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Escravos Da Erva

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA UFSC


CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO CCE
DEPARTAMENTO DE JORNALISMO

Poliana Dallabrida Wisentainer

Escravos da Erva

RELATÓRIO TÉCNICO
do Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado à disciplina de Projetos Experimentais
ministrada pelo Prof. Fernando Crócomo
no primeiro semestre de 2016
Orientador: Prof. Carlos Locatelli

Florianópolis
Julho de 2016

1
2
FICHA DO TCC – Trabalho de Conclusão de Curso –
JORNALISMO UFSC
ANO 2016.1
ALUNO Poliana DallabridaWisentainer
TÍTULO Escravos da Erva
ORIENTADOR Carlos Locatelli
MÍDIA x Impresso
Rádio
TV/Vídeo
Foto
Web site
Multimídia
Pesquisa Científica
CATEGORIA Produto Comunicacional
Produto Institucional (assessoria de imprensa)
Produto Local da apuração:
Jornalístico
(inteiro)
Reportagem ( ) Florianópolis ( )
Livro- ( ) Brasil Internacional
reportagem ( ) Santa Catarina País:
x ( x ) Região Sul ____________

ÁREAS Direitos Humanos; Jornalismo; Trabalho.


RESUMO Este Trabalho de Conclusão de Curso é um
livrorreportagem sobre trabalhadores da colheita da erva-
mate no Brasil e a evolução do combate ao trabalho escravo
no setor. No primeiro capítulo, (1) descrevo como é o
trabalho dos tarefeiros – nome dados aos caboclos
responsáveis pela colheita da erva – e as condições
insalubres da atividade. Em seguida, (2) narro como os
empresários ervateiros reagiram às primeiras fiscalizações e
os casos de empresas autuadas por submeter os
trabalhadores da colheita a condições análogas à escravidão.
No terceiro capítulo, (3) faço duas retomadas históricas:
quando as famílias tarefeiras moravam e trabalhavam nos
ervais, e as origens do consumo e comércio da erva no
século XIX. Que “fim” leva a erva-mate e seu trabalhador?
Esta pergunta norteia o último capítulo, onde (4) discuto as

3
fragilidades das instituições públicas no combate ao
trabalho escravo e apresento as perspectivas dos tarefeiros
em relação ao seu próprio futuro.

4
Aos tarefeiros da erva-mate no Brasil.
5
6
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos trabalhadores e trabalhadoras da colheita da erva-


mate por se disporem a contar suas histórias.

Aos pesquisadores, auditores fiscais, procuradores, técnicos e


assistentes sociais por acreditaram no meu trabalho, especialmente à Lilian
Rezende, Luize Surkamp e Maristela Vergopolan.

Ao meu orientador Carlos Locatelli pelos apontamentos e por


confirmar que uma reportagem melhor será escrita amanhã.

Aos amigos da UFSC por adoçarem esses cinco anos de graduação.

À minha família, em especial ao meu irmão Neno, meu tio Junior,


Eduarda e tia Morgani, que acumula as funções de mãe, irmã e amiga.

À família que eu adotei em Curitiba, Pato Branco e Palmas por


ajudar na logística e viabilidade deste projeto, em especial à Graziela e João
pelo carinho e confiança.

Ao companheiro Daniel, todo o amor do mundo.

À mãe que se foi cedo. Continue guiando meu caminho com seu
baile delicado.

7
8
Eu vejo a liberdade dada aos que se põem
Além da lei, na lista do trabalho escravo,
E a anistia concedida aos que destroem
O verde, a vida, sem morrer com um centavo.
Com dor eu vejo cenas de horror tão fortes,
Tal como eu vejo com amor a fonte linda –
E além do monte o pôr-do-sol porque por sorte
Vocês não destruíram o horizonte… Ainda.

(“Reis do Agronegócio”, Carlos Rennó/Chico César)


9
SUMÁRIO

1. RESUMO...............................................................................................12
2. INTRODUÇÃO.....................................................................................14
3. JUSTIFICATIVA DO TEMA E DO FORMATO.............................20
3.1 JUSTIFICATIVA DO TEMA.......................................................20
3.2 JUSTIFICATIVA DO FORMATO...............................................22
4. PROCESSO DE PRODUÇÃO............................................................25
4.1 PRÉ-APURAÇÃO.........................................................................25
4.2 APURAÇÃO..................................................................................26
4.3 FONTES.........................................................................................28
4.4 REDAÇÃO....................................................................................30
4.5 EDIÇÃO.........................................................................................31
4.6 DIAGRAMAÇÃO.........................................................................33
5. CUSTOS................................................................................................34
6. DIFICUDADES E APRENDIZADO..................................................35
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................37
ANEXO A....................................................................................................38

10
11
1. RESUMO

Este Trabalho de Conclusão de Curso é um livrorreportagem sobre


trabalhadores da colheita da erva-mate no Brasil e a evolução do combate
ao trabalho escravo no setor. No primeiro capítulo, (1) descrevo como é o
trabalho dos tarefeiros – nome dados aos caboclos responsáveis pela
colheita da erva – e as condições insalubres da atividade. Em seguida, (2)
narro como os empresários ervateiros reagiram às primeiras fiscalizações e
os casos de empresas autuadas por submeter os trabalhadores da colheita a
condições análogas à escravidão. No terceiro capítulo, (3) faço duas
retomadas históricas: quando as famílias tarefeiras moravam e trabalhavam
nos ervais, e as origens do consumo e comércio da erva no século XIX. Que
“fim” leva a erva-mate e seu trabalhador? Esta pergunta norteia o último
capítulo, onde (4) discuto as fragilidades das instituições públicas no
combate ao trabalho escravo e apresento as perspectivas dos tarefeiros em
relação ao seu próprio futuro.

Palavras-chave: jornalismo, Brasil, escravidão, trabalho, erva-mate.

12
13
2. INTRODUÇÃO

Durante todo o ano, centenas de homens e mulheres se preparam


para iniciar a colheita da erva-mate, tradicionalmente consumida no Sul do
Brasil em forma de chimarrão. Ao chegar às frentes de trabalho, cada
trabalhador sabe que não terá um quarto com instalações elétricas, que a
água que beberá será de algum riacho próximo, onde também tomará banho,
e que dormirá em colchões de densidade ínfima, junto ao fogareiro feito
com tijolos e lenha na cozinha. Por que as ervateiras se recusam a cumprir
leis trabalhistas em vigor desde 1940? Por que os tarefeiros da colheita da
erva-mate trabalham em regimes exaustivos, degradantes e em condições
insalubres?
São recorrentes a autuação de ervateiros e o resgate de
trabalhadores da colheita da erva-mate no Oeste, Meio Oeste e Planalto
Norte de Santa Catarina e no Sudeste e Sudoeste do Paraná, principais
regiões de ervais nativos no Brasil. O número de resgates poderia ser maior,
explica a auditora fiscal Lilian Rezende, coordenadora do Projeto de
Fiscalização Rural da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego
(SRTE) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em Santa Catarina até
abril deste ano. De acordo com a auditora, é impossível realizar operações
de fiscalização em todas as frentes de trabalho devido à falta de recursos
financeiros, ao número reduzido de auditores e à dificuldade de
identificação dos estabelecimentos irregulares (REZENDE, 2015).
Um relatório de monitoramento da cultura da erva-mate, elaborado
pela própria Lilian Rezende em 2011, revela que entre janeiro de 2007 e
dezembro de 2010 foram resgatados 234 trabalhadores mantidos em
condições análogas à escravidão em ações conjuntas realizadas nos estados
da região Sul. Pôde-se constatar que, com raras exceções, “a extração da

14
erva-mate tem se mantido como uma atividade que usa a mão-de-obra do
trabalhador de forma especulativa e sem o cumprimento de uma série de
obrigações trabalhistas” (REZENDE, 2011).
Manter trabalhadores em regime análogo à escravidão em setores
da agricultura, pecuária e mineração é uma prática antiga, cuja existência foi
reconhecida pelo poder público brasileiro apenas em 1995 (MTE, 2012). As
tentativas de combate a essa prática começaram oito anos depois, com a
articulação de diferentes ministérios e secretarias.
O Quadro de Operações de Fiscalização para Erradicação do
Trabalho Escravo, divulgado anualmente pela Secretaria de Inspeção do
Trabalho do MTE, mostra que de janeiro de 1998 a dezembro de 2015
foram resgatados 49.157 trabalhadores em 2.080 operações no Brasil. Só
em 2015 foram 1010 trabalhadores resgatados em 143 operações realizadas
(ver anexo A).
A Comissão Pastoral da Terra (CPT), instituição que denuncia
desde os anos 1970 o crime do Brasil, publica anualmente relatórios com
números de resgate de trabalhadores em condições análogas a escravidão
em todos os estados brasileiros. O relatório mais recente da CPT é de 2014
(ver Anexo B) e demonstra que, naquele ano, em Santa Catarina, 48
trabalhadores foram libertados em seis municípios: Campo Erê, Caxambu
do Sul, Criciúma, Grão Pará, Imbuia e Pinhalzinho, em atividades como
reflorestamento, pecuária e lavoura. Dos casos registrados, um diz respeito à
denúncia contra a Ervateira Cavalo Branco, no município de Pinhalzinho,
que mantinha cinco trabalhadores em condições análogas às de escravos.
Segundo levantamentos da CPT, de 2010 a 2014, a cada ano, pelo menos
um caso de denúncia e resgate de trabalhadores em Santa Catarina está
relacionado à atividade ervateira.
Os trabalhadores são submetidos a condições análogas à
escravidão no Brasil, entre outros motivos, por estarem presos a dívidas que
15
contraíram no recrutamento ao trabalho, o chamado “abono” (FIGUEIRA,
2004), mais comum na região Norte do país. A prática de adiantamento do
salário, porém, também ocorre no Sul, na colheita da erva-mate – seja para a
compra de equipamentos de trabalho, como botas, lona e facão, seja para
compra de mantimentos em um mercado “na conta do patrão”. Parte dos
alimentos é levado com o trabalhador e parte fica com a família do tarefeiro.
Diferente do relatado por Ricardo Rezende Figueira em zonas do
Piauí e do Pará, onde é comum haver a coerção através da violência ou
mesmo da responsabilidade moral que sentem os trabalhadores em relação a
sua dívida, os safristas da colheita da erva-mate aceitam esse tipo de
trabalho como a única opção (RENK, 1997). O fragmento a seguir esclarece
as diferenças entre as violações ocorridas no trabalho escravo:

A relação de trabalho, a que esta tese se refere, vem


acompanhada, muitas vezes, por um conjunto de
práticas que podem ser, dependendo da autoridade
coatora, tipificadas juridicamente como crime –
manter pessoas em cárcere privado, violência física,
como a tortura e lesões corporais, assassinato e danos
ambientais – e violações às leis trabalhistas – não
assinatura da Carteira de Trabalho e Previdência
Social, não recolhimento dos direitos
previdenciários, não pagamento do salário e das
férias, condições inadequadas de habitação,
transporte, alimentação e segurança. (FIGUEIRA,
2004, p. 35).

As violações às leis trabalhistas apontadas por Figueira também


são frequentes nos ervais do Sul do país (BENEDITO E SURKAMP, 2012).
As diferenças regionais entre o que se entende por condição análoga à
escravidão reforçam a própria disputa pelo significado do termo
“escravidão” entre juristas, representantes do Poder Executivo,
pesquisadores e militantes. Ainda de acordo com Figueira:

16
A categoria trabalho escravo por dívida também tem
sido utilizada para formas parecidas de trabalho sob
coerção em outras regiões urbanas e rurais em
diversas atividades produtivas. Como não se trata
exatamente da modernidade de escravidão que havia
na Antiguidade grego-romana, ou da escravidão
moderna de povos africanos na América, em geral o
termo escravidão veio acrescido de alguma
complementação: “semi”, “branca”,
“contemporânea”, “por dívida”, ou, no meio jurídico
e governamental, com certa regularidade se utilizou
o termo “análoga”, que é a forma como o artigo 149
do Código Penal Brasileiro (CPB) designa a relação1.

Ao comprar a erva-mate embalada, disposta nas gôndolas dos


supermercados, o consumidor, em geral, não associa o produto a um
trabalho caracterizado por jornadas exaustivas e condições insalubres. Não
há um reconhecimento do esforço despendido para a produção da
mercadoria, o que remete a ideia de fetichismo sobre a qual discorreu Karl
Marx (2007):

A mercadoria é misteriosa simplesmente por


encobrir as características sociais do próprio trabalho
dos homens, apresentando-as como características
materiais e propriedades sociais inerentes aos
produtos do trabalho; por ocultar, portanto, as
relações sociais entre os trabalhos individuais dos
produtores e o trabalho total, ao refleti-la como
relação social existente, à margem deles, entre os
produtos do seu próprio trabalho. (MARX, 2007, p.
120).

O mesmo autor permite questionar ainda a dicotomia entre a mão-


de-obra (no caso, o tarefeiro em condição análoga à de escravo) e o produto
(erva-mate embalada) a partir do conceito de alienação. Nesse caso, o
proletário, com quase toda a vida dispendida para realizar uma única
atividade, desassocia o esforço e valor do seu trabalho e tampouco
1
Ibidem.
17
compreende as relações sociais e econômicas que foram impostas sobre ele
(MARX, 2007). No processo de industrialização e modernização do campo
intensificado pela Revolução Verde na década de 1960
(OLVEIRA;GANINI, 2007), também é possível encontrar relações de
trabalho que flutuam entre um tipo moderno de feudalismo (compras “na
conta do patrão”, barganha por dívida) e o capitalismo.
Em “Errantes do fim do século”, Maria Aparecida de Moraes Silva
acompanhou, entre 1987 e 1990, trabalhadores e trabalhadoras da região
rural de Ribeirão Preto, a maioria “de fora”, provenientes do Vale do
Jequitinhonha mineiro. Como afirma a autora, trata-se de um estudo
“visando à apreensão dos processos de expropriação, exploração-dominação
e exclusão de milhares de homens e mulheres, produzidos no bojo da
modernização trágica implantada na década de 1960 [...]” (SILVA, 1999, p.
15). Moraes Silva expõe ainda as condições de vida precárias e as frágeis
relações trabalhistas de cortadores de cana e trabalhadores da colheita do
café e da laranja. Salvo algumas especificidades na fiscalização da extração
da erva-mate, como o pequeno avanço no combate a terceirização da
colheita ocorrido a partir de 2009 – com a publicação do Termo de
Ajustamento de Conduta (TAC) envolvendo Ministério Público do
Trabalho, MTE e mais de trinta ervateiras do Oeste e Meio Oeste
Catarinense –, não há nenhuma diferença entre as condições a que estão
submetidos os proletários rurais de Santa Catarina e os do interior de São
Paulo, Minais Gerais, Pará ou Piauí, por exemplo.

Atrás dos rostos escurecidos pela fuligem da cana


queimada, portanto, por detrás do trabalhador
abstrato, enxerga-se o negro, a negra, o migrante, o
homem, a mulher. Ao ampliar o campo de
dominação, verifica-se, além de econômica, da
extração de mais-valor, a dominação mediada por
representações carregadas de significados de gênero

18
e étnico-raciais. Esta postura teórico-analítica
permite, mutatis mutandis, a compreensão da
multiplicidade, das diferenças, das especificidades
destas relações. E mais. Permite a percepção de
maneira pela qual os diferentes agentes da
dominação apoiam-se uns sobre os outros, negam-se
entre si ou se reforçam mutuamente. Não se entende
a dominação como algo político e a exploração como
algo econômico. Não se tem a visão dualista
assentada sobre oposições. Exploração e dominação
(...) são as faces de um mesmo fenômeno. (SILVA,
1999, p. 16).

Inicialmente consumida por índios do Guaíra, território que hoje


constitui o Paraná, a erva-mate, chamada de “Caá-i”, foi apresentada aos
espanhóis entre 1553 e 1556. A bebida era então consumida pelos índios
antes e depois de atividades que requeriam esforço físico e, após três
séculos, se tornaria um importante produto de exportação
(BENEDITO;SURKAMP, 2012). A partir do século XIX, com o extermínio
da população indígena, os negros, caboclos e bugres que habitavam a região
Oeste de Santa Catarina e Paraná tornaram-se a mão-de-obra predominante
nas colheitas.
Os caboclos que chegavam ao Oeste de Santa Catarina para
trabalhar na construção de ferrovias que seriam usadas para escoar a
produção da erva (RENK, 1997) ocuparam gradativamente a região.
Iniciou-se, então, um processo de colonização do território liderado por
descendentes de italianos que habitavam o interior do Rio Grande do Sul.
Através da chamada “Companhia” – que era responsável por comprar e
vender terras aos recém-chegados imigrantes europeus –, os caboclos foram
expulsos de seus lotes e coagidos a trocar a agricultura de subsistência por
um trabalho assalariado no campo, no caso, a atividade análoga à escravidão
na colheita da erva (RENK, 1997). A dominação mediada por

19
representações étnico-raciais descritas por Moraes Silva se repete, enfim,
nos ervais do Sul do Brasil.

A inclusão de um e exclusão de outro cria as


fronteiras sociais e étnicas entre os grupos
envolvidos. Destas fronteiras, no caso em questão, a
mais representativa é a da ocupação. Aos italianos
cabe o espaço da lavoura, do comércio e da indústria.
Os grupos produtivos envolvidos na erva distribuem-
se de modo similar: os donos de firma são italianos;
os produtores de erva-mate são colonos ou
fazendeiros e os extratores, invariavelmente, os
caboclos. Neste caso, a extração é naturalizada como
atividade de caboclo, sem esquecer a carga semântica
do termo, como identidade estigmatizada. (RENK,
1997, p.172-173).

A divisão étnica do trabalho e as condições insalubres, análogas à


escravidão, perpassam a história da extração da erva-mate desde o século
XIX. Como sustenta Arlene Renk: “À medida que o lugar do tarefeiro é “no
mato”, isto contribui para a incorporação da dominação. As divisões étnicas
passam a ser correspondentes aos espaços, polarizados: os tarefeiros-
brasileiros “no mato”; os gringos-donos-de-barbaquás, na cidade”2.

3. JUSTIFICATIVA

3.1 Justificativa do Tema


No ano anterior à produção deste projeto, quando pretendia apresentar
um TCC sobre “pobreza extrema no campo”, cursei a disciplina de Sócio-
Economia Rural, no Departamento de Agronomia e Zootecnia da UFSC.
Tive acesso a autores que discutiam sobre o impacto de políticas de acesso
ao crédito para pequenos produtores, como o PRONAF (Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar), medidas para promoção da
2
Ibidem, p. 177.
20
segurança alimentar e incremento de renda como o PNAE (Programa
Nacional de Alimentação Escolar) e o PAA (Programa de Aquisição de
Alimentos).
Uma leitura mais detalhada sobre o tema, porém, me permitiu
verificar que há uma parcela da população de municípios na zona rural que
está à margem dos processos produtivos do agronegócio ou da agroecologia
– visões divergentes no que se refere ao crescimento econômico e social – e
mesmo do desenvolvimento que as políticas públicas para o campo tentam
proporcionar.
Homens e mulheres que não são pequenos produtores, tampouco
latifundiários: são “tarefeiros” (RENK, 1997), agregados, grupos de mão-
de-obra volante. Para esses trabalhadores e suas famílias que, em geral,
habitam municípios com os mais baixos Índices de Desenvolvimento
Humano de Santa Catarina, o acesso a direitos básicos como educação e
saúde é restrito (mudanças constante de endereço, falta de documentação e,
principalmente, informação) e as políticas públicas para a população rural
não os incluem, já que a maioria não possui terra ou experiência em
empreendimentos próprios.
Ao pesquisar o ambiente de trabalho da população nessas
condições, constatei que, em Santa Catarina, a maioria se concentra nas
colheitas sazonais da cebola, maçã e outras frutas de clima temperado,
tomate e batata, e durante todo o ano na erva-mate, além de ser a mão-de-
obra do setor de celulose e reflorestamento. As fiscalizações do Grupo
Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) e os TACs no site do MPT de
Santa Catarina confirmam a situação degradante desta população.
Minha proposta, então, era narrar histórias de trabalhadores
submetidos a condições análogas à escravidão de cinco setores produtivos
do estado: celulose/reflorestamento, maçã, cebola, tomate e erva-mate.
Logo começou o dilema entre produzir um TCC com um recorte mais
21
abrangente ou concentrar atenções sobre um dos setores produtivos e as
especificidades de seus trabalhadores. Optei pelo segundo. A escolha pela
erva-mate deveu-se ao acesso facilitado aos materiais bibliográficos, além
da maior viabilidade de locomoção entre as cidades produtoras de erva.
Durante uma entrevista anterior à produção do pré-projeto, Lilian Rezende,
fiscal do MTE em Santa Catarina, relatou que a maioria das ervateiras de
Santa Catarina submete seus trabalhadores terceirizados a jornadas
exaustivas, insalubres e degradantes – condições que caracterizam a
existência de trabalho escravo (Artigo 149 do Código Penal).
Essa situação flagrante de exploração e falta de perspectivas dos
trabalhadores me fizeram optar, ao final, por apurar e escrever um
livrorreportagem que compreenda os contextos sociais e econômicos que
levam homens e mulheres a trabalhar em regime análogo à escravidão e
questione a escolha de alguns empresários da erva-mate por manter seus
trabalhadores nessas condições. Ao contar histórias de trabalhadores da
colheita, pretendia narrar como, quando, onde e por que ainda existem
escravos na colheita da erva-mate em Santa Catarina e, se possível,
contribuir para o debate e chamar a atenção do poder público e da sociedade
civil para este problema.

3.2 Justificativa do Formato


Ao narrar a dura realidade de trabalhadores de um dos setores mais
tradicionais da economia da Região Sul, este livrorreportagem assume a
finalidade de contribuir para a discussão do papel do jornalismo no sistema
capitalista.
Tentei ter cuidado ao descrever os tarefeiros neste livro. Minha
intenção era dar visibilidade às suas histórias e condições de vida, mas que
as atenções se voltassem também aos empresários que utilizam

22
irregularmente essa mão-de-obra. Este trabalho de reportagem não é só
sobre as vítimas, mas também sobre os cúmplices da exploração.
Algumas reflexões surgiam ao tentar traduzir e descrever o que eu
via naquelas casas de compensado de madeira, naquelas crianças sem
calçado, brincando no barro. A primeira era entender a quem serve
emocionar e explorar a subjetividade de homens e mulheres à margem das
oportunidades, como são os tarefeiros.
Esse tipo de material, quando produzido por grandes empresas de
mídia, é, muitas vezes, apelativo e vago. Não é também contraditório que
um produto jornalístico como este se insira na lógica de um modelo de
negócios que, muitas vezes, visa ao lucro em detrimento do interesse
público, como é o caso dos grandes jornais?
Como exemplo de reportagem com viés subjetivo, que apenas
expõe e não problematiza questões inerentes à realidade incrustada aos
personagens, cito a reportagem “As quatro estações de Iracema e Dirceu”,
publicada em 21 de junho de 2015 em versão multimídia no site e em um
encarte de 24 páginas na edição impressa do jornal Diário Catarinense, do
Grupo RBS3. Com fotos produzidas, diagramação interativa e inserções em
áudio da repórter, a reportagem conta a história de uma família composta
por pai, mãe e 14 filhos de Timbó Grande, no Planalto Norte Catarinense.
O casal que dá nome a reportagem do Diário Catarinense se
conheceu num erval e, não por coincidência, vive em situação de extrema
pobreza. Iracema e Dirceu foram tarefeiros na colheita da erva-mate,
expostos às jornadas exaustivas e condições insalubres da atividade. A
reportagem não discute, porém, o porquê da miséria e nem expõe quem
lucra com a exploração: só interessa o que é mais subjetivo, singular e que,

3
Disponível em: http://www.clicrbs.com.br/sites/swf/DC_quatro_estacoes_iracema_dirceu/.
Acesso em: 24 nov. 2015.
23
por isso mesmo, dificulta a problematização da realidade externa à Iracema
e Dirceu, como a escravidão no campo.
O mesmo grupo empresarial que financia um trabalho jornalístico
sobre personagens à margem de direitos básicos, como o caso do casal de
Timbó Grande, investe em uma reportagem sobre os empresários do Rio
Grande do Sul que compraram terras baratas na região conhecida como
Matopiba, no Norte e Nordeste, no final da década de 1980 4. A relação de
exploração do trabalho e exclusão do desenvolvimento que marca a história
do casal de trabalhadores rurais de Santa Catarina se repete na vida dos
nativos e indígenas expulsos de suas terras, transformando “Matopiba” em
uma das regiões de maior conflito por terra do Brasil (CPT, 2014). Adelmo
Genro Filho ajuda a esclarecer o duplo papel do jornalismo realizado pela
RBS:
Em virtude do caráter de classe da sociedade
burguesa, o jornalismo cumpre uma tarefa que
corresponde aos interesses de reprodução objetiva e
subjetiva da ordem social. Nesse sentido, o
jornalismo desempenha seu papel ideológico de
reforçar também determinadas condições imaginárias
de cidadania, preparando os indivíduos e as classes
para a adesão ao sistema. Isso ocorre, tanto através
da produção de um conhecimento que coincide com
a percepção positivista que emana espontaneamente
das relações reificadas do capitalismo, como pela
reprodução e ampliação dessa percepção, a fim de
garantir que a universalidade conquistada pelo
capital continue sob a égide particular dos interesses
capitalistas. (GENRO FILHO, 1987, p. 152-168).

Neveu (2005) afirma que o proprietário de meios de comunicação


é, antes de tudo, um empresário capitalista; não interessa a ele, pois,
desmascarar ou desnudar uma realidade de exploração que traz implícita
uma denúncia ao próprio modo de produção capitalista. O jornalismo

4
Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/especiais-zh/zh-matopiba-tche/. Acesso em: 24 nov.
2015.
24
empresarial, porém, não abre mão de produzir conteúdos com temáticas
relacionadas às mazelas do sistema, reportagens que costumam causar
comoção. Para Ciro Marcondes Filho, isso é sensacionalismo, ou “o grau
mais radical de mercantilização da informação: tudo o que se vende é
aparência e, na verdade vende-se aquilo que a informação interna não irá
desenvolver melhor do que a manchete” (MARCONDES FILHO, 1989, p.
66).
Para fugir disso, tentei realizar uma reportagem que dê voz às
histórias de vida de trabalhadores subalternos (SPIVAK, 2010) e, ao mesmo
tempo, conectá-las a uma realidade econômica e social, expondo os
elementos universais em cada narrativa singular (GENRO FILHO,1987).
Mais do que um mero compromisso burocrático para a conclusão
do curso, espero que o livrorreportagem, ao narrar uma realidade inerente ao
modo capitalista, contribua para reforçar o caráter transformador do
jornalismo, possível apenas quando este é independente dos interesses
empresarias.

4. PRODUÇÃO
4.1 Pré-Apuração
A pré-apuração deste Trabalho de Conclusão de Curso começou no
final de 2015, quando defini as localidades e ervateiras que eu visitaria. A
escolha pelos destinos foi facilitada pela contribuição da auditora fiscal
Lilian Rezende, que me forneceu materiais sobre o trabalho escravo na
erva-mate, como listagem de resgates, planilhas com empresas autuadas e
relatórios sobre a atuação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel
(GEFM) em Santa Catarina.
A escolha das ervateiras seguiu os seguintes critérios: registro de
autuação por irregularidades trabalhistas ou por subter trabalhadores em

25
condições análogas à escravidão e proximidade com a cidade de Chapecó,
“QG” da apuração.
Nos meses de janeiro e fevereiro pude ficar hospedada na casa dos pais
do Daniel Giovanaz, também jornalista e que ficou esse tempo na cidade se
dedicando a apuração de um livrorreportagem sobre um crime político não
esclarecido em Chapecó.
A estadia da casa dos seus pais, Graziela e João, foi determinante para a
realização deste projeto. Eu contava com um orçamento muito baixo e teria
que economizar no que fosse possível. Registro também aqui o meu
agradecimento à família.
Pelo limite orçamentário, este projeto seria realizado apenas em Santa
Catarina, no Oeste, Meio Oeste e Planalto Norte Catarinense. Eu acreditava
que não seria possível visitar cidades do Paraná e Rio Grande do Sul, mas
quando comecei a apuração, isso mudou.

4.2 Apuração
A apuração foi dividida em pequenas viagens, para que eu não
tivesse que ficar dias em um único local, pois isso significaria gastos
com alimentação e hospedagem que eu não poderia arcar. Algumas
cidades foram visitadas em um único dia – eu saía de Chapecó no
primeiro ônibus e voltava no último.
Ao conhecer melhor a região, vi que as distâncias entre Chapecó e
cidades do Alto Uruguai, no Rio Grande do Sul, e do Sudoeste do
Paraná não eram muito grandes. As passagens de ônibus variavam entre
R$ 18,00 e R$ 40,00. Readaptei o orçamento e decidi por estender a
apuração do livro para duas cidades do Rio Grande do Sul e três
cidades do Paraná. Assim, abrangeria os três estados da Região Sul e
poderia afirmar que realizei um trabalho sobre os tarefeiros da erva-

26
mate no Brasil, já que quase a totalidade da produção ervateira se
concentra nas localidades que visitei.
A maior parte das entrevistas foi realizada entre o dia 7 de janeiro e
28 de fevereiro. Em Florianópolis, realizei algumas entrevistas por
telefone com os auditores fiscais do Paraná e do Rio Grande do Sul e
programei uma nova viagem ao Paraná, realizada em maio.

A apuração foi dividida da seguinte maneira:


Janeiro: dois dias de entrevistas no distrito de Marechal Bormann, em
Chapecó (SC); um dia em Nonoai e um em Barão de Cotegipe (RS); um dia
em Ponte Serrada (SC) e dois em Catanduvas (SC). Tive a companhia do
Daniel Giovanaz na apuração em Ponte Serrada, no Meio Oeste Catarinense
e em Palmas, no Sudoeste Paranaense.
Fevereiro: um dia de entrevista no município de Ouro (SC); dois dias em
Palmas (PR) e uma visita a um erval no distrito de Marechal Bormann, em
Chapecó.
Maio: um dia em General Carneiro e dois dias em Bituruna (PR).

Antes das viagens, conversava previamente com os responsáveis pelo


Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de cada município.
Nessa pré-apuração, tentava descobrir quais os bairros mais carentes –
porque são nessas localidades que moram os tarefeiros – e a distância até a
rodoviária, para calcular se poderia ir à pé ou não.
O período escolhido para a apuração nos municípios era no final de
semana. Sábado e domingo eram os dias que eu encontrava os tarefeiros em
casa, por outro lado, não conseguia conversar pessoalmente com as
assistências sociais dos municípios. Quando a entrevista ocorria também
com algum ervateiro do município, como foi o caso de Catanduvas, em

27
Santa Catarina, cheguei durante a semana e contei com a sorte para
encontrar os tarefeiros em casa no final do expediente.
Nenhuma entrevista com os trabalhadores da colheita foi agendada. Os
próprios moradores dos bairros me indicavam onde eu encontraria
tarefeiros. Em uma dessas orientações, inclusive, recebi um “tem um
tarefeiro ali, mas, cuidado, ele é perigo” como resposta. Isso ocorreu em
Palmas, no Paraná, quando eu tentava encontrar o trabalhador conhecido
como “Russo”. Ao chegar na casa do tarefeiro, a pintura na parede com a
frase “mata sem medo” foi o cartão de visitas. Senti que “o que quer dizer
essa frase?” era uma pergunta que eu poderia evitar. A despeito disso,
“Russo” e seu sobrinho, Anderson, foram ótimas fontes e se mostraram
interessados em ajudar.
Quase toda a apuração nos municípios foi feita a pé. Os bairros
visitados ficavam, em média, a 5 km de distância do centro dos municípios.
Somente em dois momentos peguei um táxi e consegui uma carona em
outros cinco: três vezes com ervateiros, uma com uma assistência social e
outra com um funcionário de uma empresa de produtos de limpeza que
entregava um pedido em uma ervateira de Catanduvas e estava indo rumo a
Chapecó.
Quando estava em Chapecó, realizei também entrevistas por telefone
com as procuradoras de Passo Fundo, Blumenau (antes lotada em Joaçaba),
Pato Branco e Guarapuava, com o representante no Brasil da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e com o presidente da Câmara Setorial
Nacional da Erva-mate.

4.3 Fontes
Ao todo, realizei 40 entrevistas, das quais 29 foram aproveitas na redação
do livro. As fontes entrevistas e que estão neste livrorreportagem foram as
seguintes, por ordem de realização:
28
1 - Junior Danielli, proprietário da Ervateira Cavalo Branco;
2 - Arlene Renk, professora e autora do livro “A Luta da Erva”;
3 - Sérgio Antônio Picolo, proprietário da Erva Mate Barão de Cotegipe;
4 - José Adilson Roteles, tarefeiro de Ponte Serrada;
5 - Zenita Fontoura dos Santos, tarefeira de Ponte Serrada;
6 - Reducino Mouque dos Santos, tarefeiro de Ponte Serrada;
7 - Marilene Alvez da Silva, esposa do tarefeiro de Ponte Serrada;
8 - Luiz Machado, coordenador do Projeto de Combate ao Trabalho Escravo
da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil;
9 - Neide Bonzano, tarefeira do distrito de Marechal Bormann, em Chapecó;
10 - Ederli Pisinatto, proprietário da Erva Mate Catanduvas;
11 – Cláudio Marinha Boscos, proprietário da Erva Mate Regina;
12 - Aquimar Rech, tarefeiro de Catanduvas;
13 - Divo Guerra, presidente do Sindicato das Indústrias da Erva Mate de
Catanduvas e dono da Ervateira Jacutinga;
14 - Leandro Gheno, presidente da Câmara Setorial Nacional da Erva-Mate
e diretor da filial de São Mateus do Sul, no Paraná, da Erva Mate Baldo;
15 - Maurício Pavesi, auditor fiscal coordenador do Projeto de Fiscalização
Rural da SRTE do Paraná;
16 - Lilian Rezende, auditora fiscal responsável pelo Projeto de Fiscalização
Rural de Santa Catarina até abril deste ano e presidente da delegacia
sindical do Sindicato dos Auditores Fiscais (Sinait) em Santa Catarina;
17 - Bruna Bonfante, procuradora do MPT na Procuradoria de Blumenau e
responsável pelas autuações aos ervateiros entre 2007 e 2008. Até início
deste ano, era presidente da Coordenadoria Nacional de Erradicação do
Trabalho Escravo no Brasil (CONAETE);
18 - Darci Titon, 57 anos, tarefeiro resgatado em Catanduvas;
19 - Sergio Garcia, chefe da área de Saúde e Segurança da SRTE do RS;

29
20 - Gean Tormen, administrador da Comércio de Erva Mate Tormen Ltda,
no Distrito de Marechal Bormann, em Chapecó;
21 - Cibelle Costa Farias, procuradora do MPT na Procuradoria de
Guarapuava, no Paraná;
22 - Nivaldo dos Santos, tarefeiro e capataz de Palmas, no Paraná;
23 - Anderson dos Santos Camargo, tarefeiro de Palmas, no Paraná;
24 - Flávia Fuck, procuradora do MPT na Procuradoria de Passo Fundo, no
Rio Grande do Sul;
25 - Paulo Pinheiro Machado, professor do Departamento de História da
UFSC;
26 - Flávio Apolinária, 23 anos, tarefeiro de Bituruna, no Paraná;
27 - Celso Mota dos Santos, tarefeiro de Bituruna, no Paraná;
28 - Rita Aparecida Apolinária, tarefeira de Bituruna, no Paraná;
29 - Luize Surkamp, auditora fiscal da SRTE do Paraná e autora do livro
“Erva Mate - a Erva que Escraviza”

4.4 Redação
Um terço da apuração do livrorreportagem teve fim no começo de
março, quando retornei a Florianópolis. O mês de março foi destinado a
decupar as entrevistas e definir a estrutura do trabalho. De abril e junho,
os capítulos eram escritos, em média, um a cada duas semanas. O
primeiro capítulo foi apresentado no dia 27 de abril.
Inicialmente, o livrorreportagem seria divido em três capítulos: o
“antes”, onde eu contaria o origem dos caboclos e o início do comércio
de erva-mate no Brasil; o “durante”, quando descreveria como são as
condições de trabalho atual e como os empresários do setor reagiram às
primeiras fiscalizações. Por último, escreverei um capítulo sobre o
“depois”, apresentando as consequências dos cortes no orçamento e da

30
falta de auditores fiscais do MTE e das novas gerações de tarefeiros que
seguiam o mesmo caminho dos pais.
As correções do capítulo entregue nem bem tinham sido
terminadas pelo meu orientador, professor Carlos Locatelli, e eu resolvi
mudar toda a estrutura do trabalho. Ao reler o capítulo entregue e
refletir sobre alguns comentários gerais do orientador sobre o meu
trabalho, tive a sensação de que o livro estava começando “pelo pé”.
Apesar da estrutura de um livrorreportagem ser diferente da
aplicada em uma notícia, optei por hierarquizar as informações também
no livro, assim como é feito no hard news. Da maneira como eu estava
estruturando o livro, as condições atuais dos tarefeiros, talvez o mais
importante para discutir mudanças e conscientizar a sociedade, estaria
presente apenas na metade do trabalho.
Reescrevi esse capítulo, que se tornou a terceira parte do
livrorreportagem. Ao final, este trabalho está dividido em um prólogo e
quatro capítulos. O trabalho mais intenso de redação começou, então,
em maio, interrompido por mais uma viagem de apuração, e terminou
no final de junho. Foram entregues três capítulos de uma só vez ao
orientador e, duas semanas depois, o último.

4.5 Edição
O livrorreportagem está dividido em um prólogo e quatro capítulos,
conforme detalho a seguir. Os capítulos não são autônomos – um depende
do outro para formar uma narrativa que compreenda toda a questão que
envolve atualmente o trabalho escravo na erva-mate.

Prólogo: A função do prólogo é localizar o leitor sobre o que ele lerá nas
próximas páginas. Achei necessário usar este recurso porque se trata de um

31
trabalho extenso e com diferentes nuances – quem são os tarefeiros, o que
pensam os patrões, as fragilidades da fiscalização no Brasil.

Capítulo 1: DA PONTA DO FACÃO À CUIA - O trabalho análogo à


escravidão na colheita da erva-mate. Na primeira parte do livro, descrevo
como é o trabalho dos tarefeiros e as condições insalubres da atividade. O
título principal do capítulo “Da Cuia à Ponta do Facão” remete a cadeia
produtiva da erva-mate, que começa, em alguns casos, na exploração da
mão-de-obra de forma irregular.

Capítulo 2: SENHORES DA ERVA - O que pensam os patrões sobre as


fiscalizações no setor. O segundo capítulo é dedicado quase que em sua
totalidade a ouvir a versão dos empresários ervateiros sobre o processo de
fiscalização na colheita da erva. “Senhores da Erva” foi uma escolha
definida pela representação dos empresários do setor, que são, geralmente,
das famílias mais ricas e conhecidas do município, carregando consigo um
capital social e cultural com poder de influência.

Capítulo 3: ANTES DE TAREFEIROS, CABOCLOS - A origem dos


cortadores de erva-mate no Brasil. Nesse capítulo optei por fazer duas
retomadas históricas para compreender porque os tarefeiros compõem as
camadas mais pobres e vulneráveis dos municípios que habitam. Seria só
coincidência? A divisão étnica do trabalho (RENK, 1997) explica, em parte,
esse “destino caboclo” dos trabalhadores da erva-mate, o que justifica o
título do capítulo “Antes de Tarefeiros, Caboclos”.

Capítulo 4: LUTO, LUTAREMOS, LUTARÁS - O futuro das operações no


campo e dos tarefeiros. No último capítulo, discuto as fragilidades das
instituições públicas no combate ao trabalho escravo devido aos cortes dos
32
orçamentos e diárias do MTE. As perspectivas dos tarefeiros em relação ao
seu próprio futuro, representado por Anderson dos Santos Carmargo, jovem
tarefeiro de 18 anos, e por Neide Bonzano, de 37, encerram o trabalho. A
ideia era de mostrar que, apesar dos avanços na indústria, na economia e na
sociedade brasileira, os jovens das famílias tarefeiras continuarão “lutando”
na erva. O título “Luto, Lutaremos, Lutarás” também faz alusão ao trabalho
de alguns promotores e auditores fiscais que reforçam a todo momento a
necessidade de contínua fiscalização para erradicar o trabalho degradante no
corte da erva e outras atividades rurais.
No título “Escravos da Erva”, pretendi dar a noção de servidão dos
tarefeiros não apenas às condições de trabalho nas fazendas, mas a que as
suas vidas se destinam. O tarefeiro, na maioria das vezes, só trabalhou na
poda de erva-mate, assim como seu pai, seu avô. Ele está, sem que tivesse a
chance de escolher, destinado a fazer essa atividade até o fim da vida. Pode
ter carteira assinada, EPI, casa com água encanada, mas, para a sociedade, e
talvez até para si mesmo, será sempre um cortador de erva.

4.6 Diagramação
A identidade visual deste livro é de autoria de Alice da Silva,
estudante do curso de Design da UDESC (Universidade do Estado de
Santa Catarina) e amiga desde 2011, quando ingressamos, juntas, no
curso de Jornalismo da UFSC.
O conceito da identidade visual do livrorreportagem era a de uma
capa que remetesse ao trabalho e os mesmo tempo à vida do tarefeiro.
A princípio, a capa seria criada com alguma textura que simulasse a
erva-mate cancheada. Após a escolha e tratamento das imagens que
entrariam no livro, percebi que a foto vertical de um tarefeiro que se
movimenta de um galho a outro da erveira representaria a ideia do
livro. É como se esse homem, na fotografia, fosse a própria continuação
33
dos galhos. Ele se pendura na árvore, depende dela. É assim também
com seu trabalho: só sabe cortar erva e se agarra a isso para sobreviver.
Além disso, considerei que a fotografia continha os elementos
necessários para uma capa: espaços livres para escrever as informações
principais, como o nome do livro e do autor.
Para o interior da publicação, pretendia que o livrorreportagem
fosse o mais acessível possível: a letra do texto um pouco maior que o
normal e espaços em branco no começo de cada capítulo para suavizar
a leitura. Pedi também que as letras de abertura, sumário e outros
elementos fossem simples, com fontes “thin”.
Todas as fotos que compõem este livrorreportagem são de minha
autoria. Fotografei apenas os tarefeiros e suas famílias. Fiz essa escolha
para registrar a realidade de homens e mulheres que recebem um
espaço menor na sociedade, diferente do ocupado pelos empresários
ervateiros. Como acrescentou o professor Carlos Locatelli em uma
reunião de orientação, a fotografia e esse livro podem ser os únicos
registros desses trabalhadores em muitos anos.

5. CUSTOS

O custo da execução do projeto é de R$ 1.290,00, conforme a tabela a


seguir. Todas as despesas foram arcadas com financiamento próprio. É
importante frisar que este valor só foi possível graças ao apoio do Daniel
Giovanaz e seus pais, em Chapecó. Sem eles, a viabilidade deste projeto
estaria comprometida.

CATEGORIA DESCRIÇÃO VALOR


Transporte 10 viagens de ônibus 400,00

34
Equipamento Câmera Fotográfica D300 -
cedida do LabFoto
Hospedagem Duas pernoites 110,00
Alimentação - 300,00
Demais gastos Táxi e ligações 200,00
Diagramação Apenas o layout 50,00
Impressão Seis exemplares e relatório 230,00

6. DIFICULDADES E APRENDIZADO

Durante a apuração, deparei-me com alguns dogmas que a reportagem


investigativa ou “de fôlego” pode trazer às mulheres: de que uma pauta era
perigosa ou distante demais para se fazer sozinha. Ouvi inúmeras vezes a
palavra “cuidado” ou a expressão “você vai lá sozinha?” de entrevistados.
As entrevistas dos tarefeiros ocorreram em comunidades carentes e
com altos índices de violência para os padrões dos pacatos municípios
visitados. Eu entendia a preocupação das fontes em relação à minha
segurança, mas nunca deixei de visitar a algum lugar que eu acreditasse ser
importante para a apuração.
Entre o centro das cidades até as vilas de tarefeiros, percorri bons
quilômetros sozinha. Fazia o que era possível para economizar, e isso
incluía dispensar o uso de táxi e dormir nos hotéis mais baratos. Aceitei
caronas, contei com a compreensão dos motoristas de ônibus interestaduais
que me deixavam descer o mais próximo possível da localidade que eu tinha
interesse e confiava nos moradores dos bairros, que indicavam onde
moravam os tarefeiros da cada localidade.
Nunca nada de mal aconteceu. Sempre fui recebida pelos trabalhadores.
Muitos com olhares desconfiados, eles acreditavam que eu era “alguém do
35
governo” ou da “justiça”. Eu, então, esclarecia quem era e o que queria.
Ofereciam-me uma cuia de chimarrão e começávamos a conversar.
Outra dificuldade era a de tornar claro e pouco repetitivo um texto com
tamanho volume. Como deveria hierarquizar as informações? Como faria a
transição para cada capítulo? Como trabalharia com um texto narrativo em
alguns momentos e declaratório em outros, sem uma divisão tão clara disso?
Ao longo da redação deste livrorreportagem sanei algumas dúvidas, assim
como sigo com outras. Aprendi que a prática deste tipo de texto tornará o
ato de escrever mais fluido, mas não menos trabalhoso.
Aprendi muito com este trabalho. O livro tem algumas deficiências, há
coisas que farei diferente na apuração das próximas grandes-reportagens,
mas fiz o que era possível hoje, aos 24 anos. “Você não é o Gay Talese”,
lembrava o professor Locatelli. Longe de mim ser como o gentleman do
jornalismo literário americano.
Se fosse para “ser” como alguém, seria Rodolfo Walsh e investigaria as
mazelas da política latino-americana. Embrenharia-me pelo horror das
guerras e encararia os poderosos como fez Oriana Fallaci. Seria entregue a
um trabalho como foi James Agee em “Elogiemos os Homens Ilustres” ou
cirúrgica no texto como Roberto Mariano em “La Balada de La Oficina”.
Foram transformadores esses cinco anos de graduação na UFSC, um
semestre na Universidad Nacional de La Plata, na Argentina, e a conclusão
deste livro. Uma nova geração, com ensino superior cursado em uma
universidade pública, começa na minha família. Minha luta, como
jornalista, será para que isso aconteça também às famílias dos tarefeiros
entrevistados.

36
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra: a


escravidão por dívidas no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004.

GENRO FILHO, Adelmo. O Segredo da Pirâmide: Para uma teoria


marxista do jornalismo. Porto Alegre: Tchê, 1987.

LIMA, Benedito; SURKAMP, Luize. Erva-mate: erva que escraviza.


Fortaleza: La Barca, 2012.

MARCONDES FILHO, Ciro. O Capital da Notícia: jornalismo como


produção social de segunda natureza. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1989.

MORAES SILVA, Maria Aparecida de. Errantes do fim do século. São


Paulo: Fundação Editora UNESP, 1999.

MTE. Trabalho Escravo em Retrospectiva: Referências para Estudos e


Pesquisas. Brasília, 2012.

NEVEU, E. Sociologia do jornalismo. Porto (Portugal): Porto Editora,


2005.

RENK, Arlene. A luta da erva: um ofício étnico da nação brasileira no


oeste catarinense. Chapecó: Grifos, 1997. 231 p.

REZENDE, Lilian. Entrevista gravada. 12 maio. 2015.

SAKAMOTO, Leonardo (Org); Monteiro, Lucia (Org); Campos, André, et


al. – Repórter Brasil: 10 anos de estrada de terra em 17 grandes
reportagens. São Paulo: Julho de 2012.

TERRA, Comissão Pastoral da.Conflitos no Campo: Brasil 2014. Goiânia:


CPT, 2014.

SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Minas Gerais: UFMG. 2010.

VIEIRA, Maria Antonieta da Costa (Org). Perfil dos Principais Atores


Envolvidos no Trabalho Escravo Rural no Brasil. OIT, 2011.

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ANEXO A

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