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Estudos Surdos II

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Capítulo 2

Cenas do atendimento
especial numa escola bilíngüe:
os discursos sobre a surdez e a
produção de redes de
saber-poder

Patrícia Marcondes Amaral da Cunha1

1
Psicóloga pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Mestre em
Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

Gostaria de começar falando da satisfação de, sendo ouvinte, poder


compartilhar com outros pesquisadores surdos esse espaço dos
Estudos Surdos que tem sido constantemente criado e recriado
no meio acadêmico nos últimos quarenta anos2. As produções nos
permitem perceber não só as mudanças de rumos em termos de
objetos de pesquisa e de orientações teóricas pela qual a área tem
passado, mas também a participação cada vez maior de acadêmicos
surdos discutindo questões que lhes são pertinentes.
No entanto, como explica Quadros (2006) na introdução
do primeiro volume dessa série, essa caminhada não se deu num 39
contexto livre de tensões. Além disso, dentro de um referencial F
foucaultiano, o qual servirá de base para a minha discussão, pode-se
dizer que a narração dos surdos por eles mesmos não necessaria-
mente estaria carregada de uma maior veracidade ou autenticidade
desse discurso sobre a surdez. São novos olhares que se constroem
(e acredito que é nesse ponto que reside a grande contribuição),
mas que produzem, assim, novos objetos, eles mesmos carregados,
como todo saber, de relações de poder.
Tendo esse pressuposto em mente, procuro pensar uma ques-
tão não muito freqüente nos trabalhos e pesquisas que se localizam
dentro dos Estudos Surdos, qual seja o discurso de professores
sobre a escolarização de um subgrupo de surdos, aqueles denomi-

2
Em 1998, Skliar falava dos avanços em relação a esse conjunto novo de dis-
cursos e de práticas educacionais que se acentuara nas três décadas anteriores.
Dez anos mais tarde, esse campo continua se desenvolvendo.
estudos surdos 11

nados por textos oficiais do Ministério da Educação ou manuais


de desenvolvimento psicológico como “deficientes múltiplos”.
Mais especificamente, busco analisar as relações que se configuram
entre dois grupos de alunos (os surdos e os deficientes múltiplos)
dentro do espaço de uma escola bilíngüe localizada no Estado do Rio
Grande do Sul. Como procurarei mostrar, se para Foucault prática
e teoria não se dissociam, é importante que se questione como os
discursos sobre a educação de surdos têm entrado no espaço escolar,
orientado certas práticas e se alimentado delas.
Este artigo consiste num recorte da minha dissertação de
mestrado, a qual foi desenvolvida dentro da linha de pesquisa
sobre o Ensino e Formação de Educadores. Não se procurou ouvir
o que as professoras diziam como a manifestação psicológica do
40 seu pensamento, mas levando em consideração os saberes que se
f cruzam na sua prática com os alunos múltiplos. Mais além, não
se pretendeu categorizar esse discurso dentro do binarismo “bom
professor x mau professor”, como se tem feito freqüentemente
nesse domínio de pesquisa3. As contribuições desse trabalho vão
muito mais no sentido de apresentar e discutir as diversas posições
de sujeito que as professoras podem ocupar e os efeitos que elas
podem ter na prática escolar cotidiana.
No que diz respeito à organização desse texto, inicio
retomando alguns construtos teóricos de Foucault desenvolvidos
em duas etapas de sua obra: a arqueologia e a genealogia, focando
em alguns conceitos importantes para o debate. Num segundo
momento, cito falas de três professoras entrevistadas e de autores

3
A esse respeito, ver MANTOAN (1997) e NUNES et al. (1998), GOMES
e BARBOSA (2006).
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

que pesquisaram questões surdas para analisar as repercussões


desse discurso na escolarização dos deficientes múltiplos. Concluo
citando que perigos precisamos enfrentar diante desses novos
contextos educacionais.

1. Um pouco de teoria

O projeto arqueológico de Foucault sofreu grande influência da


epistemologia a partir dos pressupostos de autores como Bachelar
e Canguilhem. Ora aproximando-se deles, ora contrapondo-se
a eles, a própria definição dos objetos de análise conduziram
Foucault a outros princípios metodológicos, distantes da proposta
de seus tutores.
De forma resumida, nos seus primeiros trabalhos, como Histó- 41
ria da Loucura, O Nascimento da Clínica e As Palavras e as Coisas, F
o que Foucault buscou foi entender como aquilo que denominou
de saberes apareciam e se transformavam, contrapondo-se aos epis-
temólogos que se preocupavam com a questão da ciência. Foucault
rejeitou, ainda, a noção epistemológica de progresso científico e
estudou a descontinuidade4 dos saberes, focando sua análise na
constituição das ciências humanas.
É no texto da Arqueologia do Saber que Foucault esclarece
questões que havia delineado em As Palavras e as Coisas, especial-
mente no que diz respeito ao método que utilizara na sua análise.
Após desmanchar as noções tradicionais de unidade do discurso,

4
Veiga-Neto (2003) lembra que a palavra arqueologia é usada para descrever
esse processo de “escavar verticalmente as camadas descontínuas de discursos
já pronunciados muitas vezes de discursos do passado, a fim de trazer à luz
fragmentos de idéias, conceitos, discursos talvez já esquecidos” (p.54).
estudos surdos 11

no final da primeira parte da Arqueologia do Saber, Foucault avança


no sentido de discutir quais as conseqüências dessas rupturas para
a sua teoria do discurso. Ao mostrar que a medicina clínica, a
economia política e a história natural parecem ser uma dispersão
de elementos (pelas suas falhas, desordens, incompatibilidades,
substituições), ele afirma, ao mesmo tempo, que elas podem ser
descritas em sua singularidade se estabelecermos as regras segun-
do as quais são formados seus objetos, conceitos, enunciações e
opções teóricas.
Ao mesmo tempo em que a sua intenção era olhar os enun-
ciados enquanto uma descrição pura, Foucault não quer simples-
mente estabelecer diferenças nos moldes estruturalistas e muito
menos elencar as diversas condições de possibilidades. O que o
42 autor pretende é falar das regularidades das transformações que
f efetivamente acontecem. Trata-se muito mais de condições de
existência do discurso do que de possibilidades.
Se, por um lado, a arqueologia permite, até certo ponto, des-
vincular teoria e prática, para isolar discursos-objetos, a genealogia
funcionará como ferramenta para investigar as práticas a partir do
seu próprio interior, e ambas passarão a se complementar daqui
para frente. A leitura dos textos de Nietzsche e a nova conotação
que Foucault dá aos conceitos genealógicos caracterizam uma nova
etapa no seu pensamento sobre os saberes e, conseqüentemente,
sobre o sujeito.
Em 1970, Foucault é convidado para assumir o posto de Jean
Hippolyte junto ao Collège de France, tornando-se responsável pelos
cursos anuais que lecionou até pouco tempo antes de sua morte
em 1984. Nessa época, Foucault retoma a promessa feita no final
da Arqueologia do Saber e se debruça sobre temas como “a relação
entre a verdade, teoria, e valores e as instituições e práticas sociais
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

nas quais eles emergem” (DREYFUS e RABINOW, 1995, p.XXI).


Até aquele momento, a arqueologia tinha permanecido um pouco
vaga enquanto instrumento de luta política.
O que Foucault faz, então, é “usar” a genealogia nietzscheana
para, ao contrário, problematizar as formas por meio das quais a
nossa concepção de mundo nos é dada historicamente. Ao atri-
buir um objetivo crítico à investigação arqueológica, busca “uma
análise para a revolta e controvérsia em torno do problema da
subjetividade em nossa vida política e cultural” (RAJCHMAN,
1987, p.99).
Deleuze (2005) nos aponta em que direção aquele filósofo
francês avança a partir dos conceitos apresentados em Nietzsche,
a Genealogia e a História: entre 1971 e 1973, ele, Foucault e
outros intelectuais estavam engajados no Grupo de informações 43
sobre as prisões, o qual propunha um novo questionamento do F
problema do poder. Mais especificamente, eles rejeitavam as
formas burguesas e marxistas de leitura do poder e tinham como
prática um tipo de luta social local, específica, cuja unidade não
advinha nem de um processo totalizante e nem centralizador. Na
visão de Deleuze, a proposta da genealogia foucaultiana pode ser
caracterizada, portanto, pela contestação de certos postulados que
marcavam a posição tradicional da esquerda. Nesse trabalho faz-se
referência a três desses postulados:
a) Postulado da propriedade – para Foucault não há a cisão
entre aqueles que detêm o poder e aqueles que dele são alienados
ou, ainda, entre quem tem o direito de saber e quem é mantido na
ignorância. O poder não se possui, mas ele se exerce a partir das
estratégias. Como exemplo desse deslocamento contínuo de forças,
o filósofo cita a configuração que se estabelece entre médicos e pais
para vigiar a sexualidade infantil, a qual acaba se modificando de
estudos surdos 11

tal modo que, a partir da relação entre o psiquiatra e a criança,


a sexualidade adulta também seja colocada em xeque.
b) Postulado da localização – o conceito de interstício como
esse “não-lugar”, onde as lutas se configuram, abre uma brecha
para a crítica foucaultiana do Estado como um suposto centro de
onde o poder emanaria. Segundo a genealogia, é possível dizer
que o Estado aparece como um efeito das engrenagens do poder,
constituindo microfísicas do poder. Conseqüentemente, não
há um poder global, mas uma estratégia global sustentada por
estratégias locais, mas nem por isso localizáveis devido ao seu
caráter difuso. Essas correlações de força podem se formar em
grupos restritos e instituições como a família e, ao mesmo tempo,
servirem de suporte para outros afrontamentos que os perpassem,
44
f como Foucault explica:

Nenhum “foco local”, nenhum “esquema de transformação”


poderia funcionar se, através de uma série de encadeamentos
sucessivos, não se inserisse, no final das contas, em uma
estratégia global. E, inversamente, nenhuma estratégia
poderia proporcionar efeitos globais a não ser apoiada em
relações precisas e tênues que lhe servissem, não de apli-
cação e conseqüência, mas de suporte e ponto de fixação.
(2005b, p.95).

c) Postulado da Modalidade – a idéia de que o poder age por


violência ou por alienação ideológica também é refutada por Fou-
cault. Ele deixa claro que aquilo que define uma relação de poder
é uma forma de ação que não é direta e imediata sobre os outros,
é uma ação sobre a ação. A relação de violência, no seu ponto de
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vista, tem inerente a si a submissão e a anulação da resistência e,


desse modo, admite apenas o pólo da passividade. Ao contrário,
a relação de poder

se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis


por ser exatamente uma relação de poder: que o “outro”
(aquele sobre o qual o poder se exerce) seja inteiramente
reconhecido e mantido até o fim como sujeito de ação; e que
se abra, diante da relação de poder, todo um campo de res-
postas, reações, efeitos, invenções possíveis (FOUCAULT,
in DREYFUS E RABINOW, 1995, p.243).

O termo “conduzir” ou “conduta” teria a conotação que Fou-


cault procura, tanto por referir-se à ação de conduzir outros (a ação 45
sobre a ação), como no sentido de definir formas de os outros se F
comportarem dentro de um espaço definido de possibilidades. Em
suma, “o poder, no fundo, é menos da ordem do afrontamento
entre dois adversários, ou do vínculo de um com relação ao outro,
do que da ordem do ‘governo’” (FOUCAULT, in DREYFUS E
RABINOW, 1995, p.244).
Será no livro Vigiar e Punir que Foucault aprofundará as
conexões entre o poder e as técnicas de dominação do corpo.
Segundo o autor, as mudanças na legislação penal do século XVIII
descaracterizam antigas formas de ver a natureza das infrações e
formalizam novas formas de punir e de enxergar o infrator, agora
considerado delinqüente. É a partir desse novo modelo que são
desenvolvidos procedimentos do poder disciplinar que tem como
objetivo menos punir e mais promover uma modificação com-
portamental (em nível do corpo e da alma), com a conseqüente
produção de corpos dóceis. O corpo, que até então deveria ser
estudos surdos 11

destruído segundo as técnicas de suplício, agora serve de molde


para construção de subjetividades.
Com esse objetivo, utilizou-se a observação detalhada e inin-
terrupta, a classificação meticulosa, o controle estrito dos horários
e a elaboração dos dossiês completos, propiciando a formação de
saberes sobre os indivíduos que “continuamente atualizados, per-
mitem reparti-los na prisão, menos em função de seus crimes que
das disposições que demonstram. A prisão torna-se uma espécie de
observatório permanente que permite distribuir as variedades do
vício ou da fraqueza” (FOUCAULT, 2004c, p.104).
Pode-se dizer que essa “tecnologia disciplinar” é resultante de
elementos transpostos de um modelo militar para a área criminal,
mas que não se restringe a ela, uma vez que a disciplina consiste
46 na expressão articulada de práticas mais gerais que controlam in-
f divíduos e populações e estão presentes em diversas instituições,
como, por exemplo, a escola e o hospital.
Tem-se então que as atividades, pensamentos e comportamen-
tos mundanos podem servir para entender os aspectos singulares
desses indivíduos (aptidões, capacidades, evolução) e tomar deci-
sões sobre onde melhor fixá-los e como melhor manipulá-los. Por
outro lado, os dossiês funcionam como matéria-prima para elabo-
ração de sistemas comparativos com o restante da população.
O curso do Collège de France: Em Defesa da Sociedade, que
separa a publicação dos livros Vigiar e Punir e A Vontade de Sa-
ber, representa um espaço para Foucault reavaliar alguns de seus
pressupostos e delimitar as novas áreas de pesquisa futuras. Nesta
obra, uma das idéias que o autor desenvolve é como a teoria clássica
da soberania atua, ou seja, este direito que o soberano tem sobre
a vida e a morte de seus súditos. Portanto, o campo da vida e da
morte não se localizaria apenas no domínio biológico, mas tam-
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bém no domínio político. Contudo, a partir desse atributo, não


se pode dizer que o soberano tenha nem o direito de deixar viver
ou morrer e nem fazer viver ou fazer morrer, mas que o efeito do
direito de poder fazer morrer é o direito de deixar viver.
Ainda que esta seja uma discussão de filosofia política, na
qual Foucault não quer adentrar, é preciso lembrar que, com as
transformações do direito político no século XIX, o direito de
soberania foi complementado por outra noção, que é o poder
de fazer viver e de deixar morrer. Essa idéia de proteção contra a
ameaça à vida, conforme o autor, orienta a constituição da figura
de um poder absoluto e com isso lhe concede o direito sobre ela.
Chega-se à conclusão, portanto, que a vida é uma noção que
orienta a escolha dos soberanos.
Nos séculos XVII e XVIII, aparecem técnicas de poder focadas 47
no indivíduo enquanto dimensão corpórea. Ainda no final do F
século XVIII, entretanto, tendo em vista essa preocupação com
a vida, é possível notar o desenvolvimento de uma tecnologia de
poder que não exclui a primeira, mas que se articula nela, confi-
gurando-se como uma tecnologia não disciplinar que se dirige à
esfera do homem enquanto ser vivo, enquanto espécie. Foucault
a chama de biopolítica.
Os primeiros objetos e primeiros alvos da biopolítica são a
preocupação com a natalidade, vista como taxa de reprodução e
fecundidade de uma população, e com a morbidade, pensada em
função da ocorrência das doenças endêmicas (e não mais apenas
as epidêmicas), que afetavam essa mesma população. Aos poucos,
vão se estabelecendo outras áreas de atuação do biopoder: além
do estudo da doença enquanto fenômeno populacional, analisa-
se a velhice e a anormalidade enquanto incapacidades biológicas,
alcançando proporções maiores, ou seja, o estudo das cidades
estudos surdos 11

enquanto meio (geográfico, climático, hidrográfico), que repercute


na vida dos indivíduos.
As implicações desses objetos que configuram nesse período
podem ser organizadas em três grupos. O primeiro deles refere-
se ao aparecimento de um elemento até então desconhecido da
prática disciplinar e da teoria do direito, que é o corpo múltiplo,
de inúmeras cabeças, ou a população. Além disso, biopolítica
suscita um interesse pelos fenômenos coletivos, de massa, e pela
sua duração numa população. A terceira implicação diz respeito às
novas funções que o biopoder assume em relação às técnicas disci-
plinares. Não se pretende diferenciar, hierarquizar e normalizar de
modo a modificar padrões de certos indivíduos; inversamente, por
intermédio de medições globais, estatísticas e previsões, busca-se
48 determinar quais as determinações desses fenômenos, de forma
f a promover a longevidade de uma população inteira, de otimizar
um estado de vida:

Não se trata, por conseguinte, em absoluto, de considerar o


indivíduo no nível do detalhe, mas, pelo contrário, mediante
mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham
estados globais de equilíbrio, de regularidade; em resumo, de
levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-
espécie e de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas
uma regulamentação” (FOUCAULT, 2005c, p. 294).

Essas duas vertentes convergem quando se trata da constituição


de discursos que sustentam e, ao mesmo tempo, resultam dessas
práticas de poder. A medicina, por exemplo, ganha uma impor-
tância fundamental ao firmar esse vínculo entre o conhecimento
científico e os processos biológicos e orgânicos, ao mesmo tempo
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em que propõe intervenções sociais. Foucault discute como essa


articulação é construída, ao tratar da forma pela qual a sexualidade
indisciplinada traria conseqüências patológicas para o indivíduo,
além de comprometer as próximas gerações:

[a sexualidade indisciplinada] tem sempre duas ordens de


efeitos: um sobre o corpo, sobre o corpo indisciplinado, que
é imediatamente punido por todas as doenças individuais
que o devasso sexual atrai sobre si. Uma criança que se
masturba demais será doente a vida toda (...) [ao mesmo
tempo em que] uma sexualidade devassa, pervertida, etc.,
tem efeitos no plano da população, uma vez que se supõe
que aquele que foi devasso sexualmente tem uma here-
ditariedade, uma descendência que, ela também, vai ser 49
perturbada, e isso durante gerações e gerações, na sétima F
geração, na sétima da sétima (2005c, p.301).

O ponto onde poder disciplinar e biopoder se cruzam, desse


modo, é o elemento “norma”, já que se pode aplicá-la tanto ao corpo
que se quer tornar dócil (os procedimentos de sanção normalizadora
já exemplificaram como) quanto a uma população que queremos
regulamentar. A norma, conforme explica Veiga-Neto,

é o elemento que, ao mesmo tempo em que individualiza,


remete ao conjunto dos indivíduos; por isso, ela permite
a comparação entre os indivíduos. Nesse processo de
individualizar e, ao mesmo tempo, remeter ao conjunto,
dão-se as comparações horizontais – entre os elementos
individuais - e verticais – entre cada elemento e o conjunto
(2003, p.90).
estudos surdos 11

Levando em conta a importância da norma nessa articulação,


Foucault então questiona o tema do direito de deixar morrer,5
quando o biopoder pretende garantir a vida dessa população. Ou
ainda, como exercer o poder de morte num sistema político centrado
no biopoder? A resposta para essa questão se configura a partir da
noção de racismo, que opera através de dois princípios: o primeiro
deles, realizando uma separação entre o que deve viver e o que deve
morrer em função de critérios biológicos de raça, de sangue.
O segundo princípio é desenvolver a idéia de que para assegu-
rar o bem-estar comum e a segurança da população, é necessária
uma relação positiva entre a minha vida e a morte do outro. Não
se trata de uma relação guerreira (mato porque senão sou morto),
mas que é preciso assassinar o outro, o diferente, o anormal, para
50
f assegurar o fortalecimento da minha raça, da população da qual
eu faço parte:

Os massacres se tornaram vitais. Foi como gestores da vida


e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes
puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos
homens. E, por uma reviravolta que permite fechar o cír-
culo, quanto mais a tecnologia das guerras voltou-se para a
destruição exaustiva, mais as decisões que as iniciaram e as
encerram se ordenaram em função da questão nua e crua
da sobrevivência (FOUCAULT, 2005b , p.129).

5
Quando Foucault fala em morte, em tirar a vida, não entende apenas “o
assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato
de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e sim-
plesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.” (2005c, p.306).
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

O que se observa nessa relação é a proximidade entre a


teoria biológica (nos termos do evolucionismo, do sexo) e as
relações de poder, ou entre a morte dos outros – fortalecimento
biológico do indivíduo – indivíduo como membro de uma plu-
ralidade unitária e viva. Dreyfus e Rabinow chegam mesmo a
demonstrar que a própria sociedade de normalização é aquela que
cria os perigos e promove os meios para combatê-los ou reformá-
los. Os autores ainda acrescentam que

o desenvolvimento do biopoder é contemporâneo do


aparecimento e da proliferação das próprias categorias de
anomalias que as tecnologias de poder e saber supostamente
eliminariam. A expansão da normalização funciona através
da criação de anormalidades que ele deve tratar e reformar 51
(1995, p.214). F
Bem, não só o racismo, mas as demais técnicas disci-
plinares do controle do tempo, do espaço, das atividades, dos
lugares ocupados por cada uma das personagens vão nos ajudar a
estabelecer essa rede entre saber e poder que se articula nas prá-
ticas da escolarização dos deficientes múltiplos. O objetivo desta
introdução é, portanto, “situar” o leitor com conceitos, assim
como Deleuze acreditava que Foucault construía mapas, não para
espelhar o terreno, mas para produzir utensílios de trabalho.

2. Conhecendo a instituição

Se em 1960 a escola surgiu como a “Escola Municipal de Surdos-


Mudos”, dentro de uma proposta de oralização, ainda no final
daquela década ganhou o nome de Centro Educacional para De-
estudos surdos 11

ficientes da Audição e da Fala Gabriela Brimmer6. O ano de 1987,


por sua vez, representou o momento em que houve a separação
entre o atendimento clínico, realizado pela Associação Gabriela
Brimmer, e a criação da Escola Municipal de 1º. Grau incompleto
Gabriela Brimmer, seguindo uma proposta de Comunicação Total7.
Cinco anos mais tarde, em 1992, iniciou-se um processo de mu-
dança da proposta pedagógica da instituição, com a implantação
de um modelo bilíngüe8 de educação, passando a chamar-se Escola
Municipal de Ensino Fundamental Gabriela Brimmer.
O que é importante ressaltar nessa trajetória, contudo, é
que esse modelo clínico de atendimento dos surdos, da surdez
como deficiência, parece ter sido abandonado em lugar de uma
proposta que concebe a surdez como uma experiência cultural e
52 lingüística. Entre 1960 e 1992, a terminologia sofre mudanças:
f
6
O nome da escola foi alterado para resguardar a identidade da instituição na
figura das professoras e dos alunos sujeitos da pesquisa. Daqui para frente,
portanto, a escola será denominada como Escola Municipal de Ensino Fun-
damental Gabriela Brimmer. As informações contidas nesse histórico foram
obtidas no site da escola.
7
Conforme Souza (1998), com a proposta da Comunicação Total, pretende-se
desenvolver as possibilidades da criança estabelecer uma “comunicação real”,
com completa liberdade de uso das diversas “linguagens”: sinais (incorporados
da Libras), sinais criados para marcar aspectos gramaticais da língua oral, o
desenho, a dramatização, o treino auditivo, o treino dos órgão fonoarticu-
latórios, a escrita, a expressão corporal, a “linguagem”afetiva, etc. Para esta
autora, o lema dessa abordagem é que o importante é que a mensagem seja
transmitida, não importa de que forma.
8
“São denominadas escolas ou classes de educação bilíngüe aquelas em que
a Libras (Língua Brasileira de Sinais) e a modalidade escrita da Língua Por-
tuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o
processo educativo” (Decreto Nº. 5626, capítulo VI, artigo 22, Perspectiva,
Florianópolis, volume 24, n. Especial, 2006, p.304-313).
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

de “surdos-mudos” para “deficientes da audição”, e destes para


“surdos”, deixando, inclusive, de aparecer no nome da escola. Nesse
processo, Carlos Skliar9 teve um papel importante em termos da
reestruturação da escola, iniciada em 1992, ao prestar assessoria
aos demais profissionais da escola e corroborar com a idéia de que
a Língua de Sinais funciona como “um fator de identidade cultural
dos surdos e se converte no meio idôneo para exercitar o direito à
informação que toda a pessoa possui” (site da escola). Esse prin-
cípio teórico é desenvolvido a partir das discussões geradas num
campo de saber denominado de Estudos Surdos (ES), ramificação
de uma área mais ampla dos Estudos Culturais (EC).
De fato, o que aconteceu com a escola Gabriela Brimmer é
um exemplo dos rumos que o movimento surdo tomou na década
de 90. Se, naquele momento, a comunidade surda se reuniu para 53
reclamar o seu direito a uma escola de surdos e o reconhecimento F
da Libras como língua a ser adotada nestes espaços, atualmente, o
movimento começa a levantar novas bandeiras. Como exemplo,
Lopes e Veiga-Neto (2006) observam que, agora, os objetivos da
luta são “as condições de ensino, o reconhecimento da capacidade
surda de aprender e a construção de currículos surdos nos quais os
marcadores culturais estejam presentes para além dos conteúdos
escolares” (p.81).

9
Fonoaudiólogo argentino que, por muitos anos, esteve ligado a universidades
brasileiras estudando a surdez com base em uma perspectiva cultural. Atual-
mente, como investigador da área de educação na Facultad Latinoamericana
de Ciências Sociales LACSO, tem se voltado para a questão das diferenças e
da tolerância ao outro/ outrem dentro de um referencial filosófico deleuziano
e derridiano.
estudos surdos 11

No que se refere às “crianças com múltiplas deficiências”, desde


a sua fundação na década de 60, esta escola tem procurado atender as
crianças que tem algum outro comprometimento, tais como “visão
reduzida, deficiência mental, paralisia cerebral e transtornos neuro-
psiquiátricos” (Documento sobre o atendimento especial fornecido
pela escola, p.1). Da mesma forma que com os surdos, inicialmente
as crianças tinham atendimentos nas áreas emocionais, cognitiva e
psicomotora, a partir de um enfoque clínico. Mais recentemente,
a proposta passou a abordar o aspecto pedagógico, “com o objetivo
de propiciar o desenvolvimento global da criança, compatível com
suas potencialidades e particularidades, integrando as prioridades
da família com a prática pedagógica” (p.1)
Por outro lado, se o site traz que “o surdo tem o direito de se
54 organizar em grupo, mantendo sua identidade lingüística e cultural
f [...] da mesma forma [que] tem direito a freqüentar uma escola
especial, onde possa fazer uso da sua Língua natural e conviver
com seus pares”, nas duas páginas do documento sobre o atendi-
mento especial, a importância do acesso a Libras é mencionada
num único parágrafo que trata de um curso oferecido aos pais,
cujo objetivo é favorecer a comunicação com os seus filhos. A
referência ao compartilhar de experiências culturais não é feita e
parece que as “necessidades [das crianças com múltiplas deficiên-
cias] vão [mesmo] além das necessidades específicas dos surdos”
(Documento acerca do atendimento especial , p.1).
Portanto, uma vez que esta escola abraçou esse enfoque teó-
rico, é importante que se discuta minimamente as bases em que
o projeto da escola está alicerçado. Entro na discussão sobre a
construção da cultura surda, ainda, para pensar que lugar acaba
sendo reservado ao atendimento especial a partir da superação da
noção de surdez enquanto deficiência. Discuto as redes de poder
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

estabelecidas entre surdos e múltiplos e entre surdos e ouvintes


como efeitos dos saberes dos estudos surdos.

3. Os Estudos Culturais (EC) e os Estudos Surdos (ES)

Os Estudos Culturais, enquanto área de investigação, nasceram em


1964, com a criação do Centro para os Estudos Culturais Contempo-
râneos na Universidade de Birmingham (CCCS), na Inglaterra. Com
Hoggart, Williams e Thompson, fundadores do centro, “se posiciona
a cultura como uma dimensão de análise e se adota a perspectiva da
crítica cultural em trabalhos que enfocam o que se distinguiu por
cultura ou culturas populares, práticas cotidianas, artefatos e produtos
culturais” (TURA, 2005, p.112). Em outras palavras, a intenção era
“olhar para o ‘outro lado’, o lado onde está o povo, onde têm origem 55
as produções culturais populares, as organizações comunitárias, os F
movimentos sociais de resistência” (TURA, 2005, p.112).
Na América Latina, os Estudos Culturais florescem numa época
em que os regimes totalitários estão em decadência e que as lutas
políticas pela democratização estão em ascenção. Conforme Tura
(2005), tanto o surgimento de novos atores políticos (mulheres,
homossexuais, minorias étnicas), como o interesse de pesquisado-
res em compreender “a confluência de descontinuidades culturais
num espaço que se abriu para um fluxo intermitente de correntes
migratórias e para a mestiçagem” (p.118) deram espaço para novas
problematizações de questões sociais.
No Brasil, e de forma mais localizada, nas pesquisas desenvol-
vidas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
e na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), temos trabalhos
que aliaram os EC às investigações sobre o currículo escolar. Skliar
e Quadros (2004), por sua vez, também estiveram engajados no
estudos surdos 11

processo de difusão dos EC através da formação de grupos de


pesquisa que buscam discutir as relações entre educação surda,
estudos culturais e estudos surdos, identidade surda e cultura
surda dentro do espaço institucional da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). O resultado dessa articulação foram os
Estudos Surdos (ES), ou

um território de investigação educacional e de proposições


políticas que, através de um conjunto de concepções lin-
güísticas, culturais, comunitárias e de identidades, definem
uma particular aproximação – e não uma apropriação – com
o conhecimento e com os discursos sobre a surdez e sobre
o mundo dos surdos (SKLIAR, 1998, p. 29).
56
f
Nesta direção, o americano Owen Wrigley, autor do livro A
Política da Surdez (1996), que serve de embasamento teórico para
vários trabalhos no Brasil, ajudou a desmontar a idéia de que a
surdez seja algo concreto, de existência própria, independente
dos sentidos que damos a ela. Dito de outro modo, ele contesta a
surdez enquanto uma deficiência sensorial localizada no corpo e
que traria consigo alguns impedimentos para a convivência num
mundo prioritariamente feito de som. Para ele, a questão precisa
ser deslocada de um problema do corpo individual para um pro-
blema social, com o conseqüente debate acerca do privilégio dos
canais visuais em detrimento de outras possibilidades: invés do
foco no canal auditivo deficiente, pensar num canal visual repleto
de possibilidades.
Padden e Humphries (2005) avançam ainda mais nessa dis-
cussão ao escrever que ser surdo vai além dessa habilidade sensorial
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

aguçada e da participação em práticas que tenham a visão como


elemento central; as especificidades estão muito mais relacionadas
a uma longa história de interação com o mundo de certas formas,
de uma maneira cultural. Segundo eles,

as práticas de “olhar” não são necessariamente naturais ou


lógicas, no sentido que os surdos têm um sentido visual
aguçado, mas as formas pelas quais eles “olham” derivam de
uma longa história [que] envolve as escolas que eles freqüen-
taram, as comunidades nas quais eles se engajaram depois de
sair da escola, os empregos que tiveram, a poesia e o teatro
que criaram, e finalmente, o vocabulário que se deram para
descrever o que eles sabem (p.2, tradução livre).
57
F
No Brasil, Perlin (1998) é uma pesquisadora da linha dos ES
que, a partir do conceito pós-moderno de identidade apresentado
por Hall10, defende que não há uma identidade surda, mas “iden-
tidades plurais, múltiplas, que se transformam, que não são fixas,
imóveis, estáticas ou permanentes, que podem até ser contraditó-
rias, que não são algo pronto” (p.52). Dessa forma, a identidade
seria “algo em construção, uma construção móvel que empurra o
sujeito em diferentes posições” (p.52). Entretanto, a autora procura
mostrar que essa mobilidade e fragmentação se configuram em
função de um elemento determinado, qual seja, o tipo de embate

10
Hall (1997, apud PERLIN, 1998) explicita também os modelos iluminista e socio-
lógico de identidade. O primeiro refere-se à identidade enquanto ideal, perfeição
do ser humano; e o segundo como estruturada pelas representações sociais.
estudos surdos 11

que se estabelece entre os surdos e o poder ouvintista11. Como


esclarece neste trecho, “as identidades surdas assumem formas
facetadas em vista das fragmentações a que estão sujeitas face à
presença do poder ouvintista que lhes impõem regras, inclusive
encontrando no estereótipo surdo uma resposta para a negação
da representação da identidade surda ao sujeito surdo” (p.54).
Resumindo a categorização adotada pela pesquisadora, temos
cinco tipos de identidade:

• identidade surda - é reconhecível nos surdos que adotam as


formas visuais de experienciar o mundo, nas suas diversas
manifestações. O trocar dessas experiências é uma caracterís-
tica importante na construção dessa identidade (valoriza-se o
momento de encontro entre os surdos);
58
f • identidade surda híbrida – surdos que tiveram acesso à experi-
ência ouvinte, mas agora passam a conhecer a comunicação em
sua forma visual; Perlin (1998) acrescenta que “nascer ouvinte
e posteriormente ser surdo é ter sempre presente duas línguas,
mas sua identidade vai ao encontro das identidades surdas”
(p.64)
• identidade surda de transição – os surdos (como filhos de pais
ouvintes) que quebram uma concepção ouvintista de surdez
e se filiam à identidade surda já mencionada, mas que “ficam
com seqüelas da representação que são evidenciadas em sua

11
O ouvintismo é “um conjunto de representações dos ouvintes, a partir do
qual o surdo está obrigado a olhar-se e narrar-se como se fosse ouvinte.
Além disso, é nesse olhar-se, e nesse narrar-se que acontecem as percepções
do ser deficiente, do não ser ouvinte, percepções que legitimam as práticas
terapêuticas habituais” (SKLIAR, 1998, p.15).
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

identidade em reconstrução nas diferentes etapas da vida”


(p.64);
• identidade surda incompleta – surdos que tentam experienciar
a surdez a partir do referencial ouvintista, uma vez que essa
cultura dominante, por exemplo, ridiculariza certos aspectos
da identidade surda ou desencoraja os encontros da comuni-
dade surda;
• identidade surda flutuante - encontra-se em surdos “conscien-
tes” da surdez, mas que não escapam à ideologia ouvintista.
Trata-se desses “alguns surdos querem ser ouvintizados a todo
custo. Desprezam a cultura surda, não têm compromisso com
a comunidade surda. Outros são forçados a viverem a situação
como que conformados a ela” (PERLIN, 1998, p.65). Muitos
59
nem adquirem a língua de sinais e nem a comunicação oraliza-
da, retendo fragmentos de identidades ouvintes e surdas, sem
F
conseguir transitar entre nenhuma delas.

O primeiro comentário que faço sobre essas teorizações vai


na linha das possíveis aproximações e distanciamentos entre os
Estudos Surdos (enquanto ramificação dos EC) e os princípios
foucaultianos. Ao mesmo tempo em que existe a possibilidade de
diálogo entre os dois campos teóricos12, como mostrou Veiga-Neto
(2000), existem momentos em que o debate torna-se difícil.
Como procurei mostrar, para Foucault o poder é uma força
difusa, que não se filia a um centro e que, portanto, não cria a

12
Tanto os Estudos Culturais quanto Foucault usam a teoria não só para descre-
ver as práticas e configurações sociais, mas para propor outras possibilidades
de arranjo. “Em ambos os casos, está presente uma clara inconformidade,
estudos surdos 11

dicotomia entre dominantes e dominados. No texto de Veiga-Neto


(2000), a posição dos autores filiados ao CCCS e, até certo ponto,
de alguns autores contemporâneos, é justamente oposta: “o poder
como algo que se arrebata, se possui, a fim de submeter os outros
à vontade de uma classe social (dominante), de uma instituição
ou do Estado” (p.64). Para eles,

por causa dessa derivação, o poder é entendido como de


natureza mutável: ele é uma coisa nas sociedades primitivas,
ele é outra coisa no mundo feudal, e outra coisa no mundo
capitalista. E, portanto, poderá se tornar outra coisa bem
diferente de tudo isso no futuro; é para construir esse futu-
ro que temos que agir no presente. Dado que, nesses casos,
60
f a História é vista como um movimento intrinsicamente
contínuo, progressivo e teleológico, há um destino potencial,
desde sempre impresso no poder (...) (VEIGA-NETO, 2000,
p.64, grifos meus).

Considerando que, deste prisma, o objetivo da luta é “o abran-


damento, a humanização ou até mesmo a extinção das próprias

uma atitude explícita contra as condições do presente ou, no mínimo,


desconfiada dessas condições” (VEIGA-NETO, 2000, p.48). Além disso, as
duas abordagens compartilham do pressuposto que os discursos e as práticas
(ou a cultura) interpelam os sujeitos, constituindo posições (ou identidades)
distintas. Desta forma, posições de sujeitos e identidades só se constroem
dentro de um grupo, no confronto com outros indivíduos. O que se estuda,
nos dois casos, são os mecanismos discursivos (ou narrativos) de construção
dos objetos e dos sujeitos, rejeitando a busca de uma representação original
com suas supostas correspondências e distorções.
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

relações de poder” (VEIGA-NETO, 2000, p.64), parece-me que


o resultado dessa disputa seria a abstração de uma sociedade em
que ninguém poderia agir sobre a ação do outro. Para esse autor,
“o poder é imanente à lógica de viver em sociedade” (p.63) e, por
isso, pensar uma sociedade sem essas relações seria tentar reverter
essa mesma lógica.
Tanto Perlin (1998) quanto Skliar (1998) parecem concordar
quando colocam as questões dos Estudos Surdos em termos da
polarização entre dominantes e dominados e teorizam no sentido
da superação dessa condição. A primeira autora convoca os surdos
a se oporem às tentativas de colonialismo lingüístico e cultural;
o segundo sugere que a discussão seja deslocada para as nossas
(ouvintes) representações sobre a surdez e os surdos, bem como
os seus desdobramentos em termos escolares e políticos, conforme 61
esse trecho: F
o nosso problema, em conseqüência, não é a surdez, não são
os surdos, não são as identidades surdas, não é a língua de
sinais, mas, sim, as representações dominantes, hegemônicas
e “ouvintistas” sobre as identidades surdas, a língua de sinais,
a surdez, e os surdos. Deste modo, a nossa produção é uma
tentativa de inverter a compreensão daquilo que pode ser
chamado de “normal ou cotidiano”(p. 30).

Partindo da pergunta desse autor acerca de “qual relação de


poderes e saberes temos perpetuado, aprofundado, negligenciado
na nossa relação de ouvintes com a surdez?” (2001, p.107), des-
loco-a para qual relação de poderes e saberes que temos criado,
produzido e enfatizado nessa nossa (nova) relação de teóricos
(surdos e ouvintes) com a surdez?
estudos surdos 11

Klein e Lunardi (2006), ao estudarem as fronteiras da cultura


surda e das diversas acepções do hibridismo13, contribuem com
essa discussão, uma vez que debatem tanto os essencialismos de
uma cultura surda em oposição à noção de fragmentação, quanto
o posicionamento de um tipo “puro” de cultura como um modelo
a ser alcançado a partir da superação de outros. Assim, estas redes
de poder, que parecem ter uma configuração mais rígida nas obras
de alguns autores dos Estudos Surdos, bem como no discurso de
lideranças das comunidades surdas, ganham uma nova interpre-
tação na visão de Klein e Lunardi (2006):

Nosso entendimento afasta-se de um binarismo, em que


cultura surda e cultura ouvinte encontram-se em posições
62 opostas, em relações de dominação onde o “ser surdo” passa
f pelo movimento de negação de uma cultura ouvinte (...)
Os processos de hibridação nos exigem o registro e análise
das relações de poder envolvidas em “fios que se mesclam”,
constituindo tramas. O poder não se constitui em relações
verticais: as bipolaridades se esvaem (p.19).

Na verdade, parece-me que a filiação ao sistema linguístico da


língua de sinais passou a ser um elemento tão central na configu-
ração das identidades surdas que acarretou um corte entre dois
grupos: o dos “surdos” e o dos “Surdos”. A distinção que o so-

13
As autoras defendem que a língua de sinais não pode mais funcionar como
única expressão da cultura surda sob pena de fossilizar o que se entende como
surdez: “Entender as culturas surdas é percebê-las enquanto elementos que se
deslocam, se fragilizam, hibridizam no contato com o outro, seja ele surdo
ou ouvinte” (p.17, grifo meu).
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

ciolingüista James Woodward traçou em 1972 (apud WRIGLEY,


1996) permanece até hoje em alguns textos que discutem a cul-
tura surda: desde então, uma distinção passou a ser feita entre os
surdos que se vêem como deficientes auditivos (os surdos com “s”
minúsculo) e os Surdos que compartilham uma categoria cultural
de auto-identificação (os Surdos com “S” maiúsculo):

seguindo o exemplo de James Woodward, nós adotamos


a convenção de letra maiúscula “Surdo” para descrever as
práticas culturais de um grupo dentro de um grupo. Nós
usamos a convenção “surdo” com letra minúscula para se re-
ferir à condição da surdez, ou o grande grupo de indivíduos
com perda auditiva sem referência a essa cultura particular.
63
Usando esta distinção, o grupo dos “Surdos” varia dentre F
aqueles que são surdos profundos até aqueles que ouvem
relativamente bem para conversar em inglês falado e usar
o telefone, os chamados com perda auditiva. Nós nos limi-
tamos a estabelecer a distinção dessa forma” (PADDEN e
HUMPHRIES, 2005, p.1-2, tradução livre).

Nessa mesma linha de raciocínio escrevem Lopes e Vei-


ga-Neto (2006). Conforme os achados obtidos a partir de uma
pesquisa com surdos militantes da causa surda e/ou surdos em
fase de escolarização, esses autores descreveram três marcadores
culturais presentes nas falas desses sujeitos: a experiência visual,
a importância da convivência da comunidade como aspecto
fortalecedor da identidade e a noção de luta pela causa surda. Ao
comentarem a questão dos encontros surdos como esse momento
de fortalecimento identitário, relatam também a desconfiança
estudos surdos 11

em relação àqueles “membros” que podem não ser integrantes


“autorizados” nessa comunidade:

Fortalecem-se as narrativas entre os surdos que produzem


fronteiras, que dividem a sociedade entre amigos e inimigos,
entre simpatizantes da cultura surda e não-simpatizantes. Na
segunda divisão, mesmo aqueles aceitos como amigos estão
constantemente sob suspeita, ou seja, suspeita de exercício
de ouvintismos. Viver entre amigos, enfatizar a importân-
cia dos encontros presenciais para que todos possam olhar
para conversar são práticas de exaltação da comunidade que
podem ser percebidas em diferentes narrativas de surdos
(LOPES e VEIGA-NETO, 2006, p.89).
64
f Não se nega que a história dos surdos seja pautada na do-
minação pelos ouvintes. Entretanto, os efeitos dessa assimetria não
podem ser simplificados. Wrigley (1996) apresenta, por exemplo,
como o discurso do surdo enquanto minoria discriminada, isolada,
foi utilizado tanto por Abbé de l’Eppé14 para justificar uma escola
especial para os surdos, como é recapturado na atualidade por
médicos especializados em implantes cocleares para justificar seus
procedimentos cirúrgicos, assim como por aqueles profissionais
envolvidos nas questões educacionais e escolares dos surdos. Em
outras palavras, o discurso não é necessariamente bom ou neces-
sariamente mau; ele provoca efeitos que colocam em jogo relações
(assimétricas) de poder. Na opinião de Wrigley, a distinção entre
Surdos e surdos, por si só, não parece dizer muito:

14
Personagem importante na historia da escolarização dos surdos em escolas
bilíngües. Ver Wrigley (1996) para maiores detalhes.
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

É um dualismo severo – bom Surdo, mau surdo – que


não contribui muito para ajudar os indivíduos na sua vida
diária. Nem ajuda a iluminar a amplitude de estratégias
empregadas pelos indivíduos, lidando com a exclusão e as
muitas formas de opressão na vida diária deles. Em termos
simples, a dicotomia do “S/s” é tão grosseira que, enquanto
inicialmente útil, hoje serve para silenciar a gama ampla
de experiências s/Surdas” (1996, p.55, tradução livre).

Mais que silenciar as outras formas de ser surdo, contudo,


penso que as distinções e categorizações servem para definir
modelos (aceitáveis) de surdez. Ao mesmo tempo em que há a
negação do modelo de deficiência, cria-se a “verdadeira identi-
dade cultural surda” a ser seguida: “A comunidade surda, ao se 65
opor aos discursos que a localizam na lógica da deficiência e dos F
discursos ouvintistas, acaba, também, excluindo aqueles que não
atingem as prerrogativas de ‘uma suposta cultura surda’” (KLEIN
e LUNARDI, 2006, p.20).
A hipótese de Lopes e Veiga-Neto (2006), como já fiz referên-
cia anteriormente, é de que a escola, enquanto espaço disciplinar,
funciona como um espaço que exige a padronização e minimiza as
dissidências. O espaço escolar impede que as diferenças apareçam.
Cito agora alguns trechos da literatura e das falas das professoras
que mostram como a construção dessa rede acontece.

4. Os efeitos do enredamento entre teoria e prática:


cenas do cotidiano escolar

Diante do engajamento da escola com a proposta de educação


bilíngüe, duas questões se desdobram: a primeira delas está rela-
estudos surdos 11

cionada ao fato de que com a centralidade da Libras no contexto


escolar dos surdos, pesquisas vêm sendo desenvolvidas acerca das
interações entre os alunos surdos e professores ouvintes, constituin-
do-se, assim, saberes que embasam políticas e práticas educacionais
e que se alimentam delas para produção de outros saberes.
Góes (2000) é uma autora que investigou os interlocutores
com os quais os surdos têm dialogado, chegando à conclusão de
que o grupo pesquisado aprendia a dialogar em Sinais predomi-
nantemente com ouvintes, sejam eles professores especializados,
itinerantes, de classe regular ou fonoaudiólogos. O que caracteriza
todos estes interlocutores, contudo, é a não-proficiência na língua
de sinais, levando-os a apresentar

66 grande heterogeneidade na capacidade de usar sinais,


f [construindo] nos diálogos, formas híbridas de linguagem,
compostas de elementos das duas línguas, em enunciados
subordinados às regras de construção da língua majoritária,
além de se apoiarem em vários recursos gestuais. Ocorre,
então, uma certa diluição dos Sinais numa gestalt de reali-
zações lingüísticas, que interfere na aquisição em processo
e na compreensão de que se trata de uma língua, distinta
da língua oral (GÓES, 2000, p.42).

Mais do que a não-proficiência, segundo a autora, os inter-


locutores dessas crianças, enquanto representantes da instituição
escola, têm concepções distorcidas/errôneas sobre o que é a lín-
gua de sinais e quais as suas diferenças em relação à modalidade
oral, além de pouco saberem sobre as características peculiares
e dificuldades dos surdos no processo de aquisição da Libras.
Peço licença para citar um trecho longo em que a pesquisadora
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

menciona alguns desses “mal-entendidos” (p.38) a partir de


entrevistas com duas professoras ouvintes de alunos surdos:

os seus depoimentos sugeriam que elas não entendiam


o quanto esse processo de aquisição é complexo e pro-
longado. Não tinham claro que, para os dois alunos, as
oportunidades de vivências de linguagem (oral e de Sinais)
haviam sido criadas, por diversas razões, com considerável
atraso. De modo geral, transparecia um desconhecimento
das possibilidades e necessidades de uma criança surda.
A professora de Vitor, por exemplo, pedia “dicas” sobre
o modo de falar claramente frente ao aluno. Julgava que
ele conhecia (até certo ponto), a língua portuguesa e que
o problema era mais de caráter técnico, de recepção das 67
palavras. Não percebia que essa mera recepção seria, na F
verdade, uma espécie de leitura oro-facial da articulação
de enunciados nada ou pouco compreensíveis (não seriam
enunciados, portanto), pois a aquisição da língua estava
em lento processo. Também os comentários de outra
professora sugeriam concepções semelhantes, indicando
que ambas não compreendiam o intenso trabalho de
“língua e linguagem” que se fazia necessário em relação à
instauração de capacidade na esfera da oralidade (GOES,
2000, p.38).

Ainda que seja importante pensar os aspectos lingüísticos da


aquisição da língua, e em que sentido o não-domínio dessas pro-
fessoras do sistema lingüístico dos alunos dificulta, entre outras
coisas, a transmissão de conteúdos escolares, como diria Skliar
(2001), a discussão não pode se restringir ao âmbito metodológico,
estudos surdos 11

lingüístico ou psicolingüístico. Ela tem que ser pensada em termos


políticos. Primeiro, acaba havendo uma distinção entre locutores
autorizados e locutores reserva/secundários e uma valorização das
trocas entre surdo-surdo e depreciação da interação surdo-ouvinte,
como fica explícito tanto na opinião de Góes (2000) quanto na
da professora 1:

Como a língua tem um papel constitutivo da subjetividade,


esse cruzamento é complexo e torna-se complicado se a
Língua de Sinais, que realmente permite à criança signifi-
car o mundo e a si própria, for adquirida tardiamente de
maneira mais ou menos descaracterizada, devido à ausência
dos interlocutores legítimos para essa aquisição (GÓES, 2000,
68 p.4, grifo meu).
f Se a gente pega um surdo só e bota um intérprete, bom,
ele vai ter língua de sinais com outro ouvinte, vai ter uma
troca com um outro ouvinte que é intérprete, mas e a troca
com um outro surdo? Se a gente pegar um caso específico
como exemplo. Então assim, eu penso que eles precisam
dessas trocas entre eles, entre a comunidade (...) essa coisa que
dá possibilidade de ter modelos lingüísticos eu acho muito
importante, muito importante mesmo (Professora 1).

Ainda discutindo essa questão, observa-se que, no sentido de


sanar essa deficiência de professores lingüisticamente capacitados,
políticas públicas passam a entrar em vigor de modo a garantir que
a Língua Brasileira de Sinais efetivamente funcione “como meio
de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades
surdas do Brasil”, conforme expresso na Lei Nº. 10.436, de 2002
(anexo 1, PERSPECTIVA, 2006, p. 303).
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

O decreto Nº. 5626, de 2005, que regulamenta a lei supraci-


tada, trata, em um de seus capítulos, da formação do professor de
Libras e do instrutor de Libras. Segundo o artigo 4º.,

a formação de docentes para o ensino de Libras nas séries


finais do ensino fundamental, no ensino médio e na educa-
ção superior deve ser realizada em nível superior, em curso
de graduação de licenciatura plena em Letras: Libras ou
em Letras: Libras/Língua Portuguesa como segunda língua
(anexo 2, PERSPECTIVA, p. 305).

Se, por um lado, é possível comemorar a conquista de um


direito a uma formação que reconhece e atende as especificidades
da Libras, por outro, percebem-se os sutis mecanismos de manu- 69
tenção da cultura surda no parágrafo único, o qual estabelece que F
“as pessoas surdas terão prioridade nos cursos de formação previstos
no caput” (anexo 2, PERSPECTIVA, p. 305). Fica aqui a dúvida
em relação a todos aqueles professores ouvintes que já trabalham
com alunos surdos e que, talvez, pudessem se especializar, ou tantos
outros que iniciam a sua carreira docente e que não são legitimados
como potenciais candidatos às vagas em cursos de formação de
Letras: Libras ou Letras: Libras/Língua Portuguesa. Considerando
que uma das queixas de Góes (2000) era “que não há uma língua
efetivamente partilhada pelos interlocutores, uma base de território
lingüístico comum ou um funcionamento intersubjetivo fundado
em possibilidades de acordos mútuos frente às zonas de sentido da
palavra” (p.43), parece-me que agora essa possibilidade de acordos
mútuos fica ainda mais remota, já que os surdos serão ensinados,
prioritariamente, pelos “legítimos” professores surdos, agora tam-
bém altamente capacitados.
estudos surdos 11

Nas falas da professora 2, vêem-se as configurações hierár-


quicas que se formam na escola e a reação de defesa (incluindo
seu riso desconfortável) diante desses saberes que determinam
o ideal a ser alcançado, nos moldes de uma história progressiva,
conforme citação anterior de Veiga-Neto (2000). Ao mesmo
tempo, diante do surdo em sala de aula, a professora se “cala”,
ou sai de cena, deixando que o instrutor execute seu papel de
referência para os alunos:

Não me considero uma pessoa que domine a língua de


sinais, que tenha, assim.... Me defendo (risos), me defendo
com a língua de sinais, mas tenho muito que aprender ainda,
né? Muita vontade de fazer o curso pra... né, pra melhorar
70 o meu conhecimento lingüístico, as minhas possibilidades
f de crescer em língua de sinais, mas, tudo vai depender da
negociação com o pessoal da coordenação da universidade
porque trezentos e vinte reais... é pesado. (Professora 2,
grifo meu).
Essa ainda é uma situação que a gente não consegue resolver
na escola porque pra gente ter momento... por exemplo, no
atendimento especial, não existe. Digamos assim, a minha
integração com o instrutor 2 aqui com o atendimento especial,
inviável, não tem. Ou eu sento aqui e participo da aula dele...
às vezes eu digo pra ele: “Ah, que que tu tá vendo?”; “Ah, es-
tamos trabalhando esquema corporal”, “estamos trabalhando
nome”, “Tô trabalhando percepção essa semana”... “aí, quero
trabalhar sinais, alimentação”... Então aquilo que eu peço
e ele trabalha. “Ah quero trabalhar afetividade, relações de
amizade”... e daí ele faz o trabalho dele, mas eu não participo,
não fico junto porque senão as crianças perdem a referência. Se
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

eu tô aqui e o instrutor 2 tá aqui, quem é a referência? É o


instrutor 2 ou sou eu? Então eles perdem a referência. Então
eu nunca freqüento (Professora 2, grifo meu).

Por outro lado, durante a observação de uma atividade da


“área15”, a pesquisadora recebe a autorização dos instrutores sur-
dos para filmar a atividade e procura neutralizar a sua presença,
localizando-se num lugar mais isolado. No entanto, em certo
momento, o próprio instrutor convida a pesquisadora para par-
ticipar do ensaio da poesia que estava sendo trabalhada, evento
este que permite levantar alguns questionamentos: considerando
que a “área” tem a conotação de ser um espaço primordialmente
71
surdo, não partilhado pelos professores ouvintes para evitar que
“os surdos não percam a referência”, a pesquisadora experimenta
F
tanto a sensação de intromissão na atividade do grupo, quanto se
sente lisonjeada por ser chamada, por ser “admitida” nesse grupo.
Porém, penso que essas duas reações se configuram como efeitos
das verdades produzidas e difundidas no ambiente da escola
bilíngüe e que precisam ser colocadas em xeque, afinal, por que
apenas o surdo pode servir de referência enquanto professor? Que
discurso é esse da “perda de referência” que “cerca” os espaços e
“proíbe” a presença de professores ouvintes?
A segunda questão se refere à hierarquia que se forma e conforme
a qual um modelo de surdo, próximo do que Perlin (1998) chamou

15
Lembro que a “área” é o espaço em que todos os alunos (do atendimento
especial e das séries regulares) se reúnem com os instrutores surdos para
trabalharem questões ligadas à cultura surda.
estudos surdos 11

de “identidade surda”, passa a ser buscado dentro do ambiente da


escola bilíngüe. A retomada da discussão sobre a norma enquanto
elemento que favorece, inicialmente, uma aproximação entre surdos
e deficientes múltiplos para, num segundo momento, estabelecer
diferenças, também pode ser feita a partir desses saberes.
Ao falar das relações entre estes dois grupos, as três professoras
estabelecem um corte na história do atendimento especial, com
a configuração de dois momentos distintos. Primeiramente, há a
referência a um tempo passado, no qual a questão dos deficientes
múltiplos não tinha visibilidade e eles eram confinados a certos
espaços. Esse discurso aparece quando, por exemplo, a professora
2 fala da época em que os múltiplos não participavam do horário
de recreio, ou quando a professora 3 conta que por um ano não
72 soube que havia múltiplos na escola, justamente pela não-circu-
f lação deles no ambiente da escola.
O segundo momento descrito é o atual, encarado como uma
etapa transitória de “uma caminhada” mais longa que parece ter
um destino a ser alcançado. Neste segundo momento histórico,
na opinião das professoras, discursos e práticas que pregavam o
“preconceito” passam a conviver com outros discursos de “respeito”
aos deficientes múltiplos. A incorporação da idéia de aceitação
ocorre nos enunciados e práticas não apenas dos professores, mas
também dos alunos. A professora 3 narra, a título de exemplo,
o fato de que agora é possível observar os alunos da educação
infantil chamando os do atendimento especial para brincar
juntos, ou a própria proposta da escola de que as professoras
do atendimento especial tenham reuniões junto com as demais
professoras do turno.
Apesar da conotação otimista que essas mudanças possam ter
no discurso docente, acredito que é preciso problematizar essa
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

“caminhada” a que as três professoras se referem, ou, em outras


palavras, esse movimento de inclusão que o atendimento especial
experiencia na atualidade da Escola Gabriela Brimmer. Vários
autores já procuraram denunciar o caráter de ambigüidade das
propostas da educação inclusiva, mas, para este trabalho, me refiro
a dois especificamente: Veiga-Neto (2001) e Lunardi (2006).
Ao teorizar sobre a díade normal/anormal, Veiga-Neto (2001)
situa o seu ponto de vista dentro da hipercrítica, ou seja, um
prisma que leva em consideração a genealogia dos vários elemen-
tos “classificados” pela Modernidade como anormais, ao mesmo
tempo em que interroga a popularidade que o termo “inclusão”
tem ganho recentemente.
A forma pela qual Foucault explica essa articulação entre as
duas séries – a do corpo-organismo – disciplina – instituições e a 73
outra população – processos biológicos – mecanismos regulado- F
res é a norma. Esse conceito é capaz de operar o disciplinamento
dos corpos e administrar os acontecimentos aleatórios de uma
multiplicidade biológica enquanto população. Com isso, acredita
Foucault (2005c), o poder no século XIX “conseguiu cobrir toda
a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à
população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina,
de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra”
(p.302). Conforme Veiga-Neto (2001), a norma tem uma dupla
realidade, ou seja, “de um lado: norma como regra de conduta,
como oposição à irregularidade e à desordem; de outro lado: a
norma como regularidade funcional, como oposição ao patológico
e à doença” (p.115).
A conclusão mais interessante de Veiga-Neto (2001) para essa
discussão que estou procurando fazer é que a norma, simultanea-
mente, inclui – quando se aproxima dos anormais para torná-los
estudos surdos 11

inteligíveis – e exclui – na medida em que os coloca numa distân-


cia segura ao classificá-los como destoando da média enquanto
medida estatística de uma população. Nas suas palavras, “ao fazer
de um desconhecido um conhecido anormal, a norma faz desse
anormal mais um caso seu. Dessa forma, também o anormal está
na norma, está sob a norma, ao seu abrigo” (p.115). Para ele,
“ninguém escapa da norma” (p.116).
Ao discorrer sobre as políticas de inclusão, tendo como foco
a educação dos surdos, Lunardi (2006) defende que o discurso
dos órgãos educacionais não é mais acerca da disciplinarização dos
corpos no sentido terapêutico, de oralização, mas a preocupação
com o gerenciamento dessa massa de alunos que tem buscado a
escola regular e que, ao fracassar, evadem das salas de aula. Na
74 opinião dessa mesma pesquisadora, porém, a educação especial,
f que, curiosamente, não desaparece com as perspectivas inclusivas,
serviria como uma estratégia para “preparar” os alunos para as salas
regulares. Uma dessas medidas profiláticas, que são desenvolvidas
nas salas de “apoio”, por exemplo, é o trabalho de domínio da
língua portuguesa, preparatório para o ingresso no ensino regular,
considerando que a norma, nesses espaços, é de crianças ouvintes
alfabetizadas. Resumindo o que foi dito,

a Educação Especial aparece nesse sistema com o objetivo


de diagnosticar e prevenir possíveis casos problemáticos
que perturbem a ordem existente e ameacem o cum-
primento dos objetivos estabelecidos pela escola. Assim,
as dificuldades devem ser detectadas a priori para serem
eliminadas o mais rápido possível. Para isso, cada caso é
submetido a uma prova-diagnóstico e a uma normalização
preventiva. Considerada deste ponto de vista, a Educação
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

Especial exemplifica um sistema de normalização dirigido


aos desvios individuais, ou seja, àqueles que perturbam o
funcionamento da escola. Da mesma forma, opera como
um mecanismo de gerenciamento do risco social, colocado
em funcionamento pela política de inclusão. (LUNARDI,
2006, p.188)

Se Lunardi (2006) refere-se à inclusão dos surdos nas escolas


regulares, Lopes e Veiga-Neto (2006) abordam a realidade das esco-
las bilíngües. Lembrando o que Veiga-Neto (2001) afirmou sobre
o papel da escola, enquanto máquina de governamentabilidade,
podemos aliar essa discussão àquela que fizemos há pouco sobre as
identidades surdas. Na opinião de Lopes e Veiga-Neto (2006), a
75
escola vem se constituindo como um dos lugares (senão o primeiro F
deles) em que os surdos têm acesso à língua e a um espaço em que
a cultura surda pode se materializar. Porém, da mesma forma que
a escola tem funcionado como elemento aglutinador, justamente
pelo seu caráter de máquina, ela produz. Ao estabelecer certas
normas, a escola opera certos ordenamentos tanto nos moldes do
poder disciplinar quanto nos do biopoder.
Gostaria de estabelecer uma comparação entre os proce-
dimentos de normalização da escola que impõem aos surdos a
fossilização e homogeneização de certos marcadores culturais e
outro que permite que o atendimento especial, dentro da escola
bilíngüe, funcione como um mecanismo includente e excludente.
Includente por permitir que deficientes múltiplos circulem nesse
espaço, e excludente, já que eles devem estar sujeitos aos modelos
definidos por um tipo de surdez que é construído nos espaços de
ensino seriado (e não no atendimento especial).
estudos surdos 11

Ao falar da relação entre os surdos e os deficientes múltiplos,


além de citarem esses dois momentos pelos quais o atendimento
especial tem passado, as professoras interpretam “as diferenças16”
entre ambos os grupos como tendo uma conotação positiva, sem
que, no entanto, se consiga definir no que elas consistem ou que se
problematizem possíveis relações de poder presentes nessa noção.
A professora 2 tenta explicá-la, situando-a como um “olhar mais
claro que se pode ter”. A professora 1 acredita que os surdos têm
muita coisa “a aprender com os nossos alunos especiais no sentido,
assim, de várias coisas que a gente observa”.
Nesse “território geográfico17” de troca entre surdos e múltiplos
que se configura na escola bilíngüe, se não se consegue definir o
que é essa diferença dos múltiplos e que implicações ela tem na
76 materialidade das relações que se formam, por outro lado, as pro-
f fessoras têm claro que a grande vantagem dessa convivência com
os demais surdos, sejam eles alunos ou instrutores, é contribuir
para a formação de um suposto modelo identitário a ser adotado
pelos múltiplos.

16
Na mesma linha de raciocínio de Veiga-Neto (2001), Skliar (2001), ao discutir
os termos deficiência, diversidade e diferença numa perspectiva dos Estudos
Culturais, chega à conclusão de que a diversidade não pode ser lida como a
aceitação democrática da pluralidade, já que são aqueles que “hospedam” os
que acabam criando essa falsa noção de igualdade. Não se deve, conseqüente-
mente, pensar a diversidade enquanto “condição da existência humana [mas]
como efeito de um enunciado da diferença que constitui as hierarquias e as
assimetrias de poder” (SCOTT, 1995, apud SKLIAR, 2001, p. 98).
17
Wrigley (1996) lembra que a surdez é um país sem lugar próprio; é uma cida-
dania sem origem geográfica, e que é justamente essa falta de “nacionalidade
própria” que, muitas vezes, acaba funcionando para a concepção da surdez
como uma condição e não como um nação.
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

Na sexta série, que tá aquele menino Ln18., que a gente


colocou, que ele tem autismo... nossa, eles ficaram muito
impressionados com a facilidade que ele tem pra matemá-
tica e tal, né? Então eles percebem assim, e agora eles têm
mais um certo respeito por eles. Eles só viam a questão
do comportamento, algumas estereotipias, algumas coisas
assim que eles tinham. Eu penso que a diferença, ela tem
a acrescentar pra todos os lados. Tanto do lado das crianças
do atendimento especial terem modelos, como para questão dos
surdos do entendimento da diferença, dessa coisa, assim... eu
penso que tá legal, tá legal, tem muito pra melhorar ainda
(Professora 1, grifo meu).

Ainda que a norma tenha como um dos objetivos padronizar, 77


homogeneizar e que a convivência na escola bilíngüe sirva para F
estabelecer modelos, é importante que essa mesma norma garanta
uma distância segura entre os grupos, de modo que não haja a
incorporação de um grupo ao outro. É do gerenciamento desse
risco que Lunardi (2006) fala, quando diz que

uma forma de gerenciar os riscos é entendê-los como defini-


dos pela presença de critérios estabelecidos por uma ordem
médica ou social, por sua vez fornecida por uma expertise. Este
se caracteriza por ser uma espécie de diagnóstico científico
que, além de legitimar um saber sobre os indivíduos, os
localiza e os distribui em lugares precisos (p.182).

18
Aluno de um grupo do atendimento especial que foi “promovido” para a
sala da sexta série. Todos os alunos citados tiveram seus nomes abreviados
de modo a manter sua identidade preservada.
estudos surdos 11

Assim sendo, depois de apresentarmos o discurso militante da


professora em defesa dos modelos identitários surdos, como se fosse
possível, nesta caminhada, aproximar cada vez mais os múltiplos de
um padrão, percebem-se alguns enunciados nos quais o corte entre
surdos/múltiplos é claramente estabelecido. No trecho a seguir, a
professora retoma uma cena que acontece num momento em que
um dos grupos do atendimento especial está sob a supervisão de uma
nova estagiária surda e onde o surdo marca uma diferença entre ser
surdo e ser múltiplo. Enquanto a professora concede a entrevista,
a estagiária vai até a sala de aula pedir ajuda dela para resolver um
impasse. A sua questão era se deveria ou não permitir que P., aluno
da turma, recortasse fotos de mulheres de biquíni.

78 Estagiária: “Como é que eu faço, porque ele é múltiplo...


f eu deixo ele recortar”?
Professora 2: Porque ele adora mulheres bonitas, todas as
fotos sensuais.... “Ele é um jovem, os hormônios funcionam
tanto quanto qualquer um, sem problema... pode deixar ele
recortar, colar e fazer.”(risos)
Estagiária: “Mas ele é especial...”
Professora 2: Mas ele também tem hormônios, o corpo
dele é normal!

A professora sai em defesa de P. ao tentar negar a afirmação


de que ele pudesse, em algum sentido, ser diferente dos demais
adolescentes de sua idade (surdos ou ouvintes) que se interessam
em ver mulheres de biquíni. Seu argumento se apóia na construção
da igualdade com base em argumentos biológicos: “Ele também
tem hormônios”, diz ela, desconsiderando a possibilidade de que
as diferenças possam ser desconstruídas a partir de outros critérios,
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

tais como as relações de poder. Em outros momentos, contudo,


é justamente o argumento biológico que caracteriza a diferença
entre surdos e ouvintes, o que poderia levar certos analistas de
discurso a concluir que o discurso docente não é coerente e, sim,
habitado por contradições19.
Por exemplo, quando trato das formas de comunicação que ela
estabelece com um de seus alunos, We., a professora 3 esclarece que
acredita que deva falar com o aluno e justifica sua atitude pelo fato
de que, pelo comprometimento orgânico e pelas suas condições
sociais, encontra-se num “nível aquém” de desenvolvimento, o qual
o impede de sinalizar, como apresento nesta passagem:

Entrevistadora: Eu vi um pouquinho dessa tua interação


com ele, como se dá essa comunicação, mas me fala um 79
pouquinho como tu procura trabalhar essa questão da F
comunicação...
Professora 3: (risos) É difícil, né... porque é como o We.
não é... ele tem muito atraso... ele tem muito comprome-
timento, é uma questão bem delicada, tem a questão de

19
Na verdade, para Foucault (2005a), a arqueologia não se ocupa em resgatar
coerências internas do discurso; visto de outra forma, a contradição pode ser
um dos efeitos das redes formadas pelos enunciados. Ao falar sobre a mate-
rialidade da função enunciativa, tem-se que “o enunciado, ao mesmo tempo
que surge em sua materialidade, aparece com um status, entra em redes, se
coloca em campo de utilização, se oferece a transferências e a modificações
possíveis, se integra em operações e em estratégias onde sua identidade se
mantém ou se apaga. Assim, o enunciado circula, serve, se esquiva, permite
ou impede a realização de um desejo, é dócil ou rebelde a interesses, entra
na ordem das contestações e das lutas, torna-se tema de apropriação ou de
rivalidade” (p.119).
estudos surdos 11

saúde, que ele ainda tá... tem um histórico assim, bem...


histórico de convulsão, ele vem de família humilde, então,
assim, o que eu tento fazer? Como eu te disse, eu falo com
ele. Como eu sei que na família eles também falam com
ele, eu acho que a gente tem que continuar. Algum sinal,
alguma coisinha, de vez em quando eu faço com ele, até
pra vó conhecer, tudo... só ainda não tem a troca por sinal...
não tem... (Professora 3, grifos meus).

Para concluir, resgato uma citação de Lunardi (2006) que


expõe que a idéia de educação especial, como uma preparação
para as classes regulares, acaba funcionando como um “limbo”, de
onde o sujeito só sai após ter alcançado as condições mínimas para
80 acompanhar o próximo estágio: “Poder-se-ia dizer que haveria um
f estágio no qual fosse possível deduzir, com base em alguma definição
mais geral, perigos que pudessem advir e, assim, antecipadamente
preveni-los” (p.187). Esta passagem da professora 3 vai na direção
de delimitar as etapas, com a conseqüente noção de que ainda não
é hora de “receber” o modelo surdo.

É que assim, como os meus alunos são muito especiais, por


exemplo, com o grupo da professora 2 isso já aparece mais, a
necessidade da cultura surda, da vivência, daquela coisa. Com
os meus, já não é, eu vejo que é mais isolado, é uma coisa mais
específica. Tipo que nem o M., até dá pra introduzir porque
o M. já é mais independente, já é possível colocar ele no
grupo. Agora os outros dois pequeninhos aqui não. Ainda
tá muito aquém pra poder introduzir uma coisa da cultura
surda. Talvez com a família, aí sim, pra trabalhar a família.
Agora os alunos, os meus alunos, acho que ainda tá muito
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

cedo (risos). É meio complicado trabalhar esse tipo de coisa


com eles. (Professora 3).

O referencial biológico é utilizado aqui para marcar a distin-


ção entre aqueles que não têm condições cognitivas de acesso a
Libras e que, mesmo estando inseridos numa escola bilíngüe pela
sua condição de surdez, acabam não sendo expostos à língua de
sinais, considerando que We. freqüenta o atendimento individual
desde 2004. Não pretendo, com essa afirmação, emitir um juízo de
valor sobre a prática da professora, mas propor uma reflexão acerca
de como algumas práticas escolares contribuem para manter esse
afastamento, ou melhor, essa fronteira entre surdos e múltiplos,
tão “necessária” nesses tempos de educação inclusiva, conforme
discuti com base nos textos de Veiga-Neto (2001). 81
Além disso, quando a estagiária surda traça essa linha divisória F
que a afasta dos múltiplos, observa-se que, com o distanciamento
da surdez de um paradigma de deficiência auditiva, os surdos es-
tabelecem como campo de luta apenas as causas ligadas à surdez;
não há qualquer princípio de reivindicação comum em nome de
uma classe mais ampla de deficientes. Na verdade, não há nem
mesmo uma luta pela manutenção das diferenças surdas, mas
uma disputa pelo apagamento delas. Em outras palavras, salvo
exceções, a comunidade surda luta pela mesmidade (LOPES e
VEIGA-NETO, 2006).

5. Alguns perigos a enfrentar

Com este texto, pretendeu-se fazer um alerta para a importância


de uma suspeita constante em relação aos discursos e práticas.
No que diz respeito aos efeitos dessa discussão para a formação
docente, pode-se pensar que, enquanto as professoras procuram
estudos surdos 11

(re)produzir20 o discurso da cultura e identidade surdas, opondo-


se ao discurso supostamente opressivo da deficiência auditiva,
acabam caindo na rede de poder tecida por esse discurso mesmo,
tanto ao estabelecerem modelos de surdez a serem seguidos pelos
múltiplos, quanto acabam sendo deslegitimadas como locutoras
capacitadas para ensinar surdos.
No texto O Sujeito e o Poder, ao conceituar o que seria, en-
fim, o sujeito, Foucault trata daquilo que nos “conduz” a sermos
nós mesmos, afastando-se tanto das explicações essencialistas ou
das práticas reprodutoras. Para esse filósofo, o grande embate da
atualidade é contra a submissão da subjetividade, ou seja, a re-
volta contra as técnicas de governo dos homens que estruturam o
campo das nossas ações. A partir de Foucault, permite-se colocar
82 uma interrogação nesse momento mesmo em que a professora diz
f “defender-se com a língua de sinais”, de dizer que, diante de um
instrutor surdo não pode funcionar como referência para outros
alunos surdos, uma vez que é ouvinte.
Da mesma forma, destaco outro perigo a ser enfrentado, con-
forme Lunardi (2006), qual seja o tensionamento das fronteiras
entre essas identidades surdas tidas como “puras”, de modo a
se promover o hibridismo e desconstruir a dicotomia entre do-
minantes e dominados. Mais além, Lopes e Veiga-Neto (2006)
sugerem que esse processo possa começar, talvez, distante dessa
pedagogização e normalização da comunidade surda imposta pela
escola, privilegiando outros espaços de encontros dos grupos, tais
como as associações de surdos.

20
Ao colocar o discurso em prática, as docentes acabam colocando em movi-
mento a produção de (novos) saberes.
c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilíngüe

Quero deixar claro, com isso, que não concebo a possibilidade


de um espaço escolar livre de relações de poder, já que para Fou-
cault isso seria uma abstração. Muito menos quero dar a entender
que agora os pólos da luta teriam se invertido, com ouvintes ou
múltiplos sendo subjugados pelos surdos.
Fecho essa discussão citando dois trechos que pensam a questão
da subjetivação e do poder dentro da escola: o primeiro nos lembra
que “pensar a escola a partir de uma perspectiva das culturas híbridas
não se refere a um processo tranqüilo de integração de diferenças,
mas de um espaço de lutas e constantes ressignificações (KLEIN e
LUNARDI, 2006, p.21); o segundo não nos deixa esquecer que “é
preciso que tenhamos clareza de que não cessamos de nos produzir e
ser produzidos como sujeitos, como um “derivar”, produto de pro-
cessos de objetivação e subjetivação” (SIQUEIRA, 1988, p.180). 83
F

Referências bibliográficas

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