Cea 7110
Cea 7110
Cea 7110
43 | 2022
Middle East and Eastern Africa Intersected:
Reflections from contemporary scholarship
Fidel Reis
Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/cea/7110
DOI: 10.4000/cea.7110
ISSN: 2182-7400
Editora
Centro de Estudos Internacionais
Edição impressa
Data de publição: 1 de janeiro de 2022
Paginação: 167-190
ISSN: 1645-3794
Refêrencia eletrónica
Fidel Reis, «Em Nome do “Pai”, do “Filho” e do Espírito de Corpo: Ou como recordar a provável 1ª
Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA», Cadernos de Estudos Africanos [Online], 43 | 2022, posto
online no dia 01 janeiro 2022, consultado o 05 março 2024. URL: http://journals.openedition.org/cea/
7110 ; DOI: https://doi.org/10.4000/cea.7110
Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC-SA 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos
importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.
Cadernos de Estudos Africanos (2022) 43, 167-190
© 2022 Centro de Estudos Internacionais do Iscte - Instituto Universitário de Lisboa
Fidel Reis
Departamento de História
Faculdade de Ciências Sociais
Universidade Agostinho Neto
Avenida Ho Chi Minh, 56
Luanda, Angola
fidelreis@gmail.com
ORCID: 0000-0001-5760-3484
168 Em nome do “pai”, do “filho” e do espírito de corpo: Ou como recordar a provável 1ª Edição
da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA
In the name of the “father”, the “son” and the esprit de corps: Or how to
remember the probable 1st edition of the Cartilha do Guerrilheiro da UNITA
This text presents a reflexive contribution concerning the configuration and struc-
turing process of UNITA as a political-military organization, having as reference a docu-
ment found in the Torre do Tombo archives entitled 1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro
da “UNITA”, dated 1968, whose authorship is attributed to Jonas Savimbi. It was pos-
sible to glimpse, in the mentioned Cartilha do Guerrilheiro, a discursive production that
might refer to a process of construction of an organizational identity sustained, not only
by a mobilizing belief (revolutionary nationalism) but also by a logic of functioning based
on the principle of discipline. Hence we have formulated the following question: to what
extent can the Cartilha do Guerrilheiro be apprehended as an instrument of ideological
and identity construction of the organization UNITA, and which place the principle of
discipline occupies in this dynamic of construction?
1
A propósito do processo de configuração do MPLA, ver Mabeko-Tali (2018). Relativamente à FNLA/GRAE, ver
Marcum (1978).
2
Este processo culminaria com a demissão oficial de Jonas Savimbi e outros militantes, da FNLA/GRAE. Das
lógicas que pautaram o processo de rutura podemos assinalar algumas: clivagens étnicas ou regionais no seio
desta organização política; distintas trajetórias de vida de atores sociais, que se processaram no contexto colonial;
disputa de poder entre Holden Roberto, o então presidente da FNLA/GRAE, e Jonas Savimbi. Contudo, importa
sublinhar que este processo de rutura acontece num quadro de profundo constrangimento militar por parte da
FNLA/GRAE. Ver Marcum (1978). Ver também Reis (2018).
3
Esta nossa abordagem tem como referencial os contributos do sociólogo Pierre Bourdieu.
datado de 1968, cuja autoria é atribuída a Jonas Savimbi pela PIDE.4 Esta opção
pela Cartilha do Guerrilheiro deve-se, em certa medida, à perceção de que esta úl-
tima produz um discurso sustentado por um sistema de classificação que poderá
determinar o funcionamento da UNITA no decurso do seu processo de estrutu-
ração e configuração.
Com efeito, após uma primeira leitura do documento, foi possível vislumbrar
enunciados de apelo ao combate armado, sustentado pela veiculação de um forte
sentimento de pertença, quer a um território com fronteiras definidas, quer a
uma organização, que se quer bem estruturada e organizada. Noções como nação
e condição de dominado/colonizado articulam-se e gravitam em torno de um
eixo central que traduz não apenas a reivindicação independentista, mas, igual-
mente, o modo como a UNITA se deve estruturar e organizar, num contexto de
luta armada anticolonial.
Em nosso entender, tais enunciados são sustentados por uma ideologia en-
globante, a saber, o nacionalismo revolucionário ou anticolonial.5 Nacionalismo
anticolonial, que legitima um discurso de ação política, pela via das armas, mas
que apela, também, para a necessidade de a UNITA se autorreproduzir como
instituição político-militar. Daí a organização necessitar de se sustentar median-
te mecanismos e práticas quotidianas, típicos de uma organização militarizada,
como por exemplo aqueles que estão contidos na narrativa da Cartilha, e que,
em nosso entender, remetem para o princípio da disciplina.6 Com efeito, nesta
Cartilha foi possível encontrar a prevalência de enunciados que remetem para o
princípio da disciplina no seio da organização, a começar pela predominância do
imperativo verbal na produção discursiva, relativamente ao funcionamento da
organização.7
4
Jonas Malheiro Savimbi (1934-2002), também conhecido como o Molowini (o filho do povo), nasceu no
Munhango, Bié. A sua formação educacional deveu-se muito às missões congregacionistas e católicas. Em 1960
manteve contactos com o MPLA (Lara, 1997; Lara, 2006). Optaria por aderir à UPA, em 1961, onde iria integrar
o Comité Diretor. Em 1962, após a constituição de uma frente comum e um governo no exílio – que englobava a
UPA e o PDA (Partido Democrático de Angola) –, denominada FNLA/GRAE, Jonas Savimbi assume o cargo de
Secretário dos Negócios Estrangeiros do GRAE. Em julho de 1964, Jonas Savimbi abandonaria a FNLA/GRAE,
tendo-se fixado temporariamente em Brazzaville, onde esteve na iminência de ingressar no MPLA (Lara, 2008). A
partir daí, encetou um percurso singular que o levaria a criar uma organização política e militar “à sua imagem”.
Ver Bridgland (1988).
5
Entendido aqui, grosso modo, como a veiculação de um conjunto de crenças e símbolos que exprimem a iden-
tificação de uma população com um território delimitado por fronteiras físicas, com um Estado e seu respetivo
governo; conjunto de crenças e símbolos acompanhado de uma proposta de rutura com a velha ordem colonial,
na medida em que se pretende uma nova ordem nacional. E que apela para o combate armado. Acerca do nacio-
nalismo ver, entre outros, Hobsbawm, 1998; Smith, 1997; Cordelier, 1998 e Andrade, 1998. É apenas nessa medida
que utilizamos a designação “nacionalismo revolucionário”.
6
Note-se que a Cartilha era destinada aos comandantes das “zonas” da UNITA. Estes últimos tinham por missão
organizar toda a atividade político-militar e político-administrativa da UNITA.
7
Encontramos designações como: sacrifício, ordem, disciplina, comando, obediência, vigilância, hierarquia ou
prevalência da disciplina sobre a democracia.
Questões teóricas
O recurso à relação entre a identidade e a ideologia adquire pertinência pois
possibilita, na análise da dinâmica do universo político angolano, descortinar
processos de identificação e diferenciação, numa perspetiva que relaciona sen-
timento de pertença com a ação política. No caso do espaço político angolano,
e num contexto de luta anticolonial, definir uma identidade, ou seja, veicular o
sentimento de pertença, tem sido parte integrante da ação política.
Importa clarificar que o sentimento de pertença não implica a anulação de
outros componentes, nomeadamente religiosos, étnicos ou regionais. Antes pelo
contrário, esses componentes podem reforçar o sentido de pertença relativamen-
8
Relativamente à questão da reprodução de uma identidade organizacional, a nossa abordagem é devedora do
contributo de Fonseca (2008).
Sendo assim, a ideologia será aqui relacionada com a identidade porque aque-
la é “pensada” como um sistema de classificação política que engloba discursos,
princípios e práticas que remetem para dinâmicas de identificação e identização.
É neste sentido que, relativamente à nossa abordagem da Cartilha do
Guerrilheiro, apelaremos para o conceito de ideologia identitária. Entendido, gros-
so modo, como sistema de classificação, produzido e trabalhado, que contém um
discurso identitário (crença num sentimento de pertença); um discurso identitá-
rio que traduz um duplo processo de integração (identificação) e de diferencia-
ção (identização).10 Todavia, a operacionalidade deste conceito centrar-se-á, so-
bretudo, no plano da organização. Ou melhor dizendo, iremos pensar o universo
9
Como demonstra Vasco Martins relativamente ao uso da categoria etnia por parte da UNITA, sobretudo no pe-
ríodo pós-colonial (Martins, 2015). Ver igualmente Malaquias (2007). Mas também, relativamente ao uso político
da religião por parte desta mesma organização político-militar, ver Péclard (2015).
10
A referência ao identitário é extraída de Pinto (1991). Segundo este autor, a identização remete para um proces-
so através do qual os agentes tendem a autonomizar-se e diferenciar-se socialmente, fixando em relação a outros,
distâncias e fronteiras mais ou menos rígidas.
como uma técnica, com a qual se visa moldar padrões de comportamento por meio
de uma pedagogia voltada principalmente para a manipulação do corpo, visto
como elemento chave do poder disciplinar. Daí a importância da educação físi-
ca no campo militar, na medida em que expõe o corpo a uma “maquinaria”, um
11
Dos mecanismos podemos salientar a COMI - Comissão Militar de Investigação, que tinha por função recolher
informações relativas às atividades abrangendo todas as áreas, como por exemplo o controlo do movimento das
pessoas suspeitas nas bases da UNITA ou das suas áreas de influência. Relativamente às práticas quotidianas,
temos por exemplo a ginástica e a ordem unida.
12
Daí que nos enunciados discursivos contidos na Cartilha a reivindicação independentista seja complementada
por discursos enunciadores de um forte sentimento de pertença que se traduzem em designações como “nós”,
“UNITA”, “nosso partido” e “africanos”, em oposição a designações como “portugueses” ou “inimigo”. Aliás,
práticas quotidianas de tratamento na organização como “camarada” deveriam ser banidas e substituídas por
designações como “irmão” ou “companheiro”.
13
Importa salientar que o que norteia a nossa abordagem é a Cartilha do Guerrilheiro como instrumento ideoló-
gico identitário e o lugar que a disciplina ocupa nesta dinâmica. Não se trata de articular ideologia e disciplina.
Por via das dúvidas recordamos a nossa pergunta de partida: em que medida a Cartilha do Guerrilheiro pode ser
apreendida como instrumento de construção ideológica e identitária da organização UNITA e qual será o lugar
que o princípio da disciplina ocupa nesta dinâmica de construção?
14
Imprescindível, devido ao carácter militar da organização. O que não significa uma relação mecanicista entre
ideologia identitária e disciplina com sentimento de pertença à organização.
Do Muangai à Cartilha
Segundo Jonas Savimbi:
Na sua génese, a UNITA era constituída por aqueles que estavam mal representa-
dos nos outros dois movimentos, o MPLA e a UPNA/UPA/FNLA. Acreditávamos
que a UNITA pudesse ser uma formação com expressão nacional, porque nós tínha-
mos uma concepção diferente da dos outros [....]. Éramos originários de Cabinda,
Cunene, Huambo, do Bié e de Malanje, muito poucos de Luanda. (Loanda, 1997,
p. 65)
15
Ver também Bourdieu, 2004, p. 220.
16
Importa sublinhar que na nossa abordagem, a hierarquia é inerente à disciplina.
Malheiro Savimbi.17 Pois, segundo a mesma fonte, fora ele que tivera a ideia
de uma nova organização política (Loanda, 1997, p. 65). Em certa medida “ele”
emerge como figura de “pai” fundador e chefe da organização.18
A UNITA, terceira força armada do espaço nacionalista angolano, é oficial-
mente constituída a 13 de março de 1966, durante uma Conferência – conside-
rada, posteriormente, como o primeiro Congresso da UNITA – realizada no in-
terior de Angola, na região do Moxico, mais precisamente no Muangai, a cerca
de 400 km da fronteira com a Zâmbia. A Conferência foi organizada por Isaya
Massumba e presidida por Muliata Kaniumbu (UNITA. ANTT/PIDE/DGS. DEL
Angola).19 Foram apresentadas e aprovadas as linhas programáticas constitutivas
da UNITA, que haviam sido elaboradas por Jonas Savimbi na Suíça, onde se pode
destacar que a “UNITA é uma organização política formada por angolanos sem
distinção de sexo, etnia ou religião” (UNITA. ANTT/PIDE/DGS. DEL Angola).
Dos objetivos imediatos da UNITA podemos salientar:
Mobilizar as massas angolanas [...] para servirem de base na luta pela libertação
nacional. Incutir no espírito de todos os angolanos que vivem no exterior do país
que a verdadeira independência só será alcançada através da luta armada no inte-
rior do país [...]. A UNITA lutará constantemente para a formação de uma verda-
deira Frente Unida de todas as forças nacionalistas angolanas sem discriminação
de espécie alguma. (UNITA. ANTT/PIDE/DGS. DEL Angola)
17
Importa ressalvar que a ideia de diversidade sociocultural não se restringe a distintos espaços regionais ou
etnias. A diversidade sociocultural implica outros elementos diferenciadores como por exemplo: religiosos, dis-
tintos grupos sociais e até formas diversas de capital escolar.
18
A construção da figura do “pai” tem uma importância significativa no imaginário africano. Remete frequen-
temente para um ato fundador, mas também para a liderança. Indicia igualmente um momento de passagem de
“mais novo” para “mais velho”. A propósito da figura do “pai” no universo político africano, ver Memel-Fotê
(1991).
19
Ver também Marcum, 1978, p. 166.
Figura 1
Comité Central provisório da UNITA de março de 1966
20
Ver também Marcum, 1978, p. 167.
Figura 2
Comité Central efetivo da UNITA de setembro de 1966
21
Tradução livre.
22
Ver igualmente Bridgland,1988, p. 79 e Jornal Kwacha, abril de 1975.
efeitos militares desta última (Marcum, 1978, p. 168).23 A UNITA era, portanto,
ainda, no plano militar, uma organização incipiente.
No ano de 1966, a UNITA havia realizado ações bélicas contra posições milita-
res portuguesas, com resultados ínfimos. Em setembro de 1966, atacou os postos
de Kalungula; a 4 de dezembro atacou o posto de Kassamba e a 25 de dezembro
atacou a Vila de Teixeira de Sousa, operação na qual foi morto o chefe de posto
local da PIDE. Embora malsucedido, o ataque a Teixeira de Sousa adquirira o
estatuto de data mítica para esta organização político-militar (Marcum, 1978, pp.
160-169). Em 1967, durante a ausência de Savimbi, que se deslocara a vários paí-
ses árabes e europeus, os guerrilheiros da UNITA sabotaram o caminho de ferro
de Benguela, por duas vezes, o que desagradou ao governo zambiano. A UNITA
viu assim o seu apoio por parte deste último bastante reduzido, chegando ao
ponto de Savimbi ter permanecido preso, no dito país, durante seis dias, tendo
sido posteriormente expulso para o Egito (Marcum, 1978, p. 192).24
Em julho de 1968, Jonas Savimbi, acompanhado de Miguel Nzau Puna, re-
gressou à Zâmbia graças aos bons ofícios da SWAPO - South West African
People’s Organization (organização político-militar que lutava pela independên-
cia da Namíbia) e voltou, então, a pisar o solo angolano (Marcum, 1978, p. 193).25
Contudo, o estado da organização não era animador. A UNITA deparava-se com
uma crise político-militar que punha em risco a coesão do grupo político recen-
temente constituído. Savimbi, num depoimento concedido a um historiador, re-
corda o estado da organização do seguinte modo:
23
Ver igualmente Valentim, 2005, p. 305.
24
Ver também Waals, 2015, p. 287.
25
Ver também Waals, 2015, p. 288.
sabotar o CFB, continua a ser dada pelo governo zambiano. (Savimbi ANTT/PIDE/
DGS)
26
Ver também Cervelló (2009, p. 102). Deparamo-nos assim com um exemplo duma figura estruturante da orga-
nização política: o traidor.
27
Importa recordar que a UNITA abordada na nossa reflexão situa-se no período compreendido entre 1966 e
1968. Trata-se, portanto, de uma UNITA incipiente. Aliás, no dito período, a UNITA só possuía uma “base” (1ª
Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA). Em certa medida a Cartilha propõe uma “UNITA projeto”.
28
Muito embora não façam parte do âmbito da nossa reflexão, reconhecemos que estas considerações sobre a
relação entre a China e a UNITA carecem de uma análise mais aprofundada.
29
Ver também Tsé-Tung, 1966 e 1975.
30
“Que Deus te entregue ao povo” (tradução livre). Temos provavelmente um exemplo de construção, porven-
tura ainda de forma subtil, de uma identidade UNITA com duas componentes contributivas: a etnia (através da
língua) e a religião.
31
No sentido de que no campo político “a produção das ideias acerca do mundo social acha-se sempre subordi-
nada de facto à lógica da conquista do poder que é a da mobilização do maior número (Bourdieu, 1989, p. 175).
Acerca do campo político, ver o mesmo autor em Bourdieu, 2000.
Todo o dirigente da UNITA deve conhecer muito bem todos os problemas da luta
anticolonial para poder explicá-los com clareza. As qualidades que a UNITA exi-
ge de um dirigente são: firmeza na tomada de decisão e amar profundamente o
povo pelo qual lutamos […], coragem e dureza para com o inimigo; vigilância per-
manente na zona, na marcha, na aldeia ou em descanso. (1ª Edição da Cartilha do
Guerrilheiro da UNITA)
Todavia, nesta primeira parte irá prevalecer ainda o discurso identitário, pois
torna-se necessário reforçar os laços entre os membros do grupo constituído. Para
o efeito, três elementos serão fundamentais: o tempo, o espaço e o povo/cultura.
Relativamente ao tempo, o discurso identitário remete para uma Angola que
possui uma história, anterior à memória colonial e que fora brutalmente inter-
rompida por meio milénio de colonização:
Porém os sobas patrióticos ofereceram uma resistência tenaz aos actos de bandi-
tismo dos Portugueses. De entre os sobas que mais se distinguiram destacamos a
Rainha Ginga, o rei Ekui-Kui, o rei Muachigava, que nunca aceitaram a presença
dos estrangeiros no Solo-Pátrio. (1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)
Todo o angolano, que é digno deste nome, deve odiar os portugueses colonialistas
que trouxeram para a nossa terra o sofrimento, a morte, a escravatura, a pobreza,
as doenças, a ignorância, etc. Só lutando com armas na mão nós poderemos vingar
os nossos mortos, libertando esta nossa tão rica e bela Angola e reconstrui-la nos
mais genuínos moldes da civilização africana. Angola é a tua terra. (1ª Edição da
Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)
Angola é uma terra africana e não faz parte de Portugal porque aquela está situada
no Continente africano e esta última na Europa. O povo de Angola é africano e
o povo de Portugal é Europeu. Angola tem fronteiras com a Zâmbia a leste […]
com o Congo Kinshasa, a Norte e a Nordeste […], com o Congo Brazzaville e o
Congo Kinshasa em volta da nossa província de Cabinda. (1ª Edição da Cartilha do
Guerrilheiro da UNITA)
O nosso povo é formado por muitos grupos étnicos, mais conhecidos por tribos.
[...] Além da tua tribo lembra-te de que em Angola há mais as seguintes: Vili, Villi,
Yombe, Cacomgo, Cio, Sorongo, Sosso, Bacongo, Quimbunda, Hungo, Luango,
Dembe, Mandumba, Bangala, Chinga, Munungo, Songo, Quiçame, Luimba,
Matoba, Quimbundo, Sendes, Lunda, Chinde, Ambuel, etc. (1ª Edição da Cartilha do
Guerrilheiro da UNITA)32
32
Importa esclarecer que se trata aqui apenas de expor um discurso produzido num determinado contexto
temporal (1968). Não se pretende afirmar que a UNITA produzia um discurso negacionista. O que nos parece é
que esta categoria foi sendo usada de forma variável atendendo às circunstâncias e aos interesses da UNITA, e
provavelmente do seu líder. Como bem demonstram Martins (2015) e Malaquias (2007).
Mas não basta mobilizar o povo […]. Organizar o povo é formar órgãos de poder
político-administrativo no seio do povo e transferir para os dirigentes locais as
responsabilidades do seu funcionamento. Organizar o povo é perpetuar na prática
aquilo que explicamos na teoria. (1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)
o treino político deve basear-se nos escritos desta cartilha e nos outros documentos
editados pelo Comité Central da UNITA. Fica desde agora expressamente proibi-
do a utilização de livros estrangeiros para treino dos nossos homens. Esta edição,
mesmo cheia de lacunas no ponto de vista político e militar, representa o vosso
próprio esforço, a Direcção do Partido e o Comando Superior das Forças Armadas
de Libertação se não falharem. (1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)
Para que este trabalho produza no futuro devemos estabelecer um programa para
tais actividades. Os períodos de tempo devem ser de 2 a 4 semanas conforme a
situação. Devem ser alternados com lutas contra o inimigo para que o nosso pro-
grama não venha a ter um aspecto puramente académico. (1ª Edição da Cartilha do
Guerrilheiro da UNITA)
Cada zona deve dedicar algum tempo ao treino da ordem unida e ginástica como
a seguir se indica: todas as manhãs, depois de levantar, cuja hora deve ser fixada
pelos dirigentes da zona, deve haver uma sessão de ginástica de 30 a 45 minutos,
após o que se seguirá uma sessão de ordem unida também de meia hora. (1ª Edição
da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)
A ordem e a disciplina devem ser de um máximo rigor. Não se pode nem se deve
brincar com a disciplina das forças da UNITA. A democracia no nosso exército
tem os seus limites bem definidos. Ela situa-se muito aquém da disciplina, o que
quer dizer que a disciplina vem primeiro que a democracia. (1ª Edição da Cartilha do
Guerrilheiro da UNITA)
As zonas da UNITA têm sofrido ataques constantes da parte dos nossos inimigos.
A situação era muito alarmante há quatro meses atrás. Os haveres dos nossos sol-
dados e oficiais não podiam ser garantidos dos ataques do nosso inimigo, que po-
dia penetrar dentro dos nossos campos sem que os guardas se apercebessem deles.
(1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)
A continência militar deve ser feita com aprumo com comprimento respeitoso dos
soldados que dia a dia estão prontos a dar o seu sangue pela pátria. As honras
militares devem ser prestadas aos oficiais a quem são devidas sempre que se apre-
sentarem. Não dependem do bom humor ou do mau humor dos que as prestam.
(1ª Edição da Cartilha do Guerrilheiro da UNITA)
• O controlo:
Considerações finais
Este texto apresentou-se como um exercício de reflexão em torno do processo
de configuração da UNITA, tendo como referencial a Cartilha do Guerrilheiro.
Depois de uma breve contextualização detivemo-nos na produção discursiva
da Cartilha a partir do conceito de ideologia identitária. Foi assim possível cons-
tatar que os enunciados da Cartilha do Guerrilheiro podem anunciar um processo
de construção de uma identidade organizacional sustentada não apenas por uma
crença mobilizadora, mas também por uma lógica de funcionamento assente no
princípio da disciplina. Assim a UNITA, organização com vista à luta, real, neces-
sita de se firmar também na disciplina, princípio que torna possível fazer agir um
conjunto de militantes “como um só homem”, com vista a uma causa comum.
O que faz com que, embora prevaleçam outros princípios, a disciplina poderá
assumir-se como um princípio nuclear no decurso do processo de estruturação
e funcionamento desta organização, como parte integrante de (re)produção de
uma identidade organizacional naturalizada em espírito de corpo. Pois, a incor-
poração do princípio da disciplina na organização, quer no plano funcional, quer
no plano ontológico, é passível de ser mediada e legitimada por três categorias
fundamentais: a nação, o povo e o sacrifício. Categorias essas que, em certa me-
dida, impelem o militante para o sentido de entrega à causa e à organização, de
modo a que este último aceite e naturalize na prática do seu quotidiano, meca-
nismos como, por exemplo, o controlo, a ordem/comando, a obediência e até a
sanção.
Por último, não poderíamos terminar este nosso contributo reflexivo sem
apresentar uma breve conjetura sobre a Cartilha do Guerrilheiro e o seu lugar na
UNITA. Conjetura que pode ser ponto de partida para uma possível futura re-
flexão.
A Cartilha do Guerrilheiro sendo um instrumento ideológico identitário da or-
ganização, não deixa, de certo modo, de ser um instrumento de produção e repro-
dução de uma espécie de capital político a título pessoal, na pessoa do chefe da
organização e até certo ponto assegura, através do modelo organizacional militar
e militarizado, a manutenção e reprodução deste capital político, concentrado na
sua pessoa. O que significa que o capital político da organização pode ser confun-
dido com o capital político de Jonas Savimbi. Com efeito, importa recordar que
Jonas Savimbi quando elaborou e divulgou a Cartilha do Guerrilheiro no seio da
organização, fê-lo na qualidade de líder máximo e de comandante supremo das
FALA - Forças Armadas de Libertação de Angola. O mesmo já tinha tido um per-
curso significativo de acumulação de capital político, nomeadamente aquando
da sua militância na direção da UPA/FNLA/GRAE, e no facto de ter sido o “pai”
fundador da UNITA. De certa forma, a narrativa produzida por Jonas Savimbi na
Cartilha denota um percurso pontuado por “toda uma aprendizagem necessária
para adquirir o corpus de saberes específicos (teorias, problemáticas, conceitos,
tradições históricas) produzidos e acumulados por um trabalho político já pro-
fissionalizado” (Bourdieu, 1989, p. 169); e, por conseguinte, indicia uma aptidão
para gerar e gerir no seio desse campo político, “produtos políticos, problemas,
programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos” (Bourdieu, 1989,
pp. 163-164).
O que nos leva a supor que Jonas Savimbi se sobrepõe ao grupo político ins-
tituído, pois a força das ideias que este propõe na Cartilha apela a que o grupo as
reconheça na sua pessoa e, por sua vez, reconheça a sua autoridade; autoridade
confirmada pelo uso de uma retórica onde predomina o imperativo verbal, qual
exemplo de argumento de autoridade legitimado pela condição de “pai” funda-
dor da organização, de comandante supremo das FALA e também pela condição
de presidente da organização.
É neste sentido que a Cartilha do Guerrilheiro, sendo aparentemente um instru-
mento de reprodução de uma identidade organizacional complementada pelo
princípio da disciplina, pode exemplificar, qual ato de magia política, uma dinâ-
mica de efetiva identificação e de fidelidade do grupo a um chefe. Um chefe que
propõe um modelo organizacional militar e militarizado em que a ação política e
militar se realiza em forma de espírito de corpo; espírito de corpo veiculado por
Jonas Savimbi que, por sua vez, corporiza a organização e o espírito de corpo
da organização; organização de que é pai e filho. Pai, no duplo sentido: pai fun-
dador e pai em exercício (presidente) de um filho (organização gerada por ele,
o Molowini). Somos assim impelidos a considerar que, no campo dos possíveis,
os enunciados contidos na Cartilha do Guerrilheiro podem ser o prenúncio de um
percurso de uma organização político-militar, que se vai estruturando e configu-
rando, em nome do “pai”, do “filho” e do espírito de corpo.
Referências
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