Dossiê Vidas em Luta
Dossiê Vidas em Luta
Dossiê Vidas em Luta
VIDAS EM LUTA
2019-2022
4O VOLUME
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
22-137753 CDD-361.614
Índices para catálogo sistemático:
de Direitos Humanos
Ayala Ferreira
Coordenação Política
Antonio Neto
Revisão Textual
Edição Final
Tatiana Lima
3. Artigo 19
5. Brigadas Populares
25. Criola
4. Os casos estudados 35
6. Recomendações 115
1.
APRESENTAÇÃO
O Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores
de Direitos Humanos (CBDDH) é uma articulação
em rede composta por 45 organizações da
sociedade civil e movimentos sociais1, tanto do
cenário do campo quanto da cidade, algumas com
atuação em todo o território nacional.
as edições publicadas é apresentar para a tos humanos, que piorou muito nesses últimos
pelas organizações que compõem a rede do fensores de direitos humanos (DDHs), soma-
9
Para compreender melhor esse cenário, além entrevistas, com diversas organizações sociais
da escolha metodológica do marco temporal e lideranças políticas brasileiras que atuam nos
de 2019-2022, essa edição também optou por casos concretos ou que tem uma relevante con-
realizar um estudo de casos emblemáticos de tribuição na luta em defesa dos direitos huma-
violações de direitos humanos a partir de reali- nos. Essas pessoas, e suas organizações, foram
dades acompanhadas e apoiadas pelo Comitê parceiras ativas na construção desse documen-
Brasileiro. Foi realizado o estudo de oito casos, to e, a elas, destacamos o nosso agradecimento.
que envolvem conflitos com: mineração; grila-
No próximo capítulo, iremos apresentar o porquê
gem de terras; agronegócio; exploração de ma-
proteger defensoras e defensores de direitos
deira; milícias urbanas e rurais; violência política;
humanos passa, diretamente, por enfrentar as
demarcação de terras indígenas, quilombolas,
causas que estruturam as violências. Em segui-
de sem terras e sem teto; que estão mais bem
da, no capítulo 3, vamos realizar uma apresen-
detalhados no tópico 4. A diversidade regional
tação de dados sobre ações e casos acompa-
de lutas e a representatividade de tais conflitos
nhados pelo Comitê. Já o capítulo 4 é destinado
foram critérios utilizados para a escolha dos oito
à apresentação dos casos objeto do estudo. E,
casos analisados.
no capítulo 5, identificamos os pontos de viola-
O objetivo deste estudo foi, além de evidenciar ção de direitos humanos, luta e resistência que
as violações presentes e o contexto da luta por conectam todos eles. Por fim, no capítulo 6, o
direitos humanos nos territórios, compreender Comitê apresenta suas recomendações para a
como a ação do Estado e suas esferas legisla- proteção integral de defensoras e defensores de
tiva, executiva ou judiciária, agem de forma a direitos humanos.
oportunizar para que essas violências aconte-
çam. Para o estudo desses casos, foram feitas 18 Boa leitura!
11
O Brasil é um país profundamente desigual, masculinos, advindos do norte europeu seriam
constituído a partir de um processo de coloni- a raça social e culturalmente superior. Enquan-
zação europeia que teve, em suas bases, a ex- to povos indígenas, negros, do sul global, suas
ploração massiva de mão de obra negra e indí- crenças e culturas, inferior. Todo esse processo
gena. Foram mais de três séculos nos quais a construiu a estrutura racista e sexista da socie-
escravidão foi formalmente legalizada, e onde dade brasileira que, até os dias de hoje, faz com
pessoas negras e indígenas não eram vistas que a população negra (formada por pretos e
como pessoas, mas sim como objetos para a pardos) - que são 54% da população brasileira,
exploração. Essa história é conhecida por grande segundo o IBGE - tenham menos terras, empre-
parte da população, mas a compreensão de sua
gos, salários mais baixos e sejam as maiores
reprodução nos dias de hoje permanece frágil.
vítimas de homicídios no Brasil. As mulheres
A violência imposta desde o processo de colo- também sofrem uma violência particular por
nização do Brasil se sustenta em concepções serem simplesmente mulheres e, dentre elas, as
de hegemonia racial, sexual e territorial. Os co- negras, cis ou trans, são as que tem seus direitos
lonizadores, em sua maioria cristãos, brancos, ainda mais violados. Vejamos alguns dados2:
Realidade fundiária
Estabelecimentos com mais de 2500 hectares Há mais produtores negros que brancos no Brasil. Con-
correspondem a 0,3% de área no Brasil e estão tudo, os negros são maioria nas menores propriedades
nas mãos de 32,8% da população. Os estabele- (5 hectares). Quanto maior o tamanho da propriedade,
cimentos com menos de 50 hectares, que são menos os negros são proprietários. Além disso, os bran-
81.4% do total, ocupam apenas 12,8% da área cos, ainda em menor quantidade de produtores, são do-
do território nacional. (Fonte: IBGE. Atlas do nos de quase 60% das terras do Brasil. (Fonte: Pública,
espaço rural Brasileiro. 2020); em pesquisa feita a partir dos dados de IBGE. 2019).
64% da população que está desocu- 46% dos homens e quase 48% das Mais que o dobro das
pada e 66% da população que tem sua mulheres que possuem trabalho pessoas abaixo da linha
força de trabalho subutilizada é negra; informal no Brasil são negras; da pobreza são negras;
No período abrangido pela pesquisa, a chance de As pessoas negras são a maioria das pessoas que
uma pessoa negra ser vítima de homicídio no Bra- moram em residências sem abastecimento de água,
sil era 2,7 vezes maior que a de pessoas brancas. sem coleta de lixo, e sem esgotamento sanitário;
Esses dados exemplificam e apresentam um líticas públicas não chegam e a efetivação dos
quadro geral das desigualdades que permeiam direitos sobre os territórios em que habitam, em
o país. Assim, partimos de um pressuposto bá- geral há séculos, tem se tornado cada vez mais
sico: o que estrutura a violência contra defen- precária e distante.
soras e defensores de direitos humanos é um
A reprodução dessa violência estruturante acon-
estado ancorado no racismo e no sexismo e
tece por meio de políticas públicas que não são
em um sistema econômico no qual o lucro e
efetivadas, pela atuação do sistema judiciário,
a riqueza de alguns valem mais do que a vida
por atos normativos e legislações que contra-
de determinadas pessoas. Quanto mais uma
riam direitos constitucionalmente assegurados,
pessoa, ou coletividade, está fora de um padrão
por falas, discursos e posicionamentos de auto-
branco, masculino, sexualmente normativo e
ridades públicas e agentes privados.
rico, mais vai sofrer com as desigualdades.
Apesar da Constituição de 1988 prever uma série
É o que se observa, por exemplo, com povos e de princípios e normas que buscam contrapor
comunidades tradicionais no Brasil, que têm essa herança colonial, na medida em que reco-
uma existência coletiva, identificando-se a par- nhece direitos de povos indígenas, pessoas ne-
tir do território, de seus modos de vida, práticas, gras, mulheres, o direito universal de acesso à saú-
costumes e tradições. São grupos que têm uma de, ao trabalho, comida, e a vida com dignidade
íntima relação com o ambiente em que vivem, e para todas as pessoas não são colocados em prá-
que lutam para a manutenção de sua identidade tica, além de serem cotidianamente deturpados,
enquanto povo. Para essas comunidades, as po- violados e atacados no Brasil.
13
2.1. DESMONTE DE POLÍTICAS PÚBLICAS
E AUMENTO DA VIOLÊNCIA
É dever do Estado garantir a proteção e a conti- direitos humanos e na atuação das causas que
nuidade da luta das pessoas que defendem os geram o estado de risco ou vulnerabilidade”3.
direitos humanos, uma vez que esses grupos de-
Ou seja, além de garantir proteção direta, deve o
sempenham o trabalho fundamental para o não
Estado, a partir de uma atuação conjunta, com-
retrocesso e/ou avanço e efetivação de direitos,
bater as causas que motivam a situação de ris-
além de serem essenciais no fortalecimento da
co ou vulnerabilidade. Isso significa que, na me-
democracia.
dida em que uma coletividade ou pessoa está
Segundo o decreto 6.044/2007, uma das diretri- ameaçada, porque expressa sua identidade de
zes para garantir a proteção de DDHs é o “for- gênero e defende o direito das pessoas travestis
talecimento do pacto federativo, por meio da e transexuais, por exemplo, compete ao Esta-
atuação conjunta e articulada de todas as esfe- do não só coibir a ameaça e protegê-las, como
ras de governo na proteção aos defensores dos também construir políticas públicas que falem
3. CASA CIVIL. Política Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos. Art. 4, inciso I, decreto
6.044/2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6044.htm. Acesso
em 25 de outubro de 2022.
Contudo, isso está muito longe de acontecer vil, o programa vive atualmente o pior momento
na prática e o quadro de violações se agravou de sua história, e pode-se falar que sofre, pelo
ainda mais nos últimos anos. O programa de menos, oito grandes ataques:
3 Baixa institucionalização
4. TERRA DE DIREITOS; JUSTIÇA GLOBAL. Começo do fim? O pior momento do Programa de Proteção aos Defen-
sores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas. 2021. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/
acervo/publicacoes/livros/42/comeco-do-fim-o-pior-momento-do-programa-de-protecao-aos-defensores-de-di-
reitos-humanos/23691. Acesso em 25 de outubro de 2022.
15
Para além dos ataques ao programa de prote- quatro anos, que representam o desmonte do
ção em si, há uma série de políticas, medidas e estado de direitos e o comprometimento de nos-
proposições legislativas, sobretudo nos últimos sa democracia. Dentre elas:
• Dezenas de decretos que flexibilizaram o uso de armas de fogo no Brasil, que fez com
que o número de licenças de armas aumentasse significativamente nos últimos anos;
5. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da ad-
ministração pública federal. 2019. Disponível em: Base Legislação da Presidência da República - Decreto nº 9.759
de 11 de abril de 2019 (presidencia.gov.br). Acesso em 14 de novembro de 2022.
6. ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA. Mais de 240 organizações repudiam projeto que ataca
Convenção 169 e direitos dos povos e comunidade tradicionais. 28 de junho de 2021. Disponível em: Mais de
240 organizações repudiam projeto que ataca Convenção 169 e direitos de povos e comunidades tradicionais - Ar-
ticulação Nacional de Agroecologia. Acesso em: 14 de novembro de 2022.
7. CONGRESSO NACIONAL. Medida Provisória 910/2019. (Regularização fundiária). 2019. Disponível em: MPV
910/2019 - Congresso Nacional. Acesso em: 14 de novembro de 2022.
8. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 2633/2020. 2020. Disponível em: Portal da Câmara dos Deputados
(camara.leg.br). Acesso em: 14 de novembro de 2022.
9. SENADO FEDERAL. Projeto de Lei 510/2021. 2021. Disponível em: PL 510/2021 - Senado Federal. Acesso em: 14 de
novembro de 2022.
10. INCRA. Instrução Normativa Incra N°105/2021: Regulamenta os procedimentos para a celebração de par-
cerias com os municípios e implementação dos Núcleos Municipais de Regularização Fundiária – NMRF para a
execução do Programa Titula Brasil. 2021. Disponível em: INSTRUÇÃO NORMATIVA INCRA Nº 105, DE 29 DE JANEIRO
DE 2021. – B & S Gestão Pública S/S LTDA – ME (bsgestaopublica.com.br). Acesso em: 14 de novembro de 2022.
• A trágica gestão da pandemia da COVID-1912 que resultou em mais de 700 mil mortes
no Brasil;
• O enfraquecimento de políticas sociais que faz com que, em 2022, o Brasil tenha
cerca de 33 milhões de pessoas passando fome13;
11. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. PL 191/2020: MPF reitera manifestação contrária à proposta que regula-
menta mineração em terras indígenas. 2022. Disponível em: PL 191/2020: MPF reitera manifestação contrária à
proposta que regulamenta mineração em terras indígenas — Procuradoria-Geral da República. Acesso em: 14 de
novembro de 2022.
12. AGÊNCIA SENADO. Pesquisas apontam que 400 mil mortes poderiam ser evitadas; governistas questio-
nam. Junho de 2021. Disponível em: Pesquisas apontam que 400 mil mortes poderiam ser evitadas; governistas
questionam — Senado Notícias. Acesso em: 14 de novembro de 2022.
13. REDE BRASILEIRA DE PESQUISA. 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pan-
demia da Covid-19 no Brasil. 2022. Disponível em: 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto
da Pandemia da Covid-19 no Brasil – Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e SAN (pesquisassan.net.br). Aces-
so em: 14 de novembro de 2022.
14. AGÊNCIA SENADO. Para debatedores, Fundação Palmares passa por desmonte e é usada para prática de
racismo. Setembro de 2021. Disponível em: Para debatedores, Fundação Palmares passa por desmonte e é usada
para prática de racismo — Senado Notícias. Acesso em: 14 de novembro de 2022.
17. BRANDALISE, Camila. Governo Bolsonaro acentuou desmonte de políticas para mulheres, diz estudo. Uni-
versaUOL. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2022/07/01/governo-bolsonaro-a-
centuou-desmonte-de-politicas-para-mulheres-diz-ipea.htm. Acesso em 26 de outubro de 2022.
18. PEREIRA, Matheus Mazzilli. Pereira.Políticas para LGBTI+ no governo federal: ascensão e queda. Nexo Jor-
nal. 2022. Disponível em: <https://pp.nexojornal.com.br/linha-do-tempo/2022/Pol%C3%ADticas-para-LGBTI-no-go-
verno-federal-ascens%C3%A3o-e-queda>. Acesso em 26 de outubro de 2022.
19. XAVIER, Getúlio. Para 42% dos brasileiros, discursos de Bolsonaro estimulam a violência, diz PoderData.
Carta Capital, 2022. Disponível em: Para 42% dos brasileiros, discursos de Bolsonaro estimulam a violência, diz Po-
derData - CartaCapital. Acesso em: 14 de novembro de 2022.
17
Os fatos citados são somente exemplos de eleitoral no ano de 2022, se comparado com o
ações tomadas pelo governo - ou pelo Con- ano de 201818.
gresso - que acentuam desigualdades. Essas
O advogado do coletivo de direitos humanos
políticas têm uma repercussão prática na vida
do Movimentos dos Atingidos por Barragens
das pessoas e, são as defensoras e defensores
(MAB)19 e membro da mesa diretora do Con-
de direitos humanos que as denunciam e lutam
para revertê-las. selho Nacional de Direitos Humanos, Leandro
Scalabrin, identifica como violência difusa: “As
Um fator que merece destaque é o aumento de ameaças que você não sabe de onde vai vir o
discursos e ações motivadas pelo ódio às mino- ataque nem quando”.
rias políticas. O presidente da república Jair
Ele exemplifica com o atentado que ocorreu em
Bolsonaro é um agente impulsionador des-
Passo Fundo, Rio Grande do Sul, em novembro
sas violências na medida em que coleciona
de 2018. Um indígena foi baleado, após uma pes-
dezenas de falas públicas de ataque às insti-
tuições, ONGs, mulheres, pessoas LGBTQIA+, soa atirar contra um grupo que estava em fren-
negros, pessoas que vivem em favelas e te a Fundação Nacional do Índio20. Ou seja, uma
periferias, indígenas, quilombolas, entre mi- violência inesperada, pois partiu de uma pessoa
lhares de outros grupos que são vistos como que, até onde se sabe, não tinha relação direta
ameaças à sua política de ódio. com as pessoas que lá estavam.
Brasil, dando força para que pessoas praticas- serem disparados contra janelas e assassina-
sem toda a sorte de preconceitos e violências tos de pessoas que manifestaram sua posição
contra a população. Afinal, se o presidente da política. Esse estado de violência, associado
República fala, todas as pessoas também es- às políticas que retiram direitos, trazem enor-
tão autorizadas a dizer (e fazer) o mesmo. Esse mes consequências para quem defende os
ambiente de violência construído e fortalecido direitos humanos. Segundo Andréia Silvério,
desde as eleições de 2018 resultou em um au- advogada e integrante da Coordenação da
mento de mais de 400% na violência política e Comissão Pastoral da Terra21:
18. TERRA DE DIREITOS e JUSTIÇA GLOBAL. Violência Política e Eleitoral do Brasil. 2022. Disponível em: https://
terradedireitos.org.br/violencia-politica-e-eleitoral-no-brasil/. Acesso em 08 de novembro de 2022
19. MAB. Movimento de Atingidos por Barragens. 2022. Disponível em: MAB - Movimento dos Atingidos por Bar-
ragens. Acesso em 14 de novembro de 2022.
20. DIÁRIO DA MANHÃ. Índio é baleado após discussão em Passo Fundo. Disponível em: https://diariodamanha.
com/noticias/indio-e-baleado-apos-discussao-em-passo-fundo/. Acesso em 26 de outubro de 2022.
21. CPT. Comissão Pastoral da Terra. 2022. Disponível em: Comissão Pastoral da Terra - Início (cptnacional.org.br).
Acesso em 14 de novembro de 2022.
Ou seja, há uma relação entre política pública (ou sua ausência) e a violência que
sofrem as defensoras no território. Sobre isso, Nildon Deleon, advogado da socie-
dade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos diz:
22. MBEMBE, A. Necropolítica. “Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte.” São Paulo: n-1edições
(2018)
19
3. QUATRO
ANOS DE
RESISTÊNCIA:
CONFLITOS E
CONTEXTOS
DE VIOLÊNCIAS
ACOMPANHADOS
PELO COMITÊ
SUPORTE EMERGENCIAL
MISSÕES IN LOCO
23. As informações do quadro são citações diretas do site do Comitê Brasileiro de Defensores e Defensoras de Direi-
tos Humanos. Disponível em: https://comiteddh.org.br/atuacao/ Acesso em 20 de outubro de 2020
21
INCIDÊNCIA POLÍTICA
COMUNICAÇÃO E VISIBILIDADE
Todas essas ações foram desenvolvidas nos últimos quatro anos e tiveram um
papel importante para proteger pessoas, organizações e movimentos sociais em
situação de risco e vulnerabilidade.
24. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Nota de pesar sobre assassi-
nato de Bruno Pereira e Dom Phillips. Junho de 2022. Disponível em: Nota de pesar sobre assassinato de Bruno
Pereira e Dom Phillips – Comitê DDH (comiteddh.org.br). Acesso em 14 de novembro de 2022.
25. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Comitê pede ao Estado prote-
ção para agricultores/as do P. A Areia no Pará. Dezembro de 2028. Disponível em: nota-Areia_14.12.pdf (comite-
ddh.org.br). Acesso em 14 de novembro de 2022.
26. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Sociedade Civil se manifesta
em carta sobre visita ao Brasil do Relator Especial da ONU. Março de 2022. Disponível em: Sociedade Civil se
manifesta em carta sobre visita ao Brasil do Relator Especial da ONU – Comitê DDH (comiteddh.org.br). Acesso em:
14 de novembro de 2022.
27. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Carta aberta a sociedade do
Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos. Julho de 2022. Disponível em: Carta aber-
ta a sociedade do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos – Comitê DDH (comiteddh.
org.br). Acesso em 14 de novembro de 2022.
28. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Nota de repúdio ao Chama-
mento Público para composição do Conselho Deliberativo do PPDDH. 2022. Disponivel em <https://comited-
dh.org.br/wp-content/uploads/2022/03/Nota-de-repudio-ao-Chamamento-Publico-para-composicao-do-Conse-
lho-Deliberativo-do-PPDDH.pdf>. Acesso em8 de novembro de 2022.
23
Neste sentido, o Comitê emitiu
124 notas jornalísticas/
reportagens.
Parte dessa produção de visibilida-
de foi construída em conjunto com
as assessorias de comunicação da
rede de jornalistas das entidades
integrantes do CBDDH.
Também é importante destacar que, ao longo direitos humanos no país. “A extinção dos con-
destes quatro anos de governo da extrema- selhos significa diminuir o espaço de diálogo da
-direita no país, a atuação do Comitê a favor sociedade civil com o governo. É uma diminui-
e defesa das/os defensoras/os de direitos ção do espaço cívico, e eles precisam ser resta-
humanos foi notícia em 346 veículos distin- belecidos”, afirmou.
tos no Brasil, Portugal, Alemanha, Argentina
Neste contexto, o Comitê também participou
e México, sendo veiculada 150 notícias jor- da instalação da Missão de Especialistas Inter-
nalísticas. Somente entre março e maio de nacionais em Direitos Humanos29, que acompa-
2022, foram 30 notícias com menções ao nhou as eleições presidenciais brasileiras no 1º
Comitê e o conjunto de suas organizações turno das Eleições 2022, bem como lançou um
em 77 veículos, em virtude da articulação polí- canal para o recebimento de casos de denún-
tica do CBDDH relacionada a visita do relator da cias sobre violência política30 contra defensoras
ONU sobre direitos à reunião pacífica e liberdade e defensores de direitos humanos no processo
de associação, Clément Nyaletsossi Voule. Nes- eleitoral 2022, além de um Guia de Proteção Prá-
sa visita, que aconteceu em 2022, ele verificou tica à Violência Política Para Defensoras e De-
uma série de problemas e violações na pauta de fensores de Direitos Humanos31.
29. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Comitê participa da Missão
de Especialistas Internacionais em Direitos Humanos. Setembro de 2022. Disponível em: Comitê participa da
Missão de Especialistas Internacionais em Direitos Humanos – Comitê DDH (comiteddh.org.br). Acesso em 14 de
novembro de 2022.
30. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Eleições 2022: DDHs impac-
tados pela violência política podem buscar apoio do Comitê. Agosto de 2022. Disponível em: Eleições 2022:
DDHs impactados pela violência política podem buscar apoio do Comitê – Comitê DDH (comiteddh.org.br). Acesso
em: 14 de novembro de 2022.
31. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Guia prático de proteção à
violência política para defensoras e defensores de direitos humanos. 2022. Disponível em: cbddh_guia_vio-
lencia_politica.pdf (comiteddh.org.br). Acesso em 14 de novembro de 2022.
32. CNJ. Observatório dos Direitos Humanos do Poder Judiciário. Setembro de 2020. Disponível em: Observató-
rio - Portal CNJ. Acesso em: 14 de novembro de 2022.
33. CNJ. Tribunal Regional da 2° Região (TRF2). S/D. Disponível em: Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2)
- Portal CNJ. Acesso em 14 de novembro de 2022.
34. ESPERANZA PROTOCOL. The Esperanza Protocol imagines a future for human rights defenders that is
dignified and hopeful. 2021. Disponível em: Home - The Esperanza Protocol. Acesso em 14 de novembro de 2022.
35. CNJ. Recomendação Nº 128 de 15/02/2022: Recomenda a adoção do “Protocolo para Julgamento com Pers-
pectiva de Gênero” no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. Fevereiro de 2022. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/
atos/detalhar/4377. Acesso em 14 de novembro de 2022.
25
No total, 37 pessoas da rede de 42 organizações do Comitê participaram da ação, sendo 27 defenso-
ras e 9 defensores que atuam em contexto urbano e rural, em lutas sociais por terra/território (as-
sentamento/acampamentos, quilombolas, ocupação urbana, violência nas periferias); igualdade de
gênero e racial (LGBTQI+, mulheres/feminismo); criança e adolescente; defesa dos direitos humanos
(apoio jurídico). O maior número de participantes foi da região Norte (13), seguida do Sudeste (12); Cen-
tro Oeste (5); Nordeste (4) e Sul (3).
Número de participantes
20 Norte
Nordeste
15
Centro-
-oeste
10
Sudeste
5
Sul
0
O curso está disponível com acesso gra- vídeos, leituras complementares, material de
tuito e online. A partir da plataforma digital apoio e emissão de certificado.
(https://curso.comiteddh.org.br), defensoras e
Já as ações do CBDDH referentes aos dados de
defensores de direitos humanos podem realizar casos apoiados pelo suporte emergencial do
de forma autônoma o curso de formação em CBDDH e das missões in loco realizadas serão
proteção integral, dispondo de todas as infor- apresentadas com mais cuidado e de forma
mações dos sete módulos com apresentações, analítica abaixo.
Nos últimos quatro anos, o Comitê concedeu, por meio do suporte emergencial,
no total: 59 apoios, em 15 estados de todo o território nacional. Os 59 apoios
concedidos foram relativos a 52 casos acompanhados pelo CBDDH, uma vez
que em algumas situações foi necessário realizar mais de um apoio. Dentre eles,
29 apoios foram relativos a contextos rurais, 20 do contexto urbano e,
3 onde ambas as dimensões estavam representadas.
Segurança pública/
Desencarceramento Direitos LGBTQIA+
contra violência policial
População em Grandes
Reparação integral
situação de rua empreendimentos
27
• Invasão de casa/sede: em alguns casos essas invasões resultaram em
furto de objetos relacionados ao trabalho de pessoas e suas organizações;
16
14
12
10
8
6
4
2
0
s
tro
Ou
a
da
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ão
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lta
ça
Fa
ea
Am
Dos 52 casos apoiados, sete (7) vivenciam conflitos diretos com grandes empreendi-
mentos36, conforme gráfico abaixo.
Empreendimento
Mineração
militar
28%
29%
Empreendimento Usina
petrolífero hidrelétrica
14% 29%
Os tipos de apoio solicitados nos 52 casos tam- A assessoria jurídica foi também um pedido
bém foram por motivos diversos. Em muitos recorrente, seja para defesa em processos de
contextos, onde a ameaça física esteve presen- criminalização, seja para o acompanhamen-
te, foi necessário apoiar a retirada de pessoas to jurídico de comunidades que tinham seus
de suas casas/territórios. Essa é uma alterna- direitos violados pelas mais diversas razões.
tiva que deve ser usada em última escala, mas O Comitê entende que o acesso à justiça é
se mostrou necessária por 9 vezes. condição fundamental para defesa e prote-
Para outros grupos, foi necessário ter recursos ção de defensoras de direitos humanos e tem
para reforçar a segurança de suas casas ou da se mostrado, cada vez mais, um recurso que
sede de suas organizações com a instalação garante condições para que os DDHs possam
de câmeras de segurança, luzes, grades, enfrentar seus agentes violadores com um
muros, entre outros. suporte técnico.
36. Grandes empreendimentos militares são aqueles onde são construídas estruturas para apoio logístico militar.
29
Outro apoio recorrente foi o de articulação e diante das ameaças. Além disso, é preciso consi-
incidência. Esse apoio permitiu que os DDHs derar o contexto de vulnerabilização das pessoas
participassem de audiências, reuniões com ór- tendo em vista a pandemia global da COVID-19,
gãos públicos ou até mesmo entre seus pares bem como o aumento do desemprego, da extre-
para pensar ações de proteção. Este é um tipo ma pobreza, o fim de programas de aquisição de
de apoio que contribui para enfrentar as causas alimentos da agricultura familiar, que vitimaram,
estruturantes dos conflitos, pois através dele de- em maior medida, pessoas pobres, negras, mu-
fensoras e defensores podem pressionar auto- lheres e comunidades tradicionais.
ridades públicas, denunciar o que acontece em
seus territórios e se fortalecer. Assistência básica é garantia da vida e da con-
tinuidade da militância. Por isso, a ausência
Pedidos para assistência básica, como apoio
destas condições é uma forma de estrangular
com alimentação, transporte, materiais de higiene
a luta de um povo e das comunidades. Isso faz
ou mesmo cuidados com a saúde, foram também
com que as pessoas tenham dificuldades de se
muito recorrentes, o que chama atenção para a
mobilizar, uma vez que estão a maior parte do
vulnerabilidade das condições básicas de sobrevi-
tempo lutando para garantir alimento na mesa
vência dos territórios e DDHs atendidos. Inclusive,
para si e sua família. Além disso, esta realidade
nos casos envolvendo a violência doméstica, onde
sobrecarrega e vulnerabiliza pessoas defenso-
as mulheres agredidas tiveram que recomeçar sua
ras que são expoentes da luta de suas comuni-
vida do zero, esse foi um dos apoios concedidos.
dades, pois elas acabam ficando mais solitárias
Muitas defensoras e defensores de direitos hu- e em evidência, tornando-se alvos prioritários
manos têm dificuldade de prover seu sustento dos ameaçadores.
18
16
14
12
10
8
6
4
2
0
Assistência Equipamento e Condições para Articulação e/ Assessoria Outros
básica infraestrutura retirada do ou incidência jurídica
de segurança território
E
ntre 2019 e 2022, o Comitê realizou 8 mis- não realizou missões devido a pandemia da
sões em diferentes territórios no Brasil, Covid-19. As missões visam colaborar para a in-
com a finalidade de escutar demandas rela- cidência política, fortalecer as comunidades e
cionadas a medidas protetivas, articular possí- territórios, além de ser um espaço para denun-
veis apoios e documentar violações de direitos ciar e visibilizar os conflitos. Abaixo, uma sínte-
humanos. Apenas no ano de 2020, o Comitê se de cada uma delas.
2019
31
MISSÃO COMUNIDADES DO TERRITÓRIO
GERAIZEIROS DO ALTO RIO PRETO – FORMOSA DO
RIO PRETO/BA
Data: outubro/2019
BAHIA
Local: Formosa Rio Preto/BA
2021
2022
33
MISSÃO AO TERRITÓRIO INDÍGENA PATAXÓ/BA
Data: outubro/2022
35
O crime chocou a opinião pública
e os movimentos sociais não só
pela frieza e brutalidade com o qual
foram praticados, mas também pela
morte de Dilma Ferreira
37. MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARÁ. MPPA oferece denúncia contra acusados da “Chacina de Baião”. Julho de
2019. Disponível em: https://www2.mppa.mp.br/noticias/mppa-oferece-denuncia-contra-acusados-da-chacina-
-de-baiao.htm.Acesso em 06 de outubro de 2022.
38. CAMARGOS, Daniel. Queima de arquivo de trabalhadores ‘que sabiam demais’: os seis mortos da Cha-
cina de Baião. Repórter Brasil. S/D. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/covamedida/historia/baiao-pa/.
Acesso em 06 de outubro de 2022.
39. MOVIMENTO DE ATINGIDOS POR BARRAGEM. Dois anos após morte de Dilma Ferreira, ato é realizado no
assentamento onde viveu em Baião (PA). Março de 2021. Disponível em: Dois anos após morte de Dilma Ferreira,
ato é realizado no assentamento onde viveu em Baião (PA) (mab.org.br). Acesso em: 15 de novembro de 2022.
40. MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARÁ. MPPA oferece denúncia contra acusados da “Chacina de Baião”. Julho de
2019. Disponível em: https://www2.mppa.mp.br/noticias/mppa-oferece-denuncia-contra-acusados-da-chacina-
-de-baiao.htm.Acesso em 06 de outubro de 2022.
41. CAMARGOS, Daniel. Queima de arquivo de trabalhadores ‘que sabiam demais’: os seis mortos da Chaci-
na de Baião. Repórter Brasil. S/D. Disponível em: <https://reporterbrasil.org.br/covamedida/historia/baiao-pa/>.
Acesso em 06 de outubro de 2022.
37
Suspeita-se ainda que, eles também sabiam de práticas criminosas de Fernan-
dinho, especialmente, no tocante a sua ligação com o tráfico de drogas:
42. Trecho da entrevista com Andréia Silvério, advogada e membro da coordenação da Comissão Pastoral da Terra.
43. CONSELHO NACIONAL DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA HUMANA. Sumário executivo do relatório da
Comissão Especial “Atingidos por Barragens”. 2006. Disponível em: https://mab.org.br/publicacao/relatorio-
-violacao-de-direitos-das-populacoes-atingidas-cddph/. Acesso em: 15 de novembro de 2022.
Na primeira década dos anos 2000, Dilma se exercia o cultivo efetivo no assentamento, co-
mudou para o Assentamento Salvador Allen- laborava de forma ativa no processo de orga-
de, que se constituiu a partir da ocupação nização popular no município de Baião (PA).
da antiga fazenda Piratininga, desapropriada Ela era casada, mãe e ativista. O seu assassi-
em 2011, ano em que o Assentamento foi for- nato foi um recado para as defensoras de di-
malizado. Dilma, além de lutar na defesa dos reitos humanos na Amazônia e, também para
direitos humanos das famílias atingidas por as mulheres, a quem é destinado uma violên-
barragens, era assentada da reforma agrária, cia ainda mais brutal.
44. MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS. A nossa luta é pela vida. Chega de Impunidade. 2019.
Disponível em: A NOSSA LUTA É PELA VIDA: CHEGA DE IMPUNIDADE! - MAB - Movimento dos Atingidos por Barra-
gens. Acesso em 15 de novembro de 2022.
39
Segundo informe do relator especial sobre defensoras e defensores de direitos
humanos da ONU, as mulheres defensoras estão sujeitas a riscos e violências
específicas por serem mulheres45, tais como:
Riscos, ameaças e
Não reconhecimento, Descrédito social, ataque
ataques em âmbito
estigmatização e exclusão a honra e estigmatização
privado e contra familiares
Por mais que essas violências brutais não sejam mulher e liderança local, que foi assassinada pelo
exclusivas contra mulheres defensoras, elas são incômodo que sua luta causava, tenha sido a úni-
especialmente direcionadas a elas a depender do ca das 6 vítimas que teve sua garganta cortada.
contexto. Como afirmou Jaqueline Damasceno,
advogada e integrante do MAB: “contra as mulhe- O ódio direcionado nos crimes contra as mulhe-
res, há uma forma de assassinato que tem como res foi identificado no Mapa da Violência contra
objetivo o silenciamento”. É simbólico que Dilma, as Mulheres, de 201546. Na pesquisa, foi diagnosti-
45. CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS (ONU). Informe do relator especial sobre a situação de defensoras e
defensores de direitos humanos. Apresentado no 40º período de sessões do Conselho de Direitos Humanos da
ONU. A/HRC/47/53. Tradução livre. Disponível em: https://www.ohchr.org/es/hr-bodies/hrc/regular-sessions/ses-
sion47/list-reports. Acesso em 9 de novembro de 2022.
46. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil. Flasco. Brasília, 2015.
Disponível em: https://oig.cepal.org/pt/documents/mapa-da-violencia-2015-homicidio-mulheres-no-brasil Acesso
em: 09 de novembro de 2021
41
O Conselho indigenista Missionário (Cimi) identificou “violências inimagináveis,
cruéis e desumanas” contra povos indígenas em 2021, destaca o relatório “Violên-
cia Contra os Povos Indígenas no Brasil” 47. A brutalidade da violência presente nos
casos relatados no dossiê por si só já deveria ser capaz de mobilizar o Estado e as
instituições para intervir de forma imediata em prol da segurança e proteção dos
povos indígenas. Mas, o que se percebe na prática é justamente o contrário, seja
para os povos indígenas, seja no que envolve o assassinato de Dilma Ferreira e a
“Chacina de Baião”.
47. PALOSCHI, Dom Roque. Relatório – Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – CIMI – Conselho Indige-
nista Missionário. 2021. Disponível em: relatorio-violencia-povos-indigenas-2021-cimi.pdf. Acesso em: 15 de novem-
bro de 2022.
48. BRASIL. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 81, DE 5 DE JUNHO DE 2014. Casa Civil, 2014. Disponível em: Emenda
Constitucional nº 81 (planalto.gov.br). Acesso em 15 de novembro de 2022.
Os exploradores de madeira ilegal também têm autorização de exportação de madeira sem cer-
tido muita permissibilidade e incentivo para tificação, fato que culminou inclusive no afas-
suas ações nos últimos anos quatro anos, con- tamento do presidente do IBAMA, contribuíram
forme revela relatório da Human Rights Watch52. para esse cenário.
49. BRASIL ECONÔMICO. Bolsonaro minimiza trabalho escravo e diz que fazendeiro não pode perder terras.
Novembro de 2020. Disponível em: Bolsonaro minimiza trabalho escravo e diz que fazendeiro não pode perder terras
- Economia - iG. Acesso em: 15 de novembro de 2022.
50. BRASIL ECONÔMICO. Bolsonaro minimiza trabalho escravo e diz que fazendeiro não pode perder terras.
Novembro de 2020. Disponível em: https://economia.ig.com.br/2020-11-13/bolsonaro-minimiza-trabalho-escravo-e-
-diz-que-fazendeiro-nao-pode-perder-terras.html. Acesso em 14 de outubro de 2022.
51. REPÓRTER BRASIL. Sete candidatos à Presidência e 15 aos governos estaduais assinam Carta-Compro-
misso contra o Trabalho Escravo nas eleições de 2022. Setembro de 2022. Disponível em: https://reporterbrasil.
org.br/2022/09/sete-candidatos-a-presidencia-e-15-aos-governos-estaduais-assinam-carta-compromisso-con-
tra-o-trabalho-escravo-nas-eleicoes-de-2022/. Acesso em 14 de outubro de 2022.
52. HUMAN RIGHTS WATCH. Máfias do Ipê. Como a Violência e a Impunidade Impulsionam o Desmatamen-
to na Amazônia Brasileira. Setembro de 2019. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/report/2019/09/17/333519.
Acesso em: 14 de outubro de 2022.
53. WEMECK, Felipe. Arquitetura da Devastação: Sob Bolsonaro, Destruição de equipamentos usados em
crimes contra meio ambiente cai 50%. Abril de 2020. Disponível em: https://theintercept.com/2020/04/27/bol-
sonaro-destruicao-maquinas-crimes-meio-ambiente/. Acesso em 06 de setembro de 2022.
43
O desmonte de órgãos de fiscalização ambiental é uma marca da gestão
Bolsonaro e isso tem um custo alto para o meio ambiente e para as pessoas
que vivem em áreas de interesse de madeireiros e grileiros de terras. Essas
ações, falas e medidas do governo abriram caminho para grilagem de ter-
ras, desmatamento e exploração de madeira na Amazônia e também contri-
buíram para a territorialização do tráfico de drogas na região, como apurou
investigação da Agência Pública”54.
Segundo reportagem, entre 2019 e 2021, mais Passados mais de três anos do assassinato de
de 2 mil toneladas de narcóticos apreendidos Dilma Ferreira, famílias seguem sendo expulsas e
pela Polícia Federal no porto de Santos, em São mortas em Baião, no Pará. Segundo denúncias, em
Paulo, foram encontradas em produtos de ori- 2022, outro assassinato ocorreu no mesmo local e,
gem extrativista. A reportagem entrevistou o famílias que estavam acampadas nas proximida-
geógrafo Aila Couto , que afirmou que segu-
55
des da fazenda de Fernandinho, foram despejadas
rança pública e meio ambiente devem ser ana- com forte violência. Ainda, diante de fortes evidên-
lisados de forma integrada, que os discursos do cias de grilagem de terras, exploração de madeira
governo “potencializou o crescimento do crime e tráfico de drogas na região, famílias sem-terra
organizado na Amazônia hoje” e que “o crime seguem sem terras, ameaçadas e aterrorizadas
organizado tem que ser entendido para além da por agentes privados e armados.
sigla PCC e Comando Vermelho, por exemplo,
Dilma morreu por ser uma ativista defensora do
há grupos que se envolvem no garimpo ilegal,
meio ambiente que luta por terra e dignidade
na grilagem de terras, na extração ilegal de ma-
para população sem-terra. Os três funcionários
deira, no contrabando de ouro, na invasão de
morreram por exigirem melhores condições de
terras indígenas”56.
trabalho. Todos lutavam por direitos, cons-
Embora a pesquisa e a reportagem acima citadas titucionalmente assegurados, e morreram
não tratem do caso que envolveu o assassinato por isso. Honrar suas vidas e fazer justiça
de Dilma, elas evidenciam elementos que devem para eles envolve a prisão dos mandantes e
servir de alerta e influenciar nas políticas públicas executores do crime, como também envolve
para combater violências contra defensores de di- enfrentar todas as causas que os motivaram
reitos humanos na Amazônia e no Brasil. para que eles não mais se repitam.
54. BARROS, Ciro. A íntima relação entre cocaína e madeira ilegal na Amazônia. Pública. Agosto de 2021. Dis-
ponível em: https://apublica.org/2021/08/a-intima-relacao-entre-cocaina-e-madeira-ilegal-na-amazonia/. Acesso
em: 14 de outubro de 2022.
55. BARROS, Ciro. A íntima relação entre cocaína e madeira ilegal na Amazônia. Pública. Agosto de 2021. Dis-
ponível em: https://apublica.org/2021/08/a-intima-relacao-entre-cocaina-e-madeira-ilegal-na-amazonia/. Acesso
em: 14 de outubro de 2022.
56. Trecho da entrevista de Aila Couto, geógrafo da Universidade Estadual do Pará e pesquisador do Fórum Brasi-
leiro de Segurança Pública. A íntima relação entre cocaína e madeira ilegal na Amazônia. Pública. Agosto de
2021. Disponível em: https://apublica.org/2021/08/a-intima-relacao-entre-cocaina-e-madeira-ilegal-na-amazonia/.
Acesso em 14 de outubro de 2022.
45
A Gleba Bacajá57, terra pública federal, é
uma área de cerca de 80 mil hectares,
criada em 1983, localizada no município de
no protagonismo do conflito. A família Peixoto
busca se apossar da terra pública e tem, contra
si, diversas denúncias de ameaças, incêndios
Anapu, no sul do Pará, e palco de intensos con- criminosos de residências, desmatamento e
flitos fundiários que já resultaram em uma série extração ilegal de madeira59.
de violências, ameaças e assassinatos, atingin-
do pessoas que lutam pela posse da terra e pela Em que pese ser um conflito histórico, o caso do
reforma agrária. O município de Anapu ficou lote 96 da Gleba Bacajá vive uma intensificação
marcado nacionalmente pelo assassinato da do processo de violência desde 2019, quando
líder religiosa Dorothy Stang58, em 2005. E des- uma das lideranças da região, o defensor Eras-
de essa marca vem colecionando casos e mais mo Theofilo, sofreu uma tentativa de assassinato.
casos de conflitos por terra, protagonizados, so- Neste mesmo ano, duas outras lideranças foram
bretudo, por fazendeiros e grileiros interessados assassinadas: Márcio dos Reis e Paulo Anacleto.
em se apropriar das terras públicas federais, que
Márcio foi assassinado em uma emboscada
deveriam ser destinadas para o assentamento
e era uma das pessoas que levava ao público
de trabalhadores e trabalhadoras rurais.
a luta pela reforma agrária da região e estava
Esse é o caso do lote 96, da Gleba Bacajá, de denunciando uma das principais táticas de
aproximadamente 4 mil hectares, que ganhou intimidação utilizadas no lote 96, os incêndios
visibilidade no cenário nacional diante do criminosos de residências e benfeitorias dos/
acirramento da violência nos últimos tempos. as trabalhadores/as. Anacleto foi assassinado
Trata-se de um conflito que se arrasta há pelo em seguida, pois afirmava saber quem era
menos 10 anos, envolvendo 54 famílias de agri- o fazendeiro suspeito de assassinar Márcio.
cultores e agricultoras familiares de um lado - Tanto Márcio quanto Anacleto eram amigos de
que travam uma batalha para a criação de um Erasmo que, em 2020, sofreu um novo atentado
Assentamento de Reforma Agrária na área e, de e precisou deixar Anapu, junto com a sua família,
outro, um fazendeiro, denominado Peixoto, que com o apoio do Programa de Proteção de Defen-
faleceu no ano de 2022, mas deixou uma família sores/as de Direitos Humanos60 e do CBDDH.
57. DOMENICI, Thiago. Na terra de Dorothy Stang, o líder ameaçado pede socorro novamente. Agência Públi-
ca. Abril de 2021. Disponível em: https://apublica.org/2021/04/na-terra-de-dorothy-stang-lider-ameacado-pede-so-
corro-novamente/ . Acesso em: 07 de outubro de 2022.
58. Para saber mais sobre Dorothy Stang: BARBOSA, Catarina. Dorothy Stang, dez anos de impunidade na Ama-
zônia. CPT. 2015. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/multimidia/12-noticias/conflitos/2382-dorothy-s-
tang-dez-anos-de-impunidade-na-amazonia Acesso em: 09 de novembro de 2022
59. Idem ao 29
60. DOMENICI, Thiago. Quem é um dos dez suspeitos de queimar casas e ameaçar agricultores no Pará.
Pública. Junho de 2022. Disponível em:https://apublica.org/2022/06/quem-e-um-dos-dez-suspeitos-de-queimar-
-casas-e-ameacar-agricultores-no-para/. Acesso em: 07 de outubro de 2022.
61. A Defensoria Pública do Estado do Pará ingressou com uma ação de reintegração de posse contra o fazendeiro
Antônio Borges Peixoto, que foi sentenciado a favor do fazendeiro no ano de 2022. Apesar da sentença conferir posse
ao fazendeiro, reconhece que se trata de uma terra pública federal que deveria ser destinada para a reforma agrária.
Contra a sentença foi interposto o recurso de apelação, que tramita no Tribunal de Justiça do Estado do Pará.
62. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Assassinatos no Campo. 2021. Disponível em: https://www.cptnacional.org.
br/downlods/category/5-assassinatos?start=0. Acesso em: 07 de outubro de 2022.
47
Gleba Bacajá - Anapu
80 mil hectares | Terra pública federal
4 pessoas 16 pessoas
assassinadas assassinadas
63. Trecho extraído das entrevistas com integrantes da Sociedade Paraense de Direitos Humanos - SDDH.
64. DOMENICI, Thiago. Quem é um dos dez suspeitos de queimar casas e ameaçar agricultores no Pará.
Pública. Junho de 2022. Disponível em:https://apublica.org/2022/06/quem-e-um-dos-dez-suspeitos-de-queimar-
-casas-e-ameacar-agricultores-no-para/. Acesso em: 07 de outubro de 2022.
homens que teria participado da ação: Bergues do então presidente Bolsonaro, são em prol da
facilitação do acesso a armas no Brasil. Desde a
Chaves, possuía registro e autorização para uso
eleição de 2018, o presidente realizou a alteração
de arma de fogo (arma RT627, da marca Taurus) -
do Estatuto do Desarmamento66 (Lei 10.826/03)
expedida pelo Ministério de Justiça e Segurança
por cinco vezes, editando pelo menos 40 atos
Pública - expedido apenas dois meses antes do normativos e decretos67, cujo objetivo foi a facili-
episódio aqui relatado. tação para aquisição e registro de armas de fogo.
65. Idem
66. ARAÚJO. Janaína. Mudanças no Estatuto do Desarmamento podem ser debatidas no Senado em 2022.
Rádio Senado. Janeiro de 2022. Disponível em: Mudanças no Estatuto do Desarmamento podem ser debatidas no
Senado em 2022 — Rádio Senado. Acesso em 15 de novembro de 2022.
67. LACERDA, Nara. Flexibilização de armas na gestão Bolsonaro é responsável pela morte de mais de 6
mil pessoas. Brasil de Fato. Setembro de 2022. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/09/30/flexi-
bilizacao-de-armas-na-gestao-bolsonaro-e-responsavel-pela-morte-de-mais-de-6-mil-pessoas. Acesso em: 11 de
outubro de 2022.
68. CERQUEIRA, Daniel et al. Armas de fogo e homicídios no Brasil. Sumário Executivo. Fórum Brasileiro de Segu-
rança Pública, 2022. Disponível em: sumario-executivo-armas-fogo-homicidios-no-brasil.pdf (forumseguranca.org.
br). Acesso em: 11 de outubro de 2022.
69. DOMENICI, Thiago. Na terra de Dorothy Stang, o líder ameaçado pede socorro novamente. Agência Públi-
ca. Abril de 2021. Disponível em: https://apublica.org/2021/04/na-terra-de-dorothy-stang-lider-ameacado-pede-so-
corro-novamente/. Acesso em 11 de outubro de 2022.
49
4.2.2. O ESTRANGULAMENTO DA POLÍTICA DE REFORMA
AGRÁRIA E O INCENTIVO À GRILAGEM DE TERRAS
70. A destinação prioritária das terras públicas e devolutas para a implementação da política de reforma agrária
está prevista no art. 188 da Constituição Federal.
71. A ação ingressada pelo Ministério Público Federal tramita na Subseção Judiciária de Altamira - Pará sob o nº
1003495-97.2020.4.01.3903 e foi sentenciada em 16 de maio de 2022.
72. BRASIL. Portaria nº 1.319, de 28 de junho de 2022, que cria, no município de Anapu-PA, o Projeto de As-
sentamento Irmã Dorothy Stang, e prevê a criação de 73 (setenta e três) unidades agrícolas familiares.
Diário Oficial da União. Junho de 2022. Disponível em: PORTARIA-Nº-1.319-DE-28-DE-JUNHO-DE-2022-PORTARIA-Nº-
-1.319-DE-28-DE-JUNHO-DE-2022-DOU-Imprensa-Nacional.pdf (cartacapital.com.br). Acesso em: 15 de novembro de
2022.
73. BRASIL, Repórter. Leia as respostas do Incra e da Segup sobre a onda de ataques ao Lote 96, em Anapu
(PA). Repórter Brasil. Agosto de 2022. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2022/08/leia-as-respostas-do-in-
cra-e-da-segup-sobre-a-onda-de-ataques-ao-lote-96-em-anapu-pa/. Acesso em: 12 de outubro de 2022.
74. BRASIL. DECRETO Nº 10.252, DE 20 DE FEVEREIRO DE 2020. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro De-
monstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária - Incra, e remaneja cargos em comissão e funções de confiança. Diário Oficial da União. Fevereiro de 2020.
Disponível em: DECRETO Nº 10.252, DE 20 DE FEVEREIRO DE 2020 - DECRETO Nº 10.252, DE 20 DE FEVEREIRO DE 2020
- DOU - Imprensa Nacional (in.gov.br). Acesso em: 15 de novembro de 2022.
Esse decreto, além de burocratizar o procedi- dio foi desapropriado para fins de reforma agrá-
mento de criação de assentamentos, alterou a ria e, encontram-se, abandonados pelo INCRA
competência do Incra , e extinguiu a Coordena-
75
mais de 600 processos administrativos e judi-
ção de Educação no Campo, responsável pelo ciais de desapropriação.
Programa Nacional de Educação e Reforma
O desmonte da reforma agrária está expresso
Agrária76. Este é apenas um exemplo do des-
também no sufocamento orçamentário do IN-
monte da política de reforma agrária implemen-
CRA nos últimos períodos. Em 2021, o orçamen-
tado pelo governo de extrema-direita, que gover-
to do Incra foi praticamente reduzido a zero80,
nou o país entre 2019 e 2022.
principalmente, em relação às ações de distri-
Segundo nota técnica 77
elaborada pelo Movi- buição de terras e melhorias de assentamen-
mento Sem Terra 78
em parceria com a Asso- tos. Em 2022, o INCRA chegou a cortar até suas
ciação de Advogados de Trabalhadores Rurais atividades de campo em virtude da ausência
(AATR ), no governo Bolsonaro nenhum latifún-
79
de recursos81. Não bastasse isso, a edição da
75. O Decreto retirou do Incra, transferindo para o Mapa, a competência para a destinação de terras públicas, e a
seleção de famílias a serem beneficiárias da política de reforma agrária
76. PAZ, Walmaro. Com decreto de Bolsonaro, Ministério da Agricultura assume atribuições do Incra. Brasil
de Fato. Fevereiro de 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/02/28/com-decreto-de-bolsona-
ro-ministerio-da-agricultura-assume-atribuicoes-do-incra Acesso em: 12 de outubro de 2022.
77. MST e AATR. Nota Técnica: Análise das recentes alterações nas normativas da política de reforma agrá-
ria e o caso do Extremo Sul da Bahia. 2021. Disponível em: https://www.aatr.org.br/publicacoes-proprias Acesso
em: 12 de outubro de 2022.
78. MST. Página Inicial. S/D. Disponível em: Página inicial - MST. Acesso em: 15 de novembro de 2022.
79. AATR. Quem Somos. Disponível em: Quem somos | AATR. Acesso em: 15 de novembro de 2022.
80. BRAGON, Ranier. Bolsonaro incrementa verba para ruralistas e reduz quase a zero a reforma agrária.
Folha de São Paulo. Setembro de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/09/bolsonaro-in-
crementa-verba-para-ruralistas-e-reduz-quase-a-zero-a-reforma-agraria.shtml . Acesso em: 12 de outubro de 2022.
81. SINTRAJUFE. Sem verbas, Incra suspende atividades externas; sindicalista denuncia política de desmon-
te. Sintrajufe. Maio de 2022. Disponível em: https://sintrajufe.org.br/ultimas-noticias-detalhe/sem-verbas-incra-sus-
pende-atividades-externas-sindicalista-denuncia-politica-de-desmonte/ . Acesso em: 12 de outubro de 2022.
51
Lei 13.465/201782 no Governo Temer, associada ao Decreto 10.592/20, à criação
do Programa Titula Brasil83 e às Instruções Normativas 104 e 105 do Incra, têm
favorecido a lógica de titulação individual de terras, implementando processos
de regularização fundiária que privilegiam invasores de terras públicas, favore-
cendo e incentivando a grilagem de terras84.
82. BRASIL. LEI Nº 13.465, DE 11 DE JULHO DE 2017. Presidência da República. Julho de 2017. Disponível em: L13465
(planalto.gov.br). Acesso em: 15 de novembro de 2022.
83. O Programa Titula Brasil foi criado pela Portaria Conjunta nº 01/Seaf/Incra e municipaliza as ações de regulariza-
ção fundiária, facilitando o processo de privatização de terras públicas.
84. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Nota Pública - Mais um instrumento para legalizar terras griladas. CPT.
Fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/geral/5528-nota-publica-
-mais-um-instrumento-para-legalizar-terras-griladas. Acesso em: 12 de outubro de 2022.
53
O
Condomínio Estrondo87, antiga Fazenda nacional”. Essa exaltação reflete o pleno alinha-
Estrondo, localizado no município de For- mento do agronegócio com a política ambien-
mosa do Rio Preto, no extremo oeste baiano, é tal bolsonarista, sustentada pela ausência de
composto por várias propriedades rurais que regulações, fiscalizações ou qualquer tipo de
totalizam uma área de 444 mil hectares. Com controle sobre o avanço dos grandes projetos
uma dimensão maior que duas vezes o municí- agropecuários sobre o meio ambiente brasileiro,
pio de São Paulo, é administrada por 41 arrenda- somadas ao desprezo por povos indígenas, qui-
lombolas e outras comunidades tradicionais.
tários, dentre os quais 22, são empresas produ-
toras de soja, algodão e milho para exportação. Do outro lado, o caso do Condomínio Estrondo,
O megaempreendimento, entretanto, acumula em conflito com as comunidades geraizeiras,
pontos por reunir uma grande quantidade de expõe a outra face do agronegócio. Os proces-
violações de direitos e por protagonizar um sos de resistências no Alto Rio Preto revelam a
conflito emblemático envolvendo as comuni- face da vergonha ao denunciar, inclusive no ce-
dades geraizeiras do Alto Rio Preto, tornando-o nário internacional, a relação entre a origem da
um exemplo completo de todo o receituário que soja e do algodão com conflitos socioambien-
tais e violências.88 As geraizeiras/os do Alto Rio
envolve o agronegócio e as violências e crimes
Preto resistem, ao longo do tempo, ao processo
socioambientais associados.
de avanço dos empreendimentos e fazendas
Nas palavras do então Presidente Jair Bolsona- sob seus territórios, considerados historicamen-
ro, pronunciada em discurso na Assembleia das te pelos setores privados e pelo poder público
Nações Unidas, “o nosso agronegócio é orgulho como vazios, de gente e de riqueza.
85. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Discurso do Presidente da República, Jair Bolsonaro, na “Abertura do De-
bate Geral da 77ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas – AGNU”. Setembro de 2022. Disponível
em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2022/discurso-do-presidente-da-repu-
blica-jair-bolsonaro-na-abertura-do-debate-geral-da-77a-sessao-da-assembleia-geral-das-nacoes-unidas-agnu.
Acesso em: 12 de outubro de 2022.
86. AGRONEGÓCIO ESTRONDO. Página Inicial. S/D. Disponível em: Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estron-
do (agronegocioestrondo.com.br). Acesso em 15 de novembro de 2022.
87. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Discurso do Presidente da República, Jair Bolsonaro, na “Abertura do De-
bate Geral da 77ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas – AGNU”. Setembro de 2022. Disponível
em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2022/discurso-do-presidente-da-repu-
blica-jair-bolsonaro-na-abertura-do-debate-geral-da-77a-sessao-da-assembleia-geral-das-nacoes-unidas-agnu.
Acesso em: 12 de outubro de 2022.
88. THE GUARDIAN. UK supermarkets could still be buying meat linked to deforestation in Brazil, report
suggests. Julho de 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/environment/2022/jul/11/uk-supermarke-
ts-could-still-be-buying-meat-linked-to-deforestation-in-brazil-report-suggests. Acesso em: 12 de outubro de 2022.
Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo: Área grilada: 444 mil hectares; Municípios
abrangidos: Formosa do Rio Preto, Riachão das Neves, Luís Eduardo Magalhães, Barreiras, São
Desidério, Correntina, Jaborandi, Cocos e Baianópolis. As terras estão localizadas às margens do Rio
Preto, na divisa entre Bahia e Tocantins, região que integra a fronteira agrícola do MATOPIBA.
Envolvidos no caso: Walter Yukio Horita, empresário do agronegócio considerado o maior planta-
dor individual de algodão do mundo, réu na Operação Faroeste; Ronald Guimarães Levinsohn, empre-
sário já falecido, suas duas filhas herdeiras, Claudia Vieira Levinsohn e Priscilla Vieira Levinsohn, que
exercem o controle das três empresas que reivindicam a propriedade das terras: Delfim Crédito Imo-
biliário S/A, Colina Paulista S/A e Companhia de Melhoramentos do Oeste da Bahia (CMOB); Bunge
e Cargill, multinacionais com silos no empreendimento; Estrela Guia, empresa privada de segurança
contratada pelo empreendimento; Sergio Humberto Quadros Sampaio, juiz de direito, aposentado
compulsoriamente, réu na Operação Faroeste.
89. Fontes utilizadas: GREENPEACE. Exterminador do futuro: Estrondo inicia desmatamento gigante no Cer-
rado. Setembro de 2021. Disponível em: https://www.greenpeace.org/brasil/blog/exterminador-do-futuro-condo-
minio-estrondo-inicia-desmatamento-gigante-no-cerrado/. Acesso em 25 outubro 2022;
55
O caso desde 1999 é apontado pelo Instituto Na- contra as comunidades tradicionais e posseiros
cional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) da região. O Cerrado é o segundo maior bioma
como a maior grilagem de terras no país, com os do Brasil92, no qual se concentra a maior biodi-
444 mil hectares em títulos falsificados pelas em- versidade do planeta, além de ser o berço de
presas , que se sobrepõem violentamente ao ter-
90
bacias hidrográficas vitais mas, apesar disso,
ritório geraizeiro do Alto Rio Preto. Soma-se a isso sua importância é invisibilizada, de forma que
um histórico de desmatamentos sem licencia- mais de 50% de sua área já foi desmatada93 para
mento ambiental, ou com licenças questionáveis, dar espaço à pecuária e monocultura de soja,
multas milionárias não pagas, o descumprimen- cana-de-açúcar e algodão94. Dados do Instituto
to da reserva legal de 20% (área de vegetação na- Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) atestam
tiva obrigatória), o uso de mão de obra em condi- que, apenas do ano 2020 a 2022, mais de 16 mil
ções análogas à escravidão, conforme operação hectares foram devastados95, refletindo o inten-
conjunta do Ministério Público do Trabalho (MPT) so avanço da agropecuária sobre a região.
e da Polícia Federal (PF) que, em 2009, resgatou
Segundo Jamilton Magalhães, membro da a
91 trabalhadores em duas fazendas da Estrondo91
Associação dos Fundos e Fecho de Pasto do
Essa exorbitância de irregularidades compõe Oeste da Bahia, existe relação entre o desma-
o cenário de avanço de empresas transnacio- tamento e a morte de nascentes, o envenena-
nais do agronegócio sobre o bioma do Cerrado, mento das águas por agrotóxicos, as ameaças
avanço este caracterizado em essência pelo e expulsões dos verdadeiros donos das áreas
desmatamento ilegal e violências perpetradas remanescentes do cerrado.96 Sua fala resume a
90. AATR. Segurança da Fazenda Estrondo invade território e atira contra geraizeiros em Formosa do Rio
Preto. Maio de 2021. Disponível em: https://www.aatr.org.br/post/seguran%C3%A7a-da-fazenda-estrondo-invade-
-territ%C3%B3rio-e-atira-contra-geraizeiros-em-formosa-do-rio-preto. Acesso em 12 de outubro de 2022.
91. CARVALHO, Igor. Fazenda símbolo de grilagem sofre derrota “emblemática” e perde área para geraizei-
ros. Brasil de Fato. Julho de 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/10/fazenda-simbolo-de-
-grilagem-sofre-derrota-emblematica-e-perde-area-para-geraizeiros. Acesso em: 12 de outubro de 2022.
92. DE SANTI, Maurício. Cerrado é o segundo maior bioma do país, presente em 24% do território nacional.
Rádio Senado. Maio de 2018. Disponível em: Cerrado é o segundo maior bioma do país, presente em 24% do território
nacional — Rádio Senado. Acesso em 15 de novembro de 2022.
93. AATR. Estudo “ Legalizando o ilegal” é lançado. Outubro de 2020. Disponível em: Estudo “ Legalizando o ilegal”
é lançado (aatr.org.br). Acesso em: 15 de novembro de 2022.
94. BONFIM, Joice; ASSUMPÇÃO, Débora, BORGES, Juliana; CORREIA, Mauricio Correia; COELHO, COELHO, Silvia
Helena. Legalizando o ilegal: legislação fundiária e ambiental e a expansão da fronteira agrícola no Ma-
topiba. Salvador: AATR, 2020. Disponível em: https://www.aatr.org.br/post/matopiba-estudo-sobre-institucionaliza%-
C3%A7%C3%A3o-da-grilagem-%C3%A9-lan%C3%A7ado. Acesso em 12 de outubro de 2022.
95. Idem 5.
96. AATR. Rastro de destruição da soja no cerrado brasileiro é denunciado ao parlamento Europeu. Agosto
de 2022. Disponível em: https://www.aatr.org.br/post/rastro-de-destrui%C3%A7%C3%A3o-da-soja-no-cerrado-bra-
sileiro-%C3%A9-denunciado-ao-parlamento-europeu. Acesso em: 12 de outubro de 2022.
As comunidades geraizeiras do Alto Rio Preto A luta dessas comunidades envolveu além do en-
ocupam hoje as regiões de vales e baixadas, frentamento ao empreendimento e especulado-
áreas menos valorizadas pelo agronegócio, onde res, a necessidade de organização para proteção
foram confinadas pelos processos de grilagem, das áreas de posse tradicional ainda não invadi-
das e desmatadas, onde as famílias fazem uso e
apropriação e desmatamento das terras de uso
manejo para o pastoreio do gado, extrativismo e
comum dos gerais (denominação tradicional, na
outras práticas compatíveis com a conservação
região, dos chapadões livres das cercas). As cha-
da biodiversidade e das águas do Cerrado. Essas
padas são as áreas mais cobiçadas pelo agro- áreas de vales e baixadas, nas quais mantiveram
negócio, por conta do tipo de solo, por serem suas tradições, coincidem com as áreas preserva-
planas, permitindo a mecanização em grandes das do Cerrado e que hoje passam pela chamada
extensões e pelo alto nível de pluviosidade. grilagem verde.98 De acordo com a AATR:
[…] após vários anos de abandono dos esquemas de grilagem sobre estas áreas, elas
passaram a ser novamente cobiçadas diante de uma nova possibilidade de lucro: a gri-
lagem verde, ou seja, a apropriação ilegal de terras com vegetação nativa com objetivo
específico de averbá-las como reserva legal de outros imóveis ou mesmo recebimento
de valores de créditos de carbono, possibilidades abertas pelo Código Florestal de 2012.99
97. TRIBUNAL PERMANENTE DOS POVOS EM DEFESA DOS TERRITÓRIOS DO CERRADO. Caso nº9 • BA – Comunida-
des Tradicionais Geraizeiras X Condomínio Cachoeira Estrondo. S/D. Disponível em: https://tribunaldocerrado.
org.br/casos/caso-no9-ba-comunidades-tradicionais-geraizeiras-x-condominio-cachoeira-estrondo/. Acesso em 12
de outubro de 2022.
98. AGUIAR, Diana; BONFIM, Joice; CORREIA, Mauricio. Na Fronteira da (I)legalidade: Desmatamento e grilagem
no Matopiba. Salvador: AATR, 2021. Disponível em: https://www.matopibagrilagem.org/. Acesso em 12 out. 2022.
99. AATR. Rastro de destruição da soja no cerrado brasileiro é denunciado ao parlamento Europeu. Agosto de
2022. Disponível em: <https://www.aatr.org.br/post/rastro-de-destrui%C3%A7%C3%A3o-da-soja-no-cerrado-brasilei-
ro-%C3%A9-denunciado-ao-parlamento-europeu>. Acesso em 12 de outubro de 2022.
57
Segundo Maurício Correia, advogado da AATR, essa forma de grilagem é ope-
racionalizada a partir do Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento de natu-
reza autodeclaratória, por meio do qual a Estrondo transferiu sua área de reser-
va legal (obrigatória de 20%, com vegetação nativa) para essas áreas de vale,
historicamente ocupadas pelos geraizeiros. Com isso, as empresas objetivam
desmatar ainda mais áreas da chapada, usando as áreas das comunidades
como reserva legal. Passam, então, a considerar o território tradicional parte da
sua propriedade privada e a investir no seu controle:
100. OUTRASPALAVRAS. Na BA, o cerco aos filhos de Canudos. Outubro de 2019. Disponível em: https://outraspa-
lavras.net/outrasmidias/na-ba-o-cerco-aos-filhos-de-canudos/. Acesso em 12 de out. de 2022.
Fernando Ferreira Lima foi baleado na perna por agentes da empresa de segu-
rança Estrela Guia, contratada pelo condomínio.
101. A operação faroeste possibilitou um freio no esquema criminoso ao apurar crimes envolvendo membros do
Poder Judiciário Estadual da Bahia, servidores, ex-servidores, advogados, empresários do agronegócio e particu-
lares na atuação de venda, intermediação e compra de sentenças judiciais sobre o conflito fundiário envolvendo
as terras da antiga Fazenda São José, em Formosa do Rio Preto e da Fazenda Estrondo, em Santa Rita de Cássia,
todos municípios do oeste da Bahia. In: AUGUSTO, Carlos. Exclusivo: A decisão do ministro do STJ Og Fernandes
que determinou a prisão e afastamento das funções de desembargadores, juiz, secretário de Segurança
Pública, ex-chefe do MPBA e servidores. Jornal Grande Bahia. Dezembro de 2020. Disponível em: https://www.
jornalgrandebahia.com.br/2020/12/exclusivo-a-decisao-do-ministro-do-stj-og-fernandes-que-determinou-a-prisao-
-e-afastamento-das-funcoes-de-desembargadores/. Acesso em 16 de novembro de 2022.
102. Fontes utilizadas: CARVALHO, Igor. Fazenda símbolo de grilagem sofre derrota “emblemática” e perde
área para geraizeiros. Brasil de Fato. Julho de 2020.Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/10/
fazenda-simbolo-de-grilagem-sofre-derrota-emblematica-e-perde-area-para-geraizeiros. Acesso em 12 de outubro
de 2022; OUTRASPALAVRAS. Na BA, o cerco aos filhos de Canudos. Outubro de 2019. Disponível em: https://ou-
traspalavras.net/outrasmidias/na-ba-o-cerco-aos-filhos-de-canudos/. Acesso em 12 de outubro de 2022.
59
As duas tentativas de assassinato ocorreram durante o manejo do gado. Na
primeira, após atendimento médico, Jossone foi levado à delegacia do muni-
ROUBO E MORTE DE
cípio e conseguiu que a Estrela Guia liberasse o gado. No outro caso, quando
ANIMAIS
Fernando foi abordado e ameaçado pelos agentes, ao saltar do seu cavalo, foi
atingido por um tiro e o animal foi alvejado com outros três disparos.
Adão Batista Gomes, também de Cachoeira, recebeu “ordem de prisão” por se-
guranças da Estrela Guia. “Era de manhã cedinho, eu estava caçando um gado
no campo quando os seguranças me acharam na lavoura, me algemaram e
me levaram pra polícia”, relata. Adão ficou no presídio regional de Barreiras por
cinco dias.
PRISÕES ILEGAIS
Jossinei Lopes Leite teve seu veículo bloqueado por agentes da Estrela Guia,
que após fazerem ele descer do carro, o detiveram por três horas e implanta-
ram uma espingarda calibre 12 no seu carro.
INVASÕES DE
DOMICÍLIO
Jossinei Lopes Leite, procurava seus animais na região quando teve o caminho
de seu veículo bloqueado por agentes da Estrela Guia. “Tinha uma sede da fa-
zenda próxima e ele achou melhor correr para lá, aí manobrou o carro e foi. Lá,
o fizeram descer do carro e o detiveram por duas, três horas”, relata Jossone,
irmão de Jossinei.
CERCEAMENTO DO
Políticos foram barrados em uma estrada vicinal por agentes da Estrela Guia
DIREITO DE IR E VIR
depois de terem se recusado a apresentar documentos de identidade.
Mesmo com os processos judiciais, o grupo obteve licença irregular para des-
matar 24.732 hectares (ha) de vegetação nativa, uma área maior que a cidade
AUTORIZAÇÃO DE
de Recife (PE). (greenpeace) Foi concedida pelo Instituto do Meio Ambiente e
SUPRESSÃO DE
Recursos Hídricos da Bahia (Inema) sem autorização do órgão estadual de ter-
VEGETAÇÃO NATIVA
ras (CDA), em área próximas às bordas dos chapadões (risco de deslizamentos
(ASV) IRREGULAR
e assoreamento do rio) e que compõe corredor ecológico que liga os rios e
afeta o ecossistema.
CONSOLIDAÇÃO
Avanço das intervenções para consolidar o crime. Asfalto, eletrificação, valas
DA GRILAGEM E
e desmatamento como formas de dificultar a reversão e deixar o Estado mais
DEMORA DA AÇÃO
tímido para recorrer.
DISCRIMINATÓRIA
Uma delas foi a drástica redução da área da me- Após a faroeste, essa escandalosa atuação ju-
dida liminar de 43 para 9 mil hectares, sem jus- dicial foi freada, mas foi a alta mobilização das
tificativa plausível e a outra foi a extinção, sem comunidades e sua rede de apoio que consegui-
julgar o mérito, da ação discriminatória judicial ram publicizar o caso e mobilizar diversos ato-
interposta pela Procuradoria Geral do Estado res nacionais e internacionais, constrangendo o
da Bahia (PGE), que, após trabalhos técnicos de Agronegócio Estrondo, que teve os seus recursos
identificação e delimitação das terras, concluiu judiciais negados e a manutenção da decisão ju-
que se tratava de terras devolutas ocupadas tra- dicial que protege a posse coletiva de 43mil hec-
dicionalmente pelos geraizeiros . 103
tares. Essa mobilização contou ainda com comi-
103. AUGUSTO, Carlos. Fonte diz que “pistoleiros da Fazenda Estrondo atiraram com arma de fogo contra
geraizeiros em Formosa do Rio Preto”. Jornal Grande Bahia. Fevereiro de 2019. Disponível em: https://www.jornal-
grandebahia.com.br/2019/02/fonte-diz-que-pistoleiros-da-fazenda-estrondo-atiraram-com-arma-de-fogo-contra-ge-
raizeiros-em-formosa-do-rio-preto/. Acesso em 12 de outubro de 2022.
61
tiva fundamental para o cumprimento da medida do a AATR, “é deste chão que vêm cerca de 41% da
liminar e destruição das guaritas, ela foi formada soja importada pela União Europeia (UE) e empre-
por representantes de organizações do Comitê sas globais de comércio de commodities, como a
Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos ADM, Bunge e Cargill” 104.
Humanos (CBDDH), Conselho Nacional de Direitos
Humanos (CNDH), Ministério Público Federal e De- O assessor Martin Mayr, da “Agência 10envol-
vimento”, que também acompanha o conflito,
fensoria Pública da União (DPU), além de organiza-
pontua como resultado dessa grande publici-
ções e instituições locais como a 10envolvimento,
dade: a desaceleração da violência, a retomada
o Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Grande e
da ação discriminatória e o empenho do Minis-
Subcomitê do Oeste de incêndios Florestais e a
tério Público em dividir as áreas das comunida-
Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB).
des, encerrando o conflito. Apesar disso, as co-
A publicidade do caso contribuiu por afetar a ima- munidades ainda não possuem acesso a todo
gem pública do Condomínio Estrondo ao respingar o seu território, remanescendo também duas
nos interesses de grandes multinacionais. Segun- guaritas do Agronegócio Estrondo.
104. AATR. Rastro de destruição da soja no cerrado brasileiro é denunciado ao parlamento Europeu. Agosto
de 2022. Disponível em: https://www.aatr.org.br/post/rastro-de-destrui%C3%A7%C3%A3o-da-soja-no-cerrado-brasi-
leiro-%C3%A9-denunciado-ao-parlamento-europeu. Acesso em 12 de outubro de 2022.
105. ADAB. Anel da Soja receberá investimento do Governo da Bahia. Agosto de 2021. Disponível em:
http://www.adab.ba.gov.br/2021/08/2660/Anel-da-Soja-recebera-investimentos-do-Governo-da-Bahia.html.
Acesso em 12 outubro de 2022.
63
Há, na verdade, uma atuação ambígua
do Estado que, de um lado, garante
agilidade no licenciamento ambiental
da mineradora e, de outro, se omite na
proteção do território geraizeiro
106. As grotas são localidades do território geraizeiro do Vale das Cancelas conhecidas por serem nas áreas
mais baixas, de vales, ao redor dos cursos d’águas.
107. DENFESORIA PÚBLICA DE MINAS GERAIS. Ação Civil Pública nº 1014398-57.2021.4.01.3807. Em trami-
tação na Justiça Federal de Montes Claros - MG. Dezembro de 2021. Disponível em: Defensoria Pública de
Minas e da União ajuízam ação em favor de comunidades geraizeiras do Norte de Minas (mg.def.br).
Acesso em 16 de novembro de 2022.
65
ACP, a primeira negativa de viabilidade ambien- empresa Lotus S.A passou a ser responsável
tal do empreendimento ocorreu em 2016, quan- pelo licenciamento do mineroduto de forma
do o IBAMA arquivou o processo de licencia- apartada ao complexo minerário. Para o IBA-
mento. Em virtude do imenso consumo de água MA, à época (em 2018), isso não seria possível
que seria necessário para o empreendimento, o já que o mineroduto seria de uso exclusivo da
impacto aos recursos hídricos da região, sobre- atividade minerária e, portanto, se tratava de
tudo, às 70 nascentes que seriam destruídas - e apenas um empreendimento, devendo ser li-
considerando que o mesmo estaria localizado cenciado em conjunto.
numa região semiárida de Minas Gerais - foi um
Contudo, com a chegada do governo Bolso-
dos fundamentos para que o IBAMA emitisse
naro, tudo mudou. Em 2019, o presidente do
um parecer afirmando a inviabilidade ambiental
IBAMA, Eduardo Bin, contrariando o posiciona-
do empreendimento.
mento anterior de técnicos do instituto, emitiu
Diante da negativa do IBAMA, a Sul-Americana um parecer autorizando a fragmentação do
de Metais fracionou seu empreendimento e a licenciamento ambiental.
108. As informações sobre a quebra de sigilo bancário e fiscal do Ricardo Salles e o afastamento do Eduardo Bim
podem ser encontradas na decisão do Ministro Alexandre de Moraes, no âmbito da Pet 8.975. Disponível em: https://
www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/pet8975decisao.pdf. Acesso em: 29 de setembro de 2022.
109. Larissa Vieira, advogada popular do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular
110. JUSBRASIL. Decreto nº 10.657, de 24 de Março de 2021 - Institui a Política de Apoio ao Licenciamento
Ambiental de Projetos de Investimentos para a Produção de Minerais Estratégicos. Disponível em: Decreto
10657 24 marco 2021 | Decreto nº 10.657, de 24 de Março de 2021, Presidência da Republica (jusbrasil.com.br). Acesso
em 16 de novembro de 2022.
111. Os empreendimentos habilitados como estratégicos no âmbito da Política Pró-Minerais Estratégicos podem ser
consultados in. BRASIL. Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos (CTAPME).
Ministério de Minas e Energia. Fevereiro de 2022. Disponível em: Comitê Interministerial de Análise de Projetos de
Minerais Estratégicos (CTAPME) — Português (Brasil) (www.gov.br). Acesso em: 29 de setembro de 2022.
112. GOVERNO DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Protocolo de Intenções nº. 7411951/2019 Agência de Promoção de
Investimento e Comércio Exterior de Minas Gerais. Setembro de 2019. Disponível em Protocolo de intenções SAM -
DocumentCloud. Acesso em 29 de setembro de 2022.
67
nenhuma movimentação significativa foi feita113. E, embora em ritmos absolu-
tamente distintos, a regularização fundiária do território caminha junto com o
licenciamento ambiental que irá desterritorializar as comunidades e compro-
meter seu modo de vida “nos gerais”: “A atuação do Estado no território é ser a
favor do empreendimento, pois libera o licenciamento da mineração e afirma
que não tem dinheiro para fazer a regularização fundiária coletiva” 114
REGULARIZAÇÃO LICENCIAMENTO DA
TERRITÓRIO GERAIZEIRO MINERADORA SAM
VALE DAS CANCELAS S.A E LOTUS S.A
113. Foi com a mobilização das comunidades e redes de apoio que foi conquistado um projeto para financiar o lau-
do antropológico da comunidade, que está sendo feito em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG).
A
s prioridades para o setor mineral no seja, acabar com os entraves, desobstruir e li-
Governo Bolsonaro estão sintetizadas berar os projetos de exploração mineral.
no “Programa Mineração e Desenvolvimento116”,
O Cerrado, sobretudo em Minas Gerais, tem
elaborado pelo Ministério de Minas e Energia, sido cobiçado não apenas como região de ex-
sob o título: “Brasil, uma mina de oportunidade”. pansão da fronteira agrícola, como também, de
Um dos eixos centrais do Programa é o de Avan- expansão da fronteira mineral. Segundo dados
ço da Mineração em Novas Áreas - chamado sistematizados pela Campanha Cerrado, espe-
também de “Minera Brasil” - que tem como me- cialmente nos estados de Minas Gerais e Pará
foram abertas, nos últimos quatro anos, novas
tas: “ampliar as áreas de aproveitamento mine-
minas de bauxita, cobre, manganês, níquel e
ral”, “agilizar as outorgas de títulos minerários”,
ampliado de forma exponencial a exploração do
entre outras. O programa casa diretamente
minério de ferro, cujas previsões é que até 2030
com o que a Agência Nacional de Mineração a produção tenha triplicado, chegando a atingir
tem chamado de “guilhotina regulatória117”, ou o patamar de 1 bilhão de toneladas/ano118.
115. É fato que a partir da edição da Lei 21.147/2014, o estado de Minas Gerais se tornou responsável pela delimitação,
demarcação e titulação dos territórios tradicionais. No entanto, é importante ressaltar que os arts. 215 e 216 da Cons-
tituição Federal, a Convenção 169 da OIT e o Decreto 6040/2007 estabelecem a obrigatoriedade do Estado Brasileiro
para proteger e garantir a posse e propriedade dos territórios ocupados por povos e comunidades tradicionais.
116. BRASIL. Programa Mineração e Desenvolvimento - PMD 2020-2023. Ministério de Minas e Energia. Feverei-
ro de 2021. Disponível em: Programa Mineração e Desenvolvimento - PMD 2020-2023.pdf — Português (Brasil) (www.
gov.br). Acesso em 29 de setembro de 2022.
117. ANGELO, Maurício. Diretor da Agência Nacional de Mineração defende “guilhotina regulatória” para o
setor mineral em parceria com a OCDE. Observatório da Mineração. Junho de 2020. Disponível em: Diretor da
Agência Nacional de Mineração defende “guilhotina regulatória” para o setor mineral em parceria com a OCDE –
Observatório da Mineração (observatoriodamineracao.com.br). Acesso em 29 de setembro de 2022.
118. AGUIAR, Diana; PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter; MALERBA, Julianna; JUNIOR, Orlando Aleixo de Barros. O início
do Ecocídio do Cerrado: a histórica imposição de grandes projetos de “desenvolvimento” sobre os territórios tradi-
cionais. In: Acusação Final. Contexto Justificador da acusação de Ecocídio-Genocídio [Cultural] no Cerra-
do. 2022 [online]. Disponível em: Parte-1-Contexto-Acusacao-Final_VF.pdf (tribunaldocerrado.org.br). Acesso em 30
de setembro de 2022.
69
Ao mesmo tempo em que medidas para facili- de operação), e eram considerados de Classe 6,
tar a exploração mineral e reduzir a fiscalização passaram a ser considerados de Classe 4, tor-
avançam, em âmbito federal, existem ainda as nando-se bifásicos (a licença prévia e a licença
tentativas crescentes de enfraquecer legisla- de instalação passaram a ser concedidas jun-
ções que protegem os direitos de povos e comu- to com a de operação). Isso, além de agilizar o
nidades tradicionais. Não são poucas as amea- processo de licenciamento ambiental, torna o
ças de revogação do Decreto nº. 6040/2007, instrumento mais frágil quanto à proteção dos
instrumento que institui a Política Nacional de bens naturais.
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Co-
Após o rompimento das barragens do Fundão,
munidades. Em termos concretos, o mecanis-
em Mariana, e da barragem do Córrego do Fei-
mo resultou na extinção do Conselho Nacional
jão, em Brumadinho, esperava-se mais rigor na
de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT),
emissão de licenças para as mineradoras. Mas,
em abril de 2019. O Conselho somente retomou
na prática, não foi o que aconteceu. Embora te-
suas atividades após determinação do Supremo
nham sido aprovadas legislações voltadas para
Tribunal Federal119 e, atualmente, têm travado ba-
a segurança de barragens, como a Lei Federal nº
talhas para garantir seu funcionamento efetivo.
14.066/2020120 e a Lei Estadual “Mar de lama nun-
Segundo a advogada Larissa Vieira, em Minas ca mais” (Lei nº. 23291/2019121) que institui a po-
Gerais há um movimento forte de flexibilizar a lítica estadual de segurança de barragens, sua
política ambiental. Por exemplo, alguns em- aplicação tem sido tímida e restritiva. Não é por
preendimentos que antes precisavam cumprir acaso que após os rompimentos, o número de
um procedimento trifásico para sua aprovação barragens minerárias sem atestado de viabilida-
(licença prévia, licença de instalação e licença de quase dobrou entre 2019 e 2020122.
A política estadual de atingidos por barragens foi aprovada, mas ainda está
sendo muito pouco utilizada, muito pouco aplicada. Também existe a legis-
lação protetiva dos povos e comunidades tradicionais, mas acaba correndo
muito apartada do processo ambiental…é como se o órgão licenciador não
tivesse que observar essa legislação123
119. SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA. STF impede extinção de colegiados citados
em lei. Junho de 2019. Disponível em: STF impede extinção de colegiados citados em Lei – SBPC (sbpcnet.org.br).
Acesso em 29 de setembro de 2022.
120. BRASIL. LEI Nº 14.066, DE 30 DE SETEMBRO DE 2020. Presidência da República. Setembro de 2020. Dispo-
nível em: LEI Nº 14.066, DE 30 DE SETEMBRO DE 2020. Acesso em 16 de novembro de 2022.
121. MINAS GERAIS. Lei 23291, de 25/02/2019 - Institui a política estadual de segurança de barragens. Assembleia
Legislativa de Minas Gerais. Fevereiro de 2019. Disponível em: Lei 23291, de 25/02/2019 (almg.gov.br). Acesso em
16 de novembro de 2022.
122. AGUIAR, Diana; PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter; MALERBA, Julianna; JUNIOR, Orlando Aleixo de Barros. O início do
Ecocídio do Cerrado: a histórica imposição de grandes projetos de “desenvolvimento” sobre os territórios tradicionais. In:
Acusação Final. Contexto Justificador da acusação de Ecocídio-Genocídio [Cultural] no Cerrado. 2022 [online].
Disponível em: Parte-1-Contexto-Acusacao-Final_VF.pdf (tribunaldocerrado.org.br). Acesso em 30 de setembro de 2022.
123. Trecho da entrevista realizada com Larissa Vieira, advogada popular do Coletivo Margarida Alves de Asses-
soria Popular
“O projeto traz ameaças de morte, traz brigas entre famílias, cria uma disputa entre
o povo da cidade e o povo da roça. Traz muita tristeza, depressão” 126
125. COLETIVO MARGARIDA ALVESE OUTROS. Nota Técnica sobre a Resolução Conjunta Sedese/Semad nº 01,
de 04 de abril de 2022, que regulamenta a consulta prévia, livre e informada. Abril de 2022. Disponível em:
https://coletivomargaridaalves.org/organizacoes-apontam-inconstitucionalidade-da-resolucao-conjunta-da-se-
dese-e-semad-e-exigem-revogacao/ . Acesso em 30 de setembro de 2022.
126. Trecho da entrevista com Adair Pereira de Almeida, Geraizeiro do Vale das Cancelas
71
Um ponto destacado nas entrevistas foi o processo de fragmentação social do
território, que faz com que diversas famílias entrem em conflito. A falta de infor-
mação completa e honesta sobre o empreendimento, aliada ao assédio das
empresas é um fator gerador desses desentendimentos:
O território geraizeiro é acompanhado pelo Pro- e comunidades tradicionais, que deveriam ser as
grama de Proteção a Defensoras e Defensores primeiras pessoas convocadas ao diálogo. Ainda
de Direitos Humanos do estado de Minas Gerais, que, diante dos reiterados pedidos desses povos
precisamente pelo fato de que, uma das pes-
para serem consultados, o governo de Minas Ge-
soas do território, vive sob ameaças de morte.
rais segue silencioso.
Por conta das ameaças, o DDH já teve que sair da
comunidade por alguns períodos. Dentre as violências que sofrem as defensoras e
127. idem
128. Trecho de entrevista realizada com Luzia Alane, agente da Comissão Pastoral da Terra
129. Trecho da entrevista realizada com Adair Pereira de Almeida, Geraizeiro do Vale das Cancelas.
130. Trecho da entrevista com Luzia Alane, agente da Comissão Pastoral da Terra
131. idem
73
Fotos: Acervo do Instituto Kaingáng
132. DA SILVA, Juciane Beatriz Sehn; LAROQUE, Luís Fernando da Silva. A história dos Kaingáng da terra indígena
Linha Glória, Estrela, Rio Grande do Sul/Brasil: sentidos de sua (re)territorialidade. Soc. nat. 24 (3) • Dezem-
bro, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sn/a/fTW7NjhqgVXQrKGwHBQQF9c/?lang=pt. Acesso em 27 de
outubro.
133. ISA. Povos Indígenas no Brasil – Kaiagang. S/D. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kain-
gáng. Acesso em 28 de outubro de 2022.
134. Trecho de entrevista de fonte anomizada concedida especialmente para o Dossiê Vidas em Luta.
135. BRASIL. DECRETO Nº 8.072, DE 20 DE JUNHO DE 1910 - Crêa o Serviço de Protecção aos Indios e Localiza-
ção de Trabalhadores Nacionaes e approva o respectivo regulamento. Câmara dos Deputados. Junho de 1910.
Disponível em: Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acesso em 16 de novembro de 2022.
136. Trecho de entrevista de fonte anomizada concedida especialmente para o Dossiê Vidas em Luta.
137. BRASIL. Relatório Figueiredo. Ministério do Interior. Sem data disponível [online]. Disponível em: http://www.
mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/dados-da-atuacao/grupos-de-trabalho/violacao-dos-direitos-dos-povos-indi-
genas-e-registro-militar/docs-1/relatorio-figueiredo/relatorio-figueiredo.pdf. Acesso em 24 de outubro de 2022.
75
indígenas foram usados como mão de obra es- Compreender esse processo de expropriação do
crava e expostos a todo tipo de arbitrariedades e território indígena Kaingáng é essencial para ana-
torturas, dentre elas: espancamentos, e até cruci- lisar a situação de vulnerabilidade e insegurança
ficação de indígenas. alimentar, ameaças e assassinatos que famílias
da Terra Indígena (TI) Serrinha138, localizada no
De acordo com o Mapa de Conflitos elaborado
norte do Rio Grande do Sul, estão vivendo. Espe-
pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
cialmente, no contexto da pandemia de Covid-19,
Arouca (ENSP-Fiocruz), a intervenção do SPI foi
período em que houve o aumento desses confli-
tão agressiva que submeteu não só os indíge-
tos fundiários na região, ocasionados pelo arren-
nas à realização de trabalhos em troca de co-
damento ilegal das terras indígenas para o agro-
mida, mas também fomentou a cooptação de
negócio, prática estimulada pelo próprio Estado
lideranças indígenas Kaingáng, ocasionando a
Brasileiro desde 2005 na região, que gerou con-
construção dos primeiros acampamentos do
flitos intra-étnicos incentivados por latifundiários.
povo Kaingáng nas cidades e, em beiras de ro-
“O Estado que antes era o Brasil Colônia e
dovias, nas décadas de 1950 e 1960. “Após Cons-
era o Brasil Império, que financiava mortes e
tituição Federal de 1988, deveria ter se consoli-
erguia estátuas e arenas para os matadores
dado uma democracia no país, mas para isso
de índios, que deu títulos de nobreza para
precisaria ter sido feito uma coisa chamada
bandeirante de São Paulo, segue usando os
justiça de transição, que é a transição entre a
traidores da própria raça, que também sem-
ditadura e o estado democrático, admitindo os
pre existiram, para seguir matando. O Estado
erros que se cometeu, pedindo perdão pelos
financiou a morte desde sempre e continua
erros que se cometeu, reparando os erros que
financiando, mas agora numa outra escala”,
se cometeu e, assim, construindo-se um proje-
ressalta Fernanda Kaingáng139.
to de democracia e paz. Mas, negaram para a
gente [Povo Kaingáng] a nossa presença den- A Terra Indígena Serrinha, situada em uma área
tro do projeto de memória e da verdade, que que abrange os municípios de Ronda Alta, Três
deveria ser um dos pilares da justiça de transi- Palmeiras, Constantina e Engenho Velho, ga-
ção. Ou seja, nós, enquanto povo, continuamos nhou repercussão nacional em 16 de outubro de
negados de existência. Nós não temos uma 2021140, quando famílias indígenas foram expul-
democracia”, ressalta fonte do povo Kaingáng. sas de suas terras ancestrais141, e dois indígenas
138. INSTITUTO KAIAGANG. Página Inicial. S/D. Disponível em: Instituto Kaingáng (institutoKaingáng.org.br). Acesso
em 16 de novembro de 2022.
140. CONSELHO INDIGIENISTA MISSIONÁRIO. Nota do Cimi Regional Sul em repúdio às violências em terras
indígenas. CIMI. Outubro de 2021. Disponível em: Nota do Cimi Regional Sul em repúdio às violências em terras
indígenas | Cimi. Acesso em 16 de novembro de 2022.
141. FACEBOOK. Massacre na Aldeia indígena Serrinha, no Rio Grande do Sul. Rádio Yandê - Vãngri Kaingáng.
Outubro de 2021. Disponível em: Massacre na Aldeia indígena Serrinha, no Rio Grande do Sul. #Kaingáng “Socorro,
nos ajudem!!!” - Vãngri Kaingáng | By Rádio Yandê | Facebook. Acesso em 16 de novembro de 2022.
Cabe destacar que o Comitê Brasileiro de De- Em 24 de fevereiro de 2021, três anos após a pro-
fensoras e Defensores de Direitos Humanos messa feita por Bolsonaro, a Fundação Nacional
classifica a cooptação como uma das muitas do Índio (Funai) e o Instituto Brasileiro do Meio
formas utilizadas para interromper as lutas pela Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
conquista de direitos. A cooptação geralmen- (Ibama), sob ordem do governo federal, expe-
te acontece por parte de fazendeiros e latifun- diram a Instrução Normativa 01/2021143, medida
diários nesses territórios que se aproveitam de que autoriza a “parceria” entre indígenas e não-
uma falha preexistente por parte do estado com -indígenas para a exploração econômica dos
os povos indígenas, que ficam vulnerabilizados
territórios, conforme denunciado pelo Conselho
pela ausência de efetivação de seus direitos
Indigenista Missionário (Cimi). A norma foi auto-
constitucionalmente garantidos.
rizada sem o consentimento e a Consulta Livre,
Em fevereiro de 2018, época de campanha Prévia e Informada aos povos, como prevê a
eleitoral, o presidente Jair Messias Bolsonaro Convenção nº. 169 da Organização Internacional
já prometia que, se assumisse o cargo, “não do Trabalho (OIT).
142. CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Arrendamento na TI Serrinha: prática criminosa incentivada pelo
governo coloca em risco a vida dos povos indígenas. CIMI. Novembro de 2021. Disponível em: Arrendamento na
TI Serrinha: prática criminosa incentivada pelo governo coloca em risco a vida dos povos indígenas | Cimi. Acesso
em 16 de novembro de 2022.
77
A proibição do arrendamento das terras do Povo e fiscalização da lei agem ou se tornarão cúm-
Kaingáng vem sendo adiada desde a década de plices da exclusão, da fome, do abandono e das
1980, com a instauração de comissões parla- mortes nas terras indígenas” 145.
mentares de inquérito na Assembleia Legislati-
O Cimi ainda destaca que: “é chegado o momento
va do Rio Grande do Sul e no Congresso Nacio-
de se reverter o quadro perverso de esbulho e vio-
nal. Além disso, a questão do arrendamento das
lência, e começar a identificar e processar os que
terras indígenas tem se agravado na região pela
se beneficiam da produção de soja transgênica
insistência da Funai em manter o arrendamento
dentro das áreas indígenas. São grupos de pes-
e, mais recentemente, com o envolvimento do
soas que há décadas exploram os bens da União,
Ministério Público Federal no caso. Por fim, a Po-
terras que deveriam ser destinadas ao usufruto
lícia Federal, cuja função deveria ser assegurar
exclusivo dos povos. Os que arrendam as terras in-
e proteger o direito dos povos indígenas ao usu-
dígenas precisam ser responsabilizados por esses
fruto exclusivo do seu território, segundo a ad-
crimes e pelo incentivo, de fora para dentro das
vogada, vem “chancelando ‘processos de tran-
sição’ eternos em ‘parcerias agrícolas’ que não comunidades, à violência. Fechar os olhos para os
que beneficiam poucos em prejuízo de muitos”. É neste cenário que tem sido a atuação das
As terras Kaingáng vem sendo arrendadas para lideranças indígenas no caso: na defesa do
a produção agrícola de soja transgênica com território Kaingáng enquanto projeto de memó-
uso de herbicidas, dentre eles, o glifosato. Para ria e verdade e, sobretudo, na defesa da vida e
explicar de forma detalhada o conflito e suas da segurança alimentar do seu povo. Tal proje-
causas, o Conselho de Anciãos da Terra Indí- to se contrapõe à política de arrendamento do
gena Serrinha, lançou o dossiê “KANHGÁG GA: território, causando inúmeros tensionamentos,
o arrendamento das terras indígenas na região os quais levaram inclusive a saída de um grupo
Sul do Brasil” 144. O documento denuncia a vul- do território após ameaças e um assassinato. A
nerabilidade de anciãos, mulheres e crianças saída de defensores e defensoras de seus ter-
em situação de refúgio e solicita a adoção de ritórios, especialmente no caso de povos indí-
providências urgentes para erradicar o arrenda- genas, é uma medida drástica que interfere na
mento ilegal das terras indígenas, ação colonial continuidade da luta por direitos humanos. De
responsável por 30 assassinatos nos últimos 10 tal forma, que o Comitê evita a adoção dessa
anos no estado. Em nota, o Conselho Indigenista política para não agravar o quadro emocional
Missionário (Cimi), organização membro da rede do defensor ou defensora, bem como não inter-
do Comitê, aponta que: “ou os órgãos de controle ferir na organização local.
145. CONSELHO INDIGIENISTA MISSIONÁRIO. Nota do Cimi Regional Sul em repúdio às violências em terras
indígenas. CIMI. Outubro de 2021. Disponível em: Nota do Cimi Regional Sul em repúdio às violências em terras
indígenas | Cimi. Acesso em 16 de novembro de 2022.
146. HECK, Egon. Povos Indígenas - a volta do famigerado arrendamento. Instituto Humanitas – UNISINOS. Ja-
neiro de 2013. Disponível em: Povos Indígenas - a volta do famigerado arrendamento - Instituto Humanitas Unisinos
- IHU. Acesso em 16 de novembro de 2022.
147. FACEBOOK. Cotrisserra: Cooperativa Dos Trabalhadores Indígenas da Serrinha. Perfil. S/D. Disponível em:
Cotrisserra Cooperativa Dos Trabalhadores Indígenas da Serrinha | Facebook. Acesso em 16 de novembro de 2022.
79
“Ressalta-se que a omissão de autoridades públicas, a
exemplo da Fundação Nacional do Índio e do Ministério
Público Federal em Passo Fundo, é, sem dúvida, grande
causadora dos conflitos em terras indígenas, especial-
mente os confrontos que envolvem igualmente os interes-
ses políticos e econômicos de não-indígenas, que cooptam par-
te das lideranças de grupos dos povos originários, no caso das
terras indígenas da Região Sul” (trecho do dossiê).
As terras indígenas são bens da União, por for- Também é importante observar que é dever
ça de preceito constitucional expresso no artigo constitucional da União proteger a vida, a cul-
231 e o usufruto dos recursos naturais existentes tura e as terras dos povos originários, gerando
nos territórios indígenas compete exclusiva- inegavelmente a responsabilização jurídica em
mente aos povos indígenas. “São terras tradi- caso de omissão.
cionalmente ocupadas pelos índios as por eles
O Conselho de Anciãos do Povo Kaingáng tam-
habitadas em caráter permanente, as utilizadas bém denunciava a ocorrência de processos cha-
para suas atividades produtivas, as imprescin- mados de “transferências”, em que indígenas são
díveis à preservação dos recursos ambientais forçados a deixar suas casas sob humilhação.
necessários a seu bem-estar e as necessárias Ainda alertava que: “se nada for feito hoje, haverá
à sua reprodução física e cultural, segundo seus sangue indígena derramado amanhã!”. Todas as
usos, costumes e tradições”. Ainda, especifica denúncias foram confirmadas pela Organização
que: “as terras tradicionalmente ocupadas pelos Indígena Instituto Kaingáng148 (INKA), a Articulação
índios destinam-se à sua posse permanente, dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)149, a Articula-
cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas ção dos Povos Indígenas do Sul (Arpinsul)150 e o
do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Conselho Indigenista Missionário Regional Sul151.
148. INSTITUTO KAINGÁNG. NOTA DE REPÚDIO CONTRA TODO ATO DE VIOLÊNCIA NA TERRA INDÍGENA SERRI-
NHA – INSTITUTO KAINGÁNG. INKA. Outubro de 2021. Disponível em: Nota de Repúdio contra todo ato de violência
na Terra Indígena Serrinha – Instituto Kaingáng – Instituto Kaingáng (institutoKaingáng.org.br). Acesso em 16 de
novembro de 2022.
149. ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS. Basta de arrendar vidas indígenas!. Apib. Outubro de 2021. Disponível
em: Basta de arrendar vidas indígenas! | APIB (apiboficial.org). Acesso em: 16 de novembro de 2022.
150. Idem
151. CONSELHO INDÍGENA MISSIONÁRIO. Arrendamentos da morte! Repúdio às violências em terras indígenas. Sul21.
Outubro de 2021. Disponível em: Arrendamentos da morte! Repúdio às violências em terras indígenas (por Conselho
Indigenista Missionário) - Sul 21. Acesso em 16 de novembro de 2022.
152. VELLEDA, Luciano. Tragédia anunciada: perseguição e mortes abalam aldeia indígena de Serrinha. Ins-
tituto Humanitas – UNISINOS. Outubro de 2021. Disponível em: Tragédia anunciada: perseguição e mortes abalam
aldeia indígena de Serrinha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Acesso em 16 de novembro de 2022.
153. INSTITUTO KAINGÁNG. Por JUSTIÇA e RESPOSTA na Terra Indígena Serrinha – RS. Change.org. S/D. Disponí-
vel em: Abaixo-assinado · Por JUSTIÇA e RESPOSTA na Terra Indígena Serrinha – RS · Change.org. Acesso em 16 de
novembro de 2022.
81
82 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA
O quilombo Carretão, localizado na Baixada Cuia- munidade - para garantir o acesso das crianças do
bana, no município de Poconé (MT), a 200km de quilombo ao transporte escolar e para implanta-
Cuiabá, tem vivenciado um conflito fundiário ção de roças de subsistência de mandiocas, cana
muito comum em diversos quilombos no Brasil. e bananas, além do uso para pastagem de ani-
De um lado estão as famílias quilombolas, que mais. No entanto, desde 2013, com a reintegração
constroem suas relações sociais, econômicas de posse, a família de Silvina e toda a comunida-
e culturais a partir do seu território tradicional e, de têm sido impedidas de utilizar livremente essa
de outro, agentes externos que se impõe atra- parte do território e têm se deparado com intensos
vés das cercas e das tentativas de usurpação e processos de ameaça e criminalização.
apropriação privada do território coletivo.
Ao comprar algumas das posses na comunida-
O conflito que cerca o Quilombo Carretão envol- de de áreas que, inclusive estão em processo
ve o casal de fazendeiros, João José dos Santos de inventário e partilha ainda inacabados, não
e Alaerce dos Santos, e a suposta propriedade houve qualquer definição ou delimitação de li-
do casal que faz divisa com a comunidade. O mites, o que faz com que o casal de fazendeiros
casal de fazendeiros chegou ao território no ano tente se apropriar do território quilombola, crian-
de 2002 e, usando do poder econômico, conse- do limitações de uso à comunidade de Carretão.
guiu se instalar na região. Apesar da presença Atualmente a ação de reintegração, que tramita
do casal, os moradores continuaram utilizando o na Justiça Estadual155, chegou a ser sentenciada a
território, como sempre fizeram historicamente, favor dos fazendeiros, mas teve sua sentença re-
até que em 2013, a família quilombola de Silvina formada e aguarda realização de perícia técnica.
Gonçalves e Marcelino da Silva foi surpreendida
Enquanto isso, segundo as entrevistas realiza-
com uma ação de reintegração de posse154, mo-
das para esta edição do dossiê, as ameaças
vida pelos fazendeiros, que teve como objetivo
continuam, ao ponto de fazer com que o Sr. Mar-
impedir a família de fazer uso do seu território.
celino tivesse de ser incluído no Programa de
A área em disputa tem sido utilizada pela família Proteção a Defensores de Direitos Humanos, e o
de Silvina e Marcelino - e por outras famílias da co- território permanece em disputa:
155. Apesar da Fundação Cultural Palmares, por meio da Advocacia Geral da União, ter intervido no processo desde
15 de outubro de 2021 solicitando ingresso na lide e deslocamento da competência para a Justiça Federal por se
tratar de conflito envolvendo comunidade quilombola, até o momento não há qualquer decisão neste sentido.
156. Trecho da entrevista realizada com Naryanne Cristina Ramos, quilombola advogada que acompanha o caso.
83
4.6.1. “A COMUNIDADE CARRETÃO EXISTE HÁ
MAIS DE 180 ANOS”157
A comunidade passou então a ser formada com com um documento de propriedade das suas
o casamento de Silvério e Maria Onório e o nas- terras. O Quilombo Carretão está registrado no
cimento de seus filhos, entre eles, Jacinto. Desde Cartório do 1º Ofício de Registro de Imóveis de
então, as famílias foram se multiplicando. São Poconé-MT, sob o nº 4.741. Mesmo em posse
diversas gerações que ao longo do tempo foram desse documento oficial em seu nome e, ten-
construindo suas vidas ali, constituindo suas re- do seu território ameaçado, o processo de ti-
lações de pertencimento e suas histórias, repro- tulação do território caminha a passos lentos.
duzindo vivências no território Carretão. Enquanto isso, pessoas de fora do quilombo,
A terra que hoje é o Quilombo Carretão foi rece- valendo-se do seu poder econômico, tentam
bida em doação por Silvério e passada de ge- expulsar as famílias das terras onde diversas
ração em geração. Assim, as famílias contam gerações nasceram e se criaram.
157. Trecho extraído do documento intitulado “Relato histórico dos moradores da Comunidade Carretão”, peça integrante
do processo judicial nº 0000251-97.2013.8.11.0028, que tramita na Vara Única de Poconé, MT.
158. Portaria de Certificação nº 279/2017 in. IPATRIMÔNIO. Poconé – Quilombo Carretão. Patrimônio Cultural Brasileiro.
S/D. Disponível em: Poconé – Quilombo Carretão | ipatrimônio (ipatrimonio.org). Acesso em 16 de novembro de 2022.
Ameaçado de forma direta, respondendo ação figura entre os quilombos cujo órgão fundiário
de reintegração de posse desde 2013 e certifi- elegeu como prioritários para a demarcação e
cado pela Fundação Cultural Palmares desde titulação dos territórios.
2017, o Quilombo Carretão ainda aguarda a ela-
A paralisação dos processos de demarcação e
boração do Relatório Técnico de Identificação titulação dos territórios quilombolas foi denun-
e Demarcação, pelo INCRA, que nem sequer ciada no ato “Aquilombar” 162, organizado pela
cogita o seu início. Em Nota Técnica elaborada Coordenação Nacional de Articulação das Co-
pelo INCRA161 sobre a situação dos procedimen- munidades Negras Rurais (Conaq) 163 no dia 10
tos de regularização de territórios em curso, de agosto de 2022, em Brasília. Em audiência
fica evidente que, o Quilombo Carretão, não pública realizada no âmbito da Comissão de
159. Trecho da entrevista realizada com Naryanne Cristina Ramos, quilombola advogada que acompanha o caso.
160. NOTÍCIA PRETA. Bolsonaro diz que não demarcar mais terras quilombolas e que estas questões atra-
palham o Brasil “Somos um só povo, uma só raça”. Notícia, preta, 2020. Disponível em Bolsonaro diz que não
demarcará mais terras quilombolas e que estas questões atrapalham o Brasil “Somos um só povo, uma só raça”
- Noticia Preta - NP. Acesso em 20 de outubro de 2022.
162. MONCAU, Gabriela. “Somos os guardiões invisíveis da floresta”: três mil quilombolas se reúnem em Bra-
sília. Brasil de Fato, 2022. Disponível em “Somos os guardiões invisíveis da floresta”: três mil | Geral (brasildefato.com.
br). Acesso em 23 de outubro de 2022.
163. CONAQ. Página Inicial. S/D. Disponível em: Home - CONAQ. Acesso em 16 de novembro de 2022.
85
Direitos Humanos (CDH) do Senado Federal, a Co- em 27 anos
naq, membro da rede do CBDDH, evidencia que: (de 1995 até
“a longa espera pela titulação contribui para o setembro de 2022)
aumento dos conflitos e das ameaças nos ter-
ritórios quilombolas, colocando em risco a exis-
tência dessas comunidades e a preservação
ambiental” 164. Para a coordenadora da Conaq do
Espírito Santo, Katia Penha165, “as comunidades foram emitidos
164. AGÊNCIA SENADO. Comunidades Quilombolas defendem agilidade na regularização de terras. Agência
Senado, 2022. Disponível em Comunidades quilombolas defendem agilidade na regularização de terras — Senado
Notícias. AcessO em 23 de outubro de 2022.
165. Idem
166. COLETIVO de servidoras e servidores lotadas/os nos Serviços de Regularização de Territórios Quilombolas das
Superintendências Regionais e Coordenação-Geral de Regularização de Territórios Quilombolas no Incra. Carta
pública contra o desmonte da política quilombola no Incra. Disponível em Carta Pública contra o desmonte da
política quilombola no INCRA | Gesta (ufmg.br). Acesso em 23 de outubro de 2022.
167. Dos 305 títulos emitidos, 140 foram emitidos pelo INCRA e os demais foram expedidos pelos órgãos estaduais
e municipais de terras.
168. Dados atualizados até 22 de agosto de 2022. In. FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Certificação Quilombola.
S/D. Disponível em Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQ’s) – Fundação Cultural Palmares. Acesso em
23 de outubro de 2022.
2010
R$64 milhões
A ineficiência da política de titulação quilombola 2023169. Isso explica o fato de ter no INCRA 1796
ao longo dos anos ficou ainda mais trágica nos processos administrativos de regularização fun-
últimos períodos e está diretamente relaciona- diária instaurados, sendo que a maioria deles
da com os sucessivos cortes orçamentários não conta com qualquer movimentação proces-
promovidos pelo atual governo. Para se ter uma sual - apenas 313 destes processos possuem al-
ideia, em 2010 o valor destinado para Delimita- gum andamento.
ção, Desintrusão e Titulação dos Territórios Qui- Além dos cortes orçamentários, a política de ti-
lombolas era de R$ 64 milhões. Em 2019, esse tulação quilombola tem sido minada também
valor despenca para R$3,5 milhões, em 2020 cai através da edição de atos normativos que ob-
mais um pouco, passando para R$2,9 milhões, jetivam promover a desqualificação da política
em 2021 chega a R$206.008,00. Em 2022, o valor e paralisar, quase que por completo, as suas
indicado na LOA foi de R$ 405.000,00, mesmo ações. São exemplos de atos normativos edita-
valor apresentado na proposta orçamentária de dos nos últimos períodos:
169. COLETIVO de servidoras e servidores lotadas/os nos Serviços de Regularização de Territórios Quilombolas das
Superintendências Regionais e Coordenação-Geral de Regularização de Territórios Quilombolas no Incra. Carta
pública contra o desmonte da política quilombola no Incra. Disponível em Carta Pública contra o desmonte da
política quilombola no INCRA | Gesta (ufmg.br). Acesso em 23 de outubro de 2022.
87
Quadro 11 – Atos Normativos Editados entre 2019 e 2022
170. COLETIVO de servidoras e servidores lotadas/os nos Serviços de Regularização de Territórios Quilombolas das
Superintendências Regionais e Coordenação-Geral de Regularização de Territórios Quilombolas no Incra. Carta
pública contra o desmonte da política quilombola no Incra. Disponível em Carta Pública contra o desmonte da
política quilombola no INCRA | Gesta (ufmg.br). Acesso em 23 de outubro de 2022.
Enquanto a política de titulação não é levada à ta para uma prática estrutural de invisibilização
sério, aumentam-se as situações de violências e dizimação dos territórios e do modo de vida
contra os quilombos. Em pesquisa publicada 171
quilombola, ameaçados, violentados e desarti-
pela Conaq e Terra de Direitos identificou-se culados antes da sua formalização” 172. Isso nos
uma correlação direta entre a violência contra permite concluir que a não titulação do Quilom-
quilombos e regularização fundiária dos terri- bo Carretão invisibiliza a comunidade como su-
tórios. A pesquisa demonstra que insegurança jeito de direito e, mais que isso, é uma das cau-
fundiária, a não demarcação dos territórios, é sas centrais dos conflitos e das violências que
fator que promove/agrava as violências e “apon- vivenciam em torno das disputas pelo território.
171. CONAQ. Terra de Direitos. Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil. Curitiba: Terra de Direitos, 2018.
Disponível em (final)-Racismo-e-Violencia-Quilombola_CONAQ_Terra-de-Direitos_FN_WEB.pdf (terradedireitos.org.
br) Acessoem 24 de outubro de 2022.
172. Idem
89
4.6.3. RACISMO INSTITUCIONAL: “A PARTIR DO MOMENTO
QUE O ESTADO NÃO AGE, É COMO SE A VIDA DA/NA
COMUNIDADE NÃO IMPORTASSE. AS PESSOAS DEIXAM DE
SER VISTAS COMO PESSOAS”173.
sões físicas, assassinatos, despejos, negação de Como se não bastasse, o Sr. Marcelino, tem sofri-
acesso a direitos básicos, intimidações, ameaças do processo de criminalização na instauração do
territoriais, torturas, criminalização, prisões ilegais Inquérito Policial174, fundamentado em declarações
que acometem os quilombos no Brasil. Essas vio- unilaterais e fotografias não identificadas, com cla-
lências se estruturam em uma construção política, ro intuito de intimidar a ação da comunidade qui-
institucional, social e econômica que considera as lombola. A comunidade tem sido criminalizada por
vidas negras como invisíveis, descartáveis. E, por fazer uso histórico e tradicional do seu território,
estarem assentadas em um pilar de desumani- por plantar e colher, por criar e viver, por lutar pela
zação - que não considera as vidas negras como permanência e para que mais gerações dali se
dignas de promover a movimentação institucional alimentem. Por outro lado, os diversos boletins de
para garantia de acesso a políticas públicas e direi- ocorrência registrados pelos quilombolas seguem
tos, - se reproduzem cotidianamente. sem qualquer andamento, sem que sejam capa-
zes de mobilizar a ação estatal.
Somente o racismo justifica o fato da inação ins-
titucional diante do conflito envolvendo o Quilom- Ou seja, em um contexto de racismo institu-
bo Carretão, uma vez que o Estado não tem sido cional no qual o Estado deixa de cumprir suas
capaz de promover as políticas estruturais neces- obrigações básicas, não protege o território e a
sárias para conter a violência, a exemplo da de- vida que nele se constrói, legitima a violência,
marcação e titulação territorial e da desintrusão criminaliza a luta, a mensagem que transmite é
dos agentes externos que ameaçam se apropriar a de que “a vida no Quilombo Carretão importa
indevidamente do território coletivo. Além disso, a menos, como se as pessoas que lá vivem não
inconclusão do processo judicial de reintegração valessem como pessoas. A inação do Estado faz
de posse, que se arrasta há quase 10 anos é um com que a comunidade perca a esperança de
fator que amplifica o conflito, promovendo instabi- ver a sua proteção efetivada175”.
173. Trecho da entrevista realizada com Naryanne Cristina Ramos, quilombola advogada que acompanha o caso.
175. Trecho da entrevista realizada com Naryanne Cristina Ramos, quilombola advogada que acompanha o caso.
91
A declaração é de Benny Briolly Rosa da
Silva Santos (PSOL), primeira parlamen-
tar trans eleita para ocupar uma vaga na Casa
176
pal, Benny Briolly já ressaltava que a sociedade
brasileira precisava “derrotar o bolsonarismo e
superar urgentemente o fascismo, o autorita-
Legislativa de Niterói, na Região Metropolitana rismo, o racismo, machismo, a LGBTfobia e esse
do Rio de Janeiro. Ativista e defensora de direitos capitalismo predatório” 177. Essa necessidade se
humanos, a parlamentar, que se define como mostrou uma realidade antes mesmo dela assu-
uma mulher preta travesti favelada, feminista, mir o mandato.
ecossocialista, militante do movimento negro
Em dezembro de 2020, após sua eleição, as ofen-
e LGBTQIA+, tornou-se um símbolo da luta por
sas racistas e transfóbicas, além das ameaças, se
proteção que DDHs travam todos os dias para
intensificaram. A parlamentar recebeu email com
continuar atuando, militando e, sobretudo, per-
os xingamentos racistas “macaco fedorento” e
manecer viva na sociedade brasileira.
uma ameaça de morte a tiro, caso ela não renun-
As ameaças a Benny Briolly, que vêm tanto de ciasse ao seu mandato de vereadora do município
autoridades públicas quanto de pessoas anôni- de Niterói. O e-mail chocou toda a equipe, organi-
mas por meio de redes sociais, começaram em zações de direitos humanos e imprensa, porque
2018, quando ela era ainda assessora parlamen- não apenas continha um juramento de morte, mas
tar na Câmara Municipal, compondo a equipe até o endereço no qual ela residia à época.
do mandato da então vereadora Talíria Petrone
Benny Briolly não renunciou, mas desde o começo
(PSOL), hoje deputada federal - outra parlamen-
do mandato enfrentou e precisou que o Estado
tar negra que vive sob ameaças e violações de
garantisse os seus direitos políticos. Porém, em
direitos em virtude da violência política. Benny
maio de 2021, com apenas cinco meses de man-
foi a primeira assessora parlamentar transexual
dato, ela precisou se afastar do Brasil durante
a trabalhar no Legislativo da cidade de Niterói.
quase todo o mês para tentar ser ouvida. A deci-
Já em 2020, ela foi eleita com 4.458 votos, sendo são foi tomada pelo partido PSOL para mantê-la
a quinta candidata mais bem votada para ocu- segura. Mediante a pressão social e política178, a
par uma vaga na Casa Legislativa de Niterói. Em defensora foi inserida no Programa Estadual de
entrevista à imprensa sobre o significado polí- Proteção aos Defensores de Direitos Humanos
tico da sua eleição para o parlamento munici- vinculado ao PPDDH.
176. QUIROGA, Louise. “Vai ter Mulher preta travesti na Câmara de Niterói” celebra Benny Briolly. O Globo,
novembro de 2020. Disponível em: ‘Vai ter mulher preta travesti na Câmara de Niterói’, celebra Benny Briolly - Jornal
O Globo. Acesso em 16 de novembro de 2022.
177. Idem
178. JUSTIÇA GLOBAL. Nota pública conjunta sobre a violência política contra a vereadora Benny Briolly
(PSOL/Niterói). Maio de 2021. Disponível em: Nota pública conjunta sobre a violência política contra a vereadora
Benny Briolly (PSOL/Niterói) (global.org.br). Acesso em 16 de novembro de 2022.
por políticas de estado que enfrentem frontal- Criola181, Instituto de Defesa da População Ne-
mente a violência política contra nós mulheres gra (IDPN182), Instituto Internacional sobre Raça,
negras, travestis e defensoras dos direitos hu- Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualda-
manos”. No entanto, os algozes de Benny Briolly de), Instituto Marielle Franco183, Justiça Global184
não se intimidaram com o valor simbólico de e Terra de Direitos185, enviaram um pedido de
sua inserção no programa, as ameaças se medida cautelar à Comissão Interamericana
intensificaram ainda mais e, em contrapartida, as de Direitos Humanos (CIDH). “É urgente a pro-
medidas protetivas do programa de proteção a moção de mecanismos de enfrentamento
defensores de direitos humanos não chegaram. a esta violência, como o engajamento das
autoridades competentes na investigação
Desde que o presidente Jair Bolsonaro assumiu
das ameaças e identificação dos agresso-
o governo, o programa passou por um “desmon-
te”, com uma redução de verba para o nível mais res, o aperfeiçoamento de políticas em ní-
baixo desde 2015, e com atraso de até dez meses veis nacional, estadual e municipal de pro-
nos repasses a estados e corte de pessoal. A fal- teção de defensoras de direitos humanos e
ta de atenção ao sistema de proteção fez com adesão do governo brasileiro às recomen-
que os ativistas voltassem a sofrer ameaças por dações já promulgadas por organismos
defenderem o acesso a terra e moradia, a pre- internacionais como a Organização das
servação do meio ambiente e o direito de povos Nações Unidas (ONU) e a Comissão Intera-
tradicionais, como indígenas e quilombolas, em mericana de Direitos Humanos (CIDH)” 186.
179. SOARES, Ana Lícia. RJ: vereadora entra em Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos.
CNN – Brasil. Maio de 2021. Disponível em: RJ: vereadora entra em Programa de Proteção aos Defensores de Direitos
Humanos (cnnbrasil.com.br). Acesso em 16 de novembro de 2022.
180. Diversas parlamentares negras brasileiras eleitas, especialmente com orientação ideológica à esquerda, ao
ocupar o espaço político de Câmaras Municipais, Estaduais e o Congresso Federal, passaram a modificar a flexão
de gênero da palavra Mandato (gramaticalmente, um substantivo masculino) para o termo Mandata. Essa altera-
ção é uma forma de marcar a presença de mulheres nos espaços sociais da política, chamando atenção para o
patriarcado as esferas de poder. Uma das primeiras parlamentares negras eleitas a realizar essa disputa discursiva
foi a vereadora Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018.
181. CRIOLA. Página Inicial. 2022. Disponível em: Criola. Acesso em 16 de novembro de 2022.
182. IDPN. Instagram. Instituto de Defesa da População Negra. 2022. Disponível em: Instituto Defesa da Pop. Negra
(@institutodpn) • Fotos e vídeos do Instagram. Acesso em 16 de novembro de 2022.
183. INSTITUTO MARIELLE FRANCO. Página Inicial. 2022. Disponível em: Junte-se ao Instituto Marielle Franco!. Aces-
so em 16 de novembro de 2022.
184. JUSTIÇA GLOBAL. Página Inicial. 2022. Disponível em: Justiça Global. Acesso em 16 de novembro e 2022.
185. TERRA DE DIREITOS. Página Inicial. 2022. Disponível em: Terra de Direitos. Acesso em 16 de novembro de 2022.
186. TERRA DE DIREITOS; INSTITUTO MARIELLE FRANCO; CRIOLA e JUSTIÇA GLOBAL. O que a violência contra a
Benny Briolly escancara?. Terra de Direitos. Maio de 2021. Disponível em <https://terradedireitos.org.br/noticias/no-
ticias/o-que-a-violencia-contra-a-benny-briolly-escancara/23599>. Acesso em 10 de novembro de 2022.
93
O dossiê elaborado pelas organizações destaca 19 ameaças recebidas pela
parlamentar com “ofensas profundamente racistas e transfóbicas e de conteú-
do chocante, com ameaça de estupro, oferecimento de recompensa para o seu
assassinato e descrição detalhada de como o crime deveria ocorrer: atirando,
degolando, queimando o corpo e arrancando a arcada dentária, para que ficas-
se irreconhecível”, conforme destaca nota da Justiça Global187.
“Eu lamento muito que aos olhos do Estado e, inclusive de muitas organi-
zações, instituições e partidos, que a minha vida não tenha um significa-
do de muito valor. Esta é a realidade. Com todas as ameaças e todos os
históricos de ameaça, eu não tenho uma proteção. E isso significa que a
minha vida não tem muito valor diante dos olhos de todos esses espaços.
Para mim é triste… é lamentável que o meu corpo com tantas potências
políticas seja só um corpo usado a partir de uma ótica: a de mostrar o que
é o Brasil das tantas violências… Eu continuo sendo violentada para isso a
todos os momentos. A decisão da corte interamericana é um marco, mas
não vejo como algo a comemorar porque não é avanço, mas um retroces-
so a partir do momento que, para eu ser uma parlamentar, os custos são
maiores para mim. O peso é maior para mim, as ameaças são maiores
para mim, as limitações de poder atuar nos territórios, poder legislar, po-
der viver… são sempre maiores para mim… Ou seja: eu continuo sendo mui-
to desigual… para poder fazer e ser qualquer coisa”, depoimento de Benny
Briolly, em entrevista para o CBDDH.
De acordo com Benny Briolly, atualmente, ela ras de direitos humanos que estamos arcando
gasta 75% do seu salário pagando os custos de com a nossa própria proteção como eu estou
sua própria segurança: “O Estado não garante fazendo. Eu pago tudo: meus custos de segu-
nada na minha proteção. Quando a gente fala rança, de carro blindado e gasolina, de mora-
sobre isso, a gente precisa evidenciar cada vez dia segura, de locomoção segura. Eu arco com
mais que o Estado não cumpre nada. Somos todos os custos da minha própria segurança”,
nós que cumprimos! Nós militantes e defenso- ressalta a parlamentar.
187. GIZELE. CIDH outorga medidas cautelares a Benny Briolly. Justiça Global. Julho de 2022. Disponível em:
CIDH outorga medidas cautelares a Benny Briolly (global.org.br). Acesso em 16 de novembro de 2022.
Em 11 de julho de 2022, por meio da Resolução 34/2022188, a CIDH solicitou ao Estado bra-
sileiro que adote as medidas necessárias para proteger os direitos à vida e integridade
pessoal de Benny Briolly e de três integrantes de sua equipe de trabalho, levando em con-
sideração as perspectivas étnico-raciais e de gênero, por todos “se encontrarem em uma
situação grave e urgente, de risco de dano irreparável a seus direitos no Brasil”189. Porém,
na prática, uma série de medidas protetivas seguem sem serem adotadas pelo Estado
em decorrência da precarização do PPDDH tanto para a parlamentar quanto para os três
assessores da equipe sob ameaça.
Na avaliação da assessoria da equipe da parla- consegue dar conta das demandas de seguran-
mentar, Bolsonaro, presidente da República, e ça. O programa não se sustenta e, portanto, tam-
seu governo legitimam toda a violência política pouco as nossas demandas. Sinceramente, não
em curso no país contra DDHs e ativistas: “Ele dá tem segurança. Não tem como se sentir seguro.
voz e força para a violência política, fomentando o Quando a gente fala de várias medidas, a questão
ódio, o racismo, a transfobia que expõe Benny ao orçamentária é colocada e acaba não tendo reso-
risco e parte da sua equipe. Por isso, em todo esse lução, pois não tem aplicação de recursos finan-
tempo, em todas as reuniões, o Programa não ceiros. A proteção hoje é meramente simbólica”.
188. OEA. RESOLUÇÃO 34/2022 - Medida Cautelar No. 408-22 Benny Briolly Rosa da Silva Santos e integran-
tes de sua equipe de trabalho em relação ao Brasil. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Julho de
2022. Disponível em: res_34-22 _mc_408-22_br_pt.pdf (oas.org). Acesso em 16 de novembro de 2022.
189. GIZELE. CIDH outorga medidas cautelares a Benny Briolly. Justiça Global. Julho de 2022. Disponível em:
CIDH outorga medidas cautelares a Benny Briolly (global.org.br). Acesso em 16 de novembro de 2022.
95
Fenômeno não é novo no país, mas
no governo bolsonarista passou
a dispor de instrumentos formais
para chegar a um outro patamar,
sendo uma das consequências mais
nefastas à democracia brasileira
190. TERRA E DIREITOS e JUSTIÇA GLOBAL. Violência Política e Eleitoral no Brasil. Terra de Direitos. Setembro e
Outubro de 2022. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/violencia-politica-e-eleitoral-no-brasil/. Acesso em 16
de novembro de 2022.
191. JORNAL NACIONAL. Bolsonarista é preso após matar apoiador do PT a facadas em MT. Portal G1. Setembro
de 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/07/petista-e-assassinado-no-pr-e-pt-fala-em-
-crime-de-odio-por-bolsonarista.shtml. Acesso em 16 de novembro de 2022.
192. Idem
193. NOGUEIRA. Italo. Bomba caseira atinge ato com Lula no Rio em novo ataque à pré-campanha de petista.
Folha de São Paulo. Julho de 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/07/centro-do-rio-abri-
ga-primeiro-palanque-de-lula-em-praca-publica-sob-forte-seguranca.shtml. Acesso em 16 de novembro de 2022.
194. BRASIL DE FATO. Haddad cancela comício em Ribeirão Preto, após alerta da PF de falta de segurança.
Setembro de 2022. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/09/16/haddad-cancela-comicio-em-ri-
beirao-preto-apos-alerta-da-pf-de-falta-de-seguranca. Acesso em 16 de novembro de 2022.
97
em que empresários assediavam e intimida- É notável que esses ataques contra candidaturas
vam funcionários a votar em Jair Bolsonaro (PL), de DDHs são fortemente marcados por
em geral sob ameaça de demissão. De acordo dimensões de gênero, raça, orientação sexual ou
com o Ministério Público do Trabalho, o número identidade de gênero. Dos 10 casos, sete foram
de denúncias de assédio eleitoral aumentou 12 contra mulheres candidatas. Esse fenômeno vai
vezes no período eleitoral de 2022 em relação a no sentido de levantamentos mais amplos que
2018, com 2.556 denúncias, e o número de em- demonstram o forte crescimento da violência
política contra mulheres. Segundo o Ministério
presas denunciadas aumentou 20 vezes, che-
Público Federal196, durante os cerca de dois me-
gando a 1.947 empresas195.
ses da campanha eleitoral de primeiro turno em
Se o cenário geral de violência e intimidação 2022, o número de casos do tipo mais que do-
aumentou tanto mesmo em candidaturas ma- brou se comparado com o período de um ano
joritárias, como candidaturas à presidência da anterior à campanha, atingindo 82 ocorrências
República ou a governos de estado, a situação desde a aprovação de lei que criminaliza a vio-
fica ainda mais preocupante quando analisamos lência política contra mulheres, em 8 de agosto
candidaturas de DDHs em nível local, com menos de 2021, até 2 de outubro de 2022, dia do primeiro
turno das eleições.
visibilidade e estrutura institucional de proteção.
Essa violência assume níveis altíssimos quando
Em levantamento preliminar do Comitê Brasilei-
impulsionada pela conjugação entre misoginia
ro de Defensoras e Defensores de Direitos Hu-
e racismo, em um contexto de hostilidade a mu-
manos, durante o período eleitoral de 2022, entre
lheres negras que pretendem ocupar espaços
16 de agosto e 30 de outubro, foi possível regis-
de poder dos quais foram historicamente alija-
trar ao menos 10 casos de candidaturas de de-
das. Um caso emblemático é o da deputada es-
fensoras/es de direitos humanos, que sofreram
tadual Andreia de Jesus (PT-MG). Mulher negra
graves violações durante a campanha, além dos e destacada defensora de direitos humanos em
vários casos de militantes agredidos ou amea- Minas Gerais, a deputada sofreu mais de 3.500
çados durante campanhas de rua. Entre esses ameaças e ataques desde outubro de 2021197.
10 casos de candidaturas de DDHs analisados, Ela recebeu durante alguns meses escolta poli-
nove sofreram ameaças de morte, em muitos cial, mas, em março de 2022, a Polícia Militar de
casos, com arma de fogo, chegando uma defen- Minas Gerais cancelou a escolta, ainda que as
sora a sofrer agressão física. ameaças não tivessem cessado.
195. MAIA, Flávia. Número de denúncias de assédio eleitoral em 2022 é 12 vezes maior que em 2018. JOTA.
Outubro de 2022. Disponível em: https://www.jota.info/eleicoes/denuncias-de-assedio-eleitoral-em-2022-e-12-ve-
zes-maior-que-2018-31102022. Acesso em 16 de novembro de 2022.
196. ALMEIDA, Pauline. MPF soma 82 procedimentos abertos por violência política de gênero. CNN-Brasil. Ou-
tubro de 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/mpf-soma-mais-de-80-procedimentos-aber-
tos-por-violencia-politica-de-genero/. Acesso em 16 de novembro de 2022.
197. MG1. Ameaçada de morte, deputada Andréia de Jesus denuncia fim de escolta policial. Portal G1. Março
de 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2022/03/17/ameacada-de-morte-deputa-
da-andreia-de-jesus-denuncia-fim-de-escolta-policial.ghtml. Acesso em 16 de novembro de 2022.
198. TERRA E DIREITOS e JUSTIÇA GLOBAL. Violência Política e Eleitoral no Brasil. Terra de Direitos. Setembro e
Outubro de 2022. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/violencia-politica-e-eleitoral-no-brasil/. Acesso em 16
de novembro de 2022.
199. Idem
200. OEA. CIDH insta ao Brasil prevenir, investigar e sancionar atos de violência no contexto do próximo
processo eleitoral. Comissão Intermaricana de Direitos Humanos. Julho de 2022. Disponível em: http://www.oas.
org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2022/171.asp. Acesso em 16 de novembro de 2022.
99
100 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA
O norte do estado de Minas Gerais tem vi-
venciado, nos últimos anos, uma atua-
ção cada vez mais explícita de milícias rurais,
O diferencial na atuação da milícia nesse caso
foi que as usuais táticas de violências e reti-
radas de ocupações, sem ordem judicial, na
que atuam por meio de violências e intimida- zona rural, deu lugar a um avanço em territó-
ções contra trabalhadores, muitas vezes com rios mais próximos da zona urbana, atingindo,
apoio das forças de segurança estaduais. Sua no caso, cerca de 100 pessoas de 55 famí-
principal ação é por meio da política do medo lias204 sem teto e sem-terra, que reivindica-
e a execução de despejos totalmente ilegais, vam o direito à uma moradia digna e adequa-
como no caso da Ocupação Tereza de Bengue- da, e contou ainda com a presença da Polícia
la, em Montes Claros. Militar (PM), mera espectadora conivente com
a ação ilegal.
A Ocupação Tereza de Benguela201 aconteceu no
dia 13 de maio de 2022, na terra da família do Jairo A violência começou com o cerco à área pela
Ataíde, ex-prefeito pelo partido Democratas na ci- milícia rural, que fechou as entradas com
dade de Montes Claros. De acordo com o Movimen- montes de terra trazidos em caminhões ca-
to dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), seus pro- çambas, bloqueando inclusive uma estrada
prietários devem mais de R$ 7 milhões de IPTU. 202
vicinal do município, e barrou o acesso da
Além disso, a área de 38 hectares, no meio de Rede de Apoio à ocupação. A Polícia Militar foi
Montes Claros, é ZEIS (Zona Especial de Interesse reiteradas vezes acionada pelo MTST, chegou
Social), conforme o Plano Diretor da Cidade, repre- a comparecer em um primeiro momento, mas
sentando dessa forma uma propriedade que nun- foi embora mesmo constatando a atuação ile-
ca cumpriu sua função social e que deveria estar gal das forças privadas de segurança e a ine-
destinada para assentamentos habitacionais de xistência de decisão judicial que legitimasse a
população de baixa renda. 203
expulsão das famílias.
201. O direito de ocupar, conforme jurisprudência do STJ, é constitucional, legítimo e justo, enquanto forma de pres-
sionar o Poder Público para implementar política habitacional popular e massiva. O nome da ocupação foi dado em
homenagem à Tereza de Benguela, uma líder quilombola que liderou por 20 anos, a resistência contra o governo
escravista e coordenou as atividades econômicas e políticas do Quilombo Quariterê.
202. MOREIRA, Gilvander Luis. Milícia despeja Ocupação Tereza de Benguela, do MTST, Montes Claros/MG,
sem decisão judicial. Basta! Comissão Pastoral da Terra (CPT-MG). Maio de 2022. Disponível em: https://www.
cptmg.org.br/portal/milicia-despeja-ocupacao-tereza-de-benguela-do-mtst-montes-claros-mg-sem-decisao-judi-
cial-basta/. Acesso em 18 outubro 2022.
203. Idem.
204. GONÇALVES, Bella; CAROLINA,Áurea; CORREIA, Rogério; BRITO Izadora Gama. Denúncia à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos: Despejo Forçado - Ocupação Tereza de Benguela, Minas Gerais. Belo
Horizonte, Minas Gerais, 19 de maio de 2022.
101
De acordo com denúncia realizada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH):
Os relatos atestam que a PM demorou mais de trou, mas não fez nada. Os policiais ficaram as-
uma hora e meia até chegar na ocupação e, ao sistindo aos jagunços derrubando as barracas.
chegar, demonstrou relação próxima com a se- A polícia cumprimentou todos os jagunços”. 207
gurança privada, além de assistir, sem qualquer
intervenção, todos os atos de violência, inclusi- A atuação da milícia rural contou dessa forma
ve uma agressão à vereadora de Montes Cla- com uma explícita omissão policial, legitimadora
ros, Iara Pimentel. 206
De acordo com Jairo dos das agressões físicas. A despeito dessa violência,
Santos, integrante da coordenação nacional do por falta de ação da PM, três dias depois foi a vez
MTST, “quando eles [jagunços] conseguiram dos policiais protagonizarem um outro despejo
derrubar a maioria das habitações, a PM en- ilegal, agora na Ocupação Marielle Franco.
205. Parte das violências podem ser vistas nos links: (1) https://www.youtube.com/watch?v=4CUN6PZH-_M e (2)
https://www.youtube.com/watch?v=Fo_HpSwjTZA. Acesso em 18 outubro de 22.
206. MOREIRA, Gilvander Luis. Milícia despeja Ocupação Tereza de Benguela, do MTST, Montes Claros/MG,
sem decisão judicial. Basta! Comissão Pastoral da Terra (CPT-MG). Maio de 2022. Disponível em: https://www.
cptmg.org.br/portal/milicia-despeja-ocupacao-tereza-de-benguela-do-mtst-montes-claros-mg-sem-decisao-judi-
cial-basta/. Acesso em 18 outubro 2022.
207. GOMES, Amelia. Após ameaça de morte, militantes do MTST de Montes Claros (MG) são obrigados a se
refugiar. Brasil de Fato. Maio de 2022. Disponível em: https://www.brasildefatomg.com.br/2022/05/26/apos-ameaca-
-de-morte-militantes-do-mtst-de-montes-claros-mg-sao-obrigados-a-se-refugiar. Acesso em 18 outubro de 2022.
208. GONÇALVES, Bella; CAROLINA, Áurea; CORREIA, Rogério; BRITO, Izadora Gama. Denúncia à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos: Despejo Forçado - Ocupação Tereza de Benguela, Minas Gerais. Belo
Horizonte, Minas Gerais, 19 de maio de 2022.
103
Essa realidade de terror se insere num contexto militares, com um tiro na nuca, do coordena-
estadual e nacional de legitimação da violência, dor da ocupação Fidel Castro, Daniquel Olivei-
com histórico de reintegrações de posse ilegais ra dos Santos, na cidade de Uberlândia. 211 Em
efetuadas por forças de segurança privada do nor- 2017 e 2018, outros episódios escancararam a
te ao sul do país. Em Minas Gerais, esses despe-
210
atuação de milícias rurais também em Montes
jos ilegais ocorreram a despeito da Lei estadual Claros, na qual a milícia Segurança no Campo
nº. 13.604/2000, que exige a constituição de uma realizou duas emboscadas armadas contra tra-
Comissão de Direitos Humanos dos três poderes balhadores rurais sem-terra na fazenda Norte
do Estado para acompanhar despejos, visando
América. A atuação da milícia chegou a contar
garantir os direitos humanos fundamentais.
com a participação do general de divisão da re-
O estado mineiro é recorrente nos casos de serva do Exército, Mario Lucio Alves de Araujo,
violência de suas forças policiais e seguran- que viria ser nomeado secretário de Justiça e
ças privados envolvendo ocupações. Em 2020, Segurança Pública de Minas Gerais do então
ganhou repercussão a execução por policiais governador Romeo Zema. 212
210. TERRA DE DIREITOS; REDE POPULAR DE ESTUDANTES DE DIREITOS DO PARANÁ. Denúncia à Organização dos
Estados Americanos. Relatório da violência no campo no Estado do Paraná: A acão das milícias privadas.
Curitiba, 2009. Disponível em: https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/Politica_Agraria/7miliciastdd.pdf. Acesso em
19 outubro de 2022.
211. MENDONÇA. Jennifer. PM mata sem-teto e reprime ato que pediu justiça em MG. Ponte Jornalismo. Março
de 2020. Disponível em: https://ponte.org/pm-mata-sem-teto-e-reprime-ato-que-pediu-justica-em-mg/. Acesso
em 19 outubro de 2022.
212. CAMARGOS, Daniel. Insegurança no campo: Milícia rural tem apoio de Secretário de Segurança de Mi-
nas. Repórter Brasil. Maio de 2020. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/velhochico/inseguranca-no-campo.
Acesso em 19 outubro de 2022.
213. GONÇALVES, Bella; CAROLINA, Áurea; CORREIA, Rogério; BRITO, Izadora Gama. Denúncia à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos: Despejo Forçado - Ocupação Tereza de Benguela, Minas Gerais. Belo
Horizonte, Minas Gerais, 19 de maio de 2022.
Desde o início de seu mandato, sabendo que não teria apoio popular nem
votos necessários para mexer na lei de controle de armas, Bolsonaro rea-
lizou flexibilizações via decreto para facilitar a aquisição (dispensando
comprovação de necessidade), aumentou a potência de armas que civis
podem comprar, liberando calibres e armas como carabinas semiauto-
máticas antes de uso exclusivo das forças de segurança, multiplicou —por
meio da portaria citada por ele na reunião de ministros— por 12 o limite de
munição anual para cidadãos comuns (de 50 para 600 unidades), além de
facilitar recargas de munição caseiras, que não são rastreáveis. Soma-se
a isso, a recente e injustificável determinação de cassar portarias do Exér-
cito que traziam normas técnicas para melhorar a marcação e rastreabili-
dade de armas e munições, aprimoramentos fundamentais para a eluci-
dação de crimes, comprovando o perigoso uso político da Presidência em
seu ataque às normas que combatem o tráfico de armas e contrariando
sua suposta intenção de combate ao crime. 216
214. Idem.
216. LANGEANI, Bruno. O ‘chavismo’ de Bolsonaro e o risco das milícias armadas no Brasil. El País. Junho
de 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-06-04/o-chavismo-de-bolsonaro-e-o-risco-das-
-milicias-armadas-no-brasil.html. Acesso em 20 de outubro de 2022.
105
Essa política demonstra seu potencial de intensifi- armas entre 2020 e 2021 conforme dados da
car ainda mais os conflitos envolvendo as milícias Polícia Federal. Já os registros de CACs ativos
rurais e forças de segurança contra ocupações ur- (Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador)
banas e rurais, ao incrementar com fatores críticos saltaram de 197 mil, em 2019, para 674 mil em
como o aumento das armas em circulação, a falta maio de 2022, um aumento de 474% de acordo
de fiscalização e controle por parte do Exército, e o com o último Anuário de Segurança Pública. 220
incentivo e a banalização ao armamento. Desde o
Evidências comprovam que muitas dessas ar-
início do governo Bolsonaro já existem mais de 4,4
mas inicialmente legalizadas acabam na crimi-
milhões de armas em circulação217 em relação aos
nalidade, representando hoje um mercado farto
637.972 registros de armas ativos informados pela
para o crime organizado. A política armamen-
Polícia Federal em 2017.218
tista implementada no governo Jair Bolsonaro,
Segundo o Instituto Sou da Paz, os 40 decre- combinada à redução da fiscalização sobre o
tos e normas que flexibilizaram as regras para uso e o porte delas (o governo revogou três por-
a venda de armas de fogo e munição ao longo tarias que facilitavam a fiscalização e rastrea-
dos últimos 3 anos surtiram efeito. “O número mento de armas e munições)221, ao aumentar
de licenças para armas de fogo mais que quin- o número de armas legais em circulação, tam-
tuplicou de 2018 a 2022, chegando a mais de bém aumentou os casos de roubo ou extravio
650.000. Todo dia, são mais de 1.300 armas de delas. Os institutos Sou da Paz e Igarapé, em
fogo compradas por civis”. 219
Isso representou nota técnica sobre o PL 3723/2019 que visa alte-
o crescimento de 114,5% no registro de novas rar o estatuto do desarmamento, alertam:
217. CERQUEIRA, Daniel e outros. Armas de fogo e homicídios no Brasil. Sumário Executivo. Fórum Brasileiro
de Segurança Pública. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Disponível em: sumario-executivo-armas-fo-
go-homicidios-no-brasil.pdf (forumseguranca.org.br). Acesso em 27 de outubro de 2022.
218. FIGUEIREDO, Isabel; MARQUES, Ivan. Panorama sobre as armas de fogo no Brasil: um retrato possível a partir dos
sistemas federais. In: Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2020. Disponível em: https://forumseguranca.
org.br/wp-content/uploads/2021/07/8-brasil-dobra-o-numero-de-armas-nas-maos-de-civis-em-3-anos.pdf. Aces-
so em 27 de outubro de 2022.
219. INSTITUTO SOU DA PAZ. O descontrole de armas – Uma conversa com Carolina Ricardo. Policy Zone. Se-
tembro de 2022. Disponível em: https://soudapaz.org/noticias/policy-zone-o-descontrole-de-armas-uma-conver-
sa-com-carolina-ricardo/. Acesso em 20 de outubro de 2022.
220. CATRO, Carol. 2.893 Armas foram perdidas ou roubadas de clubes de tiros e colecionadores desde
2018. The Intercept Brasil. Julho de 2022. Disponível em: https://theintercept.com/2022/07/04/armas-perdidas-rou-
badas-clubes-tiro-colecionadores/. Acesso em 20 de outubro de 2022.
221. SOUZA, Felipe. Com mais armas circulando, Brasil ‘começa a colecionar’ casos de tiros em escolas, vê
especialista. BBC News Brasil. Outubro de 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63152623.
Acesso em 20 de outubro de 2022.
Essa política favorável ao armamentismo contribui Essa mudança cultural na sociedade coloca a
para a consolidação de uma cultura das armas insegurança como base do projeto de poder,
que flerta com iniciativas autoritárias e antidemo- operada por meio de uma política do medo e
cráticas, pregando na sociedade a necessidade policiamento de exceção. De acordo com a pro-
da defesa individual dos seus direitos e negando fessora Jacqueline Muniz, especialista em segu-
as instâncias democráticas de resolução dos con- rança pública, temos um “circuito perverso da
flitos, em especial as questões relacionadas com proteção para alguns que pagam por ela. E, des-
toda uma coletividade excluída dos espaços con- ta forma, permite a consolidação de um regime
siderados dos cidadãos de bens e direitos. 223
do medo rentável politicamente”. 224
222. INSTITUTO IGARAPÉ; INSTITUTO SOU DA PAZ. Nota Técnica: Por que o relatório do Senador Marcos do Val
sobre oL 3.723/2019 deve ser rejeitado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal?
Dezembro de 2021. Disponível em: https://igarape.org.br/wp-content/uploads/2021/12/Nota-tecnica-PL-3723.pdf.
Acesso em 20 de outubro de 2022.
223. CAROLINA, Ricardo. Has Bolsonaro released a flood of guns to overwhelm Brazil’s democracy? Open
Democracy. Setembro de 2022. Disponível em: https://www.opendemocracy.net/en/democraciaabierta/bolsona-
ro-brazil-president-election-gun-violence-2022-noauto/#Echobox=1664453770. Acesso em 20 de outubro de 2022.
224. SANTOS, João Vitor. PMs, milícias e governo Bolsonaro: uma relação de apoio, favores, vantagens,
privilégios e carteiradas. Entrevista especial com Jacqueline Muniz. Instituto Humanitas Unisinos. Maio de
2021. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/609020-pms-milicias-e-governo-
-bolsonaro-uma-relacao-de-apoio-favores-vantagens-privilegios-e-carteiradas-entrevista-especial-com-jacqueli-
ne-muniz. Acesso em 20 de outubro de 2022.
107
A atuação da PM e da milícia rural no caso da é enfática sobre o policiamento de exceção e
Ocupação Tereza de Benguela reforçam esse ressalta como ele “não está a serviço do esta-
prognóstico, no qual, segundo denúncias, as do de direito, da cidadania, dos policiais e da
forças policiais atenderam mais aos chama- polícia. Serve a qualquer senhor que instaure a
dos da economia política do crime e da polí- suspeição ampliada, a desconfiança recípro-
cia dos bens (milícia) do que às missões de- ca, as incertezas irrestritas como tecnologias
mocráticas e republicanas. Jacqueline Muniz de governo.” 225
A milícia é a polícia dos bens que tem acuado e tirado das ruas a
polícia do bem, deixando os moradores reféns do estado duas ve-
zes: da polícia miliciana e da polícia de operações que não é capaz
de policiar territórios e população. Como tenho insistido aqui, faz
tempo que os policiamentos em certas regiões do estado são fei-
tos por grupos criminosos. A segurança pública tem que voltar a
ser pública e administrada pelo Estado e não ser mais terceirizada
para firmas clandestinas, grupos armados etc. 226
O/a entrevistado/a do caso Tereza de Benguela pria sociedade civil municiada com o discurso
dialoga com a pesquisadora ao narrar o medo do ódio e o acesso facilitado aos armamentos.
que impera nas ocupações e como a atuação
das milícias contam com uma maior dificul- A trajetória política da família Bolsonaro reforça
dade de identificação e responsabilização. A essas análises, ao demonstrar como o então
cultura do medo instaurou novos antagonistas presidente e seus filhos representam ideologi-
nas disputas por terra e moradia, que as ocupa- camente os grupos milicianos. São recorrentes
ções precisam agora se proteger não apenas de os discursos bolsonaristas favoráveis à legaliza-
ações ilegais do braço armado do estado, mas ção das milícias e uso da violência como meio
também das organizações criminosas e da pró- para estabelecer a ordem na sociedade. 227
225. INSTITUTO IGARAPÉ; INSTITUTO SOU DA PAZ. Nota Técnica: Por que o relatório do Senador Marcos do Val
sobre oL 3.723/2019 deve ser rejeitado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal?
Dezembro de 2021. Disponível em: https://igarape.org.br/wp-content/uploads/2021/12/Nota-tecnica-PL-3723.pdf.
Acesso em 20 de outubro de 2022.
226. Idem.
227. ALESSI, Gil. “Os Bolsonaro sempre foram os representantes ideológicos dos grupos milicianos”. El País.
Abril de 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-04-24/os-bolsonaro-sempre-foram-os-represen-
tantes-ideologicos-dos-grupos-milicianos.html. Acesso em 20 de outubro de 2022.
Esse aparelhamento estatal para a política do maior déficit habitacional, são 557 mil famílias
medo, tem a ausência do poder público como sem segurança da posse, conforme dados de
principal impulsionador do avanço das milícias. pesquisa da Fundação João Pinheiro229. Em Mon-
Essa ausência, no caso das ocupações, origi- tes Claros, esse déficit habitacional está acima
na-se na negativa de acesso à terra urbana ou de 10 mil moradias. 230 Com a atual ofensiva de
rural, às políticas habitacionais, o não reconhe- setores conservadores na criminalização da po-
cimento dos vínculos com seus territórios, que breza e dos movimentos de moradia, num con-
levam famílias do campo e da cidade, povos texto agravado pela crise, não resta alternativa,
tradicionais e indígenas, a serem submetidos a que não seja a ocupação de terrenos ociosos,
que não cumprem a sua função social, como
processos de negação de direitos, ameaças e
forma de pressionar o poder público para cons-
contínua violência.
truir habitações populares e promover políticas
Considerando-se apenas a realidade de Minas públicas comprometidas a combater o déficit
Gerais, temos o segundo estado do país com o habitacional e garantir o direito à moradia.
228. PHILLIPS, Tom. Brazil’s fearsome militias: mafia boom increases threat to democracy. The Guadian. Outu-
bro de 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2022/oct/18/brazil-militias-paramilitary-far-right-
-bolsonaro. Acesso em 20 de outubro de 2022.
229. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit Habitacional no Brasil. 2020. Disponível em: http://fjp.mg.gov.br/deficit-
-habitacional-no-brasil/. Acesso em 20 out. 2022.
230. MOREIRA, Gilvander Luis. Milícia despeja Ocupação Tereza de Benguela, do MTST, Montes Claros/MG,
sem decisão judicial. Basta! Comissão Pastoral da Terra (CPT-MG). Maio de 2022. Disponível em: https://www.
cptmg.org.br/portal/milicia-despeja-ocupacao-tereza-de-benguela-do-mtst-montes-claros-mg-sem-decisao-judi-
cial-basta/. Acesso em 18 outubro 2022.
109
A negativa de moradia impacta ainda no aces- proteção para militantes de direitos humanos:
so a outros direitos, tendo em vista a vincu- programas pensados a partir da militância”. 231
lação do endereço com o acesso às escolas, Defende ainda a busca dos exemplos de ou-
creches e Unidades Básica de Saúde, por tros países com programas eficazes, e a busca
exemplo. Para piorar esse quadro, os despejos de fortalecimento das redes de apoio, com su-
e remoções forçadas se tornaram parte estru- porte e financiamento internacional. Com isso,
turante da (re)produção da política do medo seria possível garantir as mínimas condições
na sociedade brasileira, atingindo famílias de de segurança para as populações impactadas
baixa renda, em situação de vulnerabilidade, resistirem e avançarem nas suas pautas fren-
que são expulsas pela intervenção das empo- te a hegemônica política da violência.
deradas forças privadas de segurança, com
suporte das forças policiais.
111
O racismo estrutura as violências descri-
tas dos casos apresentados, sejam aque-
las destinadas às defensoras e defensores em
Também percebemos a partir dos casos acima,
como que a boiada passa e destrói233. Ela pas-
sa, principalmente, em legislações e atos nor-
si, sejam em decorrência do próprio conjunto de mativos, como no caso do Decreto 10.252/2020,
violações de direitos humanos, que tem se per- que burocratizou a criação de assentamentos
petrado sobre os diferentes territórios de povos rurais e foi utilizado como pretexto para tornar
e comunidades, urbanas e rurais. sem efeito a portaria que publicou a criação do
Assentamento Dorothy Stang, em Anapu, no
Não por acaso, o Condomínio Estrondo, na Bahia,
Pará, cidade palco de muitos conflitos por ter-
declarou como seus 20% de área de reserva le-
ra e dezenas de assassinatos. Isso também se
gal (área de vegetação nativa obrigatória) em
manifesta em cortes orçamentários e a edição
cima dos territórios das comunidades geraizei-
de atos normativos para minar a política de ti-
ras. Ao fazer isso, o condomínio não apenas tra-
ta aquelas pessoas como se fossem ninguém, tulação de territórios quilombolas, paralisando
mas também os seus territórios que, ocupados órgãos públicos que deveriam, por lei, garantir
a centenas de anos por essas comunidades, estratégias que projetam e reconheçam essas
do condomínio. E isso tem consequências dire- Mato Grosso, é uma das comunidades que tem
tas para as pessoas que lá vivem, que se vêm sido atingida por essa política e sofre com uma
impossibilitadas de fazer uso da terra, ir e vir, ou realidade de violências e ameaças.
viver livremente nas suas comunidades.
Assim, ao passo que “a boiada passa”, os ter-
O mesmo tratamento recebe as comunidades ritórios coletivos seguem sem titulação e
geraizeiras do Vale das Cancelas, em Minas Ge- demarcação, e vivem uma série de violências
rais. Há mais de sete gerações no território, essas e violações de direitos. Isso acontece nos casos
famílias convivem agora com a ameaça de um do Território Geraizeiro do Vale das Cancelas,
empreendimento cuja barragem, que é 90 vezes Território Geraizeiro do Alto Rio Preto, Quilombo
maior que a que se rompeu em Brumadinho , 232 Carretão, Território indígena Kaingáng, no Assen-
poderá ser construída sobre suas cabeças. tamento Dorothy Stang.
232. FELIPE, Sabrina. Licença forçada. Canetada do IBAMA destrava mina em MG com barragens 90 vezes maio-
res que a de Brumadinho. The Intercept Brasil. Janeiro de 2022. Disponível em: https://theintercept.com/2022/01/11/
barragens-gigantes-90-vezes-brumadinho-minas-gerais-ibama/. Acesso em 09 de novembro de 2022
233. A expressão se refere a fala do ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Para saber mais: SHALDERS, André.
“Passando a boiada: 5 momentos nos quais Ricardo Salles afrouxou regras ambientais”. BBC-Brasil. Outubro
de 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54364652. Acesso em 09 de novembro de 2011
113
Essa violência está expressa na brutalidade vessados por defensoras e defensores de di-
das violências contra as mulheres defen- reitos humanos, uma vez que o programa teve
soras. Isso está presente no assassinato de sumariamente verbas públicas cortadas e, con-
Dilma Ferreira, que teve a intencionalidade de sequentemente, deixando de proteger os DDHs
matar uma liderança da região, mas também de forma adequada, por mais que na outra ponta
na onda de violência política e eleitoral que instituições que executam o PPDDH tentem e se
atravessou o Brasil nos últimos quatro anos esforcem todos os dias em prestar apoio e auxí-
(2019-2022) e tem como um grande alvo mu- lio aos DDHs inseridos no programa. Portanto, ao
lheres, parlamentares e negras. É o caso da passo em que se avança um cenário concreto
Benny Briolly que sofre em seu corpo físico, de violências de diversas frentes, temos aliado
psíquico e simbólico as consequências do a esse contexto de violações de direitos, o suca-
ódio enquanto sujeito político a partir da in- teamento do programa de proteção a defenso-
terseccionalidade: do racismo, da transfobia, ras e defensores de direitos humanos, que pre-
da misoginia. A vida de Benny ainda é tratada cisa ser revertido de forma urgente pelo governo
de forma simbólica por um Estado que não federal eleito.
garante a parlamentar DDH sequer formas de
É preciso enfrentar essas violências estruturantes
sobreviver e resguardar sua vida física e suas
para combater a violência contra defensoras e
atribuições parlamentares, mesmo estando
defensores. Nesse novo cenário que se anuncia,
inserida no Programa Nacional de Proteção
de mudança de governo no Brasil, é fundamental,
para Defensoras e Defensores de Direitos Hu-
de pronto, assumir a agenda dos movimentos
manos. Mas Benny não é o único caso.
sociais e organizações da sociedade civil sobre
De acordo com análise e acompanhamentos de mudanças imediatas para reverter diversos atos
casos feito pelo Comitê Brasileiro, nos últimos normativos e decretos que violam direitos, na
quatro anos de governo administrados pela ex- mesma medida em que se cria condições para
trema-direita, o PPDDH se tornou apenas um recuperar uma política de inclusão e de respeito
“escudo’ simbólico no cotidiano de riscos atra- aos direitos humanos e quem os defende.
115
C onsiderando os casos apresentados no dossiê, é fundamental que as au-
toridades públicas locais, estaduais e nacionais, a partir de suas devidas
atribuições e competências, tomem medidas para:
234. Parte das recomendações deste tópico são citações diretas das recomendações presentes na III edição do
Dossiê Vidas em Luta. Disponível em: https://comiteddh.org.br/biblioteca/. Acesso em 24 de outubro de 2022.
235. Conforme relatório Disponível em: TERRA DE DIREITOS. Começo do fim? O pior momento do Programa de
Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Dezembro de 2021. Disponível em: https://terradedireitos.org.
br/acervo/publicacoes/livros/42/comeco-do-fim-o-pior-momento-do-programa-de-protecao-aos-defensores-de-
-direitos-humanos/23691. Acesso em 25 de outubro de 2022.
117
● Implementar efetivamente uma perspectiva de gênero e raça para avaliar
os casos e desenvolver medidas de proteção às mulheres defensoras de
direitos humanos atendidas pelo PPDDH;
236. Para mais informações, ver nota técnica elaborada pelo Observatório dos Protocolos de Consulta. OBSER-
VATÓRIO. Nota Técnica referente ao Projeto de Decreto Legislativo n° 177/2021 que propõe a denúncia da
Convenção 169 (retirada do Estado brasileiro na ratificação e compromissos do tratado). Maio de 2021. Dis-
ponível em:.https://observatorio.direitosocioambiental.org/pdl-177-2021/ Acesso em 09 de novembro de 2022.
119
120 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA