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Aula 11 Caetano Veloso Conferencia MAM

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Nosso povo, "diferentemente dos americanos do norte e de quase todos os europeus,

não se identifica com o Estado. Isso pode-se atribuir ao fato geral de que o Estado é uma
inconcebível abstração. O Estado é impessoal: nós só concebemos relações pessoais. Por
isso, para nós, roubar dinheiros públicos não é um crime. Somos indivíduos, não cida­
dãos. Aforismas como o de Hegel 'O Estado é a realidade da idéia moral', nos parecem
piadas sinistras. Os filmes elaborados em Hollywood repetidamente propõem que se
admire o caso de um homem (geralmente um jornalista) que procura a amizade de um
criminoso para depois entregá-lo à polícia: nós, que temos a paixão da amizade e consi­
deramos a polícia uma máfia, sentimos que esse'herói'dos filmes americanos é um in­
compreensível canalha.Sentimos com Dom Quixote que'lá se haja cada um com seu
pecado'e que'não é bom que os homens honrados sejam verdugos dos outros homens''.'

Essas palavras que acabei de pronunciar podem parecer referir-se a nós, brasileiros. E não
tenho dúvida de que, se ditas hoje por um brasileiro diante de brasileiros, podem causar
— a despeito da encantadora elegância com que estão dispostas, ou principalmente por
causa dela — um certo mal-estar. Na verdade são palavras de uma argumentação sobre o
caráter argentino a que Jorge Luis Borges recorreu mais de uma vez em seus impecáveis
escritos. O fato de que tal argumentação poderia provocar um certo constrangimento
mesmo entre os argentinos de 1930 — quando suponho que ela foi pela primeira vez le­
vada a público — não parece ter passado despercebido do próprio Borges que, numa no­
ta de pé de página completando a observação sobre a licença tácita de roubar dinheiros
públicos, faz a ressalva:"comprovo um fato, não o justifico ou desculpo'.'
Mas, se decidi abrir esta conversa repetindo aquelas palavras de Borges, não foi por­
que quisesse criar na sala esse mal-estar — embora, indubitavelmente, ele me sirva para
estabelecer o tipo de comunicação desejado — : se o fiz foi sobretudo porque me interes­
sa ressaltar, antes de mais nada, o risco que todos corremos — todos nós que falamos em
nome de países perdedores da História — de tomar as mazelas decorrentes do subdesen­
volvimento por quase-virtudes idiossincráticas de nossas nacionalidades. De fato, se olhar­
mos o texto de Borges de uma perspectiva brasileira, hoje — e apesar da ressalva — , na
medida mesma em que reconhecemos nossa identificação com o retrato que ele nos ofe­
rece dos argentinos, nos damos conta do repúdio que recentemente nos comprazemos
em ostentar face ao conjunto da imagem que ali se nos apresenta e, sobretudo, às obser­
vações específicas de que não somos cidadãos e de que, em nosso íntimo, roubar dinhei-

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ros públicos não constitui crime. O que nos parece sinistro, isto sim, é o fato de vermos a
nossa incapacidade para a cidadania guindada à condição de contrapartida de uma bela
vocação individualista, e de aprendermos que nosso desrespeito aos dinheiros públicos
nasce de uma quase nobre rejeição dessa “inconcebível abstração" que é o Estado.
No entanto,é justamente uma aproximação desse aspecto difícil do contato com aque­
le texto que mais me interessa aqui, neste preâmbulo. Saber em que medida podemos,
sem nos iludirmos, fazer planos para o futuro — e mesmo sonhar — a partir de um apro­
veitamento da originalidade de nossa condição tomada em sua complexidade desafiado­
ra. Na referência de Borges à estranheza que nos causa o herói hollywoodiano tão magni­
ficamente descrito por ele como"geralmente um jornalista"que usa a amizade como um
meio para a delação, e, mais que tudo, na afirmação, escolhida no Don Quixote, de que
"não é bom que os homens honrados sejam verdugos dos outros homens"encontramos
alento para encararmos a nossa própria imagem sem nojo. Se a observação sobre os fil­
mes de Hollywood soa mais como uma confissão pessoal do que como uma constatação
sociológica (a rejeição ao estereótipo do jornalista delator não parece ter tido maior ex­
pressão estatística na Argentina do que no Brasil: os filmes americanos, lá como aqui, nun­
ca padeceram de problemas de bilheteria por causa disso: mas Borges sabia — e nós sa­
bemos — que uma confissão íntima sua pode, a depender do contexto, revelar mais sobre
o gosto argentino do que metros de papel de cálculos estatísticos), a mera frase colhida
no Quixote bastaria — se é verdade que a nossa vida ou a vida dos argentinos confirma a
beleza da forma em que ela está expressa — para justificar um programa de transforma­
ção do mundo nas bases de uma sensibilidade peculiar aos países do Mercosul."Não é
bom que os homens honrados sejam verdugos dos outros hom ens"ou,em sua versão
sim plificada/lá se haja cada um com seu pecado"— o tom dessas enunciações nos leva
a admitir que há algo de sábio em colocar-se o respeito pela individualidade para além
dos direitos de cidadão. O afeto com que as ouvimos pode decidir sobre sua natureza de
abominável resquício de engodo católico ou de verdadeira intuição do que há de sagra­
do a ser preservado na solidão do indivíduo. A palavra pecado é uma mera marca de atra­
so ou deve ser vista aqui como representante de um conceito mais elástico do que aque­
le de crim e : um conceito menos mensurável, qualitativo e não quantitativo e, sobretudo,
mais aberto ao perdão? Não há, por outras palavras, mais malícia na idéia de pecado —
com que cada um pode se haver — do que na de crime — que é um assunto de toda a
sociedade? Quero chegar a perguntas de teor semelhante ao da seguinte: Em que medi­

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da podemos discriminar o que é, em nós, atraso em relação, por exemplo, às conquistas
americanas de direitos dos cidadãos, e o que é vantagem nossa por não termos aquela
obsessão, que é uma obcecação,que os americanos têm de considerar passíveis de julga­
mento público as mais íntimas, nuançadas e sutis ações do âmbito privado? Não sei a res­
posta para tal tipo de pergunta, mas seguramente não estou satisfeito com as respostas
que se tornaram doentiamente consensuais. Para mim é óbvio que os Estados Unidos, ao
superar a situação de racismo institucionalizado, em poucas décadas tinham um negro
como chefe do Estado Maior das suas Forças Armadas, três prefeitos negros nas suas três
maiores cidades, muitas aeromoças negras em seus aviões e crianças negras em seus anún­
cios de televisão — enquanto nós não temos generais negros sequer e o nosso único go­
vernador negro, o do Espírito Santo, teve sua filha barrada na entrada "social" de um pré­
dio na capital do seu estado; mas isso não nos deve levar a pensar que institucionalizar o
racismo teria sido necessariamente melhor para nós: o que faz a enorme diferença entre o
nazismo e outras formas de perseguição assassina de raças e minorias é o fato de, no caso
do nazismo, esses massacres serem oficiais. Por outro lado, é igualmente óbvio para mim
ser absolutamente insana a pretensão de colocar "o povo" como eles dizem lá, contra um
homem que teve a infelicidade de ter em seu quarto de hotel às duas da manhã uma mu­
lher que foi até ali por livre e espontânea vontade mas depois apresentou queixa de estu­
pro aparentemente porque disse "não" no último momento. Uma americana interessantís­
sima, Camille Paglia, que aliás recorre freqüentemente às suas origens católicas e
mediterrâneas para contrapor-se a essas versões modernas de puritanismo, trata com mui­
to humor (e rancor) essa idéia de assumir o"não" dito por uma mulher como não mesmo.
Essas perguntas, esse olhar de perto o pequeno trecho do texto de Borges vem por conta
da minha ambição de fazer aqui algo tão fora de moda no nosso finzinho de século — fin-
zinho também de milênio — , algo tão em desuso e desprestígio que temo que seu mero
anúncio soe como uma aberração: f a l a r em t o m de p r o f e c i a u t ó p i c a .

O desejo de esboçar novas utopias deve nascer em mim menos da necessidade de


contrastar com esse ambiente desencantado do que da responsabilidade de compensar
minha própria participação na criação do sentimento de desencanto. Refiro-me aqui à mi­
nha atuação em música popular desde meados da década de 60 e, sobretudo, às atitudes
algo escandalosas e algo superestimadas que, no final daquela década, ganharam o apeli­
do de Tropicalismo. Este movimento, no que me diz respeito, teve todas as características
de uma descida aos infernos. Para entender isto que acabo de dizer, é necessário conside­

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rar o clima da mpb do meio dos anos 60, ou seja, os desenvolvimentos do samba-jazz, o
surgimento da canção engajada e, finalmente, a esdrúxula conjugação dos dois, como
uma espécie de otimismo superficial e ingênuo se comparado com a densidade da Bossa
Nova. Claro que é a Bossa Nova que tem fama de otimista: as canções de protesto, com ou
sem convenções rítmicas jazzísticas, é que trouxeram as referências explícitas à miséria e
à injustiça social e o tom crítico. Não quero aqui fazer como esses filósofos franceses que
começam ameaçando o senso comum dizendo, por exemplo:"comumente se pensa que
Pelé é um atlético negro que joga futebol e Xuxa uma loura bonitinha que ficou mais lou­
ra e mais bonitinha"; e, quando era de se esperar que então dissessem "Pelé é uma louri-
nha e Xuxa é um negrão"concluem com algo como"...mas o fato é que vemos Pelé, nos
vídeos de sua fase áurea, tocar o gramado com leveza ao chegar de volta de seus saltos
acrobáticos, enquanto Xuxa usa roupas que são uma espécie de paródia séria de unifor­
me militar"ou seja, nada dizem que possa valer por um desmentido do consenso. Pare­
cem não querer nada além do frisson de sugerir um paradoxo — e vê-lo em seguida esfu­
mar-se. Espero, ao contrário, poder convencer os aqui presentes de que, do ponto de vista
dos que fizeram o Tropicalismo, a Bossa Nova de João Gilberto e Antônio Carlos Jobim sig­
nificava violência, rebelião, revolução e também olhar em profundidade e largueza, sentir
com intensidade e coragem, querer com decisão — e tudo isso implica enfrentar os hor­
rores da nossa condição: ninguém compõe "Chega de saudade" ninguém chega àquela
batida de violão, sem conhecer não apenas os esplendores mas também as misérias da
alma humana. Em 1971, na fase final de meu exílio londrino, vim ao Brasil a pedido de João
Gilberto para gravar com ele e Gal Costa um programa especial para a televisão. Numa
conversa depois da gravação, João me disse mais ou menos o seguinte (na verdade, algu­
mas frases ficaram marcadas tão nitidamente em minha memória que ainda podem ser
repetidas aqui literalmente):"Caítas, você enfrentou tanto sofrimento. Com vocês foi tudo
assim de uma vez só. Que horror!... Eu sei o que é isso. Comigo, Caítas, foi a mesma coisa.
Você pensa que não é a mesma coisa? Só que comigo foi aos pouquinhos, essa prisão, es­
se exílio, essa violência, todo dia, todo dia" A atmosfera bem-pensante que encontrei nos
ambientes de música popular em 1966, quando cheguei ao Rio, decididamente não fazia
jus ao que está contido nessa confissão. Essa atmosfera insinuava que os grandes talentos
jovens se resguardassem, dissessem o que era certo dizer e fizessem o que era certo fazer.
Não é assim que se faz um Noel Rosa, não é assim que se faz um Dorival. Não é assim que
se faz um Wilson Batista. E certamente não é assim que se faz um João Gilberto, não é as­

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sim que se faz um Tom Jobim. Era um otimismo tolo crer na força dos ideais de justiça so­
cial transformados em slogans nas letras das músicas e em motivação de programas de
atuação. Os tropicalistas em que nos tornamos são da linhagem daqueles que conside­
ram tolo o otimismo dos que pensam poder encomendar à história salvações do mundo.
Naturalmente não víamos o tolo otimismo como o motor das atitudes de Nara Leão ou
Carlos Lyra — ambos bossanovistas de primeira hora e grandes como os grandes — g u a n ­
do eles,em parte influenciados pelo cinema novo e peloTeatro de Arena, iniciaram o mo­
vimento de politização da moderna canção brasileira pós-Bossa Nova: era, por um lado, a
força dos temas sociais que se impunha, por outro, a força da música popular brasileira,
essa onda imensa que já vem de lá de trás e que não pode deixar de arrastar tudo; víamos
antes o risco de que aqueles artistas e suas obras fossem reduzidos à ideologia difusa que
eles criam servir.Temíamos também que assim os lessem nossos companheiros de gera­
ção. Mas também aqui, dada a força dos talentos individuais e o sentido profundo que
percebíamos em tantas das suas escolhas, encorajávamo-nos a fazer o que afinal fizemos,
mais para revelar dimensões insuspeitadas na beleza de suas produções do que para ne­
gar-lhes o valor. Mas essas revelações os aproximavam ora do sentimentalismo real e hi­
pócrita dos puteiros, ora da voz bruta das lavadeiras da tradição, ora do comercialismo de
Roberto Carlos e do significado da música na TV,ora do homossexualismo de Assis Valen­
te, ora da mera macaqueação dos americanos etc., enfim, muitas identificações não acei­
táveis para eles — embora nós soubéssemos que disso também se fazia a sua possível
grandeza — e não é por outra razão que muitas vezes eles (nossos colegas e suas obras)
vieram a aparecer como objetos das colagens tropicalistas: tanto Roberto Carlos em pes­
soa quanto a Carolina, de Chico Buarque, se tornaram personagens de canções tropicalis­
tas. Não foram os únicos (Carmem Miranda, Paulinho da Viola, Noel Rosa me vêm à lem­
brança sem esforço, mas há muitos que foram referidos de modo cifrado ou foram objeto
de imitação ou caricatura), mas o caso da Carolina merece talvez atenção especial: a Caro­
lina apareceu na letra da canção"Baby" entre gasolina e margarina, na canção"Marginália
ii"(música de Gil com letra deTorquato Neto) junto a uma"miss^e,finalmente,foi gravada
por mim numa versão que fazia da própria canção uma personagem que, passando pelas
dependências oficiais da presidência militarizada da república (afinal, a canção tinha sido
gravada por Agnaldo Rayol como uma das "favoritas do presidente" Costa e Silva), veio cair
num programa de calouros mirins da televisão baiana no meu período de confinamento
em Salvador, depois da cadeia, tornando-se assim a representante da depressão nacional

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— e da minha depressão pessoal — pós AI-5. Eu imaginava, e depois vim a saber, que ela
não era uma das favoritas de Chico Buarque. Mas ter tido uma visão aguda sobre o senti­
do mais profundo da arte desses nossos colegas não fazia — não faz — de nós, necessa­
riamente, artistas melhores que eles: muitas vezes — quem sabe a mais das vezes — é
quando se é inocente da grandeza que se é grande de fato. Nós queríamos trazer a tudo
que dissesse respeito à música popular a luz da perda da inocência, e, para isso, fizemos
muitas caretas e usamos muitas máscaras. Eu cria firmemente — e o tempo o confirmou
— que Chico Buarque ou Edu Lobo ou Dori Caymmi ou Milton Nascimento não sairiam
apequenados desse episódio:as assombrações,o reconhecimento do horrível,tendem a
engrandecer a arte, porque é da natureza da arte estar sozinha em seu poder de redimir.
Assim, digam o que disserem, nós, os tropicalistas, éramos pessimistas, ou pelo menos na­
moramos o mais sombrio pessimismo. Sobre os joelhos do monumento construído como
uma colagem cubista na letra da canção"Tropicália"— de onde saiu o nome do movimen­
to — diz-se que "uma criança sorridente, feia e morta estende a mão" É impossível imagi­
nar uma combinação de palavras para serem cantadas numa canção popular com maior
carga de dor sem esperança, impressão que se intensifica quando lembramos que ©"mo­
numento'^ que se alude no texto está ali naquele lugar nenhum, como um marco nacio­
nal que pudesse representar o Brasil estaria nessa praça, num salão nobre (acredito que é
por essa razão que a expressão "alegoria" foi tantas vezes repetida — para meu desagrado
— a respeito do Tropicalismo). Hoje, mais do que nunca, a imagem dessa criança, que ain­
da pede quando já de nada vale que se lhe dê, e é feia e sorri, nos aparece como capaz de
dizer, a seu modo, num dos pontos da composição da colagem, tudo sobre o todo que,
por sua vez,é abordado de outros modos e de diferentes distâncias em outros pontos,
sem que o conjunto defina uma forma inteligível que se imponha de modo absoluto.
Dor sem esperança!... Quantas vezes ouvi dizer que o Brasil cansou de ser o país do
futuro, ou que o Brasil era o país do futuro mas o futuro já chegou, já passou e o Brasil fi­
cou aqui. O otimismo evidente da Bossa Nova não é tolo — e é por isso que ela nem se­
quer nos parecia otimista quando estávamos à beira de mergulhar noTropicalismo.O
otimismo da Bossa Nova é o otimismo que parece inocente de tão sábio: nele estão —
resolvidos provisória mas satisfatoriamente — todos os males do mundo. De tal otimismo
podemos dizer, lembrando Nietzsche mesmo, que é trágico. O cenho cerrado da esquer­
da festiva parece sério quando é apenas bobo. O Tropicalismo sempre quis estar à altura
da Bossa Nova: eu vivo repetindo que o Brasil precisa chegar a merecer a Bossa Nova.

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A nossa descida aos infernos se efetuou como estratégia de iniciação ao grande otimis­
mo — ainda não superamos a fase sombria iniciada em 1967."Alegria,alegria"era um co­
meçar a mexer no lixo — claro que ela trata da alegria real, mas apenas para ter mais efi­
cácia no tratamento do tema fundamental que é o mesmo de"Superbacana"e de"Geléia
Geral"a saber, uma visão autodepreciativa da nossa vida cotidiana e do seu quase ne­
nhum valor no mundo — Zé Celso costumava falar no caráter masoquista da estética tro-
picalista com sua reprodução paródica do olhar do estrangeiro sobre o Brasil e sua elei­
ção de tudo o que nos parecesse a princípio insuportável. Eu mesmo lembro um exemplo
revelador: na canção"Baby"(cuja letra me foi quase toda ditada por Maria Bethânia),eu
usei a palavra "lanchonete" porque ela me dava náuseas quando lida em marquises ou
ouvida em conversas. Ela me parecia uma mistura monstruosa de francês com inglês e
era como o anúncio de uma vulgaridade intolerável que começa a tomar conta do mun­
do. Coloquei-a na canção e,se não posso dizer que aprendi a amá-la como o persona­
gem do Dr. Strangelove aprendeu a amar a bomba, é certo que passei a usá-la com natu­
ral delicadeza como se incluí-la numa canção significasse redimi-la — na verdade eu creio
que assim é.A primeira Coca-Cola da música popular brasileira, a de "Alegria, alegria" pas­
sou por caminhos semelhantes: eu detestava Coca-Cola e continuei detestando Coca-
Cola até bastante tempo depois de ter incluído seu nome na famosa canção — na verda­
de nunca cheguei a gostar muito desse refrigerante, apenas usei-o, a partir de um
determinado momento, como substituto do álcool para acompanhar o cigarro — mas
foi considerando o valor simbólico da Coca-Cola, que para nós queria dizer século xx, e
também hegemonia da cultura de massas americana (o que não deixava de ter seu teor
de humilhação para nós) que a incluí, um pouco à maneira dos artistas plásticos pop, na
letra da canção; e, afinal, o que é que me chamou a atenção no filme Terra em transe, de
Glauber Rocha, senão a ostentação barroquizante de nossas falências, de nossas torpe-
zas e de nossos ridículos? De todo modo, é numa canção tropicalista que se repete ob­
sessivamente a frase "aqui é o fim do mundo"— de fato, nunca canções disseram tão mal
do Brasil quanto as canções tropicalistas, nem antes nem depois. Com exceção, é claro,
das canções posteriormente criadas pelos próprios compositores do movimento ou pe­
los seus descendentes algo remotos: os melhores roqueiros dos anos 80. É de volta de
tais infernos que pretendo trazer visões utópicas.

• • •

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Quando saímos do Brasil em 1969 rumo ao exílio em Londres, passamos antes por Portu­
gal. Meu amigo Roberto Pinho me pediu que o acompanhasse até Cesimbra, onde ele ti­
nha um encontro com um senhor português que cuidava do castelo medieval da colina e
era tido como alquimista. Lembro de umas ovelhas de chifre revirado, que se punham per­
to do velho, como se fossem animais de estimação. E do mar muito azul rodeando de lon­
ge as muralhas de pedra. A uma certa altura, Roberto pediu que eu cantasse "Tropicália"
para o alquimista ouvir. Não lembro se cantei ou se apenas recitei as palavras da letra. Mas
estou seguro de que comuniquei a íntegra do texto ao português. Ao final, este me olhou
com uma expressão exultante e, com uma piscadela cúmplice a Roberto, apresentou a
mais insólita interpretação de"Tropicália"de que eu já tivera notícia.Tudo na letra era to­
mado à letra e valorado positivamente/Eu organizo o movimento" por exemplo, significa­
va que, não necessariamente eu, mas alguma força que podia dizer "eu" através de mim,
organizava um importante movimento, e"inauguro o monumento no Planalto Central do
país"era clara e meramente uma referência a Brasília como realização da profecia de Dom
Bosco. E pronto. Nenhum traço de ironia era notado, nenhum desejo de denúncia do hor­
ror que vivíamos então. Não lembro se sublinhei o trecho"uma criança sorridente,feia e
morta estende a mão"quando tentei explicar-lhe que minhas motivações para compor a
canção tinham sido o oposto de um ufanismo, mas é certo que tentei discutir o assunto.
Ele, que a princípio me parecera não imaginar outra razão possível para que eu escreves­
se tal canção a não ser a certeza feliz de um destino grandioso para o Brasil, não se mos­
trou surpreso diante de meus protestos e, rindo para Roberto e repetindo "eu sei, eu sei"
arrematou:"o que sabem as mães sobre seus filhos?" Naturalmente eu entendi que ele es­
tava certo de conhecer melhor as intenções da minha composição do que eu. Isto não era
novidade para mim: eu já sabia então que as canções têm vida própria e que outros po­
dem revelar-lhes sentidos de que seu autor não teria suspeitado.Tampouco me era de to­
do desconhecido o aspecto positivo que aquela canção dava à sua representação do Bra­
sil. E, mais que isso, eu não era inocente do fato de que toda paródia de patriotismo é uma
forma de patriotismo assim mesmo — não eu, o tropicalista, aquele que antes ama o que
satiriza (e, lembrando aqui da Coca-Cola e da lanchonete, não satiriza facilmente o que
odeia). Mas que aquele homem não quisesse levar em consideração que na minha can­
ção eu descrevia um monstro e que esse monstro confirmara sua monstruosidade agre­
dindo-me a mim, era algo que à medida que ia acontecendo ia-se-me tornando mais fas­
cinante do que irritante.

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Mas também eu não estava ali de todo inocente do fato de que eu não era estranho aos
interesses que uniam meu amigo Roberto e aquele suposto alquimista. O ponto de ligação
entre eles era o professor Agostinho da Silva, um intelectual português que foi perseguido
por Salazar e veio para o Brasil, onde participou da formação da Universidade da Paraíba, da
Universidade de Brasília, e que, durante o período dos grandes projetos culturais da Univer­
sidade da Bahia no fim dos anos 50 e início dos 60, organizou e dirigiu o Centro de Estudos
Afro-Orientais em Salvador e disseminou uma forma de sebastianismo erudito de inspira­
ção pessoana que atraiu algumas pessoas que me pareciam atraentes. Não foi sem pensar
neles que eu incluí a declamação de um poema de Mensagem, de Fernando Pessoa, no hap-
pening que foi a apresentação da canção"É proibido proibir"num concurso de música po­
pular na televisão em 1968. Um dos pontos mais ricos em sugestões para o estudo do Tro-
picalismo foi essa apresentação de uma composição primária em que eu, por sugestão do
empresário Guilherme Araújo, repetia a frase que os estudantes franceses do maio de 68 to­
maram aos surrealistas, acompanhado do conjunto de rock mais moderno do Brasil de en­
tão'^ o mais e melhor influenciado pelos Beatles"— os Mutantes — ,como uma introdução
planejada pelo músico erudito Rogério Duprat inspirada na música de vanguarda. Eu usava
uma roupa de plástico brilhante verde e preta e colares de correntes e tomadas, e meu ca­
belo parecia uma mistura do de Jimmy Hendrix com o dos seus acompanhantes ingleses
no Experience; no meio do número, eu gritava o poema de Pessoa:

Esperai! Caí no areal e na hora adversa


Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.

Que importa o areal, a morte e a desventura,


Se com Deus me guardei?
É O que me sonhei que eterno dura
É a Esse que regressarei!

Mas eu não tinha embarcado na viagem desses sebastianistas, nem como estudioso nem co­
mo, digamos assim, militante. Apenas me parecera interessante que houvesse gente falando
no Reino do Espírito Santo e numa futura civilização do Atlântico Sul, numa época em que

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todo o mundo falava em mais-valia e nas teses científicas de transformar o mundo através
da classe operária. Essas coisas me atraíam não por místicas (tenho um espontâneo horror
de misticismos), mas por excêntricas. E sobretudo foi por causa disso que eu entrei em con­
tato com o livro Mensagem , que revelou para mim a grandeza da poesia de Fernando Pes­
soa.Conhecia o Fernando Pessoa do"Poema em linha reta"e da"Ode marítima','também o
do poema do outro Menino Jesus e, naturalmente, o poeminha do fingidor: eram os poemas
que as meninas citavam, que muita gente lia em voz alta para mim, cujos trechos eram repe­
tidos de cor e que uma vez ou outra eu mesmo lia no exemplar de algum colega de faculda­
de. Sabia dos heterônimos e de algum folclore sobre sua vida e juntava aqueles poemas ao
repertório de poesia brasileira moderna (Vinícius, Drummond, Bandeira e Cecília, e depois
também Cabral) e isso era (com os negros de Castro Alves e os índios de Gonçalves Dias mais
os ciganos de Lorca) toda a poesia que eu conhecia. Com Mensagem era o Pessoa do poemi­
nha do fingidor que se adensava. Cada peça curta era um labirinto de formas e sentidos e,
mais importante que tudo, não me parecia possível que se demonstrasse mais fundo conhe­
cimento do ser da língua portuguesa do que nesses poemas. Meu poeta favorito — e o que
eu mais extensamente li — era João Cabral de Melo Neto. E diante dele tudo parecia derra­
mado e desnecessário. Assim também os poemas de Álvaro de Campos — que eram os mais
queridos das meninas. Mas com Mensagem eu me sentia em presença de algo mais profun­
do quanto a tratar com as palavras — por causa de cada sílaba, cada som, cada sugestão de
idéia parecer estar ali como uma necessidade de existência mesma da língua portuguesa:
como se aqueles poemas fossem fundadores da língua ou sua justificação final.

Todo começo é involuntário.


Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.

À espada em tuas mãos achada


Teu olhar desce.
"Que farei eu com esta espada?"

Ergueste-a, e fez-se.

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O fato de este livro (o único que Pessoa publicou em vida na nossa língua) ter como tema
o mito da volta de Dom Sebastião e da grandiosidade de um adiado destino português,
enobrecia, a meus olhos, os interesses daquele grupo de pessoas que cultivavam tais mi­
tos. De modo que, em Cesimbra, eu passei gradativamente do espanto de ver minha can­
ção "Tropicália" resgatada por uma visão que anulava sua contundência crítica, à relativa
adesão à perspectiva dessa visão: comecei a ver "Tropicália" — e a pensar oTropicalismo
— também à luz do sebastianismo, ou melhor, da m inha versão do sebastianismo, que
consistia em minhas adivinhações (de resto ainda hoje pouco informadas) do que fosse o
sebastianismo deles. Eu sabia que essa dimensão também estava em Glauber e, natural­
mente, em Ariano Suassuna; aquele, um tropicalista assumido, este, um inimigo mortal do
Tropicalismo. Eu, no entanto, sempre fui cético.
Já no meu segundo ano de exílio em Londres, por causa do mesmo Glauber — que
então filmava Cabeças cortadas na Catalunha e queria conversar comigo pessoalmente
sobre nobres tarefas e mesquinhas fofocas do cinema brasileiro, fui a Barcelona. Por causa
dos amigos que fiz ali através de Glauber, vi a amargura com que o povo da Catalunha so­
fria sua anexação a Castela e a humilhação de ter a sua língua materna esmagada pelo
castelhano. Ainda era a Espanha de Franco e, na Catalunha, era a época da nova canção
catalã de Pi de La Serra, Joan Manuel Serrat e Pau Riba. Um dia ouvi de um dos produtores
do filme de Glauber a versão da descoberta da América que começava por dar Colombo
como catalão de nascimento. Ele o afirmava com a mesma paixão com que ouvi alguns
sebastianistas brasileiros e portugueses falarem em provas de que Colombo era portu­
guês.Só anos depois é que um amigo no Brasil me deu de presente um livro de Unamu-
no em que ele falava de Portugal e da língua portuguesa com muito carinho e muita deli­
cada observação (ressaltar que a palavra"luar"não tem tradução em nenhuma outra língua
não é o menos interessante dos exemplos); pois bem, nesse livro, Unamuno falava da sen­
sação de culpa que o pensamento das línguas portuguesa e catalã traz à alma de um es­
critor espanhol. Mas, naquele momento, em Barcelona, eu senti a identificação de Portu­
gal com a Catalunha nas suas criações de fantasias compensatórias. O poema "Os
Colombos','do Pessoa de Mensagem, redime esse sentimento e, na sua grandeza, é já uma
superação de toda a inferioridade ao passo que propõe uma transcendência da mágoa.
No entanto, o português não é o catalão. Não só Portugal não ficou anexado à Espanha
como espalhou sua língua pelo mundo. E aqui estamos, falando português nesse imenso
pedaço do continente sul-americano. Somos muitos milhões. Nunca chegamos a ser um

318 - i VELO SO , Caetano. Conferência no m am


país bom. E grande parte de nossas mazelas vêm do fato de sermos portugueses. Ou, me­
lhor dizendo, vêm no bojo da maré baixa da cultura mediterrânea ou sul-européia que, por
sua vez, é uma marola da grande fuga da onda civilizatória das regiões quentes para re­
giões frias: Babilônia, Egito, Grécia e Roma deram lugar a Inglaterras e Alemanhas e Cana-
dás; Roma ainda está inteira em nós a assistir à aclimatação de suas conquistas em territó­
rios bárbaros, onde as idéias de agasalho, presteza e precisão se superdesenvolveram
comandadas pela vitalidade de homens determinados os quais como que transformaram
a chama da corrida humana em implacável e penetrante luz fria. O Renascimento, o Oci­
dente moderno, é fortemente mediterrâneo — Leonardo e Camões — mas seus desenvol­
vimentos boreais é que nos trouxeram até onde estamos, para o bem e para o mal, sobre­
tudo por causa da figura de Lutero. Os Estados Unidos são a última expressão desta grande
movimentação que, ao atingir o extremo Oriente pelo Japão e tigres asiáticos neocapitalis-
tas e pela China comunista, está, parece, em vias de fazer algum tipo de desvio de rota ou
virada de orientação. Não temos como mensurar o quanto devemos a esses minuciosos e
limpos pecadores do norte — Prometeus do fogo gelado que nos acenam com comunica­
ções rápidas e computadorizadas de informações cada vez mais complexas e mais facil­
mente manipuláveis. E também com prescrições legais que tenham em conta uma plurali­
dade de comportamentos nunca antes imaginada numa sociedade humana. Cresci
desprezando os entreguistas que adoram servir de lacaios do capital americano: na sua
forma arrogante de mostrar submissão vejo a mais abominável expressão de heterono­
mia. Mas sinto uma verdadeira identificação com americanos do tipo de Gertrud Stein, Walt
Whitman, John Cage (e também, em larga medida, os artistas plásticos pop dos anos 60),
que apostam numa afirmação da América. Enquanto que muitos dos nossos amigos ame-
ricanos"liberais''de esquerda me causam não raro um certo dissabor quando fazem uma
mistura de mistificação da Europa com mistificação do"terceiro mundo" para negar o que
há de perigosamente sugestivo na experiência americana. Quando Camille Paglia diz que
detesta a opinião pseudo-esquerdista dos meios universitários americanos de que a "Gran­
de, Má e Feia América é uma sociedade corrupta, vazia e gananciosa que toda essa gente
maravilhosa e benévola do resto do mundo olha com nojo" não posso deixar de concordar
com ela. Amo os Estados Unidos. Apenas não exijo do Brasil menos do que levar mais lon­
ge muito do que se deu ali, e, mais importante ainda, mudar de rumo muitas das linhas
evolutivas que levaram até a espantosas conquistas tecnológicas, estéticas, comportamen-
tais e legais. Sei que, por um lado, o Japão fez e faz isso em escala considerável, principal-

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mente no que diz respeito ao aspecto tecnológico, mas não só, e, por outro, que o Brasil
não parece encontrar sequer os meios de esforçar-se para se tornar capaz de fazê-lo. Mas
há algo nos Estados Unidos que não encontramos no Japão: a América, o translado, a terra
nova e os grandes espaços; a implantação de uma idéia em terreno tornado virgem pela
incapacidade mesma de considerar as culturas indígenas; a imigração variada, européia e
asiática, que trouxe mais nuances e diferentes problemas ao panorama social já na base
violentamente problematizado pela vinda forçada dos negros; um ar de liberdade de mo­
vimentos que nenhum lugar de cultura autóctone sedimentada pode de fato conhecer —
e isso o Brasil tem em comum com os Estados Unidos e com todos os países americanos. E
talvez o caso do Brasil nos induza a esperar dele experiências mais extremas. E aqui é o mo­
mento de tentar fazer o que fiz questão de frisar como sendo perigoso naquele arrazoado
de Borges a respeito do modo de ser Argentino: considerar vantajosas até mesmo as con­
dições adversas com que a história nos presenteou; fazer, por exemplo, do fato de não ter­
mos sido eficientes o suficiente no extermínio dos índios como os nossos irmãos do norte
— cuja eficácia nesse campo aprendemos a aplaudir nos filmes em que outro herói holly-
woodiano prova ser tão freqüente quanto o jornalista delator: o matador de índios — , e
mesmo o fato de vermos que ainda estamos efetuando com atraso, esse extermínio, uma
oportunidade de nos tornarmos índios ao passo que nos reconhecemos ultraocidentais. E
aqui quero citar um daqueles filósofos franceses cujas manias caricaturei mais cedo mas
que parece ser mesmo um grande sujeito: Gilles Deleuze que, naquele hilariante livro can­
didamente chamado O que é a Filosofia?, numa inacreditavelmente convincente jogada re­
tórica, diz do filósofo que ele "deve tornar-se índio para que o índio não sofra a miséria de
ser índio"Mas só ganha o direito de arriscar tais inversões quem se sabe engajado num so­
nho grande e luminoso. Só na perspectiva do país artista superior — que nós temos o de­
ver de perceber que somos e que a história nos sugere que sejamos — é que podemos re-
valorar aspectos do nosso atraso como sinais de que casualmente escapamos de uma
escravidão maior no misterioso desvelar do nosso destino.

Sei que posso ter apenas aumentado a confusão ao sublinhar o namoro doTropicalismo
com o pessimismo profundo. Não apenas uma paródia de samba exaltação é ainda um
samba exaltação assim mesmo, mas também, e talvez sobretudo, Jorge Ben — o autor da
totalmente afirmativa e isenta de intenções irônicas"País tropical"— era — como Jorge

320 -« VELOSO, Caetano. Conferência no m am


Ben Jor hoje é — nosso herói estético e psicológico. Contudo, eu creio ser quase desne­
cessário dizer que a alegria pura — beleza pura — de Ben-Benjor é da mesma natureza
daquela da Bossa Nova, apenas aqui num caso individual de expressão extrovertida agres­
siva. De resto, Jorge Ben surgiu no rastro da Bossa Nova e foi ainda sob sua luz que criou a
variante primária e vitalista de samba moderno que, mais tarde, pôde casar com formas
de rithm&blues.soul e funk. A canção "País tropical" é mais do que o avesso da canção"Tro-
picália":ela é o canto do homem alegre do país que os tropicalistas tinham em mira no
seu primeiro movimento de tentativa de sair do reino das sombras. O artista Jorge Benjor
é o homem que habita o país utópico trans-histórico que temos o dever de construir e
que vive em nós. No entanto, as minhas canções ainda são predominantemente longos e
enfadonhos inventários de imagens jornalísticas intoleráveis do nosso cotidiano usadas
como autoflagelação e como que olhadas de fora: até essa coisa desagradável de pronun­
ciar o nome de um outro país como emblemático repositório de mazelas sociais. Eu odeio
esse negócio de dizer o nome do Haiti naquela canção. Outro dia li que o meu colega Al-
dir Blanc — co-autor de tantos sambas magníficos — reivindicava a autoria da compara­
ção do Brasil com o Haiti (e talvez da minha referência à minha "Menino do Rio" ligada a
isso): eu não brigaria por ela. Só suporto — e mal — essa referência explícita ao Haiti (o
único país americano onde uma revolução escrava foi vitoriosa e fundadora da nacionali­
dade) porque meti ali a forma verbal "reze" Mas — embora talvez para pessoas parecidas
comigo (pois me custa crer nessas coisas) seja difícil engolir esta — nós somos escravos
das canções que fazemos: elas são canções, querem nascer do mundo das canções que é
um mundo com características próprias, nós freqüentemente as queremos fazer do modo
como não queríamos que elas fossem. O país utópico, eu o quero abordar aqui.
Uma das vantagens da nossa abominável situação é podermos pensar que tudo ainda
está por fazer. Dito assim, isso parece um lugar-comum estéril. E, pior, pode trazer a seguin­
te pergunta como complemento: e se justamente o Brasil tivesse sido uma grande opor­
tunidade que se perdeu irremediavelmente, deixando-nos apenas com a degradação so­
cial que é demasiadamente complexa para servir de papel em branco ou ponto de partida,
ou seja, se estivermos diante da mera entropia e não do caos inicial de onde se pode ex­
trair uma ordem bela? O fato é que tanto nas canções de 67 como nas de agora o que eu
vejo é a tensão entre esses dois últimos termos. Entropia /caos. Mas eu, eu mesmo, não o
mero escravo das canções, penso os aspectos entrópicos como problemas a superar —
deveres severos:temos que começar por ler como singeleza os sinais de trânsito nas cida­

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des. Por outro lado, amo o caos; não apenas como caldo de onde se destilará a nova or­
dem bonita, mas como desordem atual. O adjetivo "bonita" escolhido para qualificar a fu­
tura ordem desejada me parece revelar que o colorido do caos — o desequilíbrio onde
viceja a violência e a perversão e também o talento excepcional e a inventividade, os ca­
prichos e os relaxos, as vanguardas estéticas e os exotismos sexuais — , o colorido desse
caos, dizia, é absolutamente indispensável à composição da nação sonhada, da estampa­
ria das vestes do povo desse país do futuro. Ninguém disse melhor a natureza do nó que
estamos a tentar desatar do que Antonio Cicero — um intelectual de formação filosófica
acadêmica que trabalha também com música popular — nestas palavras que reli citadas
por Carlos Diegues num belo artigo sobre futuro e Brasil:

Podemos dizer que o paradoxo do Brasil está em, sendo capaz de oferecer a prefigura­
ção da solução de alguns problemas que poucos países conseguem efetivamente en­
frentar, não ter conseguido efetivamente enfrentar alguns problemas que muitos ou­
tros países já resolveram total ou parcialmente.

Tudo o que eu disse — e tudo o que estou por dizer aqui — está contido nessa fórmula
de Cicero;e não creio que eu possa dizer melhor:apenas dou testemunho de como em
mim esse modo de encarar o Brasil se desenvolveu com o colorido próprio das minhas
idiossincrasias e das minhas limitações.
Todo povo frustrado pode fazer fantasias compensatórias. Mas o que pensar quando
estamos na situação de criar tais fantasias e temos como matéria real um país novo, imen­
so, tropical, mestiço e de fala portuguesa — quer dizer, usando uma das línguas do Sul da
Europa que mais tem sofrido humilhações históricas depois de ser a que mais se espa­
lhou pelo mundo, a língua em que se escreveu o épico inaugural da dominação européia
sobre o globo, o grande épico da expansão ocidental? E, no entanto, freqüentemente so­
mos catalogados como não fazendo parte do "Ocidente" Devemos pensar assim:o mun­
do em que vivemos parece-se mais com o mundo da história remota da humanidade,
quando violentos avanços tecnológicos foram feitos, do que com Grécia e Roma. Estas se
entregaram ao cultivo das artes, das leis e das idéias, num ambiente tecnologicamente es­
tável amparado na mão-de-obra escrava. O curioso é que qualquer desvio extra-ocidental
do curso da história atual — mesmo que seja a temida e pouco falada liderança da China
sobre os não-ocidentais numa ação contra os atuais países ricos (eventualidade que já

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ouvi referida em tom alarmista na boca de conservadores americanos e em tom auspicio­
so na boca de sebastianistas portugueses) — poderá levar a uma retomada da ênfase gre-
co-romana nas virtudes pessoais e sociais, em detrimento do furor tecnológico. Ou seja:
pode levar o Ocidente de volta ao Ocidente. Um amigo meu, um dos mais significativos
representantes da contracultura dos anos 60, que sempre me impressionou pela inteli­
gência ao mesmo tempo livre e realista, enlouqueceu. Antes de sua loucura tornar-se fato
consumado, ele me confidenciou que tinha chegado ao limite de sua capacidade de pen­
sar, em busca de uma alternativa para a cultura ocidental e não conseguia sair dela: suas
respostas e soluções eram intransponíveis. No entanto, muito de sua energia tinha sido
gasta no esforço de ir além não apenas da injustiça social, da mediocridade e do subde­
senvolvimento, mas também do estágio em que encontrara a religião, o sexo e a própria
concepção do lugar do homem na natureza. Sendo paulista, o fato de ser brasileiro era
para ele um acaso de muito pouca importância para que fosse sequer considerado infeliz:
a perspectiva brasileira e a língua portuguesa eram para ele uma ferramenta neutra. É as­
sim que eu quero pensar. Mas, desde o início, sempre considerei meus desejos de mudar
o mundo como sinal de um movimento interno da história do Brasil, e cada pensamento
ambicioso meu, um esboço de aventura da própria língua portuguesa. Eu sei que os cul­
tores de mitos medievais que sirvam de inspiração para extremados nacionalismos mo­
dernos são a semente das regressões totalitaristas: um professor português de literatura,
autoridade em história das relações entre Modernismo brasileiro e Modernismo portu­
guês, me disse um dia a respeito do professor Agostinho da Silva, que, a princípio, temeu
que suas idéias,afinal,se identificassem com as de Salazar.Às vezes algumas afirmações
instigantes de Ariano Suassuna sobre o Brasil a mim me soam aparentadas com a famosa
frase de Salazar"prefiro ver Portugal pobre do que Portugal diferente" Ao contrário, eu
penso que o Brasil deve tornar-se o mais diferente de si mesmo que lhe for possível, para
encontrar-se. E também saber livrar-se da pobreza que desumaniza sua população. Deve­
mos, em primeiro lugar, aprender a observar as formalidades relativas aos direitos huma­
nos, e tornarmo-nos destros para a tecnologia. Devemos estar à vontade na versão de Oci­
dente que veio do Norte. E superá-la. Não se trata de uma adaptação ao que é ocidental,
como se espera de países asiáticos e africanos. Somos ocidentais. Mas ocidente sempre
significou transcendência da particularidade cultural, ambição de tomar nas mãos a his­
tória da espécie. Assim, amar a língua portuguesa é amar sua capacidade como instru­
mento universal; falar português é livrar-se da prisão do português. Outro dia, um econo-

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mista americano esteve aqui no Rio — um que fazia propaganda do livre mercado como
salvador das vítimas do Estado, e aconselhava a que abríssemos nossa rede de vôos do­
mésticos às empresas aéreas americanas — esse economista (aliás um americano negro)
esteve aqui e disse que se orgulhava de só falar inglês e não querer aprender nada de ou­
tras línguas pois o inglês é a língua do futuro. Ao ler essas declarações, pensei imediata­
mente: não é assim que eu amo a língua portuguesa. A língua em que Fernando Pessoa
escreveu/U Ocidente, futuro do passado'.'.. Para nós, não se deve tratar de uma adaptação
ao que hoje se chama de Ocidente, mas de uma sua retomada radical que implique uma
sua superação. Neste estágio está a minha loucura.
Naturalmente, tenho capacidade para a sensatez: mesmo sem estudar a constituição
de 88, concluo que há conquistas ali que devem ser defendidas, com unhas e dentes, con­
tra qualquer ameaça — o exemplo indiscutível que me ocorre é a independência que foi
dada ao Ministério Público. Mas não me sinto inclinado a participar do horror ao capital
estrangeiro ou da defesa das estatais. Quando leio artigos de Roberto de Campos vêm-
me à mente,em primeiro lugar,perguntas.Desde oTropicalismo — desde antes doTropi-
calismo — que me interessa saber o que o Brasil diria ao mundo se ele pudesse se fortale­
cer; o modelo econômico para chegar a esse fortalecimento sendo de importância
secundária. É evidente que, em 1963, os comandantes da economia mundial não deixa­
riam o Brasil fazer as reformas que as parcelas minimamente esclarecidas de seu povo exi­
giam. Menos ainda a revolução comunista que algumas elites políticas preconizavam.
Aquelas parcelas minimamente esclarecidas estão longe de ser uma pequena minoria:fo-
ram elas que quase elegeram Lula em 89. Mas uma cubanização do Brasil — com sua ex­
tensão territorial, sua industrialização e o tamanho de sua economia — teria sido uma he­
catombe política mundial. Porém, o que me interessa é perguntar: com uma revolução
bem-sucedida, o que o Brasil daria ao socialismo, o que o socialismo brasileiro daria ao
mundo? Hoje é fácil responder que talvez nada: dado o histórico de nossa incompetência,
apenas somaríamos ao sombrio mundo comunista mais um gigante com câimbras buro­
cráticas e boçalidade policial. Mas o fato é que nos impediram — e nós mesmos, afinal,
nos negamos — esse caminho e temos sido levados à condição de maior fracasso econô­
mico do continente, sendo visível o gosto da imprensa americana em opor nossa inépcia
à propalada maturidade atingida, nesse campo, pelo Chile, pelo México, pela Argentina —
e não só! Há um alívio em ver que não é mais preciso pensar que, para onde for o Brasil,
irá a América Latina, pois o Brasil não vai a lugar nenhum.

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No entanto, a escandalosa insensatez também me guia. 0 já citado professor Agosti­
nho da Silva costuma dizer que Portugal já civilizou Ásia, África e América — falta civilizar
Europa.Tal inversão petulante encontra eco dentro de mim. Descartado o risco de ser a
expressão do ressentimento contra a luminosidade boreal vitoriosa, por parte de obscu­
ros perdedores da história, essa exortação se identifica com minha idéia de radicalização
do Ocidente implicando sua superação. Nessa perspectiva, o Brasil não precisa provar que
tem caráter e é uma promessa de originalidade. Nem a má imagem que dele se fazem ho­
je os brasileiros, nem a emigração em grandes números para países mais ricos podem apa­
gar a força do que somos nem o sentido que tem o modo como o acaso nos tem tratado.
A Irlanda, do meio do século xix ao início do século xx, esmagada sob a opressão inglesa,
perdeu, por emigração, metade de sua população. As coisas lá nunca se acertaram: a ira
santa contra a Inglaterra levou os irlandeses até a prática de um terrorismo que não se
pode chamar de"esquerda"Ninguém, no entanto,aopronunciaronomedalrlanda, pensa
num mero e pedestre fracasso. E não se pensa só em Joyce, Wilde, U2, Sinead 0'Connor,
Yeats ou Neil Jordan,que marcaram o mundo usando a língua do opressor— pensa-se
no fogo irlandês, na teimosia, nos cabelos de Maureen 0'Hara e no álcool. A Irlanda pode
nunca superar suas chagas, mas é algo cuja grandeza reconhecemos. Mas o Brasil, que não
é apêndice da língua inglesa, é algo cuja grandeza em potência se põe na condição de
país novo americano, com o mito da tábula rasa e o mito da democracia racial. M as"0 mi­
to é o nada que é tudo': A insensatez, assim, me leva a dizer que, pelo Brasil, o gosto da ci­
vilização ocidental inicial — Grécia, Roma — e o gosto mediterrânico e florestal — Israel
(grandemente Israel, que nunca foi potência econômica ou militar para dar ao mundo o
arsenal de idéias e estilos que deu), mas também o Islam e Jesus (filhos de Israel), e Olo-
dumaré, Dioniso, Uirá — podem e devem tomar nas mãos as rédeas do mundo,fazendo-o
transcender o estágio nórdico e sua ênfase bárbara na tecnologia.
Assim, um dia, passando pela porta da puc no Rio, vi vários jovens de ambos os sexos
entrando nos jardins da universidade, em meio a outros transeuntes que esperavam o ôni­
bus, carregavam encomendas etc. Pensei na informalidade das roupas de todos. E lembrei
de como, em 66, me parecera um escândalo de repressão que alguns cinemas em São Pau­
lo exigissem paletó e gravata. Pensei em como, nos anos 60, lutamos contra hierarquias e
superindividualizamos a moda. Depois, dos anos 70 em diante, muitas vezes sofri ao ver a
vulgaridade dos trajes anarquicamente usados em toda a parte: senhoras em bermudas
apertadas e camisetas com a cara do Mickey entrando em bancos; aeroportos cheios de

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pernas peludas sustentando verdadeiros cartazes com palavras em inglês. O equivalente
hoje da elegância discreta é a farda jeans com blusa e sapatos para todas as classes — e o
resto parece lixo. No entanto, há, sobretudo em cidades praianas — mas recentemente
observei sensação semelhante no interior de Minas — como o Rio de Janeiro ou Salvador,
uma alegria da informalidade e da exibição ao sol e ao vento de grande parte do corpo.
Essa alegria apenas está pervertida, conspurcada pelo clima de autodesprezo moral, pela
ignorância e pela corrupção. Imaginei então o Brasil encontrando e inventando natural­
mente novas formas de vestir. E novas e mais delicadas hierarquizações dessas formas.
Uma nova civilização de belas, leves e solenes roupas pequenas no cobrir e grandes no
significar e no encantar. Vi o Egito. Um novo Egito. Vi Atenas imensa e sem escravos. Ima­
ginei a sutil diferença entre a veste do aluno e a do mestre, na Universidade Brasileira. E a
variedade das roupas de inverno no Sul. Um dos mistérios de nosso tempo é o que cha­
mamos de arte moderna. Uma das suas maiores fascinações, a idéia de vanguarda. Outro
dia, aqui mesmo neste museu,fui convidado pelo poeta Haroldo de Campos a participar
de uma leitura da peça nô japonesa Hagoromo — O manto de plumas. A tradução de Ha­
roldo era também uma homenagem a Hélio Oiticica, e me sugeriram que eu usasse um
seu "parangolé" numa espécie de "performance" Esses objetos enigmáticos, feitos para
vestir, foram virando, à medida que eu tentava comentá-los, o que eles devem ter sido des­
de sempre para Hélio: a roupa transcendental. E enquanto eu ridicularizava, ao mesmo
tempo, a impossibilidade de a gente se decidir diante de criações tão arrojadas, e a nova
costura japonesa (na verdade, amo intensamente ambas), fui realizando tantas modalida­
des de usar o parangolé, que atingi o ponto em que para mim era vívida a relação que Ha­
roldo fazia entre a experiência de Hélio e a peça nô — o que levara a apelidar sua tradu­
ção de"Parangoromo"0 manto de plumas da peça é o que possibilita a volta do ser celestial
anjo-anja ao céu do céu. Nessa perspectiva o parangolé ganha seu sentido final de rou-
pa/não-roupa da transcendência permanente.Vi então Haroldo como um poeta altíssi­
mo que me induzira a essa revelação. Ele tinha vinculado a subida ao monte sagrado da
peça nô à subida de Hélio ao morro da Mangueira, alando anjos mulatos com mantos eter­
namente ilegíveis e eternamente sugestivos. O figurinista Cao me disse que o artista plás­
tico Luciano Figueiredo lhe explicou as rígidas normas que Hélio se impunha na execução
dos parangolés. Devem ser os rigores do programa de criação de um mundo novo. Emen­
do sido o nome de uma instalação de Hélio de 1966, que, via homem do Cinema Novo Luís
Carlos Barreto, veio a apelidar aquela minha canção — "Tropicália"— que, por sua vez, deu

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nome ao movimento — Tropicalismo — , enfiei a relação Japão-parangolé/Céu-Manguei-
ra; que Haroldo sugerira, numa interpretação dos parangolés como uma profecia de Hé­
lio. Claro que eu gostaria que surgissem figurinistas brasileiros tão avant-garde quanto os
japoneses. Mas o que eu espero do Brasil é uma revolução na história do traje, pontuada
por algumas personalidades, mas de força coletiva. Uma das razões por que eu gosto de
manter uma produção de canções"de massa"é a vontade de reequilibrar a média da cria­
ção pop brasileira a cada passo, em detrimento de um possível afastamento para pesqui­
sar algo fundador. É como se fosse um não-querer estar demasiado à frente, ou acima ou
à margem.Talvez o Hélio já tivesse, antes de morrer, começado a me desprezar por isso.
Mas para mim,é irresistível:o fato de uma canção como"Filhos de Ghandi"de Gil,ter de­
sencadeado, por sua beleza específica, uma avassaladora mudança da postura do negro na
Cidade da Bahia, fazendo renascer aquele afoxé quase extinto e multiplicando o surgi­
mento de outros, é, para mim, de grande importância como sugestão de para onde dirigir
a ambição. O psicanalista italiano afrancesado Contardo Calligaris, que, tendo se apaixo­
nado pelo Brasil, escreveu um livro devastador das nossas possíveis esperanças, respira
por um momento para dizer, diante da estapafúrdia estranheza das letras dos blocos afro
de Salvador e suas descrições de um Egito idealizado, que talvez nessas projeções dos
poetas populares do carnaval da Bahia esteja o nosso único esboço de um projeto de iden­
tidade e nacionalidade. Nesses Egitos e Madagascares e Etiópias de delírio, podem estar o
país (que nós não somos) e o nome (que nós não temos). Mas meu nome é Caetano por­
que nasci no dia de São Caetano e o nome do país é Brasil por causa do pau. E só os idio­
tas tomam a antropofagia de Oswald de Andrade como uma metáfora-justificativa de
ecletismos impotentes. A versão tropicalista levou ao Egito dos blocos, à regeneração do
mercado de música popular no Brasil, à elevação do nível intelectual de sua produção e
sua crítica, a um outro tipo de diálogo com os estrangeiros. Para mim tem grande signifi­
cação que a canção"Sam pa" leve muitos paulistanos a me agradecerem por eu ter des­
pertado o narcisismo básico de que a cidade necessitava para poder seguir e que já pare­
cia quase irremediavelmente perdido. Um outro europeu que também se espantou com a
liberdade com que escolhemos e a freqüência com que usamos os prenomes no Brasil, o
antropólogo Claude Lévi-Strauss (aliás personagem da minha canção"0 estrangeiro','por
ter achado a Baía da Guanabara muito feia), no capítulo dos seus Tristes trópicos dedicado
a São Paulo, onde ele faz um retrato em princípio desalentador da vida intelectual brasi­
leira (Oswald de Andrade deve ter-lhe parecido mais indigesto do que ao Calligaris), diz

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que aqui, no contato com seus alunos da então recém-inaugurada usp, aprendeu, vendo-
os "transpor em poucos anos uma diferença intelectual que se poderia supor da ordem
de muitas décadas,como morrem e como nascem as sociedades";e que"essas grandes
subversões da História, que parecem, nos livros, resultar do jogo de forças anônimas agin­
do no coração das trevas, podem também, num claro instante, realizar-se pela resolução
viril de um punhado de crianças bem dotadas"Na canção"Um índio"— um dos momen­
tos de tentativa de superação do pessimismo tropicalista e que, na verdade, se parece mui­
to com esta palestra aqui, eu inseri o verso "num claro instante" tirado ipsis litteris da edi­
ção brasileira de Tristes trópicos que o próprio Lévi-Strauss (que certamente odiaria ouvir
algo seu metido numa canção pop) ajudou a traduzir.
No início desta conversa, distingui entre fazer projetos para o futuro e sonhar. Nossos
projetos devem ser no sentido de resolvermos o problema da distribuição de renda entre
nós, de amadurecermos uma noção de cidadania, de elevar nosso nível de competência.
Nossos sonhos devem ser imensos e de libérrima originalidade. Um jornalista americano,
que outro dia me entrevistava, estranhou que, em minhas ambições para o Brasil, eu enfa­
tizasse a originalidade e não a força, a riqueza ou o poder. De fato, não penso num super-
desenvolvimento de nosso poderio militar nem numa dominação econômica de outros
povos. Penso no poder transformador dos nossos jeitos se apenas sairmos da miséria. O
índio daquela minha canção é o mesmo índio dos árcades e dos românticos — símbolo
da nacionalidade que, na Bahia, vemos a cada 2 de julho desfilar em procissão que supera
qualquer paródia tropicalista — mas é também o Juruna que se elegia deputado, é um
representante da tribo que Egberto Gismonti fora visitar, e é um sobrevivente da última
chacina, ou o espírito de um dos seus mortos; em suma, é um personagem muito mais
complexo e com o qual temos muito maior intimidade. E dele se diz que virá "mais avan­
çado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias"0 que será que nos faz
pensar, num país atrasado quanto às pesquisas científicas e às conquistas da informática,
que podemos daqui antever ou entrever melhor o espírito do homem que saberá organi­
zar belamente sua vida a partir de um sentir-se não num universo mas, usando a expres­
são que li no último livro daquele que foi na verdade o primeiro influenciador doTropica-
lismo — o francês Edgar Morin — , num "pluriverso polimorfo"que a novíssima ciência
(que descobriu os pulsares exatamente no ano de 1968) nos insinua?

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Depois de tanto falar, e com tanta pose, fica-me faltando explicar por que disse ter sido ou
ser oTropicalismo superestimado.Como — se eu aceito falar num evento para o qual se
convidaram verdadeiros grandes poetas? E como faço tantas referências a autores sérios
com tamanho ar de bonomia? E como vinculo as imensas ambições (dignificadas pela ci­
tação pertinente de tantos nomes célebres) ao movimento tropicalista? Bom, em primei­
ro lugar, vale lembrar o que se lia nos muros de Paris em 68:"cultura é como geléia: quan­
to menos se tem mais se espalha! Não conheço de Unamuno, por exemplo, quase nada
além do que usei aqui nesse arrazoado. Uma vez, respondendo a uma minha provocação
irresponsável, José Guilherme Merquior nos chamou, a mim e a todos os componentes do
mundo dos espetáculos, de subintelectuais de miolo mole. Sempre achei essa expressão
bem cunhada. A meu ver ela não perde sua força cômica por eu ser capaz de escrever as­
sim. Mas o que me leva a reafirmar que houve uma superestimação doTropicalismo é a
certeza de que, apesar da boutade de Merquior, há um consenso hoje, no Brasil, a respeito
da grandeza do que fizemos, quando quase nada fizemos além de chamar a atenção para
o fato de que temos um dever de grandeza. Acho que nós brasileiros nos contentamos
com muito pouco. Os nossos discos daquela época — sobretudo os meus — são de um
amadorismo imperdoável. Este é um problema que vimos tentando superar a pouco e
pouco, mas, à medida que conseguimos alguns avanços, os anos desfazem as configura­
ções que deram mom entum aos sentidos que insinuamos. Mas ainda acho que eu estar
hoje aqui, dizendo o que disse, porta, em combinação rítmica com o resto de minhas ati­
vidades, algum teor de poesia não de todo desprezível. E essa poesia quer dizer, pelo me­
nos, que há graça em existirmos.
Para finalizar, eu quero dizer uma poesia. São estes versos do poeta romântico mara­
nhense Sousândrade,que seriam para mim meramente enigmáticos se não me pareces­
sem uma formulação adensada do meu próprio pensamento:

Brasil é braseiro de rosas


A União, estados de amor.
Floral: sub-espinhos daninhos
Espinhal: sub-flor e mais flor.

[Texto integral da conferência proferida no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 26 de outubro

de 1993, no contexto do evento Enciclopédia da Virada do Século / Milênio]

Teresa revista de Literatura Brasileira [4 | 5]; São Paulo, p. 307-329,2004. r- 3 2 9

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