Aula 11 Caetano Veloso Conferencia MAM
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não se identifica com o Estado. Isso pode-se atribuir ao fato geral de que o Estado é uma
inconcebível abstração. O Estado é impessoal: nós só concebemos relações pessoais. Por
isso, para nós, roubar dinheiros públicos não é um crime. Somos indivíduos, não cida
dãos. Aforismas como o de Hegel 'O Estado é a realidade da idéia moral', nos parecem
piadas sinistras. Os filmes elaborados em Hollywood repetidamente propõem que se
admire o caso de um homem (geralmente um jornalista) que procura a amizade de um
criminoso para depois entregá-lo à polícia: nós, que temos a paixão da amizade e consi
deramos a polícia uma máfia, sentimos que esse'herói'dos filmes americanos é um in
compreensível canalha.Sentimos com Dom Quixote que'lá se haja cada um com seu
pecado'e que'não é bom que os homens honrados sejam verdugos dos outros homens''.'
Essas palavras que acabei de pronunciar podem parecer referir-se a nós, brasileiros. E não
tenho dúvida de que, se ditas hoje por um brasileiro diante de brasileiros, podem causar
— a despeito da encantadora elegância com que estão dispostas, ou principalmente por
causa dela — um certo mal-estar. Na verdade são palavras de uma argumentação sobre o
caráter argentino a que Jorge Luis Borges recorreu mais de uma vez em seus impecáveis
escritos. O fato de que tal argumentação poderia provocar um certo constrangimento
mesmo entre os argentinos de 1930 — quando suponho que ela foi pela primeira vez le
vada a público — não parece ter passado despercebido do próprio Borges que, numa no
ta de pé de página completando a observação sobre a licença tácita de roubar dinheiros
públicos, faz a ressalva:"comprovo um fato, não o justifico ou desculpo'.'
Mas, se decidi abrir esta conversa repetindo aquelas palavras de Borges, não foi por
que quisesse criar na sala esse mal-estar — embora, indubitavelmente, ele me sirva para
estabelecer o tipo de comunicação desejado — : se o fiz foi sobretudo porque me interes
sa ressaltar, antes de mais nada, o risco que todos corremos — todos nós que falamos em
nome de países perdedores da História — de tomar as mazelas decorrentes do subdesen
volvimento por quase-virtudes idiossincráticas de nossas nacionalidades. De fato, se olhar
mos o texto de Borges de uma perspectiva brasileira, hoje — e apesar da ressalva — , na
medida mesma em que reconhecemos nossa identificação com o retrato que ele nos ofe
rece dos argentinos, nos damos conta do repúdio que recentemente nos comprazemos
em ostentar face ao conjunto da imagem que ali se nos apresenta e, sobretudo, às obser
vações específicas de que não somos cidadãos e de que, em nosso íntimo, roubar dinhei-
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Mas eu não tinha embarcado na viagem desses sebastianistas, nem como estudioso nem co
mo, digamos assim, militante. Apenas me parecera interessante que houvesse gente falando
no Reino do Espírito Santo e numa futura civilização do Atlântico Sul, numa época em que
Ergueste-a, e fez-se.
Sei que posso ter apenas aumentado a confusão ao sublinhar o namoro doTropicalismo
com o pessimismo profundo. Não apenas uma paródia de samba exaltação é ainda um
samba exaltação assim mesmo, mas também, e talvez sobretudo, Jorge Ben — o autor da
totalmente afirmativa e isenta de intenções irônicas"País tropical"— era — como Jorge
Podemos dizer que o paradoxo do Brasil está em, sendo capaz de oferecer a prefigura
ção da solução de alguns problemas que poucos países conseguem efetivamente en
frentar, não ter conseguido efetivamente enfrentar alguns problemas que muitos ou
tros países já resolveram total ou parcialmente.
Tudo o que eu disse — e tudo o que estou por dizer aqui — está contido nessa fórmula
de Cicero;e não creio que eu possa dizer melhor:apenas dou testemunho de como em
mim esse modo de encarar o Brasil se desenvolveu com o colorido próprio das minhas
idiossincrasias e das minhas limitações.
Todo povo frustrado pode fazer fantasias compensatórias. Mas o que pensar quando
estamos na situação de criar tais fantasias e temos como matéria real um país novo, imen
so, tropical, mestiço e de fala portuguesa — quer dizer, usando uma das línguas do Sul da
Europa que mais tem sofrido humilhações históricas depois de ser a que mais se espa
lhou pelo mundo, a língua em que se escreveu o épico inaugural da dominação européia
sobre o globo, o grande épico da expansão ocidental? E, no entanto, freqüentemente so
mos catalogados como não fazendo parte do "Ocidente" Devemos pensar assim:o mun
do em que vivemos parece-se mais com o mundo da história remota da humanidade,
quando violentos avanços tecnológicos foram feitos, do que com Grécia e Roma. Estas se
entregaram ao cultivo das artes, das leis e das idéias, num ambiente tecnologicamente es
tável amparado na mão-de-obra escrava. O curioso é que qualquer desvio extra-ocidental
do curso da história atual — mesmo que seja a temida e pouco falada liderança da China
sobre os não-ocidentais numa ação contra os atuais países ricos (eventualidade que já
[Texto integral da conferência proferida no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 26 de outubro