Artigo Patrimônio Documental MST - Livro UPF 2016
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experiência do Ceom/Unochapecó
na preservação, organização e
democratização de fontes para o ensino
e a pesquisa no Oeste de Santa Catarina
Introdução
E
ste artigo relata a experiência do Centro de Memória do Oeste
de Santa Catarina (Ceom/Unochapecó), nas atividades de pre-
servação, organização e difusão do acervo do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Destaca, da mesma
forma, a importância desse acervo como patrimônio documental e sua
contribuição para o ensino e a pesquisa na região Oeste catarinense.
O Ceom,1 criado em 1986 pela Fundação Universitária do Desen-
volvimento do Oeste, hoje mantenedora da Unochapecó, preserva e valo-
riza a história regional – reunindo, guardando e disponibilizando docu-
1
O Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina é um programa permanente de pesquisa e extensão
comunitária que se empenha, desde 1986, na defesa e valorização do patrimônio cultural da região
por meio de atividades permanentes. Entre as atividades, são cinco áreas de atuação mais efetivas: a)
centro de documentação e pesquisa, que desenvolve trabalhos de organização, preservação e disponi-
bilização documental; b) biblioteca de apoio, que disponibiliza bibliografias sobre o Oeste catarinense;
c) programa Patrimônio, Escola, Comunidade, que atua na constituição e/ou revitalização de museus
e construção de histórias locais e institucionais; d) divulgação científica e de cultura, que produz
publicações em torno de temáticas e objetivos do Ceom, a exemplo dos Cadernos do Ceom (revista
temática semestral) – Série Documento (publicação de documentos, obras de referências sobre o Oeste
catarinense e áreas de atuação), e materiais de divulgação do Ceom; e) Núcleo de Estudos Etnológicos
e Arqueológicos, responsável por pesquisa, guarda, preservação e extroversão de acervos arqueológi-
cos na região.
mentos nos mais variados suportes, para fins de pesquisa, uso em aulas temá-
ticas e apoio para exposições. Ao longo dos seus quase trinta anos de atuação, o
centro de memória tem priorizado a inclusão de sujeitos historicamente margi-
nalizados e a valorização de seus patrimônios culturais, por meio da adoção de
políticas de registro e salvaguarda de seus acervos.
Um desses acervos é o do MST,2 que, nos últimos anos, proporcionou expe-
riências significativas. Pesquisadores, alunos e professores têm buscado cada vez
mais conhecer a trajetória desse movimento e relacioná-lo a novas perspectivas
de construção do conhecimento histórico sobre a região Oeste.
As atividades realizadas no acervo em questão são oriundas de uma par-
ceria entre o Ceom e os movimentos sociais – Movimento dos Trabalhadores Ru-
rais Sem Terra e Movimento das Mulheres Camponesas – por meio do projeto
Preservação e Valorização do acervo do Ceom – Patrimônio Cultural do Oeste de
Santa Catarina: conhecimento, cidadania e inclusão social, com apoio financeiro
do Banco Nacional de Desenvolvimento Social.
O acervo do MST tornou-se importante vestígio da trajetória da luta pela
terra no Oeste de Santa Catarina, região conhecida nacionalmente pela expressi-
va atuação dos movimentos sociais. São fotografias, jornais, textos de formação,
vídeos, projetos, entre outros elementos, que remontam o cenário das primeiras
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ações do movimento, no início dos anos 1980 e também na década de 1990. O
MST, em seu contexto de constituição, expressou um enfrentamento ao cenário
econômico e social do fim da década de 1970 e início dos anos 1980 – período da
ditadura militar no Brasil, marcado por profundas mudanças no campo e tam-
bém na vida dos pequenos agricultores do Oeste catarinense.
Por sua relevância simbólica, riqueza de informações e representação da
história e memória de trabalhadores do campo, o acervo do MST é considerado
um patrimônio documental da região Oeste. Da mesma forma, por se tratar de
um movimento que, atualmente, tem atuação em todo o território brasileiro e
exerce grande representatividade na memória social das lutas populares, é tam-
bém entendido como parte do patrimônio histórico e cultural nacional.
2
Poli (2008) destaca que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é um movimento de tra-
balhadores do campo que lutam para conquistar a posse da terra, à qual nunca tiveram acesso ou
foram expropriados no processo de penetração das relações capitalistas de produção na agricultura.
É importante destacar a presença da Igreja, especialmente por intermédio da Comissão Pastoral da
Terra, como um elemento estimulador e aglutinador da organização em diferentes locais. Muitas des-
sas lutas ocorreram, sobretudo, na Região Sul do país, entre o final dos anos de 1970 e início da década
de 1980, cabe destacar que a região Oeste catarinense foi importante no surgimento e na estruturação
do movimento. As primeiras ações coletivas organizadas foram o acampamento Encruzilhada Na-
talino (RS), em 1981, e a ocupação da Fazenda Burro Branco, no município de Campo Erê (SC), em
1980. Ambas decisivas para impulsionar a organização do movimento no sul do país. Com o passar
dos anos, o movimento expandiu-se em todo o país, utilizando-se de estratégias como mobilizações,
acampamentos, ocupações, entre outras, como forma de pressão para conquistar a terra e implantar
um projeto popular para o Brasil.
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A guarda, a preservação e a difusão desse patrimônio tem proporcionado
a realização de pesquisas em diferentes campos do saber, contribuindo também
para a conscientização e o reconhecimento da memória coletiva, cumprindo, des-
sa maneira, seu papel social na sociedade.
3
Bellotto (2000) aborda o patrimônio documental enquanto conjunto de fundos arquivísticos custo-
diados pelos arquivos históricos. Em suma, o patrimônio documental constitui-se de documentos de
caráter permanente que, passada a sua função primária, adquirem valor cultural, social e educativo,
tanto para a instituição que os gerou como para a sociedade.
Le Goff também alerta que “O documento não é qualquer coisa que fica por
92 conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações
de forças que aí detinham o poder” (1990, p. 545).
Nessa ótica, também concordamos com Chagas, quando indica que:
[…] o patrimônio cultural se constitui a partir da atribuição de valores, funções e
significados aos elementos que o compõem. O reconhecimento de que o patrimônio
cultural não é um dado, mas uma construção que resulta de um processo de atribui-
ção de significados e sentidos, permite avançar em direção à sua dimensão política,
econômica e social; permite compreendê-lo como espaço de disputa e luta, como
campo discursivo sujeito aos mais diferentes usos e submetido aos mais diferentes
interesses (2005, p. 2).
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Entendemos que passado e presente não se desvinculam de um acervo. Se-
gundo Corsetti (2000, p. 54), o patrimônio cultural “[…] e as condições materiais
históricas em que esse patrimônio está inserido oferecem condições para que se
desenvolva uma postura de interesse pelo conhecimento do passado, na dimen-
são do entendimento do presente”. Dessa maneira, sabendo que os documentos
expressam as relações que os produziram em determinado contexto, eles preci-
sam ser equiparados com as demandas do presente, uma vez que é de se conside-
rar que “há relação entre o que passou, o que está passando e o que pode passar”
(RAMOS, 2004, p. 21). Tratando-se do acervo de um movimento que se origina
vinculado à questão da terra, problema que acompanha a história do país, é in-
dispensável lançar um olhar sobre esse acervo a partir do presente, de modo que
se possa estabelecer conexões com os problemas que tanto o Brasil como a região
Oeste experienciaram no passado e ainda convivem no presente.
Nas palavras de Ramos (2004, p. 21): “Conhecer o passado de modo crítico
significa, antes de tudo, viver o presente como mudança, como algo que não era,
que está sendo e que pode ser diferente”. Nesse sentido, no diálogo com as fontes,
é necessário relacionar os documentos com a problemática histórica que o cerca,
para que se possa, ao contrário de um trabalho meramente mecânico de coleta
de dados, construir uma relação entre passado e presente que contribua para a 93
produção de saber crítico frente às diferentes realidades vividas na região Oeste
catarinense.
Feitas essas considerações, salientamos a necessidade de compreender e
contextualizar os aspectos históricos que permeiam tal acervo, em que os docu-
mentos revelam a historicidade que os constituíram.
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A emergência desse movimento evidencia um conjunto de fatores pertinen-
tes ao estudo das relações sociais desse espaço e, tratando-se dos documentos
resultantes de suas ações, aqueles selecionados ao longo de sua trajetória, são
múltiplas as questões que permeiam o acervo para além de sua produção/consti-
tuição inicial.
Os documentos podem suscitar, em seu conjunto, diferentes observações
e análises sobre a constituição e atuação do MST no Oeste de Santa Catarina
bem como na participação do processo histórico dessa região. Em particular, para
aqueles que geraram os documentos e que por vários motivos os guardaram e
os elegeram como representantes da história, os documentos guardam imagens,
textos e histórias de indivíduos. São a memória e o testemunho da luta pela terra
empregada por uma parcela de agricultores sem-terra da região.
Os documentos representam assim duas fontes de resistência: uma por
meio da ação do movimento, lutando pela terra, e outra por meio da memória
construída na prática social, que luta contra outras memórias, que, historica-
mente silenciaram a luta de homens e mulheres dentro do processo de constitui-
ção e participação da região.
No interior desse acervo, podem-se observar vozes e discursos de diferentes
sujeitos, presentes em textos, panfletos, cartas, materiais de formação, entre ou- 95
tros. Ao contrário disso, é geralmente quando está “transgredindo” a “ordem” que
o movimento ganha visibilidade na imprensa, o que, por sua vez, contribui para
a construção de uma representação negativa sobre o movimento e suas formas
de atuação. Entretanto, mesmo sob essas condições, o próprio movimento cole-
cionou, ao longo de sua trajetória, as diferentes notícias que saíram na imprensa
sobre suas ações. A imprensa foi, e ainda é, um dos instrumentos utilizados para
chamar a atenção de determinados problemas e divulgar as suas pautas; “[…]
quando ocorre um motim, uma insurreição, um protesto público, pela primeira
vez a massa de despossuídos será ouvida não através da passividade dos núme-
ros silenciosos, e sim através dos gestos violentos e ruidosos” (BARROS, 2004,
p. 123). É principalmente quando o movimento e seus agentes deixam de ser
apenas dados do censo e ocupam lugares que para eles não estariam previstos
que eles começam a figurar como atores sociais para a mídia. Dessa forma, as
notícias sobre o MST, distantes de ser expressão da verdade, são importantes
fontes a serem problematizadas, questionadas.
Com a preservação e disponibilização desse acervo para acesso de profes-
sores, alunos e pesquisadores, o ganho está justamente na incorporação de novos
problemas à história da região. É no contato e na pesquisa com esse acervo que
uma série de questões pode ser observada em sua documentação: como é pos-
sível pensar em novos protagonistas na história regional? Quais são os novos
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ral ou programas de capacitação popular. Há, também, os documentos textuais
oriundos do desenvolvimento das atividades administrativas e funcionais do mo-
vimento.
Antes da parceria entre o Centro de Memória e os movimentos sociais, os
documentos do MST não estavam em condições que favoreciam a sua preserva-
ção, divulgação e tão pouco a pesquisa, pois estavam armazenados sem os cui-
dados necessários, carecendo de critérios técnicos que possibilitassem sua salva-
guarda, bem como havia falta de metodologias de organização.
Outro fator comum em lugares de guarda de documentos é a falta de espaço
adequado, o que influencia diretamente no estado de conservação. Em relação ao
acervo do MST, os documentos estavam expostos à poeira, à grande quantida-
de de grampos e clipes metálicos oxidáveis, fitas adesivas, colas ácidas, grande
quantidade de anotações a caneta nas fotografias, além de muitos documentos
apresentarem processo de degradação pela ação de traças, com manchas d’água
e rasgos pelo manuseio inadequado.
Com o objetivo de mudar esse quadro e garantir o acesso e o uso desse
acervo, o Ceom, por intermédio do Centro de Documentação e Pesquisa, iniciou
as atividades de curadoria,4 primeiramente, visando estagnar a degradação dos
documentos e, consequentemente, prolongar sua vida útil, posteriormente, para 97
garantir o acesso e a divulgação mediante a sua organização.
Higienização
Uma das primeiras ações foi a higienização de todo o acervo, independen-
temente de seus suportes. Camargo e Bellotto (1996, p. 42) definem a higieni-
zação como: “Retirada da poeira e outros resíduos estranhos aos documentos,
por meio de técnicas apropriadas com vistas à sua preservação”. Dessa forma, a
higienização constitui-se em uma das etapas mais importantes quando se trata
de documentos históricos, sendo indispensável no processo de preservação e con-
servação.
Para a realização do processo de higienização, foi necessário o trabalho de
seis alunos bolsistas: três que desempenharam as atividades relativas à docu-
mentação textual, dois para as atividades com as fotografias, e um para a limpe-
za e descrição das fitas VHS e K7. Em todas as atividades realizadas, a equipe
trabalhou devidamente protegida com máscaras, luvas e jalecos – equipamentos
de proteção individual.
4
Entende-se como curadoria o processo de higienização, organização, acondicionamento e guarda das
fontes documentais.
98
Organização
A organização dos documentos é uma etapa extremamente importante, pois
é a partir desse trabalho que se torna possível aos pesquisadores e à comunidade
em geral consultar de forma rápida e segura as fontes documentais. Essa etapa
iniciou com a identificação dos documentos com a aplicação de um formulário que
possibilitou extrair as informações relevantes que subsidiaram a elaboração do
arranjo documental.
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Figura 2 – Identificação de documentos
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Fonte: acervo Ceom/Unochapecó.
Guarda
Finalizada a pesquisa, a identificação e, consequentemente, o arranjo, os
documentos foram guardados com a finalidade de garantir a conservação. Os do-
cumentos em suporte papel foram envelopados em folhas A3 neutras, posterior-
mente armazenados em caixas poliondas e acomodados em estante deslizante,
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conforme ilustra a Figura 3.
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Para facilitar a identificação dos documentos, adotou-se a cor vermelha
para as caixas, com uma sequência numeral na parte externa para facilitar e
agilizar a busca. As fotografias foram acondicionadas individualmente em filme
poliéster cristal e guardadas em pastas suspensas na estante deslizante. As fitas
VHS e K7 foram guardadas em armários de madeira e os livros foram listados e
catalogados.
Com esse trabalho, todo o acervo do MST passou a estar disponível para
visita e pesquisa. Alunos, professores e pesquisadores, ao ter contato com esse
acervo, têm à sua disposição uma variedade de documentos que foram produzidos
e acumulados ao longo da trajetória do movimento na região Oeste catarinense.
Divulgação do acervo
A democratização das fontes é parte fundamental para a valorização de
um acervo histórico. Dessa forma, partilhamos da afirmativa de Chagas, que
defende que:
É pela comunicação que a condição de documento emerge. A comunicação é que tor- 101
na possível a emergência do novo. Em outros termos: o processo de comunicação é
base necessária para a produção de conhecimento original, a partir do bem cultural
preservado. De outro ângulo: o processo de investigação amplia as possibilidades de
comunicação do bem cultural e dá sentido à preservação (2005, p. 1).
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Disponível em: <http://ceom.unochapeco.edu.br/ceom/index>.
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Figura 5 – Página de pesquisa do banco de dados do Ceom/Unochapecó
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Referências
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polis: Vozes, 2004.
BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Patrimônio documental e ação educativa nos arquivos. Ciên-
cia e Letras, Porto Alegre, n. 27, p. 151-166, jan./jun. 2000.
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shtm>. Acesso em: 22 set. 2015.
CHAGAS, Mario. Cultura, patrimônio e memória. Revista Museu, Rio de Janeiro, maio 2005.
Disponível em: <http://revistamuseu.com/18demaio/artigos.asp?id=5986>. Acesso em: 13
mar. 2015.
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GONÇALVES, Janice. Como classificar e ordenar documentos de arquivo. São Paulo: Arquivo
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POLI, Odilon Luiz. Leituras em movimentos sociais. 2. ed. rev. Chapecó: Argos, 2008.
RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: o museu no ensino de história. Chapecó:
Argos, 2004.
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