Jadir Rostoldo
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IDENTIDADES
RESUMO
Patrimônio, ou patrimônio cultural, se refere aos bens, sejam materiais ou imateriais, que
reflitam a sociedade e seus componentes. O processo contínuo de transformação histórica
mantém as sociedades conectadas com seu passado pela construção de patrimônios, que
reafirmam suas identidades. O reconhecimento de um patrimônio é o reconhecimento da
história de um povo, de suas lutas, conquistas, valores e crenças em determinados
períodos. O patrimônio é onde as referências civis e sociais se ampliaram no sentido de
pertencimento a certa comunidade, grupo ou sociedade. O patrimônio remete a identidade
e a memória de determinado grupo ou sociedade, pois ambas estão repletas de referências.
A memória, como objeto da história, codifica as identidades que proporcionam à fixação
dos patrimônios e seus suportes sociais. Para além de seus valores, os bens patrimoniais
conservam em si elementos da história do lugar e da sociedade, contribuindo para a
continuidade histórica de um povo. Sendo assim, podemos indicar que os patrimônios se
constituem e se mantêm na fronteira entre a história e a memória, enquanto identidade
individual ou coletiva.
IDENTIDADES
Ao nos apropriar da divisão da identidade, em três tipos, feita por Castells (apud
SIMONARD; SANTOS, 2017, p. 19), onde ela pode ser “legitimadora (dominação), de
resistência (marginalizados) e de projeto (transformação social)”, assumimos em nossa
análise que a identidade de resistência se constitui a mais importante. A partir dela, que
seria a responsável pela formação de comunidades, a identidade de projeto gera sujeitos
críticos e atuantes, que transformam sua posição social. Para Castells (apud SIMONARD;
SANTOS, 2017, p. 19-20) “as pessoas resistem ao processo de individualização,
tendendo a agrupar-se em organizações comunitárias que geram um sentimento de
pertença e também identidade cultural”. Dessa forma, novos sujeitos estariam aptos a
atuar como “agentes coletivos de transformação social”, provocando novos significados
e reconhecimentos e projetos coletivos.
Revendo o processo de engajamento militante, Naujorks e Silva (2016)
desnudaram o reconhecimento do que vem a ser identidade individual e identidade
coletiva. Além de ser um fenômeno coletivo, a identidade também assume um caráter
múltiplo a partir da interação entre identidade individual e coletiva, nesse contexto “não
é apenas o atributo ou a posição social que determina a identidade, mas também são as
experiências e orientações coletivas dentro de um dado contexto concreto que criam o
potencial para formas diferenciadas de reconhecimento” (MISCHE apud NAUJORKS;
SILVA, 2016, p. 138).
O fenômeno identitário é uma construção social e histórica, fruto das relações
sociais dos indivíduos em seus grupos de convivência. O sujeito constrói suas identidades
a partir de identificações com símbolos, objetos, histórias e memórias que se tornam
referências. A identidade individual engloba as dimensões pessoal, social e coletiva,
enquanto a identidade coletiva é um fenômeno grupal, o que dá coerência ao grupo para
as movimentações coletivas. Para Naujorks e Silva (20016, p. 139)
D’Alessio (2012, p. 79) sustenta que “A ideia moderna de patrimônio está ligada
ao impulso de preservação de bens materiais e imateriais que emerge do social”. Sua
incorporação a esfera pública e as humanidades acabou por ser uma forma social de
afirmação política de grupos distintos, se convertendo em um instrumento de articulação
para o pertencimento coletivo (SANTIAGO JÚNIOR, 2015). O patrimônio é onde as
referências civis e sociais se ampliaram no sentido de pertencimento a certa comunidade,
grupo ou sociedade. As identidades presentes no reconhecimento do patrimônio são as
mesmas que acabam por dar voz e ação aos indivíduos, tornando a vestimenta de cidadão
mais consistente. Para Santiago Júnior os grupos sociais buscam o patrimônio como um
direito cultural, como um aspecto de sua cidadania. “Junto ao aspecto memorial do
patrimônio consolidaram-se os seus valores de uso amplos e o próprio ‘direito à memória’
poderia ser exercido como princípio de cidadania e da conquista de outros direitos sociais
pelos grupos sociais” (SANTIAGO JÚNIOR, 2015, p. 262).
O Patrimônio carrega diversos valores de memória, um deles é o valor histórico
onde “o objeto permite ao indivíduo ou coletividade construir uma narrativa para o
próprio passado do qual é prova”, conforme a conceituação de Alois Riegl assumida por
Santiago Júnior (2015, p. 260). Guillen (2014) concorda que esses bens não podem ser
vistos como uma entidade natural, pois é resultado de uma seleção histórica realizada por
instituições criadas e preparadas para isso, envolvidas no contexto local, seus conflitos e
disputas. “Patrimônio é um locus para o qual afluem práticas e representações que
encontram correspondência em diversas políticas públicas, consubstanciadas em
instituições que objetivam preservar e/ou mesmo instituir o que é patrimônio”
(GUILLEN, 2014, p. 641). Essas práticas e representações, em contato com os conflitos
e disputas, carregam o patrimônio de identidades.
Ao atribuir existência ao sujeito e elevá-lo a categoria de agente histórico e social,
a memória, que está no centro da estrutura dos patrimônios, também interfere no exercício
da cidadania. Segundo Goulart; Perazzo e Lemos (2005, p. 160), essa categorização
garante ao indivíduo “poder nas relações, resgata sua identidade, cria valores sociais
relacionados ao grupo e ao espaço de convivência”. Como uma estrutura dinâmica, a
memória está sempre sujeita a mudanças, levando a novas inclusões e reparações na
história. “O trabalho com a memória permite que outros indivíduos e grupos tenham
destaque, atualiza lutas reprimidas e valoriza culturas e identidades vistas como
‘inferiores’ ou ‘primitivas’, daí a sua importância para a cidadania” (SILVA, 2010, p.
329).
A articulação entre história e memória aduba o debate e a compreensão sobre os
bens patrimoniais. Assim como a produção histórica se apoia na operação que altera o
perfil de documentos para fontes, a constituição de patrimônios demanda uma operação
de escolha e valoração de bens do passado, sejam materiais ou imateriais, como
representantes da coletividade social. Também a partir do vínculo com o passado, o
patrimônio pode proporcionar a reconstrução das conexões do presente com seus
precedentes. O resultado é o estabelecimento de laços sociais importantes para a
sobrevivência das coletividades (GUIMARÃES, 2008).
A partir dessa articulação as relações entre patrimônio e memória ficam evidentes.
Apenas a continuidade do bem no tempo não tem a capacidade de transformá-lo em
identidade. Alguns assumem esse papel e outros não. As lembranças dos indivíduos e dos
grupos, transformadas em memórias historicizadas, acabam por se traduzir em
representações, símbolos e signos cuja expressão material e/ou imaterial pode ser
percebida no patrimônio cultural. Dessa forma,
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