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ABSTRACT: This paper intends to defend and explore the sense of undertaking approaches
from a feminist perspective in the history of philosophy and to defend its specificity in the face
of practices and enterprises specifically and exclusively focused on the field where feminist
theories are questioned and debated. We argue that doing philosophy from a feminist
perspective is not the same nor is it reduced to doing feminist or gender theory. For this defense,
we will mobilize Mary Wollstonecraft's Enlightenment anti-dogmatic philosophy and Simone
de Beauvoir's existentialist anti-dogmatic philosophy, in their similarities and philosophical
differences. So-called gender issues will be at the center of the philosophical debate. Putting
gender issues at the center of the philosophical debate, we will seek to highlight the need for
historicization of the very terms of sexual difference, analyzing, in the context of its
conceptualization, the operative mode of this binary opposition, most often presented from the
exclusive sexualization of a female individual, and finally checking certain hierarchical
constructions and generalizations of thought that flow from them and which we cannot, for our
part, regard as true, obvious, or natural.
KEYWORDS: Philosophy; History of Philosophy; Gender; Feminism.
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Professora de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Doutora em Filosofia pela
Universidade do Estado de São Paulo (USP). E-mail: i.johanson@unifesp.br.
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Se destacarmos passagens como essas, nas quais o autor se refere à distinção entre
homem e mulher, colocando esta última em lugar inferior, não raro surgirão justificativas do
tipo: "Aristóteles era um homem do seu tempo - diz-se - um tempo em que o machismo e a
misoginia eram aceitos". Não obstante, sabemos cada vez mais e melhor que naquele mesmo
tempo de Aristóteles existiam também mulheres filósofas, produzindo também filosofia, mas
segundo outros princípios e entendimentos acerca da realidade sobre a qual filosofavam (ver,
por exemplo, WAITHE, 1987, e também WIDER, 1986)2.
Avancemos na história perto de uma dezena de séculos. Quem entende a história como
o avanço de um movimento progressivo linear, talvez possa esperar que algo relacionado ao
modo como a filosofia ocidental, na figura de alguns dos filósofos mais canônicos de sua
história, concebe e descreve a mulher, tenha avançado, no sentido de produzir um entendimento
mais próximo daquele que podemos encontrar nos tempos atuais. Vejamos, por exemplo, o que
diz um dos mais consagrados, Tomás de Aquino, na Suma Teológica:
Era necessário que a mulher fosse feita para adjutório do homem. Não, certo, adjutório
para qualquer outra obra, como alguns disseram; pois, nisso o homem pode ser
ajudado, mais convenientemente, por outro homem, do que pela mulher; mas para o
adjutório da geração. O que se pode compreender mais manifestamente, se se
considerar o modo da geração, nos seres vivos. [...] Ora, o homem se ordena a uma
operação vital mais nobre, que é o inteligir. (Aquino, 2002, questão 92, artigo 1,
solução).
2
Há vários estudos, livros e artigos, que mostram a presença e a produção de filósofas na Grécia Antiga;
mencionamos pelo menos um livro e um artigo.
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Neste caso, em relação a essa pequena amostra dedicada à ontologia da mulher, parece
que a história não avançou tanto quanto se poderia esperar. Assim também, do ponto de vista
TÍTULO DO ARTIGO
político, são tiradas as consequências:
TÍTULO DO ARTIGO
Há dupla sujeição. Uma servil, pela qual o superior usa do súdito, em sua utilidade, e
essa sujeição foi introduzida depois do pecado [original]. Outra é a sujeição
econômica ou civil, pela qual o chefe usa dos súditos para o bem destes: e tal sujeição
já existia antes do pecado [original]. Pois faltaria o bem da ordem, na sociedade
humana, se uns não fossem governados por outros, mais sábios. E assim, por essa
sujeição, é que a mulher é naturalmente dependente do homem; porque este tem
naturalmente maior descrição racional. (Aquino. 2002, questão 92, artigo 1, resposta
à segunda objeção).
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família, onde a mulher encontra aquele destino substancial que ao amor familiar
exprime as disposições morais (HEGEL, 1997, § 166, p. 155).
TÍTULO DO ARTIGO
Quanto a Hegel, parece que também não podemos cobrar uma ideia de igualdade de
TÍTULO DO ARTIGO
gênero de sua filosofia, afinal ele também era um homem de seu tempo, um tempo em que a
desigualdade de gênero era a regra. E, como sabemos, essa pseudo-justificativa vale também
para Nietzsche, no século XIX. E também para Heidegger, ou Levinas, no século XX3. E mesmo
para Sartre, em cujo O ser e o nada abundam passagens em que a mulher é simplesmente
retratada como objeto do desejo masculino. E também Camus, para quem O segundo sexo, de
sua contemporânea Simone de Beauvoir, era uma obra escrita com o objetivo principal de
"humilhar o macho francês" (BEAUVOIR, 2009, p. 149).
Não quero me demorar aqui nas citações de passagens de obras de filosofia
particularmente desagradáveis de ler, sobretudo quando se é mulher, mas sabemos que esse
trabalho poderia ir longe. Sabemos que as encontraremos na maioria dos filósofos mais
canônicos da história da filosofia (ver, por exemplo, COLLIN, F., PISIER, E., VARIKAS, E.
Les Femmes de Platon à Derrida - Anthologie critique, 2000)4.
Chegamos, assim, ao ponto principal desta apresentação. Destacando primeiramente
esse espanto de que, ao contrário do que prega o discurso displicente (e, sem dúvida,
antifeminista), o tempo histórico do sexismo, do machismo, da misoginia - muito infelizmente
- não foi um tempo passado, não foi apenas um "antigamente era assim", mas é o tempo de até
hoje (ver, por exemplo, ARAÚJO, 2015; DI CROCE, 2013; Réseau International des Femmes,
2011). Em menor grau talvez? Talvez. Em todo caso, não só a inserção prática da mulher na
filosofia e em suas instituições, como algum reconhecimento em relação à sua produção, se
deveu fundamentalmente à luta das feministas. Sempre houve em todos os tempos mulheres de
ação e de pensamento, filósofas que se insurgiram, em seu tempo próprio, contra esse discurso
de poder e de opressão camuflados em filosofias consagradas e repletas de pretensões
universalistas e de verdade (ver, por exemplo, HUTCHISON and JENKINS, 2003, e SONGE-
MOLLER, 1999). E foi também trabalho das feministas mostrar que, ao mesmo tempo em que
esses indivíduos filósofos faziam suas filosofias de cunho machista e misógino, mulheres
filosofavam também: contra eles (os filósofos) e, ao mesmo tempo, a despeito delas (de suas
filosofias falocráticas). Para fazer isto foi preciso trazer as questões de diferenças de gênero
3
Levinas, cuja filosofia inteiramente fundada nos papéis sagrados da sua religião ontologiza a inferioridade da
mulher como um desígnio divino.
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Faço referência a essa obra que é particularmente interessante para quem tem interesse em percorrer esse tema
sobre como ao longo da história, as mulheres são retratadas por filósofos.
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para o centro do debate, para o centro do trabalho teórico e de criação conceitual. E é neste
sentido precisamente que as chamadas questões de gênero passam a ser vistas como questões
TÍTULO DO ARTIGO
de feministas principalmente.
TÍTULO DO ARTIGO
I. A presença da mulher na filosofia
Esse preâmbulo pretende conduzir essa reflexão para a questão da qual, a meu ver, nós
mulheres filósofas não podemos fugir, que é a questão da presença e do lugar da mulher na
filosofia. É preciso que retomemos esse ponto, não apenas da perspectiva do tempo presente,
mas, a meu ver, da perspectiva histórica também: não para enunciar um lamento meramente,
buscando sensibilizar os corações filosóficos para o horror do sexismo em filosofia e, portanto,
para a falha ética que jaz no âmago de muitos sistemas filosóficos. Mas, no meu entender - e é
este o ponto central desta exposição - é preciso que retomemos a questão "mulher e filosofia"
também de um ponto de vista histórico, por dentro da história da filosofia: por uma questão de
ordem política, certamente, afinal, nós mulheres temos todo o direito de habitá-la; mas também,
e não com menor importância, por uma questão de ordem propriamente filosófica: pois a
filosofia que se constitui sobre essas bases machistas e misóginas, que inferiorizam e submetem
a mulher ao domínio do discurso falocrático, é uma filosofia que falha também da perspectiva
teórica; é uma filosofia com graves problemas de ordem ética, certamente, mas também, e não
em menor grau, com significativos problemas de ordem conceitual. Ora, um sistema de
produção conceitual que se pretenda válido e verdadeiro do ponto de vista filosófico não pode
ser um sistema que constrói seus conceitos com instrumentos deficientes e subestimando uma
parte significativa da realidade à qual se aplica!
Neste sentido, o que parece importante destacar é o quanto a discussão sobre o lugar e
o papel da mulher ao longo da história da filosofia, e até hoje, nos tempos atuais, não deixa de
ser uma questão que interessa não apenas às mulheres, mas à própria filosofia. Para nós,
mulheres filósofas, ainda que o tema nos atinja de uma maneira especialmente dolorosa - afinal,
é contra a nossa existência que ele se constitui - a questão da opressão de gênero, do sexismo
na filosofia não deixa de ser uma oportunidade para, justamente, reabrirmos a questão do lugar
da própria filosofia no mundo (na vida política, social) e do próprio sentido de filosofar nesse
mundo. Assim, para nós, mulheres e filósofas, não me parece que seja exatamente o caso de
buscar edificar mais uma filosofia dentre tantas dentro de um campo filosófico maior e plural,
hipoteticamente mais tolerante e que possa abrigar, em tese, tanto a filosofia que oprime quanto
a que liberta; mas, a meu ver, trata-se antes, para nós, de por em questão e de buscar garantir as
condições para que possamos nos posicionar autonomamente, como sujeitos autênticos do
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que se faz por dentro da filosofia. A questão principal, assinalada por Michèle Le Doeuff e que,
segundo ela, salta dessas filosofias antifeministas sobretudo a partir do século XVIII 5, diz
TÍTULO DO ARTIGO
respeito ao fato de, nelas, a mulher ser retratada e considerada, de fato, uma ameaça. Por quê?
TÍTULO DO ARTIGO
A resposta, em princípio, nos direciona a outra questão que não é apenas a do exercício e da
manutenção do poder político, pois é preciso rebaixar, submeter, para dominar e, assim,
construir também as bases sobre as quais a pretensão de onipotência masculina possa se erguer:
"o falocentrismo contém também a teoria de uma falopanacéia" (LE DOEUFF, 1980, p. 147).
Se quisermos, pois, enfrentar para valer a questão teórica e propriamente filosófica, é
preciso considerar que ela dificilmente poderá ser pensada desvinculadamente da questão
prática, social, da vida concreta e cotidiana também. Será nessa trama de vida social, histórica
e concreta que, a meu ver, se erguerá uma possível e também legítima perspectiva feminista em
filosofia.
Como essa perspectiva pode se constituir na prática filosófica de filósofas feministas é
o ponto central deste trabalho e para o qual nos encaminhamos a partir de agora, quando
trataremos dos pontos de ligação, e também de ruptura e, portanto, da originalidade da filosofia
de Simone de Beauvoir em relação à de Mary Wollstonecraft, para ficarmos em duas grandes
figuras da filosofia moderna que abriram caminho para os trabalhos de tantas outras
perspectivas feministas em filosofia e demais campos do conhecimento e da ação. Queremos
com isso destacar a contribuição decisiva do feminismo dessas autoras, cujos fundamentos
teóricos são bastante diferentes, mas não seus fundamentos éticos, os quais se assentam na
defesa incondicional de valores fundamentais como a liberdade e a igualdade. E contribuem
não apenas para nossa a libertação, a libertação de mulheres, filósofas ou não (incluindo as não
brancas, não proprietárias, não heterossexuais, não europeias ou habitantes do hemisfério norte
do planeta) mas também, e de modo não menos importante, para a própria filosofia - a dos
filósofos homens, em toda a sua variedade - e para a história de um pensamento inclusivo,
diverso, não hierárquico e plural.
5
Esse momento da história da filosofia, para Le Doeuff, não é casual. O projeto de uma racionalidade que emancipa
o homem e o liberta da tutela de verdades e práticas obscuras coloca a razão do homem, de fato, não apenas no
centro, mas, ainda, no topo da hierarquia de todo e qualquer projeto de conhecimento e de produção de saber. A
questão, como destaca Le Doueff, com toda propriedade e pertinência, é o que geralmente os historiadores da
filosofia costumam encobrir ou simplesmente ignorar, a saber, que, não todos, mas também não poucos pensadores
(homens) a partir do século XVIII, quando se referem à razão do homem, é mesmo a razão do indivíduo do sexo
masculino que está em causa; e quando dizem a razão humana, também é a razão do indivíduo do sexo masculino
que está em questão e não uma suposta razão universal que concretamente ligada à todos os indivíduos do gênero
humano de modo global, isto é, independente do sexo, da classe e da raça desses indivíduos humanos. As citações
acima, de dois destacados filósofos do século das luzes visam também ilustrar em alguma medida uma pequena
amostra desse ponto da questão.
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Wollstonecrat era escritora de obras voltada à educação em geral e das meninas em particular. Nelas quando as
críticas ao que se poderia considerar desigualdade entre homens e mulheres surgiam, possuiam um caráter mais
individualista que sucumbia a uma espécie de senso comum segundo o qual as próprias mulheres é que eram as
responsáveis pela sua própria situação desigual, por de manterem adormecida sua razão.
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E não parece curioso o fato de que a filosofia que preconiza a saída da minoridade
intelectual e autonomia do pensamento seja a mesma que interdita a mais ou menos metade dos
seres racionais fazer uso da própria razão?
“O belo entendimento elege como objeto tudo aquilo que é muito aparentado com o
sentimento refinado, e abandona especulações ou conhecimentos abstratos – úteis,
porém áridos – ao entendimento diligente, sólido, profundo. Por isso, a mulher não
aprenderá geometria; e, do princípio de razão suficiente ou das mônadas, saberá
apenas o quanto for necessário para perceber o sal das sátiras cristalizado pelos
pensadores superficiais do nosso sexo” (KANT, 1993, p. 49).
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Vale destacar que é por volta do século XVIII que começa a se constituir uma espécie de determinismo sexual
de caráter biológico, o qual encontrará seu apogeu na biologia e ciências experimentais do século XIX. É fato que
essa diferença biológica, aqui no século XVIII, ainda não tem a ver com a distinção entre sexo e gênero, ou o de
um sexo determinado pela natureza e de um gênero determinado pela cultura (tal como veremos das discussões
sobre as questões de gênero postas principalmente a partir dos anos 70 do século XX e que vão inaugurar isso que
hoje chamamos de "estudos de gênero"); tem a ver, contudo, com concepções de naturezas humanas distintas (o
que inclui os atributos físicos, os morais e os intelectuais), naturezas humanas distintas, justamente (e unicamente)
pelo sexo dos indivíduos. O século XVIII é, pois, o momento da história da filosofia em que o sexo (o feminino,
bem entendido) - graças às inestimáveis (e tendenciosas) contribuições dos pensadores (homens) e a despeito de
toda a ação e produção teórica e crítica de brilhantes e valentes pensadoras - começa a se constituir, para a mulher
- como, no mais, destacou muito pertinentemente Simone de Beauvoir, no século XX -, num destino (ver
LAQUEUR, 2001, e LE DOEUFF, 1980 e 1989).
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independente. De fato, é uma farsa chamar de virtuoso um ser cujas virtudes não
resultam do exercício de sua própria razão. Essa era a opinião de Rousseau em relação
TÍTULO DO ARTIGO aos homens; eu a estendo às mulheres" (WOLLSTONECRAFT, 2018, p. 42).
TÍTULO DO ARTIGO
Encontraremos em autores do XVIII como Kant e Rousseau a possibilidade de se
afirmar naturezas humanas diferentes e essa distinção se constituirá, principalmente, em função
do sexo: apenas à mulher será atribuído o sexo, apenas ela terá natureza sexual e
comportamentos (morais, estéticos, intelectuais) inteiramente dirigidos por essa natureza
sexual. Justifica-se, assim, a convicção masculina de que apenas ao homem caberá o uso pleno
das faculdades racionais e, consequentemente, o proveito que se pode fazer disso em termos de
vida social e de produção de conhecimento. À mulher, neste caso, não restará alternativa a não
ser permanecer na minoridade intelectual.
Melhor dizendo, não, segundo Mary Wollstonecraft, para quem, em relação a uma
suposta natureza, é a razão que confere humanidade aos indivíduos humanos e esta nada ter a
ver com o sexo de cada um. A razão é própria à humanidade e, enquanto tal, universal.
"A educação mais perfeita é, em minha opinião, um exercício do entendimento,
calculado o melhor possível para fortalecer o corpo e formar o coração. Em outras
palavras, para possibilitar ao indivíduo alcançar tais hábitos de virtude que o tornarão
independente. De fato, é uma farsa chamar de virtuoso um ser cujas virtudes não
resultam do exercício de sua própria razão. Essa era a opinião de Rousseau em relação
aos homens; eu a estendo às mulheres" (WOLLSTONECRAFT, 2018, P. 42).
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Situação, em Simone de Beauvoir, diz respeito antes de tudo a uma relação: relação
entre o sujeito e o mundo (indivíduo e o meio, indivíduo e as condições materiais de existência,
TÍTULO DO ARTIGO
o indivíduo e os outros indivíduos). O indivíduo não é um sujeito passivo, que apenas recebe
TÍTULO DO ARTIGO
as influências do meio, o qual, ao fim e ao cabo, determinará como será inteiramente sua vida
e tudo o que poderá ou não ser e fazer e, neste sentido, pode-se dizer que o indivíduo humano
não se adapta simplesmente à vida, tal como um elemento disforme numa forma, num meio,
num contexto. O indivíduo é certamente sujeito ativo, mas cuja atividade é, por sua vez,
limitada (mais ou menos limitada), antes de tudo, pela atividade de outros indivíduos, ou
melhor, grupo de indivíduos. A situação diz respeito não à relação entre indivíduo e natureza,
ou entre indivíduos e coisas, mas, isto sim, à relação de indivíduos e grupos de indivíduos entre
outros indivíduos e outros grupos de indivíduos, os quais podem se constituir em situações
opressoras. Quanto mais opressora for a situação, menos possibilidade de constituir livremente,
isto é, autenticamente, a própria subjetividade. O mundo, por sua vez, também não é um simples
dado, algo constituído, feito, inteiramente pronto apenas à espera de ser assimilado, percebido,
apreendido: o mundo é, ao contrário, aquilo que é feito, construído, constituído pelo indivíduo,
portanto, modificável.
Assim, é nesse movimento da consciência e nessa relação da consciência com o mundo
- ou seja, em situações, tão singulares quanto diversas - que se constitui o que, agora com mais
propriedade, chamamos de subjetividade. A subjetividade, neste sentido, é menos conteúdo do
que processo: processo de constituição simultânea e interdependente de sujeito e de mundo, ou
seja, situação. E se é possível encarar as coisas desse modo, isso se deve à constatação e à
afirmação da liberdade como fato. É ao domínio dessa liberdade como fato que remeterá o
segundo volume de O segundo sexo intitulado "a experiência vivida": ora, o que serão essas
"experiências vividas" senão situações em meio às quais se constitui como fato aquele que é o
objeto central de Beauvoir, a saber, "o segundo sexo", ou seja, essa subjetividade constituinte e
constituidora de mulheres indivíduos singulares?
As questões, portanto, das quais não se poderá furtar serão: Como se constitui esse
sujeito do segundo sexo? Por quê? E o quê, isto é, qual mundo esse sujeito do segundo sexo
constitui? Seja como for, a liberdade se dará sempre e incondicionalmente como libertação,
como mudança, como invenção: como desobstrução e libertação em relação às opressões e
composição de um mundo possível e igualitário para os indivíduos e entre eles. Ela dirá
respeito, portanto, não a um ideal ou uma abstração, mas à possibilidade concreta de
interferência no mundo.
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Lágrimas insubmissas
TÍTULO DO ARTIGO de mulher
Lágrimas
TÍTULO insubmissas de mulher é, como se sabe, o título de um dos belíssimos livros
DO ARTIGO
de Conceição Evaristo. Esse título remete ao núcleo integrador a partir do qual as diversas
narrativas dessa obra se revelam como plenas de sentido. E é para esse que considero o sentido
integrador dessas narrativas que gostaria de remeter as considerações que seguem.
Enfatizo primeiramente o sentido da palavra "insubmissas" do título, mais até do que a
palavra "mulher"; pois, a meu ver, se a questão de gênero e, mais precisamente, a da
interseccionalidade, são centrais nas narrativas desse livro, elas o são em virtude de certo
posicionamento em meio a determinado contexto. E esse contexto é o da opressão. E é isto
precisamente que, a meu ver, define também, e antes de tudo, uma abordagem feminista, em
literatura, como a de Conceição Evaristo, e em filosofia também, a saber: a insubmissão.
Entendo que a insubmissão remeta diretamente ao fato de que é imprescindível à
existência da mulher não concordar em se submeter a nenhum tipo de dogmatismo. Identificar,
portanto, esses diversos modos de ser dogmatismo, e de como nos submetemos a eles, é
necessidade de primeira ordem. As submissões podem se constituir de diversos modos e eu
quero mencionar um em especial, o qual, no mais, vem ao encontro do problema central que
nos mobiliza aqui. Um dos modos de submissão a dogmatismos pode se dar como necessidade
de reverenciar cânones: por exemplo, literários, no caso da literatura, ou filosóficos, no caso da
filosofia. Essa questão, para nós, mulheres, parece ainda mais significativa porque a reverência
a cânones é um dos meios pelo qual a mulher se vê impedida de avançar com sua criação, sua
reflexão e no seu pensamento próprio, uma vez que esses cânones são fundamentalmente
masculinos e frequentemente masculinistas, neles o lugar da mulher é, invariavelmente, como
temos visto, o lugar da inferior, da incapaz, daquela que precisa ser tutelada: sua emancipação
será considerada ora impossível, devido a deficiências inatas (naturais, fisiológicas,
ontológicas), ora ameaçadora, devido a deficiências morais. Para nós, mulheres, há, portanto,
coisas duras e difíceis a considerar e a dizer sobre essa "tradição". E é fundamental que
possamos dizer.
Daí a necessidade de problematizar e também de historicizar a questão do lugar e do
papel da mulher na vida, no mundo em que se vive: seja ouvindo a voz daquelas que pouco ou
nunca puderam se pronunciar, seja lançando luz ao que essas mulheres produziram de real pra
si e para o mundo, como é o caso das personagens de Conceição Evaristo e dela própria como
mulher negra e como escritora. No caso da filosofia, trata-se também de trazer à luz a produção
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Michèle Le Doeuff tem uma filosofia que revela claramente o esforço de constituição
de um pensamento que não admite reverenciar, ou fundamentar-se inteiramente em nenhuma
filosofia já constituída e historicamente reconhecida (dado que toda essa tradição, passada pelo
crivo da crítica feminista, logo se revelou um discurso de poder, um dos meios pelos quais o
machismo e o sexismo se estruturaram na sociedade)8. Evidente, e como se pretendeu mostrar
acima, não se pode fazer filosofia de verdade a partir do nada, ignorando a vida que se vive
concretamente, as práticas sociais e também a própria história da filosofia; no entanto, construir
um pensamento a partir de certa herança filosófica com a qual teremos inevitavelmente que
lidar é muito diferente de erguer uma filosofia "seguidora" ou prolongadora de outra.
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Podemos destacar três dos principais livros que explicitam esse modo originalmente feministas de fazer filosofia:
Le Imaginaire philosophique, de 1980; L'Étude et le rouet, de 19..; e Le sexe do savoir, de 1998.
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Visto sob esse ângulo, podemos dizer que a filosofia de Michèle Le Doeuff não é de
modo algum conciliatória em relação ao machismo e à misoginia estruturante da filosofia
TÍTULO DO ARTIGO
historicamente constituída. Para essa autora, uma filosofia verdadeiramente feminista, ou seja,
TÍTULO DO ARTIGO
não hostil às mulheres e, neste sentido, libertária e libertadora em relação às opressões, é uma
filosofia que necessariamente rompe com essa outra capitaneada por aqueles que, pode-se dizer,
sempre estiveram no comando. A questão que saltará será, então, esta de saber o quanto que a
filosofia de modo geral estará disposta a incorporar essa ruptura.
Não raro, se queremos falar de mulher e de filosofia, os cursos, departamentos, revistas
científicas nos autorizam dar nossos cursos, nossas aulas e publicarmos nossos artigos em
revistas feministas, interdisciplinares, de tramas transversais, e em disciplinas especificamente
voltadas aos chamados "estudos de gênero" ou às "teorias feministas". Minha pergunta é: por
que não poderíamos também falar de mulher e filosofia em revistas, cursos e disciplinas de
filosofia como, por exemplo, de teoria do conhecimento, de filosofia da ciência, ou de história
da filosofia medieval? Por que nossa filosofia de perspectiva feminista precisa ter certos
adjetivos, tal qual marca muito inespecífica que, no entanto, parece nos remeter inevitavelmente
para fora da filosofia de filósofos, a lugares designados ao então "assunto de mulher" (no caso,
de mulheres feministas)? Como se nós, mulheres filósofas e feministas, não tratássemos de
assuntos e temas de interesse geral e que, por isso, nossa produção feminista não pudesse
integrar o corpo do que chamamos simplesmente filosofia. Por que nossa filosofia de
perspectiva feminista precisaria, enfim, habitar um mundo à parte, tal como um satélite girando
em torno do astro solar? Minha resposta é: não precisa. Na verdade, a meu ver, não precisa e
não deve possuir esse tipo de existência relativa, como a de uma filosofia supostamente
periférica e, como tal, constituída em relação à outra supostamente central e, como tal,
inquestionável.
Acredito cada vez mais que seja preciso desconfiar do discurso, frequentemente
reiterado nos nossos meios profissionais, de que o que torna a discussão feminista e de gênero
um incômodo à filosofia dominante seja o fato de ela não se encaixar muito bem em nenhuma
forma disciplinar prévia, ou seja, de ser transversal a muitas disciplinas, ou ser multidisciplinar.
Que ela não se encaixa em nenhuma forma isto é sem dúvida muito certo. É nisto, aliás, que
está sua maior força e virtude, como venho dizendo. E que ela seja transversal a muitas
disciplinas, ou interdisciplinar, isso também nos parece certo que pode ser. O que me parece
insuficiente, no entanto, é a consideração de que isso explicaria as não raras rejeições que esses
estudos costumam sofrer no ambiente de filosofia acadêmica dominante, por exemplo. E uma
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das coisas que me levou a desconfiar desse discurso de justificação foi, justamente, o fato de
começar a estudar o pensamento de uma autora feminista que faz filosofia, história da filosofia,
TÍTULO DO ARTIGO
crítica filosófica e construção de conceitos pela perspectiva feminista sem exatamente sair da
TÍTULO DO ARTIGO
filosofia, quero dizer, sem dar a si a marca dos "estudos de gênero". Não que o pensamento dela
não incorpore elementos considerados exógenos à filosofia (literatura, ciência, história do
pensamento, política), pois que ele incorpora; na verdade, se tem algo que é central no
pensamento de Michèle Le Doeuff é isso de que a filosofia, entendida como disciplina, não é
um todo completo, autossuficiente e autodeterminante e que, por isso, não pode ser feita a
despeito da história, da cultura, da crítica à ideologia e aos discursos de poder. A questão aqui
é bem outra: e é essa de que quando se faz a crítica à filosofia, quando se pretende levar abaixo
os alicerces que a estruturam enquanto discurso de poder e de opressão, não se trata de fazer
outra coisa que não, e ainda, filosofia em sentido estrito.
Termino, assim, e, portanto, procurando enfatizar essa dimensão ética de o que
considero da maior importância em uma perspectiva feminista filosófica, a saber, pôr em xeque
certas construções hierárquicas e generificações do pensamento que dela decorrem e que,
acredito, não podemos, em hipótese nenhuma, de nossa parte, ignorar - isto é, se nos queremos
de fato criadoras (de pensamentos e práticas emancipatórias e libertárias) -, uma vez que não as
consideramos nem verdadeiras, nem evidentes, nem muito menos naturais.
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