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Dossiê Vidas em Luta

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COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E

DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS

VIDAS EM LUTA
2019-2022

CRIMINALIZAÇÃO E VIOLÊNCIA CONTRA DEFENSORAS E


DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

4O VOLUME
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

IV dossiê vidas em lutas : criminalização e


violência contra defensoras e defensores de
direitos humanos no Brasil 2019-2022 /
[coordenação ABGLT (Associação Brasileira de
Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis,
Transexuais e Intersexos)...[et al.]]. --
4. ed. -- Rio de Janeiro : Justiça Global,
2022. -- (Dossiê vidas em luta ; 4)

Outros coordenadores: Artigo 19, CFEMEA (Centro


Feminista de Estudos e Assessoria), CIMI (Conselho
Indigenista Missionário), Justiça Global, Movimento
do Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Terra de
Direitos.
Bibliografia
ISBN 978-65-87127-07-1

1. Ativismo 2. Brasil - Política e governo


3. Democracia 4. Direitos humanos 5. Indígenas -
Direitos fundamentais 6. LGBTI+ - Siglas - Direitos
7. Mulheres - Direitos 8. Trabalhadores rurais
I. ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas,
Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos).
II. Artigo 19. III. CFEMEA(Centro Feminista de
Estudos e Assessoria). IV. CIMI(Conselho Indigenista
Missionário). V. Justiça Global. VI. Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). VII. Terra de
Direitos. VIII. Série.

22-137753 CDD-361.614
Índices para catálogo sistemático:

1. Direitos humanos : Bem-estar social 361.614

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129


Ficha Técnica Pesquisadores e Colaboradores

Realização Alane Luzia da Silva

Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores Amara Hurtado

de Direitos Humanos
Ayala Ferreira

Coordenação Política
Antonio Neto

ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas,


Guacira Cesar de Oliveira
Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos),
Artigo 19, CFEMEA (Centro Feminista de Estudos Gustavo Coutinho

e Assessoria), CIMI (Conselho Indigenista Missio-


Layza Queiroz Santos
nário), Justiça Global, Movimento dos Trabalhado-
res Rurais Sem Terra (MST) e Terra de Direitos Luciana Pivato

Pesquisa e Textos Marcos Napoleão do Rêgo Paiva Dias Filho

Layza Queiroz Santos Maria Tranjan

Marcos Napoleão do Rêgo Paiva Dias Filho Sandra Carvalho


Tatiana Lima
Tchenna Maso
Thiago Firbida

Revisão Textual

Cícero Villela (@cicerovillela1)

Edição Final

Tatiana Lima

Projeto Gráfico e Editoração

Coletivo Piu (@coletivopiu)


REDE DE ORGANIZAÇÕES
E MOVIMENTOS SOCIAIS
DO CBDDH
1. AATR (Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da
Bahia)

2. ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis,


Transexuais e Intersexos)

3. Artigo 19

4. Amencar (Associação de Apoio à Criança e ao Adolescente)

5. Brigadas Populares

6. Cedenpa (Centro de Estudos dos Negros e Negras do Pará)

7. Central de Movimentos Populares (CMP)

8. Centro de Defesa de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno (ES)

9. Centro de Defesa de Direitos Humanos Gaspar Garcia (SP)

10. Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra (ES)

11. Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis

12. Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu

13. Centro de Direitos Humanos de Sapopemba

14. CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria)

15. Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura)

16. Contar (Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e


Assalariadas Rurais)

17. Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular (MG)

18. Coletivo Feminino Plural (RS)

19. Comissão Pastoral da Terra (CPT)


20. Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno

21. CIMI (Conselho Indigenista Missionário)

22. CONAQ (Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas)

23. Conectas Direitos Humanos

24. Coturno de Vênus (Associação Lésbica Feminista de Brasília)

25. Criola

26. Fórum Grita Baixada

27. Grupo Tortura Nunca Mais (BA)

28. Grupo Conexão G de Cidadania LGBT de Favelas

29. Grupo de Mulheres Brasileiras

30. Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJ)

31. Instituto DH: Promoção, Pesquisa e Intervenção em Direitos Humanos e


Cidadania

32. Justiça Global

33. Lajusa (Laboratório de Justiça Global e Educação em Direitos Humanos


na Amazônia)

34. Levante Popular da Juventude

35. Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)

36. Movimento Camponês Popular (MCP)

37. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)

38. Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)

39. Organização de Seringueiros de Rondônia (OSR)

40. Organização de Povo Apurinã e Jamamadi do Sul do Amazonas (OPIAJBAM)

41. Rede Justiça Nos Trilhos

42. Repórter Brasil

43. Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH)

44. Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH)

45. Terra de Direitos


SUMÁRIO
1. Apresentação 08

2. As violências contra defensoras e defensores de direitos


humanos: causas e estruturas de um país desigual 11

3. Quatro anos de resistência: Conflitos e contextos de violências


acompanhados pelo Comitê 20

4. Os casos estudados 35

4.1 O assassinato de Dilma Ferreira e a “Chacina de Baião” 36

4.2 A violência como “hábito”: os conflitos e disputas por


terras na Gleba Bacajá, em Anapu. 45

4.3 “O nosso agronegócio é orgulho nacional”?:


Violências do Condomínio Estrondo sobre
comunidades geraizeiras no oeste baiano 53

4.4 A mineração de ferro como projeto prioritário para o


território Geraizeiro do Vale das Cancelas, em Minas
Gerais 64

4.5 Povo Kaingáng: colonialismo moderno expropria e


precariza terceiro maior povo originário do Brasil 74

4.6 Quais os limites do latifúndio? - As disputas fundiárias


que cercam o Quilombo Carretão 82

4.7 Benny Briolly: as diversas camadas da violência política


racista e transfóbica 91

4.8. A violência política contra Defensoras/es de Direitos


Humanos 96

4.9 A banalização dos despejos ilegais: o caso da


Ocupação Tereza de Benguela e o avanço das milícias
rurais em Minas Gerais 100

5. Conexões e conclusões 111

6. Recomendações 115
1.
APRESENTAÇÃO
O Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores
de Direitos Humanos (CBDDH) é uma articulação
em rede composta por 45 organizações da
sociedade civil e movimentos sociais1, tanto do
cenário do campo quanto da cidade, algumas com
atuação em todo o território nacional.

8 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


D
esde 2004, quando o Comitê foi criado, é governo federal (2019-2022),
realizado um contínuo acompanhamen- período em que o Brasil foi
to da implementação do Programa Nacional de governado pela extrema-di-
Proteção às Defensoras e aos Defensores de reita bolsonarista. Essa esco-
Direitos Humanos no Brasil (PPDDH). A partir lha foi feita considerando que
de 2015, o Comitê, além de monitorar a política a presente edição foi finali-
pública de proteção, também passou a realizar zada em dezembro de 2022,
ações de incidência, levantamento de dados, logo após um conturbado
pesquisas, ações de comunicação e visibili- cenário eleitoral no qual car-
dade, missões territoriais em locais onde há gos de governos de Estado,
evidentes violações de direitos humanos e vio- Congresso Nacional, Assem-
lência contra defensoras e defensores, e apoio bleias Legislativas Estaduais
direto em caso de emergências. e a presidência da República
estavam em disputa.
No que diz respeito ao eixo de pesquisa, le-
vantamento de dados e produção de informa- As avaliações realizadas pelo

ções, o principal instrumento utilizado pelo Comitê estão ancoradas em

Comitê é o “Dossiê Vidas em Luta”, que está dados e pesquisas da situa-

no quarto volume. O objetivo central de todas ção de defensoras e defensores de direi-

as edições publicadas é apresentar para a tos humanos, que piorou muito nesses últimos

comunidade nacional e internacional o atual quatro anos. Políticas de austeridade e enfra-

cenário de violações de direitos humanos no quecimento de conselhos de participação so-

Brasil, considerando especialmente os casos, cial e popular, discursos que incentivaram e

conflitos, contextos e pautas acompanhadas legitimam violências contra defensoras e de-

pelas organizações que compõem a rede do fensores de direitos humanos (DDHs), soma-

Comitê, no tema de defensoras e defensores dos ao desmantelamento de órgãos públicos

de direitos humanos. e o enfraquecimento de políticas sociais são


fatores que explicam esse agravamento. Essa
O marco temporal das análises desta 4ª edi- análise estava presente também no dossiê nº
ção do dossiê são os últimos quatro anos de 31, publicado em 2020.

1. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Vidas em Luta: criminalização


e violência contra defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil: volume III. 2020. Disponível em: https://
comiteddh.org.br/biblioteca/. Acesso em 24 de outubro de 2022.

9
Para compreender melhor esse cenário, além entrevistas, com diversas organizações sociais
da escolha metodológica do marco temporal e lideranças políticas brasileiras que atuam nos
de 2019-2022, essa edição também optou por casos concretos ou que tem uma relevante con-
realizar um estudo de casos emblemáticos de tribuição na luta em defesa dos direitos huma-
violações de direitos humanos a partir de reali- nos. Essas pessoas, e suas organizações, foram
dades acompanhadas e apoiadas pelo Comitê parceiras ativas na construção desse documen-
Brasileiro. Foi realizado o estudo de oito casos, to e, a elas, destacamos o nosso agradecimento.
que envolvem conflitos com: mineração; grila-
No próximo capítulo, iremos apresentar o porquê
gem de terras; agronegócio; exploração de ma-
proteger defensoras e defensores de direitos
deira; milícias urbanas e rurais; violência política;
humanos passa, diretamente, por enfrentar as
demarcação de terras indígenas, quilombolas,
causas que estruturam as violências. Em segui-
de sem terras e sem teto; que estão mais bem
da, no capítulo 3, vamos realizar uma apresen-
detalhados no tópico 4. A diversidade regional
tação de dados sobre ações e casos acompa-
de lutas e a representatividade de tais conflitos
nhados pelo Comitê. Já o capítulo 4 é destinado
foram critérios utilizados para a escolha dos oito
à apresentação dos casos objeto do estudo. E,
casos analisados.
no capítulo 5, identificamos os pontos de viola-
O objetivo deste estudo foi, além de evidenciar ção de direitos humanos, luta e resistência que
as violações presentes e o contexto da luta por conectam todos eles. Por fim, no capítulo 6, o
direitos humanos nos territórios, compreender Comitê apresenta suas recomendações para a
como a ação do Estado e suas esferas legisla- proteção integral de defensoras e defensores de
tiva, executiva ou judiciária, agem de forma a direitos humanos.
oportunizar para que essas violências aconte-
çam. Para o estudo desses casos, foram feitas 18 Boa leitura!

10 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


2. AS VIOLÊNCIAS
CONTRA DEFENSORAS
E DEFENSORES DE
DIREITOS HUMANOS:
CAUSAS E ESTRUTURAS
DE UM PAÍS DESIGUAL
A violência imposta desde o processo de
colonização do Brasil se sustenta em concepções
de hegemonia racial, sexual e territorial

11
O Brasil é um país profundamente desigual, masculinos, advindos do norte europeu seriam
constituído a partir de um processo de coloni- a raça social e culturalmente superior. Enquan-
zação europeia que teve, em suas bases, a ex- to povos indígenas, negros, do sul global, suas
ploração massiva de mão de obra negra e indí- crenças e culturas, inferior. Todo esse processo
gena. Foram mais de três séculos nos quais a construiu a estrutura racista e sexista da socie-
escravidão foi formalmente legalizada, e onde dade brasileira que, até os dias de hoje, faz com
pessoas negras e indígenas não eram vistas que a população negra (formada por pretos e
como pessoas, mas sim como objetos para a pardos) - que são 54% da população brasileira,
exploração. Essa história é conhecida por grande segundo o IBGE - tenham menos terras, empre-
parte da população, mas a compreensão de sua
gos, salários mais baixos e sejam as maiores
reprodução nos dias de hoje permanece frágil.
vítimas de homicídios no Brasil. As mulheres
A violência imposta desde o processo de colo- também sofrem uma violência particular por
nização do Brasil se sustenta em concepções serem simplesmente mulheres e, dentre elas, as
de hegemonia racial, sexual e territorial. Os co- negras, cis ou trans, são as que tem seus direitos
lonizadores, em sua maioria cristãos, brancos, ainda mais violados. Vejamos alguns dados2:

Quadro 1 – Desigualdades no Brasil

Realidade fundiária

Estabelecimentos com mais de 2500 hectares Há mais produtores negros que brancos no Brasil. Con-
correspondem a 0,3% de área no Brasil e estão tudo, os negros são maioria nas menores propriedades
nas mãos de 32,8% da população. Os estabele- (5 hectares). Quanto maior o tamanho da propriedade,
cimentos com menos de 50 hectares, que são menos os negros são proprietários. Além disso, os bran-
81.4% do total, ocupam apenas 12,8% da área cos, ainda em menor quantidade de produtores, são do-
do território nacional. (Fonte: IBGE. Atlas do nos de quase 60% das terras do Brasil. (Fonte: Pública,
espaço rural Brasileiro. 2020); em pesquisa feita a partir dos dados de IBGE. 2019).

2. Os dados do quadro foram retirados das seguintes fontes:


1. IBGE. Atlas do espaço rural Brasileiro. 2020. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/atlas/te-
maticos/16362-atlas-do-espaco-rural-brasileiro.html?=&t=acesso-ao-produto. Acesso em 24 de outubro de 2022.
2. PINA, Rute. FONSECA, Bruno. O agro é branco. Pública, 2019. Disponível em: https://apublica.org/2019/11/o-
-agro-e-branco/. Acesso em 24 de outubro de 2022; 3) IBGE. Desigualdades sociais por raça e cor no Brasil.
2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em 31 de
outubro de 2022.

12 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Desigualdade por raça, cor e sexo

64% da população que está desocu- 46% dos homens e quase 48% das Mais que o dobro das
pada e 66% da população que tem sua mulheres que possuem trabalho pessoas abaixo da linha
força de trabalho subutilizada é negra; informal no Brasil são negras; da pobreza são negras;

No período abrangido pela pesquisa, a chance de As pessoas negras são a maioria das pessoas que
uma pessoa negra ser vítima de homicídio no Bra- moram em residências sem abastecimento de água,
sil era 2,7 vezes maior que a de pessoas brancas. sem coleta de lixo, e sem esgotamento sanitário;

(Fonte: IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. 2019)

Esses dados exemplificam e apresentam um líticas públicas não chegam e a efetivação dos
quadro geral das desigualdades que permeiam direitos sobre os territórios em que habitam, em
o país. Assim, partimos de um pressuposto bá- geral há séculos, tem se tornado cada vez mais
sico: o que estrutura a violência contra defen- precária e distante.
soras e defensores de direitos humanos é um
A reprodução dessa violência estruturante acon-
estado ancorado no racismo e no sexismo e
tece por meio de políticas públicas que não são
em um sistema econômico no qual o lucro e
efetivadas, pela atuação do sistema judiciário,
a riqueza de alguns valem mais do que a vida
por atos normativos e legislações que contra-
de determinadas pessoas. Quanto mais uma
riam direitos constitucionalmente assegurados,
pessoa, ou coletividade, está fora de um padrão
por falas, discursos e posicionamentos de auto-
branco, masculino, sexualmente normativo e
ridades públicas e agentes privados.
rico, mais vai sofrer com as desigualdades.
Apesar da Constituição de 1988 prever uma série
É o que se observa, por exemplo, com povos e de princípios e normas que buscam contrapor
comunidades tradicionais no Brasil, que têm essa herança colonial, na medida em que reco-
uma existência coletiva, identificando-se a par- nhece direitos de povos indígenas, pessoas ne-
tir do território, de seus modos de vida, práticas, gras, mulheres, o direito universal de acesso à saú-
costumes e tradições. São grupos que têm uma de, ao trabalho, comida, e a vida com dignidade
íntima relação com o ambiente em que vivem, e para todas as pessoas não são colocados em prá-
que lutam para a manutenção de sua identidade tica, além de serem cotidianamente deturpados,
enquanto povo. Para essas comunidades, as po- violados e atacados no Brasil.

13
2.1. DESMONTE DE POLÍTICAS PÚBLICAS
E AUMENTO DA VIOLÊNCIA

Defensoras e defensores de direitos humanos, são aquelas


pessoas que lutam para mudar essa realidade, a partir de seus
locais de atuação. São organizações, movimentos sociais, po-
vos e comunidades que lutam por melhores condições de vida,
por um meio ambiente equilibrado e protegido, pela proteção
de seus territórios tradicionais, por terra, moradia, pelo direi-
to das mulheres, pelo direitos das pessoas serem livres para
exercerem sua sexualidade, sua identidade de gênero, contra a
violência que sofre a juventude negra, pelo desencarceramento,
por trabalho, pela saúde, pela efetivação de direitos humanos
que, em grande parte, já são previstos constitucionalmente.

É dever do Estado garantir a proteção e a conti- direitos humanos e na atuação das causas que
nuidade da luta das pessoas que defendem os geram o estado de risco ou vulnerabilidade”3.
direitos humanos, uma vez que esses grupos de-
Ou seja, além de garantir proteção direta, deve o
sempenham o trabalho fundamental para o não
Estado, a partir de uma atuação conjunta, com-
retrocesso e/ou avanço e efetivação de direitos,
bater as causas que motivam a situação de ris-
além de serem essenciais no fortalecimento da
co ou vulnerabilidade. Isso significa que, na me-
democracia.
dida em que uma coletividade ou pessoa está
Segundo o decreto 6.044/2007, uma das diretri- ameaçada, porque expressa sua identidade de
zes para garantir a proteção de DDHs é o “for- gênero e defende o direito das pessoas travestis
talecimento do pacto federativo, por meio da e transexuais, por exemplo, compete ao Esta-
atuação conjunta e articulada de todas as esfe- do não só coibir a ameaça e protegê-las, como
ras de governo na proteção aos defensores dos também construir políticas públicas que falem

3. CASA CIVIL. Política Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos. Art. 4, inciso I, decreto
6.044/2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6044.htm. Acesso
em 25 de outubro de 2022.

14 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


sobre a diversidade de gênero, que garantam a proteção às defensoras e defensores de direi-
elas o direito ao trabalho, à renda e não sejam tos humanos, deveria ser o ator responsável
discriminadas por sua identidade. Isso se esten- por garantir essa proteção e impulsionar essa
de a todas as demais situações nas quais esse articulação política. Mas, segundo o relatório
conflito está presente. “Começo do fim?”4 elaborado pela sociedade ci-

Contudo, isso está muito longe de acontecer vil, o programa vive atualmente o pior momento
na prática e o quadro de violações se agravou de sua história, e pode-se falar que sofre, pelo
ainda mais nos últimos anos. O programa de menos, oito grandes ataques:

1 Baixa execução orçamentária

2 Falta de participação social e transparência

3 Baixa institucionalização

4 Falta de estrutura e equipe para atendimento da demanda

5 Diminuição de casos incluídos no âmbito federal

6 Insegurança política na gestão

7 Inadequação quanto à perspectiva de gênero, raça e classe

8 Demora, insuficiência e inadequação das medidas de proteção

4. TERRA DE DIREITOS; JUSTIÇA GLOBAL. Começo do fim? O pior momento do Programa de Proteção aos Defen-
sores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas. 2021. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/
acervo/publicacoes/livros/42/comeco-do-fim-o-pior-momento-do-programa-de-protecao-aos-defensores-de-di-
reitos-humanos/23691. Acesso em 25 de outubro de 2022.

15
Para além dos ataques ao programa de prote- quatro anos, que representam o desmonte do
ção em si, há uma série de políticas, medidas e estado de direitos e o comprometimento de nos-
proposições legislativas, sobretudo nos últimos sa democracia. Dentre elas:

• Destruição de diversos mecanismos de participação social através do Decreto nº.


9.759/20195;

• Paralisação da política de titulação de territórios quilombolas e demarcação de terras


indígenas;

• Ameaça de denúncia à Convenção 169 da OIT, através do PDL 1776;

• Flexibilização das legislações ambientais e desmonte do aparato estatal de fiscaliza-


ção, que promoveu o aumento histórico de desmatamento na Amazônia, Cerrado e
Pantanal;

• Desmantelamento da política de reforma agrária, com proposições legislativas que fa-


vorecem/incentivam a grilagem de terras, principalmente na Amazônia Legal (MP 9107;
PL 26338; PL 5109);

• Publicação de normativas que favorecem a privatização de terras públicas, como o


Programa Titula Brasil, IN 105 do INCRA10;

• Dezenas de decretos que flexibilizaram o uso de armas de fogo no Brasil, que fez com
que o número de licenças de armas aumentasse significativamente nos últimos anos;

5. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da ad-
ministração pública federal. 2019. Disponível em: Base Legislação da Presidência da República - Decreto nº 9.759
de 11 de abril de 2019 (presidencia.gov.br). Acesso em 14 de novembro de 2022.

6. ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA. Mais de 240 organizações repudiam projeto que ataca
Convenção 169 e direitos dos povos e comunidade tradicionais. 28 de junho de 2021. Disponível em: Mais de
240 organizações repudiam projeto que ataca Convenção 169 e direitos de povos e comunidades tradicionais - Ar-
ticulação Nacional de Agroecologia. Acesso em: 14 de novembro de 2022.

7. CONGRESSO NACIONAL. Medida Provisória 910/2019. (Regularização fundiária). 2019. Disponível em: MPV
910/2019 - Congresso Nacional. Acesso em: 14 de novembro de 2022.

8. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 2633/2020. 2020. Disponível em: Portal da Câmara dos Deputados
(camara.leg.br). Acesso em: 14 de novembro de 2022.

9. SENADO FEDERAL. Projeto de Lei 510/2021. 2021. Disponível em: PL 510/2021 - Senado Federal. Acesso em: 14 de
novembro de 2022.

10. INCRA. Instrução Normativa Incra N°105/2021: Regulamenta os procedimentos para a celebração de par-
cerias com os municípios e implementação dos Núcleos Municipais de Regularização Fundiária – NMRF para a
execução do Programa Titula Brasil. 2021. Disponível em: INSTRUÇÃO NORMATIVA INCRA Nº 105, DE 29 DE JANEIRO
DE 2021. – B & S Gestão Pública S/S LTDA – ME (bsgestaopublica.com.br). Acesso em: 14 de novembro de 2022.

16 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


• O PL 191/2011, que tem como objetivo central regulamentar a exploração de recursos
minerais em reservas indígenas;

• A trágica gestão da pandemia da COVID-1912 que resultou em mais de 700 mil mortes
no Brasil;

• O enfraquecimento de políticas sociais que faz com que, em 2022, o Brasil tenha
cerca de 33 milhões de pessoas passando fome13;

• O desmonte da Fundação Cultural Palmares14, com a retirada de acervo de acesso


público para a população;

• Desmonte e corte de investimentos em políticas públicas para as mulheres, segun-


do dados do IPEA15;

• Exclusão de um órgão exclusivo para a promoção dos direitos da população LGBT-


QIA+ do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos16;

• O incentivo à violência por meio de falas17 e posicionamentos públicos do presidente


da República Jair Messias Bolsonaro (2019-2022);

11. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. PL 191/2020: MPF reitera manifestação contrária à proposta que regula-
menta mineração em terras indígenas. 2022. Disponível em: PL 191/2020: MPF reitera manifestação contrária à
proposta que regulamenta mineração em terras indígenas — Procuradoria-Geral da República. Acesso em: 14 de
novembro de 2022.

12. AGÊNCIA SENADO. Pesquisas apontam que 400 mil mortes poderiam ser evitadas; governistas questio-
nam. Junho de 2021. Disponível em: Pesquisas apontam que 400 mil mortes poderiam ser evitadas; governistas
questionam — Senado Notícias. Acesso em: 14 de novembro de 2022.

13. REDE BRASILEIRA DE PESQUISA. 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pan-
demia da Covid-19 no Brasil. 2022. Disponível em: 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto
da Pandemia da Covid-19 no Brasil – Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e SAN (pesquisassan.net.br). Aces-
so em: 14 de novembro de 2022.

14. AGÊNCIA SENADO. Para debatedores, Fundação Palmares passa por desmonte e é usada para prática de
racismo. Setembro de 2021. Disponível em: Para debatedores, Fundação Palmares passa por desmonte e é usada
para prática de racismo — Senado Notícias. Acesso em: 14 de novembro de 2022.

17. BRANDALISE, Camila. Governo Bolsonaro acentuou desmonte de políticas para mulheres, diz estudo. Uni-
versaUOL. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2022/07/01/governo-bolsonaro-a-
centuou-desmonte-de-politicas-para-mulheres-diz-ipea.htm. Acesso em 26 de outubro de 2022.

18. PEREIRA, Matheus Mazzilli. Pereira.Políticas para LGBTI+ no governo federal: ascensão e queda. Nexo Jor-
nal. 2022. Disponível em: <https://pp.nexojornal.com.br/linha-do-tempo/2022/Pol%C3%ADticas-para-LGBTI-no-go-
verno-federal-ascens%C3%A3o-e-queda>. Acesso em 26 de outubro de 2022.

19. XAVIER, Getúlio. Para 42% dos brasileiros, discursos de Bolsonaro estimulam a violência, diz PoderData.
Carta Capital, 2022. Disponível em: Para 42% dos brasileiros, discursos de Bolsonaro estimulam a violência, diz Po-
derData - CartaCapital. Acesso em: 14 de novembro de 2022.

17
Os fatos citados são somente exemplos de eleitoral no ano de 2022, se comparado com o
ações tomadas pelo governo - ou pelo Con- ano de 201818.
gresso - que acentuam desigualdades. Essas
O advogado do coletivo de direitos humanos
políticas têm uma repercussão prática na vida
do Movimentos dos Atingidos por Barragens
das pessoas e, são as defensoras e defensores
(MAB)19 e membro da mesa diretora do Con-
de direitos humanos que as denunciam e lutam
para revertê-las. selho Nacional de Direitos Humanos, Leandro
Scalabrin, identifica como violência difusa: “As
Um fator que merece destaque é o aumento de ameaças que você não sabe de onde vai vir o
discursos e ações motivadas pelo ódio às mino- ataque nem quando”.
rias políticas. O presidente da república Jair
Ele exemplifica com o atentado que ocorreu em
Bolsonaro é um agente impulsionador des-
Passo Fundo, Rio Grande do Sul, em novembro
sas violências na medida em que coleciona
de 2018. Um indígena foi baleado, após uma pes-
dezenas de falas públicas de ataque às insti-
tuições, ONGs, mulheres, pessoas LGBTQIA+, soa atirar contra um grupo que estava em fren-

negros, pessoas que vivem em favelas e te a Fundação Nacional do Índio20. Ou seja, uma

periferias, indígenas, quilombolas, entre mi- violência inesperada, pois partiu de uma pessoa
lhares de outros grupos que são vistos como que, até onde se sabe, não tinha relação direta
ameaças à sua política de ódio. com as pessoas que lá estavam.

Essas violências difusas foram especialmente


Organizações, pesquisadoras e pesquisadores
agravadas no cenário eleitoral. Em 2022, assis-
e movimentos sociais denunciam que essas
falas legitimaram um estado de violência no timos pessoas serem agredidas nas ruas, tiros

Brasil, dando força para que pessoas praticas- serem disparados contra janelas e assassina-

sem toda a sorte de preconceitos e violências tos de pessoas que manifestaram sua posição
contra a população. Afinal, se o presidente da política. Esse estado de violência, associado
República fala, todas as pessoas também es- às políticas que retiram direitos, trazem enor-
tão autorizadas a dizer (e fazer) o mesmo. Esse mes consequências para quem defende os
ambiente de violência construído e fortalecido direitos humanos. Segundo Andréia Silvério,
desde as eleições de 2018 resultou em um au- advogada e integrante da Coordenação da
mento de mais de 400% na violência política e Comissão Pastoral da Terra21:

18. TERRA DE DIREITOS e JUSTIÇA GLOBAL. Violência Política e Eleitoral do Brasil. 2022. Disponível em: https://
terradedireitos.org.br/violencia-politica-e-eleitoral-no-brasil/. Acesso em 08 de novembro de 2022

19. MAB. Movimento de Atingidos por Barragens. 2022. Disponível em: MAB - Movimento dos Atingidos por Bar-
ragens. Acesso em 14 de novembro de 2022.

20. DIÁRIO DA MANHÃ. Índio é baleado após discussão em Passo Fundo. Disponível em: https://diariodamanha.
com/noticias/indio-e-baleado-apos-discussao-em-passo-fundo/. Acesso em 26 de outubro de 2022.

21. CPT. Comissão Pastoral da Terra. 2022. Disponível em: Comissão Pastoral da Terra - Início (cptnacional.org.br).
Acesso em 14 de novembro de 2022.

18 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


A não garantia dos direitos territoriais e ambientais acabou impac-
tando diretamente as comunidades, pois na medida em que o estado
não apresenta respostas, as comunidades ficam mais vulneráveis e
expostas à violência. Desde a violência física até a tentativa de ex-
pulsão dos territórios. A principal forma de violência que a CPT tem
registrado nos últimos anos é a de expulsão. Há uma diminuição
do número de assassinatos nos últimos dois anos e o aumento dos
conflitos relacionados às expulsões, mas isso não significa uma
diminuição da violência. Além disso, os assassinatos começaram a
ser mais direcionados para as lideranças.

Ou seja, há uma relação entre política pública (ou sua ausência) e a violência que
sofrem as defensoras no território. Sobre isso, Nildon Deleon, advogado da socie-
dade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos diz:

Vejo a necropolítica- esse deixa morrer - por meio do estrangulamen-


to dos órgãos que são responsáveis pela política agrária, como o In-
cra. Há problemas sérios no impacto da vida das ocupações. Quan-
do se discute segurança pública, não é só caso de polícia, existe um
conjunto de políticas que devem ser adotadas pelo estado e isso vale
para o campo e para cidade.

Esse “deixar morrer” - necropolítica22 - é nítido quando se analisa os casos concretos


acompanhados pelo comitê, como se verá mais abaixo.

22. MBEMBE, A. Necropolítica. “Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte.” São Paulo: n-1edições
(2018)

19
3. QUATRO
ANOS DE
RESISTÊNCIA:
CONFLITOS E
CONTEXTOS
DE VIOLÊNCIAS
ACOMPANHADOS
PELO COMITÊ

20 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


C
om 18 anos de existência, o Comitê atua proteção são diversas, indo desde o apoio direto
há 7 (sete) anos com ações direciona- para situações de risco em que se encontram
das para a proteção integral de defensoras e coletivos, pessoas e organizações de defesa
defensores de direitos humanos. A mudan- dos direitos humanos, como também ações de
ça da atuação do CBDDH tem uma relação incidência e visibilidade. O Comitê entende que
direta com a percepção sobre o aumento da não se combate a violência e nem se protege
violência contra DDHs, fruto não só do enfra- pessoas e grupos sem enfrentar as causas es-
quecimento do programa de proteção condu- truturantes dos conflitos. Por isso, a defesa de
zido pelo Estado, como também pelo contínuo defensoras e defensores de direitos humanos
fortalecimento de políticas antidemocráticas, passa por, necessariamente, incidir perante os
que violam direitos humanos e ameaçam órgãos, denunciar e visibilizar os conflitos.
quem os defendem.
As ações desenvolvidas pelo CBDDH podem ser
As ações realizadas pelo Comitê com foco em mais bem compreendidas no quadro abaixo23:

Quadro 2 – Ações desenvolvidas pelo CBDDH

SUPORTE EMERGENCIAL

Destinado ao atendimento de casos cuja gravidade da vulnerabilida-


de requer a adoção de medidas de proteção diretas e temporárias.
Pode ser ações como a retirada temporária de DDHs de seus locais
de atuação; a aquisição ou locação de equipamentos destinados à
melhoria das condições de comunicação e mobilidade, tais como te-
lefones, câmeras, veículos, etc., e até o custeio das despesas neces-
sárias à presença imediata de advogados/as.

MISSÕES IN LOCO

Além de possuírem um caráter de incidência, também possuem um


viés protetivo e visam intervir em um cenário grave de violências e
violações de direitos humanos.

23. As informações do quadro são citações diretas do site do Comitê Brasileiro de Defensores e Defensoras de Direi-
tos Humanos. Disponível em: https://comiteddh.org.br/atuacao/ Acesso em 20 de outubro de 2020

21
INCIDÊNCIA POLÍTICA

Essa incidência se dá tanto em âmbito nacional como internacional e tem


por objetivo cobrar dos governos e do Estado Brasileiro, ou dos organismos
internacionais, que intervenham de forma a cessar a situação de violência
contra defensoras e defensores de direitos humanos, ou mesmo de abrir
investigações para responsabilizar agentes violadores, assim como para o
fortalecimento das políticas públicas de proteção.

COMUNICAÇÃO E VISIBILIDADE

Compreendendo o direito humano à comunicação como uma ferramenta


que influencia a garantia ou negação de outros direitos, o Comitê elabora
estratégias que visam promover o debate acerca dos direitos humanos no
Brasil, desenvolve ações que pautam os meios de comunicação de massa e
produz informação contra-hegemônica por meio de sua política de comuni-
cação, que tem como objetivo fortalecer a missão institucional do Comitê e
as temáticas das defensoras e defensores de direitos humanos

Todas essas ações foram desenvolvidas nos últimos quatro anos e tiveram um
papel importante para proteger pessoas, organizações e movimentos sociais em
situação de risco e vulnerabilidade.

Entre 2019 e 2022, o Comitê emitiu 54 notas públicas, sendo 25 notas


de repúdio a ações violentas e violações de direitos humanos pelo
Estado, 12 notas de apoio e solidariedade a organizações e movimen-
tos sociais, 13 notas públicas à sociedade para denunciar, alertar e
informar sobre violações e violências diretas contra DDHs, além de
4 notas de pesar a assassinatos de defensores de direitos humanos,
dentre eles, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips24.

24. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Nota de pesar sobre assassi-
nato de Bruno Pereira e Dom Phillips. Junho de 2022. Disponível em: Nota de pesar sobre assassinato de Bruno
Pereira e Dom Phillips – Comitê DDH (comiteddh.org.br). Acesso em 14 de novembro de 2022.

22 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Destaca-se ainda carta pública da sociedade modificação realizada ao PPDDH pelo Gover-
civil ao Congresso Nacional , em 2019, para a
25 no Federal, que, dentre outros pontos, alterou a
Frente Parlamentar Mista em Defesa da Demo- composição do ConDel do Programa de Prote-
cracia e dos Direitos Humanos; a manifestação ção pelo Decreto 10.815/2021.
em carta enviada ao Relator Especial da ONU
Em outubro de 2022, o Comitê alertou para a
Clement Voule26, chamando atenção para 10 insuficiência dos três assentos incluídos pelo
situações graves de violação de direitos huma- Decreto, não havendo paridade de vagas entre
nos no Brasil; além da carta lançada em maio sociedade civil e órgãos do Governo na com-
de 202227, na qual o Comitê e o conjunto de suas posição do Conselho, assim como da não pre-
organizações e movimentos sociais reforçam visão de processo de escolha das organizações
compromisso social da articulação com a pro- de maneira participativa e auto-organizada pela
teção de defensores e a luta a favor dos direitos própria sociedade civil.
humanos no Brasil.
Ainda, compreendendo o direito humano à co-
Dentre as manifestações, temos a nota de repú- municação como uma ferramenta que influen-
dio ao chamamento público para composição cia a garantia ou a negação de outros direitos,
dos integrantes da sociedade civil para o Con- o Comitê também atua e elabora estratégias
selho Deliberativo (ConDel) 28
do Programa de que visam promover o debate, produzindo in-
Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, formação para fomentar e dar visibilidade ao
Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), con- tema das defensoras e defensores de direitos
forme disposto no Edital n° 5/2022 do Ministério humanos e/ou fiscalizar políticas públicas que
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tem ligação direta às pessoas defensoras de
(MMFDH). O chamamento público ocorreu após direitos humanos.

25. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Comitê pede ao Estado prote-
ção para agricultores/as do P. A Areia no Pará. Dezembro de 2028. Disponível em: nota-Areia_14.12.pdf (comite-
ddh.org.br). Acesso em 14 de novembro de 2022.

26. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Sociedade Civil se manifesta
em carta sobre visita ao Brasil do Relator Especial da ONU. Março de 2022. Disponível em: Sociedade Civil se
manifesta em carta sobre visita ao Brasil do Relator Especial da ONU – Comitê DDH (comiteddh.org.br). Acesso em:
14 de novembro de 2022.

27. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Carta aberta a sociedade do
Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos. Julho de 2022. Disponível em: Carta aber-
ta a sociedade do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos – Comitê DDH (comiteddh.
org.br). Acesso em 14 de novembro de 2022.

28. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Nota de repúdio ao Chama-
mento Público para composição do Conselho Deliberativo do PPDDH. 2022. Disponivel em <https://comited-
dh.org.br/wp-content/uploads/2022/03/Nota-de-repudio-ao-Chamamento-Publico-para-composicao-do-Conse-
lho-Deliberativo-do-PPDDH.pdf>. Acesso em8 de novembro de 2022.

23
Neste sentido, o Comitê emitiu
124 notas jornalísticas/
reportagens.
Parte dessa produção de visibilida-
de foi construída em conjunto com
as assessorias de comunicação da
rede de jornalistas das entidades
integrantes do CBDDH.

Também é importante destacar que, ao longo direitos humanos no país. “A extinção dos con-
destes quatro anos de governo da extrema- selhos significa diminuir o espaço de diálogo da
-direita no país, a atuação do Comitê a favor sociedade civil com o governo. É uma diminui-
e defesa das/os defensoras/os de direitos ção do espaço cívico, e eles precisam ser resta-
humanos foi notícia em 346 veículos distin- belecidos”, afirmou.
tos no Brasil, Portugal, Alemanha, Argentina
Neste contexto, o Comitê também participou
e México, sendo veiculada 150 notícias jor- da instalação da Missão de Especialistas Inter-
nalísticas. Somente entre março e maio de nacionais em Direitos Humanos29, que acompa-
2022, foram 30 notícias com menções ao nhou as eleições presidenciais brasileiras no 1º
Comitê e o conjunto de suas organizações turno das Eleições 2022, bem como lançou um
em 77 veículos, em virtude da articulação polí- canal para o recebimento de casos de denún-
tica do CBDDH relacionada a visita do relator da cias sobre violência política30 contra defensoras
ONU sobre direitos à reunião pacífica e liberdade e defensores de direitos humanos no processo
de associação, Clément Nyaletsossi Voule. Nes- eleitoral 2022, além de um Guia de Proteção Prá-
sa visita, que aconteceu em 2022, ele verificou tica à Violência Política Para Defensoras e De-
uma série de problemas e violações na pauta de fensores de Direitos Humanos31.

29. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Comitê participa da Missão
de Especialistas Internacionais em Direitos Humanos. Setembro de 2022. Disponível em: Comitê participa da
Missão de Especialistas Internacionais em Direitos Humanos – Comitê DDH (comiteddh.org.br). Acesso em 14 de
novembro de 2022.

30. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Eleições 2022: DDHs impac-
tados pela violência política podem buscar apoio do Comitê. Agosto de 2022. Disponível em: Eleições 2022:
DDHs impactados pela violência política podem buscar apoio do Comitê – Comitê DDH (comiteddh.org.br). Acesso
em: 14 de novembro de 2022.

31. COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS. Guia prático de proteção à
violência política para defensoras e defensores de direitos humanos. 2022. Disponível em: cbddh_guia_vio-
lencia_politica.pdf (comiteddh.org.br). Acesso em 14 de novembro de 2022.

24 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Também em parceria com organizações da A proposta foi submetida na 8a Reunião do
sociedade civil, o Comitê produziu e participou Observatório dos Direitos Humanos32 pela juí-
za do Tribunal Regional Federal da 2ª Região
de campanhas produzindo um fluxo de infor-
(TRF2)33 Adriana Cruz e pede ao CNJ a adoção
mação horizontal, que privilegia o diálogo com
de protocolo de julgamento de processos que
diversos atores e atrizes sociais, assim como envolvam ameaças e outras violências contra
apoiou a comunicação de movimentos sociais defensores e defensoras de direitos humanos
e redes. e jornalistas, a exemplo do documento The
Esperanza Protocol34 – elaborado por organi-
Em 2022, o Comitê enviou ao Observatório de zações não governamentais – e do protocolo
Direitos Humanos do Poder Judiciário, do Con- de julgamento com perspectiva de gênero de
selho Nacional de Justiça (CNJ), uma proposta que trata a Recomendação 128/202235 do CNJ.

de monitoramento de processos que tenham Para CBDDH, a demora na tramitação de pro-


por objeto ataques a defensoras/es de direitos cessos é um elemento fomentador das vio-
humanos e jornalistas, a partir da ampliação lações contra defensoras e defensores de
direitos humanos. Por isso, na proposta, a ma-
das atribuições da Unidade de Monitoramento
gistrada e o Comitê, conjuntamente, sinalizam
e Fiscalização de decisões e deliberações da
que a experiência com processos dessa natu-
Corte Interamericana de Direitos Humanos no reza revela como o acompanhamento de fei-
âmbito do Conselho Nacional de Justiça de que tos pelo CNJ afeta positivamente o tempo de
trata a Resolução CNJ nº 364/2021. resposta das ações.

Entre as ações de proteção construídas pelo CBDDH está a produção de


conhecimento e formação enquanto instrumento de proteção integral
para defensoras/es. Com a crise sanitária global forçando um movimento
remoto de trabalho em ambiente digital, proteger. Nesta perspectiva, o Comitê
realizou entre junho e outubro de 2021, um curso de formação - em formato
online em decorrência da pandemia de covid-19.

32. CNJ. Observatório dos Direitos Humanos do Poder Judiciário. Setembro de 2020. Disponível em: Observató-
rio - Portal CNJ. Acesso em: 14 de novembro de 2022.

33. CNJ. Tribunal Regional da 2° Região (TRF2). S/D. Disponível em: Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2)
- Portal CNJ. Acesso em 14 de novembro de 2022.

34. ESPERANZA PROTOCOL. The Esperanza Protocol imagines a future for human rights defenders that is
dignified and hopeful. 2021. Disponível em: Home - The Esperanza Protocol. Acesso em 14 de novembro de 2022.

35. CNJ. Recomendação Nº 128 de 15/02/2022: Recomenda a adoção do “Protocolo para Julgamento com Pers-
pectiva de Gênero” no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. Fevereiro de 2022. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/
atos/detalhar/4377. Acesso em 14 de novembro de 2022.

25
No total, 37 pessoas da rede de 42 organizações do Comitê participaram da ação, sendo 27 defenso-
ras e 9 defensores que atuam em contexto urbano e rural, em lutas sociais por terra/território (as-
sentamento/acampamentos, quilombolas, ocupação urbana, violência nas periferias); igualdade de
gênero e racial (LGBTQI+, mulheres/feminismo); criança e adolescente; defesa dos direitos humanos
(apoio jurídico). O maior número de participantes foi da região Norte (13), seguida do Sudeste (12); Cen-
tro Oeste (5); Nordeste (4) e Sul (3).

Número de participantes

20 Norte
Nordeste
15
Centro-
-oeste
10
Sudeste

5
Sul
0

O curso está disponível com acesso gra- vídeos, leituras complementares, material de
tuito e online. A partir da plataforma digital apoio e emissão de certificado.
(https://curso.comiteddh.org.br), defensoras e
Já as ações do CBDDH referentes aos dados de
defensores de direitos humanos podem realizar casos apoiados pelo suporte emergencial do
de forma autônoma o curso de formação em CBDDH e das missões in loco realizadas serão
proteção integral, dispondo de todas as infor- apresentadas com mais cuidado e de forma
mações dos sete módulos com apresentações, analítica abaixo.

3.1. CONTEXTOS APOIADOS PELO SUPORTE


EMERGENCIAL

Nos últimos quatro anos, o Comitê concedeu, por meio do suporte emergencial,
no total: 59 apoios, em 15 estados de todo o território nacional. Os 59 apoios
concedidos foram relativos a 52 casos acompanhados pelo CBDDH, uma vez
que em algumas situações foi necessário realizar mais de um apoio. Dentre eles,
29 apoios foram relativos a contextos rurais, 20 do contexto urbano e,
3 onde ambas as dimensões estavam representadas.

26 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Os contextos de lutas dos casos apoiados foram:

Quadro 3 – Contexto de Lutas dos Casos Apoiados

Terra/território- Terra/território- Terra/território-


indígenas quilombolas comunidades pesqueiras

Terra/território-comunidades Terra/território-comunidades Terra/território-urbano/


geraizeiras seringueiras direito à cidade

Segurança pública/
Desencarceramento Direitos LGBTQIA+
contra violência policial

População em Grandes
Reparação integral
situação de rua empreendimentos

As principais violências sofridas por DDHs que motivaram o pedido de apoio ao


suporte emergencial foram:

• Ameaça física: ameaças de morte ou de agressões proferidas contra de-


fensoras de direitos humanos, em decorrência de suas lutas;

• Ameaça territorial: engloba ameaças de despejo, ataques ou tentativas


de desterritorialização de povos e comunidades, urbanas ou rurais;

• Ameaça física/atentado contra a vida: diz respeito a situações em


que não só a ameaça estava presente, como também atentados foram
praticados contra DDHs. Esses atendados foram emboscadas, tentativas
de homicídio, agressões físicas, entre outros;

• Falta de acesso a direitos básicos: falta de acesso à comida, água, saú-


de, em muitos contextos potencializada pela pandemia, mas também fruto
da vulnerabilização de DDHs e suas comunidades;

27
• Invasão de casa/sede: em alguns casos essas invasões resultaram em
furto de objetos relacionados ao trabalho de pessoas e suas organizações;

• Criminalização: interpretação extensiva de legislações para imputar cri-


mes à DDHs;

• Violência doméstica: casos em que mulheres defensoras sofreram vio-


lência intrafamiliar em decorrência de suas lutas;

• Assassinato: mortes de DDHs;

• Intimidação: casos em que falas proferidas por agentes públicos, ou por


pessoas próximas a DDHs, em uma tentativa de amedrontar e inibir a luta.

Gráfico 1 – Principais Violações de Direitos Presentes nos Casos


Apoiados pelo Suporte Emergencial

16
14
12
10
8
6
4
2
0
s
tro
Ou
a

da

de

to

ão
ia
co
ic

tic
çã

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or


e
vi
fís

si

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so

Vi
va
te
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In
ac

a
ic
de

fís
lta

ça
Fa

ea
Am

28 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Em oito (8) dos casos apoiados, as pessoas estavam inseridas no Programa de Pro-
teção às Defensoras e aos Defensores de Direitos Humanos. Isso demonstra que as
ações do Estado não têm sido eficazes e suficientes para garantir proteção a DDHs.

Dos 52 casos apoiados, sete (7) vivenciam conflitos diretos com grandes empreendi-
mentos36, conforme gráfico abaixo.

Gráfico 2 – Grandes Empreendimentos

Empreendimento
Mineração
militar
28%
29%

Empreendimento Usina
petrolífero hidrelétrica
14% 29%

Os tipos de apoio solicitados nos 52 casos tam- A assessoria jurídica foi também um pedido
bém foram por motivos diversos. Em muitos recorrente, seja para defesa em processos de
contextos, onde a ameaça física esteve presen- criminalização, seja para o acompanhamen-
te, foi necessário apoiar a retirada de pessoas to jurídico de comunidades que tinham seus
de suas casas/territórios. Essa é uma alterna- direitos violados pelas mais diversas razões.
tiva que deve ser usada em última escala, mas O Comitê entende que o acesso à justiça é
se mostrou necessária por 9 vezes. condição fundamental para defesa e prote-

Para outros grupos, foi necessário ter recursos ção de defensoras de direitos humanos e tem
para reforçar a segurança de suas casas ou da se mostrado, cada vez mais, um recurso que
sede de suas organizações com a instalação garante condições para que os DDHs possam
de câmeras de segurança, luzes, grades, enfrentar seus agentes violadores com um
muros, entre outros. suporte técnico.

36. Grandes empreendimentos militares são aqueles onde são construídas estruturas para apoio logístico militar.

29
Outro apoio recorrente foi o de articulação e diante das ameaças. Além disso, é preciso consi-
incidência. Esse apoio permitiu que os DDHs derar o contexto de vulnerabilização das pessoas
participassem de audiências, reuniões com ór- tendo em vista a pandemia global da COVID-19,
gãos públicos ou até mesmo entre seus pares bem como o aumento do desemprego, da extre-
para pensar ações de proteção. Este é um tipo ma pobreza, o fim de programas de aquisição de
de apoio que contribui para enfrentar as causas alimentos da agricultura familiar, que vitimaram,
estruturantes dos conflitos, pois através dele de- em maior medida, pessoas pobres, negras, mu-
fensoras e defensores podem pressionar auto- lheres e comunidades tradicionais.
ridades públicas, denunciar o que acontece em
seus territórios e se fortalecer. Assistência básica é garantia da vida e da con-
tinuidade da militância. Por isso, a ausência
Pedidos para assistência básica, como apoio
destas condições é uma forma de estrangular
com alimentação, transporte, materiais de higiene
a luta de um povo e das comunidades. Isso faz
ou mesmo cuidados com a saúde, foram também
com que as pessoas tenham dificuldades de se
muito recorrentes, o que chama atenção para a
mobilizar, uma vez que estão a maior parte do
vulnerabilidade das condições básicas de sobrevi-
tempo lutando para garantir alimento na mesa
vência dos territórios e DDHs atendidos. Inclusive,
para si e sua família. Além disso, esta realidade
nos casos envolvendo a violência doméstica, onde
sobrecarrega e vulnerabiliza pessoas defenso-
as mulheres agredidas tiveram que recomeçar sua
ras que são expoentes da luta de suas comuni-
vida do zero, esse foi um dos apoios concedidos.
dades, pois elas acabam ficando mais solitárias
Muitas defensoras e defensores de direitos hu- e em evidência, tornando-se alvos prioritários
manos têm dificuldade de prover seu sustento dos ameaçadores.

Gráfico 3 – Pedidos Realizados

18
16
14
12
10
8
6
4
2
0
Assistência Equipamento e Condições para Articulação e/ Assessoria Outros
básica infraestrutura retirada do ou incidência jurídica
de segurança território

30 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Em todos os contextos apoiados foi verificado uma mais básicos de pessoas, grupos e comunidades.
série de violações de direitos humanos, fruto da au- Isso será mais bem explorado a partir do estudo de
sência de políticas públicas, ineficiência do Estado, oito casos acompanhados selecionados pelo Co-
ou mesmo pela existência de atos administrativos mitê para serem analisados no período do marco
e novas legislações que comprometem os direitos temporal desta 4ª edição do dossiê.

3.2. MISSÕES REALIZADAS

E
ntre 2019 e 2022, o Comitê realizou 8 mis- não realizou missões devido a pandemia da
sões em diferentes territórios no Brasil, Covid-19. As missões visam colaborar para a in-
com a finalidade de escutar demandas rela- cidência política, fortalecer as comunidades e
cionadas a medidas protetivas, articular possí- territórios, além de ser um espaço para denun-
veis apoios e documentar violações de direitos ciar e visibilizar os conflitos. Abaixo, uma sínte-
humanos. Apenas no ano de 2020, o Comitê se de cada uma delas.

2019

MISSÃO AO TERRITÓRIO INDÍGENA


TUPINAMBÁ/BA
Data: abril/2019

Local: Terra Indígena Tupinambá de Serra do Padeiro e Terra Indígena


Tupinambá de Belmonte no sul da Bahia

BAHIA Contexto: Representantes do Comitê Brasileiro de Defensoras e De-


fensores de Direitos Humanos (CBDDH) e membros do Conselho Na-
cional de Direitos Humanos (CNDH), realizaram uma Missão até o
território, que tem uma das suas lideranças, o cacique Babau, em cons-
tante ameaça. A missão ao sul da Bahia foi com o propósito de tratar de
violações a direitos de indígenas. Uma reunião foi realizada no território
com 150 integrantes da comunidade e alguns pequenos produtores da
região, além de integrantes do CNDH, do Ministério da Mulher, Família
e Direitos Humanos e do CBDDH. Além disso, foram realizadas diversas
reuniões com autoridades públicas.

31
MISSÃO COMUNIDADES DO TERRITÓRIO
GERAIZEIROS DO ALTO RIO PRETO – FORMOSA DO
RIO PRETO/BA
Data: outubro/2019
BAHIA
Local: Formosa Rio Preto/BA

Contexto: O CBDDH e o CNDH realizaram Missão ao território das co-


munidades Geraizeiras no oeste da Bahia para verificar denúncias de
violações de direitos patrocinadas pelo complexo de fazendas Condo-
mínio Cachoeira Estrondo, especialmente em decorrência da atuação
da empresa de segurança Estrela Guia e pela inércia e parcialidade
de órgãos públicos e de justiça. Após a missão, o Comitê destinou um
apoio para assessoria jurídica e fortalecimento das comunidades. Esse
apoio se evidenciou extremamente importante, pois cerca de um mês
após a missão, a Polícia Federal desencadeou uma operação policial,
que teve como alvo, desembargadores e juízes da Bahia suspeitos de
vender sentenças. Os agentes cumpriram 40 mandados de busca e
apreensão em Salvador, Barreiras, Formosa do Rio Preto e Santa Rita
de Cássia, na Bahia, e em Brasília. Segundo o Ministério Público Federal,
advogados e servidores do Tribunal de Justiça da Bahia agiam como
intermediários na venda de decisões judiciais por desembargadores e
juízes baianos para favorecer um grupo numa disputa por terras.

2020 (SEM MISSÕES EM DECORRÊNCIA DA PANDEMIA)

2021

MISSÃO QUILOMBO PITANGA DOS PALMARES/BA


Data: setembro/2021
BAHIA
Local: Região metropolitana de Salvador

Contexto: A missão se deu no contexto das investigações do assassi-


nato do quilombola Flávio Gabriel (Binho), liderança local que foi executa-
da na frente da escola de sua filha, em 2017. Participaram da missão Terra
de Direitos, Comitê, AATR e CONAQ, com o objetivo de realizar a oitiva da
comunidade e apoiar a incidência de comunicação.

32 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


MISSÃO TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS
NO ESPÍRITO SANTO
Data: setembro/ 2021.

Local: São Mateus e Conceição da Barra, litoral Norte do ES.


ES

Contexto: A comunidade de Sapê do Norte sofre há mais de 50 anos com a pre-


sença de empresas de eucalipto em seu território. Em razão disso, a comunidade
realizou uma retomada de suas terras. As denúncias são de que várias pessoas de
fora da comunidade têm ingressado em seu território com supostos títulos de terra.
As lideranças vêm sofrendo com racismo, estigmatização e ameaças à integridade
física. Muitas pessoas que estavam inseridas no programa estadual de proteção es-
tavam sem atenção já que houve a paralisação da execução do convênio. Participa-
ram de reuniões de formação Terra de Direitos, Front line Defenders, Cfemea, Artigo
19, CBDDH. A missão percorreu 9 territórios quilombolas do Espírito Santo e Bahia.

2022

MISSÃO AO TERRITÓRIO QUILOMBOLA CARRETÃO


Data: maio/2022
MATO
GROSSO
Local: Poconé/MT quilombo Carretão

Contexto: Comitê, Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Huma-


nos, comunicadores e ambientalistas do estado do Mato Grosso e CONAQ rea-
lizaram uma missão ao Quilombo Carretão, diante de diversas denúncias de
ameaças contra lideranças no local. Durante a missão, também foram feitas
visitas à Secretaria de Ação Social e de Saúde do município.

MISSÃO AO QUILOMBO MARIA JOAQUINA


Data: maio/2022

Local: Quilombo Maria Joaquina (RJ)


RJ
Contexto: Missão realizada pelo CBDDH, Justiça Global, Ministério Público
Federal, Incra, Programa Estadual de Defensores e Defensoras de Direitos Hu-
manos (PEPDDH) e a Associação Estadual das Comunidades Quilombolas do
Estado do Rio de Janeiro (ACQUILERJ). No quilombo vivem 79 famílias que vêm
sendo cercadas pela presença de posseiros num movimento de expansão ir-
regular sobre o quilombo desde 2013, ano em que se deu início ao processo de
regularização fundiária junto ao Incra.

33
MISSÃO AO TERRITÓRIO INDÍGENA PATAXÓ/BA
Data: outubro/2022

BAHIA Local: Terra Indígena Comexatibá e Monte Pascoal (Extremo Sul da


Bahia)

Contexto: CBDDH, CNDH, Defensoria Pública da União, Defensoria Pú-


blica Estadual, Associação dos Docentes da Universidade Estadual da
Bahia (ADUNEB) realizaram missão ao território Pataxó para verificar as
denúncias de violência e ameaças de fazendeiros locais contra os indí-
genas, diante do processo de retomada de seu território. Desde janeiro
se intensificam as retomadas e, nesse contexto, 10 indígenas foram feri-
dos, além de Gustavo Conceição da Silva, de 14 anos, ter sido assassina-
do no dia 4 de setembro. Na missão se constatou o envolvimento da PM
local com os grupos de milícia, pois, poucos dias antes da chegada da
caravana, 3 policiais foram presos em uma operação da Polícia Federal.

MISSÃO AO ESPECIALISTAS INTERNACIONAIS EM


DIREITOS HUMANOS PARA OBSERVAR AS ELEIÇÕES
Data: setembro, outubro, novembro/2022
SÃO PAULO
Local: São Paulo, Brasília

Contexto: Missão realizada pelo Instituto de Políticas Públicas em Di-


reitos Humanos do Mercosul (IPPDH), Washington Brazil Office (WBO),
Artigo 19, Instituto Wladimir Herzog, Anadep, Common Action Forum
(CAC), Rede de proteção aos jornalistas, CBDDH. O Comitê apoiou a
vinda de experts internacionais para o acompanhamento das eleições
DISTRITO
FEDERAL no Brasil. Estiveram presentes Remo Carlotto (ARG) do IPPDH; Dolores
Gandulfo (ARG) do COPPAL; James Green professor da Universidade de
Brown; Gimena Sánchez (Colômbia) advogada WOLA; Carolina Jiménez
(Venezuela e Mexico) presidente WOLA; Herta Däubler-Gmelin (Alema-
nha) ex-ministra de justiça. A missão teve, dentre seus objetivos, acom-
panhar e avaliar o cenário de proteção aos direitos humanos durante o
processo eleitoral.

34 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


4.
OS CASOS
ESTUDADOS
Não nos restam dúvidas sobre
o aumento de violações de
direitos humanos no Brasil e, por
consequência, a intensificação
das violências contra DDHs, nos
últimos quatro anos

O s casos analisados abaixo foram (e al-


guns ainda são) apoiados e acompanha-
dos pelo Comitê nos últimos quatro anos. Eles
(e governos) e violências contra quem defen-
de esses direitos. Considerando os últimos
quatro anos, não nos restam dúvidas sobre
tratam de lutas diversas, nas cinco regiões do o aumento de violações de direitos humanos
Brasil, que se comunicam com a realidade de no Brasil e, por consequência, a intensificação
diversos outros DDHs no país e demonstram destas contra defensoras e defensores de di-
que há uma relação entre políticas de Estado reitos humanos em todo o território nacional.

35
O crime chocou a opinião pública
e os movimentos sociais não só
pela frieza e brutalidade com o qual
foram praticados, mas também pela
morte de Dilma Ferreira

36 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


N a noite do dia 21 de março de 2019, e ma-
drugada do dia 22, pistoleiros suposta-
mente contratados por Fernando Ferreira Rosa
terras, extração ilegal de madeira e até tráfico de
drogas”. Laudos indicam que Dilma foi vítima de
tortura, pois foi amarrada, amordaçada e teve a
Filho (Fernandinho) assassinaram seis (6) pes- garganta cortada.
soas no município de Baião, Pará . Três destes
37

assassinatos ocorreram na fazenda em que O crime chocou a opinião pública e os movimen-


Fernandinho se diz dono. Venilson da Silva San- tos sociais. Não só pela frieza e brutalidade com
tos, Raimundo Jesus Ferreira e Marlete da Silva o qual foram praticados, mas também pela mor-
Oliveira eram seus funcionários que, segundo te de uma importante liderança da região que,
investigações, cobravam direitos trabalhistas e segundo investigações, era conhecida de forma
ameaçavam denunciar Fernando por mantê-los pejorativa pelos criminosos como “Presidente do
em trabalho degradante. Eles foram assassina- Mato”40. Fernando Rosa Filho foi preso quatro dias
dos com tiros e tiveram os corpos empilhados após os crimes e assim continua desde então.
e carbonizados38.
A motivação dos assassinatos se relaciona aos
Ato contínuo, os pistoleiros seguiram para o As- crimes que ocorriam (e não há informações que
sentamento Salvador Allende, localizado na zona deixem de ter ocorrido) na região como: tráfico
rural do município de Baião, a 20 km da fazenda de drogas, extração ilegal de madeira, submis-
de Fernandinho, visando assassinar Dilma Fer- são de trabalhadores a condições análogas à
reira, ativista e militante do Movimento dos Atin- escravidão e grilagem de terras. Segundo inves-
gidos por Barragens - MAB. Lá, assassinaram tigações, os trabalhadores não eram pagos, às
ela, seu companheiro Claudionor Amaro Costa vezes ficavam sem comida, e o “banheiro que
da Silva e Milton Lopes, e um amigo do casal. O usavam era um barraco de madeira sem vaso
alvo era Dilma e, segundo o MAB : “o fazendeiro
39
sanitário, só com um buraco no chão e para to-
via na liderança de Dilma uma barreira para os marem banho precisavam ir a um riacho”, apon-
negócios na região, que envolvem grilagem de ta matéria do Repórter Brasil41.

37. MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARÁ. MPPA oferece denúncia contra acusados da “Chacina de Baião”. Julho de
2019. Disponível em: https://www2.mppa.mp.br/noticias/mppa-oferece-denuncia-contra-acusados-da-chacina-
-de-baiao.htm.Acesso em 06 de outubro de 2022.

38. CAMARGOS, Daniel. Queima de arquivo de trabalhadores ‘que sabiam demais’: os seis mortos da Cha-
cina de Baião. Repórter Brasil. S/D. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/covamedida/historia/baiao-pa/.
Acesso em 06 de outubro de 2022.

39. MOVIMENTO DE ATINGIDOS POR BARRAGEM. Dois anos após morte de Dilma Ferreira, ato é realizado no
assentamento onde viveu em Baião (PA). Março de 2021. Disponível em: Dois anos após morte de Dilma Ferreira,
ato é realizado no assentamento onde viveu em Baião (PA) (mab.org.br). Acesso em: 15 de novembro de 2022.

40. MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARÁ. MPPA oferece denúncia contra acusados da “Chacina de Baião”. Julho de
2019. Disponível em: https://www2.mppa.mp.br/noticias/mppa-oferece-denuncia-contra-acusados-da-chacina-
-de-baiao.htm.Acesso em 06 de outubro de 2022.

41. CAMARGOS, Daniel. Queima de arquivo de trabalhadores ‘que sabiam demais’: os seis mortos da Chaci-
na de Baião. Repórter Brasil. S/D. Disponível em: <https://reporterbrasil.org.br/covamedida/historia/baiao-pa/>.
Acesso em 06 de outubro de 2022.

37
Suspeita-se ainda que, eles também sabiam de práticas criminosas de Fernan-
dinho, especialmente, no tocante a sua ligação com o tráfico de drogas:

“A fazenda que estava em disputa na área, fazenda do Fer-


nandinho, é reconhecida como área pública, improdutiva, e
o Fernandinho é acusado de atuar como traficante de dro-
gas. Pessoas relatam que lá na fazenda tinha pista de pou-
so, que era muito comum a chegada de aviões que supos-
tamente estavam carregados de ilícitos”42.

Outro fator de motivação para o assassinato da Dilma seria a exploração


ilegal de madeira. Dilma, que era uma ativista socioambiental, reclamava
do tráfego intenso de carretas com madeira que passavam na estrada em
frente à sua casa. Além da problemática ambiental envolvida na extração e
transporte de madeira sem a devida licença, o tráfego intenso de carretas
provoca danos aos moradores pois afeta as estradas e compromete o seu
uso. Dilma se colocava contra isso e esse pode ter sido mais um dos fatores
que levou à sua execução.

4.1.1 QUEM FOI DILMA FERREIRA?

D ilma era uma mulher que, como muitas ou-


tras, passam uma vida em luta por melhores
condições de vida para si e para os seus. Ela nas-
A Usina Hidrelétrica de Tucuruí foi construída
na ditadura militar, pertence à estatal Eletro-
norte e é a segunda maior do país. Está loca-
ceu em Esperantinópolis, Maranhão, em 11 de fe- lizada no Rio Tocantins, no estado do Pará. O
vereiro de 1972. Na década de 90, mudou-se para o caso da UHE Tucuruí foi tido pela Comissão
Pará, atraída pelas promessas de desenvolvimen- Mundial de Barragens de “caráter emblemá-
to no contexto da construção da segunda etapa tico”43, ante aos custos sociais e ambientais
da Usina Hidrelétrica do Tucuruí - UHE Tucuruí. acarretados pelo projeto.

42. Trecho da entrevista com Andréia Silvério, advogada e membro da coordenação da Comissão Pastoral da Terra.

43. CONSELHO NACIONAL DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA HUMANA. Sumário executivo do relatório da
Comissão Especial “Atingidos por Barragens”. 2006. Disponível em: https://mab.org.br/publicacao/relatorio-
-violacao-de-direitos-das-populacoes-atingidas-cddph/. Acesso em: 15 de novembro de 2022.

38 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


No Pará, Dilma foi viver no bairro Palmeiras, periferia do município de Tucuruí.
Lá experimentou as contradições desse grande projeto, que prometia grande-
za, mas provocava miséria para a população. Foi assim que ela se organizou
no Movimento dos Atingidos por Barragens44 e passou a lutar pelos direitos da
população atingida

Dilma esteve à frente do processo de formação de uma co-


operativa de criação e comercialização de peixes. Também
organizava a distribuição das cestas básicas para as famí-
lias que mais necessitavam e colaborou com um projeto de
construção de cisternas, conquistas da luta e da organiza-
ção do MAB na região.

Na primeira década dos anos 2000, Dilma se exercia o cultivo efetivo no assentamento, co-
mudou para o Assentamento Salvador Allen- laborava de forma ativa no processo de orga-
de, que se constituiu a partir da ocupação nização popular no município de Baião (PA).

da antiga fazenda Piratininga, desapropriada Ela era casada, mãe e ativista. O seu assassi-
em 2011, ano em que o Assentamento foi for- nato foi um recado para as defensoras de di-
malizado. Dilma, além de lutar na defesa dos reitos humanos na Amazônia e, também para
direitos humanos das famílias atingidas por as mulheres, a quem é destinado uma violên-
barragens, era assentada da reforma agrária, cia ainda mais brutal.

4.1.2. SILENCIAMENTO DE DEFENSORAS


DE DIREITOS HUMANOS PELA VIOLÊNCIA

T odas as mortes que aconteceram na chacina de Baião foram brutais e


violentas. Contudo, o ódio que se expressa no assassinato de Dilma, com
tamanha crueldade, é uma discussão fundamental a ser feita, principalmente
porque ela não é um caso isolado.

44. MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS. A nossa luta é pela vida. Chega de Impunidade. 2019.
Disponível em: A NOSSA LUTA É PELA VIDA: CHEGA DE IMPUNIDADE! - MAB - Movimento dos Atingidos por Barra-
gens. Acesso em 15 de novembro de 2022.

39
Segundo informe do relator especial sobre defensoras e defensores de direitos
humanos da ONU, as mulheres defensoras estão sujeitas a riscos e violências
específicas por serem mulheres45, tais como:

Quadro 4 – Violências contra as Mulheres

Riscos, ameaças e
Não reconhecimento, Descrédito social, ataque
ataques em âmbito
estigmatização e exclusão a honra e estigmatização
privado e contra familiares

Agressões físicas, Assédio e violências


Criminalização
violência sexual e tortura na internet

Restrições e represalias por


incidirem em mecanismos Encarceramento
internacionais

Por mais que essas violências brutais não sejam mulher e liderança local, que foi assassinada pelo
exclusivas contra mulheres defensoras, elas são incômodo que sua luta causava, tenha sido a úni-
especialmente direcionadas a elas a depender do ca das 6 vítimas que teve sua garganta cortada.
contexto. Como afirmou Jaqueline Damasceno,
advogada e integrante do MAB: “contra as mulhe- O ódio direcionado nos crimes contra as mulhe-
res, há uma forma de assassinato que tem como res foi identificado no Mapa da Violência contra
objetivo o silenciamento”. É simbólico que Dilma, as Mulheres, de 201546. Na pesquisa, foi diagnosti-

45. CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS (ONU). Informe do relator especial sobre a situação de defensoras e
defensores de direitos humanos. Apresentado no 40º período de sessões do Conselho de Direitos Humanos da
ONU. A/HRC/47/53. Tradução livre. Disponível em: https://www.ohchr.org/es/hr-bodies/hrc/regular-sessions/ses-
sion47/list-reports. Acesso em 9 de novembro de 2022.

46. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil. Flasco. Brasília, 2015.
Disponível em: https://oig.cepal.org/pt/documents/mapa-da-violencia-2015-homicidio-mulheres-no-brasil Acesso
em: 09 de novembro de 2021

40 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


cado que as mulheres, diferentemente dos casos O grau de tortura e violência direcionado às mu-
de homicídios de homens, são as maiores vítimas lheres varia de acordo com sua raça, classe,
de mortes violentas, com emprego de métodos de orientação sexual e identidade. Pesquisas de
tortura através de estrangulamento, sufocamento, outras organizações destacam esse fenômeno
materiais cortantes, entre outros. em diferentes contextos:

Quadro 5 – Recortes de Violências contra as Mulheres

Quilombolas Travestis e Transexuais

Pesquisa feita pela Coordenação Nacional A associação de Travestis e Transexuais –


da Articulação de Comunidades Negras Antra, no dossiê publicado em 2021, identificou
Rurais Quilombolas – CONAQ e Terra de pelo menos 140 assassinatos de pessoas
Direitos e publicada em 2018 diagnosticou o travestis e transexuais no Brasil, sendo 135
seguinte: «Há um componente de crueldade de travestis e mulheres transexuais. No
nos assassinatos praticados contra as diagnóstico elaborado pela associação, elas
mulheres no Brasil, e a pesquisa conseguiu identificaram elementos comuns nesses
identificar esse padrão nos casos mapeados. crimes, quais sejam: «A maior parte das
Aproximadamente 66% das mulheres vítimas é jovem, entre 13 e 29 anos; A maioria
quilombolas assassinadas foram mortas é negra, pobre e reivindica ou expressa o
com o uso de arma branca ou com métodos gênero feminino; (...) Os casos acontecem
de tortura, ao passo que esse número é de com uso excessivo de violência e requintes
aproximadamente 21% quando se analisa de crueldade» (ANTRA. Dossiê Assassinatos
os meios empregados nos assassinatos e violências contra travestis e transexuais
de homens quilombolas» (CONAQ E TERRA brasileiras em 2021. 2022, P. 55)
DE DIREITOS. Racisco e violência contra
quilombos no Brasil. 2018, p. 117).

O componente do ódio se manifesta quando a intenção não


é apenas matar, mas exterminar o que aquela pessoa
representa. Isso está muito presente no crime contra as
mulheres, mas também contra as pessoas ativistas, povos e
comunidades que representam e lutam por uma outra forma
de ser, pensar e construir o mundo.

41
O Conselho indigenista Missionário (Cimi) identificou “violências inimagináveis,
cruéis e desumanas” contra povos indígenas em 2021, destaca o relatório “Violên-
cia Contra os Povos Indígenas no Brasil” 47. A brutalidade da violência presente nos
casos relatados no dossiê por si só já deveria ser capaz de mobilizar o Estado e as
instituições para intervir de forma imediata em prol da segurança e proteção dos
povos indígenas. Mas, o que se percebe na prática é justamente o contrário, seja
para os povos indígenas, seja no que envolve o assassinato de Dilma Ferreira e a
“Chacina de Baião”.

4.1.3. É PRECISO COMBATER AS CAUSAS


QUE FUNDAMENTAM ESSE CRIME

N o caso do assassinato de Dilma e das ou-


tras cinco pessoas que morreram na cha-
cina, houve uma grande força tarefa montada no
alguns deles, conforme investigações. As causas
que estruturam a violência contra defensoras de
direitos humanos devem ser centrais no combate
estado do Pará que, contrariando as estatísticas à violência no campo, e seguem sendo negligen-
das mortes por conflitos no campo, prendeu o ciadas pelas autoridades públicas.
mandante do crime.
No que envolve ao combate ao trabalho aná-
A prisão de Fernando é significativa para com-
logo a escravidão, o presidente Bolsonaro fez
bater a impunidade dessas violências, mas não
falas explicitas na minimização desse crime.
é o suficiente para fazer justiça e reparar as fa-
Segundo ele, a Emenda Constituição 81/201448,
mílias - e toda a sociedade - pelo bárbaro crime
que prevê a expropriação de terras onde seja
cometido em Baião (PA).
constatado o trabalho análogo a escravidão e
Há uma conjunção de outros crimes que, em consequente destinação para reforma agrária
diferentes medidas, estão relacionados com os ou habitação popular não seria regulamentada
assassinatos. Tráfico de drogas, exploração ilegal em seu governo, pois ele entende que essas
de madeira e trabalho análogo a escravidão são medidas são um exagero:

47. PALOSCHI, Dom Roque. Relatório – Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – CIMI – Conselho Indige-
nista Missionário. 2021. Disponível em: relatorio-violencia-povos-indigenas-2021-cimi.pdf. Acesso em: 15 de novem-
bro de 2022.

48. BRASIL. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 81, DE 5 DE JUNHO DE 2014. Casa Civil, 2014. Disponível em: Emenda
Constitucional nº 81 (planalto.gov.br). Acesso em 15 de novembro de 2022.

42 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


“Poxa, sou a favor do trabalho escravo? Calma pô, ninguém é a favor do traba-
lho escravo. Mas já existia naquela época e existe hoje que o trabalho análo-
go à escravidão também pode ser tipificado como escravo. O que é trabalho
análogo à escravidão? Eu sei pouco sobre isso. Por exemplo: se você tiver um
alojamento mal ventilado, roupa de cama suja, um afastamento não regula-
mentar entre uma cama e outra, isso é um trabalho análogo à escravidão. O
fazendeiro vai perder a fazenda por causa disso?” (declaração realizada em live
feita por Jair Bolsonaro em 13/11/2020, publicada pelo portal notícias IG49).

O presidente Jair Bolsonaro também afirmou na O documento destaca como a exoneração, em


ocasião que a propriedade era “sagrada” . Car-
50
2019, de 21 servidores do IBAMA responsáveis
ta-compromisso elaborada pela Repórter Bra-
51
pela aprovação de operações de combate a ex-
sil sobre o combate ao trabalho escravo foi en- tração ilegal de madeira; as manifestações do
tregue para assinatura dos presidenciáveis nas presidente da república desautorizando ação
eleições de 2022, porém o presidente Bolsonaro, de fiscalização do IBAMA: “não é para queimar
candidato à reeleição à época, não a assinou. nada, maquinário, trator, seja o que for”53; e a

Os exploradores de madeira ilegal também têm autorização de exportação de madeira sem cer-
tido muita permissibilidade e incentivo para tificação, fato que culminou inclusive no afas-
suas ações nos últimos anos quatro anos, con- tamento do presidente do IBAMA, contribuíram
forme revela relatório da Human Rights Watch52. para esse cenário.

49. BRASIL ECONÔMICO. Bolsonaro minimiza trabalho escravo e diz que fazendeiro não pode perder terras.
Novembro de 2020. Disponível em: Bolsonaro minimiza trabalho escravo e diz que fazendeiro não pode perder terras
- Economia - iG. Acesso em: 15 de novembro de 2022.

50. BRASIL ECONÔMICO. Bolsonaro minimiza trabalho escravo e diz que fazendeiro não pode perder terras.
Novembro de 2020. Disponível em: https://economia.ig.com.br/2020-11-13/bolsonaro-minimiza-trabalho-escravo-e-
-diz-que-fazendeiro-nao-pode-perder-terras.html. Acesso em 14 de outubro de 2022.

51. REPÓRTER BRASIL. Sete candidatos à Presidência e 15 aos governos estaduais assinam Carta-Compro-
misso contra o Trabalho Escravo nas eleições de 2022. Setembro de 2022. Disponível em: https://reporterbrasil.
org.br/2022/09/sete-candidatos-a-presidencia-e-15-aos-governos-estaduais-assinam-carta-compromisso-con-
tra-o-trabalho-escravo-nas-eleicoes-de-2022/. Acesso em 14 de outubro de 2022.

52. HUMAN RIGHTS WATCH. Máfias do Ipê. Como a Violência e a Impunidade Impulsionam o Desmatamen-
to na Amazônia Brasileira. Setembro de 2019. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/report/2019/09/17/333519.
Acesso em: 14 de outubro de 2022.

53. WEMECK, Felipe. Arquitetura da Devastação: Sob Bolsonaro, Destruição de equipamentos usados em
crimes contra meio ambiente cai 50%. Abril de 2020. Disponível em: https://theintercept.com/2020/04/27/bol-
sonaro-destruicao-maquinas-crimes-meio-ambiente/. Acesso em 06 de setembro de 2022.

43
O desmonte de órgãos de fiscalização ambiental é uma marca da gestão
Bolsonaro e isso tem um custo alto para o meio ambiente e para as pessoas
que vivem em áreas de interesse de madeireiros e grileiros de terras. Essas
ações, falas e medidas do governo abriram caminho para grilagem de ter-
ras, desmatamento e exploração de madeira na Amazônia e também contri-
buíram para a territorialização do tráfico de drogas na região, como apurou
investigação da Agência Pública”54.

Segundo reportagem, entre 2019 e 2021, mais Passados mais de três anos do assassinato de
de 2 mil toneladas de narcóticos apreendidos Dilma Ferreira, famílias seguem sendo expulsas e
pela Polícia Federal no porto de Santos, em São mortas em Baião, no Pará. Segundo denúncias, em
Paulo, foram encontradas em produtos de ori- 2022, outro assassinato ocorreu no mesmo local e,
gem extrativista. A reportagem entrevistou o famílias que estavam acampadas nas proximida-
geógrafo Aila Couto , que afirmou que segu-
55
des da fazenda de Fernandinho, foram despejadas
rança pública e meio ambiente devem ser ana- com forte violência. Ainda, diante de fortes evidên-
lisados de forma integrada, que os discursos do cias de grilagem de terras, exploração de madeira
governo “potencializou o crescimento do crime e tráfico de drogas na região, famílias sem-terra
organizado na Amazônia hoje” e que “o crime seguem sem terras, ameaçadas e aterrorizadas
organizado tem que ser entendido para além da por agentes privados e armados.
sigla PCC e Comando Vermelho, por exemplo,
Dilma morreu por ser uma ativista defensora do
há grupos que se envolvem no garimpo ilegal,
meio ambiente que luta por terra e dignidade
na grilagem de terras, na extração ilegal de ma-
para população sem-terra. Os três funcionários
deira, no contrabando de ouro, na invasão de
morreram por exigirem melhores condições de
terras indígenas”56.
trabalho. Todos lutavam por direitos, cons-
Embora a pesquisa e a reportagem acima citadas titucionalmente assegurados, e morreram
não tratem do caso que envolveu o assassinato por isso. Honrar suas vidas e fazer justiça
de Dilma, elas evidenciam elementos que devem para eles envolve a prisão dos mandantes e
servir de alerta e influenciar nas políticas públicas executores do crime, como também envolve
para combater violências contra defensores de di- enfrentar todas as causas que os motivaram
reitos humanos na Amazônia e no Brasil. para que eles não mais se repitam.

54. BARROS, Ciro. A íntima relação entre cocaína e madeira ilegal na Amazônia. Pública. Agosto de 2021. Dis-
ponível em: https://apublica.org/2021/08/a-intima-relacao-entre-cocaina-e-madeira-ilegal-na-amazonia/. Acesso
em: 14 de outubro de 2022.

55. BARROS, Ciro. A íntima relação entre cocaína e madeira ilegal na Amazônia. Pública. Agosto de 2021. Dis-
ponível em: https://apublica.org/2021/08/a-intima-relacao-entre-cocaina-e-madeira-ilegal-na-amazonia/. Acesso
em: 14 de outubro de 2022.

56. Trecho da entrevista de Aila Couto, geógrafo da Universidade Estadual do Pará e pesquisador do Fórum Brasi-
leiro de Segurança Pública. A íntima relação entre cocaína e madeira ilegal na Amazônia. Pública. Agosto de
2021. Disponível em: https://apublica.org/2021/08/a-intima-relacao-entre-cocaina-e-madeira-ilegal-na-amazonia/.
Acesso em 14 de outubro de 2022.

44 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Segundo relatam membros da Sociedade
Paraense de Direitos Humanos (SDDH), uma
das organizações entrevistadas, desde quando
a entidade acompanha o caso, os eventos
de violência ocorrem de forma periódica e
sistemática, apesar da visibilidade e denúncias

45
A Gleba Bacajá57, terra pública federal, é
uma área de cerca de 80 mil hectares,
criada em 1983, localizada no município de
no protagonismo do conflito. A família Peixoto
busca se apossar da terra pública e tem, contra
si, diversas denúncias de ameaças, incêndios
Anapu, no sul do Pará, e palco de intensos con- criminosos de residências, desmatamento e
flitos fundiários que já resultaram em uma série extração ilegal de madeira59.
de violências, ameaças e assassinatos, atingin-
do pessoas que lutam pela posse da terra e pela Em que pese ser um conflito histórico, o caso do
reforma agrária. O município de Anapu ficou lote 96 da Gleba Bacajá vive uma intensificação
marcado nacionalmente pelo assassinato da do processo de violência desde 2019, quando
líder religiosa Dorothy Stang58, em 2005. E des- uma das lideranças da região, o defensor Eras-
de essa marca vem colecionando casos e mais mo Theofilo, sofreu uma tentativa de assassinato.
casos de conflitos por terra, protagonizados, so- Neste mesmo ano, duas outras lideranças foram
bretudo, por fazendeiros e grileiros interessados assassinadas: Márcio dos Reis e Paulo Anacleto.
em se apropriar das terras públicas federais, que
Márcio foi assassinado em uma emboscada
deveriam ser destinadas para o assentamento
e era uma das pessoas que levava ao público
de trabalhadores e trabalhadoras rurais.
a luta pela reforma agrária da região e estava
Esse é o caso do lote 96, da Gleba Bacajá, de denunciando uma das principais táticas de
aproximadamente 4 mil hectares, que ganhou intimidação utilizadas no lote 96, os incêndios
visibilidade no cenário nacional diante do criminosos de residências e benfeitorias dos/
acirramento da violência nos últimos tempos. as trabalhadores/as. Anacleto foi assassinado
Trata-se de um conflito que se arrasta há pelo em seguida, pois afirmava saber quem era
menos 10 anos, envolvendo 54 famílias de agri- o fazendeiro suspeito de assassinar Márcio.
cultores e agricultoras familiares de um lado - Tanto Márcio quanto Anacleto eram amigos de
que travam uma batalha para a criação de um Erasmo que, em 2020, sofreu um novo atentado
Assentamento de Reforma Agrária na área e, de e precisou deixar Anapu, junto com a sua família,
outro, um fazendeiro, denominado Peixoto, que com o apoio do Programa de Proteção de Defen-
faleceu no ano de 2022, mas deixou uma família sores/as de Direitos Humanos60 e do CBDDH.

57. DOMENICI, Thiago. Na terra de Dorothy Stang, o líder ameaçado pede socorro novamente. Agência Públi-
ca. Abril de 2021. Disponível em: https://apublica.org/2021/04/na-terra-de-dorothy-stang-lider-ameacado-pede-so-
corro-novamente/ . Acesso em: 07 de outubro de 2022.

58. Para saber mais sobre Dorothy Stang: BARBOSA, Catarina. Dorothy Stang, dez anos de impunidade na Ama-
zônia. CPT. 2015. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/multimidia/12-noticias/conflitos/2382-dorothy-s-
tang-dez-anos-de-impunidade-na-amazonia Acesso em: 09 de novembro de 2022

59. Idem ao 29

60. DOMENICI, Thiago. Quem é um dos dez suspeitos de queimar casas e ameaçar agricultores no Pará.
Pública. Junho de 2022. Disponível em:https://apublica.org/2022/06/quem-e-um-dos-dez-suspeitos-de-queimar-
-casas-e-ameacar-agricultores-no-para/. Acesso em: 07 de outubro de 2022.

46 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Segundo relatam membros da Sociedade Paraense de Direitos Humanos
(SDDH), uma das organizações entrevistadas, desde quando a entidade acom-
panha o caso, os eventos de violência ocorrem de forma periódica e sistemática,
apesar da visibilidade e das denúncias. Não obstante o acompanhamento da as-
sessoria jurídica, da intervenção da Defensoria Pública do Estado do Pará61, não
houve o arrefecimento da violência. Ao contrário: “Anapu apresenta um índice de
homicídios ligados aos conflitos por terra extremamente alto”.

De acordo com os dados de conflitos e assassinatos


do campo sistematizados pela CPT62, desde o assas-
sinato de Dorothy, em 2005, Anapu já soma 20 assas-
sinatos de trabalhadores rurais e posseiros. O núme-
ro de assassinatos alavancou em 2015 e, de lá para
cá, são 16 assassinatos, todos eles na Gleba Bacajá,
fazendo da violência no campo um hábito nesta re-
gião, e não uma excepcionalidade.

Segundo os entrevistados, há suspeitas de que à valorização do preço da terra e ao fato da região


haja um consórcio de grileiros, violadores e as- ser impactada por grandes projetos de “desen-
sassinos. O consórcio age há algum tempo em volvimento”, desde à construção da hidrelétrica
Anapu e vem fazendo com que a violência se de Tucuruí, na década de 1970, à construção de
consolide na região como uma prática cotidiana. Belo Monte. “Os acampados do lote 96 são de re-
A violência na região é histórica e, segundo rela- giões que foram alagadas e que são acometidas
tos, está associada à extração ilegal de madeira, por um processo de violência extrema”.

61. A Defensoria Pública do Estado do Pará ingressou com uma ação de reintegração de posse contra o fazendeiro
Antônio Borges Peixoto, que foi sentenciado a favor do fazendeiro no ano de 2022. Apesar da sentença conferir posse
ao fazendeiro, reconhece que se trata de uma terra pública federal que deveria ser destinada para a reforma agrária.
Contra a sentença foi interposto o recurso de apelação, que tramita no Tribunal de Justiça do Estado do Pará.

62. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Assassinatos no Campo. 2021. Disponível em: https://www.cptnacional.org.
br/downlods/category/5-assassinatos?start=0. Acesso em: 07 de outubro de 2022.

47
Gleba Bacajá - Anapu
80 mil hectares | Terra pública federal

Lote 96 da gleba Bacajá

Desde 2005, 20 pessoas foram assassinadas


(Informações da Comissão Pastoral da terra)

2005 2010 2015 2020 54 famílias 2 assassinatos tentativas de


de defensores de homicídio
direitos humanos
2022
desde 2019

4 pessoas 16 pessoas
assassinadas assassinadas

ameaças despejos incêndios


forçados criminosos

4.2.1. “A PROPAGAÇÃO DA VIOLÊNCIA NO CAMPO COMO


POLÍTICA DO ATUAL GOVERNO”63: O ATAQUE DE 11 DE MAIO

O dia 11 de maio de 2022 marca mais um


episódio de violência no lote 96 na Gleba
Bacajá, e revela como a propagação da violên-
casas, agrediram pessoas, ameaçaram e
aterrorizaram as famílias na região de Anapu.
Segundo os relatos apurados pela Agência
cia no campo tem íntima relação com políticas Pública, policiais foram chamados para con-
incentivadas pelo atual governo Bolsonaro. O ter a violência, mas ao chegarem ao local e se
episódio, que foi investigado e noticiado pela depararam com os homens armados e toda a
Agência Pública , se trata da invasão do lote
64
destruição por eles protagonizada e, mesmo
96 por cerca de 10 homens armados, que se diante do flagrante, nada fizeram. Suspeita-se
afirmando policiais, sem mandado ou qual- que o episódio tenha sido orquestrado pelo fa-
quer outra determinação judicial, queimaram zendeiro que se afirma proprietário da área.

63. Trecho extraído das entrevistas com integrantes da Sociedade Paraense de Direitos Humanos - SDDH.

64. DOMENICI, Thiago. Quem é um dos dez suspeitos de queimar casas e ameaçar agricultores no Pará.
Pública. Junho de 2022. Disponível em:https://apublica.org/2022/06/quem-e-um-dos-dez-suspeitos-de-queimar-
-casas-e-ameacar-agricultores-no-para/. Acesso em: 07 de outubro de 2022.

48 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Um fato que chamou atenção nesse episódio foi Esse fato merece atenção porque o carro chefe
que, conforme noticiado pela Pública , um dos
65 da campanha eleitoral, das narrativas e discursos

homens que teria participado da ação: Bergues do então presidente Bolsonaro, são em prol da
facilitação do acesso a armas no Brasil. Desde a
Chaves, possuía registro e autorização para uso
eleição de 2018, o presidente realizou a alteração
de arma de fogo (arma RT627, da marca Taurus) -
do Estatuto do Desarmamento66 (Lei 10.826/03)
expedida pelo Ministério de Justiça e Segurança
por cinco vezes, editando pelo menos 40 atos
Pública - expedido apenas dois meses antes do normativos e decretos67, cujo objetivo foi a facili-
episódio aqui relatado. tação para aquisição e registro de armas de fogo.

Segundo pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública68,


a partir das alterações normativas implementadas nos últimos quatro
anos, houve o crescimento de 476,6% nos registros ativos de caçadores,
atiradores e colecionadores, importando um aumento bruto de 4,4 milhões
de armas de fogo em estoques particulares. “Se não houvesse o aumento
de armas de fogo em circulação a partir de 2019, 6.379 vidas teriam sido
poupadas neste período”, afirma a pesquisa.

Para os integrantes da SDDH, em que pese a violência em Anapu seja histórica


e sistemática, nos últimos quatro anos, houve um “incentivo da violência”, pois “o
governo propaga a violência no campo”, a transformando em política institucio-
nalizada. No mesmo sentido, estão os depoimentos que Erasmo Theofilo conce-
deu à Pública, indicando que após a eleição de Bolsonaro, a “atmosfera se tornou
ainda mais pesada”, pois o que transparece para a sociedade é que: “os grileiros
ganharam permissão para expulsar, intimidar e matar”69.

65. Idem

66. ARAÚJO. Janaína. Mudanças no Estatuto do Desarmamento podem ser debatidas no Senado em 2022.
Rádio Senado. Janeiro de 2022. Disponível em: Mudanças no Estatuto do Desarmamento podem ser debatidas no
Senado em 2022 — Rádio Senado. Acesso em 15 de novembro de 2022.

67. LACERDA, Nara. Flexibilização de armas na gestão Bolsonaro é responsável pela morte de mais de 6
mil pessoas. Brasil de Fato. Setembro de 2022. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/09/30/flexi-
bilizacao-de-armas-na-gestao-bolsonaro-e-responsavel-pela-morte-de-mais-de-6-mil-pessoas. Acesso em: 11 de
outubro de 2022.

68. CERQUEIRA, Daniel et al. Armas de fogo e homicídios no Brasil. Sumário Executivo. Fórum Brasileiro de Segu-
rança Pública, 2022. Disponível em: sumario-executivo-armas-fogo-homicidios-no-brasil.pdf (forumseguranca.org.
br). Acesso em: 11 de outubro de 2022.

69. DOMENICI, Thiago. Na terra de Dorothy Stang, o líder ameaçado pede socorro novamente. Agência Públi-
ca. Abril de 2021. Disponível em: https://apublica.org/2021/04/na-terra-de-dorothy-stang-lider-ameacado-pede-so-
corro-novamente/. Acesso em 11 de outubro de 2022.

49
4.2.2. O ESTRANGULAMENTO DA POLÍTICA DE REFORMA
AGRÁRIA E O INCENTIVO À GRILAGEM DE TERRAS

U m dos elementos centrais do conflito da


Gleba Bacajá é a luta por reforma agrária.
É por essa causa que estão mobilizadas as 54
O Assentamento Dorothy Stang, que destina os lo-
tes 96 e 97 da Gleba Bacajá para a reforma agrária
chegou a ser criado pelo Incra, em cumprimento
famílias que hoje ocupam o lote 96 e disputam da determinação judicial (sentença), resultado
a posse da terra. É fato incontroverso que a Gle- de uma ação ingressada pelo Ministério Público
ba Bacajá se configura como uma gleba públi- Federal71. Entretanto, a portaria de criação72 durou
ca federal, de titularidade do Instituto Nacional pouco, precisamente, quatro dias, pois no dia 2 de
de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e que, julho foi proferido despacho que anunciava que a
por esta razão, deveria ser destinada priorita- portaria deveria ser tornada sem efeito, possivel-
riamente para a implementação da política de mente em decorrência da pressão de fazendeiros
reforma agrária , com o assentamento das fa-
70
e empresários locais. Questionado pela organiza-
mílias trabalhadoras rurais. No entanto, o caso ção Repórter Brasil73 sobre essa criação e revoga-
revela que entre idas e vindas, a reforma agrária ção instantânea do assentamento, o INCRA disse
tem sido letra morta e as famílias seguem sem que a portaria que criou o PA não seguiu as deter-
a garantia do acesso à terra. minações do Decreto 10.252/202074.

70. A destinação prioritária das terras públicas e devolutas para a implementação da política de reforma agrária
está prevista no art. 188 da Constituição Federal.
71. A ação ingressada pelo Ministério Público Federal tramita na Subseção Judiciária de Altamira - Pará sob o nº
1003495-97.2020.4.01.3903 e foi sentenciada em 16 de maio de 2022.
72. BRASIL. Portaria nº 1.319, de 28 de junho de 2022, que cria, no município de Anapu-PA, o Projeto de As-
sentamento Irmã Dorothy Stang, e prevê a criação de 73 (setenta e três) unidades agrícolas familiares.
Diário Oficial da União. Junho de 2022. Disponível em: PORTARIA-Nº-1.319-DE-28-DE-JUNHO-DE-2022-PORTARIA-Nº-
-1.319-DE-28-DE-JUNHO-DE-2022-DOU-Imprensa-Nacional.pdf (cartacapital.com.br). Acesso em: 15 de novembro de
2022.
73. BRASIL, Repórter. Leia as respostas do Incra e da Segup sobre a onda de ataques ao Lote 96, em Anapu
(PA). Repórter Brasil. Agosto de 2022. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2022/08/leia-as-respostas-do-in-
cra-e-da-segup-sobre-a-onda-de-ataques-ao-lote-96-em-anapu-pa/. Acesso em: 12 de outubro de 2022.
74. BRASIL. DECRETO Nº 10.252, DE 20 DE FEVEREIRO DE 2020. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro De-
monstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária - Incra, e remaneja cargos em comissão e funções de confiança. Diário Oficial da União. Fevereiro de 2020.
Disponível em: DECRETO Nº 10.252, DE 20 DE FEVEREIRO DE 2020 - DECRETO Nº 10.252, DE 20 DE FEVEREIRO DE 2020
- DOU - Imprensa Nacional (in.gov.br). Acesso em: 15 de novembro de 2022.

50 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Editado no segundo ano do governo Bolsonaro, o decreto 10.252/2020
burocratiza o procedimento de criação de assentamentos rurais, esta-
belecendo a necessidade - não prevista em lei - de aprovação da criação
pela Diretoria de Desenvolvimento e Consolidação de Projetos de Assen-
tamento e da Presidência do Incra. Isto é, o decreto criou uma etapa de
controle político do processo de criação de assentamentos rurais, esta-
belecendo a necessidade do crivo da Presidência do Incra.

Esse decreto, além de burocratizar o procedi- dio foi desapropriado para fins de reforma agrá-
mento de criação de assentamentos, alterou a ria e, encontram-se, abandonados pelo INCRA
competência do Incra , e extinguiu a Coordena-
75
mais de 600 processos administrativos e judi-
ção de Educação no Campo, responsável pelo ciais de desapropriação.
Programa Nacional de Educação e Reforma
O desmonte da reforma agrária está expresso
Agrária76. Este é apenas um exemplo do des-
também no sufocamento orçamentário do IN-
monte da política de reforma agrária implemen-
CRA nos últimos períodos. Em 2021, o orçamen-
tado pelo governo de extrema-direita, que gover-
to do Incra foi praticamente reduzido a zero80,
nou o país entre 2019 e 2022.
principalmente, em relação às ações de distri-
Segundo nota técnica 77
elaborada pelo Movi- buição de terras e melhorias de assentamen-
mento Sem Terra 78
em parceria com a Asso- tos. Em 2022, o INCRA chegou a cortar até suas
ciação de Advogados de Trabalhadores Rurais atividades de campo em virtude da ausência
(AATR ), no governo Bolsonaro nenhum latifún-
79
de recursos81. Não bastasse isso, a edição da

75. O Decreto retirou do Incra, transferindo para o Mapa, a competência para a destinação de terras públicas, e a
seleção de famílias a serem beneficiárias da política de reforma agrária
76. PAZ, Walmaro. Com decreto de Bolsonaro, Ministério da Agricultura assume atribuições do Incra. Brasil
de Fato. Fevereiro de 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/02/28/com-decreto-de-bolsona-
ro-ministerio-da-agricultura-assume-atribuicoes-do-incra Acesso em: 12 de outubro de 2022.
77. MST e AATR. Nota Técnica: Análise das recentes alterações nas normativas da política de reforma agrá-
ria e o caso do Extremo Sul da Bahia. 2021. Disponível em: https://www.aatr.org.br/publicacoes-proprias Acesso
em: 12 de outubro de 2022.
78. MST. Página Inicial. S/D. Disponível em: Página inicial - MST. Acesso em: 15 de novembro de 2022.
79. AATR. Quem Somos. Disponível em: Quem somos | AATR. Acesso em: 15 de novembro de 2022.
80. BRAGON, Ranier. Bolsonaro incrementa verba para ruralistas e reduz quase a zero a reforma agrária.
Folha de São Paulo. Setembro de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/09/bolsonaro-in-
crementa-verba-para-ruralistas-e-reduz-quase-a-zero-a-reforma-agraria.shtml . Acesso em: 12 de outubro de 2022.
81. SINTRAJUFE. Sem verbas, Incra suspende atividades externas; sindicalista denuncia política de desmon-
te. Sintrajufe. Maio de 2022. Disponível em: https://sintrajufe.org.br/ultimas-noticias-detalhe/sem-verbas-incra-sus-
pende-atividades-externas-sindicalista-denuncia-politica-de-desmonte/ . Acesso em: 12 de outubro de 2022.

51
Lei 13.465/201782 no Governo Temer, associada ao Decreto 10.592/20, à criação
do Programa Titula Brasil83 e às Instruções Normativas 104 e 105 do Incra, têm
favorecido a lógica de titulação individual de terras, implementando processos
de regularização fundiária que privilegiam invasores de terras públicas, favore-
cendo e incentivando a grilagem de terras84.

A política fundiária implementada nos últimos períodos abandona a refor-


ma agrária como política pública de distribuição de terras e consolida a titu-
lação individual, de modo a fomentar e aquecer o mercado de terras.

A grilagem de terras é exatamente a questão fundiárias condescendentes com as ocupações


central da região de Anapu. O jeito de operar ilegais de terras públicas, também incentiva a
dos fazendeiros envolve um esquema de com- própria ação de grilagem.
pra, tomada violenta e concentração de lotes,
Um exemplo desta prática é a Lei nº 13.465/17,
que promove a expulsão de posseiros e traba-
originalmente conhecida como a Medida Pro-
lhadoras/es, incêndios de casas, situações de
visória nº 759, a MP da Grilagem de Michel
ameaças e assassinatos.
Temer, que legalizou as ocupações ilegais de
A prática desenvolvida pelos grileiros em Anapu - terras públicas federais anteriores a 2011, pre-
que é também “comum” em outras regiões - tem miando invasores de terras. Buscando ampliar
como alvo principal as terras públicas. Além dis- este marco temporal para 2014 e aumentar o
so, conta ainda com a expectativa que, de uma tamanho máximo das ocupações ilegais, que
forma ou de outra, a grilagem possa ser futura- podem ser anistiadas para 2500 hectares, es-
mente legalizada. Essa expectativa não é criada tão os Projetos de Lei nº. 2633 e nº. 510. Am-
à toa. As alterações legislativas fundiárias que bos em tramitação no Congresso Nacional e
tocam especialmente as terras públicas federais são tidos pelo governo do presidente Jair Bol-
- que ocorreram nos últimos cinco anos e as que sonaro como prioritários para a definição da
estão sendo atualmente gestadas - são parte da política fundiária brasileira. Essas mudanças
construção de uma política de anistia institucio- institucionais, na prática, se configuram como
nal da grilagem de terras. Estamos diante de um um sinal verde para a grilagem e são provoca-
processo que, ao mesmo tempo em que benefi- doras de conflitos e violências envolvendo as
cia grileiros, a partir da construção de legislações disputas por terras.

82. BRASIL. LEI Nº 13.465, DE 11 DE JULHO DE 2017. Presidência da República. Julho de 2017. Disponível em: L13465
(planalto.gov.br). Acesso em: 15 de novembro de 2022.
83. O Programa Titula Brasil foi criado pela Portaria Conjunta nº 01/Seaf/Incra e municipaliza as ações de regulariza-
ção fundiária, facilitando o processo de privatização de terras públicas.
84. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Nota Pública - Mais um instrumento para legalizar terras griladas. CPT.
Fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/geral/5528-nota-publica-
-mais-um-instrumento-para-legalizar-terras-griladas. Acesso em: 12 de outubro de 2022.

52 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Para dentro do país, motivo de orgulho
nacional, já para fora, razão de vergonha
internacional, o agronegócio brasileiro tem
como representação exemplar, o Condomínio
Cachoeira Estrondo86, que mostra as suas
faces a depender do interlocutor

53
O
Condomínio Estrondo87, antiga Fazenda nacional”. Essa exaltação reflete o pleno alinha-
Estrondo, localizado no município de For- mento do agronegócio com a política ambien-
mosa do Rio Preto, no extremo oeste baiano, é tal bolsonarista, sustentada pela ausência de
composto por várias propriedades rurais que regulações, fiscalizações ou qualquer tipo de
totalizam uma área de 444 mil hectares. Com controle sobre o avanço dos grandes projetos

uma dimensão maior que duas vezes o municí- agropecuários sobre o meio ambiente brasileiro,

pio de São Paulo, é administrada por 41 arrenda- somadas ao desprezo por povos indígenas, qui-
lombolas e outras comunidades tradicionais.
tários, dentre os quais 22, são empresas produ-
toras de soja, algodão e milho para exportação. Do outro lado, o caso do Condomínio Estrondo,
O megaempreendimento, entretanto, acumula em conflito com as comunidades geraizeiras,
pontos por reunir uma grande quantidade de expõe a outra face do agronegócio. Os proces-
violações de direitos e por protagonizar um sos de resistências no Alto Rio Preto revelam a
conflito emblemático envolvendo as comuni- face da vergonha ao denunciar, inclusive no ce-
dades geraizeiras do Alto Rio Preto, tornando-o nário internacional, a relação entre a origem da

um exemplo completo de todo o receituário que soja e do algodão com conflitos socioambien-
tais e violências.88 As geraizeiras/os do Alto Rio
envolve o agronegócio e as violências e crimes
Preto resistem, ao longo do tempo, ao processo
socioambientais associados.
de avanço dos empreendimentos e fazendas
Nas palavras do então Presidente Jair Bolsona- sob seus territórios, considerados historicamen-
ro, pronunciada em discurso na Assembleia das te pelos setores privados e pelo poder público
Nações Unidas, “o nosso agronegócio é orgulho como vazios, de gente e de riqueza.

85. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Discurso do Presidente da República, Jair Bolsonaro, na “Abertura do De-
bate Geral da 77ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas – AGNU”. Setembro de 2022. Disponível
em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2022/discurso-do-presidente-da-repu-
blica-jair-bolsonaro-na-abertura-do-debate-geral-da-77a-sessao-da-assembleia-geral-das-nacoes-unidas-agnu.
Acesso em: 12 de outubro de 2022.

86. AGRONEGÓCIO ESTRONDO. Página Inicial. S/D. Disponível em: Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estron-
do (agronegocioestrondo.com.br). Acesso em 15 de novembro de 2022.

87. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Discurso do Presidente da República, Jair Bolsonaro, na “Abertura do De-
bate Geral da 77ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas – AGNU”. Setembro de 2022. Disponível
em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2022/discurso-do-presidente-da-repu-
blica-jair-bolsonaro-na-abertura-do-debate-geral-da-77a-sessao-da-assembleia-geral-das-nacoes-unidas-agnu.
Acesso em: 12 de outubro de 2022.

88. THE GUARDIAN. UK supermarkets could still be buying meat linked to deforestation in Brazil, report
suggests. Julho de 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/environment/2022/jul/11/uk-supermarke-
ts-could-still-be-buying-meat-linked-to-deforestation-in-brazil-report-suggests. Acesso em: 12 de outubro de 2022.

54 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Quadro 6 – Atores Envolvidos no Caso Estrondo

ATORES ENVOLVIDOS NO CASO ESTRONDO89

Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo: Área grilada: 444 mil hectares; Municípios
abrangidos: Formosa do Rio Preto, Riachão das Neves, Luís Eduardo Magalhães, Barreiras, São
Desidério, Correntina, Jaborandi, Cocos e Baianópolis. As terras estão localizadas às margens do Rio
Preto, na divisa entre Bahia e Tocantins, região que integra a fronteira agrícola do MATOPIBA.

Envolvidos no caso: Walter Yukio Horita, empresário do agronegócio considerado o maior planta-
dor individual de algodão do mundo, réu na Operação Faroeste; Ronald Guimarães Levinsohn, empre-
sário já falecido, suas duas filhas herdeiras, Claudia Vieira Levinsohn e Priscilla Vieira Levinsohn, que
exercem o controle das três empresas que reivindicam a propriedade das terras: Delfim Crédito Imo-
biliário S/A, Colina Paulista S/A e Companhia de Melhoramentos do Oeste da Bahia (CMOB); Bunge
e Cargill, multinacionais com silos no empreendimento; Estrela Guia, empresa privada de segurança
contratada pelo empreendimento; Sergio Humberto Quadros Sampaio, juiz de direito, aposentado
compulsoriamente, réu na Operação Faroeste.

Geraizeiros impactados: Cerca de 120 famílias distribuídas entre


as comunidades tradicionais de Aldeia, Cachoeira, Marinheiro, Ca-
cimbinha, Gatos e Mutamba, da zona rural de Formosa do Rio Preto,
no oeste da Bahia. Os “gerais” do Alto Rio Preto do Cerrado foram ha-
bitados historicamente por descendentes de indígenas, quilombolas
e sobreviventes da Guerra de Canudos (1896-1897). Seu modo de vida
tradicional envolve a pecuária extensiva e a colheita de frutos típicos do
Cerrado, como o pequi, o buriti e o capim-dourado. Área reivindicada:
43 mil hectares, dos quais só têm acesso a metade, além do território
tradicional dos “gerais” ter sido “perdido” para a grilagem.

89. Fontes utilizadas: GREENPEACE. Exterminador do futuro: Estrondo inicia desmatamento gigante no Cer-
rado. Setembro de 2021. Disponível em: https://www.greenpeace.org/brasil/blog/exterminador-do-futuro-condo-
minio-estrondo-inicia-desmatamento-gigante-no-cerrado/. Acesso em 25 outubro 2022;

55
O caso desde 1999 é apontado pelo Instituto Na- contra as comunidades tradicionais e posseiros
cional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) da região. O Cerrado é o segundo maior bioma
como a maior grilagem de terras no país, com os do Brasil92, no qual se concentra a maior biodi-
444 mil hectares em títulos falsificados pelas em- versidade do planeta, além de ser o berço de
presas , que se sobrepõem violentamente ao ter-
90
bacias hidrográficas vitais mas, apesar disso,
ritório geraizeiro do Alto Rio Preto. Soma-se a isso sua importância é invisibilizada, de forma que
um histórico de desmatamentos sem licencia- mais de 50% de sua área já foi desmatada93 para
mento ambiental, ou com licenças questionáveis, dar espaço à pecuária e monocultura de soja,
multas milionárias não pagas, o descumprimen- cana-de-açúcar e algodão94. Dados do Instituto
to da reserva legal de 20% (área de vegetação na- Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) atestam
tiva obrigatória), o uso de mão de obra em condi- que, apenas do ano 2020 a 2022, mais de 16 mil
ções análogas à escravidão, conforme operação hectares foram devastados95, refletindo o inten-
conjunta do Ministério Público do Trabalho (MPT) so avanço da agropecuária sobre a região.
e da Polícia Federal (PF) que, em 2009, resgatou
Segundo Jamilton Magalhães, membro da a
91 trabalhadores em duas fazendas da Estrondo91
Associação dos Fundos e Fecho de Pasto do
Essa exorbitância de irregularidades compõe Oeste da Bahia, existe relação entre o desma-
o cenário de avanço de empresas transnacio- tamento e a morte de nascentes, o envenena-
nais do agronegócio sobre o bioma do Cerrado, mento das águas por agrotóxicos, as ameaças
avanço este caracterizado em essência pelo e expulsões dos verdadeiros donos das áreas
desmatamento ilegal e violências perpetradas remanescentes do cerrado.96 Sua fala resume a

90. AATR. Segurança da Fazenda Estrondo invade território e atira contra geraizeiros em Formosa do Rio
Preto. Maio de 2021. Disponível em: https://www.aatr.org.br/post/seguran%C3%A7a-da-fazenda-estrondo-invade-
-territ%C3%B3rio-e-atira-contra-geraizeiros-em-formosa-do-rio-preto. Acesso em 12 de outubro de 2022.

91. CARVALHO, Igor. Fazenda símbolo de grilagem sofre derrota “emblemática” e perde área para geraizei-
ros. Brasil de Fato. Julho de 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/10/fazenda-simbolo-de-
-grilagem-sofre-derrota-emblematica-e-perde-area-para-geraizeiros. Acesso em: 12 de outubro de 2022.

92. DE SANTI, Maurício. Cerrado é o segundo maior bioma do país, presente em 24% do território nacional.
Rádio Senado. Maio de 2018. Disponível em: Cerrado é o segundo maior bioma do país, presente em 24% do território
nacional — Rádio Senado. Acesso em 15 de novembro de 2022.

93. AATR. Estudo “ Legalizando o ilegal” é lançado. Outubro de 2020. Disponível em: Estudo “ Legalizando o ilegal”
é lançado (aatr.org.br). Acesso em: 15 de novembro de 2022.

94. BONFIM, Joice; ASSUMPÇÃO, Débora, BORGES, Juliana; CORREIA, Mauricio Correia; COELHO, COELHO, Silvia
Helena. Legalizando o ilegal: legislação fundiária e ambiental e a expansão da fronteira agrícola no Ma-
topiba. Salvador: AATR, 2020. Disponível em: https://www.aatr.org.br/post/matopiba-estudo-sobre-institucionaliza%-
C3%A7%C3%A3o-da-grilagem-%C3%A9-lan%C3%A7ado. Acesso em 12 de outubro de 2022.

95. Idem 5.

96. AATR. Rastro de destruição da soja no cerrado brasileiro é denunciado ao parlamento Europeu. Agosto
de 2022. Disponível em: https://www.aatr.org.br/post/rastro-de-destrui%C3%A7%C3%A3o-da-soja-no-cerrado-bra-
sileiro-%C3%A9-denunciado-ao-parlamento-europeu. Acesso em: 12 de outubro de 2022.

56 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


batalha enfrentada pelas comunidades geraizeiras do alto Rio Preto. O conflito
se arrasta desde os anos 70, mas entre 2018 e 2020, adquiriu contornos mais
violentos, avançando dos crimes ambientais e grilagem de terras públicas para
a intensificação da criminalização de lideranças, uso de forças públicas e priva-
das de segurança, controle do território, cerceamento do direito de ir e vir, roubo
e morte de animais, violências físicas e psicológicas, sequestro e cárcere
privado, ameaças e tentativas de assassinatos97.

A escalada da violência tem relação direta com a tenta-


tiva de controle do Condomínio Estrondo sobre os terri-
tórios das comunidades e a consequente organização
e resistência dos geraizeiros, que obtiveram com isso
vitórias judiciais.

As comunidades geraizeiras do Alto Rio Preto A luta dessas comunidades envolveu além do en-
ocupam hoje as regiões de vales e baixadas, frentamento ao empreendimento e especulado-
áreas menos valorizadas pelo agronegócio, onde res, a necessidade de organização para proteção
foram confinadas pelos processos de grilagem, das áreas de posse tradicional ainda não invadi-
das e desmatadas, onde as famílias fazem uso e
apropriação e desmatamento das terras de uso
manejo para o pastoreio do gado, extrativismo e
comum dos gerais (denominação tradicional, na
outras práticas compatíveis com a conservação
região, dos chapadões livres das cercas). As cha-
da biodiversidade e das águas do Cerrado. Essas
padas são as áreas mais cobiçadas pelo agro- áreas de vales e baixadas, nas quais mantiveram
negócio, por conta do tipo de solo, por serem suas tradições, coincidem com as áreas preserva-
planas, permitindo a mecanização em grandes das do Cerrado e que hoje passam pela chamada
extensões e pelo alto nível de pluviosidade. grilagem verde.98 De acordo com a AATR:

[…] após vários anos de abandono dos esquemas de grilagem sobre estas áreas, elas
passaram a ser novamente cobiçadas diante de uma nova possibilidade de lucro: a gri-
lagem verde, ou seja, a apropriação ilegal de terras com vegetação nativa com objetivo
específico de averbá-las como reserva legal de outros imóveis ou mesmo recebimento
de valores de créditos de carbono, possibilidades abertas pelo Código Florestal de 2012.99

97. TRIBUNAL PERMANENTE DOS POVOS EM DEFESA DOS TERRITÓRIOS DO CERRADO. Caso nº9 • BA – Comunida-
des Tradicionais Geraizeiras X Condomínio Cachoeira Estrondo. S/D. Disponível em: https://tribunaldocerrado.
org.br/casos/caso-no9-ba-comunidades-tradicionais-geraizeiras-x-condominio-cachoeira-estrondo/. Acesso em 12
de outubro de 2022.
98. AGUIAR, Diana; BONFIM, Joice; CORREIA, Mauricio. Na Fronteira da (I)legalidade: Desmatamento e grilagem
no Matopiba. Salvador: AATR, 2021. Disponível em: https://www.matopibagrilagem.org/. Acesso em 12 out. 2022.
99. AATR. Rastro de destruição da soja no cerrado brasileiro é denunciado ao parlamento Europeu. Agosto de
2022. Disponível em: <https://www.aatr.org.br/post/rastro-de-destrui%C3%A7%C3%A3o-da-soja-no-cerrado-brasilei-
ro-%C3%A9-denunciado-ao-parlamento-europeu>. Acesso em 12 de outubro de 2022.

57
Segundo Maurício Correia, advogado da AATR, essa forma de grilagem é ope-
racionalizada a partir do Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento de natu-
reza autodeclaratória, por meio do qual a Estrondo transferiu sua área de reser-
va legal (obrigatória de 20%, com vegetação nativa) para essas áreas de vale,
historicamente ocupadas pelos geraizeiros. Com isso, as empresas objetivam
desmatar ainda mais áreas da chapada, usando as áreas das comunidades
como reserva legal. Passam, então, a considerar o território tradicional parte da
sua propriedade privada e a investir no seu controle:

“Começaram a construir guaritas, colocaram uma


empresa de segurança e passaram a fazer controle
da circulação das pessoas entre comunidades. Fo-
ram fazendo uma espécie de confinamento em que,
ao final, o pessoal vai ficando encurralado” (trecho de de-
claração extraída do portal Outras Palavras)101

O Agronegócio Estrondo construiu diversas contra os geraizeiros, que foram obrigados a se


guaritas que, segundo a empresa, seriam para identificarem para ter acesso ao seu território e
garantir segurança às propriedades e à comuni- ao de comunidades vizinhas. Além disso, foram
dade. Mas, na realidade, o que se vivenciou foi o destruídas estradas vicinais utilizadas historica-
impedimento do deslocamento dos moradores mente pelas comunidades para deslocamento,
e aumento do poder de vigilância e violência manejo do gado e coleta do capim dourado.

4.3.1. O PODER PÚBLICO EM AÇÃO: “AMBÍGUA


E CONTRADITÓRIA, COM VIÉS DE PROTEÇÃO DO
ESQUEMA CRIMINOSO”100

A ausência de políticas estatais na região afetou de sobremaneira o modo de


vida tradicional das comunidades. A negação de serviços básicos como
saúde, moradia digna e educação, somados a não regularização do território e ao
desrespeito para com suas tradições e modos de viver - sintonizados com a cha-
pada e as regiões dos vales e veredas -, tornaram a resistência das famílias frente
ao avanço do empreendimento uma sina, que já perdura muitos anos.

100. OUTRASPALAVRAS. Na BA, o cerco aos filhos de Canudos. Outubro de 2019. Disponível em: https://outraspa-
lavras.net/outrasmidias/na-ba-o-cerco-aos-filhos-de-canudos/. Acesso em 12 de out. de 2022.

58 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Nesse processo, segundo assessores das co- dimentos no oeste do estado. Esse escândalo
munidades, presenciou-se uma atuação tímida ficou conhecido como operação faroeste101.
de algumas instituições, como IBAMA, Minis-
Em 2017, uma medida liminar de proteção pos-
tério Público do Trabalho (MPT) e Sindicato dos
sessória de 43 mil hectares do território foi
Trabalhadores Rurais, mas a tônica, segundo
conquistada na Justiça. Contudo, essa medida,
entrevista concedida por Maurício Correia, foi mesmo após confirmação em segunda instân-
uma ação estatal “ambígua e contraditória, com cia pelo Tribunal de Justiça da Bahia, foi descum-
viés de proteção do esquema criminoso”. Por prida pelo empreendimento e não efetivada pelo
esquema criminoso, o advogado faz referência poder público durante dois anos. Desde então, a
ao já escancarado esquema de corrupção en- violência aumentou na região, como pode-se
volvendo o Poder Judiciário baiano, com venda observar no quadro abaixo que resume a esca-
de sentenças favoráveis aos grandes empreen- lada no período de 2018 a 2021.

Quadro 7 – Escalada da Violência na região de Formosa do Rio Preto entre 2018-2021

ESCALADA DA VIOLÊNCIA: PERÍODO DE 2018 A 2021102

Jossone Lopes Leite, membro da associação da comunidade de Cachoeira, foi


baleado por seguranças do Condomínio Agronegócio Fazenda Estrondo quan-
do tentava recuperar seu gado, que havia sido cercado pela fazenda Estrondo
a 1,3 km de sua casa.
TENTATIVAS DE
ASSASSINATOS

Fernando Ferreira Lima foi baleado na perna por agentes da empresa de segu-
rança Estrela Guia, contratada pelo condomínio.

101. A operação faroeste possibilitou um freio no esquema criminoso ao apurar crimes envolvendo membros do
Poder Judiciário Estadual da Bahia, servidores, ex-servidores, advogados, empresários do agronegócio e particu-
lares na atuação de venda, intermediação e compra de sentenças judiciais sobre o conflito fundiário envolvendo
as terras da antiga Fazenda São José, em Formosa do Rio Preto e da Fazenda Estrondo, em Santa Rita de Cássia,
todos municípios do oeste da Bahia. In: AUGUSTO, Carlos. Exclusivo: A decisão do ministro do STJ Og Fernandes
que determinou a prisão e afastamento das funções de desembargadores, juiz, secretário de Segurança
Pública, ex-chefe do MPBA e servidores. Jornal Grande Bahia. Dezembro de 2020. Disponível em: https://www.
jornalgrandebahia.com.br/2020/12/exclusivo-a-decisao-do-ministro-do-stj-og-fernandes-que-determinou-a-prisao-
-e-afastamento-das-funcoes-de-desembargadores/. Acesso em 16 de novembro de 2022.

102. Fontes utilizadas: CARVALHO, Igor. Fazenda símbolo de grilagem sofre derrota “emblemática” e perde
área para geraizeiros. Brasil de Fato. Julho de 2020.Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/10/
fazenda-simbolo-de-grilagem-sofre-derrota-emblematica-e-perde-area-para-geraizeiros. Acesso em 12 de outubro
de 2022; OUTRASPALAVRAS. Na BA, o cerco aos filhos de Canudos. Outubro de 2019. Disponível em: https://ou-
traspalavras.net/outrasmidias/na-ba-o-cerco-aos-filhos-de-canudos/. Acesso em 12 de outubro de 2022.

59
As duas tentativas de assassinato ocorreram durante o manejo do gado. Na
primeira, após atendimento médico, Jossone foi levado à delegacia do muni-
ROUBO E MORTE DE
cípio e conseguiu que a Estrela Guia liberasse o gado. No outro caso, quando
ANIMAIS
Fernando foi abordado e ameaçado pelos agentes, ao saltar do seu cavalo, foi
atingido por um tiro e o animal foi alvejado com outros três disparos.

Adão Batista Gomes, também de Cachoeira, recebeu “ordem de prisão” por se-
guranças da Estrela Guia. “Era de manhã cedinho, eu estava caçando um gado
no campo quando os seguranças me acharam na lavoura, me algemaram e
me levaram pra polícia”, relata. Adão ficou no presídio regional de Barreiras por
cinco dias.
PRISÕES ILEGAIS

Jossinei Lopes Leite teve seu veículo bloqueado por agentes da Estrela Guia,
que após fazerem ele descer do carro, o detiveram por três horas e implanta-
ram uma espingarda calibre 12 no seu carro.

Adão Batista Gomes foi abordado por policiais militares acompanhados de


agentes da empresa de segurança em sua casa, sem mandado judicial.

INVASÕES DE
DOMICÍLIO

Policiais militares da Cipe Cerrado (batalhão especializado da região) revista-


ram casas do povoado sem autorização judicial.

Jossinei Lopes Leite, procurava seus animais na região quando teve o caminho
de seu veículo bloqueado por agentes da Estrela Guia. “Tinha uma sede da fa-
zenda próxima e ele achou melhor correr para lá, aí manobrou o carro e foi. Lá,
o fizeram descer do carro e o detiveram por duas, três horas”, relata Jossone,
irmão de Jossinei.

CERCEAMENTO DO
Políticos foram barrados em uma estrada vicinal por agentes da Estrela Guia
DIREITO DE IR E VIR
depois de terem se recusado a apresentar documentos de identidade.

Em 2019, o Greenpeace presenciou quando homens fortemente armados che-


garam à uma das comunidades e mantiveram os moradores, além de uma
equipe de reportagem alemã, sob a mira de fuzis por cerca de duas horas.
(greenpeace)

60 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Várias ações criminalizando as lideranças. O Ministério Público se omite de
CRIMINALIZAÇÃO tomar iniciativas frente ao braço armado desse conflito. As diversas queixas
DAS LIDERANÇAS criminais feitas pelas comunidades não tem andamento, em contraste com as
ações que criminalizam as lideranças.

Mesmo com os processos judiciais, o grupo obteve licença irregular para des-
matar 24.732 hectares (ha) de vegetação nativa, uma área maior que a cidade
AUTORIZAÇÃO DE
de Recife (PE). (greenpeace) Foi concedida pelo Instituto do Meio Ambiente e
SUPRESSÃO DE
Recursos Hídricos da Bahia (Inema) sem autorização do órgão estadual de ter-
VEGETAÇÃO NATIVA
ras (CDA), em área próximas às bordas dos chapadões (risco de deslizamentos
(ASV) IRREGULAR
e assoreamento do rio) e que compõe corredor ecológico que liga os rios e
afeta o ecossistema.

CONSOLIDAÇÃO
Avanço das intervenções para consolidar o crime. Asfalto, eletrificação, valas
DA GRILAGEM E
e desmatamento como formas de dificultar a reversão e deixar o Estado mais
DEMORA DA AÇÃO
tímido para recorrer.
DISCRIMINATÓRIA

Nestes anos, apesar do recrudescimento da violência, nenhuma medida to-


mada foi suficiente para resolver a questão. O que se verificou na realidade foi
a criminalização das lideranças por roubo e porte de armas implantadas, ao
mesmo tempo em que as denúncias das comunidades foram ignoradas pelas
forças policiais. O judiciário, por sua vez, foi responsável por decisões contro-
versas, que hoje são investigadas no âmbito da operação faroeste.

Uma delas foi a drástica redução da área da me- Após a faroeste, essa escandalosa atuação ju-
dida liminar de 43 para 9 mil hectares, sem jus- dicial foi freada, mas foi a alta mobilização das
tificativa plausível e a outra foi a extinção, sem comunidades e sua rede de apoio que consegui-
julgar o mérito, da ação discriminatória judicial ram publicizar o caso e mobilizar diversos ato-
interposta pela Procuradoria Geral do Estado res nacionais e internacionais, constrangendo o
da Bahia (PGE), que, após trabalhos técnicos de Agronegócio Estrondo, que teve os seus recursos
identificação e delimitação das terras, concluiu judiciais negados e a manutenção da decisão ju-
que se tratava de terras devolutas ocupadas tra- dicial que protege a posse coletiva de 43mil hec-
dicionalmente pelos geraizeiros . 103
tares. Essa mobilização contou ainda com comi-

103. AUGUSTO, Carlos. Fonte diz que “pistoleiros da Fazenda Estrondo atiraram com arma de fogo contra
geraizeiros em Formosa do Rio Preto”. Jornal Grande Bahia. Fevereiro de 2019. Disponível em: https://www.jornal-
grandebahia.com.br/2019/02/fonte-diz-que-pistoleiros-da-fazenda-estrondo-atiraram-com-arma-de-fogo-contra-ge-
raizeiros-em-formosa-do-rio-preto/. Acesso em 12 de outubro de 2022.

61
tiva fundamental para o cumprimento da medida do a AATR, “é deste chão que vêm cerca de 41% da
liminar e destruição das guaritas, ela foi formada soja importada pela União Europeia (UE) e empre-
por representantes de organizações do Comitê sas globais de comércio de commodities, como a
Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos ADM, Bunge e Cargill” 104.
Humanos (CBDDH), Conselho Nacional de Direitos
Humanos (CNDH), Ministério Público Federal e De- O assessor Martin Mayr, da “Agência 10envol-
vimento”, que também acompanha o conflito,
fensoria Pública da União (DPU), além de organiza-
pontua como resultado dessa grande publici-
ções e instituições locais como a 10envolvimento,
dade: a desaceleração da violência, a retomada
o Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Grande e
da ação discriminatória e o empenho do Minis-
Subcomitê do Oeste de incêndios Florestais e a
tério Público em dividir as áreas das comunida-
Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB).
des, encerrando o conflito. Apesar disso, as co-
A publicidade do caso contribuiu por afetar a ima- munidades ainda não possuem acesso a todo
gem pública do Condomínio Estrondo ao respingar o seu território, remanescendo também duas
nos interesses de grandes multinacionais. Segun- guaritas do Agronegócio Estrondo.

Maurício Correia alerta que as comunidades só


têm acesso a metade do território demarcado
pela Coordenação de Desenvolvimento Agrário
(CDA), e que o empreendimento tem promovido o
desmatamento da última área preservada para con-
solidar a posse e aumentar seu poder de barganha nas nego-
ciações, tendo em vista seus investimentos de milhões para
instalar infraestrutura e depois arrendar as terras.

104. AATR. Rastro de destruição da soja no cerrado brasileiro é denunciado ao parlamento Europeu. Agosto
de 2022. Disponível em: https://www.aatr.org.br/post/rastro-de-destrui%C3%A7%C3%A3o-da-soja-no-cerrado-brasi-
leiro-%C3%A9-denunciado-ao-parlamento-europeu. Acesso em 12 de outubro de 2022.

62 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


4.3.2.O QUE PRECISA SER FEITO?

O s passos que se demonstraram neces-


sários para a proteção das comunidades
geraizeiras do Alto do Rio Preto, estão todos cor-
ria e sobre segurança. Deverão estar em diálogo
entre si e com as Comunidades, o Instituto de
Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia
relacionados com a retomada da política e rees- (INEMA), a Coordenação de Desenvolvimento
truturação das instituições, que foram reduzidas Agrário da Bahia (CDA), o IBAMA, o Grupo Espe-
e sucateadas durante o governo bolsonarista. cial de Mediação e Acompanhamento de Con-
flitos Agrários e Urbanos (Gemacau) da Polícia
Esse quadro se agrava ainda com a não aplica-
Civil, o Ministério Público, prefeituras e o gover-
ção da Convenção n° 169 da OIT (sobre Povos In-
no do estado. Somente com essa ampla arti-
dígenas e Tribais) para as comunidades tradicio-
culação será possível pacificar o conflito, com
nais da Bahia, e as violências relatadas, tais como
livre e irrestrito acesso das comunidades ao seu
a criminalização das lideranças, intimidações, o
território tradicional, e se evitar que o desmata-
desmatamento das áreas de borda do chapadão
mento ilegal avance ainda mais sobre as áreas
(risco de chuvas e deslizamento de terras), a con-
de chapada do Cerrado: território tradicional per-
taminação por agrotóxicos nas águas por pulveri-
dido para a grilagem, mas que possui uma Área
zação aérea, a permanência de duas guaritas nos
de Proteção Ambiental (APA Rio Preto) com con-
extremos do território, e atualmente pelo projeto
selho gestor inoperante.
do governo do estado de requalificação do anel
da soja, que vai passar pelas comunidades, sem Urge ainda, uma publicização e acompanha-
respeitar a convenção 169. mento da atuação do Judiciário, sob o qual ainda
pesam fortes acusações de omissão e alianças
O Anel da Soja é um dos principais corredores
em favor dos interesses econômicos, para que a
viários para o escoamento da produção agríco-
matrícula fraudulenta do imóvel seja bloqueada
la do oeste da Bahia e contará com um investi-
e que os casos de desmatamento ilegal possam
mento de R$120 milhões dos cofres públicos105.
ser freados a tempo. A AATR alerta também para
Esse investimento contrasta com a desassis-
a necessidade de atuação incisiva do Estado da
tência das comunidades impactadas, onde são
Bahia na fiscalização dos Cartórios de Registro de
ausentes os serviços mais básicos como saú-
Imóveis, na proposição de uma política de identi-
de e energia elétrica.
ficação, delimitação e destinação constitucional
O conflito requer então, conforme diálogo com das terras públicas devolutas e na responsabili-
as assessorias, uma articulação interinstitucio- zação pela concessão indiscriminada de autori-
nal que englobe as questões ambiental, fundiá- zação de supressão vegetal e outorgas hídricas.

105. ADAB. Anel da Soja receberá investimento do Governo da Bahia. Agosto de 2021. Disponível em:
http://www.adab.ba.gov.br/2021/08/2660/Anel-da-Soja-recebera-investimentos-do-Governo-da-Bahia.html.
Acesso em 12 outubro de 2022.

63
Há, na verdade, uma atuação ambígua
do Estado que, de um lado, garante
agilidade no licenciamento ambiental
da mineradora e, de outro, se omite na
proteção do território geraizeiro

64 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


G eraizeiros e geraizeiras são as identidades
tradicionais do povo que vive e constrói
suas relações sociais, econômicas e culturais
nhecida historicamente por serem áreas de uso
comum, coletivas, onde se criam animais e se ex-
traem os frutos, como o pequi, o buriti, a cagaita e
no território do Vale das Cancelas, que abriga diversas plantas medicinais.
73 comunidades, mais de 200 mil hectares
Pelo menos desde a década de 1970, a vida no ter-
de Cerrado, e conforma uma paisagem que
ritório começou a mudar drasticamente devido
interconecta chapadas, tabuleiros e grotas106
ao aumento das investidas de empreendimentos
. Ele está localizado nos municípios de Grão
econômicos, sobretudo, ligados à monocultura de
Mongol, Padre Carvalho e Josenópolis, na re-
eucalipto, geração de energia e mineração, que as-
gião norte do Estado de Minas Gerais, precisa-
sentados na grilagem de terras, vêm promovendo
mente na Serra do Espinhaço, e tem influência
processos de expropriação de territórios, privatiza-
direta da Bacia do Rio Jequitinhonha.
ção de bens naturais, escassez e contaminação
Esse povo está presente no local há pelo menos das águas, violências e ameaças. Contudo, foi nos
sete gerações e se afirma geraizeiro, pois vive di- anos 2000, que eles se depararam com uma nova
retamente dos “gerais”: paisagem do Cerrado co- ameaça: a mineração de ferro.

4.4.1. O PROJETO BLOCO 8 E


A SUL-AMERICANA DE METAIS

F oi em 2009 que a Sul-Americana de Metais (SAM) ingressou com o pro-


cesso de licenciamento ambiental da mineração de ferro a ser desenvolvi-
da na região do Vale das Cancelas. O projeto, denominado Bloco 8, apresentado
ao IBAMA, previa a construção de um complexo minerário - o que inclui a cons-
trução de barragens de rejeitos e de água, linhas de transmissão, cava e mina -
e um mineroduto, que seria responsável pelo transporte do minério do norte de
Minas Gerais até o sul da Bahia, atravessando 21 municípios entre os estados.

A tramitação do licenciamento ambiental do Bloco 8 e suas manobras


administrativas foram descritas pelas Defensorias Públicas da União
e do Estado de Minas Gerais no âmbito da Ação Civil Pública107 (ACP)
ingressada com objetivo de assegurar os direitos territoriais e de consulta pré-
via livre e informada do povo geraizeiro do Vale das Cancelas. De acordo com a

106. As grotas são localidades do território geraizeiro do Vale das Cancelas conhecidas por serem nas áreas
mais baixas, de vales, ao redor dos cursos d’águas.
107. DENFESORIA PÚBLICA DE MINAS GERAIS. Ação Civil Pública nº 1014398-57.2021.4.01.3807. Em trami-
tação na Justiça Federal de Montes Claros - MG. Dezembro de 2021. Disponível em: Defensoria Pública de
Minas e da União ajuízam ação em favor de comunidades geraizeiras do Norte de Minas (mg.def.br).
Acesso em 16 de novembro de 2022.

65
ACP, a primeira negativa de viabilidade ambien- empresa Lotus S.A passou a ser responsável
tal do empreendimento ocorreu em 2016, quan- pelo licenciamento do mineroduto de forma
do o IBAMA arquivou o processo de licencia- apartada ao complexo minerário. Para o IBA-
mento. Em virtude do imenso consumo de água MA, à época (em 2018), isso não seria possível
que seria necessário para o empreendimento, o já que o mineroduto seria de uso exclusivo da
impacto aos recursos hídricos da região, sobre- atividade minerária e, portanto, se tratava de
tudo, às 70 nascentes que seriam destruídas - e apenas um empreendimento, devendo ser li-
considerando que o mesmo estaria localizado cenciado em conjunto.
numa região semiárida de Minas Gerais - foi um
Contudo, com a chegada do governo Bolso-
dos fundamentos para que o IBAMA emitisse
naro, tudo mudou. Em 2019, o presidente do
um parecer afirmando a inviabilidade ambiental
IBAMA, Eduardo Bin, contrariando o posiciona-
do empreendimento.
mento anterior de técnicos do instituto, emitiu
Diante da negativa do IBAMA, a Sul-Americana um parecer autorizando a fragmentação do
de Metais fracionou seu empreendimento e a licenciamento ambiental.

Quadro 8 – Ministério do Meio Ambiente e IBAMA na gestão Bolsonaro108

MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE E IBAMA NA GESTÃO


BOLSONARO - ANTECEDENTES
Eduardo Bin, presidente do IBAMA, e o Ministério do Meio Ambiente, Ricardo Sa-
les, foram objetos de investigação pelo suposto envolvimento em “facilitação de
contrabando de produtos florestais”. O Ministro do STF, Alexandre de Moraes, em
decisão que determinou a quebra do sigilo bancário e fiscal do Ricardo Salles e
o afastamento do presidente do IBAMA, apontou uma série de indícios que de-
monstravam a corrupção no órgão. Segundo a investigação feita por autoridades
policiais, o presidente do IBAMA, também contrariando pareceres técnicos de
servidores do órgão, teria atendido prontamente solicitação de madeireiras para
revogação de Instrução normativa (IN 15/2011) de necessidade de autorização es-
pecifica para exportação de produtos florestais de origem nativa e, ato contínuo,
o Ministro do Meio ambiente teria concedido cargos altos para servidores do IBA-
MA que atuaram em prol da medida, exonerando aqueles que se opuseram.

108. As informações sobre a quebra de sigilo bancário e fiscal do Ricardo Salles e o afastamento do Eduardo Bim
podem ser encontradas na decisão do Ministro Alexandre de Moraes, no âmbito da Pet 8.975. Disponível em: https://
www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/pet8975decisao.pdf. Acesso em: 29 de setembro de 2022.

66 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Depois da “canetada do IBAMA”, o licenciamento ambiental da Sul-Americana
de Metais avançou. A fragmentação do licenciamento permanece, sendo que,
agora, o mineroduto está sendo licenciado também no estado de Minas Gerais.

4.4.2. DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS:


“O MESMO ESTADO QUE LICENCIA PASSA
POR CIMA DO TERRITÓRIO QUE DEVERIA
REGULARIZAR”109

O projeto Bloco 8 foi o primeiro empreendimento minerário considerado prio-


ritário para o Governo Federal no âmbito da Política Pró-Minerais Estratégicos,
instituída pelo Decreto nº. 10.657/2021110, que também criou o Comitê Interminis-
terial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos. Este Comitê tem justa-
mente a função de apoiar os procedimentos de licenciamento ambiental tidos
como mais relevantes e de maior “interesse nacional” 111. O empreendimento da
SAM é também considerado prioritário para o Governo de Minas Gerais, que foi
protagonista ao firmar um protocolo de intenções112 com o objetivo explícito de
viabilizar o empreendimento e consolidar a região Norte de Minas Gerais como
a mais nova fronteira mineral do estado.

A efetivação da garantia do território tradicional, no entanto, segue a passos


lentos. Em dezembro de 2018 o decreto estadual nº 679/2018, que instaurou o
procedimento de demarcação e titulação do território, foi publicado. Desde lá,

109. Larissa Vieira, advogada popular do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular

110. JUSBRASIL. Decreto nº 10.657, de 24 de Março de 2021 - Institui a Política de Apoio ao Licenciamento
Ambiental de Projetos de Investimentos para a Produção de Minerais Estratégicos. Disponível em: Decreto
10657 24 marco 2021 | Decreto nº 10.657, de 24 de Março de 2021, Presidência da Republica (jusbrasil.com.br). Acesso
em 16 de novembro de 2022.

111. Os empreendimentos habilitados como estratégicos no âmbito da Política Pró-Minerais Estratégicos podem ser
consultados in. BRASIL. Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos (CTAPME).
Ministério de Minas e Energia. Fevereiro de 2022. Disponível em: Comitê Interministerial de Análise de Projetos de
Minerais Estratégicos (CTAPME) — Português (Brasil) (www.gov.br). Acesso em: 29 de setembro de 2022.

112. GOVERNO DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Protocolo de Intenções nº. 7411951/2019 Agência de Promoção de
Investimento e Comércio Exterior de Minas Gerais. Setembro de 2019. Disponível em Protocolo de intenções SAM -
DocumentCloud. Acesso em 29 de setembro de 2022.

67
nenhuma movimentação significativa foi feita113. E, embora em ritmos absolu-
tamente distintos, a regularização fundiária do território caminha junto com o
licenciamento ambiental que irá desterritorializar as comunidades e compro-
meter seu modo de vida “nos gerais”: “A atuação do Estado no território é ser a
favor do empreendimento, pois libera o licenciamento da mineração e afirma
que não tem dinheiro para fazer a regularização fundiária coletiva” 114

A diferença no tratamento e prioridade dada pelo estado para o licenciamento


da mineradora em contraponto com a regularização do território Vale das Can-
celas está expressa no desenho abaixo:

Quadro 9 – Comparativo entre licenciamento de mineradoras e regularização


do território Vale das Cancelas

REGULARIZAÇÃO LICENCIAMENTO DA
TERRITÓRIO GERAIZEIRO MINERADORA SAM
VALE DAS CANCELAS S.A E LOTUS S.A

Abertura de edital para audiências


públicas do mineroduto - 2022

Audiências públicas da mineradora


SAM realizadas - 2022

Definição do projeto bloco 8 como


Publicação do decreto de abertura prioritário para o governo federal - 2021
do procedimento de regularização
do território - dezembro 2018
Autorização do IBAMA para
fragmentação do licenciamento
ambiental (complexo minerário e
mineroduto) - 2019

113. Foi com a mobilização das comunidades e redes de apoio que foi conquistado um projeto para financiar o lau-
do antropológico da comunidade, que está sendo feito em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG).

114. Trecho de entrevista de fonte anonimizada

68 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Ainda que a responsabilidade de regularizar o território geraizeiro seja sobretu-
do do estado de Minas Gerais115, a morosidade no cumprimento do que deter-
mina a lei nº. 21.147/2014, que instituiu a política de povos e comunidades tradi-
cionais, se explica a partir da leitura sobre as prioridades políticas dos governos
federais e estaduais, sobretudo nos últimos 4 anos.

4.4.3. A SERVIÇO DAS MINERADORAS

A
s prioridades para o setor mineral no seja, acabar com os entraves, desobstruir e li-
Governo Bolsonaro estão sintetizadas berar os projetos de exploração mineral.
no “Programa Mineração e Desenvolvimento116”,
O Cerrado, sobretudo em Minas Gerais, tem
elaborado pelo Ministério de Minas e Energia, sido cobiçado não apenas como região de ex-
sob o título: “Brasil, uma mina de oportunidade”. pansão da fronteira agrícola, como também, de
Um dos eixos centrais do Programa é o de Avan- expansão da fronteira mineral. Segundo dados
ço da Mineração em Novas Áreas - chamado sistematizados pela Campanha Cerrado, espe-
também de “Minera Brasil” - que tem como me- cialmente nos estados de Minas Gerais e Pará
foram abertas, nos últimos quatro anos, novas
tas: “ampliar as áreas de aproveitamento mine-
minas de bauxita, cobre, manganês, níquel e
ral”, “agilizar as outorgas de títulos minerários”,
ampliado de forma exponencial a exploração do
entre outras. O programa casa diretamente
minério de ferro, cujas previsões é que até 2030
com o que a Agência Nacional de Mineração a produção tenha triplicado, chegando a atingir
tem chamado de “guilhotina regulatória117”, ou o patamar de 1 bilhão de toneladas/ano118.

115. É fato que a partir da edição da Lei 21.147/2014, o estado de Minas Gerais se tornou responsável pela delimitação,
demarcação e titulação dos territórios tradicionais. No entanto, é importante ressaltar que os arts. 215 e 216 da Cons-
tituição Federal, a Convenção 169 da OIT e o Decreto 6040/2007 estabelecem a obrigatoriedade do Estado Brasileiro
para proteger e garantir a posse e propriedade dos territórios ocupados por povos e comunidades tradicionais.

116. BRASIL. Programa Mineração e Desenvolvimento - PMD 2020-2023. Ministério de Minas e Energia. Feverei-
ro de 2021. Disponível em: Programa Mineração e Desenvolvimento - PMD 2020-2023.pdf — Português (Brasil) (www.
gov.br). Acesso em 29 de setembro de 2022.

117. ANGELO, Maurício. Diretor da Agência Nacional de Mineração defende “guilhotina regulatória” para o
setor mineral em parceria com a OCDE. Observatório da Mineração. Junho de 2020. Disponível em: Diretor da
Agência Nacional de Mineração defende “guilhotina regulatória” para o setor mineral em parceria com a OCDE –
Observatório da Mineração (observatoriodamineracao.com.br). Acesso em 29 de setembro de 2022.

118. AGUIAR, Diana; PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter; MALERBA, Julianna; JUNIOR, Orlando Aleixo de Barros. O início
do Ecocídio do Cerrado: a histórica imposição de grandes projetos de “desenvolvimento” sobre os territórios tradi-
cionais. In: Acusação Final. Contexto Justificador da acusação de Ecocídio-Genocídio [Cultural] no Cerra-
do. 2022 [online]. Disponível em: Parte-1-Contexto-Acusacao-Final_VF.pdf (tribunaldocerrado.org.br). Acesso em 30
de setembro de 2022.

69
Ao mesmo tempo em que medidas para facili- de operação), e eram considerados de Classe 6,
tar a exploração mineral e reduzir a fiscalização passaram a ser considerados de Classe 4, tor-
avançam, em âmbito federal, existem ainda as nando-se bifásicos (a licença prévia e a licença
tentativas crescentes de enfraquecer legisla- de instalação passaram a ser concedidas jun-
ções que protegem os direitos de povos e comu- to com a de operação). Isso, além de agilizar o
nidades tradicionais. Não são poucas as amea- processo de licenciamento ambiental, torna o
ças de revogação do Decreto nº. 6040/2007, instrumento mais frágil quanto à proteção dos
instrumento que institui a Política Nacional de bens naturais.
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Co-
Após o rompimento das barragens do Fundão,
munidades. Em termos concretos, o mecanis-
em Mariana, e da barragem do Córrego do Fei-
mo resultou na extinção do Conselho Nacional
jão, em Brumadinho, esperava-se mais rigor na
de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT),
emissão de licenças para as mineradoras. Mas,
em abril de 2019. O Conselho somente retomou
na prática, não foi o que aconteceu. Embora te-
suas atividades após determinação do Supremo
nham sido aprovadas legislações voltadas para
Tribunal Federal119 e, atualmente, têm travado ba-
a segurança de barragens, como a Lei Federal nº
talhas para garantir seu funcionamento efetivo.
14.066/2020120 e a Lei Estadual “Mar de lama nun-
Segundo a advogada Larissa Vieira, em Minas ca mais” (Lei nº. 23291/2019121) que institui a po-
Gerais há um movimento forte de flexibilizar a lítica estadual de segurança de barragens, sua
política ambiental. Por exemplo, alguns em- aplicação tem sido tímida e restritiva. Não é por
preendimentos que antes precisavam cumprir acaso que após os rompimentos, o número de
um procedimento trifásico para sua aprovação barragens minerárias sem atestado de viabilida-
(licença prévia, licença de instalação e licença de quase dobrou entre 2019 e 2020122.

A política estadual de atingidos por barragens foi aprovada, mas ainda está
sendo muito pouco utilizada, muito pouco aplicada. Também existe a legis-
lação protetiva dos povos e comunidades tradicionais, mas acaba correndo
muito apartada do processo ambiental…é como se o órgão licenciador não
tivesse que observar essa legislação123

119. SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA. STF impede extinção de colegiados citados
em lei. Junho de 2019. Disponível em: STF impede extinção de colegiados citados em Lei – SBPC (sbpcnet.org.br).
Acesso em 29 de setembro de 2022.

120. BRASIL. LEI Nº 14.066, DE 30 DE SETEMBRO DE 2020. Presidência da República. Setembro de 2020. Dispo-
nível em: LEI Nº 14.066, DE 30 DE SETEMBRO DE 2020. Acesso em 16 de novembro de 2022.

121. MINAS GERAIS. Lei 23291, de 25/02/2019 - Institui a política estadual de segurança de barragens. Assembleia
Legislativa de Minas Gerais. Fevereiro de 2019. Disponível em: Lei 23291, de 25/02/2019 (almg.gov.br). Acesso em
16 de novembro de 2022.

122. AGUIAR, Diana; PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter; MALERBA, Julianna; JUNIOR, Orlando Aleixo de Barros. O início do
Ecocídio do Cerrado: a histórica imposição de grandes projetos de “desenvolvimento” sobre os territórios tradicionais. In:
Acusação Final. Contexto Justificador da acusação de Ecocídio-Genocídio [Cultural] no Cerrado. 2022 [online].
Disponível em: Parte-1-Contexto-Acusacao-Final_VF.pdf (tribunaldocerrado.org.br). Acesso em 30 de setembro de 2022.

123. Trecho da entrevista realizada com Larissa Vieira, advogada popular do Coletivo Margarida Alves de Asses-
soria Popular

70 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Não bastasse tudo isso, em abril de 2022, o governo de Minas Gerais publicou
a Resolução Conjunta nº1 SEMAD/SEDESE124, que se propõe a regulamentar o
procedimento de consulta no Estado de Minas Gerais.

Fortemente criticada por organizações da sociedade


civil e movimentos sociais, a resolução é uma amea-
ça direta aos direitos de povos e comunidades tra-
dicionais, pois sob a justificativa de regulamentar o
direito ela faz o contrário: limita seu alcance e fere por
completo o sentido do direito à consulta prévia, livre e
informada dos povos125.

4.4.4. A VIOLÊNCIA DA MINERAÇÃO

“O projeto traz ameaças de morte, traz brigas entre famílias, cria uma disputa entre
o povo da cidade e o povo da roça. Traz muita tristeza, depressão” 126

O conflito em análise se difere um pouco


de outros casos estudados neste dossiê
já que, até o momento, a mineradora ainda não
foi fundamental para impor limites ao proces-
so de licenciamento. Contudo, bem antes do
empreendimento ser instalado, as violações
se instalou na região e nem começou suas de direitos humanos já se fazem presentes, da
operações. A luta das comunidades nesses mesma forma que as violências contra defen-
mais de 10 anos de licenciamento ambiental sores de direitos humanos.

124. CONSELHO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS. Recomendação n° 16 de 29 de abril de 2022 – Recomenda


ao Estado de Minas Gerais que Revogue a Resolução Conjunta SEDESE e SEMAD n° 01/2022, em razão do
desacordo com a Convenção n°169 da OIT. Abril de 2022. Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbra-
sil/recomendacao-n16-2022. Acesso em 09 de novembro de 2022.

125. COLETIVO MARGARIDA ALVESE OUTROS. Nota Técnica sobre a Resolução Conjunta Sedese/Semad nº 01,
de 04 de abril de 2022, que regulamenta a consulta prévia, livre e informada. Abril de 2022. Disponível em:
https://coletivomargaridaalves.org/organizacoes-apontam-inconstitucionalidade-da-resolucao-conjunta-da-se-
dese-e-semad-e-exigem-revogacao/ . Acesso em 30 de setembro de 2022.

126. Trecho da entrevista com Adair Pereira de Almeida, Geraizeiro do Vale das Cancelas

71
Um ponto destacado nas entrevistas foi o processo de fragmentação social do
território, que faz com que diversas famílias entrem em conflito. A falta de infor-
mação completa e honesta sobre o empreendimento, aliada ao assédio das
empresas é um fator gerador desses desentendimentos:

“falta empatia com o sentimento alheio, com o lugar, com


quem vive da terra” 127

“A aceleração do licenciamento acirrou os conflitos entre as


comunidades e os trabalhadores das empresas, pois há um
processo intimidatório cotidiano para quem faz a resistência
ao empreendimento.” 128

O território geraizeiro é acompanhado pelo Pro- e comunidades tradicionais, que deveriam ser as
grama de Proteção a Defensoras e Defensores primeiras pessoas convocadas ao diálogo. Ainda
de Direitos Humanos do estado de Minas Gerais, que, diante dos reiterados pedidos desses povos
precisamente pelo fato de que, uma das pes-
para serem consultados, o governo de Minas Ge-
soas do território, vive sob ameaças de morte.
rais segue silencioso.
Por conta das ameaças, o DDH já teve que sair da
comunidade por alguns períodos. Dentre as violências que sofrem as defensoras e

A falta de informação decorre diretamente do defensores de direitos humanos no território e sa-


não respeito ao direito de consulta desses povos lientadas nas entrevistas, destacam-se:

Quadro 10 – Tipos de violências sofridas destacadas pelos DDHs

tristeza e medo ameaças


depressão

tentativas de violação do desentendimentos


criminalização direito ao acesso e fragmentação
da informação entre famílias

127. idem

128. Trecho de entrevista realizada com Luzia Alane, agente da Comissão Pastoral da Terra

72 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


A arquitetura do conflito envolvendo as comu- do licenciamento ambiental do Projeto Bloco
nidades geraizeiras do Vale das Cancelas evi- 8 e favorecendo o empreendimento; por outro,
dencia o papel fundamental do Estado como ele se mostra antagonista quando se trata de
agente promotor de violências. Se por um lado garantir e proteger os direitos dos povos e co-
o Estado é um ator central na condução do munidades tradicionais. O resultado não pode
avanço da fronteira mineral no Norte de Minas, ser outro que não a ampliação da violência
flexibilizando a legislação ambiental, atuando contra os povos, que são encarados como “en-
de forma protagonista para o destravamento traves ao desenvolvimento”.

4.4.5. “O QUE PRECISA FAZER É SUSPENDER O


LICENCIAMENTO E FAZER A REGULARIZAÇÃO
FUNDIÁRIA DO TERRITÓRIO. ISSO É FUNDAMENTAL
PARA GARANTIR OS DIREITOS”129

E m um contexto de grave vulnerabilidade, o


anúncio de um grande projeto de “desen-
volvimento”, que promete empregos e melho-
sentimento prévio, livre e informado precisa ser
respeitado. “As comunidades não podem mais
ser surpreendidas por acordos, resoluções, sem
res condições de vida, que leva equipamentos a participação delas” 131. As comunidades gerai-
para as escolas, como as “falsas promessas” da zeiras estão em processo de elaboração do seu
Sul-Americana de Metais (SAM) muitas vezes é protocolo comunitário de consulta e a cada dia
tido como a tábua de salvação para muitas pes- são surpreendidas com um novo passo no pro-
soas. Se, por outro lado, os direitos dos povos e cesso de licenciamento, temendo que a qual-
comunidades tradicionais, sobretudo os direitos quer momento uma nova canetada seja escrita
territoriais, são absolutamente negligenciados, e as obras iniciem.
quem luta por estes direitos, fazendo oposição
Por fim, entende-se como fundamental a con-
ao empreendimento que promete levar “desen-
clusão do procedimento de demarcação, delimi-
volvimento”, acaba se tornando alvo de violên-
tação e titulação do território geraizeiro, iniciado
cias, como as descritas anteriormente.
formalmente em 2018. Fazer avançar o empreen-
As entrevistas não deixaram dúvidas sobre como dimento e negligenciar o direito territorial dos po-
fazer cessar as violências no Vale das Cancelas: vos intensifica as violências e aprofunda as desi-
“é necessário fazer valer os direitos, fazer valer gualdades. Não por outra razão, o Projeto Bloco 8
as leis que existem” . O direito à consulta e con-
130
é também chamado de “Projeto de Morte”.

129. Trecho da entrevista realizada com Adair Pereira de Almeida, Geraizeiro do Vale das Cancelas.

130. Trecho da entrevista com Luzia Alane, agente da Comissão Pastoral da Terra

131. idem

73
Fotos: Acervo do Instituto Kaingáng

Arrendamento das terras indígenas pela


própria Funai e falta de regularização
do território expõe indígenas às
consequências do Brasil armado a partir
do governo bolsonarista

74 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


C om 60 mil pessoas, os Kaingáng - perten-
cente à família linguística Jê -, são a tercei-
ra maior população indígena do Brasil e vivem
colonial de “pacificação” de dezenas de grupos
Kaingáng entre 1840 e 1930, cujo desdobramento
foi um processo de expropriação e acirramento
em pequenos territórios localizados no sul do de conflitos na região do território Kaingáng133: “O
estado de São Paulo e nos estados do Paraná, governo e o integracionismo acreditavam
Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O território que nosso povo ia desaparecer, porque nos
Kaingáng está localizado em 300 áreas de terras julgavam como inferiores. Só que não desa-
reduzidas e distribuídas sobre seu antigo territó- parecemos, não somos inferiores e vivemos
rio. Por estarem espalhados em quatro estados, todos há 400 anos sob violência”134, Fernanda
a situação das comunidades apresenta as mais
Kaingáng, como ambientalista, ativista de direitos
variadas condições.
humanos dos povos indígenas..
Tradicionalmente, os indígenas Kaingáng ocupa-
Na década de 1940, o Serviço de Proteção aos
vam uma imensa área que compreendia desde
índios (SPI) – criado pelo decreto n. 8.072, de 20
a região Sudeste até o extremo sul do Brasil, for-
de junho de 1910135, com a finalidade de prestar
mando assim “O Grande Território Kaingáng” 132.
assistência aos indígenas do Brasil e estabele-
Os limites dessa ocupação abrangiam desde o
cer centros agrícolas, constituídos pelos cha-
rio Tietê, no Sudeste, passando pelos estados de
mados trabalhadores nacionais – introduziu,
Paraná, Santa Catarina, e, no Rio Grande do Sul,
nas áreas do Sul do Brasil, um serviço obrigató-
o território se estendia até os rios Jacuí e Ibicuí.
rio em “roças coletivas” (as roças do Posto). De
Para oeste, a ocupação Kaingáng avançava para
a província argentina de Misiones. acordo com o povo Kaingáng, após a criação
do SPI, instituiu-se no território a tutela dos po-
As terras indígenas possuem um papel funda- vos indígenas. “Temos o Estado atuando como
mental para garantir a proteção dos direitos e da genocida em um primeiro momento [colônia],
identidade desses povos, cujos meios de vida
e depois, o Estado como tutor explorando o seu
possibilitam a manutenção da floresta e de seus
tutelado [século moderno]” 136, ressalta a advo-
recursos há tantas gerações.
gada popular Fernanda Kaingáng. Inclusive,
Os Kaingáng eram povos indígenas isolados até durante a ditadura militar, conforme está docu-
o final século 18, quando ocorreu um processo mentado no Relatório Figueiredo137,

132. DA SILVA, Juciane Beatriz Sehn; LAROQUE, Luís Fernando da Silva. A história dos Kaingáng da terra indígena
Linha Glória, Estrela, Rio Grande do Sul/Brasil: sentidos de sua (re)territorialidade. Soc. nat. 24 (3) • Dezem-
bro, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sn/a/fTW7NjhqgVXQrKGwHBQQF9c/?lang=pt. Acesso em 27 de
outubro.

133. ISA. Povos Indígenas no Brasil – Kaiagang. S/D. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kain-
gáng. Acesso em 28 de outubro de 2022.

134. Trecho de entrevista de fonte anomizada concedida especialmente para o Dossiê Vidas em Luta.

135. BRASIL. DECRETO Nº 8.072, DE 20 DE JUNHO DE 1910 - Crêa o Serviço de Protecção aos Indios e Localiza-
ção de Trabalhadores Nacionaes e approva o respectivo regulamento. Câmara dos Deputados. Junho de 1910.
Disponível em: Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acesso em 16 de novembro de 2022.

136. Trecho de entrevista de fonte anomizada concedida especialmente para o Dossiê Vidas em Luta.

137. BRASIL. Relatório Figueiredo. Ministério do Interior. Sem data disponível [online]. Disponível em: http://www.
mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/dados-da-atuacao/grupos-de-trabalho/violacao-dos-direitos-dos-povos-indi-
genas-e-registro-militar/docs-1/relatorio-figueiredo/relatorio-figueiredo.pdf. Acesso em 24 de outubro de 2022.
75
indígenas foram usados como mão de obra es- Compreender esse processo de expropriação do
crava e expostos a todo tipo de arbitrariedades e território indígena Kaingáng é essencial para ana-
torturas, dentre elas: espancamentos, e até cruci- lisar a situação de vulnerabilidade e insegurança
ficação de indígenas. alimentar, ameaças e assassinatos que famílias
da Terra Indígena (TI) Serrinha138, localizada no
De acordo com o Mapa de Conflitos elaborado
norte do Rio Grande do Sul, estão vivendo. Espe-
pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
cialmente, no contexto da pandemia de Covid-19,
Arouca (ENSP-Fiocruz), a intervenção do SPI foi
período em que houve o aumento desses confli-
tão agressiva que submeteu não só os indíge-
tos fundiários na região, ocasionados pelo arren-
nas à realização de trabalhos em troca de co-
damento ilegal das terras indígenas para o agro-
mida, mas também fomentou a cooptação de
negócio, prática estimulada pelo próprio Estado
lideranças indígenas Kaingáng, ocasionando a
Brasileiro desde 2005 na região, que gerou con-
construção dos primeiros acampamentos do
flitos intra-étnicos incentivados por latifundiários.
povo Kaingáng nas cidades e, em beiras de ro-
“O Estado que antes era o Brasil Colônia e
dovias, nas décadas de 1950 e 1960. “Após Cons-
era o Brasil Império, que financiava mortes e
tituição Federal de 1988, deveria ter se consoli-
erguia estátuas e arenas para os matadores
dado uma democracia no país, mas para isso
de índios, que deu títulos de nobreza para
precisaria ter sido feito uma coisa chamada
bandeirante de São Paulo, segue usando os
justiça de transição, que é a transição entre a
traidores da própria raça, que também sem-
ditadura e o estado democrático, admitindo os
pre existiram, para seguir matando. O Estado
erros que se cometeu, pedindo perdão pelos
financiou a morte desde sempre e continua
erros que se cometeu, reparando os erros que
financiando, mas agora numa outra escala”,
se cometeu e, assim, construindo-se um proje-
ressalta Fernanda Kaingáng139.
to de democracia e paz. Mas, negaram para a
gente [Povo Kaingáng] a nossa presença den- A Terra Indígena Serrinha, situada em uma área
tro do projeto de memória e da verdade, que que abrange os municípios de Ronda Alta, Três
deveria ser um dos pilares da justiça de transi- Palmeiras, Constantina e Engenho Velho, ga-
ção. Ou seja, nós, enquanto povo, continuamos nhou repercussão nacional em 16 de outubro de
negados de existência. Nós não temos uma 2021140, quando famílias indígenas foram expul-
democracia”, ressalta fonte do povo Kaingáng. sas de suas terras ancestrais141, e dois indígenas

138. INSTITUTO KAIAGANG. Página Inicial. S/D. Disponível em: Instituto Kaingáng (institutoKaingáng.org.br). Acesso
em 16 de novembro de 2022.

139. Trecho de entrevista concedida especialmente para o dossiê.

140. CONSELHO INDIGIENISTA MISSIONÁRIO. Nota do Cimi Regional Sul em repúdio às violências em terras
indígenas. CIMI. Outubro de 2021. Disponível em: Nota do Cimi Regional Sul em repúdio às violências em terras
indígenas | Cimi. Acesso em 16 de novembro de 2022.

141. FACEBOOK. Massacre na Aldeia indígena Serrinha, no Rio Grande do Sul. Rádio Yandê - Vãngri Kaingáng.
Outubro de 2021. Disponível em: Massacre na Aldeia indígena Serrinha, no Rio Grande do Sul. #Kaingáng “Socorro,
nos ajudem!!!” - Vãngri Kaingáng | By Rádio Yandê | Facebook. Acesso em 16 de novembro de 2022.

76 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


foram assassinados na região. A terra indígena demarcaria um centímetro de terra indígena”.
tem uma população de cerca de 3.500 pessoas, A promessa de campanha foi cumprida.
divididas em 650 famílias da comunidade Kain- Ao longo dos últimos quatro anos, não
gáng. Apesar dos conflitos na região não serem houve demarcação de territórios dos povos
uma realidade iniciada apenas no ciclo do gover- originários pelo governo federal. Uma postura
no federal entre 2019 e 2022, a pressão causada que caminhou “na contramão do mundo com
pela falta de regularização do território, somada à a sua descarada agenda política anti-indíge-
prática do arrendamento de terras para o agrone- na”, conforme destaca nota publicada142 pelo
gócio, intensificou os conflitos dentro da aldeia. Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Cabe destacar que o Comitê Brasileiro de De- Em 24 de fevereiro de 2021, três anos após a pro-
fensoras e Defensores de Direitos Humanos messa feita por Bolsonaro, a Fundação Nacional
classifica a cooptação como uma das muitas do Índio (Funai) e o Instituto Brasileiro do Meio
formas utilizadas para interromper as lutas pela Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
conquista de direitos. A cooptação geralmen- (Ibama), sob ordem do governo federal, expe-
te acontece por parte de fazendeiros e latifun- diram a Instrução Normativa 01/2021143, medida
diários nesses territórios que se aproveitam de que autoriza a “parceria” entre indígenas e não-
uma falha preexistente por parte do estado com -indígenas para a exploração econômica dos
os povos indígenas, que ficam vulnerabilizados
territórios, conforme denunciado pelo Conselho
pela ausência de efetivação de seus direitos
Indigenista Missionário (Cimi). A norma foi auto-
constitucionalmente garantidos.
rizada sem o consentimento e a Consulta Livre,
Em fevereiro de 2018, época de campanha Prévia e Informada aos povos, como prevê a
eleitoral, o presidente Jair Messias Bolsonaro Convenção nº. 169 da Organização Internacional
já prometia que, se assumisse o cargo, “não do Trabalho (OIT).

“Eles agrediram e prenderam indígenas dissidentes e eu estaria morta também


se eu não tivesse saído trinta minutos antes da minha casa para resolver ques-
tões pessoais em Ronda Alta, que é uma cidade próxima da Terra Indígena Serri-
nha. Encostou caminhonete com gente armada em frente à minha casa. Eu prefe-
ria não ter passado pelo trauma de ter que sumir do dia para noite e deixar todas
as minhas coisas para trás: o umbigo dos filhos, os álbuns de família, o artesa-
nato que ganhei de povos indígenas de todas as partes do mundo em 21 anos de
trabalho, toda a bibliografia do doutorado que tenho que terminar e que atrasou
um ano por conta dessa saída, enfim, um transtorno, uma violência enorme”, ,
conta Fernanda Kaingáng.

142. CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Arrendamento na TI Serrinha: prática criminosa incentivada pelo
governo coloca em risco a vida dos povos indígenas. CIMI. Novembro de 2021. Disponível em: Arrendamento na
TI Serrinha: prática criminosa incentivada pelo governo coloca em risco a vida dos povos indígenas | Cimi. Acesso
em 16 de novembro de 2022.

143. BRASIL. INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 9, DE 16 DE ABRIL DE 2020 Disciplina o requerimento, análise e


emissão da Declaração de Reconhecimento de Limites em relação a imóveis privados. Ministério da Justiça
e Segurança Pública/Fundação Nacional do Índio. Abril de 2020. Disponível em: instrucao-normativa-09.pdf (www.
gov.br). Acesso em 16 de novembro de 2022.

77
A proibição do arrendamento das terras do Povo e fiscalização da lei agem ou se tornarão cúm-
Kaingáng vem sendo adiada desde a década de plices da exclusão, da fome, do abandono e das
1980, com a instauração de comissões parla- mortes nas terras indígenas” 145.
mentares de inquérito na Assembleia Legislati-
O Cimi ainda destaca que: “é chegado o momento
va do Rio Grande do Sul e no Congresso Nacio-
de se reverter o quadro perverso de esbulho e vio-
nal. Além disso, a questão do arrendamento das
lência, e começar a identificar e processar os que
terras indígenas tem se agravado na região pela
se beneficiam da produção de soja transgênica
insistência da Funai em manter o arrendamento
dentro das áreas indígenas. São grupos de pes-
e, mais recentemente, com o envolvimento do
soas que há décadas exploram os bens da União,
Ministério Público Federal no caso. Por fim, a Po-
terras que deveriam ser destinadas ao usufruto
lícia Federal, cuja função deveria ser assegurar
exclusivo dos povos. Os que arrendam as terras in-
e proteger o direito dos povos indígenas ao usu-
dígenas precisam ser responsabilizados por esses
fruto exclusivo do seu território, segundo a ad-
crimes e pelo incentivo, de fora para dentro das
vogada, vem “chancelando ‘processos de tran-
sição’ eternos em ‘parcerias agrícolas’ que não comunidades, à violência. Fechar os olhos para os

existem, mantendo cooperativas de fachada crimes é o mesmo que avalizá-los”.

que beneficiam poucos em prejuízo de muitos”. É neste cenário que tem sido a atuação das

As terras Kaingáng vem sendo arrendadas para lideranças indígenas no caso: na defesa do

a produção agrícola de soja transgênica com território Kaingáng enquanto projeto de memó-

uso de herbicidas, dentre eles, o glifosato. Para ria e verdade e, sobretudo, na defesa da vida e
explicar de forma detalhada o conflito e suas da segurança alimentar do seu povo. Tal proje-
causas, o Conselho de Anciãos da Terra Indí- to se contrapõe à política de arrendamento do
gena Serrinha, lançou o dossiê “KANHGÁG GA: território, causando inúmeros tensionamentos,
o arrendamento das terras indígenas na região os quais levaram inclusive a saída de um grupo
Sul do Brasil” 144. O documento denuncia a vul- do território após ameaças e um assassinato. A
nerabilidade de anciãos, mulheres e crianças saída de defensores e defensoras de seus ter-
em situação de refúgio e solicita a adoção de ritórios, especialmente no caso de povos indí-
providências urgentes para erradicar o arrenda- genas, é uma medida drástica que interfere na
mento ilegal das terras indígenas, ação colonial continuidade da luta por direitos humanos. De
responsável por 30 assassinatos nos últimos 10 tal forma, que o Comitê evita a adoção dessa
anos no estado. Em nota, o Conselho Indigenista política para não agravar o quadro emocional
Missionário (Cimi), organização membro da rede do defensor ou defensora, bem como não inter-
do Comitê, aponta que: “ou os órgãos de controle ferir na organização local.

144. CONSELHO DE ANCIÃOS. DOSSIÊ KANHGÁG GA – TERRITÓRIOS KAINGÁNG: O ARRENDAMENTO DAS


TERRAS INDÍGENAS NA REGIÃO SUL DO BRASIL: CRIMES DE PRIVATIZAÇÃO DE PATRIMÔNIO PÚBLICO,
DESTERRITORIALIZAÇÃO, CONFLITOS EM TERRAS INDÍGENAS, LESÕES CORPORAIS, CÁRCERE PRIVADO,
FORMAÇÃO DE MILÍCIASE HOMICÍDIOS. Janeiro de 2022. Disponível em https://comiteddh.org.br/wp-content/
uploads/2022/02/Dossie-Kanhgag-Ga-1.pdf. Acesso em 28 de outubro de 2022.

145. CONSELHO INDIGIENISTA MISSIONÁRIO. Nota do Cimi Regional Sul em repúdio às violências em terras
indígenas. CIMI. Outubro de 2021. Disponível em: Nota do Cimi Regional Sul em repúdio às violências em terras
indígenas | Cimi. Acesso em 16 de novembro de 2022.

78 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


4.5.1. ENTENDA O CASO: O CONTEXTO E AS VIOLAÇÕES
DE DIREITOS E VIOLÊNCIA ARMADA SÃO RESULTADOS DE
UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA RESULTANTES DE AÇÃO DO
GOVERNO FEDERAL

E m 24 de setembro de 2021, o Conselho de


Anciãos da Terra Indígena Serrinha divul-
gou uma nota na qual fizeram um “pedido de so-
membros do Conselho e suas famílias. São evi-
dências do arrendamento de terras para plantio
de soja e trigo com uso de sementes transgê-
corro” e um alerta sobre um iminente conflito na nicas e agrotóxicos cancerígenos, em larga es-
região em função de irregularidades envolvendo cala, destruindo os ecossistemas naturais do
o arrendamento de terras 146
e plantio na reserva. território de maneira a comprometer as formas
A nota denunciava que 59% da população da al- tradicionais de subsistência do povo Kaingáng.
deia não tinha terras, “O arrendamento das terras
O Conselho de Anciãos também ressalta que
indígenas é realizado por uma Cooperativa de-
não houve um processo de esclarecimento às
nominada Cotrisserra147, que recebe 3 sacas de
comunidades indígenas sobre os riscos para
soja por hectare, dos plantadores não indígenas,
a saúde humana pela constante exposição a
para um Fundo de Transição que deveria execu-
substâncias utilizadas nas monoculturas de
tar projetos sustentáveis que nunca saíram do
soja e trigo, a exemplo do glifosato. No Rio Gran-
papel”, afirma a nota do Conselho de Anciãos. Os
de do Sul, a maior parte da produção de soja e
recursos recebidos pelo arrendamento estariam
milho é feita com o uso de sementes transgêni-
sendo utilizados exclusivamente para o plantio
cas que possuem o gene RR (Roundup Ready),
de monoculturas de soja com uso de transgêni-
que torna as plantas de soja ou milho resisten-
cos e para a compra de maquinários, deixando
tes ao glifosato, e tudo indica que estas tecno-
no abandono 387 famílias, em plena pandemia.
logias também são usadas nas plantações das
As denúncias das irregularidades nas terras in- Terras Indígenas arrendadas. Apesar de todas
dígenas foram feitas 14 meses antes de se tor- as denúncias em mais de 70 páginas do dossiê,
narem públicas à Fundação Nacional do Índio não se tem notícias de medidas adotadas pelas
(Funai), ao Ministério Público Federal e à 6ª Câ- autoridades para proteger os membros do Con-
mara de Populações Indígenas e Comunidades selho e suas famílias. Neste cenário, as famílias
Tradicionais, mas nenhuma medida suficiente dos integrantes do Conselho de Anciãos passa-
foi adotada pelas autoridades para proteger os ram a ser ameaçadas de expulsão.

146. HECK, Egon. Povos Indígenas - a volta do famigerado arrendamento. Instituto Humanitas – UNISINOS. Ja-
neiro de 2013. Disponível em: Povos Indígenas - a volta do famigerado arrendamento - Instituto Humanitas Unisinos
- IHU. Acesso em 16 de novembro de 2022.

147. FACEBOOK. Cotrisserra: Cooperativa Dos Trabalhadores Indígenas da Serrinha. Perfil. S/D. Disponível em:
Cotrisserra Cooperativa Dos Trabalhadores Indígenas da Serrinha | Facebook. Acesso em 16 de novembro de 2022.

79
“Ressalta-se que a omissão de autoridades públicas, a
exemplo da Fundação Nacional do Índio e do Ministério
Público Federal em Passo Fundo, é, sem dúvida, grande
causadora dos conflitos em terras indígenas, especial-
mente os confrontos que envolvem igualmente os interes-
ses políticos e econômicos de não-indígenas, que cooptam par-
te das lideranças de grupos dos povos originários, no caso das
terras indígenas da Região Sul” (trecho do dossiê).

As terras indígenas são bens da União, por for- Também é importante observar que é dever
ça de preceito constitucional expresso no artigo constitucional da União proteger a vida, a cul-
231 e o usufruto dos recursos naturais existentes tura e as terras dos povos originários, gerando
nos territórios indígenas compete exclusiva- inegavelmente a responsabilização jurídica em
mente aos povos indígenas. “São terras tradi- caso de omissão.
cionalmente ocupadas pelos índios as por eles
O Conselho de Anciãos do Povo Kaingáng tam-
habitadas em caráter permanente, as utilizadas bém denunciava a ocorrência de processos cha-
para suas atividades produtivas, as imprescin- mados de “transferências”, em que indígenas são
díveis à preservação dos recursos ambientais forçados a deixar suas casas sob humilhação.
necessários a seu bem-estar e as necessárias Ainda alertava que: “se nada for feito hoje, haverá
à sua reprodução física e cultural, segundo seus sangue indígena derramado amanhã!”. Todas as
usos, costumes e tradições”. Ainda, especifica denúncias foram confirmadas pela Organização
que: “as terras tradicionalmente ocupadas pelos Indígena Instituto Kaingáng148 (INKA), a Articulação
índios destinam-se à sua posse permanente, dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)149, a Articula-
cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas ção dos Povos Indígenas do Sul (Arpinsul)150 e o
do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Conselho Indigenista Missionário Regional Sul151.

148. INSTITUTO KAINGÁNG. NOTA DE REPÚDIO CONTRA TODO ATO DE VIOLÊNCIA NA TERRA INDÍGENA SERRI-
NHA – INSTITUTO KAINGÁNG. INKA. Outubro de 2021. Disponível em: Nota de Repúdio contra todo ato de violência
na Terra Indígena Serrinha – Instituto Kaingáng – Instituto Kaingáng (institutoKaingáng.org.br). Acesso em 16 de
novembro de 2022.

149. ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS. Basta de arrendar vidas indígenas!. Apib. Outubro de 2021. Disponível
em: Basta de arrendar vidas indígenas! | APIB (apiboficial.org). Acesso em: 16 de novembro de 2022.

150. Idem

151. CONSELHO INDÍGENA MISSIONÁRIO. Arrendamentos da morte! Repúdio às violências em terras indígenas. Sul21.
Outubro de 2021. Disponível em: Arrendamentos da morte! Repúdio às violências em terras indígenas (por Conselho
Indigenista Missionário) - Sul 21. Acesso em 16 de novembro de 2022.

80 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


O amanhã veio no dia 16 de outubro de 2021, vinte alocada na região para evitar os conflitos, mas
dias após as denúncias virem à tona em diver- segundo os indígenas: “as casas foram invadi-
sos veículos de mídia e o protesto dos indíge- das debaixo dos olhos da Força Nacional. Eles
nas ameaçados em frente ao Ministério Público não fazem nada, só recebem diárias para estar
Federal. A cena do crime foi montada para ser lá garantindo a segurança e a integridade do
uma chacina, segundo reportagem do Sul21, um patrimônio. Mas que patrimônio se nossas ca-
grupo de 12 famílias foram expulsas da aldeia sas foram incendiadas e eles não fizeram nada”,
enquanto se preparavam para o ato. Homens ar- questiona as indígenas. E completa: “estão pri-
mados chegaram em automóveis. “O relato é de vatizando nossas terras e cooptando nossas li-
que já desceram dos carros atirando para matar. deranças. Terra indígena é para produzir comida.
Desesperados, os indígenas que se preparavam Queremos justiça e voltar para casa”.
para a manifestação começaram a fugir para
Em despacho emitido em 28 de outubro pela
dentro da mata. Alguns alcançaram o rio exis-
1ª Vara Federal de Carazinho, o juiz federal Dio-
tente na aldeia e tentaram escapar por dentro
go Edele Pimentel, destaca: “Não há como
d’água. Havia homens, mulheres e crianças na
afastar a pertinência da União em sua falha de
fuga. As duas vítimas fatais deixaram esposas e
garantir a ordem e a segurança em relação às
filhos”, diz a reportagem152.
decisões cautelares proferidas por este Juízo.
O Instituto Kaingáng – INKA, organização in- Isso posto, concedo à União prazo de 10 dias
dígena com atuação em Educação e Cultura para apresentar nestes autos as condições
Kaingáng há quase 20 anos na aldeia Serrinha, pelas quais será garantido o retorno seguro dos
gerida exclusivamente por mulheres Kaingáng, autores às suas residências na Terra Indígena
junto com seu Centro Cultural Kanhgág Jãre – Serrinha. O plano deverá ser elaborado em
Raiz Kaingáng, que é o 1⁰ Ponto de Cultura em conjunto com a FUNAI”. No total, 30 famílias
uma Terra Indígena do país, em vídeo denuncia Kaingáng foram expulsas do território. Os au-
que mais de 30 famílias estão expulsas de suas tores do episódio, chamado pelos indígenas
terras . Em uma petição online com mais de 6
153
de “Massacre na Aldeia Serrinha”, foram presos
mil assinaturas, o INKA pede justiça e uma res- por cinco meses. Eles seguem cumprindo pena
posta do governo brasileiro. A Força Nacional foi com tornozeleiras eletrônicas.

152. VELLEDA, Luciano. Tragédia anunciada: perseguição e mortes abalam aldeia indígena de Serrinha. Ins-
tituto Humanitas – UNISINOS. Outubro de 2021. Disponível em: Tragédia anunciada: perseguição e mortes abalam
aldeia indígena de Serrinha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Acesso em 16 de novembro de 2022.

153. INSTITUTO KAINGÁNG. Por JUSTIÇA e RESPOSTA na Terra Indígena Serrinha – RS. Change.org. S/D. Disponí-
vel em: Abaixo-assinado · Por JUSTIÇA e RESPOSTA na Terra Indígena Serrinha – RS · Change.org. Acesso em 16 de
novembro de 2022.

81
82 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA
O quilombo Carretão, localizado na Baixada Cuia- munidade - para garantir o acesso das crianças do
bana, no município de Poconé (MT), a 200km de quilombo ao transporte escolar e para implanta-
Cuiabá, tem vivenciado um conflito fundiário ção de roças de subsistência de mandiocas, cana
muito comum em diversos quilombos no Brasil. e bananas, além do uso para pastagem de ani-
De um lado estão as famílias quilombolas, que mais. No entanto, desde 2013, com a reintegração
constroem suas relações sociais, econômicas de posse, a família de Silvina e toda a comunida-
e culturais a partir do seu território tradicional e, de têm sido impedidas de utilizar livremente essa
de outro, agentes externos que se impõe atra- parte do território e têm se deparado com intensos
vés das cercas e das tentativas de usurpação e processos de ameaça e criminalização.
apropriação privada do território coletivo.
Ao comprar algumas das posses na comunida-
O conflito que cerca o Quilombo Carretão envol- de de áreas que, inclusive estão em processo
ve o casal de fazendeiros, João José dos Santos de inventário e partilha ainda inacabados, não
e Alaerce dos Santos, e a suposta propriedade houve qualquer definição ou delimitação de li-
do casal que faz divisa com a comunidade. O mites, o que faz com que o casal de fazendeiros
casal de fazendeiros chegou ao território no ano tente se apropriar do território quilombola, crian-
de 2002 e, usando do poder econômico, conse- do limitações de uso à comunidade de Carretão.
guiu se instalar na região. Apesar da presença Atualmente a ação de reintegração, que tramita
do casal, os moradores continuaram utilizando o na Justiça Estadual155, chegou a ser sentenciada a
território, como sempre fizeram historicamente, favor dos fazendeiros, mas teve sua sentença re-
até que em 2013, a família quilombola de Silvina formada e aguarda realização de perícia técnica.
Gonçalves e Marcelino da Silva foi surpreendida
Enquanto isso, segundo as entrevistas realiza-
com uma ação de reintegração de posse154, mo-
das para esta edição do dossiê, as ameaças
vida pelos fazendeiros, que teve como objetivo
continuam, ao ponto de fazer com que o Sr. Mar-
impedir a família de fazer uso do seu território.
celino tivesse de ser incluído no Programa de
A área em disputa tem sido utilizada pela família Proteção a Defensores de Direitos Humanos, e o
de Silvina e Marcelino - e por outras famílias da co- território permanece em disputa:

“enquanto o território não for regularizado,


o conflito vai continuar (...) a cerca que corta
o território vai permanecer”156.

154. JUSBRASIL. Ação de Reintegração de Posse de nº 0000251-97.2013.8.11.0028. 2013. O processo tramita na


Vara Única de Poconé - MT. Disponível em: Tribunal de Justiça do Mato Grosso TJ-MT - Agravo de Instrumento: AI
Xxxxx-34.2018.8.11.0000 MT | Jurisprudência (jusbrasil.com.br). Acesso em 16 de novembro de 2022.

155. Apesar da Fundação Cultural Palmares, por meio da Advocacia Geral da União, ter intervido no processo desde
15 de outubro de 2021 solicitando ingresso na lide e deslocamento da competência para a Justiça Federal por se
tratar de conflito envolvendo comunidade quilombola, até o momento não há qualquer decisão neste sentido.

156. Trecho da entrevista realizada com Naryanne Cristina Ramos, quilombola advogada que acompanha o caso.

83
4.6.1. “A COMUNIDADE CARRETÃO EXISTE HÁ
MAIS DE 180 ANOS”157

C ertificado pela Fundação Cultural Palmares em 2017158, a origem do Qui-


lombo Carretão remonta ao período do final da escravidão, quando o Sr.
Silvério Bispo e sua esposa Maria Onório Gonçalves receberam em doação a
área onde hoje se localiza o quilombo. Silvério e Maria são pais de Jacinto Bispo
da Silva, avós de Torquato Bispo da Silva e bisavós de Silvina Gonçalves da Silva,
moradora e uma das pessoas de referência do Quilombo.

O registro de nascimento mais antigo da


comunidade é o de Jacinto Bispo da Silva, avô de
Silvina, que nasceu no Quilombo, ainda na vigência
do período escravocrata, em 1869, e faleceu em 1954,
tendo sido sepultado no cemitério de Carretão.

A comunidade passou então a ser formada com com um documento de propriedade das suas
o casamento de Silvério e Maria Onório e o nas- terras. O Quilombo Carretão está registrado no
cimento de seus filhos, entre eles, Jacinto. Desde Cartório do 1º Ofício de Registro de Imóveis de
então, as famílias foram se multiplicando. São Poconé-MT, sob o nº 4.741. Mesmo em posse
diversas gerações que ao longo do tempo foram desse documento oficial em seu nome e, ten-
construindo suas vidas ali, constituindo suas re- do seu território ameaçado, o processo de ti-
lações de pertencimento e suas histórias, repro- tulação do território caminha a passos lentos.
duzindo vivências no território Carretão. Enquanto isso, pessoas de fora do quilombo,
A terra que hoje é o Quilombo Carretão foi rece- valendo-se do seu poder econômico, tentam
bida em doação por Silvério e passada de ge- expulsar as famílias das terras onde diversas
ração em geração. Assim, as famílias contam gerações nasceram e se criaram.

157. Trecho extraído do documento intitulado “Relato histórico dos moradores da Comunidade Carretão”, peça integrante
do processo judicial nº 0000251-97.2013.8.11.0028, que tramita na Vara Única de Poconé, MT.

158. Portaria de Certificação nº 279/2017 in. IPATRIMÔNIO. Poconé – Quilombo Carretão. Patrimônio Cultural Brasileiro.
S/D. Disponível em: Poconé – Quilombo Carretão | ipatrimônio (ipatrimonio.org). Acesso em 16 de novembro de 2022.

84 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


4.6.2. “A NÃO TITULAÇÃO DO TERRITÓRIO
FAZ COM QUE A COMUNIDADE NÃO SEJA
RECONHECIDA COMO SUJEITO DE DIREITO159”

O Quilombo Carretão é um dos milhares de quilombos do Brasil que com-


provam que, Jair Bolsonaro, cumpriu a promessa de campanha eleitoral
de 2018, isto é: de não fazer avançar as demarcações de territórios quilombo-
las durante seu governo. Ganhou os noticiários160 a declaração dada pelo então
presidente, em 2020, durante reunião com empresários em Miami:

“Mas essas de terras quilombolas, têm 900 na minha


frente para serem demarcadas, não pode ocorrer. Somos
um só povo, uma só raça”.

Ameaçado de forma direta, respondendo ação figura entre os quilombos cujo órgão fundiário
de reintegração de posse desde 2013 e certifi- elegeu como prioritários para a demarcação e
cado pela Fundação Cultural Palmares desde titulação dos territórios.
2017, o Quilombo Carretão ainda aguarda a ela-
A paralisação dos processos de demarcação e
boração do Relatório Técnico de Identificação titulação dos territórios quilombolas foi denun-
e Demarcação, pelo INCRA, que nem sequer ciada no ato “Aquilombar” 162, organizado pela
cogita o seu início. Em Nota Técnica elaborada Coordenação Nacional de Articulação das Co-
pelo INCRA161 sobre a situação dos procedimen- munidades Negras Rurais (Conaq) 163 no dia 10
tos de regularização de territórios em curso, de agosto de 2022, em Brasília. Em audiência
fica evidente que, o Quilombo Carretão, não pública realizada no âmbito da Comissão de

159. Trecho da entrevista realizada com Naryanne Cristina Ramos, quilombola advogada que acompanha o caso.

160. NOTÍCIA PRETA. Bolsonaro diz que não demarcar mais terras quilombolas e que estas questões atra-
palham o Brasil “Somos um só povo, uma só raça”. Notícia, preta, 2020. Disponível em Bolsonaro diz que não
demarcará mais terras quilombolas e que estas questões atrapalham o Brasil “Somos um só povo, uma só raça”
- Noticia Preta - NP. Acesso em 20 de outubro de 2022.

161. Nota Técnica nº 972/2018/SR (13)MT-F4/SR(13)MT-F/SR(13)MT/INCRA, peça integrante do processo judicial nº


0000251-97.2013.8.11.0028, que tramita na Vara Única de Poconé, MT.

162. MONCAU, Gabriela. “Somos os guardiões invisíveis da floresta”: três mil quilombolas se reúnem em Bra-
sília. Brasil de Fato, 2022. Disponível em “Somos os guardiões invisíveis da floresta”: três mil | Geral (brasildefato.com.
br). Acesso em 23 de outubro de 2022.

163. CONAQ. Página Inicial. S/D. Disponível em: Home - CONAQ. Acesso em 16 de novembro de 2022.

85
Direitos Humanos (CDH) do Senado Federal, a Co- em 27 anos
naq, membro da rede do CBDDH, evidencia que: (de 1995 até
“a longa espera pela titulação contribui para o setembro de 2022)
aumento dos conflitos e das ameaças nos ter-
ritórios quilombolas, colocando em risco a exis-
tência dessas comunidades e a preservação
ambiental” 164. Para a coordenadora da Conaq do
Espírito Santo, Katia Penha165, “as comunidades foram emitidos

quilombolas vivem as piores violações dos seus 305 títulos


direitos dos últimos anos”. de territórios
quilombolas
Segundo os dados divulgados pelo Coletivo de no Brasil
servidoras/es lotadas/os do Incra , de 1995 até
166

setembro de 2022 foram emitidos apenas 305


em benefício destinando um pouco
títulos de territórios quilombolas167 no Brasil, em
de 352 mais de 1 milhão
benefício de 352 comunidades, destinando um comunidades de hectares para
pouco mais de 1 milhão de hectares para regula- regularização fundiária
rização fundiária dos territórios. Este número de dos territórios

titulações é insignificante diante do total de qui-


lombos existentes no Brasil. A Conaq estima a
Isso representa menos de
existência de cerca de 6 mil quilombos no Brasil,
13% das comunidades
e a Fundação Cultural Palmares certificou 2859168
quilombolas certificadas pela FCP
comunidades. Isso significa dizer que menos de
13% das comunidades quilombolas certificadas
pela FCP têm título (parcial ou total) dos seus ter-
ritórios e este número cai para menos da metade
(menos de 6%), se considerarmos o quantitativo
de comunidades estimado pelo Conaq.

164. AGÊNCIA SENADO. Comunidades Quilombolas defendem agilidade na regularização de terras. Agência
Senado, 2022. Disponível em Comunidades quilombolas defendem agilidade na regularização de terras — Senado
Notícias. AcessO em 23 de outubro de 2022.

165. Idem

166. COLETIVO de servidoras e servidores lotadas/os nos Serviços de Regularização de Territórios Quilombolas das
Superintendências Regionais e Coordenação-Geral de Regularização de Territórios Quilombolas no Incra. Carta
pública contra o desmonte da política quilombola no Incra. Disponível em Carta Pública contra o desmonte da
política quilombola no INCRA | Gesta (ufmg.br). Acesso em 23 de outubro de 2022.

167. Dos 305 títulos emitidos, 140 foram emitidos pelo INCRA e os demais foram expedidos pelos órgãos estaduais
e municipais de terras.

168. Dados atualizados até 22 de agosto de 2022. In. FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Certificação Quilombola.
S/D. Disponível em Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQ’s) – Fundação Cultural Palmares. Acesso em
23 de outubro de 2022.

86 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Valor destinado para Delimitação, Desintrusão e Titulação dos Territórios Quilombolas

2010
R$64 milhões

mesmo valor estimado


para 2023

2019 2020 2022


R$3,5 milhões R$206.008 R$405.000

A ineficiência da política de titulação quilombola 2023169. Isso explica o fato de ter no INCRA 1796
ao longo dos anos ficou ainda mais trágica nos processos administrativos de regularização fun-
últimos períodos e está diretamente relaciona- diária instaurados, sendo que a maioria deles
da com os sucessivos cortes orçamentários não conta com qualquer movimentação proces-
promovidos pelo atual governo. Para se ter uma sual - apenas 313 destes processos possuem al-
ideia, em 2010 o valor destinado para Delimita- gum andamento.

ção, Desintrusão e Titulação dos Territórios Qui- Além dos cortes orçamentários, a política de ti-
lombolas era de R$ 64 milhões. Em 2019, esse tulação quilombola tem sido minada também
valor despenca para R$3,5 milhões, em 2020 cai através da edição de atos normativos que ob-
mais um pouco, passando para R$2,9 milhões, jetivam promover a desqualificação da política
em 2021 chega a R$206.008,00. Em 2022, o valor e paralisar, quase que por completo, as suas
indicado na LOA foi de R$ 405.000,00, mesmo ações. São exemplos de atos normativos edita-
valor apresentado na proposta orçamentária de dos nos últimos períodos:

169. COLETIVO de servidoras e servidores lotadas/os nos Serviços de Regularização de Territórios Quilombolas das
Superintendências Regionais e Coordenação-Geral de Regularização de Territórios Quilombolas no Incra. Carta
pública contra o desmonte da política quilombola no Incra. Disponível em Carta Pública contra o desmonte da
política quilombola no INCRA | Gesta (ufmg.br). Acesso em 23 de outubro de 2022.

87
Quadro 11 – Atos Normativos Editados entre 2019 e 2022

● MP 870/2019, convertida na Lei 13.844/2019 - transferiu as ações do Incra relati-


vas à reforma agrária, regularização fundiária e titulação quilombola ao Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), dirigido por representações ligados
aos setores ruralistas, historicamente contrários a estas pautas;

● Decreto 10.252/2020 - mudou a estrutura regimental do INCRA, consolidando a


vinculação do INCRA ao MAPA e criando etapas de legitimação política das ações de
destinação de terras para a reforma agrária e para titulação quilombola;

● Resolução nº 444/2020 - determinou que as ações de regularização fundiária e


titulação quilombola passariam a integrar o rol de ações sob controle da Auditoria
Interna do INCRA. Entre dezembro de 2019 e novembro de 2021 foram encaminhados
pelo menos 34 processos para a Auditoria Interna, o que significou a sua paralisação
e/ou retrocesso170.

● Instrução Normativa nº 111/2021 - regulamenta o procedimento a ser seguido pelo


INCRA nos processos de licenciamento ambiental de obras, atividades e empreendi-
mentos que impactam territórios quilombolas, limitando o direito de consulta prévia,
livre e informada a territórios que tenham o Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação (RTID) publicado.

● Portaria nº 57/2022, da FCP - regulamenta o procedimento para reconhecimento


e emissão de certificação de comunidades quilombolas, burocratizando o mesmo e
criando limitações ao direito de auto-atribuição.

● Instrução Normativa nº 128/2022 - define critérios e procedimentos para a edição


da Portaria de Reconhecimento de territórios quilombolas e dos decretos de desa-
propriação, impondo uma dinâmica de burocratização desnecessária.

170. COLETIVO de servidoras e servidores lotadas/os nos Serviços de Regularização de Territórios Quilombolas das
Superintendências Regionais e Coordenação-Geral de Regularização de Territórios Quilombolas no Incra. Carta
pública contra o desmonte da política quilombola no Incra. Disponível em Carta Pública contra o desmonte da
política quilombola no INCRA | Gesta (ufmg.br). Acesso em 23 de outubro de 2022.

88 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Esses dados e informações apresentam um cenário no qual o Estado Brasileiro
deixa de cumprir a determinação constitucional de garantir e titular territórios
quilombolas, como política de combate ao racismo e de enfrentamento às de-
sigualdades raciais-estruturais históricas, como o acesso à terra. Segundo Lau-
ra Ferreira da Silva, coordenadora da Conaq do Mato Grosso:

A política pública está muito distante das comunidades


quilombolas, ela não caminha pelas comunidades, ela des-
caminha, a partir do momento que a gente não consegue
nada.... Quando procuramos alguns gestores a gente se
depara com uma realidade constrangedora porque as pes-
soas desconhecem a realidade. Não só basta a retirada de
direitos, mas também sofremos violações pela própria falta
reconhecimento. Esse governo está acabando com todo o
pouco que construímos com muita luta e resistência.

Enquanto a política de titulação não é levada à ta para uma prática estrutural de invisibilização
sério, aumentam-se as situações de violências e dizimação dos territórios e do modo de vida
contra os quilombos. Em pesquisa publicada 171
quilombola, ameaçados, violentados e desarti-
pela Conaq e Terra de Direitos identificou-se culados antes da sua formalização” 172. Isso nos
uma correlação direta entre a violência contra permite concluir que a não titulação do Quilom-
quilombos e regularização fundiária dos terri- bo Carretão invisibiliza a comunidade como su-
tórios. A pesquisa demonstra que insegurança jeito de direito e, mais que isso, é uma das cau-
fundiária, a não demarcação dos territórios, é sas centrais dos conflitos e das violências que
fator que promove/agrava as violências e “apon- vivenciam em torno das disputas pelo território.

171. CONAQ. Terra de Direitos. Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil. Curitiba: Terra de Direitos, 2018.
Disponível em (final)-Racismo-e-Violencia-Quilombola_CONAQ_Terra-de-Direitos_FN_WEB.pdf (terradedireitos.org.
br) Acessoem 24 de outubro de 2022.

172. Idem

89
4.6.3. RACISMO INSTITUCIONAL: “A PARTIR DO MOMENTO
QUE O ESTADO NÃO AGE, É COMO SE A VIDA DA/NA
COMUNIDADE NÃO IMPORTASSE. AS PESSOAS DEIXAM DE
SER VISTAS COMO PESSOAS”173.

O racismo estrutura a violência contra quilom-


bos no Brasil. São históricas - e não são raras
na atualidade - as situações de ameaças, agres-
lidade e ausência de segurança quanto à garantia
da posse do território.

sões físicas, assassinatos, despejos, negação de Como se não bastasse, o Sr. Marcelino, tem sofri-
acesso a direitos básicos, intimidações, ameaças do processo de criminalização na instauração do
territoriais, torturas, criminalização, prisões ilegais Inquérito Policial174, fundamentado em declarações
que acometem os quilombos no Brasil. Essas vio- unilaterais e fotografias não identificadas, com cla-
lências se estruturam em uma construção política, ro intuito de intimidar a ação da comunidade qui-
institucional, social e econômica que considera as lombola. A comunidade tem sido criminalizada por
vidas negras como invisíveis, descartáveis. E, por fazer uso histórico e tradicional do seu território,
estarem assentadas em um pilar de desumani- por plantar e colher, por criar e viver, por lutar pela
zação - que não considera as vidas negras como permanência e para que mais gerações dali se
dignas de promover a movimentação institucional alimentem. Por outro lado, os diversos boletins de
para garantia de acesso a políticas públicas e direi- ocorrência registrados pelos quilombolas seguem
tos, - se reproduzem cotidianamente. sem qualquer andamento, sem que sejam capa-
zes de mobilizar a ação estatal.
Somente o racismo justifica o fato da inação ins-
titucional diante do conflito envolvendo o Quilom- Ou seja, em um contexto de racismo institu-
bo Carretão, uma vez que o Estado não tem sido cional no qual o Estado deixa de cumprir suas
capaz de promover as políticas estruturais neces- obrigações básicas, não protege o território e a
sárias para conter a violência, a exemplo da de- vida que nele se constrói, legitima a violência,
marcação e titulação territorial e da desintrusão criminaliza a luta, a mensagem que transmite é
dos agentes externos que ameaçam se apropriar a de que “a vida no Quilombo Carretão importa
indevidamente do território coletivo. Além disso, a menos, como se as pessoas que lá vivem não
inconclusão do processo judicial de reintegração valessem como pessoas. A inação do Estado faz
de posse, que se arrasta há quase 10 anos é um com que a comunidade perca a esperança de
fator que amplifica o conflito, promovendo instabi- ver a sua proteção efetivada175”.

173. Trecho da entrevista realizada com Naryanne Cristina Ramos, quilombola advogada que acompanha o caso.

174. Inquérito Policial nº 1001685-26.2021.8.11.0028, em tramitação na Vara Única de Poconé.

175. Trecho da entrevista realizada com Naryanne Cristina Ramos, quilombola advogada que acompanha o caso.

90 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Foto: Divulgação | Redes Sociais

“Por que eu não tenho o direito de ser


reconhecida pelo meu trabalho, mas
apenas pela violência política que sofro?
Isso também não é uma violência? Eu
sofro violência de todas as formas e de
todos os lados. Me sinto cansada”

91
A declaração é de Benny Briolly Rosa da
Silva Santos (PSOL), primeira parlamen-
tar trans eleita para ocupar uma vaga na Casa
176
pal, Benny Briolly já ressaltava que a sociedade
brasileira precisava “derrotar o bolsonarismo e
superar urgentemente o fascismo, o autorita-
Legislativa de Niterói, na Região Metropolitana rismo, o racismo, machismo, a LGBTfobia e esse
do Rio de Janeiro. Ativista e defensora de direitos capitalismo predatório” 177. Essa necessidade se
humanos, a parlamentar, que se define como mostrou uma realidade antes mesmo dela assu-
uma mulher preta travesti favelada, feminista, mir o mandato.
ecossocialista, militante do movimento negro
Em dezembro de 2020, após sua eleição, as ofen-
e LGBTQIA+, tornou-se um símbolo da luta por
sas racistas e transfóbicas, além das ameaças, se
proteção que DDHs travam todos os dias para
intensificaram. A parlamentar recebeu email com
continuar atuando, militando e, sobretudo, per-
os xingamentos racistas “macaco fedorento” e
manecer viva na sociedade brasileira.
uma ameaça de morte a tiro, caso ela não renun-
As ameaças a Benny Briolly, que vêm tanto de ciasse ao seu mandato de vereadora do município
autoridades públicas quanto de pessoas anôni- de Niterói. O e-mail chocou toda a equipe, organi-
mas por meio de redes sociais, começaram em zações de direitos humanos e imprensa, porque
2018, quando ela era ainda assessora parlamen- não apenas continha um juramento de morte, mas
tar na Câmara Municipal, compondo a equipe até o endereço no qual ela residia à época.
do mandato da então vereadora Talíria Petrone
Benny Briolly não renunciou, mas desde o começo
(PSOL), hoje deputada federal - outra parlamen-
do mandato enfrentou e precisou que o Estado
tar negra que vive sob ameaças e violações de
garantisse os seus direitos políticos. Porém, em
direitos em virtude da violência política. Benny
maio de 2021, com apenas cinco meses de man-
foi a primeira assessora parlamentar transexual
dato, ela precisou se afastar do Brasil durante
a trabalhar no Legislativo da cidade de Niterói.
quase todo o mês para tentar ser ouvida. A deci-
Já em 2020, ela foi eleita com 4.458 votos, sendo são foi tomada pelo partido PSOL para mantê-la
a quinta candidata mais bem votada para ocu- segura. Mediante a pressão social e política178, a
par uma vaga na Casa Legislativa de Niterói. Em defensora foi inserida no Programa Estadual de
entrevista à imprensa sobre o significado polí- Proteção aos Defensores de Direitos Humanos
tico da sua eleição para o parlamento munici- vinculado ao PPDDH.

176. QUIROGA, Louise. “Vai ter Mulher preta travesti na Câmara de Niterói” celebra Benny Briolly. O Globo,
novembro de 2020. Disponível em: ‘Vai ter mulher preta travesti na Câmara de Niterói’, celebra Benny Briolly - Jornal
O Globo. Acesso em 16 de novembro de 2022.

177. Idem

178. JUSTIÇA GLOBAL. Nota pública conjunta sobre a violência política contra a vereadora Benny Briolly
(PSOL/Niterói). Maio de 2021. Disponível em: Nota pública conjunta sobre a violência política contra a vereadora
Benny Briolly (PSOL/Niterói) (global.org.br). Acesso em 16 de novembro de 2022.

92 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


À época, em depoimento publicado nas redes meio a um cenário de violência política instaura-
sociais e na mídia , a parlamentar afirmou
179
do e disseminado pela extrema-direita, afetando
acreditar que a inserção no programa pudesse defensoras/es de direitos humanos com cargo
proteger sua vida. “Esperamos que as medidas parlamentar como Benny Briolly.
venham efetivar minha segurança para exer-
cício pleno da Mandata180 e seguimos lutando Diante da inércia do Estado, as organizações

por políticas de estado que enfrentem frontal- Criola181, Instituto de Defesa da População Ne-
mente a violência política contra nós mulheres gra (IDPN182), Instituto Internacional sobre Raça,
negras, travestis e defensoras dos direitos hu- Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualda-
manos”. No entanto, os algozes de Benny Briolly de), Instituto Marielle Franco183, Justiça Global184
não se intimidaram com o valor simbólico de e Terra de Direitos185, enviaram um pedido de
sua inserção no programa, as ameaças se medida cautelar à Comissão Interamericana
intensificaram ainda mais e, em contrapartida, as de Direitos Humanos (CIDH). “É urgente a pro-
medidas protetivas do programa de proteção a moção de mecanismos de enfrentamento
defensores de direitos humanos não chegaram. a esta violência, como o engajamento das
autoridades competentes na investigação
Desde que o presidente Jair Bolsonaro assumiu
das ameaças e identificação dos agresso-
o governo, o programa passou por um “desmon-
te”, com uma redução de verba para o nível mais res, o aperfeiçoamento de políticas em ní-

baixo desde 2015, e com atraso de até dez meses veis nacional, estadual e municipal de pro-
nos repasses a estados e corte de pessoal. A fal- teção de defensoras de direitos humanos e
ta de atenção ao sistema de proteção fez com adesão do governo brasileiro às recomen-
que os ativistas voltassem a sofrer ameaças por dações já promulgadas por organismos
defenderem o acesso a terra e moradia, a pre- internacionais como a Organização das
servação do meio ambiente e o direito de povos Nações Unidas (ONU) e a Comissão Intera-
tradicionais, como indígenas e quilombolas, em mericana de Direitos Humanos (CIDH)” 186.

179. SOARES, Ana Lícia. RJ: vereadora entra em Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos.
CNN – Brasil. Maio de 2021. Disponível em: RJ: vereadora entra em Programa de Proteção aos Defensores de Direitos
Humanos (cnnbrasil.com.br). Acesso em 16 de novembro de 2022.

180. Diversas parlamentares negras brasileiras eleitas, especialmente com orientação ideológica à esquerda, ao
ocupar o espaço político de Câmaras Municipais, Estaduais e o Congresso Federal, passaram a modificar a flexão
de gênero da palavra Mandato (gramaticalmente, um substantivo masculino) para o termo Mandata. Essa altera-
ção é uma forma de marcar a presença de mulheres nos espaços sociais da política, chamando atenção para o
patriarcado as esferas de poder. Uma das primeiras parlamentares negras eleitas a realizar essa disputa discursiva
foi a vereadora Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018.

181. CRIOLA. Página Inicial. 2022. Disponível em: Criola. Acesso em 16 de novembro de 2022.

182. IDPN. Instagram. Instituto de Defesa da População Negra. 2022. Disponível em: Instituto Defesa da Pop. Negra
(@institutodpn) • Fotos e vídeos do Instagram. Acesso em 16 de novembro de 2022.

183. INSTITUTO MARIELLE FRANCO. Página Inicial. 2022. Disponível em: Junte-se ao Instituto Marielle Franco!. Aces-
so em 16 de novembro de 2022.

184. JUSTIÇA GLOBAL. Página Inicial. 2022. Disponível em: Justiça Global. Acesso em 16 de novembro e 2022.

185. TERRA DE DIREITOS. Página Inicial. 2022. Disponível em: Terra de Direitos. Acesso em 16 de novembro de 2022.

186. TERRA DE DIREITOS; INSTITUTO MARIELLE FRANCO; CRIOLA e JUSTIÇA GLOBAL. O que a violência contra a
Benny Briolly escancara?. Terra de Direitos. Maio de 2021. Disponível em <https://terradedireitos.org.br/noticias/no-
ticias/o-que-a-violencia-contra-a-benny-briolly-escancara/23599>. Acesso em 10 de novembro de 2022.
93
O dossiê elaborado pelas organizações destaca 19 ameaças recebidas pela
parlamentar com “ofensas profundamente racistas e transfóbicas e de conteú-
do chocante, com ameaça de estupro, oferecimento de recompensa para o seu
assassinato e descrição detalhada de como o crime deveria ocorrer: atirando,
degolando, queimando o corpo e arrancando a arcada dentária, para que ficas-
se irreconhecível”, conforme destaca nota da Justiça Global187.

“Eu lamento muito que aos olhos do Estado e, inclusive de muitas organi-
zações, instituições e partidos, que a minha vida não tenha um significa-
do de muito valor. Esta é a realidade. Com todas as ameaças e todos os
históricos de ameaça, eu não tenho uma proteção. E isso significa que a
minha vida não tem muito valor diante dos olhos de todos esses espaços.
Para mim é triste… é lamentável que o meu corpo com tantas potências
políticas seja só um corpo usado a partir de uma ótica: a de mostrar o que
é o Brasil das tantas violências… Eu continuo sendo violentada para isso a
todos os momentos. A decisão da corte interamericana é um marco, mas
não vejo como algo a comemorar porque não é avanço, mas um retroces-
so a partir do momento que, para eu ser uma parlamentar, os custos são
maiores para mim. O peso é maior para mim, as ameaças são maiores
para mim, as limitações de poder atuar nos territórios, poder legislar, po-
der viver… são sempre maiores para mim… Ou seja: eu continuo sendo mui-
to desigual… para poder fazer e ser qualquer coisa”, depoimento de Benny
Briolly, em entrevista para o CBDDH.

De acordo com Benny Briolly, atualmente, ela ras de direitos humanos que estamos arcando
gasta 75% do seu salário pagando os custos de com a nossa própria proteção como eu estou
sua própria segurança: “O Estado não garante fazendo. Eu pago tudo: meus custos de segu-
nada na minha proteção. Quando a gente fala rança, de carro blindado e gasolina, de mora-
sobre isso, a gente precisa evidenciar cada vez dia segura, de locomoção segura. Eu arco com
mais que o Estado não cumpre nada. Somos todos os custos da minha própria segurança”,
nós que cumprimos! Nós militantes e defenso- ressalta a parlamentar.

187. GIZELE. CIDH outorga medidas cautelares a Benny Briolly. Justiça Global. Julho de 2022. Disponível em:
CIDH outorga medidas cautelares a Benny Briolly (global.org.br). Acesso em 16 de novembro de 2022.

94 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


E completa: “Quando eu falo isso, eu estou dizendo para você que arco do meu próprio
salário, porque a Câmara de Niterói não tem verba de gabinete para isso. O Estado não dá
nada. Eu poderia estar pagando uma casa própria, mas não posso fazer isso porque eu
gasto quase todo meu salário na própria segurança”.

Em 11 de julho de 2022, por meio da Resolução 34/2022188, a CIDH solicitou ao Estado bra-
sileiro que adote as medidas necessárias para proteger os direitos à vida e integridade
pessoal de Benny Briolly e de três integrantes de sua equipe de trabalho, levando em con-
sideração as perspectivas étnico-raciais e de gênero, por todos “se encontrarem em uma
situação grave e urgente, de risco de dano irreparável a seus direitos no Brasil”189. Porém,
na prática, uma série de medidas protetivas seguem sem serem adotadas pelo Estado
em decorrência da precarização do PPDDH tanto para a parlamentar quanto para os três
assessores da equipe sob ameaça.

Quando eu chego no parlamento eu continuo entendendo que continua sendo um


enfrentamento, continua sendo enfrentamento com uma visibilidade muito maior.
De um certo lado, eu consigo mostrar para o mundo e para a sociedade brasileira
que meu corpo existe e ele pode ocupar sim qualquer espaço, mas de outro lado
eu continuo reafirmando que quanto mais o meu corpo existir, e quanto mais é a
evidência da minha existência, maiores são as dores e os prejuízos… eu não deveria
estar desta forma sozinha e solitária. É um processo de transfobia e do racismo
estrutural, né? Por que eu não sou um dos principais nomes de enfrentamento às
lutas de religião de matriz africana já que eu sou um grande nome na esquerda do
estado do Rio de Janeiro que luta por essa pauta? Não são os corpos que sofrem
a violência que estão tendo direito de acesso para pensarem em como solucionar
essas violências. Então, a violência ela existe e ela tem um sentido.

Na avaliação da assessoria da equipe da parla- consegue dar conta das demandas de seguran-
mentar, Bolsonaro, presidente da República, e ça. O programa não se sustenta e, portanto, tam-
seu governo legitimam toda a violência política pouco as nossas demandas. Sinceramente, não
em curso no país contra DDHs e ativistas: “Ele dá tem segurança. Não tem como se sentir seguro.
voz e força para a violência política, fomentando o Quando a gente fala de várias medidas, a questão
ódio, o racismo, a transfobia que expõe Benny ao orçamentária é colocada e acaba não tendo reso-
risco e parte da sua equipe. Por isso, em todo esse lução, pois não tem aplicação de recursos finan-
tempo, em todas as reuniões, o Programa não ceiros. A proteção hoje é meramente simbólica”.

188. OEA. RESOLUÇÃO 34/2022 - Medida Cautelar No. 408-22 Benny Briolly Rosa da Silva Santos e integran-
tes de sua equipe de trabalho em relação ao Brasil. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Julho de
2022. Disponível em: res_34-22 _mc_408-22_br_pt.pdf (oas.org). Acesso em 16 de novembro de 2022.

189. GIZELE. CIDH outorga medidas cautelares a Benny Briolly. Justiça Global. Julho de 2022. Disponível em:
CIDH outorga medidas cautelares a Benny Briolly (global.org.br). Acesso em 16 de novembro de 2022.

95
Fenômeno não é novo no país, mas
no governo bolsonarista passou
a dispor de instrumentos formais
para chegar a um outro patamar,
sendo uma das consequências mais
nefastas à democracia brasileira

96 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


A violência política foi a marca do processo
eleitoral brasileiro em 2022. Segundo da-
dos das organizações Justiça Global e Terra de
de setembro, um outro apoiador da candidatura
do presidente Lula foi assinado por um apoiador
da candidatura do presidente Bolsonaro192, em
Direitos, até o primeiro turno das eleições de 2022 Confressa (MT).
houve 247 episódios de violência política, o que
A própria candidatura do presidente Lula (PT) já
representa um aumento de cerca de 400% em re-
vinha sofrendo sérios ataques na pré-campa-
lação ao ano de 2018190. Esse expressivo aumento
nha. Em 15 de junho, um ato de Lula em Uberlân-
em casos de violência política tem sido impulsio-
dia (MG) sofreu ataque de drone com fezes. Em 7
nado por casos de violência sofrida por defenso-
de julho, um ato de Lula com apoiadores foi ata-
res e defensoras de direitos humanos (DDH).
cado com uma bomba caseira193 na Cinelândia,
Desde o período de pré-campanha, foi possível no Rio de Janeiro.
observar que a violência e a intimidação acon-
teceram fortemente na direção de um dos cam- Já no início da campanha oficial, o candidato ao
pos políticos da disputa, que é, justamente, o governo do Estado de São Paulo, Fernando Ha-
campo mais identificado com a defesa dos di- ddad (PT) teve que cancelar duas agendas em
reitos humanos e que reúne o maior conjunto de razão de ameaças de morte explícitas identifica-
candidaturas de DDHs. das contra ele. As agendas194 ocorreriam em Pre-
sidente Prudente (SP), em 7 de setembro, e em
Mesmo entre candidaturas majoritárias do cam- Ribeirão Preto (SP), em 16 de setembro.
po, os incidentes já começaram a se multiplicar
antes do início oficial da campanha eleitoral em O fato de esses ataques estarem majoritaria-
agosto. Em 9 de julho, um policial bolsonarista mente direcionados a um campo político es-
invadiu uma festa de aniversário e matou a tiros pecífico é reforçado por denúncias de casos de
o guarda municipal e militante petista Marcelo assédio eleitoral ao longo da disputa eleitoral
Aloizio de Arruda , em Foz do Iguaçu (PR). Em 8
191 de 2022. Tomaram conta dos noticiários casos

190. TERRA E DIREITOS e JUSTIÇA GLOBAL. Violência Política e Eleitoral no Brasil. Terra de Direitos. Setembro e
Outubro de 2022. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/violencia-politica-e-eleitoral-no-brasil/. Acesso em 16
de novembro de 2022.

191. JORNAL NACIONAL. Bolsonarista é preso após matar apoiador do PT a facadas em MT. Portal G1. Setembro
de 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/07/petista-e-assassinado-no-pr-e-pt-fala-em-
-crime-de-odio-por-bolsonarista.shtml. Acesso em 16 de novembro de 2022.

192. Idem

193. NOGUEIRA. Italo. Bomba caseira atinge ato com Lula no Rio em novo ataque à pré-campanha de petista.
Folha de São Paulo. Julho de 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/07/centro-do-rio-abri-
ga-primeiro-palanque-de-lula-em-praca-publica-sob-forte-seguranca.shtml. Acesso em 16 de novembro de 2022.

194. BRASIL DE FATO. Haddad cancela comício em Ribeirão Preto, após alerta da PF de falta de segurança.
Setembro de 2022. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/09/16/haddad-cancela-comicio-em-ri-
beirao-preto-apos-alerta-da-pf-de-falta-de-seguranca. Acesso em 16 de novembro de 2022.

97
em que empresários assediavam e intimida- É notável que esses ataques contra candidaturas
vam funcionários a votar em Jair Bolsonaro (PL), de DDHs são fortemente marcados por
em geral sob ameaça de demissão. De acordo dimensões de gênero, raça, orientação sexual ou
com o Ministério Público do Trabalho, o número identidade de gênero. Dos 10 casos, sete foram
de denúncias de assédio eleitoral aumentou 12 contra mulheres candidatas. Esse fenômeno vai
vezes no período eleitoral de 2022 em relação a no sentido de levantamentos mais amplos que

2018, com 2.556 denúncias, e o número de em- demonstram o forte crescimento da violência
política contra mulheres. Segundo o Ministério
presas denunciadas aumentou 20 vezes, che-
Público Federal196, durante os cerca de dois me-
gando a 1.947 empresas195.
ses da campanha eleitoral de primeiro turno em
Se o cenário geral de violência e intimidação 2022, o número de casos do tipo mais que do-
aumentou tanto mesmo em candidaturas ma- brou se comparado com o período de um ano
joritárias, como candidaturas à presidência da anterior à campanha, atingindo 82 ocorrências
República ou a governos de estado, a situação desde a aprovação de lei que criminaliza a vio-
fica ainda mais preocupante quando analisamos lência política contra mulheres, em 8 de agosto
candidaturas de DDHs em nível local, com menos de 2021, até 2 de outubro de 2022, dia do primeiro
turno das eleições.
visibilidade e estrutura institucional de proteção.
Essa violência assume níveis altíssimos quando
Em levantamento preliminar do Comitê Brasilei-
impulsionada pela conjugação entre misoginia
ro de Defensoras e Defensores de Direitos Hu-
e racismo, em um contexto de hostilidade a mu-
manos, durante o período eleitoral de 2022, entre
lheres negras que pretendem ocupar espaços
16 de agosto e 30 de outubro, foi possível regis-
de poder dos quais foram historicamente alija-
trar ao menos 10 casos de candidaturas de de-
das. Um caso emblemático é o da deputada es-
fensoras/es de direitos humanos, que sofreram
tadual Andreia de Jesus (PT-MG). Mulher negra
graves violações durante a campanha, além dos e destacada defensora de direitos humanos em
vários casos de militantes agredidos ou amea- Minas Gerais, a deputada sofreu mais de 3.500
çados durante campanhas de rua. Entre esses ameaças e ataques desde outubro de 2021197.
10 casos de candidaturas de DDHs analisados, Ela recebeu durante alguns meses escolta poli-
nove sofreram ameaças de morte, em muitos cial, mas, em março de 2022, a Polícia Militar de
casos, com arma de fogo, chegando uma defen- Minas Gerais cancelou a escolta, ainda que as
sora a sofrer agressão física. ameaças não tivessem cessado.

195. MAIA, Flávia. Número de denúncias de assédio eleitoral em 2022 é 12 vezes maior que em 2018. JOTA.
Outubro de 2022. Disponível em: https://www.jota.info/eleicoes/denuncias-de-assedio-eleitoral-em-2022-e-12-ve-
zes-maior-que-2018-31102022. Acesso em 16 de novembro de 2022.

196. ALMEIDA, Pauline. MPF soma 82 procedimentos abertos por violência política de gênero. CNN-Brasil. Ou-
tubro de 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/mpf-soma-mais-de-80-procedimentos-aber-
tos-por-violencia-politica-de-genero/. Acesso em 16 de novembro de 2022.

197. MG1. Ameaçada de morte, deputada Andréia de Jesus denuncia fim de escolta policial. Portal G1. Março
de 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2022/03/17/ameacada-de-morte-deputa-
da-andreia-de-jesus-denuncia-fim-de-escolta-policial.ghtml. Acesso em 16 de novembro de 2022.

98 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Na ocasião, enquanto presidente da Comissão 2 de outubro utilizando colete à prova de balas
de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa enquanto votava.
de Minas Gerais, a deputada defendeu abertura
Em 20 de julho de 2022, a Comissão Interameri-
de investigação sobre ação policial em Varginha,
cana de Direitos Humanos anunciou que obser-
que terminou com 26 mortos. Entre as ameaças,
vava com preocupação a intensificação de epi-
havia mensagens comparando-a com Marielle
sódios de violência política no Brasil, instando o
Franco, vereadora assassinada no Rio de Janeiro
país a adotar medidas concretas para prevenir
em 2018, e dizendo que ela “acabaria como Ma-
esses episódios, assim como desenvolver me-
rielle Franco”. Essas referências não acontecem
canismos de proteção e segurança no contexto
à toa e reverberam o nível de violência profun-
eleitoral e realizar investigações e sanções judi-
da contra corpos negros, especialmente os das
ciais a casos que aconteçam200.
mulheres, que se colocam “fora do lugar” a que
foram historicamente relegados. Segundo le-
Como foi possível observar no período eleito-
vantamento da Justiça Global e Terra de Direitos,
ral que se seguiu a esse comunicado, o Brasil
pessoas negras representaram 48% dos casos
não seguiu as orientações de organismos in-
de violência política registrados198 entre setem-
ternacionais de proteção dos direitos huma-
bro de 2020 e outubro de 2022.
nos e viu um aumento sem precedentes na
Outro caso emblemático de como opera a vio- história recente da violência política no país. O
lência política contra DDHs é o da defensora de aumento da tensão social que levou a esses
direitos humanos, vereadora e candidata a de- casos, no entanto, não aconteceu de maneira
putada federal Duda Salabert (PDT-MG). Desde aleatória ou abstrata, mas foi causado por um
que se tornou a vereadora mais votada da his- projeto concreto de poder baseado no ódio, na
tória da Câmara Municipal de Belo Horizonte, violência e na discriminação. Esse projeto, que
em 2020, e a primeira mulher trans eleita para já atinge há muito tempo mulheres, pessoas
a casa legislativa, a vereadora passou a ser ví- negras, pessoas LGBTQIA+, indígenas e defen-
tima permanente de ataques e ameaças . As 199
soras/es de direitos humanos de maneira ge-
ameaças são marcadas por misoginia e trans- ral, passou a dispor de instrumentos formais
fobia e muitas delas são articuladas em grupos para chegar a um outro patamar de violência
neonazistas. A seriedade desses ataques fez e uma das mais nefastas consequências que
com que a vereadora passasse a receber es- isso tem para a democracia brasileira pode ser
colta policial permanente, mas chegaram a tal observado com o nível de violência que carac-
ponto que a vereadora teve que ir às urnas em terizou o processo eleitoral de 2022.

198. TERRA E DIREITOS e JUSTIÇA GLOBAL. Violência Política e Eleitoral no Brasil. Terra de Direitos. Setembro e
Outubro de 2022. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/violencia-politica-e-eleitoral-no-brasil/. Acesso em 16
de novembro de 2022.

199. Idem

200. OEA. CIDH insta ao Brasil prevenir, investigar e sancionar atos de violência no contexto do próximo
processo eleitoral. Comissão Intermaricana de Direitos Humanos. Julho de 2022. Disponível em: http://www.oas.
org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2022/171.asp. Acesso em 16 de novembro de 2022.

99
100 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA
O norte do estado de Minas Gerais tem vi-
venciado, nos últimos anos, uma atua-
ção cada vez mais explícita de milícias rurais,
O diferencial na atuação da milícia nesse caso
foi que as usuais táticas de violências e reti-
radas de ocupações, sem ordem judicial, na
que atuam por meio de violências e intimida- zona rural, deu lugar a um avanço em territó-
ções contra trabalhadores, muitas vezes com rios mais próximos da zona urbana, atingindo,
apoio das forças de segurança estaduais. Sua no caso, cerca de 100 pessoas de 55 famí-
principal ação é por meio da política do medo lias204 sem teto e sem-terra, que reivindica-
e a execução de despejos totalmente ilegais, vam o direito à uma moradia digna e adequa-
como no caso da Ocupação Tereza de Bengue- da, e contou ainda com a presença da Polícia
la, em Montes Claros. Militar (PM), mera espectadora conivente com
a ação ilegal.
A Ocupação Tereza de Benguela201 aconteceu no
dia 13 de maio de 2022, na terra da família do Jairo A violência começou com o cerco à área pela
Ataíde, ex-prefeito pelo partido Democratas na ci- milícia rural, que fechou as entradas com
dade de Montes Claros. De acordo com o Movimen- montes de terra trazidos em caminhões ca-
to dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), seus pro- çambas, bloqueando inclusive uma estrada
prietários devem mais de R$ 7 milhões de IPTU. 202
vicinal do município, e barrou o acesso da
Além disso, a área de 38 hectares, no meio de Rede de Apoio à ocupação. A Polícia Militar foi
Montes Claros, é ZEIS (Zona Especial de Interesse reiteradas vezes acionada pelo MTST, chegou
Social), conforme o Plano Diretor da Cidade, repre- a comparecer em um primeiro momento, mas
sentando dessa forma uma propriedade que nun- foi embora mesmo constatando a atuação ile-
ca cumpriu sua função social e que deveria estar gal das forças privadas de segurança e a ine-
destinada para assentamentos habitacionais de xistência de decisão judicial que legitimasse a
população de baixa renda. 203
expulsão das famílias.

201. O direito de ocupar, conforme jurisprudência do STJ, é constitucional, legítimo e justo, enquanto forma de pres-
sionar o Poder Público para implementar política habitacional popular e massiva. O nome da ocupação foi dado em
homenagem à Tereza de Benguela, uma líder quilombola que liderou por 20 anos, a resistência contra o governo
escravista e coordenou as atividades econômicas e políticas do Quilombo Quariterê.

202. MOREIRA, Gilvander Luis. Milícia despeja Ocupação Tereza de Benguela, do MTST, Montes Claros/MG,
sem decisão judicial. Basta! Comissão Pastoral da Terra (CPT-MG). Maio de 2022. Disponível em: https://www.
cptmg.org.br/portal/milicia-despeja-ocupacao-tereza-de-benguela-do-mtst-montes-claros-mg-sem-decisao-judi-
cial-basta/. Acesso em 18 outubro 2022.

203. Idem.

204. GONÇALVES, Bella; CAROLINA,Áurea; CORREIA, Rogério; BRITO Izadora Gama. Denúncia à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos: Despejo Forçado - Ocupação Tereza de Benguela, Minas Gerais. Belo
Horizonte, Minas Gerais, 19 de maio de 2022.

101
De acordo com denúncia realizada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH):

No dia 15/5/2022, a PMMG permitiu a entrada de 50 latifun-


diários e seus jagunços no terreno, alguns armados, que
promoveram violências tais como agressão de mulheres
grávidas e mulheres com crianças, ameaça de morte, derru-
bada de barracas com pessoas dentro, agressões verbais,
interceptação de água, agressão à pessoa com deficiência,
derrubada da cozinha comunitária, queima de pertences
pessoais, dentre outras violências. 205 Constitui especial gra-
vidade, o fato de o terror vivenciado pelas famílias ter ocorri-
do no domingo, limitando profundamente as possibilidades
de defesa e articulação das famílias. (CIDH)

Os relatos atestam que a PM demorou mais de trou, mas não fez nada. Os policiais ficaram as-
uma hora e meia até chegar na ocupação e, ao sistindo aos jagunços derrubando as barracas.
chegar, demonstrou relação próxima com a se- A polícia cumprimentou todos os jagunços”. 207
gurança privada, além de assistir, sem qualquer
intervenção, todos os atos de violência, inclusi- A atuação da milícia rural contou dessa forma
ve uma agressão à vereadora de Montes Cla- com uma explícita omissão policial, legitimadora
ros, Iara Pimentel. 206
De acordo com Jairo dos das agressões físicas. A despeito dessa violência,
Santos, integrante da coordenação nacional do por falta de ação da PM, três dias depois foi a vez
MTST, “quando eles [jagunços] conseguiram dos policiais protagonizarem um outro despejo
derrubar a maioria das habitações, a PM en- ilegal, agora na Ocupação Marielle Franco.

205. Parte das violências podem ser vistas nos links: (1) https://www.youtube.com/watch?v=4CUN6PZH-_M e (2)
https://www.youtube.com/watch?v=Fo_HpSwjTZA. Acesso em 18 outubro de 22.

206. MOREIRA, Gilvander Luis. Milícia despeja Ocupação Tereza de Benguela, do MTST, Montes Claros/MG,
sem decisão judicial. Basta! Comissão Pastoral da Terra (CPT-MG). Maio de 2022. Disponível em: https://www.
cptmg.org.br/portal/milicia-despeja-ocupacao-tereza-de-benguela-do-mtst-montes-claros-mg-sem-decisao-judi-
cial-basta/. Acesso em 18 outubro 2022.

207. GOMES, Amelia. Após ameaça de morte, militantes do MTST de Montes Claros (MG) são obrigados a se
refugiar. Brasil de Fato. Maio de 2022. Disponível em: https://www.brasildefatomg.com.br/2022/05/26/apos-ameaca-
-de-morte-militantes-do-mtst-de-montes-claros-mg-sao-obrigados-a-se-refugiar. Acesso em 18 outubro de 2022.

102 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


A Ocupação Marielle Franco, também localiza- derrubarem os barracos, sob ameaça de prisão
da na cidade de Montes Claros, resiste desde e coerção verbal. 208 Nesse conflito, foi decretada
2017, em área há 20 anos caracterizada como a prisão de três coordenadores do MTST, sob a
ZEIS para fins de moradia. Seus moradores já tipificação de esbulho possessório. Ressalta-se
exercem a posse do terreno de forma contínua que o esbulho possessório requer o domínio da
e ininterrupta, e mais recentemente, como posse, que os pretensos proprietários da Ocupa-
resultado da campanha Despejo Zero e suas ção Marielle Franco não possuem.
vitórias no Supremo Tribunal Federal, estavam
O cenário de violações se agravou com o impe-
protegidos de despejo até 31 de outubro de
dimento da realocação das famílias e a prisão
2022, no entanto não houve prorrogação da
autoritária das lideranças, que ao invés de se-
suspensão pelo STF
rem conduzidas à Delegacia de Polícia, confor-
Essa outra ocupação, que agora não está mais me esperado, foram levadas para um quartel da
protegida da ordem de despejo, abriga também PMMG, onde ficaram incomunicáveis à família e
as famílias provenientes da Ocupação Tereza da aos advogados por aproximadamente duas ho-
Benguela que sofreu despejo forçado. Foi nela ras. Desde então, os manifestantes denunciam
que no dia 18/5/22, o procurador da prefeitura de que têm sofrido ameaças de morte e persegui-
Montes Claros acompanhado pela Guarda Muni- ção de milicianos. De acordo com entrevista-
cipal e Polícia Militar, coagiram essas famílias a do/a sobre o caso:

As lideranças foram ameaçadas, receberam armas apontadas. Foram


ameaçadas de morte. Foram atrás de familiares das pessoas. Todos ti-
veram que sair das cidades além de ameaçar as famílias teve ameaça
em local de trabalho de uma das pessoas. A maioria recebeu ameaça
por telefone. Outro companheiro recebeu ameaça em outro estado. Eles
seguem sendo mapeados.209

208. GONÇALVES, Bella; CAROLINA, Áurea; CORREIA, Rogério; BRITO, Izadora Gama. Denúncia à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos: Despejo Forçado - Ocupação Tereza de Benguela, Minas Gerais. Belo
Horizonte, Minas Gerais, 19 de maio de 2022.

209. Fonte de entrevista anonimizada.

103
Essa realidade de terror se insere num contexto militares, com um tiro na nuca, do coordena-
estadual e nacional de legitimação da violência, dor da ocupação Fidel Castro, Daniquel Olivei-
com histórico de reintegrações de posse ilegais ra dos Santos, na cidade de Uberlândia. 211 Em
efetuadas por forças de segurança privada do nor- 2017 e 2018, outros episódios escancararam a
te ao sul do país. Em Minas Gerais, esses despe-
210
atuação de milícias rurais também em Montes
jos ilegais ocorreram a despeito da Lei estadual Claros, na qual a milícia Segurança no Campo
nº. 13.604/2000, que exige a constituição de uma realizou duas emboscadas armadas contra tra-
Comissão de Direitos Humanos dos três poderes balhadores rurais sem-terra na fazenda Norte
do Estado para acompanhar despejos, visando
América. A atuação da milícia chegou a contar
garantir os direitos humanos fundamentais.
com a participação do general de divisão da re-
O estado mineiro é recorrente nos casos de serva do Exército, Mario Lucio Alves de Araujo,
violência de suas forças policiais e seguran- que viria ser nomeado secretário de Justiça e
ças privados envolvendo ocupações. Em 2020, Segurança Pública de Minas Gerais do então
ganhou repercussão a execução por policiais governador Romeo Zema. 212

Oito meses antes de assumir o comando da secretaria de Justiça e Segurança


Pública de Minas Gerais, o general Mário Araújo participou de uma ação organi-
zada por fazendeiros, em abril de 2018, que impediu integrantes do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) de ocuparem a fazenda Bom Jesus,
na área rural de Montes Claros. Na ação – realizada sem autorização judicial –,
os fazendeiros expulsaram os integrantes do MST, queimaram a bandeira do
movimento, bloquearam os acessos e impediram a entrada de água e alimen-
tos, além de ameaçarem as famílias sem-terra. Após o ato, o grupo Segurança
no Campo foi denunciado à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Le-
gislativa de Minas Gerais como sendo uma milícia rural.213

210. TERRA DE DIREITOS; REDE POPULAR DE ESTUDANTES DE DIREITOS DO PARANÁ. Denúncia à Organização dos
Estados Americanos. Relatório da violência no campo no Estado do Paraná: A acão das milícias privadas.
Curitiba, 2009. Disponível em: https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/Politica_Agraria/7miliciastdd.pdf. Acesso em
19 outubro de 2022.

211. MENDONÇA. Jennifer. PM mata sem-teto e reprime ato que pediu justiça em MG. Ponte Jornalismo. Março
de 2020. Disponível em: https://ponte.org/pm-mata-sem-teto-e-reprime-ato-que-pediu-justica-em-mg/. Acesso
em 19 outubro de 2022.

212. CAMARGOS, Daniel. Insegurança no campo: Milícia rural tem apoio de Secretário de Segurança de Mi-
nas. Repórter Brasil. Maio de 2020. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/velhochico/inseguranca-no-campo.
Acesso em 19 outubro de 2022.

213. GONÇALVES, Bella; CAROLINA, Áurea; CORREIA, Rogério; BRITO, Izadora Gama. Denúncia à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos: Despejo Forçado - Ocupação Tereza de Benguela, Minas Gerais. Belo
Horizonte, Minas Gerais, 19 de maio de 2022.

104 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


O procurador Afonso Henrique de Miranda Tei- Essa mudança vem na esteira do afastamento
xeira, coordenador das promotorias de confli- cada vez maior do Estado brasileiro no dever
tos agrários de Minas Gerais (MP-MG), é en- de priorizar soluções de permanência das fa-
fático ao afirmar que “a formação de grupos mílias. Sua atuação, ao contrário, está calca-
armados e de uma defesa ilícita de proprieda- da em um processo sistemático de violação
de do campo é uma tendência” . No mesmo 214
de direitos fundamentais, tanto na negativa
sentido o/a entrevistado/a destacou que a mi- do direito à moradia, como no papel desem-
lícia rural já atua a muitos anos na região, mas penhado pela força Policial. Como catalisador
que cresceu nos últimos três anos, mudando desse cenário, tivemos o então Presidente da
sua caracterização, em estreita relação com República, Jair Bolsonaro, assumindo publica-
a realidade de “muitas pessoas armadas com mente o discurso armamentista para a defesa
armas de fogo e discursos de ódio.” 215
privada da família e propriedade.

Desde o início de seu mandato, sabendo que não teria apoio popular nem
votos necessários para mexer na lei de controle de armas, Bolsonaro rea-
lizou flexibilizações via decreto para facilitar a aquisição (dispensando
comprovação de necessidade), aumentou a potência de armas que civis
podem comprar, liberando calibres e armas como carabinas semiauto-
máticas antes de uso exclusivo das forças de segurança, multiplicou —por
meio da portaria citada por ele na reunião de ministros— por 12 o limite de
munição anual para cidadãos comuns (de 50 para 600 unidades), além de
facilitar recargas de munição caseiras, que não são rastreáveis. Soma-se
a isso, a recente e injustificável determinação de cassar portarias do Exér-
cito que traziam normas técnicas para melhorar a marcação e rastreabili-
dade de armas e munições, aprimoramentos fundamentais para a eluci-
dação de crimes, comprovando o perigoso uso político da Presidência em
seu ataque às normas que combatem o tráfico de armas e contrariando
sua suposta intenção de combate ao crime. 216

214. Idem.

215. Fonte de entrevista anonimizada.

216. LANGEANI, Bruno. O ‘chavismo’ de Bolsonaro e o risco das milícias armadas no Brasil. El País. Junho
de 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-06-04/o-chavismo-de-bolsonaro-e-o-risco-das-
-milicias-armadas-no-brasil.html. Acesso em 20 de outubro de 2022.

105
Essa política demonstra seu potencial de intensifi- armas entre 2020 e 2021 conforme dados da
car ainda mais os conflitos envolvendo as milícias Polícia Federal. Já os registros de CACs ativos
rurais e forças de segurança contra ocupações ur- (Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador)
banas e rurais, ao incrementar com fatores críticos saltaram de 197 mil, em 2019, para 674 mil em
como o aumento das armas em circulação, a falta maio de 2022, um aumento de 474% de acordo
de fiscalização e controle por parte do Exército, e o com o último Anuário de Segurança Pública. 220
incentivo e a banalização ao armamento. Desde o
Evidências comprovam que muitas dessas ar-
início do governo Bolsonaro já existem mais de 4,4
mas inicialmente legalizadas acabam na crimi-
milhões de armas em circulação217 em relação aos
nalidade, representando hoje um mercado farto
637.972 registros de armas ativos informados pela
para o crime organizado. A política armamen-
Polícia Federal em 2017.218
tista implementada no governo Jair Bolsonaro,
Segundo o Instituto Sou da Paz, os 40 decre- combinada à redução da fiscalização sobre o
tos e normas que flexibilizaram as regras para uso e o porte delas (o governo revogou três por-
a venda de armas de fogo e munição ao longo tarias que facilitavam a fiscalização e rastrea-
dos últimos 3 anos surtiram efeito. “O número mento de armas e munições)221, ao aumentar
de licenças para armas de fogo mais que quin- o número de armas legais em circulação, tam-
tuplicou de 2018 a 2022, chegando a mais de bém aumentou os casos de roubo ou extravio
650.000. Todo dia, são mais de 1.300 armas de delas. Os institutos Sou da Paz e Igarapé, em
fogo compradas por civis”. 219
Isso representou nota técnica sobre o PL 3723/2019 que visa alte-
o crescimento de 114,5% no registro de novas rar o estatuto do desarmamento, alertam:

217. CERQUEIRA, Daniel e outros. Armas de fogo e homicídios no Brasil. Sumário Executivo. Fórum Brasileiro
de Segurança Pública. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Disponível em: sumario-executivo-armas-fo-
go-homicidios-no-brasil.pdf (forumseguranca.org.br). Acesso em 27 de outubro de 2022.

218. FIGUEIREDO, Isabel; MARQUES, Ivan. Panorama sobre as armas de fogo no Brasil: um retrato possível a partir dos
sistemas federais. In: Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2020. Disponível em: https://forumseguranca.
org.br/wp-content/uploads/2021/07/8-brasil-dobra-o-numero-de-armas-nas-maos-de-civis-em-3-anos.pdf. Aces-
so em 27 de outubro de 2022.

219. INSTITUTO SOU DA PAZ. O descontrole de armas – Uma conversa com Carolina Ricardo. Policy Zone. Se-
tembro de 2022. Disponível em: https://soudapaz.org/noticias/policy-zone-o-descontrole-de-armas-uma-conver-
sa-com-carolina-ricardo/. Acesso em 20 de outubro de 2022.

220. CATRO, Carol. 2.893 Armas foram perdidas ou roubadas de clubes de tiros e colecionadores desde
2018. The Intercept Brasil. Julho de 2022. Disponível em: https://theintercept.com/2022/07/04/armas-perdidas-rou-
badas-clubes-tiro-colecionadores/. Acesso em 20 de outubro de 2022.

221. SOUZA, Felipe. Com mais armas circulando, Brasil ‘começa a colecionar’ casos de tiros em escolas, vê
especialista. BBC News Brasil. Outubro de 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63152623.
Acesso em 20 de outubro de 2022.

106 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


Os riscos de desvios de grandes arsenais para a ilegalidade são des-
considerados. Há inúmeros casos, em diferentes regiões do país, que
mostram que o acesso desmedido a armamentos de uso restrito,
quantidades de munição injustificáveis para a prática esportiva idônea
e responsável, e até mesmo a recarga de munições, levam criminosos
a usar privilégios concedidos aos CACs para acessar grandes arsenais
e armas de uso restrito. São incontáveis casos de roubos e desvios de
armas e munições de clubes de tiro e CACs para o crime organizado,
incluindo ações relacionadas ao domínio territorial por facções crimi-
nosas, milícias, e ao sitiamento de cidades durante grandes assaltos
a agências bancárias. Dentre os casos de grande repercussão, desta-
ca-se a prisão de Ronnie Lessa, acusado pelo assassinato de Marielle
Franco, que era atirador desportivo e acusado de usar autorizações de
importação para traficar fuzis. Também não são raras as ocorrências
de feminicídio em residências de CACs. 222

Essa política favorável ao armamentismo contribui Essa mudança cultural na sociedade coloca a
para a consolidação de uma cultura das armas insegurança como base do projeto de poder,
que flerta com iniciativas autoritárias e antidemo- operada por meio de uma política do medo e
cráticas, pregando na sociedade a necessidade policiamento de exceção. De acordo com a pro-
da defesa individual dos seus direitos e negando fessora Jacqueline Muniz, especialista em segu-
as instâncias democráticas de resolução dos con- rança pública, temos um “circuito perverso da
flitos, em especial as questões relacionadas com proteção para alguns que pagam por ela. E, des-
toda uma coletividade excluída dos espaços con- ta forma, permite a consolidação de um regime
siderados dos cidadãos de bens e direitos. 223
do medo rentável politicamente”. 224

222. INSTITUTO IGARAPÉ; INSTITUTO SOU DA PAZ. Nota Técnica: Por que o relatório do Senador Marcos do Val
sobre oL 3.723/2019 deve ser rejeitado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal?
Dezembro de 2021. Disponível em: https://igarape.org.br/wp-content/uploads/2021/12/Nota-tecnica-PL-3723.pdf.
Acesso em 20 de outubro de 2022.

223. CAROLINA, Ricardo. Has Bolsonaro released a flood of guns to overwhelm Brazil’s democracy? Open
Democracy. Setembro de 2022. Disponível em: https://www.opendemocracy.net/en/democraciaabierta/bolsona-
ro-brazil-president-election-gun-violence-2022-noauto/#Echobox=1664453770. Acesso em 20 de outubro de 2022.

224. SANTOS, João Vitor. PMs, milícias e governo Bolsonaro: uma relação de apoio, favores, vantagens,
privilégios e carteiradas. Entrevista especial com Jacqueline Muniz. Instituto Humanitas Unisinos. Maio de
2021. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/609020-pms-milicias-e-governo-
-bolsonaro-uma-relacao-de-apoio-favores-vantagens-privilegios-e-carteiradas-entrevista-especial-com-jacqueli-
ne-muniz. Acesso em 20 de outubro de 2022.

107
A atuação da PM e da milícia rural no caso da é enfática sobre o policiamento de exceção e
Ocupação Tereza de Benguela reforçam esse ressalta como ele “não está a serviço do esta-
prognóstico, no qual, segundo denúncias, as do de direito, da cidadania, dos policiais e da
forças policiais atenderam mais aos chama- polícia. Serve a qualquer senhor que instaure a
dos da economia política do crime e da polí- suspeição ampliada, a desconfiança recípro-
cia dos bens (milícia) do que às missões de- ca, as incertezas irrestritas como tecnologias
mocráticas e republicanas. Jacqueline Muniz de governo.” 225

A milícia é a polícia dos bens que tem acuado e tirado das ruas a
polícia do bem, deixando os moradores reféns do estado duas ve-
zes: da polícia miliciana e da polícia de operações que não é capaz
de policiar territórios e população. Como tenho insistido aqui, faz
tempo que os policiamentos em certas regiões do estado são fei-
tos por grupos criminosos. A segurança pública tem que voltar a
ser pública e administrada pelo Estado e não ser mais terceirizada
para firmas clandestinas, grupos armados etc. 226

O/a entrevistado/a do caso Tereza de Benguela pria sociedade civil municiada com o discurso
dialoga com a pesquisadora ao narrar o medo do ódio e o acesso facilitado aos armamentos.
que impera nas ocupações e como a atuação
das milícias contam com uma maior dificul- A trajetória política da família Bolsonaro reforça
dade de identificação e responsabilização. A essas análises, ao demonstrar como o então
cultura do medo instaurou novos antagonistas presidente e seus filhos representam ideologi-
nas disputas por terra e moradia, que as ocupa- camente os grupos milicianos. São recorrentes
ções precisam agora se proteger não apenas de os discursos bolsonaristas favoráveis à legaliza-
ações ilegais do braço armado do estado, mas ção das milícias e uso da violência como meio
também das organizações criminosas e da pró- para estabelecer a ordem na sociedade. 227

225. INSTITUTO IGARAPÉ; INSTITUTO SOU DA PAZ. Nota Técnica: Por que o relatório do Senador Marcos do Val
sobre oL 3.723/2019 deve ser rejeitado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal?
Dezembro de 2021. Disponível em: https://igarape.org.br/wp-content/uploads/2021/12/Nota-tecnica-PL-3723.pdf.
Acesso em 20 de outubro de 2022.

226. Idem.

227. ALESSI, Gil. “Os Bolsonaro sempre foram os representantes ideológicos dos grupos milicianos”. El País.
Abril de 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-04-24/os-bolsonaro-sempre-foram-os-represen-
tantes-ideologicos-dos-grupos-milicianos.html. Acesso em 20 de outubro de 2022.

108 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


A família de Jair Bolsonaro já apoiou publicamente esses grupos,
chamando-os de uma ferramenta eficaz contra o crime, e tem liga-
ções bem documentadas com grandes figuras da milícia. A mãe e
esposa de um infame assassino paramilitar já trabalhou para o filho
político de Bolsonaro, Flávio Bolsonaro. 228

Esse aparelhamento estatal para a política do maior déficit habitacional, são 557 mil famílias
medo, tem a ausência do poder público como sem segurança da posse, conforme dados de
principal impulsionador do avanço das milícias. pesquisa da Fundação João Pinheiro229. Em Mon-
Essa ausência, no caso das ocupações, origi- tes Claros, esse déficit habitacional está acima
na-se na negativa de acesso à terra urbana ou de 10 mil moradias. 230 Com a atual ofensiva de
rural, às políticas habitacionais, o não reconhe- setores conservadores na criminalização da po-
cimento dos vínculos com seus territórios, que breza e dos movimentos de moradia, num con-

levam famílias do campo e da cidade, povos texto agravado pela crise, não resta alternativa,

tradicionais e indígenas, a serem submetidos a que não seja a ocupação de terrenos ociosos,
que não cumprem a sua função social, como
processos de negação de direitos, ameaças e
forma de pressionar o poder público para cons-
contínua violência.
truir habitações populares e promover políticas
Considerando-se apenas a realidade de Minas públicas comprometidas a combater o déficit
Gerais, temos o segundo estado do país com o habitacional e garantir o direito à moradia.

228. PHILLIPS, Tom. Brazil’s fearsome militias: mafia boom increases threat to democracy. The Guadian. Outu-
bro de 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2022/oct/18/brazil-militias-paramilitary-far-right-
-bolsonaro. Acesso em 20 de outubro de 2022.

229. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit Habitacional no Brasil. 2020. Disponível em: http://fjp.mg.gov.br/deficit-
-habitacional-no-brasil/. Acesso em 20 out. 2022.

230. MOREIRA, Gilvander Luis. Milícia despeja Ocupação Tereza de Benguela, do MTST, Montes Claros/MG,
sem decisão judicial. Basta! Comissão Pastoral da Terra (CPT-MG). Maio de 2022. Disponível em: https://www.
cptmg.org.br/portal/milicia-despeja-ocupacao-tereza-de-benguela-do-mtst-montes-claros-mg-sem-decisao-judi-
cial-basta/. Acesso em 18 outubro 2022.

109
A negativa de moradia impacta ainda no aces- proteção para militantes de direitos humanos:
so a outros direitos, tendo em vista a vincu- programas pensados a partir da militância”. 231
lação do endereço com o acesso às escolas, Defende ainda a busca dos exemplos de ou-
creches e Unidades Básica de Saúde, por tros países com programas eficazes, e a busca
exemplo. Para piorar esse quadro, os despejos de fortalecimento das redes de apoio, com su-
e remoções forçadas se tornaram parte estru- porte e financiamento internacional. Com isso,
turante da (re)produção da política do medo seria possível garantir as mínimas condições
na sociedade brasileira, atingindo famílias de de segurança para as populações impactadas
baixa renda, em situação de vulnerabilidade, resistirem e avançarem nas suas pautas fren-
que são expulsas pela intervenção das empo- te a hegemônica política da violência.
deradas forças privadas de segurança, com
suporte das forças policiais.

Frente a essa realidade, o/a entrevistado/a


é enfático na defesa de “um
sistema sério e eficaz de

231. Fonte de entrevista anonimizada.

110 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


5. CONEXÕES
E CONCLUSÕES

111
O racismo estrutura as violências descri-
tas dos casos apresentados, sejam aque-
las destinadas às defensoras e defensores em
Também percebemos a partir dos casos acima,
como que a boiada passa e destrói233. Ela pas-
sa, principalmente, em legislações e atos nor-
si, sejam em decorrência do próprio conjunto de mativos, como no caso do Decreto 10.252/2020,
violações de direitos humanos, que tem se per- que burocratizou a criação de assentamentos
petrado sobre os diferentes territórios de povos rurais e foi utilizado como pretexto para tornar
e comunidades, urbanas e rurais. sem efeito a portaria que publicou a criação do
Assentamento Dorothy Stang, em Anapu, no
Não por acaso, o Condomínio Estrondo, na Bahia,
Pará, cidade palco de muitos conflitos por ter-
declarou como seus 20% de área de reserva le-
ra e dezenas de assassinatos. Isso também se
gal (área de vegetação nativa obrigatória) em
manifesta em cortes orçamentários e a edição
cima dos territórios das comunidades geraizei-
de atos normativos para minar a política de ti-
ras. Ao fazer isso, o condomínio não apenas tra-
ta aquelas pessoas como se fossem ninguém, tulação de territórios quilombolas, paralisando

mas também os seus territórios que, ocupados órgãos públicos que deveriam, por lei, garantir

a centenas de anos por essas comunidades, estratégias que projetam e reconheçam essas

passaram a fazer parte da propriedade privada terras de quilombos. O Quilombo Carretão, em

do condomínio. E isso tem consequências dire- Mato Grosso, é uma das comunidades que tem
tas para as pessoas que lá vivem, que se vêm sido atingida por essa política e sofre com uma
impossibilitadas de fazer uso da terra, ir e vir, ou realidade de violências e ameaças.
viver livremente nas suas comunidades.
Assim, ao passo que “a boiada passa”, os ter-
O mesmo tratamento recebe as comunidades ritórios coletivos seguem sem titulação e
geraizeiras do Vale das Cancelas, em Minas Ge- demarcação, e vivem uma série de violências
rais. Há mais de sete gerações no território, essas e violações de direitos. Isso acontece nos casos
famílias convivem agora com a ameaça de um do Território Geraizeiro do Vale das Cancelas,
empreendimento cuja barragem, que é 90 vezes Território Geraizeiro do Alto Rio Preto, Quilombo
maior que a que se rompeu em Brumadinho , 232 Carretão, Território indígena Kaingáng, no Assen-
poderá ser construída sobre suas cabeças. tamento Dorothy Stang.

232. FELIPE, Sabrina. Licença forçada. Canetada do IBAMA destrava mina em MG com barragens 90 vezes maio-
res que a de Brumadinho. The Intercept Brasil. Janeiro de 2022. Disponível em: https://theintercept.com/2022/01/11/
barragens-gigantes-90-vezes-brumadinho-minas-gerais-ibama/. Acesso em 09 de novembro de 2022

233. A expressão se refere a fala do ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Para saber mais: SHALDERS, André.
“Passando a boiada: 5 momentos nos quais Ricardo Salles afrouxou regras ambientais”. BBC-Brasil. Outubro
de 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54364652. Acesso em 09 de novembro de 2011

112 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


A atual política armamentista também tem Jair Messias Bolsonaro. Tais discursos dissemi-
favorecido grupos armados e paraestatais, que nadores de ódio e de narrativas excludentes e
agem com truculência e uso da força para coa- violentas passaram a legitimar cada vez mais
gir, intimidar, ameaçar, despejar e assassinar ataques e até assassinatos no Brasil - como
defensoras e defensores em seus territórios: ca- aconteceu com o militante do PT, que foi morto
sos como do povo Kaingáng evidenciam como a em meio a festa de aniversário.
liberação e afrouxamento das regras para aqui-
sição de armas ampliaram os conflitos e suas Esse clima hostil e o apoio às ações bárbaras,
consequências. Também foram esses grupos além dos discursos, de políticos de extrema-di-
que despejaram a Ocupação Tereza de Bengue- reita e de cidadãos brasileiros tem contribuído
la, em Minas Gerais, e amedrontam as pessoas. para o aumento de uma violência difusa contra
Eles também assassinaram e incendiaram ca- defensoras e defensores de direitos humanos e
sas em Anapu e no município de Baião, Pará, as- o estreitamento do espaço cívico brasileiro. Os
sassinaram 6 pessoas numa noite. Entre essas ataques e atentados vem de diversos lugares e
pessoas, a militante Dilma Ferreira. assumem diversas formas. As pessoas de dife-
rentes frentes políticas, mas especialmente, as
Esse uso da força privada e armada para inti- de esquerda e pertencentes a minorias no Brasil,
midar os territórios sempre esteve presente no são hostilizadas nas ruas, atacadas na internet,
Brasil. A diferença é que agora o acesso dessas sofrem atentados por expor suas opiniões políti-
pessoas ao armamento foi facilitado e, mais do cas. Quanto mais manifestam seu ativismo polí-
que isso, o discurso de violência construído no tico, mais elas podem se tornar alvos.
Brasil nos últimos anos (2019-2022) por um go-
verno de extrema direita - tendo como seu prin- Como afirmou uma das entrevistadas para este
cipal expoente o então Presidente da República dossiê:

“O discurso quando feito em larga escala, em todos os dias, doutri-


na. Ele (então presidente Bolsonaro) só se refere às mulheres com
violência, em esse discurso legitima quem está violentado as mu-
lheres. Esse discurso é pregado em rede nacional, não é feito de
forma velada. Isso é uma política de violência”.

113
Essa violência está expressa na brutalidade vessados por defensoras e defensores de di-
das violências contra as mulheres defen- reitos humanos, uma vez que o programa teve
soras. Isso está presente no assassinato de sumariamente verbas públicas cortadas e, con-
Dilma Ferreira, que teve a intencionalidade de sequentemente, deixando de proteger os DDHs
matar uma liderança da região, mas também de forma adequada, por mais que na outra ponta
na onda de violência política e eleitoral que instituições que executam o PPDDH tentem e se
atravessou o Brasil nos últimos quatro anos esforcem todos os dias em prestar apoio e auxí-
(2019-2022) e tem como um grande alvo mu- lio aos DDHs inseridos no programa. Portanto, ao
lheres, parlamentares e negras. É o caso da passo em que se avança um cenário concreto
Benny Briolly que sofre em seu corpo físico, de violências de diversas frentes, temos aliado
psíquico e simbólico as consequências do a esse contexto de violações de direitos, o suca-
ódio enquanto sujeito político a partir da in- teamento do programa de proteção a defenso-
terseccionalidade: do racismo, da transfobia, ras e defensores de direitos humanos, que pre-
da misoginia. A vida de Benny ainda é tratada cisa ser revertido de forma urgente pelo governo
de forma simbólica por um Estado que não federal eleito.
garante a parlamentar DDH sequer formas de
É preciso enfrentar essas violências estruturantes
sobreviver e resguardar sua vida física e suas
para combater a violência contra defensoras e
atribuições parlamentares, mesmo estando
defensores. Nesse novo cenário que se anuncia,
inserida no Programa Nacional de Proteção
de mudança de governo no Brasil, é fundamental,
para Defensoras e Defensores de Direitos Hu-
de pronto, assumir a agenda dos movimentos
manos. Mas Benny não é o único caso.
sociais e organizações da sociedade civil sobre
De acordo com análise e acompanhamentos de mudanças imediatas para reverter diversos atos
casos feito pelo Comitê Brasileiro, nos últimos normativos e decretos que violam direitos, na
quatro anos de governo administrados pela ex- mesma medida em que se cria condições para
trema-direita, o PPDDH se tornou apenas um recuperar uma política de inclusão e de respeito
“escudo’ simbólico no cotidiano de riscos atra- aos direitos humanos e quem os defende.

114 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


6.
RECOMENDAÇÕES

115
C onsiderando os casos apresentados no dossiê, é fundamental que as au-
toridades públicas locais, estaduais e nacionais, a partir de suas devidas
atribuições e competências, tomem medidas para:

● Proteção das defensoras e defensores de direitos humanos em todos os


contextos apresentados no dossiê, com interlocução direta com as pes-
soas em situação de ameaça e vulnerabilidade, e suas organizações de
apoio, para definição da melhor estratégia, com aportes de recursos hu-
manos e financeiros para tanto;

● A investigação e a apuração dos crimes praticados contra as defensoras


de direitos humanos em todos os contextos narrados, com o urgente an-
damento de inquéritos policiais que apuram ameaças e atentados con-
tra DDHs, especialmente considerando que na maior parte das situações
narradas há relatos que as denúncias realizadas pelas defensoras e de-
fensores de direitos humanos não são devidamente investigadas e apura-
das pelas autoridades;

● A consequente responsabilização dos autores dessas violências pratica-


das contra as defensoras e defensores de direitos humanos;

● Nos casos que envolvem conflitos coletivos pela titulação ou demarcação


de territórios, a imediata retomada e agilidade desses procedimentos, vis-
to que grande parte das ameaças e violências partem de conflitos por ter-
ra e da negligência estatal em fazer cumprir o direito dessas comunidades
de propriedade e posse sobre seus territórios coletivos;

● A articulação intersetorial das instituições públicas para combater as cau-


sas que estruturam os conflitos narrados, considerando o alto índice de
violações presentes no território e as responsabilidades do estado diante
dessas violências;

Todos os casos narrados também demandam a atuação de órgãos públi-


cos na efetivação de direitos constitucionalmente assegurados. Nesse
sentido, reforçamos recomendações já realizadas pelo Comitê Brasileiro
de Defensoras e Defensores de Direitos humanos234, direcionadas às auto-
ridades públicas em todas as esferas (executivo, legislativo e judiciário).

234. Parte das recomendações deste tópico são citações diretas das recomendações presentes na III edição do
Dossiê Vidas em Luta. Disponível em: https://comiteddh.org.br/biblioteca/. Acesso em 24 de outubro de 2022.

116 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


6.1. PARA O APERFEIÇOAMENTO DA
POLÍTICA DE PROTEÇÃO

● Implementar o Plano Nacional de Proteção às Defensoras e Defensores


de Direitos Humanos;

● Ampliar a estrutura e o orçamento do PPDDH, combatendo os 8 gran-


des ataques sofridos pelo programa no último período e citados aci-
ma, quais sejam: Baixa execução orçamentária; Falta de participação
social e transparência; Baixa institucionalização; Falta de estrutura e
equipe para atendimento da demanda; Diminuição de casos incluídos
no âmbito federal; Insegurança política na gestão; Inadequação quanto
à perspectiva de gênero, raça e classe; Demora, insuficiência e inade-
quação das medidas de proteção235;

● Garantir participação da sociedade civil em espaços de acompanhamen-


to e avaliação das políticas de proteção a defensoras e defensores;

● Implementar um plano de trabalho nas instituições do sistema de justiça


e segurança pública voltado para o monitoramento e acompanhamento
das ações judiciais e inquéritos policiais que envolvam defensoras e de-
fensores, e para garantir a apuração das violações e ameaças;

● Garantir a implementação dos programas nos estados mais críticos para


defensoras e defensores que alegam não ter recursos para a implemen-
tação do mecanismo;

● Aperfeiçoar a metodologia de proteção, no sentido de atender a grupos e


comunidades pelas quais lutam as defensoras e os defensores;

235. Conforme relatório Disponível em: TERRA DE DIREITOS. Começo do fim? O pior momento do Programa de
Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Dezembro de 2021. Disponível em: https://terradedireitos.org.
br/acervo/publicacoes/livros/42/comeco-do-fim-o-pior-momento-do-programa-de-protecao-aos-defensores-de-
-direitos-humanos/23691. Acesso em 25 de outubro de 2022.

117
● Implementar efetivamente uma perspectiva de gênero e raça para avaliar
os casos e desenvolver medidas de proteção às mulheres defensoras de
direitos humanos atendidas pelo PPDDH;

● Articular políticas que possibilitem assistência médica, psicológica e pre-


videnciária às defensoras e defensores atendidas(os) pelo PPDDH;

● Realizar ampla campanha de reconhecimento e valorização de defenso-


ras e defensores de direitos humanos;

● Melhorar os parâmetros de transparência do PPDDH, aumentando a divul-


gação e a disponibilidade de informações no site e nos materiais institu-
cionais do governo.

● Incluir a dimensão de violência política para incorporar mecanismos de


proteção a defensores e defensoras vítimas deste tipo de violência no país;

6.2. PARA EFETIVAÇÃO DE DIREITOS E


COMBATE AOS RETROCESSOS

● Efetivar e aplicar a Convenção 169 da OIT, que assiste em sua totalidade


aos direitos dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicio-
nais, com rechaço a todas as medidas que tentem reduzir o seu alcance
ou comprometer sua aplicabilidade, com o consequente arquivamento do
PDL nº. 177/2021236;

236. Para mais informações, ver nota técnica elaborada pelo Observatório dos Protocolos de Consulta. OBSER-
VATÓRIO. Nota Técnica referente ao Projeto de Decreto Legislativo n° 177/2021 que propõe a denúncia da
Convenção 169 (retirada do Estado brasileiro na ratificação e compromissos do tratado). Maio de 2021. Dis-
ponível em:.https://observatorio.direitosocioambiental.org/pdl-177-2021/ Acesso em 09 de novembro de 2022.

118 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA


● A retomada da política para demarcação e titulação de territórios indíge-
nas, quilombolas e comunidades tradicionais e reestruturação de órgãos
como Incra e Funai;

● O retorno dos investimentos e políticas para a concretização da Reforma


Agrária, e para a regularização fundiária;

● A proteção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais frente ao


avanço de grandes empreendimentos;

● A adoção de medidas para a redução da violência e dos conflitos no campo;

● O desenvolvimento de políticas habitacionais que estejam associadas a


concretização da reforma urbana;

● A revogação de diversas portarias e decretos que facilitaram o acesso às


armas de fogo no Brasil;

● Que operadores de justiça fundamentam seus processos e decisões ju-


diciais nos princípios da garantia dos direitos humanos e dos direitos à
liberdade de expressão e manifestação das(os) defensoras e defensores
de direitos humanos, abstendo-se de aplicar legislações que contrariem
esses princípios e criminalizam a luta das(os) defensoras e defensores;

● A adoção de políticas públicas para o combate ao racismo estrutural, com


construção de políticas que garantam à população negra o acesso à saú-
de, educação, trabalho e que enfrente o genocídio da juventude negra e o
encarceramento em massa;

● Combate a LGBTQIA+fobia, com construção de políticas públicas que as-


segurem direitos para a população e enfrentam as violências, sobretudo
as que fazem com que o Brasil ainda seja o país que mais mata travestis
e transexuais.

119
120 IV DOSSIÊ VIDAS EM LUTA

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