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Psicanálise e Hospital 5

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Diferentemente do que se fazia ouvir a

partir do divã do criador da Psicanálise,


o sintoma em sua versão contemporânea
não parece tanto mais responder à
função de cifrar uma satisfação pulsional
recalcada a partir das injunções
categóricas de um supereu hipermoral.
Ao contrário, o sintoma agora se revela
como o obstáculo que se interpõe diante
da execução cabal de todas as aptidões
para o usufruto do gozo, instigadas,
diga-se de passagem, por uma versão
não menos severa do supereu. Goza!
Se ou�rora essa era a voz que se discernia
no interior do ruído produzido pelo
próprio sintoma, agora ela advém de
alhures - sem véus, mais ainda obscena -
e encontra no sintoma a barreira que
amortece sua reverberação ensurdecedora.
O que teria, então, a Psicanálise a ver com
isso? Ou, levando a questão mais adiante,
qual a sua responsabilidade nisso?

Os artigos reunidos nesse livro têm em


comum o propósito de não recuarem
diante da elucidação desse cenário. [ ...]
Não é responsabilidade da Psicanálise
atribuir a si própria a missão de
apresentar-se como a via régia para a
transformação do panorama social com
base em um juízo valorativo que lhe
conferiria os privilégios do pathos da
verdade, da justiça, do progresso ou
do esclarecimento. A Psicanálise não
é responsável por vicissitudes e
transformações da subjetividade e seus
modos de expressão contemporâneos,
nem sequer deve responder do lugar
da instância reguladora e privilegiada
de sua reconfiguração. Sua função é
menos revolucionar do que subverter.

Do Prefácio de Guilherme Massara Rocha T@íbhoteta jf reullíana


Glauco Batista
Marisa Decat de Moura
Simone Borges de Carvalho

Rio de Janeiro
2011
© 2011 by Glauco Batista, Marisa D. de Moura e Simone B. de Carvalho

Gerente Editorial: Alan Kardec Pereira

Editor: Waldir Pedro


Revisão Gramatical: Lucíola Medeiros Brasil
Capa e Projeto Gráfico: 2ébom Design

Capa: Eduardo Cardoso

Diagramação: Flávio Lecorny

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P969
Psicanálise e hospital: a responsabilidade da Psicanálise diante da ciência mé­
dica /Glauco Batista, Marisa Decat de Moura, Simone Borges de Carvalho (orgs.).
- volume 5. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2011.
224p.: 23cm

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7854-114-9

1. Psicanálise. L Batista, Glauco. II. Moura, Marisa Decat de. UI. Carvalho,
Simone Borges de.

10-3576. CDD 150.195 CDU 159.964.2

2011

Direitos desta edição reservados à Wak Editora


Proibida a reprodução total e parcial.

Os infratores serão processados na forma da lei.

WAK EDITORA

Av. N. Sra. de Copacabana 945- sala 107- Copacabana


Rio de Janeiro - CEP 22060-001- RJ
Tels.: (21) 3208-6095 e 3208-6113
Fax (21) 3208-3918
wakeditora@uol.com.br
www.wakeditora.com.br
Sobre _as Autores

Célio Garcia

• Psicanalista (Escola Brasileira de Psicanál ise). Professor aposentado


da U FMG. Colaborador em números anteriores desta publicação;
participando também dos Fóruns Internacionais de Psicanálise e
Hospital. Endereço eletrônico: celiogar.bh@terra.com.br

Glauco Batista

• Psicólogo. Psicanalista. Pós-Graduação em Psicologia Hospitalar


pela Universidade FUM EC. Participante da Formação e Transmissão
da Clínica de Psicologia e Psicanálise do Hospital Mater Dei.
Membro da ONG Terceira Margem Prevenção, Pesquisa e
Capacitação em Toxicomania e diretor geral no período de 2009
a 2011. Membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar
- SBPH e membro da Diretoria no biênio 2009-2011. Endereço
eletrônico: glaucobatista@gmail.com

Guilherme Massara Rocha

• Psicanalista. Professor do Departamento de Psicologia da UFMG.


Endereço eletrônico: g massara@uai.com.br

lzabel Haddad Marques Massara

• Psicanalista. Mestranda em Psicologia pela U FMG. Endereço


eletrônico: izabelhaddad@hotmail.com

Jeferson Machado Pinto

• Psicanalista. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia


da UFMG. Endereço eletrônico: jmachadopinto@gmail.com
Letícia Rocha

• Psicanalista. Coordenadora do Serviço de Psicologia do Centro


de Endocrinologia e Diabetes do Estado da Bahia (CEDEBA).
Endereço eletrônico: leticiamtrocha@terra.com.br

Luis Flávio Silva Couto


"

• Psicólogo. Doutor em Filosofia pela UFRJ com Pós-Doutorado em


Psicanálise pela U niversité Paris 8. Professor no Departamento de
Psicologia da PUC-MG. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise,
sessão Minas Gerais. Endereço eletrônico: luisflaviocouto@terra.
com.br

Maria de Lourdes de Melo Baeta


• Psicanalista. Psicóloga. Mestre em Ciências da Saúde da Criança e
do Adolescente pela U FMG. Faz clínica psicanalítica em uma UTI
neonatal do Grupo Neocenter, em Belo Horizonte-MG. Endereço
eletrônico: m lbaeta@terra.com.br

Maria do Carmo Borges de Souza


• Professora Adjunta. Doutora da UFRJ. Diretora de G&O Barra
- Reprodução Humana-RJ. Vice-presidente da Rede Latino­
Americana de Reprodução Assistida. Endereço eletrônico:
mariadocarmo@cmb.com.br

Marisa Decat de Moura


• Psicóloga. Psicanalista. Coordenadora da Clínica de Psicologia e
Psicanálise do Hospital Mater Dei, em Belo Horizonte. Coordenadora
do Curso de Pós-GraduaçãoLatoSensu. Especialização em Psicologia
Hospitalar pela Universidade FUMEC. Membro correspondente da
Federação Europeia de Psicanálise - FEDEPSY. Endereço eletrônico:
marisadecatm@uol.com.br
Mônica Assunção Costa Lima

• Psicóloga do Hospital das Clínicas da UFMG, há quatro anos


desenvolve trabalho de assistência e pesquisa no N úcleo
de Investigação em Anorexia e Bulimia. Doutora em Teoria
Psicanalítica pela U F RJ. Professora da PUC-MG. Endereço
eletrônico: aclimamonica@gmail.com

Raul Albino Pacheco Filho

• Psicólogo. Psicanalista Membro da Escola de Psicanálise dos


Fóruns do Campo Lacaniano do Brasil (EPFCL - Brasil) e do Fórum
do Campo Lacaniano de São Paulo (FCL - SP). Professor Titular
da Faculdade de Psicologia da Pontifícia U niversidade Católica
de São Paulo (PUC-SP). Coordenador do Núcleo de Pesquisa
Psicanálise e Sociedade do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Psicologia Social da mesma Universidade (inscrito no Diretório
dos Grupos de Pesquisa no Brasil - C N Pq). Endereço eletrônico:
raulpachecofilho@uol.com.br

Rosa Carla de Mendonça Melo Lôbo

• Psicóloga clínica. Pós-Graduada em Psicologia Hospitalar pela


Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas
da Faculdade de M edicina da U niversidade de São Pau lo (ICHC/
FM USP). Psicóloga e coordenadora do Serviço de Psicologia da
Santa Casa de M isericórdia de Maceió (SCMM). Candidata em
formação psicanalítica pelo N úcleo Psicanalítico de Maceió,
patroci nado pela Sociedade Psicanalítica do Recife (SPR), fi liado
à International Psychoanalytical Association (IPA). Endereço
eletrônico: jhlobo@uol.com.br
Rosely Gazire Melgaço

• Psicóloga. Psicanalista. Membro da Escola Freudiana de Belo


Horizonte/lepsi. Especialista em Psicologia Clínica, cofundadora
do Primeiro Espaço/Atenção à Primeira Infâ ncia, coautora dos
l ivros "O Porão da Família" e "Entre Atos e Laços". Organizadora do
l ivro "A Ética na Atenção ao Bebê - psicanálise saúde educação".
Endereço eletrônico: roselygazire@terra.com.br

Sheyna C. Vasconcellos

• Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Família na Sociedade Contempo­


rânea pela UCSAL. Especialista em Psicologia Hospitalar. Especialista
em Teoria da Clínica Psicanalítica (UFBA). Coordenadora do Serviço
de Psicologia do Hospital das Clínicas - Salvador-BA. Professora
da Universidade Jorge Amado. Vice-coordenadora da Residência
Multiprofissional em Saúde do HC-Salvador. Endereço eletrônico:
sheynavasconcellos@yahoo.com.br

Simone Borges de Carvalho

• Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicologia pela U FMG


- Investigações clínicas em Psicanálise. Membro da Clínica
de Psicologia e Psicanálise do Hospital Mater Dei. Endereço
eletrônico: siborgesc@oi.com.br

Tânia Simão Bacha Silva

• Psicóloga. Psicanalista. Especialista em Docência do Ensino Su­


perior. Especialista em Saúde Mental e Psicanálise. Endereço
eletrônico: taniabacha@g mail.com
Sumário

Prefácio . ............. . . . . . . ........... . . . . . . . . . . . . ................ .... ............ . . . . . . . . . .. . . . . . ............ . . . . . ........ 11

Apresentação .............. . . . . . ...... . . . . . . . . . . . .............. . . . ............ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .................. 17

Parte 1: Responsabilidade da PstcanáUse

1. Responsabilidade e contingência: desafios


na formação do analista ..... . . . . . . . . . ........... .. . . . . . . ............ . . . . . . . . . . . . . ........... .. . . . . 21
Jeferson Machado Pinto

2. Responsabilidade da Medicina e responsabilidade


da Psicanálise. A Psicanálise não será arrogante .. . . . ....................... 37
Célio Garcia

3. Psicanálise descafeinada . . .. . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . ......................... . . . . . . . . . . . . ............. 45


Guilherme Massara Rocha

4. A prática médica, a "hipermodernidade"


e o paciente do SUS . . . . . . .... . . . . . . . . . ............................ ......... . . . ......... ........... . . . . 55
Raul Albino Pacheco Filho

5. O destino da anatomia . . . . . . .................... . . . . . ........... .... . . . ...... . ......... . . . . . ....... 65


/zabel Haddad Marques Massara

6. Melancolia: interessante, instigante e perigosa . . . . . . . ....... . . . .. . . ......... 83


Rosa Carla de Mendonça Melo Lôbo

Parte 2: Clínica

7. O psicanalista à altura do seu tempo?


Respostas da Psicanálise ao chamado médico . . . . .. . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Marisa Decat de Moura
8. A presença do psicanalista no hospital geral:
sua escuta e suas intervenções . . . . . .. . . . . . . . . . . .. . . . ..... . . . . .. . . . . . . . . . . . 111
Simone Borges de Carvalho e Luis Flávio Silva Couto

9. "Fora do protocolo": intervenção psicanalítica


em situação de urgência . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . 133
Glauco Batista

10. Anorexia: um sintoma da puberdade ............. .. ....... ........ ..... . .. . . 143


.. . . . .

Mônica Assunção Costa Lima

11. Função paterna na UTI neonatal: o empuxo à mãe diante


do encontro traumático com o mais além do pai . . . ... ... ...... . .. . . . . 157
Maria de Lourdes de Melo Baeta

12. Um berço vazio . . . . . . .. . . . . ............ .. ......................................... ................. 171


Rosely Gazire Melgaço

13. O paciente diabético: a doença como metáfora


(ou uma vida nada doce) . ......................................................... . 181
Leticia Rocha

14. Tempo e corpo na hipermodernidade ... . . . ... ........ . ...... . ...


... ............ 189
Tânia Simão Bacha Silva

15. O Inconsciente não é light - consequência


e responsabilidade na cirurgia bariátrica . . . . . . . . .. . . . . . . .. . . . . . . . .
. . ... . . . . . ... 199
Sheyna C Vasconcellos

Parte 3: PsicanáUse e Conexões

16. Reprodução assistida, ciência e sociedade:


a pluralidade cultural e os indivíduos . . . . . . . . .. . . . . . .. . . .. . . .. . . . . . . .. . . . . . .. . . 211
Maria do Carmo Borges de Souza
Pre.fácia

A organização de um colóquio acerca do tema da responsabili­


dade do analista advém de uma interlocução, que teve lugar em Belo
Horizonte, no ano de 2007, com o colega Serge Lesourd, da Universi­
dade de Estrasburgo. Dura nte uma conferência na U niversidade Fede­
ral de M inas Gerais, o professor Jeferson Machado Pinto interpelaria
Lesourd acerca da responsabilidade da Psicanálise nas formas de so­
frimento psíquico da contemporaneidade. No cerne das manifestações
psicopatológicas de nossa era - que, a despeito de sua variedade e par­
ticularidades, trazem a marca da ruína dos ideais coletivos, da prolife­
ração das demandas de gozo patrocinadas pelo capitalismo tardio e de
um sofrimento de indeterminação, solidário da depreciação ideológica
acerca das significações metafísicas da natureza e da natureza humana
- não seria possível entrever a sombra da crítica freudiana da cultu ra?
Não teria Freud engrossado as fileiras daqueles que, na aurora do sé­
culo XX, atacando a consistência doutrinária dos discursos da moral vi­
toriana, teriam contribuído para a formação de um mundo desprovido
de discursos regu ladores, desertado de referências para o pensamen­
to e para a ação moral e l ivrados, portanto, à anomia, ao hedonismo
e ao desolamento? Ali se delinearia, então, u ma primeira versão das
indagações a respeito da proposição "responsabilidade do analista":

11
Psicanálise e Hospital

Qual a responsabilidade da Psicanálise nas configurações subjetivas e


sociais que o mundo conheceria a partir do pós-guerra? Quais seriam
as matrizes de sua implicação no advento, para utilizar a expressão de
Weber, de um "mundo desencantado"?
Nessa ocasião, o professor Lesourd argumenta que a Psicanálise
teria deixado como saldo para a reflexão antropológica contemporâ­
nea duas proposições fundamentais. A primeira delas referente ao fato
de que a pulsão é aquilo que fundamentalmente se satisfaz, ou que
mira a satisfação na pluralidade contingente de objetos que lhe são
disponibil izados. E a segu nda, não menos i m portante, de que a Psica­
nálise teria demonstrado a impossibilidade da satisfação cabal dos ape­
los pulsionais. Tanto em Freud quanto em Lacan poderiam-se recolher
apontamentos acerca do fato de haver sempre, no âmbito da exigência
de satisfação das pulsões, um resto, um resíduo, uma i mpossibilidade
estrutural do gozo absoluto, mesma condição para o advento do desejo
como uma experiência ética. Para Serge Lesourd, contudo, no esteio do
ideário do capitalismo tardio, o que se pode constatar é um convenien­
te recalcamento dessa seg u nda proposição, e que coexiste com a eleva­
ção da primeira delas quase que à condição de lema. O que poderia ser
então traduzido pela constatação de que, ideologicamente convenci­
dos de que não há barreiras quaisquer que se i nterponham às aptidões
de gozar, e sob a batuta do mandamento liberal de servir-se à exaustão
da mercantilização dos modos e dos objetos de satisfação pulsional, a
isso, se consagram tenazmente os sujeitos e as coletividades de nossa
era. E isso, até que a irrupção do sintoma lhes traga, de volta, tempera­
da em sofrimento, a lembrança dessa segunda proposição.
Diferentemente do que se fazia ouvir a partir do d ivã do criador
da Psicanálise, o sintoma em sua versão contemporânea não parece
tanto mais responder à função de cifrar uma satisfação pulsional recal­
cada a partir das injunções categóricas de um supereu hipermoral. Ao
contrário, o sintoma agora se revela como o obstáculo que se interpõe
diante da execução cabal de todas as aptidões para o usufruto do gozo,
instigadas, diga-se de passagem, por uma versão não menos severa do
supereu. "Goza"! Se outrora essa era a voz que se discernia no i nterior

12
Prefácio

do ruído produzido pelo próprio sintoma, agora ela advém de alhures


...:: sem véus, mais ainda obscena - e encontra no sintoma a barreira que
a mortece sua reverberação ensurdecedora. O que teria, então, a Psica­
nálise a ver com isso? Ou, levando a questão mais adiante, qual a sua
responsabilidade nisso?
Os artigos reu nidos neste livro têm em comum o propósito de
não recuarem diante da elucidação desse cenário. Pois, se, por um lado,
é i negável que a envergadura crítica das obras de Freud e Lacan ten­
sionaram a consistência da racionalidade ocidental a partir, respectiva­
mente, da i ncidência das noções de inconsciente e gozo, contribuindo
inegavelmente para a assimilação de uma noção de subjetividade em
conflito, clivada, descentrada; por outro lado, a Psicanálise, justamente
por encontrar seu fundamento na aspiração de dar lugar a u ma expe­
riência ética, não deve, portanto, ser confundida com um discurso re­
volucionário. Não é responsabilidade da Psicanálise atribuir a si própria
a m issão de apresentar-se como a via régia para a transformação do
panorama social com base em um juízo valorativo que lhe conferiria
os privilégios do pathos da verdade, da justiça, do progresso ou do
esclarecimento. A Psicanálise não é responsável por vicissitudes e trans­
formações da subjetividade e seus modos de expressão contemporâ­
neos e nem sequer deve responder do lugar da instância reguladora e
privilegiada de sua reconfiguração. Sua função é menos revolucionar
do que subverter. Subverter a relação que os sujeitos mantêm com as
injunções d iscursivas e modalidades de satisfação que ostentam, tendo
como bússola o advento do desejo e a confrontação com a perda ne­
cessária de gozo à qual ele está indissoluvelmente conectado.
O cenário-causa desse livro são os desafios expostos pela pre­
sença do dispositivo analítico no Hospital Geral. Cenário cingido pelo
atrito entre o apelo i nexorável do sujeito que se confronta com as mi­
ragens da finitude que o adoecer lhe i m põe e os rigorosos protocolos
da ordem médica. Cenário marcado, portanto, pela deflagração de u m
gozo despropositado, i nconveniente e, m u itas vezes, rad icalmente con­
traposto às direções do tratamento médico. No hospital, o psicanalista
recolhe e maneja a i rrupção da subjetividade i nconsciente, o que lhe

13
Psicanálise e Hospital

confere d istinção em u m corpus clínico multifacetado, mas reunido sob


os auspícios do discurso da ciência. Os efeitos de gozo que o adoe­
cimento e o trauma i m põem são justamente aquilo que faz barreira
aos propósitos técnico-instrumentais da racionalidade do dispositivo
méd ico. Nada pior do que o advento de um sujeito para turvar a ob­
jetividade protocolar do exercício da Medicina contemporânea. Eis o
psicanalista, então convocado a mediar essa não-relação entre mé­
d ico e paciente. As particularidades de sua inserção; os i mpasses, os
caracteres específicos dos diferentes serviços de assistência à saúde,
as exigências de formulação de u ma racionalidade sobre fenômenos,
tais como: a ciru rgia bariátrica ou a reprodução assistida, dentre ou­
tros aspectos da presença do a nalista no hospital são objetos dos
vigorosos a rtigos aqui reu nidos.
Mas, na medida em que a questão da responsabilidade do ana­
lista diante da ordem médica e do d iscurso da ciência consiste em um
capítulo de uma questão mais ampla, a saber, aquela da responsabi­
lidade da Psicanálise na contemporaneidade, outros temas são tam ­
b é m debatidos em artigos deste l ivro: o estatuto da contingência n a
teoria e na práxis d a Psicanálise; a política d a Psicanálise n o debate
clínico contemporâneo; aspectos fronteiriços entre o discurso jurídico e
a Psicanálise; novas contribuições às teses psicanalíticas sobre o corpo,
a feminilidade e os transtornos do afeto. Dividida em três partes - a
responsabilidade da Psicanálise; a clínica psicanalítica; a interlocução
da Psicanálise - a obra se faz capaz de, tomando como eixo o debate
Psicanálise/Medicina, não descuidar dos demais aspectos que cingem a
circunscrição dos desafios da Psicanálise no mundo contemporâneo.
Em sua conferência recente, Claude Schauder nos lembra de um
apontamento de Lacan, em 1956, acerca de um futuro no qual os ana­
listas poderiam vir a exercer na cultura a função de "termo de referên­
cia". Os organizadores dessa coletânea, Glauco Batista, Marisa Decat
de Moura e Simone Borges de Carvalho, desempenham na Clínica de
Psicologia e Psicanálise do Hospital Mater Dei um tra balho cuja sofis­
ticação, repercussão e excelência são reconhecidamente u ma referên­
cia na Psicologia hospitalar brasileira e cujos ecos se fazem reconhecer

14
Prefácio

também no exterior, materializando com seu trabalho e agora com mais


essa publicação a assertiva de Lacan, em sua pretensão de sustentar o
lugar do analista não só no hospital geral mas também na cultura e na
racionalidade de nosso tempo.

Guilherme Massara Rocha


Brumadinho, setembro de 2009.

15
Apresentação

Os trabalhos publicados neste l ivro foram produzidos a partir


do encontro que nos levou a pensar "a responsabilidade da Psicaná­
lise na modernidade", o IV Fórum Internacional Psicanálise e Hospital,
correalização da Clínica de Psicologia e Psicanálise do H ospital M ater
Dei (Brasil) e da U niversidade de Estrasburgo (França). Para apresentar
esta obra, entretanto, faz-se necessário recorrer a algo anterior, u ma
história de encontros e parcerias com psicanalistas das mais d iversas
regiões do Brasil e da França.
Desde o início das atividades da Clínica de Psicologia e Psica­
nálise no Hospital Mater Dei, a experiência clín ica tem nos mostrado
o quão fundamental é para o analista, em u ma instituição hospitalar, a
formação, a transmissão da Psicanálise e a formalização teórica sobre
o lugar e a função de analista no contexto do hospital, sendo a nossa
d i reção de trabalho definida a partir da clínica e do que ela exige do
analista. Visando sustentar essa direção iniciada em 1978, realizamos
em 2003 o I Fórum Internacional Psicanálise e Hospital, com a presença
da psicanalista Ginette Rai m bault, quando pensamos sobre a criança e
a clínica do real.
Prossegu i ndo com o debate de questões que colocam a práxis
do psican alista diante dos desafios clínicos, teóricos e institucionais,

17
Psicanálise e Hospital

vimos a necessidade de construir outros laços. Foi quando formaliza­


mos a parceria com a U niversidade de Estrasburgo - até então Univer­
sidade Louis Pasteur -, representada pelo Professor Serge Lesourd. Esse
encontro nos levou a real izar o 11 e o 111 Fóruns Internacionais Psicanálise
e Hospital, nos anos de 2005 e 2007, respectivamente. Ao final do úl­
timo 111 Fórum, foi real izada a sessão com o d ispositivo fil rouge, onde
reflexões sobre os debates ocorridos nos d ias do evento sustentaram a
abertura para novas direções de trabalho, sendo definido então o tema
do IV Fórum Internacional Psicanálise e Hospital: a responsabilidade da
Psicanálise na modernidade.
Os tra ba l hos contidos neste l ivro são, portanto, frutos da i n ­
terlocução entre p rofissionais de d iversas á reas do conhecimento
acerca da responsa b i l idade da Psicaná lise na sociedade contempo­
rânea, "caracterizada pela d o m inação do l i bera l ismo sobre os modos
de o rganização do mundo e pela presença do gozo pleno como pro­
pósito da vida h u mana".

Glauco Batista

18
RESPONSABIUDADE E CONTINGÊNCIA:
DESAROS NA FORMAÇÃO DO ANAUSTA1

Jeferson Machado Pinto

O inesperado é uma das formas mais delicadas


de prazer e a danação da busca a forma mais
refinada de infelicidade.
(M. Schneider)

O tema da responsabilidade foi introduzido por Lacan no mo­


mento em que se perguntava pelo estatuto do sujeito fornecido pelo
estrutural ismo. Para ele, o conceito de sujeito implica a responsabili­
dade da conduta, o que envolve, necessariamente, a questão ética da
constituição do desejo tal como a Psicanálise postula. A introdução
dessas duas categorias - sujeito e responsabilidade - ressaltou, então, a
dimensão ética que diferencia os pressupostos da Psicanálise daqueles
do d iscurso da ciência. Mais especificamente, trata-se de uma dimen­
são que d iferencia a Psicanálise das proposições objetivantes da Psi­
cologia do ego e, mesmo, do estrutural ismo que prescinde da ideia de
sujeito. Aquelas categorias, pertencentes mais ao domínio da Filosofia
e do Direito, são fundamentais para empreender tal d istinção, em razão
da i ntrínseca relação da Psicanálise ao campo da ciência.

1 Para Marisa Decat

21
Psicanálise e Hospital

A ciência moderna e a Psicanálise

Sabemos que a instituição da ciência moderna foi uma das con­


dições de possibilidade para que Freud formulasse o inconsciente como
objeto de conhecimento. Sabemos, ainda, que Freud, cientista e clíni­
co da Neurologia, acatou o ideal de ciência da época como horizonte
para o campo de saber que havia criado. Assim, a Psicanálise é filha da
ciência e sempre esteve submetida a um ideal científico exterior à sua
práxis, baseado no pressuposto do determinismo dos fenômenos, na
capacidade de construir uma escrita que os descrevesse de modo cada
vez mais preciso e, mais ainda, que fosse capaz de sustentar uma clínica
que produzisse alívio no sofrimento dos pacientes, isto é, Freud preten­
dia fundar uma disciplina que se tornasse um campo de conhecimento
que compartilhasse os objetivos de observação, previsão e controle das
doenças psíquicas. Mas, rapidamente, Freud percebeu que atuar como
um médico para resolver o que ele denominou "problema da divisão
da consciência" não resultava na eficácia pretendida. Por mais que sua
teoria fosse razoável e que ele tivesse um bom domínio de sua téc­
nica, a transformação do paciente em objeto de seus conhecimentos
não produzia efeitos. À medida que prosseguia em seus esforços, Freud
constatou que seu objeto era apenas o conhecimento e não o próprio
paciente, especialmente porque a porção inconsciente daquela d ivisão
da mente é ativa e determinante dos sintomas. Para obter os efeitos
pretendidos, o resultado depende, então, do engajamento do paciente
na resolução de seus problemas, isto é, depende de sua coragem em
ser sujeito, e não objeto de um saber que lhe é exterior. Assim, ao dar a
palavra às histéricas, Freud constatou que o paciente é que deve �ia res­
ponsabilizar-se sobre a cura e, para tanto, produzir o saber que pudesse
alterar sua posição subjetiva. Caberia ao analista a responsabilidade de
sustentar o trabalho empreendido pelo paciente.
Deste modo, as construções feitas por qualquer paciente em
análise são formulações simbólicas que podem ser recusadas do mes­
mo modo como se faz na construção de uma teoria. Isso ocorre em
ambas as situações à medida que a clín ica mostra as l i mitações daque-

22
Responsabilidade e contingência: desafios na formação do analista

las construções para abarcar os fenômenos observados. Para a ciência,


uma afirmação q ue não pode ser refutada não pode ser considerada
vál ida. A ciência constrói, assim, um saber objetivado, que se revela
por si mesmo, que dispensa qualquer movimento i nterpretativo e que
pode ser a lterado continuamente. Uma fórmula científica não q uer
d izer nada, não é i nterpretável por ser o próprio real pretendido
pelas pesquisas. Ela deve apenas ser l ida e, por isso, d izemos que
a ciência "forc l u i" o sujeito. Se uma formu lação s i m bó l ica não pode
ser rejeitada, então o que ela revela já ca rrega a verdade pretendida,
independentemente da presença de q u a l q uer pesqu isador. E, se ela
não puder ser rejeitada, é porque já foi tudo escrito. Nesse caso,
estaríamos no campo da rel ig ião, em que a escritura já produzida
se torna sagrada, com seus efeitos de verdade, e nada precisa ser
acrescentado, apenas decifrado. Já o saber produzido pelo d iscu rso
histericizado em u m a a n á lise é um saber apa ixonado, mas demanda
i nterpretação exatamente porq ue retorna sobre um sujeito que se
encontra em u m a posição (a histérica) que exclui a causa do próprio
desejo. Podemos d izer que o anal isante vive o que Schneider q uali­
ficou, na epíg rafe deste texto, de danação da busca de u ma formu la­
ção "científica" sobre seu sofrimento, o que, paradoxalmente, acaba por
sustentar sua infelicidade.
Ao criar o inconsciente como objeto de estudo, Freud, inevita­
velmente, revelou os pressupostos da ciência moderna implícitos em
sua empreitada. Entre esses, o que nos i nteressa de modo especial é o
sujeito esvaziado de qualidades e deslocado de uma essência em favor
da a bsoluta contingência (TEIXEIRA, 2000). O i nconsciente seria uma
estrutura cujos elementos seriam impregnados de significação pelo dis­
curso do Outro. Assim, os significantes dos discursos exerceriam uma
mestria inconsciente, criando u ma essência imaginária, ou mesmo uma
personalidade, pelos significados supostos pelo sujeito. Até então, o
sujeito parece não perceber que o Outro não é completo e não util iza
possíveis brechas para inovações em seu modo de agir. Age comanda­
do por uma mestria dos significantes que se afigu ra incontornável. Mas
trata-se de um engano compreensível, afinal até mesmo Lacan apostou,

23
Psicanálise e Hospital

no i nício de seu retorno a Freud, na possibilidade de o significante ser a


ú nica fonte a definir as identificações do sujeito.
Embora não seja a fonte exclusiva, o sujeito depende, entretanto,
dos significantes que determinam os laços sociais de cada época, o que
faz com que a porção do inconsciente estruturado como linguagem
não seja a mesma em todos os momentos da civilização. A ausência de
qualidades intrínsecas à sua condição de sujeito, a própria estrutura da
l inguagem e a forma como o corpo é enlaçado pela fala do Outro são
alguns dos fatores que permitem ao sujeito a atribuição de valor signi­
ficante às palavras. Esse valor significante pode, então, alterar-se para
d iferentes sujeitos em diferentes contextos ou épocas. Os significados
resultantes dependem, então, de encontros, de contingências, não são
dados a priori. Assim, a ideia de essência dada pela estabilidade dos
significados é coerente com a de indivíduo, mas funciona como obstá­
culo à presença de um sujeito agente de uma história e responsável pe­
los seus desejos. É contínua a responsabilidade de o analista questionar
a política i mposta pela mestria dos significantes que define os modos
de gozo adequados à moral de cada época.
A Psicanálise quer, assim, arguir qualquer obstáculo que tampo­
na a causa do desejo e i m pede o surg i mento daquele sujeito, fazendo
supor u ma essência qualquer. Ao contrário, aquilo que se concebe ima­
ginariamente como essência ou qualidade subjetiva seria uma cicatriz
do contingente. (MILNER, 1996, p.52)

O real como impasse na formalização

Por outro lado, a Psicanálise, mais do que qualquer epistemolo­


g ia, tem nos ensinado m uito sobre o discurso da ciência. Por exemplo,
podemos afirmar que, enquanto a ciência parte, por princípio, de uma
i!lfinita possibilidade de o mundo ser sempre outro e, a partir daí, i nsti­
tui o necessário pela l iteralização, a Psicanálise traz, como equivalente a
esse princípio da ciência, que o encontro ao acaso com o Outro produz

24
Responsabilidade e contingência: desafios na formação do analista

a i nscrição corpórea do gozo sob a égide da letra. A literalização é o


procedi mento formal da ciência e, para nós, é o modo como o signi­
ficante se torna objeto, o litoral entre representações e pulsões, o ele­
mento que dá consistência ao real para aquele sujeito particular. Freud
já havia demonstrado (veja "O Projeto" ou a "Carta 52", por exemplo}
como o real do sujeito só pode ser concebido após essa l iteralização.
Ele realizou esse empreendimento e subverteu sua própria
pretensão científica, ao mostrar como o trauma revela o i mpacto da
constituição do aparelho psíqu ico pela contingência do encontro com
o Outro. O trauma é um produto dessa contingência e mostra que o
i mpacto do encontro foi superior à capacidade do aparelho psíquico
de coordenar as pulsões ativadas. O trauma revela, então, que há res­
tos do procedimento de escrita do aparelho psíquico. Quando não há
excedente pulsional, isto é, quando as representações - o simbólico
- se ligam (ou inscrevem} às pulsões, não há i m passe nem trauma. As
representações fluem em d i reção à descarga de energia. Entretanto,
algo sempre escapa e resiste à formalização, e é esse resto pulsional
que revela a castração do Outro, ou seja, o excedente pulsional revela
que a maneira de o Outro definir o materia l i nconsciente não é con­
sistente e plena. O analista conta com esse resto pulsional, pois é este
que pode defi n i r o destino dos significantes na vida do sujeito. Será
essa parte imprevisível da constituição subjetiva que poderá surgir
com mais evidência após o processo de análise e mover o sujeito,
deslocando-o de i m posições pad ronizadas. No começo de u ma análi­
se, o Outro a parece com mais consistência e é mais evidente o papel
da satisfação pulsional na definição dos significantes a serem d itos.
Assim, a associação l ivre não é tão l ivre assim, porque o modo como o
analisante descreve sua realidade é definido pela inércia da satisfação
pulsional. A fala do paciente em análise é conduzida, então, pelo gozo
q u e o sintoma envelopa e que a análise pretende destitu ir. Porém, a
associação l ivre continua a ser o caminho, a regra fundamenta l, já que
ela poderá favorecer o prazer inesperado da contingência, ao dar chan­
ce de que u m significante cesse a insistência da repetição e crie uma
nova literalização.

25
Psicanálise e Hospital

lacan levou ao limite a tentativa de dar conta desse resto ao re­


fazer a teoria de Freud e mostrou como o real do sujeito se revela como
fuga a essa formalização, seja na teoria, seja na análise, impedindo que
a noção de sujeito se reduza ao que se repete. Esse resto é o que per­
m ite a i nvenção a partir da singularidade dos efeitos da análise para
cada sujeito. Além disso, ele: (i) castra o analista da posição de saber;
(ii) i mpede a análise de ser u ma mera técnica científica pela redução do
sujeito a um saber colocado a priori; (iii) ressalta a importância ética de
se responsabilizar pelo desejo do analista; e (iv) responsabiliza o sujeito
por suas escolhas. Assim, lacan não abriu mão da estratégia de mostrar
a impossibilidade de domesticar o sujeito pela ciência ou transformá-lo
em vítima dos significantes, adotando o próprio rigor inerente à vincu­
lação entre Psicanálise e ciência.
lacan demonstrou que Freud, mesmo sem ter tal projeto em
mente, acabou i m plodindo seu modelo de produção de conhecimen­
tos ao i ntroduzir a ética do sujeito "no coração da ciência". A teorização
de Freud, ainda que não tivesse esse i nteresse como ponto de partida,
mostrou, ao contrário das pretensões da ciência, o sujeito como o real
que resiste aos pressupostos científicos, como aquilo que escapa à lin­
guagem e mostra os obstáculos à formalização. Em outros termos, a
estratégia revelou que a causa do desejo pode ser tamponada pelos
d iscursos predominantes na cultura, i m pondo u ma alienação ao Ou­
tro. Mas, se o analista sustenta sua responsabilidade e o analisante não
sustenta o lugar de vítima, pode haver uma separação da alienação ao
Outro e u ma escolha pela qual o sujeito assume sua responsabilidade.
A estratégia de Freud acabou por revelar também a necessária
ética para a revelação do i nconsciente. Como essa instância psíqu ica se
mostra pelo erro, pelas falhas no d iscurso, sua revelação depende de
alguém a escutar. Caso contrário, será considerado apenas erro no uso
de palavras, deterioração de neurônios etc. Com sua formulação, Freud
colocou chistes, atos falhos, sintomas, todos, no mesmo plano, sujeitos
às mesmas determinações. Só que o inconsciente, apesar de sua estru­
tura lógica e coerente, não é um objeto observável, estável e de manejo
evidente. Ao contrário, sua manifestação é fugaz e depende do desejo

26
Responsabilidade e contingência: desafios na formação do analista

de alguém que marque sua presença e seus efeitos. Além disso, o ob­
jeto inconsciente, por ser dotado de significados diferentes atribuídos
aos significantes pelos d iferentes sujeitos, e que variam e m d iferentes
épocas, torna cada análise única, singular e dependente do desejo do
analista. Um analista é, portanto, responsável pelo processo de cada
analisante e deve se colocar à altura das manifestações subjetivas de
cada época. Se o discurso que exerce mestria sobre o sujeito muda a
todo instante, é i mpossível para u m analista seguir um manual de re­
gras de leitura do i nconsciente. Cabe apenas ser responsável pela forma
como conduz a análise naquele momento simbólico da humanidade.

A política da Psicanálise em função do modo


de manifestação do discurso dominante

Inicia l mente, a montagem teórica de Freud mostrou de que for­


ma o saber pode ser eficaz na eliminação dos sintomas: por meio da
decifração dos elementos simbólicos que mobilizam a sexualidade no
i nconsciente. O saber sobre a sexualidade - pelo Complexo de Édipo
- foi a sustentação teórica do ato analítico, decorrente, por certo, da
vertente caracterizada pela filiação da Psicanálise à ciência, ou seja,
da possibilidade de saber dominar o real do sujeito. O impacto d esse
modelo foi tão g rande e produziu resultados tão espetaculares que se
pensava estar toda a subjetividade reduzida ao Complexo de Édipo.
A Psicanálise havia dado certo como ciência! Foi o tempo do famoso
"Freud explica". O passado era submetido a um rigoroso escrutínio e
esperava-se u m esgotamento das questões perturbadoras, pelas su­
cessivas i nterpretações. O sentido fornecido pelo analista se ancorava
na lógica da rede de representações e pulsões, determinantes dos atos
falhos, sonhos e sintomas, porque tudo que se acha escrito e se repete
é passível de decifração. ':4 interpretação deve se prestar para satisfazer
o entrepréstimo", d isse Lacan na Televisão (LACAN, 1974/1993) para ca­
racterizar o empréstimo de sentido dado pelo analista a um saber que

27
Psicanálise e Hospital

parecia não ter sentido algum. Esse esquema caracterizou a "época de


ouro da Psicanálise", e talvez tenha dado certo porque os laços sociais
eram baseados em um simbólico que sustentava "semblants" mais ri­
gidamente definidos. As relações eram estrutural mente mais vertica­
l izadas, o gozo proibido e real izado secretamente, com altas doses de
pudor e h ipocrisia.
Esse período da Psicanálise mostrou, tam bém, que a decifração
da repetição enfatiza a mestria dos significantes, exatamente o que ela
pretende deslocar. Ao i ntroduzir outros sentidos para as repetições, o
analista i ntroduz os mais significantes que podem, contrariamente ao
pretendido, fortalecer o que se quer modificar e fomentar "a danação
da busca". Assim, a interpretação pode tornar-se iatrogênica, isto é,
ser uma solução que causa o problema. Consequentemente, longe de
questionar o laço social, a ênfase na "vertente do sentido tende a reen­
ganchar o sujeito no sintoma social". (CARVALHO, 2008)
Há ainda, pelo menos, dois outros fatores a serem considerados.
Como ocorre em todo o campo de saber, há uma assimetria entre a
capacidade de entender o passado, o que está escrito, o que não cessa
de se repetir; a de prever o futuro; o que está sujeito às contingências e
que, por isso mesmo, não se encaixa no que já está escrito e pode até
exigi r muda nças nas formulações acabadas. Dependendo das contin­
gências, outras literalizações podem ocorrer e, posteriormente, com o
trabalho de análise, tornarem a ser refeitas. A posição ética de respeito
do analista com a singularidade do paciente impl ica fazer com que este
assuma a responsabilidade, inclusive pelo passado que continua a eco­
ar no tempo presente da transferência. Se um sofrimento se mantém,
qual a cumplicidade do paciente com a situação? Inapetência em alterar
o jogo das determi nações? Conformismo à sua alienação ao Outro?
Satisfação masoquista? Ou todas essas?
O segundo fator que objeta o papel da interpretação se refere ao
fato de que uma representação ser i nconsciente não significa que seja a
causa de algo. Ao contrário, aquela representação tam bém foi causada.
Freud já havia percebido a dimensão pulsional do inconsciente, ao afir­
mar que nem tudo que pertence a essa i nstância é recalcado, isto é, não

28
Responsabilidade e conting�ncia: desafios na formação do analista

é todo o material do i nconsciente que pertence ao registro simbólico.


Essa perspectiva levou Lacan a perceber que o próprio inconsciente já
é u ma resposta, já é um trabalho ou u ma elucubração de saber, ou seja,
sob a forma de sonho, associação l ivre ou de chiste, o inconsciente já
é uma tentativa simbólica de decifrar uma causa enigmática. Em outras
palavras, a causa do sujeito deve ser suposta, mas ela não é passível de
esclarecimento. Esse é o ponto maior de impasse na formalização.
Por isso, o analista teve de se deslocar do lugar de intérprete
para o de alguma coisa que lembre a causa que não se deixa decifrar. A
d imensão contingente do desejo como o que decide u ma nova possi­
bilidade para o sujeito foi sendo descortinada a partir da insistência do
que se repete.
A adesão restrita a um determinismo que reduz o sujeito a u m
objeto de u m saber trouxe complicações para a Psicanálise, tais como:
a conceituação da transferência como um comportamento objetivado
que se generaliza da i mago paterna para a fig u ra do analista, por exem­
plo (PINTO e ROSA VIEIRA, 2009). Essa postura trouxe consequências
g raves para a condução das análises, pois tal objetivação da transfe­
rência radicaliza a noção de que a Psicanálise deve continuar perse­
guindo os ideais de u ma ciência externos a ela mesma e desconsidera
sua especificidade no campo epistêmico. A Psicanálise deve encontrar
em seu próprio campo seus princípios de cientificidade, porque eles
devem ser coerentes com seu objeto e com sua forma de produção de
saber (MILNER, 1996), e não definidos de modo extrínseco e i mpostos
a qualquer d isciplina do campo de conhecimento. Além disso, pensar
de modo estrito na determinação i nconsciente permitiu a adoção da
i rresponsabil idade. Caso o inconsciente seja a causa e trate-se de u m
saber de q u e não s e sabe, pode-se afirmar q u e n ã o s e é responsável
por nada que se d isser ou fizer? Ao contrário, d izemos que, se há su­
jeito e a Psicanálise pretende que ele verifique seus desejos e o modo
como os sustenta, está colocada em relevo u ma ética que enfatiza a
responsabilidade da posição subjetiva. Não é possível o argumento: "Fiz
tal coisa, mas foi inconscientemente" ou "Não queria fazê-lo, desculpe­
me, foi i nconsciente" (FORBES, 2005). A situação é mesmo de angústia

29
Psicanálise e Hospital

e mal-estar: existem o inconsciente e o objeto pulsional, que excede os


limites simbólicos do inconsciente e funciona como causa do movimen­
to do aparelho psíquico. Exatamente porque foge da ação simbólica,
imaginaria, ou mesmo dos medicamentos, não é possível controlar essa
causa do desejo. Da constatação de que nada do que a ciência oferece
funciona para controlar a causa do desejo, decorre a responsabilidade
pela nossa posição de sujeito, dependente apenas de nós mesmos.
Hoje, no entanto, parece haver uma pulverização do peso do lu­
gar simból ico e a consequente perda de força dos elementos recalca­
dos a serem trazidos à luz. O simbólico parece mais raso, e os elemen­
tos pulsionais parecem esta r mais a céu a berto; o s i m ból ico se tornou
mais técnico, mais instrumentalizado, e as relações entre as pessoas
se tornaram mais pragmáticas; a sociedade tornou-se mais horizon­
talizada, e as tecnologias criam guetos e novos pad rões subjetivos
cotid ianamente; há o "desmoronamento do corpo face às descobertas
científicas", como afirmou Orlan, a rtista contemporânea em seu Mani­
festo da Arte Carnal; o corpo está mercantil izado, e tra nsformou-se em
doença a ideia de uma saúde e de um corpo perfeitos; a su bjetividade
torna-se cada vez mais medicalizada, já que há remédios para tudo; o
d i n heiro se tornou critério de excelência subjetiva, e o consu mismo,
uma terapia que compensa qualquer fracasso. A responsabil idade do
a na lista se d i rige cada vez mais para a "redução do hiato entre o que
vive o sujeito e o que não pode significar e (.. .) tentará reduzir a tensão
entre esses dois pontos (...) (o analista) terá que permitir a palavra onde
habita apenas a mudez pulsional': (SASSAROLI, 2009, P.108) ou seja,
vivemos um momento de i mpotência ou até i mpossibil idade do uso
da decifração pelo analista.
Se há um predomínio da mudez pulsional e o gozo funciona de
modo acéfalo, o analista se encontra em uma situação de introduzir o
simbólico e não seu ponto de fracasso, por exemplo, por meio da intro­
d ução de questões relativas ao romance familiar.

30
Responsabilidade e contingência: desafios na formação do analista

A solução subjetiva para o impasse na formalização

Afirmamos que Freud mostrou que a Psicanálise se distancia da


prática científica, ao reivindicar a ética desse discurso que pergunta
pela singularidade de cada sujeito. Esse que surge não pelo saber, mas
pelo fracasso do saber em apreendê-lo, pois, como espero ter deixado
claro, o sujeito não é representável, ele apenas se desdobra na lingua­
gem. Não podemos, contudo, deduzir dessa situação que o saber, ou
uma teoria válida para todos, deva ser desconsiderado. Não existem
condições de trabalho sem os universais, os maternas, os aforismos, as
regras de funcionamento das estruturas etc. Caso contrário, podería­
mos trabalhar apenas como literatos preocupados com a estilística e a
poética das produções dos analisantes, com os efeitos estéticos, enfim.
Ao analista, é i mprescindível que faça uso de uma enunciação que fa­
cilite a recepção do ato analítico pelo analisante, de modo que se pro­
picie a subjetivação do real. A clínica tem mostrado que os analisantes
resolvem no próprio corpo o impasse na formalização que ocorre na te­
oria, ou seja, cada analisante mostra como as contingências do trabalho
com a linguagem permitem ao sujeito subverter e arranjar soluções que
continuam i mpossíveis no domínio lógico. A saída dos impasses com
a causa do desejo revela claramente como não podemos apoiar-nos
estritamente na vertente científica, mesmo aquela que permite localizar
o significante e seus efeitos de mestria ou o gozo que i nsiste em rea­
parecer nas queixas dos pacientes etc. Creio que esse motivo também
impulsionou Lacan a subverter sua própria ênfase no papel dos signifi­
cantes na constituição das identificações e inserir o problema do objeto
de gozo na constituição dos laços sociais. (CARVALHO, 2008)
A ética da Psicanálise fica patenteada no momento em que o
paciente resolve seus impasses ao agir em conformidade com seus de­
sejos. Esse momento deixa claro que a subjetivação do real depende
também daquela forma como a interpretação é veiculada para cada
analisante em particular, em cada contexto. Penso que a forma de vei­
cular u ma intervenção é especialmente i mportante para o analista que
trabalha em u ma instituição, embora não se trate ali de levar a termo

31
Psicanálise e Hospital

u m processo de análise. Porém, as u rgências de u ma i nstituição exigem


que o analista se coloque em sintonia fina com a maneira e com a par­
ticularidade do momento do paciente que enca minha sua demanda. Tal
aspecto será detalhado a seguir.
Assim, a i ntervenção analítica que considera as categorias de su­
jeito e de responsabilidade não é replicável como exigem os experi­
mentos científicos. Não existe reprodutibilidade nem de um paciente
para consigo mesmo quanto mais reproduzir a i ntervenção para outro:
"O que decorre da mesma estrutura não tem forçosamente o mesmo
sentido. É por isso que só existe análise do particular: não é de um sen­
tido único, em absoluto, que provém uma mesma estrutura..." (LACAN,
1973/2003, p.556)
Desse modo, o fato de sabermos estrutural mente como é o modo
de gozo e os caminhos de formação de um sintoma para um neurótico
não permite, por exemplo, que o nosso conhecimento possa servir de
referente para o sentido textual produzido em uma análise particular. O
sentido se manifesta de modo contingente pelas brechas do não-todo,
e não há maneira de real izar um tratamento padronizado ou que siga
os protocolos previamente estabelecidos. Como já enfatizamos, o sen­
tido que se manifesta na repetição foi inscrito em um dado encontro do
sujeito com a l i nguagem e pode até se assemelhar a u ma essência, mas
não é o ú nico possível. E, como também mencionamos, a decifração
não pode ser a única arma do a rsenal do psicanalista, pois ela pode dar
mais consistência ao sentido que se pretende alterar.
Mas, o analista conta com a possibilidade de se ofertar como
sinthoma, ou seja, com sua maneira única de ter resolvido os i mpasses
trazidos pelo real, para que o analisante possa reconfigura r os destinos
das pulsões que o governam.
A formação do analista é, portanto, complexa, senão i mpossí­
vel, e está especialmente complicada nesses tempos pragmáticos e
de preocupação com o valor agregado e a capacidade resolutiva das
práticas profissionais. Por exemplo, a avaliação de programas de saú­
de tem enfatizado tão absurdamente os aspectos quantitativos que os

32
Responsabilidade e contingência: desafios na formação do analista

profissionais de práticas em saúde mental temem pelo fechamento de


programas importantes. Isso porque os critérios (de ava liação) se ba­
seiam apenas em dados como número de alucinações, quantidade de
passagens ao ato, de reinternações etc., exatamente porque a política
pública é "para todos" e não se i nteressa pelo sujeito e seu trabalho
particular de subjetivação de um real não mensurável.
Mas, independentemente do contexto atual, estamos sempre
nos recolocando a questão da formação do analista a partir de uma
posição ética que considera ambos os eixos, o do universal da vertente
científica e o do singular resultante da análise de cada um. Será que,
com a imbricação dessas duas vertentes, com o sinthoma do final de
análise, o analista poderá se colocar sem a garantia do saber prévio, de
modo que se propicie que cada um i nvente sua solução para o saber
em fracasso diante das exigências do real.

O analista nas instituições

Muitos imaginam que, se a Psicanálise é o discurso que permite


a singularidade do desejo ao questionar o modo como o sujeito se
responsabiliza pelos seus atos, então as instituições deveriam ser todas
psicanalíticas. Aí reside a armadilha. A singularidade ocorre apenas se
houver brechas nos d iscursos, ou seja, se a instituição for não toda. Ela
deve apenas ser permeável à ação do discurso do analista porque, como
temos enfatizado, é exatamente diante dos fracassos da hegemonia de
um discurso que u m sujeito poderá advir, seja ele qual for. Qualquer
discurso, inclusive o do analista, se o que se faz dele é apenas cultura,
como em congressos, em escolas, na mídia etc., servirá de barreira para
a própria intervenção analítica - aquela que produz o inesperado da
singularidade do desejo. A fragmentação dos dispositivos protocolares
é o que permitirá a ação do analista. É importante ressaltar que não
se trata de destruir o Outro que impõe a hegemonia e faz funcionar o
discurso d o mestre. Não se trata, portanto, de qualificar a Psicanálise

33
Psicanálise e Hospital

de anarqu ismo. Ao contrário, como expressou Antonio Teixeira em co­


m u nicação pessoal, a "autoridade do discurso do analista se sustenta na
medida em que o Outro seja barrado e não eliminado", ou seja, o Outro
institucional deve estar a postos, mas é preciso que passe pela castra­
ção para que o desejo se apresente, porque seu saber não envolve u ma
total ização ideologicamente pretendida para o domínio do real.
Colocando o problema de modo radical, podemos dizer, para­
fraseando Lacan, que "a Instituição não existe". Para cada paciente de
um serviço de saúde mental ou mesmo de um hospital, por exemplo, a
i nstituição funcionará de modo particular, será seu Outro naquele mo­
mento em que o sujeito a procura. O próprio sujeito, com sua singula­
ridade e sua demanda, mostra que uma instituição não é consistente
em sua função e que há uma fragmentação em seus d ispositivos que
se pretendem monolítica. Olhando pelo prisma do sujeito, vemos que
não é possível para o analista trabalhar com um saber prévio ao que
funciona como Outro para o paciente. Ao contrário, será a partir da
destituição de um saber prévio à situação que o analista mostrará, em
ato, para cada paciente sua metodologia de trabal ho. E tal formação
só é possível por meio de uma prática que insiste no viés ético da res­
ponsabilização e da subjetivação dos impasses trazidos pelo saber que
produz em análise. A partir de sua Psicanálise, o futuro analista poderá,
então, subjetivar a especificidade sui generis desse método.

34
REFER�NCIAS

CARVALHO, F. F. Pragmática psicanalítica. Texto apresentado na Jornada


da Escola Brasileira de Psicanálise, agosto de 2008.

FORBES, J. Provocações psicanalíticas. Texto avulso, 23/05/2005.

LACAN, J. Televisão (1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos


(1973). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

MILN ER, J. C. A obra clara - Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1996.

PINTO, J. M. e ROSA VIEIRA, M. O caso Marylin Monroe: evidências da


forclusão do sujeito e do ato analítico. Ágora - Revista de Psicanálise, no
prelo. Rio de Janeiro, 2009.

SASSAROU, S. Tiempo y u rgencia - psicoanálisis aplicado-deseo dei


analista. In: SOTELO, I. (comp.). Perspectivas de la clinico de la urgencia.
Buenos Aires: Grama Ediciones, 2009.

TEIXEIRA, A. Sujeito sem qualidades, ciência sem consciência. ln: TEIXEIRA,


A. e MASSARA, G. (Orgs.) Dez encontros - Psicanálise e Filosofia: o futuro
de um mal-estar. Belo Horizonte: Editora Opera Prima, 2000.

35
RESPONSABIUDADE DA MEDICINA
E RESPONSABIUDADE DA PSICANÁUSE.
A PSICANÁ USE NÃO SERÁ ARROGANTE

Célio Garcia

"Responsabilidade da Psicanálise na modernidade, quer dizer,


hoje em d ia", foi o tema escolhido para o IV Forum.
Tenho receio de assu mir um compromisso em se tratando de res­
ponsabilidade da Psicanálise, justamente, nos dias que correm. A minha
frase, com a qual me inscrevi, tampouco me agrada. Pareceu-me, com
o passar do tempo, ser uma frase a rrogante. Seria responder à violência
com a violência.
Freud pensou q u e não ca bia ao a n a l ista uma definição quanto
ao bem d a sociedade; por sua vez, cabe ao jurista a tarefa de decidir
sobre a capacidade d e alguém assu m i r responsa b il idade, tendo em
vista u m bem social. Além d isso, a responsabil idade do j u rista era
para ele u m a construção social; "ela muda com a época, de acordo
com os tempos", d izia.
Por outro lado, sabemos que Freud considerou o sonhador res­
ponsável pelos seus sonhos, mesmo aqueles d e conteúdo de natureza
imoral, amoral. Mais ainda, os sonhos era m realizações dos desejos
imorais, por consegu inte.
Ele queria dizer que, final mente, o analista será sempre alguém
de fora, ele corre por fora.

37
Psicanálise e Hospital

Vamos ver no decorrer desta nota que, em se tratando do


hospital, ao dar aulas em curso dirigido por Marisa Decat,
havia proposto u ma posição "entre" para os alunos, futuros
ou já naquele momento, psicólogos no Hospital. Ele é um
bispo in partibus infidelium, cuja diocese era fictícia, lá para
os lados dos infiéis, denominação convencional atribuída aos
prelados que, pela idade ou por outro motivo, já não exer­
ciam o poder na diocese (no consultório, poderíamos dizer).
O Psicólogo Hospitalar está entre o médico e o paciente e
sua doença.
Exemplo palpável e concreto: ele fornece resultados, conver­
sa com o paciente após resultados, conversa com a família,
costuma usar uma ficha interna e uma ficha externa, o que
sugere uma posição "entre".
Ele é o único que vai do médico ao paciente, do paciente ao
enfermeiro, da reunião de síntese às famílias, assim por dian­
te. Sempre com a hipótese de um Inconsciente a tiracolo; eu
não d isse com a caixinha de interpretações.
Agora o psicólogo já não é mais o Sujeito Suposto Saber
tampouco o Sujeito Suposto Poder (este ú ltimo, figura deri­
vada de outra bem conhecida em nossas teorias).

E, no entanto, sentimo-nos responsáveis diante de nossos pa­


cientes ou junto ao leito deles, diante da equipe formada por colegas
ou com o médico. De que responsabilidade se trata?
O filme de Almodóvar "Fale com ela" diz em cenas mais do que mi­
nhas demoradas explicações. Trata-se de conversar; de dirigir-se a alguém
em estado de coma, de quem não ouve nem responde, tudo isso em virtu­
de de uma responsabilidade que tem a ver com a palavra analítica.
Consta que os pacientes que passaram pelo coma, uma vez acor­
dados, tendo recobrado a consciência, d izem se lembra r da voz do psi­
cólogo ou do enfermeiro que l hes falava enquanto dormiam. Dizem:
"Eu conheço essa voz! Já encontrei o senhor em algum lugar".

38
Responsabilidade da Medicina e responsabilidade da Psicanálise

E as mães que falam ao bebê enquanto amamentam? Estas se


sentem responsáveis pela palavra, a ponto de i nventarem uma série
de palavras por meio das quais pretendem se comunicar com o infans
(aquele que não fala).
Se responsabilidade houvesse, ela teria a ver com o sujeito e seu
corpo, quando vamos distinguir:
Subjetividade produtiva: História de vida > > > Acontecimen­
to: dor, doença/corpo em posição neutra, corpo implícito.
Subjetividade reativa: Denegação (Desconhecimento da his­
tória de vida) > > > Aconteci mento (dor, doença): corpo só é
conhecido pelo que a Medicina prescreve ou a Religião insti­
tu i (corpo in-explícito já que negado, desconhecido).
Subjetividade obscura: Corpo é motivo de queixa > > > His­
tória de vida > > > Posição explícita > > > Acontecimento: dor
e doença (Recalque).

U ma vez que tivéssemos feito a travessia para a etapa atual (sem


contar com Sujeito Suposto Saber, nem Sujeito Suposto Poder), pode­
ríamos pensar, juntamente com os médicos, os enfermeiros, em res­
ponsabilidade d iante das questões atuais (oriundas do uso de técnicas
em detrimento da postura de cuidar, isto é, a clínica). De fato, a espe­
cialização atingindo níveis até então desconhecidos, a fragmentação
d u rante o acompanhamento, a organização complexa que nos envolve
reforçam o risco de ocultação da experiência subjetiva do doente.
Na fase que vislumbramos, não se trata d e denúncia da técnica
(desumana, desconhece o sujeito doente) tampouco pensaríamos em
resolver os p roblemas éticos que atravessam a prática médica. A res­
ponsabilidade assumida diria respeito à integração das técnicas (na sua
materia l idade) com o espírito visando ao cuidar.
Privados do Suposto Saber e do Suposto Poder, essa reflexão
pode iniciar médico e enfermeiros ao descentramento do ponto de vis­
ta da única técnica para reconhecer a legitimidade do ponto de vista do
doente. Essa é a posição "entre" acima mencionada.

39
Psicanálise e Hospital

Porém, há u ma questão delicada: A posição "entre" seria sem


ideias a serem defendidas, adotadas?
Exemplo de ideias que nos eram propostas: o Comunismo, o
Cristianismo, o Iluminismo, a J ihad (Revolução Islâmica), enfim uma
ideia que nos orientava.
Tenho a impressão de que voltamos a Freud (tal como ele foi
lembrado no início de minha exposição}, malgrado o longo caminho
percorrido durante estas ú ltimas décadas.
Qual seria nossa reflexão sobre a situação atual?
No momento atual, u ma política de consenso é limite ideológico,
institucional e gerencial.
Todos nós que atuamos em Instituições estamos adstritos a ela.
O que podemos fazer é vislumbra r outro horizonte, i nventar novos ter­
mos que passariam a circular destoando da toada geral, provocando
confronto e interrogação. Mas tudo isso sem insistência, pois nossos
recursos para pensar outra coisa são parcos. Foi, pouco a pouco, que
teríamos nos sensibilizado com relação ao termo responsabilidade,
passando a procurar outras formulações. Estamos nessa etapa da pro­
cura dos termos, da forçação dos termos em uso. Com os novos termos,
teremos novas a bordagens e nova topologia (ultrapassar a topologia
do saco onde tudo parece caber, d irigirmo-nos para outra solução onde
há alçamento de nível na a rvore lógica quando se de gênero a espécie,
por exemplo).
Na tentativa atual, um dos termos i ntroduzido é o termo huma­
nização.
Veja a proximidade que ele mantém com humanitário. Haveria
u ma doença humanizada?
Com uma condição, a saber: que o patológico seja considerado
normal, o que parece inaceitável para a política de Prevenção (tam bém
faz parte d o consenso). Esta ú ltima pode passar facilmente ao estágio
de política da precaução, o que já não é a mesma coisa. Há um descom­
passo entre Saúde e Política Pública.

40
Responsabilidade da Medicina e responsabllidade da Psicanálise

Há u m desdobramento a construir, a partir do que acabo de


anotar. Aqui vai.
Categorias relativas à "enable science technology", termo que aqui
substitui o termo ciência, evita ter de justificar o alinhamento do termo
ciência diante de outros cujo âmbito pode ser d istinto.
Em que pesem as diferenças entre Brasil e França, entre América
Latina e Europa, vamos aqui considerar, de início, a título de informação,
dados e situações encontradas na França.
A situação na França atualmente é marcada pela presença maciça
do governo na área da Saúde, quando os técnicos em Saúde saem a
público para propor novas formas de organização quanto à atribuição
de créditos, associação governo/agências de seguro Saúde, relaciona­
mento com as especialidades.
No documento "Projet Hopita/ 2007"1 - documento básico para a
reforma pretendida - podemos constatar nossa anotação acima. No su­
mário deste p rojeto, encontramos expressões, tais como: "L'état, garant
de la cohérence et de l'équité" (quanto ao sistema de Saúde); ou ainda
"Le pilotage de l'hôpital: restaurer l'autorité do conseil d'administration et
du comité stratégique".
O hospital que é considerado como u ma empresa tem seu orça­
mento detalhado em termos de "tarification à l'activité", ou seja, o devi­
do pagamento ao profissional se refere agora a u ma atividade exercida,
evitando-se o orçamento global ou os honorários globais. Curiosamen­
te, "atividade" sugere o termo "ato" (caro aos analistas de orientação
lacaniana); o termo recebe aqui uma conotação cuja derivação faz sentir
os novos tem pos.
A clínica tradicional com seu timing (cujas etapas declinam um
instante de ver, mas tam bém um tempo mais ou menos longo de com­
preender, finalmente um eventual momento de conclusão) exige tem­
poralidade especial para a qual o "ato" a ser contabilizado não seria a
u nidade que lhe conviria.

1 Mission sur la modernisation des statuts de l'hôpital public et de sa gestion sociale.

41
Psicanálise e Hospital

Faço aqui anotação inicial, a d m itindo q u e eventual retomada


da questão não estaria l i mitada a u m protesto contra a forma de "or­
ganização e métodos", comum em qualquer empresa funcionando no
regime de produção, nem vamos deixar de contabilizar os eventuais
benefícios devidos à nova organ ização, como melhor controle das in­
fecções hospitalares.
É possível que a reforma dos hospitais faça parte de um conjunto
de disposições que i mporta registrar. De fato, ela seria um aspecto mais
visível, mas ela não esgota o conjunto de i mportantes mudanças em
nossos conceitos em matéria de tratamento a ser oferecido aos pacien­
tes que nos procuram.
Vamos assinalar dados e considerações sobre a situação já co­
n hecida e assinalada nos Estados Unidos. As pessoas procura m os cui­
dados médicos na busca de uma melhor performance, não porque es­
tejam doentes
M enciono igualmente o artigo de 18 de abri l de 20042• Ambos
os a rtigos são sensíveis às mudanças na prática médica, desta feita nos
Estados U nidos.
Aspecto igualmente registrado no artigo de Ivan Illich (falecido
em dezembro de 2002) cujo título Tobssession de la santé"3 indica que
o tema será examinado em âmbito bem mais amplo e não restrito a
esse ou aquele país.
A constatação é de que temos de avaliar o horizonte i mediato e
de longo a lcance quanto às reformas. A própria OMS será acompanha­
d a quanto à documentação por ela produzida. O Comunicado CMS/48
pode ser citado, pois ele contém defin ição do que seria uma política
de Saúde; de fato, a OMS diz privilegiar a categoria capacidade/inca­
pacidade de cada um de uma população como critério (ou variável) a
ser examinada, em detrimento de uma abordagem que teríamos de
chamar clínica.

2The end of primary care de Lisa Sanders (M.D.), The New York Times, 18 abril de 2004.
3 Le Monde Diplomatique - Maniere de Voir. Fevereiro - março 2004, publicação
bimensal

42
Responsabilidade da Medicina e responsabilidade da Psicanálise

Bowlby é citado como psicanalista próximo à OMS, i ntrodutor de


abordagem comportamentalista no tratamento da política de Saúde,
por exemplo, quanto à ideia de capacidade/incapacidade.
O abalo da fortaleza em que nos sentíamos protegidos quanto à
nossa prática profissional referida a modelos éticos que nos vinham de
longe (da Grécia, com Hipócrates), nossa prática política justificada por
nossa adesão a governos, seus ideais, seu progressismo, tolerância na
relação entre lei e prática institucional do dia-a-dia em contrapartida
a instruções e à regulamentação estritas postas em prática pelos go­
vernos, tudo isso parece nos obrigar a uma revisão rigorosa de nossas
ideias e premissas.
"Saúde a ser inventada", suscetível de oferecer alternativa ao sis­
tema atual, será o resultado de um trabalho a ser conduzido a partir dos
resultados de pesquisa.
De i nício, teríamos uma série de enunciados produzidos pelos
experts ligados ao sistema de Saúde, uma série de enunciados colhidos
nas entrevistas com médicos.
Saúde a ser inventada incorpora a singularidade de cada um,
inclusive suas características genéticas (parte objetiva), sem deixar de
lado o que cada um sente e ressente (parte subjetiva) do seu próprio
corpo e no seu próprio corpo.
A Clínica a ser implementada será uma consequência da Saúde
a ser i nventada, eventualmente um novo recorte do corpo. Ambas le­
varão em conta o que colhemos nas entrevistas. Vale destacar, desde
logo, o i mpacto que tem tal enunciado (novo recorte do corpo) quando
vemos o modelo de beleza buscado pelos mais jovens. A anorexia ou a
magreza exagerada seria u ma possível ilustração, apenas acentuada de
tal recorte, já em suas aplicações estéticas e de subjetivação.
A saúde a todo custo e a prevenção sempre preferida em detri­
mento da clínica serão igualmente aspectos a serem examinados. En­
fim, a definição da OMS (já citada) parece corresponder ao que consta­
tamos na tendência atual.

43
PSICAN AUSE DESCAFEINADA

Guilherme fv1assara Rocha

"I always start with actors that, because of their


own personalities, exaggerates some qualities
and suppresses other qualities."
Jim Jarmush (Entrevista, Sobre café e cigarros)

A publicação na França, em 2005, do "Livro negro da Psicanálise",


organizado por Catherine Meyer, talvez venha a ser conhecida, no fu­
turo, como a primeira cruzada contra a Psicanálise que, no século XXI,
alcançaria uma repercussão midiátida de razoáveis proporções. Forma­
tada sob o pitoresco adágio "viver, pensar e passar melhor sem Freud",
o conteúdo da obra propriamente dito, mal articulado e confusamente
distribuído em curtos panfletos de 40 autores, foi resumido em excelen­
te resenha por Elisabeth Roudinesco, sob a rubrica de um "requisitório
que visa reduzir o indivíduo ao somatório de seus comportamentos e de­
nunciar toda tentativa de explorar o inconsciente". "Uma diatribe", ainda,
continua a autora, "contra a religião e notadamente contra o catolicismo,
ao qual Dolto e Lacan são aproximados" (ROUDINESCO, 2005, p. 57).
A Psicanálise é ali, em toda a sua extensão de orientações, autores e
história, vinculada não somente às mais sórdidas e levianas formas de

45
Psicanálise e Hospital

i mpostura mas também acusada de patrocinar o antissemitismo, co­


laborar com as d itaduras e nutrir-se exclusivamente por uma política
institucional devotada a manter, perpetuar e propagar sua força de do­
minação ou, por assim d izer, sua "vontade de poder".
Os autores dessa obra, contudo, a despeito da astuciosa mano­
bra de aproximarem a Psicanálise do discurso religioso para, como ob­
serva a historiadora e psicanalista francesa, situarem-se como intelec­
tuais de esquerda em um movimento de denúncia do obscurantismo,
acabam malsucedidos em escamotear o fundamento de sua posição.
O fundamentalismo que, efetivamente a subjaz, escapa pelas avessas,
tal como sugere o subtítulo da obra - viver, pensar e passar melhor
sem Freud - expressão de caráter indisfarçavelmente demonizador e
que, se tivera sido proferida em outro contexto, talvez fizesse lembrar o
magnífico "exorcismo do estruturalismo" de Carlos Dru mmond de An­
drade. Infelizmente, contudo, o bordão libera-nos Domine, vociferado
por Catherine Meyer et cotervo, reivindicava ser l evado às suas últimas
consequências. Quase ao mesmo tempo, toda a controvérsia suscitada
pela Emenda Accroyer, que visava regulamentar, sob a forma de projeto
de lei no Parlamento francês, a profissão de psicorapeuta, provoca uma
atmosfera de desconfortável inquietação nos meios psicanalíticos que,
por sua vez, não tardam em esboçar suas respostas.
Destas, acerca das quais não se pretende tratar aqui senão breve­
mente, observe-se que recolhem os créditos de reabrir, de forma franca
e declarada, o debate ético e epistêmico devotado a expl icitar as posi­
ções da Psicanálise nos campos da ciência, dos saberes e das práticas
clínica e social. Mesmo que, nesse momento, uma análise pormenoriza­
da dos principais manifestos e publicações nos indique que, lado a lado
com a construção de a rgumentos e debates sólidos e amadurecidos,
coexitam as afetações h istriônicas - mormente traduzidas no bojo de
uma ironia mezzo patética e mal-arranjada na forma de anexos e pan­
fletos belicosos, sobretudo contra as "famigeradas" TCCs - e, o que é
ainda mais grave, certa pressa e m responder reativa e vigorosamente a
u m adversário concebido como consistente e temível. Feridos em seus
brios e, naquele momento, cegos às principais lições de seu mestre, não

46
Psicanálise descafeinada

faltaram autores, sobretudo lacanianos de grande envergadura, servin­


do-se das mesmas armas do adversário, indisfarçavelmente a ele iden­
tificados. Essa guerra, fadada a assum i r seu d estino trágico e especular,
quase retira da Psicanálise o que de melhor esse episódio lhe poderia
fornecer, e que a resenha de Elisabeth Roudinesco - certamente um dos
escritos mais lúcidos desse período - nos restitui.
Dois aspectos desse trabalho assumem aqui particular interes­
se, sobretudo quanto aos significantes que nutrem as intenções des­
se fórum. Roudinesco afirma, sem meias palavras, que os psicanalistas
deveriam refletir sobre sua responsabilidade no episódio em questão,
considerando, fundamentalmente, o aspecto social de sua massiva "re­
tirada da vida pública e de todo engajamento político", acrescentan­
do ainda ao horizonte dessa reflexão os aspectos i nternos aos meios e
às instituições analíticos, ligados, escreve a autora, à "crítica necessária
de sua própria doutrina" (lbid., p. 60). Para Roudinesco, ataques dessa
natureza certamente continuarão a ocorrer i ncondicionalmente, mas
serão substantivamente agravados enquanto "a Psicanálise perseverar
em desconhecer as querelas historiográficas e os debates sociais que são
desenvolvidos em todo o mundo, há vinte anos, e que, além disso, não
concernem somente à sua disciplina". (Jbid., p. 61)
Se, por um lado, devem-se reconhecer na trajetória de muitos
analistas evidências incontestáveis de engajamento na cena públ ica,
nas políticas públicas e na transmissão e na discussão da Psicanálise
para além daquilo que se produz em cenários do próprio meio psica­
nalítico; por outro, não é menos verdadeiro que tais percursos ainda
consistem, em u m u n iverso extenso e multifacetado, em trajetórias de
excessão. Disso, resulta um paradoxo flagrante, cujos contornos se en­
trevêm no fato de que o i m pacto que a doutrina psicanalítica fez incidir
historicamente nos discursos sobre o homem não parece ter sido capaz
de fornecer, sobretudo no â m bito das políticas públicas voltadas para
a saúde e a educação, uma contrapartida no nível da práxis. U ma vez
escutei de u m antigo professor de Filosofia que tudo na Psicanálise é
muito interessante, as teses, as proposições e as interpelações. Só a ex­
periência é que não deveria mesmo ser levada a sério. Quiçá, algo dessa

47
Psicanálise e Hospital

posição faça emblema de certos protocolos contemporâneos das resis­


tências à Psicanálise: podemos viver e pensar com Freud, contanto que
passemos melhor sem ele. O fato de que a cidade de Belo Horizonte
seja, contudo e de algum modo, uma surpreendente excessão à pros­
crição da Psicanálise das esferas políticas e das práticas públicas - algo
que esse fórum, por exemplo, consigna e reitera - não deve nos alentar
mais do que o necessário.
Essa curiosa clivagem, que assimila o discurso analítico, despro­
vendo-o, todavia, de sua substância própria, talvez coi ncida com aquilo
que Slavoj Zizek d iscerne como fundamento do cinismo pós-moderno,
cujo adágio incita os indivíduos a comprometerem-se com as coisas,
mas "cientes de que nunca se comprometem plenamente" (ZIZEK, 2008,
p, 135). Mas como explora r então os desdobramentos dessa "Psicanáli­
se descafeinada", parodiando u ma metáfora cara ao filósofo esloveno?
Mais, a i nda, qual a responsabilidade do psicanalista na efetividade, na
ampliação e no ordenamento desse cenário?
Um primeiro aspecto da questão é apresentado por Roudinesco
quando ela indaga o efeito, extramuros, d igamos, das "querelas inter­
mináveis" que ocupam o cenário dos debates psicanalíticos e cuja re­
percussão na cena pública não seria sem consequências. Certo é que
o a rgumento da autora não apreende como seu fundamento qualquer
miragem reconciliadora que, fechando os olhos à própria h istória de ci­
sões, crises e segmentações que conferem ao movimento psicanalítico
parte considerável de suas feições próprias, fizesse o elogio irrefletido
dos pactos, das fusões e das alianças, pois, em um tempo em que, so­
bretudo no cená rio político, uma das figuras mais d ia bólicas do cinismo
se replica nas mídias sob a forma maquiavélica do conluio daqueles
que, até então, jamais afirmaram motivos para se abraçarem, torna-se
mais do que nunca i mperativo reabrir a reflexão ética sobre os fun­
damentos de u ma posicão subjetiva - aí engendradas todas as suas
repercussões políticas - e sobre os fundamentos e a função dos pactos
intersubjetivos e i nstitucionais.
Roudinesco não nos fala, entrementes, de um porvir em que to­
dos os analistas se a l inhassem sob a tutela de um ideário, um mestre

48
Psicanálise descafeinada

ou um propósito comum. Ela simplesmente indaga e sugere a proble­


matização dos efeitos públicos decorrentes das posições assum idas por
eles i nstitucionalmente, e mesmo individualmente, quando convocados
a se pronunciarem na cena pública. Nesse ponto, a autora ressalta o
quanto a Psicanálise fica ainda mais vulnerável em virtude do fascínio
que o epíteto de psicanalista exerce sobre os espíritos incautos, e que
fomenta a disseminação das mais disparatadas proposições, análises,
comentários e d iagnósticos, para os quais seus autores reivindicam as
rubricas de gente séria - Freud, Lacan, entre outros - e que são susten­
tadas abertamente, muitas vezes em cenários de g ra nde visibilidade e
impacto na formação de opinião. O silêncio complacente do analista
diante das questões de sua época não seria, portanto, mais i rresponsá­
vel do que a reivindicação da participação no discurso analítico como
patente ou franqueamento do palavrório inconsequente.
Sob essa perspectiva, portanto, não é a existência per si das in­
termináveis querelas psicanalíticas - clínicas, teóricas ou institucionais ­
ou tão menos as modalidades frequentemente passionais com que elas
se dão que estão na raiz do problema. Esses aspectos não são, todavia,
irrelevantes, certamente, pois, não raramente, querelas psicanalíticas
assumem - entre seus próprios protagonistas ou, como no episódio
do Livre Noir, na anticruzada aos inimigos - a forma do destempero, da
puerilidade ou da mais a bsoluta bruta l idade acéfa la, o que certamente
não irá subsidiar o tipo de posicionamento que credencia mora l mente
um g rupo a conquistar seu lugar de enunciação na cena pública. Não
é no esteio do revide i ntempestivo ou da pura economia libidinal da
formação reativa que a Psicanálise vai conquistar terreno e l ig itimidade
nas formas de vida e enlaçamento sociais contemporâneos. Ao contrá­
rio, justamente por responder assim a provocações dessa natureza, é
que ela estaria a u m passo - para dizê-lo com o personagem de Poe,
tão caro a Lacan - de selar seu destino funesto. Portanto, a descrença
contemporânea nos cânones do debate público e da construção d is­
cursiva da cidadania deve ser certamente criticada, sob pena de que os
atores sociais - aí incluídos os psicanalistas - sejam desabonados, por
seus próprios atos e palavras, quanto à legitimidade e ao horizonte de

49
Psicanálise e Hospital

reconhecimento de seus saberes, de suas propostas, de suas críticas. Se


o psicanalista subsiste na cultura como emblema mesmo da responsa­
bilidade impl icada em todo ato e todo enunciado, é fundamental que
ele esteja atento a um posiciona mento solidário de sua ética. Pois é
somente nesse compromisso que se poderá demonstrá-la.
Mas há algo ainda não menos grave, e que se evidencia no fato
de que, em pleno século XXI, uma parcela significativa dos analistas se
comporta em seu métier como se não existissem ciências, filosofia, an­
tropologia, política, movimentos sociais, arte, vanguardas, mídias, no­
vas literaturas, suportes virtuais para as mais variadas experiências, para
enumera r aqui apenas o elementar. Ou, quando o fazem, sob o aguilhão
de algo que se lhes apresenta nos desdobramentos da narrativa de um
analisante, também, não poucas vezes, entrevêm se reposicionarem, to­
davia precariamente, equilibrados sobre sentenças do tipo: "Precisamos
pensar essa coisa das relações a bertas do adolescente" ; "É imperativo
i nterrogar essas formas radicais de experiências com o corpo" ; "Deve­
mos construir um saber sobre essa clínica da u rgência subjetiva, que
enfrentamos hoje em nossa práxis". A verdade contida em cada u ma
dessas proposições talvez não seja d igna de ser denegada, na astúcia
de reservar a um futuro jamais materia l izável o empreendimento que ali
se enuncia. Ou mesmo, como observa Roudinesco, essa verdade talvez
não deva solidarizar-se com a alethéa ou as epifanias que o movimento
analítico, em sua "propensão à adulação dos mestres" (ROUDIN ESCO,
2005, p. 58), sempre reservou a vozes enigmáticas e oraculares. Que
seja afirmado sem subterfúgios que ou o analista é responsável por
sua posição ou não há Psicanálise. Ou há compromisso com o enfren­
tamento, como lembra ra Lacan em Radiophonie, da construção de um
"saber que cerne o Real" (LACAN, 2005 [1973], p. 408), tarefa que se con­
sagra a todo e qualquer analista, ou se está a um passo da i mpostura. A
operação analítica, deve-se insistir, não é algo que possa ser subsumida
a questões de "atitude", para usar dessa palavra tão cara ao discurso da
contemporaneidade.
A efetividade do discurso analítico - naquilo que substancial ­
mente a d iferencia das operações do discurso médico o u do d iscurso

50
Psicanálise descafeinada

da ciência - é absolutamente irredutível à organização protocolar de


um conjunto de comportamentos e condutas que visam a um resultado
empiricamente calculável. Assi m como, por mais que estude, o analista
é advertido de não consagrar-se à extração, n os saberes, dos vetores
das operações que sua clínica exige. Mas o fato de que o saber de u ma
análise é sempre "oprés-coup", como lembrou anteontem o professor
Claude Schauder, não pode ser apreendido cinicamente, ou debilmen­
te, como u ma demissão da relação com o m ultifacetado corpus de co­
nhecimentos que i nstrui um analista. Sob pena de, perdendo de vista,
a "douta ignorância", da qual nos falara Lacan, o analista irresponsável
apaixone-se por estereótipos e cacoetes sob os quais a impostura é
sempre maldisfarçada. Cabe ao analista, portanto, observar criteriosa­
mente as vicissitudes de sua condição de "não-saber" ou mesmo de
sua atribuição como suposto-saber. É preciso que se diga que, não raro,
ele se aferra ironicamente, cinicamente, nessa prerrogativa que o dis­
positivo analítico lhe descortina - não há saber prévio àquilo que um
analisante profere - com a finalidade de justificar sua mais a bsoluta
alienação ou, rumo ao pior, seu desamor ao exercício do pensamento.
Nada lhe restando então senão deleitar-se com a pura empiria sonora
da associação livre, descompromete-se do cálculo e das reflexões que
toda experiência analítica reivindica, tragado por u ma deriva ainda mais
atroz do que aquela que se lhe apresenta do lugar do d ivã.
Quanto ao cinismo, cabe insistir - essa fórmula tão onipresente
nos avatares do ethos contemporâneo - que ele consiste, como de­
monstra Safatle, em um procedimento absolutamente solidário de u ma
modalidade discursiva fundada em uma atitude d e autoironia, que "por­
to em si mesmo o negação dos conteúdos que apresento" (SAFATLE, 2008,
p. 101). O cinismo é aquilo que engendra, portanto, os fundamentos de
uma moral denegatória, fornecendo a forma empírica para uma espécie
de desafecção de um sujeito diante da enunciação de sua posição dis­
cursiva. " Eu devo, não nego, pago quando puder". Para efeito de exem­
plificação, observe-se que o contexto geral em que essa proposição é
usualmente apresentada engendra um cenário no qual a dívida - expli­
citamente afirmada - advém, contudo, revestida por aquilo que Bru no

51
Psicanálise e Hospital

Haas designa como "usura da verdade" (apud SAFATLE, Op. Cit, p. 71). A
"sinceridade" do enunciador ou, como diz Safatle, a ausência de " mas­
caramento" no nível da enuciação, fornece, contudo, justamente o ex­
cesso que "anula a força perlocucionária da própria enunciação" (lbid.).
No cinismo, substancialmente, "o Outro percebe que o sujeito não está
lá para onde seu dito aponta" (lbid., p. 71). E é justamente o excedente
irônico contido no sintagma "não nego" que abastece o cinismo com o
efeito paral isante que ele faz incidir sobre o semelhante. A não-reação
diante do enunciado cínico decorre, em grande medida, da perplexida­
de diante da nudez insuportável da verdade, da verdade de um gozo
sem Lei. Não é difícil imaginar as consequências, por exemplo, de u ma
apreensão débil ou cínica da proposição "o inconsciente i nterpreta".
Entre um e outro, o débil talvez fosse digno de certa condescendência.
E o " Livro negro da Psicanálise", com todos seus equívocos e toda sua
má-fé, serviu para advertir-nos, no âmbito do debate público, de que a
i mpostura, venha de onde vier, não passa em brancas nuvens.
Finalmente, sob a perspectiva de fazer trabalhar a ideia de res­
ponsabilidade do analista, cumpre interrogar a reivindicação, tão insí­
pida quanto obscurantista, de que a "clínica" é o horizonte último ou
o ponto arquimediano de sustentáculo de u ma posição analítica. Não
por acaso, no primeiro ano de nosso seminário nessa instituição, pro­
pusemos como tema de trabalho uma genealogia tão pormenorizada
quanto possível da noção de Clínica. Pois é necessário - dos pontos de
vista gnoseológico e ético - que o anal ista saiba situar o dispositivo que
viabiliza suas operações no âmbito de um cenário multifacetado, so­
bredeterminado e, sob diversos aspectos, a bsolutamente heterogêneo.
A pergunta que orientou esse momento de nossos encontros foi for­
mulada de modo a bsolutamente prosaico: Em que pensamos quando
d izemos "clínica psicanalítica"? Esse empreendimento, a partir do qual
diversas questões propriamente clínicas puderam, a partir de então, se­
rem formuladas, nos pareceu de fundamental i mportância na forma­
ção de um grupo de trabalho e nas definições de uma perspectiva de
investigação, transmissão e debate. Quanto a esse ponto, vale lembrar
que clínica é um conceito irredutível a uma mera referência empírico-

52
Psicanálise descafeinada

descritiva - o nome que designa uma experiência entre u m psicana­


lista e seus analisantes. Assim como seria desejável que os analistas
se a bstivessem de recorrer à essa palavra - não raro reivindicada em
expressões do ti po "isso é o que só a clínica nos ensina" - na condição
de uma astúcia retórica que l hes restituiria, diante de u m impasse for­
mal, transferencial ou conceptual, as garantias das quais se sentiram
privados. Quando alguém atribui à "clínica " o manancial imanente de
verdades i mediatas e autorreveladoras, a Psicanálise flerta com o dog­
ma. Quando dela se faz o vazio transcendente para onde convergem
e se confraternizam, em u ma unidade imaginá ria, as mais díspares
proposições, as mais obscuras intervenções e as mais sofísticas mano­
bras, é do cinismo que estamos tratando.

53
REFER�NCIAS

LACAN, J. Autres écrits. Paris: Seuil, 2005.

ROU DIN ESCO, E. Catherine Meyer éd., Le livre noir de la psychanalyse


In: Analuein - Journal de la FEDEPSY. Strasbourg, n.0 7/nov., 2005.

SAFATLE, V. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.

ZIZEK, S. & DALY, G. Arriscar o impossível - conversas com Zizek. São


Pau lo: Martins, 2006.

54
A PRÁTICA M tOICA,
A "HIPERMODERNIDADE"
E O PACIENTE DO SUS1

Raul Albino Pacheco Filho

A articulação destes três significantes - prática médica, hipermo­


dernidade e paciente do SUS - torna necessária u ma reflexão sobre o
d iscurso da Medicina e da Ciência como formas de ver o mundo e de
produzir saberes a respeito dele. Talvez seja mais apropriado falarmos
até mesmo de formas de 'construir' o mundo, a partir de transforma­
ções h istóricas bem definidas: a expansão e a hegemonia do capita­
lismo como forma de estruturação das relações econômicas, sociais e
ideológicas entre os seres humanos. Afinal, sabemos que é no seio da
sociedade capitalista que a M edicina e a Ciência2 seguiram o curso que
conhecemos. E sabemos ainda que é nesta forma de sociedade que
surgiu tam bém uma maneira específica de lidar com a "falta-a-ser" ine­
rente à condição do ser h u mano e um modo particular de ordenação e
apa relhamento do próprio gozo: aquilo que Lacan chamou de "discurso
do capitalista" (1969-1970/1992, p. 103), que podemos articular a um
discurso da ciência moderna.

1 O conteúdo deste artigo foi objeto de uma apresentação na mesa redonda "Intervenções
psicanalíticas: da tecnologia à urgência" do V Congresso lntera mericano de Psicologia
da Saúde: "Psicanálise aplicada à terapêutica no hospital: resultados", promovido pelo
Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, de 22 a 23 de
maio de 2009, no Centro de Convenções Rebouças (São Paulo, SP).
2 O emprego do termo Ciência, no singular, não implica a adoção da concepção
epistemológica positivista: refere-se, em lugar disso, às a rticulações no laço social
operadas pelos discursos das várias disciplinas científicas.

55
Psicanálise e Hospital

A falta-a-ser é intrínseca à condição de u m ser falante, que, em­


bora d ispondo dos recursos simbólicos da l i nguagem para lidar com o
seu mundo (e inclusive para criar sua realidade), tem necessariamente
de se ver às voltas com a impossibilidade de obter significação e con­
trole sobre tudo. Lacan empregou o termo "Real" para dar um nome ao
que escapa à possibilidade de total ização pela via do simbólico. Mas
sabemos que os seres humanos fazem de tudo para fugir de sua verda­
deira condição de incompletude e que cada época histórica constrói as
suas rotas particulares de fuga. É aqui que entra a questão dos modos
próprios de alienação sob o capitalismo e a maneira pela qual a Ciência
entra nessa história.
Convém lembra rmos que existe um risco implicado pelo empre­
go de termos como hipermodernidade ou pós-modernidade, pois eles
podem dar uma falsa ideia de que teríamos ultrapassado o âmbito do
capitalismo e do discurso que essa forma de sociedade inaugurou. E
isto enfraqueceria a crítica que pode e deve ser feita ao capita l ismo e
que continua tão relevante e necessária quanto antes. Além disso, ter­
mos como "sujeito pós- moderno" ou "sujeito h ipermoderno" também
deixam insinuada uma falsa i mpressão de que já não existiria o sujeito
cuja relação com a l i nguagem a Psicanálise delineou, em suas diferen­
tes modalidades estruturais. As aspas no termo hipermodernidade do
título pretendem indicar este sentido crítico.
O que eu pretendo tematizar relaciona-se ao modo pelo qual a
ciência moderna, a Medicina (dela derivada) e sua prática trouxeram
avanços inegáveis, mas deixam de fora sistematica mente um "resto",
que tentam foracluir. Resto que sempre retoma (ainda bem!) e que re­
quer "tratamento".
Esse resto não tem a ver com a questão da boa ou má administra­
ção dos sistemas de saúde nem com a qualidade dos princípios que os
norteiam. Não se pode negar a i mportância da evolução administrativa
e política que está na base do surg i mento do SUS e da luta política que
o tornou possível, com seus princípios: a) de universalidade, integ rali­
dade e equidade no acesso à saúde; b) de descentralização, regionaliza­
ção e h ierarquização dos atendimentos e das formas de organização; e

56
A Prática Médica, a "Hipermodernidade" e o Paciente do SUS

c) de participação popular nas decisões e no planejamento. Mas o que


eu quero realçar, e que põe em evidência a contribuição da Psicanálise
e dos psicanalistas nas instituições de saúde, relaciona-se com o que se
encontra "mais-além" da qualidade política e dos princípios organiza­
cionais e administrativos que as norteiam. É algo que se relaciona com
esse mencionado resto que a Ciência moderna, em seu avanço, neces­
sariamente deixa de fora do seu âmbito; e que foi discutido por Lacan
sob a temática da exclusão do sujeito pela ciência.
Registre-se que não falo de exclusão do indivíduo ou da pessoa.
Falo da exclusão do sujeito do inconsciente, que, no caso da Medicina,
responde por u ma série de problemas e enigmas que d ificultam ou até
mesmo i nviab i l izam o sucesso terapêutico, como, apenas para citar
alguns exemplos: a) a não-aderência de pacientes ao tratamento (pa­
cientes que não fazem uso dos medicamentos distribuídos até mesmo
g ratuitamente, ou que não empregam práticas preventivas eficazes
q u e l hes estão disponíveis); b) o surgimento de distúrbios sem ex­
plicação orgânica razoável; c) o fato de que certos pacientes inexpli­
cavel mente não respondem como é esperado a tratamentos médicos
consagrados; etc.
Sabemos, aliás, que foi ao buscar explicações para aquilo que a
consciência não permite expl icar que Freud defrontou-se com o incons­
ciente. E o que eu pretendo enfocar d iz respeito à relevância da Psica­
nálise e dos psicanalistas como 'guardiões' do sujeito do i nconsciente
e de sua fala. Essa relevância deriva-se diretamente da importância de
se 'guardar' e não de se 'excluir' aquilo que Freud (1919/1987) abordou
pelo uso do termo a lemão Das Unheimliche ('estranho'), em um texto
com esse mesmo título. Por unheimlich, Freud se referia à impressão as­
sustadora que se liga às coisas conhecidas há muito tempo e familiares
desde sempre, que ressurgem quando se reativam forças primitivas que
a civilização (e aqui podemos incluir a instituição) parecia ter esquecido;
e que o indivíduo supunha ter superado. E que - nós, psicanalistas, o
sabemos - articula-se ao recalcado.
Dizer que cabe aos psicanalistas nas i nstituições de saúde (como,
ademais, em qualquer outro contexto) 'guardar' o sujeito e sua fala (e

57
Psicanálise e Hospital

talvez fosse melhor falarmos em 'guardar' o 'dizer' que se esconde por


trás dos seus 'ditos') i mplica se postular que não existe ingresso na so­
ciedade humana, na linguagem e na cultura, pelo qual não se tenha
pago um preço cobrado na moeda da cisão e da alienação originárias,
para se deixar a condição de ser puramente biológico e para se atingir o
estatuto de ser linguageiro, simbólico e pertencente a uma coletividade
humana. Lacan marca essa passagem, que envolve alienação, separa­
ção, submissão e perda, realçando o "discurso do mestre" (inspirado na
d ialética hegeliana do senhor e do escravo) como condição de entrada
no â m bito da estrutura simbólica. Daí afirmar que "não há nenhuma
realidade pré-discursiva". (LACAN, 1972-73/1982, p.45)
Construída a fantasia fundamental que institui, ancora e amarra o
sujeito, fornecendo-lhe u ma interpretação do desejo do Outro, aquele
dispõe de uma maneira de organizar o mundo e construir a 'realidade'.
Realidade que não é a mesma coisa que o Real, mas lhe possibilita o
compartilhamento da vida social e o uso de u ma língua comum, o que
o liga aos demais membros de sua coletividade em um laço social. Laço
social que viabiliza a convivência, mas não elimina, de modo algum, os
problemas do existir e da falta de garantias de tudo o que d iz respeito
à vida. Freud (1930/1987) nos traz essa lembrança incômoda de que a
fel icidade absoluta e i mutável é impossível. A fel icidade só é possível
em sentido restrito: como manifestação episódica. E a i nfelicidade, mui­
to mais frequente, nos vem de três direções: 1) nosso corpo condenado
à decadência e à d issolução; 2) o mundo externo material. com suas
forças de destruição; e 3) a própria sociedade e a cultura.
Insatisfeitos com o i mponderável e com a falta de garantias da
existência, os seres humanos constroem Outro imaginário, absoluto e
onipotente: um Outro do Outro, uma pseudogarantia falsa e inexisten­
te, com a qual os sujeitos tentam autotapear-se, por meio da evitação
do confronto com as implicações de sua verdadeira condição. Angaria­
se algum conforto, é verdade, mas à custa do oferecer-se como 'instru­
mento' no laço social.
Cada sociedade, em cada período h istórico, constrói seus apara­
tos particulares de alienação. No nosso caso, o capital ismo e seu d iscur-

58
A Prática Médica, a "Hipermodernidade" e o Paciente do SUS

so respondem pelas 'montagens' que nos enredam, em sua construção


de uma formidável máquina de controle e poder sobre os sujeitos, por
meio da burocratização sistemática e comezinha dos seus cotidianos.
Vivemos sob um evanescente e velado aprofundamento dos controles
i nstitucionais sobre a existência, dissimulado por detrás de u ma preten­
dida, mas falsa e ideológica, pluralidade de escolhas e modos de exis­
tência. Mas que se l imita à multiplicidade de mercadorias e de bens a
consumir, já que os objetos, as pessoas e o próprio tempo foram despi­
dos de qualquer significância não quantificável por meio do dinheiro.
E, junto com isso, desenvolveu-se a ciência do capital ismo, que,
de fato, trouxe inúmeros avanços. Porém, junto com ela, e aparente­
mente sem que os verdadeiros cientistas tenham sobre isto qualquer
controle, desenvolveu-se também uma ideologia cientificista (uma
pseudociência que parasita a verdadeira ciência), que tenta impor-se
como capaz de oferecer a resposta a todas as q uestões: aí incluída a que
diz respeito ao sentido da vida. Uma ideologia que 'vende' a falsa ideia
de uma ciência absoluta, capaz de dar conta da totalidade do Real, por
meio do conhecimento. E que propõe um conhecimento que separa,
na forma de uma dualidade radical, soma e psíqu ico (corpo e mente),
entendendo este ú ltimo como u ma espécie de epifenômeno ou mero
subproduto pouco ou nada relevante. De importante, teríamos apenas
os aconteci mentos relativos ao corpo biológico. E o sujeito, este deve
permanecer excluíd o (melhor d izendo, "foracluído") do campo dessa
falsa ciência, fundada em postulados metodológicos e epistemológicos
que inviabilizam sua consideração.
Quando sadio e funcionando bem, o ser humano da sociedade
contemporânea é concebido como um indivíduo íntegro, não dividido
e dotado de l ivre arbítrio: um 'eu' (ego) autorrepresentado como cons­
ciente, guiado unicamente pelo seu pensamento, dono das próprias
decisões e capaz de usar as palavras com total propriedade para vei­
cular suas ideias e pensamentos. Quando doente ou 'não funcionando
bem', o ser humano da sociedade contemporânea é concebido como
um corpo biológico que padece, com a origem dos seus sofrimentos
alocada exclusivamente em alterações anatômicas ou em disfunções

59
Psicanálise e Hospital

fisiológicas. Alterações e disfunções cuja cura requereria tão-somente


dietas, drogas, procedimentos ou intervenções cirú rg icas capazes de
restabelecer as condições somáticas originais.
E o problema é que as instituições e os sistemas de saúde têm
usualmente a tendência a estabelecer e manter uma estrutura buro­
crática de organização e funcionamento baseada nesses mesmos fun­
damentos: com pouca clareza, portanto, sobre o que poderia fazer um
psicanalista em seu interior. E como poderiam ter essa clareza, se, nelas,
usualmente, não há lugar para o sujeito? Para que os psicanalistas se­
riam necessários, se tudo 'funciona bem' e o que 'não funciona' não
requer que o sujeito seja escutado?
Nossa sociedade capitalista contemporânea parece disposta
a seguir adiante em sua prática fetichista de 'fazer o mesmo', que é
necessária para movimentar sua maquinaria social. 'Vai-se em frente',
mesmo sabendo-se dos buracos na camada de ozônio, da poluição
do ar e da água dos rios, do aquecimento global, do envenenamento
das populações pelos defensivos agrícolas, da disseminação de doen­
ças endêmicas cujos meios de controle estão há muito disponíveis, do
crescimento da infecção hospitalar, das doenças iatrogênicas, da mer­
cantilização e da precarização do atendimento médico para enormes
parcelas da população mais pobre, da piora da qualidade da formação
dos profissionais de saúde etc.
Mas o Outro do capital ismo diz que 'está tudo bem' com sua
estrutura social e com a das suas instituições. E que todos devem tra­
balhar e produzir para o gozo do "mestre moderno" do "discurso do
capitalista". E que todos devem submeter-se a serem a bordados como
objetos, conforme o "discurso universitário" (LACAN, 1969-1970/1992)
de sua ciência. São estes os discursos que regem os laços sociais e a
ordenação dos gozos em nossa sociedade e no contexto da ideologia
da pseudociência que parasita a sua ciência.
É verdade que a movimentação política e social da nossa popu­
lação faz contraponto a essa inércia social e consegue, muitas vezes,
acelerar o ritmo paqu idérmico das nossas instituições. Essas turbu lên­
cias socia is e políticas são, para usar a fórmula lacaniana do sintoma de
60
A Prática Médica, a "Hipermodernidade" e o Paciente do SUS

meados da década de 60, u m "retorno como tal da verdade na falha de


um saber" (LACAN, 1966/1998, p.234). Retornos da verdade, que sur­
gem exatamente para perturbar a "bela ordem" do discurso do mestre,
regido pelo desejo dos mestres/amos/senhores, que é de que "as coisas
andem"3 de modo satisfatório para os senhores.
Temos exemplos desses retornos da verdade nas fal has de um
saber: na luta da popu lação brasileira pela redemocratização do País
contra a ditadura militar, no Movi mento da Reforma Sanitária da dé­
cada de 70 e na Luta Antimanicomial. Eles produziram mudanças insti­
tucionais no nível macrossocial, como a Constituição Federal de 1988,
a Lei Orgânica da Saúde de 1990 e a criação do SUS. Mudanças que
ampliaram os direitos e a participação da população e trouxeram para
a cena, além dos médicos, atores com nova i mportância no que diz res­
peito à saúde: agentes comunitários de saúde, psicólogos, assistentes
sociais, terapeutas ocupacionais e - por que não? - também, os psica­
nalistas. Um avanço grande, sem sombra de dúvida! Mas qual a função
que agora cabe aos psicanalistas, no âmbito institucional?
Obviamente, seria i nsensato acenar-se com uma d i reção l i m i ­
tada ou c o m respostas pro ntas e b e m defi n idas. M a s ta lvez va lha a
pena lembra r a l g u mas i n d icações amplas i mporta ntes, que pode­
mos recolher dos fu ndamentos do nosso campo. E aqui me parece
sábio e prudente o a lerta freudiano de q u e a Psica nál ise não é uma
Weltanschauung (uma cosmovisão) tota l iza nte, ca paz de dar conta
do mal-estar do existir. O q u e não significa exi mir-se de trazer sua
contri buição mais modesta.
A Psicanálise aponta os perigos do esmagamento da singula­
ridade dos sujeitos, decorrentes da "tendência totalitária à alienação"
do discurso do capitalista (PACHECO FILHO, 2009). Cabe-lhe sustentar
a relevância do sujeito e construir um lugar para a sua escuta e a do

3"E/ sentido de/ sintoma no es aquél con que se lo nutre para su proliferación o su extinción,
e/ sentido de/ sintoma es lo real, lo real en tanto se pane en cruz para impedir que las
cosas anden, que anden en e/ sentido de dar cuenta de si mismas de manera satisfactoria,
satisfactoria a/ menos para e/ amo, lo cual no significa que e/ esc/avo sufra por e/lo de
ninguna manera ni mucho menos; e/ esc/avo en este asunto está enjauja mucho más de lo
que piensa, é/ es quien goza .. " (Lacan, 1974/1993, p.84)
.

61
Psicanálise e Hospital

seu desejo nas instituições, no avesso das instrumentalizações sociais


do seu gozo. Entendo que lhe cabe tam bé m pôr em evidência o falso
semblante de saber paterno compartilhável, implicado pelas promessas
de eliminação de todas as faltas e as lacunas da existência dos seres hu­
manos (de dominação do gozo do Outro); e que se encontra presente
no laço social instaurado pela sociedade capitalista contemporânea e
por suas instituições. Em outras palavras, acho que cabe aos psicanalis­
tas oferecer resistência à tendência total itária à alienação do laço social
na sociedade e no interior das instituições, por meio da sustentação da
'falta' do Outro da nossa sociedade, da sua ciência, d a sua Medicina e
de suas instituições, contra as falsas pretensões à sua totalização.

62
REFER�NCIAS

FREUD, Sigmund (1919). O 'estranho'. Ed. Standard Brasileira das Obras


Psicológicas Completas. 2a ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987, vol. XVII.
p. 271-318.

FREUD, Sigmund (1930/1987). O mal-estar na civilização. Ed. Stan­


dard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. 2a ed. Rio de Janeiro,
Imago, 1987, vol. XXI. p. 73-171.

LACAN, Jacques (1966). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LACAN, Jacques (1969-1970). O seminário, Livro 1 7: O avesso da Psica­


nálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

LACAN, Jacques (1972-1973). O seminário, Livro 20: Mais, ainda. Rio de


Janeiro, Jorge Zahar, 1982.

LACAN, Jacques (1974). La tercera. In: lntervenciones y textos 2. Buenos


Aires: Manantial, 1993.

PACH ECO FILHO, Raul Albino (2009). A praga do capitalismo e a peste


da psicanálise. A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade. São Paulo, v.1,
n.0 1, p.143-163, jan./ju n., 2009.

63
O DESTINO DA ANATOMIA

lzabel Haddad Marques Massara

"Quem sabe o que se passa no seu corpo?


Eis aí alguma coisa extraordinariamente sugestiva."
(LACAN, 1962, p.145)

"A anatomia é o destino", d iz Freud (FREUD, 1924[1969], p.


153), fazendo vacilar um d ito de N a poleão no texto "A dissolução do
complexo d e Édipo". A verdade é que o fato de termos u m corpo e
u m inconsciente nos traz i ncômodos e mistérios suficientes, já que
o a rcabouço corpóreo é o lugar privilegiado para u ma espécie de
simbol ização do próprio gozo q u e captu ra o corpo. Tendo e m vista
q ue, para a Psicanálise, a diferença entre os sexos não se reduz à
d i ferença a natô mica, mas que essa ú ltima va le, como a n u ncia F reud
em 1925, por suas conseq uências psíq u icas, podemos afi rmar, com
propriedade, que a a natomia não é de todo sem destino.
Na própria clínica psicanalítica, o fato de se ter u m corpo com os
caracteres anatômicos bem marcados não diminui a dificuldade de se
assumir a identificação sexual com todos os signos e os símbolos que
podem representá-la. Para a teoria freudiana, a identificação sexual está
articulada à dinâmica pulsional, configurando-se como um processo

65
Pskanálise e Hospital

complexo que se sucede de forma diferenciada entre um e outro sexo,


sendo singular o modo como ele se passa para os dois, até a chamada
fase fálica. De toda forma, a chamada bissexualidade anatômica e psí­
quica demonstra que o desenrolar da constituição sexual de todo sujeito
nunca desemboca em um resultado puro, com u ma proporção exata.
Desse corpo estrangeiro, que nasce para o sujeito como u m cor­
po despedaçado, parte-se para uma integração da i magem que pode
ser elucidada a partir do esquema conceitual proposto por Lacan no
chamado estádio do espelho1• Daí a importância da i magem do corpo
na formação do Eu. Corpo que não é puramente biológico, mas um cor­
po marcado pela metáfora do significante, habitado pela libido, sulcado
·
�r uma inscrição da l i nguagem. O corpo anatôm ico pode, entretanto,
ser abordado a partir dos três registros lacanianos: Real, Simbólico e
Imaginário. O imaginário apresenta a forma como a i magem do corpo,
a partir do outro, marca a constituição do sujeito. O corpo d ividido pelo
sign ificante é o corpo simbólico, falado e atravessado pela l i nguagem.
Já o corpo referido ao registro do real é aquele que escapa à ordenação
pelo sign ificante e cuja consistência imagi nária falha, funciona como
uma caixa de ressonância de onde reverberaria o som da energia psí­
quica. Na verdade, a j u nção entre o sign ificante e a i magem do corpo é
que vem dar corpo ao real.
As diferenças sexuais, causadas por u ma mescla da incidência do
simbólico, do imaginário e do real, podem, então, ser defin idas como
o resu ltado do conjunto dos movimentos psíqu icos q ue permitirão ao
sujeito referir-se a seu próprio sexo anatômico e a posicionar-se como
homem ou como mulher diante dele. Para meninos e meninas, o per­
curso até a chamada sexuação guarda uma relação estreita com o cor­
po anatômico, como afirma Genévieve Morei:
Nesse percurso que vai do complexo de Édipo ao com­
plexo de castração, para o menino, e o inverso para
a menina, a anatomia permanece essencial. De início,
aquela do ponto de partida, depois, aquela do ou-

1 Subtítulo O estádio do espelho como formador da função do eu em Escritos.

66
O destino da anatomia

tro sexo: para aquele que tem um pênis, a percepção


de sua ausência na menina dará seu peso de real à
ameaça de castração do adulto; para aquela que não
tem pênis, é diante de sua visão que ela sucumbirá ao
Penisneid. Sem contar a importância decisiva da ana­
tomia materna, de uma parte, para a estrutura - neu­
rótica, perversa ou psicótica - de outra parte, para o
processo de diferenciação sexual. Essa breve evocação
está aqui apenas para fazer valer o recuo aparente da
importância da anatomia no ensinamento de Lacan,
uma vez que nesse contexto ele aborda o sexo pelo
viés do gozo e da linguagem, e não mais em termos de
desenvolvimento. (MOREL, 2004, p. 1)

É claro que, d ia nte da ausência ou presença do pênis, instau ra-se


a inveja por não tê-lo ou a ameaça de perdê-lo. É a partir dessas pri­
meiras impressões que o traço anatômico deixa marcas psíquicas para
a m bos os sexos. E mbora, em alguns momentos, Lacan tenha posto em
discussão a afirmação freudiana da anatomia como destino, pois, se­
gundo seu argumento, ela se encontraria i ncompleta, ele não a exclui
de todo. No "Seminário 20 - Mais, ainda", ele não se furtou de anunciar
que o termo "anatomia" trazia consigo, na sua própria eti mologia, uma
questão importante: sendo a na tomia2, em seu sentido estrito, uma
função de corte. A função de corte estaria relacionada, na Psicanálise,
ao sujeito e ao desejo.
O que se sabe, em relação à anatomia, é que se relaciona com a
Medicina e com a técnica da d issecação, mas, na Psicanálise, o despeda­
çamento do corpo e tudo o que pode referir-se à sua divisão remetem­
nos à relação do sujeito com seu desejo. É no i nstante do corte, que
chamamos de castração, no momento em o que objeto a é extraído e
se faz de resto da operação simbólica, que o desejo se anima para u m
sujeito, pois é nesse momento que e l e perde algo: "Não somos objeto
de desejo senão como corpo". (LACAN, 1962[2005], p. 23)

2 Termo usado por Lacan no Seminário Mais ainda, p.127.

67
Psicanálise e Hospital

Se a constituição do sujeito trata da d imensão do corpo, refe­


rindo-se a ele como olhar, voz, seio etc., a questão do desejo se coloca
como ponto importante para a pergunta sobre a anatomia, pois é na
função de corte do desejo que se dá a constituição do sujeito. Em rela­
ção a essa função de corte, não poderíamos deixar de levantar a ques­
tão sobre a própria castração.
Na teoria freudiana, a castração se coloca como uma privação do
órgão; o que nos rememora que foi Freud mesmo quem nos disse que,
nesse sentido, é em uma "rocha biológica"3 (LACAN, 1962[2005], p. 260)
em que esbarramos. Embora, à primeira vista, pareça-nos que a ana­
tomia não seja o destino, e que Freud, ao sustentar essa tese, teria se
equivocado.acompletamente, não podemos supor que a forma do corpo
seja sem consequências psíquicas para homens e mulheres. O corpo,
investido pelo outro, deve ser assumido pelo sujeito como seu, a partir
de u ma ação psíquica de reconhecimento. Entretanto, não há entre o
sujeito e o corpo uma ligação de conaturalidade, ou seja, eles não se
articulam por uma espécie de afinidade natural. O trabalho despendido
para transformar essas duas naturezas disju ntas em u m arcabouço úni­
co e consistente é árduo.
Há, inegavelmente, um rastro deixado pela questão anatômica e
por seus efeitos sobre a comparação imag inária dos corpos em vários
momentos da constituição do sujeito. É como u ma metáfora em que
se apreende o corpo, embora, nem sempre, a afinidade com ele seja
harmônica, como Lacan acentua ao referir-se "à relação com o corpo, re­
laçãojá tão imperfeita em todos os seres humanos" (LACAN, 1975[1999],
p.145). Lacan chega a sugerir, no "Seminário - livro 23", que a relação
do sujeito com seu corpo demonstra o modo como se dá sentido ao
próprio inconsciente, ou como também o próprio inconsciente dá sen­
tido ao sexual.
A castração é um evento comum para ambos os sexos e, en­
quanto tal, é marcada pela relação do sujeito com o operador fálico, em

3 Expressão usada por Lacan para se referir ao que Freud disse sobre o fato biológico no
final do texto Análise terminável e interminável.

68
O destino da anatomia

torno do qual se organiza o gozo. Mas a relação do homem e da mulher


com a referência fálica certamente não é a mesma. O homem, de acor­
do com seu desejo, busca sua satisfação na mulher: "ele também vai
a procura do falo. (. ..) É justamente por não encontrar esse falo ali onde
ele o procura que ele vai procurá-lo em tantos outros lugares" (LACAN,
1957[1999], p. 363). No "Seminário - livro 5", o falo é colocado em po­
sições diferentes para a mulher e para o homem. Para ela, o falo estaria
enca rnado nesse pênis simbólico, que se acha no i nterior do cam po do
seu desejo, ao passo que, para o homem, ele está no exterior (lbid., p.
364). Por isso, a relação amorosa ficaria no lugar da inexistência de uma
relação sexual, pois o homem procura na mulher o que ela não é: "é dar
aquilo que ele não tem, o falo, a um ser que não o é". (lbid.)
Além disso, a diferença entre os sexos fica clara nas fórmulas da
sexuação. Nessa referência, Lacan se posiciona dizendo que, de um lado,
está a posição feminina, não toda referida ao falo e, do outro, a posição
masculina, para quem a excessão reafirma o universal masculino da su­
jeição ao falo. Desse modo, os seres que se agrupam de lados opostos se
distribuem entre homens e mulheres a partir da sexuação, e Lacan desta­
ca, nesse momento, u ma certa deriva em relação à anatomia:
A todo ser falante, como se formula expressamente na
teoria freudiana, é permitido, qualquer que ele seja,
quer ele seja ou não provido dos atributos da mascu­
linidade - atributos que restam a determinar - inscre­
ver-se nesta parte [a feminina]. Se ele se inscreve nela,
não permitirá nenhuma universalidade, será não-todo,
no que tem a opção de se colocar na <Px ou bem de
não estar nela. (LACAN, 1972[1985], p. 107)

São d iversos os momentos, entreta nto, nos q u a i s a teoria l a ­


ca n i a n a pa rece fazer referência à d iferença a n atôm ica, já q u e, para
essa d i sti nção, la nça mos mão dos termos homem e m u l her. Nas
citações abaixo, podemos perceber, mais u ma vez, o destino do
m e n i no e da m e n i n a d i a nte da constatação da presença e da a u ­
sência do p ê n i s no corpo:

69
Psicanálise e Hospital

Ainda me lembro da imagem cativante apresenta­


da pela menininha diante do espelho.(...) O gesto da
garotinha, com a mão passando rapidamente sobre o
gama formado pela junção do ventre com as duas co­
xas, como que em um momento de vertigem diante
do que via.
Já o menino probrezinho olha para a torneirinha pro­
blemática. Desconfia de que há uma esquisitice ali. De­
pois será preciso que aprenda que aquilo que ele tem
ali, não existe comparado ao que tem o papai. Depois
ele apreenderá que isso não só não existe, como só
faz o que lhe dá na telha. Ele terá de aprender pas­
so a passo como riscá-lo do mapa de seu narcisismo,
justamente para que isso possa começar a servir para
alguma coisa. (LACAN, 1962[2005,] p.223)

Nossa questão se lança em direção ao que Lacan escreve para •


d iferenciar os dois sexos, como nas ilustrativas citações acima. A menina,
de saída, diante da própria imagem no espelho se depara com uma falta
anatômica. O menino engana seus sentidos quando olha e vê algo a mais
e, a partir dali, acredita que tem a verdadeira posse do órgão viril, embora
não saiba ainda o que fazer com sua "torneirinha problemática". O que
mais importa à nossa hipótese é que essa presença real do órgão fálico,
mesmo fazendo parte das elaborações feitas pela criança nos primórdios
da sexuação, viria a trazer consequências, ainda que imaginárias, para o
sujeito. Levando em conta, ainda, a importância primordial que tem o
imaginário na constituição do sujeito: "Na relação imaginária, como vocês
sabem, a imagem de si, do corpo, desempenha no homem papel primor­
dial e acaba dominando tudo". (LACAN, 1957[1999], p.284)
A castração se coloca de forma diversa para esses dois seres, sen­
do caracterizada, no "Seminário, livro 4 - A relação de objeto", pela falta
simbólica de um objeto imaginário. No cortejo das vicissitudes abertas
à constituição do sujeito, temos, partindo da constatação da castração
e da angústia gerada por ela, u ma série de implicações, já que refor-

70
O destino da anatomia

çamos a tese freudiana de que: "a distinção morfológica está fadada a


encontrar expressão em diferenças de desenvolvimento psíquico" (FREUD,
1924[1969], p. 222). Ou, d ito de outra forma, nas palavras de Lacan:
A relação inominada do sujeito com o significante puro
do desejo se projeta sobre o órgão localizável, preciso,
situável em alguma parte do conjunto do edifício cor­
poral. Daí esse conflito propriamente imaginário, que
consiste em ver a si mesmo como privado ou não pri­
vado desse apêndice. (LACAN, 1960, [1992] p. 242)

Nesse caso, fala-se da privação, ou seja, o dano imaginário de


um objeto real, pois, mesmo sabendo que as três operações (frustração,
privação e castração) tratam de faltas reais, simbólicas e imaginárias,
respectivamente, isso não é sem consequências para homens e mullhe­
res, principalmente em relação ao que se inscreve pela via do imaginá­
rio, pois esse registro é o que dá consistência à relação do sujeito com
os objetos. Basta que lembremos o momento em que Lacan se refere
ao estádio do espelho: "A dimensão imaginativa, é disto justamente que
a gente se alimenta". (LACAN, 1972[1985], p. 24)
É claro, pois, o papel decisivo da nostalgia imaginá ria que supõe
a ausência de algo real no corpo, e isso "parece ser ainda mais impor­
tante para os membros da humanidade a quem falta o correlato real, a
saber, as mulheres" (LACAN, 1956 [1995], p. 70). Lacan chama o pênis de
"correlato real" e acredita que, em relação ao imaginário, há uma distin­
ção marcante que deixaria as mulheres em u ma posiçao rad icalmente
diferente dos homens:
Não há propriamente, diremos nós, simbolização do
sexo da mulher como tal. Em todo caso, a simbolização
não é a mesma, não tem a mesma fonte, não tem o
mesmo modo de acesso que a simbolização do sexo
do homem. E isso porque o imaginário fornece apenas
uma ausência, ali onde alhures há um símbolo muito
prevalente. (LACAN, 1955[1985], p. 201)

71
Pslcanállse e Hospital

Nos diversos momentos em que a teoria laca n iana se referiu


ao termo mulher, pudemos perceber uma variação de formas, ou seja,
não foi à toa que Lacan d isse que, na conta da m u l her, podia ser co­
locada m u ita coisa: a m u l her sintoma do homem, a mulher como a
verdade, a m u l her como outro rad ical, a m u l her no l ugar do objeto
a. Será que todas essas tentativas de apreendê-la, sem que, contudo,
tenhamos chegado a uma resposta, teriam u ma relação com seu gozo
e sua anatomia enigmática?

Anatomia feminina

Para Lacan, o sexo fem i n i n o teria uma característica de "ausên­


cia, de vazio, de buraco, que faz com que aconteça ser menos desejável
que o sexo masculino no que ele tem de provocante, e com que uma
dissimetria essencial apareça" (LACAN,1955[1985], p. 202). A m u lher,
de fato, possui a falta daquele que Lacan chama de "correlato real",
a saber, o pênis. O homem tem o órgão que representa seu sexo no
corpo, já, no caso da m u l her, a natureza de seu órgão sexual está
cercada de enigmas. Não podemos confu n d i r falo com pênis, temos
de concordar com Lacan no momento em que ele d iz que: "o falo é
definido como imaginário não sendo possível confundi-lo com o pênis,
em sua realidade, que é, propriamente falando, a sua forma, a imagem
erigida". (LACAN, 1956[1995], p. 70)
Entretanto, como a falta caracterizada pela ausência do falo é
imaginária, isso indica que a falta estará sempre presente para ambos
os sexos. Quanto à falta do pênis, por outro lado, trata-se de uma ca­
rência real. Temos a castração e a frustração relacionadas ao falo e ao
pênis, respectiva mente, segundo as elaborações do seminário "A rela­
ção de objeto", ou seja, há castração simbólica de u m objeto i maginário
e frustração imaginária de um objeto real. Então, se aqueles a quem
chamamos de homens "podem se assegu ra r de possuir sua realidade"
corporificada na presença do orgão fál ico - o pênis -, isso nos colo-

72
O destino da anatomia

ca diante da constatação inegável de que, para as m u lheres, as coisas


não a penas devem complicar-se um pouco, mas também devem tomar
outro rumo justamente nesse ponto, isto é, alguns homens imaginaria­
mente resolvem muitos de seus conflitos e assumem verdadei ramente
o uso desse orgão como lícito e como substituto, mesmo que não tão
legítimo, do falo.
"Na relação imaginária, a imagem de si, do corpo, desempenha
no homem um papel primordial e acaba dominando tudo" (LACAN,
1957[1999], p. 284). De saída, a citação acima nos coloca diante da
questão com a a natomia. Para além da relação dual, do homem com
a i magem cativante de seu próprio corpo, a i ntrodução da dimensão
simbólica indica que algo da i magem não pode ser recoberto comple­
tamente pela simbolização. Em sua constituição mínima, além do eu e
da i magem, é preciso i ntroduzir u m terceiro elemento para que o sujei­
to entre nas "condições do significante" (LACAN, 1957[1999], p. 284). A
entrada de u m símbolo, de u m significante, marca para o sujeito uma
falta fundamental, que coloca diante dele o seu próprio desejo.
No "Seminârio - Livro 5", encontramos o esquema em forma de
triângulo que fornece o modo como operam os elementos no registro
do imaginário, sendo eles o sujeito, a imagem e a letra q> (o falo). A
função do falo na dialética que i ntroduz o sujeito em sua existência
pura e simples - e, como diria Lacan: "Na sua posição sexual" (LACAN,
1957[1999], p.285) - faz dele o significante fundamental para que seu
desejo se reconheça como tal. Para Lacan, seja o sujeito quem for, ele se
remete a essa referência fál ica.
Entretanto, seria i ngênuo de nossa parte acreditar que essa ima­
gem do corpo que, segundo Lacan, "domina tudo", não produzirá seus
efeitos mesmo depois que o significante fundamental, que é o falo, fizer
sua aparição. Esse significante inaugu ra o campo simbólico, e é nesse
campo que os sujeitos se colocam como sexuados. Porém, até mesmo
nessa nova etapa da constituição do sujeito, e nas seguintes, um destino
precisa ser encontrado para a anatomia. Há uma i nfluência dos caracteres
sexuais sobre o psiquismo marcando um fenômeno que se passa com o
"sujeito menina" ou no "sujeito feminino", como diz Lacan,

73
Psicanálise e Hospital

( ... ) manifesta-se no sujeito menina um desejo deli­


berado do pênis paterno, o que, como nos é muito
justificadamente sublinhado, implica, portanto, um
reconhecimento do pênis, não fantasístico, não em
geral, não na penumbra ambígua que a todo instante
faz com que nos perguntemos o que é o falo, mas em
um reconhecimento da realidade do pênis. Não esta­
mos no plano da pergunta - será que ele é imaginário
ou não? Naturalmente em sua função central, o falo
implica essa existência imaginária. Em diversas fases
do desenvolvimento dessa relação o sujeito feminino
pode, contrariando a tudo e a todos, sustentar que o
possui, mesmo sabendo muito bem não possuí-lo. Ele
o posssui simplesmente como imagem, quer o tenha
tido, quer deva tê-lo como é frequente. Aqui, porém
segundo o que é dito, trata-se de outra coisa. Trata-se
de um pênis percebido como real, e como tal espera­
do. (LACAN, 1957[1999], p. 305)

Se não é da anatomia que se trata, por que o "sujeito menina"


procu ra a realidade i magi ná ria do falo e encontra, algumas vezes, um
caminho na i magem do pênis que chega até ela como real? A afirma­
ção de que a função central do falo pode encarnar-se naturalmente na
existência imaginária do pênis nos coloca diante de uma questão que
se d irige à anatomia fem i nina.
Jacques Alain M iller, em u ma passagem do seminário "As mu­
Lheres e os semblantes", parece tam bém tecer uma sutil ligação entre o
edifício anatômico e o que ele chama de "nada":

A história e a antropologia testemunham uma preocu­


pação constante da humanidade de velar e cobrir as
mulheres. De certo modo, dizemos que se cobrem as
mulheres porque não se pode descobrir a mulher. De
tal forma que devemos assim inventá-la. Em certo sen­
tido chamamos de mulher esses seres que possuem

74
O destino da anatomia

uma relação essencial com o nada. Todo sujeito tal


como Lacan o define possui essa relação com o nada.
Mas de certo modo esses sujeitos que são as mulheres
têm uma relação mais essencial, mais próxima com o
nada. (MILLER. 2003, p. 83)

Afirma-se que a mulher está essencialmente mais próxima dessa


ligação com o nada, mas, se, para a Psicanálise, homens e mulheres po­
dem se posicionar em relação ao significante fálico de maneiras idên­
ticas, ou seja, se não depende do corpo anatôm ico para que alguém
se posicione como mulher ou como homem nas tábuas da sexuação, e
sim de como esse sujeito se porta diante do significante fundamental,
o que marcaria a diferença em relação a essa enigmática aproximação
das mulheres com o "nada"? Não podemos nos esquecer de que, se
existem diferenças entre homens e mulheres, u ma delas é a anatomia,
por isso, u ma pergunta insiste: O nada ao qual M iller faz alusão poderia
estar relacionado à anatomia ou o nada estaria sugerindo que, para a
m u l her, o significante fálico não serve de todo?
As q uestões concernentes ao papel da d istinção anatômica para
o psiquismo de um sujeito parecem passar pela ideia de um objeto sim­
bólico que encontra seu representante no significante fálico. Entretanto,
imaginariamente, a i magem do pênis erigida é um dado relevante nessa
operação, ou melhor, é claro o papel decisivo da nostalgia i maginária
sobre a suposta ausência de um apêndice no real do corpo para a mu­
lher, o que é reafirmado pela teoria: "parece ser ainda mais importante
poro os membros do humanidade o quem falto o correlato real, o saber;
os mulheres". (LACAN.l956[1995], p. 70)
É nesse sentido q ue, em relação às mulheres, o fato de não pos­
suir esse "correlato", e de, talvez, ter eternamente a esperança de pos­
suí-lo, mesmo que seja o de seu parceiro, faz com que elas se encon­
trem não apenas com um gozo desdobrado4 em relação ao significante

4"'La femme a rapport à S (1..) et c'est en cela qu'elle se dédouble"'. (LACAN, l972[1985],
p. 75)

75
Psicanálise e Hospital

fálico, mas com uma série de qualidades e lugares que atenuam mais
ou menos bem sua necessidade de falo. É claro, na clínica feminina , o
quanto é difícil persuadir algumas mulheres de desistir da busca por u m
pênis, o que s e traveste na busca por um parceiro. E, mais ainda, de que
se fixar nessa busca a ponto de o homem se tornar a coisa mais i m por­
tante de sua vida não é necessariamente a melhor saída.
Em nenhum ponto de nosso trabalho analítico se sofre
mais da sensação opressiva de que todos os nossos
repetidos esforços foram em vão e da suspeita de que
estivemos "pregando ao vento", do que quando esta­
mos tentando persuadir uma mulher a abandonar seu
desejo de um pênis. (FREUD, 1937[1969], p. 286)

Se elas apresentavam algo radical m ente diferente dos homens,


que d iferença isso faria se a a natomia não tivesse nenhuma i mpor­
tância? Parece temerário de nossa parte o l h a r as tábuas da sexuação
e não se q uestionar por q ue, em todo o "Seminário - livro 20", Lacan
nomeia o sujeito que ele l ocal iza do lado do não-todo com o termo
mulher. Se essa desig nação exc l u i total mente a referência anatômi­
ca, como discern i r a participação do corpo na d istinção entre os dois
lados das fórmu las da sexuação? Se se trata somente de um posi­
ciona mento em relação ao significante fálico, por que chamar então
os sujeitos que se coloca m a í, de lados contrários, de homens e mu­
lheres? Essa já não seria uma desig nação de gênero que causaria,
no m í n imo, u m a i n q u ietação? Ou mel hor, o desdobramento, que a
m u l h e r sofre nas tábuas entre o sign ificante fál ico e fora dele, pode
sofrer a l g u ma determi nação oriunda da falta do órgão no corpo? O
Outro gozo, do qual a m u l her seria parceira, seria a prova de que,
no corpo da m u l her, esse gozo "contíg uo"5 não encontra um órgão
pa ra se real izar e, por isso, padece de u ma errância pelo corpo? Po­
deríamos d izer que, no corpo masculino, o gozo encontra um órgão
que lhe faz uma borda, loca l izando-o no reg ime fál ico? A falta de

5 "A sexualidade feminina aparece como o esforço de um gozo envolto em sua própria
contiguidade". (LACAN, 1966[1998], p.714)

76
O destino da anatomia

localização precisa para o gozo faz com que, na m u lher, o mesmo se


espalhe por todo o corpo?
O fato de não existir no arcabouço corpóreo uma "imagem
erigida"6, intumescente, que demonstre tratar-se de um corpo vivo, ob­
jeto que tenha contorno visível, ou mesmo que ocupe espaço e que
possa ser medido por seu tamanho, apresenta uma questão para aque­
les seres que não possuem esse apêndice no corpo? Para a mulher, o
fato de experimentar a existência da vagina, não a isenta de também se
deparar com esse mistério, guardado a sete chaves nas trevas inviola­
das: orgasmos mú ltiplos, frigidez, ponto G, orgasmo vaginal e d itaria­
no. A diferença da configuração anatômica geraria toda uma série de
consequências imaginárias ou psíquicas?
É no corpo masc u l i no que se pode nota r o q u e Laca n chama
de "o esboço do corte" ( LACAN, 1962 [2005]. p. 261), ou seja, no ho­
mem, há u m a sepa ração entre corpo e o ó rgão - o a molecimento,
a afâ n ise, o desaparecimento da fu nção do ó rgão, do pên is, pela
detu mescência. Nesse momento, alcançamos o l u g a r que Freud
chamou de " rocha biológ ica", pois, no homem, a fu nção do órgão
copulatório, no nível biológ ico, fica clara. N ele, o orgasmo tem um
lugar e um órgão para existir, enqua nto, na m u l her, pela pró p ria
natureza do arcabouço a natômico, "o orgasmo vaginal guarda in­
violadas suas trevas" (LACAN , 1966[1998]. p. 737). O enigma do or­
gasmo fem i n ino pode ser u m a das causas da anato m i a ? A a natom ia
pode ser u m a das causas do desdobramento que a m u l her sofre em
relação ao s i g n ifica nte fá l ico?
Sabe-se que Lacan enfatiza que a d ificuldade em relação à se­
xualidade feminina encontra-se no fato de que a menina, apesar de
também ser perpassada pela primazia do falo, "se considera, nem que
seja por um momento, castrada, na acepção de privada do falo" (LACAN,
1966[1998], p.693). Essa constatação nos remete aos efeitos que a reali­
dade anatômica provoca em relação à realidade psíquica. O inconsciente

6 "O falo é definido como imaginário não sendo possível confundi-lo com o pênis, em
sua realidade, que é, propriamente falando, a sua forma, a imagem erigida". (LACAN ,
1 956[1 995), p.70)

77
Psicanálise e Hospital

reconhece a presença e a ausência, e é possível constatar que existem


efeitos causados pela comparação imaginária entre os corpos, embora
a anatomia não seja de todo o destino, ela o é não-todo.
Diante do legado anatômico das mulheres, resta-lhes lidar com
toda uma série de faltas, recoloridas e recolocadas, principalmente pela
imaginarização da privação desse apêndice no próprio corpo, justamen­
te por haver a linguagem. "Sua posição é essencialmente problemática
e até um certo ponto inassimilável" (LACAN, 1955(1985), p. 204). A pre­
sença do pênis no homem parece enganar seus sentidos e sua angústia
por alguns instantes, e isso, como sabemos, não é sem efeitos. A ilusão
em relação à presença, no corpo, de um substituto do falo reaparece
em uma série de repercussões, tanto no amor como na escolha objetai.
Haja vista a diferenciação que Lacan faz da forma de amor erotômano
na mulher (pois o ciúme tem sua raiz fixada na importância que a mu­
l her dá ao falo do parceiro) e a forma fetichista do amor do homem,
que conduz o corpo feminino a uma parcialização e, poderíamos dizer,
a quase uma dissecação anatôm ica.
A hipótese anatômica parece ir ao encontro das formulações la­
canianas, mas isso não se realiza de fato, pois, em determinados mo­
mentos, Lacan reconhece a importância da anatomia, principalmente
em relação ao registro do imaginário. Foi por esse motivo que não nos
furtamos em levantar essa hipótese polêmica de que a anatomia fe­
minina carrega as insígnias de um corpo onde algo é rad icalmente di­
ferente. Essa diferença, entendida pelo inconsciente como falta, tem
repercussões no próprio gozo e no encontro com os objetos: "O verda­
deiro testemunha então aqui que, ao pôr em guarda, como ele faz, contra
o imaginário, tem muito a ver com a na tomia" (LACAN, 1972(1985),
p. 127), ou seja, Lacan sugere, em alguns trechos do "Seminário, livro
20 - mais, ainda", que a mulher se inscreve em relação a seu desejo a
partir de uma contingência corporal. O gozo próprio da posição mas­
culina pode estar localizado no órgão fálico, o da mulher não. O gozo
fem inino não tem posição preestabelecida no corpo e, por isso, ele se
deposita de acordo com uma contingência da própria anatomia.

78
O destino da anatomia

Este artigo não pretendeu responder a todas as q uestões levan­


tadas, nem mesmo foi possível afirmar ou negar que a anatomia seja o
destino, entretanto, não evitamos trazer à tona u ma questão espinho­
sa e, em alguns momentos, até mesmo recalcada pela própria teoria
da Psicanálise. Se a q uestão das consequências psíquicas de se ter u m
corpo anatômico ainda é um enigma, não devemos, por isso, recuar.
Sabemos que a questão anatômica sem a linguagem e sem a marca do
significante não representa m u ito para o sujeito, entretanto, se a anato­
mia pode ser referida a u ma questão mítica relacionada ao real biológi­
co, fazendo sua aparição em u m corpo que adoece, goza, vive e morre
de certa forma, à nossa revelia, então deveríamos seguir o conselho
de Lacan: " Todavia só podemos nos referir ao real teorizando". (LACAN,
1956[1995], p. 3 1)

79
REFER�NCIAS

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. (1905). In: Obras


Completas. Rio de Janeiro, Imago Ed., 1969.

FREUD, S. A dissolução do complexo de Édipo. (1924). In: Obras Com­


pletas. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

FREUD, S. Análise terminável e interminável. (1937). In: Obras Completas.


Rio de Janeiro: !mago, 1969.

LACAN, J. Seminário Livro 10 - A angústia. (1962). Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 2005.

LACAN, J. Seminário Livro 4 - A relação de objeto. (1956). Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1995.

LACAN, J. Seminário Livro 5 - As formações do inconsciente. (1957). Rio


de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

LACAN, J. Seminário Livro - 23 O Sinthoma. (1975). Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 2007.

LACAN, J. Seminário Livro 20 - Mais, ainda. (1972). Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 1985

80
LACAN, J. Escritos. (1966). Río de Janeíro: Jorge Zahar, 1998.

MOREL, G. Anatomía analítíca. In: FORBES, J. (org.). Psicanálise: Proble­


mas ao feminino. São Paulo: Papírus, 1996.

MILLER, J. Sobre mulheres e semblantes. Buenos Aíres: Edítora Paídós,


2003.

81
MELANCOUA: INTERESSANTE,
INSTIGANTE E PERIGOSA

Rosa Carla de Mendonça Melo Lôbo

Narciso era um belo rapaz que todos os dias ia


contemplar sua beleza em um lago. Era tão fascinado por
si mesmo que, certo dia, caiu dentro do lago e morreu
afogado. No lugar onde caiu, nasceu uma flor,
que chamaram de narciso.
Quando Narciso morreu, vieram as Oreiades -
deusas do bosque - e viram que o lago havia
se transformado de um lago de água doce em
um cântaro de lágrimas salgadas.
- Por que você chora? - perguntaram as Oreiades.
- Choro por Narciso - respondeu o lago.
- Ah, não nos espanta que você chore por Narciso -
continuaram elas.
- Afinal de contas, apesar de todas nós sempre corrermos
atrás dele pelo bosque, você era o único que tinha a
oportunidade de contemplar de perto sua beleza.
- Mas Narciso era belo? - perguntou o lago.
- Quem mais do que você poderia saber disso? -
responderam surpresas as Oreiades.

83
Pskanálisc c Hosp ital

- Afinal de contas, era em suas margens


que ele se debruçava todos os dias.
O lago ficou algum tempo quieto e, por fim, disse:
- Choro por N arciso, mas jamais havia
percebido que Narciso era belo.
Choro por N arciso porque, todas as vezes em que ele se
deitava sobre minhas próprias margens, eu podia ver no
fundo dos seus olhos m i n ha própria beleza refletida.
(A Lenda de N a rciso)

Já é fato que o mundo moderno, globalizado e desenfreado tem


proporcionado uma sociedade extremamente narcisista.
Uma q uestão, portanto, nos toma em consideração quando
pensamos esse mundo moderno: as patologias que, com grande fre­
quência, têm se apresentado em u nidades de saúde e em nossos con­
sultórios são enca m i n hadas com u m prévio diagnóstico d e depressão,
seja "atestado" por um profissional ou pelo senso com u m .
Os registros de saúde pública declaram u m crescente número d e
deprimidos, e as estatísticas n ã o são otimistas a o revelarem as estimati­
vas para os próximos a nos. Segu ndo a Organ ização M u ndial da Saúde,
até 2020, a depressão será a segunda causa principal de incapacidade
para o trabalho no mundo. Há de se destacar que, em cada dez con­
dições incapacitantes dos indivíduos, cinco são psiquiátricas, em que a
depressão maior, u nipolar, surge como a primeira delas.
No entanto, temos percebido uma generalização do termo de­
primido. Parece existir algo de i ntolerável no ver o outro triste. Fato
comum nas enfermarias e corredores de hospital. Essa banalização do
termo nos a lerta para a i mportância do diagnóstico diferencial para
condução do tratamento adequado.

84
Melancolia: interessante, instigante e perigosa

De u ma forma geral, podemos dizer que a depressão estaria


ligada a organizações neuróticas e psicóticas da personalidade. E a tris­
teza seria, portanto, um estado de humor, presente ou não nos estados
depressivos. (ZIM ERMAN, 2001)
O Dicionário de Língua Portuguesa Michaelis (2007) define como
luto o estado de tristeza profunda, em situações de calamidade, dor,
mágoa ou aflição por perda ou morte de alguém. Aponta o termo de­
pressão como originário do latim depressione, cujo significado determi­
na a ação de deprimir, a baixamento de nível, a batimento físico e moral
e u ma diminuição. Completando o significado, do ponto de vista eco­
nômico e político, diz de um período de baixa atividade econômica e
um baixo nível de investimentos. Para a Psicanálise, interessante se faz
salientar também este último significado, haja vista as questões de in­
vestimento libidinal e as relações de objeto.
Transitando na área da Psiquiatria e da Psicanálise, encontramos
que os sintomas da depressão em geral são: baixa autoestima; senti­
mento culposo, sem causa definida; exacerbada intolerância a perdas
e a frustrações; a lto nível de exigência consigo próprio; submissão ao
julgamento dos outros; sentimento de perda do amor; e sempre um
permanente estado de algum desejo inalcançável.
O pai da Psicanálise, em um breve ensaio intitu lado "Sobre a
transitoriedade", parece iniciar suas considerações a respeito da ques­
tão do luto. Parte do conceito da libido para anunciar a dificuldade com
que esta se defronta ao ter de renunciar ao objeto em razão de u ma
perda e conclui: "Assim é o luto". E é neste escrito que ele nos diz: "[ ...] a
exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos
desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode,
não obstante, ser verdadeiro': (FREUD [1916], 1976, p. 345)
O luto é considerado um período normal, necessário à perda de
um objeto sem g randes conflitos, sem grandes a mbivalências. Porém,
na melancolia, a ambivalência e o conflito se mostram presentes. Pode­
mos considerar que ocorre a introjeção do objeto perdido, por morte
ou a bandono. (ZIMERMAN, 2001)

85
Psicanálise e Hospital

A este respeito, Freud estuda em profundidade, estabelecendo


importantes diferenças entre o luto e a melancolia.
Nesta célebre frase: "A sombra do objeto caiu sobre o ego" (1976,
p. 281), escrita em 1914 e publicada em 1917 em seu artigo "Luto e
melancolia", Freud descreve o processo de identificação característico
da melancolia. Esse artigo pode ser considerado um .prolongamento
do trabalho sobre o narcisismo, haja vista que as atividades do "agente
crítico", descrito nos casos da paranoia, também são consideradas por
Freud como atuante na melancolia.
Reporta-se ao afeto do l uto, considerado o estado normal de
e laboração das perdas, para tentar compreender a natureza da me­
la nco l i a, tendo em vista a s i m i la ridade entre esses estados. Ass i m,
Freud verifica q u e, em a lgu mas pessoas, pa rece existir u m a ten­
dência, u ma disposição patológica, para melancolia. Defi ne, então,
melanco l i a como
Estados mentais profundos característicos de um de­
sânimo penoso, a cessação de interesse pelo mundo
externo, a perda da capacidade de amar; a inibição
de toda e qualquer atividade e uma diminuição dos
sentimentos de autoestima a ponto de encontrar ex­
pressão em autorrecriminação e autoenvelhecimento,
culminando em uma expectativa delirante de punição.
(FREUD [1917], 1976, p. 276)

As características que se apresentam no estado do luto são as


mesmas encontradas na melancolia, porém está ausente a perturbação
da autoestima. No trabalho do luto, a libido que estava investida no
objeto perdido precisa ser retirada das lembranças, das fantasias e das
esperanças que a ligavam ao objeto. É preciso certo tempo para que o
ego adquira condições de novos investimentos e, assim, processe de
forma normal a perda dolorosa.
Encontramos o significado da palavra melancolia como originá­
ria do latim melancholia e do grego melagkholia, u m sentimento de
incapacidade, desgosto em relação à própria vida; a batimento; doen-

86
Melancolia: interessante, instigante e perigosa

ça mental (Psicose maníaco-depressiva), caracterizada por uma tristeza


profunda, vaga e persistente; hipocondria. (MICHAEUS, 2007)
Na real idade, pode-se considera r que a d iferença marcante entre
os dois estados de perda - l uto e melancolia - é que, no caso da me­
lancolia, ocorre u ma perda real ou emocional de natureza mais ideal, ou
seja, não se sabe ao certo "o que se perdeu", apenas "quem" foi perd ido.
Conclui-se, portanto, que, na melancolia, estão envolvidos processos
de uma perda i nconsciente.
Porém, é na condição enigmática do melancólico, em que se me­
nospreza, deprecia e se desvaloriza, chegando a considerar desprezíveis
também aqueles que sentem pena dele, que verificamos o empobreci­
mento do próprio ego, marcado por um delírio de i nferioridade.
As autocensuras e autodepreciações que caracterizam tal afecção
aplicam-se, na real idade, ao objeto que fora perdido e introjetado por
meio da identificação. A insatisfação com o ego é, pois, uma caracterís­
tica própria da melancolia, situação em que u ma parte do ego entra em
conflito com a outra, por julgamentos e críticas. "No luto, é o mundo que
se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego." (FREUD [1917],
1976, p. 278)
O empobrecimento do ego se deve ao d ispêndio de energia
a que ele fica submetido para tentar manter o controle alterado pela
abrupta retirada do afeto, no caso da perda do o bjeto: "[ ...] ele perde
uma quantidade tão grande de energia à sua disposição que tem de re­
duzir o dispêndio da mesma em muitos pontos ao mesmo tempo" (FREUD
[1926], 1676, p. 110). Portanto, eis aqui o nosso interesse em demons­
trar também o significado econômico e político da palavra depressão,
haja vista que a condição que caracteriza esse estado e a sua mais grave
forma, a melancolia, diz de uma condição de i nvestimentos.
Apesar de o a rtigo não ser considerado técnico, mas sim um
artigo metapsicológico, Freud alerta para a i mportância de o analista
não tentar contradizer as recriminações que o paciente faz a si próprio,
orientando para a i mportância da confirmação i mediata de tais declara­
ções. Destaca que u ma observação mais atenta irá nos mostrar que tais

87
Psicanálise e Hospital

acusações, por motivos de ordem moral, são d irigidas não a ele próprio,
mas a um objeto que ele "ama, amou ou deveria amar". (FREUD [1917],
1976, p. 280)
Existe, em um dado momento, uma escolha objetai,
uma ligação da libido a uma pessoa particular; então,
devido a uma real desconsideração ou .desapontamen­
to proveniente da pessoa amada, a relação objetai foi
destroçada. O resultado não foi o normal - uma re­
tirada da libido desse objeto e um deslocamento da
mesma para um novo -, mas algo diferente, para cuja
ocorrência várias condições parecem ser necessárias. A
catexia objetai provou ter pouco poder de resistência e
foi liquidada. Mas a libido livre não foi deslocada para
outro objeto; foi retirada para o ego. Ali, contudo, não
foi empregada de maneira não especificada, mas ser­
viu para estabelecer uma identificação do ego com o
objeto abandonado. (FREUD [1917], 1976, p. 281)

Embora tais acusações pareçam ser d i rigidas apenas ao objeto,


cabe destacar que algo de verdade pode existir capaz de justificar a
descrição que o melancólico faz de si, haja vista a identificação do ego
com o objeto. Freud então questiona: "[. ] ficamos imaginando por que
..

um homem precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie"
(FREU D [1917], 1976, p. 279) e lembramos aqui a i mportância do pro­
cesso analítico como o acesso mais salutar à verdade.
Na melancolia, o o bjeto perdido fica i ntrojetado e passa a fa­
zer parte integrante do ego sujeito de forma crônica e patológica,
como no processo de identificação, em que ocorre a transformação e
apropriação de aspectos e atributos, no caso em q u estão, da pessoa
perdida.
Apesar de o termo i ntrojeção não estar presente no a rtigo "Luto
e melancolia" (1917), seu conceito é de extrema i m portância para a
compreensão dos processos de incorporação psíquica, ligados à fase
oral e, estreitamente, relacionados com a identificação.

88
Melancolia: interessante, instigante e perigosa

O meca n ismo da identificação foi a p resentado no i mportan­


te a rtigo sobre "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (FRE U D
[1905], 1976). N o entanto, é no a rtigo " Luto e mela ncolia" que Freud
fal a da i m portâ ncia do papel da identifi cação como a ntecedente
à escolha o bjetai . E l e escreveu, então, a respeito da identificação,
q ue é "[ ... ] a primeira forma pela qual o ego escolhe um 'objeto":
acrescenta ndo q u e "o ego deseja incorporar a si esse objeto, e, em
conformidade com a fase oral ou canibalista do desenvolvimento
libidinal em que se acha, deseja fazer isso devorando -o': (FRE U D
[1917'Í . 1976, p. 282)
Em "O Ego e o id" (1923), Freud ressalta a i mportância dos pro­
cessos de identificação para a construção do caráter. Ele nos d iz: "[. ..] o
caráter do ego é um precipitado de catexias objetais abandonadas e ele
contém a história dessas escolhas de objeto" ([1923], 1976, p. 43). Escla­
rece ainda que, a princípio, na fase oral primitiva, as catexias objetais
são indistinguíveis, e apenas, posteriormente, tais catexias partem do
id em direção à satisfação. Porém, o ego, ainda fragilizado, se sujeita
ou tenta desviá-la pelo processo da repressão. No "penoso processo
da melancolia", a identificação parece ser a única alternativa para o id
conseguir abandonar os seus objetos.
Esse mecanismo regressivo, conhecido como introjeção, é fre­
quentemente utilizado nas fases mais primitivas do desenvolvimento e
de extrema i mportância para a formação das identificações e a constru­
ção do caráter do ego.
A lenda de Narciso, escolhida para iniciar este capítulo, busca
demonstrar a estreita relação existente entre o estado da melancolia
e o narcisismo, por meio da regressão da l ibido a esse estág io. Lem­
b rando que o "narcisismo é o amor do sujeito por sua própria imagem".
(LAPLANCHE E PONTALIS, 2004, p. 288)
Na melancolia, a identificação narcisista confere a condição de
satisfazer as exigências da catexia erótica, ao tempo em que, mesmo
em conflito com a pessoa amada, não abandona o i nvestimento amo­
roso. (FREUD [1917], 1976)

89
Psicanálise e Hospital

Faz-se necessário salientar aqui a i mportância das identificações


para a escolha o bjetai, lembrando que tais escol has podem ocorrer em
conformidade com o tipo narcisista ou em conformidade com o tipo
anaclítico.
Assim, em seu i m portante artigo "Sobre o narcisismo: Uma in­
trodução", Freud (1914) caracteriza o narcisismo primárío originário das
primeiras satisfações, autoeróticas e autossuficientes - o estado de "sua
majestade o bebê" - o ideal de toda perfeição. O narcisismo secundário
compreende o resultado dos investimentos do ego em busca de recu­
perar o modelo ideal, ou seja, o ideal do ego, um estado permanente
na estrutura do sujeito.
No entanto, é ainda no artigo "Luto e melancolia" que Freud
apresenta a diferença entre a identificação narcisista e a histérica, des­
tacando que, enquanto, na primeira, a catexia objetai é abandonada, na
segunda, ocorre a persistência e a i nfluência desta catexia que é voltada
para certas ações e inervações isoladas. Assim, conclui Freud: "Nas neu­
roses de transferência a identificação é a expressão da existência de algo
em comum, que pode significar amor". (FREUD [1917], 1976, p. 283)
Atento às condições da pesqu isa, buscando algo que compro­
vasse seus achados clínicos, Freud não se mostra satisfeito com o
material para comprovar sua teoria da predominância d o tipo narci­
sista da escolha objetai como sendo responsável pela tendência em
adoecer de melancolia, haja vista a i nsuficiência de material presente
na época. Em 1920, Freud esclarece os estudos i niciados em "Luto e
melancolia" e traz luz sobre a questão do narcisismo, atribu indo que a
l i bido que flu i para o ego pelas identificações constitui seu narcisismo
secundário. E, apenas em 1923, passa a considerar a melancolia entre
as neuroses narcísicas.
Afirmando que os conflitos responsáveis pela neurose de trans­
ferência partem do ego e do id, e que as psicoses se originam de u m
conflito entre o ego e o mundo externo, Freud, em seu escrito "Neurose
e psicose" (1923), inclui a melancolia entre as psiconeuroses narcísicas,
ou seja, oriundas de um conflito entre o ego e o superego. (FREUD
[1923], 1976, p. 192)
90
Melancolia: interessante, instigante e perigosa

Na explicação da dupla vicissitude sofrida pela catexia erótica na


melancolia, a saber, parte dela retrocedeu à identificação, mas a outra
parte, sob a influência do conflito devido à "ambivalência", é levada de
volta à etapa de sadismo, estando mais próxima do conflito. Freud pa­
rece solucionar o enigma da melancolia:
Tão imenso é o amor de si mesmo do ego (self-love},
que chegamos a reconhecer como sendo o estado pri­
mevo do qual provém à vida instintual, e tão vasta é a
quantidade de libido narcisista que vemos liberada no
medo surgido de uma ameaça à vida, que não pode­
mos conceber como esse ego consente em sua própria
destruição. (FREUD [1917], 1976, p, 285)

A ambivalência presente no melancólico pode ser manifestada


a partir de sentimentos de autopunição e autodestruição. Assim Freud
vem nos alertar diante da questão do suicídio, lembrando que, na neu­
rose, os pensamentos suicidas, de fato, são impulsos assassinos contra
os outros e que ele retorna para si. Explica, portanto, que, na melanco­
lia, o desejo de vingança do ego e seu consequente suicídio, devido ao
retorno à catexia objetai, só pode ocorrer caso o ego consiga tratar a si
mesmo como objeto. (FRE U D [1917], 1976, p. 285)
Destacamos q u e, e m " Reflexões para os tempos d e gu erra e
m o rte", Freud (1915) afi rma q u e ser h u ma n o a l g u m pode conceber
a sua própria m o rte, assi m ele nos d iz: " [ . ] no inconsciente cada um
. .

de nós está convencido de sua própria imortalidade". ( F R E U D [1915],


1976, p. 327)
E m "Psicologia de g rupo e anál ise do ego", Freud (1921) explica
q u e, em condições como o estado da melancolia, o ego fica separa­
do em duas partes, cindido, uma delas exigindo cruel mente sobre a
outra, e a segunda sendo aquela que, por meio da introjeção, contém
o objeto perd ido. Assim, conceitua u ma outra instância presente no
ego, isto é, "ideal do ego", capaz de isolar-se do próprio ego e exercer
a fu nção de "auto-observação, consciência moral, censura dos sonhos
e a principal influência na repressão': (FREUD [1921], 1976, p. 138)

91
Psicanálise e Hospital

Compreendemos assim os sentimentos autodestrutivos e a presença


da c u l pa no melancólico.
Ao tratar do sentimento de culpa em seu artigo "O Ego e o id"
(1923), Freud esclarece u ma importante distinção na condição desse
sentimento, q uando manifestado de forma consciente, como é o caso
da melancolia e da neurose obsessiva, e inconsciente; como nos casos
de histeria.
No drama da melancolia, o mecanismo do sentimento de culpa é
i ntensificado pela crueldade com que o ideal do ego invade severamen­
te o ego do melancólico e, diferentemente da neurose obsessiva, que
tenta se l ivrar de tal castigo, o melancólico admite a culpa e se submete
a ela. Na neurose obsessiva, os impulsos censuráveis se encontram fora
do ego e, como já descrito, na melancolia, o objeto i nvadiu, por meio
da identificação, o ego do sujeito.
No entanto, o curioso, nos diz Freud (1917), é que há de se conside­
rar que o estado da melancolia, assim como o luto, desaparece após algum
tempo sem deixar quaisquer vestígios. E o que é mais notável e fascinante
na melancolia, diz Freud, é de sua tendência a transformar-se em mania, o
que nada difere e distingue esses estados, em termos de uma luta contra
o mesmo "complexo". Porém, na melancolia, ocorre o domínio do ego pe­
rante o complexo, e, na mania, domina-o ou o põe de lado.
Em um dado momento, o ego que estava submetido à tirania
cruel do superego lança mão de mecanismos defensivos, triunfando
sobre o objeto que se apropriou de seu ego. Porém este triunfo tam­
bém permanece de natureza inconsciente. Assim o controle, o triunfo e
o desprezo caracterizam a exaltação presente na mania.
Vale salientar q ue, tomado pelo estado de mania, o ego que an­
teriormente se achava preso ao objeto perdido passa a buscar de ma­
neira desenfreada novas catexias objetais e, sendo assim, grande é o
dispêndio de energia ao qual o ego fica submetido. Como Freud nos
d iz: "Podemos aventurar-nos a afirmar que a mania nada mais é do que
um triunfo desse tipo; só que aqui, mais uma vez, aquilo que o ego do­
minou e aquilo sobre o qual está triunfando permanecem ocultos nele':
(FREUD [1917], 1976, p. 287)

92
Melancolia: interessante, instigante e perigosa

Freud (1917) caracteriza a especificidade da melancolia em três


precondições: a perda de um objeto com o qual fora narcisicamente
identificado, uma a mbivalência afetiva e uma regressão da libido ao
ego, sendo a ambivalência o ponto crucial da conflitiva.
Conclui-se, portanto, que, após a perda que envolve um obje­
to desejado e valorizado, a d ramática e penosa afecção da melancolia
se processa mediante a regressão até a fase oral canibalística e que,
por meio da incorporação e da introjeção, o sujeito se identifica com
o objeto perdido. Porém não é qualquer objeto, mas sim, tal qual sua
imagem e semelhança, uma identificação narcísica, ficando o ego sem
condições de novos investimentos. Resulta assim o ponto-chave deste
importante trabalho: na melancolia, todo o investimento ora dirigido ao
objeto perdido é substituído por uma identificação.
Finalizo enfatizando o quanto o estudo do artigo "Luto e Me­
lancolia" e as conseqüentes pesqu isas em outros escritos de Freud que
remetiam ao contexto investigado foram interessantes, gratificantes e
enriquecedores. Penso então a respeito de tantas patologias que se
apresentam na contemporaneidade e que possivelmente podem pos­
suir a sombra presente da melancolia.
Busquei demonstrar a estreita relação existente entre a melan­
colia e o narcisismo e que ju ntamente com os conceitos do instigante
artigo -"Luto e Melancolia" marcam uma extrema importância para o
desenvolvimento do pensar psicanalítico, ao tempo em que favorecem
uma melhor condição para a elaboração de diagnósticos diferenciais,
norteando para o tratamento adequado do doloroso processo.

93
REFERÊNCIAS

FREUD, S. Luto e melancolia. (1917). Vol. XIV. In: Edição Standard Brasilei­
ra das obras psicológicas completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

FREUD, S. Sobre o narcisismo: Uma Introdução. (1914). Vol. XIV. In: Edi­
ção Standard Brasileira das obras psicológicas completas d e. Rio de Ja­
neiro: Imago, 1976.

FREUD, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte. (1915). Vol. XIV.


In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de. Rio de
Janeiro: Imago, 1976.

FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade. (1926). Vol. XX. In: Edição


Standard Brasileira das obras psicológicas completas de. Rio de Janeiro:
Imago, 1976.

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. (1905). Vol. VII. In:
Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de: Rio de
Janeiro: Imago, 1976.

FRE U D, S. Sobre a transitoriedade. (1916). Vol. XIV In: Edição Standard


Brasileira das obras psicológicas completas de: Rio de Janeiro: Imago,
1976.

94
FREUD, S. O ego e o id. (1923). Vol. XIX. In: Edição Standard Brasileira das
obras psicológicas completas de: Rio de Janeiro: !mago, 1976.

FREUD, S. Psicologia de g rupo e análise do ego. (1921). Vol. XVIII. In:


Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de: Rio de
Janeiro: !mago, 1976.

FREUD, S. Neurose e psicose. (1924). Vol. XIX. In: Edição Standard


Brasileira das obras psicológicas completas de: Rio de Janeiro: !mago,
1976.

LAPLANCHE, J. e PONTAUS, J. B. Vocabulário da Psicanálise, São Paulo:


Martins Fontes, 2004.

MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em:


http://michaelis.uol.com.br . Acesso em 15/08/07.

POETA. A Lenda de Narciso. Disponível em: http://www.simplesmente


poeta.hpg.ig.com.br. Acesso em 06/09/07.

ZIM ERMAN, D. E. Vocabulário contemporâneo de Psicanálise. Porto


Alegre: Artmed, 2001.

95
O PSICANALISTA À ALTURA DO SEU TEMPO?
RESPOSTAS DA PSICANÁLISE AO CHAMADO M É DICO

Mariso Decat de Moura

Antes do nome

Não me importa a palavra, esta corriqueira.


Quero é o esplênd ido caos de onde emerge a sintaxe,
Os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás",
O "o", o "porém" e o "que", esta i ncompreensível
Muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
Cujo Filho é o Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de u ma coisa mais grave, surda-muda,
Foi i nventada para ser calada.
Em momentos de graça, i nfrequentíssimos,
Se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.
(Adélia Prado1)

1 PRADO, Adélia. Poesia reunida. 6" ed. São Paulo: Siciliano, 1996, p. 22.

99
Psicanálise e Hospital

Introdução

Que antes renuncie a isso, portanto,


quem não conseguir alcançar em seu
horizonte a subjetividade de sua época.
(Jacques Lacan2)

"Em determinado momento me dei conta que nós havíamos efe­


tivamente mudado de época. Está aí a des-subjetivação, a adaptação
necessária ao mundo atual que não cessará de se mover, da tomada de
posse da máquina sobre o humano. Nós estamos hoje no dia 'depois'."
Ala in Schaefer inicia assim o prefácio da Revue Analuein, n.0 11, junho
de 2008, que considero pertinente para iniciar minhas reflexões ao dizer
desse tempo de hoje, que resiste à Psicanál ise e que, ao mesmo tempo,
revela como fundamental o seu lugar. Quanto mais houver a exclusão
do sujeito, mais a Psicanálise se fará necessária.
Esta questão da sociedade em mutação e a conseq uente exi ­
gência do psicanalista "à a ltura de seu tempo" me é causa de esforço
para "encontra r" o lugar de anal ista em uma práxis que lida com o
não querer saber da verdade do desejo. E eu me proponho refletir
sobre q uestões relativas à i ntervenção do psicanal ista e ao campo d e
ação da Psicanál ise em u m espaço outro q u e n ã o o consultó rio, e m
u m hospital gera l .
A Psicanálise, porque s e trata do campo da causa e n ã o do ide­
al, precisa construir sua possibilidade. E, nesta construção, sua prática
levanta questões relativas às condições que tornam possível o além do
d iscurso produzido pela consciência, campo sustentado pela verdade
de um sujeito que se encontra em uma instituição hospitalar.
Os psicanalistas se esforçam cada vez mais para responder a uma
cultura que está em u m processo constante de mudanças, o que é ne­
cessário e vital para o avanço da Psicanálise. Nós estamos constante-

2 Jacques Lacan: Função e campo da fala e da linguagem. in: Escritos, p.322.

1 00
O Psicanalista à altura do seu tempo?

mente no campo da reinvenção, e o que me é particularmente "caro"


é a exigência de criatividade em uma prática q ue, pelo fato de ser u m
espaço relativamente novo - espaço d e tempo e d e localização -, exige
que seja colocado em questão o lugar de analista e, como consequên­
cia, sua formação.
Durante minha prática clínica, pude o bservar mudanças e me
interrogo frequentenmente sobre as i ntervenções e seus efeitos de
análise que me surpreendem e me fazem refletir e formalizar para que
"possa fazer delas bom uso" É interessante constatar que a clínica no
hospita l geral oferece elementos importantes à Psicanálise q ue, além
de sua experiência privada, existe também por meio de seus escritos
como testemunho das experiências responsáveis pela criação de sua
possibilidade e de sua transmissão.
A clínica exige mudanças, as pessoas apresentam seus sofrimen­
tos de outra maneira, o que exige do analista a reafirmação de sua
posição de analista, seu lugar atípico e seu rigor ético necessário. O
impossível dessa posição exige recriar sempre a Psicanálise no que ela
tem de fundamental.
A partir da decisão de não recuar diante da práxis do psicanalista
em u ma instituição hospitalar, nós sabíamos que lutávamos contra a
maré porque estamos contra a corrente do discurso da cultura. E, com
Lacan, nós encontramos um caminho fecundo para a autorização do
analista em outro espaço que não é o consultório, quando ele o desig­
na como uma função e "sem lugar". Por se tratar de um lugar efeito da
análise do analista, ele o "autorizou" a sair do consultório.
Lacan já falava das mudanças contemporâneas, constatadas tam­
bém por nós, e reafirmava em seu ensinamento a importância de o
psicanalista não somente não recuar mas também de não se isolar do
mundo, estando este submetido a um processo constante de mudança.
O analista, então, não pode estar em uma posição de exclusão de exílio
de si mesmo. (LAURENT, 2007)
Não recuar é a direção da clínica lacaniana. Para saber os limites
e as possibilidades de uma práxis, para considerar as possibilidades do

101
Psicanálise e Hospital

sujeito em questão, é preciso estar lá. É importante sublinhar o que


diz o discurso corrente, a maré, que questiona afirmando a i mpossibi­
lidade da práxis do analista em um hospital geral. Discurso que coloca
em questão o desejo do analista e a formalização dos efeitos de sua
intervenção. Este movimento se abre cada vez mais para o surg imento
de outras questões que, por sua vez, questionam os fundamentos da
Psicanálise e sua transmissão.
No hospital, nós estamos próximos dos aconteci mentos que mu­
dam os paradigmas. Movimento revigorante para o psicanalista e para
sua reinscrição no campo da cultura.
Para situar e dar uma direção ao trabalho que pretendo formalizar,
parto do pressuposto de que não há uma i nstituição ideal para a Psica­
nálise, ela não existirá se não tiver um analista, e que um sujeito só sabe
o que a Psicanálise oferece quando está diante de "um psicanalista".

Reflexões sobre uma intervenção clínica

O "prisioneiro" hospitalizado.3
Internado para tratamento de uma infecção g rave, um paciente
"cria problemas", "dificulta o tratamento" e "faz tudo para não ter alta",
isto depois de i nternações anteriores. U m dos médicos assistentes "pas­
sa o caso" para outro colega porque "não suportava mais tantas recla­
mações", tanto da equipe de profissionais quanto do paciente.
O profissional que assume o tratamento, em determinado mo­
mento, solicita atendimento ao psicanalista, a fim de que ele "entre no
caso" para "ajudar a preparar o paciente para a alta hospitalar", já que
estava chegando o momento de encerrar o tratamento médico. O pa­
ciente já tinha sido medicado por um psiquiatra, mas os impasses, as
queixas e as reclamações continuaram.

3Este paciente estava aguardando julgamento quando foi internado devido a u m quadro
de infecção g rave.

1 02
O Psicanalista à altura do seu tempo?

O psicanalista, após acolher a demanda, direciona a resposta


propondo um encontro com o médico para "saber como poderia ser
efetivo com relação ao seu pedido". Nesse encontro, o médico l he diz
sobre sua boa relação com o paciente, construída com muitas d ificul­
dades. Descreve-o então como u m "paciente oito ou oitenta", "ou tudo
ou nada". O problema maior estava relacionado à alta hospitalar, que o
paciente fazia tudo para evitar, tumu ltuando as equ i pes de atendimen­
to e apresentando queixas e dificuldades nesse momento.
Diante dos fatos citados, era pertinente observa r q ue, em face
das características descritas, uma "entrada" no trata mento nesse
momento e m que a relação do méd ico com o paciente estava indo
bem, poderia sofrer i nterferências negativas e, talvez, não fosse in­
teressante. Talvez fosse melhor "entra r no caso" em outro l u g a r, e,
para q u e esta i ntervenção pudesse ser mais efetiva, seria i m porta n­
te con hecer melhor a história da i nternação do " paciente prisionei­
ro", como ele é nomeado.
As preocupações e os incômodos das equipes de atendimento são
explicitados, assim como algumas dificuldades com relação ao tratamen­
to. Principalmente o fato de que, diante da possibilidade da alta hospita­
lar, o paciente se queixa de dores inexplicáveis e procede de modo que se
provoquem infecções, o que impede o término do tratamento.
Diante dos fatos citados, o analista sugere uma reunião com os
profissionais que atendem o paciente. Reúnem-se o médico assistente,
a chefe da enfermagem, os enfermeiros e o psicanalista.
Em um primeiro momento, surgem muitas queixas, revelando
a impotência dos profissionais na condução do tratamento.
Esta impotência se corporifica durante a reunião quando o
analista não sabe o que fazer e sustenta com dificuldade o
espaço para a contingência, para que algo novo possa surgir.
Os fatos são citados em exaltado desabafo: paciente difícil,
que engana a todos com suas queixas, não obedece às re­
gras, a equipe de cuidadores se mostra ambivalente, ora com
pena do paciente ora impaciente diante das d ificuldades.

103
Psicanálise e Hospital

A partir dos fatos e das queixas apresentados, decidiu-se


pela necessidade de que as regras deveriam ser reafirmadas
e cumpridas por todos.
Alguém comentou sobre "a pessoa que está na condição
deste paciente e que não tem identidade", "só tem regras
a cumprir". Com surpresa, nesse momento, todos observam
que ainda não sabiam o nome do paciente.

Nesse momento, "apareceu" o seu nome.


Diante da demanda de u ma orientação objetiva para a equipe se­
guir neste caso - "porque só falar não adianta" -, feita antes de terminar
a reu nião, o psicanalista sugere uma m udança no "foco" da equipe: da
alta hospitalar para o tratamento, além do empenho de todos para que
o paciente fique bom de sua doença. À demanda de solução, "pego de
surpresa", o analista responde operando uma retificação da posição da
equipe com relação ao paciente (alta, ficar l ivre?), operação reconhecida
pelo efeito no momento de aceitação e alívio e, tam bém, pelos comen­
tários feitos na reu nião seguinte.
Uma semana depois, reú ne-se novamente a equ ipe, e, em u m
primeiro momento, novamente surgem queixas e há o desânimo dian­
te do fato de que "nada tinha mudado". Aos poucos, a partir das ob­
servações e pontuações do analista, surg i ram questões que tinham
"passado despercebidas":
Em um primeiro momento, o paciente tinha ficado nervoso
com as regras recolocadas.
Deu certo, porém, parar de falar na alta hospitalar, o paciente
está até aceitando que vai sair um dia.
Um fato marcante e que tocou a todos foi o médico então
lembrar que o paciente tinha dito para ele: "O que dói mes­
mo é estar prisioneiro". Da queixa de dores físicas, tinha sur­
gido uma "outra dor".

1 04
O Psicanalista à altura do seu tempo?

Abri u -se então espaço para perg u ntas d i a nte das certezas
a n teriores:
De que o ser humano se torna prisioneiro?
De que estavam prisioneiros todos das equipes?
A equipe estava i mpotente, "prisioneira das regras dos dis­
cursos i nstitucionais?"

O paciente fala agora para o médico "de outras dores": "Quando


eu sair daqui vai acontecer ojulgamento, e se eu for condenado?"
Os profissionais colocaram agora as regras de outra maneira e li­
m ites objetivos aos procedimentos responsáveis pelas possíveis causas
das i nfecções.
A partir dessas novas reuniões, os profissionais refletem sobre a
diferença entre uma "alta" para um paciente, que todos conheciam me­
l hor, e uma "alta" somente técnica. As reuniões da equ i pe permitiram
lidar com o tratamento e a alta do paciente com um nome, e incluí-lo
como sujeito nos protocolos.

O analista como sinthoma?

Nesses anos de práxis no hospital, sempre me surpreende o efeito


da operação "provocada" pela presença do analista e sua intervenção.
Quando em uma breve reflexão sobre o l ugar do analista e sua
práxis em instituições, fazemos com que o Sujeito Suposto Saber colo­
que em questão o sintoma, e que implique o Outro bem como o campo
do gozo sobre o qual a suposição de saber visa operar; pretendemos,
com isso, remarcar duas definições de sintoma: u ma primeira em que
Lacan toma a Psicanálise como sintoma e outra em que localiza o psi­
canalista, e não a Psicanálise, como sinthoma: "o psicanalista não pode
ser concebido de outra forma senão como um sinthoma. Não é a psica­
nálise que é um sinthoma, e sim o psicanalista". (LACAN, 2007)

105
Psicanálise e Hospital

O sintoma é o cerne da experiência analítica e i nstaura a função


do analista, fazendo com que o d iscurso do analista surja como respos­
ta à questão do sintoma.
Em 1974, em sua terceira conferência na cidade de Roma, Ja­
cques Lacan definiu o sintoma como algo que vem do real e propôs
que o sentido do sintoma depende do futuro do real, isto é, do êxito
da Psicanálise. Se o que se pede da Psicanálise é que nos l ibere do real
e do sintoma, se ela triunfar nisso, o analista não terá muito a esperar
senão u m retorno da "verdadeira religião". Caso seja bem-sucedida, ela
própria se extinguirá, restando apenas "um sintoma esquecido". Para a
insistência do real, e para que ele insista, é preciso que a Psicanálise fra­
casse. Ainda interrogando a relação da Psicanálise com a ciência, Lacan
destacou tam bém a i mportância do sintoma. Ao observar que, para a
maioria das pessoas, a ciência se reduz àquilo que ela oferece, o futuro
da Psicanálise depende do que vai ocorrer com esse real, depende de
que aquilo que a ciência oferece não se i m ponha verdadeiramente, o
que ele pensa ser pouco provável . (LACAN, 1980)
O futuro da Psicanálise nos i nteressa porque tem a ver com a
questão do sujeito, o sujeito em questão é que sustenta seu futuro.
Pensando no atendimento do psicanalista no hospital, que não
se trata de análise/final de análise, como pensar o sintoma que se apre­
senta no início da u ma análise e o sinthoma no final? É i mportante
indagar sobre o que do sinthoma se apresenta no sintoma e suas con­
sequ ências sobre a práxis.
No início, temos o modo de relação do sujeito com o Outro do
simbólico. O analista vai possibilitar uma distância entre os enunciados su­
peregoicos e o sujeito, para que este possa questionar suas identificações.
Como no hospital não se trata de u m analisante falando para u m
analista, mas d e pessoas falando para um analista, podemos pensar que
a escuta do analista pode operar escutando o ponto em que se posicio­
na como sujeito. O que opera é a lógica da contingência. A escuta faz
o analista, que não é mais aquele que decifra, que explica. Isso só seria
possível se o significante desse conta do gozo.

1 06
O Psicanalista à altura do seu tempo?

Esse trabalho que é nomeado de operação lógica de redução,


que tem como efeito o manejo para que o analista possa dar conta do
significante e do gozo, sendo uma operação lógica, não é temporal, não
é passível de explicação e sim de demonstração.
A escuta do analista, na medida em que opera a redução sig­
nificante, é da ordem do ato. Pensando que a operação significante
não alcança o objeto de gozo nesta operação de redução, o manejo é
o ato que aponta para o caráter contingente e redutor da articulação
significante.
Lacan (1967/1968) evoca, para definir o que seria ato, o fato his­
tórico da travessia do rio Rubicão feita por Júlio César, estadista roma­
no, e seu exército em 50 a.C. Esta travessia, d iz Lacan, não foi uma ação
e sim um ato, na medida em que atravessar o Rubicão seria ultrapassar
as leis de Roma. César não pensa, atravessa o u mbral. Com as palavras
"Alea jacta est!" - A sorte está lançada! -, César atravessa o Rubicão, e,
enquanto ato, a travessia não tem retorno.
Nessa travessia, estão presentes as características do ato: a inscri­
ção significante; o caráter inaugural de uma experiência; e o sentido de
atravessamento, todos intimamente vinculados.
O ato é inaugural, seu valor está, justa mente, na fundação do
novo. Como na música ... "nada do que foi será de novo do jeito que já
foi um dia ...4", o ato marca um antes e um depois, após o ato, o que era
de u m jeito passa a ser de outro.
O analista possibilita o estabelecimento de u ma nova conexão
ao Outro, com o efeito sobre a colocação repetitiva das queixas. Pode,
em u m instante preciso, fazer da sua intervenção um corte que introduz
uma separação: Afinal quem está prisioneiro? Este ato coloca a distân­
cia necessária que abre para invenção de novos sentidos. O analista d iz
não à l igação "paciente e prisioneiro". O ato analítico aposta que, dessa
cena, a analítica, seja possível deduzir um sujeito em resposta ao real.
Ao enredamento imaginário das queixas, o que faz sair da rede é a res­
ponsabilidade do analista de assumir um lugar atípico.

4 "Como uma onda", composição de Lulu Santos e Nelson Motta

107
Psicanálise e Hospital

Como César que, ao atravessar o rio que separava a Gália de


Roma, não sabia o que encontraria do outro lado. O ato rom pe com os
limites simbólicos, e "A sorte está lançada" funda um novo tempo.
Esta ultrapassagem exige trabalho. O de recolocar em ordem u ma
nova ordem. Trata-se de reenlaçar o que se desarticulou, um inventar
promovendo novas ligações. Está aberto o caminho para o trabalho de
i nvenções singulares. O ato analítico convida o sujeito a cam inhar a seu
modo, que, mesmo sem um sentido, tem um caminho.
Lacan (2007) dizendo sobre o real, enquanto desprovido de sen­
tido, acrescenta que esse sentido poderia se esclarecer ao ser tomado
por um sinthoma. Penso que não se pode conceber o psicanalista de
outra forma senão como um sinthoma, diz Lacan. Portanto, tomado
enquanto sinthoma, o psicanalista acena com a possibilidade de o sen­
tido do real poder ser esclarecido. O analista entra em diálogo com o
sintoma como sinthoma. E se pensarmos que o sinthoma está i ncluído
no sintoma como potência, o ato engend ra a potência que está lá.
"Procu rando pelo sinthoma", também no trabalho em instituição
hospitalar onde as i ntervenções são em situações de urgência, "o loca­
lizo" na análise do analista.
O analista como sinthoma é um meio de estar à altura de seu
tem po. Reafirmamos o lugar necessário e privilegiado do esclarecimen­
to do sentido pelo real, lugar de um "fracasso", responsável pelo futuro
da Psicanálise, em uma sociedade sempre em mutação e, portanto, res­
ponsabilidade do analista.

1 08
REFER�NCIAS

LACAN, J. La tercera. Atas da Escola Freudiana de Paris. Barcelona:


Petrel, 1980.

LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LACAN, J. O seminário, livro 1 5: o ato analítico. Inédito.

LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985.

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2007.

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2008.

109
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1996.

ROSA, M. (relatora). "A pílula e o mito da relação sexual". Relatório


redigido para o l ivro do XVII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.
s/d.

ROSA, M . Sintomas atuados: filhos adotivos. Inédito. s/d.

SCHAEFER, A. Préface. In: Analuein Journal de la F.E.D.E. P.S. Y., n.0 11,
Strasbourg, junho, 2008, p.2.

1 10
A PRESENÇA DO PSICANAUSTA NO HOSPITAL GERAL:
SUA ESCUTA E SUAS INTERVENÇÕ ES

Simone Borges de Carvalho


Luis Flávio Silva Couto

O obj e:_tivo deste trabalho é propor uma formulação teórica sobre


a presença da Psicanálise no hospital geral como um saber diferente do
oferecido pela ciência, em um tempo marcado pelo progresso tecno­
lógico. Sabemos que a ciência avança e oferece à Medicina, cada vez
mais, novas formas de tratamentos a doenças diversas. No hospital ge­
ral, lugar por excelência do uso de todo aparato tecnológico e científico
em prol de uma Medicina de qualidade, o psicanalista vem se inserindo
ao longo dos anos.
Vivemos em um tempo em que d iversas mudanças estão ocor­
rendo na sociedade. A Psicanálise precisa acompanhar tais mudanças,
e isso exige do psicanalista um esforço de criar seu espaço, seu lugar
e sua função. Ele precisa ir além dos lim ites do consultório privado e
construi r sua presença nos diversos espaços da sociedade. Como afir­
ma Lacan (1953), o psicanalista deve acompanhar a subjetividade de
sua época. É i mportante marcar que, para ocupar lugares diversos na
sociedade, não basta a transposição de uma prática clínica exercida sob
os moldes do setting clássico para outros espaços, como, por exemplo,
o do hospital geral.
Laurent (2007) é categórico em relação à importância fundamen­
tal de o analista saber qual foi tradicionalmente a sua função e qual a

111
Psicanálise e Hospital

que hoje lhe corresponde. Ele faz uma crítica contundente da posição
do analista como especialista da desidentificação e que a leva a toda
parte no âmbito social. Sua posição é claramente a de que é preciso
destruir um certo ideal de psicanalista que se mantém à margem da
sociedade, construindo críticas sobre os acontecimentos. Em relação a
essa posição de especialista da desidentificação, Laurent d iz:
Sejamos claros em afirmar a necessidade de destruir
essa posição: defenda est! Não se deve mantê-la, e se
os analistas acreditam que podem permanecer nela ...
Seu papel histórico está terminado. A função dos
analistas não é essa, decorrendo daí o interesse em
inseri-los outra vez nos dispositivos da saúde mental.
(LAURENT, 2007, p.l43)

No que se refere especificamente ao hospital geral, Guéri n (1982)


observa que é em um momento no qual a ciência médica se mostra
cada vez mais eficaz que surge a demanda do analista junto ao médi­
co. Ele aponta que isso ocorre porque algo do sofrimento do paciente
escapa às possibilidades das terapêuticas médicas, mesmo que estas se
construam a partir de um maior conhecimento do corpo biológico. En­
tretanto, é necessário considerar que o ambiente hospitalar é propício
para a vivência de situações traumáticas, não só para os pacientes que
ali se encontram mas também para seus familiares e para os profissio­
nais de diferentes equipes que ali atuam.
No hospital geral, o psicanalista deve estar atento para as diver­
sas situações que, de certa forma, são recorrentes nesse contexto, uma
vez que ele não visa apenas às demandas explícitas de atendimento.
Proponho pensar uma dessas situações que fazem parte do cotidiano
do hospital. Escolho u ma situação que envolveu um jovem que sofreu
queimaduras em grande parte do corpo. A famíl ia, ansiosa e preocupa­
da, aguardava do lado de fora da Unidade enquanto a equipe prestava
os primeiros atendimentos ao paciente. A entrada da família é autoriza­
da no mesmo instante em que o técnico de raios X chega para fazer o
exame. O técnico de enfermagem, mostrando-se silencioso e i ncomo-

1 12
A presença do psicanalista no hospital geral

dado, ao ver a família se aproximar, e percebendo que o técnico da ra­


diologia tam bé m estava lá, diz de forma i nsistente e i mpositiva ao ana­
lista: "Peça para a família esperar lá naquela salinha, o Raios X chegou".
A família escutou e se afastou. Entretanto, o paciente, também ansioso
pela presença de sua família, grita que não faria nenhum exame antes
de ver sua família. Diz que queria ver sua família e reclama que, a cada
hora, eles i nventavam alguma coisa para ser feita. O anal ista se aproxi­
ma do paciente para escutá-lo - e possibilitar que fosse escutado pelos
outros profissionais - e pergunta-lhe o que estava ocorrendo. Ele diz
que estava em pânico e que não acreditava que "aquilo" estava acon­
tecendo com ele: "Preciso ver minha família para que eles me digam o
que aconteceu comigo, preciso ouvir deles!". O a nalista olha para os dois
técnicos e i ndaga o que poderia ser feito naquele momento, incluindo­
os na cena. O técnico da radiologia diz que poderia atender os outros
pacientes e retornar em seguida, enquanto isso a família poderia entrar.
O olhar do analista se dirige ao técnico de enfermagem, que se mantém
de cabeça baixa e ainda com semblante fechado, e lhe pergunta o que
ele pensava que poderia ser feito. Ele se surpreende com a pergunta,
apresenta u ma mudança visível em sua fisionomia, abre um "meio sor­
riso" e diz para a família entrar.
Temos aqui um exemplo de situação em que o paciente, a família e
a equipe estão, em u m só tempo, incluídos no que é objetivo do analista,
e sua intervenção pode possibilitar que cada u m tenha seu espaço. Não
se pode afirmar que, em tais situações, é o paciente que ocupa o lugar
central da intervenção do analista, mesmo que, naquele momento, seu
ato tenha contribuído para que ele fosse escutado em sua particularidade.
No hospital, há uma rede de relações - paciente, família, equipe - muitas
vezes, entrelaçadas com as normas
'---"'
necessárias a seu funcionamento. A
intervenção do analista pode incidir nessa rede simbólica e possibilitar
que um efeito seja possível para uma das pessoas aí envolvidas. Nesta
situação clínica apresentada, o efeito imediato da intervenção foi o de
possibilitar que o técnico de enfermagem tomasse a palavra. Logo após
a entrada da família, ele procura o analista para l he dizer de sua angústia
e do quanto estava d ifícil cuidar daquele paciente.

1 13
Psicanálise e Hospital

Assim, podemos compreender que a posição do analista é a de


se oferecer fazendo semblante para escutar e i ntervir nessas situações
e em outras que fazem parte do cotidiano do hospital. Isso é funda­
mental para a possibilidade de um trabalho analítico no contexto da
instituição hospitalar. A sua disponibilidade de escuta, o seu modo de
resposta às demandas, muitas vezes imperativas, é que vai demarcar a
práxis psicanalítica, possibilitando um giro discursivo e criando condi­
ções de "escutabílídade".
É i mportante ressaltar que a posição do analista diante de tais
demandas está d i retamente l igada à sua própria formação, que incluí
a análise pessoal, a prática e a formalização por meio da supervisão.
Isso se encontra em consonância com os ensinamentos de Freud em
d iversos artigos dentre os quais podemos ressaltar "Sobre o ensino da
psicanálise nas universidades" (1919/1980) e "A questão da análise lei­
ga: conversações com u ma pessoa i m parcial" (1926/1980). Aqui, Freud
q uando responde à pergunta de seu i nterlocutor sobre "como e onde
se pode aprender o que é necessário para praticar-se a a nál ise", ele
se refere aos institutos de formação psicanalítica existentes naquela
época e d iz:
Nestes institutos os próprios candidatos são subme­
tidos à análise, recebem instrução teórica mediante
conferências sobre todos os assuntos que são impor­
tantes para eles, e desfrutam da supervisão de analis­
tas mais velhos e mais experimentados quando lhes
é permitido fazer suas primeiras experiências com ca­
sos relativamente brandos. Mesmo após esse período,
naturalmente, o candidato é apenas um principiante e
não ainda um mestre. O que ainda se necessita deve
ser adquirido pela prática e por uma troca de ideias
nas sociedades psicanalíticas nas quais membros jo­
vens e velhos se reúnem. (FREUD, 1926, p. 258)

É interessante notar que Freud marca a i mportância da análise


pessoal, da instrução teórica por meio de conferências e de supervisões

1 14
A presença do psicanalista no hospital geral

com profissionais mais experientes e da prática. Embora ele estivesse


voltado para questões referentes à clínica clássica, devemos considerar
que esses três pontos fundamentais da formação do analista serão tam­
bém essenciais fora do setting clássico.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a i nserção do psicanalista no
hospital geral está relacionada à sua formação. Muitas vezes, em d iver­
sas situações d o cotidiano do hospital, o psicanalista é convocado para
ocupar o lugar de quem sabe, de quem é especialista de um determina­
do campo, de quem tem o poder de solucionar conflitos e problemas.
É o que podemos perceber em certas demandas d i rigidas ao analista,
a partir da fala de profissionais da equipe médica ou de enfermagem,
tais como:

"Solicitei atendimento para esse paciente porque mesmo ele estando


com doses muito altas de analgésico, continua queixando-se de dor. Não
tem como ele sentir dor com essa dosagem de medicamento!".
"O Sr. João está chorando muito, já falamos que está indo tudo bem
com ele, que está evoluindo bem e já está estável, mas ele parece que não
entende! Você pode ir lá?".
"Esta família está entrando e saindo do CTI (Centro de Terapia
Intensiva) a todo instante, você tem de explicar para ela que não pode
ser assim!".

A formação analítica, tal como proposta por Freud, permite que o


psicanalista se ofereça em certa posição de "não saber", necessária para a
escuta dos pacientes, de seus familiares e dos profissionais, de modo que
não se deixem entrar em um jogo de poder. Com isso, ele pode acolher
e manejar as demandas sem, necessariamente, atender a elas. Muitas
vezes, o que se percebe é que há u m mal-entendido radical entre o que
o médico demanda ao analista e o que este lhe propõe. O médico lhe
demanda um acréscimo de poder que a experiência lhe revela que não
é totalmente de seu saber técnico. O analista propõe preservar em sua
relação com o paciente certo lugar de ignorância. (GUÉRIN, 1982)

1 15
Psicanálise e Hospital

Lacan (1954) faz uso da expressão "ignorantia docta" para mostrar


que a posição do analista, muito mais que a de um saber, é a de uma
posição de ignorância, entretanto, trata-se de uma ignorância "formal,
e que pode ser, para o sujeito, formadora" (LACAN, 1954: 317). Se Lacan
utiliza esse termo, cunhado por N icolau di Cusa (século XV), é para indi­
car que não se trata de uma simples ignorância, mas de "um saber mais
elevado e que consiste em conhecer seus limites" (QUIN ET, 1991: 31). É
uma posição que convida à humildade, à prudência e à precaução con­
tra a posição de um saber como uma total idade, sem fissuras. Assim,
é importante marcar que o sujeito descoberto pela Psicanálise é um
sujeito cindido, atravessado pelo desejo e pelo gozo e não, como para
as ciências chamadas humanas, um sujeito pleno, u n itário.
Para o trabalho com essa cisão fundamental, é necessário considerar­
mos tanto a singularidade de cada sujeito como a particularidade de cada
encontro com o analista. Lacan nos faz lembrar a recomendação de Freud
para que cada novo caso seja abordado como se nada tivesse sido apren­
dido. Entretanto, enfatiza que isso não significa que o psicanalista se dê por
satisfeito com "saber que nada sabe, pois o que se trata é do que ele tem de
saber" (LACAN, 2003: 254). Com isso, tal posição abre espaço para o saber
do analisante. E, no caso do hospital geral, como não se trata de propor uma
análise clássica, pode-se afirmar que essa posição de "não saber" permite
ao analista a escuta do outro, do profissional, do paciente ou de sua família.
Estes, não como analisantes, mas como aqueles que endereçam ou podem
endereçar uma demanda ao analista. Esta escuta, por sua vez, possibilita a
intervenção analítica que se articula com o manejo das demandas.
Portanto, não se trata de um lugar dado a priori, mas de um lugar
a ser construído. E é sob esse pano de fundo que a questão da inserção
do analista na instituição deve ser tomada como condição para a sua
presença e a sua práxis.
Para a Psicanálise, essa inserção do analista no hospital geral não
está no campo objetivo, ou seja, não se trata de simplesmente estruturar
um Serviço de Psicologia dentro da instituição nem de agendar pacien­
tes em um ambulatório dentro do hospital, seguindo, assim, os mol­
des do consultório privado. A inserção do analista em uma instituição

1 16
A presença do psicanalista no hospital geral

hospitalar está, sim, diretamente relacionada com a própria formação


do analista, pois é somente a partir de sua formação que será possível
fazer semblante. Dito de outro modo, tendo se destituído como sujeito
no final de sua análise, o analista pode se permitir, enquanto objeto a,
"fazer semblante", ocupando o lugar de agente nos vários discursos
dos quais considere necessário a cada situação na qual é convocado a
intervir. Deste modo, procura conseguir os objetivos aos quais se pro­
põe. O psicanalista trabalha considerando caso a caso, e o que visa não
é da ordem de uma adaptação, mas que cada um possa encontrar u ma
solução particular diante do sofrimento, do conflito, das situações gera­
doras de angústia. Chamado para resolver um i mpasse, o que ele pode
é oferecer não uma resolução predeterminada, mas uma que passe pela
palavra, possibilitando que algo do sujeito possa advir.
Considera ndo essa perspectiva, em m u itas situações q u e
fazem parte do cotidiano do hospital, o anal ista pode s e permitir
apresentar-se como semb la nte de mestre, visando oferecer certa
contenção q ua ndo o outro se mostra fragil izado em suas certezas.
Por exem plo, q ua ndo as fa mílias reagem com agressividade à notícia
médica de um quadro d e i nfecção g rave com seu fa miliar i nternado
no CTI, atribuindo a c u l pa à institu ição e/ou à equipe. F ixados nesse
sign ifica nte - i nfecção hospitalar -, m u itas vezes os fa m i l iares não
conseguem escutar mais nada.
Acolher a queixa e solicitar que a família procure esclarecimentos
sobre o que vem a ser i nfecção hospitalar pode surtir bons efeitos. Em al­
guns casos, não é possível ir além do significante "infecção hospitalar" an­
tes que essa questão fique esclarecida. Às vezes, é necessário intervir em
um lugar - procure o serviço de infecção hospitalar, pois estou percebendo
que você tem algumas questões muito importantes. Esse acolhimento das
dúvidas e das queixas pode ter como efeito a localização da angústia e,
dessa forma, abrir espaço para que algo do sujeito possa advir.
É i m portante marcar que o discurso de mestria funciona pela
sugestão, e esta, operando por meio do saber, pode obliterar a trans­
ferência, ou seja, deixá-la esquecida. O saber colocado no outro traz di­
ficuldades para que o sujeito o busque em si mesmo, e é esse saber do

1 17
Psicanálise e Hospital

sujeito que tem i mportância para o psicanalista. Nesse sentido, trata-se


de u ma intervenção no lugar de mestria, mas de alguém, o psicanalista,
que se sabe não ser o mestre, portanto não se apresenta com um saber
totalitário. Nesse caso, o analista assume o lugar de mestria: a solução
você vai encontrar lá. Entretanto, ele, tendo encontrado a justa posição
relativa a ser o a, pode, desse lugar, assumir a posição de Sl enquanto
semblante. O psicanalista deve operar no sentido de deixar u ma brecha
para o saber daquele que ele escuta.
Por outro lado, o psicanalista em uma instituição hospitalar deve
também saber se posicionar diante de situações nas quais u ma solu ­
ção deve ser apontada e exigida. E isso n ã o é apenas e m relação à s
situações q u e envolvem pacientes e familiares, mas também diante de
outros profissionais da instituição. Por via do discurso do mestre, ele
também pode construir um reconhecimento de um saber outro e, por­
tanto, possibilitar sua i nserção na instituição. Nas reu niões clínicas, nas
discussões de casos clínicos ou em diversas situações que fazem parte
do cotidiano do hospital, muitas vezes, ele precisa tomar decisões e
apresentar a solução. Nesses momentos, não se trata de fazer semblan­
te de a. Como já dito anteriormente, trata-se de sustentar-se na posição
de agente como um Sl de mestria, sabendo que tal posição é apenas
um semblante. Isto é diferente do que ocorre no verdadeiro d iscurso
do mestre onde o sujeito identifica-se ao significante mestre, desco­
nhecendo sua própria divisão. O psicanalista, tendo ele próprio passado
pela experiência de dessubjetivação no final de sua análise, pode fazer
semblante de Sl, sabendo-se a.
Em outras situações recorrentes no hospital geral, o psicanalista
pode se apresentar com um saber que, de algum modo, oferece ao
outro certa sustentação, ou seja, ele pode fazer semblante de saber na
posição de agente do discurso universitário. Por exemplo, diante do
"desconhecido CTI", é preciso, muitas vezes, trazer um conhecimento,
um saber. Sabe-se que a representação do CTI para muitas pessoas está
referida apenas à possibilidade de morte, sendo importante, portanto,
desmistificá-lo e, mesmo, "ensinar" o que vem a ser um CTI. Alguns
significantes utilizados pelos familiares demonstram quanto este lugar

1 18
A presença do psicanalista no hospital geral

tem para eles uma representação ameaçadora. Por exemplo: "Isto aqui é
a antessala do inferno" - expressão certa vez utilizada por alguém para
se referir ao hall onde os fam i liares esperavam o horário para entrar
na unidade. Isso deve ser considerado nas entrevistas de acolhimen­
to real izadas com familiares e com pacientes quando de i nternações
nesse centro de tratamento. Nessas ocasiões em que esta unidade se
apresenta de forma ameaçadora, se o psicanalista se oferece de forma
evasiva, inconsistente, ele pode, ao i nvés de oferecer uma contenção
da angústia, tornar a situação insuportável. Abordar as famílias e os
pacientes oferecendo um "saber sobre o CTI" parece-nos a atitude mais
conveniente a adotar. Isso pode ser feito falando dos horários em que
as notícias médicas são fornecidas, dos horários para a presença dos
fam iliares nessa unidade etc. Este acolhimento aos familiares e aos pa­
cientes pode ter o efeito de circunscrever o real que irrompe no psiquis­
mo. Essa i rrupção do real é sinalizada em várias falas recorrentes em
situações de adoecimento de um ente, como, por exemplo: "Ele estava
bem e de repente aconteceu isso!".
O psicanalista também está às voltas com o Discurso Universitá­
rio no hospital nos momentos de transmissão da Psicanálise, seja nos
cursos de formação, seja no momento em que os alunos desses cur­
sos vão acompanhar o trabalho da equipe de psicólogos na i nstituição.
Aqui, não cabe a ele ocupar a posição de a, sustentando o discurso do
analista, oferecendo-se como semblante de a.
Por outro lado, podem surgir, no hospital, circunstâncias em que
seja necessário o analista ocupar o lugar de agente no d iscurso do ana­
l ista, ou seja, fazendo semb lante de objeto a. Cito um fragmento clínico
para articular essa questão do analista como objeto. Após o falecimen­
to de um paciente que estivera i nternado no CTI por aproximadamente
um mês, u ma de suas filhas retoma ao CTI para agradecer à equipe o
tratamento dado a seu pai. Nesse momento, expressa o que represen­
tou para ela o trabalho realizado pela "Psicologia". Referindo-se a u ma
determinada psicóloga, diz: "Isso me ajudou a apreender o que estava
por vir" (. . .) "Minha mãe conseguiu aceitar melhor a morte de meu pai.
Imagina que ela até aceitou fazer uma viagem!". Podemos afirmar que o

1 19
Psicanálise e Hospital

efeito da escuta analítica a essa filha se dá a partir de uma determinada


função que o analista pôde ocupar. Deste modo, é necessário considerar
de que modo a presença do analista, a escuta analítica e o encontro com
o analista podem se constituir em situações fora do setting clássico.
Tomando tal questão pela teoria lacaniana dos d iscursos, a pre­
sença do analista não se reduz a u ma decisão de "estar ali". O que Lacan
mostra é que se trata de u ma posição no discurso, e, sendo u ma posição
no d iscurso, ela é súbita, ligeira, evanescente. Pode-se apreender esta
presença como uma manifestação e não como hábito de estar presente
com o corpo, pois o d iscurso do analista será sempre contingente.
Lacan (19/12/1972) afirma que algo do d iscurso do analista emer­
ge na passagem de u m a outro discurso, ou seja, que emerge a cada tra­
vessia entre os d iscursos: "Eu diria agora que desse discurso psicanalítico
há sempre alguma emergência a cada passagem de um discurso a outro"
(LACAN, 1972-1973/1985: 26). É desta emergência do discurso analítico
que se pode depreender o que Lacan designa por posição de analista e,
a partir disso, questionar suas particularidades e seus efeitos.
A posição de analista é, portanto, inconsistente, evanescente.
Isto mostra a i m possibilidade de o analista ocupar todo o tempo essa
posição de objeto a. Talvez, n isso se pode localizar algo específico do
saber do analista: saber que ocupar este lugar de a consiste apenas
em dele fazer semblante, e que isto l he permite ocupar o lugar de
agente em outras formas de discurso sem estar identificado ao ele­
mento que constitu i tal discursividade. Portanto, seu modo de respos­
ta às demandas que l he são d i rigidas vai se d iferenciar da forma com
q ue outros profissionais respondem.
Cottet, ao desenvolver o tema dos efeitos terapêuticos rápidos
em Psicanálise, propõe que "o face a face é a presença do psicanalis­
ta como objeto e não apenas como simples escuta" (COTTET, 2005: 48).
Trata-se de uma presença que coloca em evidência as particularidades
da pessoa. Assim, pode-se dizer que se trata de uma clínica que inclui
a i mprevisibilidade, a surpresa e que sustenta a presença do real como
furo, como falha na real idade.

1 20
A presença do psicanalista no hospital geral

Portanto, faz-se necessário compreender o "encontro com o ana­


lista", e, em específico, fora do contexto de uma experiência analítica
clássica. Miller (1999) faz um deslocamento da questão sobre as contra­
indicações da Psicanálise, para i nterrogar sobre o que pode operar u m
encontro com o analista. Marca justamente a questão da ética d o bem­
d izer quando afirma que o analista, ao se oferecer como objeto, nada
quer saber a priori. Não parte, portanto, de u m pressuposto sobre o
que é o bem para o outro. Antes, ele se oferece sem preconceitos para
o bom uso que o outro dele pode fazer:
É que o objeto-psicanalista é versátil, disponível, mul­
tifuncional. O psicanalista oferece deste modo, com
..

o objeto-psicanalista, um lugar vacuolar, um espaço


entre parênteses, onde o paciente tem o lazer, por um
tempo restrito, de ser sujeito, quer dizer, de faltar a ser
aquilo que, por sinal, o identifica. (MILLER, 1999: 54)

Deste modo, o analista pode se oferecer fazendo semblante de


objeto em torno do qual parecem desenrolar os ditos do paciente. É
em torno desse objeto vacuolar que o paciente pode, então, construir
algo de particular; de singu lar. Ao se oferecer neste lugar, o outro pode
ou não criar uma demanda. A aposta de Lacan é que a oferta cria a
demanda. Miller conclu i que, para o encontro com o analista, não há
contra indicações.
Retomando o fragmento clínico, podemos entender que as pala­
vras dessa filha - "a psicologia me ajudou a apreender o que estava por
vir!" - indicam, a posteriori, que ali esteve u m psicanalista sustentando
o lugar de semblante de objeto a e suportando a incerteza, para que o
outro aí pudesse construir um saber particular.
Sabemos que, no hospital geral e no CTI, por mais que certas
situações possam convergir para um mesmo ponto: a possibilidade de
perda - que faz emergir a finitude humana, a castração -, cada um fará
dessa experiência uma experiência única. Ú nico também será o modo
como cada um se verá diante do encontro com um analista e o uso que
fará desse encontro.

121
Psicanálise e Hospital

No hospital geral, não há o predomínio do d iscurso analítico,


sendo hegemônico o fazer científico. Torna-se, portanto, fundamental
para a inserção do analista no hospital geral que ele saiba construir o
reconhecimento de u m saber outro sobre o sofrimento humano e que
consiga escutar e i ntervir nas circunstâncias específicas ali presentes. A
experiência de desenvolver u m trabalho psicanalítico dentro de uma
instituição hospitalar tem mostrado que as demandas dirigidas a esse
saber não se restringem às sol icitações formais de atendimentos aos
pacientes. Tais demandas são endereçadas ao psicanalista nas mais di­
versas circunstâncias. Representante de u m saber diferente do saber
da ciência, ele pode propor soluções, alternativas não presentes nos
protocolos médicos, porque busca considerar a transferência envolvida
nas relações que ali se estabelecem.
É importante considerar que o trabalho em um hospital geral
exige do analista que ele possa criar meios para a instalação de alguns
elementos da transferência e que seja capaz de manejá-los. E isso nos
convoca a perguntar de que modo a transferência pode operar fora de
um setting analítico clássico.

A questão da transferência

N o contexto do hospital, o vínculo transferencial, pelo menos


i n icialmente, nem sempre se constitui na d i reção de u m analista em
especial. Ele pode estar d i recionado à i nstitu ição ou à "coordenação",
ou seja, a u m l ugar. Pod e estar d irigido a uma pessoa específica q u e
necessariamente o analista o u , até mesmo, ao "serviço de psicolo­
g ia" ou à "Psicanálise". O vínculo transferencial pode se d i ri g i r a um
saber diferente daquele oferecido pela ciência. Portanto, é de suma
i mportância compreender o conceito de transferência para form a l i ­
z a r o m o d o c o m o a relação transferencial p o d e o perar no contexto
da institu ição hospitalar, fora do setting analítico clássico.

1 22
A presença do psicanalista no hospital geral

Na obra freudiana, é a partir do Caso Dera (1905/1980) que o


conceito de tra nsferência vai ser colocado como eixo central do trata­
mento analítico. A ênfase na transferência neste caso vai ser dada no
Pós-escrito, quando Freud define a transferência da seguinte maneira:
Novas edições, ou fac-símiles, dos impulsos e fanta­
sias que são criados e se tornam consciente durante
o andamento da análise; possuem, entretanto, esta
particularidade, que é característica de sua espécie:
substituem uma figura anterior pela figura do médico.
(FREUD: 1905: 113)

Em "A dinâmica da transferência" (1912/1980), Freud usa o termo


"cl ichê estereotípico" para designar a forma particular com que cada
indivíduo se conduz em sua vida erótica, sendo esses constantemente
rei mpressos. N este artigo, o caráter dinâmico da transferência é mar­
cante. Ela é, por um lado, condição para o tratamento analítico e, por
outro, apresenta-se como resistência, como obstácu l o a esse trabalho.
É importante ressaltar o lugar do analista na relação transferen-
cial. Como sublinha Lúcia Grossi:
As fantasias e moções teriam certa forma de inscri­
ção inconsciente, uma escrita, e a transferência seria
uma nova maneira dessa escrita se apresentar. O tra­
tamento analítico oferece a possibilidade de que isso
ocorra com a seguinte particularidade: que o analista
funcione como ímã para as substituições. (...) Ele toma
o lugar dos objetos sobre os quais incide o desejo.
(SANTOS, 2002: 61)

Freud (1912/1980) marca que a transferência não é exclusiva da


relação analítica e observa que, nas instituições em que os doentes são
tratados de forma não analítica, por vezes, ela é mais i ntensa:
Nas instituições em que doentes dos nervos são tra­
tados de modo não analítico, podemos observar que
a transferência ocorre com a maior intensidade (...) .

123
Psicanálise e Hospital

Essas características da transferência, portanto, não


"\ devem ser atribuídas à psicanálise, mas sim à própria
neurose. (FREUD, 1980: 136)

Por outro lado, Lacan (1967), em consonância com o texto freu­


d iano Sobre o início do tratamento, propõe sua forma l ização:

s ----­

s ( 5 1, 5 2, ...
Sn)
(Materna d a transferência)

Na linha superior, tem-se o significante da transferência (S) de


um sujeito com sua impl icação a um significante dito qualquer (Sq) que
supõe, de início, uma particularidade e, depois, supõe outras coisas.
Trata-se de um significante que tem certa i mportância para o sujeito
e que será percebido como se pertencesse ao analista. O efeito dessa
relação significante é o sujeito que está correlacionado com os saberes
i nconscientes - s (Sl, 52, •••. Sn). Para Lacan, a transferência está no come­
ço da Psicanálise, e isto se dá em função do psicanalisante. É o Sujeito
Suposto Saber que vai ocupar o eixo sobre o qual se a rticula tudo o que
acontece com a transferência. U m sujeito suposto pelo significante que
o representa para outro significante. É i mportante considerar que o Su­
jeito Suposto Saber é u ma função essencial à operação analítica.
Já, nas relações estabelecidas dentro de uma instituição hospi­
talar entre o psicanalista e os demais profissionais que ali atuam, e até
mesmo com os pacientes e seus familiares, não se trata de buscar esta­
belecer uma relação de um analisante com seu analista nem mesmo a
entrada em análise pode ser considerada como seu objetivo primeiro.
Deve ficar claro que algo da ordem da relação transferencial se coloca
em jogo nas relações estabelecidas entre paciente/equipe/família. Para
o analista, em muitas situações dentro do hospital geral, será i mpor­
tante localizar os significantes que permeiam essas relações no sentido

1 24
A presença do psicanalista no hospital geral

de verificar a quem a transferência se dirige. Pode-se questionar quem


seria o suposto saber desta relação. Frequentemente, observa-se a co­
locação do suposto saber, de u ma família ou de um paciente, na figura
de um médico, na do coordenador do serviço, ou, até mesmo, na pró­
pria instituição hospitalar.
Como exemplo, podemos fazer referência a uma família de u m
paciente q u e permaneceu por u m longo período internado no CTI. O
tempo prolongado de internação favoreceu o surgimento de a l g u ns
conflitos fam iliares, sendo necessário que eles se organizassem em
horá rios diferenciados para não se encontra rem dentro da u n idade.
Essa família demandava u m tratamento d iferenciado e se sentia no
d i reito de ter privi légios em função do tempo de internação do pa­
ciente. Frequentemente as concessões eram feitas, mas, quando não
eram possíveis, causavam mal-estar e, mesmo, agressividade por par­
te dessa família.
Os conflitos surgiram tam bém em relação à equipe multidiscipli­
nar, u ma vez que essa família tinha dificuldade em aceitar as regras do
CTI. A equ ipe, muitas vezes, incomodada com a posição dessa família,
solicitava à "Psicologia" u ma solução para esta questão: "Vocês precisam
explicar para essa família que eles não podem entrar aqui a qualquer
momento. Aqui nós temos regras e precisamos delas. Vocês precisam co­
locar limites!"
Entretanto, nesse caso, era observado que essa família não havia
estabelecido um vínculo transferencial com um analista e nem mesmo
com o serviço de Psicologia. Se a questão do vínculo transferencial é
fundamental para u ma intervenção analítica, essa situação nos colocava
um desafio. Como opera o analista na ausência de uma transferência
dirigida a ele? Sabemos que o engate da transferência se dá com um
significante e não com uma pessoa. Nesse caso, a escuta possibilitou
localizar que o significante em jogo na relação transferencial não era
a "Psicologia", mas o "coordenador", o "chefe". A suposição de saber
estava então d i rigida a esses significantes que representavam o médico
coordenador do CTI: "Ele é capaz de curar (S'l} porquanto porta um saber
suposto; não é por acaso que é o coordenador, o chefe do CT/". Foi por

125
Pskanálise e Hospital

esse significante que algum trabalho se fez possível com essa família.
A transferêncía, ou mesmo alguns de seus elementos, é sustentada por
uma posição de acolhimento, escuta, intervenção, ou mesmo de um
analista. N esse caso, como o vínculo transferencial era dirigido ao coor­
denador da unidade, foi recorrendo a ele e sustentando tal vínculo que
alguma intervenção pôde ter efeito.
Assim, propõe-se considerar que algo da transferêncía possa ser
estabelecido, mesmo que não se busque a relação transferencial analí­
tica que tem, necessariamente como efeito, a produção de um sujeito
cíndido. Talvez o que seja possível no trabalho no hospital seja apenas
o que está representado na parte superior do matema da transferência,
isto é, a relação de um significante, seja do pacíente ou da família, a
outro significante qualquer, que pode estar localizado na instituição, no
médico e até mesmo no analista. Como vimos, há situações em que a
su posição de saber está d i rigida aos significantes "hospital", "coordena­
dor", "chefe" e não especificamente à pessoa que ocupa este lugar.
O debate sobre o conceito de transferência convoca-nos a con­
siderar o manejo de seus possíveis elementos, que podem ou não se
apresentar na terapêutica dentro da instituição. Nesse contexto, o ob­
jetivo primeiro do analista não é buscar estabelecer as condições ne­
cessárias para o desenvolvimento de u ma anál ise propriamente dita,
com início, meio e fim, mas de se oferecer para que um encontro com
o analista seja possível.
Pelo efeito de seu trabalho, é que um analista pode fazer com que
algo da transferência seja verificado na instituição. É pela sua presença
e pela sua atuação que a demanda a um analista pode ser construída.
É preciso que esta presença seja de tal modo que possibilite um espa­
ço para o campo da subjetividade e da particularidade, sustentando a
presença de um saber outro, diferente do saber oferecido pelo campo
médico. No contexto da instituição hospitalar, pode-se dizer que a trans­
ferêncía aponta para a existêncía desse saber outro sobre o sofrimento
das pessoas. O analista deve saber sustentá-la e manejá-la junto a toda a
comunidade hospitalar, para ali favorecer a presença da Psicanálise.

1 26
A presença do psicanalista no hospital geral

É interessante acrescentar a posição de Jean-Richard Freymann


(2008) relativa à ideia de níveis de transferência. Para ele, em u m primei­
ro tempo, é necessária a "transferização" (transférisation). Esta é desig­
nada como uma operação dinâmica que provoca efeitos e que consiste
na tentativa de tornar presente a transferência. Tal efeito pode ocorrer,
particularmente, em certas situações de psicose ou de doença nas quais
essa transferização é necessária, não importando se a transferência é
analítica, hipnótica, ou mesmo delirante.
Situando a transferência em níveis, Freymann localiza a transferi-
zação no primeiro deles.
A "transferização" (...) é um primeiro nível em um cer­
to número de situações difíceis. Isto é verdadeiro nas
psicoses, é verdadeiro nas doenças. O fato de ser bem­
sucedido em tornar presente um pouco de transferên­
cia já é curar as pessoas. Em todo caso, é cuidar sob o
ângulo da cura. (FREYMANN, 2008: 7)

É importante assinalar que esse nível mobiliza a dimensão de


outro lugar. Como exemplo, podemos citar o caso de uma senhora que,
internada no hospital e com restrições físicas que d ificultavam severa­
mente a sua mobilidade, mostra-se depressiva e chorosa. Queixa-se de
não poder se movimentar e ficar dependendo das pessoas para tudo. O
analista, ao escutar suas queixas, i ntervém perguntando-lhe: "O que a
senhora gosta de fazer?" Ela se assusta com a pergunta, para de chorar e
diz, esboçando u m sorriso: "Ah! Eu gosto dejogar cartas com as minhas
amigas!" Podemos pensar que esta intervenção do analista tem justa­
mente o efeito de mobilizar outro lugar, permitindo que ela comece a
pensar como fazer para resgatar algo de sua particularidade. Freymann
aponta que, quando o analista é bem-sucedido em "induzir um pouco
de transferência", isto tem como efeito um trabalho que já é analítico,
mesmo que tomado do lado da psicoterpia:
O nível [de transferização] anterior a esse também é
analítico, mas está do lado da psicoterapia, na medida
em que ela se refere à análise. (Não disse psicoterapia

1 27
Psicanálise e Hospital

analítica, pois não compreendo o que isso quer dizer).


Isto já é psicoterápico por ser bem-sucedido em trans­
ferizar. Em seguida, as pessoas podem continuar a vi­
ver. (FREYMAN N, 2008: 7)

No nível seguinte, Freymann aponta a análise da transferência,


colocando-a no campo da experiência analítica clássica. Este é o nível
no qual as análises ocorrem. Ele é caracterizado pela mobilização da
análise, na qual as pessoas são conduzidas a continuar a pesquisar. Mas,
é i mportante lembrar que se trata-se aqui de um nível no qual é neces­
sário um tempo muito longo de trabalho ...
Estas ideias podem nos ajudar a pensar a questão da atuação do
psicanalista em um contexto no qual o que se visa não é primordial­
mente a construção da transferência analítica. No hospital, se o analis­
ta é bem-sucedido no estabelecimento de, pelo menos, um pouco de
transferência, ele pode criar as condições para que, ali, um trabalho em
Psicanálise seja possível.

1 28
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131
"FORA DO PROTOCOLO"
INTERVENÇÃO PSICANAÚTICA
EM SITUAÇÃO DE URG � NCIA

Glauco Batista

O analista é um partenaire que traumatiza


o discurso comum para autorizar
outro discurso, o do inconsciente.
(Éric Lau rent)

Na prática clínica em Hospital Geral e em trabalhos de pesqu isa


recentes, evidenciou-se que o profissional "psi" é chamado sempre em
situações onde há i mpasses (CARVALHO, 2008). São momentos em que
a d imensão subjetiva - que permanece fora da determinação que visa
ao saber médico - irrompe de forma abrupta e sempre "inesperada".
Por não estar incluído no discurso da ciência, esse algo da sub­
jetividade que "resta" e "insiste", na maioria das vezes, não é contem­
plado nos conhecidos protocolos médicos - documentos destinados à
padronização de procedimentos que são dispostos para a execução de
u ma determi nada tarefa.
Estes casos "fora do protocolo" médico põem a trabalhar profis­
sionais de todas as áreas da saúde e causam, com frequência, na equipe
multidisciplinar um grande incômodo, justamente por revelar que há

133
Psicanálise e Hospital

algo que o d iscurso médico não contempla e, portanto, não responde.


E é desse lugar que o psicanalista é chamado.
Vejamos, para ilustração, um breve fragmento clínico.

Foi encaminhada para o psicólogo de plantão uma solicitação de


avaliação e acompanhamento para a paciente que chamarei de Paula.
Em contato com o médico solicitante, este relata que ela havia perd ido
um fil ho há cerca de u m ano, estava novamente g rávida, e o bebê esta­
va "com o mesmo problema", d iagnosticado há poucas horas, e já com
o parto agendado para a manhã seguinte. "Ela está chorando muito,
está desorientada, não temos mais o que fazer'' - diz o médico.
Em virtude da u rgência do tempo necessário colocado pelo mé­
d ico para o "controle d o desespero", foi agendado um horário com Pau­
la no mesmo dia. Neste atendimento, ela diz que seu primeiro filho
nasceu prematuro, ficou i nternado na UTI Pediátrica e, já com a alta
programada, "teve u m problema" e morreu subitamente. Desde então,
quando ela e o marido são visitados por gestantes ou pessoas com
bebês e crianças, fica "o maior clima" em casa depois. Um "clima" que,
em suas palavras, não permitiu que ela desmanchasse o quarto do bebê
até hoje, pois não teve coragem. "Está tudo como estava quando ele ia
ter alta." - ela diz.
Quando questionada sobre os motivos que a levaram a engra­
vidar novamente, ela d iz não ter consultado o marido, foi uma decisão
somente dela, para ver se "resolvia o problema". Conta com o apoio do
marido, embora saiba que ele não concorda com a ideia. "Mas o meu
'problema ' mesmo é a UTI, quando penso que meu bebê vai pra lá de
novo, entro em pânico. " - diz ela.
Diante de tantas questões importantes, de tantos "problemas" -
que, neste momento, estão localizados na UTI -, da urgência do tempo
cronológ ico colocada pela equipe e, agora, pela paciente, o que fazer?
Visando sustentar certa d iscursividade e buscar caminhos possí­
veis, o analista pergunta a Paula o que acha que pode ajudá-la naquele
momento, já que ela teria novamente um bebê internado na UTI. Presa

1 34
"Fora do Protocolo": I ntervenção Psicanalitica em Situação de Urgência

na a rmadi l ha da repetição, ela atualiza o passado e antecipa o futuro


no relato de sua fantasia de q ue, se for cuidado pela mesma equipe e
ficar no mesmo lugar, seu fil ho irá morrer. Pede para que seu bebê fique
do lado oposto da u nidade em que o outro ficou, pergunta se pode
escolher a equipe que cuidará dele, solicita orientações sobre i nfecção
hospitalar e onde pode fazer queixas sobre o hospital. Mesmo sabendo
que seu "problema" não estava localizado aí, o psicanalista orienta Pau­
la a procurar os setores respectivos e os profissionais responsáveis para
fazer suas queixas e solicitações.
Logo em seguida a estas tentativas de dar alguma resolução para
seus problemas, ela diz: "Eu tenho uma pergunta que nunca fiz pro nin­
guém, desde quando meu filho morreu... Será que posso fazer pro você?"
E prossegue, dizendo não saber até hoje o porquê de seu filho ter mor­
rido. O analista marca a importância dessa pergunta que ela "nunca fez
para ninguém" e encerra o primeiro atendimento a Pau la.
A partir desse fragmento clínico, proponho pensarmos alguns
pontos em torno do atendimento psicanalítico em situações de urgên­
cia e seus efeitos.

"Mais além" da técnica...

A apresentação clínica da u rgência sempre traz o confronto do


sujeito com um excesso: ruptura aguda, quebra do equilíbrio no qual a
vida se sustentava, irrupção do real que cond uz o sujeito ao grito sem
articulação significante. A situação de u rgência subjetiva se desenca­
deia d iante da impossibilidade de um sujeito dar sentido a algo, algo
que é o encontro com um real que não se deixa significar.
Pode-se afirmar q ue, se existe a desorganização que convoca a
urgência, é porque previamente algo "resistia bem", existia uma subje­
tividade relativamente organizada.
Uma vez que a Psicanálise se sustenta na noção de sujeito no
campo da l inguagem, o sujeito ao qual nos referimos não se trata do
"homem neuronal", mas sim do "ser falante". Desse modo, o convite

1 35
Psicanálise e Hospital

do analista é no sentido de colocar em palavras o sofrimento vivido, e


não de u m "saber fazer" com o outro como paciente. O analista vai se
oferecer como outro que possibilita transformar o grito em chamado,
começando a construir u ma trama significante. A oferta para o sujeito
é a de passar do "você não tem nada" para "isso que se passa tem a ver
com você". A aposta é que essa marca que aparece no registro do corpo
como sintoma físico ou como algo exterior ao sujeito possa passar para
o registro da palavra.
M as como ele pode fazer essa operação?
Seg u n d o Inés Sotel o (2009), n esse momento, sustentar certa
o bjetividade - com perguntas, tais como: "O q u e aconteceu? Como
chegou a q u i no hospital ?" ou "O que você pensa que pode aju d á - l o
neste momento?" - a b re o espaço necessário pa ra q u e o sujeito pos­
sa trazer a l g u n s dos significa ntes que posteriormente se enlaçarão
na tra nsferência.
O convite para construir um relato, localizar a aparição
da urgência e sua relação com acontecimentos da vida,
possibilita começar a armar uma trama [ ..] a urgência
.

começa a fazer-se própria. [.. ] O analista o orienta a


.

vincular o atual com momentos cruciais de sua história,


formulando-se algumas hipóteses, mesmo que provisó­
rias e destinadas a perder-se. (SOTELO, 2009: 27)

Diferentemente da u rgência ou da emergência clássico-médica, a


urgência tomada como subjetiva pelo acolhime nto do psicanalista tem
como direção situar para o sujeito esta "outra cena", a do inconsciente.
Quando Paula faz aquela pergunta que "nunca fez para ninguém", de
que ela quer mesmo saber? Não teria a ver com isso que "escapa à pro­
gramação"? Não nos cabe tentar responder para ela essa pergunta, mas
marcar a existência dessa "outra cena", o que por si só tem como efeito
u m alívio para a angústia do sujeito.
Como aponta Éric Laurent (2009), a i nscrição do trauma na par­
ticrJ iaridade do sujeito, do fantasma e do sintoma é curativa. O reco­
nhecimento de um trauma como particular, próprio de cada u m, é u m

1 36
"Fora do Protocolo": Intervenção Psicanalítica em Situação de Urgência

meio de produzir u m reconhecimento do sujeito em sua singularidade


e, então, u m sentido.
Mas este não se trata de um sentido qualquer: depois de um
trauma, o sujeito não precisa "somente dar um sentido ou restituir o sen­
tido reprimido; o ato analítico também implica apostar em uma reinven­
ção desse Outro que caiu, que foi perdido" (BELAGA, 2006: 17). O sujeito
precisa então reinventar esse Outro sem o qual não se pode viver, esse
Outro que ele acreditava existir e que agora não existe mais.
E essa "reinvenção" não se faz de forma cognitiva, não é possível
aprender cognitivamente as regras que compõem para nós o Outro do
laço social.
Trata-se de um "mais além" da técnica, um mais além que é pró­
prio da Psicanálise e que a diferencia das demais psicoterapias: mais
além do princípio do prazer, mais além do Outro, mais além da deman­
da, mais além da identificação... Onde se situa o desejo do sujeito. E o
analista só pode ajudar o sujeito neste percurso porque seu próprio
percurso o levou a não mais crer no sentido como resposta: sustentan­
do a dimensão da contingência, sua posição suscita o surgimento do
inconsciente, que emerge sempre em sua d imensão de ruptura com
o sentido estabelecido. Enquanto as psicoterapias especulam sobre o
sentido, a Psicanálise faz sua aposta justamente no fora de sentido.

Temporalidade e Urgência Subjetiva

U m tema central na clínica da urgência é a dimensão do tempo.


De um lado, a demanda para resolver "urgentemente" e sem recursos,
mas de forma absolutamente eficiente, coloca com frequência os pro­
fissionais diante de suas próprias u rgências. Do outro lado, o sujeito
que não "sabe", não "entende", não se reconhece no ato realizado, na
crise ou nos sintomas corporais se apresenta em um "não há tempo",
u ma pressa por concluir característica da u rgência.

137
Psicanálise e Hospital

É interessante pensar sobre esse "não há tempo" a que se refere


o sujeito, já que, muitas vezes, seu padecimento tem meses ou mesmo
a nos de evolução. Mas, q uando o impossível torna-se fato, o sujeito é
confrontado com o caráter de ficção de sua estrutura: passado e futuro
se misturam, e o tempo presente fica sem possibilidade de se inscrever.
A dimensão do tempo subjetivo fica, portanto, comprometida.
Sobre este tema, temos uma i mportante contribuição de Lacan
(1998) em seu texto "O tempo lógico e a asserção de certeza antecipa­
da". Trata-se de um sofisma onde ele relaciona a questão da tem po­
raridade subjetiva com a lógica. Nele, um d i retor de presídio convoca
três prisioneiros e propõe a eles um teste em troca de sua l iberdade:
apresenta cinco discos, sendo dois pretos e três brancos, e fixa um disco
nas costas de cada um dos três prisioneiros, sem que eles saibam qual
a cor fixada em si. O primeiro que identificasse a cor do d isco que es­
tava fixado em suas costas poderia sair pela porta, mas não l hes seria
permitido conversar nem chegar perto de espelhos d u rante o teste, e o
vencedor deveria explicar qual a lógica que o levou à conclusão da cor
do d isco afixado em suas costas. Desse modo, eles teriam que deduzir
a cor do disco sem vê-la, baseando-se somente nos discos que estavam
fixados nas costas dos outros dois prisioneiros. O diretor explica ainda
que eles têm "todo o tempo" para que seja feito o teste.
Após um percurso lógico de raciocínio salientado por Lacan, o
três prisioneiros, separadamente, explicam ao diretor u m mesmo racio­
cínio e conseguem sua liberdade.
No sofisma a p resentado, os prisioneiros só conseguem a l i ­
berdade a pós u m percurso lógico sal ientado p o r Laca n : primeiro
eles se olham - u m instante de ver -, depois formu la m e colocam
e m dúvida suas soluções para o teste - u m tempo de compreender
-, tempos lóg icos em q u e são capazes de calcular o d isco q u e car­
rega m e m suas costas. Desse cá lculo, cada sujeito extrai sua certeza,
mas a penas no momento de concluir, momento q u e se caracteriza
pelo ato q u e cada um faz, extrai ndo desse ato sua certeza, embora
d edutível, ainda incerta.

138
"Fora do Protocolo": Intervenção Psicanalítica em Situação de Urgência

Neste texto, segu ndo Lacan, há u m tempo em que o sujeito se


coloca em relação aos outros, para finalmente formular u ma afirmação
sobre si mesmo. Ele atinge sozinho algo de sua verdade, mas não o
faz sem os outros, em uma operação que deixa resto. "Eu afirmo ser
homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem".
(LACAN, 1998: 213)
No encontro com o analista, i ntroduzir a d i mensão de que "há
tempo" abre o espaço para o movimento dos tempos lógicos propostos
por Lacan. Diante da demanda de concluir instalada na urgência, o ana­
lista i ntroduz uma pausa, oferece um tempo para compreender o que
se passa com aquele sujeito, onde algo de sua verdade - mas não toda
- possa emergir. Passamos "da conclusão antecipada que se plasma no
ato à reintrodução do tempo do significante e do sentido que havia sido
ignorado". (CAMALY, 2009:132)
O sujeito em seu encontro com o analista pode então alcançar
u ma verdade que vai ser nova mente submetida à prova da d úvida, mas
que não poderia se submeter se não alcançasse primeiro algo dessa
verdade. "Se não é o desejo de educar nem de dominar que sustenta a
ação, o desejo do analista impõe ao saber desprender-se da pressa de
concluir; desprender-se do furor curandis". (N EPOMIACHI, 1989: 60)

Temporalidade e trauma

Continuando os atendimentos a Paula d u rante a i nternação de


seu fil ho na UTI, algumas falas chamam a atenção: "Para os problemas
que eu passei com meu primeiro filho, eu estava preparada, mas, para es­
tes problemas 'novos; não. " - diz após receber o boletim médico. Alguns
dias depois, diz para outra mãe: O meu outro filho teve isso e morreu
Logo depois - fala que causou na equipe um enorme incômodo.
Éric Laurent (2009) traz uma valiosa contribuição acerca deste
tema, que ele nomeia "generalização do trauma". Ele diz:

139
Psicanálise e Hospital

À medida que a ciência avança em sua descrição de


cada uma de nossas determinações objetivas, desde
a programação genética até a programação do meio
ambiente, passando pelo cálculo cada vez mais preciso
dos riscos possíveis, a ciência faz existir uma causali­
dade programada. À medida que só esta causalidade
é recebida, surge o escândalo do trauma que escapa a
toda programação. (LAURENT, 2009: 13)

É i nteressante como isso se faz presente em nossa prática: escu­


tamos com frequência no hospital: "De acordo com estudos e pesquisas
recentes, o paciente tem 80% de chances de sobrevier a este procedi ­
mento" o u "Vamos avaliar o risco com base nos exames de hoje".
Em suas falas sobre "problemas antigos e atuais", Pau la vai ten­
tando dar um contorno ao impossível, buscando inscrever aquilo que é
próprio do traumático: uma cena que se repete dentro de u ma atem­
poralidade que não pode ser colocada de forma linear, fora de qualquer
programação ou protocolo.
Quando chega o momento de ir para casa, ela d iz: "Eu estou es­
perando essa alta há quase um ano... "

1 40
REFERÊNCIAS

BELAGA, G. Presentación. ln: BELAGA, G. (org.). La urgencia generalizada:


La práctica en el hospital. Buenos Aires: Grama, 2006, p.ll-19.

CAMALY, D. Modalidades de resolución de la urgencia en la guardia


externa de un hospital general. In: SOTELO, L (org.). Perspectivas de La
clínica de La urgencia. Buenos Aires: Grama, 2009, p.127-135.

CARVALHO, S. B. O hospital geral: dos impasses às demandas dirigidas


ao saber psicanalítico. Como opera o psicanalista? Articulação teórica
a partir da experiência da Clínica de Psicologia do Hospital Mater Dei.
Dissertação de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal de
Minas Gerais (U FMG). Belo Horizonte, 2008.

LACAN, J. O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. In: Escritos.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998a, p.197-213

LAU RENT. E. El revés del trauma. In: SOTELO, L (org.). Perspectivas de La


clínica de La urgencia. Buenos Aires: Grama, 2009, p.B-22.

N EPOMIACHI, R. AI tiempo de la urgencia, el tiempo del saber. In: GRUPO


DE INVESTIGACIÓN Y ASISTENCIA SOBRE LA U RGENCIA. La urgencia: el
psicoanalista en La práctica hospitalaria. Buenos Aires: Ricardo Vergara.
Ediciones, 1989, p.59-61.

SOTELO, L lQue hace un psicoanalista en la u rgencia? In: SOTELO, L


(org.) Perspectivas de La clínica de La urgencia. Buenos Aires: Grama,
2009, p.23-30.

141
ANOREXIA: UM SINTOMA DA PUBERDADE

Mônica Assunção Costa Lima

Introdução

Parece haver um consenso entre os analistas de que a anorexia


deve ser pensada no plural. Isso significa que, sob a aparente homo­
geneidade do fenômeno da restrição alimentar, a função do sintoma
anoréxico deve ser explicitada em cada um dos casos, considerando seu
valor na economia psíqu ica de cada sujeito.
Uma relação, no entanto, foi apontada, m u itas vezes, na literatura
sobre o tema, a saber, a relação entre anorexia e puberdade. Todos sa­
bem que o sintoma anoréxico se instala frequentemente neste período,
e o presente a rtigo se propõe a lançar luz sobre as seguintes questões:
Como explicar a recorrência do sintoma anoréxico neste contexto? A
anorexia instalada neste período da vida é u ma solução para que tipo
de impasse experimentado pelo sujeito?
Para tanto, nós nos orientaremos por uma h ipótese que expl icita­
remos ao longo da argumentação, qual seja, a de que a anorexia, nestes
casos, pode ser considerada como um sintoma da puberdade.

1 43
Psicanálise e Hospital

O sintoma como solução

Quando afirmamos que a anorexia é um sintoma da puberda­


de, tomamos o sintoma na acepção freudiana. Freud foi o primeiro a
apontar o valor de solução do sintoma. Como todos sabem, ele o de­
finiu como uma "solução de compromisso" entre diferentes instâncias
psíqu icas e não devemos perder este aspecto de vista: o fato de que o
sintoma é sempre uma solução, uma resposta do sujeito para um deter­
minado impasse subjetivo.
Depois de admitirmos que o sintoma é u ma resposta, u ma so­
lução encontrada pelo sujeito para algum conflito psíquico, resta-nos
saber que tipo de conflito o sintoma anoréxico busca solucionar na pu­
berdade. Examinemos, pois, o que se passa neste período específico
da vida do ser humano e destaquemos as questões que, aí, l he são
apresentadas.

O que é a crise da puberdade?

A adolescência é o momento em que o sujeito se libera da au­


toridade dos pais e se separa subjetivamente deles para assumir uma
visão própria dele mesmo e do mundo.
Como é possível imaginar separa r-se dos pais, que foram até en­
tão a ú nica autoridade e fonte de toda crença, mergulha o adolescente
em uma situação de desorientação. Como sugere Lacadée, nesse mo­
mento, ele se encontra dividido entre a nostalgia do passado, sempre
mais ou menos mítico, e a d u ra condição de alguém que deve se tornar
vivo na língua. Segundo o autor, o adolescente é aquele que precisa en­
contrar u ma língua para poder d izer de si mesmo ao Outro, para poder
tomar u ma posição no campo do Outro e, nesta transição, encontra-se
em questão uma escol ha decisiva, a qual envolve crises de identidade
que se constituem em crises do desejo e que levam, muitas vezes, o
adolescente ao sentimento de exílio. (LACADÉE, P. 2007, p. 23)

1 44
Anorexia: um sintoma da puberdade

É i mportante assinalar que tais crises de identidade e de desejo


na adolescência, se reportam de modo fundamental ao corpo que se
modifica i ntensamente nessa época e provoca, por essa razão, um sen­
timento de estranheza.
A estranheza e a angústia diante das transformações corporais
são expl icadas pelo fato de que a meta morfose sofrida não é, imedia­
tamente, traduzida na .língua do Outro pelo adolescente, o que resulta
em um sentimento de i m passe e vazio, que se m istura m uitas vezes
com o de vergonha.
Assim, pois, ao falarmos de adolescência, a referência ao corpo e
às modificações sofridas por ele, na puberdade, torna-se essencial. Na
verdade, Freud não d istingue adolescência (Heranwachsen) e puberda­
de (Pubertat). Em seus textos, toda vez que fala deste período da vida
do ser humano, ele quase sempre o denomina puberdade e não-ado­
lescência. O que leva Sônia Alberti a afirmar que a posição freudiana
evidencia que é a puberdade que conta verdadeiramente q ua ndo, na
teoria psicanalítica, buscamos definir o campo da adolescência. (ALBER­
TI, 1999, p. 21)
E o que é a puberdade para a Med icina? É uma fase do desenvol­
vimento que se i nicia a partir do aparecimento das primeiras caracterís­
ticas sexuais secundárias e que finda quando a maturidade sexual física
é atingida, o crescimento cessa, e as funções de reprodução se instalam
completamente.
Já o ponto de vista freudiano sobre a puberdade engloba tanto
as transformações corporais quanto as transformações psíquicas que as
acompanham. Para Freud, a puberdade prepara o sujeito e o organismo
para o ato sexual, quando o aparelho sexual passa a receber as excita­
ções não apenas do mundo externo e do corpo orgânico mas também
da vida psíquica. (FREUD, S. 1905/1996, p. 197)
A preparação para o ato sexual envolve transformações rela­
tivas à zona genital e ao corpo pensado como u m todo, o qual, na
puberdade, a u menta seu tamanho, altera suas formas e sua apa rência.
Envolve também o posicionamento do sujeito no que se refere ao

1 45
Psicanálise e Hospital

remanej a mento de sua sexu a l idade i nfa nti l, ao desejo/gozo sexual,


ao i nício do uso da fu nção fál i ca e, por último, à escolha de u m
objeto de amor.
De acordo com Sônia Alberti, a sexualidade emergente na pu­
berdade recoloca as questões do Édipo, no momento em que o sujeito
passa a ter a possibilidade e a maturação biológica suficientes para por
em ato seu desejo edípico (ALBERTI, 1999, p. 20). O sujeito é convocado,
neste momento, a decidir sobre sua posição sexuada e sobre o uso que
fará da função fálica a partir das diretrizes definidas em sua experiência
do complexo de Édipo.

Puberdade e anorexia

Sendo situada sinteticamente a crise na puberdade e sua relação


com o corpo e com o Édipo, passemos, então, à a rticulação entre pu­
berdade e anorexia.
Todos sabem que a anorexia é um sintoma que aparece frequen­
temente na puberdade e podemos nos perguntar por quê. Dizíamos, há
pouco, que a puberdade coloca em questão u ma crise do desejo e do
gozo, mais especificamente, do desejo e do gozo sexual. E, aqui, vale
a pena ressaltar que o termo anorexia, originário do grego, significa
justamente "negação do desejo".
O prefixo "an" significa negação ou ausência, enquanto "orexis"
significa desejo. Como é possível constatar, esta designação evidencia
que, na solução anoréxica, encontra-se em jogo uma estratégia cujo
objetivo é evitar o desejo, e como já ressaltamos muitas vezes, o dese­
jo de que se trata é, sobretudo, o desejo sexual, ou quem sabe outra
forma de se colocar a mesma questão é d izer que encontramos, na
anorexia, u ma d ificuldade do sujeito em i nscrever seu gozo, no campo
do desejo sexual.
Os médicos registraram muito cedo, em suas observações, que a
aparência assumida pelas anoréxicas, em função da caquexia derivada

1 46
Anorexia: um sintoma da puberdade

da recusa alimentar, era u ma aparência assexuada, por não se parece­


rem mais nem com homem nem com mulher.
A persistência do sintoma anoréxico faz com que os atributos fe­
mininos desapareçam. Somem as formas arredondadas, cessa a menstru­
ação, murcham os seios etc. É como se o sujeito assumisse uma existência
narcísica, para a qual a questão do Outro sexo não está colocada.
O que fazemos notar é que a imagem assexuada apresentada
pelas pacientes anoréxicas, um dado do registro do fenômeno, é o índi­
ce de u ma questão psíqu ica referente à dificuldade destes sujeitos em
assumir uma posição na repartição entre os sexos.
Deste ponto de vista, a anorexia seria uma saída para essa dificu l ­
dade. Uma resposta encontrada pelo sujeito para o impasse experimen­
tado por ele no seu encontro com o sexo e com a exigência, própria
deste momento, de que ele defina sua relação com o falo.
Para alguns analistas, as anorexias são sintomas atuais do femini­
no (EIDELBERG, 2003, p. 8). Se, na era freudiana, as histéricas, com seus
sintomas inscritos no corpo, interrogaram o que é ser uma mulher, as
anoréxicas, na atualidade, na ausência do recurso ao sintoma histérico
clássico, relançam a questão, inscrevendo-a no corpo de um modo di­
ferente daquele encontrado na histeria.
A puberdade, como já d issemos, é o momento em que o corpo
inquieta pelas mudanças que apresenta, tornando-se o lugar onde se
atualiza o problema da identidade, do desejo e do gozo sexual. E não
é um acaso o fato de que, nesse momento de transição, o adolescen­
te, com muita frequência, risque, fure e arranhe este corpo. As marcas
corporais promovidas pela tatuagem, piercing e pelas mais diversas in­
cisões, como se sabe, podem mesmo se tornar, em alguns casos, feri­
mentos corporais deliberados.
Segundo Lacadée, com as tatuagens e os piercings, algo do gozo
do corpo pode ser limitado, regulado e autentificado por uma inscrição
simbólica. E o adolescente recorrerá tanto mais a estes procedimentos
que produzem sinais no corpo, quanto menos ele recebê-los do Outro
simbólico. (LACADÉE, P. 2007, p. 36)

147
Psicanálise e Hospital

Fica, aqui, a questão de saber se a anorexia poderia se inscrever


no mesmo registro das marcas corporais que acabamos de citar, ou
seja, privadas da solução sexual animal, representada pelo i nstinto e as­
saltadas pela pulsão, as anoréxicas responderiam às mudanças inquie­
tantes em seu corpo e à convocação para assumir uma posição sexual,
cadaverizando este corpo e evitando um posicionamento em relação à
função fál ica.
Como se sabe, a escolha por certo uso da fu nção fálica é, segun­
do Lacan, o que determina o posicionamento do sujeito como homem
ou como mulher (LACAN, 1972-73/1975, p. 74) e é o que parece ser
evitado na estratégia anoréxica.
A anorexia, do m esmo modo que as marcas feitas no corpo pelas
tatuagens ou piercings, representaria uma busca de referência identifi­
catória por parte do púbere no campo do imaginário. Na ausência das
marcas simbólicas que teriam o poder de regular o gozo corporal que
i nvade o adolescente, a anorexia seria uma forma contemporânea de
se marcar este corpo, cadaverizando-o, a partir de uma identificação
imaginária.
Deste ponto de vista, a anorexia seria um dos nomes para o
vazio de significação q u e emerg e na pu berdade e que d iz respeito
à identidade destes sujeitos, sobretudo, à sua identidade sexual. A
a norexia seria também u m ú ltimo recu rso do sujeito para se fazer
um laço social.
O problema é q ue o laço social proporcionado pela a norexia não
é organizado simbolicamente. Muitas vezes, as adolescentes se apre­
sentam em nosso a m bulatório, dizendo: "Sou anoréxica". Identificadas
a este significante, associam-se nos sites da Internet, nos quais chamam
a anorexia de "ana" e a bulimia de "mia", onde fazem pactos de jej u m e
trocam informações sobre dietas e o uso de laxantes e diuréticos.
Nota-se que este tipo de laço social se constitui em uma via do
objeto de gozo (do objeto pequeno a) e não em u ma via simbólica do
ideal do eu, que Freud recon heceu na organização dos g rupos que es­
tudou no texto "A psicologia dos g rupos e a análise do eu".

148
Anorexia: um sintoma da puberdade

Estamos diante de u ma identificação alienante que enlaça os re­


gistros do real e do imaginário e deixa de lado o simbólico, que facili­
taria as trocas no campo da l inguagem, das relações sociais, amorosas
e sexuais. É preciso dizer que a identificação simbólica permitiria, tam­
bém, a constituição de u m sintoma no sentido estrito do termo, e este
não é o caso da anorexia.

O sintoma anoréxico não é um sintoma


no sentido clássico do termo

O sintoma clássico, tal como Freud o descreveu, é organizado


simbolicamente, é estruturado pela linguagem, como apontou Lacan
em "Função e campo da fala e da linguagem" (LACAN, J. 1953/1966, p.
269), além encontrar seu fu ndamento na fantasia.
O matema lacaniano da fantasia é $ < > a, e pode ser lido da se­
guinte maneira: a fantasia é o que tampona a castração com um objeto
mais-de-gozar.
Isso sign ifica q u e o sujeito só tem fantasia na medida em q u e
está i nscrito na função fál ica e e m s e u correlato a lógica da castra­
ção. Este não é o caso do sintoma a noréxico, o qual não está fu nda­
do em u ma fantasia tam pouco está estruturado pela l i ng uagem, o
q u e i m poss i b i l ita sua decifração e i nterpretação. Em última i nstância,
podemos d izer que a anorexia não está referida à lógica fál ica e à
castração.
Para distinguir a anorexia do sintoma clássico, alguns analistas a
designaram como u m dos novos sintomas surgidos na contemporanei­
dade, assim como as toxicomanias, as compulsões para comprar etc.
Alejandra Eidelberg assinala que a anorexia é um sintoma tipica­
mente contemporâneo, marcado pela obsessão pela imagem especular
e afinado ao imperativo próprio de nossa época que é o de gozar da
i magem narcisista. (EIDELBERG, 2004, p. 17)

149
Psicanálise e Hospital

Como foi assinalado por vários analistas, o si ntoma anoréxico


encontra-se em relação com o declínio, em nossa época, dos ideais, do
nome do pai e da função fálica, elementos que permitiriam ao sujeito
a construção de identificações simbólicas que lhe garantiriam lugar no
Outro e serviriam de apoio para seu desejo e gozo sexual.
Na i mpossibilidade do recurso a estes elementos, a anorexia apa­
receria como uma prática de corpo, que condena o sujeito a permanecer
longe de toda i nscrição significante que o situe no cam po do Outro.
A colocação em jogo do corpo e de sua imagem, na anorexia, in­
dica que a função fálica referida à linguagem não serviu para defender
o sujeito do real, do gozo. Quanto menos a função fálica operar como
um recurso de defesa contra o gozo, mais i mportância ganhará o corpo
em sua d imensão real e imaginária.
No caso do sintoma anoréxico, temos uma prática (a recusa ali­
mentar) que assume a forma de um ato, que reitera o encontro do
sujeito com seu objeto de gozo, sem que haja intermediação simbólica
neste encontro. Prática na qual o sujeito preserva u ma modalidade de
gozo recusando-se a passar pela fala, pela função fál ica e por seus sem­
blantes, o que dificu lta a assunção de uma posição sexuada.
Deste ponto de vista, consideramos que o sintoma anoréxico
implica um empuxo ao gozo para além do falo. Um e mpuxo ao gozo,
feminino disjunto da existência do sujeito na cadeia significante. E, nes­
te contexto, podemos nos perguntar: "Haveria u ma afinidade entre o
rechaço da sexualidade ligada ao falo pela anoréxica e a ausência do
significante que designe o sexo feminino?"

A anoréxica, a sexuação e o feminino

Como se sabe, para a Psicanálise, existe uma d ificuldade especial


para a identificação sexual nas mulheres, em razão da ausência de um
significante que designe o sexo feminino.

1 50
Anorexia: um sintoma da puberdade

De acordo com Freud, tanto a menina quanto o menino tomam


conhecimento de seu sexo a partir do falo. Se a vagina é reconhecida
como órgão, ela não se i nscreve no i nconsciente como o significante do
sexo feminino e como oposição ao sexo masculino, produzindo, assim,
complementariedade. A tese freudiana é a de que, no inconsciente, só
há inscrição do significante do falo.
O Complexo de Édipo da menina, descrito por Freud, é muito
complicado. De acordo com o psicanalista vienense, ela deve sofrer
duas alterações em sua sexualidade. Deve a bandonar seu primeiro ob­
jeto d e amor, a mãe, e encontrar um caminho para o pai. E deve tam­
bém a bandonar o que, em u m primeiro momento, constituiu-se em sua
principal zona genital. Tem de substituir o clitóris pela vagina. (FREUD,
1933[1932]/1996, p. 119)
A primeira fase da sexualidade feminina, marcada pela mas­
turbação clitoridiana, tem, segundo Freud, caráter masculino; e a se­
gunda, caracterizada pela substituição do clitóris pelo prazer da va­
gina, seria a especificamente feminina. O problema reside no fato de
que o clitóris continua a funcionar na fase feminina posterior. (FREUD,
1933 [1932]/1996, p. 127)
Ainda de acordo com Freud, o ponto de báscula que determina a
passagem da primeira para a segunda fase é a descoberta da castração
da mãe, que promove a desvalorização desta e faz com que a menina
se volte para o pai, portador do falo (FREUD, 1933[1932]/1996, p. 126).
·.·

E podemos imaginar toda a d ificuidade para a menina de assumir uma


posição feminina que impl ica a renúncia ao falo, partindo da expectati­
va de se receber este mesmo falo do pai.
Outro problema é que, se, no caso do menino, é o Complexo
de Édipo que determina sua saída do Édipo, no caso da menina, ela é
introduzida no Édipo por ele.
A mulher reconhece desde o início sua castração e, segundo
Freud, daí abrem-se três linhas possíveis para o desenvolvimento de
sua sexualidade (FREUD, S. 1933[1932]/1996, p. 126). O embaraço de
Freud para expl icar a feminil idade é visível, e ele se justifica dizendo

151
Psicanálise e Hospital

que os modos de reação da menina diante da castração são variáveis e


com plexos. (FRE U D, 1933[1932]/1996, p. 117)
Freud tem dificuldade de encontrar a chave de um desejo úni­
co femi nino que permita reunir todas as mulheres em u m conjunto.
E é justamente a noção de um conjunto de mulheres que Lacan, mais
tarde, colocará em questão com a célebre frase: "A mulher não existe. "
(LACAN, 1972-73/1975). A reflexão sobre as mulheres exigindo pensá­
las u ma a uma.
De todo modo, Freud, em seu artigo "A feminilidade", busca cir­
cunscrever aquilo que, nas m u lheres, viria fazer suplência à ausência da
identificação das mul heres com o significante do sexo femi nino.
Freud, como foi d ito acima, propõe três caminhos possíveis para
as mulheres, derivados da inveja do pênis, mas afirma que, dos três,
somente o terceiro conduziria verdadei ramente à feminilidade normal.
(FREUD, 1933[1932]/1996, p. 126)
O primeiro define-se pela insatisfação da menina com seu cli­
tóris, que determina a renúncia a toda sexualidade, ao mesmo tempo
em que ela renuncia à atividade fálica (FRE U D, 1933[1932]/1996, p. 126,
127). O resu ltado desta tomada de posição é o evitamento do desejo
sexual, deixando indetermi nada a relação do sujeito com o Outro sexo.
O segundo caminho é caracterizado pelo complexo de mascu­
linidade e decorre do desejo de falo. A mulher não abre mão de ter o
falo e se aferra desafiadoramente à sua masculinidade, preservando a
esperança inconsciente de que u m dia conseguirá um pênis (FREU D,
1933[1932]/1996, p. 129).
O terceiro caminho apontado por Freud consiste em tomar o
pai como objeto, encontrando o caminho para a forma feminina do
complexo de Édipo. Este caminho conduz a mulher à escolha heteros­
sexual do homem como substituto do pai e se inscreve, também, no
registro do ter. A mulher esperaria o falo de um homem depois de tê­
lo esperado do pai, especialmente sob a forma de um filho (FREUD,
1933 [1932]/1996, p. 128). Nota-se que, aqui, a mulher não renuncia ao
falo, mas consente com que este falo passe pela mediação do Outro.

1 52
Anorexia: um sintoma da puberdade

E que, enquanto no caso do homem, o medo de perder o falo o conduz


à posição masculina, no caso da mulher, é a vontade de ter o falo que a
conduz à posição feminina.
Lacan, em seu texto "A significação do falo", embora reafirme a
prevalência do complexo de castração no processo de assunção da po­
sição sexuada para um sujeito, aponta outra possibilidade de acesso à
posição feminina. (LACAN, 1958/1966, p. 685)
Em primeiro lugar, para Lacan, não é do pênis que se trata, mas
do falo, ou seja, de um significante que, como todo significante, tem u m
lugar no discurso do Outro (LACAN, 1958/1966, p . 690). A outra d ife­
rença em relação a Freud é que Lacan, quando aponta para um caminho
para a feminilidade, promove u m deslocamento da lógica do ter o falo
para a lógica do ser o falo (LACAN, 1958/1966, p. 694). O psicanalista
francês abandona o binário ter ou não ter o falo.
O caminho para a feminilidade apontado por Lacan é a mascara­
da (LACAN, 1958/1966, p. 694), expressão encontrada no texto da psi­
canalista Karen Horney e que indica o efeito de um véu. A mascarada,
como mostra Colette Soler, tem a ver com as práticas dos adereços tão
d isseminada entre as mulheres e que manobram a arte do parecer. Nes­
ta estratégia, trata-se de "ser o falo" para um homem, o que possibilita à
mulher ocupar o lugar do correspondente objetai da falta fálica de u m
homem. (SOLER, 2003, p . 28, 29)
Dessa forma, a posição feminina, de acordo com Lacan, tem a ver
com a parceria que ela pode fazer com um homem, o que também já
havia sido enfatizado por Freud. A diferença é que o caminho freudiano
se funda na expectativa de ter o falo, enquanto o caminho lacaniano se
funda na expectativa de ser o falo.
Os dois caminhos enfatizam, no entanto, o desejo e a demanda
feita pela m u l her ao homem e mantém a perspectiva de que, para se
alcançar a posição feminina, é necessária a mediação do sexo oposto.
É importante assinalar que a perspectiva lacaniana parece se ins­
pirar em uma indicação de Freud. No texto sobre a feminilidade, ele
aponta para o fato de que a importância que as mulheres atribuem ao

1 53
Psicanálise e Hospital

próprio corpo nada mais é do que uma compensação da falta fática


(FREUD, 1933[1932]/1996, p. 131). A ideia de Freud é que o interesse da
mulher pelo espelho mostra que todo seu corpo faz suplência ao falo
q ue falta. O corpo assume valor fático, o valor de um falo imaginário.
Assim, tomando como referência os cam inhos apontados acima
para a feminilidade, pensemos, então, o impasse do sujeito anoréxico
com a sexuação e com o feminino.
O que a clínica evidencia é que a anoréxica não toma os cami­
nhos descritos por Freud e por Lacan: demandar o falo a um homem
ou colocar-se na posição de ser o objeto fál ico que falta ao homem.
A solução anoréxica dispensa a mediação do sexo oposto. O que vem
fazer suplência à falta fática é uma nomeação imaginária. É o recurso à
imagem do corpo, que vem no lugar do significante do sexo feminino
que não existe. O recurso à i magem, no entanto, diferentemente da
mascarada, não visa causar o desejo do parceiro. Na anorexia, o recurso
à i magem permanece no campo do narcisismo que exclui toda e qual­
quer alteridade.
Aqui temos o empuxo ao gozo para além do falo, para além das
trocas simbólicas e das trocas com o outro sexo. Temos o empuxo ao
gozo marcado pelo amor narcisista, u m a mor fora do discurso, na me­
dida em que não faz laço social. Não faz laço com o objeto como par­
ceiro e desconsidera a relação sexual entre os sexos.
E a questão é saber: Por que a resposta clássica histérica para a
questão sobre o feminino está sendo deslocada, na contemporanei­
dade? Por que as mulheres ficaram sem o seu mestre clássico a quem
dirigir suas perguntas, a quem mostrar sua i mpotência de saber sobre
seu gozo?

1 54
REFERÊNCIAS

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SOLER, C. O que Lacan diz das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.

1 56
FUNÇÃO PATERNA NA Un NENONATAL:
O EM PUXO À MÃE DIANTE DO ENCONTRO
TRAU MÁnCO COM O MAIS ALÉ M DO PAI

Maria de Lourdes de Melo Baeta

Contextualizando

O texto foi escrito a partir dos resu ltados encontrados em uma


pesquisa i ntitulada "A paternidade na UTI neonatal: o pai prematuro"
(BA ÊTA, 2009), real izada com pais de crianças nascidas pré-termo que
se encontravam hospitalizadas no tempo da coleta dos dados. O am­
biente, então, era aquele dos laços interativos inaugurais entre os pais
e os bebês acontecendo em uma i nstituição de saúde.
Sabidamente as mães ocupam o lugar da protagonista no cená­
rio das primeiras relações com a criança pequena. Isso não é diferente
nas instituições de saúde, tornando-se ainda mais significativo nas UTis
neonatais, onde a função materna sofre u ma i nterferência direta no seu
exercício - "uma fratura", d iz J. Jerusalinsky (2002) , atraindo para a
-

mãe todas as preocupações dos familiares e dos profissionais. A preo­


cupação com o pai é mais recente e, regra geral, não se lhe atribui um
lugar primordial nesse tempo da constituição precoce do sujeito.
Os pesqu isadores também voltaram sua atenção para o pai há
muito pouco tempo. Na área da saúde - particularmente nos contextos
relacionados com os períodos que se iniciam com a concepção, passam

157
Psicanálise e Hospital

pelo pré-natal e se estendem até a perinatal idade -, existe uma carência


significativa de dados, tanto nas instituições hospitalares quanto nas
clínicas de reprodução assistida.
O que se questiona, então, é se o pai teria uma função específica
a desempenhar na constituição do sujeito nesse tempo tão primevo da
vida da criança. E, mais ainda, sob as condições da rean i mação neonatal
que inviabilizam, ou restringem severamente, a própria função materna.
Diante d isso, é que se propôs estudar - sob a perspectiva do pai e com
os pressupostos teóricos da Psicanálise - o exercício da fu nção paterna
em u ma UTI neonatal.
A anál ise dos dados, feita segundo metodologia proposta por
Pinto (2001), privi legia dois aspectos: a d i mensão significa nte e, no
que lhe escapa, o real a ser evitado. Assi m, permitiu extra ir - por
meio de uma red ução da produção s i m bólica -, temas convergen­
tes, redutíveis aos efeitos d a m a rca significa nte, a partir dos quais
foram esta belecidos enunciados fu nda mentais, i nscritos sob a forma
de ideais ancorados nas vivê ncias edipianas. No l i miar da situação
tra u mática - o nascimento prematuro seg uido da rean imação neo­
natal da criança e da i ntrodução de uma descontin uidade no exercí­
cio das funções parenta is -, foi possível bordejar o rea l a ser evitado
pelos pa is, em oposição ao que se mostrou convergente em termos
de ideais. Ou seja, o mais a l é m do pai e dos seus ideais, ponto pri­
vilegiado nesse a rtigo porque mostrou ser o elemento ba l izador da
clínica psica nalítica em u ma UTI neonata l.

O nascimento prematuro: encontro traumático


com o mais além do pai

A paternidade na UTI neonatal - onde a criança apresenta uma


evolução clínica imprevisível, quando não manifestamente rui m - deixa
os pais desamparados das suas referências simbólicas, confrontando-os
com um encontro faltoso, encontro com um resto pulsional traumático

1 58
Função Paterna na UTI Neonatal

que excede a linguagem e faz obstáculo ao saber. Encontro com o real,


com a dimensão não significante do i nconsciente.
Encontro traumático porque produz u ma ruptura na trama sim­
bólico/imaginária do complexo de Édipo com a qual os novos pais se
i ntroduzem nesse estranho familiar que constitui para eles a paterni­
dade. Trama inconsciente, mas que se mostra subjacente ao projeto
fundado nos pilares das primeiras relações amorosas da i nfância e se
revela pelos ideais nelas referenciados. Dimensão familiar da paternida­
de, indicadora do reencontro buscado com o objeto perdido, como nos
ensinou Freud (1925/1976), mas nunca reencontrado. "Reencontramo­
lo no máximo como saudade. Não é ele que reencontramos, mas suas co­
ordenadas de prazer" (LACAN,1959-60/1988, p. 69), pelo reinvestimento
das suas marcas.
Assim, ouvimos de um pai - para quem a paternidade se apre­
sentou de forma exclamativa -, no entremeio da pergunta que lhe fazia
a pesqu isadora:

"O que foi, prá você, ser pai ... [Nossa!] e como é que isso entrou
na sua vida?"

A exclamação irrompe no meio da pergunta, mas a resposta que


se segue deixa ver que ele foi pego no rebate de uma bola lançada há
muito tempo:

"Eu ... Eu sempre quis ser pai. Toda ... Depois da minha adoles­
cência ... Agora, na idade que eu comecei a ter... Vinte... Vinte e
cinco anos, agora ... Eu sempre quis ser pai, imaginei ser pai ... E...
Imaginei cuidando de um filho e... Principalmente imaginava as­
sim ... Até um filho ... Do sexo masculino mesmo, não sei por que
eu sempre imaginava ..."

Surpresa e familiaridade que pudemos sintetizar em u m aforis­


mo: Nossa! Eu sempre quis ser pai.

1 59
Psicanálise e Hospital

Agora, contudo, os ideais se revelam insuficientes para se haver com


o lado estranho da paternidade. Dimensão que já se anunciava em expres­
sões também utilizadas pelos pais quando perguntados sobre o que foi
ser pai para eles. A paternidade foi então descrita como choque, surpresa,
susto, experiência muito difícil, única, inédita, impor, inacreditável ou inexpli­
cável. Custa a cair a ficha! O segredo da paternidade, o seu recôndito - O
que é um pai? -, já se colocando para eles nessas expressões.
O estranho se apresenta como u m mais além do pai. Eles se sen­
tem u ltrapassados e sem recursos. As expectativas sobre a paternidade,
sobre como seriam pais, caem por terra ou se veem seriamente ame­
açadas. Diante do nascimento prematuro e dos incidentes da reani­
mação, os pais falam de baque, choque, turbulência, tensão, cansaço,
susto, desespero, arrasamento, desengano, apreensão, desnorteamento,
desmoronamento... Um vir abaixo.
Ocorreu-nos pensar os pais como desarvorados. Á rvore, em Ma­
temática, designa os g rafos que representam estruturas hierárquicas.
A capacidade de simbolizar antecede, logicamente, para a criança, a
possibilidade de subjetivar a função paterna, simbólica por excelência.
E é a mãe, Outro real e primordial da criança, que vai promover nela a
incorporação da linguagem enquanto lhe presta os cuidados maternos
impregnados de desejo. Tanto que Lacan (1956-57/1995, p. 66-70) a
nomeia mãe simbólica enquanto é o agente da constituição do sujeito
no primeiro tempo do Édipo. E se essa função não se cumpre, porque a
mãe também se encontra i mpedida de real izá-la, abre-se aí um buraco.
O edifício ameaça cair por falta de alicerce.
Trata-se, assim, de u ma ruptura, um h iato no saber. U ma "hiân­
cia", d iz Lacan, que desarticula as funções parentais introduzindo nelas
a descontinuidade. O homem se vê, então, mais u ma vez, diante da cas­
tração do Outro materno. Outra vez na encruzilhada onde lhe é posta a
questão do falo, mas agora de outro lugar - não mais do filho, mas do
pai. E, uma vez pai, a castração da mãe passa ao seu cargo.
Assim, ouvimos de um pai que tentava se sustentar nos seus
ideais, mas era constantemente confrontado com o real que o deixava
sempre no mesmo lugar:

1 60
Função Paterna na UTI Neonatal

"Quando eu fiquei sabendo que ele tinha uma infecção grave,


eu desmontei. Eu desmontei. Eu acho que aquilo ali era o fim,
que ele tava realmente... que a situação dele tava muuuuito grave
assim. Mas depois a gente [... ], dá uma sacudida e... Não, calma
aí, né... Vamos lutar."

Desmontei tem o sentido figurado de vir a ba ixo. E nisso o incons­


ciente se abre. Falando sempre no passado, de u ma situação suposta­
mente já superada (a i nfecção), de repente, um verbo, só u m, no pre­
sente - eu acho que aquilo ali era o fim - ou seja, era e continua sendo
,

u ma situação que ele suporta com extrema d ificuldade. Como diz An­
sermet, a respeito da situação traumática (2003, p.SO), "só podemos ser.
Não se pensa': Por u m instante, um momento fugaz, o i nconsciente se
abriu, mas para se fechar logo em seguida.
E de outro pai, que sempre enfatizava a sua tranquilidade - com­
parando-se nisso com o próprio pai -, quando contava que é dela que
tira suas forças:

"Eu não gosto de ficar falando. Ah, o neném tá assim, o neném


tá ... Todo dia era isso... Ficar... Ter que tá dando uma explicação.
Aí. . É ... Eu vou falar com você, é ... Parece que abateu minha tran-
.

quilidade mesmo, sabe... Porque eu sou um cara até tranquilo. É.. .


Achei mais é ... Mais é tranquilidade mesmo ... Porque prá passar.. .
Você estar... ( ... ) É! Acho que é Deus mesmo que dá força."

Ele não se dá conta d e que sua tranquilidade foi abatida.

O empuxo à mãe

Os pais são fortemente atingidos por esse encontro, pelo avesso,


com a onipotência do desejo do Outro materno e Outro primordial, en­
contro vivenciado no cenário vivo e dramático da UTI neonatal - onde o
desamparo da sua criança não encontra refúgio no seio materno, mas,

161
Psicanálise e Hospital

ao contrário, a mãe vê-se i mpossibilitada de exercer a sua função e ex­


perimenta, por isso, uma dor enorme -, os pais, então, se veem tomados
pelo que consideramos ser uma expansão do imaginário.
Assim, pudemos ouvir deles falas como estas:

"Foi engraçado que a ficha da gente custa um pouco a cair, né?


Quando a gente descobre que tá grávida ... Aí ocê... Puxa vida ...
Aí ocê custa a acreditar aquilo [É?] É como se não tivesse nada
acontecendo. Mas depois a ficha cai ... E quando nasce aí ocê...
Puxa vida! [...] Então assim ... Eu não peguei ela ainda ... No dia que
eu fui pegar, ela tava no cipapi, então... Não consegui pegar ela
no peito ainda. .. (referindo-se ao pai/mãe canguru) Acho que vai
ser uma experiência legal também ... Mas esse lance com a mãe
acho que é muito mais direto porque ... Acho que, acho que ...
Acho que envolve química, né?"

"É... Na hora que eu soube, né, falei assim, vai ... Na hora que ela
começou a passar mal, ah, vai ter que tirar o neném ... Fiquei uma
semana aqui no hospital aqui, né, até chegar a hora certa prá
poder tirar ele ..." (quem ficou no hospital foi a mãe)

"Olha ... É ... Chega eu e a mãe dele, né. Aí é ... Ela fica lá um pou­
quinho ... Depois ela desce (para tirar o leite), né ... Aí é ... Converso
com ele, né ... Eu peço ele a bênção, né ..."

"E as pessoas, em vez das pessoas virarem e falar assim, poxa,


Armando, parabéns por duas crianças, você é um pai privilegia­
do. Aí eu ... Em vez das crianças falá isso comigo... Eu ... (corrige)
As pessoas falarem, né ... Ficava falando, puxa, você está enrolado
agora, você está enrolado." (pai gêmeo e os bebês também)

Para dizer com Barros: "Eu estou bem sentado em um lugar. Vem
uma palavra e tira o lugar debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava
sentado". (1997, p.l03)

1 62
Função Paterna na UTI Neonatal

Por outro lado, no cotidiano, digamos assim, todos os pais ocu­


pam os seus l ugares e se portam adequadamente neles. Do que é que
elas, as palavras, estão falando? Elas falam da posição do sujeito in­
consciente e revelam o forçamento psíquico evocado naqueles ho­
mens pela vivência desse momento inaugural da paternidade. No ra­
tear da linguagem, nas abertu ras deixadas pela sua estrutura dividida,
o sujeito do inconsciente se i ntroduz para enunciar seu desejo e o que
l he causa tensão.
É uma exacerbação do registro imaginário, já o dissemos. É um
i maginário i nflado, expandido, acordado que foi pelo vivido real da pa­
ternidade e pela limitação do simbólico diante do encontro traumático
com o nascimento prematuro e a implicação obrigatória da reanimação
neonatal. É nesse contexto que situamos o que chamamos de empuxo à
mãe. Empuxo à mãe, porque tem a ver com o seu puxão, com o puxAo
para identificar-se com ela no lugar do desejo onipotente. No desam­
paro em que se encontram - o pai, o bebê e sua mulher; agora mie -,
é um apelo à completude narcísica onde as diferenças se apagam, ou
ficam i mprecisas - inclusive as diferenças sexuais. É uma reativação das
marcas - revestidas e reinterpretadas -, de quando, nem menino nem
menina, se ocupava um lugar complementar, ou imaginariamente com­
plementar, ao desejo da mãe, o lugar do seu falo i maginário. Período que
antecede o estabelecimento da diferença sexual: pré-edipiano com Freud
(1933/1976) e primeiro tempo do Édipo, estágio do espelho, na leitura de
Lacan (1957-58/1999). Anseio de fazer Um com a Mãe.
Além de ser o caos, isso contraria tudo que se espera da função
paterna que é fazer u m corte no anseio materno - narcísico por certo
-, de i nteirar-se com sua criança. Trata-se, então, de separar a mãe da
criança, não no sentido de afastá-las uma da outra, é evidente, mas de
abrir um espaço de alteridade entre elas - um primeiro esboço - o que
é, às vezes, muito difíci l na UTI neonatal, como os depoimentos dos
pais nos mostraram. É preciso competência para sustentar esse lugar
terceiro quando a mãe se encontra quase que totalmente voltada para
a criança e profundamente atingida no seu narcisismo.

163
Psicanálise e Hospital

Não é à toa que a queixa passa pelo sexo e que ele entre em
questão. Na fala dos pais, a sexualidade, no pré-parto ou no pós-parto,
está sempre presente, como reivindicação ou como inibição. E ela se
torna uma questão, porque o contraponto do desejo da mãe pela crian­
ça passa pela sua divisão com a mulher, e é aí que se faz a i ntervenção
do pai,l às vezes, com grandes dificuldades. Nós os ouvimos falar d isso
e tam bém ouvimos a menção frequente ao resguardo - forma institu­
cionalizada, no sentido antropológico, de dar um tempo de recolhi­
mento necessário às partes em uma fase liminar.
O empuxo à mãe se revelou, então, como o a ser evitado pelos
pais no l imiar do real traumático que eles suportam/sustentam na UTI
neonatal.

Empuxo à mãe, sim; feminização primária, não

O empuxo à mãe não significa, assim, u ma regressão a u ma fe­


minização primária como querem alguns autores (AGMAN; DRUON; e
FRICHET, 1999; BRAZELTON; CRAMER, 2003; CLERG ET, 2003; LEFORT;
DISCOU R, 2003; MARCIANO, 2003). Não existe feminização primária,
mas castração primária. O empuxo à mãe significa, sim, o "chamado" ao
gozo d'A mãe, o abandono da posição sexuada por parte do homem.
Significa ignorar a castração, a diferença, a incompletude em que nos
encontramos, todos, homens e mulheres, por nos termos constituído
no campo do Outro e herdado a sua falta para d izer quem somos. É
u ma tensão entre uma posição de identificação masculina e o lugar do
falo imaginário da mãe enquanto Outro primordial, onipotente e abso­
luto - o sexo ainda não sendo posto em questão pela criança.

1 LACAN, J. O seminário: livro 22: RSI (1974-75). Inédito. Lição de 2 1/01/1975.

1 64
Função Paterna na UTI Neonatal

A função paterna na UTI neonatal - fazer semblante?

A expressão fazer semblante, para os pais, nos veio da fala de


um deles:

"Falar com ela que não... Que vai dar certo... Sempre motivando...
É ... Incentivando ela ... Porque quando chega/nós chegamos aqui
no, no, no... No neonatal aqui. .. Acho que a gente tem de tra­
zer... um ar positivo. Até mesmo prá criança, eu sei que, de uma
forma ou de outra, ela vai tá... sentindo esse lado positivo. E se a
gente vim com os pensamentos negativos... Ah, não vai resistir...
Não vai ... Acaba que a gente fica, até a gente... Em vez de dar
apoio, a gente fica prá baixo também. Então assim, nessa hora,
a gente tem de ser mais forte... Dar a mão mesmo ... Apoiar
em todas as decisões que ela quiser tomar... E... Eu acho que
é isso. Dar um apoio prá ela ... É isso."

U m 'ar' positivo, fazer um semblante. Não se trata de uma cer­


teza, porque ele também não tem nenhuma, mas de a pa rentar garantia
de um lugar onde a mãe se sinta a m pa rada e onde possa descansar. Dar
um 'ar' de segurança.
Suportando a tensão do empuxo à mãe - força inconsciente que
exige trabalho psíquico para superá-la - os pais puderam sustentar o
lugar desejante para com a mulher dividida com a mãe, agora comple­
tamente voltada para o bebê. E a presentaram outra forma de conver­
gência no fato de defin i rem sua função pri ncipal na UTI como sendo a
de dar um apoio incondicional às suas mulheres, assumindo decidida­
mente uma posição sexuada masculina.
A esse respeito, conforme expõe Hurstel (2005, p.23), Bouchart­
Godart (1989) teria d ito, da função paterna que ela faz "continente"
para o par formado pela mãe e seu bebê.

1 65
Psicanálise e Hospital

Ele está lá, com suas palavras e com sua presença, para permitir
que a mãe se autorize a ser "suficientemente louca" (Winnicott) ...
para compreender e interpretar os gritos e os sentimentos do
seu bebê... sem se afundar na loucura ou se fechar em um es­
paço fechado com o bebê. Ele é o Alter da mãe, tão interessado
pela criança quanto ela. Ele lhe lembre que um "fora" existe. E
citando-o textualmente: "um pai suficientemente tranquilo para
uma mãe suficientemente louca".

Tudo a ver com a situação encontrada em uma UTI neonatal.


Inspirados em Nominé (1997, p 17-21) - sustentado em Lacan
(nota 1, p. 164) -, se transformarmos isso em uma regra de três, seria
como dizer que o desejo do homem está para a mulher assim como o
desejo da mãe está para a criança. O pai se ocupa da mulher, na sua cas­
tração, para que a mãe possa voltar-se para a criança como um sujeito
dividido no seu desejo, pela sexualidade.
Assim, os pais se voltam para a mãe, para a função materna,
como o elo partido da corrente. Cada u m, à sua maneira, situa a raiz
desse a balo na impossibilidade de as suas mulheres exercerem a função
materna e se preocupa m com a condição terrível em que isso as deixa.
E é com elas que eles passam, sobretudo, a se ocupar, mesmo quando
ressaltam nisso o i nteresse da criança.
Podemos enfatizar que o trauma para o pai estaria centrado no
encontro com o desmanche da função materna - ou uma interferência
violenta na mesma -, cedo demais. Diante disso, eles são convocados
para o que chamamos u ma paternidade p rematura que é o que, primei­
ro, os i mpacta.
Mas eles se propõem segurar a onda, o que não é fácil, porque
eles também foram d u ra mente atingidos. Por isso, é que eles fazem
semblante. Eles segura m a onda e aparentam tranquilidade, sem tê­
la. Eles procuram ser u m ponto de equilíbrio, mesmo não se sentindo
equilibrados. Procuram ser pacientes e não discutir quando eles tam­
bém estão cansados e tensos. Procuram administrar as novas regras da
sexualidade, mas estão sentindo falta da sua mulher. Assim eles cuidam

1 66
Função Paterna na UTI Neonatal

para que transpareça o que deve transparecer e não transpareça o que


não pode transparecer. Com m uito esforço, nem sempre aparente.
É importante ressaltar que esse a poio se apresenta para os pais
sob u ma forma necessária, sobrepondo-se aos afetos e aos conflitos
que eles estão vivenciando. Alguns têm isso melhor elaborado e per­
cebem as próprias dificuldades, mas outros o tomam sob a forma de
um mandato, um imperativo superegoico. Daí a i mportância de sempre
considerar a fragilidade básica desse lugar, sobretudo se a situação de
tensão com a criança se prolongar e/ou se complicar muito, exigindo
cada vez mais deles.
Em resumo, os homens entregam às mulheres o papel principal
junto à criança e encontram a sua função no a poio i ncondicional que
dão a elas, à custa de transparecer o que não sentem ou pensam. A
maneira como são tocados pela situação e como reagem a ela obedece
ao estilo de cada um.
Concluímos dizendo que os homens aceita m/escolhem essa
presença velada, coadjuvante da função materna, mais invisível, mas
em nada menos i mportante. Eles agua rdam o seu momento, quan­
do se desvelarão para a criança no núcleo da sua função privadora
da mãe.

A clínica na un neonatal

O objetivo desse artigo foi situar o eixo da função paterna em


uma UTI neonatal. Obviamente, isso tem i m plicações clínicas sobre as
quais não vamos nos estender e que serão objeto de outros trabalhos.
Entretanto, o mínimo que podemos d izer em relação à clínica na UTI
neonatal é que, diante da evidência de que os pais são fortemente atin­
gidos pelas circunstâncias do nascimento prematuro e de quanto isso
é traumático para eles e os deixa fragilizados - embora se imponham,
segurar a onda e aparentar tranquilidade para suas mulheres -, eles não
podem ser deixados entregues a si mesmos. Há de ter o propósito de

1 67
Psicanálise e Hospital

dar-lhes u ma atenção diferenciada e constante, favorecendo a sua i nte­


gração no contexto do tratamento da criança.
Tam bém queremos salientar que é muito i mportante fazer a dis­
tinção fundamental entre u ma forte tensão psíquica a ser sustentada,
às vezes, por um longo tem po - com o ônus psíquico consequente
-, e uma suposta regressão a u ma feminização primária. O empuxo à
mãe não é o feminino. É o chamado ao Outro onipotente, em u ma
situação de desam paro. Esse mal-entendido muda a direção do trata­
mento e pode ser danoso para os pais, para suas companheiras e, por
extensão, para a criança. É i mportante ouvir os pais, deixá-los externar
a sua angústia, a sua fragilidade, mas sempre do lugar do homem em
que eles se colocam para a mulher que é causa para o seu desejo. E
como isso nem sempre é fácil com as mulheres/mães na UTI - porque
elas ficam, às vezes, diante do traumatismo, literalmente sideradas -,
os pais precisam encontrar "aliados" nos profissionais. Aliados que os
respeitem e lhes atribuam o lugar que é deles, não - ou não, sobretudo
- diretamente, ainda, com suas crianças, mas com suas mulheres que
serão sustentadas, protegidas mesmo, nessa d ivisão mãe/mulher, mes­
mo quando não se dão conta d isso.

1 68
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1 70
UM BERÇO VAZJ01

Rosely Gazire Melgaço

Não pode entender


meus males nem o terror
que me enche o peito.
Quem não conhece ...
U m coração de mae.
(Aiceste, de GluckJ)

Pode-se dizer que a relação


com a morte suporta,
subtensiona, como a corda
o arco, o seno da subida
e da queda da vida?
(Lacan, livro 73)

Estamos diante de u m retrato de família, uma bela pintura do


século XVID4, e sob u m novo olhar; algo nos surpreende: uma mãe, seus
filhos, e ... Um berço vazio.

1 Trabalho apresentado no I Séminaire lnternational Transdiciplinaire de la Clinique et de

la Recherche sur le bébé, e m Paris, e m julho d e 2009.


2 Alceste (1767), ópera do compositor alemão Christoph W. Von Gluck.

3 Lacan, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988,
Lição 22/6/1960, p.353.
4 "Marie Antoinette et ses enfants", pintura de E. Louise Vigée LeBrun.

171
Psicanálise e Hospital

A cena nos remete aos i mpasses relativos ao luto que a clinica


psica nalítica com bebês, frequentemente, nos apresenta. A possibi­
lidade ou a efetiva morte de u m bebê, uma g ravidez interrompida,
a morte de algum fam iliar, a i m possibil idade de gerar um fil ho ou
as fantasias de morte que circu ndam uma família, certamente, dei­
xam traços, que podem afetar os descendentes familiares no â mbito
da constitu ição psíquica, naq u i l o que constrói a escrita da história de
cada um.
Ao debruçar- nos sobre este berço, sobre o tema que ele suscita,
de i mediato, surgem questões que nos convidam a u ma reflexão.
Por que o berço vazio? Por que o menino, em pé ao lado, aponta
o berço com um gesto indicador? O que essa criança "descortina"? E,
por fim, a que este quadro nos remete?
Os fatos históricos relacionados a esta pintura respondem a al­
gumas dessas i nterrogações. Entretanto, outras permanecem, pois u l ­
trapassam o quadro em questão e nos põem a trabalho.
Primeiramente, vamos aos dados da História.
É um retrato familiar de Marie-Antoinette com seus três filhos. A
quarta filha, Sophie-Béatrice, de saúde frágil desde o nascimento, teve
sua imagem encoberta porque faleceu enquanto a pintura era real iza­
da, e o dedo do delfim a pontando na direção do berço vazio seria o
registro da lembrança da irmã.
Sophie-Béatrice recebeu este nome em homenagem à falecida
M me. Sophie, tia do rei, que morrera quatro anos a ntes. As tias reais
foram consultadas sobre a escolha do nome, se traria lembranças dolo­
rosas de sua irmã, ao que elas responderam que, pelo contrário, assim
amariam mais do que nunca a nova sobri n ha neta.5
Marie-Antoinette ficou muito a balada com a perda da filha, e há
o relato de que seu i rmão de leite, tentando reconfortá- la, diz-lhe que
a criança sequer fora desmamada quando morreu, querendo d izer que
a tristeza por alguém tão jovem não podia ser muito g rande. Mas teve

5 FRASER, Antonia. Maria Antonieta. 3" ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 274.

1 72
Um Berço Vazio

o efeito contrário. "Não te esqueças de que ela teria sido minha amiga",
respondeu a rainha ... 6
Esta frase revela um desejo não realizado e remete-nos a uma
colocação de Allouch quando diz que o luto não é somente perder
alguém, "é perder alguém perdendo um pedaço de si". 7 Um pequeno
pedaço de si, registro do valor fálico da perda da libra de carne.
Com a perda de um filho, o enlutado não perde a penas um ser
amado, mas, sobretudo, tudo o que potencialmente o filho teria podi­
do lhe dar, se tivesse vivido. Assim, a medida do horror, no enlutado, é
função daquela da não realização da vida do morto.
Lacan traz esse tema no seminário da ética, q uando trabalha
o q u e pode q uerer d izer "ter realizado um desejo"; ele lembra que
é essa i nvasão da morte na vida q u e confere seu d i na mismo a toda
q u estão, quando ela tenta formular-se, sobre o tema da real ização
do desejo.8
Retomando à cena histórica apresentada, o retrato de família de­
veria ser exibido no Salão da Academia Real, mas teve de ser retirado
por causa da i m popularidade da rainha na época. Restou no espaço
destinado somente a moldura vazia. Alguém, referindo-se ao apelido
zombeteiro de Marie-Antoinette, Madame Deficit, espetou um bilhete
na moldura: "Contemplem o deficit".
Interessante, sim, contemplemos o deficit! Aceitemos esse de­
safio. Contemplando a moldura vazia, ela encaminha-nos a valorizar
o deficit a l i presente, não só sob a perspectiva do vazio revelado, con­
tornado pela moldura, mas tam bém remetendo-nos ao vazio inserido
na cena do quadro a usente. Ambos foram denunciados. Por um lado,
o deficit, por outro, o berço vazio. Um retrato de família, onde o vazio
não é encoberto, mas sim descortinado e a pontado. A morte ali estava
retratada, i ncluída!

6 ldem, p.287.
7 AllOUCH, J. Erótica do Luto no tempo da morte seca. Rio de Janeiro: Companhia de
Freud, 2004, p.387.
8 lACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988,

p.353.

173
Psicanálise e Hospital

Contemplemos o deficit! Tal confronto a bre as cortinas de u m


assunto, sempre, difícil d e ser pensado, debatido e transmitido - Morte
- pois toca em algo muito especial para o ser humano, a sua fin itude.
No nosso cotidiano, constantemente observamos as perdas, os
berços vazios são rapidamente ocultos, até mesmo sob o i ncentivo de
ajudas defensivas do redor, por d itos, como "a vida continua" e "é pre­
ciso esquecer". Já os historiadores, muito, nos transmitem sobre d ife­
rentes modos de tratamento ritual da morte e de como cada cultura
opera com o luto.
Considerando todos esses aspectos, por tudo isso, o fundamen­
tal compromisso ético da Psicanálise, da abertura ao desejo i ncons­
ciente, nesse campo do l uto, se revela de forma determinante, porque
os obstáculos a serem transpostos, inclusive para o psicanalista, tocam
algo d ia nte do qual o ser falante é compelido a recuar.
Resgatemos uma pergunta de Freud:

Não seria melhor dar à morte o lugar na realidade e


em nossos pensamentos que lhe é devido, e dar um
pouco mais de proeminência à atitude inconsciente
para com a morte, que, até agora, tão cuidadosamente
suprimimos?9

Nesse mesmo texto, Nossa atitude para com a morte, Freud, refe­
rindo-se aos homens primitivos, afirma:

Foi ao lado do cadáver de alguém amado por ele que


inventou os espíritos, e seu sentimento de culpa pela
satisfação, mesclado à sua tristeza, transformou es­
ses espíritos recém-nascidos em demônios maus que
tinham que ser temidos.10

9 Freud, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte. In: Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: !mago, 1969, v.XIV,
p. 339.
10
Idem, p. 332.

1 74
Um Berço Vazio

Os grifos são nossos, precisamente para marcar a importante in­


dicação de Freud sobre a ambiva lência satisfação/tristeza, traço presen­
te na trilha do horror d iante da morte.
Temos, assim, que a origem da negação da morte, como uma ati­
tude convencional e cultural, remonta aos tem pos mais antigos. Como
bem diz Freud, "nesse ponto, como em muitos outros, o homem das épo­
cas pré-históricas sobrevive inalterado em nosso inconsciente. Nosso in­
consciente, portanto, não crê em sua própria morte; comporta-se como
se fosse imortal"Y
Aqui se i nscreve o nó estrutural do ser falante, um ponto central
dos impasses diante do assunto morte, com o qual nos deparamos no
trabalho com as famílias e com os profissionais envolvidos na clínica
com bebês, clínica esta, portanto, privilegiada para os projetos de inter­
venção pontual, como nossa experiência testemunha dos seus efeitos,
por vezes, inusitados e surpreendentes.
A relação de procriação está, com efeito, implicada na relação
do sujeito com a morte, e, de acordo com Lacan, "a única função pela
qual a vida pode definir-se, isto é, a reprodução de um corpo, não pode
ela própria intitular-se nem como vida nem como morte, pois, como tal,
enquanto sexuada, ela comporta as duas, vida e morte"Y
Consideremos, então, u ma família que vive a perda de um bebê,
o qual ocupava, sob o prisma narcísico, o lugar de uma parte do cor­
po da mãe, ou, na verdade, uma parte do i nvólucro familiar. O que vai
ocorrer? O desejo de imortalidade, para aí transferido, pode d i rigir os
movimentos de revitalizar tal projeto, de reencarnar os desejos constru­
ídos, de imortalizar um nome e de ter, digamos, uma segunda chance,
outra partida nesse jogo da vida, considerado perdido. Qual será um
dos caminhos, se o luto não for elaborado? É recolocá-los em outro
sujeito que irá surgir.

11 Idem, p.335.
12 LACAN, J. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p.43,
lição 9/1/1973.

1 75
Psicanálise e Hospital

"Oh, pedaço de m i m
O h , metade a rrancada de m i m. . ."
(Chico Buarque, Pedaço de mim - 1977)

De toda forma, sabemos que o que não veio à luz no Simbó l ico
aparece no Real, e, se o vazio não passar por elaborações, tal expe­
riência de morte poderá retornar em outro lugar, sobrecarregando,
por vezes, u m futuro filho, ou um futuro descendente. O desejo de
i morta lidade e da sobrevivência assegu rada e a concomitante nega­
ção da morte podem i mpulsionar a tentativa de um renomear. Um
"renome durável", a i lusão da i mortalidade por meio de um nome que
se repete, perpassando gerações, ou o nome dado para recorda r ou
homenagear ancestrais pode refleti r tentativas de escamotear a dor
efetiva de u ma perda.

Vinheta clínica - o nome inscrito

A senhora A sempre conta com humor a h istória de seu casa­


mento, provoca ndo risos nos que a ouvem, recurso talvez utilizado para
a placar a angústia latente que a situação suscita: u ma grande amiga
sua, quando eram jovens, aparece com u m câncer g rave e falece em
pouco tempo. Antes de morrer, faz um pedido à amiga A: que ela se
case com seu marido. Ela só aceitaria que fosse ela a sua outra m u l her. E
assim acontece: a senhora A real iza o pedido, casa-se com ele, e ocupa
o lugar da mulher morta.
Só depois é que as associações emergem. A senhora A faz parte
de uma família de dez fil hos, e, a ntes dela, sua irmã falece ainda bebê,
e A, que nasceu logo em seguida, recebe a certidão de nascimento da
irmã morta. A certidão ainda existia porque não haviam providenciado
a certidão de óbito, considerando que a mãe, já grávida, poderia ter
uma menina, e eles aproveitariam a certidão com o mesmo nome. Ela
tem, assim, seu registro com data de nascimento um ano antes, e lhe é

1 76
Um Berço Vazio

personificada, também, a idade de sua i rmã ao entrar na escola, e em


todos seus outros documentos. No decorrer da vida, u ma mulher "meio
doida" era como as pessoas se referiam a ela.
Em seu escrito "Parler de La mort'', Dolto é contundente quando
aponta que
se nós sofremos de um luto, isso faz parte da história
da família e dos que nascerão depois, isso lhes per­
tence, porque essa morte que aconteceu faz parte
da riqueza viva, simbólica da família e não se trata de
deixá-lo como um pequeno porque seu corpo era pe­
queno, se era uma criança jovem quando morreu. Di­
zer: "Teu irmão mais velho", e jamais dar o nome dessa
criança morta a um outro.13

Ela lembra a biografia de Van Gogh, ressaltando que ele não teria
sofrido como sofreu se não tivesse visto toda sua i nfância, seu próprio
nome sobre uma pedra tombada: ninguém lhe explicou que era de seu
irmão mais velho, falecido um ano antes de seu nascimento, e que ti­
nha seu nome. É necessário falar dos mortos, falar da morte. "Que uma
criança morta faça parte da familia para as crianças vivas, não na triste­
za, mas na vida simbólica", diz Dolto.14

Vinheta clínica - o luto silenciado

Pelo caso clínico que se segue, testemunhamos o esforço que faz


uma criança para falar da morte e abrir possibilidades de se constituir
em um sujeito singular.
8 é u ma meni na de três anos que apresenta séria problemáti­
ca psicossomática e história de acidentes corporais, respostas ao que
há de sintomático na estrutura familiar. Seus sintomas se intensificam,

13 DOLTO, F. Parler de la Mort. Paris: Gallimard, 1998, p.29.


14 Idem, p. 39.

1 77
Psicanálise e Hospital

sempre, em datas relacionadas com sua tia materna (nascimento, mor­


te) que faleceu anos antes de ela nascer, aliás, quando sua mãe era
adolescente. Essa tia faleceu com seis meses de vida, de forma ines­
perada e trágica, dormindo no berço. Esse falecimento transtornou e
transformou a família, particularmente a avó de 8, muito fragilizada e
culpabilizada com o acontecimento.
8 nasce, e é a primeira criança a nascer na fa mília a pós a fa­
ta lidade. Aos três meses, desenvolve u m fenômeno psicossomáti­
co g rave, sua mãe entra em depressão acred ita ndo que a filha iria
morrer. Não só ela tam bém os avós maternos entram nessa roda da
morte. Até então, rei nava o silêncio sobre a história fa m i l i a r. Até q ue,
qua ndo 8 faz seis meses (idade em q u e a tia faleceu}, sua mãe piora
e p rocura o psicanalista, e a l i começa a vacilar o oráculo imagi nário
da morte de 8. Entretanto, u m longo percurso faz-se necessá rio.
E uma pergunta insiste: Se os avós de 8 tivessem sido escutados
na ocasião do falecimento da filha bebê e o silêncio não houvesse in­
vadido a cena, haveria possibilidade de um encaminhamento diferente
na h istória familiar? A sombra da morte perpassou as gerações de uma
forma oculta e vai se revelar na vida de 8, que denuncia esse silêncio
com sua doença, seus acidentes e seu pedido explícito: "Mamãe, eu não
quero morrer, não me deixa morrer".
Então, a não elaboração do luto dos avós se desdobrou na de­
pressão de sua filha, a mãe de 8, que também não conseguiu quebra r
o encadeamento d a d o r e d o silêncio, e gera um desdobramento que
chega até o g rito no corpo da neta.
Outra vertente i m po rtante do tema em q u estão é a q u e nos
fala da a ntecipação da morte, ou seja, quando o berço é, a nteci pa­
damente, considerado vazio, com o bebê a i nda vivo. Aqui, a morte
a ntec i pada vem se colocar no extremo oposto da vida a ntecipada,
isto é, da antec i pação real izada pelo Outro sobre o bebê, i n d ispen­
sável para q u e o bebê se constitua e m sujeito. É Lacan que nos lem­
b ra de q u e não é particularidade do d rama d e Antígona a posição, o
destino de uma vida q u e vai confu n d i r-se com a morte certa, morte

1 78
Um Berço Vazio

vivida de maneira a nteci pada, morte i nva d i n d o o domínio da vida,


vida invadindo a morte.15
Para concluir, se, por u m lado, alguns psicanalistas compartilham
o necessário trabalho do luto que visa investir em outro objeto no lugar
do perdido, com a ideia de um objeto substitutivo, capaz de propor­
cionar ao enlutado os mesmos gozos que aqueles obtidos outrora, por
outro lado, outros trilham direção oposta, em função do caráter abso­
lutamente único e insubstituível de qualquer objeto.
Compartilhando essa ideia, podemos pensar na articulação bor­
romeana do i maginário, simbólico e real, registros que se enlaçam no
luto. Diante de uma morte, com sua singularidade e tempo particu­
lar, cada sujeito vai perpassar os trâmites da sideração e do imaginário
avassalador do não realizado, também os movimentos da busca de ins­
crições simbólicas e, ainda, a confrontação traumática com a hiância do
Real, no que haverá um indizível sempre.
Assim, o trabalho do luto, com o instante de ver, tempo de com­
p reender e momento de concluir, revela-se no lidar com o insubstituível,
com o inassimilável que há na perda, e recolocar o desejo novamente
em jogo. Nas palavras de Allouch, elevado ao seu estatuto de ato, o luto
é suscetível de efetuar no sujeito uma perda sem qualquer compensa­
ção, uma perda seca.
A ética do psicanalista posiciona-o em sua escuta diante da mor­
te, uma escuta das tentativas de recom por, "com tantos estilhaços dis­
persos, o espelho quebrado da memória".16 Sua ética sustenta o espaço
de intervenções pontuais no acolhimento de pais, familiares e profissio­
nais envolvidos. Essas intervenções representam um abrir portas para a
palavra, nesse momento de rad ical silêncio.
Por vezes, falamos habilmente da morte. Mas nós sabemos do
q u e estamos falando, efetiva mente?
Estamos diante de um espaço de intervenção de fu ndamental

15 LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1988,
p.301.
16 Parafraseando o escritor García Márquez, G. Crônica de uma morte anunciada. Rio de

J a neiro: Record, 2009.

1 79
Psicanálise e Hospital

importância, pois, ele cria espaço para a escuta das palavras ditas a
propósito e ao redor de um berço vazio, bem como para as elaborações
possíveis. As vinhetas clínicas apontam as consequências da ausência
de um trabalho no referido contexto.
Sem dúvida, precisamos construi r avanços nesse campo. É ne­
cessário enfrentar os i mpasses apresentados por uma modernidade
que tende a desconsidera r a morte, que não quer saber da morte. É
fundamental trilhar u m caminho diferente do ocu ltamente diante do
horror ao vazio.
Como teste m u n h a m os na c l í n ica, u m l uto não e l a borado
poderá i m ped i r que o s uje ito ali i m p l icado faça o l uto da cria nça
e m si mesmo.

1 80
O PACIENTE DIABtnCO:
A DOENÇA COMO METÁFORA
(OU UMA VIDA NADA DOCE) 1

Letícia Rocha

O título apresentado expressa conceitos teóricos e clínicos de


g rande abrangência e permite questionamentos d iversos. Vamos iniciá­
los a partir de alguns fragmentos da clínica.
Ao fi nal de u m a d i scussão teórica acerca dos fenômenos psi­
cossomáticos, uma médica endocrinolog ista achou conveniente
enca mi n h a r u m paciente de 23 anos para ate n d i m ento no Serviço
de Psicologia. Ela relatou a penas q u e o desencadeamento da do­
ença daquele paciente era estra n h o e i n usitado, pois, sem q u a lquer
s i n a l a nterior de m a n i festação do d i a betes, repentiname nte de u m
d i a pa ra o outro, o paciente a p resentou s i n a is da doença d e u m a
forma tão severa q u e evo l u i u para u m g rave coma, fato q u e moti­
vou o seu i ntern a m e nto. No hospital, o coma se estendeu por u m
período também n ã o u s u a l . E mbora a a lta estivesse p ro g ra mada
pa ra aquele dia, a endocrinolog ista com bi n o u com o paciente o
seu retorno ao hospita l .
Durante a entrevista, o paciente expressou o seu contenta­
mento pela oportunidade de falar sobre a sua angústia cuja expres­
são no decorrer do internamento eram os densos e múltiplos sonhos.

1Este texto foi originalmente apresentado como uma comunicação no I Simpósio de


Psicologia Hospitalar e Interdisciplinar do Complexo H U PES em agosto de 2009.

181
Psicanálise e Hospital

E ntão, ele começou a relatá-los e construi u a l g u mas associações


q u e foram permitindo o traçado de um quadro do d esencadeamen­
to do diabetes. Por fi m, atônito, constru i u uma significação para a
sua doença. Ele d isse que o seu pai havia sido assassinado há u m
ano p o r u m g ru p o de m a rg i nais do seu bairro. O pa i, descrito como
um homem de g randes valores morais, trabalhava em uma i nstitui ­
ç ã o j u rídica de g rande respeito na nossa sociedade e , d i a nte das
a meaças que antecedera m à sua morte, buscou resolver a situação,
estabelecendo contatos com pessoas e autoridades com petentes e
de grande i nfl uência, com as quais convivia. Era u m homem respei­
tado e a mado no a m b i e nte d e trabal ho, d e forma que a questão teve
u ma acolhida devida. Entretanto, os esforços não foram suficientes
para a p reservação da sua vida. Há três meses, o mesmo g ru p o d e
m a rginais, d e uma forma i nsistente e incisiva, passou a a meaça r o
paciente, e, no dia em q u e o dia betes foi desencadeado, exatam ente
pela man hã, na porta de u m a delegacia de polícia, ele foi nova mente
a meaçado. À tarde, surg i ram os primeiros sinais da doença. O g ran­
d e susto do paciente era constata r que o d i abetes sa lva ra a sua vida,
u ma vez que, ao ser aco l hido no hospital, u ma i nstitu ição seg u ra (a
i nstituição j u rídica e a polícia demonstrara m as suas fal has), estava
tem p orariamente l ivre dos bandidos, tem p o necessá rio para red i ­
mensionar o s ca m i n hos da s u a existência.
Outra paciente, de 13 anos, desencadeou diabetes um mês após
a morte inesperada da sua mãe, cuja causa foi um acidente cardio­
vascular. Foi atendida por mim aproximadamente seis meses após o
diagnóstico. Atribuía ao pai a corresponsabilidade pela morte da mãe,
porque ele estava convivendo com outra mulher, deixando de prestar
a devida assistência à família. Após a morte da mãe, decidiu não morar
com o pai e, sim, com a avó, o que foi feito mediante decisão judicial.
Relata que, nos primeiros dias a pós a morte da mãe, foi tomada de
desespero e profunda tristeza. Uma fantasia a consolava: pensava que
não viveria m u ito e, a pós a sua morte, reencontraria a mãe. O diabetes,
surgido u m mês após a morte da sua mãe, foi significado como signo
da sua própria morte e foi vivenciado em meio a um profundo conflito

1 82
O paciente Diabético

na medida em que precisou se confrontar efetivamente com os seus


votos: "Gostaria mesmo, naquele momento, de estar junto à mãe?"
Estes fragmentos clínicos nos permitem afirmar que não há ma­
neira universal de vivenciar u ma doença. O diabetes necessariamen­
te portará significações, pois o ser falante atribui significados às suas
experiências. E eles serão múltiplos, plurais. A vida e o diabetes são
significantes que se articularão de forma particular para cada sujeito,
gerando significados diversos. O diabetes poderá mesmo adquirir o es­
tatuto de resposta subjetiva que sustenta a pró pria vida conforme os
casos citados. Possuir diabetes não significa necessariamente ter uma
vida "nada doce".
Doce, amargo açúcar. Esta é a constatação que fazemos ao nos
defrontar com o processo h istórico da produção da cana-de-açúcar no
período colonial brasileiro, retratado recentemente pela exposição Sac­
charum Ba2• Em torno do engenho, foram organizadas relações sociais
complexas, tecidas em torno da riqueza, da abundância e da osten­
tação dos colonizadores e sustentadas na mais brutal exploração dos
negros, transformados em escravos. A nossa sociedade contemporânea
não está imune aos efeitos deste período. A palavra doce, no sentido
comum e nos dicionários, tem a acepção de agradável, delicioso, mei­
go, terno, suave, ameno, ditoso, feliz. O nosso processo histórico impõe
remetermos o açúcar a outras significações, associando-lhe o amargor,
que remete ao doloroso, ao duro, ao sofrido, ao cruel, ao triste, ao de­
sagradável. Açúcar pode ser doce, pode ser amargo e pode ser amargo
e doce ao mesmo tem po.
Na clínica, presenciamos o fato, amplamente reconhecido na li­
teratura médica de que o diabetes pode ser desencadeado em u ma
pessoa com determinadas condições orgânicas, a partir de eventos
considerados estressares, podendo esses eventos interferir tam bém na
normalização glicêmica. Busquemos precisar u m pouco mais o caráter
destes eventos d itos estressares.

2 Exposição realizada em Salvador-Ba, em julho de 2009, sob a curadoria da Prof"­

Aiejandra M unõz.

1 83
Psicanálise e Hospital

Podemos afirmar, nesses casos, a presença da subjetividade, da


linguagem e de seus efeitos no corpo, lesionando-o. O mecanismo
pode ser aproximado ao a parecimento dos fenômenos psicossomáti­
cos descritos pela Psicanálise, sobretudo pelos a portes fornecidos pela
teoria lacaniana.
Lacan3 observou que, nas experiências onde são produzidas as
"neuroses" experimentais com animais e que embasam diversos estu­
dos sobre o estresse, é fundamental considera r a d imensão do Outro
encarnada pelo experimentador. Pavlov pôde mostrar, com os seus ex­
perimentos, que, em qualquer organismo vivo, a demanda do Outro
tem u ma i ncidência que pode conduzir a um funcionamento que ultra­
passa a função orgância, modificando o aparelho e engendrando u m
de{icit funcional, podendo gerar lesão. A dimensão d o Outro para Lacan
representa a ordem simbólica, a cadeia significante onde se veiculam
as demandas cujas repetições apontam para o registro do desejo. O
desejo do Outro se presentifica nos intervalos da cadeia significante, na
medida em que a demanda é a rticulada pela linguagem, que compor­
ta equívocos, duplos sentidos, permitindo ao sujeito aí localizar u ma
falta e, desta forma, localizar-se. O que se expressa pela pergunta: O
q u e o Outro quer de mim? A leitura desta resposta permite ao sujeito
localizar-se, identificando-se ao lugar daqui lo que faltou.
Nos fenômenos psicossomáticos, a demanda do Outro se pre­
sentifica sem estar marcada por intervalos na cadeia significante. Lacan,4
em algum momento do seu ensino, se referiu a esse mecanismo como
uma holófrase, marcada pela ausência do limite entre os significantes
51 e o 52, que não operam como tais, porque perde a função do inter­
valo. Logo, se não há intervalo, não há produção do sujeito do incons­
ciente tam pouco extração do objeto causa de desejo, mas sim fixação
de um gozo específico.
O que é demandado aos filhos a partir da morte desses pais?

3 LACAN, J. Seminário XI. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M. D.


Magno. Rio de Janeiro: Zahar Ed itores, 1979.
• LACAN, J. Seminário XI. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad . M. D.
Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.

1 84
O paciente Diabético

Diferentemente de Hamlet, para quem o espectro do pai anuncia a sua


demanda, não é possível destacar inicialmente a lgo que possa ser ca­
racterizado como demanda advinda desses pais ou da morte deles. O
que se destaca no discurso desses fil hos é u m estado de aturd i mento,
perplexidade, diante da irrupção de um real tra u mático. O que se es­
creve no corpo a partir do diabetes? Segundo Lacan, os fenômenos
psicossomáticos são como hieróglifo no deserto, ou seja, escritas não
passíveis de leitura.
Na escuta desses pacientes, não foi possível identificar elemen­
tos simbólicos que possibilitassem propor u ma a rticulação dialética
entre os acontecimentos relatados e a presença do diabetes, quer seja
nas suas d iversas representações ou nas privações i mpostas pelo seu
tratamento, de modo que pudéssemos compreender o diabetes como
metáfora daquelas existências, naquele momento h istórico ou em algu­
ma circunstância do passado.
Sobre a questão dos fenômenos psicossomáticos, teríamos mui­
tas questões a serem trabalhadas, embora extrapolem os limites desse
texto. Gostaria de assinalar, sobretudo a diferença, cara à Psicanálise,
entre esses fenômenos e as conversões. Estas sim são tecidas pela lin­
guagem e se prestam ao jogo das metáforas. O d iabetes não se confi­
gura como um sintoma do i nconsciente com estrutura de linguagem,
a comportar deslizamentos metafóricos e metonímicos, sujeito conse­
quentemente a modificações a partir de interpretações.
O desencadeamento do diabetes em associação a eventos bio­
g ráficos significativos não constitui o maior contingente da clínica. Ge­
ralmente, o diabetes é desencadeado a partir da p redisposição genética
associada a hábitos culturais. Grande parte dos pacientes apresenta so­
brepeso o que gera resistência à insulina.
De todo modo, as d imensões de vida e morte estarão em jogo
também nestes casos, pois o diabetes se constitui em g rave patologia
por diversos aspectos: reduz as expectativas de vida; traz em si mesma a
possibilidade do desencadeamento de outras g raves patologias, como
as doenças cardíacas, renais, oftalmológicas e a disfunção erétil; o rigor

185
Psicanálise e Hospital

do seu tratamento interfere em d iversas dimensões da vida cotidiana;


m anter a glicemia sob controle requer cuidados diários que demandam
diversos processos de adaptação e uma disciplina irrepreensível; são
elevados os custos do tratamento; demanda a aquisição de conheci­
mentos e habilidades diversas; as negligências com o tratamento po­
dem i ncorrer em graves consequências que podem ir do mal-estar ao
coma, às vezes de maneira imediata.
O diagnóstico do diabetes possibilita aos sujeitos a manutenção
da vida na proporção direta do controle da doença. Após o diagnóstico,
controlar a g licemia de algum modo será efetivamente u ma decisão
entre a vida e a morte.
A morte é imanente à vida e à condição humana, mas provo­
ca no homem u ma atitude sistemática de negação em uma tentativa
permanente de silenciá-la. Se o homem é o único ser da natureza a
ter consciência da sua finitude, por outro lado, encontra-se em uma
condição estrutural na qual se faz i mpossível a representação da sua
própria morte no i nconsciente, que não conhece as contradições nem a
tem poralidade, somos todos imortais, nos d izia Freud 5.

Tenho observado na clínica que as insistentes hiperg l icemias de


alguns pacientes são produto do processo da negação da doença. Para
muitos pacientes, é insuportável conviver com a d imensão das perdas:
da certeza íntima da imortal idade, das variadas possibilidades de gra­
tificação oral, de certa l iberdade nas rotinas do seu cotidiano. Nestes
momentos, pode-se presenciar u ma série de atuações relativas ao cor­
po, à saúde, e à própria vida.
Entretanto, alguns pacientes podem p rosseguir e elaborar os l u ­
tos, circunscrever a doença n a sua história de vida, integrando-a, d e
forma q u e este i mportante acontecimento esteja associado a outros
fatos tam bém importantes da sua existência.
Sabe-se que o processo de luto demanda tem po. As perdas pre­
cisam ser nomeadas e simbolizadas, produzindo uma recom posição

5FREUD, S. "Reflexões para os tempos de guerra e morte". In: FREUD, S. Obras Psicológicas
Completas. Edição Sta ndard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

1 86
O paciente Diabético

significante do universo simbólico do paciente a balado pelo surgimen­


to do diabetes. Trata-se de u m processo doloroso de investimento e
desinvestimento das representações dos objetos perdidos. Momentos
delicados que suscitam reconhecimento, atenção, sustentação da equi­
pe de saúde e da rede de apoio social do doente e da sua família. Em
algum momento, há o reconhecimento que a perda é irrefutável, e o
sujeito em u ma posição ativa cede, consente, abre-se à possibilidade de
poder prosseguir a sua vida de um jeito diferente, integrando a doença
e os seus limites.

1 87
TEMPO E CORPO NA HIPERMODERNIDADE

Tânia Simão Bocha Silva

Há um tempo sob a regência do tem po sem marcas, um tempo


sem tem pos que se desenrola na disciplina tirânica do tem po de agora.
O tempo virtual e a distância se emparelham fazendo valer o tempo
instantâneo e a imagem real. E os afetos referidos ao tem po e as distân­
cias, para onde seguirão? Há de sobreviver a saudade quando o longe
não existe mais? Decerto a organização das novas subjetividades já está
produzida e contém essas diferenças.

O corpo da Psicanálise atravessado pelo tempo

A clínica psicanalítica na contemporaneidade se depara com um


corpo mais afetado, u m corpo com e para os novos sintomas. Estes
modos de apresentação dos novos sintomas já são consequências do
desfiladeiro de mudanças i mpostas aos sujeitos para estar em sua épo­
ca, e esta época, por sua vez, é definida assim como excessos da mo­
dernidade. O corpo e o tem po fazem u ma relação de suma importância
onde as marcas de u ma era e as manifestações do corpo se encontram
e resultam em efeitos que se apresentam conforme os objetos e as re­
ferências de uma época.

1 89
Psicanálise e Hospital

O tem po atravessa todo o percurso da psicanálise e participa das


investigações iniciais, ganha espaço e marcas que culminam na elabo­
ração do inconsciente.
Freud trabalha de modo permanente com o tempo, e os efeitos
desse trabalho alcançam as direções na clínica psicanalítica e orientam
a sua conceitualização.
Aqui, contemplo apenas alguns recortes que evidenciam o tem­
po, u ma vez que o seu mérito e a sua interferência na psicanálise são
extensos, fazem conexões e enlaces complexos que não se pretende
abordar neste momento.
A psicanálise traz o i nconsciente como conceito estrutural, onde
reside o material recalcado; sua definição é orientada pelas leis pró­
prias e pela atemporalidade. Por exemplo, as memórias e as lembran­
ças encobridoras independem da condição cronológica e da verdade
realística; os restos diurnos que são trabalhados para a elaboração dos
sonhos contam com mecanismos próprios para compor os cenários e
também são submetidos ao tempo do inconsciente; o sintoma, na sua
l igação com o recalque, traz enquistado o desejo, o trauma originário e
a satisfação pulsional disfarçada, a u m só tempo, na formação de com­
promisso entre eles.
No que diz respeito à transferência, conceito fundamental para
fazer operar a clínica, Freud a verifica nas tentativas de condução dos
primeiros tratamentos e a reconhece como u m fenômeno de reatuali­
zação da real idade sexual inconsciente.
Para os tempos de guerra e morte, para a transitoriedade, Freud
já traz no tecido do texto o seu tempo. Ainda sobre a sua época, ele,
reflexivo e desiludido, tece considerações sobre a d u ração e a extensão
da vida, destacando que elas não tomam u ma importância maior diante
da transitoriedade que lhe é inerente.
Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso
nos parece menos bela. Tampouco posso compre­
ender melhor por que a beleza e a perfeição de uma
obra de arte ou de uma realização intelectual deve-

1 90
Tempo e Corpo na Hipermodernidade

riam perder seu valor devido a sua limitação temporal.


(FREUD, 1915, p.346)

As condições de finitude bruta da vida atestadas pela experiência


da guerra permitem a retomada, em sua obra do trabalho do luto, e
reafirmam a sua desilusão com a civilização.
Adiante, Jaques Lacan, que se define inicialmente por uma relei­
tura freud iana, destaca o tempo com uma nova lógica, vigor e opera­
cionalidade. A clínica lacaniana torna o tempo um dispositivo capaz de
opera r, produzir e causar efeitos no sujeito.
No a rtigo " U ma Fantasia", J. A. M i l l e r desenvolve ideias provo­
cadas pelo encontro com colegas a n a l i stas, em torno das constata­
ções sobre os sujeitos conte m porâneos, pós-modernos e h ipermo­
dernos; identifica esses sujeitos como desini bidos, desam parados e
desbussolados. São e assim seg uem desbussolados em contraponto
a u m outro tem po onde havia bússolas q u e contin h a m e faziam valer
as i n i b ições. No e nta nto, a l g u ns psicanal istas pretendem a retomada
da tradição nos modos d e fazer operar a clínica, ao i nvés de reinven­
tá-la. Conforme M i l l er s i n a l iza, a l g u m as posições podem ameaça r
o caráter su bversivo, próprio da Psica n á lise dia nte da emergência
desses novos modos manifestos da civil ização. Ele d isserta sobre a
dita d u ra do m a i s de gozar, responsável mor por catástrofes q u e se
dão hoje na natureza, na sociedade, nos laços, nos corpos, nas pato­
logias contemporâ neas.
... o mais de gozar comanda, o sujeito trabalha,
as identificações caem substituídas pela avaliação
homogênea das capacidades, enquanto o saber se
ativa em mentir assim como em progredir; sem dúvida.
(MILLER. 2005, p.10)

Mas, faz parte do movimento incessante na construção da pró­


pria psicanálise essa inquietação, e é da sua responsabilidade ter de
responder ao seu tempo e ao mal-estar.

191
Psicanálise e Hospital

M iller aponta para o que há de suceder a este tempo de tan­


tas decifrações e avanços desmedidos. Supõe que a civilização pode
alcançar e até mesmo chegar a um tempo definido como uma pós­
humanidade, talvez...
Decerto os conceitos são atravessados pelas condições de uma
época e se mostram na clínica; determinam mudanças e provocam im­
passes porque ressoam nas subjetividades.

Tempo e imagem

Os novos tempos têm oferecido de modo imperativo e determi­


nado u ma nova concepção de corpo. O corpo da estética, corpo da saú­
de e dos cuidados que ditam um padrão ideal da perfeição, definem,
de maneira evidente, uma desregulação acentuada para os jovens. Mas,
quem não é jovem? Todos estão jovens. Vive-se a i magem do tempo, e
o corpo suporta as ofertas e as imposições. Os traçados do tempo e o
corpo se encontram no pacto do a pagamento e da inversão dos seus
feitos, embaçando o tempo e suas marcas. Pretendemos que: 80 anos
parecem 40 anos, 50 anos parecem 25 ..., ou melhor, o corpo h ipermo­
derno está na lógica da promessa de fel icidade.
A era dos rótulos, das diversas mensagens e informações sus­
tentadas pelo discurso científico que se associa ao d iscurso capital ista,
velozmente flui, na forma de um efeito de consumo que ganha, de ime­
diato, importância e aplicação.
Sabe-se, desde cedo, do carbox, botox, silicone, espumas, tintas,
bombas, clareadores, substâncias de preenchimentos, rejuvenescimen­
tos, contornos, criação de músculos etc., que são consumidos por um
mercado que não se define mais pelo poder socioeconômico. Para to­
dos, as ofertas disparam com um longo alcance, a pa rentemente sem
mira definida, com alvo certo, como produtos de primeira necessidade,
como meios de sobrevivência na contemporaneidade.

192
Tempo e Corpo na Hipermodernidade

Sacrifícios val iosos fazem tantos "puxarem ferros", suportarem


pesos e manuseio de máquinas que prometem saciar os ideais postos
para a satisfação da imagem do corpo atual. Praticantes, devorados
por movimentos insistentes, insistem em tentar definir o progresso
das formas e das l inhas do corpo ru mo aos ideais determinados. Vale
tudo! Estarão todos "sarados". Sarados? Na rede, jovens inaugurais,
adultos, idosos d issertam sobre as vantagens, os valores, as cargas e
evidenciam mais e mais, a corrida pelo acesso ao padrão vigente. Vi­
gilantes, percorrem cam i nhos na busca do enquadre sempre distante
das medidas espetaculares.
Os códigos de barra, corantes, estabilizantes pouco legíveis pro­
movem um imaginário com requintes e faces de um saber que tudo
sabe para o corpo ideal. Um corpo diet, light, conservado e i nformado
faz a composição do corpo hipermoderno e se rende tam bém como
produto em série para o consumo. O consumidor deve ser informado,
formatado para responder à sua época, que l he i m põe um lugar para
consumir e ser consumido.
O espelho pronto está à espera de todos os candidatos às ci­
rurgias estéticas sempre corretivas, pois o corpo da normalidade con­
temporânea antecipa o tempo e cancela os seus possíveis efeitos; sabe
apagar, quando ele mesmo, o tempo, faz suas marcas. Hoje, não pode
ser pensado ou mesmo figurar um rosto marcado pelo tempo; marcas
de expressão ou mesmo marcas das noites mal dormidas estão sob o
domínio das novas técnicas das especialidades estéticas. Trata-se de
um valor para todos os que não podem perder a sua participação na
história de seu tempo.
Este corpo assim falado carrega o seu sentido massificado e, cada
vez mais, sem d iferenças.

1 93
Psicanálise e Hospital

Adolescincla moderna na esteira da clínica

Constituíam referências na história das adolescentes o uso de um


primeiro soutien, u m primeiro beijo seguido dos ganhos e das conquis­
tas de autonomia e tentativas de exercer as primeiras escolhas. Hoje as
tabelas d itam alimentos, as roupas determinam formas, e as experiên­
cias iniciais de encontros com o outro sexo se fazem sobre a condição
reduzida da experiência do "ter de ficar". Este encontro e este ato se
fazem e concluem de modo estrito pelo beij o na boca. Caso haja re­
petição do parceiro, este é elevado à condição de gerúndio e ganha
a nomeação de "ficante". Pobres, rápidos e fugazes, esses encontros
pretendem marcas e resultados que contabilizam com sucesso o ter
"muitos" e "mais", em tempo rápido. Não é sem angústia que desinibi­
dos ganham pouco, rápido e perdem e se perdem entre tantos.
As formas físicas modeladas e cobertas de modas e g rifes defi­
nem os números de conquistas rápidas e colocam na roda viva as chan­
ces de se lançarem mais.
M., 16 anos, vem às primeiras sessões e traz o seu desconforto
com o excesso de compromissos que envolvem o seu próprio corpo. A
nutricionista, o endocri nologista, a academia e as fórmulas mágicas de
emagrecimento povoam o seu d iscurso. Perder peso é a ordem vigente
que faz cumprir todos os d ias. Correr e correr na esteira onde ela atesta
que não sai do lugar. Corre e não perde o peso. Corre e não pode andar.
Corre e não vê mudanças. Corre no mesmo lugar. O corpo só lhe traz
desconforto, transtornos que obrigam a jovem sempre estar à procu ra
de recu rsos e promessas que, em um só golpe, possam lhe conferir o
corpo ideal. Reclama dos ombros largos, do quadri l estreito, da pantur­
rilha que ainda "será turbinada".
As ansiedades que surgem são tratadas com medidas d isciplina­
res que apregoam um estado de calmaria e bem-estar; fazer yoga, mas­
sagens, meditação, levitação, são algumas das medidas que se prestam
a serenar e fazer guardar em um reservatório silenciado, a sua angústia.
São condições que a mãe procura definir para que M. dê conta de per-

1 94
Tempo e Corpo na Hlpermoderntdade

manecer no circuito de buscas e realização do corpo ideal. Qual corpo?


De quem é esse corpo?
A angústia manifesta-se a todo i nstante, e M. se apresenta
inqu ieta, a rredia e repetitiva no seu d iscu rso e sem recursos para
prod uzi r alguma saída legítima, própria. Prossegue assim e m alguns
atendi mentos.
U ma operação na clínica que toque o tempo e um lugar para
M. se faz necessário - u ma aposta que o analista pretende como uma
intervenção possível é real izada. Desse modo, para a sessão seg u inte,
é proposto pelo analista u m novo horá rio bem no início da man hã. Ela
logo reclama surpresa e irritada do novo horário que exig irá que corra
para chegar. Mas acrescenta que i rá chegar. Começam a surg i r efeitos
na mãe que faz críticas ao novo horário e tam bé m à disposição de M.
ao aceitá-lo; essa mãe faz tentativas de obstaculizar o tratamento e
seus efeitos e recolocar sua fil ha no curso anterior. M. corre o risco da
i nterrupção do seu percurso e sustenta com d ificuldades o seu traba­
lho em análise.
Qual é o lugar dessa adolescente diante da voracidade de sua mãe
que investe nas tentativas de realizar-se na imagem ideal "através" corpo
da filha? M. traz um corpo produzido e consumido pelo Outro materno.
Certamente, a psicanálise poderá interrogar a permanência desse corpo
assim produzido e utilizado como um objeto e quase sem sujeito.
Adiante, M. começa a se desvencilhar lentamente das i mpo­
sições maternas sobre o seu corpo; cami n ha com pequenos passos,
suporta e ora vacila diante das determinações e i mposições da mãe
que pouco recua.

Poderá a adolescente retificar a sua condição de sujeito e, na


relação com o seu corpo, buscar uma singu laridade e formu lar a sua
própria questão sobre o mesmo? O que poderá M. produzir com esse
corpo? Poderá se d istanciar da cond ição de objeto que se oferece
como possibilidade de real ização de u m ideal para o Outro materno?
São apostas, desafios e possibilidades que se apresentam em análise
para esse sujeito.

1 95
Psicanálise e Hospital

O sujeito hoje se perde em montanhas de demandas urgentes de


objetos e modelos, onde tudo se impõe, tudo pode ser usado, consu­
mido e comprado. Todos podem tudo! Falta a falta. A angústia parece
ser tamponada com os recursos que o corpo pode alcançar, naquilo
que se persegue a partir de um "dar a ver".
Para onde vamos nessa marcha perdida que aponta para a saúde
a qualquer preço, longevidade e beleza com tantos custos?
Identificado pelo desmanche, esse fazer hipermoderno sobre o
corpo aponta uma direção, ou seja, hoje, Goza-se.

Para interromper

O h istoriador F. Hartog, ao se ocupar dos estilos de vida na


atualidade, identifica o " presentismo" como u ma categoria crescente e
rápida que i nvade de modo excessivo a relação da civilização de hoje
com o seu tempo. J. Santiago, em seu artigo "Presentismo e novos
modos de relato: efeitos sobre o sujeito suposto saber", disserta sobre
a ascenção do presente e já sinaliza consequências d i retas na forma
de conceber a transferência e mesmo a i nstalação do laço transferen­
cial. O tempo presente invade de modo maciço os discursos e traz
d issolvido o ideal futurista que, até pouco tempo, existia; do tempo
passado, restam passagens rápidas e fugazes q u e só certificam o pre­
sente. A cultura do "mais rápido" e do "sempre mais" perpassam esse
fenômeno contemporâneo. Ressalta-se que o gozo, no presentismo,
g rita mais alto. O discurso hoje se faz norteado por um apagamento
e redução dos tempos em u m ú nico tempo, o presente, permanente
e extremo. O presentismo lança consequências para a clín ica contem­
porânea, e esta mostra que se faz necessário um novo entend i mento
às novas formas de conferir tratamento àqueles q u e procuram as vias
da psicanálise.
No caso de M., citado neste trabalho, a aposta que o analista faz
na mudança do horário de atendimento, para bem mais cedo, trouxe a

1 96
Tempo e Corpo na Hipermodernidade

possibilidade de uma retificação desse sujeito com o seu tempo, com o


seu próprio corpo, com o seu lugar.
Aos psicanalistas, cabe a responsabilidade de acompanhar e lidar
com as subjetividades de sua época. O desafio é a reinvenção, na passa­
gem da esteira que se faz correr sem sair do lugar, para um tatear como
início de um caminho, não sem pedras, a se percorrer.

1 97
REFER�NCIAS

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Standard Brasileira. v. III. Rio de Janeiro: !mago, 1969.

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Standard Brasileira. v. XXI. Rio de Janeiro: !mago, 1969

FREUD, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte [1915). In: Obras


Completas. Edição Standard Brasileira. v. XIV. Rio de Janeiro: lmago,
1969.

FREUD, S. Sobre a transitoriedade [1915]. In: Obras Completas. Edição


Standard Brasileira. v. XIV. Rio d e Janeiro: Imago, 1969.

MILLER, J. A. Sobre a honra e a vergonha. Revista Ornicar? n.0 1, p.118-


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SEPHORA- núcleo de pesquisas sobre o moderno e o contemporâneo.
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TARRAB, M. La fuga dei sentido y la prática analítica. Buenos Aires:


Grama Ediciones, 2008.

1 98
O INCONSCIENTE NÃO É L/GHT - CONSEQU � NCIA
E RESPONSABIUDADE NA CIRURGIA BARIÁTRICA

Sheyna C Vasconcellos

Parece haver um consenso de que a obesidade é fonte usual de


frustrações para pacientes e médicos em virtude da d ificuldade em sus­
tentar as manobras que levam à sua "cura". A estimativa de pacientes
que conseguem perder peso e se manterem magros é bastante baixa.
Segundo Fonseca, Silva e Félix (2001), menos de 1% das pessoas que
fazem um regime alimentar bem-sucedido de curta duração mantém
o peso em níveis satisfatórios, três a cinco anos após a interrupção do
regi me. A cura para obesidade é algo tão complexo quanto a sua i nsta­
lação e etiologia. (VASQU ES, MARTINS, AZEVEDO, 2004)
A obesidade encontra-se entre as três doenças do mundo que
mais matam, perdendo apenas para hipertensão e diabetes. A mes­
ma já é considerada pela Medici na como u ma doença crônica de di­
fícil tratamento e já atingiu proporções epidêmicas em muitos países,
representando g rande preocupação para saúde pública na atualidade
(OM S, 2005). A cirurgia bariátrica é um método que se oferece como
alternativa ao tratamento de pacientes obesos mórbidos (IMC1 � 40) ou
obesos (IMC � 35) com comorbidades associadas. Esta ciru rgia consiste

1 Atualmente o método mais utilizado para a medida de obesidade é cálculo do Índice


de Massa Corporal (IMC), que correlaciona o peso (em q uilos) com o quadrado da altura
(em metros).

1 99
Psicanálise e Hospital

em uma redução do estômago do paciente, limita ndo sua capacidade


alimentar a aproximadamente SOml e restringindo seu esvaziamento
pelo emprego de um anel de contenção (GARRIDO J R., 2002; SEGAL,
2004). O resultado da ciru rgia seria u ma perda de peso considerável
pela l i m itação mecân ica i mposta à ingestão alimentar do paciente.
O percurso do paciente i nicia-se pelo médico, que lhe pede uma
série de exames, deixando-o dos tipos de ciru rgias e da necessidade de
ser atendido pela psicóloga e nutricionista como condição para fazer a
ciru rg ia. Após atender aos critérios de indicação para o procedimento e
submissão aos protocolos de preparação, marca-se a ciru rgia.
Com as 3.400 entrevistas rea lizadas e m um período d e oito
anos com os ca ndidatos à cirurgia, foi percebido, em muitos pacien­
tes, que a pesa r do pedido - "Me emagreçam ! " - existe um desejo
inconsciente de se manterem gordos. Podería mos acrescentar q u e
o i n consciente não é Light, n ã o se submete a o s i d eais contem porâ­
neos, em bora seja atingido por eles. Seg u ndo E insenb ruch (2000),
a demanda de cura em relação à patologia org â n ica nos confronta
com a fissura q ue existe e ntre demanda e desejo. O paradoxo reside
no fato de q u e a demanda de cura pode ser diametra lmente oposta
ao q u e o sujeito deseja.

Conhecimento e Saber

A i nserção de um analista em u ma equ ipe de tratamento ci­


rúrg ico da obesidade requer deste profissional u m posicionamento
a mparado na ética da Psicanálise. A solicitação feita a este profissio­
nal é q ue avalie as condições psicológicas do paciente candidato à
cirurgia bariátrica. Inicialmente pode-se ficar capturado pelo discurso
médico, tentando estabelecer critérios para "selecionar" os aptos dos
não-aptos para ciru rgia. E m bora o psiquiatra Adriano Segal (2002)
tenha advertido sobre o abandono de critérios psicológicos na sele­
ção de candidatos a estes procedimentos em função da ausência de

200
O Inconsciente Não é Light

instrumentos q u e permitam adequada acurácia prognóstica, m uitos


profissionais da á rea psicológica a i nda sustenta m seus trabalhos com
esta perspectiva.
O que é que a equipe considera como estar "preparado" para a
ciru rgia? Seria a garantia de que nada desse errado? Seria também u ma
desimplicação médica de sua própria condição de castrado? Teriam eles
mesmos garantia de que o paciente não morreria durante o procedi­
mento, que não complicaria? Ou até mesmo que não engordariam? O
paciente i nformado é o mesmo que paciente preparado? Parece haver
confusão quanto ao entendimento dessas q uestões.
Em primeiro lugar, faz-se necessário d iferenciar saber de conhe­
cimento. O conhecimento é algo adquirido, acumulado e que tem a
ver com a aquisição e o acúmulo de informações sobre alguma coisa.
Os pacientes normalmente argumentam que já sabem tudo sobre a
ciru rg ia, que já visitaram todos os sites da Internet, falaram com mé­
dico, tiraram suas dúvidas, conhecem algumas pessoas que já fizeram
a ciru rgia e, portanto, se dizem preparados e a poiados nestas ideias.
Outro argumento tam bém sobre estarem preparados é o fato de es­
tarem "decididos", que já pensaram no assunto fazendo a relação entre
custos e benefícios e convictamente dizem não restar dúvida. Estão no
âmbito da certeza. Estar informado sobre o procedimento da ciru rgia
bariátrica, saber de suas etapas, orientações médicas e psicológicas não
é o mesmo que estar preparado, tomando preparado como isento de
risco. Inserir a dúvida no repertório das certezas pode levar a u ma maior
implicação no processo e dessidealização dos resultados.
O conhecimento enquanto acúmulo de i nformações se diferen­
cia do saber do inconsciente considerado pela Psicanálise. Para a Psi­
canálise, o saber é o saber sobre o gozo. O conhecimento adquirido
não tem mecan ismos para tocar o gozo. Se o conhecimento adqu irido
tivesse força de mudança sobre o gozo, as campanhas para o cigarro,
para a prevenção do HIV, sobre a própria obesidade, assunto privile­
giadíssimo na mídia, exterminaria com ele, sem falar no investimento
narcísico sobre o corpo, demandando de todos um corpo esbelto e
socialmente aceito. Portanto, saber e conhecimento não se articulam

20 1
Psicanálise e Hospital

para a Psicanálise. Tocar o gozo é algo muito mais engenhoso do que


se possa imaginar.
Sabe-se que o conhecimento pode desresponsabilizar o sujei­
to, pois o conhecimento não é a verdade do sujeito. O acú mulo de
conhecimento pode funcionar como resistência às próprias questões.
Isso pode ser bem exemplificado na forma como o paciente se apropria
do discurso m édico sobre a obesidade, provocando um evitamento de
adentrar em suas questões: "É uma doença crônica"; "Só vou fazer a
cirurgia porque obesidade é fator de risco para cardiopatia':· "Sou gordo
porque tenho genética de gordo': Todas essas frases demonstram o apa­
gamento do sujeito que encontra conivência no discurso na M edicina.
N este momento, acionar a responsabilidade de cada um neste processo
e apontar para o mal-estar do imprevisível se torna u ma tarefa árdua.
O analista deve emprestar consequências às palavras do sujeito. Cabe
ressaltar neste contexto que o paciente vai a procura do médico para
fazer a cirurgia e demanda u ma intervenção cirú rgica, encontrando lá a
ava liação psicológica como condição para tal procedimento.
Uma intervenção que tem se mostrado eficiente com os candi­
datos à ciru rgia é confrontá-los com as frases proferidas pelos gastro­
plastizados que obtiveram reganho de peso. Frases como: "Bebo quase
todos os dias e só não bebo mais porque fico embriagado rápido, depois
da cirurgia"; "Eu não consigo chegar em casa sem ter comprado alguma
coisa. Tenho de gastar nem que seja um real. São roupas e comida, faço­
as em excesso': Estas falas nos remetem à grande preocupação propa­
gada pela mídia do deslocamento de compulsão após a ciru rgia. De
fato, nosso aparato psíquico não abre mão de u ma gratificação sem
um substituto, se não houver u ma retificação subjetiva, certamente o
paciente deslocará seu vício para outro possível.
"Tenho minhas frustrações 'afetiva sexual' que me levam a comer.
Brigo com minha mãe e vou comer. .. Daí fica difícil. Deixo de dormir para
comer a noite. É a fome que me acorda': Segundo Recalcati (2002), o ob­
jeto real (o alimento) permite ao sujeito compensar aquilo que não teve
no nível simbólico, ou seja, o dom do amor, o signo da falta do Outro,
o que esta fala nos revela.

202
O Inconsciente Não é Light

O ato falho cometido pela paciente no grupo - "Eu estou com


medo de perder peso" - revela o verdadeiro desejo em relação à obesi­
dade e ao corpo. Ela se surpreende e se corrige, não percebendo o que
está em questão.
"Compulsiva? Sempre. Tudo que eu penso envolve comida e em
grandes quantidades, mesmo tendo consciência de que não consigo co­
mer"; "Eu como mais ainda. Como mesmo sabendo que faz mal."; "Eu
também procuro coisas para beliscar quando estou fazendo algo. Mas eu
quero beliscar alguma coisa reprovável. Meu iogurte está lá, mas não ser­
ve." Recalcati (2002) adverte, "na ruminação contínua da obesidade não
há tempo para a nostalgia porque o objeto está sempre ao alcance da
boca". O consumo do objeto não compensa mais uma ausência porque
a ausência não existe. O consumo é o consumo do objeto presente, na
antecipação do próximo.
Todas estas falas apontam para o gozo e para as dificuldades do
paciente em se confrontar com ele diante do ideal construído antes da
ciru rgia. Diante desta conjetura a pergunta que não pode calar: Qual a
responsabilidade do analista diante do lugar ocupado na equipe?

O que é "avaliar" na economia subjetiva do psicólogo?

Parece que a i nserção do psicólogo em u ma i nstituição orienta­


da pelo discurso médico costuma inclinar este profissional a respon­
der em su bmissão a este d iscu rso. O lugar conferido ao psicólogo é
sedutor, "Só operamos se você liberar"; "Quem libera é o psicólogo".
Que i lusão em frente e verso. Claro que esta oferta esconde por parte
da equipe seu próprio mal-estar diante de uma clínica d ifícil e com
resultados surpreendentes.
"Avaliar" para o psicólogo, com uma série de critérios e testes
psicológicos, seria uma forma de sustentar um lugar no saber médico.
Acreditar também que é possível prognosticar a evolução psicológica
de um sujeito também obedece a mesma lógica médica. Assistimos a

203
Psicanálise e Hospital

uma realidade que coisifica o homem. O sujeito da atualidade virou ob­


jeto classificado por avaliações lhe conferindo um perfil psicológico de
acordo com padrões de comportamento estatisticamente comprovados.
Segundo Moretzsohn2 (2005):
Essa atitude própria de qualquer avaliação, ao no­
mear, classificar, avaliar, sempre exclui do campo das
possibilidades o que não foi possível de ser nomeado,
classificado e avaliado com os instrumentos e recursos
disponíveis, desde sempre, limitados.

Todo o aparato que orienta as avaliações psicológicas pode funcio­


nar para o psicólogo como âncoras imaginárias que l ivrem o profissional
da angústia gerada pelas i ncertezas do inconsciente. Ocampo (1981) afir­
mou que, durante muito tempo, o psicólogo trabalhou com um modelo
similar ao do médico por carecer de uma identidade profissional. A área
de saúde parece intensificar esta crise de identidade, já que os lugares, o
médico, a enfermeira, a assistente social etc. já estão bem estabelecidos,
enquanto o psicólogo necessitará construir este lugar.
Esse lugar diante do paciente não se constrói apenas com teo­
rias, mas principalmente em cima de uma elaboração ética e pessoal
no processo terapêutico de cada um. É muito a rriscado para o paciente
e para a equipe alguém que ocupe esse lugar ostentando um saber
inquestionável e detentor de uma verdade universal. Você está apto ...
Você não está apto .... ! ?
Na s u a tese d e mestrado (2002), a arq uiteta Ana Valverde nos
ensina que o sentido de lugar surge quando existe ressonância entre a
paisagem e o homem. Toda paisagem então não é l ugar em potencial.
Somente a ressonância da paisagem no homem pode constituir um
lugar. Uma paisagem sem ressonância não é um lugar.
O lugar do psicólogo só está assegurado pela ressonância que
ele provoca no paciente. Essa ressonância é exatamente possibilitar ao
paciente falar a partir de um lugar que cause ressonâncias em sua vida.

2 Jornal do Conselho Federal de Psicologia ano 2005.

204
O Inconsciente Não é Light

Provocar a muda nça do paciente de sua condição de objeto a sujeito


e favorecer a representação das i mpressões nu nca a ntes nomeadas é
uma tarefa para além do trabalho i nterpretativo e se coloca como a
postu ra responsável mais pertinente e produtora de mudança. Desta
forma, estabelecer critérios que não digam respeito à verdade do
sujeito seria uma forma de reforçar essa posição a lienante. Quinet
(2000) afirma:
O psicanalista tem uma atitude diferenciada diante
do sintoma apresentado pelo paciente, precavendo­
se contra o furor sanandi de exigir a qualquer custo
à suspensão do sintoma. Pois lá, onde há o sintoma,
está o sujeito. Não atacar o sintoma, mas abordá-lo
como uma manifestação subjetiva, significa acolhê-lo
para que possa ser desdobrado e decifrado, fazendo aí
emergir o sujeito. (p.l9)

Responsabilidade e consequência

Ao tratar dos conceitos de alienação e separação, em seu semi­


nário XI (1964), Lacan (1992) vai colocá-los como duas operações cons­
titutivas do sujeito. No que se refere à alienação, as duas partes envol­
vidas, a criança e o Outro, estabelecem relações dessimétricas onde a
criança está em "desvantagem". O paciente candidato à ciru rgia encon­
tra-se em u ma posição análoga ao momento inicial de sua vida, aliena­
do ao Outro. O obeso acaba por circunscrever ao corpo obeso todo seu
infortúnio e todas as suas d ificuldades, desimplicando-se de qualquer
responsabilidade. Estão ecl ipsados pelo corpo e não conseguem olhar
para algo além do corpo e da comida: 'As pessoas são agressivas com o
gordo, não lhe aceitam, e o pior de tudo é que você também não se acei­
ta"; 'A fuga do gordo é a comida':· "Quero me sentir livre, pois me sinto
preso a este corpo': O paciente almeja que finalmente seu problema seja
resolvido, acreditando que todos os seus conflitos sejam provenientes
dos excessos de seu corpo.

205
Psicanálise e Hospital

Apropriam-se do discurso médico sobre a obesidade e as doen­


ças associadas e se apoiam nestes pressupostos para realizarem a cirur­
gia. Jean Clavreul (1983) faz u ma analogia entre a demanda do doente
e da criança em relação à sua mãe: do mesmo modo que o doente não
pode ele próprio assegu rar sua cura, a criança, em sua prematuridade,
não pode satisfazer por ela própria as suas necessidades. Há um pedido
de ambos que nomeiem seu sofrimento.
Há u ma g rande incidência entre os obesos de um posicionamen­
to submetido ao outro, cuidam dos outros em detrimento de si. Eles
d izem que não conseguem d izer "não" às solicitações do outro, mesmo
que isso acarrete sérios prejuízos a sua vida. O "Sim" do sujeito obeso
reproduz a posição originária da criança quanto à demanda do Outro.
Na obesidade, o sujeito permanece em uma condição muito objetai e
não acede à separação. Quando comparadas, anorexia e obesidade, é
possível situar a anorexia no eixo da separação, "não" ao Outro como
tentativa de separação enquanto que o "sim" do obeso o fixa em uma
posição alienante.
Souza (2005) argumenta em consonância com Recalcati (2002)
que há uma dificuldade do obeso em proceder com a separação. Souza
(2005) diz:
A demanda voraz do objeto oral denuncia de alguma
forma a falha da função paterna. Sob essa ótica, na
obesidade o sujeito permanece como objeto de gozo
do Outro, marcando a impossibilidade de separação,
quando não consegue recusar a comida na busca do
prazer imediato. (p.153)

Na clínica com obesos, é comum a fala "Eu vivo a vida dos ou­
tros", demonstrando a alienação e a reprodução que se estabeleceu
com o Outro materno e se perpetua pela vida i nteira. A responsabilida­
de de quem se oferta nesta escuta é fazer o sujeito se responsabilizar
por sua escolha, autorizando a si mesmo e assum i ndo a autoria de seus
atos em uma perspectiva menos alienada ao outro e em consonância
com seu desejo.

206
REFERÊNCIAS

CLAVREUL, Jean. A ordem médica. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1983,


p. 155.

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do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 87-116.

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VALVERDE, A. C. L. O Lugar de ltapagipe. 2002. Dissertação (Mestrado


em Programa de Pós-Graduação Em Arquitetura e U rbanismo) -
Universidade Federal da Bahia.

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Gênese da Obesidade Mórbida - Trabalho de Conclusão de Curso
(Mestrado Família Contemporânea e Sociedade) da Universidade
Católica de Salvador, 2005.

VASQUES, Fátima; MARTINS, Fernanda C.; AZEVEDO, Alexandre P. de.


Aspectos psiquiátricos do tratamento da obesidade. In: Revista de
Psiquiatria Clínica, 31 (4); 2004, 195-198.

208
REPRODUÇÃO ASSISTIDA, CIÊNCIA E SOCIEDADE:
A PLURALIDADE CULTURAL E OS INDIVÍDUOS

Maria do Carmo Borges de Souza

A maior característica das ciências modernas é entender a na­


tureza pela anál ise de fenômenos q u e se regem por reg ras predeter­
m i nadas. Por meio de teorias e ferra mentas progressivamente d is­
poníveis (tecnologia), vários aspectos da natu reza fora m elucidados.
Isto leva a uma visão mais red ucionista, como a identificação de q u e
as propriedades de u ma ún ica proteína s ã o maiores q u e as da soma
de seus a m i noácidos componentes, que não privi legia o simples fato
de q u e o todo, mu itas vezes, é maior q u e a soma das partes. (IAC­
CARINO, 2003)
Na cu ltura ocidental, a produção científica é marcada pela racio­
nalidade que se opõe a outras dimensões do saber, frequentemente ca­
racterizadas como não-ciência. Ao fazer-se referência à pesquisa, inclui­
se imediata mente o método desta, que se caracteriza pela possibilidade
de reproduzir, na prática, os dados obtidos. (JACOB, 2006)
A atuação do médico é norteada pela Ciência, as suas decisões
são cobradas com base em um pensamento científico ou em uma
Medicina de evidências (FRIEDLAND, et al., 1998). Esta última com pre­
ende um g rupo de pressu postos para a tomada de decisões, a saber:
i nformações de estudos sistemáticos; compreensão da fisiopatologia,
que pode ser, no entanto, i nsuficiente para a prática clínica; e a com-

211
Psicanálise e Hospital

pree nsão de determinadas regras para avaliar e aplicar de forma efetiva


a literatura médica.
A questão fundamental da Medicina nesses dois últimos sécu­
los tem sido, pois, diagnosticar, esclarecer e classificar as patologias
no sentido de defi n i r as escol has para a terapêutica. Este modelo bio­
médico, organicista, tem se mostrado i nsuficiente para lidar com a
questão da saúde, hoje e ncarada de u m ponto de vista mais amplo do
que a simples ausência da doença, como a promoção das condições
nas quais as pessoas possam ser saudáveis ou como bem-esta r, em
todos os sentidos.
É importante então ressaltar que não se trata de passar a outro
extremo - no sentido de eliminar a referência ao "orgânico" no que diz
respeito à saúde - dando privilégio ao "psicológico" ou ao "social", mas
de ampliar a visão da saúde e pensar para além das fronteiras discipli­
nares (SILVA FILHO, 2006). Precisamos, segu ndo este autor, estabelecer
um paradigma que não seja redutor, capaz de associar ao mesmo tem­
po em que separa, olhando os fenômenos sem reduzi-los a leis gerais
ou unidades elementares.
Se assim aplicarmos estes conceitos à infertilidade e à reprodução
assistida, do mesmo modo que, em relação à Medicina clínica, ganha­
se uma maior visão. A causalidade linear não mais dá conta de tudo
que se tenta explicar. Os fatores culturais, as sociedades e a biologia se
interpenetram, i nteragem e i nter-retroagem, demandando u m esforço
no sentido de uma elucidação que ultrapassa o conhecimento de uma
ú nica disciplina, com um olhar diferente para esta complexidade.
A d istribuição populacional no mundo persiste extremamente
descontínua, considerando-se os diferentes continentes ou mesmo a
América do Norte e a do Sul. A ONU, atenta aos desdobramentros des­
te tema, mostra que o au mento do efetivo humano precisa ser compa­
tível com a finitude dos recursos do planeta, de modo que a busca do
equilíbrio é um dever da coletividade. Em 1994, a Conferência sobre
"População e Desenvolvimento", no Cairo, adotou por consenso um
programa pioneiro com esforços dirigidos para a proteção dos direitos
da mulher e aumento da sua mobilidade social. Foi tam bém um marco

212
Reprodução assistida, ciência e sociedade

no debate sobre a atenção aos i mpactos do crescimento populacional


no meio ambiente e no bem-estar humano, ou seja, a i nterdependência
entre a reprodução humana e a preservação a mbiental.
Muito se tem escrito sobre a ação do homem no seu ambiente,
mas sabemos pouco sobre como o ambiente afeta o homem, incluindo
sua potencialidade de reprodução. A fertilidade tende a ser menor nos
países industrializados, principa l mente (mas não i nteiramente) por cau­
sa do uso dos métodos contraceptivos. Como a espécie historicamente
tem demonstrado alta fertil idade, tal situação é recente e única, o que
levanta importantes questões médicas: Por que a fisiologia reprodutiva
não funciona perfeitamente no mundo moderno, altamente técnico e
u rbanizado? São os altos índices de perdas embrionárias e fetais ou a
esterilidade inerentes aos humanos ou fazem parte do desenvolvimen­
to recente da evolução da nossa biologia? A i nfluência do coletivo na
taxa de fecundidade é hoje bastante aceita. A Ecologia Humana Repro­
dutiva, multidisciplinar, estuda as decisões humanas procriativas, a fe­
cundidade e a fertilidade, relacionadas às cond ições bióticas - relações
com outros seres - e abióticas - l igadas a fatores físico-químicos - que
cercam os seres humanos. (SOUZA e cols., 2002)
Diferentes cenários e horizontes, por outro lado, tornam-se pos­
síveis. De um lado, a medicalização e a utilização de tecnologias de
ponta na reprodução assistida deslocam a fecu ndação do corpo para
o laboratório (separando o sexo da reprodução); focal izam-se os trata­
mentos no corpo feminino, a brindo-se um hiato para a representação
do pai (MOURA, 2005); faz-se a introdução de terceiros na reprodução
(cientistas, médicos, biólogos, psicólogos, doadores de material bio­
lógico, comitês de ética, Estado, indústria farmacêutica etc.). M ú ltiplas
possibilidades se abrem a mulheres, a homens, a casais heterossexuais
e homoafetivos de i nventar novas formas de parentalidade, de laços
biológ icos e sociais, de interação com os avanços científicos e tecno­
lógicos. São oportunidades de deslocamento de fronteiras (dos limites
da fertilidade e das possibilidades) das múltiplas formas de criação de
laços sociais e de construção de condições sociais, econômicas e polí­
ticas. (ALMEIDA, 2008)

213
Psicanálise e Hospital

E o médico, "primeira linha" no atendimento ao indivíduo, como


se posiciona diante desta circunstância em que se imagina que está "o
saber" que trará o filho desejado? (SOUZA et al., 2008a). Se a constru­
ção vigente prioriza a terapêutica e esta se afasta do sujeito para com­
bater a patologia, será que este sujeito sofredor não ficará em segundo
plano? (LUZ, 2002). Alguns relatos têm evidenciado que um número
razoável de pacientes deixa o tratamento por decisão própria, mesmo
quando ele é total mente assegurado pelo sistema de saúde, i ndepen­
dentemente de motivação financeira (DOMAR et ai., 2009). Como fica
a relação entre médico e paciente? Com que podemos contribuir no
atendimento à infertilidade para estabelecer u ma diferença?
Alguns relatos, que vieram a partir de u ma pergunta a mais, u m
"tempo" deixado para q u e algo possa fluir "além da técnica", deixam à
mostra que há muito mais a se buscar e meditar, para responder a estas
demandas.
1. Tânia, 36 anos, e Júlio, 42 anos. Ela vem à consulta porque
quer gestar; depois de uma perda espontânea e de u ma
curetagem, nada mais acontece. Uma gestação anterior,
com ele, foi i nterrompida porque "não era uma boa hora".
Ele tem filhos de casamento anterior, história de alcoolismo,
mas hoje está "limpo". "Não seria caso para FIV?". Com exa­
mes, a princípio, normais, indica-se uma i ndução simples da
ovulação com relação em casa, que resulta em gestação ec­
tópica, resolvida cirurg icamente com preservação da tuba.
Orienta-se o casal para atendimento psicológico, pois há
grande sofrimento dela, com certo "distanciamento dele". O
casal vai ao psicólogo, mas não segue no acompanhamento.
Ela fica usando medicação por conta própria, faz controles
ultrassonográficos, tenta relação em casa, brigam, "engana
o J ú lio" quanto ao período fértil. Após mais um ano e meio
juntos, pedem por ciclo de fertilização. Converso com am­
bos, pergunto se é mesmo esta a decisão do casal, explico o
processo, as chances, as l i mitações e as incertezas. Insistem.
Pergunto -lhes sobre o emocional, insistem na decisão. Re-

214
Reprodução assistida, ciência e sociedade

a lizado o ciclo, obtém-se uma resposta baixa, aquém da espe­


rada pela idade e pelo histórico hormonal. Houve dificuldade
e irritabilidade dele no dia da coleta de sêmen. Reclamam da
recepcionista, que está atenta e gentil. Após a transferência em­
brionária, Tania escreve e-mails infantilizados, que culminaram
com o teste de gravidez negativo. A partir daí, após uma con­
sulta em que queria saber por que não gestara, ela se apresenta
com manifestações de raiva, faz ameaças, marcações sucessivas
de consulta às quais não comparece. Nos contatos por telefone,
quando fazia ameaças, os limites foram colocados por meio de
um posicionamento tranquilo, porém firme.

2. Vivian, 32 anos, já teve três perdas gestacionais espontâneas


de primeiro trimestre, tudo cuidadosamente avaliado e pes­
quisado, sem explicações apa rentes. Querem ouvir outra opi­
n ião, estão prontos para uma fertilização. O exame ginecoló­
g ico é completamente normal. Pergunto-lhe sobre a história
familiar, e ela diz que "a mãe morreu quando era pequena".
Noto alguma indecisão, u m silêncio "gritante". O marido me
fita, com olhos arregalados. Pergunto-lhe se poderia me falar
um pouco mais da mãe, e surge o relato de que, "na verda­
de, a mãe a teve aos sete meses de gravidez e morreu". Esta
história foi revelada ao casal pelo pai dela, no mês em que
se casaram... Levo u m susto! Respiro fundo ... Pergunto-lhe se
ela entende o que me d isse e me propus a "traduzir": seus
pais haviam vivido uma situação difícil, de um diagnóstico
de câncer de mama durante uma g ravidez, em um momento
em que esta era uma situação de cuidado médico restrito.
Digo-lhe que eles deveriam ter sofrido m uito e que sua mãe
fora bravíssima, porque provavel mente tenha optado por
aguardar um mínimo de possibilidade de tempo para seu
bebê sobreviver, a brindo mão de qualquer tratamento que
o ameaçasse. Afirmei que foi u ma g rande prova de amor...
Ela começou a chorar. Conversamos, sugeri-lhe a busca de

215
Psicanálise e Hospital

maior entendimento desta questão, a o invés d a reprodução


assistida laboratorial. O marido me agradeceu, disse que "as
coisas pareciam claras para ele". Tempos após, avisaram-me
que ela estava g rávida, que tudo ia bem.

3. Joana, 34 anos, e Marcos, 35 anos. Ambos angolanos. Ela


tem obstrução de u ma das tubas; ele tem um filho de outro
relacionamento. Já fizeram vários tratamentos na África do
Sul: i njeções, antibióticos, induções para relação em casa. Ao
ser proposta a fertilização, desistiram, "estava muito difícil".
Ao ouvirem de amigos que tinham vindo ao Brasil, resolve­
ram tentar. Converso com ela: "como deve ser difícil ter de
vir à consulta sozinha", já que o marido "só poderia chegar
depois, próximo ao período da captação dos óvulos". Em res­
posta, chora ... Conta da sua tristeza, da dificuldade social de
não poder ter fil hos. Explica que, na África do Sul, era muito
difícil a consulta com o marido, por ter de expor toda a sua
intimidade a um tradutor (homem) pago, que vivenciava com
ambos a consulta, e que os médicos pareciam muito distan­
tes e técnicos. Lembrei-me de imediato que seria melhor que
estes tratamentos fossem chamados de "além fronteiras", ao
invés de "turismo reprodutivo", como vêm sendo rotulados,
pois trazem embutidos uma maior baixa de autoestima, além
da sensação de exílio (INHORN, 2009). Realizado o ciclo, Joana
gestou e voltou a seu país. Disse que se sentiu "acolhida".

4. Gláucia, 40 anos, e João, 37 anos. Ambos sem filhos. Duas


tentativas anteriores de FIV, mais u ma transferência de em­
briões congelados, sem sucesso. Agora, a família dela vai
presenteá-la com nova tentativa e quer saber da possibili­
dade de fazer ainda com seus próprios óvu los. Conversamos
a respeito. Novamente, tudo pesquisado. Ele é mais jovem,
"tem tempo", ela "está com o relógio biológico sinalizando",
diz-me. Pergunto das tentativas anteriores: ela i nforma que

216
Reprodução assistida, ciência e sociedade

a segunda teve resposta maior, chegou mesmo a ter con­


gelamento que possibilitou a transferência de congelados.
Mas, mesmo assim não houve a g ravidez. Explico os proce­
dimentos, peço-lhe que converse também com o marido,
que não está presente, e ficamos d e programar as etapas
do tratamento. Passam -se alguns meses! Ela retom a com
ele, conversamos tudo novamente, explico que poderíamos
tentar entender a d iferença no seg u ndo ciclo, que resultou
em u ma resposta biológica melhor. Estavam mais tranqui­
los. Na terceira consulta, para marcar os procedimentos, ela
vem sozinha. Depois que explico-lhe sobre as medicações e
objetivos, volto aos segu intes pontos: "vamos ver o que se
pode conseguir; é um passo de cada vez; fique tranquila que
tudo será informado ...". "Como está se sentindo?" - pergunto.
[.. .] "Melhor, se tiver de acontecer, acontecerá". Diz que está
preparada ... Das duas últimas vezes, ficou torcendo para não
acontecer! Pergunto se poderia me explicar melhor esta de­
claração. Segue-se o relato de que, no dia da aspiração dos
oócitos, diante de u ma resposta "igual à primeira", aceitou
fazer um upgrade com a "mistura" de outros óvulos, de uma
"doadora jovem e capaz". Ficou se lamentando todo o tem­
po, mas, mesmo assim, consentiu ainda na transferência dos
congelados. Se tivesse gestado, seria u m adultério consen­
tido, ela não consegu iria ter u ma g ravidez com um fil ho de
outra com seu próprio marido, e com seu consentimento!
Como seria depois com u ma criança, me pergunto.

De i nício, a postura de escutar "além" da fala assusta, pois abre


u m universo inesperado, para o qual precisamos também estar prepa­
rados. Mas, do susto inicial, passa-se a enxergar mais claramente os in­
divíduos, pode-se entender melhor por que eles são classificados como
"irritados, chatos, ansiosos, d ifíceis" ou tantos outros sinônimos às ve­
zes utilizados quando circulam entre clínicas ou entre os profissionais.
Podemos ajudá-los a encontrar uma resposta, sem que esta seja tão-

217
Psicanálise e Hospital

somente u ma aplicação estrita de tecnolog ia, e seguimos "curando",


pois esta é a nossa intenção.
Estas posturas, dinâmicas, se aplicam e se d ifundem entre os co­
legas mais jovens, que passam a ler as observações "diferentes" nos
prontuários médicos, adquirem o hábito de aplicar essas posturas, que
se estendem à enfermagem, são repassadas como explicações e orien­
tações à recepção (SOUZA et al., 2008b); é "como uma virose se difun­
dindo". É claro que também "curamos" a nós mesmos, dando mais segu­
rança à condução dos pacientes, pois, se voltarmos este entendimento
para o nosso dia-a-dia, para o peso dos problemas, para as indefinições
e cobranças, ficará mais fácil aceitar também nossos próprios limites.

218
REFERÊNCIAS

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220
Glauco Batista

Psicólogo. Psicanalista. Pós-Graduação


em Psicologia Hospitalar pela
Universidade FUMEC. Participante
da Formação e Transmissão da Clínica
de Psicologia e Psicanálise do Hospital
Mater Dei. Membro da ONG Terceira
Margem Prevenção, Pesquisa e
Capacitação em Toxicomania e diretor
geral no período de 2009 a 20 1 1 .
Membro da Sociedade Brasileira de
Psicologia Hospitalar - SBPH e membro
da Diretoria no biênio 2009-20 1 1

Marisa Decat de Moura

Psicóloga. Psicanalista. Doutorado


em Ciências pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro - UFRJ. Mestrado
em Psychologie Psychopathologie
Subjectivité Langage pela Université
Louis Pasteur - ULP, Strasbourg, França.
Çoordenadora da Clínica de Psicologia
e Psicanálise do Hospital Mater Dei -
Belo Horizonte/MG. Coordenadora do
Curso de Pós-Graduação Lato Sensu.
Especialização em Psicologia Hospitalar -
Universidade FUMEC. Membro
correspondente da FEDEPSY -
Federação Europeia de Psicanálise.

Simone Borges de Carvalho

Psicóloga. Psicanalista. Mestre em


Psicologia pela UFMG - Investigações
, clínicas em Psicanálise. Membro da
Clínica de Psicologia e Psicanálise
C

do Hospital Mater J!>ei.


D
esde o início das atividades da Clínica de Psicologia e
Psicanálise no Hospital Mater Dei, a experiência clínica tem nos
mostrado o quão fundamental é para o analista em uma instituição
hospitalar a formação, a transmissão da Psicanálise e a formalização
te.órica sobre o lugar e a função de analista no contexto do hospital,
sendo a nossa direção de trabalho definida a partir da clínica e do que
ela exige do analista. Visando sustentar essa direção iniciada em 1 978,
realizamos desde 2003 o Fórum Internacional Psicanálise e Hospital,
evento bianual, com a presença de psicanalistas, psicólogos e médicos,
entre outros profissionais de diversas regiões do Brasil e da França.
Continuando este percurso, os trabalhos publicados neste livro foram
próduções a partir do IV Fórum Internacional Psicanálise e Hospital,
correalização da Clínica de Psicologia e Psicanálise do Hospital Mater
Dei (Brasil) e da Universidade de Estrasburgo (França), encontro que
nos levou a pensar "a responsabilidade da psicanálise na-modernidade".

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