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Silas Falcao MIOLO Pequenos Assombros

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Fortaleza

2018
© Bruno Paulino, 2018

Ficha técnica

Editor
Silas Falcão/Luazul Edições

Revisão
Bruno Paulino

Capa
Arievaldo Viana

Diagramação
Léo de Oliveira

Ficha Catalográfica
Bibliotecária Perpétua Socorro Tavares Guimarães
CRB 3/801-98

P 328p Paulino, Bruno


Pequenos assombros/ Bruno Paulino. -
Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2018.

60p.
ISBN: 978-85-420-1152-4

1. Literatura brasileira 2. Crônicas I. Título

CDD: 869
O momento que mais assusta
costuma ser aquele justamente
antes de começar.

Stephen King
Para o vô Luís Paulino que
não tinha medo de nada e
contava, como ninguém,
histórias de assombros.
A linhagem do medo

Carlos Vazconcelos

Sendo o medo a emoção mais forte e mais an-


tiga do homem, não são poucos os narrado-
res que o cultivam em sua arte. Não é à toa
o crescimento do gênero “terror e suspense”
nos últimos tempos. Literatura e cinema têm
explorado a vertente de maneira contumaz.
Se na literatura Allan Poe é o grande clássi-
co, seguido de Howard Lovecraft, o cinema
também teve seu mestre, homem aficionado
pela ideia do medo, o genial Alfred Hitchcock.
Quando reuniu um grupo de amigos para
uma festa onde apresentou a ideia do filme
Psicose, viu nos semblantes asco e precon-
ceito, mas só um gênio enxergaria além das
aparências: aqueles rostos mal disfarçavam,
acima de tudo, um verdadeiro fascínio pelo
macabro. Naquele instante, apenas confirmou
sua certeza: o sucesso seria estrondoso.

Um dos herdeiros mais talentosos da linha-


gem do medo é, atualmente, o norte-americano
Stephen King, perito em unir em suas narra-
tivas elementos que estimulam esse misto de
arrebatamento e aversão que todo ser huma-
no oculta nos escaninhos da alma. Entre tor-
res, nevoeiros, mansões e hotéis decadentes, o
autor liberta estranhas criaturas e faz o medo
campear, subir pela espinha dorsal do leitor,
eriçar os pelos do corpo, congelar o olhar.

Leitor de King e de Poe, aficionado por cine-


ma e quadrinhos, menino do interior, curioso,
irrequieto, crescido entre histórias, lendas e
parlendas, Bruno Paulino não resistiria ao cha-
mado de escrever histórias medonhas. Suas
pequenas narrativas misturam os elementos
clássicos do terror e do suspense, desde o ar-
quétipo do gato enigmático até motivos mais
regionais, já tocados pela tradição. E creio ser
este o objetivo maior do autor: relembrar as
histórias, para que não morram, instigar nas
novas gerações o gosto pela narrativa, o in-
teresse pelos velhos causos de assombração,
pois fascínio pelo medo, reafirmo, quem não
o tem? O velho narrador, o profeta maldito,
a botija, o cemitério, a luz de súbita aparição
são linhas mestras da psicologia do medo que
o autor traz de volta, para que nossas histó-
rias mais remotas não sejam esquecidas. Pro-
fessor dos mais reconhecidos em sua gleba
natal, Bruno não se furtaria de levar aos seus
alunos o contagiante entusiasmo que cultiva
pelas narrativas. O certo é que ninguém co-
nhece, melhor do que as crianças e os jovens,
esse paradoxal sentimento de atração e repul-
sa pelo desconhecido.

Com o advento da Era Industrial, com a con-


solidação das ideias iluministas, houve a ten-
tativa de se desabonar o mito, sobretudo na
Literatura. Ora, que se torne o homem um
poço de racionalidade, mas dentro desse poço
as águas jamais serão completamente límpi-
das. No fundo o lodo, na superfície a capar-
rosa. O excesso de luz (lucidez) encandeia os
olhos e estonteia a mente. Por isso, em foro
íntimo, o bicho homem sempre revisitará seus
mitos. Foi assim desde as mais remotas civili-
zações e para sempre será. A busca pelas for-
mas secretas se confunde com a própria busca
pelo sentido da existência.

De minha parte, invadido pela atmosfera do


livro, passou a martelar-me os miolos um re-
nitente estribilho: “Lavou pé, lavou mão, foi
se deitar!” Faz parte de uma antiquíssima his-
tória que uma das minhas irmãs mais velhas
contava, quando faltava luz, e me deixava de
orelhas em pé. Vou resumir: Uma tal Maria
recebia estranha visita, sempre à meia-noite.
Alguém batia na porta e chamava: “Abre a
porta, Maria!” O cachorro (e dizem que os
cães veem coisas), para livrar a pele da dona,
se antecipava e respondia: “Maria lavou pé,
lavou mão, foi se deitar!” E o estranho ia em-
bora. Um dia Maria se preparou para receber
o visitante, mas antes que pudesse responder,
o animal se antecipou: “Lavou pé, lavou mão,
foi se deitar!” A moça achou aquilo estúpido
e irritou-se muito, iludida de que o visitador
fosse uma espécie de príncipe encantado que
viesse arrancá-la da solidão desvairada. Pren-
deu o cachorro enxerido. Não adiantou, o cão
respondia de lá, para proteger sua dona da
malsina. Maria matou o pobre bicho. Mesmo
morto ele continuava se antecipando à dona e
respondendo ao desconhecido: “Lavou pé, la-
vou mão, foi se deitar!” Maria decidiu desen-
terra-lo e queimá-lo. Mas a voz do protetor
continuou vindo das cinzas, sinal de sua leal-
dade incondicional. Maria puxava os cabelos,
desesperada. Uma noite, o visitante veio tra-
zido por uma ventania, que também soprou
para longe as cinzas daquele fiel amigo. Maria
preparou-se então para receber a visita. “Abre
a porta, Maria!” A moça não se fez de rogada.
Sorridente, abriu-a com delicadeza. Mas logo
suas feições se transformaram, pois era o ca-
peta em pessoa quem a esperava lá fora, com
olhos flamejantes.

Neste Pequenos Assombros, Bruno Paulino faz


seu registro e chama à atenção para que não
desprezemos as velhas histórias contadas por
nossos antepassados, assim como fez Gilberto
Freyre com o seu Assombrações do Recife Ve-
lho. A invenção da luz, da TV, do celular fez
desparecer os convescotes ao redor das cha-
mas bruxuleantes de lamparinas e velas, de
lampiões, do luar cambiante. Esse prazer da
velha infância a meninada atual dificilmente
sentirá. Mas nem tudo está perdido. Bruno
Paulino, com este novo livro, repõe as cadei-
ras, apaga a luz e renova o convite.

P.S: Que as circunstâncias tenham conspirado para que


este prefácio (desnecessário até) fosse escrito em Dia
de Finados, é mais um motivo para que desconfiemos
do mero acaso. Não duvido que as criaturas de Bruno,
trazidas à tona neste livro, tenham se rebelado e exigi-
do a consumação do texto antes do anoitecer, para que
ninguém ousasse invocar seus nomes em incômodas
horas noturnas.
SUMÁRIO

17. O mistério no céu do salva-vidas


19. Visagem
21. Um velho gato
25. A botija de Dona Guidinha
29. O exterminador de lagartixas
31. O casarão das pedras
35. A maldição do velho profeta
39. Gritos do além
45. Excertos do estranho diário
do Dr. Albuquerque
51. O despertar dos cassacos
53. Posfácio
O MISTÉRIO NO CÉU DO

SALVA - VIDAS

Para Tarcísio Filho

Quando o misterioso objeto voador e lumi-


noso pousou sobre o imponente monólito co-
nhecido como Pedra da Gaveta, nos céus do
isolado e esquecido Vilarejo de Salva-Vidas,
o alvoroço foi grande entre as crianças que
brincavam no terreiro naquela noite. Num
instante e com muita força o vento gélido so-
prou derrubando árvores, apagando lampari-
nas, atiçando os bichos e levantando a poeira.

O mundo se fez barulho e torpor.

No alpendre das casas, os pobres sertanejos


estavam espavoridos, como se tivessem visto
o próprio demônio, percebendo que além do
estranho vento e das luzes que fulguravam no
céu, o rádio também estava com uma distor-
ção agonizante em sua sintonia.

17
A reação de todos foi tentar correr, mas se fez
impossível, pois continuamente lhe faltaram
forças, os corpos foram ficando paralisados e
adormecidos num pavor de transe, apesar de
as ideias permanecerem ainda perfeitamente
claras em suas mentes.

Aterrorizados e inertes, viram quando o obje-


to, num rasante sobre o terreiro, lançou uma
espécie de rede sobre as crianças e as puxou
para seu interior partindo depois no desco-
nhecido do céu estrelado.

Após aquela noite o Vilarejo de Salva-Vidas


nunca mais foi o mesmo.

18
VISA

GEM

O velho não enxergava dum olho e costumei-


ramente mascava fumo sentado num tambo-
rete de madeira que carregava aonde fosse.

Nunca soube seu nome, apenas sei que cos-


tumava esmolar pelo bairro. Todos na minha
rua diziam que ele caducava; que não passava
de um doido varrido, muitos até lhe negavam
um prato de comida, mas para mim tratava-se
apenas de um grande contador de estórias,
sobretudo de caçadas de onças, entre outros
casos aventurosos e fantásticos que adorava
ouvir. Ele contava também que costumava
ver a alma do pai, pedindo reza no pingo do
meio-dia, pois tinha morrido sem pagar pro-
messa.

Aquela história me infligia um medo danado,


sempre fui um menino que acreditava pia-
mente em visagem, coisas assombrosas desse
e do outro mundo.

19
Até que o velho simplesmente sumiu.

E com ele o meu medo de visagem.

Homem feito, após um dia normal de traba-


lho, quando caminhava de volta para casa,
de repente senti que alguém me seguia, mas
não conseguia identificar quem era. Pensei
que estivesse vendo coisas e toquei em frente.
Foi quando no momento que abria a porta de
casa, a rua curiosamente deserta, à noite re-
cebendo formas, um vento frio soprou me fa-
zendo tremer dos pés a cabeça. Olhando para
o lado, na ponta da esquina, reconheci a figura
do velho, roupa surrada, com seu tamborete
numa mão e um saco de estopa nas costas.

A visão durou apenas alguns segundos e su-


miu silenciosa.

Voltei a ter medo de visagem.

20
UM VELHO

GATO

Dumbledore era o nome do meu velho e


aventureiro gato. Não que ele fosse um dos
Thundercats. Mas vivia sempre sujo da alma
às patas cinzentas. O bichano não só detesta-
va banho como também não gostava das coi-
sas muito arrumadas e se assim estivessem,
ele mesmo as bagunçava: nada que um ras-
gãozinho na cortina, uns arranhõezinhos nas
almofadas e, claro, deixar suas patinhas mar-
cadas no sofá, na cama, no chão recém-lavado
da cozinha não resolvessem...

Dumbledore se achava o galã da casa, embora


seus pelos acinzentados fossem encardidos,
seus bigodes quebrados; e uma de suas ore-
lhas faltasse um pedaço.

De tanto as pessoas da casa afirmarem que


era lindo, acho que realmente ele se conven-
ceu de que era o único, o mais maravilhoso, o
mais perfeito de todos os felinos.

21
Mas era também um preguiçoso dos diabos,
igual a todos os outros gatos, ou pelo menos
parecido com Garfield, aquele gato das tiri-
nhas.

Dumbledore dormia o dia inteiro – não me


lembro de o ter visto alguma vez capturar
algum rato - e adorava sair em suas aventuras
noturnas e na maioria das vezes voltava
estropiado, como se tivesse participado numa
luta de vale tudo. Suspeito que essas aventuras
noturnas não eram das mais românticas,
por isso acho que realmente ele tinha sete
vidas, e bem vividas até aquele triste dia
em que alguém com uma bolinha de carne o
envenenou.

Não sei o que leva alguém a fazer tamanha


atrocidade com um gato!

Hoje vi um gato desfilando mansamente pelo


muro do quintal, e de repente ele me fitou, e
num gesto rápido acenou pra mim como se
quisesse apontar ou dizer algo.

Minha alma gelou!

22
Não sei bem porque, os gatos têm seus mis-
térios, nos ensina o mestre Allan Poe em Gato
Preto. Sei que imediatamente recordei do
Dumbledore, o bichano mais legal que tive.
Companheiro fiel das horas de ócio, e fiquei
imaginando que ele deve estar no outro mun-
do aprontando das suas nas madrugadas, va-
gabundeando felinamente, tramando assom-
bros contra quem o envenenou.

23
A BOTIJA DE

DONA GUIDINHA

Há algumas décadas, por volta de 1950, uma


família sertaneja saiu da zona rural para a área
urbana de Quixeramobim. Instalando-se na
Rua Santo Antônio, nº 57, mais precisamente
em uma residência secular que pertencia a
um senhor conhecido por Paiva.

Mas antes de pertencer ao senhor Paiva, se-


gundo alguns moradores mais antigos, no sé-
culo XIX a casa fora mandada construir e era
parte dos pertences de uma fazendeira rica,
a famosa Dona Guidinha, que envolvida em
uma trama amorosa, teria mandado matar o
marido, e por esse motivo foi presa e termi-
nou os dias como pedinte nas ruas da capi-
tal. Como não tinha filhos, os bens de Dona
Guidinha foram divididos por “amigos” da
família, e depois de sua condenação grande
parte de suas vastas terras foram invadidas
por seus inimigos.

25
Em certa noite chuvosa, a terceira filha mais
velha do casal de agricultores que adquirira a
casa de seu Paiva — uma solteirona — sonhou
com a velha Dona Guidinha esticada em um
caixão no meio da sala. Vestia preto como as
antigas matriarcas trajando luto. Ela se apro-
ximou para ver a defunta que lhe abriu os
olhos, levantando-se em seguida.

Mesmo tomada de susto, percebeu que a ve-


lha queria conversar com ela, dar-lhe um re-
cado. No sonho a finada Dona Guidinha men-
cionava que enterrou uma botija naquela casa
e que pretendia dar-lhe de presente, mas com
três condições: queria que ela contasse sua
verdadeira história, pois nunca tinha man-
dado matar ninguém, e pagara por um crime
que não cometera.

Outra condição era que fosse sozinha ao quin-


tal da casa à meia noite, guiada pela falecida,
para arrancar a botija.

E por último, a moça não poderia nunca se


casar, pois os homens não prestavam.

A solteirona despertou muito assustada com


aquela situação. Aos prantos, correu a acordar

26
os pais e contar-lhes o sonho com a antiga dona
da casa. Seu pai lamentou o relato, e disse à
filha que se ela tivesse seguido o conselho
da aparição, a situação financeira da família
teria mudado, já que ele cresceu ouvindo dos
mais velhos que quem toma coragem e encara
“arrancar” uma botija, vira rico. O curioso
é que realmente próximo ao local indicado
pela falecida como sendo o lugar do suposto
tesouro, havia uma marca no concreto de uma
mão, como se há algum tempo atrás algo tivesse
sido enterrado ali e posteriormente cimentado
novamente com aquela marca. Mesmo assim
ninguém ousou arrebentar o lugar para ver se
havia ou não a botija de Dona Guidinha.

Após três anos morando na arcaica residên-


cia, a família mudou-se para outro endereço.
A casa foi comprada por um casal, que logo a
destruiu, e depois vendeu para um empresá-
rio que construiu uma farmácia, e a botija do
sonho, se existiu, nunca foi encontrada.

27
O EXTERMINADOR DE

LAGARTIXAS

Hoje consigo achar as lagartixas animais sim-


páticos e bonitinhos, com aquele jeito particu-
lar de se comunicar acenando com a cabeça.
Mas na minha infância tinha total aversão e
até mesmo certo medo do pequeno e indefeso
animal, e caçava lagartixas com o magnânimo
objetivo de exterminá-las.

Sempre acreditei — naquele tempo — que o la-


garto grandioso do filme Godzilla, existia mes-
mo lá no outro lado do mundo, e estava de
alguma forma relacionado à vida daqueles pri-
mitivos rastejantes que costumava abater com
tiros de baladeira, para logo após destroçar-lhes
os corpos com trinchete como se fosse um cien-
tista louco, um verdadeiro Dr. Frankenstein.

Lembro que se dizia que acertando apenas o


rabo do pequeno réptil — e ele permanecendo
vivo — cresceria novamente não apenas um,

29
mas dois rabos nele. Nunca confirmei a vera-
cidade dessa engenhosa teoria cientifica, po-
rém, quando num tiro certeiro o rabo da la-
gartixa permanecia apresentando espasmos
depois de despregado do corpo era inevitável
que minha frutífera imaginação ansiasse que
emergisse dali um novo, grandioso e mons-
truoso lagarto, com potencial destrutivo e ca-
tastrófico.

Isso não seria inimaginável para uma criança,


não é?

Com dez anos de idade, um trinchete, bala-


deira e pedras a mão, eu me sentia um grande
herói, o exterminador de lagartixas, defensor
da humanidade.

Nada podia ser mais homérico.

Menção Honrosa no 1° Concurso LEC — Livraria do


Escritor Cearense — prêmio Milton Dias de crônica e
poesia 2017.

30
O CASARÃO DAS

PEDRAS

O casarão era imenso e antigo, parecendo um


castelo medieval isolado e abandonado no
meio do sertão, um casarão de fazenda. Tinha
muitas janelas, uma porta quebrada, e o telha-
do coberto de pedras, além dos monólitos es-
tranhos erguidos no terreiro que impunham
ao local um ar sombrio, sem falar nos pios
agourentos das aves graúnas e outros bichos
que rondavam seu entorno.

A última família que residiu no casarão era


bastante pobre e religiosa, mas mudou-se por
conta das constantes chuvas de pedras e dos
objetos que de repente começavam a pegar
fogo. Camas, mesas, cadeiras e cortinas tudo
misteriosamente em chamas. Vultos negros
que surgiam e desapareciam sem deixar ras-
tros; sons de vidros se quebrando, rangidos,
relinchos na noite, falsos uivos, clics em fe-
chaduras e estampidos de tiros, além do in-
suportável cheiro de enxofre. Amedrontados,

31
e sem uma explicação racional, a única solu-
ção encontrada pelos simplórios moradores
foi mudar-se e procurar ajuda.

O padre Jaime Silveira foi convocado para ben-


zer e espantar os maus espíritos da residência
macabra, porém terminou sendo apedrejado
junto com dona Terezinha, uma das beatas mais
voluntariosas e fofoqueiras da paróquia que lhe
acompanhava naquela missão nas quebradas
do sertão.

A velha beata, recuperada do abalo, enquan-


to retomava o fôlego, perguntou, com a voz
engasgada, ao padre: — o que seria aquilo meu
senhor?

Padre Jaime Silveira, atônito, respondeu: — O cão,


minha filha, o cão tinhoso!

Os dois voltaram à cidade, abalados de medo


e ensopados de sangue. E como não poderia
deixar de ser, a notícia espalhou-se como fogo
em palha seca.

O maligno tinha feito morada no casarão da


Vila de Boa Fé.

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Então, confrontado pelos populares que re-
produziam em todas as esquinas da cidade o
acontecido com o padre e a beata, o delegado
Prudêncio reuniu seus principais auxiliares,
organizou uma expedição e foi ao amaldiçoa-
do recanto. Lá chegando também foi agredido
por uma saraivada de pedras e viu labaredas
de fogo surgirem no interior da casa.

Todos correram em debandada.

E o saldo da ação foi de dois homens bastante fe-


ridos pelas pedras e uma população apavorada.

Um jornalista da capital, João Franco, conheci-


do por grandes reportagens sobre mistérios e o
sobrenatural, ficou sabendo dos acontecimen-
tos no vilarejo de Boa Fé e pediu autorização
dos diretores do jornal Os associados para inves-
tigar o caso. Autorização concedida, ele viajou
ao vilarejo na certeza que rapidamente desven-
daria mais um mistério. Porém investigou e
entrevistou meio mundo, mas não encontrou
pistas consistentes, nem tampouco ninguém
que lhe acompanhasse ao Casarão das Pedras
como passou a ser conhecida a vivenda.

33
Mantendo sua fama de destemido, e contra-
riando os conselhos dos populares, o jornalista
foi sozinho à sinistra morada entender aquele
caso.

Dias depois, o corpo de João Franco foi encon-


trado totalmente desfigurado e coberto de pe-
dras.

Já se passaram 50 anos desde que o jornalista


foi sozinho até o Casarão das Pedras e nunca
mais retornou.

Um prefeito, incomodado com a má fama que


o local trouxe à cidade, mandou implodir com
dinamite o Casarão das Pedras. E poucos são
ainda hoje os cidadãos destemidos de Boa Fé
que têm a coragem de ir aquelas ruínas.

Sobretudo à noite.

34
A MALDIÇÃO DO

VELHO PROFETA

A noite longa abrumou aqueles serrotes de-


sertos do Boqueirão.

Moldurou-os em trevas densas.

E a voz vibrante do velho profeta Mefisto


ecoou novamente lá de cima como um vati-
cínio sobre a cidade de Boa Fé: enfrentariam
catástrofes avassaladoras, enchentes inimagi-
náveis, longas secas, uma praga de ratos e in-
setos, o rio transbordaria de sangue e o povo
surtaria em violência, com fome, sede, epide-
mias e mortes.

Muitas mortes.

Infortúnios medonhos abateriam aquela mes-


quinha cidade e suas claques, onde durante
longos anos o velho profeta viveu mendican-
te, sofrendo torturantes humilhações; brada-
vam-lhe o tempo todo o termo maldoso, es-
candaloso e dolorido da existência.

35
Ninguém deu trela às palavras malditas do ve-
lho profeta quando ele foi embora sozinho, hu-
milhado, rejeitado e expulso; um morto-vivo
alimentado e sustentado apenas pelo gosto da
vingança na boca.

Mas a ira do fogo purificaria aquela gente até


que se redimissem de seus pecados e come-
çassem a obedecer a lei escrita no antigo livro
da Irmandade dos Sábios de Canaã.

E naquela mesma noite que Mefisto partiu da


cidade, o trem que chegava da capital lotado
de passageiros descarrilou e chocou-se con-
tra a pequena estação de Boa Fé, provocando
enorme explosão.

Depois do estrondo, fez-se um curto silêncio,


mas logo o pânico retomou a adrenalina dos
sobreviventes, que tão desesperados quanto
desnorteados buscavam suas crianças, paren-
tes e conhecidos, que eventualmente tivessem
escapado ao sinistro, e também tentavam fu-
gir dos escombros e dos corpos mortos. es-
tendidos, espalhados no chão; banhados em
sangue, pele e fezes compondo aquela cena
de terror.

36
Foi quando uma risada sinistra como se fos-
sem as trombetas do apocalipse retiniu por
entre as chamas.

37
GRI A
DO L
É
TOS M

O cemitério velho do vilarejo de Boa Fé ficava


na parte alta da cidade, no caminho que levava
ao antigo casarão que funcionava como precá-
rio hospital — edificado por volta de 1860 —
sobre um ajuntamento de serrotes para aten-
der as vítimas da epidemia de cólera. Os po-
pulares brincavam dizendo que as edificações
foram construídas próximas assim para en-
curtar a passagem dos cristãos falecidos para
o outro plano.

Tempos depois de findada a avassaladora epi-


demia de cólera, barulhos estranhos oriundos
do interior do cemitério começaram a inco-
modar as pessoas que visitavam aquele local
sagrado, e até mesmo os passantes do lado de
fora ficavam assustados pelos sons que ecoa-
vam por todo aquele campo deserto, sobretu-
do à noite.

39
Palavras soltas em voz de fúria e histeria: cle-
mência, misericórdia e perdão eram os apelos
mais recorrentes. Vozes indistintas, sucessi-
vas que ninguém sabia dizer quem as emitia.

E o medo correu solto pelas ruas do vilarejozi-


nho como labaredas deslizando pelos campos
secos no verão.

E certa noite, sem esperar que se tratasse a


primeira vista de coisa do além, os cidadãos
temerosos exigiram que a força policial da
época, comanda pelo delegado Justino, fizesse
uma rigorosa limpa naquele lugar santo, e
que surpreendessem os prováveis engraçadi-
nhos que proporcionavam aquela “brincadei-
ra” sem graça. Aproximadamente 20 cabras
municiados de parabéluns, facões, tochas,
candeeiros e lampiões, partiram para o inte-
rior do velho cemitério.

Nessa época, o adro já contava com dezenas


de covas e túmulos construídos, muitos edi-
ficados para receber os corpos das vítimas da
seca de 1877, que dizimou parte da população
de Boa Fé, além da peste da cólera.

40
A busca durou a noite inteira. E, embora a var-
redura tenha sido minuciosa, resultou inútil.

O delegado Justino, materialista e cético, sa-


biamente ponderou que os autores dos gritos
poderiam ter escapulido quando viram a pa-
trulha nos arredores do cemitério.

Mas a população não teve sossego.

Foi só a força policial retirar-se do lugar e os


gritos voltaram novamente. Intrigados e as-
sustados, os populares chamaram novamen-
te o delegado e seu ajuntamento. Agora con-
victos que o sobrenatural se manifestava ali,
através daqueles gritos de:

Clemência

Misericórdia

Perdão

Novo cerco organizado, fogueiras acesas,


homens armados fizeram ronda em todo o
cemitério, mas não adentraram ao local, a es-
tratégia pensada pelo delegado era que todos
ficassem do lado de fora, esperando pegar os

41
autores de tamanho sacrilégio, quando fugis-
sem ao amanhecer.

As mulheres foram pra casa apegar-se a ora-


ção. Fossem humanos ou do além, a verda-
de é que os gritos prosseguiam, mesmo com
aquela inquietação inteira em volta.

O dia amanheceu e ninguém saiu do cemitério.

Intrigados, parte dos homens liderados por


Justino invadiu novamente o lugar, eles vas-
culharam tumba por tumba, verificando se
havia alguma cova aberta com alguém es-
condido lá dentro, até a capela no interior do
cemitério foi revirada, mas como da outra
vez, nada nem ninguém foi encontrado.

Não havia outra resposta: o sobrenatural ha-


bitava o cemitério, convenceu-se o cético
delegado Justino.

Agora não era mais necessária a força huma-


na, e sim a espiritual.

Os mortos pululavam entre os vivos

O Padre José, jovem pároco recém-ordenado,


logo que saiu do seminário do Recife foi enca-

42
minhado para Boa Fé. Convocado pelo povo
para exorcizar o cemitério, apesar de relu-
tante, inexperiente e também temeroso o re-
verendo não se fez de rogado, e afirmou que
se de fato havia energias do mal no cemitério
devia-se ao fato de ter existido ao lado um
terreno que servia de campo de açoite onde
muitos escravos foram torturados, violenta-
dos, mortos e enterrados, pois não podiam
ser sepultados juntos aos brancos no lado de
dentro da necrópole; dizia isso, pois tinha lido
essas informações nas anotações de um velho
caderno, espécie de diário que tinha encon-
trado na biblioteca da casa paroquial, escrito
provavelmente por algum outro padre que
há muito tempo morou ali. Nas anotações do
caderno também identificara que muitas víti-
mas da peste da cólera foram queimadas na-
quele campo putrefato. E assim chegou a con-
clusão que o local estava “carregado”.

Uma missa foi promovida ‘’na intenção’’ da


alma dos pobres escravos e dos vitimados
pela peste, pedindo que descansassem em paz

43
e encontrassem a luz divina e, enfim, pudes-
sem perdoar os antepassados daquela gente.

A celebração do padre José deu resultado, e


os barulhos cessaram. Mas ainda hoje, passa-
do tanto tempo, em madrugadas frias, alguns
moradores dizem que é possível ouvir as la-
murias e os gritos de clemência, misericórdia
e perdão vindos do cemitério velho. E não
sabemos se isso é obra de alguns engraçadi-
nhos querendo reacender a antiga história, ou
se são, de fato, almas vagantes que ainda an-
seiam por justiça e paz.

44
EXCERTOS DO ESTRANHO DIÁRIO

DO DR. ALBUQUERQUE

Boa Fé, 20 de outubro de 1890

Um de meus primeiros pacientes nesta cida-


de, Coronel Pedro Barata, insistiu em repetir-
-me seguidas vezes a história sobre a presen-
ça, em Boa Fé, na província do Ceará, de uma
criatura que reuniria feições humanas e carac-
terísticas de lobo. Um caso de Licantropia. E
ele afirmou jurando pela própria alma já ter
cruzado com a tal criatura.

Boa Fé, 2 de novembro de 1890

Dia de finados, de chorar os mortos. Data de


melancolia e luto. A noite na cidade estava
não somente triste, mas escura e silenciosa.
Um breu terrível e temível. Decidi investigar
a autenticidade das declarações do Coronel
Pedro Barata. Embora a fonte da declaração
me seja respeitável, a ideia ainda me parece
absurda, mas como escreveu um filosofo cris-
tão: eu creio porque é absurdo.

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Boa Fé, 7 dezembro de 1890

Comecei a interpelar outros habitantes, além


do Coronel Pedro Barata, sobre a história do
lobisomem e muitos me olharam com des-
confiança e indiferença, como se eu tivesse
cometendo um grande sacrilégio ao fazer tais
perguntas.

Tudo muito suspeito...

Boa Fé, 30 de dezembro 1890

Há três noites é provável que o lobisomem te-


nha atacado uma pobre moça do bordel pró-
ximo do Vilarejo, pois um homem normal não
seria capaz de tanta violência e maldade. O
corpo da jovem foi encontrado esquartejado
nas encostas do rio, com muitas escoriações e
arranhões e o óbito provavelmente deu-se por
asfixia. As pessoas ainda comentam o caso,
apesar disso a atmosfera de desconfiança com
relação a minha pessoa está desaparecendo,
e os habitantes de Boa Fé pouco a pouco es-
tão se acostumando com minha presença, de-
monstrando os primeiros sinais de amizade,
afinal, sempre precisam de um médico.

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Boa Fé, 12 de janeiro de 1891

Não tive mais noticias de ataques do lobiso-


mem, no entanto, a simplicidade e pobreza
dessa gente junto da paisagem seca e dramá-
tica do local me fazem crer que existe algo no
ar. Sinto constantemente a sensação de que o
mal habita por essas bandas.

Boa Fé, 18 de janeiro de 1891

Os caçadores do vilarejo capturaram hoje um


casal de raposas muito estranhas, seus olhos
eram diabólicos, de uma ferocidade inco-
mum. Pareciam lobos indomáveis. Tive medo
quando as vi. Os caçadores as executaram im-
piedosamente.

Boa Fé, 29 de janeiro de 1891

Terrível! Esta manhã foi encontrado o corpo


de um agricultor, dilacerado por garras e pre-
sas. Todos os habitantes logo atribuíram o in-
cidente ao lobisomem. Mas vasculhando o lo-
cal com os homens destemidos da vila não en-
contramos nenhuma pista que confirmasse tal
hipótese. Talvez seja obra de uma verdadeira

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fera. No entanto tem uma forte evidencia que
não posso negar: ontem era noite de lua cheia.

Boa fé, 15 de junho 1891

Há algum tempo, após uma série terrível de


matanças em noites de lua cheia, não tenho
mais dúvidas: o lobisomem existe. E é uma
criatura do mal. Agora estou preparado, aonde
vou é sempre munido de balas de prata.

Boa fé, 2 de julho de 1891

Dirijo todas as minhas suspeitas que o lobi-


somem seja um simplório agricultor vivendo
sozinho a umas cinco léguas do vilarejo, cha-
mado Lupanar Oliveira. Seu comportamento
é sempre muito suspeito. E ele se encaixa per-
feitamente no que diz a lenda: quando uma
mulher tem 7 filhas e, depois, um homem,
esse será um Lobisomem, eis o caso de Lupa-
nar Oliveira.

Boa Fé, 10 de julho de 1891

Mais uma vítima do lobisomem na noite de


ontem, dessa vez trata-se do rico fazendeiro
João Gonzaga, morto cruelmente no alpendre

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da casa-grande enquanto fumava cachimbo.
A cena é aterrorizante. Todos estão chocados.
Os trabalhadores da fazenda relataram-me
que ainda entraram em confronto com o bi-
cho, atiraram nele, mas sem sucesso. Três ca-
chorros se engalfinharam com a fera, e foram
bastante açoitados. Talvez não sobrevivam.
Vou por um fim a esses assassinatos. Na pró-
xima lua cheia vou matar o Lobisomem. Não
tenho mais dúvidas, pois são fortes as evidên-
cias que me levam a crer que o Lobisomem
trata-se mesmo de Lupanar Oliveira, excêntri-
co sujeito.

Boa Fé, 10 de agosto de 1891

Na noite de ontem, lua cheia resplandecendo


no céu, armei a espingarda com bala de prata,
montei no cavalo, fui até a casinha de Lupanar
Oliveira, me atrevi a olhar para dentro pela ja-
nela, estava deserta. Uma verdadeira bagunça
se encontrava no seu interior. Onde estaria
Lupanar Oliveira àquela hora? Ele era mesmo
o lobisomem e tinha partido para fazer mais
uma vítima? Voltei para o matagal próximo
da casa, esperei pacientemente o retorno do
monstro. Já estava adormecendo quando ouvi

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um grito estridente perto do meu esconderijo.
De repente um vulto, a proximidade e o luar
foram me permitindo perceber aquela criatu-
ra repleta de pêlos, um monstro terrível, um
Lobisomem.

Tremi dos pés a cabeça. Olhos vermelhos bri-


lhantes, correndo em minha direção. Dentes
longos, afiados. O demônio na minha frente.
Não sei como consegui fazer mira e disparar
a espingarda. Acertei o tiro no peito. O lobi-
somem uivava de dor. E a metamorfose len-
tamente se desfazia... Quase não acreditava
naquilo que meus olhos viam... A incrível fera
tornava-se homem outra vez.

Um homem morto.

Lupanar Oliveira estava morto bem ali no


chão, a minha frente.

Eu matei o lobisomem.

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O DESPERTAR DOS

CASSACOS

Adormeci. Tive um pesadelo terrível. Milhares


de mortos-vivos emergiam da barragem seca
do Vilarejo de Boa Fé. Eram os trabalhadores
cassacos vítimas de um acidente resultado da
inexperiência no uso de explosivos, que ser-
viam na época - 1950 - para a desobstrução de
alguns empecilhos durante a construção da
represa. E ali mesmo enterraram-lhe os restos,
que foram engolidos pelas águas.

Os mortos-vivos não eram filhos das trevas.

Eram filhos da luz.

Filhos do sol que rachou o chão.

Os vagantes emergiam, despertos e violentos.


Matavam, invadiam, e saqueavam a cidade
numa marcha de guerra aterrorizante, regi-
dos por uma ópera que me parecia de Richard
Wagner. Destruíram a igreja Matriz, a ponte
metálica, tomaram a prefeitura, os carros pi-

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pas, as ambulâncias, os comércios, as escolas.

A cidade era caos.

As autoridades inutilmente decretaram estado


de emergência.

Um pandemônio.

Enquanto isso os populares apavorados se


abarroavam em seus carros, ou a pé em cor-
rida tresloucada, no intuito de fugirem da-
queles seres monstruosos, endemoniados,
verdadeiros zumbis trôpegos e desejosos de
sangue.

Era o fim dos tempos.

O arrebatamento apocalíptico de todas as nos-


sas culpas.

Acordei às três da tarde.

Suava. Suava em bicas.

Não! Nunca mais leio Stephen King antes de


dormir!

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POSFÁCIO

A LITERATURA DE BRUNO PAULINO

Léo Prudêncio, poeta.

É bastante recorrente na Literatura Cearense


os autores utilizarem o conto para construir
seus artificies textuais. Me arrisco a dizer que
em nossa literatura, made in Ceará, há mais
contistas que poetas. E sobretudo excelentes
contistas. Veja lista de alguns mestres do con-
to cearense: Moreira Campos, José Alcides
Pinto, Dimas Carvalho, Pedro Salgueiro, Tér-
cia Montenegro, Natércia Campos... Alguns
desses autores citados até já se aventuraram
em outras searas literárias, mas o conto chega
a ser uma forma de se chegar a compreender
a safra-verbal de muitos desses autores.

Tenho acompanhado a literatura de Bruno


desde A menina da chuva que, por sinal, me
parece ser uma ótima porta de entrada para
a sua literatura cada vez mais extensa. Mas

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nem por isso o leitor deverá deixar de ler e re-
ler estes Pequenos assombros. O que fica ao
término desse livro é um gostinho de quero
ler mais e para isso existem os livros anterio-
res a esses contos de visagem que podem ser
lidos e apreciados por todas as idades. Essa
abertura que a obra de Bruno faz, lhe permite
atingir um vasto público não o restringindo a
leitores acadêmicos ou os que não têm tanta
informação teórica sobre a arte literária.

Percebo em seus escritos não apenas uma


manifestação literária, mas de uma afirmação
existencial do autor para a sua condição de ci-
dadão quixeramobiense e claro, cearense. Es-
sas confirmações se fazem pelo uso recorrente
do léxico nordestino-cearense. Bruno leva a
fala local aos seus escritos. Essa transposição
ao papel me lembra o trabalho de um pintor
preocupado em retratar a sua gente, claro que
Bruno é um pintor verbal e seus escritos con-
firmam a importância que o autor tem e dá à
sua região, o Sertão-central cearense.

O autor apresenta caracteres de um contador


de causos à moda antiga, como bem afirmam

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os contos O exterminador de lagartixas e Visa-
gem. O uso recorrente do narrador em primei-
ra-pessoa também é de uso dos cantadores,
dos repentistas e dos trovadores, preciso di-
zer que Bruno bebe dessa safra nordestina de
cordelistas encantadores do sertão?

Em um desses causos, apresentados nessas


visagens contísticas, Bruno foge do óbvio do
conto, que é narrar as estórias sem fazer uso
de outros gêneros, e recorre ao diário para
transcorrer a sua narrativa. Em outro recorre
a memória para falar de seu animal de estima-
ção. E mais outra vez, utiliza-se de recursos
fantásticos para criar estórias sobre o Vilarejo
de Boa Fé. Enlaça todos os contos no último
deixando no ar a possibilidade de que tudo
que lemos pode não ter passado de devaneios
noturnos do autor após ler Stephen King an-
tes de adormecer. Tudo é possibilidade de
aproximação do irreal pelos contadores de
causos do sertão.

Comprimir o texto sem esvaziar a sua quali-


dade e sem comprometer os aspectos verbais
é notório em alguns autores, e que Bruno já

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vem demonstrando desde sua primeira inter-
venção literária na crônica e que aqui se rea-
firmam nestes contos. Isso não quer dizer que
o conto deva ser um texto escrito exclusiva-
mente de poucas páginas, note bem: é que a
modernidade tem exigido isso dos artistas.

Além das atividades literárias, o autor de Qui-


xeramobim é pesquisador da história social,
política e artística de sua região. Essa pesquisa
resultou no belo Sertão: poetas e prosadores.
Arrisco-me a dizer que a tessitura verbal da
literatura produzida por Bruno possui como
fio condutor a memória que o autor carrega
em si sobre a região em que se situa e sobre os
livros que o contista admira.

A boa prosa contida nestes Pequenos assom-


bros cativa pela rigidez e boa coordenação de
enredo nas estórias aqui contidas. Bruno já
está deixando de ser uma promessa para ser
uma realidade nas letras do Ceará. Com qua-
tro livros publicados, o autor vem colecionan-
do elogios por parte de autores já consagrados
em nosso meio literário. Fisgo um comentário
oportuno de Nilto Maciel: “Não sei se são feitas

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de memórias as páginas de Bruno Paulino. Se não
são, serão de observações. (...) Pois Bruno sai em
passeio pelo passado, por gentes e bichos, terras e
águas...” esse comentário foi sobre a sua obra
de estreia, Lá nas Marinheiras e outras crô-
nicas, mas aproveito o ensejo e reafirmo esse
lado observador que o autor desses Pequenos
assombros tem. Eis um observador atento a
tudo o que lhe cerca e isso o faz contador de as-
sombros, estórias, crônicas, contos e visagens.

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Bruno Paulino, quixeramobinense graduado em Le-
tras/Português pela UECE- Universidade Estadual do
Ceará – e FECLESC - Faculdade de Educação, Ciências
e Letras do Sertão Central. Autor dos livros de crôni-
cas A Menina da Chuva; Lá nas Marinheiras. Escritor e
professor de Língua Portuguesa da Rede Pública de
Ensino. Bruno Paulino é uma das referências quando
se fala em Literatura no Sertão Central do Ceará. No
seu livro mais recente, Sertão: poetas e prosadores, traça
perfis literários de vários escritores ligados ao Sertão
Central, destacando, sobretudo, os residentes em Qui-
xeramobim e Quixadá. O livro A Menina da Chuva, em
2ª edição, foi adotado em colégios da rede particular
de ensino de várias cidades do Sertão Central (CVA,
CPEF, CACD, CNRS e SENSO). Bruno organizou tam-
bém a antologia Cordéis de Histórias e faz parte das ins-
tituições literárias AQL - Academia Quixadaense de
Letras - desde 2013, sendo o primeiro escritor nascido
em outra cidade a integrar o quadro de acadêmicos, e
AQUILETRAS - Academia Quixeramobinense de Le-
tras, Ciências e Artes - no que tem colaborado para a
promoção da literatura na região.

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