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Cadernos de Estudos Africanos

43 | 2022
Middle East and Eastern Africa Intersected:
Reflections from contemporary scholarship

Em Nome do “Pai”, do “Filho” e do Espírito de


Corpo: Ou como recordar a provável 1ª Edição da
Cartilha do Guerrilheiro da UNITA
In the name of the “father”, the “son” and the esprit de corps: Or how to
remember the probable 1st edition of the Cartilha do Guerrilheiro of UNITA

Fidel Reis

Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/cea/7110
DOI: 10.4000/cea.7110
ISSN: 2182-7400

Editora
Centro de Estudos Internacionais

Edição impressa
Data de publição: 1 de janeiro de 2022
Paginação: 167-190
ISSN: 1645-3794

Refêrencia eletrónica
Fidel Reis, «Em Nome do “Pai”, do “Filho” e do Espírito de Corpo: Ou como recordar a provável 1ª
Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA», Cadernos de Estudos Africanos [Online], 43 | 2022, posto
online no dia 01 janeiro 2022, consultado o 05 março 2024. URL: http://journals.openedition.org/cea/
7110 ; DOI: https://doi.org/10.4000/cea.7110

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC-SA 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos
importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.
Cadernos de Estudos Africanos (2022) 43, 167-190
© 2022 Centro de Estudos Internacionais do Iscte - Instituto Universitário de Lisboa

Em Nome do “Pai”, do “Filho” e do Espírito de


Corpo: Ou como recordar a provável 1ª Edição da
Cartilha do Guerrilheiro da UNITA

Fidel Reis
Departamento de História
Faculdade de Ciências Sociais
Universidade Agostinho Neto
Avenida Ho Chi Minh, 56
Luanda, Angola

fidelreis@gmail.com
ORCID: 0000-0001-5760-3484
168 Em nome do “pai”, do “filho” e do espírito de corpo: Ou como recordar a provável 1ª Edição
da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA

Em nome do “pai”, do “filho” e do espírito de corpo: Ou como recordar a


provável 1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA
O presente texto apresenta um contributo reflexivo em torno do processo de estrutu-
ração e configuração da UNITA como organização político-militar, tendo como referen-
cial um documento encontrado nos arquivos da Torre do Tombo intitulado 1ª Edição da
Cartilha do Guerrilheiro da “UNITA”, datada de 1968, cuja autoria é atribuída a Jonas
Savimbi. Foi possível vislumbrar, na dita Cartilha do Guerrilheiro, uma produção discur-
siva que pode remeter para um processo de construção de uma identidade organizacional
sustentada, não apenas por uma crença mobilizadora (nacionalismo revolucionário) mas
também por uma lógica de funcionamento assente no princípio da disciplina. Daí ter-
mos formulado a seguinte interrogação: em que medida a Cartilha do Guerrilheiro pode
ser apreendida como instrumento de construção ideológica e identitária da organização
UNITA, e qual será o lugar que o princípio da disciplina ocupa nesta dinâmica de cons-
trução?

Palavras-chave: Cartilha do Guerrilheiro, disciplina, ideologia identitária, UNITA

In the name of the “father”, the “son” and the esprit de corps: Or how to
remember the probable 1st edition of the Cartilha do Guerrilheiro da UNITA
This text presents a reflexive contribution concerning the configuration and struc-
turing process of UNITA as a political-military organization, having as reference a docu-
ment found in the Torre do Tombo archives entitled 1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro
da “UNITA”, dated 1968, whose authorship is attributed to Jonas Savimbi. It was pos-
sible to glimpse, in the mentioned Cartilha do Guerrilheiro, a discursive production that
might refer to a process of construction of an organizational identity sustained, not only
by a mobilizing belief (revolutionary nationalism) but also by a logic of functioning based
on the principle of discipline. Hence we have formulated the following question: to what
extent can the Cartilha do Guerrilheiro be apprehended as an instrument of ideological
and identity construction of the organization UNITA, and which place the principle of
discipline occupies in this dynamic of construction?

Keywords: Cartilha do Guerrilheiro, discipline, identity ideology, UNITA

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Fidel Reis 169

A década de sessenta do século vinte pontua um tempo decisivo na/da luta


de libertação nacional, pois assinala novas formas de contestação ao despotismo
colonial, de entre as quais podemos salientar a opção pela luta armada. Pode-se,
assim, considerar que esta década é pontuada por um processo de reconfigura-
ção do espaço nacionalista angolano, que se iria traduzir na emergência da orga-
nização político-militar. O MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola
e a UPA/FNLA - União das Populações de Angola/Frente Nacional de Libertação
de Angola, seriam dois principais atores deste processo, até 1966.1 A partir de en-
tão, esta dinâmica iria contar com a participação de uma terceira força, a UNITA
- União Nacional para a Independência Total de Angola, constituída oficialmente
após um processo de rutura protagonizado por Jonas Savimbi e demais militan-
tes, com a FNLA/GRAE - Governo Revolucionário de Angola no Exílio.2
Com efeito, Jonas Savimbi anunciaria, após a sua rutura com a FNLA/GRAE,
uma vontade, um projeto, uma esperança, direcionados para aqueles que, re-
vendo-se no seu discurso, iriam conferir a força política (mobilização), que lhe
possibilitará a profecia auto-realizável de unificar uma série de indivíduos numa
organização, capaz de perpetuar-se numa instituição político-militar (Reis, 2018,
p. 173). Assim, iria emergir a UNITA, como grupo político-militar, no espaço
nacionalista angolano, com o seu programa, o seu porta-voz, as suas palavras
de ordem, as suas ideias-força, o seu processo de delegação, etc.; um universo
político que pode ser apreendido como um campo político, que se vai configu-
rando e estruturando, tendo em conta a sua especificidade não só relativamente
à definição do que está em jogo, às crenças que o sustentam e aos princípios que
o organizam, como também considerando as condições históricas e sociais da sua
constituição.3
O presente texto irá, portanto, apresentar um contributo reflexivo em torno
do processo de estruturação e configuração da UNITA como organização po-
lítico-militar, tendo como referencial um documento encontrado nos arquivos
da Torre do Tombo intitulado 1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da “UNITA”,

1
A propósito do processo de configuração do MPLA, ver Mabeko-Tali (2018). Relativamente à FNLA/GRAE, ver
Marcum (1978).
2
Este processo culminaria com a demissão oficial de Jonas Savimbi e outros militantes, da FNLA/GRAE. Das
lógicas que pautaram o processo de rutura podemos assinalar algumas: clivagens étnicas ou regionais no seio
desta organização política; distintas trajetórias de vida de atores sociais, que se processaram no contexto colonial;
disputa de poder entre Holden Roberto, o então presidente da FNLA/GRAE, e Jonas Savimbi. Contudo, importa
sublinhar que este processo de rutura acontece num quadro de profundo constrangimento militar por parte da
FNLA/GRAE. Ver Marcum (1978). Ver também Reis (2018).
3
Esta nossa abordagem tem como referencial os contributos do sociólogo Pierre Bourdieu.

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170 Em nome do “pai”, do “filho” e do espírito de corpo: Ou como recordar a provável 1ª Edição
da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA

datado de 1968, cuja autoria é atribuída a Jonas Savimbi pela PIDE.4 Esta opção
pela Cartilha do Guerrilheiro deve-se, em certa medida, à perceção de que esta úl-
tima produz um discurso sustentado por um sistema de classificação que poderá
determinar o funcionamento da UNITA no decurso do seu processo de estrutu-
ração e configuração.
Com efeito, após uma primeira leitura do documento, foi possível vislumbrar
enunciados de apelo ao combate armado, sustentado pela veiculação de um forte
sentimento de pertença, quer a um território com fronteiras definidas, quer a
uma organização, que se quer bem estruturada e organizada. Noções como nação
e condição de dominado/colonizado articulam-se e gravitam em torno de um
eixo central que traduz não apenas a reivindicação independentista, mas, igual-
mente, o modo como a UNITA se deve estruturar e organizar, num contexto de
luta armada anticolonial.
Em nosso entender, tais enunciados são sustentados por uma ideologia en-
globante, a saber, o nacionalismo revolucionário ou anticolonial.5 Nacionalismo
anticolonial, que legitima um discurso de ação política, pela via das armas, mas
que apela, também, para a necessidade de a UNITA se autorreproduzir como
instituição político-militar. Daí a organização necessitar de se sustentar median-
te mecanismos e práticas quotidianas, típicos de uma organização militarizada,
como por exemplo aqueles que estão contidos na narrativa da Cartilha, e que,
em nosso entender, remetem para o princípio da disciplina.6 Com efeito, nesta
Cartilha foi possível encontrar a prevalência de enunciados que remetem para o
princípio da disciplina no seio da organização, a começar pela predominância do
imperativo verbal na produção discursiva, relativamente ao funcionamento da
organização.7

4
Jonas Malheiro Savimbi (1934-2002), também conhecido como o Molowini (o filho do povo), nasceu no
Munhango, Bié. A sua formação educacional deveu-se muito às missões congregacionistas e católicas. Em 1960
manteve contactos com o MPLA (Lara, 1997; Lara, 2006). Optaria por aderir à UPA, em 1961, onde iria integrar
o Comité Diretor. Em 1962, após a constituição de uma frente comum e um governo no exílio – que englobava a
UPA e o PDA (Partido Democrático de Angola) –, denominada FNLA/GRAE, Jonas Savimbi assume o cargo de
Secretário dos Negócios Estrangeiros do GRAE. Em julho de 1964, Jonas Savimbi abandonaria a FNLA/GRAE,
tendo-se fixado temporariamente em Brazzaville, onde esteve na iminência de ingressar no MPLA (Lara, 2008). A
partir daí, encetou um percurso singular que o levaria a criar uma organização política e militar “à sua imagem”.
Ver Bridgland (1988).
5
Entendido aqui, grosso modo, como a veiculação de um conjunto de crenças e símbolos que exprimem a iden-
tificação de uma população com um território delimitado por fronteiras físicas, com um Estado e seu respetivo
governo; conjunto de crenças e símbolos acompanhado de uma proposta de rutura com a velha ordem colonial,
na medida em que se pretende uma nova ordem nacional. E que apela para o combate armado. Acerca do nacio-
nalismo ver, entre outros, Hobsbawm, 1998; Smith, 1997; Cordelier, 1998 e Andrade, 1998. É apenas nessa medida
que utilizamos a designação “nacionalismo revolucionário”.
6
Note-se que a Cartilha era destinada aos comandantes das “zonas” da UNITA. Estes últimos tinham por missão
organizar toda a atividade político-militar e político-administrativa da UNITA.
7
Encontramos designações como: sacrifício, ordem, disciplina, comando, obediência, vigilância, hierarquia ou
prevalência da disciplina sobre a democracia.

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Fidel Reis 171

Julgamos que estando a UNITA “fadada para o combate militar”, a disciplina,


no sentido castrense do termo, pode ter sido ser um fator determinante para o
funcionamento das relações que se estabeleceram no seio do seu espaço social.
E, por conseguinte, desempenhar um papel fundamental não apenas no que diz
respeito ao seu funcionamento, mas, igualmente, no que toca à (re)produção de
uma identidade organizacional.8 A partir dessas considerações introdutórias so-
mos induzidos a formular a seguinte interrogação: em que medida a Cartilha do
Guerrilheiro pode ser apreendida como instrumento de construção ideológico e
identitário da organização UNITA e qual será o lugar que o princípio da discipli-
na ocupa nesta dinâmica de construção?
De modo a contribuir para uma possível resposta, a nossa reflexão será es-
truturada em torno de três pontos principais. Começaremos por apresentar al-
gumas notas relativamente à nossa abordagem, tendo como referencial teórico o
de pensar a UNITA levando em conta a relação entre ideologia e identidade, em
articulação com o princípio da disciplina. Apresentaremos, num segundo ponto,
uma síntese contextualizante acerca do processo de configuração e estruturação
da UNITA, desde a sua constituição até 1968, ano provável da publicação da
primeira edição da Cartilha do Guerrilheiro. Por fim, um último ponto, dedicado à
caracterização do discurso contido na Cartilha do Guerrilheiro, a saber, os enuncia-
dos que poderão indiciar um processo de configuração e estruturação da UNITA
como espaço ideológico identitário, tendo em conta o lugar que o princípio da
disciplina pode ocupar nesta dinâmica.

Questões teóricas
O recurso à relação entre a identidade e a ideologia adquire pertinência pois
possibilita, na análise da dinâmica do universo político angolano, descortinar
processos de identificação e diferenciação, numa perspetiva que relaciona sen-
timento de pertença com a ação política. No caso do espaço político angolano,
e num contexto de luta anticolonial, definir uma identidade, ou seja, veicular o
sentimento de pertença, tem sido parte integrante da ação política.
Importa clarificar que o sentimento de pertença não implica a anulação de
outros componentes, nomeadamente religiosos, étnicos ou regionais. Antes pelo
contrário, esses componentes podem reforçar o sentido de pertença relativamen-

8
Relativamente à questão da reprodução de uma identidade organizacional, a nossa abordagem é devedora do
contributo de Fonseca (2008).

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172 Em nome do “pai”, do “filho” e do espírito de corpo: Ou como recordar a provável 1ª Edição
da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA

te a uma determinada organização, sobretudo quando esta última se apropria


dessas componentes tendo em conta as suas lógicas e necessidades específicas.9
O que nos leva a considerar que a ação política é também fundamentar uma
determinada “di-visão” do mundo social, através de um discurso que conver-
te propriedades sociais em propriedades de ordem “politicamente” natural. É
aquilo que Bourdieu denomina de “efeito ideológico”, que consiste na imposi-
ção de sistemas de classificação políticos sob a aparência legítima de taxinomias
filosóficas, religiosas, jurídicas, etc. (Bourdieu, 1989, p. 14). No caso do universo
político angolano, o “efeito ideológico” consiste, de certa forma, num exercício
de imposição de classificação e prática política legitimada pela “nobreza da cau-
sa”: o nacionalismo anticolonial. Sendo assim, a ideologia pode contribuir, de
certa forma, para a (re)produção de identidades, na medida em que assegura “o
reconhecimento mútuo entre os sujeitos e o Sujeito, e entre os próprios sujeitos
e finalmente o reconhecimento do sujeito por ele próprio” (Althusser, 1980, p.
111). Portanto, a ideologia, e segundo Paul Ricoeur (1991, pp. 364 e 426), embora
se possa apresentar com carácter de distorção e legitimação, tem uma função in-
tegrante, isto é, de preservar a identidade do grupo ao longo do tempo. O mesmo
exemplifica com a comunidade política como fenómeno histórico, a qual:

É um processo cumulativo que reclama alguma coisa do seu passado e antecipa


alguma coisa do seu futuro. Um corpo político existe, não só no presente como no
passado e no futuro, e a sua função é ligar passado, presente e futuro. (Ricoeur,
1991, p. 364)

Sendo assim, a ideologia será aqui relacionada com a identidade porque aque-
la é “pensada” como um sistema de classificação política que engloba discursos,
princípios e práticas que remetem para dinâmicas de identificação e identização.
É neste sentido que, relativamente à nossa abordagem da Cartilha do
Guerrilheiro, apelaremos para o conceito de ideologia identitária. Entendido, gros-
so modo, como sistema de classificação, produzido e trabalhado, que contém um
discurso identitário (crença num sentimento de pertença); um discurso identitá-
rio que traduz um duplo processo de integração (identificação) e de diferencia-
ção (identização).10 Todavia, a operacionalidade deste conceito centrar-se-á, so-
bretudo, no plano da organização. Ou melhor dizendo, iremos pensar o universo

9
Como demonstra Vasco Martins relativamente ao uso da categoria etnia por parte da UNITA, sobretudo no pe-
ríodo pós-colonial (Martins, 2015). Ver igualmente Malaquias (2007). Mas também, relativamente ao uso político
da religião por parte desta mesma organização político-militar, ver Péclard (2015).
10
A referência ao identitário é extraída de Pinto (1991). Segundo este autor, a identização remete para um proces-
so através do qual os agentes tendem a autonomizar-se e diferenciar-se socialmente, fixando em relação a outros,
distâncias e fronteiras mais ou menos rígidas.

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Fidel Reis 173

político-organizacional UNITA como espaço ideológico identitário, como insti-


tuição que se (re)produz com práticas de identificação e identização que reme-
tem para um processo de construção de uma identidade organizacional. Processo
esse que, por sua vez, necessita de ser sustentado por um conjunto de princípios
acompanhados dos respetivos mecanismos e práticas quotidianas, que podem
ser contributivos para que esta instituição político-militar se reproduza como um
lugar, de um “nós” relativamente aos “outros”.11
E, por conseguinte, como um espaço de construção e reprodução da sua iden-
tidade organizacional.12
Dum conjunto de princípios iremos reter o princípio da disciplina, na medida
em que as alusões a este último são perfeitamente notórias – como foi referido an-
teriormente – na narrativa da Cartilha. A começar pelo discurso ideológico iden-
titário de justificação da necessidade de incorporação do princípio da disciplina
no seio da organização, em nome do sacrifício e do combate, no quadro de uma
luta que não se quer apenas política, mas igualmente, armada.13
A disciplina torna-se, assim, “imprescindível, justamente para se manter a
unidade da corporação, transformar representação em norma de conduta, unir
o espírito militar à ação militar” (Leirner, 1997, p. 39).14 Daí sermos levados a
considerar a possibilidade de a disciplina – como princípio estruturante e fun-
cional – ter um papel fundamental no modo como o universo político UNITA
irá construir a sua identidade organizacional. Identidade devedora, em muito, à
ação política e militar em forma de espírito de corpo. Sendo assim, a disciplina
será aqui apreendida:

como uma técnica, com a qual se visa moldar padrões de comportamento por meio
de uma pedagogia voltada principalmente para a manipulação do corpo, visto
como elemento chave do poder disciplinar. Daí a importância da educação físi-
ca no campo militar, na medida em que expõe o corpo a uma “maquinaria”, um
11
Dos mecanismos podemos salientar a COMI - Comissão Militar de Investigação, que tinha por função recolher
informações relativas às atividades abrangendo todas as áreas, como por exemplo o controlo do movimento das
pessoas suspeitas nas bases da UNITA ou das suas áreas de influência. Relativamente às práticas quotidianas,
temos por exemplo a ginástica e a ordem unida.
12
Daí que nos enunciados discursivos contidos na Cartilha a reivindicação independentista seja complementada
por discursos enunciadores de um forte sentimento de pertença que se traduzem em designações como “nós”,
“UNITA”, “nosso partido” e “africanos”, em oposição a designações como “portugueses” ou “inimigo”. Aliás,
práticas quotidianas de tratamento na organização como “camarada” deveriam ser banidas e substituídas por
designações como “irmão” ou “companheiro”.
13
Importa salientar que o que norteia a nossa abordagem é a Cartilha do Guerrilheiro como instrumento ideoló-
gico identitário e o lugar que a disciplina ocupa nesta dinâmica. Não se trata de articular ideologia e disciplina.
Por via das dúvidas recordamos a nossa pergunta de partida: em que medida a Cartilha do Guerrilheiro pode ser
apreendida como instrumento de construção ideológica e identitária da organização UNITA e qual será o lugar
que o princípio da disciplina ocupa nesta dinâmica de construção?
14
Imprescindível, devido ao carácter militar da organização. O que não significa uma relação mecanicista entre
ideologia identitária e disciplina com sentimento de pertença à organização.

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174 Em nome do “pai”, do “filho” e do espírito de corpo: Ou como recordar a provável 1ª Edição
da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA

conjunto de exercícios corporais (ordem unida, maneabilidade, etc.) que visam a


“fabricá-lo” por meio do treinamento “ortopédico”, tornando-o submisso, dócil e
útil. Obtendo dele uma adesão que o espírito poderia recusar. (Rosa & Brito, 2010,
p. 204)15

É nesta senda que iremos reter também a disciplina, no sentido foucaultiano,


como “disciplinas”, conjunto de “métodos que permitem o controlo minucioso
das operações do corpo que realizam a sujeição permanente das suas forças e
que lhe impõem uma relação de docilidade-utilidade” (Foucault, 1975, p. 139).16
Julgamos, agora, estar em condições de encontrar elementos na narrativa da
Cartilha que possibilitam a sua apreensão como instrumento de construção ideo-
lógico-identitário da organização UNITA, tendo em conta o lugar que o princípio
da disciplina ocupa nesta dinâmica.
Antes, porém, torna-se necessário apresentar uma breve contextualização do
processo de configuração e estruturação da UNITA, no período compreendido
entre 1966 e 1968.

Do Muangai à Cartilha
Segundo Jonas Savimbi:

A criação da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) foi


decidida, no princípio de 1965, em Champaix (Suíça) entre mim e António da Costa
Fernandes (Tony), após longas discussões e reflexões sobre a necessidade imperio-
sa de dar novo rumo à luta para a libertação do povo angolano. (Savimbi, 1979, p.
19)

Para Tony da Costa Fernandes:

Na sua génese, a UNITA era constituída por aqueles que estavam mal representa-
dos nos outros dois movimentos, o MPLA e a UPNA/UPA/FNLA. Acreditávamos
que a UNITA pudesse ser uma formação com expressão nacional, porque nós tínha-
mos uma concepção diferente da dos outros [....]. Éramos originários de Cabinda,
Cunene, Huambo, do Bié e de Malanje, muito poucos de Luanda. (Loanda, 1997,
p. 65)

Esta diversidade sociocultural, que está na origem da composição política da


UNITA, não impede que na memória da génese e no percurso de legitimidade
se confundisse a UNITA com a trajetória política e pessoal do seu líder Jonas

15
Ver também Bourdieu, 2004, p. 220.
16
Importa sublinhar que na nossa abordagem, a hierarquia é inerente à disciplina.

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Fidel Reis 175

Malheiro Savimbi.17 Pois, segundo a mesma fonte, fora ele que tivera a ideia
de uma nova organização política (Loanda, 1997, p. 65). Em certa medida “ele”
emerge como figura de “pai” fundador e chefe da organização.18
A UNITA, terceira força armada do espaço nacionalista angolano, é oficial-
mente constituída a 13 de março de 1966, durante uma Conferência – conside-
rada, posteriormente, como o primeiro Congresso da UNITA – realizada no in-
terior de Angola, na região do Moxico, mais precisamente no Muangai, a cerca
de 400 km da fronteira com a Zâmbia. A Conferência foi organizada por Isaya
Massumba e presidida por Muliata Kaniumbu (UNITA. ANTT/PIDE/DGS. DEL
Angola).19 Foram apresentadas e aprovadas as linhas programáticas constitutivas
da UNITA, que haviam sido elaboradas por Jonas Savimbi na Suíça, onde se pode
destacar que a “UNITA é uma organização política formada por angolanos sem
distinção de sexo, etnia ou religião” (UNITA. ANTT/PIDE/DGS. DEL Angola).
Dos objetivos imediatos da UNITA podemos salientar:

Mobilizar as massas angolanas [...] para servirem de base na luta pela libertação
nacional. Incutir no espírito de todos os angolanos que vivem no exterior do país
que a verdadeira independência só será alcançada através da luta armada no inte-
rior do país [...]. A UNITA lutará constantemente para a formação de uma verda-
deira Frente Unida de todas as forças nacionalistas angolanas sem discriminação
de espécie alguma. (UNITA. ANTT/PIDE/DGS. DEL Angola)

Do ponto de vista da sua estrutura a UNITA organizou-se do seguinte modo:


• A Nação, a Província, o Distrito, a Região e a Célula.
• Ao nível de Nação corresponde o Conselho Nacional e o Comité Central. Cada Pro-
víncia, Distrito e Região é dirigida por um Comité Provincial, Distrital e Regional.
• A Célula é o órgão básico da UNITA.
• O órgão supremo da UNITA é a Assembleia Geral constituída por delegados de
todos os órgãos básicos.
• A UNITA adopta como método de trabalho os seguintes princípios:
o Direcção Colectiva
o Centralismo Democrático
o Crítica e Auto-Crítica. (UNITA. ANTT/PIDE/DGS. DEL Angola)

17
Importa ressalvar que a ideia de diversidade sociocultural não se restringe a distintos espaços regionais ou
etnias. A diversidade sociocultural implica outros elementos diferenciadores como por exemplo: religiosos, dis-
tintos grupos sociais e até formas diversas de capital escolar.
18
A construção da figura do “pai” tem uma importância significativa no imaginário africano. Remete frequen-
temente para um ato fundador, mas também para a liderança. Indicia igualmente um momento de passagem de
“mais novo” para “mais velho”. A propósito da figura do “pai” no universo político africano, ver Memel-Fotê
(1991).
19
Ver também Marcum, 1978, p. 166.

Cadernos de Estudos Africanos • janeiro-junho de 2022 • 43, 167-190


176 Em nome do “pai”, do “filho” e do espírito de corpo: Ou como recordar a provável 1ª Edição
da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA

Elegeu-se igualmente um Comité Central Provisório, o qual foi incumbido


de organizar uma luta popular armada assente no anticolonialismo, tentar criar
uma Frente Unida com todas as forças armadas angolanas anticolonialistas e pre-
parar uma assembleia geral para a eleição de um Comité Central efetivo (UNITA.
ANTT/PIDE/DGS. DEL Angola).20
Contudo, neste processo de delegação política é provável que o líder máximo
não estivesse presente no momento solene da investidura. Com efeito, depara-
mo-nos com um problema de distintas fontes acerca da presença de Savimbi no
Congresso realizado no Muangai. Na sua versão, Samuel Chiwale considera que:

O Dr. Savimbi entrou em Angola vindo da Zâmbia em princípios de Março de


1966. Chegou a Muangai, passando por Lungué-Bungo e Lucusse. […] O cenário
do Congresso foi simples: o Dr. Savimbi sentado ao lado de uma grande tenda;
acompanhavam-no, diante dele, alguns membros mais destacados, acomodados
em cadeiras feitas de caules de árvores. (Chiwale, 2008, pp. 94-95)

Figura 1
Comité Central provisório da UNITA de março de 1966

Nome Estudos Funções Origem geográfica

Smart Chata Moxico


Muliata Kaniumbu Moxico
Salomão Njolomba Moxico
Daniel M. Kapozo Moxico
Isaac Mbunda Moxico?
Mutaipi Mukumbi Huambo?
Alexandre Magno Pedro Huambo
*Evimbi Molowini Bié
José Kalundungo Bié
Kapesi Fundanga Bié
Jacob Hossi Bié
Franco Mateus Luena-Moxico
Isaya Massumba Zâmbia -Balovale
Luchazes
Dunduma Chiuka Huambo
Samuel Chavala Moxico
Fonte: UNITA. ANTT/PIDE/DGS. DEL Angola

20
Ver também Marcum, 1978, p. 167.

Cadernos de Estudos Africanos • janeiro-junho de 2022 • 43, 167-190


Fidel Reis 177

Contudo, num depoimento, Savimbi afirma que “entrei em Angola em


Outubro de 1966 e fiquei até 1967” (Antunes, 1996, p. 97). Por sua vez, numa
revista africana consta que “Foi a 13 Março de 1966, enquanto Jonas Savimbi
ainda estava na República da China, que se realizou o Congresso Constitutivo da
UNITA” (Jeune Afrique Hors-Série, 1996).21 Um outro autor considera que aquan-
do do Congresso Constitutivo da UNITA, Savimbi encontrava-se ainda na China,
tendo entrado em Angola em outubro de 1966 (Cervelló, 2009, p. 104).22
Tal como constava no ato constitutivo da UNITA, realizou-se uma Assembleia
Geral em Lusaka, que instituiu um Comité Central efetivo e que assinalou, em
nosso entender, um processo de delegação política que consagrou a efetiva insti-
tucionalização do capital político do grupo constituído e do seu líder.

Figura 2
Comité Central efetivo da UNITA de setembro de 1966

Nome Estudos Funções Origem geográfica

Jonas Savimbi Superiores Presidente Bié


Smart Chata 1º Vice-Presidente Moxico/Saurimo
Kaniumbu Muliata 2º Vice-Presidente Moxico
Salomão Njolomba 3º Vice-Presidente Moxico
Daniel Muliata Secr. Finanças Moxico-Léua
Mutole Mutaipi Secr. Adjunto para os Assuntos Huambo?
Sociais
David Mussonga Secr. p/o Trabalho
J. Kampanjo/Kanganjo? Secr. Adjunto p/ Informação
Isaías Massumba Comissário Político das Forças Balovale/Zâmbia
Armadas da UNITA
Kapesi Fundanga Chefe de Estado-Maior das Forças Bié
Armadas da UNITA
José Kalundungo Chefe das Operações Militares Bié
José Samuel Chiwale Chefe da Coordenação Militar Huambo
Fonte: UNITA OPER Madeira (Valentim, 2005, p. 196 e Marcum, 1978, pp. 167 e 381)

As atividades militares da UNITA em Angola desenrolavam-se, inicialmen-


te, no distrito do Moxico ao longo da fronteira com a Zâmbia. Se, no início, a
UNITA começou por se destacar na imprensa zambiana pelas suas ações milita-
res, a violenta resposta das autoridades militares lusas com bombardeamentos
de aldeias zambianas na fronteira de Angola, suspeitas de serem uma retaguarda
da UNITA, obrigou o governo zambiano a rever o seu apoio, limitando assim os

21
Tradução livre.
22
Ver igualmente Bridgland,1988, p. 79 e Jornal Kwacha, abril de 1975.

Cadernos de Estudos Africanos • janeiro-junho de 2022 • 43, 167-190


178 Em nome do “pai”, do “filho” e do espírito de corpo: Ou como recordar a provável 1ª Edição
da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA

efeitos militares desta última (Marcum, 1978, p. 168).23 A UNITA era, portanto,
ainda, no plano militar, uma organização incipiente.
No ano de 1966, a UNITA havia realizado ações bélicas contra posições milita-
res portuguesas, com resultados ínfimos. Em setembro de 1966, atacou os postos
de Kalungula; a 4 de dezembro atacou o posto de Kassamba e a 25 de dezembro
atacou a Vila de Teixeira de Sousa, operação na qual foi morto o chefe de posto
local da PIDE. Embora malsucedido, o ataque a Teixeira de Sousa adquirira o
estatuto de data mítica para esta organização político-militar (Marcum, 1978, pp.
160-169). Em 1967, durante a ausência de Savimbi, que se deslocara a vários paí-
ses árabes e europeus, os guerrilheiros da UNITA sabotaram o caminho de ferro
de Benguela, por duas vezes, o que desagradou ao governo zambiano. A UNITA
viu assim o seu apoio por parte deste último bastante reduzido, chegando ao
ponto de Savimbi ter permanecido preso, no dito país, durante seis dias, tendo
sido posteriormente expulso para o Egito (Marcum, 1978, p. 192).24
Em julho de 1968, Jonas Savimbi, acompanhado de Miguel Nzau Puna, re-
gressou à Zâmbia graças aos bons ofícios da SWAPO - South West African
People’s Organization (organização político-militar que lutava pela independên-
cia da Namíbia) e voltou, então, a pisar o solo angolano (Marcum, 1978, p. 193).25
Contudo, o estado da organização não era animador. A UNITA deparava-se com
uma crise político-militar que punha em risco a coesão do grupo político recen-
temente constituído. Savimbi, num depoimento concedido a um historiador, re-
corda o estado da organização do seguinte modo:

Quando lá cheguei havia divisões na UNITA e desentendimentos entre coman-


dantes. A minha ausência prolongada tinha feito com que houvesse fragmentação
e o meu primeiro trabalho consistiu em unir toda a gente, as facções militares.
Trabalhamos duramente até congregar outra vez todos os esforços e recomeçar o
combate. (Antunes, 1996, p. 98)

Em 18 de outubro de 1968, um relatório da PIDE considerava que:

A UNITA está desorganizada na Zâmbia. A ausência de J. Savimbi, o insucesso


nas actividades terroristas em Angola e ainda a morte do “camarada” Francisco
Kulunga, ocorrido no C.Cubango, agravaram a situação da UNITA que parece es-
tar a extinguir-se. [...] Os chineses dão algum apoio à UNITA mas a principal ajuda,
apesar de J. Savimbi ter sido expulso da Zâmbia por se vangloriar de ter mandado

23
Ver igualmente Valentim, 2005, p. 305.
24
Ver também Waals, 2015, p. 287.
25
Ver também Waals, 2015, p. 288.

Cadernos de Estudos Africanos • janeiro-junho de 2022 • 43, 167-190


Fidel Reis 179

sabotar o CFB, continua a ser dada pelo governo zambiano. (Savimbi ANTT/PIDE/
DGS)

A UNITA chegara ao ponto de ter sofrido uma série de deserções de alguns


militantes, entre os quais podemos salientar o major Tiago Sachilombo que, em
fevereiro de 1969, fora aliciado pela PIDE e desertara com centenas de guerri-
lheiros, entregando-se às autoridades portuguesas. E, no mesmo ano, Samuel
Chavala Mwanangola iria abandonar a organização e ingressar nas fileiras da
FNLA (Savimbi, 1979, pp. 21-22).26 A crise iria prolongar-se até à realização do
seu segundo congresso, em agosto de 1969.
De certo modo, a elaboração e divulgação da Cartilha do Guerrilheiro pode es-
tar associada ao estado de anomia vigente na organização; indicia, porventura, a
necessidade por parte de Jonas Savimbi de reformular a atividade político-mili-
tar da UNITA, de modo a imprimir uma maior dinâmica na luta anticolonial. Por
conseguinte, a Cartilha do Guerrilheiro pode significar uma nova etapa no processo
de organização e estruturação da organização.27
Feita a síntese contextualizante, estamos em condições de apresentar uma
breve caracterização do discurso contido na Cartilha do Guerrilheiro.

Breve caracterização do discurso produzido pela


Cartilha do Guerrilheiro
Antes de nos debruçarmos sobre a narrativa contida na Cartilha iremos
apresentar alguns esclarecimentos acerca do documento intitulado 1a Edição da
Cartilha do Guerrilheiro da “UNITA”, localizado no decurso das nossas pesquisas
nos arquivos da Torre do Tombo. O documento contém uma nota introdutória,
provavelmente redigida em Luanda, com data de 31 de julho de 1972, elabora-
da por um informante da DGS - Direcção-Geral de Segurança, órgão correspon-
dente à antiga PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) – instituição
policial e política metropolitana. Na dita nota, o informante começa por referir
que o documento (“trabalho”) é uma cópia integral de uma publicação elaborada
por Jonas Savimbi e que se trata da “primeira edição da Cartilha do Guerrilheiro” e
é datada do ano de 1968. O mesmo informa que a Cartilha era destinada aos co-
mandantes das “zonas” da UNITA. Estes últimos tinham por missão organizar

26
Ver também Cervelló (2009, p. 102). Deparamo-nos assim com um exemplo duma figura estruturante da orga-
nização política: o traidor.
27
Importa recordar que a UNITA abordada na nossa reflexão situa-se no período compreendido entre 1966 e
1968. Trata-se, portanto, de uma UNITA incipiente. Aliás, no dito período, a UNITA só possuía uma “base” (1ª
Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA). Em certa medida a Cartilha propõe uma “UNITA projeto”.

Cadernos de Estudos Africanos • janeiro-junho de 2022 • 43, 167-190


180 Em nome do “pai”, do “filho” e do espírito de corpo: Ou como recordar a provável 1ª Edição
da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA

toda a atividade político-militar e político-administrativa da UNITA. Segundo


o mesmo informante, com esta Cartilha Savimbi “pretendia a partir dos órgãos
de base introduzir nas estruturas político-militares e político-administrativas
métodos de modo a imprimir maior dinamismo na luta” (1ª Edição da Cartilha
do Guerrilheiro da UNITA). O mesmo esclarece que aquando da elaboração da
Cartilha, a UNITA dispunha apenas de uma base onde funcionavam todos os ór-
gãos superiores do “partido”. O informante acrescentou ainda que o documento
contém um número reduzido de citações que são uma síntese do livro de Mao
Tsé-Tung intitulado Escritos Militares, publicado no ano de 1968. O que implica
uma breve nota relativamente à influência da China nos alinhamentos políticos
e ideológicos da UNITA, de modo a situar os enunciados contidos na Cartilha;
enunciados sustentados, em muito, por instrumentos teóricos e conceptuais pro-
venientes do maoísmo.28 Tal pode dever-se ao facto de que os primeiros quadros
da UNITA e, por conseguinte, o seu líder máximo, tinham tido uma trajetória
profundamente marcada pelo maoísmo do ponto de vista ideológico e organiza-
cional. Esta influência chinesa processava-se desde 1965, nomeadamente no res-
peitante à formação político-militar. Daí que a revolução chinesa exemplificava o
lugar ideal de lutas travadas, e bem-sucedidas, no plano político-militar. Savimbi
manifestaria a posteriori esta preferência pela China da seguinte maneira:

a nossa determinação de levar o combate ao interior do país sempre se coadunava


melhor com a filosofia de luta da China Popular do que com a ortodoxia marxista,
que afinal consideramos não poder, de forma nenhuma, corresponder às condições
materiais, objectivas e subjectivas, do nosso País. (Savimbi, 1979, p. 21)29

Relativamente à sua estrutura formal, a Cartilha é constituída por vinte e cinco


páginas. Contém uma introdução e está dividida em cinco partes. A primeira
parte gravita em torno de pontos como: política colonial; problemas políticos; co-
lonialismo português e sua penetração em Angola; geografia económica e huma-
na de Angola; e, por fim, um último ponto relativamente à política da UNITA. A
segunda parte é constituída por um ponto principal intitulado: a organização do
povo. A terceira parte, com apenas uma página, trata da estratégia, que é a parte
menos desenvolvida do documento. A quarta parte é referente à organização das
zonas militares. A quinta parte aborda a organização do conselho dos comissá-
rios. As duas últimas partes têm a particularidade de serem as mais extensas.

28
Muito embora não façam parte do âmbito da nossa reflexão, reconhecemos que estas considerações sobre a
relação entre a China e a UNITA carecem de uma análise mais aprofundada.
29
Ver também Tsé-Tung, 1966 e 1975.

Cadernos de Estudos Africanos • janeiro-junho de 2022 • 43, 167-190


Fidel Reis 181

Podemos agora passar para a caracterização da produção discursiva contida


na Cartilha do Guerrilheiro, à luz do conceito de ideologia identitária e da sua rela-
ção com o do princípio da disciplina.

Produção ideológica identitária e disciplina


Na nota introdutória da Cartilha é possível vislumbrar um momento funda-
mental de veiculação de uma dupla identidade organizacional e territorial, com
a construção da figura do herói associada à dimensão do sacrifício: “Esta primei-
ra edição da Cartilha do Guerrilheiro é dedicada ao nosso melhor companheiro
de luta, Comandante, Capitão Paulino Moisés, como homenagem de todos os
seus colegas que ainda vivem” (1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA).
Heroísmo e sacrifício, dois mecanismos que concorrem para o combate político-
-militar: “Esta é a tua ditosa terra de Angola. É tua, foi dos teus avós. Liberta-a,
reconstrói-a com o teu sangue e junta-te aos demais que da lei da morte se liber-
taram” (1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA). Mas a ideia de sacrifício
é complementada com o apelo ao religioso cristão em língua umbundo: “Sukwa-
Kweche Molowini”.30
Relativamente à primeira parte da Cartilha, Jonas Savimbi começa por pos-
tular, relativamente ao funcionamento da organização, a primazia do político
sobre o militar no respeitante ao comando da organização: “As acções militares
só devem ser decididas num quadro político bem definido” (1ª Edição da Cartilha
do Guerrilheiro da UNITA). Segue-se o recurso à antinomia colonizador/coloniza-
do que irá servir para ativar o princípio da mobilização do maior número31; duas
categorias serão fundamentais para o efeito: Povo e Portugueses.

Qual é a maior força capaz de derrotar os colonialistas portugueses em Angola?


Numa guerra revolucionária, a maior força é o nosso povo. A atenção dos dirigen-
tes do nosso Partido deve concentrar-se na explicação dos problemas levantados
pela luta contra os portugueses. (1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)

Contudo, a ativação do princípio de mobilização implica qualidades espe-


cíficas para o efeito; qualidades que prenunciam a inserção na organização do
princípio da disciplina e associá-lo não só ao sentimento de pertença a um país,
mas, igualmente, ao bom funcionamento da organização:

30
“Que Deus te entregue ao povo” (tradução livre). Temos provavelmente um exemplo de construção, porven-
tura ainda de forma subtil, de uma identidade UNITA com duas componentes contributivas: a etnia (através da
língua) e a religião.
31
No sentido de que no campo político “a produção das ideias acerca do mundo social acha-se sempre subordi-
nada de facto à lógica da conquista do poder que é a da mobilização do maior número (Bourdieu, 1989, p. 175).
Acerca do campo político, ver o mesmo autor em Bourdieu, 2000.

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182 Em nome do “pai”, do “filho” e do espírito de corpo: Ou como recordar a provável 1ª Edição
da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA

Todo o dirigente da UNITA deve conhecer muito bem todos os problemas da luta
anticolonial para poder explicá-los com clareza. As qualidades que a UNITA exi-
ge de um dirigente são: firmeza na tomada de decisão e amar profundamente o
povo pelo qual lutamos […], coragem e dureza para com o inimigo; vigilância per-
manente na zona, na marcha, na aldeia ou em descanso. (1ª Edição da Cartilha do
Guerrilheiro da UNITA)

Todavia, nesta primeira parte irá prevalecer ainda o discurso identitário, pois
torna-se necessário reforçar os laços entre os membros do grupo constituído. Para
o efeito, três elementos serão fundamentais: o tempo, o espaço e o povo/cultura.
Relativamente ao tempo, o discurso identitário remete para uma Angola que
possui uma história, anterior à memória colonial e que fora brutalmente inter-
rompida por meio milénio de colonização:

Os colonialistas Portugueses chegaram a Angola, na foz do Rio Zaire, em 1482. Eles


encontram-se na nossa terra há quase 500 anos. […] Foi de uma maneira traiçoeira
que os Portugueses se fizeram amigos dos nossos antepassados para mais tarde
lhes tirar tudo. (1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)

Mas a memória de um secular despotismo colonial possibilita reativar igual-


mente a memória de uma secular tradição de resistência e, igualmente, funda-
mentar a ideia de um território que existe desde tempos longínquos, que ante-
cede a presença dos portugueses. Presença que nunca foi aceite pelos patriotas:

Porém os sobas patrióticos ofereceram uma resistência tenaz aos actos de bandi-
tismo dos Portugueses. De entre os sobas que mais se distinguiram destacamos a
Rainha Ginga, o rei Ekui-Kui, o rei Muachigava, que nunca aceitaram a presença
dos estrangeiros no Solo-Pátrio. (1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)

Sendo assim, o elemento tempo justifica com “ética” e “convicção” o combate


militar em nome de um futuro radioso para os angolanos, reforçando em certa
medida a identidade do grupo político-militar:

Todo o angolano, que é digno deste nome, deve odiar os portugueses colonialistas
que trouxeram para a nossa terra o sofrimento, a morte, a escravatura, a pobreza,
as doenças, a ignorância, etc. Só lutando com armas na mão nós poderemos vingar
os nossos mortos, libertando esta nossa tão rica e bela Angola e reconstrui-la nos
mais genuínos moldes da civilização africana. Angola é a tua terra. (1ª Edição da
Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)

O elemento espaço adquire também centralidade porque veicula-se a identi-


ficação com um território físico, com fronteiras físicas bem definidas, de modo a

Cadernos de Estudos Africanos • janeiro-junho de 2022 • 43, 167-190


Fidel Reis 183

ativar o princípio da inclusão e exclusão quando se trata de definir quem é ango-


lano, quem é português e a quem pertence o dito território:

Angola é uma terra africana e não faz parte de Portugal porque aquela está situada
no Continente africano e esta última na Europa. O povo de Angola é africano e
o povo de Portugal é Europeu. Angola tem fronteiras com a Zâmbia a leste […]
com o Congo Kinshasa, a Norte e a Nordeste […], com o Congo Brazzaville e o
Congo Kinshasa em volta da nossa província de Cabinda. (1ª Edição da Cartilha do
Guerrilheiro da UNITA)

Quanto ao elemento povo/cultura, este funciona como um forte instrumento


veiculativo de sentimento de pertença a um país africano (Angola) mas que se
distingue dos outros países fronteiriços, conferindo ao território angolano uma
especificidade na região: a inexistência do tribalismo. Sendo que aqui neste caso,
o recurso político à categoria etnia adquire grande eficácia simbólica: “Em Angola
o tribalismo não existe entre africanos como nos países vizinhos. As ideias de
tribalismo vieram do Congo e Zâmbia” (1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da
UNITA). Mas esta categoria remete igualmente para o modo como a organiza-
ção se deve estruturar. Daí Savimbi apresentar uma proposta de reavaliação/
definição desta categoria, de modo a estar adequada às lógicas e às necessidades
de uma organização política revolucionária. Assim, as propostas de cartografias
étnicas produzidas pelo Estado colonial são reavaliadas, na medida em que:

O nosso povo é formado por muitos grupos étnicos, mais conhecidos por tribos.
[...] Além da tua tribo lembra-te de que em Angola há mais as seguintes: Vili, Villi,
Yombe, Cacomgo, Cio, Sorongo, Sosso, Bacongo, Quimbunda, Hungo, Luango,
Dembe, Mandumba, Bangala, Chinga, Munungo, Songo, Quiçame, Luimba,
Matoba, Quimbundo, Sendes, Lunda, Chinde, Ambuel, etc. (1ª Edição da Cartilha do
Guerrilheiro da UNITA)32

Mas o elemento povo/cultura adquire também eficácia como instrumento


contributivo para a criação de um espírito de corpo na organização: “Devemos
combater com toda a nossa força todo o sentimento tribalista no seio do partido.
[...] devemos lutar [contra] o tribalismo da mesma maneira que lutamos contra os
portugueses” (1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA).
Contudo, este espírito de corpo necessita de se afirmar num quadro de regras
bem definidas no respeitante ao comportamento dos militantes, de que destaca-

32
Importa esclarecer que se trata aqui apenas de expor um discurso produzido num determinado contexto
temporal (1968). Não se pretende afirmar que a UNITA produzia um discurso negacionista. O que nos parece é
que esta categoria foi sendo usada de forma variável atendendo às circunstâncias e aos interesses da UNITA, e
provavelmente do seu líder. Como bem demonstram Martins (2015) e Malaquias (2007).

Cadernos de Estudos Africanos • janeiro-junho de 2022 • 43, 167-190


184 Em nome do “pai”, do “filho” e do espírito de corpo: Ou como recordar a provável 1ª Edição
da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA

mos aquelas que remetem para o princípio da disciplina e os respetivos mecanis-


mos como a obediência e a hierarquia:

Todos os membros do Partido devem obedecer as leis do Partido […]. Na hierar-


quia militar, os soldados devem respeitar a opinião dos oficiais e os oficiais devem
também respeitar a opinião dos comandantes. (1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro
da UNITA)

Definida a matriz ideológico-identitária e confirmado o princípio da discipli-


na como parte integrante desta matriz, torna-se necessário, em primeiro lugar,
dar um sentido prático quer ao princípio da mobilização, quer ao processo de (re)
produção de um sentido de pertença à organização; o que implica, por um lado, a
implementação de estruturas objetivas e a definição das funções dessas mesmas
estruturas, como se pode vislumbrar na narrativa produzida na segunda parte,
referente à “organização do povo”:

Mas não basta mobilizar o povo […]. Organizar o povo é formar órgãos de poder
político-administrativo no seio do povo e transferir para os dirigentes locais as
responsabilidades do seu funcionamento. Organizar o povo é perpetuar na prática
aquilo que explicamos na teoria. (1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)

Dessas estruturas objetivas, podemos assinalar aquelas que constam na nar-


rativa: comité central, bureau político, órgãos de poder político-administrativos
(como o comité local, a brigada das mulheres, a brigada da juventude).
A partir daqui, nas partes seguintes, e já num plano político-militar, o dis-
curso disciplinador irá predominar na Cartilha, a começar pelo argumento de
autoridade e hierarquia:

o treino político deve basear-se nos escritos desta cartilha e nos outros documentos
editados pelo Comité Central da UNITA. Fica desde agora expressamente proibi-
do a utilização de livros estrangeiros para treino dos nossos homens. Esta edição,
mesmo cheia de lacunas no ponto de vista político e militar, representa o vosso
próprio esforço, a Direcção do Partido e o Comando Superior das Forças Armadas
de Libertação se não falharem. (1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)

No plano da organização, adquire relevância a noção de um tempo discipli-


nar e a sua estreita relação com a domesticação do corpo. Pois, a organização
necessita de corpos aptos para o combate militar que necessitam de serem treina-
dos, disciplinados e formatados; preparados para uma luta de guerrilha que se
adivinha longa; e que vai além do treino militar na medida em que é necessário,

Cadernos de Estudos Africanos • janeiro-junho de 2022 • 43, 167-190


Fidel Reis 185

frequentemente, uma adaptação a um ecossistema agreste que implica longas


marchas e uma permanente vivência nas matas.
O tempo disciplinar torna-se assim um mecanismo fundamental já que, como
consta na produção discursiva, institui-se um tempo útil de treino e de combate
militar controlado pela organização. Que, por sua vez, controla a atividade dos
corpos:

Para que este trabalho produza no futuro devemos estabelecer um programa para
tais actividades. Os períodos de tempo devem ser de 2 a 4 semanas conforme a
situação. Devem ser alternados com lutas contra o inimigo para que o nosso pro-
grama não venha a ter um aspecto puramente académico. (1ª Edição da Cartilha do
Guerrilheiro da UNITA)

Tempo disciplinar que também pode configurar um conjunto de corpos num


só, mediante a ordem e o comando:

Cada zona deve dedicar algum tempo ao treino da ordem unida e ginástica como
a seguir se indica: todas as manhãs, depois de levantar, cuja hora deve ser fixada
pelos dirigentes da zona, deve haver uma sessão de ginástica de 30 a 45 minutos,
após o que se seguirá uma sessão de ordem unida também de meia hora. (1ª Edição
da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)

O princípio da disciplina, cada vez mais omnipresente na narrativa, vai-se


sobrepondo aos outros princípios, nomeadamente àqueles que predominam em
outras estruturas sociais fora do quadro da UNITA, na medida em que este prin-
cípio é imprescindível para o modus vivendi da organização político-militar:

A ordem e a disciplina devem ser de um máximo rigor. Não se pode nem se deve
brincar com a disciplina das forças da UNITA. A democracia no nosso exército
tem os seus limites bem definidos. Ela situa-se muito aquém da disciplina, o que
quer dizer que a disciplina vem primeiro que a democracia. (1ª Edição da Cartilha do
Guerrilheiro da UNITA)

Sobretudo porque a organização vive um contexto de revés militar:

As zonas da UNITA têm sofrido ataques constantes da parte dos nossos inimigos.
A situação era muito alarmante há quatro meses atrás. Os haveres dos nossos sol-
dados e oficiais não podiam ser garantidos dos ataques do nosso inimigo, que po-
dia penetrar dentro dos nossos campos sem que os guardas se apercebessem deles.
(1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)

Mas o princípio da disciplina perde sentido sem um quadro de efetiva hierar-


quia no sentido militar do termo, de que são exemplos as práticas da continência

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186 Em nome do “pai”, do “filho” e do espírito de corpo: Ou como recordar a provável 1ª Edição
da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA

e as honras militares; sendo que a continência tem a particularidade de incorpo-


rar no seio dos militantes o respeito pelas hierarquias e a ideia de sacrifício:

A continência militar deve ser feita com aprumo com comprimento respeitoso dos
soldados que dia a dia estão prontos a dar o seu sangue pela pátria. As honras
militares devem ser prestadas aos oficiais a quem são devidas sempre que se apre-
sentarem. Não dependem do bom humor ou do mau humor dos que as prestam.
(1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)

O princípio da disciplina e a respetiva ativação de mecanismos estruturantes


da organização, como o controlo, a ordem/comando e até a sanção, são notórios
na produção discursiva, quando se trata de definir as funções dos dirigentes:

• O controlo:

Ele [O comissário à intendência] tem de se informar em pessoa (In Visu) do uso


que cada grupo faz dos víveres fornecidos. O mau uso da comida é um acto contra-
-revolucionário. Ele tem a seu cargo o controlo total de todas as entradas e saídas
de víveres ou produtos essenciais da Base central ou zonas para edificar o espírito
da vida em comum. (1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)

• A ordem, o comando e a sanção:

Ele [O comissário à ordem e à intendência] é encarregado de manter a ordem e


a disciplina militar na Base central e nas zonas […] ele é encarregado de impor o
silêncio nos acampamentos uma vez a HORA do RECOLHER declarada. Todo o
barulho injustificado de seja quem for é punido pela repreensão verbal, repreensão
escrita agravada, guarda, guarda agravada, trabalho fora de horas regulamentares,
suspensão. (1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)

A produção discursiva da Cartilha do Guerrilheiro indicia um universo que se


vai estruturando e configurando como um grupo político, que se quer sustenta-
do por um conjunto de princípios, dos quais foi aqui assinalado o princípio da
disciplina e seus mecanismos de funcionamento. Princípio de uma disciplina mi-
litarizada que se reflete nas técnicas disciplinares de construção de corpos guerri-
lheiros e passam pela ginástica diária, pelo treino militar, pelo conhecimento das
técnicas de guerrilha. Trata-se de tornar os corpos aptos para o combate militar;
corpos preparados para resistir e lutar; corpos vencedores; corpos que irão pôr
um fim a uma longa história de despotismo colonial e a uma longa história de
disciplina colonial, em que a força do corpo estava reduzida como força política
e “maximalizada como força útil” (Foucault, 1975, p. 222).

Cadernos de Estudos Africanos • janeiro-junho de 2022 • 43, 167-190


Fidel Reis 187

É neste sentido, e tendo em conta um tempo nacionalista e revolucionário,


que o princípio da disciplina, contido na narrativa da Cartilha, pode definir a con-
dição de guerrilheiro da UNITA e conferir a este último o “sentido de pertença
ao grupo”.

Considerações finais
Este texto apresentou-se como um exercício de reflexão em torno do processo
de configuração da UNITA, tendo como referencial a Cartilha do Guerrilheiro.
Depois de uma breve contextualização detivemo-nos na produção discursiva
da Cartilha a partir do conceito de ideologia identitária. Foi assim possível cons-
tatar que os enunciados da Cartilha do Guerrilheiro podem anunciar um processo
de construção de uma identidade organizacional sustentada não apenas por uma
crença mobilizadora, mas também por uma lógica de funcionamento assente no
princípio da disciplina. Assim a UNITA, organização com vista à luta, real, neces-
sita de se firmar também na disciplina, princípio que torna possível fazer agir um
conjunto de militantes “como um só homem”, com vista a uma causa comum.
O que faz com que, embora prevaleçam outros princípios, a disciplina poderá
assumir-se como um princípio nuclear no decurso do processo de estruturação
e funcionamento desta organização, como parte integrante de (re)produção de
uma identidade organizacional naturalizada em espírito de corpo. Pois, a incor-
poração do princípio da disciplina na organização, quer no plano funcional, quer
no plano ontológico, é passível de ser mediada e legitimada por três categorias
fundamentais: a nação, o povo e o sacrifício. Categorias essas que, em certa me-
dida, impelem o militante para o sentido de entrega à causa e à organização, de
modo a que este último aceite e naturalize na prática do seu quotidiano, meca-
nismos como, por exemplo, o controlo, a ordem/comando, a obediência e até a
sanção.
Por último, não poderíamos terminar este nosso contributo reflexivo sem
apresentar uma breve conjetura sobre a Cartilha do Guerrilheiro e o seu lugar na
UNITA. Conjetura que pode ser ponto de partida para uma possível futura re-
flexão.
A Cartilha do Guerrilheiro sendo um instrumento ideológico identitário da or-
ganização, não deixa, de certo modo, de ser um instrumento de produção e repro-
dução de uma espécie de capital político a título pessoal, na pessoa do chefe da
organização e até certo ponto assegura, através do modelo organizacional militar
e militarizado, a manutenção e reprodução deste capital político, concentrado na
sua pessoa. O que significa que o capital político da organização pode ser confun-

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da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA

dido com o capital político de Jonas Savimbi. Com efeito, importa recordar que
Jonas Savimbi quando elaborou e divulgou a Cartilha do Guerrilheiro no seio da
organização, fê-lo na qualidade de líder máximo e de comandante supremo das
FALA - Forças Armadas de Libertação de Angola. O mesmo já tinha tido um per-
curso significativo de acumulação de capital político, nomeadamente aquando
da sua militância na direção da UPA/FNLA/GRAE, e no facto de ter sido o “pai”
fundador da UNITA. De certa forma, a narrativa produzida por Jonas Savimbi na
Cartilha denota um percurso pontuado por “toda uma aprendizagem necessária
para adquirir o corpus de saberes específicos (teorias, problemáticas, conceitos,
tradições históricas) produzidos e acumulados por um trabalho político já pro-
fissionalizado” (Bourdieu, 1989, p. 169); e, por conseguinte, indicia uma aptidão
para gerar e gerir no seio desse campo político, “produtos políticos, problemas,
programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos” (Bourdieu, 1989,
pp. 163-164).
O que nos leva a supor que Jonas Savimbi se sobrepõe ao grupo político ins-
tituído, pois a força das ideias que este propõe na Cartilha apela a que o grupo as
reconheça na sua pessoa e, por sua vez, reconheça a sua autoridade; autoridade
confirmada pelo uso de uma retórica onde predomina o imperativo verbal, qual
exemplo de argumento de autoridade legitimado pela condição de “pai” funda-
dor da organização, de comandante supremo das FALA e também pela condição
de presidente da organização.
É neste sentido que a Cartilha do Guerrilheiro, sendo aparentemente um instru-
mento de reprodução de uma identidade organizacional complementada pelo
princípio da disciplina, pode exemplificar, qual ato de magia política, uma dinâ-
mica de efetiva identificação e de fidelidade do grupo a um chefe. Um chefe que
propõe um modelo organizacional militar e militarizado em que a ação política e
militar se realiza em forma de espírito de corpo; espírito de corpo veiculado por
Jonas Savimbi que, por sua vez, corporiza a organização e o espírito de corpo
da organização; organização de que é pai e filho. Pai, no duplo sentido: pai fun-
dador e pai em exercício (presidente) de um filho (organização gerada por ele,
o Molowini). Somos assim impelidos a considerar que, no campo dos possíveis,
os enunciados contidos na Cartilha do Guerrilheiro podem ser o prenúncio de um
percurso de uma organização político-militar, que se vai estruturando e configu-
rando, em nome do “pai”, do “filho” e do espírito de corpo.

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