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2001 - Procissão Do Enterro (Versão Festa)

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A PROCISSÃO DO ENTERRO:

UMA CERIMÔNIA PRÉ-TRIDENTINA NA AMÉRICA PORTUGUESA(*)

Paulo CASTAGNA(**)

CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América


Portuguesa. In: JANCSÓ, Istán e KANTOR, Iris. Festa: cultura e sociabilidade
na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec, Editora da Universidade de São
Paulo, Fapesp e Imprensa Oficial, 2001. v.2, p.827-856 (Coleção Estante USP -
Brasil 500 Anos. v.3) ISBN: 85-314-0619-6 (Edusp), 85-271-0555-1 (Hucitec) e
85-271-0557-8 (Hucitec)

RESUMO. A Procissão do Enterro de Sexta-feira Santa surgiu no Mosteiro de Vilar de Frades


(Portugal) entre os séculos XII e XIII e foi incorporada à liturgia do Bispado de Braga, sendo descrita
pela primeira vez no Missale Bracharense de 1558. Esta cerimônia subsistiu após o Concílio de Trento,
pois a Bula Quod a nobis de Pio V (1568) permitiu a manutenção das liturgias que já fossem praticadas
há mais de 200 anos. Com isso, a Procissão do Enterro difundiu-se para as colônias lusitanas da Ásia,
África e América, sendo praticada até hoje em vários países de fala portuguesa. No Brasil, tornou-se
uma das mais importantes celebrações da Semana Santa, com a utilização de composições musicais
portuguesas e brasileiras em latim, preservadas sob a forma de manuscritos em vários arquivos do país.

ABSTRACT. The Good Friday Procissão do Enterro (Funeral Procession) first appeared in the
Vilar de Frades Monastery (Portugal) between the twelfth and thirteenth centuries and was incorporated
into the liturgy of the Bishopric of Braga, where it was first described in the Missale Bracharense (Braga
Missal) in 1558. This ceremony continued after the Council of Trent because the Papal Bull Quod a no-
bis, written by Pious V in 1568, permitted the permanence of liturgies already in use for more than 200
years. This meant that the practice of the Good Friday Funeral Procession spread to the Portuguese
colonies in Asia, Africa and America, and is still practiced in several Portuguese-speaking countries. In
Brazil, it became one of the most important celebrations of Holy Week, with the use of Portuguese and
Brazilian musical compositions in Latin, manuscripts preserved in several archives in the country.

1. Introdução

A Procissão do Enterro é uma celebração religiosa de origem medieval, pratica-


da ainda hoje em Portugal e no Brasil, como a última cerimônia religiosa da Sexta-feira
Santa. Embora em franco declínio, o costume ainda é observado em Portugal, sobretudo
em Braga, como informa a publicação lusitana Festas religiosas: 1

“Durante séculos senhorio dos arcebispos, Braga conserva nos


seus monumentos muita de sua grandeza medieval. Nas imponentes Festas
da Semana Santa, além das cerimonias que decorrem na Catedral româ
(*)
Este texto é uma versão modificada da comunicação “A Procissão do Enterro de Sexta-feira Santa:
subsídios para as reconstituições musicais”, apresentada no III Simpósio Latino-Americano de Musicolo-
gia (Curitiba, 21-24 jan.1999). A pesquisa faz parte da tese de doutoramento “O estilo antigo na prática
musical religiosa paulista e mineira nos séculos XVIII e XIX”, sob orientação do Prof. Dr. Arnaldo Da-
raya Contier, na FFLCH/USP.
(**)
Pesquisador da música brasileira e Professor do Instituto de Artes da UNESP - Universidade Estadual
Paulista.
1
PORTUGAL. Festas religiosas. Lisboa: ICEP, [c.1990]. p.4-5.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 2

nica, salientam-se as grandiosas procissões de ‘Senhor Ecce Homo’, na


noite de Quinta-feira e a do ‘Enterro do Senhor’, na Sexta-feira Santa,
num percurso que acompanha as muralhas da velha cidade romana ao
longo dos ‘passos’, autênticos altares de rua; [...]”

O Brasil é a região na qual esta devoção está mais difundida e preservada, sendo
praticada mesmo em grandes cidades, como São Paulo, onde ocorre todos os anos em
vários bairros, cantando-se, em alguns deles (como na Lapa), música com textos que
remontam, pelo menos, ao século XVIII. Em Minas Gerais, entretanto, a Procissão do
Enterro é mais freqüente e mais tradicional, especialmente na cidade de São João del
Rei, que, para a ocasião, atrai centenas de pessoas de cidades vizinhas e mesmo de ou-
tros Estados.
Existem muitos detalhes envolvidos nessa devoção. Em termos gerais, a cerimô-
nia inclui um ou dois Sermões alusivos à Paixão (o Sermão do Descendimento e o Ser-
mão da Soledade),2 no local em que está instalada a representação da crucifixão de
Cristo, diante de uma das igrejas da cidade. Junto ao local, postam-se pessoas que, com
o auxílio de vestes e símbolos, representam personagens do Antigo e do Novo Testa-
mento, como evangelistas, profetas, apóstolos, soldados romanos, etc. Ao final da pre-
gação, a imagem do Cristo morto é retirada da cruz por personagens que representam
José de Arimatéia e Nicodemus e colocada em um esquife. O coro começa a cantar o
texto Heu! Heu! Domine! Heu! Salvator noster!, normalmente sem acompanhamento
instrumental, e o esquife é seguido pelos personagens bíblicos, pelos membros das ir-
mandades que promovem o ato e pelo povo, por várias ruas da cidade.
Ao terminar a procissão, o esquife é depositado em um local apropriado, no inte-
rior de uma outra igreja, iniciando-se a segunda parte da cerimônia, na qual a imagem
do Senhor Morto é incensada, enquanto o coro canta, geralmente, o Sepulto Domino
(existem outros textos para a incensação do senhor Morto, como veremos adiante), sem
o concurso do povo. A cerimônia termina com a visitação dos fiéis à imagem, os quais
passam diante dela em silêncio. Embora encerrada a Procissão do Enterro, no Domingo
da Ressurreição (ou de Páscoa) os mesmos personagens retornam para a Procissão do
Santíssimo Sacramento, cuja temática é agora a da ressurreição de Jesus.

2
Jorge de Campos Teles informa que, em Lisboa, após a Procissão do Enterro era feita a Procissão do
Regresso de Nossa Senhora, no antigo Convento de São Francisco de Xabregas, encerrada pelo canto do
Stabat Mater e pelo Sermão da Soledade, lá também conhecido como Sermão das Lágrimas de Nossa
Senhora. Cf.: TELES, Jorge de Campos. A Paixão de Cristo na devoção popular lisboeta. Lisboa: Rei
dos Livros, 1999. p.132.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 3

2. Origens

Uma das raras notícias conhecidas sobre a origem esta celebração encontra-se no
Thezouro de ceremonias (1734), de João Campelo de Macedo, segundo o qual a Procis-
são do Enterro surgiu no Convento de Vilar de Frades, que existiu no Bispado de Braga,
em Portugal, nos séculos XII e XIII, então ocupado pelos Cônegos de S. João Evange-
lista.3 De acordo com o cerimonial de Macedo, embora não conste dos livros litúrgicos
tridentinos, a Procissão do Enterro não se opõe às rubricas e, por ser “uso pio e devoto”,
não foi proibida pela Igreja:4

“Porém, como a Procissão do Enterro, que neste dia [Sexta-feira


Santa] se faz neste Reino, é tão pia e devota, e em nada encontra as ru-
bricas do Missal, e Cerimonial Romanos, antes se conforma muito com
eles, e com as Bulas da sua aprovação, porque permitem todas as ceri-
mônias e pios usos, que não se opuserem às rubricas e Cerimonial a
quem esta Procissão se não opõem, porque se não proíbe, e é uso pio e
devoto, e representação muito conforme à realidade do ato que repre-
senta, inventada neste Reino pela devoção dos Religiosos de Vilar de
Frades, introduzida e praticada nas mais Igrejas deste Reino pela pieda-
de católica dos seus naturais.”

Antônio de São Luiz, no Mestre de ceremonias (1789), confirma as informações


de João Campelo de Macedo, acrescentando que, já em fins do século XVIII, essa ceri-
mônia possuía algumas variantes:5

“No Convento de Vilar de Frades dos Cônegos de S. João Evange-


lista teve princípio esta Procissão do Enterro do Senhor; e daí se propa-
gou e estabeleceu tanto neste Reino, que são poucas as igrejas seculares e
regulares em que se não faça. O modo, porém, de se fazer é diverso, por-
que em algumas partes se faz com o Santíssimo Sacramento, em outras
com uma imagem do Senhor morto. Este segundo modo é o mais perfeito e
o que se deve praticar, para nem se inverter a ordem dos ritos da Igreja,
nem se desprezarem as determinações da Sagrada Congregação [dos Ri-
tos], que refere Piton e outros. [...]”

3
“O mosteiro de S. Salvador de Vilar de Frades, beneditino, constava nos séculos XII e XIII, segundo os
livros de linhagens desta época ter sido fundado por um prócer da região, D. Godinho Viegas [...], o que
pode aliás corresponder, como geralmente sucedia, a uma restauração. [...]” Cf.: GRANDE enciclopé-
dia portuguesa e brasileira: ilustrada com cerca de 15.000 gravuras e 400 estampas a cores. Lisboa e Rio
de Janeiro: Editorial Enciclopédia Ltda., s.d. v.35, p.801-809.
4
Cf.: MACEDO, João Campelo de. Thezouro de ceremonias... Braga: Francisco Duarte da Matta, 1734,
p.533, § 2.
5
SÃO LUIZ, Antonio de. Mestre de ceremonias, que ensina o Rito Romano, e Serafico aos religiosos da
Reformada, e Real Provincia da Conceição no Reyno de Portugal, exposto em duas unicas classes para
utilidade tambem dos mais ecclesiasticos, que praticão os mesmos ritos [...]. Lisboa: Simão Thaddeo
Ferreira, 1789. Lição LXX, § 1025, p.306.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 4

O estudo musicológico mais significativo sobre essa devoção foi realizado por
Solange Corbin, no Essai sur la musique religièuse Portugaise au Moyen Age (1100-
1385),6 situando a Procissão do Enterro nas cerimônias próprias do Bispado de Braga,
em Portugal.
A liturgia bracarense surgiu no século VI, mas foi substituída pela liturgia his-
pânica após o IV Concílio de Toledo (século VII) e pela liturgia romana após o Concílio
de Burgos (século XI). Ressurgindo entre fins do século XII e inícios do século XIII, a
liturgia bracarense subsistiu após a Bula Quod a nobis (9 de julho de 1568) de Pio V,
que permitiu a manutenção das liturgias que já fossem praticadas há mais de 200 anos.7
O período de ressurgimento da liturgia bracarense e as informações dos autores
dos cerimoniais citados permitem supor, portanto, uma origem da Procissão do Enterro
entre os séculos XII e XIII, embora a mais antiga descrição conhecida do ato, como
adiante veremos, encontra-se em um missal bracarense de 1558. Jorge de Campos Te-
les, assim como os autores dos cerimoniais acima referidos, sustenta a origem dessa
devoção no Convento de Vilar de Frades, com base em uma cerimônia trazida de Jeru-
salém:8

“Esta Procissão começou por ser feita em Portugal em finais do sé-


culo XV e início do século XVI. Utilizando-se uma das hóstias consagradas
na missa solene de Quinta-feira Santa. A sagrada Partícula ficava exposta
até o dia seguinte e, na Sexta-feira Santa de manhã, era levada em procis-
são e encerrada num cofre ou ‘túmulo’ até Domingo de Páscoa.”
[...]
“O padre Paulo de Portalegre, da congregação dos Cônegos secu-
lares de São João Evangelista parece ter sido o responsável pela instaura-
ção do cortejo em território português. A Procissão terá sido trazida de
Jerusalém, tendo começado a fazer-se no Arcebispado de Braga, mais con-
cretamente no convento de Vilar de Frades, a partir do qual se espalhou
um pouco por todo o reino.”

A mais antiga descrição da Procissão do Enterro foi localizada por Solange Cor-
bin, na edição de 1558 do Missale Bracharense, com música em cantochão (exemplo
1). A autora informa ter encontrado descrição da mesma cerimônia em um Processional

6
CORBIN, Solange. Essai sur la musique religièuse portuguaise au moyen age (110-1385). Paris, Soci-
eté D’Edition “Les Belles Lettres”, 1952. Livre II (Etudes de Textes), Cap.VIII (Les pièces caractéristi-
ques de la liturgie dans les livres portugais), item “La depositio Christi, au Vendredi Saint”, p.302-310.
7
Cf.: COELHO, Antônio. Curso de liturgia romana. 3 ed. Negrelos: Edições “Ora et Labora” / Mosteiro
de Singeverga, 1950. v.1, p.231.
8
TELES, Jorge de Campos. A Paixão de Cristo na devoção popular lisboeta. Lisboa: Rei dos Livros,
1999. p.102.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 5

cisterciense de 17579 e no Methodo da Liturgia Bracharense (1837), de Antônio Tho-


mas dos Reis (exemplo 2),10 ambos com música em cantochão, além de um manuscrito
da Biblioteca da Universidade de Coimbra (Portugal), datado de 1825, com o título
“Mottetos a quatro para o Enterro de Jesus Christo, por Toscano e música em canto de
órgão”, ou seja, em música polifônica.11 A quantidade de espécimes conhecidos em
acervos brasileiros, entretanto, é bem maior que os até agora descritos em Portugal.

Exemplo 1. Estribilho e primeiro versículo da Primeira parte da Procissão do Enterro,


de acordo com o Missale Bracharense (1558), f. xcvi, no qual constam as indi-
cações “pueri” (meninos, ou tiples) e “chorus” (coro). Transcrição em notação
moderna.

Exemplo 2. Estribilho e primeiro versículo da Primeira parte da Procissão do Enterro,


de acordo com o Methodo da Liturgia Bracharense (1837), de Antônio Thomas
dos Reis. Transcrição em notação moderna.

9
Processionale / cisterciense / reverendissime DD / Abbatis / Generalis / Reformatoris / Congregationis
Lusitaniæ / S. Bernardi / Fidelissimi Regis / Consiliarii, eleemosinarique Maximi / Nati etc. etc. / Jussum
editum / Lisbonæ MDCCLVII / Apud Josephum da Costa Coimbra / Cum facultate Sueriorum. Apud:
CORBIN, Solange. Op.cit., p.307.
10
REIS, Antonio Thomas dos. Methodo da Liturgia Bracharense, ou modo de celebrar com a devida
perfeição o Sacrossanto Sacrifício da Missa. Braga, 1837. Apud: CORBIN, Solange. Op.cit., p.309-310.
11
Trata-se, de acordo com José Carlos Miranda, de Antônio Vaz Toscano (?-1633), Mestre de Capela da
Sé de Coimbra. Cf. MIRANDA, José Carlos. Programa da Temporada Ançã-ble 1997-1998 [Portugal].
p.5.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 6

A origem do cantochão apresentado no Missale Bracharense (1558) e no


Methodo da Liturgia Bracharense (1837) de Antônio Thomas dos Reis ainda merece
novos estudos. Existe, entretanto, nítida semelhança dessas melodias com a versão ro-
mana do primeiro tom salmódico (exemplo 3). A correspondência é ainda maior com o
tom de recitação utilizado na terceira Lição (ou Oração do Profeta Jeremias) das Mati-
nas do Sábado Santo e aplicado, entre outros, à frase “Pupilli facti sumus absque patre,
matres nostræ quasi vidua”, a única dessas Matinas que também aparece (com modifi-
cações) na primeira parte da Procissão do Enterro.
A análise de uma versão portuguesa pré-tridentina,12 da versão tridentina13 e da
versão restaurada pelos monges do Mosteiro de Solesmes (impressa a partir de 1910)14
da frase acima referida das Matinas do Sábado Santo (exemplo 4) revela que algumas
particularidades das melodias de 1558 e 1837 da Procissão do Enterro correspondem à
melodia portuguesa (impressa por Mathias de Sousa Villa-Lobos em 1688) e outras à
melodia tridentina reformada por Giovanni Guidetti no Cantus Ecclesiasticus Officii
Majoris Hebdomadæ (1587).

Exemplo 3. Primeiro tom salmódico, de acordo com a tradição romana.

12
VILLA-LOBOS, Mathias de Sousa. Arte de cantochão. Coimbra: Manoel Rodrigues de Almeyda,
1688. p.183-184.
13
ROSÁRIO, Domingos do. Theatro ecclesiastico, e manual de missas offerecido á Virgem Santissima,
Senhora Nossa [...]. Lisboa: Simão Thaddeo Ferreira, 1786. v.2, p.372.
14
LIBER Usualis Missæ te Officii pro Dominicis et Festis cum canto gregoriano ex Editione Vaticana
adamussim excerpto et rhythmicis signis in subsidium cantorum a Solesmensibus Monachis diligenter
ornato. Parisiis, Tornaci, romæ: Typis Societatis S. Joannis Evangelistæ descelée & Socii, 1950. p.719.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 7

Exemplo 4. Tom de recitação da terceira Lição das Matinas do Tríduo Pascal, aplicado
à frase “Pupilli facti sumus absque patre, matres nostræ quasi vidua”, impressa
por Mathias de Sousa Villa-Lobos em 1688 (MSVL), por Giovanni Guidetti em
1587 (GG) e pelos Monges do Mosteiro de Solesmes em 1910 (MS).

Uma terceira versão do cantochão para a Procissão do Enterro foi impressa em O


Eclesiástico instruido (1788), de Bernardo da Conceição. Infelizmente, o autor apre-
senta música somente para a primeira parte da celebração (exemplo 5),15 prescrevendo,
para a segunda parte, apenas os textos latinos. A melodia desse espécime é bem dife-
rente das versões impressas em 1558 no Missale Bracharense e em 1837 no Methodo
da Liturgia Bracharense, de Antônio Thomas dos Reis, mas ainda é perceptível sua
relação com o primeiro tom salmódico e com o tom de recitação empregado na terceira
Lição das Matinas do Sábado Santo.

Exemplo 5. Estribilho e primeiro versículo da primeira parte da Procissão do Enterro,


de acordo com O Eclesiástico instruido (1788), de Bernardo da Conceição (p.
448). Transcrição em notação moderna.
15
CONCEIÇÃO, Bernardo da. O Eclesiástico instruido... Lisboa: Francisco Luis Ameno, 1788, p.448-
451. A consulta desse exemplar somente foi possível pela colaboração do Pe. Paulo Faria, do Colégio do
Caraça (Santa Bárbara - MG).
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 8

3. Difusão

A Procissão do Enterro difundiu-se, a partir do século XVI, para as colônias


portuguesas da Ásia, África e América, principalmente devido à atuação missionária
jesuítica. O primeiro registro conhecido desta cerimônia, fora de Portugal, ocorreu em
Goa (Índia), no ano de 1558,16 mas, na mesma região, os jesuítas descreveram minucio-
samente a Procissão do Enterro na Sexta-feira Santa de 1576:17

“Faz-se esta procissão desta maneira: que à noite que precede a


Sexta-feira se arma um sepulcro todo coberto de negro, muito bem feito, e
depois de acabada a missa, à Sexta-feira, saem todos os padres e irmãos
em procissão da sacristia, com a fralda do manto sobre a cabeça, com que
fica cobrindo a cabeça à maneira de dó; e outros seis padres, vestidos
com alvas e cobertas as cabeças e os rostos com os amictos, trazem uma
tumba coberta de veludo preto, diante da qual vão uns anjos com os mis-
térios da paixão e, após eles, dois coros de apóstolos e, detrás da tumba,
um coro das Marias, os quais se representam pelos meninos de casa e al-
guns outros cantores da nossa capela. Estes todos vão cantando uns ver-
sos da Sagrada Escritura a propósito do que se representa, ora cantando
uns, ora respondendo outros, com as vozes tão lacrimosas e tristes e com
um Heu! Heu! Domine! Salvator noster!, que respondem as Marias, que
bastam para quebrar os corações.”

O jesuíta informa que os textos cantados eram todos de origem bíblica e que as
Três Marias - simbolizadas pelos “meninos de casa e alguns outros cantores da nossa
capela” - cantavam, alternadamente com “dois coros de apóstolos”, o texto Heu! Heu!
Domine! Salvator noster! (Ai! Ai! Senhor! Salvador nosso!) que consta no Missale
Bracharense de 1558 e nas versões atuais desta cerimônia. As personagens simboliza

16
DOCUMENTA indica. Roma, 1956, v.4, p.197. Apud: MARTINS, Mário. O teatro nas cristandades
quinhentistas da Índia e do Japão. Lisboa, Brotéria, 1979. p.52.
17
DOCUMENTA indica. Roma, 1968, v.10, p.721. Apud: MARTINS, Mário. op.cit., p.52-53.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 9

das são Maria Madalena, Maria Salomé e Maria Cléofas que, segundo a tradição cristã,
choraram a morte de Jesus em Jerusalém.
No Brasil, a Procissão do Enterro foi descrita pela primeira vez no Colégio de
Porto Seguro, Bahia, na Sexta-feira Santa de 20 de abril de 1565, pelo jesuíta Antônio
Gonçalves:18

“[...] À Sexta-feira seguinte, se fez o ofício do Desencerramento do


Senhor, com o mesmo sentimento e devoção, levando dois padres vestidos
com suas alvas e descalços ao Santíssimo Sacramento em uma tumba toda
coberta de preto, que para isso estava feita, indo diante as Três Marias,
cantando Heu! Heu! Salvator noster!, cobertas com seus mantos e coroas
em as cabeças, o que tudo causava grande devoção e admiração a esta
gente, por não haverem visto outra tal nesta terra, depois de ser povoada,
dizendo que no Reino se poderia fazer tão bem e melhor não. [...]”

A cerimônia parece ter sido bastante difundida entre os jesuíticas da costa bra-
sileira, já no final do século XVI. De acordo com Fernão Cardim, a Procissão do Enter-
ro celebrada no Colégio Jesuítico de Salvador, em 30 de março de 1584, foi acompa-
nhada de disciplinas (auto-flagelação), prática comum naquele período:19

“O padre visitador [Cristóvão de Gouveia] teve as Endoenças [em


29 de março] na aldeia do Espirito Santo [...]. Tiveram Mandado [Lava-
pés] em português por haver muitos brancos que ali se acharam, e Paixão
na língua, que causou muita devoção e lagrimas nos índios. A Procissão
[do Enterro] foi devotíssima, com muitos fachos e fogos, disciplinando-se
a maior parte dos índios, que dão em si cruelmente, e têm isto não so-
mente por virtude, mas também por valentia, tirarem sangue de si, e serem
abaeté, scilicet, valentes. [...]

Difundindo-se pelas colônias portuguesas, a Procissão do Enterro tornou-se


parte da tradição católica dessas regiões. Em meados do século XVII esta cerimônia já
era celebrada pelo clero diocesano, oficializando-se nas Constituições Primeiras do Ar-
cebispado da Bahia, ordenadas pelo Arcebispo da Bahia, Sebastião Monteiro da Vide, e
aceitas no Sínodo Diocesano de 12 de junho de 1707:20

18
GONÇALVES, Antônio. Carta ao Padre Diego Mirón, Lisboa. Porto Seguro, 15/02/1566. In: LEITE,
Serafim. Monumenta Brasiliae. Roma, Monumenta Historica S.I., 1960. v.4, doc. 31, p.316-318.
19
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil: introduções e notas de Rodolpho Garcia, Bap-
tista Caetano e Capistrano de Abreu. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980 (Coleção Recon-
quista do Brasil, nova série, v.13). Doc. 3: “Informação da missão do P.Christovão Gouvêa às partes do
Brasil ou narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica”, p.159.
20
CONSTITUIÇÕES Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas pelo Illustrissimo, e Reve-
rendissimo Senhor Sebastião Monteiro da vide, Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua
Magestade: Propostas, e aceitas em o synodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 10

“E na Sé Metropolitana, depois do Ofício de Sexta-feira Santa,


como é costume, se fará a Procissão do Enterro, e ficará o Senhor no tú-
mulo até dia de Páscoa, alumiado sempre com cera bastante: e nas mais
igrejas de nosso Arcebispado não ficará o Senhor até o dito dia; salvo
precedendo licença nossa in scriptis. E o Pároco que consentir, e oficiais
do Senhor, ou fregueses, que concorrerem com o necessário, para que o
Senhor fique sem nossa licença, serão castigados a nosso arbítrio.”

Desde fins do século XVII, a Procissão do Enterro, além de ser celebrada em


igrejas diocesanas (matrizes ou catedrais), começou a ser também praticada por ordens
conventuais e ordens terceiras, com preferência pela Ordem Terceira de Nossa Senhora
do Carmo. Jaime Diniz informa que, em Salvador, a Ordem Terceira do Carmo promo-
via tal cerimônia desde 1696 (obrigação essa presente em seu Compromisso),21 en-
quanto as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia determinavam que esta fos-
se celebrada apenas pelos “Religiosos de Nossa Senhora do Monte do Carmo em Sexta-
feira da Paixão”. 22
A Procissão do Enterro poderia ser promovida por mais de uma comunidade
religiosa em uma determinada vila ou cidade. Raul Leno Monteiro informa que em São
Paulo, durante os séculos XVIII e XIX, esta fora celebrada na Ordem Terceira do Car-
mo, mas também na Catedral:23

“A Procissão do Enterro que saía da Igreja da Ordem Terceira do


Carmo, por causa do seu aparato, era mais concorrida do que a que saía
da Sé Catedral, pois grande número de pessoas, com empenho, desejavam
acompanhá-la, munidas de lanternas ou de tocheiros e, para poder obter
estes, tornava-se preciso que o candidato rogasse, antes, a alguns dos ir-
mãos da ordem ou aos irmãos sacristães, para não esperar a distribuição
geral das referidas lanternas e tocheiros, que eram, no meio de empur-
rões, feitas aos pretendentes, os quais, nessa ocasião, se machucavam,
rasgando, alguns, as suas roupas, tal era o desejo de fazer parte do prés-
tito.”

anno de 1707. Impressas em Lisboa no anno de 1719, e em Coimbra em 1720 com todas as Licenças
necessarias, e ora reimpressas nesta Capital. S. Paulo, na Typographia 2 de Dezembro de Antonio Louza-
da Antunes. 1853. Livro Primeiro, Título XXXIII, n.119, p.52-53.
21
DINIZ, Jaime. Gregório de Souza e Gouvea. III Encontro Nacional de Pesquisa em Música, 5 a 9 de
agosto de 1987, Ouro Preto, Minas Gerais. Anais; promoção: Escola de Música UFMG (DTGM), Or-
questra Ribeiro Bastos de São João del Rei, Museu da Inconfidência de Ouro Preto. Belo Horizonte,
Imprensa Universitária, 1989. p.33-55. Esta informação encontra-se à p.48.
22
CONSTITUIÇÕES Primeiras do Arcebispado da Bahia... op.cit., Livro III, título 14, n.491, p.192.
23
MONTEIRO, Raul Leno. Carmo: patrimônio da história, arte e fé. São Paulo: empresa Gráfica da
Revista dos Tribunais S/A, 1978. p.39.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 11

A utilização do canto de órgão (polifonia) nas Procissões do Enterro já estava


estabelecida em Portugal no século XVII. De acordo com Diogo Barbosa Machado (Bi-
bliotheca lusitana, v. 2, 1743)24 e com Joaquim de Vasconcelos (Os músicos portugue-
ses, 1870),25 o compositor lisboeta Henrique Carlos Corrêa (1680 - após 1747), frade da
ordem militar de São Tiago e Mestre de Capela da Catedral de Coimbra, destinou à Pro-
cissão do Enterro música polifônica com os textos Pupilli facti sumus, Cecidit corona,
O vos omnes, Defecit gaudium e Sepulto Domino. Na Sé de Elvas, nesse período, a Pro-
cissão do Enterro também já era celebrada em canto polifônico e com o concurso do
povo, como informa Agostinho de Santa Maria no Santuário mariano (v. 6, 1718):26

“[...] Na Sexta-feira Maior [na Sé de Elvas] se faz o Descendimento


na capela mor. A Imagem do Senhor está em um caixão no Altar da mes-
ma Senhora [N. Senhora da Soledade], que se mostra somente em as sex-
tas-feiras da Quaresma. Na mesma Sexta-feira Maior tem dous Sermões: o
primeiro do Descendimento, e o segundo da Soledade, em que se mostra o
Santo Sudário. Depois do Sermão da Soledade, se põe o Senhor em um es-
quife de prata, coberto com um rico pano de tela de Milão, e se dá princi-
pio à Procissão do Enterro, depois das Ave Marias, por algumas ruas da
cidade, e se torna a recolher à mesma Sé: vão nela mais de seiscentos ir-
mãos com tochas amarelas. Levam ao Senhor quatro Cônegos, e outros
quatro a imagem da Senhora; e junto a cada um dos Andores vai um coro
de música. Vão detrás do Andor do Senhor, até o da Senhora, mais de du-
zentas pessoas fazendo penitencia.”

A atuação das ordens terceiras, no Brasil, entre fins do século XVII e inícios do
século XVIII, gerou um aumento na solenidade da Procissão do Enterro e a adoção de-
finitiva do canto de órgão (polifonia) para os textos anteriormente cantados em canto-
chão, com absoluta predominância, entre os espécimes conhecidos, do estilo antigo, ou
seja, aquele baseado em normas composicionais do século XVI. Um exemplo típico é a
composição anônima para a Procissão do Enterro, encontrada em três grupos de manus-
critos, que incluem cópias do séculos XVIII e XIX (exemplo 6): 1) no Arquivo da Cúria
Metropolitana de São Paulo (SP), cód. ACMSP P 253;27 2) na Orquestra Lira Sanjoa

24
MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana. Lisboa: Ignacio Rodrigues, 1743. v.2, p.321-445-
446. Apud: NERY, Ruy Vieira. A música no ciclo da “Bilioteca Lusitana”. Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1984. p.65.
25
VASCONCELLOS, Joaquim de. Os musicos portugueses: biographia-bibliographia por [...]. Porto:
Imprensa Portugueza, 1870. v.1, p.56.
26
SANTA MARIA, Agostinho de. op.cit., v.6, 1718, Livro III, Título I (Da milagrosa Imagem de Nossa
Senhora da Soledade, que se venera na Sè de Elvas.), p.471.
27
ACMSP P 253 C-Un - “Suprano Tracto Primeiro”. Sem indicação de copista, sem local, [final do
século XIX]: partes de SATB.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 12

nense (São João del Rei - MG), sem código;28 3) no Museu da Música de Mariana
(MG), cód. MA SS-16 [M-2 V-1],29 com muitas diferenças em relação aos grupos pre-
cedentes, sobretudo nos versículos da primeira parte.

Exemplo 6. Anônimo. Estribilho (c. 1-8) e primeiro versículo da Primeira Parte (c. 1-9)
da Procissão do Enterro, encontrada em três grupos de manuscritos musicais
brasileiros: 1) no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo (SP), cód.
ACMSP P 253; 2) na Orquestra Lira Sanjoanense (São João del Rei - MG), sem
código; 3) no Museu da Música de Mariana (MG), cód. MA SS-16 [M-2 V-1].

A mais antiga composição polifônica para a Procissão do Enterro encontrada no


Brasil parece ser, também, o mais antigo exemplo português conhecido com música
polifônico para tal cerimônia, embora essa particularidade não tenha sido observada no
Brasil ou em Portugal. Trata-se de uma composição para a segunda parte da Procissão
do Enterro, de um manuscrito obtido em Minas Gerais por Francisco Curt Lange entre
1944-1945 (talvez de algum acervo da região de Ouro Preto), hoje recolhido à Coleção
Curt Lange do Museu da Inconfidência / Casa do Pilar (Ouro Preto - MG).30

28
OLS, sem cód. [C-Un] - “Soprano a 4 Vozes / dos / Tratos Paxaõ e Adoração / da Crus Prossiçaõ do
Enterro / do Senhor / 17 / 1928 / Pertence a Hermenegildo Je de Sousa Trindade / Pr dadiva de Manoel
Jose da Sa “. Cópia de Carlos Antônio da Silva, [São João del-Rei?, meados do século XIX]: partes de
SATB.
29
MMM MA SS-16 [M-2 V-1]: [C-1] - “Sexta Fr.ª Suprano”. Sem indicação de copista, sem local, [final
do século XVIII]: partes de SAT; [C-2] - “Sexta fr.ª Suprano”. Sem indicação de copista, sem local, [1ª
metade do século XIX]: parte de S.
30
MIOP/CP-CCL 298 [C-Un] - “Populemeus a Quatro vozes e- / cum descendentibus in- / Lacum / Para
Sesta feira da Paixaõ. / Fran.co Gomes da Rocha”. Cópia de Francisco Gomes da Rocha [?], sem local,
[final do século XVIII]: partes de S1S2AT (Cum descendentibus in lacum) / SATB, bx (Sepulto Domino).
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 13

A cópia, catalogada sob o n. 298,31 está assinada pelo compositor Francisco


Gomes da Rocha, que viveu em Vila Rica entre c.1754 e 1808, embora o exame do do-
cumento permita a suposição de que esse músico pode nem ter elaborado tal cópia, pois
a tinta e caligrafia utilizadas na assinatura são diferentes da tinta e caligrafia emprega-
das na música e no texto latino. Régis Duprat observou a identidade de uma das seções
da obra, o Cum descendentibus in lacum, com a composição homônima de Ginés de
Morata,32 encontrada em dois livros manuscritos do Paço Ducal de Vila Viçosa (Portu-
gal) e publicada em 1956 pelo musicólogo português Manoel Joaquim33 (exemplo 7).
Manoel Joaquim e Régis Duprat, contudo, referiram-se a essa obra como oitavo Res-
ponsório das Matinas do Sábado Santo, mas o exame dos textos não deixa dúvidas
quanto a tratar-se, esta, de uma composição para a Procissão do Enterro de Sexta-feira
Santa.

Exemplo 7. Ginés de Morata. Segunda parte da Procissão do Enterro, do Arquivo do


Paço Ducal de Vila Viçosa (Portugal), Livro de Música Polifônica n. 3, f. 56v-
57r, com o título “feria Sexta In parasceue” e Livro de Música Polifônica n. 4, f.
53v-54r. Alturas originais transpostas uma quarta abaixo, em virtude da utiliza-
ção de claves altas.

31
MIOP/CP-CCL 298 - “Populemeus a Quatro vozes e- / cum descendentibus in- / Lacum / Para Sesta
feira da Paixaõ. / Fran.co Gomes da Rocha”. Cópia de Francisco Gomes da Rocha [?], sem local, [final
do século XVIII]: partes de S1S2AT.
32
DUPRAT, Régis. A polifonia portuguesa em obras de brasileiros. Pau Brasil, São Paulo: ano 3, n.15,
p.69-78, nov./dez. 1986. Reimpresso em: A polifonia seiscentista portuguesa em Minas Gerais no século
XVIII. Barroco, Belo Horizonte, n.14, p.41-48, 1986/1987. Mais uma vez reproduzido em: A polifonia
portuguesa no século XVIII em Minas Gerais. In: REZENDE, Maria Conceição. A música na história de
Minas colonial. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1989. p.223-232.
33
VINTE livros de música polifônica do Paço Ducal de Vila Viçosa: catalogados, descritos e anotados
por Manoel Joaquim. Lisboa: Fundação da Casa de Bragança, 1953. f. 53-56 e 70v-72r.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 14

De acordo com José Augusto Alegria, o músico espanhol Ginés de Morata foi
Mestre de Capela do Paço Ducal de Vila Viçosa entre fins do século XVI e inícios do
século XVII, conhecendo-se dele algumas obras em manuscritos portugueses e espa-
nhóis.34 A presença da mais antiga composição portuguesa para a Procissão do Enterro
em uma cópia mineira do século XVIII sugere que a recepção, no Brasil, de música es-
crita em Portugal para essa cerimônia, pode ter sido comum já no século XVII.

4. Estrutura dos textos

4.1. Versículos da primeira e segunda parte

A Procissão do Enterro, como vimos, é uma cerimônia litúrgica, instituída pelo


rito bracarense, mas, embora não tenha sido proibida pela Bula Quod a nobis (1568) de
Pio V, não é uma celebração tridentina, pois não foi adotada nos livros litúrgicos refor-
mados por determinação do Concílio de Trento (na seção XXV, segunda parte, item 3,
de 1563)35 e impressos a partir de 1568. A partir da reorganização da música sacra em
Portugal, instituída no reinado de D. João V (1706-1750) e, sobretudo, após a publica-
ção do Theatro ecclesiastico (1743) de Domingos do Rosário,36 cujo objetivo foi a difu-
são do cantochão tridentino no império luso, foi sendo gradualmente perdida a noção da
Procissão do Enterro enquanto uma cerimônia própria do rito bracarense, a qual passou

34
ALEGRIA, José Augusto. História da Capela e Colégio dos Santos Reis em Vila Viçosa. Lisboa: Fun-
dação Calouste Gulbenkian, Serviço de Música, 1983. Cap.VIII (Os mestres da capela), p.156.
35
O SACROSANTO, e Ecumênico Concílio de Trento em latim e portuguez: dedicado e consagrado aos
excell., e Rev.Senhores Arcebispos, e Bispos da Igreja Lusitana. Nova Edição. Rio de Janeiro: Livraria
de Antônio Gonçalves Guimarães & C.ª, 1864. v.2, p.301-303.
36
ROSÁRIO, Domingos do. Theatro ecclesiastico em que se acham muitos documentos de Canto chão
para qualquer pessoa dedicada ao culto Divino nos Officios do coro, e Altar. Offerecido á Virgem San-
tissima Senhora Nossa com o Soberano Titulo da Immaculada Conceyçam, venerada em huma das ca-
pellas. Na Officina Joaquiniana da Musica de D. Bernardo Fernandez Gayo, 1743. xxxii p.não num., 383
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 15

a ser reconhecida quase somente como uma devoção religiosa, porém externa à liturgia
tridentina.
Embora a Procissão do Enterro não esteja descrita nos livros litúrgicos tridenti-
nos, vários cerimoniais portugueses dos séculos XVII e XVIII abordam essa prática,
relacionando-se, abaixo, os principais títulos, em ordem cronológica:

SÃO JOSÉ, Leonardo de. Economicon sacro (1693)37


MACEDO, João Campelo de. Thezouro de ceremonias (1734)38
SARMENTO, Francisco de Jesus Maria. Manual da Semana Santa (1775)39
CONCEIÇÃO, Bernardo da. O Eclesiástico instruido (1788)40
SÃO LUIZ, Antônio de. Mestre de ceremonias (1789)41

De acordo com essas fontes e com o próprio Missale Bracharense (1558),42 ci-
tado por Solange Corbin, a Procissão do Enterro, desde o século XVI, possuía música e
texto latino específico para as duas partes da cerimônia. As descrições apresentadas por
essas fontes são longas e detalhadas, mas é possível resumir os principais aspectos refe-
rentes à música. Na primeira parte, durante a procissão propriamente dita, três meninos
ou tiples, que representam as Três Marias, cantam o refrão Heu! Heu! Domine!, alterna-
dos com o coro, que canta quatro versículos, identificados pelas letras a, b, c e d no
quadro 1.

Quadro 1. Texto da primeira parte da Procissão do Enterro, de acordo com o Missale


Bracharense (1558), com o Economicon sacro (1693) de Leonardo de São José,
com o Thezouro de ceremonias (1734) de João Campelo de Macedo, com o Ma-
nual da Semana Santa (1775) de Francisco de Jesus Maria Sarmento e com O
Eclesiástico instruido (1788), de Bernardo da Conceição.

Versículos da primeira parte Tradução43


Heu! Heu! Domine! Heu! Heu! Salvator nos Ai! Ai! Senhor! Ai! Ai! Salvador nosso!

p.Cf.: VASCONCELLOS, Joaquim de. Os musicos portugueses: biographia-bibliographia por [...]. Porto:
Imprensa Portugueza, 1870. v.2, p.298.
37
SÃO JOSÉ, Leonardo de. Economicon sacro... Lisboa: Manoel Lopes Ferreyra, 1693, p.647-651. O
exemplar utilizado pertence à Biblioteca dos Bispos de Mariana (MG)
38
MACEDO, João Campelo de. Thezouro de ceremonias... Braga: Francisco Duarte da Matta, 1734,
p.533-540. O exemplar utilizado pertence à Seção de Obras Raras da Biblioteca Municipal Mário de
Andrade (São Paulo - SP).
39
SARMENTO, Francisco de Jesus Maria. Manual da Semana Santa... Lisboa: Regia Officina Typogra-
fica, 1775, p.209-210. O exemplar utilizado pertence ao Museu Padre Anchieta (São Paulo - SP).
40
CONCEIÇÃO, Bernardo da. O Eclesiástico instruido... Lisboa: Francisco Luis Ameno, 1788, p.448-
451. O exemplar utilizado pertence à Biblioteca do Colégio do Caraça (Santa Bárbara - MG).
41
SÃO LUIZ, Antonio de. Mestre de ceremonias, que ensina o Rito Romano, e Serafico aos religiosos
da Reformada, e Real Provincia da Conceição no Reyno de Portugal, exposto em duas unicas classes
para utilidade tambem dos mais ecclesiasticos, que praticão os mesmos ritos [...]. Lisboa: Simão Tha-
ddeo Ferreira, 1789. Lição LXX, § 1025, p.306. O exemplar utilizado pertence à coleção do autor.
42
MISSALE Bracharense. Lugduni: Petrus Fradin, 1558, f. XCVI. Citado em CORBIN, Solange. Op.cit.
43
Esta tradução foi gentilmente enviada pelo Pe. Nereu de Castro Teixeira (Belo Horizonte - MG).
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 16

ter!
a - Pupilli facti sumus absque patre, mater nostra a - Estamos órfãos de pai, nossa mãe está viuva.
vidua.
Heu!... Ai!...
b - Cecidit corona capitis nostri, væ nobis quia b - A coroa caiu de nossa cabeça, ai de nós que
peccavimus. pecamos!
Heu!... Ai!...
c - Spiritus cordis nostri, Christus Dominus, morte c - Sopro de nosso coração, o Senhor Cristo foi
turpissima condemnatus condenado a morte torpíssima
Heu!... Ai!...
d - Defecit gaudium cordis, versa est in luctum d - Coro: Acabou-se a alegria de nosso coração,
cithara nostra. nossa cítara está de luto.
Heu!... Ai!...

A forma poética - o estribilho Heu! Heu! Domine! alternado com os quatro ver-
sículos - é semelhante à forma da segunda parte da Adoração da Cruz de Sexta-feira
Santa, cerimônia litúrgica romana originada no século IV, na qual o estribilho Popule
meus é alternado com 9 versículos contendo supostas queixas de Jesus contra o povo,
baseadas em informações do Antigo e do Novo Testamento. Na Adoração da Cruz é
Cristo vivo quem se refere ao povo, mas na Procissão do Enterro é o povo que chora sua
morte, o que sugere uma correspondência não acidental entre o assunto e a forma poéti-
ca dessas duas cerimônias.
Na segunda parte, diante do túmulo de Jesus, canta somente o coro (sem os ti-
ples que, na primeira parte, cantaram o estribilho Heu! Heu! Domine!). Existem, nas
fontes portuguesas, duas versões para esta ocasião: na primeira delas, descrita apenas
por Leonardo de São José (Economicon sacro, 1693)44 e por Francisco de Jesus Maria
Sarmento (Manual da Semana Santa, 1775),45 cinco versículos cantados pelo celebrante
são seguidos por cinco respostas do coro, como se pode observar no quadro 2.

Quadro 2. Texto latino da segunda parte (versão 1) da Procissão do Enterro, de acordo


com o Economicon sacro (1693), de Leonardo de São José, e tradução portugue-
sa de Francisco de Jesus Maria Sarmento, no Manual da Semana Santa (1775).

Versículos e respostas da segunda parte Tradução46


(versão 1)
V. Æstimatus sum V. Fui computado
R. Cum descendentibus in lacum factus sum sicut R. Com os que descem ao lago do sepulcro. Fui
homo, sine adjutorio inter mortuos liber feito, como um homem sem auxilio, porém li-
vre entre os mortos.
V. Sepulto Domino V. Sepultado o Senhor,

44
SÃO JOSÉ, Leonardo de. Economicon sacro. Lisboa: Manoel Lopes Ferreyra, 1693, p.647-651.
45
SARMENTO, Francisco de Jesus Maria. Manual da Semana Santa... Lisboa: Regia Officina Typogra-
fica, 1775, p.209-210.
46
SARMENTO, Francisco de Jesus Maria. Manual da Semana Santa. Op.cit., p.209-210.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 17

R. Signatum est monumentum, volventes lapidem R. Fechou-se o Monumento, encostando-lhe à


ad ostium monumenti, ponentes milites, qui porta uma pedra, e pondo-lhe soldados, que o
custodirent illud. guardassem.
V. In pace factus est V. Formou-se na paz
R. Locus ejus R. O seu lugar:
V. In pace in idipsum V. Na paz com ele mesmo
R. Dormiam et requiescam R. Dormirei, e descansarei.
V. Caro mea V. A minha carne
R. Requiescet in spe R. Descansará na esperança.

A segunda versão é mais simples. Descrita no Missale Bracharense (1558),47 no


Thezouro de ceremonias (1734) de João Campelo de Macedo48 e nO Eclesiástico ins-
truido (1788) de Bernardo da Conceição,49 consiste no canto de apenas três versículos
do celebrante e de três respostas do coro, seguidos pelo mesmo Responsório que se
canta na nona Lição das Matinas do Sábado Santo (quadro 3).

Quadro 3. Texto latino da segunda parte (versão 2) da Procissão do Enterro, de acordo


com o Missale Bracharense (1558), com o Thezouro de ceremonias (1734) de
João Campelo de Macedo e com O Eclesiástico instruido (1788), de Bernardo
da Conceição.

Versículos e respostas da segunda parte Tradução


(versão 2)
V. In pace factus est locus ejus V. Habitou em paz no seu lugar
R. Et habitatio ejus in Sion. R. E em Sião fez sua morada.
V. Caro mea V. Minha carne
R. Requiescet in Spe. R. Descansará em pa.z
V. In pace in idipsum V. Nesta mesma paz
R. Dormiam, et requiescam. R. Dormirei e descansarei.
R. Sepulto Domino, signatum est monumentum, R. Sepultado o Senhor, lacraram o sepulcro e
volventes lapidem ad ostium monumenti: moveram a pedra para a porta da sepultura.
* Ponentes milites, qui custodirent illud. * Puseram soldados para guardá-la.
V. Accedentes Principes Sacerdotum ad Pilatum, V. Dirigindo-se os Sumos Sacerdotes a Pilatus,
petierunt illum: pediram-lhe [o corpo de Jesus]
* Ponentes milites, qui custodirent illud. * Puseram soldados para guardá-la.

Os manuscritos brasileiros, em geral, contém música baseada nos textos pres-


critos nos cerimoniais portugueses. Nem sempre são utilizados todos os versículos da
primeira parte e existem casos de omissão do estribilho Heu! Heu! Domine! e inclusão
de três novos versículos, como em um manuscrito não catalogado do Arquivo da Or

47
MISSALE Bracharense. Lugduni: Petrus Fradin, 1558, f. XCVI.
48
MACEDO, João Campelo de. Thezouro de ceremonias... Braga: Francisco Duarte da Matta, 1734,
p.533-540.
49
CONCEIÇÃO, Bernardo da. O Eclesiástico instruido... Lisboa: Francisco Luis Ameno, 1788, p.448-
451.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 18

questra Lira Sanjoanense (São João del Rei - MG).50 Nesse caso, a omissão do Heu! Heu!
Domine! indica que os tiples estariam cantando o estribilho por outros papéis, não sendo
necessário sua inclusão em tal manuscrito (quadro 4).

Quadro 4. Texto latino da primeira parte da Procissão do Enterro, em manuscrito não


catalogado da Orquestra Lira Sanjoanense (São João del Rei – MG).

Versículos da primeira parte Tradução


a - Pupilli facti sumus absque patre, mater nostra a - Estamos órfãos de pai, nossa mãe está viuva.
vidua.
b - Cecidit corona capitis nostri, væ nobis quia b - A coroa caiu de nossa cabeça, ai de nós que
peccavimus. pecamos.
c - Defecit gaudium cordis, versus est in luctum c - Acabou-se a alegria de nosso coração, nosso
chorus noster. coro está em luto.
d - Spiritus oris nostri, Christus Dominus, captus d - Espírito de nossa vida, o Senhor Cristo foi
est in peccatis nostri condenado a morte torpíssima.
e - Quomodo sedet sola civitas plena populo: e - Como ficou solitária a cidade, antes repleta de
facta est quasi vidua domina gentium. seu povo: ficou como viúva a que outrora foi
a senhora das nações.
f - Versa est in luctum cithara mea et organum f - Tornou-se em luto minha cítara e em voz
meum in vocem flectium.51 comovida o meu instrumento.
g - Et convertam festivitates vestras in luctum et g - Converterei vossas festividades em luto e
omnia cantica vestras in planctum. todos os vossos cânticos em lamentos.
h - Et versa est victoria in luctum in die illa omni h - Tornou-se a vitória em luto, naquele dia, para
populo. todo o povo.

No Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo existe uma cópia de André da


Silva Gomes com música para a Procissão do Enterro datada de 1778 (cód. ACMSP P
118 C-1),52 que utiliza, na primeira parte, três versículos também não prescritos para
essa cerimônia nas fontes portuguesas consultadas e incomuns nos manuscritos brasilei-
ros até agora conhecidos (quadro 5).

Quadro 5. Texto da primeira parte da Procissão do Enterro do Arquivo da Cúria Me-


tropolitana de São Paulo, cód. ACMSP P 118 C-1 (cópia de 1778).

Versículos da primeira parte Tradução


Heu! Heu! Domine! Heu! Heu! Salvator noster! Ai! Ai! Senhor! Ai! Ai! Salvador nosso!
a - Jerusalem, surge, et exue te vestibus jucundi- a - Levanta-te, Jerusalém, e deixa tuas vestes de
tatis: induere cinere et cilicio. júbilo: cobre-te de cinza e de cilício.
Heu!... Ai!...
b - Quia in te occisus est Salvator Israël. b - Pois em ti morreu o Salvador de Israel.

50
OLS, sem cód. - “Enterro do Senhor”. Cópia de [Hermenegildo José de Souza Trindade?, São João del
Rei, 1ª metade do século XIX]: partes de S1A1 B1 / S2A2T2B2.
51
Jean Rousseau (1644 - após 1705) registrou uma variante desse texto, infelizmente sem indicação de
origem ou função: “Cythara mea versa est in luctum, et organum meum in vocem flectium”. Cf.: ROUS-
SEAU, Jean.Traité de la viole: Avec une préface de François Lesure. Genève: Minkoff reprint, 1975. p.4.
52
ACMSP P 118 C-1 - “Procissam / do Enterro do Senhor. / em Sexta fr.ª de Paixam. / a 4 Vozes. / De
Andre da S.ª Gomes / 1778.” Cópia de André da Silva Gomes, [São Paulo], 1778: parte de A.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 19

Heu!... Ai!...
c - Deduc quasi torrentem lacrimas per diem et c - Vertam teus olhos, dia e noite, torrentes de
noctem et non taceat pupilla oculi tui. lágrimas e não cessem de chorar.
Heu!... Ai!...

Existem diferenças também na segunda parte da cerimônia. Alguns manuscritos


possuem o texto Æstimatus sum / cum descendentibus in lacum, tal como no Economi-
con sacro (1693) de Leonardo de São José e no Manual da Semana Santa (1775) de
Francisco de Jesus Maria Sarmento, enquanto outros apresentam apenas o texto Sepulto
Domino / Signatum est monumentum, extraído do segundo par de versículo e resposta
destas mesmas obras, mas integralmente cantado pelo coro. Não foram estudados, até o
momento, manuscritos brasileiros que contenham, para a segunda parte da Procissão do
Enterro, música cujo texto inicia-se com V. In pace factus est locus ejus R. Et habitatio
ejus in Sion, assim como descrito no Missale Bracharense (1558), no Thezouro de ce-
remonias (1734) de João Campelo de Macedo e nO Eclesiástico instruido (1788) de
Bernardo da Conceição.

4.2. Canto da Verônica

Uma nova unidade funcional foi introduzida na Procissão do Enterro, talvez já


no século XVI: consiste em um canto monódico por uma pessoa (até o século XVIII um
cantor masculino) que representa as lendas medievais da Verônica, costume que perdura
até o presente em inúmeras cidades brasileiras. No século XVI já existia a exposição,
durante a Procissão do Enterro, de um pano com a imagem de Jesus, denominado “Ve-
rônica de Cristo”, “Verônica do Senhor” ou, simplesmente, “Verônica”. Foi Fernão
Cardim, escrivão do Padre Visitador Cristóvão de Gouveia, da Companhia de Jesus,
quem apresentou a primeira notícia conhecida dessa prática no Brasil, na Sexta-feira
Santa celebrada no Colégio Jesuítico de Salvador em 30 de março de 1584:53

“Tornando à Quaresma em nossa casa [na Bahia, em 21 de feve-


reiro de 1584], tivemos um devoto e rico sepulcro. A Paixão foi tão bem
devota, que concorreu toda a terra; os ofícios divinos se fizeram em casa
com devoção. Sexta-feira Santa [30 de março], ao desencerrar do Senhor,
certos mancebos [indígenas] vieram à nossa igreja; traziam uma Verônica
de Cristo mui devota, em pano de linho pintado, dous deles a tinham e

53
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil: introduções e notas de Rodolpho Garcia, Bap-
tista Caetano e Capistrano de Abreu. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980 (Coleção Recon-
quista do Brasil, nova série, v.13). Doc. 3: “Informação da missão do P.Christovão Gouvêa às partes do
Brasil ou narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica”, p.159.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 20

juntamente com outros dous se disciplinavam, fazendo seus trocados e


mudanças. E como a dança se fazia ao som de cruéis açoutes, mostrando
a Verônica ensangüentada, não havia quem tivesse as lágrimas com tal
espetáculo, pelo que foi notável a devoção que houve na gente.”

Existiram pelo menos duas lendas em torno da palavra Verônica, encontradas


em evangelhos apócrifos que não foram mantidos na Bíblia:54 1) uma mulher chamada
Verônica teria pintado ou mandado pintar um retrato de Jesus em um pano; 2) no cami-
nho para a crucifixão, Verônica teria oferecido seu véu para que Jesus enxugasse o ros-
to, nele sendo impressa sua imagem, véu esse levado para Roma no ano 700 e deposita-
do junto às relíquias de São Pedro. Ao que tudo indica, no entanto, o nome Verônica
resultou da expressão grega vera eikon - verdadeira imagem - que designava não exata-
mente uma pessoa, mas a pintura ou representação do rosto de Jesus.
A unidade funcional em questão surgiu a partir dessas lendas, mas com dois si-
gnificados distintos para a palavra Verônica: 1) a imagem de Jesus; 2) a mulher que, de
alguma forma, elaborou ou obteve a imagem de Jesus. No século XVIII, essa melodia
era cantada por um homem, já que ainda existiam restrições em relação à participação
de mulheres na música religiosa.55 O mais antigo registro dessa prática portuguesa, até
agora localizado, está no Manual da Semana Santa (1775), de Francisco de Jesus Maria
Sarmento, no qual a palavra Verônica designa a imagem de Jesus e a melodia é prescrita
a um cantor masculino. O texto sugere que o Canto da Verônica seria inserido na pri-
meira parte da cerimônia (a procissão propriamente dita), em meio ao canto alternado
dos tiples e do coro, sendo proferido logo após o Heu! Heu! Domine!:56

“Canta-se com voz terna o que vem a dizer: Ai! Ai! Senhor! Ai!
Salvador nosso! E o que mostra a Verônica do Senhor, diz assim: Ó vós
todos, que passais pelo caminho desta vida, vede e reparai, se há dor se-
melhante à minha dor?”

O Canto da Verônica - desprovido de qualquer acompanhamento instrumental -


utiliza o texto latino “O vos omnes, qui transitis per viam, attendite et videte si est dolor
similis sicut dolor meus” (acima traduzido por Francisco de Jesus Maria Sarmento) e as

54
Cf.: 1) RÖWER, Basílio. Diccionario liturgico para o uso do Revmo. Clero e dos fieis. Petrópolis:
Typographia das “Vozes”, 1928. p.180; 2) PINTO, José Alberto L. de Castro. Dicionário prático de cul-
tura católica, bíblica e geral. IN: Bíblia sagrada: tradução do Padre Antônio Pereira do Nascimento. Rio
de Janeiro: Barsa, 1971. p.278.
55
Santo Ambrósio, no século IV, determinou que “Mulieres Apostolus in Ecclesia tacere jubet”. Cf.:
ROMITA, Sac. Florentius. Jus Musicæ Liturgicæ: dissertatio historico-iuridica. Roma: Ediuzioni Liturgi-
che, 1947. p.23.
56
SARMENTO, Francisco de Jesus Maria. Manual da Semana Santa... op.cit., p.208.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 21

melodias até hoje conhecidas são quase sempre derivadas da estética operística italiana
dos séculos XVIII e XIX. O registro mais antigo até o momento encontrado do Canto da
Verônica, no Brasil, está no Livro de Despesas (1768-1819) da Irmandade do Santíssi-
mo Sacramento da Vila do Príncipe do Serro do Frio (MG).57 Trata-se do pagamento a
um cantor masculino em 15 de maio de 1779, no qual a palavra Verônica designa o per-
sonagem e não o retrato de Jesus:58

“A Vicente Luno (Luvo) de Mendonça de cantar o contralto nas


domingas e Semana Santa e fazer o papel de Verônica na Procissão do
Enterro do Senhor.”

5. Origem dos textos

Os textos da Procissão do Enterro, descritos nos cerimoniais portugueses e até


agora conhecidos em manuscritos musicais brasileiros, originaram-se em fragmentos do
Antigo Testamento e dos Ofícios de Trevas do Tríduo Pascal. Na primeira parte foram
baseados exclusivamente em versículos do Antigo Testamento, principalmente das La-
mentações de Jeremias (com pequenas alterações no texto) e apresentados como la-
mentações do povo cristão pela morte de Jesus.
De acordo com Solange Corbin, o estribilho Heu! Heu! Domine! é uma espécie
de planctus medieval, que a autora acreditava não ser de origem bíblica, mas a expres-
são Heu! Heu! Heu! Domine Deus! pode ser encontrada no Livro do Profeta Jeremias
(4, 10 e 32, 17) e no Livro do Profeta Ezequiel (9, 8), enquanto o Salvator noster! pode
ter sido extraído de várias passagem bíblicas, entre elas da Epístola de São Paulo a Tito,
1, 4. Corbin acrescenta que os três versículos seguintes foram extraídos das Lamenta-
ções de Jeremias (versículo 3 - Pupilli facti summus; versículo 15 - Defecit gaudium;
versículo 16 - Cecidit corona) e um deles pode ter sido baseado também em um trecho
do Livro da Sabedoria (2, 20), que se refere aos ímpios: “Morte turpissima condemne-
mus eum: erit enim ei visitatio ex sermonibus illius”.59 O terceiro versículo (Pupilli...), o
único desta parte também utilizado nos livros litúrgicos tridentinos (terceira Lição das
Matinas do Sábado Santo), deu origem a duas versões na Procissão do Enterro, uma
delas com a expressão original “matres nostræ quasi viduæ” (nossas mães estão como

57
f. 35v.
58
LANGE, Francisco Curt. História da música na Capitania Geral de Minas Gerais: Vila do Príncipe do
Serro do Frio e Arraial do Tejuco. Belo Horizonte: Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais [Im-
prensa Oficial], 1983 [na ficha catalográfica: 1982] (História da Música na Capitania Geral das Minas
Gerais, v.8). p.39.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 22

viúvas) e outra como nos cerimoniais portugueses: “mater nostra vidua” (nossa mãe
está viúva). As indicações de origem podem ser observadas no quadro 6.
Quadro 6. Origem bíblica dos textos da primeira parte da Procissão do Enterro apre-
sentados pelos cerimoniais portugueses.

Versículos da primeira par- Origem bíblica


te
Heu! Heu! Domine!... Livro do Profeta Jeremias, 4, 10 e 32, 17, ou Livro do Profeta Eze-
quiel, 9, 8 + Epístola de São Paulo a Tito, 1, 4
a - Pupilli facti sumus... Lamentações de Jeremias (oração do Profeta Jeremias), 5, 3
(cantado na terceira Lição das Matinas do Sábado Santo)
b - Cecidit corona... Lamentações de Jeremias, 5, 16
c - Spiritus cordis nostri... Lamentações de Jeremias, 4, 20 + Livro da Sabedoria, 2, 20
d - Defecit gaudium... Lamentações de Jeremias, 5, 15

A versão atípica do manuscrito não catalogado da Orquestra Lira Sanjoanense


possui acréscimos originários das Lamentações de Jeremias, mas também do Livro de
Amós e do Segundo Livro de Samuel. Ressalte-se, ainda, que os versículos c e d do ma-
nuscrito sanjoanense não possuem as alterações verificadas nos textos descritos pelos
cerimoniais portugueses e nos demais manuscritos brasileiros consultados, utilizando o
texto latino tal como figura no Antigo Testamento (quadro 7).

Quadro 7. Origem bíblica dos versículos da primeira parte da Procissão do Enterro da


Orquestra Lira Sanjoanense.

Versículos da primeira parte Origem bíblica


a - Pupilli facti sumus... Lamentações de Jeremias (oração do Profeta Jeremias), 5, 3
(cantado na terceira Lição das Matinas do Sábado Santo)
b - Cecidit corona... Lamentações de Jeremias, 5, 16
c - Defecit gaudium... Lamentações de Jeremias, 5, 15 (texto original)
d - Spiritus oris nostri... Lamentações de Jeremias, 4, 20 (texto original)
e - Quomodo sedet... Lamentações de Jeremias, 1, 1
f - Versa est in luctum... Lamentações de Jeremias, 5, 15
g - Et convertam... Livro de Amós, 8, 10
h - Et versa est victoria... II Livro de Samuel, 19, 2

Quanto à versão também atípica do manuscrito do Arquivo da Cúria Metropoli-


tana de São Paulo (ACMSP P 118), os versículos posteriores ao estribilho Heu! Heu!

59
“Condenêmo-lo [o ímpio] a uma morte torpíssima, pois será considerado segundo o seu discurso”.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 23

Domine! foram baseados no segundo Responsório das Matinas do Sábado Santo, como
se pode observar no quadro 8.
O texto do Canto da Verônica, por sua vez, é de origem bíblica e litúrgica, sendo
cantado em quatro ocasiões, nos Ofícios de Trevas do Tríduo Pascal (quadro 9).

Quadro 8. Origem litúrgica dos versículos da primeira parte da Procissão do Enterro de


ACMSP P 118.

Versículos da primeira parte Origem litúrgica


a - Jerusalem, surge... Segundo Responsório das Matinas do Sábado Santo - primeira
parte da resposta
b - Quia in te occisus est... Segundo Responsório das Matinas do Sábado Santo - segunda parte
da resposta
c - Deduc quasi torrentem... Segundo Responsório das Matinas do Sábado Santo - versículo

Quadro 9. Origem bíblica e litúrgica do texto do Canto da Verônica.

Texto do Canto da Verônica Origem bíblica e litúrgica


O vos omnes... ƒ Lamentações de Jeremias, 1, 12
ƒ 3ª lição das Matinas de Quinta-feira Santa
ƒ Verso do 9º Responsório das Matinas de Sexta-feira Santa
ƒ 5º Responsório das Matinas do Sábado Santo
ƒ Antífona do Salmo 150, das Laudes do Sábado Santo

O fenômeno mais interessante, entretanto, ocorre em relação aos textos da se-


gunda parte. Nas duas versões apresentadas pelos cerimoniais portugueses, os textos
correspondem a fragmentos litúrgicos dos Ofícios de Trevas do Tríduo Pascal. Embora
alguns deles sejam cantados em várias Horas Canônicas do Tríduo Pascal, todos os
textos, sem exceção, encontram-se nas Matinas do Sábado Santo, como podemos obser-
var nos quadros 10 e 11.

Quadro 10. Origem litúrgica dos versículos da segunda Parte (versão 1) da Procissão
do Enterro, apresentados pelos cerimoniais portugueses.

Versículos da segunda parte Origem litúrgica


Æstimatus sum / cum descendentibus... ƒ Salmo 87 (versículo 4) do terceiro Noturno das Mati-
nas de Sexta-feira e do Sábado Santo
ƒ Antífona do Salmo 87 do terceiro Noturno das Mati-
nas do Sábado Santo
ƒ 8º Responsório das Matinas do Sábado Santo
Sepulto Domino / signatum est... ƒ 9º Responsório das Matinas do Sábado Santo
In pace factus est / locus ejus ƒ Antífona do Salmo 75 do terceiro Noturno das Mati-
nas do Sábado Santo
ƒ Salmo 75 (versículo 2) do terceiro Noturno das Mati-
nas do Sábado Santo
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 24

ƒ Versículo e Resposta final do terceiro Noturno das


Matinas do Sábado Santo
In pace in idipsum / dormiam... ƒ Antífona do Salmo 4 do primeiro Noturno das Mati-
nas do Sábado Santo
ƒ Salmo 4 (versículo 9) do primeiro Noturno das Mati-
nas do Sábado Santo
ƒ Versículo e Resposta final do primeiro Noturno das
Matinas do Sábado Santo
Caro mea / requiescet in spe ƒ Antífona do Salmo 15 do primeiro Noturno das Ma-
tinas do Sábado Santo
ƒ Salmo 15 (versículo 9) do primeiro Noturno das
Matinas do Sábado Santo
ƒ Versículo final das Laudes do Sábado Santo

Quadro 11. Origem litúrgica dos versículos da segunda Parte (versão 2) da Procissão
do Enterro, apresentados pelos cerimoniais portugueses.

Versículos da segunda parte Origem litúrgica


In pace factus est locus ejus / et habitatio ƒ Antífona do Salmo 75 do terceiro Noturno das Mati-
nas do Sábado Santo
ƒ Salmo 75 (versículo 2) do terceiro Noturno das Mati-
nas do Sábado Santo
ƒ Versículo e Resposta final do terceiro Noturno das
Matinas do Sábado Santo
Caro mea / requiescet in spe ƒ Antífona do Salmo 15 do primeiro Noturno das Ma-
tinas do Sábado Santo
ƒ Salmo 15 (versículo 9) do primeiro Noturno das
Matinas do Sábado Santo
ƒ Versículo final das Laudes do Sábado Santo
In pace in idipsum / dormiam... ƒ Antífona do Salmo 4 do primeiro Noturno das Mati-
nas do Sábado Santo
ƒ Salmo 4 (versículo 9) do primeiro Noturno das Mati-
nas do Sábado Santo
ƒ Versículo e Resposta final do primeiro Noturno das
Matinas do Sábado Santo
Sepulto Domino... / Ponentes milites... ƒ 9º Responsório das Matinas do Sábado Santo (com-
Accedentes principes... / Ponentes milites... pleto)

Como a Procissão do Enterro é uma cerimônia específica da Sexta-feira Santa e,


no período anterior a 1955, era precedida pelas Matinas (e também pelas Laudes) do
Sábado Santo, os textos foram baseados em passagens dessa Hora Canônica. Tal costu-
me já era indicado no § 119 das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia
(1707): “E na Sé Metropolitana, depois do Ofício de Sexta-feira Santa, como é costume,
se fará a Procissão do Enterro”.60 Após o remanejamento das Horas Canônicas para

60
CONSTITUIÇÕES Primeiras do Arcebispado da Bahia. Op.cit., Livro Primeiro, Título XXXIII, n.119,
p.52-53. Mas nem sempre a Procissão do Enterro era celebrada após as Matinas e Laudes (ou Ofício de
Trevas) do Sábado Santo. Dois séculos mais tarde, em São Paulo, a Procissão do Enterro era prescrita
antes do Ofício de Trevas, de acordo com Benedicto de Freitas (Actos diocesanos - Aviso n.16: A Sema-
na Santa. Boletim Ecclesiastico: orgam official da Diocese de S. Paulo, São Paulo, ano 3, n.10, p.186-
187, abr. 1908): “Sexta-feira Santa - 17 de abril. [...] Às 6 horas da tarde: Procissão do Enterro do Se-
nhor, Sermão da Soledade pelo Revmo. Sr. Cônego Dr. João Evangelista Pereira Barros. Em seguida
Ofício de Trevas.”
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 25

suas posições originais, pelo Papa Pio XII (Decreto da Sagrada Congregação dos Ritos
de 16 de novembro de 1955), gerando o que hoje se conhece como Semana Santa res-
taurada,61 as Matinas do Sábado Santo passaram a ser cantadas no próprio Sábado.
A segunda parte da Procissão do Enterro contém, então, uma espécie de resumo
das idéias mais expressivas do Ofício que acabara de ser cantado, adaptado a uma ceri-
mônia de maior apelo emocional e participação popular. E foi o próprio interesse popu-
lar por essa cerimônia que provocou sua permanência até o presente, enquanto os Ofí-
cios de Trevas, com raras exceções, estão praticamente extintos no Brasil.
Pela não consideração dessa cerimônia pré-tridentina, a composição para a se-
gunda parte da Procissão do Enterro, encontrada nos Livros de música polifônica n. 3 e
n. 4 do Paço Ducal de Vila Viçosa (Portugal), acabou sendo catalogada por Manoel
Joaquim62 e, posteriormente, por José Augusto Alegria,63 como oitavo Responsório das
Matinas do Sábado Santo. Baseando-se nas mesmas informações, Régis Duprat e Carlos
Alberto Balthazar também atribuíram a mesma composição, encontrada no manuscrito
da Coleção Curt Lange, às Matinas do Sábado Santo.64 A seqüência específica dos tex-
tos desses manuscritos, no entanto, jamais ocorre como tal nessa Hora Canônica, além
de estarem ausentes, em todos, os cinco versículos que, na Procissão do Enterro, são
cantados pelo celebrante (Æstimatus sum, Sepulto Domino, In pace factus est, In pace
in idipsum e Caro mea).
A presença de fragmentos musicais anônimos para os textos Dormiam et requi-
escam, Locus ejus e Requiescet in spe (exemplo 8), logo após o Æstimatus sum / cum
descendentibus, no Livro de música polifônica n. 4 do Paço Ducal de Vila Viçosa (f.
58v), não catalogados por Manoel Joaquim ou por José Augusto Alegria, somente cor-
robora a possibilidade de tratar-se esta de uma Procissão do Enterro e não do oitavo
Responsório das Matinas do Sábado Santo.

61
PINTO, José Alberto L. de Castro. Dicionário prático de cultura católica, bíblica e geral. In: Bíblia
sagrada: tradução do Padre Antônio Pereira de Figueiredo. Nova edição, publicada com a aprovação de
Sua Eminência Cardeal D. Jaime de Barros Câmara. [Rio de Janeiro]: Edição Barsa, 1971. p.250, verbete
“Semana Santa”.
62
VINTE livros de música polifônica do Paço Ducal de Vila Viçosa: catalogados, descritos e anotados
por Manoel Joaquim. Lisboa: Fundação da Casa de Bragança, 1953. f. 53-56 e 70v-72r.
63
BIBLIOTECA do Palácio Real de Vila Viçosa: catálogo dos fundos musicais organizado por José
Augusto Alegria. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. p.13-16.
64
MUSEU DA INCONFIDÊNCIA / OURO PRETO. Acervo de manuscritos musicais: coleção Francisco
Curt Lange: compositores mineiros dos séculos XVIII e XIX / coordenação geral: Régis Duprat; coorde-
nação técnica: Carlos Alberto Baltazar. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais. v.2
[Compositores não-mineiros dos séculos XVI a XIX], 1994 (Coleção Pesquisa Científica), n.298, p.47.
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 26

Exemplo 8. Anônimo. Fragmentos não catalogados da Procissão do Enterro, do Livro


de música polifônica n. 4 do Paço Ducal de Vila Viçosa, Portugal (f. 58v). Partes
preservadas de “Cantus. 1.us” (clave de sol na 2ª linha) e “Tenor” (clave de dó na
3ª linha). Alturas originais transpostas uma quarta abaixo, em virtude da utiliza-
ção de claves altas.

6. Conclusão

A Procissão do Enterro é uma das raras cerimônias religiosas, de origem medie-


val e lusitana, ainda praticada em países de fala portuguesa. Existem dezenas de manus-
critos, em acervos brasileiros, com música para essa devoção, predominantemente es-
crita em estilo antigo. Tais manuscritos revelam estreita relação com informações apre-
sentadas em livros litúrgicos bracarenses e em cerimoniais portugueses dos séculos
XVII e XVIII, mas também apresentam particularidades não observadas nessas fontes,
ou mesmo nos manuscritos até agora descritos em Portugal.
Novos estudos sobre o texto e a música da Procissão do Enterro poderão escla-
recer aspectos ainda desconhecidos da prática musical religiosa brasileira e portuguesa,
desde que sejam relacionadas informações de fontes americanas e européias. Funda-
mentais, entretanto, serão novos estudos sobre os aspectos sociais de tal cerimônia, in-
cluindo o papel das irmandades, ordens conventuais, ordens terceiras e dioceses em sua
celebração.

8. Bibliografia
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 27

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do anno de 1707. Impressas em Lisboa no anno de 1719, e em Coimbra em 1720 com todas as Li-
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nes, assim de Festas, como de Defuntos. E Tambem As da Semana Santa, quartafeira de cinza, das
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das; e dos Capellaês em sua prezença. E tudo o mais, que póde succeder pelo discurso do Anno,
com advertencias particulares para melhor intelligencia das Rubricas, e outras curiozidades mais.
Composto Pelo Lecenciado Joam Campello De Macedo Thezoureyro Mór, que foy da Capella Real.
Segunda Vez Acrescentado Nesta impressaõ com algumas rezoluçoês modernas na maneira da Re-
za: com huma direcçaõ para os Domingos Terceyros: Fórma de receber o Prelado vizitando, ou
outro Vizitador inferior; e algûa noticia do Rito Bracharense. Tudo Pelo Conego Joaõ Duarte Dos
Santos, Prebendado na Santa Sè de Braga Prrimaz das Hepanhas, natural da Corte, e Cidade de
Lisboa, e à sua custa impresso. Em Braga: Na Officina de Francisco Duarte Da Matta. Anno de
1734. Com todas as licenças necessarias, e Privilegio Real. 8 f. inum, 642 p., 68 f. não num.
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Á / VIRGEM SANTISSIMA, / SENHORA NOSSA / COM O SOBERANO TITULO DA IMMACULA-
DA / CONCEIÇÃO: ORDENADO POR SEU AUTHOR / O P. Fr. DOMINGOS DO ROSARIO, /
Filho da Provincia de Santa Maria da Arrabida, e primeiro Vigario / do Coro, que foi do Real
Convento de Mafra. / PARTE SEGUNDA, / NOVAMENTE DIVIDIDA, EM QUE SE TRATA DE
TODAS / as Missas Dominicaes, desde a primeira Dominga do Advento até á ul-/tima depois de
Pentecostes, Festas de Christo, de Nossa Senhora, Mis-/sas proprias de Santos, e dos Communs,
Kyrie, Gloria &c. para to-/das as Solemnidades. Tudo correto, e acrescentado com as quatro / Mis-
sas das Domingas Infra octavas do Natal, Epifania, Ascenção, e / Corpus Christi, Vigilia de Pente-
costes, vinte e tres domingas depois / de Pentecostes, sinco depois da Pascoa, tres depois da Epifa-
nia, Trans-/figuração de Christo, Exaltação da Cruz, Anniversário de Dedicação / da Igreja, e do
Patrocinio de S. José para os Regulares. / Dado ao prélo pelo Illustrissimo, e Excellentissimo Se-
nhor Duque do / Cadaval, Syndico Geral da sobredita Provincia. / Oitava impressão. / [grav.] /
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todas as licenças necessarias. Anno 1693. Com Privilegio Real. 12 f. inumeradas, 696 p.
SÃO LUIZ, Antonio de. Mestre De Ceremonias, Que Ensina O Rito Romano, E Serafico Aos Religiosos
Da Reformada, E Real Provincia Da Conceição No Reyno De Portugal, Exposto Em Duas Unicas
Classes Para utilidade tambem dos mais Ecclesiasticos, que praticão os mesmos ritos, Pelo M. R.
P. M. Fr. Antonio De S. Luiz, Ex-Leitor De Theologia, E Padre Da Mesma Provincia. Terceira im-
pressão Mais correcta, e notavelmente accrescentada com algumas Li-ções, varias Doutrinas,
muitas Declarações da Sagrada Con-gregação, e Determinações novissimas do N. SS. P. Pio VI.
Por Hum Filho Da Sobredita Provincia. [grav.] Lisboa: Na Officina De Simão Thaddeo Ferreira.
Anno de M. DCC. LXXXIX. [1789] Com Licença da Real Mesa da Commissão Geral, sobre o
Exame e Censura dos Livros. 4 f. não num., 450 p.
SARMENTO, Francisco de Jesus Maria. Manual Da Semana Santa Para Os Officios Ecclesiasticos, que
se celebrão nas Horas Matutinas dos veneraveis Dias De Domingo De Ramos, Quinta Feira Santa,
CASTAGNA, Paulo. A procissão do enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América Portuguesa 29

E Sesta Feira Da Paixão. Traduzidos no idioma Portuguez Para espiritual consolação, e proveitosa
intelligencia dos que ignorão a Lingua Latina. Ajuntão se algumas Orações para antes, e depois
dos Santos Sacramentos da Peni-tencia, e Eucaristia, e para visitar de-votamente as Igrejas: E va-
rias Illustrações Históricas, e Reflexões Moraes sobre os Mysterios, que se recordão em toda esta
Semana até Domingo de Pascoa. Por Fr. Francisco De Jesus Maria Sarmento, Comissionario da
Veneravel Ordem Terceira do Convento de Nossa Senhora de Jesus de Lisboa. LISBOA: Na Regia
Officina Typografica Anno MDCCLXXV [1775]. Com Licença da Real Meza Censoria. 261 p.
TELES, Jorge de Campos. A Paixão de Cristo na devoção popular lisboeta. Lisboa: Rei dos Livros,
1999. 160 p.
VASCONCELLOS, Joaquim de. Os musicos portugueses: biographia-bibliographia por [...]. Porto: Im-
prensa Portugueza, 1870. 2 v.
VILLA-LOBOS, Mathias de Sousa. ARTE / DE / CANTOCHÃO / OFFERECIDA / AO ILLUSTRISSI-
MO, E REVERENDISSIMO / SENHOR / DOM IOAM DE MELLO / BISPO DE COIMBRA, CON-
DE DE ARGA-/nil, Senhor de coja do Cõselho de S. Magestade &c. / COMPOSTA / POR MATHI-
AS DE SOUSA VILLA-LOBOS / Natural da Cidade de Elvas Bacharel formado em Leys, / pella
Vniversidade de Coimbra, & Mestre da / Capella da See da mesma Cidade. EM COIMBRA / Com
todas as licenças necessarias. / Na Officina de MANOEL RODRIGUES DE ALMEYDA / Anno de
1688. 7 f. inum., 214 p.
VINTE livros de música polifônica do Paço Ducal de Vila Viçosa: catalogados, descritos e anotados por
Manoel Joaquim. Lisboa: Fundação da Casa de Bragança, 1953. XXXI, 300 p.

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