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O Que Lemos

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O QUE LEMOS, QUANDO LEMOS ou os direitos imprescindíveis do leitor

DANIEL PENNAC

1. O direito de não ler

Como toda enumeração de “direitos” que se preze, esta dos direitos à leitura deveria
começar pelo direito de não ser usado – no caso, o direito de não ler – sem o que não se
trataria de uma lista de direitos, mas de uma viciosa armadilha.

A maior parte dos leitores se concede cotidianamente o direito de não ler. Sem macular
nossa reputação, entre um bom livro e um telefilme ruim, o segundo muitas vezes ganha,
mesmo que preferíssemos confessar ser o primeiro. Além disso, não lemos continuamente.
Nossos períodos de leitura se alternam muitas vezes com longas dietas, onde até a visão de
um livro desperta os miasmas da indigestão.

Mas o mais importante vem agora.

Estamos cercados de uma quantidade de pessoas respeitáveis, às vezes diplomadas, às


vezes “eminentes” – entre os quais alguns possuem mesmo belas bibliotecas – mas que não
lêem, ou lêem tão pouco que não nos viria jamais a idéia de lhes oferecer um livro. Eles não
lêem. Seja porque não sintam necessidade, seja porque tenham coisas demais pra fazer (o
que dá no mesmo, é que essas outras coisas os obturam ou os obnubilam), seja porque
alimentem um outro amor e o vivenciem de maneira absolutamente exclusiva. Enfim, essa
gente não gosta de ler. Nem por isso eles são menos freqüentáveis, são mesmo muito
agradáveis de se freqüentar. (Pelo menos não perguntam à queima-roupa nossa opinião
sobre o último livro que lemos, nos livram de suas reservas irônicas sobre nosso
romancistas preferido e não nos consideram como alienados por não nos termos precipitado
sobre o último Tal, que acaba de sair pela Editora Coisa e ao qual o crítico Duchmole fez os
maiores elogios.) Eles são tão “humanos” quanto nós, perfeitamente sensíveis às desgraças
do mundo, atentos aos “direitos humanos” e preocupados em respeitá-los dentro da sua
esfera de influência pessoal, o que já é muito. Mas eles não lêem. Direito deles.

A idéia de que a leitura “humaniza o homem” é justa no seu todo, mesmo se ela padece de
algumas deprimentes exceções. Tornamo-nos um pouco mais “humanos”, entenda-se aí por
um pouco mais solidários com a espécie (um pouco menos “animais”), depois de termos
lido Tchekhov.

Mas evitamos vincular a esse teorema o corolário segundo o qual todo indivíduo que não lê
poderia ser considerado, em princípio, como um bruto potencial ou um absoluto cretino.
Nesse caso, faremos a leitura passar por obrigação moral, o que é o começo de uma
escalada que nos levará em seguida à “moralidade” dos livros, em função de critérios que
não terão qualquer respeito por essa outra liberdade inalienável: a liberdade de criar. E
então os brutos seremos nós, por mais “leitores” que sejamos. E sabe Deus que não faltam
brutos dessa espécie, no mundo.

Em outras palavras, a liberdade de escrever não saberia se acomodar com o dever de ler.
O dever de educar consiste, no fundo, no ensinar as crianças a ler, iniciando-as na
Literatura, fornecendo-lhes meios de julgar livremente se elas sentem ou não a
“necessidade de livros”. Porque, se podemos admitir que um indivíduo rejeite a leitura, é
intolerável que ele seja rejeitado por ela.

É uma tristeza imensa, uma solidão dentro da solidão, ser excluído dos livros – inclusive
daqueles que não nos interessam.

2. O direito de pular páginas

Li Guerra e paz, pela primeira vez, aos doze ou treze anos (mais certo treze, estava no
princípio do quinto ano e nem um pouco avançado). Desde o começo das férias, as grandes,
via meu irmão (aquele mesmo de As chuvas chegaram) mergulhado num enorme romance,
e seus olhos voavam longe, longe como os de um explorador que tenha, faz tempo, perdido
contato com a terra natal.

- É tão legal assim?

- Formidável!

- O que é que ele conta?

- É a história de uma garota que gosta de um cara e que se casa com um terceiro.

Meu irmão sempre teve o dom da síntese. Se os editores o contratassem para redigir seus
textos de “quarta capa” (essas patéticas exortações a ler que são coladas nas costas dos
livros) nos poupariam algumas conversas fiadas inúteis.

- Você me empresta?

- Te dou.

Eu era interno, era um presente inestimável. Dois grossos volumes que me aqueceriam
durante todo o trimestre. Cinco anos mais velho, meu irmão não era completamente idiota
(e nunca foi) e sabia com toda pertinência que Guerra e paz não poderia ser reduzido a uma
história de amor, por mais elaborada que fosse. Apenas, conhecia meu gosto pelos
incêndios do sentimento e sabia arranhar minha curiosidade, pela formulação enigmática de
seus resumos. (Um “pedagogo”, avaliara meu coração.) Acredito que foi bem o mistério
matemático da frase dele que me fez temporariamente abandonar meus livros de aventuras
para me atirar inteiro nesse romance. “Uma garota que gosta de um cara e que se casa com
um terceiro”... não vejo quem pudesse resistir. Na verdade, não fiquei decepcionado, se
bem que ele tivesse se enganado nas contas. Na realidade, éramos quatro a amar Natacha: o
príncipe André, o crápula do Anatole (mas pode-se chamar isso de amor?), Pedro Bezukhov
e eu. Como não tinha a menor chance, fui obrigado a me “identificar” com os outros. (Mas
não com Anatole, um verdadeiro canalha!)
Leitura ainda mais gostosa porque feita à noite, à luz de uma lanterna de bolso e debaixo
das cobertas arrumadas como uma tenda no meio de um dormitório de cinqüenta
sonhadores, roncadores e outros tantos revoltosos. A cabine do bedel de onde escorria a luz
fraca de uma lâmpada ficava ali mesmo, mas o quê, em amor é sempre tudo pelo tudo.
Sinto ainda a espessura e o peso desses dois volumes entre as mãos. Era a versão de bolso,
com o rostinho lindo de Audrey Hepburn fazendo um olhar de desdém para o principesco
Mel Ferrer, pálpebras pesadas de rapace amoroso. Pulei três quartos do livro porque só me
interessava pelo coração de Natacha. Fiquei com pena de Anatole, apesar de tudo, quando
lhe amputaram a perna, maldisse aquele idiota do príncipe André que ficou em pé na frente
daquela bomba, na batalha de Borondino... (“Mas deita, merda!, fica de barriga pra baixo,
isso vai explodir, você não pode fazer isso com ela, ela te ama!”) Me interessei pelo amor e
pelas batalhas, pulei os assuntos de política e estratégia... As teorias de Clausewitz
passavam muito acima da minha cabeça, puxa!, deixei de lado as teorias de Clausewitz...
Acompanhei de perto as decepções conjugais de Pedro Bezukhov e Helena, a mulher dele
(“nada legal”, a Helena, eu achava que ela não era “nada legal”) e deixei Tolstoi dissertando
sozinho sobre os problemas agrários da Rússia eterna.

Pulei páginas, e daí?

Todos os meninos e todas as meninas deveriam fazer o mesmo.

Com a condição de poderem se oferecer muito cedo quase todas as maravilhas consideradas
inacessíveis à idade deles.

Se têm vontade de ler Moby Dick, mas perdem a coragem diante das digressões de Melville
sobre o material e as técnicas da caça à baleia, não é preciso que renunciem à leitura, mas
que pulem, que pulem por cima dessas páginas e persigam Ahab sem se preocupar com o
resto, como ele persegue sua branca razão de viver e de morrer! Se querem conhecer Ivan,
Dimitri, Aliocha e o incrível pai deles, que abram e leiam Os irmãos Karamazov, é feito
para eles, mesmo que seja preciso pular o testamento do starets Zózimo ou a lenda do
Grande Inquisidor.

Um grande perigo os espreita, se não decidem por si mesmos por aquilo que está à
disposição, pulando as páginas de sua escolha: outros o farão no lugar deles. Outros se
armarão das grandes tesouras da imbecilidade e cortarão tudo que julgarem “difícil” demais
para eles. Isso dá resultados assustadores. Moby Dick ou Os miseráveis reduzidos a
resumos de 150 páginas, mutilados, estragados, raquíticos, mumificados, reescritos para
eles numa linguagem famélica que se supõe ser a deles. Um pouco como se eu me metesse
a redesenhar Guernica sob o pretexto de que Picasso tivesse jogado ali traços demais para
um olho de doze ou treze anos.

E depois, quando nos tornamos “grandes”, mesmo se recusamos confessar, ainda nos
acontece de pularmos páginas, por razões que só interessam a nós e ao livro que estamos
lendo. Pode acontecer também que nos proibamos totalmente fazer isso, nos obriguemos a
ler tudo até a última palavra, julgando que aqui o autor se alongou demais, que ele está
tocando uma linha de flauta passavelmente gratuita, que em certos lugares ele se dá à
repetição e que, em outros, à idiotice. Seja o que for que digamos, esses aborrecimento
teimoso que nos impomos não está na ordem do dever, ele é uma categoria do nosso prazer
de leitor.

3. O direito de não terminar um livro

Existem trinta e seis mil razões para se abandonar um livro antes do fim: o sentimento do
“já lido”, uma história que não nos prende, nossa desaprovação total pelas teses do autor,
um estilo que nos deixa de cabelo em pé, ou ao contrário, uma ausência de narrativa que
não compensa ir mais longe... Inútil enumerar as 35.995 outras, entre as quais as de que é
preciso cuidar da cárie dentária, as perseguições do nosso chefe de serviço ou um abalo
sísmico de coração que petrifica nossa cabeça.

O livro nos cai das mãos?

Que caia.

Afinal, não é porque Montesquieu o quisesse que se vai poder oferecer, de encomenda, o
consolo de uma hora de leitura.

No entanto, entre nossas razões para abandonar uma leitura existe uma que merece que nos
detenhamos um pouco: o sentimento vago de perda. Abri, li e cedo me senti submerso por
qualquer coisa mais forte do que eu. Reuni meus neurônios, discuti com o texto, mas não
adianta, fico com o belo sentimento de que o que está escrito merece ser lido, mas não pego
nada – ou tão pouco que é mesmo que nada –, sinto ali um “estranhamento” que não me
prende.

Deixo cair.

Ou melhor, deixo de lado. Guardo na minha estante com o vago projeto de voltar um dia. O
Petersburgo de Andreï Bielyï, Joyce e seu Ulisses, À sombra do vulcão, de Malcom Lowry
me esperaram alguns anos. Há outros que me esperam ainda, alguns que não vou recuperar
nunca, provavelmente. Isso não é um drama, é assim mesmo. A noção de “maturidade” é
coisa estranha, em matéria de leitura. Até uma certa idade, não temos a idade para certas
leituras. Mas, ao contrário das boas garrafas, os bons livros não envelhecem, somos nós que
envelhecemos. E quando nos acreditamos suficientemente “maduros” para lê-los, nós os
atacamos mais uma vez. Então, das duas uma: ou o reencontro acontece ou é um novo
fiasco. Talvez tentemos de novo, talvez não. Mas o certo é que não é por culpa de Thomas
Mann se não pude, até hoje, chegar ao cume de sua Montanha mágica.

O grande romance que nos resiste não é necessariamente mais difícil do que um outro... Há
entre ele – por grande que seja – e nós – por aptos a “compreender” que nos estimemos –
uma reação química que não se opera. Um belo dia simpatizamos com a obra de Borges
que até então nos mantinha à distância, mas continuamos toda vida estranhos à de Musil...

Bem, temos a escolha: ou vamos pensar que é nossa culpa, que temos uma telha de menos,
que abrigamos uma porção irredutível de burrice, ou vamos bisbilhotar do lado da noção
tão controvertida do gosto e buscar estabelecer o mapa dos nossos gostos cuidadosamente.
É prudente recomendar a nossas crianças essa segunda solução.

Tanto mais que ela pode oferecer esse prazer raro: reler compreendendo, enfim, por que não
gostamos. E esse outro raro prazer: escutar sem emoção o pretensioso erudito de plantão
berrar em nossos ouvidos:

- Mas como é que se pode não gostar de Stendhaaal?

É possível.

4. O direito de reler

Reler o que me tinha uma primeira vez rejeitado, reler sem pular, reler sobre um outro
ângulo, reler para verificar, sim... nós nos concedemos todos esses direitos.

Mas relemos sobretudo gratuitamente, pelo prazer da repetição, a alegria dos reencontros,
para pôr à prova a intimidade.

“Mas”, “mais”, dizia a criança que fomos...

Nossas releituras adultas têm muito desse desejo: nos encantar com a sensação de
permanência e as encontrarmos, a cada vez, sempre ricas em novos encantamentos.

5. O direito de ler qualquer coisa

A propósito de “gosto”, alguns de meus alunos sofrem um bocado quando se acham diante
do arquiclássico tema de dissertação: “Podemos falar de bons e maus romances?”

Como sob a aparência de um “eu não faço concessão” eles são no fundo gentis, em lugar de
abordar o aspecto literário do problema, eles o olham do ponto de vista ético e não tratam a
questão senão sob o ângulo das liberdades. Assim, o conjunto de suas redações poderia se
resumir nesta fórmula: “Mas não, não, cada um tem o direito de escrever o que quiser e os
gostos dos leitores estão aí, por toda parte, não, fora de brincadeira!” Sim... é, sim... posição
perfeitamente honrosa...

Isso não impede que haja bons e maus romances. É possível citar nomes, é possível
apresentar provas.

Para encurtar: digamos que existe aquilo que vou chamar de uma “literatura industrial” que
se contenta em reproduzir ao infinito o mesmo tipo de narrativa, debita o estereótipo em
cadeia, faz comércio dos bons sentimentos e das sensações fortes, salta sobre todos os
pretextos oferecidos pela atualidade para desovar uma ficção de circunstância, se dá a
“estudos de mercado” para colocar, segundo a “conjuntura”, tal tipo de “produto”, capaz de
inflamar tal categoria de leitores.

São assim, infalivelmente, os maus romances.


Por quê? Porque eles não valorizam a criação, mas a reprodução de “formas”
preestabelecidas, porque são uma empresa de simplificação (quer dizer, de mentira),
quando o romance é a arte da verdade (quer dizer, de complexidade), porque incensando
nossos automatismos adormecem nossa curiosidade, enfim e sobretudo porque o autor não
está ali, nem a realidade que ele pretende nos descrever.

Resumindo, uma literatura do “pronto para o consumo”, feita na fôrma e que gostaria de
nos amarrar dentro dessa mesma fôrma.

Nem pensem que essas idiotices são um fenômeno recente, ligado à industrialização do
livro. Nada disso, a exploração do sensacional, do folhetim, do arrepio fácil numa frase sem
autor não data de ontem. Para não citar mais que dois exemplos, lembremos o romance de
cavalaria que escorregou nesse mangue, assim como o romantismo, muito tempo mais
tarde. E como o mau pode servir a qualquer coisa de bom, a reação a essa literatura
desviada nos deu dois dos mais belos romances que há no mundo: Dom Quixote e Madame
Bovary.

Há, então, os “bons” e os “maus” romances.

O mais comum é que encontremos primeiro os segundos em nosso caminho.

E tenho certeza, quando passei por ali, lembro-me de ter achado “terrivelmente bom”. Tive
sorte: ninguém riu de mim, ninguém levantou os olhos aos céus, não fui tratado como um
cretino. Simplesmente foram deixados à mão, nos meus lugares de passagem, alguns
“bons” romances, sem que me proibissem dos outros.

Sabedoria.

Durante um certo tempo, lemos os bons e os maus, tudo junto. Do mesmo modo que não
renunciamos de um dia para o outro às nossas leituras de criança. Tudo se mistura. Sai-se
de Guerra e paz para se voltar a mergulhar em livros de aventuras. Passa-se de Sabrina e
Julia (histórias de belos doutores e de louváveis enfermeiras) a Boris Pasternak e a seu
Doutor Jivago – um belo doutor, ele também, e Lara, uma enfermeira ó quão louvável!

Então, um dia, é Pasternak quem ganha. Insensivelmente, nossos desejos nos empurram a
freqüentar os “bons”. Procuramos os escritores, procuramos a escrita, abandonamos
simples colegas de brincadeiras, reclamamos companheiros de ser. A anedota pura não nos
satisfaz mais. Chegou o momento em que pedimos ao romance uma outra coisa que não
seja a satisfação imediata e exclusiva de nossas sensações.

Uma das grandes alegrias do “pedagogo” é – toda leitura sendo autorizada – a de ver um
aluno bater sozinho à porta da fábrica Best-seller para subir e respirar na casa do amigo
Balzac.

6. O direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível)


É assim, grosso modo, o “bovarismo”, esta satisfação imediata e exclusiva de nossas
sensações: a imaginação infla, os nervos vibram, o coração se embala, a adrenalina jorra, a
identificação opera em todas as direções e o cérebro troca (momentaneamente) os balões do
cotidiano pelas lanternas do romanesco.

É nosso primeiro estado de leitor, comum a todos.

Delicioso.

Mas meio assustador para o observador adulto que, com freqüência, se precipita a brandir
um “bom título” debaixo do nariz do jovem bovarista, gritando:

- Afinal, Maupassant é bem “melhor”, não?

Calma!... não se deixar ceder ao bovarismo; dizer que Emma, afinal, não era ela mesma
outra coisa que um personagem de romance, quer dizer, o produto de um determinismo em
que as causas semeadas por Gustave não engendrariam outros efeitos – por mais
verdadeiros que fossem – senão os que desejasse Flaubert.

Em outros termos, não é porque essa mocinha coleciona Sabrina que ela vai acabar
engolindo arsênico numa concha. Forçar a mão nesse estágio de suas leituras é nos separar
dela, negando nossa própria adolescência. E é privá-la do prazer incomparável de desalojar
amanhã, por conta própria, os estereótipos que, hoje, parecem deixá-la fora de si.

É sábio nos reconciliarmos com a nossa adolescência; detestar, desprezar, negar ou


simplesmente esquecer o adolescente que fomos é em si uma atitude adolescente, uma
concepção da adolescência como doença mortal.

Daí a necessidade de lembrarmos nossas primeiras efervescências de leitores e montarmos


um pequeno altar a nossas antigas leituras. Inclusive às mais “bobas”. Elas representam um
papel inestimável: nos emocionar com aquilo que fomos, rindo daquilo que nos
emocionava. Os meninos e as meninas que partilham nossa vida ganham aí, certamente, em
respeito e em ternura.

E depois, se dizer também que o bovarismo é – com algumas outras – a coisa do mundo
mais bem partilhada: é sempre nos outros que vamos buscá-la. Ao mesmo tempo que
vilipendiamos a estupidez das leituras adolescentes, não é raro que concorramos para o
sucesso de um escritor telegênico, para em seguida passarmos à maledicência, assim que a
moda tenha acabado. As coqueluches literárias se explicam largamente por essa alternância
de nossos esclarecidos embalos e nossas perspicazes rejeições.

Nunca enganados, sempre lúcidos, passamos o tempo a nos suceder a nós mesmos,
convencidos para sempre de que Madame Bovary é o outro.

Emma devia compartilhar essa convicção.

7. O direito de ler em qualquer lugar


Châlons-sur-Marne, 1971, inverno.

Caserna da Escola de Aplicação de Artilharia.

Na distribuição matinal de tarefas, o soldado de segunda classe Fulano (Matrícula 14672/1,


bem conhecido de nossos serviços) se apresenta sistematicamente como voluntário para a
tarefa menos popular, a mais ingrata, distribuída com freqüência a título de punição e que
atinge a honra dos mais aguerridos: a lendária, a infamante, a inominável tarefa das latrinas.

Todas as manhãs.

Com o mesmo sorriso. (Interior.)

- Tarefa das latrinas?

Ele dá um passo à frente:

- Fulano!

Com a gravidade última que precede o assalto, pega a vassoura de onde pende o pano de
chão, como se fosse o estandarte da companhia, e desaparece, para grande alívio da tropa. É
um bravo: ninguém o segue. O exército inteiro continua protegido na trincheira das tarefas
honrosas.

As horas passam. Acredita-se que ele se perdeu. Quase se esquecem dele. Esquecem-no.
Ele reaparece entretanto, no fim da manhã, batendo os saltos das botas para o relatório ao
sargento da companhia: “Latrinas impecáveis, meu sargento!” O sargento recupera
vassoura e pano de chão com uma profunda interrogação nos olhos, que ele não formula
jamais. (Respeito humano obriga.) O soldado saúda, faz meia-volta, se retira, levando o
segredo com ele.

O segredo pesa um bom peso no bolso direito do blusão: 1.900 páginas do volume
consagrado às obras completas de Nicolai Gogol. Quinze minutos de pano de chão contra
uma manhã de Gogol... Cada manhã, faz dois meses de inverno, confortavelmente sentado
na sala dos tronos fechada com duas voltas, o soldado Fulano voa muito acima das
contingências militares. Todo Gogol! Das nostálgicas Noites na fazenda de Dikanke às
hilariantes Novelas, passando pelo terrível Taras Bulba e a negra farsa das Almas mortas,
sem esquecer o teatro e a correspondência de Gogol, esse incrível Tartufo.

Porque Gogol é o Tartufo que Molière teria inventado – o que o soldado Fulano não teria
jamais entendido se tivesse oferecido aquela tarefa a outros.

O exército gosta de celebrar os feitos de armas.

Desse, nada resta, senão dois alexandrinos, gravados no alto do metal de uma caixa de
descarga e que contam entre os mais suntuosos da poesia francesa:
Oui je peux sans mentir, assieds-toi, pédagogue,
Affirmer avoir lu tout mon Gogol aux gogues. (*)

(Por sua vez, o velho Clemenceau, “o Tigre”, um famoso soldado, ele também, era
agradecido a uma prisão de ventre crônica sem a qual, afirmava, não teria tido jamais a
felicidade de ler as Memórias de Saint-Simon.)

8. O direito de ler uma frase aqui e outra ali

Eu colho, nós colhemos, deixemos que eles colham, ao acaso.

É a autorização que nos concedemos de pegar qualquer volume de nossa biblioteca, de o


abrir em qualquer lugar e de mergulharmos nele por um momento, porque só dispomos,
justamente, desse momento. Alguns livros se prestam melhor que outros a essa colheita ao
acaso, porque são compostos de textos curtos e separados: as obras completas de Alphonse
Allais ou de Woody Allen, as novelas de Kafka ou de Saki, os escritos de Georges Perros, o
bom velho Rochefoucauld e a maior parte dos poetas...

Assim dito, se pode abrir Proust, Shakespeare ou a Correspondência de Raymond Chandler


em qualquer lugar, colher aqui e ali, sem o menor risco de se ficar decepcionado.

Quando não se tem nem o tempo nem os meios de se oferecer uma semana em Veneza, por
que se recusar o direito de passar lá cinco minutos?

9. O direito de ler em voz alta

Eu lhe pergunto:

- Em casa, liam histórias em voz alta, quando você era pequena?

Ela me responde:

- Nunca. Meu pai estava muitas vezes ausente e minha mãe ocupada demais.

Eu lhe pergunto:

- Então, de onde é que vem esse seu gosto pela leitura em voz alta?

Ela me responde:

- Da escola.

Feliz de escutar alguém reconhecer um mérito à escola, exclamo, todo contente:

- Ah! Você está vendo?


Ela me diz:

- Nada disso. A escola nos proibia a leitura em voz alta. Leitura silenciosa, já era o credo na
época. Direto do olho ao cérebro. Transcrição instantânea. Rapidez, eficiência. Com um
teste de compreensão a cada dez linhas. A religião da análise e do contrário, desde o
começo! A maior parte das crianças morria de medo, e isso era só o começo! Todas as
minhas respostas eram boas, se você quer saber, mas voltando para casa eu relia tudo em
voz alta.

- Por quê?

- Pelo encantamento. As palavras pronunciadas se punham a existir fora de mim, elas


viviam de verdade. E depois, me parecia que era um ato de amor. Que era o amor mesmo.
Sempre tive a impressão de que o amor pelo livro passa pelo amor, simplesmente. Deitava
minhas bonecas na minha cama, no meu lugar, e lia para elas. Me acontecia de dormir aos
pés delas, no tapete.

Eu a escuto, escuto e parece que estou escutando Dylan Thomas, bêbado como o desespero,
lendo seus poemas, com sua voz de catedral...

Eu a escuto e parece que estou escutando Dickens, o velho, Dickens, ossudo e pálido, tão
perto da morte, subir em cena... seu grande público de iletrados de repente petrificado,
silencioso a ponto de quase escutar o livro se abrir... Oliver Twist... a morte de Nancy... é a
morte de Nancy que ele vai ler para nós!

Eu a escuto e ouço Kafla rir até as lágrimas lendo A metamorfose para Max Brod que não
está certo de estar acompanhando... e vejo a pequenina Mary Shelley oferecer grandes
fatias de seu Frankenstein a Percy e aos amigos assombrados...

Eu escuto e aparece Martin du Gard lendo para Gide seus Thibault... mas Gide parece não
escutar... eles estão sentados na beira de um rio, mas o olhar de Gide está longe... os olhos
de Gide escaparam, lá mais embaixo, onde dois adolescentes mergulham... uma perfeição
que a água veste de luz... Martin du Gard fica uma fúria... mas não, ele leu bem... e Gide
escutou tudo... e Gide lhe diz todo o bem que pensa dessas páginas... mas, mesmo assim,
precisaria talvez modificar isso e aquilo, aqui e ali...

E Dostoievski, que não se contentava de ler em voz alta, mas que escrevia em voz alta...
Dostoievski, sem fôlego, depois de ter proferido violentamente sua acusação contra
Raskolnikov (ou Dimitri Karamazov, não sei mais)... Dostoievski perguntando à sua mulher
estenógrafa: “Então? Qual o seu veredicto? Hein? Hein?”

ANNA: Condenado!

E o mesmo Dostoievski, após lhe ter ditado o discurso da defesa...: “Então? Então?”

ANNA: Absolvido!
É...

Estranho desaparecimento, esse da leitura em voz alta. O que é que Dostoievski teria
pensado disso? E Flaubert? Não se tem mais o direito de pôr as palavras na boca antes de
enfiá-las na cabeça? Não há mais ouvidos? Nem música? Nem saliva? Nem gosto nas
palavras? E além de tudo e ainda mais! Será que Flaubert não se pôs a gritar (até fazer
explodir os tímpanos), seu Madame Bovary? Será que ele não está definitivamente mais
bem equipado do que qualquer outro para saber que a inteligência do texto passa pelo som
das palavras, lá onde se faz a fusão dos seus sentidos? Será que não é ele que sabe, como
ninguém mais, ele que tanto brigou das cadências, que o sentido é algo que se pronuncia? O
quê? Textos mudos para puros espíritos? A mim, Rabelais! A mim, Flaubert! Dostô! Kafka!
Dickens!, a mim! Venham dar um sopro a nossos livros! Nossas palavras precisam de
corpos! Nossos livros precisam de vida!

É verdade que o silêncio do texto é confortável... não se arrisca a morte, como Dickens, a
quem os médicos pediam que calasse enfim seus romances,... o texto e cada um... todas
essas palavras amordaçadas na amolecida cozinha de nossa inteligência... como pode se
sentir alguém nesse silencioso tricotar de nossos comentários!... e além disso, julgando o
livro à parte, a sós, não se corre o risco de ser julgado por ele... é que, desde que a voz se
mistura, o livro diz muito sobre seu leitor... o livro diz tudo.

O homem que lê de viva voz se expõe totalmente. Se não sabe o que lê, ele é ignorante de
suas palavras, é uma miséria, e isso se percebe. Se se recusa a habitar sua leitura, as
palavras tornam-se letras mortas, e isso se sente. Se satura o texto com a sua presença, o
autor se retrai, é um número de circo, e isso se vê. O homem que lê de viva voz se expõe
totalmente aos olhos que o escutam.

Se ele lê verdadeiramente, põe nisso todo seu saber, dominando seu prazer, se sua leitura é
um ato de simpatia pelo auditório como pelo texto e seu autor, se consegue fazer entender a
necessidade de escrever, acordando nossas mais obscuras necessidades de compreender,
então os livros se abrem para ele e a multidão daqueles que se acreditavam excluídos da
leitura vai se precipitar atrás dele.

10. O direito de calar

O homem constrói casas porque está vivo, mas escreve livros porque se sabe mortal.

Ele vive em grupo porque é gregário, mas lê porque se sabe só. Esta leitura é para ele uma
companhia que não ocupa o lugar de qualquer outra, mas nenhuma outra companhia saberia
substituir. Ela não lhe oferece qualquer explicação definitiva sobre seu destino, mas tece
uma trama cerrada de conivência entre a vida e ele. Ínfimas e secretas conivências que
falam da paradoxal felicidade de viver, enquanto elas mesmas deixam claro o trágico
absurdo da vida. De tal forma que nossas razões para ler são tão estranhas quanto nossas
razões para viver. E a ninguém é dado o poder para pedir contas dessa intimidade.
Os raros adultos que me deram a ler se retraíram diante da grandeza dos livros e me
pouparam de perguntas sobre o que é que eu tinha entendido deles. A esses, claro, eu
costumava falar de minhas leituras. Vivos ou mortos, ofereço a eles essas páginas.

Notas

(*) Sim posso sem mentir, senta-te, pedagogo,


Afirmar ter lido todo meu Gogol nas privadas.

Daniel Pennac
______________________________

PENNAC, Daniel. O que lemos, quando lemos: ou os direitos imprescindíveis do leitor.


ExtraLibris, 2005. Disponível em:
<http://academica.extralibris.info/literatura/os_direitos_do_leitor_daniel_p.html>. Acesso
em: 27 out. 2005.

Original: PENNAC, Daniel. O que lemos, quando lemos: ou os direitos imprescindíveis do


leitor. In: _______________. Como um romance. 4.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p.142-
167.

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