A ESCADA - Jorge Andrade
A ESCADA - Jorge Andrade
A ESCADA - Jorge Andrade
Jorge Andrade
Ciclo Marta, a árvore e o relógio
Volume 07
Elizabeth R. Azevedo
As obras teatrais mais conhecidas de Jorge Andrade, e sem dúvida seu trabalho
mais importante, é o grupo de dez peças chamado de Marta, a Árvore e o Relógio.
Mais do que uma coletânea de melhores trabalhos, o conjunto forma um ciclo
incomparável na dramaturgia brasileira de todos os tempos. A noção de ciclo
incorpora para ele uma ligação visceral de personagens e trajetórias ao longo de mais
de quatrocentos anos de história do Brasil.
As pontas desse ciclo se unem quando se apresenta na última peça desse
verdadeiro decálogo interpretativo o personagem Fernão Dias, elemento
historicamente mais antigo do grupo de figuras, algumas históricas, outras nem
tanto, que povoam as dez obras. A vida e a saga do bandeirante antecedem em cerca
de cem anos aos personagens da primeira peça colocada no ciclo — As Confrarias.
No entanto, Fernão Dias é o coprotagonista do último drama da série, O Sumidouro.
Ao lado de Vicente, alter ego do autor que aparece em vários dos dramas, vê sua
“procura” incansável pelas minas de pedras preciosas repetir-se na busca existencial
do autor pelos segredos pessoais e históricos enterrados em personagens e situações.
O percurso como nos é apresentado pelo ciclo, vai assim do século XVIII com As
Confrarias (1ª peça) e o drama do esgotamento da riqueza das Minas Gerais,
avançando pelo XIX, com a Revolução Liberal de 1842, em Pedreira das Almas (2ª
peça), desce a serra em direção ao planalto paulista para iluminar a decadência dos
fazendeiros de café com A Moratória (3ª) na crise de 1929, seus sobreviventes em O
Telescópio (4ª), os eternos excluídos na Vereda da Salvação (5ª), avança sobre o
ambiente urbano de meados do XX com A Escada (6ª), Senhora na Boca do Lixo
(7ª) e Os Ossos do Barão (8ª). O tempo então se inverte, como o caminho que leva
um dos protagonistas da saga sobre seus próprios passos ao interior e à sua infância
em Rasto Atrás (9ª), para terminar com esse mesmo personagem em contato com o
personagem histórico, Fernão Dias, retornando o começo de tudo no século XVII em
O Sumidouro (10ª).
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Essas dez peças não foram escritas originalmente na ordem em que se apresentam
no ciclo Marta. Jorge as compôs e publicou ao longo de vinte anos de carreira, na
qual a perspectiva de estudo da história brasileira, e paulista sobretudo, permitiu que
depois de prontas elas pudessem ser rearranjadas como um grande painel histórico,
do ponto de vista temático e temporal, e uma grande obra épica em dez partes, como
desejava seu autor.
Para reforçar o fio condutor épico do ciclo, Jorge Andrade elegeu a figura de
Marta como uma espécie de força vital, mais ou menos presente e encarnada
dependendo do enredo, sempre se relacionando com os acontecimentos vistos no
palco. Contudo, nem sempre ela é um personagem. Por vezes, é apenas uma menção,
como em A Moratória, na qual é citada como a mulher que ensina Lucília a costurar
e ser capaz de sustentar sua família depois da derrocada econômica, ou em A Escada,
onde é a figura da vizinha misteriosa que Vicente gostaria tanto de conhecer e
escrever a respeito a ponto de invadir secretamente sua casa e espreitar suas coisas.
Como personagem, Marta assume o protagonismo em As Confrarias, uma das
últimas peças escritas para o ciclo, mas que, no entanto, o abre justamente com essa
figura. Sua relação com os demais personagens das peças e dos enredos pode
esclarecer inúmeros aspectos dos dramas andradianos.
O mais curioso é que a primeira vez que Marta aparece é em As Colunas do
Templo (ou O Faqueiro de Prata), um dos primeiros textos de Andrade e que não faz
parte do ciclo. Nessa peça, Marta, esposa do protagonista, é apenas uma referência,
que fala pelo telefone com o marido, mas de quem não se ouve a voz. Mesmo assim,
pode-se imaginar a figura de uma mulher forte e determinada, que cobra do marido
uma postura mais realista em relação à vida.
Outros símbolos despontam repetidamente nos dramas do ciclo como Marta. A
árvore traveste-se de múltiplas formas, às vezes como floresta onde os homens se
perdem ou sofrem, como O Sumidouro e Vereda da Salvação, às vezes como refúgio,
como a árvore onde Vicente se esconde ou aquela contra a qual José João (seu pai) se
recosta para morrer em Rasto Atrás. O relógio, remetendo ao tempo que anda e para,
dependendo do transcurso do tempo histórico e do desenvolvimento interno dos
personagens, é outra vertente do simbolismo andradiano.
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Embora Marta, a árvore e o relógio sejam símbolos recorrentes e escolhidos
especificamente pelo autor, muitos outros estão presentes na obra, como a flauta, a
“lua quebrada”, os sons, os cadáveres insepultos, dando consistência à dimensão
poética de seu universo.
Ao lado das obras que compõem o ciclo Marta, Jorge escreveu outros textos,
alguns inéditos até agora. Neles, não se encontra uma linha histórica tão claramente
trabalhada, mas ainda identificam-se as mesmas preocupações e posturas de um
autor comprometido com a liberdade, com a luta contra a injustiça, com a
identificação do peso sufocante do passado sobre os personagens, com a esperança no
futuro. Alguns títulos têm caráter nitidamente político, contradizendo as acusações
de “oligarca” ou “elitista” feitas injustamente ao autor. Nesse grupo destacam-se O
Incêndio (de 1962), sobre um assassinato político travestido de linchamento popular,
e Milagre na Cela (de 1981), que denuncia a tortura no período da ditadura militar.
Outros dramas, mais curtos, revelam as mazelas e injustiças da sociedade
brasileira, como A Receita (de 1968), sobre as macabras condições de saúde e de
vida da população rural, ou a poética, mas não menos contundente O Mundo
Composto (de 1972).
No âmbito mais familiar e restrito, encontram-se os trabalhos, escritos em épocas
distintas, como As Colunas do Templo (1951), composta quando o autor ainda
estudava na EAD, que apresenta um grupo de bancários (como chegou a ser o próprio
autor durante certo tempo) e seus dilemas diante da falta de reconhecimento no
trabalho e das expectativas em relação à história familiar. Vale ainda mencionar
pequenos textos inéditos, como o fragmento Sesmaria do Rosário além de A Loba e
A Zebra (ambas de 1978), que recebem novas roupagens para antigas questões que
perpassam toda a obra andradiana.
Jorge Andrade escreveu ainda trabalhos em parceria. Com Lauro César Muniz e
Consuelo de Castro compôs e viu encenada Corrente prá Frente (de 1981), na qual se
incumbiu de um dos três atos (elos) que compõem a peça que trata sobre o poder
econômico estrangeiro pesando sobre os diversos estratos sociais ligados à indústria
nacional e os consequentes dramas familiares e amorosos que a situação causa.
Trabalhos em coautoria, até hoje inéditos, foram recuperados especialmente para
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esta edição, como aquele com Clô Prado, Os Vínculos, e um outro que desvenda uma
faceta um pouco mais leve e jocosa de Jorge, no trabalho com Antonio Abujamra, em
Lady Chaterley em Botucatu.
Carlos Rahal
Em suas três peças urbanas, ambientadas nos anos 1950/1960, Jorge Andrade
apresenta duas “novidades”: elementos cômicos (ou tragicômicos) e “atores” que não
se movem, isto é, os imóveis onde a ação ocorre. Aqui, o humor é menos engraçado
do que amargo (exceto, talvez, o de Os Ossos do Barão). É fácil rir do apego de
Antenor (A Escada) ao passado, de suas bravatas e preconceitos; mas é terrível
examinar o abalo moral que essas atitudes causam a ele mesmo e à sua família. O
mesmo se dá com Noêmia, em Senhora na Boca do Lixo: ela não percebe que o
mundo em que vivia já desapareceu e, assim, permanece em seus devaneios mesmo
detida em uma delegacia. Quanto ao imóvel no qual a ação d’A Escada transcorre,
Jorge Andrade lhe reserva papel preponderante. O prédio onde moram os filhos de
Antenor e Amélia (Melica) — e o próprio casal — confina a família inteira no
passado. O décor proposto na rubrica contribui decisivamente para esse
aprisionamento. A ação acontece num prédio do começo do século XX. Veem-se
quatro apartamentos, em dois planos, ligados por uma escada. No centro do plano
inferior, há também o hall e o corredor de entrada. Entre o térreo e o primeiro andar,
um patamar. A posição e a decoração de cada apartamento indicam a atitude dos
moradores frente à vida e à sua situação. Os apartamentos do primeiro plano,
próximos à rua, são ocupados por Maria Clara e por Vicente. São os irmãos que
tentam, com mais denodo, livrar-se do passado aristocrático, por meio do trabalho.
Maria Clara não tem marido e sobrevive costurando com a filha mais velha, Lourdes
(a mais nova, Zilda, tem emprego público). Vicente é dramaturgo e jornalista (alter
ego de Jorge Andrade); sua mulher, Izabel, está no final da gravidez do primeiro
filho. A decoração desses dois apartamentos revela o caráter prático de seus
ocupantes e os instrumentos de trabalho destacam-se nos ambientes. E o resultado do
trabalho — quadrinhos bordados à mão, papéis, livros — completa o cenário.
Já os apartamentos do andar de cima são ocupados por Francisco e Helena Fausta,
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o filho mais velho e a filha mais nova de Antenor. Francisco não se desvencilha do
passado. Trata os velhos com carinho e condescendência, até quando Antenor
“apronta”. Sua sala é atravancada de objetos, o que dificulta a movimentação e, claro,
a saída para a rua (a realidade). O passado está também nas paredes, cobertas por
retratos de cidades antigas e flâmulas de universidades. Helena Fausta não é tão
conservadora, mas submete-se ao marido Sérgio, um flâneur: cinema, jantares,
visitas e festas são sua rotina. A contragosto, Helena acompanha o marido. A sala
está arrumada como living e há, em uma parede, um cartaz onde se lê “Recife —
Veneza brasileira” (Sérgio é pernambucano).
Antenor e Amélia moram nos quatro apartamentos; ficam um mês em cada, num
sistema de rodízio. A rigor, são os mais pobres da família, dependentes dos filhos.
Mas a soberba e as reminiscências do passado faustoso não lhes permitem perceber a
penúria em que vivem. Antenor parece esclerosado ao repetir sempre as mesmas
coisas, mas o que de fato faz é agarrar-se ao mundo perdido.
O cenário proposto por Jorge Andrade cria duas “fatias” do espaço-tempo: uma
ocupada pelo casal de velhos e outra pelos seus filhos — ainda que Francisco, o mais
velho, transite pelas duas fatias. Quando, por exemplo, Antenor dirige-se ao zelador
do prédio, Juca, dizendo-lhe que foi “camarista, amigo, primo, sobrinho, neto de
barão”, ele o faz na escada, espaço onírico em que o casal de velhos dá vazão aos
seus sonhos, recordações e esperanças. A escada é uma espécie de “túnel do tempo”
para eles; nela, o tempo se dilata, proporcionando uma fuga da realidade e do destino
que os aguarda — uma casa de repouso. Jorge Andrade consegue expandir
fisicamente esse “tempo de Antenor e Amélia”, de modo a provocar um efeito de
estranhamento na peça.
Vez por outra, Antenor e Amélia desapareceram na curva da escada. Quando
ressurgem, em outro patamar, várias cenas aconteceram. A demora para subir um
único lance de degraus, mesmo para idosos, é anormal. Pode-se imaginar que os dois
pararam e ficaram conversando na escada. Todavia, o significado do atraso é outro: o
tempo do casal escorre de maneira desigual. Na presença dos filhos, a passagem dos
minutos coincide com os ponteiros do relógio. Quando sozinhos na escada, seu
tempo se dilata o suficiente para que toda uma vida possa ser revivida. Um
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espectador diria que os velhos, ao mudar-se de um apartamento para o outro, fazem
uma visitinha ao passado e voltam ao presente.
Em oposição a esse mergulho no passado, os filhos mais “práticos” do casal se
viram como podem, mas continuam ancorados ao passado dos pais. O dramaturgo e
jornalista Vicente é o personagem que melhor retrata esta situação. Observem-se, por
exemplo, trechos de um diálogo entre ele e Izabel:
Aqui, vemos não apenas uma série de referências a outras peças do ciclo Marta, a
Árvore e o Relógio, como também verificamos a superposição de passado, presente e,
agora, futuro (“Mas nós estamos começando, Vicente”). Em outras palavras, o
passado se revela vivo (“um monstro”) e agindo sobre o presente (“Ele [o passado]
não está contido no presente de todo mundo?”).
Jorge Andrade encadeou nesta cena o último diálogo entre Antenor e Amélia, na
escada. A cena decreta o fim de uma era de ouro: a demanda de Antenor está
definitivamente enterrada sob casas, lojas e fábricas do Brás e suas opiniões
conservadoras e preconceituosas, bem como suas recordações, desaparecerão do
cotidiano dos moradores do prédio. O angustiante diálogo de trinta e duas falas
encerra-se assim:
(...)
Antenor: (Evocação carinhosa) Um dos túmulos mais bonitos que conheço é o
de primo Alexandre. Um fuzil, um capacete, a bandeira paulista e a estátua
de uma mulher apontando: “Veio do chão paulista, por ele tombou e para
ele voltou!”
Amélia: (Ranzinza) Prefiro o do barão de Jaraguá.
Antenor: Ora, Melica!
Amélia: Lembra a capela da fazenda de meu avô. As grinaldas de pedra unindo
as gavetas; os anjos debruçados sobre elas como se fossem abrir; os nomes,
as datas, as inscrições...! É um verdadeiro livro de história, Antenor.
Antenor: (Irritado) Gosto de túmulo em cemitério, onde a gente pode visitar.
Não na casa de um italianinho qualquer.
Amélia: (Pensativa) Nunca descobri quem é a mulher que aponta o chão. Tem
um olhar tão estranho!
Antenor: (Pausa. Perdido) É muito difícil morrer.
Amélia: Podia ser tão mais rápido!
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Antenor: Tenho a impressão de ter passado a vida morrendo.
Amélia: Claro, Antenor. Todo mundo morre aos poucos.
As evocações dos velhos são as de uma geração. Mais uma vez, Jorge Andrade
recorre à linguagem cinematográfica para contar o passado da elite paulistana, em
belas imagens. O recurso é épico, com resultado dramático: à medida que se dá o
diálogo e surgem lembranças mais e mais emocionantes, os velhos ensimesmam-se.
E, a um ponto da conversa, Antenor e Amélia parecem falar cada um o seu
monólogo, desconectado da fala do outro, à maneira como Tchekhov escreveu As
Três Irmãs. Pode-se até afirmar que, neste trecho, os três gêneros — épico,
dramático e lírico — estão presentes. Os filhos observando os pais na escada
representam a geração espectadora da derrocada da sua predecessora.
Jorge Andrade reserva uma ação de grande valor simbólico para o final da peça.
Os idosos já estão indo para o asilo e chega Ricardo, filho de Francisco e Noêmia.
Eis a rubrica:
Por que Antenor tira o relógio? Porque encerrou-se o seu tempo: o mundo
exterior, para o qual ele se dirige, não é mais o seu. A escada, o túnel do tempo onde
ele e sua mulher revivem o passado feliz, não estará mais ao seu alcance. É o fim.
Em tom de despedida do seu mundo, e para marcar a diferença entre os tempos idos e
os atuais — o testemunho de uma época —, Antenor diz:
Antenor: (Anda e para) Você passava pela rua e ouvia: Senhor Conde! Senhor
Conde! Senhor Conde!
ANTENOR
AMÉLIA
MARIA CLARA – filha de Antenor
ZILDA – filha de Maria Clara
LOURDES – filha de Maria Clara
FRANCISCO – filho de Antenor
NOÊMIA – mulher de Francisco
RICARDO – filho de Francisco
HELENA FAUSTA – filha de Antenor
SÉRGIO – marido de Helena Fausta
VICENTE – filho de Antenor
IZABEL – mulher de Vicente
OMAR
JUCA
MARLENE
INDUSTRIAL
VENDEIRO
OFICIAL DE JUSTIÇA
ZILDA: (Levanta-se e grita para dentro do apartamento) Até logo, vovô! Um beijo,
vozinha!
Zilda sai para o hall. Omar encontra-se com Juca no patamar da escada.
Saem.
APARTAMENTO 3
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NOÊMIA: Ricardo! Ricardo! Já está pronto?
RICARDO: (Voz) Agora mesmo, mamãe.
NOÊMIA: Depressa, meu filho!
RICARDO: (Voz) Não sei me arrumar a jato.
NOÊMIA: Está na hora. Assim você perde a primeira aula.
RICARDO: (Entra, acabando de se vestir) E não vou perder grande coisa. Aquele
professor de latim é chato e burro.
NOÊMIA: Não sei pra que estudar latim. Não vejo ninguém falando latim!
RICARDO: Eu também não vejo ninguém fazendo uma porção de coisas que somos
obrigados a estudar. (Senta-se à mesa) Velho gagá.
NOÊMIA: Olhe aqui o leite. Coma bastante pão.
RICARDO: Papai volta hoje?
NOÊMIA: Volta. Estudou bastante raiz quadrada?
RICARDO: Estudei. Deve ser bárbaro viajar de avião a jato.
NOÊMIA: Não encha tanto a boca, meu filho!
RICARDO: A senhora está me apressando.
NOÊMIA: Mas, também, não precisa pôr a metade do pão na boca.
RICARDO: Estou atrasado.
NOÊMIA: Leva a vida toda pra sair do quarto.
RICARDO: (Meio irritado) Estava separando minhas coisas.
NOÊMIA: Arrumou tudo?
RICARDO: Arrumei. Pôr no lugar, depois, é que vai ser.
NOÊMIA: Não fique assim.
RICARDO: Assim, como?
NOÊMIA: Assim... jururu.
RICARDO: Mas que é chato, é.
NOÊMIA: Nem faça essa cara perto de seu pai.
Noêmia começa a tirar a mesa. Antenor e Amélia saem do quarto carregando valises.
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Já são velhos, com a cabeça bastante grisalha. Apesar disso ainda estão firmes e se
vestem com muita ordem. Revelam, em seus modos e na maneira de se vestir, restos
de elegância e de educação antiga. Os dois são magros, sendo que Amélia é
ligeiramente mais alta. Andam com certa dificuldade, mas ainda não estão trôpegos.
Antenor carrega uma bengala, que usa mais por costume. Olham a sala e ficam sem
saber o que fazer. No apartamento 3, Noêmia esvazia o quarto do filho, arrumando
algumas coisas na sala e levando o resto para dentro do apartamento.
APARTAMENTO 1
Maria Clara segura a cesta com decisão e sai. Lourdes senta-se e começa a tricotar.
NA ESCADA
APARTAMENTO 1
APARTAMENTO 2
IZABEL: Vicente! Vicente! Você pediu pra chamar cedo. A reportagem no aeroporto.
VICENTE: (Voz) Está pronto o café?
IZABEL: Estou esperando você.
VICENTE: (Voz) Pode coar. Saio agora mesmo.
IZABEL: Já sei o que é esse agora mesmo.
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VICENTE: (Aparece de pijama) É agora, mesmo. Um beijo!
IZABEL: Assim, você perde a chegada do avião.
VICENTE: Não troco um beijo seu, nem pela chegada de um sputnik. (Beija Izabel)
IZABEL: Depressa, Vicente.
VICENTE: Calma, calma, minha pombinha. Você não pode se afligir.
IZABEL: Ora, deixe de bobagem.
VICENTE: Que braveza. (Saem)
APARTAMENTO 1
APARTAMENTO 2
Ao mesmo tempo que Vicente sai correndo, Antenor e Amélia surgem no segundo
patamar. Param, tomando fôlego. Izabel senta-se e continua o tricô. Marlene passa
no living do apartamento 4, com uma bandeja enorme, e entra no quarto.
NA ESCADA
APARTAMENTO 3
NOÊMIA: (Abrindo a porta) Bom dia, dona Amélia. Como vai, seu Antenor?
ANTENOR: Vamos bem. Vamos bem.
AMÉLIA: (Examina a sala) Que desordem!
NOÊMIA: Ainda não acabei de arrumar.
ANTENOR: Francisco não está?
NOÊMIA: Está viajando.
ANTENOR: Não digo, Melica? O povo de hoje não para.
NOÊMIA: Por que não avisaram que vinham tão cedo? Teria ido buscá-los.
AMÉLIA: Pra quê, minha filha? Vamos, Antenor?
ANTENOR: Estou esperando você.
NOÊMIA: Não querem ficar aqui enquanto acabo de arrumar?
ANTENOR: Não.
AMÉLIA: (Seca) Eu arrumo.
NOÊMIA: Não! Isto não! Não vou deixar a senhora arrumar as camas.
ANTENOR: (Saindo) Grande coisa.
AMÉLIA: Arrumei cama a vida inteira... e muito bem.
Antenor e Amélia entram no quarto e batem a porta. Noêmia fica parada diante da
APARTAMENTO 4
APARTAMENTO 3
NA ESCADA
ZILDA: Omar!
OMAR: É melhor assim, Zilda.
ZILDA: Que culpa tenho eu?
OMAR: Nenhuma, mas não dá certo.
ZILDA: Omar. Você ficou ofendido, e com toda razão. Mas, nós já íamos casar... não
deixe que isto destrua tudo.
OMAR: É melhor a gente se separar.
ZILDA: Mas, eu não faço questão dessas coisas.
OMAR: Não sei, não.
ZILDA: Omar! Escute!
OMAR: Você não vê que assim vamos ser infelizes?
ZILDA: Vou viver onde você quiser.
OMAR: É muito fácil de falar.
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ZILDA: Você me conhece... sabe que não tenho preconceitos.
OMAR: Mas sua família tem... e é melhor que você fique com ela.
ZILDA: Omar! Minha mãe não pensa assim. (Omar sobe correndo a escada) Escute,
Omar...!
APARTAMENTO 1
Zilda entra no quarto, acompanhada por Maria Clara. Lourdes domina-se, levanta a
cabeça e começa a trabalhar rapidamente. Sérgio sai do quarto, muito bem vestido.
APARTAMENTO 4
APARTAMENTO 3
FRANCISCO: (Sorri) Pelo menos hoje posso ler um jornal em ordem. Papai faz
tamanha mixórdia.
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NOÊMIA: O banho já está pronto.
FRANCISCO: A firma fez nova proposta.
NOÊMIA: Aumentou?
FRANCISCO: Dobra o ordenado se formos pra Brasília. Que é que você acha?
NOÊMIA: Você é quem resolve.
FRANCISCO: Dão casa, levam a mudança e fornecem as passagens. Que tal?
NOÊMIA: E Ricardo?
FRANCISCO: Pode estudar lá.
NOÊMIA: Não sei. E seus pais?
FRANCISCO: Bom! Assunto encerrado.
NOÊMIA: Se você quiser, Francisco, podemos encontrar uma solução. Por mim
estou disposta.
FRANCISCO: Mas, que solução, minha velha?
NOÊMIA: (Com certo esforço) Seus pais não vão para o Instituto?
FRANCISCO: Claro que não!
NOÊMIA: Não seria melhor para todos, Francisco?
FRANCISCO: Você sabe o que penso a respeito disto.
NOÊMIA: Há tanto tempo que espera uma posição melhor na firma, Francisco.
FRANCISCO: Mas, por causa disto não vou internar meus pais.
NOÊMIA: Como achar melhor.
FRANCISCO: Depois... nunca pensei realmente em ir. Não compensaria, minha
velha. Aquilo está infestado de aproveitadores, gentinha louca pra ficar rica da
noite para o dia. Se visse o tipo de gente que se encontra por lá!
NOÊMIA: Mas há gente boa também... e é uma ótima oportunidade.
FRANCISCO: Tem-se a impressão de que nesta terra não há mais gente distinta.
NOÊMIA: Venha tomar seu banho.
APARTAMENTO 1
LOURDES: Mamãe! Quer atender pra mim? Não posso largar as malhas.
INDUSTRIAL: Bom dia, minha senhora.
MARIA CLARA: Bom dia.
INDUSTRIAL: É aqui que mora o senhor Antenor?
MARIA CLARA: Sou filha dele.
INDUSTRIAL: Ele está?
MARIA CLARA: Não, senhor.
INDUSTRIAL: Ele me deu este endereço.
MARIA CLARA: Papai costuma passar temporadas comigo. Atualmente está em
casa de meu irmão. O senhor deseja alguma coisa?
INDUSTRIAL: Fiquei de passar por aqui e pegar seu pai. Seu irmão mora longe?
MARIA CIARA: Neste mesmo prédio.
INDUSTRIAL: Pode me indicar o apartamento?
MARIA CLARA: O senhor ficou de pegar papai pra quê?
INDUSTRIAL: Vamos ver os terrenos que estão à venda.
NO HALL
Maria Clara caminha para a escada, para e fica olhando na direção do apartamento de
Francisco.
APARTAMENTO 3
CENA: Ao abrir-se o pano, Vicente está sentado, corrigindo o que escreveu. Vicente
trabalha, acompanhando Izabel com os olhos, cada vez que esta passa pela sala,
carregando brinquedos e roupas do futuro filho. Lourdes continua tricotando.
Ricardo, sentado à mesa, brinca com um lápis, perdido em seus pensamentos.
Sérgio aparece, já vestido, acompanhado por Helena Fausta.
APARTAMENTO 4
HELENA: Já vai?
SÉRGIO: Já.
HELENA: Por que não espera o almoço?
SÉRGIO: Não! Tenha paciência! Já estou cansado de ouvir as mesmas conversas.
HELENA: Você ficou fora de casa mais de dez dias.
SÉRGIO: A serviço da firma, você sabe muito bem. Não disse a você que o
cachorrinho ia fazer desordem? Olhe só! Não se pode mais sentar nesta cadeira.
Como posso trazer amigos para jantar?
HELENA: Hoje, a Soraia vai para o quarto.
SÉRGIO: Já devia ter ido.
HELENA: Papai não podia nem vê-la.
SÉRGIO: Pelo menos nisto, seu pai e eu combinamos. Ainda estão no quarto?
HELENA: Estão.
SÉRGIO: Todo mundo me deu notícia de seu pai na cidade. Vocês não deviam deixá-
lo sair tanto.
HELENA: Papai foge! Quando a gente vê, já sumiu. Também, coitado, viver preso
num apartamento! Pior do que prender uma criança.
SÉRGIO: Muito pior é ficar solto na cidade com sua mania de negócio.
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HELENA: Que fique pelo menos com esta ilusão.
SÉRGIO: Sabe que esteve muitas vezes na firma?
HELENA: Quando?
SÉRGIO: Nos dias em que viajei.
HELENA: Foi fazer o quê?
SÉRGIO: Conversar! Simplesmente, conversar! Perguntou sobre a ascendência de
Deus e todo mundo. Num lugar onde trabalham descendentes de sírios, italianos,
alemães, gaúchos e nortistas... você deve calcular o resultado.
HELENA: É tão fácil compreender papai!
SÉRGIO: Para vocês. Acharam muita graça! E acabaram me apelidando de príncipe
consorte! Que eu ouça, durante dez anos, as mesmas perguntas, aqui dentro de
casa, vá lá. Mas ir ao meu trabalho e me ridicularizar, é o que não vou permitir.
HELENA: É um velho! Será que ninguém compreende, meu Deus!
SÉRGIO: Isto enche.
HELENA: Você é grosseiro.
SÉRGIO: Comecei do nada! Subi com muito esforço. Não vou admitir que essa
mania besta de nobreza destrua tudo. Sou Albuquerque e Bragança, de
Pernambuco, é verdade, mas não sou parente do Imperador e não sei e nem me
interessa saber se meu tataravô tomou parte na Batalha de Guararapes! Estou
farto de repetir.
HELENA: (Cansada) Está bem, Sérgio.
SÉRGIO: No jornal eu nem falo, porque deve estar tudo de cabeça pra baixo. O mês
que seu pai passa aqui, fico na mais completa ignorância. Não consigo pegar o
jornal e quando pego é aquela mixórdia. Tenho a impressão de que ele fica
espreitando o jornaleiro na escada.
HELENA: Você sai todos os dias, Sérgio. Pode ler na cidade.
SÉRGIO: Assino o jornal pra quê?
APARTAMENTO 1
NO HALL
Maria Clara entra no apartamento, pega a bolsa, procura o dinheiro, conta, verifica
que não dá e volta. Sérgio aparece em seu living, olha para Helena e sai, ainda
irritado. Izabel, abraçada a um burrinho de feltro, passa em seu apartamento; Vicente
olha para ela com angústia.
NA ESCADA
APARTAMENTO 3
NOÊMIA: Ricardo! (Sacode Ricardo) Ricardo! Mas, será possível que você esteja
dormindo?
RICARDO: Ahnnnn... Eu estudei... estudei... Um soninho, mamãe.
NOÊMIA: Estudou, lendo estas revistinhas! Será que preciso ficar vigiando você,
meu filho?
RICARDO: Puxa, mamãe. Mas, que marcação! (Sai)
NOÊMIA: (Saindo também) Estudar é sua única obrigação, Ricardo.
APARTAMENTO 4
Maria Clara entra em seu apartamento. Francisco, preocupado, fica olhando Maria
Clara. Depois volta-se e sobe a escada. Por um momento, Maria Clara observa
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Lourdes.
APARTAMENTO 1
APARTAMENTO 3
Antenor e Amélia entram no living de Helena Fausta. Estão com as mesmas valises
do primeiro ato.
APARTAMENTO 4
HELENA: Já vão?
AMÉLIA: Já, minha filha. Deus te abençoe.
ANTENOR: Vamos, Melica. Você está sempre atrasada! (Volta-se para Helena) Onde
vai?
HELENA: Acompanhar.
NA ESCADA
AMÉLIA: Sobre a empregada e a cachorrinha você tinha razão, Antenor. Mas não
precisava falar!
ANTENOR: Se a gente não falar, minha velha, não aprendem nunca. Trouxe o jornal?
AMÉLIA: (Riem) Está aqui.
ANTENOR: Não queria sair antes do marido dela. (Ri) Precisava trazer o jornal.
AMÉLIA: Era só falar, Antenor!
ANTENOR: Falar pra quê? O jornal traz um artigo grande sobre o Regente Feijó.
Este, sim, foi um homem. Levantou a Província inteira! Também foi o mais
traído! Teve pela frente um verdadeiro homem: o Duque de Caxias! Não era
paulista, mas era um bom homem. (Volta-se) Que é que está esperando, Melica?
AMÉLIA: Já reparou, Antenor, que brasileiro não fica mais padre?
ANTENOR: Por que isso agora?
AMÉLIA: Você falou no Padre Feijó e eu me lembrei. Antigamente, todas as famílias
tinham um padre. Lembro-me do Padre Bento: era um santo!
ANTENOR: Mais santo do que santo italiano.
AMÉLIA: Era primo-irmão de minha avó.
APARTAMENTO 2
VICENTE: Por favor, Izabel, não faça essa cara! Assim não consigo trabalhar. Que
posso fazer?
IZABEL: Não estou pedindo pra fazer nada.
VICENTE: Não está pedindo, mas passa por aqui como alma penada, carregando
esses bichos como se os levasse para o matadouro.
IZABEL: Para o matadouro foram os meus projetos.
VICENTE: (Levanta-se, num ímpeto) Diga, Izabel: posso fazer alguma coisa?
IZABEL: E eu, não posso sentir? Não tenho o direito de arrumar o quarto de meu
filho? Arrumar como queria?
VICENTE: Será possível!
IZABEL: Meu filho também é importante.
VICENTE: Será apenas por um mês, Izabel!
IZABEL: Será sempre assim!
VICENTE: Pois que seja. O que é que você quer? Que feche a porta a meus pais?
Não combinamos ficar com os velhos, um mês cada um?
IZABEL: Não estou reclamando isto, Vicente!
VICENTE: Sua expressão vale por um milhão de reclamações.
IZABEL: Queria que tudo para o meu filho fosse o mais bonito. Você não
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compreende que essas arrumações completam tudo?
VICENTE: Compreendo, sim. Mas também compreendo que meus pais estão velhos
e que precisam de mim. Terei muito tempo para dar ao meu filho um bruta
quarto. E tenho muito pouco tempo para dar a meus pais um quartinho como
este. E você? Compreende isto?
IZABEL: (Chorando) Vicente. Não brigue comigo.
VICENTE: Eu também não gosto de ver você desarrumar o quarto, mas que posso
fazer. (Controla-se) Desculpe, Izabel. (Acaricia o rosto de Izabel) Eu ainda
darei a você uma casa com um quarto para cada filho.
IZABEL: Não pretendo morar em hotel.
VICENTE: Então, dois em cada quarto. Está bem assim? Não faça caso de minhas
grosserias. Estou preocupado com o meu trabalho. É só isto.
IZABEL: A culpada sou eu.
VICENTE: Você tem todo direito de reclamar.
IZABEL: Preciso ajudar, não atrapalhar.
VICENTE: (Pausa) Izabel! Você acha que aquilo daria certo?
IZABEL: O quê, Vicente?
VICENTE: (Com esforço) O tal instituto.
IZABEL: Vejo dizer que muita gente... Não sei, Vicente. Francamente, não sei.
VICENTE: (Irritado) Se pelo menos esses malditos apartamentos tivessem mais um
quarto!
IZABEL: É tão bonito nosso apartamento!
VICENTE: Mas não precisava ser tão pequeno.
IZABEL: (Abraça Vicente) Fui egoísta, meu bem. Ele dá perfeitamente pra nós todos.
VICENTE: Acha, mesmo?
IZABEL: Claro. Não pense mais nisto. Trabalhe. Tudo se ajeita.
VICENTE: (Pausa) Gosto dos velhos. Fico satisfeito quando sei que estão aqui. É
como se fossem a presença de um mundo que estivesse preso em minhas mãos.
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Um mundo diferente que só nós possuímos. Ficam lá dentro, trancados... só se
ouve um murmúrio... e tenho sempre a impressão de que, abrindo esta porta,
encontro resposta pra tanta coisa que me atormenta... e que não sei o que é. Se
papai não se agarrasse tanto a um mundo que não é nem dele, mas do avô! É
uma presença limpa como uma boa recordação, e no entanto... (Animando-se)
Sabe, Izabel? Gostaria de abrir portas, ver como as pessoas vivem, descobrir
como gostariam de viver... e escrever sobre a diferença. Já viu nossa vizinha?
IZABEL: Qual?
VICENTE: A velha Marta! Que mundo não deve estar atrás daquele rosto! Em que
expressão, sorriso ou gesto... está escondida sua verdade! Se pudesse descobrir
como encontrar a de cada um. Sei que há um mistério na vida desta mulher. Não
vejo ninguém entrar ou sair de lá. Nem ela! Um dia, não resisti e entrei.
IZABEL: Naquela casa?!
VICENTE: Como um ladrão. Ela estava sentada, e sentada continuou, como se
estivesse a minha espera. Olhou para mim de maneira estranha e me contou a
estória das confrarias. Enquanto a ouvia, lembrei-me de três irmãs que
moravam no bairro onde vivemos antes de vir pra cá. Passavam horas sentadas à
janela, namorando a rua. E eu, de longe, namorando-as. Possuíam objetos
belíssimos... já vendidos para que fossem entregues depois que morresse a
última. Um verdadeiro saque contra a morte. Foram desaparecendo da janela,
uma a uma... até que um dia, passei por lá e nem a casa existia mais. De repente,
senti que eu também vivo emparedado, enquanto ouvia Marta acrescentar: “Não
gosto de velhos. Não são vivos, nem mortos.” E é mais velha do que a velhice!
Esta mulher me fascina...! (Debruça-se sobre a máquina de escrever)
IZABEL: (Sorri, beijando a cabeça de Vicente) Pense em suas personagens. Trabalhe
que seu filho vem vindo. Vou arrumar o quarto e eles vão passar um mês
agradável conosco.
Izabel sai. Antenor e Amélia aparecem no patamar de baixo. Juca, carregando balde e
escova, sobe a escada.
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NA ESCADA
APARTAMENTO 2
APARTAMENTO 4
APARTAMENTO 2
Amélia entra, observa Vicente trabalhando, para atrás de sua cadeira e suspira.
Amélia sai. O oficial de justiça entra no hall do prédio, examina as portas dos
apartamentos e toca a campainha no apartamento de Vicente.
NO HALL
Vicente fica aturdido, olhando o oficial que sai. Subitamente, anda apressado para o
apartamento de Maria Clara.
Vicente e Maria Clara sobem a escada. Amélia aparece à porta da sala de Vicente.
APARTAMENTO 2
APARTAMENTO 3
FRANCISCO: E agora?
VICENTE: Acho que basta ao juiz ver o estado de papai.
FRANCISCO: Claro.
VICENTE: Depois, trata-se de espertalhões já conhecidos. Foi o que deduzi da
conversa do oficial de justiça.
FRANCISCO: Quer dizer que papai tinha esses terrenos?
VICENTE: Quem pode saber! Papai se julga dono da cidade. Qualquer dia destes
vende a Praça da Sé.
FRANCISCO: Que vamos fazer?
MARIA CLARA: Comparecer ao Fórum, junto com ele, e explicar tudo ao juiz.
HELENA: Que mais podemos fazer?
Maria Clara, chorando, desce a escada e entra em seu apartamento. Vicente encosta-
se à sua mesa de trabalho, começando a soluçar. Helena, angustiada, sobe a escada e
entra em seu living.
APARTAMENTO 2
APARTAMENTO 1
APARTAMENTO 2
APARTAMENTO 1
APARTAMENTO 2
MARIA CLARA: (À Izabel) A mala? Onde está a mala? Não está pronta?!
(Desaparece, correndo, no apartamento)
NA ESCADA
APARTAMENTO 2
Enquanto Helena, Francisco e Noêmia descem a escada, Maria Clara sai correndo
para seu apartamento.
NO HALL
Dirigem-se todos para a saída, fazendo grande algazarra. Neste instante, Antenor
entra, ficando confuso no meio dos filhos. Amélia sai do apartamento para o hall.
Saem todos. Antenor e Amélia ficam olhando para a saída, sem compreender nada.
CENA: Ao abrir-se o pano, a sala de Vicente está vazia. A mesa está cheia de papéis
esparramados. Há uma folha na máquina de escrever. No apartamento 3,
Francisco estuda, aflito, um monte de papéis. Noêmia observa Francisco. No
apartamento 1, Lourdes continua fazendo tricô. Zilda tenta ler, mas não
consegue. Levanta-se, abre a porta do apartamento, observa o hall, torna a
fechar, senta-se novamente e fica olhando para o livro aberto. Lourdes, de vez
em quando, observa Zilda. Izabel, acompanhada por Helena e carregando o
filho, sai do quarto no apartamento 4 e encaminha-se para a porta.
APARTAMENTO 4
HELENA: Coitado de meu afilhado! Que nome puseram em você. Que gente
malvada!
IZABEL: Já me acostumei.
HELENA: Por que deixou, Izabel?
IZABEL: Vicente quis.
HELENA: Martiniano! Não consigo aliar o nome a essa carinha.
IZABEL: Ele embelezou o nome.
HELENA: Vicente e Zilda pregam tanto contra a genealogia, mas acabam sempre lá.
Zilda, então, está ficando tão agressiva!
IZABEL: Zilda está apaixonada. Eu teria ficado assim, também. Até logo, Helena.
HELENA: Fique um pouco mais. Não tenho nada que fazer.
IZABEL: Eu tenho.
HELENA: Um minuto só. Vicente deve estar satisfeito. Ele anda mais calmo?
IZABEL: Tudo vai bem quando ele escreve.
HELENA: Que negócio é esse de escrever sobre Marta, a nossa vizinha? Marta é uma
mulher velha, tão feia!
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IZABEL: Vicente está apaixonado por ela.
HELENA: Vigia todos os nossos passos. Sempre com aquela expressão enigmática,
de esfinge. Sinto-me mal cada vez que a encontro.
IZABEL: (Sorri) Vicente diz que quando a vê namorando a rua, debruçada nas
almofadas entre as cortinas de filé... com aquele camafeu horroroso no pescoço,
tem vontade de parar e conversar sobre qualquer coisa que ele não sabe o que é.
HELENA: Pois eu tenho vontade é de correr.
IZABEL: Preciso descer, Helena. (Subitamente) Francisco, como está?
HELENA: Péssimo!
IZABEL: Coitada de Noêmia!
HELENA: É uma situação que a gente não sabe como resolver.
IZABEL: Mas que precisa ser resolvida.
HELENA: Nós vamos levá-los hoje. Já arrumaram as malas, está tudo pronto. Só
estamos esperando Maria Clara.
IZABEL: Imagino como Vicente deve estar. Bom! Até logo, Helena.
HELENA: Até logo. (Beija a criança)
Izabel desce a escada. Helena entra no quarto, volta com um balão e começa a armá-
lo. Percebe-se que Noêmia faz grande esforço para reter as lágrimas. Zilda levanta-
se, abre a porta de saída e encosta-se no batente.
APARTAMENTO 1
LOURDES: Zilda! Ou você lê, ou não lê. Ou senta, ou sai daqui. Assim, me
atrapalha.
ZILDA: Os incomodados que se retirem.
LOURDES: Estou trabalhando.
ZILDA: Domingo não é dia de trabalho.
LOURDES: Pra mim, é.
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ZILDA: Saia um pouco. Vá ver gente.
LOURDES: Ver gente pra quê? Basta você, que vejo todos os dias.
ZILDA: Por isto mesmo. Ficaria louca se tivesse de ver só você.
LOURDES: Quem disse que não fico também?
ZILDA: Sabe? Você está precisando, mesmo, é de homem.
LOURDES: Vou mandar a família escolher um pra mim.
ZILDA: Escolha você mesma. Faça tricô pra filho seu. Não importa de quem:
italiano, japonês ou mulato!
LOURDES: Zilda!
ZILDA: Não vá me enganar que não gosta de homem.
LOURDES: O que é que você acha?
ZILDA: Se gosta, não dá a menor demonstração.
LOURDES: E você?
ZILDA: Gosto de Deus, sobretudo, e em primeiro lugar, porque o Omar existe!
Quando ele me beija ou acaricia... é que compreendo por que existe tanta gente
no mundo... e me dá vontade de pôr mais gente ainda.
LOURDES: Você me cansa.
ZILDA: Você não tem é coragem.
LOURDES: É preciso?
ZILDA: Tenho pena de você. Lá fora a vida continua, tudo evolui, o homem chega à
lua, e você aqui, sentada, com certeza pensando em alguém que seja digno de
você. Qualquer casamento é bom, nem que seja pra desmanchar depois.
LOURDES: Você não sabe de nada.
ZILDA: Sei, sim. Só porque permitiu que tio Francisco desmanchasse seu casamento,
fica escondida nesta sala, como um cacto, jogando espinho pra todo lado.
LOURDES: E você? Adiantou não permitir?
ZILDA: Quem disse que permiti?
LOURDES: Há muitos dias que Omar desapareceu.
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ZILDA: Ele vai voltar, não tenha dúvida. Não aceito como você.
LOURDES: Não se trata de aceitar.
ZILDA: Quer saber de uma coisa? Se Omar não voltar, saio à rua e me entrego ao
primeiro que passar.
LOURDES: É exatamente o que não quis fazer: entregar-me ao primeiro.
ZILDA: (Retesada) Só vivem pensando em pureza de sangue, tradição! São as
verdadeiras personagens da estória de tio Vicente.
LOURDES: Que estória?
ZILDA: Que pretende escrever sobre as confrarias.
LOURDES: Que confrarias?
ZILDA: Onde é que você vive? No mundo da lua? Tio Vicente não falou em outra
coisa durante meses.
LOURDES: (Irritada) Ele quer escrever sobre tanta coisa! Até sobre Marta, essa
vizinha fuxiqueira que não dá uma folga. Mas até agora...
ZILDA: É a estória daquela mulher que carregou o filho morto de igreja em igreja e
nenhuma quis aceitar no cemitério.
LOURDES: Só mesmo tio Vicente pensa numa estória dessa!
ZILDA: Pensa não... vive. O que restou da confraria mais intolerante, mora neste
prédio... ainda expulsando gente por infâmia de mulato, ou de italiano.
“Italianinho de brinco na orelha”, lembra-se? Se Omar não voltar, deito com o
primeiro que encontrar, e quero jogar na cara da família toda. Era preferível
fazer isto, do que ficar aqui... como virgem intocável. Joana D’Arc, defensora
da tradição.
LOURDES: Não sou Joana D’Arc, mas também não sou prostituta.
ZILDA: Este é seu mal. Não tem coragem de ser nada.
LOURDES: Onde aprendeu tudo isto?
ZILDA: Por aí. (Pausa) Mamãe, onde está?
LOURDES: Estou cansada de dizer que foi ao Instituto.
APARTAMENTO 3
APARTAMENTO 4
NA ESCADA
NOÊMIA: Zilda!
ZILDA: Bom dia, tia Noêmia.
NOÊMIA: Sua mãe já voltou?
ZILDA: Não.
NOÊMIA: Você sabe o telefone do Instituto?
ZILDA: Acho que a Lourdes sabe.
APARTAMENTO 4
APARTAMENTO 1
APARTAMENTO 4
APARTAMENTO 3
APARTAMENTO 4
APARTAMENTO 1
Noêmia sai do prédio. Zilda encosta-se à escada, no instante em que entra Omar.
NA ESCADA
ZILDA: Omar!
OMAR: (Passando) Bom dia.
ZILDA: Espere, Omar.
OMAR: (Com relutância) Que é?
ZILDA: Há tanto tempo que não nos vemos!
OMAR: (Seco) Estive viajando.
Vicente sai no hall e observa Zilda e Omar, refletindo no rosto o conflito em que os
dois estão envolvidos.
OMAR: Zilda!
ZILDA: Depois que fui sua... não posso ser de mais ninguém. Esqueça meu avô, meu
nome, seu sangue... barões e escravos! Não vê que tudo isto impede a gente de
viver? (Subitamente, cai de joelhos, abraçando as pernas de Omar) Case
OMAR: Zilda!
ZILDA: Omar!
OMAR: Tudo isto me fez sofrer.
ZILDA: Quero viver... e só posso junto de você.
OMAR: Desde aquele dia, na entrada do prédio, que percebi que tentava fugir do que
sou. Parecia que carregava em mim duas forças que queriam me destruir.
Sentia-me como se tivesse atravessado uma fronteira... num lugar sem nome,
sem nada!
ZILDA: A gente pode ser branco ou negro, sem que as portas nos sejam fechadas,
Omar.
OMAR: Depende das portas onde batermos.
ZILDA: Abri-las, depende de nós.
OMAR: A gente vive só!
ZILDA: Porque nos fazemos sós.
OMAR: (Observa seu braço) Debaixo da pele branca... é sangue de negro que corre!
ZILDA: Pois seja negro! Sinta que pertence... não importa a que lado.
OMAR: Venha.
Zilda e Omar sobem a escada, abraçados. Vicente entra em sua sala e fica olhando a
máquina de escrever. Subitamente, senta-se e começa a escrever, ansioso e aflito,
como se quisesse registrar pensamentos. Durante as cenas que se seguem, ouvimos o
barulho da máquina. Sérgio aparece já vestido.
APARTAMENTO 4
Sérgio sai e encontra-se com Zilda e Omar na escada. Passam sem se cumprimentar.
Zilda e Omar desaparecem no terceiro andar. Maria Clara e Noêmia entram no hall.
Lourdes, com certo esforço, senta-se e começa a trabalhar.
NO HALL
APARTAMENTO 2
NA ESCADA
APARTAMENTO 2
FRANCISCO: Maria Clara! Você sabe onde papai guardou o processo da demanda do
barão? Já revirei... (Para, subitamente, olhando todos) Noêmia! Que malas são
aquelas no quarto de papai?
NOÊMIA: Seus pais vão embora hoje.
FRANCISCO: Embora pra onde?
NOÊMIA: Para o Instituto, Francisco. Já se esqueceu?
FRANCISCO: Quem disse que eles vão?
MARIA CLARA: Eu.
FRANCISCO: E eu digo que não vão.
HELENA: Você não pode resolver isto sozinho.
FRANCISCO: Posso. Sou o filho mais velho.
MARIA CLARA: (Calma) São nossos pais também.
FRANCISCO: Ninguém vai tirar os velhos da minha casa. Não quiseram ficar com
eles... eu fico.
VICENTE: Eles precisam ir, Francisco.
Vicente, seguro por Izabel, vai se afastando, revelando uma grande dor.
MARIA CLARA: Você não tem pena deles, Francisco. Não viu papai sozinho no
Fórum. Você não vê que esses papéis nunca valeram nada? Que foram eles que
nos destruíram? Ensine seu filho a viver no mundo de hoje, a ser ele mesmo! Eu
também, queria que papai fosse considerado. Mas, não é mais. Ninguém tem
culpa, Francisco.
Antenor e Amélia saem. Durante uma pausa longa, os filhos ficam parados, imóveis.
Juca, carregando a vassoura e o balde, sobe a escada.
NA ESCADA
APARTAMENTO 3
NA ESCADA
ANTENOR: O barão de Jaguaré tinha uma língua de fogo! Casou-se com a sobrinha.
Naquele tempo eram permitidos casamentos assim.
AMÉLIA: Era primo-irmão de minha avó materna... e tio do meu avô paterno.
ANTENOR: Sobrinho do meu bisavô e, ao mesmo tempo, tio de minha avó materna.
AMÉLIA: Era um homem muito honesto! Muito respeitado!
ANTENOR: Também, naquele tempo, era o que existia. Vendia-se sem letra, sem
nada! Até na Europa a gente mandava comprar tudo de boca. Comprei muita
camisa em Paris. Muito vinho na Espanha.
AMÉLIA: Mandavam lavar as roupas em Portugal.
ANTENOR: Depois que entraram os turcos é que tudo modificou.
AMÉLIA: Havia muito crédito pessoal.
ANTENOR: O mundo mudou muito! Até a Rua do Imperador desapareceu! Era o
ponto de prosa! Vinte, trinta pessoas proseando e tomando café! Que vida boa!
AMÉLIA: As famílias tinham lugar certo pra sentar!
ANTENOR: O Imperador sempre proibiu a entrada, no país, de orientais. Pelo menos
nisto ele foi bom.
AMÉLIA: Visitava-se mais!
ANTENOR: Da minha idade, acho que só existem dois: o Botelho e o Pacheco.
AMÉLIA: E o Senador Jaguaribe.
ANTENOR: Morreu há muito tempo, Melica!
AMÉLIA: Morreu? Não sabia!
Antenor segura a mão de Amélia e desce o último lance da escada. Maria Clara,
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Helena, Francisco e Noêmia saem do apartamento carregando as malas e vão parar
no patamar de cima. Vicente e Izabel param no patamar de baixo. Observam Antenor
e Amélia com grande tristeza.
ANTENOR: Sabe, Melica? Só aqui na capital eu tenho sete lugares para ser
enterrado.
AMÉLIA: Que bom, Antenor!
ANTENOR: Em Itu, onde nasci, posso fechar os olhos, entrar no cemitério e onde
encostar a mão... posso deitar que é parente meu. (Pequena pausa) É pra lá que
eu quero ir.
AMÉLIA: Prefiro o Cemitério da Consolação.
ANTENOR: (Carinhoso) Você gosta de me contrariar, hein, Melica?
AMÉLIA: Prefiro mesmo. O túmulo de papai está num lugar muito pitoresco. A vista
é linda. Uma vizinhança boa, tão distinta!
ANTENOR: (Evocação carinhosa) Um dos túmulos mais bonitos que conheço é o de
primo Alexandre. Um fuzil, um capacete, a bandeira paulista e a estátua de uma
mulher apontando: “Veio do chão paulista, por ele tombou e para ele voltou!”
AMÉLIA: (Ranzinza) Prefiro o do barão de Jaraguá.
ANTENOR: Ora, Melica!
AMÉLIA: Lembra a capela da fazenda de meu avô. As grinaldas de pedra unindo as
gavetas; os anjos debruçados sobre elas como se fossem abrir; os nomes, as
datas, as inscrições...! É um verdadeiro livro de história, Antenor.
ANTENOR: (Irritado) Gosto de túmulo em cemitério, onde a gente pode visitar. Não
na casa de um italianinho qualquer.
AMÉLIA: (Pensativa) Nunca descobri quem é a mulher que aponta o chão. Tem um
olhar tão estranho!
ANTENOR: (Pausa. Perdido) É muito difícil morrer.
AMÉLIA: Podia ser tão mais rápido!
ANTENOR: Tenho a impressão de ter passado a vida morrendo.
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AMÉLIA: Claro, Antenor. Todo mundo morre aos poucos.
ANTENOR: Ainda tenho muito o que fazer.
AMÉLIA: Mamãe, que não fez grande coisa aqui na terra, devia se mexer lá no céu.
ANTENOR: Pra quê?
AMÉLIA: Podia falar com Santa Marta, dar um jeito pra você ganhar logo a
demanda do barão.
ANTENOR: Não preciso de interferência divina.
AMÉLIA: Assim, andava mais depressa, Antenor.
ANTENOR: Tem tempo. Tem tempo.
AMÉLIA: Foi adulada a vida inteira. Não perderia nada em trabalhar um pouco.
Assim penso eu.
RICARDO: Já vão?
ANTENOR: Já. Aonde foi?
RICARDO: Ao cinema.
ANTENOR: Bom o filme?
RICARDO: Um sarro! Foguetes, massacres, gente nua pra todo lado. Bacana pra
valer.
ANTENOR: Depois de “E o Vento Levou” não fizeram mais nada que prestasse.
Assisti dez vezes.
RICARDO: Puxa! Bom. Até logo, vovô. (Sai)
ANTENOR: Ricardo! Ricardo!
RICARDO: Que é?
ANTENOR: Aposto que não sabe de uma coisa?
RICARDO: O quê?