Enegrecendo Os Estudo
Enegrecendo Os Estudo
Enegrecendo Os Estudo
ABTRACT
In this article, I present some arguments about the relevance of Afroperspectivist epistemologies to theoretical and methodological
constructions in critical discourse studies, specifically to Critical Discourse Analysis (CDA), to studies that aim to understand
the relationship between discourse, race and other intersectionalities in our Brazilian context. When discussing racist practices
in contemporary discursive manifestations, it is important to consider epistemological perspectives that assimilate the multiple
forms of oppression which affect black people in our society – oppressions that are consequences of coloniality (NASCIMENTO,
2019; RESENDE, 2017, 2019; SANTOS, 2019). In addition, it is urgent to think about local creations of knowledge in order to
overcome the false ‘universalizing knowledge’ so consolidated in modern sciences (RESENDE, 2017, 2019; PARDO, 2011, 2019;
VIEIRA, 2019). Therefore, firstly, I present some concepts of CDA and the Latin-American decolonial perspectives of CDA
(CDA-LA). Then, I discuss the contributions of Afroperspectivist and decolonial epistemologies to CDA, considering notions
of discourse, the relations between language and racism, among other relevant elements (GONZALEZ, 1988; CARNEIRO,
2005, 2011; GOMES, 2005; RIBEIRO, 2017, 2019; ALMEIDA, 2019; NASCIMENTO, 2019; COLLINS, 2019; HOOKS, 2015
KILOMBA, 2019; FANON, 2008; BERNADINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL, 2018; MAKONI ET
AL, 2003). Finally, in the last section of this article, I present an investigation which describes recent pieces of research about
racism and the discourse from the perspective of the ACD conducted in Brazil, aiming to point out the paths taken in order to
contribute to an overview of local studies about this theme.
Keywords: critical discourse analysis; racism; afroperspectivist epistemologies.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A fala pode criar a paz, assim como pode destruí-la. É como o fogo. Uma única
palavra imprudente pode desencadear uma guerra, do mesmo modo que um graveto
em chamas pode provocar um grande incêndio. Diz o adágio malinês: “O que é que
coloca uma coisa nas devidas condições (ou seja, a arranja, a dispõe favoravelmente)?
A fala. O que é que estraga uma coisa? A fala. O que é que mantém uma coisa em seu
estado? A fala”.
(Amadou Hampaté Bâ)
http://dx.doi.org/10.1590/010318139561411520210310
Artigos Macedo
Em seu texto intitulado a tradição viva, Amadou Hampaté Bá discute sobre o papel fundamental da oralidade
na construção da história das culturas africanas, especificamente sobre as comunidades orais da savana ao sul do
Saara, desmistificando os conceitos sobre a escrita enquanto única fonte de ‘verdade histórica’, visão advinda das
sociedades europeias. O campo de saber da História, por muitos anos, foi formado por pensadores (enfatizando o
sufixo -es, sujeitos masculinos) que utilizavam apenas recursos escritos para descrever registros históricos como
confiáveis, fato que por consequência estereotiparam como ‘povos sem história’ aqueles cujas culturas passadas
tinham a oralidade como fonte de produção de conhecimento. Para esses povos, a fala é muito mais que um modo de
comunicação; a fala humana seria dotada de um poder de materialização de forças habitadas em cada ser; a fala gera
movimento e ação (LOPES; SIMAS, 2020). Por isso, na epigrafe desta seção, vemos descrita a sua potência criadora
e destruidora. A força da oralidade está, portanto, presente nas comunidades afrodiaspóricas1 como um legado que
nos possibilitam resistir (e reexistir) a tantos séculos de mazelas provocadas pelo sistema colonial, assim como manter
sabedorias e conhecimentos ancestrais.
Partindo dessa perspectiva inerente a algumas sociedades tradicionais africanas2 sobre a linguagem, podemos
observar a “complexidade, sofisticação e profundidade” dos pensamentos africanos (e afrodiaspóricos) que têm sido
refutados por uma lógica intelectual imperialista (LOPES; SIMAS, 2020, p. 16). Nesse sentido, parte do título deste
artigo, Enegrecendo os Estudos Críticos Discursivos, inspirado pelo texto da filósofa, escritora e ativista Sueli Carneiro, Enegrecer
o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero, expressa a crítica que busco trazer a
um universalismo hegemônico no campo do saber discursivo que acaba por anular a pluralidade do saber, tendo em
vista que a questão racial está intrínseca à configuração do que entendemos por sociedade. Enegrecer, ou seja, “torna-
se negro; tornar(-se) negro; anegralhar(-se), anegrar(-se), negrejar”3 toma uma proporção política de estabelecer,
para além de entendermos as práticas discursivas pelo viés da racialidade, uma proposta de decolonização do campo
do conhecimento. Ainda, enegrecer – termo atrelado a construção racial social negra – aqui é ressignificado e, desta
forma, extinguindo seu sentido negativo de “atingir a boa reputação (de alguém); lançar descrédito sobre; denegrir,
macular, ultrajar”4, para um significado de afirmação política e de diversidade.
Tendo em vista tais aspectos explanados, tenho como objetivo de apresentar algumas reflexões acerca das
epistemologias afroperspectivistas5 no que tange às possibilidades de construções teóricas e metodológicas nos
estudos críticos do discurso, especificamente no campo da Análise Crítica do Discurso (ACD) – arcabouço teórico
que faz parte de minha formação acadêmica. Enfatizo que a proposta aqui lançada não busca trazer respostas prontas
e verdades absolutas, mas sim procura trazer alguns questionamentos e outras possibilidades epistemológicas para
pesquisadoras/es que investigam as relações entre discurso, raça e suas interseccionalidades em nosso contexto
brasileiro (e afrodiaspórico) diante de perspectivas críticas de análises discursivas.
Diante dos objetivos estabelecidos acima, lanço as seguintes questões que proponho abordar ao longo das
discussões: qual a relevância das explanações de pensadoras/es negras/os que contribuiriam para fundamentar
questões sobre o discurso e a raça no Brasil? Por que e como buscar uma afroperspectiva para os estudos críticos
do discurso, sendo esses provindos de epistemologias do Norte Global? Para esses questionamentos, dentre outros,
atento para uma perspectiva afro e decolonial, pois entendo que tais perspectivas apontam caminhos para pensar sobre
o espelhamento das estruturas sociais nas práticas discursivas atreladas a experiências raciais, partindo do pressuposto
1. Entendo por afrodiáspora as comunidades as quais tiveram como processo sócio-histórico uma migração forçada e a violência da condição
humana, a ponto desses indivíduos reinventarem e redefinirem suas atribuições identitárias e, por meio de muita resistência, criaram novas
formas de viver nesses espaços. Na diáspora negra no Brasil, estes povos são provenientes de lugares que hoje fazem parte de Moçambique,
Angola, Senegal, Nigéria e Benin, predominantemente. Podemos notar demais comunidades afrodiaspóricas em países da América Latina e
Caribe, como Cuba, Colômbia, Equador, Jamaica, Haiti, Honduras, dentre outros. Para uma leitura mais aprofundada sobre afrodiáspora no
Brasil, recomendo a obra de Linda Heywood (2008), Diáspora Negra no Brasil.
2. É importante ressaltar que entender essa perspectiva se trata de uma comunidade específica que não pode ser generalizada, apesar de se
encontrar sociedades e comunidades com pensamentos afins dentro do próprio continente africano. Trazer a pluralidade ao mencionar
tais sociedades expressam que ocorrem algumas nuances de conceitos, modificações e diferenciações de acordo com as comunidades
tradicionais que, entre elas, também são plurais. Portanto, uma perspectiva sob o olhar plural da diversidade étnica dentro da própria África
enquanto continente nos auxilia a quebrar estereótipos que tendem a unificar as experiencias dos povos marginalizados.
3. Primeira definição da palavra enegrecer. Fonte: Dicionário Michaelis. link: http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=ene-
grecer Acessado em 1 de outubro de 2020.
4. Segunda definição da palavra enegrecer. Fonte: Dicionário Michaelis. link: http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=ene-
grecer Acessado em 1 de outubro de 2020.
5. Uso os termos “afroperspectiva”, “afroperspectivista” ou “afroperspectividade”, para denominar “uma linha ou abordagem filosófica
que reconhece a existência de várias perspectivas” a qual “sua base é demarcada por repertórios africanos, afrodiaspóricos, indígenas e
ameríndios”, conforme define Nogueira (2014, p. 45).
de que elementos contextuais que influenciam tais práticas são pautadas em lógicas da colonialidade/racismo. Além
disso, considerando que tenho como objetivo apontar contribuições a nível epistêmico, essas perspectivas permitem
debater sobre a colonização do âmbito do saber – tema valioso ao discutirmos sobre as epistemologias presentes e
que fomentam os estudos do discurso no Brasil.
Este artigo é fundamentado por três perspectivas, começando pela seção introdutória, onde apresento algumas
considerações quanto às premissas básicas sobre a Análise Crítica de Discurso (ACD) – ou como em muitos trabalhos
aqui no Brasil, chamada de Análise do Discurso Crítica (ADC) – bem como as perspectivas decoloniais latinas inseridas
neste campo (ACD-LA). Em seguida, discorro sobre as possíveis contribuições dos pensamentos afrodiaspóricos
para ACD, os quais se delongam desde reflexões conceituais sobre o discurso, as relações entre linguagem e racismo,
dentre outros elementos relevantes (GONZALEZ, 1988; CARNEIRO, 2005, 2011; GOMES, 2005; RIBEIRO, 2017,
2019; ALMEIDA, 2019; NASCIMENTO, 2019; COLLINS, 2019; HOOKS, 2015; KILOMBA, 2019; FANON,
2008; BERNADINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL, 2018; MAKONI et al, 2003). Como
parte final deste artigo e através de um levantamento de pesquisas que abordam racismo e discurso publicadas nos
últimos anos no Brasil sob a perspectiva da ACD, busco apontar os caminhos percorridos e as possibilidades de
estudos com o intuito de contribuir para uma visão geral dos estudos locais acerca dessa temática.
A manipulação da linguagem está relacionada com as relações de poder estabelecidas em nossa sociedade.
Com mecanismos implícitos (e muitas vezes explícitos), grupos dominantes transformam determinados discursos
e os fazem circular de uma forma naturalizada e universal, mantendo, desta forma, certas práticas discursivas
6. É importante aqui salientar a noção de texto em seu sentido mais amplo: os textos, então, são unidades da linguagem em uso contextualmente
situadas em uma dada cultura, podendo ser elas apresentadas em diversos modos semióticos (fala, escrita, imagens, etc.).
inquestionáveis. Essas práticas carregam ideologias que servem estrategicamente para manter a hegemonia social
desses grupos, mantendo-os no topo das relações de poder. Um dos fundamentos norteadores da ACD é possibilizar
um rompimento com as práticas abusivas de poder através de questionamentos sobre exclusões sociais e discriminação
resultantes de relações desiguais nas quais são propagadas pelo discurso. A ACD, portanto, tem uma posição política7
nestes processos.
Outra característica essencial da ACD é sua natureza transdisciplinar. A crítica social textualmente orientada
proposta por esse campo de estudos busca quebrar as limitações disciplinares, interagindo com outros saberes a fim de
explanar os fenômenos sociais em análise. Dentre as inúmeras possibilidades, cito a Ciências Sociais, Ciências Políticas,
História, como exemplos de disciplinas comumente visadas para o diálogo com a ACD. O caráter transdisciplinar,
dessa maneira, “advém de sua própria origem, de sua concepção de discurso, de seu caráter crítico, de sua visão
dialética, mas também de suas possibilidades metodológicas” (VIEIRA; MACEDO, 2018, p. 68). Tendo em vista
a transdisciplinaridade como fundamento teórico e metodológico, a ACD proporciona construir uma metodologia
que contemple as especificidades de fenômenos sociais e suas singularidades. Esse fato, portanto, pode justificar o
crescente número de estudos sob essa perspectiva na América Latina, incluindo o Brasil.
Em 1995, tivemos a criação da Associação Latino-americana de Estudos do Discurso, ocorrido em Caracas,
Venezuela, onde se reuniram diversas/os pesquisadoras/es do discurso que se debruçavam sobre a compreensão das
práticas discursivas em seus contextos8. Dentre essas/es estudiosas/os, muitos afirmam que, para além das discussões
acerca dos resultados de pesquisa – as evidências textuais tradicionalmente explicadas em diálogo com outras
disciplinas das ciências sociais e humanas, respaldadas na transdisciplinaridade da ACD a fim de explicar os fenômenos
sociais através da linguagem –, é urgente pensar em criações locais de teorias e metodologias a fim de superar o falso
‘conhecimento universalizante’ tão consolidado na ciência moderna (RESENDE, 2017, 2019; PARDO, 2011, 2019;
VIEIRA, 2019). A ACD sob uma perspectiva decolonial, nesse modo, tem sido desenvolvida nos últimos anos no
Brasil e demais países latino-americanos, destacando a relevância da linguagem na compreensão dos problemas sociais
contemporâneos/atuais, tendo em conta as consequências da colonização em nossos contextos, os quais não são
apenas no âmbito econômico, mas também em diversos outros setores como uma dominação simbólica. Logo, falo
aqui da colonialidade.
Quando direciono a minha fala para a dominação simbólica, é necessário falar sobre a ‘colonialidade de saberes’
nos estudos discursivos, tema amplamente pautado pela escola latino-americana da análise crítica do discurso (ACD-
LA). De acordo com Resende (2019), no Brasil, temos as disciplinas dos estudos discursivos solidificadas em diversos
espaços acadêmicos. Contudo, esses estudos “dividem-se basicamente em duas grandes linhas: a análise de discurso
francesa e analise de discurso inglesa. Só os nomes pelo quais conhecemos essas vertentes de estudos discursivos já
nos dizem da colonialidade do campo” (RESENDE, 2019, p. 19). Em seguida, a referida pesquisadora afirma que
essas vertentes revelam as formas tradicionais de aplicar teorias provindas do Norte Global e que se consolidam como
pensamentos teóricos universais, sem pouca modificação no contexto em que são aplicadas, assim como aponta o
nosso lugar subalterno de produção no campo acadêmico. A decolonialidade no campo discursivo deveria, portanto
dirigir-se a três caminhos convergentes: decolonizar o saber, no sentido de lograr criticar teorias e métodos, e compreender como
propões o giro decolonial que não há conhecimento universal [...] decolonizar o poder de ação criativa no esforço de superação desse
conhecimento universalizante, isto é, assumir a potência de criação teórica e metodologia local [...] e decolonizar o ser, fazendo uso
estratégico desse espaço paradoxal, o que carrega as potencialidades da comunhão dos saberes, incluindo também o conhecimento
comum [grifo meu]. (RESENDE, 2019, p. 20).
Para Santos (2019, p. 122), pertencer a ACD-LA é “consolidar um posicionamento”, pois diante das elites
latino-americanas as quais produziram mecanismos culturais e epistêmicos para legitimar por um viés científico a
hegemonia ocidental e a supremacia da branquitude, o projeto político-acadêmico “pode mostrar-se como uma das
possibilidades de restituição histórica mais palpáveis” (SANTOS, 2019, p. 128).
7. Aqui, a questão da posição política vai diretamente ao encontro do sentido da palavra ‘crítico’ que a ACD carrega em seu nome. Conforme
mencionado por Van Dijk (1986), os estudos críticos da discussão não fazem apenas descrições linguísticas sobre determinado texto em
análise; o que fazer com os resultados dessa análise é tão relevante quanto a discussão que determinada pesquisa busca atender. Nesse
sentido, “ao invés de focalizar problemas puramente acadêmicos ou teóricos, a ciência crítica toma como ponto de partida problemas sociais
vigentes, e assim adota o ponto de vista dos que sofrem mais, e analisa de forma crítica os que estão no poder, os que são responsáveis, e os
que dispõem de meios e oportunidades para resolver tais problemas.” (VAN DIJK, 1986, p.4).
8. Para mais informações da associação, veja o site: http://aledportal.com/
Tendo em mente o entendimento desses princípios da ACD e da ACD-LA, os quais foram brevemente
apresentados, as contribuições de pensamentos afroperspectivistas e decoloniais serão apontadas a seguir.
Nesta seção, discorro sobre as contribuições dos pensamentos afroperspectivistas para ACD, os quais
se configuram a partir de reflexões conceituais que façam refletir sobre o discurso, as relações entre linguagem
e racismo, dentre outros elementos relevantes (GONZALEZ, 1988; CARNEIRO, 2005, 2011; GOMES, 2005;
RIBEIRO, 2017, 2019; ALMEIDA, 2019; NASCIMENTO, 2019; COLLINS, 2019; HOOKS, 2015; KILOMBA,
2019; FANON, 2008; BERNADINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL, 2018; MAKONI et
al, 2003).
Um dos aspectos de suma importância pautado no pensamento na luta dos povos afrodiaspóricos é a centralização
da ‘raça’ como componente estruturante nas sociedades do ‘sistema mundo moderno/colonial’ (BERNADINO-
COSTA; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL, 2018, p.11). De acordo com Grosfoguel (2018, p.11), o
racismo é, portanto, um “princípio constitutivo que organiza, a partir de dentro, todas as relações de dominação da
modernidade, desde a divisão internacional do trabalho até as hierarquias epistêmicas, sexuais, de gênero, religiosas”.
Desse modo, para entendermos as dinâmicas sociais presentes em nossas sociedades, é impossível deixar de lado
a ‘raça’ como um marcador social. Para discutimos sobre ‘raça’ e ‘racismo’, primeiramente, é importante apontar
seus conceitos dentro da afroperspectiva a fim de um melhor entendimento; contudo, aponto que esses termos têm
sido intensamente discutidos pelos coletivos e movimentos negros, assim como nos campos das ciências sociais.
Devido a diversas correntes de pensamento, não há um consenso único sobre a definição desses termos. No entanto,
busco trazer as perspectivas de autoras/es negras/os que não estão apenas em instituições acadêmicas, mas que estão
politicamente engajadas/os com as questões raciais em nosso contexto brasileiro.
A categoria social ‘raça’ é um conceito histórico, socialmente situado, não fixo, conforme estabelecido
por Almeida (2019). Além disso, ‘raça’ é um conceito relacional, pois ele é construído a partir do olhar do outro.
Nascimento (2019, p.11) ressalta que
É preciso entender, portanto, o signo “negro” como um conceito novo criado pela branquitude e não como um conceito natural. Ou
seja, os negros africanos, antes de serem colonizados e sequestrados, não se chamavam como “negros” ou reivindicavam para si a
identidade “negra” como “naturalmente” deles.
Ademais, Almeida (2019, p. 21) argumenta que, historicamente, a raça se conceitua a partir de dois pontos
norteadores, que, segundo esse pensador, “se entrecruzam e se complementam”, sendo eles
1. como característica biológica, em que a identidade racial será atribuída por algum traço físico, como a cor da pele, por exemplo; 2.
como característica étnico-cultural, em que a identidade será associada à origem geográfica, à religião, à língua ou outros costumes, “a
uma certa forma de existir”.
A raça, nesse modo, está intrínseca nas ideologias coloniais (a partir do século XVI) e neocoloniais (Conferência
de Berlim em 1884), ao discurso de inferioridade racial de povos pertencentes aos países colonizados, onde, em
um primeiro momento, os colonizadores teriam como justificativa do processo colonizatório a missão civilizatória
e de salvação destas ‘criaturas selvagens’ (igreja católica como instituição ideológica central) e, posteriormente, a
justificativa da desorganização político-econômica desses países e assim, consequentemente, dividir politicamente
continente africano para exploração resultante da primeira amostra do capitalismo como um sistema falho.
Em seguida, o que vemos é um movimento sistemático da propagação conceitual da raça vinculada a uma
inferioridade naturalizada, fortificada por teorias ‘pseudocientíficas’ sobre raça e biologia no século XIX (ALMEIDA,
2019). Teorias estas que, mesmo sendo refutadas, pois não há evidências biológicas que classifiquem os seres
humanos em categorias raciais, (ainda) servem como um fio condutor das práticas da colonialidade. Por isso, partindo
do entendimento que essa é uma categoria social, pensadoras/es afrodiaspóricas/os se apropriam desse termo para
explanar as estruturas sociais que são racistas, pois “em face da resistência dos colonizados, a violência assumirá
novos contornos, mais sofisticados; chegando, às vezes, a não parecer violência mas “verdadeira superioridade””
(GONZALEZ, 1988, p. 71). Ainda, segundo Gomes (2005, p. 45),
O Movimento Negro e alguns sociólogos, quando usam o termo raça, não o fazem alicerçados na ideia de raças superiores e inferiores,
como originalmente era usada no século XIX. Pelo contrário, usam-no com uma nova interpretação, que se baseia na dimensão social
e política do referido termo. E, ainda, usam-no porque a discriminação racial e o racismo existentes na sociedade brasileira se dão não
apenas devido aos aspectos culturais dos representantes de diversos grupos étnico-raciais, mas também devido à relação que se faz na
nossa sociedade entre esses e os aspectos físicos observáveis na estética corporal dos pertencentes às mesmas.
São desvantagens oriundas da desumanização das populações afrodiaspóricas ao longo da nossa história, a
ponto do racismo, na forma de um princípio constitutivo, se estabelecer como “uma linha divisória entre aqueles que
têm o direito de viver e os que não tem” (BERNADINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL,
2018, p.11) – conforme podemos ver, em nossa sociedade contemporânea, o genocídio da juventude negra.
Mesmo havendo tentativas seculares por parte dos colonizadores de extermínio das/os negras/os em condições
escravizadas e posteriormente de suas/seus descendentes, através da dizimação de seus corpos, dos projetos de
branqueamento da população, do linguicídio9, dentre outras formas extremamente violentas (violências físicas e
simbólicas), as populações negras contribuíram substantivamente para o que entendemos hoje como cultura brasileira.
Pois elas criaram “novas formas de espiritualidade, conhecimento, subjetividade, sociabilidade”, conforme apontam
Bernadino-Costa, Maldonado-Torres e Grosfoguel (2018, p.17), o que são de fato “ projetos políticos, que trazem em
seu bojo não somente a dimensão da resistência, mas também a dimensão da esperança”. Com relação à linguagem,
podemos observar diversos legados e línguas africanas expressivos na língua portuguesa brasileira; contudo, de
acordo com Gonzalez (1988, p.70), “tudo isso é encoberto pelo véu ideológico do branqueamento, é recalcado
por classificações eurocêntricas do tipo “cultura popular”, “folclore nacional”, etc., que minimizam a importância da
contribuição negra”.
Sendo uma das importantes intelectuais do pensamento afrodiaspórico no Brasil, Lélia Gonzalez – antropóloga,
professora e ativista – denunciou em seus diversos trabalhos o “racismo à brasileira”, a falsa “democracia racial
brasileira” e o pensamento supremacista branco predominantes em nossas formações do saber, dentre outros aspectos
fundamentais para entender a construção da nossa sociedade racista como resultado do colonialismo e imperialismo.
Em um de seus trabalhos, ela destaca a marca de africanidades na fabricação histórica do português falado no Brasil –
o que ela chama de pretoguês. Para Gonzalez (1988, p. 70),
É certo que a presença negra na região caribenha (aqui entendida não só como a América Insular, mas incluindo a costa atlântica da
América Central e o norte da América do Sul) modificou o espanhol, o inglês e o francês falados na região [...] O caráter tonal e
rítmico das línguas africanas trazidas para o Novo Mundo, além da ausência de certas consoantes (l ou r, por exemplo), apontam para
um aspecto pouco explorado da influência negra na formação histórico cultural do continente como um todo. [...] Similaridades ainda
mais evidentes são constatáveis, se o nosso olhar se volta para as músicas, as danças, os sistemas de crenças, etc.
9. Linguicídio, segundo Nascimento (2019), é “um epistemicídio que se dá por meio da linguagem (seja pela conceituação, pela nomeação
ou pela discriminação direta) ou das políticas linguísticas” (p.13). Nascimento (2019) aponta ainda que o termo tem sido utilizado em
pesquisas críticas sobre o estudo da linguagem, como nos estudos do linguista indiano Kanavillil Rajagopalan. O linguicídio está atrelado à
definição de epistemicídio, no sentido do extermino do conhecimento dos povos colonizados perante o mundo, assim como a legitimação
do que é considerado conhecimento ou não. A dizimação das línguas faladas por africanos e pelos povos originários e a imposição das
línguas dos colonizadores (português, espanhol, francês, etc.) são ilustrações substanciais das experiências afrodiaspóricas de linguicídio e
epistemicídio.
Afirmo que o pretoguês, ao longo de seu processo sócio-histórico e em tempos atuais, sofre com a hierarquização
das línguas, causando a exclusão dos indivíduos que o falam. A hierarquização se dá pelo conceito de língua padrão
e pela forma ‘correta’ (português), muitas vezes chamada de norma culta, em relação à língua ‘falada’, aquela que
é considerada sem algum tipo de refinamento. Podemos chamar essa divisão/hierarquia de preconceito linguístico,
barrando o acesso de muitos grupos a determinados espaços por ‘falta’ de conhecimento linguístico. Esses grupos
também são alvos de diversas formas de inferiorização, desde chacotas até a criação de estereótipos.
Podemos notar que estudiosas/os negras/os provenientes de territórios afrodiaspóricos já teorizavam
sobre a relação entre a linguagem e o racismo. Franz Fanon, intelectual negro provindo da Martinica, é um nome
importante para entendermos não só esses aspectos linguísticos, mas também as demais questões raciais perpassadas
pela colonialidade. Em seu livro, Pele negra, mascaras brancas, Fanon (2008, p. 34) desenvolve argumentos, através
da psicanálise, sobre a importância da linguagem nas práticas racistas, onde a língua então se torna um espaço da
colonialidade e de hierarquização, conforme vemos na passagem abaixo:
Todo povo colonizado — isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua
originalidade cultural — toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. Quanto mais
assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato,
mais branco será.
Portanto, a linguagem, na colonialidade, é um instrumento de poder. Uma vez que o sujeito colonizado passa
a usar a língua do colonizador, é possível a mobilidade social e o afastamento de sua inferioridade. Além disso, em
seu texto, Fanon (2008) aponta diversos pontos que perpassam pela linguagem a fim de compreender a racialidade,
partindo da relação entre os negros martinicanos e sua relação com a língua colonizadora.
Pra Nascimento (2019), o preconceito racial é “entrelaçado com o social e o linguístico”. Nesse sentido,
ele chama essa relação de racismo linguístico. Para ele, o racismo linguístico está diretamente subordinado, diante
de inúmeras formas de opressão, às políticas linguísticas mandatórias aos povos originários e afrodiaspóricos. Tais
políticas, segundo o autor, não são neutras; elas vão desde o próprio linguicídio desses povos, até a precarização do
acesso à educação desses indivíduos. Nascimento (2019, p.15) oferece o seguinte exemplo:
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Educação (2017) mostrou que o analfabetismo entre os negros é duas vezes
maior do que entre brancos. Quando analisamos os dados de escolarização básica, os números parecem reforçar nossa preocupação.
Entre as pessoas brancas, por exemplo, 70% dos jovens a partir dos 15 anos estão no ensino médio, contra apenas aproximadamente
55% entre os negros. Como podemos ver, a evasão escolar (produzida pela figura da precarização e abandono dos negros) anda de
braços dados com o genocídio do povo negro (o que, as últimas pesquisas, só tem se aprofundado). Os dados do Atlas da Violência
(2018) mostram que outro extremo desse continuum do horror ao apontar que, em dez anos, (de 2006 a 2016) a taxa de homicídios de
indivíduos não negros caiu 6,8% enquanto a de negros subiu 23,1%.
Com esta argumentação, Nascimento (2019) conclui que não existem politicas linguísticas promovidas pelo
estado brasileiro – a inexistente apresentação de políticas inclusivas já é um indício de parcialidade o qual promove
exclusão aos ‘não brancos’ em nosso país.
Uma vez entendendo a conexão do linguicídio com epistemicídio, cito outro ponto para reflexão: a colonização
do saber – processo sócio-histórico que afeta profundamente as práticas sociais. Ao debater sobre a colonização do
saber, retomo a fala de pensadores de uma perspectiva decolonial, como Bernadino-Costa, Maldonado-Torres e
Grosfoguel (2018). Segundo esses autores, o questionamento perante ao que hoje entendemos por conhecimento é um
dos temas centrais na perspectiva da decolonialidade. Nesse sentido, o projeto decolonial parte de uma condição
político-acadêmica com pressuposto de trazer à tona os processos de colonização no âmbito do saber, os quais
foram (e são) processos reprodutores de lógicas não só econômicas, mas de todos os âmbitos, como a política,
cognitiva e de existência. Um exemplo seria o que Gonzalez (1988, p.73) afirma sobre as meticulosas estratégias de
inferiorização de negras/os, como o “estilhaçamento, de fragmentação da identidade racial, culminando no ‘desejo de
embranquecer’ o qual é internalizado, com a simultânea negação da própria raça, da própria cultura.
Se pensamos no racismo como componente estruturante dos fenômenos sociais, logo as práticas de produção
do conhecimento também são organizadas por essa base ideológica. Nesse sentido, o conhecimento produzido
em espaços educacionais parte de um modelo positivista eurocentrado do fazer científico, onde, em seu processo
construtivo, criou-se uma ideia de universalismo abstrato, enquanto as demais formas de organização são consideradas
“pré-modernas, atrasadas e equivocadas” (BERNADINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL,
2018, p.11). Acrescento, seguindo Nogueira (2019. p. 23), que temos um conhecimento considerado “universal
porque trata do Homem”, sendo esse homem “ocidental, branco, civilizado, adulto, heterossexual, culturalmente
cristão”. Portanto, o racismo aqui é estruturante no sentido de denominar o que é um conhecimento válido e o que
não é. Além do entendimento sobre o processo de extermínio de saberes não eurocentrados e a ‘hierarquização do
saber’, Carneiro (2005, p. 96) constata as diversas consequências do epistemicídio, conforme apontadas no trecho
a seguir:
[...] o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente
de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização
intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento
da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes
no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-
los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o
conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a
capacidade de aprender etc.
Esse é um dos aspectos que o projeto político-acadêmico decolonial e afroperspectivista busca transgredir.
Contudo, quanto ao projeto decolonial, Bernadino-Costa, Maldonado-Torres e Grosfoguel (2018, p. 10) apontam
para o possível risco desse projeto em continuar com seu ponto norteador (locus de enunciação negro), uma vez que
projetos com esse cunho político tradicionalmente malogram na academia brasileira (e racista). Esses estudiosos
observam que
esse é um risco que visualizamos quando diversos acadêmicos brasileiros começam a utilizar o título decolonialidade nos seus trabalhos
acadêmicos e, no entanto, não citam qualquer autor negro ou indígena, ou sequer têm relação com movimentos sociais, limitando-se a
dialogar com membros da rede de investigação modernidade/colonialidade e com outros teóricos latino-americanos que falam a partir
de uma perspectiva da população branca.
Dentro dos estudos linguísticos, cito como exemplo de noção de geopolítica e corpo-política do conhecimento,
um grupo de estudiosas/os negras/os que afiliou seus estudos ao que chamam de ‘linguística negra’ (tradução livre
de Black Linguistics), o qual acata estudos conduzidos por negras/os afrodiaspóricas/os e africanas/os que buscam
estudar fenômenos linguísticos de suas comunidades, tendo os seguintes princípios: 1) essas/es pesquisadoras/es
são pertencentes às comunidades nas quais suas pesquisas são conduzidas; 2) essas/es estudiosas/os enfatizam o
cunho ideológico de suas pesquisas, no sentido de haver um engajamento sócio-político, pois é entendido que a
colonialidade continua a oprimir a vida de pessoas negras de diversas formas; 3) a raça é um componente estruturador
das referências linguísticas, que centraliza os estudos de estudiosas/os negras/os; 4) a linguagem aqui é vista como
uma prática social; esses estudos, portanto, frisam os aspectos sócio-históricos da linguagem, assim como as mudanças
na ‘categoria do pensamento’ e a historiografia de análises linguísticas das línguas negras em diferentes períodos do
tempo (Makoni et al. 2003).
Nesse sentido, as colaborações dessa corrente de pensamento com os estudos críticos do discurso, para
além da reflexão perante os princípios previamente citados, podem estar no entendimento do que são a linguagem,
a responsabilidade social das investigações e também a busca de perspectivas teóricas e de metodologias que
correspondam com essa visão de pesquisa. No que tange a responsabilidade social da pesquisa, Makoni et al (2003)
afirmam que ser responsável significa produzir uma pesquisa que tenha relevância social para a comunidade, assim
como buscar não propagar estereótipos negativos das/os participantes. Quanto à linguagem, como foi previamente
mencionado, nestes estudos se caracteriza como uma prática social e comunicativa. Ou seja, é perceptível que
os padrões gramaticais devem ser desconstruídos e entendidos dentro dos contextos sociais e políticos em que são usados. Do ponto de
vista da língua negra como prática social, nossas análises da língua e das variedades linguísticas tornam-se inseparáveis das comunidades
e das sociohistórias que criaram essas línguas e variedades. (MAKONI et al., p. 11, tradução minha).
Deste modo, Makoni et al. (2003) argumentam que as abordagens analíticas devem ir além de metodologias
hegemônicas encontradas em estudos tradicionais da linguística; estudiosas/os da linguística negra estão atentas/
os em produzir conhecimento tanto da língua per se quanto dos sujeitos que a criam e, portanto, é relevante que
seus estudos destaquem aspectos sócio-históricos, econômicos e políticos, assim como as vozes desses indivíduos.
Portanto, a linguística negra está preocupada com “o impacto da divulgação dos resultados junto do público dentro
e fora da Academia” (MAKONI et al., 2003, p. 11).
Aqui, volto à seguinte pergunta proposta na seção introdutória deste artigo: “Por que e como buscar uma
afroperspectiva para os estudos críticos do discurso, sendo esses provindos de epistemologias do Norte Global?”.
Acredito que, neste ponto da discussão, posso afirmar que essa busca de uma afroperspectiva possibilita uma quebra
de paradigma da colonialidade, sendo um caminho de produção acadêmica que tenha relevância social para sua
localidade e, assim, permitindo um diálogo horizontal e diversificado. De acordo com Santos (2019, p. 128),
sua configuração atual [dos estudos acadêmicos] não a livra do ‘empoderamento de minorias’ acadêmico, pressupondo a supremacia
dos/as profissionais universitários em detrimento das pessoas que colaboram com a pesquisa. A ACD-LA segue um percurso parecido
ao desenvolver e ter excelência teórica, mas observo, engatinha na prática articulada com a sociedade fora da academia – muitas vezes,
colaboradora fundamental das pesquisas nas quais a abordagem é aplicada”.
Ademais, Gomes (2005, p. 39) defende o diálogo entre a academia e os movimentos sociais, ponto que, diante
de um projeto de decolonização acadêmico, se torna primordial. A educadora argumenta que
é importante destacar o papel dos movimentos sociais, em particular, do Movimento Negro, os quais redefinem e redimensionam
a questão social e racial na sociedade brasileira, dando-lhe uma dimensão e interpretação políticas. Nesse processo, os movimentos
sociais cumprem uma importante tarefa não só de denúncia e reinterpretação da realidade social e racial brasileira como, também, de
reeducação da população, dos meios políticos e acadêmicos.
Entendo que, para transcender a imposição eurocentrada, a construção do saber deve interseccionar diversos
modos de pensar que possam coexistir, ao invés de sobrepor outro modelo único de conhecimento, conforme
apontado por diversas intelectuais negras relevantes para o pensamento afroperspectivista (GONZALES, 1998;
CARNEIRO, 2003; RIBEIRO, 2017,2019; COLLINS, 2019; HOOKS, 2015; KILOMBA, 2019).
Neste ponto de nossa discussão, você leitora/leitor pode estar pensando: qual o lugar das/dos brancas/os na
produção de um conhecimento antirracista? Busco na noção de ‘lugar de fala’ – termo conceituado pelas feministas
negras e apropriadamente discutido pela filósofa Djamila Ribeiro no Brasil – para apontar uma resposta para essa
pergunta. O conceito lugar de fala tem sido abundantemente utilizado em discussões recentes sobre a questão racial,
sendo algumas vezes utilizado de forma errônea, como já apontada pela própria filósofa, posteriormente à publicação
de seu livro O que é lugar de fala?, em 2017.
A noção de “lugar de fala” busca entender que todas/os partimos de um local sócio-histórico ao discutirmos
sobre qualquer aspecto do mundo. Isso refuta, então, a ideia de neutralidade do pensamento eurocentrado e busca
romper com uma voz única de explicação da humanidade, dando a vez para a fala de múltiplas vozes que foram
historicamente silenciadas. Neste sentido, se há um lugar de fala, é importante que haja a conscientização dele:
pessoas brancas falam de um lugar social também, trazendo consigo todas as construções identitárias do seu lugar
que, historicamente, foram pautadas em privilégios. Ribeiro (2019, p. 33) argumenta que
trata-se de refutar a ideia de um sujeito universal – a branquitude também é um traço identitário, porém marcado por privilégios
construídos a partir da opressão de outros grupos. Devemos lembrar que este não é um debate individual, mas estrutural: a posição de
privilégio vem marcada pela violência, mesmo que determinado sujeito não seja violento.
Logo, entender que a condição dos brancos como um grupo racializado, releva a importância de discutir
a branquitude e seu impacto na sociedade, pois as “pessoas brancas não costumam pensar sobre o que significa
pertencer a esse grupo, pois o debate racial é sempre focado na negritude” (RIBEIRO, 2019, p. 31). Para notar isso,
basta fazer uma pesquisa rápida em revistas científicas sobre estudos do discurso, raça e branquitude; perceberemos
o quanto é incipiente esse tema nos estudos discursivos. Por outro lado, temos diversos estudos discursivos sobre a
negritude, majoritariamente produzidos por pesquisadores brancos (enfatizo aqui o gênero masculino).
Em seu livro, Pequeno Manual Antirracista, Ribeiro (2019) aponta caminhos para o engajamento dos brancos na
luta contra as desigualdades raciais e, dentre várias sugestões, estão breves experimentos empíricos de marcas dessas
desigualdades, como, por exemplo, questionar a ausência de pessoas negras em espaços de liderança, na universidade,
em dramaturgias, etc. Posteriormente, a autora enfatiza a importância de, para além de problematização, propor ações
para uma mudança social. Assim sendo, estendo a proposta de Ribeiro (2019) no que tange nossa área de estudos,
propondo a seguinte questão para reflexão: quantas/os intelectuais negras/os você, leitora/leitor, conhece e cita em
suas pesquisas?
Nesta seção, apresento um levantamento de pesquisas publicadas nos últimos anos em revistas das comunidades
científicas brasileiras de Qualis/CAPES A1, A2 e B1 que abordassem questões raciais sob o viés da ACD, a fim de
apontar para uma visão geral dos estudos locais acerca dessa temática. Qualis/CAPES é um sistema de avaliação
de periódicos brasileiro que classifica tais periódicos quanto a sua qualidade (A, B ou C). Esse sistema faz parte da
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior.
Primeiramente, como procedimento de coleta da informação, busquei todas as revistas científicas brasileiras
que têm as qualificações indexadas na plataforma virtual da Qualis/CAPES através do mecanismo de busca da
plataforma Sucupira10. Posteriormente, verifiquei nos sítios de cada periódico, também através de seus mecanismos
de busca, artigos contendo os termos relacionados a ACD, raça e racismo: foram encontradas ao todo 25 publicações.
O gráfico a seguir aponta o número de publicações encontradas e seus respectivos anos.
Quanto à questão dos números totais dos artigos, é importante ressaltar que devido a um dos filtros de
escolhas do artigo ser pesquisas que abordem teoricamente e metodologicamente a ACD, o número de artigos
sobre questões raciais caiu drasticamente. Isso quer dizer que existe uma quantidade significativa de artigos que
tratam questões raciais; porém, a maioria dessas pesquisas tem como arcabouço teórico os estudos discursivos que
são considerados pertencentes à vertente francesa (autores como Pêcheux, Charaudeau, Maingueneau e Foucault)
ou são estudos culturais e literários. Com relação ao gráfico acima, podemos observar que, com exceção do artigo
publicado em 1992 (artigo este escrito pelo teórico Theo Van Dijk), temos publicações nas últimas duas décadas.
Outro aspecto relevante aponta que os estudos sob perspectiva da ACD sobre práticas raciais discursivas tiveram seu
devido crescimento e enfoque nos últimos anos, a partir de 2016. Com relação aos assuntos e contextos abordados,
o segundo gráfico abaixo oferece um panorama dos assuntos abordados:
De acordo com os estudos publicados, a mídia, como jornais e revistas, engloba 54% dos artigos selecionados,
enquanto contextos educacionais englobam outros 30%. Nesse sentido, pude observar que esses estudos discutem a
representação de negras/os em vários veículos de comunicação, assim como as representações discursivas de negras/
os e também de indígenas na sala de aula do ensino básico. Podemos notar, portanto, a contribuição dessas pesquisas
para o entendimento de como os discursos são produzidos e reproduzidos nas mídias, os quais, através do processo
de recontextualização discursiva e, tendo em vista a serventia dos grandes veículos de comunicação para os grupos
no poder, observamos os estereótipos negativos de indivíduos racializados e, consequentemente, nutrindo demais
práticas racistas. Outra questão levantada por esses estudos está relacionada aos mecanismos discursivos que refletem
o que chamamos da “negação do racismo” no Brasil. Guillem (2018) chama este momento de “pós-racial”, onde as
práticas racistas são individualizadas, sendo elas acusadas de ignorância ou de meras opiniões, mostrando assim as
formas sutis de reprodução de um racismo estruturado – o qual é um problema coletivo e não individual.
Com relação ao arcabouço teórico, notei que esses estudos se baseiam predominantemente na abordagem
sociocognitiva de Theo Van Dijk. Esse teórico é conhecido por desenvolver trabalhos no campo da ACD relacionados
a discurso e racismo. Em seguida, há inúmeras citações teóricas e categorias de análises de Norman Fairclough que,
assim como Van Dijk, é um teórico considerado de grande relevância na construção da epistemologia dos estudos
críticos discursivos. Dentre demais abordagens metodológicas inclusas nesses trabalhos, cito a gramática sistêmica
funcional, de Michael Halliday, o sistema de avaliatividade, de James Robert Martin e Peter White, e as abordagens
da multimodalidade, de Theo Van Leeuwen e Guthen Kress. Notei, contudo, pouco diálogo com teóricas/os da ACD
da América Latina. Além disso, pouquíssimos estudos apontaram uma abordagem decolonial. Apenas três trabalhos
trouxeram uma perspectiva interseccional, mencionando autoras negras como Kimberlé Crenshaw (intelectual que
cunhou esse termo), bell hooks e Patricia Hill Collins.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Numa sociedade racista, não basta não ser racista;
é preciso ser antirracista.
(Angela Davis)
Diante dos diversos apontamentos que trouxe neste artigo e levando em consideração um dos princípios da
ACD de “promover justiça social”, afirmo que temos algumas pistas de quais caminhos devemos percorrer; porém,
ainda temos muita caminhada à frente para promover reparação histórica aos povos afrodiaspóricos. Entender que o
racismo é estrutural e que, para desconstruí-lo, é necessário termos uma postura antirracista, conforme nos afirma a
filósofa e militante Angela Davis, pode se tornar o início dessa caminhada em busca da pluralidade de perspectivas
epistemológicas no campo da Análise Crítica de Discurso.
Propus reflexões que contribuíssem para a construção de pesquisas que busquem falar sobre racismo e discurso
sob a perspectiva da ACD no âmbito teórico. Contudo, me restringi à discussão no campo do conhecimento, sem
trazer explicitamente formulações metodológicas prontas, pois, apesar de entender a sua importância e propor para
nossos próximos diálogos uma discussão com o campo das ferramentas metodológicas, devemos primeiramente
partir do aprofundamento dos conceitos que envolvem a afroperspectividade no campo da ACD, para que, a partir
dela, se desenvolvam bases epistemológicas que delineiam as metodologias que, por sua vez, efetivem de modo
prático suas propostas. Ademais, sugiro uma reflexão partindo das questões levantadas por Santos (2019) perante ao
processo de produção acadêmica aqui colocadas em modo de tabela:
• A mudança social está acontecendo com o envolvimento ativo dessas áreas do conhecimento?
• Pesquisadoras/res negras/nos estão entendendo-se mesmo como povo negro, suscetível a todas as implicações que
ser negro na América Latina acarreta?
• Como a academia poderia efetivamente reconhecer o lugar de privilégios que segue mantendo, e verdadeiramente
fazer parte do seio social, avançando no discurso da extensão, rumo à luta dos povos submetidos à colonização de
seus corpos e mentes?
• Lograria constituir-se como parceira da resistência do povo negro (em sua heterogeneidade)?
Fonte: (SANTOS, 2019, p.128).
Quanto ao levantamento de estudos sobre ACD e às questões raciais aqui propostas, aponto suas limitações e
sugestões para outras pesquisas: devido ao grande número de revistas interdisciplinares, selecionei apenas os artigos
de revistas com qualis classificadas de A1 a B1; contudo, seria de suma relevância fazer um mapeamento de teses e
dissertações de nossas pós-graduações de strictu senso, assim como demais periódicos com outras qualificações (B2, C,
etc.) para termos uma visão mais ampla da produção acadêmica sobre o tema em questão. Adicionalmente, enfatizo
que essas observações não buscam de forma alguma desqualificar esses estudos, e sim analisar como estão sendo
feitos. Da mesma maneira, também não tenho interesse em apontar que há apenas uma perspectiva correta de análise
discursiva; conforme apontado por Resende (2019), não se trata em refutar as teorias e as metodologias provinda do
Norte Global, mas de entender que não há conhecimento “universalmente válido”; ou seja, “não é criar um ponto
zero, mas reconhecer que o ponto zero nunca existe” (p. 29).
Para finalizar de uma forma não usual, compartilho aqui um argumento de Nascimento (2019, p. 19) que
acredito ser muito relevante para entendermos a relação entre linguagem e racismo.
uma vez que admitimos que o racismo está na estrutura das coisas, precisamos admitir que a língua é uma posição nessa estrutura. Em
minha hipótese principal aqui, entendo que o racismo é produzido nas condições históricas, econômicas, culturais de políticas, e nelas
se firma, mas é a partir da língua que ele materializa suas formas de dominação.
Enquanto linguistas sociais, é relevante repensar e até mesmo desconstruir nossas perspectivas, entendendo que
o racismo está estruturado também em nossas produções de conhecimento. Assim, a pluralização das possibilidades de
pensar ACD a partir de conceitos e epistemologias diferentes daqueles nas quais foram configurados, principalmente
no âmbito do pensamento hegemônico ocidental, amplia as formas de produção de conhecimento no campo
discursivo. Trata-se de um movimento de desconstrução que vai além dos processos que definem as relações de saber,
mas que também repensam e ressignificam as estruturas de poder que reduzem, marginalizam e invisibilizam outras
práticas e formas de sentir, ver e interpretar o mundo.
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Recebido: 17/2/2021
Aceito: 5/3/2021
Publicado: 13/8/2021