uma fatia.
A nossa estava dourada e farelenta, e eu havia aperfeiçoado a
dobrinha da borda de uma maneira que quase fez com que nossa
professora fizesse xixi nas calças de tanta alegria. Minhas
expectativas estavam altas. Quem sabe a maldição culinária de meu
pai não tivesse sido passada para mim.
— A Saoirse queria aprender uma habilidade útil pra vida e eu
queria conseguir ajudar em casa — respondeu Ruby.
— Que meninas boas vocês são. Nenhum dos meus filhos
cozinhou um dia sequer enquanto morava comigo. Mimados até
dizer chega. Bem, mas isso foi culpa da minha Anna. Ela os
paparicava demais.
Eu e Ruby trocamos um olhar. Já imaginava que Morris fosse um
viúvo recente, considerando como estava aprendendo a cozinhar
por conta própria, mas não queria lembrá-lo disso.
— Como ela era? — perguntei gentilmente.
— A Anna? Uma velha coroca resmungona. Mas me fazia rir.
Sempre xingando por aí e por qualquer bobeira. Era o jeitinho dela.
Mas era uma mãe dedicada.
— Como vocês se conheceram? — perguntou Ruby, cutucando
a crosta do empadão para ver se ainda estava quente demais.
— Em uma festa. Acho que foi em 1962. Por um amigo meu.
Não lembro o nome dele agora. Eu tinha dezenove anos, ela tinha
dezessete. Era a garota mais bonita lá. E eu também não era
nenhum feioso, se querem saber.
A resposta não foi o que eu estava esperando. Por algum
motivo, não conseguia imaginar Morris numa festa na casa de
alguém, se enchendo de cerveja. Será que ele não queria dizer algo
mais como um jantar?
— Você a chamou pra dançar? — perguntou Ruby, sonhadora.
Já sabia que ela estava imaginando uma cena de filme em preto e
branco.
— Quê? Não. Eu danço mal pra caramba. Não podia deixar que
ela visse isso. Não, não. Ela ficou bêbada, e aí me beijou, e aí tive
que carregar ela pra casa. No dia seguinte, levei água com gás e
aspirina pra ela. Um ano depois a gente estava casado.
— Isso é... é... tão romântico — vacilou Ruby. Ela evitou olhar
nos meus olhos.
— Quantos filhos vocês tiveram? — perguntei.
— Tivemos meninos gêmeos seis meses depois de nos
casarmos. E agora vocês sabem por que nos casamos tão rápido.
— Morris deu um tapinha no nariz.
Não pude evitar. Bufei uma risada.
— Eu não acreditava em almas gêmeas antes de conhecer a
Anna. Mas não passamos uma noite separados do dia do nosso
casamento até o dia em que ela faleceu. Às vezes, a vida sabe do
que a gente precisa melhor do que nós mesmos.
Morris ficou em silêncio. Ruby deu uma tossida e se ocupou com
a limpeza, e imaginei que estava tentando não chorar. Um segundo
depois, o momento foi quebrado pela voz empolgada de Janet.
— Muito bem, classe. Seus empadões já devem ter esfriado o
suficiente. Vamos descobrir como se saíram. Sei que eu mal posso
esperar! — Ela esfregou as mãos e foi direto para a bancada de um
dos casais puxa-saco. Notei o homem e a mulher do casal no lado
oposto a nós revirando os olhos um para o outro.
— É o momento da verdade — falei, deixando a faca afiada
pairar sobre nosso empadão douradinho e lustroso. Então perdi a
coragem. A pressão era grande demais. — Não consigo, prova
você.
Ruby ignorou a faca e meteu o garfo no meio do empadão. Ela
engoliu um bocado. Mastigou. Eu esperei. Ela engoliu.
— Hum... É... Você esqueceu de botar alguma coisa? —
perguntou.
— Quê, não? O que tem de errado? — Tomei o garfo da mão
dela e peguei um pedaço para mim.
Não estava horrível. Também não estava lá muito bom. Não
estava nada. Não tinha gosto de nada.
— A maldição... A maldição me pegou. Sou geneticamente
incapaz de preparar comida que tenha gosto de qualquer coisa —
me lamentei.
Ruby massageou minhas costas, me consolando.
— Não foi só você. Eu também cozinhei.
— Meus poderes são tão grandes que cancelaram até as suas
habilidades.
— Está tudo bem. A gente pode tentar algo mais fácil na próxima
vez — continuou ela, me dando tapinhas nas costas enquanto eu
me encurvava tristonha num banquinho. — Tipo uma sopa.
Enlatada.
Eu ri um pequeno soluço triste e olhei por cima do ombro de
Morris para seu empadão.
— E aí, como ficou o seu?
— Você acha que a sua presença pode ter arruinado o dele
também? — Ruby me cutucou, fazendo careta.
— Vocês não podem provar o meu — disse ele, encobrindo o
prato com o corpo de forma protetora. — Preciso dele pra essa
noite.
Esqueci minhas habilidades culinárias horríveis e senti meu
coração doer por Morris, sozinho em casa com a sua torta.
— A mulher com quem vou num encontro hoje vai amar — disse
ele.
— Quê? — falei, erguendo a cabeça. — Você tá saindo com
alguém?
— Morris, seu danado. — Ruby riu.
— Minha Anna se foi há cinco anos, meninas. Vocês realmente
acharam que eu ficaria fora de circulação por tanto tempo assim?
— Você disse que ela era a sua alma gêmea — falei.
Não tive a intenção de que soasse como uma acusação, mas
soou. Ruby bateu no meu braço para que eu parasse de tentar fazer
o velho se sentir culpado por não passar o resto da vida de luto.
— E ela era — disse ele, surpreso. — Acho que há outra por aí,
e vou encontrá-la. E a busca é bastante divertida.
— Só existe uma alma gêmea pra cada um — falei, irritada.
Morris claramente não passava de um velho safado.
— Quem disse? — Ele não parecia bravo comigo por repreendê-
lo. Apenas gargalhou uma risada chiada e gentil. — Meninas, não
saio por aí dando conselhos porque acho que, na vida, cada um
deve errar da sua própria maneira, mas uma coisa vou dizer: não
acredito que exista uma única pessoa certa para cada um, e eu
passei 51 anos com a mesma mulher. Acredito que exista uma
pessoa certa para nós em momentos diferentes de nossas vidas.
Quer essa relação dure uma semana ou cinquenta anos, não é isso
o que a torna especial.
25.
***
***
SAOIRSE
Acho que cometi um erro.
OLIVER
Não consigo acreditar que você gabaritou o exame do certificado de
conclusão e ainda assim tenha levado duas semanas pra perceber
isso. É triste, na real.
SAOIRSE
Você vai ficar aí sendo um babaca ou vai me ajudar?
OLIVER
Sim.
35.
O Gesto Grandioso
Eu amo a maneira como você não tem ideia do que quer fazer
da vida, mas como tudo que surge vira uma opção.
— Oi, desculpa, pode me dizer pra que lado fica a feira dos
calouros? — Eu paro uma garota que vem andando na direção
oposta a mim. Ela está com uma pilha de folhetos nas mãos e uns
sete mil broches presos à camisa.
— Fica pra lá — diz a garota, apontando na direção por onde
acabei de vir. — É só passar pelas portas duplas e aí virar à
esquerda, não tem como errar.
Ao atravessar as portas, vejo um vilarejo de barracas
improvisadas que se vergam umas contra as outras, repletas de
tigelas de doces, fotografias de camaradagem universitária e
folhetos coloridos com detalhes a respeito dos clubes e seus nomes
no Twitter.
Prometi ao meu pai que ia tentar participar das coisas e que teria
a experiência universitária completa, mas já estamos na segunda
semana e ainda não fiz amizade com ninguém. Apesar de tantas
mudanças às vezes me distraírem, ainda estou muito triste por
causa de Ruby. Sinto saudades dela, mas isso é normal. Ou é o que
repeti a mim mesma enquanto chorava a primeira semana toda, de
cara no travesseiro e me lamuriando sobre como nunca mais amaria
de novo.
Seria muito mais fácil fazer amigos se eu ficasse mais pelos
corredores, e às vezes passa pela minha cabeça que recusar a
minha vaga em Oxford foi um erro. Eu só precisava me expor mais e
conhecer gente nova. É claro, papai ficaria para sempre confuso
com o fato de eu ter recusado uma vaga na formidável Oxford para
permanecer na minha cidade, fazendo um curso para o qual só
havia me candidatado porque o professor de orientação vocacional
me encheu o saco para ter opções diversas. Mas quando recebi o e-
mail com as minhas possibilidades em faculdades irlandesas, essa
vaga se sobressaiu; simplesmente parecia a certa. Agora me
pergunto se uma parte do meu subconsciente já sabia de alguma
coisa. Sem contar que a University College Dublin fica a apenas
uma hora de casa. O mais importante de tudo é que eu consigo ver
mamãe todas as noites. É difícil porque ela nem sempre está bem,
mas gosto de saber que Hannah vai estar trabalhando lá ao longo
de seu ano sabático. Às vezes meu pai e eu vamos juntos.
Fico vagando pelas mesas, mas nada realmente salta aos meus
olhos. Sociedade vegana: foi mal, não consigo desistir de sorvete,
cresci na praia. Mas, assim, arrasem com suas dietas com base de
plantas! O Clube do Quadribol me faz me imaginar sendo derrubada
por um garoto entusiasmado demais que não consegue controlar a
própria vassoura. Ginástica de trampolim e corrida também estão
fora da jogada. Não me esqueci da última vez em que tentei correr
— saúde cardiovascular é superestimada. E é real mesmo que
origami pode ser uma atividade em grupo?
Meu telefone vibra e eu o pego, caminhando para um espaço
vazio longe da passagem das pessoas.
OLIVER QUINN: A INDOMÁVEL FERA DO DESEJO
Sei que não deveríamos nos misturar devido
ao seu status intelectual inferior, mas quer sair
pra beber essa noite depois da sua visita?
SAOIRSE
Todo mundo sabe que os alunos da Trinity são uns
panacas esnobes. Como se sente voltando pra nave-
mãe?
SAOIRSE
E topo sair pra beber. Posso perguntar pra Hannah se
quer se juntar a nós depois do trabalho?
OLIVER QUINN: A INDOMÁVEL FERA DO DESEJO
Claro. E será que tem como ela chamar aquela
amiga de novo? A bonitinha. Esqueci o nome.
SAOIRSE
Até parece que você não lembra o nome dela. Estava
ocupado demais se derretendo todo por ela pra ouvir?
OLIVER QUINN: A INDOMÁVEL FERA DO DESEJO
Tanto faz. Dá teu jeito, Clarke.
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Copyright © 2020 by Ciara Smyth
Copyright da tradução © 2023 by Editora Globo S.A.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou
reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia,
gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem a
expressa autorização da editora.
S649m
Smyth, Ciara
Memórias de um amor inesperado / Ciara Smyth ; tradução Vanessa Raposo. - 1.
ed. - Rio de Janeiro : Alt, 2023.
1ª edição, 2023
Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S.A.
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20.230-240 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
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