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6 Janette Oke - Quando Chega o Amanhã

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Série Oeste Canadense Livro 6

Q UANDO

chega o
AmanhÃ

Copyright © 2001 by Janette Oke


Originally published in English under the title When Tomorrow Comes by Bethany
House Publishers, a division of Baker Publishing Group, Grand Rapids, Michigan,
49516, U.S.A.
All rights reserved.
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA UPBOOKS
Rua Francisco Otaviano Queluz, 103
Braz Cavenaghi, Itapira, SP - 13976-508
www.upbooks.com.br

Direção e tradução Eneas Francisco


Edição e copidesque Carla Montebeler
Ilustração da capa
Dyene Corrêa Nogueira
Tradução e copidesque Tully Ehlers
Janette Oke
Q UANDO

chega o
AmanhÃ

1ª EDIÇÃO
ITAPIRA, SP
2021
Com profunda gratidão
a Deus
por Seu auxílio infalível,
orientação e respostas às orações,
em todos os aspectos da minha vida.

Deus é sublime —
e Deus é bom.
Capítulo 1
O
vento despertou Christine, golpeando ramos contra a janela cheia de gelo e agitando
cristais de neve com uma força incontrolável nas laterais da pequena cabana de
madeira. Soava no fundo da chaminé de tijolos de barro uma lastimosa melodia,
como se fosse algum ser místico.

Sem abrir os olhos, Christine sabia que aquele não ia ser um dia agradável. Mas
sorriu com estranho contentamento, e encolheu-se ainda mais debaixo das cobertas
aquecidas de sua cama.

O bramido abafado do vento do Norte a fez voltar muitos anos antes — aquela era
mais uma sensação do que uma memória propriamente dita. Não era medo o que
sentia quando era criança e ouvia o uivo do vento numa manhã invernal. Nem se
sentia também frustrada ao ter que ficar dentro de casa, por causa da neve. Não, o
que sentia era uma sensação de aconchego, de contentamento. Ela espalhava seus
livros ilustrados favoritos diante da lareira, onde estalava a madeira de pinho, e
sentia cócegas nos pés por causa do pelo macio do tapete de pele de urso onde
costumava se deitar. Podia quase sentir o aroma do mingau quentinho preparado
para o café da manhã, e sentia o estômago roncar.

Ao pensar nessa época, Christine se sentiu quase uma criança novamente. Segura,
protegida, aquecida e amada. Era um sentimento delicioso, estar fortemente
envolvida com seu cobertor de lã Hudson Bay.

Deixando de lado seu devaneio, Christine se mexeu com relutância. Não pôde
deixar de se questionar o que seria mais agradável, se puxar as cobertas até o queixo
e ficar ouvindo aos brados implacáveis, porém fúteis, do furioso intruso, que
parecia decidido a infligir sua vontade aos ocupantes da casinha; ou sair da cama
para assistir a tempestade consumir sua fúria na segurança de seu quarto.

A força bruta da tempestade fez Christine recordar que os pais, habitantes de longa
data do norte, tinham mais uma vez superado o pior da natureza. Não importava a
forma como os atingia, como lutava e se enfurecia, eles estavam quentes e seguros.
As paredes da cabana que o pai construíra para a família ainda estavam robustas e
fortes. O pequeno alpendre, orientado à leste, tinha uma pilha alta de madeira de
pinho e bétula. A luz dos candeeiros da manhã estava extinta e bruxuleante. Ela
sabia que a cozinha já estava aquecida e perfumada com o aroma de café e torradas
de canela.
Por fim, Christine não conseguiu resistir. Passou as pernas pela beirada da cama, na
intenção de ignorar o frio do quarto, enquanto procurava, à meia luz, o roupão que
tinha atirado na noite anterior sobre a cadeira ao lado da cama.

Ao sair do quarto amarrando o roupão na cintura, Christine pode ver a luz do fogo
aceso na sala de estar e um feixe de luz de amarelo pálido que passava pelo umbral
da cozinha. Dirigiu-se diretamente para lá, sabendo exatamente o que ia encontrar.

O pai estava sentado à mesa, e já tinha uma xícara de café fumegando na mão. A
mãe estava no grande fogão de ferro, mexendo uma panela com o irresistível
mingau quente. Uma pequena pilha de torradas era colocada no forno aquecido
enquanto o mingau era servido. O cão, com a cabeça sobre patas, estava esticado no
tapete junto à porta — para o caso de alguém resolver decidir que era seguro
arriscar um passeio na rua.

A mãe de Christine virou-se ao ouvir os passos leves.

— Acordou cedo — observou Elizabeth com um sorriso. — Pensei que ia dormir


até mais tarde. Esse dia vai ser um dia pra gente ficar perto do fogo.
Christine assentiu e foi até a única janela da sala.
Com as pontas dos dedos, arranhou a camada de gelo.
— Ouvi o vento. Estava aconchegante debaixo das cobertas, mas não resisti vir dar
uma olhada na tempestade.
Wynn mexeu-se.
— Nunca resistiu — comentou ele balançando a cabeça de leve. As palavras foram
pronunciadas como uma declaração, mas também parecia haver a insinuação de
uma pergunta persistente. O que é que havia nas tempestades que parecia atrair a
Christine?
— Nunca tivemos uma tempestade boa de verdade, em todo o tempo em que estive
em Edmonton — comentou Christine. A voz dela soava quase melancólica, mesmo
para seus próprios ouvidos. — Ah, nevava sim, caía muita neve. E o vento soprava.
Mas ele nunca conseguia fazer muito progresso entre todos os prédios altos. Nunca
o ouvi uivar e chorar como aqui.
Ela não pôde deixar de acrescentar um pequeno risinho à ironia daquelas palavras e
a saudades que ainda sentia desse tipo de tempestade.
Elizabeth se virou um pouco, e disse:
— Gosta desse som?
Elizabeth literalmente estremeceu.
Christine espreitou através da abertura que tinha conseguido raspar na geada da
vidraça.
— Acho que sim.
Christine riu novamente.
— Bem, pelo menos já não tenho mais que me preocupar com o seu pai. Costumava
ficar acordada metade da noite para orar, doente de tão preocupada.
Christine virou-se da janela e da imagem da brancura rodopiante, dos galhos da
árvore balançando. Sim, ela também lembrava. Christine também tinha passado por
sua cota de preocupações durante noites de tormenta. Por mais que Elizabeth tivesse
tentado manter seus medos para si, quando Wynn estava fora numa tempestade,
Henry e Christine percebiam quando a mãe estava inquieta e ansiosa. Christine
recordou as corajosas tentativas de Henry para tranquilizar a mente de Elizabeth:
“O pai está acostumado com as tempestades. Ele sabe o que fazer”.
A mãe sorria, concordava e sugeria que fizessem pipoca, ou que fossem jogar ao
relógio, mas o olhar assombrado jamais abandonava seus olhos.
Christine amarrou o cinto do robe mais apertado e cruzou a sala até à bacia que
ficava no canto, para se lavar para o café da manhã. Ela também estava aliviada,
mais do que a mãe imaginava, com o fato de o pai não estar na trilha hoje, com a
temperatura caiando continuamente e o vento amargo formando uma espessa borda
branca no pelo da sua parka. Os olhos de Christine procuraram os de Wynn.
— Precisa ir a algum lugar hoje?
Ele assentiu com a cabeça.
— Sim, mas só daqui algumas duas horas.
Novamente o olhar de Christine se dirigiu à janela, que ainda mostrava pequenos
sinais de luz matinal.
— Então... por que você não dormiu até mais tarde, hein? — perguntou Christine
com a voz brincalhona.
— Hábito.
— E você?
Ela virou-se para a mãe.
— Tenho que me levantar para preparar o café para o Hábito — Elizabeth
respondeu brincando.
Wynn riu. Christine sabia que ele fazia o café da manhã com tanta frequência
quanto a mãe, mas deixou passar esse detalhe.
— Ambos desperdiçam boas horas de sono — ela os repreendeu com bom humor.
Wynn balançou a cabeça.
— Nós não as desperdiçamos. Essas horas são perfeitas para momentos de sossego.
Nós lemos, conversamos. Nós apenas... nos ajustamos para o dia.
Elizabeth tirava outra tigela do armário.
— Quer se unir a nós para partilhar o mingau?
— De que é? Eu não gosto...
— Eu sei quais você não gosta. Esse é de farinha de aveia. Sem centeio.
— Eu quero um pouco.
— Pegue os talheres e uma xícara.
Christine foi até o armário.
— E talvez seja melhor preparar mais alguns pedaços de torrada — instruiu a mãe.
— Eu não contava que você fosse acordar tão cedo. A geleia de morango está na
despensa.
Uma rajada de vento mais forte fez estremecer a pequena casa. Até o cão levantou a
cabeça e grunhiu.

— Oh... vai ser um milagre se eu não tiver telhas para substituir depois dessa
tempestade. — comentou Wynn com ironia. — Vai ser como arrancar tudo até às
tábuas. Nem sei quanto tempo faz que não ouço um vento tão bravio.

Christine levou a xícara e o bule de café para a mesa. Encheu novamente a xícara
do pai, serviu a mãe e a si mesma, e o colocou de volta no fogão. De fato, o vento
estava bravio. Mas Christine sentia-se tão bem por estar segura e aquecida. De uma
forma estranha, sentia-se favorecida. Especial.

— Oh minha nossa... espero que eles não estejam sofrendo esta tempestade nas
pradarias. Detestaria pensar que Henry...
— Francamente. O Henry é totalmente capaz de tomar conta de si mesmo. Ele tem
um forte treinamento de sobrevivência e sabe...
Christine concordou com o pai, mas não conseguiu esconder o sorriso.
O papel tinha se invertido agora. O pai estava tentando assegurar a mãe sobre o
filho, não era mais o filho afirmando que o pai ficaria bem na tempestade.
Wynn estendeu uma mão tranquilizadora para segurar a de Elizabeth quando ela se
sentou na cadeira ao lado dele. Ela forçou um sorriso e um aceno, mas Christine
notou que, mais uma vez, a preocupação não deixava realmente os olhos dela. Os
dedos da mãe se entrelaçaram à mão que segurava a sua como se estivesse agarrada
à promessa que acabara de fazer.
— O Henry telefonou? — perguntou Christine, assumindo a cadeira no lado oposto
da pequena mesa.
— Não, desde a semana passada.
— Pensei que ele tinha dito que nos avisaria assim que ele e Amber decidissem a
data do casamento.
— Ele disse isso mesmo. Portanto, creio que ainda não decidiram.
Outra rajada de vento sacudiu o vidro da janela.
— Espero que não esperem que viajemos nisto.
O olhar de Christine dirigiu-se para a janela.
— A tempestade vai se extinguir num instante. É sempre assim — respondeu o pai.
Era verdade, as tempestades não duravam muito tempo. Mas quando uma
tempestade o segurava em seu abraço gelado, parecia que nunca pretendia deixá-lo
partir.
— Está mesmo nevando ou está apenas soprando o que caiu ontem à noite?—
Christine questionou.
Wynn riu.
— É difícil dizer. Levei o cachorro para passear mais cedo, e não se conseguia ver
dois palmos na frente do nariz. Uma parte era a escuridão, mas mesmo na luz das
janelas, continuava sem conseguir enxergar.
— Acho que não vou conseguir ir embora hoje — Christine murmurou num
suspiro.
Elizabeth olhou para cima, com os olhos arregalados.
— Você não estava planejando...
— Não, não de fato — Christine se apressou a tranquilizara mãe. — Mas tenho
mesmo que ir procurar um emprego. Não posso simplesmente ficar sentada aqui e...
— Pensei que tínhamos concordado que você ia esperar para ir depois do casamento
do Henry.
Christine deu de ombros.
— Sim, a senhora sugeriu isso. Mas parece que o Henry não está com muita pressa
para marcar a data. Não posso simplesmente ficar aqui sentada, sugando você e o
papai.
— Você não está nos sugando. Gostamos de tê-la conosco. Sua companhia
compensa muito mais do pouco que come. Tem sido maravilhoso ter você aqui,
ajudando a cuidar o jardim, a limpar a adega e juntar as folhas com o ancinho, e...
Christine sorriu conforme a lista continuava. Era bom ser útil em casa. Mas ela era
adulta agora. Já tinha experimentado o que significa ganhar o próprio sustento. Ela
precisava realmente se manter fora desse ninho aconchegante e confortável, e
cuidar de si mesma.
Embora a cozinha estivesse aquecida,, Christine sentiu um arrepio ao pensar em
voltar para a cidade. Ela realmente não era uma moça da cidade. Adorava a
abertura, a liberdade do vasto céu. A natureza, mesmo em sua ferocidade, era uma
com a sua alma.
A cidade parecia afogá-la na velocidade, na aglomeração e na humanidade
apressada.
— Será que o senhor Kingsley vai te dar uma referência?
Isto causou outro arrepio na alma de Christine. Será que o senhor Kingsley, o antigo
patrão, ainda estava zangado por ela ter se recusado a se casar com o filho? Em caso
afirmativo, será que ele estava sendo justo? Ela tinha sido uma funcionária
satisfatória. Não mais do que satisfatória. Ele tinha demonstrado preferência pelo
trabalho dela ao das outras secretárias do escritório. Certamente ele não
comprometeria uma futura posição por puro despeito.
Mas Christine não tinha certeza. Talvez fosse mais sensato não se arriscar a pedir ao
homem uma referência.
— Não sei — respondeu ela à mãe, com a voz baixa e tensa.
— Bem, conseguiu o primeiro emprego sem uma referência. Tenho certeza de que
pode fazer isso novamente.
O pai parecia bastante confiante de que Christine não teria problemas para
conseguir um emprego.
— Queria que houvesse algum lugar aqui... — Christine não terminou o
pensamento. O vento parecia incapaz de perturbar a ideia, deixando o pensamento
ali pairando, para que cada um ao redor da mesa refletisse no assunto mais uma vez.
Já tinham conversado antes, na tentativa de pensar em algum trabalho para
Christine na pequena cidade, para que não precisasse se afastar da família mais uma
vez. “Mesmo que você se mudasse para uma casa própria, perto daqui — embora
saiba que é bem-vinda aqui pelo tempo que desejar... — era o que dizia Elizabeth.
Mas todas as vezes essa tentativa fracassava. Parecia não haver nada para Christine
na cidadezinha ou nas cidadelas vizinhas.
— Talvez você devesse aceitar o convite da tia Mary, para se juntar a eles em
Calgary.
Elizabeth parecia estar totalmente absorta na tarefa de espalhar marmelada em sua
torrada.
— Mas é tão longe de casa.
— Pelo menos estaria com a família. E o trem...
— O trem é um pinga-pinga, para em todas as cidadezinhas ao longo do caminho.
Pensei que nunca chegaria a Calgary da última vez. Mesmo assim, eu ainda teria
que...
— Eu sei — Elizabeth suspirou. — É difícil. Continuaríamos separadas por muitos
quilómetros.
— Preciso ter meu próprio carro, isso sim. Assim eu poderia...
— Misericórdia! — Elizabeth disse, atirando as suas mãos para cima. — Assim eu
nunca mais ia conseguir pregar o olho. Com o seu próprio carro — sozinha —,
dirigindo por toda a zona rural. Ora, eu jamais teria paz de espírito.
— Oh, mãe!
— É verdade — Elizabeth se defendeu. — Já é ruim o bastante ter o Henry num
carro — e ele sendo um homem. Mas você... E se um pneu furasse ou...
— Eu o trocaria.
— Como você poderia... ?
— Com um macaco. Todos os carros têm estepes. Basta apenas... bem, eu viu um
homem trocar um uma vez. Não pareceu tão difícil. Qualquer mulher poderia trocar
um pneu.
Elizabeth ergueu os olhos para o teto e levantou as mãos novamente. Wynn riu. Lá
fora, a tempestade ainda bramia.
— A senhora preferia que eu saísse com uma matilha de cães?
A pergunta foi feita de forma provocativa, mas Elizabeth não estava disposta a
aceitar a brincadeira.
— Sim, acho que preferiria. Pelo menos os cães não ficam sem pneus ou param de
repente, ou... fervem e soltam vapor, ou ficam presos em buracos de lama ou em
fendas de neve.
Christine riu, mesmo contra sua vontade.
— Mas você costumava ficar preocupada com o pai quando ele estava fora com a
matilha.
A expressão de Elizabeth admitiu que tinha sido apanhada, mas ela se recusou a
ceder.
— Isso era diferente — argumentou ela.
— Diferente como?
— Bem, não era com os cães que eu me preocupava.
— Se preocupava com o quê, então?
— Algum... algum bêbado ou louco com uma faca... ou uma arma. Alguma...
alguma tempestade repentina, um rio ou lago com gelo derretendo, ou erosão.
Relâmpagos que iniciavam o fogo nas florestas. Esse tipo de coisas.
— Mamãe — anunciou Christine — acho que a senhora só é uma preocupada
profissional.
Mas ela disse essas palavras com amor, não em tom de condenação.
A resposta de Elizabeth foi se levantar e encher de novo as xícaras de café.
Christine observou Elizabeth com carinho. Ela sabia que a mãe tinha tentado ao
longo dos anos levar cada preocupação a Deus em oração. Não era difícil orar sobre
os seus medos e dúvidas. Mas deixar o fardo com Deus era, algumas vezes, algo
ainda mais difícil.
Elizabeth tinha dito uma vez a Christine que tinha por hábito manter suas
preocupações consigo mesma, remoendo a dificuldade em seu coração e mente,
uma e outra vez, aterrorizada, quando devia estar descansando em sua fé. Disse que
tinha tido anos de prática, e, no entanto... no entanto... ela se perguntava se estava
crescendo em seu nível de confiança — ou se estava ficando pior. Christine lhe deu
um abraço e disse à Elizabeth que não tinha uma resposta para isso, mas sabia que a
mãe tinha sido, ao longo dos anos, um exemplo, tanto para Henry quanto para ela,
de como era confiar profundamente em Deus.
Naquele momento, Wynn admitiu:
— Creio que também ia ficar bem preocupado, imaginando você sozinha nas
estradas, num automóvel. Essas máquinas de condução parecem... ora, parecem que
precisam da mão de um homem. Pelo menos aqui nesse território mais selvagem.
Christine olhou fixamente para o pai. Wynn nunca tinha sido desses homens que
determinam o que era ou não adequado para cada sexo. O rosto dela deve ter
mostrado a surpresa, pois Wynn apressou-se a prosseguir.
— Não que uma mulher não possa fazer essas coisas — trocar pneus, encher
radiadores, e tudo isso. Mas me parece que elas não deveriam serem obrigadas a
fazê-lo.. É um trabalho duro e sujo, nenhum pouco adequado para saias limpas e
mãos macias.
Antes que Christine pudesse responder, o pai continuou:
— É como esta guerra aqui.
A guerra. Sim, o Canadá estava agora em guerra. Christine sentiu outro arrepio. De
fato, não parecia real, e de fato, estava acontecendo há muitos quilômetros de
distância dali. Na verdade, em outro continente. No entanto, ainda era um fato, o
país estava agora oficialmente em guerra.
Christine, assim como muitos outros, ficaram chocados com os jornais do 1 de
setembro de 1939, que traziam as duras e assustadoras manchetes. A Alemanha
tinha invadido a Polônia. No dia seguinte, os jornais gritaram em negrito que a Grã-
Bretanha havia declarado guerra. O Canadá, um país independente, tinha seguido o
exemplo uma semana mais tarde. Jovens rapazes canadenses — e algumas mulheres
— foram instados a alistarem-se e a juntarem-se à causa. Christine se perguntara se
era isso que deveria fazer — defender seu país. Fazer parte das tropas que partiam
para deter o inimigo. Mas não se atrevera a mencionar essa ideia aos pais.
De repente, sentiu-se como se os ventos frios tivessem finalmente conseguido
encontrar seu caminho até a pequena cozinha. Christine viu a mãe tremer, e ela
inconscientemente apertou o agasalho mais de perto de si.
— Consigo compreender por que é que os jovens estão ansiosos por defender o país
— e tudo aquilo em que acreditamos. Se fosse mais jovem, provavelmente... — os
olhos de Wynn repousaram inadvertidamente na perna lesionada — eu ia querer ir.
Mas as moças? Isso simplesmente não me parece correto, de forma alguma. O lodo
e a lama das trincheiras não é o lugar certo para mulheres.
— Mas elas não estão no lodo e na lama — protestou Christine. — Estão servindo
nos dispensários, cantinas e escritórios. Elas...
— Os horrores da guerra ainda as atingem. Não há como fugir disto.
— Como é que nos metemos nesse... nesse assunto mórbido? — Christine
questionou. — Era um dia perfeitamente bom, e agora, aqui estamos nós, discutindo
a guerra.
Um dia perfeitamente bom? O vento uivava e levava tudo em seu caminho. A neve
açoitava e batia nas laterais da pequena cabana. A temperatura caíra perigosamente,
tornando o vento frio impróprio para homem ou animal. No entanto, o fogo ainda
crepitava, o café fumegava nas xícaras, os estômagos estavam cheios, os pés
aquecidos dentro de pantufas confortáveis. Estavam seguros em seu pequeno
mundo.
— Até que termine, este conflito vai afetar tudo o que nós pensemos ou façamos —
previu Wynn. Era um pensamento sóbrio. — Eu perdi outro jovem oficial ontem.
Ele disse que tinha que ir ou não seria capaz de viver consigo mesmo. Eu
compreendo. Me sentiria da mesma maneira.
Christine sabia que muitos jovens oficiais montados tinham essa opinião. Será que o
Henry também se sentia assim? Mas ele estava noivo, prestes a se casar com a
Amber. Será que ele se afastaria agora dela e do seu pequeno Danny? Será que
conseguiria?
— Sabia que John Rabo-de-Castor e Wynn Ermineskin se alistaram?
Christine não sabia. Os dois rapazes eram de famílias de aldeias que tinham
abraçado a fé cristã. Ambos tinham sido educados na pequena sala de aula da mãe e
fizeram a diferença para o seu povo. Os Ermineskins até deram o nome do seu filho
em homenagem ao Policial Montado que tanto admiravam. Wynn não era um nome
usado entre os Cree até que o pai ganhara a confiança deles. Christine sentiu o
aperto do medo no estômago.
Não era certo. Não era justo. Por que é que esse homem — esse tal de este Hitler
—, pensou que podia marchar e tomar conta do mundo? Por que? Por que é que
Deus não o abateu? Não era justo. Por que é que pessoas boas têm de morrer? Por
que é que os rapazes — e moças — eram chamados a dar as suas vidas para deter
este mal?
Christine se afastou da mesa.
— É melhor eu ir me vestir — disse ela como desculpa, mas na verdade desejava
apenas fugir. Para tentar fugir, de alguma forma, da presença da guerra longínqua,
que parecia suspensa no ar como um manto, que segurava o país inteiro — o mundo
inteiro — em seu aperto maléfico.
Alguém precisa detê-lo, Christine pensou enquanto fugia para o seu quarto.
Então, lhe sobreveio um novo pensamento.
É exatamente isso que eles estão tentando, todos os jovens, homens e mulheres, que
se apressaram a alistar-se. Foram oferecer-se a si mesmos — as suas próprias
vidas se necessário — para tentar deter esta onda de maldade do outro lado do
oceano.
Por que pensava que podia simplesmente ficar em casa e desfrutar o mundo como
ela o conhecera? Será que não devia ir também? Será que sua vida era mais preciosa
do que as outras que já tinham partido? E ainda...?

JANETTE OKE

Um súbito sentimento de medo e pavor apoderou-se do coração de Christine, e o


rosto ruborizou de vergonha. Ela podia falar em coragem. Ela, com seus
sentimentos sobre o que uma mulher podia fazer se se empenhasse. Mas ela era
uma covarde. Não desejava ir. Ia odiar o lodo e a lama da guerra, como o pai tinha
descrito. Não queria enfrentar a possibilidade da morte, de uma bala inimiga
rasgando sua carne.

Quando chegou ao quarto, não se vestiu como dissera, mas atirou-se de barriga para
baixo na cama. O arrepio no coração era muito maior do que o frio do quarto não
aquecido.

Deus , ela clamou, quantos outros estão passando por isso... por essa angústia?
Como é que se sabe se é correto ir... ou ficar? Eu quero orar — implorar — por
segurança. Que o Senhor mantenha aqui aqueles que amo, protegidos do mal. Mas
será que é justo? Será que é justo? Não sei. Eu apenas não sei. Quem, então, irá?
Quem irá deter essa loucura? Esse desejo de poder? A perversidade da guerra.
Não está certo.

Mesmo enquanto orava, Christine sabia que o mundo nunca tinha sido justo. Ou
correto. Não, desde o dia em que Adão e Eva tinham provado do fruto do jardim e
soltado toda a fúria, ódio e maldade do maligno. Sempre houve aqueles que lutaram
contra ele. Sempre houve aqueles que estavam dispostos a pagar o preço da
resistência. De fato, não era justo — mas era assim. E ela — assim como todos os
outros serem humanos que caminharam sobre a terra — precisavam decidir quando
e onde deveriam se posicionar.
Capítulo 2
C

omo o pai tinha previsto, a nevasca logo passou, deixando para trás um mundo
branco reluzente. Uma enorme quantidade de neve estava amontoada nas laterais da
cabana e bloqueava as trilhas que iam até o poço e o celeiro, onde ficava
armazenada a madeira para as lareiras. O brilho do

sol refletindo as massas de cristais brancos tornava difícil encarar o ar livre sem
estreitar os olhos. Christine, empacotada com roupas quentes por insistência da
mãe, trabalhou duro para desfazer os montes de neve, abrindo um caminho entre as
construções e as fontes de abastecimento. Era bom estar ao ar livre. Era bom ter que
usar a força e os músculos contra uma força da natureza a que podia realmente
conquistar. Pá por pá, ela ganhava a sua própria guerra. Gradualmente, o tumulto
interior também diminuía, embora ela soubesse que estava muito longe de encontrar
a resposta para os conflitos em seu coração e mente.

À sua volta, a cão passeava pelos montes de neve, saltando e pulando, prestes a
espalhar brancura fofa como se fosse uma espessa espuma. Um instante depois, se
deitava e rolava, enfiando as costas e a cabeça o mais fundo possível nos montes,
mexendo-se e contorcendo-se como se fosse se enterrar no gelo. Christine não pôde
deixar de rir das travessuras, como se fosse uma criança brincando.

A porta da cozinha se abriu e Elizabeth apareceu, enquanto limpava as mãos no


avental. Ela gritou, excitação fazendo a voz estridente:
— O Henry está na linha.
Christine atirou rapidamente a pá de lado, retirando luvas e pisando firme para tirar
a neve das botas ao chegar à porta de entrada.
— Natal — dizia Elizabeth, enquanto Christine passava por ela. — Eles decidiram
pelo Natal.
Christine não se deu ao trabalho de tirar as botas. O tempo no telefone era precioso
e caro. Ela não deixaria Henry à espera, pagando por minutos que de nada se
aproveitavam. Ela agarrou o receptor apressada.
— Alô!.
— Chrissy. Oi, aqui é o Henry.
Ele não precisava perder o seu tempo informando o que ela já sabia. Mas então,
Christine desperdiçou tempo ao perguntar de forma insensata:
— Onde você está?
Henry riu.
— Ora, onde era para eu estar. Por que?
— Você parece estar tão... tão perto.
— Fica assim às vezes, depois de uma boa tempestade. O ar parece mais limpo.
— Não há crepitação nenhuma — observou Christine mais adiante. — Não posso
acreditar...

— Esqueça o clima — Henry interrompeu. — Tenho coisas mais importantes para


falar.
— A mamãe disse que vai ser no Natal — respondeu Christine, forçando
-se a controlar seus pensamentos.
— É, no Natal.
— Isso é maravilhoso. Mas... tão cedo.
— Não queríamos esperar. Não vimos razão para isso. Além disso, o Danny está
ansioso...
— Não ponha a culpa no pobre Danny — brincou Christine.
Henry riu, um som alegre. Christine nunca tinha ouvido o irmão tão feliz. Ela sentiu
sua própria felicidade e alívio. Se Henry ia se casar no Natal, significava que não
tinha a intenção de partir e se alistar. Ele não faria isso com a Amber e o Danny. O
alívio que sentiu a fez sentir-se fraca.
— Amber quer falar com você — Henry se meteu em meio aos seus pensamentos
que rodopiavam.
— Christine. Gostaria que pudéssemos conversar pessoalmente sobre os planos para
nosso casamento, em vez de nos apressarmos a falar por telefone — surgiu a
calorosa voz —, mas eu adoraria que você fosse minha dama de honra. O que você
acha?
Christine sentiu o coração bater rapidamente.
— Eu adoraria.
— Estou tão contente.
— O que... o que você quer que eu use?
—Eu vou vestir um tailleur. Pensei que talvez você quisesse usar um também. Algo
que se pode vestir de novo. E você pode escolher a cor. Estou fazendo o meu de
uma cor meio... branco creme.
— Será que o Henry vai usar o uniforme?
— Sim. E o padrinho de casamento também.
— O padrinho... quem vai ser?
— É um dos jovens oficiais. Se chama Laray.
— Então ele também estará de uniforme — repetiu Christine, embora essa pergunta
já tivesse sido respondida.
— Sim, mas não se preocupe muito em tentar combinar sua roupa com o uniforme.
Escolha algo que lhe agrade, e que seja útil mais tarde.
Embora não tenha sido dito, subtendia-se a palavra guerra novamente. Não podia
sequer planejar um casamento sem levar em consideração que a guerra poderia
irromper continuamente, fazendo cada compra, cada dólar gasto, cuidadosamente
ponderado. Quem sabia quando ia conseguir comprar outro traje novo?
— Obrigada — murmurou Christine, antes de Amber expressar os seus sinceros
agradecimentos e entregar o receptor de volta para Henry.
— Agora, tenho outro pedido — Henry retomou a conversa. — Este pode ser que
precise um pouco mais de consideração. Quero levar a minha nova noiva numa
espécie de lua-de-mel. E estava pensando... já que você não está trabalhando neste
momento, será que poderia ficar aqui e cuidar do Danny durante uma semana?
Christine amava muito o filhinho da Amber, mas antes que ela pudesse articular
uma possível resposta, Henry apressou-se:
— E não precisa dar a resposta neste momento. Pense no assunto. Vamos entender
se você não aceitar. Os pais da Amber ficariam contentes por cuidar dele, mas a
mãe dela trabalha, e receio que um garotinho travesso às vezes é um pouco demais
para o pai dela. Nós pensamos...
— Ficaria feliz em ficar com ele — disse Christine rapidamente. — Vai ser
divertido.
— Você tem certeza?
— Claro que sim.
— Não vai atrapalhar seu trabalho?
Christine riu.
— Henry, eu não tenho um trabalho.
— Mas talvez...
— Agora não. Não com uma boa desculpa para esperar. Vou procurar um novo
emprego após o Natal. A mãe tem tentado me segurar aqui de qualquer maneira.
— Então está decidido.
— Pode contar com isso.
— Ótimo.
— Maravilha.
Ela sabia que ele estava prestes a desligar, e mesmo assim desejava segurá
-lo por um pouco mais de tempo. Mas o que poderia dizer? A chamada já lhe
custara um valor considerável.
Com relutância, Christine estava prestes a dizer adeus quando Henry falou de novo.
— Chrissy? Que tal você vir mais cedo pra cá? Você pode ajudar a Amber com os
preparativos, conhecer o Danny um pouco melhor, para que ele se sinta mais
familiarizado. Você teria que ficar comigo, mas eu tenho um quarto a mais.
— Ah, eu adoraria — respondeu ela, por temer que Henry pudesse mudar de ideia
antes que pudesse dar sua resposta.
— Fantástico! — o irmão pareceu genuinamente satisfeito. — Quando você pode
vir?
—Vou falar com o pai e a mãe, e então te aviso.
— Estou contente, Chrissy — disse ele. — Aguardo ansioso.
— Eu também — respondeu Christine mesmo antes de ouvir as palavras de
despedida. .
O bip da linha começou a soar no seu ouvido. Lentamente, Christine devolveu o
receptor ao apoio e virou-se para falar com a mãe.
— Ele quer que eu cuide do Danny enquanto eles estiverem em lua-de
-mel — explicou ela. — O Henry... pediu para eu ir mais cedo, para ajudar nos
preparativos do casamento e para conhecer melhor o Danny...
Christine não tinha a certeza de como a mãe ia reagir. Mas percebeu como o rosto
que a encarava se iluminou satisfeito.
— Nossa, isso é ótimo — disse Elizabeth. — Vai ser muito bom que você e Henry
tenham esse tempo junto antes que ele esteja casado e tenha uma família para
cuidar. Vai ser muito bom. É bom que você não tenha achado um emprego, se não,
não poderia ir. Estou tão contente...
— Também estou feliz por estar liberada para ir — disse Christine. — Eu vou
adorar passar esse tempo com o Henry — e com o pequeno Danny. Mas preciso
procurar um trabalho. Já enrolei tempo demais. A senhora sempre disse que a
procrastinação está do mesmo lado da pecaminosidade. Tenho que me sacudir do
marasmo e seguir em frente com a vida. Eu preciso disso!
Elizabeth estendeu a mão e passou a mão em uma mecha perdida de cabelo que
tinha se soltado da touca de lã de Christine.
Ela assentiu.
— Logo após o Natal e o casamento — ela disse. — Vai ser logo, logo.
Christine pensou ter percebido o alívio nos olhos da mãe.
— Então, quando a senhora acha que devo ir? — ousou perguntar.
— O que foi que o Henry sugeriu?
— Ora, nenhuma data específica. Eu disse que falaria com a senhora e o papai.
— Não acho que você vá querer ficar lá por muito tempo.
Será que a mãe estava dando para trás, tentando encontrar uma razão para segurá-la
por mais tempo?
— Estamos em meados de novembro — Christine começou a dizer. — O
casamento vai ser daqui pouco mais de um mês. Se eu quiser ser útil para a Amber,
acho que preciso partir em breve..
Christine sentiu-se um pouco defensiva.
— Temos que levá-la até Edmonton para apanhar o trem. As estradas estão difíceis
de trafegar agora, logo depois da tempestade.
— Mas vão limpá-las.
— Sim, mas vai demorar um pouco.
— O papai vai saber. Ele recebe os relatórios.
— Você está pingando — Elizabeth apontou para as botas molhadas da filha.
Christine se questionou se seria uma preocupação real ou um meio de distração.
— Eu vou secar.
— Não, pode ir acabar seu trabalho. Pode deixar que eu limpo.
Christine calçou as luvas de lã e foi para a porta.
— Acho que vou levar o cachorro para uma corrida assim que tiver terminado.
— Não está um pouco frio?
— Fará bem para nós dois.
Elizabeth não argumentou mais.
— Só cuide para estar de volta a tempo. Seu pai gosta de comer ao meio
-dia e meio em ponto.
— Pode deixar, vou estar de volta.
Christine fechou firmemente a porta e pegou a pá novamente. Tinha quase
terminado de escavar a neve da tempestade. Ela não deixaria o pai à espera do
almoço. Na verdade, decidiu que o passeio com Teeko a levaria até o escritório.
Dessa maneira, ia ter tempo para discutir algumas coisas que a preocupavam,
enquanto pisoteavam a neve juntos até chegarem em casa. Havia muitas coisas em
sua mente, apesar de ter orado sinceramente pedindo direção, sentia que uma mente
mais experiente e sábia podia lhe dar bons conselhos.
O pai estava recém saindo do pequeno escritório, fechando o casaco firmemente ao
redor do queixo, quando Christine e Teeko chegaram.
— Esta é uma agradável surpresa — Wynn saudou a filha, calçando luvas de pele
de veado. — Não suportava ficar enclausurada por mais tempo? — Eu não me
importo muito com a parte de estar enclausurada — respondeu ela. — Só achei que
um passeio nos faria bem.
Ele fez que sim e desceu os degraus para se juntar à filha.
— O Henry telefonou.
Obteve atenção imediata do pai.
— Detesto roubar o momento da mamãe. Ela deve estar tão ansiosa para contar
todas as novidades.
O pai fez que sim novamente.
— Então não me pergunte sobre os planos para o casamento do Henry, tá certo?
— Está bem.
— Mas já que o Henry planeja se casar, ele perguntou se eu poderia cuidar do
Danny, enquanto eles estiverem em lua-de-mel.
— E você vai?
— Eu disse sim.
— Então isso significa — a menos que ele esteja se casando hoje ou amanhã —,
que você não estará à procura de um emprego imediatamente?
— Exato.
Wynn assentiu.
— Ele também perguntou se eu poderia ir mais cedo — acrescentou Christine. —
Passar algum tempo ajudando a Amber com os planos de casamento.
— E você respondeu... ?
— Que iria com todo o prazer.
— Então quando é que precisa de partir? Será que vou precisar sair com o trenó de
cães...
Christine sabia que ele estava a brincando.
— Eu disse que falaria com o senhor e com a mamãe.
Por um momento houve apenas o suave som da neve sob seus pés e o eventual
latido de Teeko, enquanto imaginava algo escondido nos arbustos cobertos de neve
ao lado da trilha.
— Mas você está ansiosa para ir?
Ele sempre tinha sido capaz de compreender a filha tão bem. — De certa forma,
sim.
— Então como vamos te fazer chegar lá?
— Pensei que talvez você tivesse recebido relatos sobre as estradas.
— E recebi mesmo — ele concordou. — Vai levar alguns dias para que elas fiquem
liberadas.
— Quantos dias são vários dias?
— Pelo menos uma semana, eu acho.
— Então eu conseguiria ir?
— Sim, a não ser que outra tempestade caia sobre as estradas.
Christine assentiu. Havia sempre a ameaça de outra tempestade. O próprio
pensamento a deixou inquieta. Ela adorava estar em casa. Amava os pais. Mas, na
verdade, estava irritada por ficar confinada à pequena cabana, dia após dia.
Enquanto pôde trabalhar do lado de fora durante o outono, juntando folhas e
colhendo os produtos da horta, seus dias tinham sido cheios e produtivos. Agora
sentia que suas tarefas estavam concluídas. Não era mais como tinha sido, quando
era uma criança com seu livro ilustrado. Também não se sentia mais contente agora
por se sentar junto ao fogo da lareira, com quadrados de retalhos nas mãos.
Christine precisava estar de pé e na rua, e parecia que havia poucas razões para
afastá-la do calor da lenha em chamas.
— Está ansiosa para voltar para a cidade?
A pergunta do pai a surpreendeu.
Christine negou com a cabeça com veemência.
— Não. Não para a cidade. De fato, queria que houvesse alguma forma — algo que
eu pudesse fazer — para que eu nunca mais precisasse voltar. Gosto de estar aqui
fora — ao ar livre. Eu adoraria mesmo voltar para o Norte... Me sinto mais em casa
lá do que em qualquer outro lugar em que tenha vivido. Adoro o norte. Mas parece
que há muito pouco que uma moça — uma moça solteira — possa fazer por lá. Não
creio que eu me daria muito bem numa linha de armadilhas. Não suporto ver os
pobres animais capturados. Essa foi a única coisa de que nunca gostei.
Ela estremeceu com a memória.
— Você poderia se tornar uma médica. Eles sempre precisam de médicos. — Mas
leva tanto tempo.
— Poderia administrar um posto da Baía Hudson.
— Eles já estão ocupados.
— Então vai dar aulas. Espero que muito em breve o governo vá ter escolas em
todas as aldeias.
— Pai, eu não sou professora.
— Poderia atar sapatos de neve?
Christine percebeu que o seu pai estava brincando agora. Atirou a cabeça para trás
rindo, e disparou:
— Eles amarram seus própria sapatos de neve. Não há um índio que tenha algum
valor que não consiga amarrar um sapato de neve.
— Creio que terá de se contentar com o resto da província. Vilarejos, cidades,
fazendas. Vai ter que aprender a ficar satisfeita.
Christine lançou um olhar de soslaio para a figura alta que andava ao seu lado.
— Eu poderia me casar com um Policial Montado.
Isso fez com que Wynn virasse a cabeça abruptamente. Ele olhou para a filha sem
palavras, para ver se ela não estava brincando, depois fez que sim sem oferecer
qualquer resposta.
Estavam se aproximando da trilha que levava à porta da cozinha.
Teeko correu na frente, pronto para encontrá-los nos degraus. Christine já conseguia
ver o vulto da mãe através da janela da cozinha, onde o calor do sol da manhã
libertara a janela da sua capa de geada.
— Não é uma ideia tão ruim assim — disse ela suavemente, levando o assunto um
pouco mais longe.
— Não é uma má ideia, se for por amor ao Policial, não por amor ao norte —
respondeu o pai com a mesma suavidade, usando uma escova para tirar a neve das
botas da filha antes de lidar com a neve de sua própria bota.
Christine não respondeu.
— Suponho que Christine tenha te contado as novidades — perguntou Elizabeth
assim que os dois entraram na cozinha.
— Ela contou que o Henry telefonou, mas não quis me falar sobre os planos do
casamento. Disse que você ia querer contar.
Elizabeth pareceu surpresa mas satisfeita.
— O casamento será no Natal.
— Nesse Natal?
Christine sabia que o pai sabia perfeitamente qual Natal estavam falando, mas
queria que a mulher se divertisse contando a novidade.
Elizabeth riu agora.
— Claro que é nesse Natal.
— Considerando minhas observações sobre casamentos — Wynn observou com
uma sobrancelha erguida —, não parece haver muito tempo para se preparar para
ele.
— Eles não querem esperar. Henry diz que demoraram tanto tempo para finalmente
chegar a um entendimento que não querem perder mais tempo. Por isso, decidiram
se casar na véspera do Natal.
— Bem, isso me parece bem. Espero que as tempestades se segurem, para que nós
possamos conseguir chegar lá a tempo.
Elizabeth parecia consternada até mesmo de pensar em perder o casamento de seu
único filho.
— Falei com Mary esta manhã — disse Elizabeth rapidamente. — Ela sugeriu que
fôssemos um pouco mais cedo e passássemos alguns dias com eles, e depois,
poderíamos viajar juntos para lá.
— Isso seria bom — concordou Wynn, tirando o casaco pesado e colocando-o
pendurado no gancho junto à porta.
— Christine foi convidada para ir mais cedo. Henry quer que ela dê uma ajuda para
a Amber.
Wynn já tinha ouvido falar da maior parte, mas se mostrou interessado nos planos.
— Excelente ideia. Tenho a certeza de que a Amber estará ocupada. Tomar conta de
um negócio não deixa muito tempo para preparações extravagantes.
— Ah, creio que o casamento não vai ser muito extravagante. Os rapazes estarão
em uniforme da polícia, e a Amber planeja usar um tailleur. Ela usou um vestido
formal no primeiro casamento. Ela disse que a gente tem que focar na praticidade
na segunda vez, especialmente em meio a uma guerra.
Christine virou-se da conversa para remover as botas pesadas e colocá-las sobre o
capacho junto à porta.
Elizabeth foi para o fogão mexer o cozido na tigela de servir:
— Christine, você pode pegar os biscoitos no forno, por favor? Coloquei o prato no
forno de aquecimento.
Christine lavou as mãos na bacia do canto, entregou a toalha para o pai quando
terminou, e colocou a luva de forno. Os biscoitos exalavam um aroma delicioso. Ela
se deu conta de repente o quanto estava faminta. Exercício e ar fresco tinham um
efeito incrível no apetite. Até mesmo Teeko tinha o focinho no prato de comida e
estava devorando o conteúdo.
Capítulo 3
N

a manhã seguinte Wynn fez uma inesperada proposta às duas mulheres.


— Por que vocês não viajam juntas?
— Juntas? — Elizabeth soou tão surpresa quanto Christine.

— Henry pediu que Christine fosse mais cedo e Mary convidou você para ficar lá.

— Nós... — corrigiu Elizabeth. — Mary convidou nós dois.


— Sim, nós, mas eu não posso viajar tão cedo quanto vocês. Como as duas estavam
dizendo, precisam chegar à cidade e escolher um tecido para fazer o tailleur de
Christine para o casamento, e mandar costurá-lo. Podem fazer isso. Vocês podem
passar alguns dias em Calgary, e resolver tudo isso. Depois Christine pode viajar e
se encontrar com Henry e você pode relaxar e passar algum tempo com Jon e Mary
até eu chegar.
Elizabeth e Christine ouviram atentamente a lógica da ideia de Wynn.
— Acha que poderíamos fazer isso? — Christine perguntou à mãe.
— Detesto deixar o seu pai por tanto tempo. Não vejo como...
— Que bobagem! Sou perfeitamente capaz de tomar conta de mim mesmo por duas
semanas.
— Seria mais do que duas semanas se partíssemos daqui alguns dias
Q UANDO chega o AMANHÃ
— Um mês. Sou totalmente capaz de me virar sozinho por um mês. — Mas eu...
— Ora, vamos fazer isso, mãe — exclamou Christine. — Vai ser tão divertido.
Podíamos fazer compras, passear e quem sabe até assistir um concerto ou algo
assim.

— Para uma moça que não gosta da cidade, parece que você consegue direitinho
inventar coisas para fazer por lá — brincou Wynn.
Christine enrubesceu. Não era sua intenção parecer tão entusiasmada.
— Quando iríamos viajar? — Elizabeth pareceu cogitar a ideia.
— No fim do mês, eu acho — sugeriu Wynn. — Eu poderia me juntar a você alguns
dias antes do Natal, e ficaríamos até o Ano Novo. Isso vai dar um mês inteiro de
viagem.
— Não sei... — Elizabeth começou de novo. — As estradas podem ser tão
arriscadas nessa época do ano.
— Você vai ter que viajar sobre elas uma hora ou outra, se pretende estar presente
no casamento do Henry — Wynn a fez recordar.
— Suponho que eu...
— Claro que pode.
Christine sentiu vontade de atirar o chapéu para o ar, se estivesse usando um. Seria
bom fazer algo diferente, andar por aí, em vez de ficar confinada sem ter muito que
fazer dia após dia.
A partir daí, os dias foram tomados por planos e preparativos para a viagem. Para
Christine parecia que Elizabeth passava um tempo fora do comum cozinhando,
assando e armazenando todo o tipo de coisas para Wynn comer enquanto estivesse
sozinho.
— Mamãe, o pai nunca vai conseguir comer tudo isto — ela dizia de vez em
quando, mas suas palavras de nada adiantaram para tranquilizar Elizabeth. Mais e
mais latas, jarras e recipientes eram levados para a “cozinha de trás”, como
Elizabeth chamava o pequeno aposento atrás da cabana. Nos meses de inverno, tudo
o que era colocado na cozinha de trás ficava congelado em questão de minutos. Era
perfeito para armazenar artigos que precisavam de ser refrigerados, mas nada bom
para ser utilizado como uma simples câmara fria.
Agora Elizabeth preparava refeições em tamanho de porções e guardava em
recipientes onde os ratos à procura de calor ou os esquilos saqueadores não
conseguiam alcançar. Wynn só tinha de tirar, descongelar, e aquecer as porções para
o jantar. Tudo era rotulado com instruções cuidadosas. “Retirar da cozinha de trás
três horas antes de ser usado”. Ou, “Aquecer em chaleira aberta até ferver”, ou
“Não se esqueça de remover a embalagem antes de a colocar a quente forno”.
Christine sorria frequentemente, mas não dizia nada. A mãe tinha que estar
tranquila de que o pai estaria bem alimentado em sua ausência.
Finalmente, a preparação e o congelamento estavam terminados, e Elizabeth voltou
sua atenção para a viagem.
— Acha que eu deveria usar o meu tailleur cinza ou o azul-marinho?
— Na viagem de trem?
— Oh, não. No trem vou usar o marrom. Digo no casamento.
— Não vai mandar fazer um novo?
— Eu? Meu Deus, não. Eu nem tinha pensado nisso. Não há nada de errado com o
cinza — ou com o azul-marinho. Qualquer um dos dois seria perfeitamente
adequado.
Christine assentiu. Qualquer um dos dois seria adequado.
— Por que não leva os dois e depois decide em Calgary? — sugeriu Christine.
— Mas detesto ter que embalar os dois.
— Pode ser que você precise dos dois.
— Pra quê?
— Bem... se formos passear de vez em quando. Para jantar — ou para um concerto.
Além disso, temos culto na igreja todos os domingos. Quer ter apenas uma roupa
para usar o tempo todo?
— Não, acho que não. Mas parece bastante extravagante usar dois em tão pouco
tempo.
Foi um lembrete para Christine de quanto tempo se passado desde a última vez que
a sua mãe tinha visitado a cidade.
— Que mais pretende levar? — perguntou Christine em vez de continuar a
argumentar.
— A minha saia preta e a listrada azul marinho, além de algumas blusas e o meu
casaco. Então pensei em levar o meu vestido de crepe. O meu mais novo.
Christine concordou. O crepe “mais novo” de Elizabeth já tinha quatro anos.
— Isso me parece bem — respondeu ela. — Mas acho que você talvez seja uma boa
levar os dois tailleurs.
— Creio que você tem razão.
Elizabeth ainda parecia relutante.
Finalmente chegou o dia em que iam para Edmonton, para tomar o trem para sul.
Christine sabia que nos últimos dias os olhos da mãe estiveram focados no céu.
Como a própria Christine, ela sabia que outra tempestade de inverno poderia
facilmente estragar seus planos. Mas embora tenha ocorrido uma ocasional queda
de neve na estrada, não tinha sido suficiente para atrasar a viagem. O vento não
soprava com força suficiente para levantar mais do que um leve nevoeiro correndo
pelo pátio.
Os últimos momentos de Elizabeth em casa foram passados informando Wynn onde
encontrar o que e como lidar com o desobediente fogão de cozinha.
— O medidor do forno não funciona corretamente — ela o informou. — Por isso,
não conte com ele. Deve registar quinhentos graus se desejar que o calor seja de
cinquenta e três.
— Eu vou me virar bem — Wynn pacientemente assegurou a esposa uma vez mais.
— Tem comida suficiente para me sustentar até o verão, e eu agradeço por cada
delicioso pedaço. Quando chegar o casamento não vou conseguir nem entrar no
meu uniforme oficial.
— Até parece! — retorquiu Elizabeth.
Wynn nunca tinha ganhado uma única grama em todos os anos de casamento. Era
ela quem tinha que vigiar o seu peso.
Depois dos abraços e beijos de despedida e muitas promessas, elas entraram na
cabina da picape ao lado do condutor que fazia viagens regulares a Edmonton, e
com frequência aceitava levar passageiros. Elizabeth esticou o pescoço para ver
enquanto se afastavam e acenou uma última vez quando a picape virou para entrar
na autoestrada. Christine esperava fervorosamente que a mãe não ficasse chorosa.
Mas assim que entraram na autoestrada, ela endireitou as costas, suavizou uma mão
amassada com a outra, e virou-se para Christine com um sorriso. — Essa é uma
verdadeira aventura, não é mesmo?
Christine concordou.
— Vamos passar a noite naquele hotel em Edmonton.
— O Rei Eduardo?
— Sim, o Rei Eduardo. Seu pai fez as reservas.
Christine concordou novamente.
— Faz não sei quanto tempo que não fico hospedada num hotel. — Sente falta
disso?
— Sentir falta? Claro que não. — Elizabeth parou um momento. — Ainda assim...
será bem divertido.
O senhor Carter mudou a picape da madeira serrada para a primeira marcha.
— Sabe o que estou mais ansiosa para desfrutar? — Elizabeth sussurrou para
Christine.
Christine lançou um olhar de soslaio para a mãe, cujos olhos brilhavam com a
empolgação por algum prazer antecipado.
— O salão de jantar? Comer algo que não precisou cozinhar?
— Isso será muito bom, admito. Acho que vou pedir algo totalmente exótico
Elizabeth estava sorrindo agora. Até mesmo imaginar a aventura que tinham pela
frente estava se tornando divertido.
— Tipo o que?

— Não sei. Talvez um bife de vaca.


— Mãe, isso não é lá muito exótico — disse Christine rindo. — Bem, será algo
diferente da carne de alce, de cervo e de veado. Vai ter um

sabor bem exótico para mim. — Elizabeth parecia desfrutar as possibilidades. —


Talvez peça até peru... ou ostras. Ostras — é isso mesmo! Há séculos e séculos que
não como ostras. — Elizabeth pareceu satisfeita com a sua escolha. — Mas o que
eu realmente anseio é um belo banho... onde possa me esticar na banheira e
simplesmente ficar mergulhada em toda aquela maravilhosa água quente. Se
começar a ficar fria, saio um pouco e entro de novo. Oh, mal posso esperar.
— E o que devo fazer enquanto você passa as suas horas na banheira? —

perguntou Christine.
— Ora, o que você quiser.
Christine riu. Ia mesmo ser divertido. Estava tão contente que o pai tenha

feito essa sugestão.

O motorista as deixou diretamente no hotel e entregou a bagagem delas ao porteiro


vestido de marinheiro, que as saudou com uma reverência e um sorriso.

— Bem-vindas ao Rei Eduardo. Por aqui, senhoras — disse ele com um pouco mais
de entusiasmo do que devia.
Ele insistiu em ficar em cima das duas malas, enquanto Elizabeth assinava o nome
no registo, e então o homem as conduziu novamente. O quarto ficava no quinto
andar, e Christine ia gostar de subir pelas escadas ricamente acarpetadas, apenas
para contemplar todos os corredores no caminho. Mas o homem as conduziu para
um elevador e as fez entrar.
— Então, o que traz vocês à cidade? Compras de Natal?
Os olhos dele estavam postos em Christine, mas as palavras pareciam ser dirigidas
para Elizabeth. Christine pensou que ele estava sendo um pouco ousado, por
perguntar o que estavam fazendo ali. Mas Elizabeth respondeu sem reservas:
— Só paramos aqui para passar a noite. Viajamos para Calgary amanhã. Temos
família por lá. Vamos passar algum tempo com eles antes de irmos para o
casamento do meu filho.
Francamente, mãe, pensou a preocupada Christine. Ele não tem por que saber toda a
nossa história.
— Isso é bom — respondeu o rapaz, mas seus olhos ainda estavam em Christine.
Ela percebeu que estava ruborizada. Por que ele tinha que ficar encarando-a tão
abertamente? — Só esta noite? — Desta vez ele estava definitivamente falando com
Christine. — Saio dentro de uma hora, se quiserem assistir algum espetáculo... ou
algo assim.
Christine não podia acreditar na ousadia do rapaz. Ela nem sequer se dignou a
responder. Apenas lançou um olhar de rejeição.
O rapaz deu de ombros. Christine presumiu que ele já tinha sido rejeitado antes.
O elevador bateu suavemente até parar, e a porta abriu, permitindo que elas
fugissem. O jovem conseguiu sacudir as chaves dos quartos com as mãos cheias de
bagagem. Ele logo abriu a porta e, com um aceno da mão cheia de habilidade, fez
que elas entrassem.
— A sala de jantar fica no primeiro andar à esquerda. O jantar é servido das
dezessete às vinte horas, todas as noites. Começam a servir o café da manhã às seis.
A hora de almoço...
— Não estaremos aqui durante a hora de almoço — Elizabeth o interrompeu. —
Obrigada por... nos indicar nosso quarto.
Elizabeth deixou cair as moedas na mão enluvada dele e tomou posse da porta
aberta. O rapaz fez outra reverência para sair, e ela fechou a porta o mais rápido
possível.
— Que malandro mais atrevido, não é? — disse ela ao se virar. — Imagina, ele
convidar você para sair mesmo sem te conhecer.
Christine abanou a cabeça e cruzou o aposento para colocar o casaco sobre uma
cadeira.
— Bem, acho que teria sido uma forma de passar o tempo enquanto você fica
submersa na banheira a noite toda — disse Christine rindo
Elizabeth atirou uma luva na filha.
— Por falar em atrevimento — ela disse, abanando a cabeça. — Você é quase um
adversário à altura dele.
Mãe e filha riram.
O restaurante não pôde matar a vontade de Elizabeth de comer ostras. — É a guerra
— argumentou o garçom que usava um terno escuro. — Não conseguimos mais
trazer essas iguarias nos trens. Parece que os vagões são todos utilizados para o
transporte de tropas e mantimentos neste momento.
Christine se perguntou se era a verdade ou uma mentira cabeluda para desculparem
a sua falha. Elizabeth mascarou o desapontamento e pediu o pato em vez de ostras.

Para compensar, disse a Christine, ela pediu pudim de cereja para sobremesa e
bebeu quatro xícaras do forte café saboroso
— Não vou conseguir dormir essa noite — disse ela parecendo uma menina.
Christine tinha a certeza de nunca ter visto a sua mãe tão... tão pouco maternal. Tão
relaxada e divertida.
— Ficar na banheira de molho vai te deixar relaxada.
— Sim, sim, vai mesmo. Só espero não adormecer ali mesmo. Jamais conseguiria
levar a mim mesma para a cama.
— Eu ia ficar acrescentando um pouco mais de água quente de vez em quando.
Elas riram da brincadeira e se levantaram-se da mesa.
— Vamos subir a pé — sugeriu Christine. — Quero ver como mobiliaram e
decoraram todos os salões.
— Estou muito cheia para caminhar — protestou Elizabeth. — Nunca ia conseguir
subir os cinco andares.
— Pode subir de elevador, mamãe. Nos encontramos no quarto.
— Mas só temos uma chave.
— Pode levá-la. Você vai chegar lá primeiro. Eu bato na porta.
Elizabeth concordou e dirigiu-se para o elevador. Christine começou a longa
caminhada pelos cinco lances de escadas. Ela não se apressou, mas desfrutou de
cada novo andar, com o mobiliário rico e fino, além das obras de arte. Pesadas
cortinas de veludo agraciavam as amplas janelas no final de cada corredor e
candelabros cintilantes lançavam prismas de luz sobre o tapete cor de vinho
profundo.
Foi só quando chegou no quarto andar que Christine viu alguém, um homem e uma
mulher, saindo do quarto. Parecia que estavam discutindo e rapidamente abafaram
as vozes quando Christine se aproximou. A mulher disparou um olhar furioso na
direção de Christine, mas o homem evitou o contacto visual, enquanto se
atrapalhava com a chave na fechadura. Christine não se deu o trabalho de saudá-los.
Ela se apressou a passar, olhando apenas para a pintura da Inglaterra rural que
estava pendurada perto da porta do elevador. Moveu-se em direção ao sinal de saída
que anunciava o próximo lance de escadas e prosseguiu para o quinto andar. Mas
sua pequena jornada tinha sido atrapalhada pela hostilidade do casal um com o
outro, e também em relação a ela. A mãe respondeu a porta ao ouvir a batida.
— Aí está você. Estava começando a me preocupar.
— Demorei um pouco. Havia tantas coisas para ver. Nunca vi pinturas tão
magníficas.
— Talvez devêssemos descer pela escada quando formos tomar café amanhã. É
muito mais fácil descer do que subir.
Christine fez que sim. Ela esperava que não cruzassem com aquele casal
novamente. Ela tinha a sensação de que o estado de espírito deles não estaria
melhor com a chegada de um novo dia.
— Estou surpresa por você não estar naquela banheira — observou Christine.
— Tive de esperar para abrir a porta para você. Lembra?
— Desculpe.
— Há tempo de sobra. Temos a noite toda só para nós.
A noite inteira. Christine se perguntou se poderia ficar um pouco entediada. Ela não
tinha trazido nem um livro ou algum trabalho manual. E com a mãe enterrada nos
sais da banheira, ia ter muito pouco a fazer. Pensou no rapaz ousado do elevador, e
suas bochechas coraram mais uma vez.
Ela jamais teria considerado sair com um estranho, mas ia ser terrivelmente difícil
pensar numa forma de ocupar o tempo nesta luxuosa prisão.
— Por que você não telefona para algum dos seus velhos amigos, querida? —
Elizabeth perguntou enquanto se dirigia para o banheiro. — Eu vi um telefone ali
mesmo junto àquela porta verde, à esquerda no lobby.

Meus velhos amigos, pensou Christine. Era de se supor que, depois de passar todos
aqueles meses na cidade, ela teria alguns velhos amigos para quem telefonar. Mas
não conseguia pensar em ninguém. A verdade é que os seus dias e noites na cidade
tinham sido preenchidos pelo Boyd, o filho do patrão que tinha capturado o seu
coração. Ela não conseguia pensar nem em alguém do antigo grupo de jovens da
igreja, que ainda pudesse estar por perto e quisesse saber notícias dela.
— Creio que vou apenas descansar — disse ela à mãe. — Posso até ir rapidinho ao
saguão e pegar o jornal do dia.
— Um jornal. Isso seria ótimo. Faz não sei quanto tempo que não leio as notícias.
Christine pegou a chave do quarto e ficou girando na mão sem parar. Parecia que o
jornal era de fato sua única possibilidade de entretenimento.

Mas o jornal pouco fez para animar a sua noite. As manchetes alardeavam as
notícias do conflito no estrangeiro. Fotografias de sorridentes rapazes e moças
fardados, acenando o sinal de vitória, preenchiam suas páginas. Havia até uma
coluna de nomes daqueles que tinham “zarpado”, mandados para a Inglaterra para
se prepararem melhor para a batalha que se avizinhava. Estes que até pouco tempo
atrás eram jovens despreocupados, cheios de esperanças brilhantes para o amanhã,
poderiam no futuro jazer em algum túmulo estrangeiro — se é que teriam algum
túmulo.

Christine pensou em Boyd. Ele tinha entrado para a Força Aérea. Será que ele
estava bem? Será que ela ia saber se algo acontecesse com ele? Será que ia ser
informada? Não, provavelmente não. Ela não tinha ideia de onde ele estava, se
estava mesmo vivo. Quando percebeu, estava sussurrando outra oração por ele.
Do banheiro, podia ouvir o som de água corrente. A mãe estava novamente
aquecendo a banheira. Christine atirou o jornal na cadeira mais próxima. As
notícias só serviram para deprimi-la. Já tinha visto o bastante. Com todo o coração
orou para que Henry não decidisse se alistar.
Certamente ele já tinha tomado essa decisão. Ele não deixaria a Amber e o Danny.

Mas e ela? Será que tinha o direito de ficar para trás, enquanto outros jovens davam
suas vidas por causa da liberdade? Não parecia correto. Ela não tinha mais razões
para viver do que aqueles jovens. Ela estava pronta para morrer, caso a morte fosse
necessária. Sabia que estava preparada para a eternidade. Não porque era boa ou
favorecida, mas porque tinha feito as pazes com Deus. No entanto, não ansiava por
ter sua vida encurtada.

Ela odiava a guerra. Odiava o egoísmo, a ganância, que fazia que um país, uma
pessoa, se sentisse superior a outro. Não estava certo. Alguém tinha de ajudar a
parar esta guerra terrível.

Mas será que ela devia se envolver? Era a guerra dela? Mas também não era a deles
— da longa lista de voluntários que faziam parte da próxima onda de novos recrutas
a serem “enviados”.
JANETTE OKE

Christine pegou novamente o jornal e analisou as caras sorridentes, procurando


cuidadosamente por algum rosto que pudesse parecer-se com John ou Wynn, os
dois jovens amigos indígenas. Mas a maioria dos rostos eram um borrão. Não sabia
dizer se havia algum Cree entre eles.

Ela podia ouvir a mãe se mexer no aposento ao lado. Certamente tinha terminado o
longo molho na banheira e logo estaria ali. Christine respirou fundo para ajudar a
acalmar os seus sentimentos de agitação e as perguntas. Esperava que o semblante
não a entregasse. A noite delas não seria agradável se ela não se controlasse.

Christine foi até à janela e empurrou a pesada cortina.


A noite parecia calma e fria. Poucas pessoas se apressavam ao longo das calçadas.
A cena não lhe trouxe qualquer conforto. A cidade estava tão árida e fria quanto
estava o seu coração naquele momento. De alguma forma... de alguma forma ela
tinha que encontrar seu caminho e algum sentido no que estava acontecendo no
mundo. Mas, naquele momento, nada fazia qualquer sentido.
Capítulo 4
Q

uando apanharam o trem para Calgary, na manhã seguinte, Christine pensou que
nunca tinha visto a mãe tão entusiasmada.
Elizabeth conversou sem parar sobre Jon e Mary, e o tempo que passou

com eles quando veio pela primeira vez para o oeste para lecionar. Recordou cada
um dos filhos deles: William, Sarah, Kathleen e Lisbeth; suas falas infantis
divertidas e anedotas engraçadas.

Christine se perguntou se a mãe ficaria muito desapontada ao ver os amados


sobrinhos agora como jovens adultos.
No que dizia respeito às manhãs de inverno, essa era uma manhã agradável com o
sol refletido nas camadas de neve recém caída, que provocava um intrigante jogo de
luz e sombras. Campos intocados se estendiam por quilômetros, convidando alguém
— alguma coisa — para ser o primeiro a enfileirar uma trama de trilhas por toda
sua extensão. As colinas distantes erguiam-se no ar fresco da manhã, os pinheiros
altos surgiam como sentinelas geladas em contraste com o azul do céu.
Christine teve dificuldade para tirar os olhos da paisagem que passava rapidamente
pela janela. Até a voz da mãe servia não para distraí-la, mas sim para criar um
fundo para o ambiente da cena. Os pensamentos inquietantes da noite anterior sobre
o futuro tinham desaparecido. Olhando para o mundo que tinha a sua frente, como
alguém poderia não considerá-lo bom? perguntou ela. A imensidão. A perfeição. A
beleza. Todos lhe falavam ao coração. Ela estava contente por estar viva, feliz por
fazer parte daquele mundo. Sentiu crescer em seu coração a alegria. Isso... isso é o
que a vida deve ser.
Um apito cortou o ar da manhã com uma estridência que era ao mesmo tempo
melancólica e invasiva, e eles pararam em um pequena cidade. Christine encostou a
cabeça contra a janela fria e observou a atividade frenética. Cavalos trotavam e
sopravam grandes nuvens de ar gelado. Homens gritavam, puxavam, erguiam e
carregavam, os bigodes embranquecidos pelo ar gelado. Havia poucas mulheres ou
crianças. Uma mão, que ocasionalmente mexia uma cortina para o lado, era a única
indicação de que elas também ocupavam a cidade. Mas Christine sabia que estavam
lá. Ela as via na fumaça que subia lentamente em forma de espiral, a partir das
chaminés. Nos pequenos trenós encostados nos depósitos de madeira. Nos bonecos
de neve nos pátios cercados e nas vassouras que se achavam ao lado das portas,
convidando a limpar a neve das botas e da roupa antes de entrar na cozinha.
Pensou ter visto tal presença na pressa dos homens, pois, que outro motivo teriam
para se apressar num clima tão inclemente, se não para sustentar alguém querido
que partilhava de sua casa?
O ato de parar, de observar, de seguir em frente mais uma vez, foi repetido ao longo
do dia. Christine pensou que a mãe prestava pouca atenção ao trajeto, por isso ficou
surpresa quando Elizabeth se inclinou, com o rosto todo iluminado com a animação.
— Olha — exclamou ela. — Chegamos à Lacombe.
Christine tinha ouvido histórias familiares o bastante para saber que Lacombe era a
região onde a mãe tinha lecionado na escola. Ela tinha, em duas ocasiões, visitado a
sua avó Delaney e a sua tia, tio e primos que ainda viviam na fazenda da família,
fora da pequena cidade. Mesmo assim, ela não estava preparada para a reação de
Elizabeth.

— Quem me dera que pudéssemos parar. Como eu gostaria de visitar a escola


novamente. E a pequena pensão de professores. A querida pequena casinha de
professora. Eu fui tão feliz lá.

Christine arriscou.

— Pelo que dizia antes, sempre pensei que a senhora tinha sido bem infeliz.
— Infeliz?
A palavra pareceu ter chocado Elizabeth.
— Sim. Ficava se questionando quem era o papai e se ele gostava de você de
alguma maneira.
Para surpresa de Christine, as bochechas de Elizabeth coraram.
— Ora, ele me manteve em suspense — admitiu ela. — Eu pensava que ele era
marido da Lydia. Isso me incomodava porque ele... parecia... devotar certa atenção
a mim também.
— Mas você queria a atenção dele.
— Não, se ele fosse um homem casado não ia querer.
Elizabeth foi enfática.
— Mas você flertou com ele... só um bocadinho.
Christine não pôde deixar de prolongar um pouco mais o evidente desconforto da
mãe. O rosto de Elizabeth estava agora cor de rosa.
— Eu não flertei. Bem, eu... queria que ele reparasse em mim... no início. Mas
quando... quando pensei que ele era casado com a Lydia, estou certa de que não fiz
nada... nada que lhe chamasse a atenção.
Elizabeth baixou os olhos e fingiu endireitar as saias que já estavam lisas. Christine
não conseguia esconder o sorriso. Ela nunca tinha visto a mãe tão perturbada.
Estendeu a mão e tomou a mão de Elizabeth.
— Mamã — disse ela —, se eu tivesse visto o papai, creio que talvez não tivesse
sido tão honrada quanto você. Eu poderia ter flertado com ele... mesmo se achasse
que ele era um homem casado. O papai é tão... tão bonito... e vestido de uniforme...
— Não teria não! — declarou Elizabeth, levantando o queixo. — Nós a criamos
melhor que isso.
Ela deve ter reconhecido a provocação nos olhos de Christine e percebeu que tinha
caído na brincadeira. Deu um aperto na mão que tinha segura na sua.
— Sua bobinha — disse ela com uma risadinha. Não havia nenhuma censura em
seu tom de voz ou palavras.
Christine encostou-se de novo no assento.
— Mas me conta — Christine provocou. — Como era viver sozinha na casinha da
professora no campo? Era solitário?
A cor abandonou o rosto de Elizabeth, e em seu lugar, Christine pôde ver um
semblante reflexivo, olhando para os anos passados com carinho.
— Solitária? Suponho que sim... de certa maneira... algumas vezes. Mas não, não
exatamente. Sentia saudades da minha família. Muito, muito mesmo no início. Eu
nunca tinha ficado fora de casa antes. Mas... mesmo assim, eu sempre tive esta
estranha e... e muito real sensação de paz, um sentimento de que eu estava onde
devia estar. Eu me sentava naquela poltrona velha e esburacada, e bebia chá na
minha xícara de porcelana no final do dia, e olhava as carinhas das queridas
crianças que tinha o privilégio de ensinar e...
Elizabeth parou de falar. Um olhar pensativo fez que seus olhos brilhassem com
lágrimas que insistiam em cair.
— Suponho que agora todos eles são adultos com famílias... e lutas... e
recompensas próprias.
Christine assentiu silenciosamente com a cabeça.
— Mas eu... ainda gosto de pensar que, de alguma forma... de alguma forma eu fiz a
diferença na vida deles. O pouco que pude ensinar, o amor que não pude deixar de
lhes demonstrar... gosto de pensar que ajudou de alguma forma a... moldar as
pessoas que se tornaram.
— Tenho a certeza que sim.

As palavras não foram mais do que um sussurro.


Ficaram em silêncio durante alguns momentos. Christine pensou que a atenção total
da mãe estava agora concentrada nas mercadorias sendo carregadas e descarregadas
na plataforma da estação de Lacombe, então, ficou surpresa quando Elizabeth
voltou a falar.
— Pensei muitas vezes em voltar. De aparecer sem avisar em um piquenique
comunitário ou um programa de Natal. Algum... algum evento comunitário, onde
pude ver o maior número de pessoas em pouco tempo. Em algum lugar onde se
reunissem. Mas nunca tive... nunca tive oportunidade de fazer isso. Nem a coragem.
— A coragem?
O apito do trem soou, longo e alto. Com um estremecimento que agitava os vagões
adjacentes, as rodas começaram a girar novamente. Eles estavam partindo
novamente.

— As coisas mudam muito ao longo dos anos. Acho que... acho que eu estava com
medo de... bem... descobrir algo que arruinasse minhas preciosas memórias. As
memórias são muito frágeis, sabe. Às vezes sinto que é melhor deixá-las sem serem
perturbadas.

Christine ponderou naquelas palavras. Depois de certo tempo, ousou perguntar:


— É por isso que nunca aceitou o convite do papai? Para te levar de volta para o
norte?
Ela viu o queixo de Elizabeth tremer. Nenhuma resposta foi dada imediatamente.
Quando se virou para falar mais uma vez com a filha, havia lágrimas nos olhos.
— Não foi fácil formar um lar no norte. Mas eu... passei a amá-lo. Creio que em
parte era porque eu amava tanto o seu pai. Mas eu jamais poderia dizer que foi fácil.
A princípio, me sentia extremamente sozinha, e um pouco assustada também. O
povo era tão... tão diferente. Eu não sabia como compreendê-lo... nem podia me
comunicar com eles. E então aconteceu uma coisa estranha. Pelo menos parece
estranho quando olho para trás. Eu comecei a fazer amigos. Não apenas... apenas
conhecidos, mas amigos reais e íntimos. Eu amava aquele povo, Christine. As
mulheres, as queridas crianças. E, é claro, havia o nosso precioso Sammy...
Elizabeth não conseguiu seguir falando por um instante. Christine conhecia a
história do pequeno menino indígena que Elizabeth e Wynn tinham trazido para
dentro de sua casa e de seus corações. E então, muito mais tarde, o pai dele voltou
para buscá-lo.... — Christine sentiu um nó na garganta enquanto a mãe limpava os
olhos. Mas Elizabeth respirou fundo e continuou: — A vida daquelas mulheres
indígenas era tão... tão dura. Elas suportavam tanta coisa. Foi difícil deixá-las.
Sentia como se eu fosse... uma traidora, na verdade. Eu estava voltando para muito
conforto, muitas comodidades. E elas... tinham apenas que ficar onde estavam —
como estavam — e simplesmente lidar com isso. Senti-me como se... as tivesse
abandonado.
— Mas não abandonou.
Elizabeth ergueu a cabeça.

— Quando o seu pai foi ferido e pensamos que íamos perdê-lo, aconteceu algo
dentro de mim. Antes... antes, quando eu tinha medo... ou ficava perturbada, eu
sempre tinha ele. Seu pai era a minha força, o meu conforto. Contanto que tivesse
isso, poderia continuar. Mas quando pensei que poderia perdê-lo, percebi que não
tinha força em mim mesma. Não mesmo. Se eu o perdesse...

Christine pegou de novo na mão da mãe.


— O Norte quase o tirou de mim, Christine.
— Mas, mamãe...
— Fui eu que fiz questão que o levassem para um lugar que fosse mais

civilizado. Não acho que seu pai quisesse realmente vir. Ele teria ficado ali mesmo,
com a perna ferida e tudo, caminhado por quilômetros e acampado no frio e se
expondo, para ser atacado por outros doidos. Eu... eu acho que o coração dele ainda
está no norte. Se voltássemos...

— Eu vou voltar — disse Christine impulsivamente. — Não culpo o papai por se


sentir assim, por amá-lo. Ele era... necessário lá, era amado. O norte era onde ele
pertencia.

Christine falou com tal veemência que as duas se surpreenderam. — Você está
zangada comigo? — Elizabeth perguntou suavemente. Christine agitou-se no
assento de veludo desgastado, com a súbita explosão
agora controlada.
— Não estou zangada. Só... só um pouco chateada, eu acho. Eu amo o
norte. Você... não tirou só o papai de lá, mas nós também... Henry e eu. Isso...
isso simplesmente não parece justo.
Elizabeth remexia as luvas no colo.
— Acho que foi o que fiz — ela admitiu. — E peço desculpas. Mas não...
não, eu não lamento. Era a hora de saírem de lá. Vocês dois precisavam...
aprender sobre o resto do mundo. Precisavam ver e ouvir coisas e... e crescer. E
o seu pai, ele precisava dormir numa cama à noite. Poder ter horas regulares de
trabalho. Andar por aí sem precisar ficar olhando para trás.
— Andar sem “ficar olhando para trás”? — Christine ficou agitada ao
retrucar. — Mas ele era amado, e respeitado.
— Pela maioria, sim. Mas havia sempre alguns — aqueles que tinham
violado a lei e eram obrigados a pagar por ela —, os que esperavam oportunidades
para... bem, digamos que o seu pai tinha de ser muito vigilante quando estava
na trilha.
— Vocês nunca contaram isso para a gente...
— Claro que não. Não queríamos deixá-los assustados. Mas essa é uma
parte da vida de um Policial Montado.
— Faz parte da vida do Henry...?
— Se ele fez inimigos, sim.
— Mas isso não é justo.
— A vida nunca é justa. O melhor que alguém pode esperar é que lhe seja
dada uma oportunidade.
Christine tinha muito a ponderar. Era a primeira vez que Elizabeth tinha
realmente aberto o seu coração a ela — não simplesmente como filha, mas
agora como amiga. No passado, ela sempre tinha sido a protetora. A guardiã.
Agora ela tinha se exposto como vulnerável. Carente. Humana. Christine não
tinha a certeza de como responder.
Ela tinha mais uma pergunta que devia fazer.
— O papai tinha... o papai tinha medo?
— Medo? Razoavelmente sim. Ele sempre foi cauteloso. Às vezes ele se
preocupava de que algo pudesse acontecer a ele, e eu... eu ficaria abandonada,
sem meios de sair do norte, sem ter para onde ir. Nós conversávamos sobre isso.
Ele... guardou um pouco de dinheiro — não muito, mas um pouco. Ele disse
que se acontecesse alguma coisa, eu devia usar esse dinheiro para procurar uma
casinha, em alguma cidade segura. Ele disse...
Mas Christine não queria mais ouvir. Era demais para ela. Todos esses
pensamentos mórbidos em um dia tão brilhante. Ela estremeceu e interrompeu
a mãe.
— Veja! Há rastros por todo o campo. Os veados devem ter jogado
bandeira ou algo parecido.
Elizabeth entendeu.
— Nós os perdemos — lamentou ela.
O feitiço fora quebrado. Christine inclinou a cabeça para trás contra o
assento alto e fechou os olhos. Suas emoções ainda estavam tempestuosas.
Tantas coisas tinham acontecido na sua família, coisas sobre as quais ela era
completamente ignorante. Tantas batalhas travadas e ganhadas — ou perdidas.
Tantas lutas, com conflitos internos e externos. Quando criança, ela assumira que os
adultos tinham tudo bem pensado, que estavam encarregados de seu mundo, que
não havia nada que perturbasse o seu sono ou lhes causasse alarme. Agora estavam
lhe dizendo que nunca houve um lugar no mundo livre de preocupações ou
desafios? Isso não era o que Christine esperava ouvir naquele momento.

Tanto Jon como Mary estavam esperando por elas na estação de Calgary.

— Eu simplesmente não ia aguentar esperar em casa — exclamou Mary ao abraçar


primeiro uma, depois a outra. — Oh, quanto tempo.
— Oh, é tão bom ver você — respondeu Elizabeth, com lágrimas nos olhos. —
Penso em todos vocês com tanta frequência. E nas crianças. Como estão as
crianças?
— Bem — riu Jonathan —, as crianças têm filhos agora, como você sabe. Eles
estão bastante crescidos. Totalmente, como podemos dizer... independentes — pelo
que eu e a mãe estamos profundamente gratos.
Todos eles riram.
— Oh, eu quero vê-los. Cada um deles — disse a entusiasmada Elizabeth.

— E você vai. Todos eles vem para o jantar hoje à noite.


— Bem, todos, isto é, exceto William. Em junho faz um ano que ele e a família não
aparecem aqui. Foram morar em Winnipeg. Você nem imagina. Mas o William
adora morar lá. Ele é advogado, sabe?
— Sim — murmurou Elizabeth. — E uma boa cidade também, estou certa.

— Bem, vamos pegar as bagagens e levá-las para casa — disse Jonathan,


levantando as duas malas pesadas. — Vamos ter muito tempo para conversar no
conforto da sala de estar.

— Vejo que a cidade voltou a crescer — disse Elizabeth ao olhar para fora da janela
do carro.
— Desenvolvida. Crescendo. Cada vez que a gente se vira, tem um novo o edifício
sendo erguido.
O Jonathan parecia muito satisfeito e orgulhoso da sua cidade.
— Está crescendo depressa demais pro meu gosto — se intrometeu Mary. — Nós
não conseguimos acompanhar as coisas.
— Vamos recuperar o atraso — respondeu Jonathan confortavelmente.
Christine não podia deixar de comparar Calgary com a Edmonton que ela conhecia.
Era verdade que Calgary estava crescendo rapidamente. Percebeu vários edifícios
novos desde o tempo em que tinha passado um tempo com o tio Jon e a tia Mary,
enquanto fazia o curso de secretariado. Mas se tivesse que escolher em qual das
cidades faria sua casa, Christine não tinha certeza qual delas seria. As duas cidades
eram muito diferentes — tanto na aparência quanto na atmosfera.
— Ah, você pintou casa! — Elizabeth exclamou enquanto paravam na entrada da
garagem.
— Estava na hora de mudar. Tinha a mesma guarnição azul-esverdeada há mais de
trinta anos.
— Eu gostei — disse Elizabeth e rapidamente completou: — Esta também tem bom
aspecto. Uma cor tão agradável e fresca.
— É muito popular atualmente — disse Mary. — Suponho que, como todo o resto,
vai precisar de algo novo no futuro. Sem dúvida, em breve será datado. Mas por
agora...
Ela deu de ombros.
— Sabe o que dizem: ‘A única coisa constante é a mudança’. Ou algo com esse
efeito.
Exceto no Norte, pensou Christine. No norte, as coisas têm permanecido as mesmas
de geração em geração. E irão continuar na mesma. É disso que eu gosto no norte.
Bem, pelo menos, essa é uma das coisas que me agradam.
Elas descarregaram as malas e conheceram os quartos, depois foram convidadas
para uma refrescante xícara de chá e pães recém assados. Não havia fogo crepitando
na lareira.
— Não precisamos mesmo dela agora, porque o aquecimento central é muito
eficiente — explicou Mary, com praticidade. — Só a acendemos se nos sentimos
emotivos. O aquecimento faz muito menos bagunça.
Mas Christine sentia falta da dança das chamas e da crepitação dos troncos em
chamas. O aquecimento central não poderia jamais preencher essa necessidade.
— Então o nosso Henry vai se casar — comentou Mary. — Que maravilha! Ele
parou por aqui e nos apresentou a futura noiva. Ela parece ser muito querida. E
aquele rapazinho, não é um amor? Você deve estar emocionada, Elizabeth.
Christine foi envolvida pela conversa. Era evidente que as mulheres tinham muito
que falar e estavam determinadas a desfrutar de horas e horas na companhia uma da
outra. Será que ela precisava ficar ali sentada ouvindo, ou poderia colocar a xícara
vazia no aparador com um sorriso e se retirar para o quarto? Ou quem sabe, pudesse
dizer que precisava de um pouco de exercício. Mas Christine se sentia satisfeita.
Ociosa. Por fim, mexeu-se até ficar numa posição confortável na cadeira macia e
bem estofada, e se acomodou para desfrutar do subir e descer das vozes familiares.

O jantar daquela noite foi bastante ruidoso. A família estava toda aglomerada na
mesa. Dois cadeirões e seus pequenos ocupantes tomavam o seu lugar entre os pais
nas duas extremidades da mesa. A menina tinha sido chamada Elizabeth, em
homenagem à sua tia-avó, um fato encantou e agradou a Elizabeth.

O rapazinho, dois meses mais novo que a prima, se chamava Matthew. Ele tinha
grandes olhos castanhos e cílios grossos. Christine estava certa de que jamais viu
um bebê tão bonito. Outros pequeninos estavam sentados em listas telefónicas
empilhadas ou pequenas caixas laranja colocadas em cadeiras de sala de jantar. Os
mais velhos — de sete e dez anos de idade — puderam se sentar em cadeiras de
tamanho adulto. O menino era um pouco travesso, mas a menina era bastante
educada e cheia de boas maneiras. Christine lembrava do tempo que ela passou na
cidade, mas eles tinham mudado muito ao longo dos anos desde que ela partiu. Eles
ou não se lembravam bem dela ou fingiam que não se lembravam. De qualquer
modo, responderam apenas educadamente aos seus cumprimentos.

A conversa rodopiava à volta da mesa como grandes ondas que se rompiam,


pontuadas frequentemente por risadas. Era capaz de deixar uma pessoa tonta.
Elizabeth parecia estar se divertindo. Christine percebeu pela primeira vez o quanto
a mãe devia sentir falta de ter contato com a família. Não admira que o pai tivesse
sugerido que ela viesse mais cedo para se juntar novamente.

Pensando no pai, Christine sentiu uma pontada de tristeza. Ela já sentia falta dele.
Como será que estava se virando sozinho? Certamente não tinha como passar fome
com toda a comida que a mãe tinha deixado para ele. Será que se sentia solitário?
Será que sentia falta da agitação da esposa na cozinha? A conversa diante do fogo
numa noite?
Talvez o papai goste de ter alguns momentos de sossego, para ordenar seus
pensamentos, concluiu Christine. Todos nós precisamos de momentos tranquilos de
vez em quando.
Mas todos precisamos de comunicação também, prosseguiu em seu monólogo. Eu
jamais teria imaginado que a mamãe sentisse qualquer uma das coisas que ela
confidenciou hoje. Daqui em diante, devo ser mais... aberta, mais preparada para
ouvir, para perceber as necessidades dela.
Era certamente algo de novo a pensar.
Capítulo 5
O

s próximos dias passaram agradavelmente com muitas atividades — algumas de


puro divertimento e algumas relacionadas com a preparação do casamento. Na
verdade, essa parte também foi divertida, Christine percebeu. E então, chegou o dia
em que Henry veio à Calgary e

trouxe Christine de volta aos dias que antecediam ao casamento. O novo tailleur de
Christine foi cuidadosamente dobrado em tecido e embalado para a viagem. Ela
tinha finalmente escolhido uma peça de azul marinho suave, tendo chegado à
conclusão que a sarja vermelha da Polícia Montada não era uma cor fácil de
combinar.

Mas ela estava contente com a estampa que tinham encontrado e mais que satisfeita
com a habilidade de costureira da sua mãe. O tailleur lhe caía à perfeição, até
mesmo ela podia apreciar esse fato. Ela esperava que Amber ficasse igualmente
satisfeita com o traje.
Uma coisa tinha desanimado a sua visita à movimentada cidade. Tinha a impressão
de que, para onde quer que se virasse, via jovens completamente uniformizados.
Jamais imaginara que tantos jovens do seu país estivessem dispostos a ir para a
guerra. Pareciam estar todos aglomerados na cidade, gritando uns para os outros
jovialmente em cada esquina, juntando-se em paradas de ônibus, rindo e
acotovelando-se nos cantos dos refeitórios.

— Dava para pensar que era uma travessura, em vez de uma guerra que precisa ser
combatida — Christine ouviu uma matrona insatisfeita exclamar.
Q UANDO chega o AMANHÃ
E era verdade. Os rapazes e moças pareciam estar celebrando em vez de se
prepararem para uma perigosa incumbência que poderia lhes custar a vida. Pode ser
que tenham tido momentos mais sóbrios, em que se depararam com a enormidade
do que estava em jogo, mas pareciam tomar muito cuidado para deixar transparecer.
Talvez seja por isso, Christine se perguntou. Eles estão tentando manter o ânimo
para o que está por vir.

O culto de domingo fora outro lembrete. Um dos rapazes da congregação tinha


acabado de partir para o estrangeiro. Foi oferecida uma oração sincera e fervorosa
em nome da família que permaneceu em casa, obrigada a esperar — e a orar — por
seu regresso em segurança.

— Há tantas necessidades — informou-lhes o pastor. — Não só no estrangeiro, mas


também aqui. Você se pergunta como pode se envolver? Busque maneiras. Olhe à
sua volta. Há trabalhos manuais, luvas, meias e toucas são necessárias. Mesmo os
pijamas podem ser tricotados e enviados. Você pode confeccionar pacotes de
mantimentos, pequenas porções de casa para os rapazes e moças que estão lá.

— E os clubes locais precisam de ajuda. A Igreja da Fé iniciou um centro de


acolhimento para os militares. Nós podemos ajudar. Eles servem café e bolo, e
proporcionam aos rapazes — e às moças, nós temos moças jovens indo também —
uma oportunidade de se reunirem e brincarem ou apenas conversar.

— E muitas das empresas precisam de empregados. Tantos rapazes foram para a


guerra que cabe às mulheres assumirem os seus lugares no fronte doméstico.
Precisamos manter nosso país produtivo, para que o esforço de guerra seja bem-
sucedido. Veja o que você pode fazer para ajudar — e em oração envolver-se.

Christine não tinha considerado o envolvimento necessário em casa. Mas era


verdade. Havia muito a ser feito aqui em casa também. As suas orações começaram
a mudar a partir daquele momento.

“Senhor, mostra-me como queres que eu me envolva. Não me deixe entrar com os
meus próprios planos. Mostra-me, Senhor.”
Lembretes. Havia lembretes por todos os lados. Desde placas pedindo a população a
comprar títulos de guerra, a listas publicadas em jornais locais, até notícias de
avanços ou recuos nos noticiários a cada noite, até jovens uniformizados em cada
rua da cidade. Em todos os lugares, Christine se deparava com o fato de que o
Canadá estava em guerra.
Ao ouvir o ruído de um carro encostando na entrada, Christine se apressou em
atender à porta. Elizabeth estava logo atrás dela.
Henry estava desdobrando as longas pernas do interior do carro. Christine ficou
contente ao ver que o irmão estava sozinho. Ela estava ansiosa para tê-lo só para ela
pela última vez e esperava que não fosse considerado egoísmo da sua parte.
Ele caminhou em sua direção, com o sobretudo pesado balançando no vento da
tarde, e um largo sorriso iluminando o seu rosto.
— Bem, olha só pra isso. Duas das minhas mulheres favoritas.
— Sim — Christine disse rindo —, estamos contentes por ainda fazermos parte de
sua lista.
Elizabeth passou por Christine para alcançá-lo primeiro. Ela levantou os braços
para aproximá-lo e para que pudesse dar-lhe um beijo na bochecha.
— Como estavam as estradas? — perguntou ela assim que o filho se endireitou.
— Boas. Passei por algumas pequenas áreas de derrapagem aqui e ali — mas nada
de mais. Não tive qualquer problema para conseguir chegar.
Ela acariciou a bochecha do filho e recuou para que Christine também pudesse
abraçá-lo.
— Está pronta? — perguntou Henry.
— Está tudo bem aqui na porta — informou Christine.
— Ótimo.
— Você vai entrar, não vai? — perguntou Elizabeth alarmada.
Elizabeth só queria se certificar de que o filho não ia dar meia volta e retornar,
como estava implícito em sua atitude.
— Só alguns minutos, não posso ficar muito tempo. Temos que partir antes que as
estradas...
— Pensei que tinha dito que elas estavam boas — Elizabeth segurou a porta para
Henry entrar.
— Elas estavam boas — mas o vento está começando a soprar. As estradas podem
rapidamente começar a ficar intransitáveis se o vento começar a soprar.
Elizabeth franziu o cenho.
— Talvez devesse partir, então.
Sua voz revelava relutância, pois detestava vê-los partir.
Henry deve ter sentido o desconforto da mãe e mudou o curso da conversa. Tirou o
sobretudo pesado e o pendurou no armário.
— Achei que a tia Mary poderia ter pronta uma daquelas deliciosas xícaras de café.
— Ela acabou de correr para o telefone para ligar para Jonathan. Ele pediu para que
o avisassem no minuto em que você chegasse, pois está vindo direto para a casa.
— Oh, ele não devia fazer isso. Não posso ficar muito tempo.
— Ele disse que uma pequena pausa lhe faria bem.
Henry assentiu.
— Então como tem sido sua visita à cidade? — perguntou ele.
— Agradabilíssima — exclamou Elizabeth. — Fiquei relaxando na banheira todas
as noites.
Henry riu alto.
— Vem para a frenética cidade de Calgary e fica na banheira!
Mas a provocação não suscitou qualquer resposta da mãe, exceto um pequeno aceno
com a mão.
— E você? — ele se voltou para Christine. — Teve a oportunidade de usar a
banheira?
— Bem, não passei tanto tempo lá dentro como a mamãe, mas sim, já tive a minha
vez.
Quando Mary entrou pela porta, Henry se levantou para cumprimentá-la.
— O seu tio Jon logo estará em casa. Só leva um minuto. Acho que você fica mais
alto cada vez que eu te vejo. Preciso ficar na ponta dos pés só para te dar um
abraço.
Henry envolveu a tia com os longos braços e deu-lhe um abraço caloroso.
— É muito bom ver a senhora, tia Mary.
— Tenho desfrutado tanto da Christine. Nos divertimos muito juntas. E estou tão
contente por ter este tempo especial com sua mãe. Tínhamos tanto para falar. Só
queria que não tivessem tantos quilómetros nos separando. Não me parece justo que
nosso país seja tão extenso. Agora sentem-se. A Lucy vai trazer o café. Sei que
você está com pressa para voltar antes que anoiteça. Gostaria que pudéssemos
mantê-lo por aqui alguns dias, mas sei que é impossível. Como estão a Amber e o
Danny? — Mary se apressou em perguntar. — Será que já está tendo crise de
nervoso de noiva? Está muito perto, não está? As coisas estão correndo bem com os
preparativos? Eu ia adorar poder ajudar. Quem me dera estar mais perto. Eu disse
para o Jon que adoraria preparar o bolo de casamento ou ajudar com a decoração.
Será que a Amber gosta desse tipo de coisas? Talvez ela nem precise de ajuda. Ela
certamente parece que tem coisas planejadas. E o Danny? Ele se entusiasmou por
ter um novo papai?
Henry mal sabia qual pergunta responder, por isso ele apenas acenou com a cabeça
e deixou a tia continuar a falar.
Mary parou de repente quando Lucy chegou com o bule fervendo e um jogo de
xícaras numa bandeja, que também continha um prato de sanduíches de carne e um
bolo de limão.
— Pensei que talvez estivesse com um pouco de fome, depois da longa viagem.
Não quero que você vá embora sem algo no estômago.
— Está com uma aparência e um cheiro deliciosos, tia Mary.
— Não vamos esperar pelo Jonathan. Ele nunca come entre as refeições, e só vai
querer o café.
E os sanduíches foram passados primeiro para Henry e depois à Christine.
— É melhor comer — Henry a advertiu. — Quem é que sabe quando você vai ter
outra dessas oportunidades? Não há muitos restaurantes na estrada até chegarmos
em casa. E não tem muita variedade na minha despensa
Christine seguiu o conselho do irmão. Eles ainda estavam desfrutando o lanche
quando Jonathan chegou. Após saudações sinceras, ele aceitou a xícara de café
preto servido pela esposa e sentou-se na cadeira ao lado do Henry.
Durante os momentos seguintes, foi a conversa entre os homens que fluiu pela sala.
Christine notou os olhos de Henry cuidando o relógio do avô de vez em quando. Os
ponteiros estavam ocupados a fazer tique taque nos minutos, e Christine sabia que
Henry estava ansioso por causa do tempo. Ela decidiu ajudá-lo no assunto.
— Vou só buscar as minhas mantas no quarto e te encontro no vestíbulo.
Ele fez que sim, com um olhar de gratidão pela compreensão.
Houve a habitual agitação com as recomendações de última hora e abraços. E logo
em seguida os dois estavam no carro e passando pelas ruas da cidade em direção à
rodovia. Henry parecia concentrado na intenção de sair da cidade e entrar na
rodovia, por isso, passaram vários minutos antes que qualquer um deles falasse.
— Como tem sido a visita? — Henry finalmente perguntou.
— Boa. Compramos o material e a mãe fez um ótimo trabalho costurando o tailleur.
— A mamãe sempre faz.
Christine concordou.
— Espero que a Amber goste da nossa escolha.
— Amber vai adorar.
— Ah, agora falamos em nome dela agora, não é? — provocou Christine.
Henry sorriu.
— Sabe o que dizem as Escrituras: “E se tornarão uma só carne”.
— Mas ainda não são uma só carne.
— Ainda não. Parece que todos os dias se arrastam um bocadinho mais. Jamais
imaginei que o tempo pudesse passar tão lentamente — gemeu Henry.
Christine sabia que ele estava brincando, mas não pode deixar de lançar um olhar de
soslaio na direção do irmão.
— Então, não mudou de ideia...
— Cada dia estou mais convencido.
Ela fez que sim com a cabeça.
— Isso é bom.
— E você? — perguntou Henry após um momento de silêncio. — Mudou de ideia?
— Sobre o Boyd, você quer dizer? Não. Sem mudanças de ideia. Essa era a única
atitude a ser tomada. Mas... mas por vezes fico preocupada. E se... se eu tivesse
mantido meus padrões cristãos, será que poderia ter feito mais para apresentar
Cristo a ele? O Boyd está na Força Aérea, sabe. Por vezes penso como seria
horrível se o seu avião fosse abatido — sem que ele tivesse feito as pazes com
Deus.
Henry concordou, o seu rosto sério.
— Receio que haja muitos deles nessa circunstância. Marchando para a guerra sem
esperança caso morram nas trincheiras. É assustador.
— Calgary estava cheio deles. Por todos os lados, em todos os lugares onde se
olhava: uniformes.
— Eu sei. Eu os vi quando entrei de carro.
O vento tinha de fato começado a soprar. A neve passou a percorrer a estrada à
frente deles em fragmentos ondulados. Henry segurou o volante firmemente para
manter o carro estabilizado.
— Você já... alguma vez pensou sobre... quero dizer, alguma vez já pensou em se
alistar? — Christine finalmente encontrou coragem para perguntar.
— Muitas vezes pensei... E tive dúvidas. E passei por lutas.
— Sério?
— Sim. Não me lembro de ter lutado tanto em oração por qualquer outro assunto.
Christine podia sentir a garganta apertada.
— E se decidiu? Você não vai... vai?
— Eu planejava ir. Cheguei mesmo a dirigir até à sede para entregar a minha
demissão da Polícia Montada. Mas fui dissuadido.
— Te convenceram a desistir? Foi a Amber?
— Não, não foi Amber. Tínhamos conversado sobre isso — muitas vezes, pra falar
a verdade —, e ela sabia que a decisão tinha que ser minha. Não, foram os meus
superiores. Disseram que há dois trabalhos a serem feitos em tempo de guerra.
Alguns precisam ir. Mas há também um trabalho que precisa continuar a ser feito
em casa — para manter a estabilidade. Para manter as coisas unidas para que
aqueles que partiram tenham algo para que voltar. Precisamos de uma base forte e
segura. Os nossos rapazes precisam disso.
Christine expirou lentamente. Henry não iria para a guerra.
— Então agora você... se sente em paz com tudo isto?
— Sim. Oh, não foram apenas as conversas. Foi uma publicação. Eu li quando
estava à procura da resposta. Parecia falar diretamente a mim. Falou em “ficar junto
às coisas”. Percebi que essa era também uma parte importante do trabalho. Não é
um caso de pular fora, não quando se leva seus deveres a sério.
— Amber deve estar aliviada.
Henry sorriu.
— Está sim. Mas ela teria me deixado ir, se eu tivesse decidido dessa forma. Ela
disse que Deus deve governar minha vida — não a esposa.
Christine permaneceu em silêncio. Essa era outra coisa para se pensar.

Os dois estavam agradecidos ao descerem do carro na frente da casinha de Henry.


As estradas tinham se tornado cada vez mais difíceis. Os últimos quilômetros
causaram preocupação, embora Henry tentasse não deixar transparecer. Ele só teve
de sair com pá uma vez, mas Christine sentiu que aquilo provavelmente acontecia
com frequência.

A primeira coisa que Henry fez foi telefonar para Amber.


— Nós chegamos sãos e salvos. Não... não, não estavam muito ruins só um pouco
complicadas em alguns trechos. O Danny está dormindo? Dê-lhe um beijo por mim.
Nos vemos pela manhã. Vou passar pela loja, e levo Christine mais tarde. Está bem.
Tá ótimo. Durma bem. Eu também.
Christine perguntou-se o que mais teria sido dito se ela não estivesse à espera, com
a mala na mão.
— Ela diz para lhe dizer que a ama. — Henry virou-se de onde estava o telefone e
levou a mala da Christine. — Por aqui.
— Mas este é o seu quarto — Christine objetou.
— Eu mudei as minhas coisas para o galpão — disse ele.
— Mas vai ficar frio.
— Que nada, pus um aquecedorzinho. Às vezes fica quente até demais.
Christine não discutiu mais.
—Você quer comer alguma coisa?
— Comi um monte de sanduíches da tia Mary. Acho que vou apenas me enfiar
debaixo das cobertas.
— Eu também. Foi um longo dia. Qualquer coisa que precise, apenas grite.
Henry foi bisbilhotar no fogão.
— Ótimo. Ainda tem um pouco de fogo. Só tenho que mantê-lo durante a noite ou
estaremos congelados pela manhã.
— A cidade não tem aquecedor de gás?
— A cidade tem. Eu é que não tenho.
Christine sufocou um bocejo.
—Você me chama amanhã?
— Para o café da manhã, eu prometo.
— Boa noite, então.
Christine moveu-se para sair, ainda bocejando.
— Chrissy — Henry exclamou atrás dela.
Ela virou-se lentamente.
— É bom ter você aqui. Aguardei ansiosamente.
— Eu também — respondeu Christine com um sorriso. Nunca tinha sido tão sincera
em sua vida.

Os dois irmãos partilharam um simples café da manhã. Depois Henry começou a


recolher o casaco pesado e as luvas.
— Preciso ir para o escritório. Você vai ficar bem?
Christine fez que sim com a cabeça.
— E precisa passar pela barbearia — ela o provocou. — Não se esqueça.
Henry sorriu.
— Não é provável que me esqueça.
— Há alguma coisa que gostaria que eu fizesse?
— Nada de especial. Vamos jantar com Amber hoje à noite. Falaremos então sobre
o assunto. Pensei que talvez quisesse ir até ao escritório por volta do meio-dia, e
vamos almoçar no café.
— O café? Isso parece divertido.
— Bem... tudo depende do peso que a Jessie tenha colocado no tempero hoje.
Henry colocou o Stetson e virou-se para sair.
— Nos vemos mais tarde, então — exclamou Christine quando a porta se fechou.
Se o Henry não fosse meu irmão, eu poderia me apaixonar por ele, pensou rindo.
Ele ficava tão lindo vestido de uniforme.
Christine ocupou-se lavando os pratos do café da manhã.
Não havia realmente muito na pequena casa do Henry que precisasse de atenção.
Ele mantinha as coisas incrivelmente ordenadas e limpas para um rapaz solteiro.
Christine encontrou uma revista recente que não tinha visto e a folheou durante toda
a manhã.
Ela manteve um olho no relógio. Às quinze para o meio-dia, se encasacou e saiu.
Henry tinha dado cuidadosas direções para o escritório, que ficava a apenas alguns
quarteirões de distância. Sem dúvida, o pequeno edifício com o letreiro Real Polícia
Montada do Canadá logo apareceu. Christine estivera acostumada com tais postos
durante toda a sua vida, por isso não sentiu qualquer ansiedade enquanto empurrava
a porta aberta e pisava no interior. Seu olhar passou rapidamente pelo interior. Era
muito parecido com os escritórios que o pai tinha ocupado — ainda que de alguma
forma diferente.
Havia três escrivaninhas espalhadas pela sala. Apenas uma estava ocupada — e não
era pelo Henry. Ela olhou para além, onde duas portas conduziam para fora da sala
principal.
— Você é a Christine? — uma voz masculina perguntou quando o jovem
uniformizado ficou de pé.
O seu olhar voltou-se para o rapaz. Ele não era tão alto como Henry e era um pouco
mais encorpado. Seu cabelo era muito escuro e os olhos mais ainda. No momento,
esses olhos pareciam um pouco confusos.
Christine fez que sim com a cabeça.
— Henry disse irmã mais nova — ele murmurou quase sem fôlego.
Christine concordou com a cabeça outra vez. Ela finalmente encontrou a língua.
— Onde está o Henry?
— Bem, ele foi chamado para sair... inesperadamente.
— Sair? Para onde?
— Foi algum agricultor que teve um problema. O Henry não explicou. Apenas disse
que voltaria assim que pudesse.
Christine se movimentou ligeiramente, perguntando-se o que devia fazer.
— Era... era para eu esperar por ele aqui? — perguntou ela, se sentindo desajeitada
e infantil.

JANETTE OKE

O rosto do jovem policial ficou corado.


— Bem... esse não era realmente o plano. Quero dizer... — ele olhou para as suas
botas extremamente polidas. — O Henry disse: “A minha irmã mais nova vai
chegar. Eu disse a ela que ia levá-la para o café. Se eu não estiver de volta a tempo,
será que você poderia levá-la?” Eu respondi: “Claro”.
— Entendo... — gaguejou Christine.
— Portanto, se não se importar, gostaria de manter o acordo com o meu chefe.
Ele continuava com o rosto corado.
—Você deve ter trabalho a fazer.
— Um homem precisa comer.
— Sim... acho que sim — disse Christine, sentindo-se um pouco aborrecida com
Henry por tê-los colocado nesta situação embaraçosa.
O homem procurou o seu Stetson.
— Então...? — perguntou ele.
Christine conseguiu dar um sorriso.
— Então... — ela respondeu. —Vamos comer.
Ele parecia muito aliviado.
— Tenho de adverti-la... — disse ele enquanto segurava a porta para que Christine
saísse — a Jessie gosta de tempero.
— Foi o que me disseram.
— Henry já te avisou?
Christine acenou com a cabeça, depois começou a rir.
— Considero-me completamente advertida. Vou ter que contar com você para me
guiar pelo do menu.
— Bem... você pode escolher ovos mexidos apimentados, guisado apimentado ou
pimenta super-apimentada. Pode escolher.
Christine riu animada, e o jovem oficial juntou-se a e
Capítulo 6
C

hristine e Laray estavam no meio da refeição quando Henry chegou. Ele nem sequer
se preocupou com um pedido de desculpas. Christine estava sentindo-se mais
relaxada enquanto conversava com o seu parceiro de almoço. No entanto, ela deu a
Henry um olhar de alívio.

— Então o que há para o almoço? — perguntou ele enquanto tomava a cadeira ao


lado dela. Com um rápido olhar para o menu, depois um olhar para as torradas e chá
de Christine, perguntou: — É só isso que vai comer?

Christine assentiu e depois baixou a voz.


— Com o duplo aviso sobre as pimentas, decidi apostar na segurança. — Não é
assim tão ruim — sussurrou ele atrás do menu. — O quê? Está

com Laray?
— Laray? — Christine levantou uma sobrancelha.
— Ainda não se conheceram?
— Oh sim, já nos conhecemos. Só ainda não me disseram quem eu tinha

conhecido.
Laray ficou ruborizado.
— Desculpe — ele gaguejou. — Eu nem pensei...
Mas Christine acenou com o seu pedido de desculpas à parte.
— Está tudo bem. Eu devia saber. Foi você que tomou conta do urso. — Na
verdade... foi ideia do urso. Eu teria de bom grado passado para

outro essa experiência.


Christine ficou sóbria.
— Como está o seu braço?
— Fica um pouco melhor a cada dia. Em breve os rapazes não poderão

usar mais meu braço como desculpa para me obrigar a fazer todo o trabalho de
escritório, enquanto saem por aí nas viaturas de polícia.
Henry riu.
— Já decidiu? — perguntou uma jovem garçonete, colocando uma xícara de café
em frente ao Henry.
— Vou querer o que ele está comendo. — Henry acenou em direção a Laray e
entregou o menu de volta à moça. — O que é que você está comendo? — Henry
perguntou a Laray quando a moça não estava ouvindo.
— A lasanha.
— E está boa?
— Sim, se você gostar de pimenta.
Henry tomou um gole de café.
— Uma coisa que temos que admitir sobre a Jessie — disse ele ao pousar a xícara
—, ela não tem sido mesquinha com os grãos de café.
Laray fez que sim com a cabeça.
— Mas por vezes me pergunto quanto tempo ela usa os mesmos grãos.
— Parem com isso vocês os dois — disse Christine, dando a Henry um pontapé
debaixo da mesa de brincadeira.
— Me esqueci — disse Henry. — É melhor termos cuidados os nossos modos. Há
uma dama presente.
Laray o encarou.
— Você me disse que ela era sua irmã mais nova.
— Ela é. Christine é minha irmã mais nova.
— Mas ela tá longe de ser uma criança.
— Eu também lhe disse que ela ia ser a dama de honra da Amber... não?
Laray abanou a cabeça.
— Não me lembro de nada ter sido dito sobre a dama de honra. — Bem, então,
conheça a dama de honra.
Com o olhar de surpresa de Laray, Christine lembrou-se que era ele que ia ser o
padrinho de Henry. Era provável que eles se encontrariam mais vezes.
Por um momento, Laray pareceu ficar sem palavras. Ele corou ligeiramente, depois
recuperou a voz com uma tossida:
— Pelo menos eu poderei escoltá-la no meu braço bom.
Christine sentiu seu rosto ruborizar-se.
— Olha — disse Henry como se de repente pensasse em algo. — Vamos jantar com
a Amber esta noite para repassarmos os planos de casamento. Que tal se juntar a
nós, Laray?
Laray deslocou os pés.
— Acho melhor confirmar com a pequena dama primeiro.
— Amber não se vai importar. Vou telefonar para ela assim que voltar para o
escritório.
— Eu não estava me referindo a Amber — murmurou Laray, dando a Christine um
olhar de relance.
Henry virou-se para Christine, com uma ruga franzindo sua testa.
Ficou claro que ele não achava que ela teria alguma razão para se opor.
— Bem — disse ela dando de ombros. —, se não tiver nenhum problema para a
Amber, parece-me uma boa ideia.

Christine caminhou até à barbearia da Amber naquela tarde, para oferecer ajuda nos
preparativos para o jantar. No caminho da casa de Amber, pararam na casa dos pais
dela para ir buscar o Danny.

O menino não perdeu tempo para expressar seus sentimentos a respeito do


casamento que se aproximava.
— A mamãe diz que você vai ser minha nova tia — disse ele, saltando ao lado de
Christine.
— É isso mesmo.
— E que também vou ganhar outro avô e outra avó.
— É verdade.
— Você sabe que o meu pai morreu?
Ela mal sabia como responder. Aparentemente, Amber tinha achado importante
contar a Danny a verdade sobre o acidente do pai ao cortar árvores e sua morte.
Christine assentiu.
— Não me lembro dele... mas se ainda estivesse vivo, ele se lembraria de mim.
— Tenho a certeza de que lembraria.
— Mas ele não está — por isso vou ter um novo pai.
— Sim, eu sei.
— Ele é muito simpático. A mãe e eu gostamos dele. Muito. É por isso que vamos
nos casar com ele. Eu vou serei o quê, mãe? — o garoto parou abruptamente em
frente da sua mãe.
— Porta-aliança.
— O porta-aliança — repetiu ele, retomando o ritmo. — Esse é um nome
engraçado. Só significa que carrego um anel numa almofada. Carregador de anel. Vi
um urso uma vez. Era mais ou menos preto e mais ou menos castanho. Ele correu
para as árvores. A mãe disse que ele estava assustado. Mas eu não conseguia fazer
mal a um urso. Ele é grande demais!
Christine não pode deixar de rir. Perguntou-se se Danny era sempre tão
entusiasmado e falador, ou se a proximidade do casamento estava fazendo que se
tornasse super enérgico.
— Sabia que está acontecendo uma guerra? Eles estão lutando lá, com armas de
verdade. A professora nos mostrou no mapa.
Oh, Deus, pensou Christine, por que uma professora iria infligir essas notícias sobre
seus alunos? As crianças pequenas não deveriam ter que enfrentar tragédias como
essa.
— Duas pessoas partiram daqui — explicava Danny, gesticulando com as mãos. —
Sam Alguma coisa e... e o outro não sei o nome. Eram cowboys, mas foram para a
guerra. Mas eles ainda não terminaram o que tinham que fazer naquele lugar. Eles
ainda têm que aprender a ser soldados, a disparar as armas e essas coisas. Quando
aprenderem todas essas coisas — então irão para a guerra.
Christine estremeceu em seu íntimo. Será que não tinha jeito de fugir disso? Será
que até os muito pequenos tinham que ser arrastados para a guerra? É não parecia
certo que uma criança tivesse que aprender tanto sobre a maldade da guerra em tão
tenra idade.
A Amber deve ter tido a mesma opinião.
— A senhora Wilbur contou tudo isso a vocês?

— Na-uh — disse ele abanando a cabeça. — O Tommy contou. Tommy contou pra
todas as crianças. Rebecca ficou tão assustada que começou a chorar. Acho que ela
pensou que a guerra ia acontecer aqui, por isso a senhora Wilbur mostrou no mapa.
É um longo, longo caminho. Bem em cima do oceano. Mas a Rebecca diz que vai
ter pesadelos de qualquer maneira. Ela tem sempre pesadelos com alguma coisa.
Serpentes e gatos maus e até aranhas. Ela sempre tem pesadelos.

Christine e Amber trocaram olhares perplexos sobre a cabeça de Danny. Ao menos


foi um alívio saber que não era a professora que enchia pequenas cabeças com
histórias assustadoras.

— O que você acha que deveríamos ter para o jantar? — perguntou

Amber. Christine reconheceu o desvio. — Vamos ter convidados, lembra-se? —


Panquecas — exclamou Danny, batendo palmas.
— Não sei se os nossos convidados iam gostar muito de panquecas para o

jantar. Elas são muito melhores para o café da manhã.


Danny pareceu surpreso.
— Acho que eles preferiam ter algo mais... mais carne e batatas. — É isso que a
senhora acha? — Danny virou uma cara questionadora

para Christine.
Ela detestava a ideia de ser a pessoa a negar s panquecas ao Danny. — Acho que as
panquecas são ótimas. Mas eu concordo com a sua mãe.

Por vezes, os homens que trabalham muito gostam da sua carne e batatas. Danny
olhou para a mãe.
— Depois, se precisarmos de carne, vamos ter peixe frito.
— Receio que não temos peixe neste momento.
— O que é que tem?
— Frango.
— Está bem, então. Vamos ter frango frito — concordou ele, mas com

menos entusiasmo.

Os três entraram na cozinha arrumada da Amber e deixaram sacolas de mercearias


que tinham apanhado no caminho. Danny começou a descarregar o conteúdo.
— Ei — disse ele —, isso é bom.
Ele acenou um pacote de marshmallows
— Agora, não se meta com isso. Preciso deles para a sobremesa que estou

fazendo advertiu a mãe.


— Não posso provar nem sequer um?
— Nem sequer um.
Danny começou a ir para o armário com a embalagem.
— Não precisa guardar. Vou usar os marshmellows assim que trocar de

roupa e lavar minhas mãos. Por que não pega um biscoito e um pouco de leite, e
depois vai brincar com o caminhão?
— Será que também preciso trocar de roupa?
— Por favor, troque.
— Eu troco primeiro... depois vou buscar os biscoitos.
— Um único biscoito — corrigiu Amber.
Danny correu para se trocar.
Conversando enquanto trabalhavam, as duas cozinheiras fizeram não demoraram
muito para encaminhar a refeição. Christine sentiu que teria finalmente a irmã por
quem sempre ansiou. Ela desejava que as suas vidas não fossem vividas a tantos
quilómetros de distância.
— Você já conheceu o Laray? — perguntou Amber.
— Conheci. Henry me convidou para almoçar no café, mas ele ficou ocupado.
Acho que o Laray acabou perdendo no par ou ímpar..
— Ele é um cara fantástico. O Henry gosta mesmo dele.
— Ele parece mesmo simpático.
— Foi uma pena — o acidente com o urso. Mas ele está muito bem agora. O Henry
diz que ele já recuperou quase todos os movimentos do braço. A força talvez ainda
não, mas isso também virá.
Amber provou o molho, acenando com a cabeça com a sua aprovação.
— Nem mesmo pelotas — disse ela com satisfação.
A campainha tocou, e Danny apressou-se para cruzar a casa. — É o seu amigo, mãe
— gritou ele.
Amber sorriu.
—Tem sido um pouco problemático decidir como Danny deveria chamar Henry até
o grande dia. Não achávamos que “pai” fosse apropriado ainda, e não queríamos
Henry — mas qualquer outra coisa soava tão formal.
— Bem, não vai demorar muito até que o “papai” esteja certo.
Christine sorriu ao pensar no irmão como pai.
— Oito dias. Dá para acreditar? Apenas oito dias!
Danny guiou Henry pela mão.
— Ele trouxe o outro rapaz também, mãe — anunciou ele com um aceno em
direção a Laray.
— Entra, “outro rapaz” — convidou Amber com uma gargalhada.
— Estamos quase servindo.
— Mal posso esperar — disse Henry, respirando fundo.
— Vá em frente e sente-se. Vai ficar um pouco apertado ao redor da nossa pequena
mesa — mas vamos conseguir. Laray, pode simplesmente pegar numa dessas
cadeiras que estão nos fundos.
Laray agradeceu à anfitriã e deslizou para dentro conforme as instruções.
Quando todos se reuniram ao redor da mesa, pediram que Laray dirigisse a oração
de graças. A comida, as gargalhadas e as brincadeiras passaram facilmente ao redor
da mesa. Até o Danny foi ultrapassado em sua tagarelice.
Fazia muito tempo que Christine não tinha uma noite de divertimento tão gostoso e
descontraído. Depois que colocaram Danny na cama, os quatro começaram a falar
seriamente sobre os detalhes do casamento. Amber pegou uma folha de papel e
desenhou pequenos diagramas com homens de pauzinho, enquanto explicava como
desejava que fosse arranjada a entrada no altar.
— O papai não vai entrar comigo dessa vez. Ele já fez isso antes. Ele e a mamãe
estarão aqui sentados antes do início da cerimónia. — Ela virou os olhos para
Henry. — Você e o pastor vão entrar pela porta do escritório, aqui.
Ele concordou com a cabeça, parecendo sério, pensou Christine.
— Então Laray e Christine vão entrar pelas portas dos fundos... aqui. — Quer dizer
que não vou ter ele para me apoiar?
O pequeno gracejo de Henry pareceu relaxar um pouco o rapaz. — Pensei que seria
bom se eles entrassem juntos.
Henry concordou.
— Então, entraremos eu e o Danny.
— Juntos?
— Ele pode fazer alguma coisa... bem tola, se entrar sozinho. Além disso, posso
precisar que ele segure minha mão.
— Ah, que fofura — comentou Christine.
— Na verdade, eu quero ele comigo. É que... bem... as coisas vão mudar... depois.
Temos sido apenas o Danny e eu por tanto tempo. Uma última vez... só eu e ele.
Você se importa?

— De modo algum — Henry assegurou-lhe rapidamente. Ele estendeu a mão e


pegou a mão de Amber na sua. Christine viu os dedos de Amber se unirem com
firmeza aos de Henry.
— A partir daí, seremos nós três — prometeu ela. Amber pegou outra lista. — É
aqui onde eu estou no planejamento. A organista — Sra. Claire. A solista — a
Clarice concordou em cantar as duas canções que escolhemos, Henry. As
decorações — a Sra. Boone vai fazê-las, mas ela gostaria de ter alguma ajuda.

— Vou fazer isso — ofereceu Christine.


— Vai? Obrigada. Vai realmente liberar o meu dia, se você puder ajudá-la.

O bolo — a Sra. Dickus está providenciando.


— Parece que as coisas já estão muito bem planejadas.
Henry pareceu estar impressionado.
— Ainda há muito a fazer — suspirou Amber.
— Terei todo o prazer em ajudar da maneira que puder — ofereceu

Christine. — É para isso que estou aqui.


— Estou tão grata por ter outro par de mãos — ou outra cabeça —
acrescentou ela com um risinho. — A recepção será no salão da igreja. Será
bem pequena, mas há o cenário e a organização do bolo, das decorações e de
tudo. Vamos tirar as flores do santuário, mas alguém precisa ficar encarregado
de fazer isso.
— Eu posso fazer isso — disse Laray. Depois, com um olhar rápido
para Henry: — Está bem? Não vai precisar de mim naquele momento, não
é mesmo?
— Não depois do fotógrafo tiver terminado.
— Deve funcionar — disse Amber, mordendo a ponta do lápis. —
Não vamos tirar muitas fotografias.
Na lista, eles passaram a riscar cada item. Quando terminaram, já
tinha passado das dez horas da noite. Christine estava muito feliz por ter
vindo mais cedo para ajudar. Ela elaborou sua própria lista com as tarefas
que tinha se oferecido voluntariamente para cuidar. Laray pediu a ela
que escrevesse também as suas tarefas. Depois, Amber serviu café fresco
e serviram outra fatia de sobremesa, e conversaram sobre outros assuntos. Era uma
noite fria e estaladiça quando desejaram boa noite uns
para os outros na porta. Henry não tinha trazido o carro, por isso os três
caminharam juntos através da escuridão de braços dados, a fim de poupar
espaço na calçada estreita.
— Olha para as estrelas esta noite — observou Henry. — Nunca as
vi tão brilhantes.
— Talvez as veja com uma visão diferente nesses dias — provocou o
Laray. — Pra mim, parecem ser exatamente as mesmas.
— Tenho saudades da aurora boreal. Já viu elas alguma vez aqui tão
longe no sul? —perguntou Christine.
— Não — respondeu Henry.
— Eu nunca vi a aurora boreal... nunca — disse Laray.
— Nunca?
Christine parecia incrédula.
— Nunca.
— Oh, você não faz ideia. Elas são tão... tão espetaculares. Tão belas.
E elas dançam e borboleteiam pelas cores do céu. A gente consegue ouvilas
farfalhando. A gente sente como se pudesse simplesmente estender a
mão e... e agarrar um punhado de magia, elas ficam tão perto. — Parece que você
também está apaixonada — brincou Henry. Todos riram, depois Laray disse sério:
— Gostaria de ver a aurora boreal.
— Oh, você deveria.
— Agora, não fique tão empolgada com isso, mana — Henry a
repreendeu com gentileza. — Quando ela começar a falar do norte e os
seus muitos esplendores, fica toda sonhadora — Henry disse para Laray
em tom de aviso.
— Não consigo evitar — admitiu Christine. — Eu amo o Norte. Chegaram à
esquina onde separariam os caminhos. Laray parecia um
pouco relutante a partir.
— Até mais. Amanhã? — perguntou ele.
O Henry não respondeu.
— Você é corajosa o bastante para experimentar a comida de Jessie
de novo?
Desta vez ficou evidente que Laray estava falando com Christine. — Estou
planejando fazer o almoço do Henry em casa amanhã — ela
respondeu. — Agora sei onde comprar os alimentos.
— Henry Sortudo — disse Laray, dando um pontapé num pedaço de
neve à beira da estrada.
Com outro boa noite, eles se despediram. Era tarde, e as tarefas da
manhã começariam cedo. Amanhã seria um novo dia.
Como tinha planeado, Christine estava com o almoço do Henry pronto às doze
horas em ponto. Ele telefonou cinco minutos mais tarde para dizer que lamentava,
mas que chegaria tarde. Tinha recebido o telefonema de um rancheiro e tinha que ir
verificar.

— Será que vai estar fresquinha? — perguntou ele sobre a refeição.

Ela ficou desiludida. Tinha trabalhado durante toda a manhã para preparar alguns
dos pratos favoritos de Henry.
— Bem, eu posso aquecê-la amanhã de novo. Mas não vai estar tão bom quanto
hoje.
— Então vou falar com Laray para ele ir almoçar. Ele ia adorar uma refeição
caseira.
— Henry, não pode fazer isso. Como ficaria para... as pessoas da cidade...
— Oh — disse Henry. Apenas “Oh”. — Bem, então, por que não embala a comida e
leva para o escritório.
— Embalar tudo? Não permaneceria aquecido nem por dois minutos.
— Depois o Laray pode ir buscar a Amber, e vocês almoçam juntos. Isso ia parecer
bem, não é mesmo?
— Está tudo bem. Podemos comer amanhã.
— Não. Não... você trabalhou tanto! — Henry parecia estar pensando. — Já sei. Eu
paro em casa quando sair da cidade, e levo o Laray comigo.
Não havia nada a fazer, a não ser pôr outro prato.
Christine esperava ter preparado comida suficiente. Ela não tinha contado que ia ter
que alimentar dois homens famintos.
Mas Henry mal parou em casa tempo o bastante para comer. Ele apressou-se a
engolir algumas batatas fritas e um pequeno pedaço do rocambole de carne, depois
empurrou outra fatia entre duas bolachas, embrulhou-os num guardanapo, e voltou a
encher a xícara de café.
— Preciso correr.
E desapareceu.
— Sinto muito — começou Christine enquanto a porta se fechava atrás de Henry.
— Eu não sabia...
— Acho que a sua perda é o meu ganho — disse Laray confortavelmente. —
Estamos habituados a comer correndo assim. Não se preocupe com o Henry. É mais
do que ele normalmente tá acostumado. E muito mais saboroso também.
Christine colocou mais café e passou o bolo de carne novamente.
— Espero que tenha tempo para pelo menos mastigá-lo — ela respondeu.
Laray sorriu enquanto dava uma mordida.
— Você é uma excelente cozinheira — disse ele um pouco mais tarde, enquanto
alcançava o seu Stetson. — Vejamos. Quem eu posso pedir que telefone para o
Henry amanhã?
Christine conseguiu rir.
— O Henry está de folga amanhã. Ele e a Amber irão até Lethbridge para algumas
compras. Eu vou ficar tomando conta do Danny para eles.
— Puxa... vou estar de plantão o dia todo. Quem dera eu pudesse ajudá-la com
Danny.
— Ele não é um problema.
— Quem me dera poder ajudá-la da mesma forma.
Ele deu a Christine outro sorriso, um pouco charmoso desta vez. Ela sentiu as
bochechas arderem.
— Obrigado pelo almoço. Muito melhor do que o da Jessie. Talvez você devesse
abrir um restaurante na cidade, para dar a ela um pouco de concorrência.
Christine riu.
— Eu não, não, senhor. Nem mesmo muitas pimentas conseguiriam esconder os
meus fracassos.
— Estava tudo delicioso.
— Acho que tive sorte.
— Não é isso que estou achando. Fui eu que tive sorte.
Laray colocou o Stetson nos cabelos escuros, deu a Christine outro sorriso, e saiu.
Depois que Laray foi embora, ela ficou refletindo na conversa. O que será que ele
quis dizer? Será que estava flertando com ela? Será que Laray tinha achado que a
ideia de ele almoçar ali tinha sido dela? Christine precisava ter uma conversa séria
com o irmão.
Q

UANDO chega o AMANHÃ


Capítulo 7
C

hristine foi surpreendida pela quantidade de atividades da semana seguinte. Além


de tentar cozinhar e fazer um pouco de trabalhos domésticos leves para Henry,
passou muitas horas tomando conta de Danny, enquanto Amber arranjava detalhes
de última hora, e mais algumas

horas riscando tarefas da sua própria lista de afazeres. A véspera de Natal, a data do
casamento, cairia numa sexta-feira à noite. Na quinta-feira, Elizabeth e Wynn
chegaram, juntamente com Jonathan e Mary. Isto significava mais gente para
refeições e visitas, apesar de tomadas providências para que os dois casais ficassem
hospedados na casa dos pais da Amber.

Embora Henry parecesse estar notavelmente calmo, Amber estava começando a


ficar nervosa. Danny estava desenhando no chão da cozinha, onde outros estavam
fazendo preparativos para a recepção.

— Danny, você tem que sair do meio das pés da gente — repreendia
Âmbar. — Tenho medo de que alguém esbarre em você com algo quente. — Vou
arranjar um pai... bem rapidinho — cantarolou o menino, indo
para um canto da cozinha, mas sem sair do aposento.
O clima tinha cooperado, e foi muito melhor do que qualquer um deles
se atrevera a esperar. Embora as temperaturas de inverno significassem que
ninguém conseguia ficar mais que alguns minutos do lado de fora, não ocorreram
mais tempestades fortes, com neve soprando por toda a pradaria descampada.
Obrigada, Senhor, Christine sussurrou enquanto realizava o seu trabalho. Ela tivera
a conversinha com Henry e foi bastante clara. Não queria ser
empurrada a um contato repetido com Laray. É verdade, ele parecia ser um
bom rapaz, mas ela estava longe de estar pronta para qualquer tipo de relação.
Depois, ela ficou se perguntando se Henry tinha conversado com Laray. O
jovem policial montado estivera evidentemente ausente a partir de então.
Christine quase lamentou a decisão apressada. Ela esperava não ter feito nada
para magoá-lo. E se ele pensasse que a hesitação de Christine estava relacionada
ao ferimento do seu braço? Laray fez algumas insinuações de que estava
consciente do fato de que já não era mais o homem que tinha sido. Mas Christine
teve pouco tempo para se preocupar com isso. Todos
os momentos em que estava desperta foram destinados à preparação para o
casamento. Ela não fazia ideia de que casamentos, mesmo os mais simples,
exigissem tanto tempo e preparação.
Assim que Elizabeth entrou em cena, seguida pela tia Mary, as duas se
apressaram para fazer isso e se envolver naquilo. Christine percebeu que a mãe
estava verdadeiramente tentando ajudar e sentir que fazia parte de tudo, mas
na verdade, tornou as coisas mais difíceis. As listas de tarefas cuidadosamente
preparadas estavam continuamente sendo perturbadas e alteradas. Ninguém
teve a coragem ou a insensibilidade de pedir às duas entusiasmadas mulheres
para fazerem favor de se absterem de ser tão prestativas.
A manhã de sexta-feira amanheceu brilhante e fria. Tão fria, que Christine
teve de proteger o rosto enquanto caminhava rapidamente a curta distância
até à casa de Amber. Ela não lembrava nem de o Norte ser tão gelado. Mas ela
certamente estivera mais preparada para o frio no norte. As parkas revestidas
com pelo eram bastante diferentes dos quadrados fininhos de algodão sobre a
cabeça das pessoas.
De alguma forma, eles conseguiram passar o dia com a maioria das coisas
saindo como o planejado. Henry, que iria apanhar flores em Lethbridge, ficou
se perguntando se as flores congelariam antes de levá-las para casa. Laray, que
o tinha acompanhado, acabou levando o buquê de Amber nos braços durante
todo o percurso de regresso. O aquecedor do carro mal conseguia manter o
interior do veículo acima do congelamento.
O casamento estava marcado para as cinco horas — a primeira hora que
as luzes das velas seriam eficientes. Os convidados do casamento seriam levados
do salão da igreja logo depois para o recepção que ocorreria logo em seguida.
Enquanto eles estivessem sendo acomodados, seriam tiradas fotografias da noiva
com a família diante do altar. Depois, se tudo corresse bem, prosseguiriam para
a ceia de casamento.
Seria sem dúvida tarde quando terminassem o curto programa e a abertura
de presentes. Henry tinha decidido não se arriscar a pegar estrada em lua-demel
numa hora tão tardia. Em vez disso, fez arranjos com um rancheiro local
para pedir emprestada uma pequena cabana escondida nas colinas, a oeste da
cidade.
Laray conhecia o local. Era seu dever atear a fogueira para que dessa
forma, o lugar já estivesse agradável e aquecido quando Henry e a nova noiva
chegassem. Christine tinha sido informada do plano, embora ela não tivesse
visto a cabana. Parecia maravilhosamente romântico para ela. Uma cabana
acolhedora no bosque, com lareira acesa e à luz de velas. Henry tinha até
acertado para ter o seu tapete de pele de urso diante da lareira.
Os pensamentos de Christine foram mais uma vez para Boyd. Ela tinha
amado ele. O pensamento da sua escolha errada ainda trazia dores ao coração,
apesar de já não se sentir atraída pelo homem. Ele tinha tanta raiva e arrogância
enterrada nas profundezas da sua alma. Ela orou para que um dia, muito em
breve, ele se entregasse a Deus.

— Amber, aceita Henry...

As conhecidas palavras do casamento ficaram registradas na mente e coração de


Christine. Ela ficou ao lado de Amber, que parecia encantadora em seu vestido de
noiva, segurando o buquê de flores. Christine olhou para o Henry, bonito e robusto
no uniforme oficial.
Christine segurou as lágrimas, surpresa com as próprias emoções, ao perceber que o
irmão agora pertencia à mulher que estava ao seu lado. Ouviu a resposta trémula,
mas firme de Amber “eu aceito”.

Depois veio o sussurro em voz alta de Danny, “Ele é o meu pai agora?” O “shh” de
Laray foi submerso pela onda de gargalhadas por toda a congregação. “Logo, logo”,
Christine ouviu Laray sussurrar. Danny balançou um pé, calçado com um par
novinho de mocassins, arrancando a fita que segurava os anéis na almofada.
Christine temia que ele de alguma forma conseguisse arrancá-las. Ela enviou uma
mensagem silenciosa para Laray, que se aproximou e segurou dedos inquietos de
Danny nos seus. Christine lançou outra mensagem de agradecimento.
Quando o casal trocou as alianças, Christine ficou aliviada ao ver que os dois
pequenos arcos de ouro tinham sido transferidos em segurança da pequena
almofada de Danny e tinham sido colocados nos dedos apropriados.
A cerimónia continuou. “...Eu vos declaro marido e mulher”, acabou ouvindo o
ministro dizer.
— Agora posso? — perguntou Danny, e Laray fez que sim com a cabeça.
A almofada do anel de Danny foi jogada para o ar, junto com um triunfante whoop,
depois abraçou as pernas de Henry.
Havia lágrimas nos olhos de outras pessoas além de Henry quando ele tomou o
garotinho em seus braços. O beijo do noivo e sua nova noiva acabou sendo um
evento com três participantes. Christine mal conseguia ver através das próprias
lágrimas. Estava muito contente por se ter lembrado de esconder um lenço no seu
ramo de flores. Quando conseguiu se recuperar, descobriu que, de alguma forma,
em toda a emoção do momento, ela estava de pé com a mão firmemente agarrada
por Laray. Será que ela tinha se achegado a ele? Será que ele tinha visto suas
lágrimas e oferecido apoio? Ela não fazia ideia de como isso tinha acontecido. Suas
bochechas queimaram de vergonha. Como ela ia conseguir escapar sem causar uma
cena? Mas Christine não precisava de se ter preocupado. Quase que imediatamente
ela sentiu que os dedos de Laray suavemente libertarem os dela.
Danny, Henry e Amber finalmente terminaram a seção de abraços e retomaram o
decoro apropriado para uma cerimónia de casamento. Mas os olhos de Danny
brilhavam enquanto Henry o punha de pé e ele se virava para Laray. Antes mesmo
que o dedo de Laray pudesse tocar-lhe os lábios em aviso, Danny anunciou
orgulhosamente:
— Agora ele é realmente o meu pai!
Laray concordou enquanto o ministro dizia:
— Senhoras e senhores, permitam-me que vos apresente o Sargento e a Sra. Henry
Delaney... e seu filho, Danny.
Aplausos calorosos e prolongados seguiram o grupo do casamento até a porta.
O longo dia estava terminando. Christine, que agora tinha trocado seu novo tailleur
de madrinha da noiva para uma simples saia e camisa, os saltos altos trocou por um
par de sapatilhas de malha, colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e enrolou
outro comprimento de serpentina de papel crepom.
— Cansada? — Laray foi capaz de oferecer a sua simpatia na única palavra.
— Exausta — respondeu Christine, com a insinuação de um sorriso.
— Estamos quase acabando.
Ela concordou com a cabeça.
— Por que não se senta um pouco enquanto eu termino?
— Estou bem.
— Pensei que talvez pudéssemos tomar um café quando terminarmos, para
relaxarmos um pouco.
— Onde? Nem a Jessie vai estar de portas abertas na véspera de Natal.
Laray concordou.
— Talvez tenhamos de preparar nosso próprio café.
— Onde? — Christine não conseguiu esconder a surpresa ao ouvir tal sugestão.
Laray parecia estar pensando, mas quando lhe respondeu, Christine perguntou-se se
ele ainda não tinha pensado bem no assunto.
— Vai sair daqui direto para tomar conta do Danny?
— Sim. Meus pais levaram ele para casa, para dormir, mas eu disse que ia pra lá.
— Talvez possamos usar a cozinha da Amber. — Antes que Christine pudesse
expressar uma objecção, ele continuou falando em tom jocoso: — Não consigo
fazer muita coisa, mas sei preparar uma boa xícara de café.
Christine não pode deixar de rir.
— Está bem. Uma xícara de café. Talvez a mamãe e o papai também estejam
prontos para uma.
Se não era realmente isso que Laray tinha em mente, ele não disse nada.
Rapidamente Christine colocou a última peça das decorações nas caixas. —
Finalmente. Muito obrigada pela ajuda. Eu teria ficado aqui até à meianoite, se não
fosse você por você.
— Detesto te dizer isso — mas agora é quase meia-noite.
Christine olhou de relance para o relógio.
— É mesmo. Não é de admirar que eu esteja assim cansada. Agora temos que
carregar este material.
— Por que não o empilhamos aqui? Virei apanhar tudo isso pela manhã.
— Você não tem que trabalhar?
— Rogers está no primeiro turno de amanhã. Eu vou substituí-lo à tarde.
Christine fez que sim com a cabeça, agradecida por ter terminado o dia. Ela tirou as
pantufas e deslizou os pés para dentro das botas.
— Se quiser passar, e vir me buscar, eu ajudo — sugeriu ela.
Ela não deixou de ver a animação nos olhos de Laray.
— Vou fazer isso.
— Desde que, claro, não seja muito cedo.
— Que horas é cedo demais?
— Meio-dia — disse ela rindo.
— E o Danny?
— O Henry vai voltar para buscar o Danny e levá-lo para a cabana. Eles vão ter a
primeira manhã de Natal juntos.
— Ei. Isso é ótimo. Esse seu irmão pensa em tudo. Será que o Danny sabe?
— Não ousamos contar a ele. Achamos que ele nunca ia conseguir dormir se
estivesse ansioso pela manhã, ou poderia ter insistido em ir com eles esta noite.
Laray pegou no casaco de Christine e ajudou-a a vestir.
Quando deixaram a igreja, Christine ficou surpresa ao descobrir que o ar mais
quente tinha substituído o frio extremo, e suaves flocos de neve tinham começado a
cair. Ela levantou o rosto em direção aos céus e deixou os grandes flocos felpudos
esfriarem as bochechas aquecidas.
— É lindo — ela sussurrou. — Como devia ser na véspera de Natal.
Laray limpou a sua garganta.
— Por falar em beleza... — ele hesitou. — Hoje você estava muito bem.
Christine se virou. Ela esperava mesmo que ele não fosse falar nenhuma bobagem,
mas não disse mais nada.
— Obrigada — murmurou ela em resposta ao elogio. Afinal de contas, “muito
bem” não era tão difícil de aceitar.
Depois da curta jornada até à casa de Amber, eles viram uma luz brilhando na
janela da frente. Christine podia ver a mãe numa poltrona, a cabeça recostada em
repouso, e sorriu. Elizabeth tinha ficado tão elegante com o tailleur cinza, que se
destacava com uma nova blusa de seda azul pálido. Estava contente porque o pai a
convencera a comprá-la.
Christine estava prestes a abrir a porta da frente quando sentiu a mão de Laray
segurando a sua. Ele estava perto... muito perto. Ele a fez sentir-se aflita. Estendeu o
relógio de bolso, que ela mal conseguia enxergar através da luz da janela.
— Feliz Natal — sussurrou-lhe ao ouvido.
Christine sentiu o corpo se contrair, mas conseguiu responder num sussurro “Feliz
Natal”.
Laray abriu então a porta silenciosamente e eles entraram. Elizabeth ergueu a
cabeça imediatamente.
— Acabou finalmente? Eu devia ter ficado e ajudado.
— De jeito nenhum. Desculpe por ter mantido a senhora acordada por tanto tempo.
Como está o Danny?
— Bem — respondeu Wynn, pondo de lado o jornal —, tivemos que contar meia
dúzia de histórias sobre o norte congelado e os índios, e prometer uma ou duas
excursões de pesca — e uma dúzia das musiquinhas de ninar da sua mãe. Mas ele
finalmente dormiu.
— Desculpa — disse Christine novamente. — Vocês devem estar horrivelmente
cansados.
— Não há necessidade de desculpas. Tivemos uma noite encantadora — Elizabeth
se levantou com um sorriso contente no rosto. — Fiz café fresco e cortamos um
bolo de Natal. Pensei que gostariam de desfrutar aqui junto ao fogo.
Christine sentiu o rosto enrubescer. Ela estava encurralada. Não havia maneira de
mandar Laray embora agora sem parecer muito mal-educada. Ela fez que sim com a
cabeça, incapaz de dizer sequer um agradecimento. Quando se recuperou, falou
rapidamente.
— Vocês vão ficar e comer alguma coisa com a gente?
— Sua mãe e eu já celebramos juntos o Natal que se aproxima — disse o pai,
procurando o casaco de Elizabeth. — Agora vai ser bom descansarmos um pouco.
— Mas é Natal — salientou Christine, em movimento em direção ao relógio da
lareira.
— É mesmo. Bem, Feliz Natal para vocês — disse Wynn rindo. Depois inclinou-se
e beijou Elizabeth no nariz. — E um Feliz Natal para você também, minha querida.
Pai, não começa com disso, Christine queria exclamar. Mas Laray não fez nenhum
movimento para fazer o mesmo e se despedir.
— Vou buscar o café — disse ele em vez disso, e, desejando aos Delaneys uma boa
noite, dirigiu-se para a cozinha.
Sentindo-se ainda tensa, Christine tirou o casaco e foi até a lareira para olhar
fixamente para o fogo. Ela esperava que não tivesse dificuldade em conseguir que o
rapaz fosse embora. Sentia-se cansada e sem um pingo de ânimo para qualquer tipo
de papinho e conversa íntima. Como é que ia lidar com essa situação?
Logo em seguida, Laray voltou com duas xícaras de café. Ele colocou uma sobre a
mesinha ao lado de Christine.
— Sei que você está cansada — disse ele, colocando a xícara dele no chão — por
isso vou embora assim que provar um pedaço do bolo de Natal da sua mãe.
Christine sentiu os ombros relaxarem, e sentou-se enquanto Laray voltava para a
cozinha para pegar o bolo.
— Qual foi o momento que você mais gostou no dia? — perguntou Laray quando
entregou o prato a Christine.
Ela sorriu.
— Danny, acho eu. Ele é fofo demais, não é?
— Sim. O Danny tirou realmente a tensão de toda o evento.
— Acha casamentos... tensos? — Christine olhou para ele sobre a borda da xícara.
Laray não hesitou.
— Sim. Você não acha?
Christine negou com a cabeça.
— Acho que são... bonitos.
Laray se mexeu de forma desconfortável.
— Sim — ele concordou —, quando acabam.
Ele deu uma mordida no bolo e murmurou com apreço.
Christine esticou os pés cansados mais próximos ao fogo.
— Bem, este aqui está acabado. Não posso acreditar que finalmente tenho a irmã
que sempre sonhei em ter. E um sobrinho esperto para completar. Só queria que eles
não vivessem tão longe.
A voz dela ficou melancólica.
— Então por que não fica aqui? — perguntou Laray.
— Isso, e assim que eu conseguir me estabelecer, a Polícia Montada vem e transfere
o Henry.
Christine sorriu com pesar.
Laray concordou. Isso era o mais provável de acontecer mesmo.
— Você viveu com a Polícia Montada por tempo demais — observou ele.
— A maior parte da minha vida.
— Você já teve algum tipo de... ressentimento?
Christine ficou surpresa com a pergunta.
— Nunca — disse ela enfaticamente.
Ele se mexeu no lugar.
— Algumas mulheres têm.
Foi uma afirmação simples. Uma que Christine não podia negar.
— E você gostava de morar no norte?
— Eu amo o norte.
— Você voltaria pra lá?
— Sem nem parar pra pensar.
Houve silêncio, exceto pelo crepitar do fogo.
— Acho que eu ia gostar de tentar morar no norte — disse Laray.
Christine inspirou rapidamente, prestes a lançar-se numa animada ladainha falando
sobre as belezas e vantagens do Norte. Mas optou por fechar a boca com firmeza.
Que rumo estava tomando essa conversa?
— Acho que você ia gostar — foi só o que disse.
— Sim, então... agora gosto deste bolo de Natal aqui. Mas acho que já estou farto,
por isso é melhor ir pra casa, direto pra cama. Eu trabalho no turno da noite de
amanhã, por isso terei de ser capaz de manter os meus olhos abertos. Espero que
seja tranquilo, considerando que é Natal — mas nunca se sabe.
Christine ficou aliviada quando Laray pôs de lado a xícara e ficou de pé.
— Suponho que a verei no culto de Natal?
— Oh, eu tinha esquecido — exclamou Christine com um lamento. — Que horas
começa o culto?
— Às oito e meia.
— Oito e meia — significa não dormir muito. Por que vai ser tão cedo?
— Porque é Natal. Porque as crianças se acordam às cinco, e o almoço só sai à uma
hora.
Laray arriscou.
— Estarei lá — concordou Christine —, mas não tenho certeza de que meus olhos
estarão abertos.
— Eu vou passar por aqui para te pegar.
— Não, não, a caminhada me fará bem. Pode ser até que me deixe desperta o
bastante para saber o que está acontecendo.
Laray riu novamente:
— Mas nós íamos carregar essas caixas — Christine lembrou-se.
Laray deu de ombros.
— Não se preocupe com as caixas. Eu tomo conta delas.
Acenou com uma mão em direção à Christine e foi embora.
Christine ficou olhando para ele, depois voltou para a lareira. Só restavam brasas
piscando e estalando entre as cinzas e os pedaços carbonizados do tronco.
Ela não precisava de ter ficado tão preocupada. Laray não tinha dito ou feito nada
de mal. Nenhuma indicação de interesse numa futura aliança. Nenhuma tentativa de
fazer mais elogios. Nenhuma sutil aproximação. Nada.
Por um breve momento, Christine não estava certa se sentia alivio — ou
desapontamento.
Foi uma leve agitação que despertou Christine. Por um momento, ela buscou por
um significado, enquanto se esforçava para retomar a consciência. Henry tinha
vindo buscar o Danny, podia afirmar, pelos sons e vozes abafadas, que ele estava
advertindo o Danny para ficar quieto e não acordar a tia Christine. Com um sorriso
adormecido, ela saiu da cama e pegou o robe.

— Então conseguiu? — disse ela com um bocejo, saudando os dois no corredor.


A empolgação de Danny não pôde ser contida.
— Eu vou para a cabana, para passar o Natal com a minha mãe e o meu pai.
— Eu fiquei sabendo.
— O nosso primeiro Natal — exclamou Danny. — Eu até comprei um presente para
a mamãe. O papai me ajudou a comprar.
Danny mostrou o presente que tinha comprado. Christine percebeu que ele mesmo
tinha embrulhado. Amber ia ficar encantada.
— O que é o presente? — sussurrou ela, para manter o suspense.
— Não posso dizer. É segredo — sussurrou ele de volta, à moda Danny.
— Mas sua mãe não está aqui.
Ele parecia duvidoso. Segredos eram segredos.
— Não posso contar, de jeito nenhum.
Christine concordou e deu um abraço no menino.
— Divirta-se — disse ela.
Danny pretendia fazer exatamente isso.
— Estaremos de volta para o jantar — prometeu Danny. — Depois a mamãe e o
papai vão partir para a... em que lua mesmo, papai?
— A lua-de-mel — disse Henry rindo.
Com uma agitação de saudações e despedidas, eles partiram, e Christine

JANETTE OKE
dirigiu-se para a cozinha. Henry já tinha colocado um bule de café no fogo. Ela ia
se vestir. O café estaria pronto quando voltasse.
Christine não teve problemas para ficar alerta. A caminhada para a igreja a
despertara totalmente. Fiel à sua palavra, Laray já tinha retirado as caixas para
guardar mais tarde. Ela podia relaxar totalmente e entregar-se ao culto de
celebração. Christine sentou-se ao lado da mãe no momento em que o órgão iniciou
a primeira canção. Em seu coração, tinha a sensação de que este seria um Natal a
ser recordado durante muito tempo.
Capítulo 8
C

hristine fez mais uma viagem ao quarto para dar uma olhada em Danny, antes de se
retirar. Tinha sido mais um dia atarefado, e ela estava cansada. O dia seguinte ia ser
domingo, e depois da manhã de culto, ela ia poder desfrutar de um dia de
relaxamento e descanso. Os pais, com

o tio Jon e a tia Mary, iam partir à tarde para a viagem de regresso a Calgary. De
certa forma, Christine mostrou-se relutante ao vê-los partir. Desejava ir com eles, ao
mesmo tempo que aguardava ansiosamente a semana com o sobrinho. Mas sem
aulas na escola para Danny frequentar, por causa das férias de Natal, Christine não
sabia muito bem como iam preencher seus dias juntos.

Danny estava dormindo profundamente, abraçado ao carro novo que ganhara de


Natal. Christine retirou-o com cuidado colocou-o em cima da cômoda.

Parece-me que teria sido mais sábio se Henry desse a ele um ursinho de pelúcia,
pensou. Seria um companheiro de sono muito melhor.
Colocou as cobertas sobre os ombros gorduchos e foi para a sala. Planejara começar
a ler o novo romance que a mãe lhe dera de presente de Natal, mas sentia-se
sonolenta demais para sequer pensar no assunto. Depois de ir mais uma vez até a
porta da frente, para se certificar de que estava trancada com segurança, ela apagou
a luz.
Um motor de carro roncou, e assim que ela espreitou pela cortina, uma viatura
policial deslocou-se para o fim da rua. Será que Laray teve a intenção de visitá-la
mas mudou de ideia quando a luz apagou? Ela ficou na sala escurecida e perguntou-
se mais uma vez se tinha ficado aliviada ou desapontada.
Os dias com Danny correram melhor do que Christine ousara imaginar. Ele era uma
criança fácil de cuidar. Ficava um pouco cansada de ler o mesmo livro várias vezes,
e era um pouco cansativo jogar Cobras e Escadas uma dúzia de vezes, mas, na
maior parte do tempo, os dois se deram muito bem.
Às vezes de manhã, depois de um generoso café da manhã, ou à tarde, quando o sol
estava no auge, eles saíam para caminhar. Christine viu-se fazendo anjos na neve e
desenhando na vastidão branca. Tentaram construir um boneco, mas a neve era
grossa e fria o sufuciente, e não se moldava adequadamente.
Na quarta-feira, Laray apareceu à porta.
— Como vão? — perguntou ele casualmente, e Christine acenou, dizendo que as
coisas estavam muito bem, e o convidou para entrar.
— Que bom. Estava pensando se já estava cansada da sua própria comida.
— Ela é uma boa cozinheira — respondeu Danny, que estava no chão brincando
com o carro.
Laray não voltou a mencionar a comida, mas sentou-se no chão ao lado de Danny.

— Ei, que carro fantástico.


— O meu pai me deu. De Natal.
— É quase tão bom quanto a minha viatura.
— É melhor ainda.
— Bem, talvez seja mesmo. Deixa eu ver.
Laray inspecionou o carrinho de brinquedo com cuidado.
— Acho que tem razão. É melhor. — Devolveu o carro para Danny. —

Quem me dera ter um como esse. Podíamos brincar juntos.


— Pode usar o meu velho.
— Ora, essa é uma grande ideia.
Danny correu para pegar o carro velho, e Laray se virou e se esticou no

chão. Christine pensou que ele parecia cansado.


Como Henry estava viajando, ele tinha trabalho em dobro. Ela pegou uma cadeira e
sentou-se próximo a ele.

— Como têm ido as coisas no escritório? Aconteceu alguma grande... como é que
vocês chamam? Ocorrência?
— Nada muito sério. — Ele virou a cabeça para olhar para ela. — Mesmo assim,
vou ficar contente quando o chefe voltar.
Christine falou num impulso repentino e com a mesma rapidez lamentou suas
palavras.
— Olha, por que você não fica e janta conosco?
Ora, por que é que fui fazer isso? repreendeu-se intimamente enquanto se levantava
da cadeira. Não que estivesse preocupada se teria comida suficiente para três. Ela
tinha feito muito. Só que Laray poderia entender de forma equivocada.
Mas era tarde demais. Ele já estava sorrindo.
— Você me convenceu, eu ia adorar.
Danny voltou correndo com o velho carro, que entregou a Laray.
— O meu novo é muito melhor — disse ele, como um pedido de desculpas. —
Podemos revezar.
— Ei, esse aqui tá muito bom para mim. Não tenho que me preocupar nem um
pouco em talhar um para-lamas.
Christine saiu para a cozinha. Enquanto trabalhava, ouvia os dois brincando. Não
sabia dizer qual dos dois estava se divertindo mais. Brincar de carrinho deve ser
algo que um homem jamais deixa de gostar.
A brincadeira continuou até mesmo na mesa de jantar. Os carros só foram
estacionados quando inclinaram a cabeça para a oração de agradecimento.
Danny estava perfeitamente à vontade com Laray, por isso manteve uma constante
falação durante a refeição. Christine sentiu-se aliviada. Pelo menos ela não ia ter
que tentar puxar assunto.
Laray insistiu em secar os pratos. Christine protestou:
— Está tudo bem. Você tem que voltar ao trabalho.
— Já terminei meu expediente por hoje.
— Ah.
Parecia que não havia muito mais a dizer.
Mas não foi tão ruim quanto ela temia que fosse. Laray falava facilmente sobre
Henry e seu trabalho no escritório da Real Polícia Montada do Canadá. Christine se
percebeu ouvindo atentamente todos os elogios tecidos pelo jovem ao seu irmão
mais velho.
— Ele sempre foi assim — disse ela. — Consciente e cuidadoso.
Laray pendurou a toalha de cozinha.
— Eu acrescentaria outra palavra com ‘c’. Confiante. Não... não arrogante. Mas
confiante. Faz uma grande diferença quando o seu chefe está seguro de si mesmo.
Eu nunca vi ele perder o controle. O Delaney — Henry, só segue tranquilamente
fazendo o que tem que ser feito.
Christine torceu o pano de prato, pensando no que Laray tinha dito. Ela sabia que,
tradicionalmente, os policiais montados chamavam uns aos outros pelos
sobrenomes. Perguntou-se por um instante se “'Laray” era o primeiro ou último
nome. Então disse:
— Eu nunca pensei no Henry dessa forma — mas você tem razão. Talvez ele tenha
aprendido a ser assim com o papai. O papai sempre foi assim.
— Seus pais são gente muito boa.
Christine concordou.
— São mesmo.
— Eu perdi meu pai quando tinha seis anos. — Foi dito sem emoção, mas a
declaração devastou o coração de Christine. Uma imagem do pequeno Danny
passou pela sua mente. O que ele tinha perdido — e agora tinha encontrado.
— O que aconteceu?
— Ele era um lenhador. Foi esmagado.

— Sinto muito.
— Minha mãe se casou outra vez — quando eu tinha sete anos. Christine esperou.
O novo pai era bom ou... mau?
— Ele era um bom homem. Até fez que entrássemos na igreja. Aliviada, ela
começou a guardar os pratos secos de volta no armário. — Nós nos dávamos bem
— mas não era o mesmo que ter o meu pai. Ele

nos alimentou e vestiu, e nunca nos maltratou — mas nunca nos deu muita atenção.
Acho que isso já era esperar demais. Com o tempo, nasceram mais cinco crianças
na família. Isso é o máximo que o amor pode alcançar.

Christine queria argumentar, mas não sabia o que dizer ou como o dizer. — De
qualquer modo, nos demos bem. Eu tenho duas irmãs mais velhas e um irmão mais
velho e outras duas irmãs mais novas do que eu, que eram da primeira família.
Todos nos saímos bem.

— É uma grande família — comentou Christine, mentalmente a fazer a aritmética.


—Onze crianças. Uau!
— Era uma casa cheia.
Danny voltou com um livro ilustrado.
— Viu este grande caminhão? Transporta toras e outras coisas.
Ele empurrou o livro para Laray.
— Vamos dar uma olhada.
Eles saíram juntos da cozinha, e Christine acabou de arrumar os pratos e retirou
lentamente o avental. Ficou se perguntando o que iam fazer com o resto da noite.
Certamente Laray não estava à espera de ser entretido. Ela podia ouvi-lo agora a
acrescentar outro tronco ao fogo. Com um profundo suspiro ela entrou para se
juntar a eles.
Ela foi surpreendida quando Laray lhe perguntou:
— Tem algo que você queira fazer? Vou ter o maior prazer em tomar conta do
Danny, se você quiser sair para tomar um ar fresco — ou fazer qualquer coisa.
Christine pensou rápido. Ela acolheria de bom grado este inesperado “tempo livre”
— mas não tinha ideia de como podia usar a oportunidade. As lojas já estavam
todas fechadas durante o dia.
Não havia realmente ninguém que ela conhecesse aqui que desejasse visitar. Parecia
tolice dar apenas um passeio no escuro. Ela finalmente balançou a cabeça.
— Então talvez devêssemos ir todos dar uma volta. As estradas estão boas.
Podíamos dirigir até o mirante e mostrar as estrelas para o Danny. Eu era doido pelo
o céu noturno quando estava crescendo. Passava horas à procura das diferentes
constelações. Aqui não há luzes do Norte, mas podemos ver algumas estrelas — é
como se pudéssemos estender a mão e tocá-las.
Christine se preparou para dizer não, mas Danny já estava batendo palmas animado.
Que desculpa boa o bastante ela tinha para desapontá-lo?
Ela fez que sim com a cabeça, e Danny correu para pegar o casaco e as botas.
A noite acabou por ser extremamente agradável. Assim que eles deixaram as luzes
da cidade, as estrelas pareciam saltar para fora da escuridão. Quanto mais longe
viajavam, mais brilhantes as estrelas se tornavam.
— Uau — disse Danny, inclinando-se para trás para olhar para cima a sua janela. —
Elas são realmente grandes. E são muitas. Você sabia que tinha tantas?
Laray sorriu.
— Você achas que tem cem? — Danny continuou.
— Muito mais que cem.
— Você já contou elas?
— Ninguém contou as estrelas.
— Aposto que Deus contou.
— Acho que você tem razão.
— Elas tem nomes?
— Sim, acho que muitas delas têm. Algumas até foram nomeados antes do tempo
de Jó. Ele fala sobre elas na Bíblia, no capítulo nove. Órion. A Ursa. Plêiades. Vou
te mostrar.
Christine ficou impressionada com o conhecimento de Laray sobre as Escrituras.
Laray encostou e parou o carro. Do mirante onde estavam, toda a abóboda celeste
estava em exibição. Não havia nenhuma nuvem escondendo à vista de qualquer
uma das miríades de estrelas que cintilavam acima deles.
— Ora, se nós tivéssemos apenas algumas auroras boreais, ficaria perfeito —
comentou Laray.
— Perfeito — repetiu Christine.
— O que são as auroras borais?
— Boreais — explicou Christine. — Refere-se ao norte. São luzes especiais que
Deus colocou nos céus. Luzes de todas as cores, e elas dançam e... não são como as
estrelas que apenas cintilam. São... são inteiras... folhas inteiras de luz que mudam e
se movem e... — Christine parou. Como é que explicaria a aurora boreal a um
garotinho?
— Como um relâmpago?
— É, mais ou menos como um relâmpago... mas diferente. Acho que não há
realmente nada como elas para comparar.
— Eu gostaria de ver a aurora.
— Talvez um dia seu papai — ou o vovô — possam te levar lá.
— Eu ia adorar.
Christine foi rápida em advertir:
— Isso não é uma promessa. Foi apenas um... um talvez... um dia.
Danny concordou solenemente com a cabeça. Christine esperava que ele
compreendesse.
A aula de astronomia começou a sério com Laray apontando e nomeando as várias
estrelas e planetas visíveis. Christine ficou surpresa com o conhecimento que ele
tinha. Para ajudar Danny a localizar o que apontava, Laray desenhava diagramas na
neve.
— E isto é Orion. Os pontos estrela são assim e o esboço do Caçador está aqui —
assim.
Danny olhou o diagrama e depois para o céu.
— Eu consigo ver — exclamou ele. — Vejo sim. Ali mesmo. Viu?
— Olha — Christine exclamou enquanto uma estrela cadente descia pelo céu,
deixando uma longa e brilhante cauda em sua passagem. — Uma estrela cadente.
Danny ficou de boca aberta até que se desfez o último lampejo de luz.
— Por que é que ela caiu?

Ele se virou para Laray.


— Acho que ninguém sabe ao certo.
— Para onde ela foi?
— Ela se consome — enquanto cai.
— Agora Deus já não tem mais aquela estrela.
Danny soou tão triste que Christine abraçou o ombro do menino. Até
Laray parecia afetado pela desilusão de Danny. Não fazia sentido dizer a ele que
Deus tinha milhões de outras estrelas. Isso realmente não importava. Em vez disso,
Laray sabiamente voltou a atenção do garoto para todas as outras que ainda estavam
lá.
Laray finalmente verificou o relógio.
— Acho que está na sua hora de dormir.
Christine não conseguia acreditar como o tempo tinha passado rápido. Danny sabia
que era melhor não se opor.
— A gente pode fazer isso de novo? — perguntou ele em vez disso. — Claro. Por
que não? As estrelas estão lá em cima todas as noites. — Algumas vezes não
conseguimos vê-las.
Laray pegou Danny pela mão.
— Às vezes não conseguimos vê-las — mas elas estão lá da mesma maneira. Foi
uma viagem tranquila de regresso à cidade. Laray não fez menção de

entrar com eles. Acompanhou os dois até à porta e esperou até que Christine
acendesse a luz, depois desejou-lhes boa noite.

Danny tomou banho, vestiu o pijama e foi colocado na cama. Christine sorriu ao
ouvir a oração do menino. Além das costumeiras súplicas, ele tinha acrescentado
mais uma.

— E, Senhor Deus, por favor, não deixe que muitas de Suas estrelas caiam, porque
gosto de olhar para elas.
Christine beijou-lhe a bochecha e o cobriu até o pescoço.
De volta à sala de estar, ela agitou o fogo e o alimentou. Não porque o calor era
necessário, mas pelo conforto. Por alguma razão, que ela não conseguia explicar,
sentiu-se estranhamente solitária. Perguntou-se se isso teria algo a ver com aquela
estrela cadente, que estava perdida para sempre.

Receberam a visita de Laray no dia seguinte.


— Considerando sua gentileza em me convidar para jantar ontem à noite, achei que
devia levar você e Danny para sair esta noite. Que tal?
Parecia uma boa ideia, mas ainda que tivesse as palavras de aceitação nos lábios,
Christine se questionava se estava sendo sensata.
— De hoje até o dia que seu irmão voltar eu vou trabalhar no turno da noite. Esta é
minha única oportunidade.
Essa informação resolveu a questão. Ela não podia recusá-lo. — Isso seria muito
bom — ouviu sua própria voz dizer.
— Bom. Passo para buscar vocês umas seis horas. Acha que está bom? — Sim, está
ótimo.
Aquele acabou sendo um dia muito longo, e Christine não sabia se tinha sido o fato
de não ter tido que ocupar a mente ou as mãos com a preparação do jantar, ou se
tinha alguma outra razão.
Ela ficou indecisa ao escolher o que vestir. Não queria que Laray presumisse que
ela pensava que se tratava de fato um encontro, e nem queria que estivesse com a
aparência do dia a dia, para que ele não pensasse que o jantar não era apreciado. Por
fim, escolheu uma saia preta e uma camisa azul. Deixou o cabelo solto, mas
prendeu a parte que lhe emoldurava o rosto. Ela sabia que era o penteado que Henry
mais gostava que ela usasse.
Vestiu uma roupa mais nova em Danny, enquanto respondia as muitos perguntas
sobre por que estavam saindo para comer fora em vez de comerem na cozinha,
colocaram os casacos junto à porta, e se prepararam para esperar.
Uns minutos antes das seis, o telefone tocou. Henry estava apenas querendo saber
como estavam as coisas. Como estavam as coisas? Bem. E Amber desejava falar
com Danny.

Christine entregou o receptor a um entusiasmado Danny, que imediatamente


começou um relatório completo de toda a diversão que tinha tido com o Policial
Laray. Christine sentiu o rosto ficar cada vez mais corado. Soava horrível.

— E vamos para o... o café. Na viatura dele hoje à noite. Ele disse.

Christine não sabia se devia pedir o telefone de volta, para que pudesse se explicar,
ou simplesmente para se retirar em humilhação.
Quando Danny lhe entregou o receptor, Henry estava de volta à linha.
— Parece que vocês estão sendo bem tratados.
Christine sentiu o rosto ainda mais enrubescido.
— Laray passou por aqui ontem à noite, para ver como estávamos nos saindo. O
jantar estava quase pronto, por isso convidamos ele para jantar conosco. Ele e
Danny brincaram de carrinho, enquanto eu servia a comida na mesa. Depois demos
um passeio de carro para mostrar ao Danny as estrelas.
— Que bom — disse Henry, mas Christine não conseguiu se conter e agregou
apressadamente:
— Ele se ofereceu para nos levar para sair esta noite — como uma retribuição.
— Ele tem que retribuir?
— Não, claro que não. Mas ele... achou que devia.
Christine ouviu passos subindo os degraus da frente. Ela não sabia se devia
mencionar o fato para o Henry ou esperar que ele desligasse rapidamente. Danny
resolveu o dilema por ela.
— Ele chegou! — exclamou o garoto em voz alta. — O policial Laray chegou.
— Ele está aí agora? — perguntou Henry.
Christine pôs a mão na bochecha quente.
— Ele... ele está acabando de chegar.
Danny já estava abrindo a porta.
— Ótimo. Vou falar com ele — disse Henry. — Dessa forma eu economizo uma
chamada.
Quando os dois homens terminaram de falar de assuntos policiais, Christine tinha
conseguido se acalmar. O rubor tinha saído das bochechas, e as mãos tinham parado
de tremer.
Mesmo assim, desejou com todo o seu coração que não tivesse aceitado este
convite.
No pequeno restaurante, ela teve o cuidado de colocar Danny bem junto a ela em
seu lado da mesa. Mas logo lamentou a decisão. Isso pôs Laray diretamente em sua
frente. Ela sentia o olhar dele sobre ela mesmo quando não estava olhando
diretamente para ele.
Pediram costeletas de porco com molho de cogumelos, concluindo que esse prato
tinha menor probabilidade de ser picante demais.
Danny gostou muito da experiência. Era evidente que ele não estava acostumado a
comer fora. Quando Laray deixou que ele escolhesse a sobremesa, o menino ficou
quase fora de si. Finalmente, contentou-se com sorvete de morango numa torta de
limão. Parecia uma combinação estranha para Christine, e ela balançou a cabeça
enquanto observava o garoto comer.
— Bem, talvez ele tenha descoberto alguma coisa — foi o comentário de Laray em
voz baixa.
Ao voltarem para casa, Laray mais uma vez não sugeriu que entrasse, embora
Danny tentasse coagi-lo a entrar para brincar com os carrinhos.
— O chefe estará de volta dentro de poucos dias — foi a resposta. — Eu tenho que
me certificar de que está tudo nos trinques.
— O que é estar tudo nos trinques?
— Quando está tudo em ordem. Como sua tia Christine mantém a casa.
Danny ficou satisfeito.
— Quando é que você vai poder vir brincar de carrinho?
— Bem... isso é difícil de dizer. Agora tenho de trabalhar com bastante firmeza até
seu pai chegar em casa.
— Ah.
Os ombros de Danny caíram, tamanha sua decepção, e o garoto olhou para o chão.
— Mas, ei... vamos voltar a brincar de carrinho. Pode contar com isso.
Laray deu um soquinho de brincadeira no ombro de Danny.
— Eu gosto dele — disse Danny quando a porta fechou atrás deles.
Christine não tinha comentários. A verdade é que ela não conseguia entender o que
sentia por Laray. Ela não se tinha sentido assim agitada ou confusa desde as
inquietantes últimas semanas com Boyd.
Capítulo 9
H

enry e Amber chegaram em casa, e foram recebidos por gritos frenéticos e muitos
abraços. Danny estava pronto para se adaptar ao novo pai. Mesmo assim, ele não
estava pronto para se despedir de sua

tia Christine.
— A tia Christine pode ficar também? — perguntou ele ao pai.
— Isso seria ótimo — respondeu Henry —, mas creio que a tia Christine

tem outros planos.


Danny voltou o olhar para Christine.
— Você tem?
Christine puxou o rapazinho para perto.
— Seu papai e sua mamãe estão em casa agora. Vocês estão todos juntos.

Chegou a hora de eu voltar para a cidade e encontrar um emprego.


— Você pode ter um emprego aqui comigo.
— Isso seria divertido — mas eu preciso de outro tipo de emprego. Um

que esteja treinada para fazer.


Mesmo enquanto dizia as palavras, Christine tinha dúvidas.
Será que conseguiria encontrar alguma coisa? As coisas tinham mudado

muito desde o início da guerra.


A guerra.
Q UANDO chega o AMANHÃ
Durante os intensos dias de preparação para o casamento e ao tomar conta de
Danny, ela tinha dado pouca atenção à guerra. Não seria maravilhoso se tudo tivesse
acabado? Se todas as tropas estivessem a caminho de casa?

Mas não cria que isso tivesse acontecido. Haveria uma grande celebração em toda a
terra se assim fora. Ela certamente já teria ouvido falar no assunto.
A guerra.
Christine, pronta ou não, estava prestes a retornar ao mundo real.
O plano era que Henry a levasse até Calgary no domingo à tarde. Laray telefonou
no sábado de manhã.
— Isto pode... isto pode ser um pouco inapropriado — ele começou dizer,
parecendo nervoso —, mas gostaria muito de ter a oportunidade vê-la antes de sua
partida.
Oh meu Deus, pensou Christine, eu não queria que isto acontecesse. Será que não
mesmo? Ela não tinha muita certeza.
— Muito bem — ouviu sua voz concordando. — O que você está planejando?
— Eu não saio antes das dez da noite de hoje. Poderíamos dar um pequeno passeio
depois desse horário?
— Eu... eu... claro. Está bem.
— Eu sei que não é o quê...
— Não... está bem. De verdade.
— Obrigado.
O telefonema cortou, e Christine ficou olhando para o telefone em sua mão.

Quando Laray chegou alguns minutos depois das dez, Christine estava pronta. Eles
não trocaram mais que um aceno com a cabeça enquanto ele a conduzia até o carro
e a ajudava a entrar. Sentiu um frio no estômago e fez questão de recordar a si
mesma que estava agindo como uma garotinha.

— Então, você vai ficar em Calgary por um tempo ou vai direto para casa? —
perguntou ele enquanto o carro arrancava.
— Ainda não decidi. A tia Mary me convidou para ficar com eles e procurar
trabalho em Calgary, mas eu realmente não sei o que fazer.

99

— Tem muito trabalho em Edmonton?


— Eu não sei. Não tentei procurar — exceto o único trabalho que eu tive. — Henry
disse que você não teve muita dificuldade para conseguir

trabalho.
— Não... não, acabei... me saindo muito bem.
Eles seguiram em direção ao leste, para fora da cidade. Christine ficou

aliviada porque Laray não estava levando-a novamente para o mirante. Ela podia
imaginar que aquele era um lugar frequentado pelos casais da cidade. Laray colocou
uma marcha mais alta e olhou em direção a ela.
— Se você não se importar, eu vou continuar dirigindo enquanto falo. Eu nunca fui
muito bom em... falar o que quero falar.
Christine fez que sim de forma estúpida.
— Henry me contou que você recém... passou por uma... separação. Devolveu a
aliança de noivado para o cara.
Ah não, gemeu Christine silenciosamente. Que mais que o Henry te disse?
Ela lançou um rápido olhar em direção a Laray, mas ele seguia olhando para estrada
em frente.
— Lamento que não tenha dado certo. Essas coisas podem ser difíceis.
Christine apreciou a compreensão dele, mas ela não sabia o que dizer.
— Por causa disso... eu recuei — continuou ele. — Eu mesmo passei por isso uma
vez. Sei que é preciso tempo. Claro que encontrei uma forma de descarregar, por
assim dizer. Eu fui e me alistei à Polícia Montada. Isso funcionou. Me deu muito
em que pensar.
Laray conseguiu dar-lhe um sorriso distorcido.
Mais uma vez silêncio.
— De qualquer forma, não vou insistir. Só quero que saiba que eu acho você muito
especial — embora esse possa não ser o momento ideal pra se dizer isso. Suponho
que não voltarei a vê-la, a menos que...
Ele não terminou o pensamento. Christine poderia tê-lo terminado por ele. Ela sabia
exatamente o que ele queria dizer.
— Então, pensei — disse ele lentamente — talvez devêssemos ter... ora, algum tipo
de combinado. Ter um pequeno sinal entre nós, por assim dizer.

100

Christine virou-se para olhar para ele. Ela engoliu e esperou, perguntandose o que é
que ele ia sugerir.
— Pensei que talvez quando chegasse o momento em que... quando você achasse
que já está pronta para... pensar em... você sabe... voltar a namorar e pensa que
talvez... bem, você sabe... então pode simplesmente deixar para mim um bilhete no
correio. Mesmo que eu seja transferido, vou me certificar de que seu irmão sempre
saiba onde me encontrar. Você não precisa me fazer nenhuma promessa. Não espero
isso. Só um bilhetinho dizendo que as coisas estão bem. Vou buscá-la a partir disso.
Christine sentia vontade de chorar. Ele estava sendo tão galante. Tão cavalheiresco.
Parte de seu coração queria dizer a ele que estava pronta agora. Mas ela sabia que
isso não era verdade. Ela não estava pronta para outra relação. Era possível que
nunca estivesse. Seu coração tinha sido despedaçado de verdade na última tentativa
de se apaixonar.
Ela tomou consciência das lágrimas que lhe corriam pelas bochechas. Procurou um
lenço no bolso. Ela tinha que dizer alguma coisa. Não podia simplesmente deixar
este homem tão gentil e atencioso sem nenhuma resposta.
Limpou o rosto e engoliu as lágrimas.
— Desculpe-me — começou ela, com a voz trêmula. — Você tem razão. Eu não
estou pronta... ainda. Não tenho... nenhum desejo de me envolver novamente com
alguém. Talvez um dia. Eu não sei... mas não agora.
Ela assoou o nariz e recomeçou.
— Quero que saiba que se... se eu estivesse pronta... acho que você é um homem
muito bom, e eu ficaria orgulhosa se me convidasse para sair. Estou sendo sincera.
De verdade.
Ele sorriu.
— Isso é um grande elogio. E é tudo o que eu posso pedir... no momento.
Ele estendeu a mão e pegou a mão de Christine na sua, mas não a segurou por
muito tempo. Apenas apertou-lhe suavemente, como se fosse para selar o
combinado entre eles, e a soltou. Depois, encontrou um local para fazer o retorno e
dirigiu-se para casa.
Foi uma viagem tranquila de regresso, pois parecia que tudo tinha sido dito.
— Foi um prazer conhecê-la. Desejo que você receba apenas o melhor de Deus...
independentemente do que seja.

101

Laray disse aquelas palavras com tanta sinceridade que Christine temia que fosse
começar a chorar novamente. Ela conseguiu dizer que desejava o mesmo para ele, e
então, Laray estava abrindo a porta do carro para ela, e dando a volta no carro para
ajudá-la. Ele não fez menção de beijá-la, nenhum braço ao redor dos ombros dela,
ou qualquer exigência.

Quando chegaram ao alpendre, Laray se inclinou para abrir a porta, o rosto dele
muito próximo dela.
— Basta me enviar uma carta — sussurrou ele.
Logo em seguida ele se foi.
Christine estava grata por não haver ninguém acordado ainda, para observar sua
entrada. Ela chorava tanto que mal conseguia enxergar o caminho para o quarto que
ia usar pela última noite. Laray tinha sido tão doce. Será que estava cometendo o
maior erro da sua vida ao partir?
Mas ela não estava pronta para entregar seu coração. Com certeza — se isto fosse
mesmo para acontecer — tudo se resolveria no futuro.
Mas o travesseiro de Christine estava úmido antes que ela conseguisse adormecer.
Danny acompanhou a viagem a Calgary. Amber pretendia juntar-se a eles, mas o
início de um resfriado a manteve em casa.
— É melhor você ficar em casa, eu vou tomar conta dele — Henry aconselhou.
Christine ficou contente pela tagarelice de Danny. Significava que seria menos
provável que o irmão percebesse seu silêncio. Felizmente, Henry não fez nenhuma
pergunta relativa à noite anterior, e Christine não ofereceu nenhuma informação.
Quando Danny parou para tomar um ar, Henry virou-se para Christine com a
mesma pergunta que Laray tinha feito.
— Você vai ficar em Calgary? Ou vai para casa?
— Bem, vou ter que ir para casa, independentemente de qualquer coisa. Não trouxe
nada além dessa mala.
— Pretende voltar a procurar trabalho em Edmonton?

102

— Acho que posso pelo menos começar por lá.


— Pode ser que seja o melhor. Você já conhece a cidade.
— Na verdade, conheço muito pouco da cidade. Eu só ia da pensão para o

trabalho ou para a igreja — era basicamente isso. E não me interessa encontrar


novamente trabalho na mesma área.
Ela sabia que Henry não precisava perguntar o porquê.
— O que prefere fazer?
— Preferir? Eu preferia voltar para casa. Para o Norte.
— Ainda se sente assim? — Henry pareceu surpreso.
— Sim.
— Mas não tem ninguém mais lá.
— Todos os nossos amigos ainda estão lá.
— As coisas mudaram agora, Chrissy. Não seria a mesma coisa.
— Continua a ser o norte. Isso nunca vai mudar.
Christine pensou novamente no constante chamado do Norte. Não haveria batalhas
emocionais para resolver quem seriam seus pretendentes. Não haveria notícias
perturbadoras sobre a guerra. Como ela ansiava pela sensação de paz que havia no
Norte, pela mesmice.
A cabeça de Danny caiu sobre seu ombro. O menino tinha adormecido. Ela se virou
para ajeitá-lo e puxá-lo para mais perto.
— Pobre rapazinho, está todo encolhido.
— Nós realmente somos muito gratos por você ter tomado conta dele. Ele ficou
muito afeiçoado à tia Christine.
— Eu também gosto muito dele. Só queria...
— Sim?
— Que estivéssemos mais perto. Quem é que sabe quando vou vê-lo novamente?
— Fique trabalhando em Calgary. Então pode vir para cá de vez em quando.
— E depois você vai ser transferido para Deus sabe onde.
Henry riu. Qualquer Policial Montado reconhecia essa constante possibilidade.

103

— Sabia que a Amber está colocando a loja à venda?


— Não sabia. Quando?
— Em breve. Não temos ideia de quanto tempo levará para vender, mas

queremos tudo resolvido antes que ocorra a próxima transferência — seja lá quando
for.
— Acho que é uma ideia sensata — concordou Christine.
Durante vários minutos, andaram em silêncio. Christine percebeu-se pensando em
Laray. Como ele se sentiria se Henry fosse transferido para outro lugar?
Certamente, Laray poderia ser transferido antes. Quem poderia saber? Christine
ansiava conversar com o irmão sobre Laray, mas não fazia ideia do que dizer. Aliás,
ela não fazia ideia do que realmente sentia. Era tudo um grande nó confuso no
peito.
Christine se despediu da tia Mary e do tio Jon, e partiu para casa no dia seguinte. A
viagem de trem não foi tão agradável sem a companhia de ninguém. Ela percebeu a
chegada a Lacombe, pensando no fato de que a mãe nunca mais voltou à cidade,
exceto para visitar a família. Mas pode ser que Lacombe não tivesse nada que a
atraísse para voltar — não como o norte, onde ela tinha crescido.

Ela teve de passar uma noite em Edmonton antes de embarcar no trem até
Athabasca. Não havia nada para fazer e nem onde ir, então, o tempo se arrastava.
Ficou contente quando chegou uma hora razoável de ir para cama. Mas mesmo
assim não conseguia dormir.

Henry tinha perguntado o que faria se tivesse como escolher, e ela tinha respondido
com sinceridade: voltaria para o Norte. Sem nenhuma hesitação, ela voltaria para a
região onde tinha nascido. Ela pertencia àquele lugar. Nunca tinha se encaixado
bem na cidade, ou mesmo na cidade pequena. No entanto, era uma insensatez
pensar que poderia ir sozinha para o Norte. O que ela poderia fazer ganhar a vida?
No Norte certamente não havia necessidade de secretárias ou taquígrafas, pelo
menos não que soubesse.

Pensou novamente em Laray. Ele dissera que gostaria de tentar a vida no Norte. Ele
também dissera que tudo o que ela tinha de fazer era escrever um bilhete. Apenas
um bilhete.

104

Mas Christine tirou essa ideia da cabeça. Não seria justo. Não seria correto. Tirar
partido do interesse dele por ela só para realizar seu sonho. Ela nunca seria capaz de
conviver consigo mesma se fizesse tal coisa.

Mas ela ia orar a respeito dessa ideia. Deus conhecia o desejo do seu coração.
Talvez Ele pudesse arranjar uma maneira de fazê-la voltar para a parte do país que
amava.

Era quase de manhã quando Christine finalmente conseguiu acalmar seus


pensamentos o suficiente para dormir.
Ela tinha que acordar cedo. O senhor Carson, o mesmo caminhoneiro com quem
tinha viajado antes, ia levá-la para casa. Ele transportava mercadorias de um lado
para o outro entre Edmonton e Athabasca.
Grande, corpulento e barbudo, o senhor Carson era um camarada amigável.
— Como foi de viagem? — a voz dele soava profunda e rouca.
Christine talvez sentisse um pouco de medo dele, se não soubesse que o pai
confiava no homem.
— Correu tudo bem — respondeu ela.
— Achei que a senhorita fosse ficar por lá.
— Não. Não, tinha a intenção de voltar para casa quando saí.
— Sim, mas muita gente mudam de ideia quando chegam no meio da civilização.
— Eu não vi nada muito civilizado — respondeu ela. — Ouvi muitas notícias sobre
a guerra.
— Sim. Nós também estamos recebendo aqui. Queria que alguém se sentasse em
cima da cabeça daquele tal de Hitler, pra acabar com a raça dele.
Christine desejava o mesmo.
— Outro rapaz da cidade partiu. Acho que não vai ter muito rapaz sobrando quando
essa guerra acabar.
— Quem foi? — perguntou Christine.
— O Clem Carlson.
— Clem? Pensei que o nome dele era Eric.
— Clem é o mais novo.
— Clem? Não achei que eles aceitassem garotos tão jovens.

105
— Ele é um menino grande para a idade. Acho que ele mentiu.

Alguém devia tê-lo impedido, dito a verdade sobre a idade dele. O garoto tem
apenas dezessete anos de idade, jovem demais para ser mandado para a guerra.

— Acho que tem um monte de garotos fazendo isso, mentindo a idade para
conseguir ir.
Christine ficou chocada. Já era terrível o suficiente que os maiores de idade se
alistassem.
Então nem mesmo em casa ela ia conseguir escapar da guerra. Talvez não houvesse
lugar na terra onde não fossem tocados por ela.
Mas o Henry não irá, ele é necessário em casa. Esse fato lhe trouxe certo consolo.
— Está prevista outra tempestade hoje mais tarde, por isso o meu objetivo é correr
um pouco — disse o motorista. E ele acelerou. Christine ficou contente por ter sido
avisada.
A certa altura, ela estava certa de que eles iam parar numa vala. Estavam descendo
muito rápido quando a caminhão chegou a uma parte da estrada onde havia gelo.
Rodopiando, girando, balançando de um lado para o outro, o grande homem lutava
com as rodas, por um lado, depois por outro, por outro novamente. A neve voava,
tornando mais difícil a visão. Os pneus guincharam e a carga deslocou-se.
Quando o caminhão finalmente parou, com a frente ainda apontando para a direção
certa, Christine soltou lentamente o fôlego. O grande homem parecia absolutamente
tranquilo.
— Já esgotou toda a estrada principal — foi o único comentário.
Christine abriu os olhos e gradualmente abriu os punhos. Olhou para os nós dos
dedos e observou a cor retornar lentamente. Estava demorando ainda mais para
encher os pulmões de ar novamente.
Chegaram à cidade quando o sol estava se pondo, e, confirmando a previsão do
homem, um vento tinha se erguido e estava a começar a nevar.
— Vai ficar bem complicado daqui a pouco — disse o motorista. — Chegamos bem
a tempo.
Christine fez que sim com a cabeça, grata por ter chegado em casa inteira. Graças a
Deus eles não estavam na vala, indefesos e desesperados, presos na tempestade.

106

Assim que o caminhão encostou na frente da casa, ela viu a mãe abrir a cortina da
cozinha e olhar para fora, na escuridão quase completa. Quando Christine pegou a
mala, a porta estava aberta e a mãe estava à sua espera.

— Como estavam as estradas? — foram as primeiras palavras de Elizabeth antes de


Christine estar a meio caminho da trilha.
— Transitáveis.
— Ah, graças a Deus você está aqui. Eles estão prevendo outra tempestade terrível.
Christine abraçou a mãe com um braço, para não largar a mala na neve.
— Foi o que me disseram — ela respondeu ironicamente.
— Bem, agora você está em casa, e não precisa se preocupar. Seu pai vai chegar a
qualquer minuto. Ele também vai ficar aliviado.
Enquanto Christine passava pela porta, foi saudada por Teeko. A sua longa cauda
balançava para frente e para trás, quase derrubando a planta da pequena mesa da
sala.
— Acalme-se, Teeko — ela repreendeu gentilmente quando largou a mala e pegou
o rosto do cão nas mãos. — Estava solitário? Sentiu saudade de todo mundo quando
estivemos fora?
— Você precisava ter visto quando ele viu seu pai — Elizabeth disse rindo. — Ele
quase se virou do avesso, de tão empolgado que ficou.
— Ele parece não ter sofrido nada.
Christine esfregou a mão ao longo do dorso do cão.
— Tenho certeza de que os rapazes do escritório tomaram conta dele muito bem.
— Mas o Teeko sente muita falta do seu pai quando ele sai.
Christine foi para o quarto carregando a mala.
— Então, como é que você e o Danny se viraram? — Elizabeth perguntou atrás
dela.
— Foi bom, ele é um amorzinho.
— E tudo correu bem com o Henry e a Amber?
Christine estava na porta.
— Não ouvi queixas — respondeu ela por cima do ombro.

107
JANETTE OKE

Tomou um tempo para desempacotar e guardar suas coisas. Na cozinha, podia ouvir
a mãe se movendo, dando os retoques finais na refeição da noite. Teeko veio até sua
porta mais uma vez e clamou por atenção. Quando ela não respondeu, o cão saiu
novamente, provavelmente para se sentar à porta e esperar por Wynn.
Christine soube no momento em que o seu pai estava subindo pela trilha. Mesmo do
quarto conseguiu ouvir o excitado latido de Teeko e a batida da cauda maciça.
Wynn chegaria em breve.
— Tem notícias da Christine? — foram suas primeiras palavras.
— Ela chegou.
— Já chegou. Pensei que iam levar pelo menos mais uma hora. Está ficando muito
ruim lá fora. O vento mudou e está soprando forte. Vai ser um pesadelo ao ar livre.
— Bem, graças a Deus ela já está aqui, sã e salva.
Christine ouviu água sendo vertida. O pai estava se lavando para o jantar.
Quando se virou para sair do quarto e se juntar aos pais, Christine ouviu. O vento
estava atingindo seu pico, gemendo e chorando, enquanto corria ao redor da casa e
arrastava os bebedouros debaixo dos beirados. Houve a batida de algo, depois o
silêncio. Depois mais uma batida. Esperava que não fosse nada muita importante, o
que quer que fosse, e que não fosse arrancado na tempestade.
Christine entrou na cozinha a tempo de ouvir a mãe dizer:
— Este é a primeira tempestade que temos desde antes do Natal. Deve ser algum
tipo de recorde.
Wynn se endireitou, limpando as mãos na toalha grossa de algodão.
— Tem sido um inverno excepcionalmente bom até agora. Não é sempre que temos
tantos dias seguidos sem tempestades. — Ele se virou para olhar para Christine. —
Olá, Pequena. Ainda bem que você está em casa. — Wynn sorriu e pendurou a
toalha. — Como foram os dias com seu sobrinho?
Wynn atravessou a sala para dar um abraço na filha.
108
Capítulo 10
E

ra o momento de Christine levar a sério a procura de um trabalho mais uma vez. A


mãe mostrou-se relutante no início, mas finalmente aceitou o fato. Christine decidiu
experimentar Edmonton. Desta vez, ia estar totalmente por sua conta. Estava
começando a ansiar pelo desafio, mas ao mesmo tempo, sentia-se um pouco
nervosa. E se não conseguisse encontrar um emprego? E se não existissem quartos
adequados para alugar? Ela calculou que tinha fundos suficientes para pagar uma
semana num hotel, antes de ter que se mudar para um alojamento menos
dispendioso. Será que uma semana seria suficiente para já ter se estabelecido?

Wynn organizou a viagem de Christine para Edmonton com o amigo caminhoneiro.


Christine se questionou se o pai viajaria com tanta confiança se estivesse com eles
na última viagem de volta para casa. Bem, realmente havia pouca escolha. Se
alguém quisesse chegar à cidade, o grande Sam Carson e o seu caminhão de
transporte era a única forma possível.
Christine empacotou as roupas e os poucos pertences que desejava levar, e arrumou
seu quartinho pela última vez.
Teeko parecia sentir que estava acontecendo algo fora do normal. Ele andava pelo
corredor com os olhos alerta, a cauda, que normalmente era inquieta, estava imóvel
e abaixada. De vez em quando escapava um lamento, mais como um gemido, de sua
garganta. Parecia que o cão estava de luto pela perda de um membro da família.
Wynn chegou em casa pouco antes das dez horas, a hora combinada para que Sam
viesse buscar Christine. Ele observou as caixas empilhadas e mala dispostas ao lado
da porta, e perguntou:
— Tem certeza que tem dinheiro suficiente?
Christine fez que sim. Ela não tinha certeza absoluta, mas queria se ajeitar sozinha
desta vez.
— Se precisar de qualquer coisa...
— Eu sei, é só telefonar.
Christine sorriu. Wynn assentiu.
Eles oraram juntos, sentados num círculo com os dedos entrelaçados. Christine
sabia que essa não seria a última oração que os pais fariam por ela. Esse era um
pensamento confortador.
No momento em que Wynn pronunciou “Amém”, eles ouviram o ruído do
caminhão.
— As estradas devem estar boas — o pai lhe disse, provavelmente mais para
tranquilizar Elizabeth do que para ela mesma. — Sam disse que eles tiraram a neve
desde a última tempestade. A previsão é que o tempo fique bom, pelo menos pelos
próximos dias.
Elizabeth começou seu recital de “não se esqueça” e “certifique-se”, enquanto
Christine ouvia e assentia. A jovem já tinha ouvido todas aquelas coisas antes, mas
amava a mãe e sua preocupação.
— Telefone assim que tiver novidades — foi a instrução final de Elizabeth.
Os homens colocaram as coisas no caminhão rapidamente, e então, houve a última
rodada de abraços e promessas. Christine subiu no veículo com a ajuda do pai,
acenou uma última vez e eles partiram.
Sua última visão de casa foi o pai de pé, com seu uniforme de policial, um braço na
cintura da mãe e o outro erguido num último aceno. Elizabeth não erguera as mãos,
que estavam ocupadas secando as lágrimas dos olhos com um lenço. Teeko estava
ao lado deles, com a cauda caída, com a cabeça erguida como se estivesse puxando
para a frente. Christine podia imaginar o lamentoso uivo saindo de sua garganta. Foi
só o que conseguiu fazer para manter sua compostura. Se o Grande Sam não tivesse
falado nada, ela ia ter sucumbido às lágrimas.
— A estrada ta muito melhor e não tem nenhuma tempestade à vista. Do mesmo
jeito, espero chegar a tempo.

110
Christine se preparou para mais uma viagem inquietante.

A primeira coisa que Christine fez em Edmonton foi arranjar um quarto hotel. O
Rei Eduardo teria esgotado seus limitados recursos em apenas algumas noites, então
encontrou um pequeno hotel no centro da cidade. Parecia central para os negócios e
a maior dos lugares ficariam a apenas uma curta distância. Assim que se instalou no
quarto, foi ao saguão, comprou um jornal, e espalhou as folhas na mesa onde estava
comendo.

Não havia muitos anúncios de trabalho que parecessem promissores. Ela circulou
dois anúncios e disse a si mesma que entraria em contato logo na manhã seguinte.

Enquanto isso, decidiu perguntar a qualquer pessoa que estivesse disponível. A


primeira possibilidade foi o garçom. Enquanto ele servia a sopa, Christine tomou
coragem e perguntou timidamente:

— Estou à procura de trabalho. Por acaso sabe de qualquer coisa...

— Eles tinham um anúncio para o turno da tarde — para trabalhar lavando pratos.
O garçom nem sequer olhou para ela quando respondeu. Apenas dispôs a sopa na
mesa — de forma bem desleixada —, e se virou para sair. Christine observou a
mancha da sopa na toalha de mesa e balançou a cabeça. Lavar pratos não era bem o
que ela tinha em mente, mas podia bem ser o que ia precisar fazer.
Ela comeu a sopa — o que ainda restava na tigela —, junto com uma ou duas fatias
de um pão que não estava muito fresco, bebeu o chá, e contou o dinheiro para a
refeição. Ela ia ter que ser cuidadosa até que garantisse um emprego.
Christine parou na recepção para perguntar ao cavalheiro careca com os óculos
redondos:
— Por acaso o senhor sabe de alguma vaga de emprego? Estou à procura de
trabalho.
O homem não a agraciou com uma resposta. Apenas balançou a cabeça e retornou a
atenção ao jornal que estava lendo.
Ela deu de ombros e foi para o quarto. Se era para encontrar trabalho, só podia
contar consigo mesma. Não havia grande ajuda de outras pessoas.

111

Christine não tinha a certeza se tinha sido a sopa do jantar ou o próprio frio na
barriga que a faziam sentir o estômago enjoado, mas teve dificuldade para pegar no
sono. Ela estava tentada a se vestir e ir até o saguão do hotel, e fazer um telefonema
para casa. Apenas ouvir a voz da mãe e do pai já lhe causaria um efeito calmante.
Mas o pensamento das taxas para chamadas de longa distância a mantinha na cama.

Por alguma estranha razão pensou em Laray. Basta apenas me mandar uma carta.
Parecia uma coisa tão fácil a se fazer. Estava disposto até a ir para Norte, ele disse.
E Laray era um bom rapaz. E, ainda mais importante, ele partilhava a sua fé. Então
por que ela estava hesitante?

Christine sabia a resposta. Ela só estava interessada nele por causa do que ele
poderia lhe proporcionar. Estaria usando ele. Essa não era a premissa certa para
iniciar uma relação que se esperava que levasse a um casamento sólido. Não
conseguia fazer isso. Simplesmente, não conseguia. Se fosse se casar com um
homem apenas para conseguir fazer sua vontade, ela sempre ia se sentir culpada.
Que tipo de relação poderia ser construída com base nisso? Ela esteve tão perto de
cometer um erro terrível, não ia se permitir errar novamente.

Ele merece muito mais do que isso, pensou repreendendo a si mesma. Ela nunca
conseguiria fazer isso com ele.
Então os seus pensamentos voltaram-se para Henry, o irmão mais velho que ela
sempre amara e admirara. Henry tinha sido paciente e permitiu que Deus tomasse a
frente de sua vida. E veja agora. Henry estava tão contente com a sua Amber e com
o seu filho, Danny. Sem dúvidas eles enfrentariam problemas pela frente, mas
estavam empenhados em resolvê-los juntos. Era assim que o casamento devia ser.
Uma parceria em pé de igualdade. Uma atitude de amor e respeito, de se unirem
para dar, não para receber.
Christine se virou e atirou as cobertas, lutando com muitos pensamentos e dúvidas.
Por fim, saiu da cama e ajoelhou-se sobre o tapete desbotado. O quarto estava frio,
mas ela não deu muita importância.
Havia apenas um lugar para ir com toda a sua agitação. Apenas Uma Pessoa que
poderia lhe trazer qualquer direção certa em meio à sua confusão. Christine
começou:
— Pai, preciso da Tua ajuda...

112

Estava ainda mais frio no quarto quando se levantou na manhã seguinte. Ela não
tinha dormido o bastante, mas depois que conseguiu pegar no sono, tinha dormido
bem. Por essa razão estava grata.

Estava ansiando por um bom banho quente, para ajudar a tirar o frio de seus
membros e começar o dia, mas a ida até o banheiro, que ficava no fim do corredor,
a deixou desapontada.

A banheira estava lascada e manchada, e não era nem um pouco convidativa.


Christine sabia que devia usá-la, mas não ia se demorar ali. Nada de longos banhos
de banheira como os que a mãe desfrutara na recente viagem.

Christine inclinou-se para abrir a torneira, mas saiu apenas um chuvisco de água.
Não importava o quanto abrisse, a água não aquecia. Ela ia ter que tomar um banho
tépido, se de fato conseguisse que a água ficasse pelo menos morna.

Tomou banho apressadamente, sem qualquer incentivo para permanecer ali muito
tempo. Ela rapidamente se vestiu com o que esperava que fosse uma roupa
adequada para uma entrevista de emprego e desceu as escadas para o andar térreo
do hotel.

Christine pediu torradas e café. A torrada estava fria e velha, e o café amargo —
nada a ver com o da mãe. Tomou o desjejum da mesma forma que tinha tomado o
banho, como uma tarefa necessária antes de começar o dia. Segurando firme o
jornal que comprara, foi para a rua.
O frio matinal estava forte. Ela puxou a gola do casaco para cobrir o rosto e tentou
se desviar do vento enquanto caminhava, e quase esbarrou num cavalheiro
apressado, que vestia um sobretudo escuro. O homem murmurou algo que Christine
não desejava ouvir e seguiu em frente apressado.

O primeiro endereço era mais longe do que havia calculado. Quando chegou, já
estava congelada até aos ossos e desejou ter gastado o dinheiro num bonde.
O local parecia suficientemente promissor. Tinha esperança de que fosse bem-
sucedida.
O pequeno escritório incluía apenas uma escrivaninha. Havia uma mulher sentada
atrás da mesa, analisando as unhas longas e polidas.
— Desculpe-me — disse Christine após alguns momentos.
A mulher encarou Christine da cabeça aos pés. Ela inclinou a cabeça, mas não disse
uma palavra ao redor do chiclete que tinha na boca.

113

— Eu vim por causa do anúncio no jornal.


A mulher olhou de forma inexpressiva.
— A vaga... de secretária.
— Ah, isso. — Ela balançou a mão, mostrando um lampejo das unhas.

— Já foi preenchida.
— Preenchida?
— Sim. Foi o que eu disse.
— Mas estava no jornal da noite passada.
— Olha, foi preenchida, tá bem? Eu consegui o emprego.
— Você... ?
A mulher assentiu indiferente, enquanto mascava o chiclete com ainda

mais diligência.
— Entendi — disse Christine enquanto recuava lentamente em direção à
porta. Mas ela não entendia, não mesmo.
Christine voltou para a rua e conseguiu abrir o jornal contra o vento. Localizou o
próximo endereço e começou a caminhar novamente através da neve. Ela não viu
nenhum bonde passando, e essa acabou sendo uma caminhada de vários quarteirões
também. Seu rosto já estava dormente quando chegou.
Ficou se questionando se as suas bochechas estavam vermelhas ou brancas, de
tão congeladas.
O edifício não tinha um aspecto tão agradável quanto o anterior. Na verdade, as
coisas pareciam bastante desleixadas. O chão estava sujo, a cortina na
janela desajeitada e torta, as cadeiras na sala de espera desgastadas e atravessadas.
Christine não estava bem certa de que queria trabalhar num escritório
como aquele. Mas precisava do emprego. Ela respirou fundo e aproximou-se da
escrivaninha onde presidia uma mulher idosa e de aparência cansada. A senhora a
encarou com olhar lacrimoso e perguntou numa voz cansada: — Sim?
Christine sentiu imediata simpatia.
— Estou aqui por causa do anúncio no jornal. Sobre o cargo de secretária. Os olhos
da mulher brilharam.
— Oh sim — disse ela, e ficou em pé imediatamente.

114

Foi até uma porta e deu uma batidinha. Quando houve um exclamação rouca lá de
dentro, a mulher abriu a porta e colocou a cabeça lá dentro.
— Tem uma moça aqui, para tratar a respeito do trabalho.
Ela soou empolgada.
— Mande ela entrar.
No entanto, não parecia haver a mesma empolgação vinda de dentro da sala.
— Pode entrar — a mulher disse, e Christine prosseguiu sem sequer fazer uma
pausa para tirar o casaco.
Um homem idoso ergueu o olhar, tirando os olhos dos papéis que tinha na
escrivaninha. Sua expressão não era convidativa.
— Oh, era o que eu temia — murmurou ele.
Christine não fazia ideia do que o homem temia.
— Acabou de sair da escola — resmungou o homem.
— Não, senhor. Já tenho experiência.
— Então por que está procurando trabalho? Foi despedida?
O que ela poderia dizer? Christine tinha sido mesmo despedida — de certa forma.
Ela certamente não ia iniciar uma longa explicação sobre o noivado rompido com o
filho do patrão.
— Havia... circunstâncias...
— Circunstâncias? É o que todos dizem. Você não fez seu trabalho, é por isso que
as pessoas são despedidas. Os jovens de hoje parecem não se dar conta disso. Você
tem que aprender a fazer o trabalho se quer ficar empregada.
— Sim, senhor — Christine conseguiu dizer, olhando para a mancha no piso do
escritório.
— A minha mulher faz este trabalho há quarenta e três anos. Nunca foi despedida.
Quarenta e três anos, veja bem. Nunca precisou procurar outro trabalho durante
toda a vida. Esse é o tipo de funcionária que eu quero aqui.
— Sim, senhor — disse Christine novamente, sentindo-se como uma criança
repreendida por violar as regras no recreio da escola.
O homem acenou com a mão para ela, e depois em direção à porta.
— Eu não estou à procura de uma jovenzinha para embelezar meu escritório. Quero
alguém que saiba como trabalhar.

115

Christine entendeu que estava sendo dispensada. Ela fez um aceno com a cabeça e
virou-se para a porta.
Ao passar pela escrivaninha onde estava a mulher de ombros caídos, notou que o
rosto dela parecia novamente abatido. Pobrezinha, Christine pensou. Ficou tentada a
parar e oferecer um abraço reconfortante à mulher idosa, mas não se atreveu. As
duas podiam começar a chorar.
Christine não tinha nada a fazer senão enfrentar o vento novamente. Todo o longo,
longo caminho de regresso ao pequeno e simples hotel. Onde estavam os bondes
quando se precisava deles?
Ela decidiu parar numa pequena “lanchonete” para almoçar. Talvez uma xícara de
café quente pudesse ajudá-la a se aquecer.
Um cartaz na janela anunciava “Precisa-se de Garçonete com Experiência”.
Christine ficou tentada a se oferecer para a vaga. Poderia começar imediatamente.
Mas ela não tinha experiência. Era bem provável que fosse dispensada na mesma
hora, e sentia que não ia conseguir suportar mais uma rejeição. Não tão em cima
dos desapontamentos da manhã.
Christine não tinha boas notícias para partilhar quando foi até o saguão para
telefonar para casa, mas precisava falar com os pais. Sentia-se profundamente
sozinha, muito isolada, e profundamente deprimida. Tentou não deixar aparente seu
estado de espírito ao falar sobre o clima, sobre Edmonton e o quarto de hotel, mas
estava bem certa de que não conseguia enganar ninguém.
— Tem muitos anúncios de emprego, querida? — a mãe finalmente perguntou.
— Bem, tenho comprado o jornal, e visitado alguns lugares, mas até agora nada deu
certo. Vou seguir tentando. Estou certa de que o emprego certo logo vai aparecer.
Esperava que sua voz conseguisse demonstrar pelo menos uma pontinha de
esperança.
— Tenho certeza que sim. Essas coisas levam tempo.
Elas conversaram sobre outras coisas. Elizabeth tinha recebido uma carta de Henry
e Amber. Cada um deles tinha escrito uma — era tão bonito. Até mesmo o pequeno
Danny tinha assinado o nome e mandado beijos e abraços.
Havia algumas mudanças no escritório de Henry. O Sargento Rogers tinha sido
transferido — para algum lugar na Província de British Columbia.
116

Havia um novo recruta, e Henry estava ocupado ensinando a ele as rotinas. Henry
não sabia ainda como o novo policial ia se sair. Ele parecia estar meio ressabiado.

Então quer dizer que Laray ainda estava lá, pensou Christine. Ele provavelmente
não seria transferido para outro lugar tão cedo, com um novo recruta no escritório.

— Henry está tão agradecido por ter a tranquilizadora influência de Maurice —


foram as próximas palavras da mãe. Elizabeth sempre se recusara a usar os
tradicionais sobrenomes dos oficiais. Eles são pessoas, ela argumentava ao longo
dos anos, e não apenas polícias. Por isso se eram jovens, ela os chamava pelos
primeiros nomes. Se eram mais velhos, se referia ao Policial pelo sobrenome e seu
posto.

— Sim — murmurou Christine —, tenho certeza que sim. — Parece que eles
arranjaram um comprador para a barbearia. Amber está bastante entusiasmada. Diz
que terá todo o prazer do mundo em pendurar a tesoura. Henry diz que ela não vai
se safar assim tão facilmente. Depois de ter se habituado ao trabalho que ela faz, ele
não vai deixar que ninguém mais toque em seu cabelo.
Elizabeth riu.
Christine começou a pensar no custo da chamada. O simples fato de ouvir a voz de
sua mãe lhe trouxera grande conforto, mas ela não podia realmente se dar ao luxo
de continuar.
— É melhor eu ir, mãe. A ligação está ficando cara demais — disse ela finalmente.
— Há alguma forma de podermos falar com você?
Christine encontrou o número do hotel e esperava que o recepcionista pudesse
repassar um telefonema. Então ela se despediu e desligou.
Ela não tinha a certeza se sentia-se melhor ou pior enquanto subia as escadas até o
quarto. Tinha sido bom falar, mas agora sua solidão parecia ainda mais intensa.
Será diferente quando eu encontrar um emprego, prometeu a si mesma. Depois vou
conhecer novas pessoas e ter alguns amigos.
O que tinha que fazer imediatamente era encontrar uma igreja por perto. Isso lhe
daria as amizades que ela tanto precisava. Ela estava contente, pois o

117
JANETTE OKE domingo seria apenas dois dias depois. Certamente haveria uma
igreja à distância de uma caminhada. De alguma forma, ela ia encontrá-la.

Christine encontrou uma igreja, grande, bonita e cheia de adoradores. Sentiu-se


bastante deslocada quando pisou no amplo saguão naquele primeiro domingo. Mas
um recepcionista idoso a cumprimentou de forma calorosa ao apresentar-lhe o
boletim da manhã. Foi recebida com muitos sorrisos e acenou com a cabeça
enquanto tomava seu lugar no banco para onde tinha sido direcionada. O povo
parecia genuinamente amigável. Obrigada, Senhor, ela orou quando curvou a
cabeça antes do hino de abertura.

A música fez mais do que animá-la. Tocou sua alma. Ela sentiu sair de seus ombros
o peso dos últimos e sentiu-se completamente pronta para o sermão da manhã.

O pastor, um homem de aspecto simpático, com vestes aristocráticas, falou de


forma cativante, mas também de coração. Christine sentiu-se atraída por Deus
enquanto ouvia o conhecido relato dos dez leprosos, contado de uma forma
totalmente nova. Ela ia voltar. Tinha encontrado uma igreja.

Mas ao deixar o santuário, ansiava por mais do que uma saudação com a cabeça,
um sorriso, e um aperto de mão. Ela ansiava por amizade, conversa, talvez até um
convite para o almoço.

“Essas coisas levam tempo”, ouviu a voz de sua mãe dizendo. Christine sabia que
era verdade. Mas em sua solidão, orava para que não demorasse muito tempo.
118
Capítulo 11
D

urante os dias que se seguiram, Christine caminhou pelas ruas da cidade, seguindo
uma pista vazia atrás da outra. Estava ficando perigosamente sem fundos e seu
espírito ainda mais desanimado. Ela começava a temer que precisasse reconhecer a
derrota e voltar para casa. O

pensamento era ao mesmo tempo convidativo e humilhante. Seria bom estar


novamente rodeada de amor e apoio familiar, mas seria muito difícil admitir que
não era capaz de se virar sozinha.

E então, o jornal diário tinha um anúncio promissor. Precisa-se. Pessoa de confiança


para um escritório bem estabelecido na cidade. Deve saber datilografia e
taquigrafia. De preferência ter certa experiência, mas estar disposta a receber
treinamento.

Parecia perfeito. Mal conseguia dormir, tamanha sua empolgação. Naquela noite,
suas orações foram mais específicas. Ela realmente desejava — necessitava —
aquele trabalho.

Na manhã seguinte, Christine se levantou cedo e se apressou a tomar o banho


gelado. Queria ser a primeira da fila no escritório para a cobiçada posição.

Quando chegou ao edifício de escritórios, as portas ainda não estavam abertas. Ela
andava de um lado para o outro, pisando os pés e batendo palmas para se aquecer.
Por fim, um cavalheiro com uma chave apareceu. Ele destrancou a porta, olhou
brevemente para Christine, e depois entrou sem dizer uma palavra. A porta fechou-
se atrás dele com um som de finalidade. Mas ela se recusou a ceder às suas emoções
conflitantes.

Não demorou muito até que aparecesse outro homem bem-vestido, que também
tinha uma chave. Ele até cumprimentou Christine com um aceno, e lhe desejou um
bom dia. Ela deu um passo para mais perto da porta, mas não foi convidada a entrar.

Uma mulher chegou, tão embrulhada em peles e cachecóis que Christine não
conseguia ver seu rosto. Ela tirou uma chave e abriu a porta.
— Com licença — Christine atreveu-se a dizer. — Estou aqui por causa do anúncio
no jornal. Para a vaga de secretária.
— Não abrimos antes das nove.
— Tem... tem algum lugar onde eu possa esperar... longe do frio?
Christine perguntou corajosamente.
A mulher hesitou, depois assentiu com a cabeça.
— Creio que não teria problemas.
Ela segurou a porta e Christine entrou, agradecida pelo calor que se apressou a
recebê-la.

— Pode usar uma daquelas cadeiras ali — gesticulou ela. — Vou chamá-la quando
o senhor Stearns estiver pronto.
Mas à medida que a manhã passava, Christine não era chamada. Quando era quase
meio-dia, ela tomou coragem de procurar alguém que pudesse ajudála. Ela andou
por um corredor curto.
Ali estava a mulher, ocupada manuseando um telefone e várias folhas de papel.
Christine esperou pacientemente até que a mulher desligasse o telefone.
— Com licença. Estou aqui para falar com o senhor Stearns.
A mulher, assustada, olhou fixamente para Christine com os olhos arregalados. Ela
passou a mão na testa, num gesto de agitação.
— Oh, meu Deus — ela disse. — Me esqueci de você.
O tom usado pela mulher indicava que Christine era, de fato, uma intromissão em
seu dia atarefado.
Christine recusou-se a ficar acovardada.
— Eu queria falar com o senhor Stearns — repetiu ela.

120

— Ele acabou de sair para um almoço. Você vai ter que voltar mais tarde. Não havia
nenhum arrependimento na voz.
— Vou esperar — disse Christine.
E ela realmente esperou. Dessa vez ela não foi se sentar no saguão exterior.

Tomou assento numa cadeira bem na recepção. Não queria ser esquecida
novamente.

Quase duas horas mais tarde, o senhor Stearns regressou. Ele era mais jovem que
qualquer um dos dois homens que Christine tinha visto entrar no edifício.
A recepcionista o viu tirar o chapéu e desabotoar o casaco.
— Aqui tem uma moça para o senhor entrevistar, senhor — disse ela abruptamente.
O homem lançou um rápido olhar na direção de Christine, e então disse para a
mulher.
— Eu vou avisá-la quando estiver pronto.
Não era o que Christine queria ouvir. Antes que pudesse se conter, estava de pé.
— Senhor — disse ela, com a voz soando mais forte do que ela pretendia. — Já
estou aqui desde antes das nove horas da manhã de hoje, e se este trabalho não
estiver disponível, agradeceria a cortesia de ser informada, para que eu possa sair
para procurar em outro lugar.
O homem olhou para ela por um momento, um ligeiro sorriso nas comissuras de sua
boca.
— Pode entrar — disse ele finalmente com um aceno de cabeça.
Ele liderou o caminho para o seu escritório.
Christine sentou-se na cadeira que lhe fora indicada. Seu rosto ainda estava
ruborizado devido a recente perturbação. Sentou-se com firmeza, cutucando
nervosamente a bolsa que tinha na mão. Ela tinha a certeza de que qualquer chance
que pudesse ter tido estava agora terminada.
O senhor Stearns conduziu a entrevista de forma muito profissional, e depois de
certo tempo, Christine sentiu a tensão se esvair. Ela ia gostar de trabalhar para este
homem. Ele era cortês, conciso e claro, e aparentemente bem-organizado.
Exatamente o tipo de chefe que iria apreciar. Oh, espero conseguir esta vaga
continuava passando por sua mente.
121

Embora Christine não tivesse perguntado, o salário foi mencionado, e era mais do
que ela ousara esperar. Mais do que recebia quando trabalhava para o senhor
Kingsley. Ia poder pagar por alojamento decente. A ideia fez seu coração pulsar
mais rápido.

No final da entrevista, o homem se levantou e deu a volta na escrivaninha para


despedi-la com um aperto de mão.
— Obrigado por ter vindo, senhorita Delaney. Tenho mais duas entrevistas
marcadas para amanhã de manhã. Tenho que cumpri-las, ainda que se trate de mera
formalidade. Se deixar o seu número de telefone com a recepcionista na saída, vou
me certificar de que a senhorita seja prontamente avisada.
Entrevistas marcadas, pensou Christine. Devia ter pensado em marcar uma
entrevista. Bem, essa foi uma lição aprendida para a próxima vez — se houvesse
uma próxima vez.
Ela agradeceu o senhor Stearns e parou na recepção quando saiu. A recepcionista
surpreendeu-a ao lhe dar um sorriso... apesar de parecer um pouco cansada.
— Peço desculpa por fazê-la esperar por tanto tempo — disse ela à Christine. —
Estou tão... tão sobrecarregada aqui.
Christine devolveu o sorriso.
— Eu gostaria de poder ajudar a aliviar a sua carga — disse ela com sinceridade.
O sorriso da mulher se ampliou.
— Eu também ia gostar. Espero que você consiga o trabalho.
Christine deixou o número do hotel e saiu de volta para seu quarto. Embora o dia
ainda estivesse frio, ela sentiu um calor interior que levantou consideravelmente seu
ânimo. Sentiu que havia a possibilidade de ter suas orações atendidas. Estava até
mesmo grata por Deus tê-la poupado de um dos outros empregos que tinha
explorado, que não eram nada, se comparadas com as possibilidades deste.
Evidentemente, ela não sabia absolutamente nada sobre as outras candidatas. Talvez
fossem muito mais habilidosas e tivessem muito mais experiência. Ainda assim, a
entrevista tinha corrido bem. Christine ficara aliviada com o fato de o senhor
Stearns ter tanta tranquilidade para conversar, ser tão relaxado, no entanto eficiente
e profissional. Ele tinha deixado ela à

122

vontade praticamente de imediato. O senhor Stearns não é austero, disse como um


gracejo para si mesma enquanto caminhava. Esperava — oh, esperava — que a
vaga fosse sua.
Estava extremamente tentada a telefonar para casa com a grande notícia. Mas
controlou o impulso. Não ia telefonar até que pudesse dizer que o trabalho ideal era
realmente dela. Ao mesmo tempo, recordou a si mesma que, embora ainda não
estivesse confirmado, ela se sentia confiante. E saberia a resposta em breve.
Amanhã, depois das outras entrevistas da manhã. A recepcionista tinha prometido
telefonar às dez horas.

Por agora, tudo o que podia fazer era esperar e orar.

Christine estava se preparando para dormir quando recebeu uma mensagem de que
a mãe a esperava ao telefone. Ela apressou-se a descer para o saguão e o telefone
público partilhado.

— Lamento te incomodar tão tarde — a mãe disse se desculpando. — Acabei de


receber um telefonema do seu tio Jonathan. A tia Mary teve uma queda grave.
Pensei que você ia querer saber.

— O que aconteceu? — perguntou Christine, sentindo o coração apertado.

— Ela escorregou numa poça de gelo. O médico diz que nada parece estar
fraturado, mas ela vai precisar ficar de repouso por pelo menos duas semanas.
Christine gelou.
— Repouso? Então ela vai ter que ficar em casa?
— Foi o que disse o Jonathan. Ele não tem a certeza de como eles vão se virar. As
meninas não podem vir para ficar com ela, por causa dos pequenos em casa.
Jonathan diz que vai tentar encontrar uma pessoa que venha todos os dias para
ajudar. Ele não pode deixá-la sozinha. Não é que ele não possa pagar alguém —
mas é que trabalho com convalescentes está tão difícil de achar nesse momento, por
causa da guerra e tudo mais.
— Eu vou ajudar.
As palavras saíram da boca dela antes mesmo de Christine pudesse se conter.
— Oh, mas, querida...
— Está tudo bem.

123

— Você não encontrou emprego?


— Acho que talvez tenha encontrado. Eles ficaram de me ligar amanhã. Mas...
correu tudo bem. O senhor Stearns disse que tenho as qualificações certas, e a
recepcionista pareceu satisfeita.
— Oh, minha querida...
— Não, não faz mal, mãe. De verdade. Se a tia Mary precisa de mim, eu vou.
— Mas parece que essa é uma boa oportunidade. Este trabalho. Detesto a ideia de
você perder esse trabalho.
— Não faz mal.
— Será que a vaga do trabalho ainda vai estar livre dentro de algumas semanas?
Christine mordeu o lábio.
— Acho que não. Não. A pobre assistente está quase fora de si tentando dar conta
de tudo.
— Lamento. Eu mesma iria, mas eu...
— Não, mamãe. Esta é a solução mais fácil e menos perturbadora para todos —
disse Christine com firmeza. — Você vai telefonar para o tio Jon ou telefono?
— Se... se você tem mesmo certeza... eu vou telefonar hoje à noite. Você tem
mesmo certeza? — Elizabeth perguntou de novo. — Não gostaria que você
colocasse em risco sua carreira, Christine, e o teu tio Jon também não ia querer isso.
— Pode dizer a ele que vou estar no trem de amanhã.
Christine quase não ouviu mais a conversa. Os pensamentos rodopiavam, e a sua
cabeça estava começando a doer. Será que estava desperdiçando a maior
oportunidade de sua vida? Não tinha como saber. Talvez ela nem sequer tivesse
conseguido o emprego. Talvez uma das outras entrevistadas ia ser a escolhida. Mas
o senhor Stearns disse que tinha que prosseguir com as entrevistas marcadas, tal
como prometido. Uma mera formalidade, ele disse. Não parecia que... que ele já
tinha tomado uma decisão?
Bem, não podia ser evitado. A tia Mary precisava dela. Certamente ela poderia
confiar a Deus o futuro.
124

Fiel à sua palavra, a recepcionista telefonou às dez horas. Quando Christine correu
para o saguão, não tinha certeza do que esperava ouvir. Se a mulher dissesse:
“Desculpe-me, mas você não conseguiu o trabalho”, pelo menos Christine sentiria
que não tinha sacrificado um trabalho de sonho pelo bem de sua tia Mary. Que Deus
sempre soube a resposta e estava preparando algo mais para ela.

Por outro lado, seria outro golpe em sua confiança, que já estava frágil, se a
recepcionista a informasse que eles tinham decidido que ela não tinha sido aceita,
afinal.

Mas foi uma voz entusiasmada que a saudou no outro extremo da linha.

— Você conseguiu o trabalho; não há concorrência — a mulher disse com


animação.
Christine fechou bem os olhos e mordeu o lábio.
— Senhorita Delaney. Ainda está aí?
Christine conseguiu dizer que estava.
— Você conseguiu o emprego.
— Eu estou... Eu lamento muitíssimo. Surgiu um imprevisto. Recebi um telefonema
ontem à noite. A minha tia... caiu e vai ter que ficar acamada. Eu... preciso ir cuidar
dela.
A linha ficou em silêncio.
— A sua tia? — disse finalmente a voz.
— Sim.
Outro silêncio.
— Aqui na cidade?
— Não. Não, em Calgary.
— Então você vai ter que sair da cidade?
— Sim, receio que sim.
— Por quanto tempo?
Todo o entusiasmo tinha se esvaído da voz.
— Não tenho certeza. Pelo menos durante umas duas semanas... talvez mais tempo.
Tudo depende.
— Nós... não podemos esperar duas semanas.

125

— Eu sei. Lamento muito. Peço imensa desculpa, eu... eu queria mesmo esse
trabalho. De verdade.
Um longo suspiro foi ouvido através da linha telefónica.
— Eu também lamento. O senhor Stearns estava tão satisfeito com as suas
qualificações, e eu... realmente pensei que podíamos trabalhar bem em conjunto.
— Obrigada. Eu pensei o mesmo.
— Não tem outra pessoa que possa... que possa ir?
— Não. Não... já esgotamos a lista de possibilidades.
— Bem — a mulher suspirou novamente —, acho que não há nada mais a dizer,
exceto boa sorte, então. Lamento que não tenha dado certo.
— Por favor... por favor, diga ao senhor Stearns que lamento imensamente. Eu...
estou muito grata por sua... sua consideração por mim. Tenho certeza de que teria
gostado de trabalhar para ele.
— Vou dizer sim.
— E obrigada. Espero que encontre alguém para... para ajudá-la... logo. Desculpe.
Christine sentiu-se entorpecida ao largar o receptor. Por que? Por que as coisas
foram assim? Tinha pedido um emprego a Deus, e a vaga perfeita tinha aparecido
— essa que tinha sido oferecida há pouco. Então por que que a queda da tia Mary
veio no momento errado? Christine nunca ia entender. Nunca.
Mas Christine não podia se permitir chafurdar em autocomiseração. Tinha que
pegar um trem e muito pouco tempo para chegar à estação. Ela chamou um táxi.
Não ia conseguir caminhar e carregar todas as suas coisas. Contou o dinheiro que
tinha na bolsa. Era o suficiente para a tarifa de táxi, a passagem de trem e lhe
sobrava só um pouco mais. Assim que chegasse no tio Jon, é claro, ela teria
alojamento e alimentação.
Engolindo a profunda desilusão, Christine transportou as malas e caixas para o
saguão e ficou perto da porta, para que pudesse observar a chegada de seu
transporte para a estação.
Christine descansou a cabeça no encosto do banco alto
como muitos
126

outros viajantes tinham feito ao longo dos anos. A viagem de trem sem percalços
estava dando a ela tempo — muito tempo — para pensar. Não era para ser assim.
Não era assim que tinha planejado. Havia mesmo um propósito para tudo isto? Será
que estava fazendo a coisa certa? Ela certamente ia ter poucas oportunidades de ter
um trabalho como esse que tinha acabado de recusar. Será que estava cometendo
um erro terrível?

Mas será que conseguiria fazer o contrário? Havia alguma outra escolha sensata?
Não seria ela terrivelmente egoísta, se colocasse seus desejos próprios diante das
necessidades de um membro da família, uma pessoa que tinha se doado de forma
desinteressada à mãe de Christine — e à própria Christine — ao longo dos anos?

Os argumentos e frustrações giravam e giravam em seu cérebro confuso. Por fim,


Christine sussurrou uma simples oração: “Senhor, se fiz a coisa errada, se fui
insensata, por favor me perdoe. Se fiz a coisa certa, por favor, me conceda a paz. Eu
confio em Ti, Senhor, nisto e em todas as coisas”'.

Gradualmente, Christine sentiu uma calma tomando conta de seu ser. Concluiu que
teria ficado ainda mais angustiada se tivesse aceitado o trabalho e deixado o tio Jon
a resolvendo as coisas por conta própria.

O seu senttimento de luta pessoal tinha desaparecido. Havia ainda o sentimento de


desapontamento, mas não mais a agitação de pensar que as coisas “não tinham dado
certo”. O Senhor estava tomando conta de sua vida.

A voz do condutor a despertou.

— Calgary. Próxima parada, Calgary — ele estava chamando enquanto caminhava


em meio aos balanços suaves do vagão.
Christine, admirada por ter dormido, se agitou e reuniu suas malas de viagem ao seu
lado. Ela não ia se preocupar com o futuro, mas percebeu que estava se
questionando como se desdobrariam os próximos dias. Bem, isso estava nas mãos
de Deus. E isso era, de fato, bastante animador.
O tio Jonathan estava de pé na plataforma, encarando aqueles desembarcavam do
trem. Quando viu Christine, um sorriso substituiu o semblante preocupado. Sem
dizer uma palavra, ele abriu os braços para abraçá-la.
— Não tenho como expressar o quanto ficamos aliviados ao saber que você viria —
disse ele enquanto a abraçava. — Mas lamento imensamente o incômodo.

127

— Nem pense nisso! — Christine respondeu com um sorriso. — Ainda bem que eu
estava disponível.
— Mary mal pode esperar para te ver. Ela ainda está com bastante dor, receio eu,
com a coluna machucada, mas ela tenta se mostrar corajosa.
— Lamento muito mesmo, tio Jon — disse Christine com outro abraço.
— Sim, bem, estas coisas acontecem. Nem sempre para o nosso prazer. Mas a Mary
já encontrou uma lista enorme de coisas para estar agradecida.
— Agradecida?
— Está grata por não ter sofrido nenhuma fratura. Que não tenha sofrido uma
queimadura por causa do gelo, enquanto estava caída na calçada. Que um vizinho
estava passando quase que imediatamente. Que ela recebeu um bom tratamento
médico. Que ela não tenha que passar tempo internada no hospital. Que ela tem
uma casa acolhedora e confortável — a lista prossegue. Mas o maior de todos os
agradecimentos é porque você se dispôs a vir para ficar com ela. Este é o número
um da lista, creio eu.
Ele voltou a sorrir.
Christine conseguiu sorrir também. Ficou extremamente contente por não ter dito
não para essa oportunidade. Certamente, certamente, Deus tinha todo o resto
cuidadosamente planejado.
Em seguida, arrumaram a bagagem de Christine no carro e se afastavam da estação.
Jonathan continuou informar Christine sobre a situação em casa.
— Ela não pode se mover por conta própria de maneira nenhuma, o que significa
que ela precisa de ser virada de tantas em tantas horas. A dificuldade é fazê-la
relaxar e não tentar ajudar com o movimento. Ela se sente tão mal por precisar da
ajuda de outra pessoa. Mary nunca se acostumou a ser ajudada. É sempre ela que
oferece a ajuda. Esta é a maior dificuldade que ela tem.
Christine fez que sim com a cabeça.
— Claro que ainda temos a Lucy, e temos a senhora que ajuda na limpeza e
lavandaria. Mas me disseram que cuidado de enfermagem é outra coisa. O médico
apenas deu de ombros e me desejou boa sorte. Dizem que os hospitais estão
terrivelmente carentes de pessoal de enfermagem.
Conduziu o carro através de um cruzamento, depois continuou.
— Portanto, a sua responsabilidade será cuidar da Mary. Nada além disso. Não há
muito que ela possa fazer deitada de bruços, mas gosta que leiam para

128

ela, se você sentir que ia gostar de fazer isso. Eu trabalho das oito da manhã às
dezoito, todos os dias. Eu vou assumir quando estiver em casa.
Ele acelerou a subida da colina que levava à sua casa no Monte Royal.
— Espero que isso não seja pedir muito.
— Não, de jeito nenhum. Terei todo o prazer do mundo em cuidar dela.
— Neste tipo de situação, sempre senti que a melhor política é ter tudo claramente
compreendido logo à partida — prosseguiu o tio.
Christine assentiu em concordância.
— Não tive tempo de redigir nada no papel, mas se você quiser, posso fazer isso.
Christine ficou surpresa.
— Não. Não, isso não é necessário!
— Você vai ser paga mensalmente, com meio mês de salário pago adiantado.
— Salário? Oh, eu não posso aceitar um salário. Eu vim para ajudar. Meu quarto e
alojamento estão...
— Um salário sim, jamais ia pensar em fazer de outra forma. Aceite o salário ou te
enviamos de volta.
O tio Jon a encarou de relance, com a sobrancelha arqueada.
Christine fez que sim com a cabeça de forma estúpida. Ela nem sequer tinha
considerado trabalhar para receber algum pagamento.
— Se precisar de um novo adiantamento, em qualquer momento, para qualquer
coisa, por favor, não hesite em me falar — acrescentou o tio Jon, e então mencionou
o montante do salário.
Christine engasgou.
— Oh, isso é demais. Certamente...
— Averiguei o quanto seria o salário normal para essa posição. Foi-me assegurado
que esse é o custo para esse tipo de serviço, e eu jamais ia pedir que minha própria
sobrinha trabalhasse por menos que isso.
— Mas eu vim para ajudar...
— E você não sabe como estamos gratos — disse o tio Jon ao virar-se para olhar
para ela mais uma vez. — Eu estava tão preocupado com a Mary.
129
JANETTE OKE

Ela estava completamente fora de si, por causa das complicações da queda. Sua
presença aqui é de verdade a resposta para as nossas orações.
Parecia não haver nada mais para Christine dizer.
Ela subiu as escadas até ao quarto da tia. Parecia mesmo estranho ver a enérgica tia
Mary deitada quieta e pálida na enorme cama.
— Tia Mary — Christine sussurrou, e as pálpebras da mulher vibraram e abriram.
— Christine. Você veio, querida.
Um sorriso iluminou seu rosto, e ela estendeu a mão.
— Estou aqui. Vou voltar para cuidar da senhora assim que receber as instruções do
tio Jon. Ele disse que logo vai chegar a hora de tomar o remédio para a dor.
— Um comprimido. Sim. Estou ansiosa por esse momento.
Christine podia ver a dor no olhar da tia.
—Vou buscar água fresca e já volto — prometeu ela.
— Obrigada, querida.
Christine estava na porta quando a tia voltou a falar.
— Christine, estou tão contente por você ter vindo. Não estava muito animada para
passar os próximos dias na companhia de uma estranha. Vai ser tão bom ter você
aqui, minha querida.
Christine assentiu, sorriu, e saiu com a jarra de água.
130
Capítulo 12
C

hristine não podia negar que as semanas seguintes testaram a sua determinação em
confiar a Deus suas circunstâncias. Embora a tia Mary fosse pouco exigente e
cooperante, os dias se arrastavam de forma tediosa. Virar a tia na cama para evitar
as escaras era uma das maiores

dificuldades. Era realizada através de manobras habilidosas do lençol onde a


paciente estava deitada, mas não era fácil para Christine fazer sozinha. Algumas
vezes, era preciso mais do que uma tentativa para se concluir com êxito, e muitas
vezes o procedimento era acompanhado pela dor. Christine tentava cronometrar o
evento, para que a medicação estivesse mais eficaz.

Jonathan instalou uma campainha na cabeceira que tocava no quarto de Christine e


na sala principal, por isso, enquanto Mary dormia, Christine estava livre para esticar
as pernas e ter alguns minutos de descanso. Mas a tia Mary dormiu muito pouco nos
primeiros dias. A dor era simplesmente intensa demais e os espasmos na coluna
extremamente severos. Christine alternava compressas quentes e frias para ajudar a
aliviar a dor, mas elas não eram muito eficazes.

Christine lia para a tia até ficar rouca, na esperança que o ritmo das palavras
servisse como distração. Ela não tinha certeza de que a tia estava realmente
acompanhando a história.

Gradualmente, oh, só gradualmente, ao que parecia, a dor começou a aliviar. O


rosto de Mary não estava mais tão extenuado, a respiração não tão superficial. Ela
descansava mais facilmente entre as doses de analgésico. Não precisava mais abafar
tantos gemidos quando era virada. E embora o médico, que a visitava regularmente,
lhes garantisse que ela estava fazendo bons progressos, também advertiu que este
era o momento mais crítico. Como Mary não estava sentindo a dor tão intensa, era
mais provável que ela fizesse algo para agravar a lesão e retardar seu progresso.
Christine tornou-se ainda mais vigilante. Ela não saia da sala para fazer pequenas
pausas ou tomar as suas refeições na sala de jantar ou na cozinha.

Mas as noites lhe pertenciam. No início, ela não tinha ideia como aproveitá-las, mas
depois fez amizade com duas moças da igreja, que acabaram sabendo de sua
situação. Logo as moças a convidaram a envolver-se com elas no auxílio ao centro
de militares, trabalhando com jovens soldados — homens e mulheres que estavam
alojados em Calgary.

Christine estava hesitante a princípio. O que ela podia fazer para ajudar? Mas
depois de uma ou duas visitas ao centro, descobriu que havia muitas coisas que ela
podia fazer — coisas tão simples como manter um bule cheio de café disponível ou
servir bolinhos quadrados. Não demorou para que estivesse totalmente envolvida
muitas noites da semana, procurando formas de trazer algum tipo de distração ou
alívio para aqueles que estavam de uniforme.

Muitos eram extremamente jovens e não eram tão corajosos ou confiantes quanto
fingiam ser. O coração de Christine sofria com eles, e orava com todo o seu coração
para que ela pudesse oferecer algum encorajamento, alguma luz para os que
estavam marchando para viver os horrores da guerra sem ter uma fé pessoal.

Não demorou muito para que ela descobrisse que muitos dos rapazes eram notórios
paqueradores. Pareciam ter a opinião de que a única razão por que as moças
voluntárias estavam ali era para conhecer algum jovem galã uniformizado, para
iniciar um romance tórrido. Christine não tinha essa intenção, e estava
continuamente tendo que esclarecer esse fato.
Apesar das complicações, Christine adorava o trabalho. Muitos destes jovens
tinham sido arrastados para as forças armadas numa onda de sentimentalismo
público, ou como um convite aberto a aventura, para conhecer o mundo. Poucos
pareciam ter devotado cuidadosa consideração para onde a sua escolha poderia
levá-los, e eles agora estavam repensando suas decisões. Não é que não fariam a
mesma escolha num momento mais sério, se sentissem que seu país

132

estava verdadeiramente em risco. Mas a guerra parecia muito, muito distante. A


Grã-Bretanha poderia se sentir ameaçada pela marcha do Nazismo — mas o
Canadá? Não parecia muito provável.

Todos os dias as manchetes e estações de rádio locais emitiam notícias do fronte.


Muitos países europeus estavam sendo invadidos na marcha de Hitler rumo ao
poder. A Grã-Bretanha e os países do Império Britânico pareciam estar sozinhos na
tentativa de travar a destruição. Este era um assunto sério. Isto não era uma viagem
de férias no estrangeiro. Os jovens soldados estavam dando suas vidas. Muitos
regressavam da batalha com corpos destruídos ou mutilados. Outros tinham sido
levados como prisioneiros de guerra. Christine tinha a certeza de que não era
realmente isso que estes jovens alistados tinham em mente.

Ela não estava tentado minimizar o sacrifício deles. Longe disso. Ela os admirava
pela decisão que tinham tomado... desde que essa decisão tivesse sido tomada com
a compreensão das potenciais consequências.

Noite após noite ela ouvia as histórias das suas vidas, seus medos secretos —
quando se permitiam ser sérios o suficiente para falar abertamente. Brincadeiras
tolas, a aparente virilidade e as gargalhadas espalhafatosas geralmente mascaravam
o que realmente sentiam. Mas quando se sentiam seguros para partilhar seus
sentimentos mais íntimos, aquele momento era, muitas vezes, um convite aberto
para mostrar a eles Alguém que ia acompanhá-los, mesmo atrás das linhas inimigas.
Vários jovens, homens e mulheres, apareciam nos cultos dominicais nas igrejas
locais.

Mas havia muitos outros que não compareciam, que riam na face do perigo
iminente e reforçavam a sua própria ousadia com discursos vulgares e uma postura
de vaidade. Por vezes, Christine desejava sacudi-los para a realidade. Mas ela sabia
que a tática nunca iria funcionar. Eles precisavam de amor, precisavam de oração.
Precisavam ter a sensação de que havia quem os ouvisse. Os voluntários
esforçaram-se por fornecer o apoio que pudessem.

Finalmente chegou o dia em que o médico permitiu que Mary saísse da cama pela
primeira vez. Christine podia dizer pelo semblante da tia que ela ainda sentia dor,
mas mordeu o lábio e guardou para si qualquer comentário. Fraca pela falta de uso
de músculos, ela precisou de apoio enquanto dava os primeiros passos até a cadeira
que a esperava.

133

— Assim que pudermos, vamos iniciar um regime de exercícios — disse o médico.


—Primeiro queremos ver como é que a coluna vai responder ao passar um tempo na
cadeira.

Em poucas horas, Mary estava pronta para voltar para a cama. Mas ela tinha
superado as expectativas do médico para o primeiro dia. No dia seguinte ela esteve
acordada por um período mais longo, e no dia seguinte ela passou quase metade do
dia numa posição vertical.

O médico decidiu que era o momento de começar a fisioterapia para fortalecer os


músculos, e foi mostrada a Christine uma série de movimentos que ela devia ajudar
a tia Mary a fazer, várias vezes ao dia. Christine perguntavase de vez em quando
quem estava fazendo mais exercícios. Muitas noites ela ia dormir mais cedo, de tão
cansada que estava. Até faltou algumas noites no centro. Sentia-se simplesmente
exausta demais para ir.

Mas não demorou muito até que Mary pudesse assumir a maior parte dos
alongamentos e elevações musculares por conta própria. Salvo se houvesse
complicações, Christine sabia que não seria necessária por muito mais tempo.
— Por que não procura um emprego por aqui, querida? — perguntou a tia Mary
numa manhã, enquanto trabalhavam em conjunto com a rotina diária. — Deve ter
muitos postos de trabalho disponíveis. Calgary está em plena expansão, me
disseram . E muitos jovens se alistaram e têm sido enviados para o estrangeiro.

— Tenho pensado nisso — admitiu Christine. — Se eu encontrasse algo aqui,


poderia ficar envolvida no trabalho.
Christine sentia que o que ela fazia com os jovens recrutas começava a ter um
significado importante. Acreditava ter encontrado seu espaço no esforço de guerra.
Ao ajudar a preparar e fortificar aqueles que poderiam ir para a ação, ela estava
fazendo a sua parte. Talvez não em defesa efetiva, mas conversando com jovens
homens e mulheres — aqueles que estariam defendendo a liberdade no futuro —
sobre a necessidade de uma fé pessoal em Deus. A vida eterna era ainda mais
importante do que a temporária vida física. Christine acreditava nisso de todo o seu
coração.
Havia planos em preparação para iniciarem um segundo centro. E falavase em
contratar um capelão em tempo integral para supervisionar o programa. Pastores de
várias igrejas da cidade tinham doado o tempo que podiam doar. Com um capelão
dedicado apenas àquele trabalho, muito mais poderia ser

134
realizado. As igrejas das cidades iam pagar juntas o salário do pastor. Parecia uma
ideia maravilhosa para Christine.

— O trabalho que você está fazendo é tão importante — prosseguiu a tia Mary. —
Estou ansiosa para voltar ao meu grupo de senhoras, para começar novamente a
preparar as caixas de cuidados. Estou sentindo falta de estar envolvida.

— Bem, a senhora tem conseguido pegar no tricô — Christine a fez recordar. —


Tenho certeza de que todas essas meias de lã serão apreciadas por alguém, em
algum lugar.

— Vou falar com o Jon. Acho que está na hora de você ser liberada para ir em busca
desse trabalho. Talvez ele até tenha algumas sugestões.
Christine estava entusiasmada. Tinha certeza de que jamais encontraria um emprego
tão perfeito como o que tinha perdido em Edmonton, mas não duvidava de que
Deus estava atuando em toda esta questão. Se ela tivesse ficado em Edmonton não
teria descoberto o projeto Cantina Esperança.
No dia vinte e cinco de março, Christine aproximou-se do prédio que Jonathan tinha
sugerido para a primeira entrevista de emprego em Calgary. Estava surpresa, porque
esse projeto ainda lhe causava nervoso. Desta vez tinha marcado um horário para a
entrevista e veio com a referência de Jonathan nas mãos. Ela esperava que a
entrevista fosse tão bem quanto a entrevista com o senhor Stearns, e que fosse
encontrar um chefe tão simpático como ele parecia ser.
O homem por detrás da grande escrivaninha parecia educado o bastante. O senhor
Burns fez perguntas lógicas e delineou requisitos lógicos.
— Conheço o Jonathan há anos, e não creio que ele a recomendaria se não
conseguisse fazer o trabalho — disse ele simplesmente. — Você pode começar na
segunda-feira de manhã.
Christine não podia acreditar que tinha acontecido com tanta facilidade — e assim
tão rápido. Pensou naquelas caminhadas durante o inverno frio em Edmonton e o
seu retorno desanimado no final de cada dia. Estava certa de que Deus estava de
fato no comando. Ela decidiu parar no caminho de volta para comprar uma caixa de
doces para a tia Mary e uma gravata nova para o tio Jon. Ela tinha um emprego.
Tinha dinheiro na conta bancária. Tinha um lugar para viver — se ainda quisesse
ficar com eles. E, mais importante, sentia que estava fazendo a diferença nas vidas
das pessoas. Que mais poderia pedir?

135

Mas por que não se sentia feliz? É evidente que estava feliz. Não, sentiase satisfeita.
Ela não se sentia realmente estabelecida. Perguntava-se se seria verdadeiramente
feliz até estar de volta ao norte, onde pertencia. Em qualquer outro lugar, sentia-se
como se estivesse apenas passando um tempo.

Seus pensamentos saltaram de repente para Laray. Estivera ocupada demais para
sequer pensar nele durante muitas semanas. Mas agora os dias de cuidar da tia Mary
tinham acabado. Agora ela podia retomar sua própria vida.

O que Laray estava fazendo agora? Será que tinha sido transferido? Henry não tinha
dito nada, nem a mãe mencionara nada a respeito em qualquer de suas frequentes
conversas ao telefone.

Não, era provável que ainda estivesse por lá. Será que ainda esperava por um
bilhete dela? De repente, a ideia de voltar a manter contato parecia interessante.
Christine ia gostar de saber o que estava acontecendo na vida dele. Queria que ele
pudesse fazer uma visita à cidade. Ia adorar levá-lo na Cantina da Esperança.
Deixar que ele ouvisse as conversas — algumas eram conversas casuais, outras
eram conversas sérias, onde alguns deles abriam o coração a respeito de seus medos
e esperanças. Ela ia gostar de que Laray conseguisse sentir o pulsar dos jovens que
estavam se preparando para servir seu país.

Basta me mandar uma carta. Será que ela conseguiria fazer isso? Mas o que isso ia
significar? Será que ele ia ter grandes expectativas? “Sem promessas”, ele dissera.
“Eu vou dar continuidade dali ”. O que ele quis dizer com isso? E será que ainda se
sentia da mesma maneira? Já tinha se passado quase três meses desde que tiveram
essa conversa. As coisas podem ter mudado desde então.

Durante todo o final de semana, Christine ficou pensando em escrever o bilhete.


Uma vez chegou até mesmo a se sentar com papel e caneta. “Apenas um bilhete
para dizer que você está bem.” — não foi o que ele disse? Isso parecia tão fácil.
Mas não conseguia escrever. Queria poder conversar com Henry. Talvez o Laray
tivesse dito alguma coisa a ele — indicando de alguma maneira como ele se sentia
naquele momento. Mas não era o tipo de coisas que poderia ter com o irmão mais
velho por telefone. Não parecia correto.

O bilhete nunca foi escrito.

Christine ficou contente ao perceber como foi rápido seu


ajuste à rotina do novo escritório.
136

Ela decidiu aceitar o gentil convite do tio Jon e da tia Mary, de ficar morando com
eles pelo menos por um tempo. Eles elaboraram um acordo como se fosse um
aluguel, e Christine tinha certeza de que ela jamais teria feito um acordo melhor em
qualquer outro lugar. E nem teria tido mais cuidado mais amoroso — ou melhores
refeições. Ela se sentia abençoada.

Todas as coisas cooperam juntas para o bem, repetia muitas vezes para si mesma,
embora para ela fosse um mistério que Deus tenha permitido que a tia Mary
suportasse tamanho sofrimento só para que Christine fosse para Calgary. Quando
mencionou essa ideia para Mary, a tia disse rindo.

— Acho que não é isso que o verso significa... realmente — respondeu a tia Mary
ponderadamente. — Eu não responsabilizo a Deus pela minha queda. Foi o meu
próprio descuido. Eu sabia que as ruas estavam congeladas, e não devia ter me
apressado tanto. Mas você me conhece. O Jonathan está sempre me dizendo que eu
preciso desacelerar. Mas, quando acabou acontecendo, foi aí que Deus interveio e
fez com que algo de bom viesse de algo ruim. Concordo que você esteja aqui por
um propósito. Você tem um verdadeiro talento para ajudar, ouvir, partilhar sua fé,
que está colocando em uso na Cantina Esperança. Acho que esse é o lugar que Deus
preparou para você nesse momento. Não faço ideia do que Ele tem em mente para o
futuro. Mas Ele vai te deixar saber, para que você tenha tempo o suficiente para se
preparar para isso.

Christine fez que sim em concordância. Tinha certeza de que Ele lhe faria saber.
Mas seria um tremendo alívio ter tudo arrumado e apresentado claramente diante
dela. Era muito difícil dar um passo de cada vez.

Christine recebeu um telefonema de Elizabeth.


— Estávamos pensando se você conseguiria vir para casa na Páscoa. Parece que já
faz tanto tempo que te vi pela última vez. O Henry não vai poder vir. Aquele novo
oficial ainda precisa de supervisão. O Henry contou que o Maurice ainda perde a
paciência com ele às vezes. Henry contou que falta ao Milton — esse é o nome do
rapaz, Milton Furbridge — um pouco de faro policial. Tive de verificar com seu pai
o que era isso. Ele diz que algumas pessoas têm uma capacidade natural de saber o
que deve ser feito, como e quando. No trabalho policial isso é importante — e torna
tudo muito mais fácil para todos os interessados. Outros têm que aprender da forma
mais difícil. “Sempre batendo a cabeça na parede”, foi como o seu pai explicou.
Seja como for, Henry diz que é longe demais para viajar durante um período de
tempo

137

tão curto. Pensei que talvez você pudesse vir, querida. Não é uma viagem muito
longa de trem. Depois você pega carona com o senhor Carson. Você vai ter um
feriadão, não vai?

— Tenho uma ideia melhor — sugeriu Christine. — Por que é que não você e o
papai não vem para cá? Ele também tem um feriadão, não tem? Vocês poderiam vir
de trem, e talvez Henry e Amber podiam vir até aqui de carro, pelo menos para o
Domingo de Páscoa.

Houve silêncio.
— Vou ter que falar com seu pai — Elizabeth finalmente disse. Mas

Christine podia dizer que a mãe ficara entusiasmada com a ideia. — Tem certeza de
que não seria problema para a tia Mary? — perguntou
ela.
— A ideia foi dela. Ainda outro dia ela disse: “Não seria divertido se eles
pudessem vir?” disse a tia Mary. “Talvez o Henry e aquele outro rapaz podiam
encontrar com seus pais aqui”, ela falou.
— Que outro rapaz? Danny?
— Não. Acho que ela se referia a Maurice Laray.
— Oh, não seria maravilhoso? Mas ele não pode ir. Eles jamais poderiam
deixar o Milton sozinho — concluiu Elizabeth.
Christine não tinha a certeza se sentia-se desapontada ou aliviada com essa
parte do plano.
— Vou falar com seu pai — disse a mãe novamente. — Seria maravilhoso
se pudéssemos ir.
Quando Christine desligou o telefone, virou-se para a tia.
— Acho que eles vão vir — ela disse, demonstrando sua empolgação
na voz. — Minha mãe disse que vai ter que falar com o papai, mas deu pra
perceber que ela está pronta para convencê-lo. A menos que aconteça algo que
o impeça de sair, creio que eles vão vir.
— Bom — disse Mary. — Não sei quando foi a última vez que tivemos
a oportunidade de passar a Páscoa juntos. Viu? Essa é outra vantagem de ter
você aqui.
Christine já estava planejando mentalmente todas as coisas que queria
fazer com os pais. Ela os levaria para a cantina uma noite, para que vissem em

138

primeira mão o trabalho que estava fazendo com os jovens em serviço. Ela os
levaria até o prédio onde ficava o novo emprego. Deixaria até que eles espiassem
sua caderneta bancária, para que soubessem que ela não estava desperdiçando seu
pagamento.

Seria tão bom voltar a ter uma longa e agradável visita, em vez de apressadas e
caras chamadas telefónicas.
— Oh, espero que eles venham — explicou ela, beijando a tia na bochecha. —
Obrigada por dizer que podíamos convidá-los.
A tia Mary riu.
— Minha querida menina — disse ela —, seus pais são sempre mais que bem-
vindos em nossa casa. Eles não podem visitar com frequência suficiente. Faremos
uma grande celebração. Teremos todas as crianças em casa para se juntarem a nós.
Vou chamar a Lucy imediatamente para começarmos a trabalhar nos planos .

139
Capítulo 13
Q

uando chegou a notícia de que os pais estavam planejando vir durante o feriadão de
Páscoa, Christine começou a contar os dias. E quando Henry telefonou para dizer
que eles viriam se encontrar com a família

em Calgary, a sua animação era mais do que podia conter.


A tia Mary parecia estar tão entusiasmada quanto ela.
— Você tem consciência de que nunca tivemos as nossas duas famílias

todas juntos ao mesmo tempo? Oh, William e a sua família tem que vir, tem mesmo.

E Mary telefonou prontamente para William em Winnipeg. Christine ouviu parte da


conversa.
— A tia Beth e o tio Wynn vão estar aqui, e Henry e Amber também virão. Você
ainda não conheceu a esposa do Henry. Ela é um amor. Faz anos que você não vem
em casa. Sinto tanta saudade pequenos. — Mary deu por si. — Oh, sinto saudades
de você e Violet também, é claro, mas os pequenos mudam tanto, em tão pouco
tempo. Detesto a ideia de estar perdendo tudo isso. Oh, abençoados sejam. Oh, que
amor.
Houve uma longa pausa, enquanto William devia estar falando.
— Sim, claro que compreendemos. Mas se der certo, íamos adorar ter vocês aqui.
Onde vamos colocar todo mundo? Eu tenho tantos quartos sobrando. Sim, Christine
está conosco. Eu não sei como teríamos conseguido
Q UANDO chega o AMANHÃ
sem a ajuda dela. Sim. Creio que vão ficar conosco. Eu sei. Sei quantos filhos vocês
têm. Mas as meninas estão aqui. Elas iam adorar dividir os quartos com a família.
As crianças iam ficar tão animadas em brincar com os primos. Eu sei. Sei que é
uma época atarefada. Mas seria uma oportunidade tão maravilhosa de estarmos
todos juntos. Nós nunca fizemos isso, sabe. Eu sei, querido. Bem, faça o que achar
melhor. Mande meu amor para a Violet e às crianças. Sim. Sim, para você também.
Tchau! Tchau!

Christine ouviu o suave clique do receptor. A tia voltou a entrar na sala, passando as
mãos pela saia numa agitação nervosa. Os olhos dela estavam brilhantes.

— Acho que eles virão — ela disse.

Christine sorriu e perguntou-se o que tinha acontecido com o “Faça o que achar
melhor”.
— Ele disse que está muito ocupado no escritório nessa época do ano, mas que
tentará ajeitar as coisas para que possam vir. Disse que as crianças têm implorado
para ir para a casa da Nana. Não é um amor? Meu Deus, sinto tanta saudade deles.
Mais tarde nessa noite, William voltou a telefonar para dizer que estavam se
organizando para vir. Christine nunca tinha visto a tia Mary tão animada. Ela
começou imediatamente a telefonar para as filhas.
— Elas estão vindo. Estaremos todos aqui. Oh, não é maravilhoso? Será como
aniversários e o Natal todos misturados num só.
Um após o outro os telefonemas foram repetidos para Sarah, Kathleen, e Lisbeth,
cada uma com mais empolgação que a outra.
— Vamos nos reunir para planejar. Temos que trabalhar nos detalhes. Vamos
organizar o jantar de Páscoa aqui, é claro. Vai ser tão divertido ter que esticar a
mesa. Ainda não parei para contar quanto seremos. Pode vir aqui amanhã de manhã
para o café? Daí vamos tratar de tudo.
Christine teve de concordar. Seria como um grande Natal e aniversário juntos.
Wynn e Elizabeth iam ser os primeiros a chegar. Wynn
tinha conseguido uns dias a mais para ficar em Calgary, pois tinha alguns assuntos
da polícia para
141

tratar na cidade e poderia fazê-lo enquanto Elizabeth passava mais tempo


passeando. Christine acompanhou Jon e Mary quando foram esperar pelo trem
deles. A conversa foi animada no caminho de volta para casa. Elizabeth tinha que
ouvir todos os detalhes sobre o próximo fim de semana.

— Será tão bom ver William, Violet, e os pequenos. Faz séculos que não os vejo —
disse ela entusiasmada.
— Os pequenos deles já não são tão pequenos — Jonathan comentou rindo.
— Meu Deus, não — acrescentou Mary. — Leticia já tem catorze anos. Eu mal
posso acreditar nisso. Brenda tem dez anos e Mark oito. E depois eles têm a raspa
do tacho. Paul Jonathan tem apenas dois.
Estavam falando de membros da família que Christine não conhecia.
— Eles vão ficar na casa de Kathleen — exceto Leticia. Ela vai ficar na casa do
Tom e da Sarah. A Janet, filha da Sarah é mais ou menos da mesma idade. Elas
escrevem uma para a outra com regularidade. Janet passou algumas semanas em
Winnipeg, no verão passado. Audrey não acha justo que ela não tenha uma prima da
sua idade. Ela diz: ‘Os meninos não são muito bons como primos’. William e Toby
tem a mesma idade, mas são um pouco desordeiros demais para Audrey. E Mitchell
está sempre ocupado tentando acompanhálos, apesar de ter apenas seis aanos. Claro
que o pequeno Andrew, o caçula da Lisbeth, ainda é muito novo para tentar
acompanhar a manada. Ele não está nem caminhando ainda.
— Estou tão ansiosa para ver todos eles — exclamou Elizabeth novamente.
—Vai ser divertido — foi o consenso de todos os presentes no carro.
Chovia quando o vagão vindo do leste parou na estação. Estavam todos reunidos
para recebê-los, os primos correndo por todo lado, chamando uns aos outros
excitadamente, enquanto os pais tentavam mantê-los firmemente sob controle.
Christine sorriu. Como é que alguém consegue controlar tanta exuberância? Até o
bebé Andrew protestou ao ser segurado, contorcer-se para descer e rastejar sobre o
chão da estação.

Por fim, o apito soprou. Tiveram de segurar as crianças para esperar que os
passageiros desembarcassem, e depois se rompeu o caos. Os primos se saudaram

142

com empolgação tão selvagem que Christine teve que dar alguns passos atrás.
Preocupava-se com a possibilidade de o chefe da estação se aproximar e pedir que
eles deixassem as instalações. Por fim, as saudações foram apaziguadas a um nível
mais normal, e se ocuparam em separar passageiros e bagagens, e se preparam para
carregar os veículos para a viagem de regresso à casa de Nana. Havia uma refeição
noturna planejada para todos partilharem juntos. Christine se perguntou como
seriam as coisas quando os primos fossem soltos em casa.

Mas foi mais tranquilo do que ela imaginava que seria. Os primos pareciam separar-
se em pequenos grupos por idades e iam um grupo para cada lado, deixando os
adultos tentrm recuperar o fôlego e partilharem as novidades.

Após alguns momentos, os primos foram reunidos mais uma vez e a refeição foi
servida. As crianças comeram muito mais depressa do que os adultos e, por causa
das circunstâncias, foram dispensados mais cedo e autorizados a sair para brincar
mais uma vez. Só ficaram os bebês, Andrew e Elizabeth, nos cadeirões, e o pequeno
Paul Jonathan, que tinha adormecido no colo do pai.
O alegre caos transformou-se agora em suaves murmúrios, pontuados por
gargalhadas ocasionais.
— Quando é que Henry chega? — William quis saber.
— Amanhã — respondeu Elizabeth. — Ele tem que trabalhar até às quatro horas e,
a partir daí, vai viajar de carro. Ele nos avisou que não vai chegar cedo. Disse que
devíamos pendurar a chave do trinco e irmos todos para a cama. Mas estou certa de
que ele sabe que vamos esperá-lo.
William sorriu conscientemente e brincou:
— Por isso ninguém o verá até sábado, então.
Ele riu-se enquanto Elizabeth tentava explicar que ia ficar acordada até eles
chegarem.
— Você sempre foi um provocador, William — disse ela quando se deu conta.
— Estamos planejando um lanche aqui no sábado de manhã — disse a tia Mary. —
Pensamos por volta das nove horas se as crianças puderem aguentar tanto tempo.
William assentiu.
— Nós damos a eles uma torrada, se acordarem muito cedo.
Gradualmente, a reunião foi terminando, com promessas de um para o

143
outro a respeito do que a atividade do dia seguinte ia trazer, mas Christine prestou
pouca atenção. Ela tinha que ir para o escritório.

Sentia-se um pouco contrariada, por não poder partilhar das atividades do dia. Ser
parte de uma família grande e unida a fez recordar a sensação da aldeia indígena
onde tinha crescido. Como se todos pertencessem uns aos outros. Cuidassem uns
dos outros. Ela tinha sentido falta disso.

Na noite seguinte, sentaram-se, tomaram café e comeram bolo de chocolate


enquanto esperavam que as horas passassem. Estavam sozinhos mais uma vez —
apenas Jon e Mary, Wynn e Elizabeth, além de Christine. Os outros tinham levado
as crianças cansadas a várias casas para colocá-los na cama. Tinha sido um dia
atarefado; Christine se perguntava apenas quem estava mais exausto, se as crianças
ou os pais.

Agora estava tudo calmo.


A noite estava quente e agradável, por isso não tinham acendido o fogo. Christine
estava bem ciente que um olhar ou outro com frequência corria até o relógio na
lareira, como se cada um deles estivesse rastreando a viagem. Se Henry conseguiu
sair prontamente depois de quatro, se não tiveram atrasos, comeram um lanche e
não pararam muito tempo para abastecer, podiam chegar a partir das dez horas.
Talvez até às nove e meia, se as coisas tiverem saído especialmente bem.
Pelo menos as estradas estavam boas. A chuva não tinha durado muito tempo,
apenas o suficiente para assentar a poeira para uma boa viagem, o pai tinha
declarado. As estradas rurais podiam ser bastante desagradáveis se ficasse muito
seco ou molhadas demais.
— William tem uma família tão adorável — comentou Elizabeth. — Tão bem-
educados. Sempre apreciei as boas maneiras numa criança.
Mary sorriu orgulhosa ao ouvir o elogio aos netos.
— Às vezes ficam meio doidinhos — observou Jonathan com um risinho.
— Eles não seriam crianças saudáveis se não ficassem — Mary os defendeu com
firmeza.
Falaram de muitas coisas. O relógio tocou. Nove e meia chegou e se foi. Já não
havia a possibilidade que a viagem tivesse corrido melhor do que se

144
esperava. Bateu dez horas, ainda sem o ruído do carro encostando na entrada.

Dez e quinze. Os olhos de Elizabeth estavam constantemente atentos ao relógio, os


ouvidos tão sintonizados com o ruído de motor que ela sem dúvida estava distraída
na maior parte da conversa.

Dez e meia.

— Por que não telefona para o Maurice, para verificar se o Henry estava ocupado
antes de sair? — Elizabeth perguntou a Wynn.
— Não tenho o número dele. Além disso, ele deve ter ido descansar agora.
— Então, basta telefonar para o escritório. Alguém deve estar trabalhando.
Wynn olhou para o relógio.
— Vamos dar a eles mais meia hora ou algo assim — sugeriu ele.
Quinze para as onze.
Christine percebeu que estava bocejando. Estava ficando tarde e ela tinha acordado
cedo. A mãe deve ter percebido.
— Por que não vai para a cama, querida? Vai ver eles pela manhã. — Depois
Elizabeth virou-se para Jon e Mary. — Por que vocês não vão para a cama também?
Não há necessidade de ficarmos todos acordados, esperando.
— Eu não me importo — disse Mary.
— Mas está ficando tão tarde. Você deve estar exausta. Já teve um dia tão longo e
amanhã...
— Está tudo bem, Beth — disse Mary enquanto se punha de pé e começava a
recolher xícaras de café na bandeja. — Acho que vou rapidinho para a cozinha lavar
essa loucinha, enquanto esperamos.
Christine também ficou de pé, e se espreguiçou.
— Eu vou ajudar a senhora — ela ofereceu, contente por ter algo a fazer para ajudar
a passar o tempo. A conversa tinha arrastado quase até uma parada.
Elas ficaram na cozinha durante vinte minutos. Christine tinha ficado atenta, para
ver se ouvia o som da abertura da porta da frente, seguido de saudações
entusiasmadas, mas não tinha ouvido nada.
Quando voltaram para a sala de estar, o rosto de Elizabeth demonstrava tensão. Era
agora onze e quinze. Sem uma palavra, Wynn se levantou da cadeira e foi até o
telefone no corredor. Passou algum tempo sem que ouvissem qualquer som da sua
parte.

145

— Laray? Ah... oficial Furbridge, desculpe incomodá-lo. Aqui é o pai do Henry.


Sim — aqui em Calgary. Não... não. Não há problema. Só me perguntava se o
Henry tinha conseguido sair como tinha planejado. Conseguiu? Ótimo. Não. Não,
ele ainda não chegou. Não. Tenho certeza de que está tudo bem. Ele pode ter tido
algum problema com o carro, ou alguma ocorrência. Não, não me referia a um
assalto — apenas um atraso, uma demora. Tá bom. Obrigado. Sim. Obrigado.

Christine estava certa de que a mãe tinha ouvido a conversa com emoções mistas.
Henry tinha saído a tempo. Isso deve ser uma boa notícia, mas porque eles ainda
não tinham chegado? O pai tinha sugerido problemas com o carro. Era plausível.
Carros estavam sempre estragando em momentos inconvenientes.

Talvez as estradas. Só porque Calgary tinha recebido apenas uma leve precipitação
não significava que a chuva tinha sido fraca em outros lugares. Podia ter chovido
com muito mais força na área de Henry. Talvez até tenha causado uma enxurrada ou
problemas com uma ponte...
— Ele teria telefonado se...

— Ele não teria um telefone — disse Wynn antes que Elizabeth pudesse terminar.
— Certamente ele teria sido capaz de encontrar um — em algum lugar — por
agora.
— Talvez tenham decidido fazer um lanche pelo caminho — sugeriu Jonathan. —
Fazer um dia especial. Sabe como Danny adora pescar. O tempo pode passar
sorrateiramente quando não se está prestando atenção.
— Esso não é o jeito de Henry — murmurou Elizabeth, visivelmente perturbada.
— Por que não vai para a cama? — sugeriu Wynn. — Não há necessidade que
você...
— Você sabe que eu jamais ia conseguir dormir.
— Bem, podia pelo menos descansar.
— Não... não podia.
As palavras foram ditas com bastante rispidez.
— Acho que vou preparar um chá para nós — disse Mary, ficando de pé.
— Minha nossa. Vamos ficar encharcados — murmurou Elizabeth distraidamente,
mas Mary saiu para fazer o chá ainda assim.

146

Christine foi até a lareira. Desejava que tivessem feito um fogo. Pelo menos teriam
as chamas para observar, algo para desviar a atenção das expressões preocupadas
nos olhares uns dos outros. Ela apertou a nuca dolorida. Olhou novamente para o
relógio. Quase meia-noite. Concordava com a mãe num ponto. Não era típico de
Henry fazê-los esperar sem dar notícias. Ele ia saber sobre a agitação e preocupação
dos pais. Esse simplesmente não era o jeito de Henry.

E ele saberia que a chave não estaria pendurada do lado de fora, que todos estariam
sentados, à espera da sua chegada. Christine foi para perto da mãe.
— Gostaria que eu fizesse uma massagem no pescoço? — perguntou ela, sabendo
como se sentia e que Elizabeth gostava de ter o pescoço massageado.
A mãe nem sequer olhou para ela.
— Não — disse ela de forma concisa, depois pareceu ter se dado conta, dando a
Christine um sorriso forçado agregando: — Agora não, obrigada.
Christine retirou-se.

Mary chegou com o chá. Todos os presentes na sala aceitaram uma xícara, embora
ninguém parecesse prestar qualquer atenção ao seu conteúdo. Apenas se sentaram
segurando a xícara, observando distraidamente o vapor subir.
O telefone tocou e todos na sala saltaram. Jonathan estava lá em poucos passos.
— Sim. Sim. Não... não, receio que não. Não. Muito bem.
— Um número errado — disse ele encolhendo os ombros cansado. — Alguns
rapazes passaram tempo demais no bar.
Ombros de todos os presentes desanimaram com mais fadiga.
Elizabeth pôs sua xícara de lado e começou a andar de um lado para o outro.
— É só que... algo não está bem — disse ela, engolindo as lágrimas angustiadas. —
Henry não faria isto.
Wynn se levantou e a abraçou durante um bom tempo, antes de dizer:
— Acho que você tem razão, Elizabeth. Algo deve ter acontecido que saiu do
planejado. Essa não é a forma como nosso filho agiria. Creio que precisamos orar.
Gentilmente ele a levou para o sofá e se sentou ao lado da esposa.

147

Elizabeth agora chorava livremente. Wynn lhe entregou o lenço e a deixou enxugar
as lágrimas. Depois, pegou a mão da esposa e começou a orar. Os outros membros
da família presentes na sala se aproximaram e estenderam as mãos para se juntarem
num círculo, cabeças curvadas, e fechados os olhos cheios de lágrimas.

— Senhor, Tu sabes da nossa preocupação. Tu conheces as circunstâncias em que se


encontra o nosso filho e sua família. Sejam quais forem as circunstâncias, pedimos
a Sua intervenção divina em Seu nome. Esteja com eles, Senhor, onde quer que
estejam. Satisfaça quaisquer necessidades que possam ter nesse momento. Traga-os
até nós... rápido... e em segurança. Tranquilize nossos corações e nossas mentes
enquanto esperamos. Admitimos a nossa dependência do Senhor, Pai, a nossa
necessidade de Sua presença e paz. Agradecemos a confiança que podemos
depositar em Ti, meu Deus, em todas as coisas. Em nome do Teu Filho Amado,
Jesus, amém.

Eles ergueram os olhos, afastaram-se tranquilamente, enxugando as lágrimas, e


assoando os narizes, procurando uma vez mais recuperar o controle de suas
emoções desgastadas.

Christine viu os ponteiros do relógio girarem constantemente em direção a uma da


manhã.
— Acho que vou querer aquela massagem no ombro agora — disse a mãe com
determinação.
Christine avançou para cumprir, mas foi parada pelo som da campainha da porta.
Todos os presentes na sala estavam atentos agora.
— Obrigada, meu Senhor — Christine ouviu a mãe murmurar enquanto saltava do
sofá e se dirigia para o vestíbulo.
Wynn seguiu logo atrás dela, e Christine alguns passos atrás.
Elizabeth abriu a porta, palavras de aliviada saudação já começavam a ser
pronunciadas.
— Henry...
Um agente da polícia uniformizado estava parado no arco iluminado do alpendre...
mas não o seu Henry. O homem ergueu a mão e esquisitamente tirou o gorro.
— Senhora Delaney? — perguntou ele hesitante, mexendo-se de um pé para o
outro.

148
Wynn abraçou Elizabeth e acenou para o homem.

— Lamento lhes informar... o seu filho e a família tiveram um acidente na estada.


Christine viu a mãe cair nos braços do pai.

149
Capítulo 14
P

ensando naquela noite, fica difícil desemaranhar o restante dos eventos. De alguma
forma, Christine e os pais chegaram ao hospital local. De alguma forma, eles
revisitaram os escassos detalhes. De alguma forma, encontraram-se no quarto de
Henry, buscando no rosto inchado e enfaixada

o homem que era seu filho e seu irmão. O médico que estava ali na volta informou-
os numa voz baixa, mas profissional, que Henry “sofreu um golpe na cabeça, que
resultou numa concussão. O prognóstico é bom. As radiografias indicam que
podemos esperar que ele recupere a consciência sem muito atraso e não deverá ter
problemas significativos no futuro”.

Doente de medo, Christine se questionou o que exatamente isso significava.


Elizabeth ficou de pé em silêncio, chorando ao lado da cama de Henry, uma mão
acariciando com ternura o braço exposto do filho, onde uma agulha aplicava algo
em sua corrente sanguínea.
— Como estão os outros? — Christine ouviu o pai perguntar com a voz rouca,
tamanha era sua emoção.
— A esposa dele está descansando confortavelmente. Demos um sedativo ao
menino, para que se acalmasse. Ele estava compreensivelmente emocionado.
— Precisamos vê-los — disse Elizabeth, limpando os olhos.
Christine ficou admirada ao ver a coragem e o autocontrole que a mãe tinha.
— Por aqui — disse o médico.
Q UANDO chega o AMANHÃ
O quarto de Amber ficava ao fundo do corredor. Ela também estava enfaixada por
causa dos cortes no rosto que o médico tinha mencionado. Tinha sofrido também
uma fratura na pélvis, além dos cortes ocasionados pelos fragmentos de vidro. O
que se podia ver do rosto de Amber estava pálido, mas ela estava consciente. Ela
estendeu-lhes a mão, e as lágrimas começaram a encher seus olhos. Elizabeth
inclinou-se e a abraçou, e choraram juntas.

— Como... como eles estão? — perguntou ela, perplexa.


— O Danny está ... descansando. Eles deram a ele algo para ajudá-lo a dormir.
Henry... ficará bem. Ele sofreu um golpe na cabeça e tem muitos cortes... mas ele
vai ficar bem — Elizabeth tentou tranquilizar a nora.
— Aconteceu tudo tão depressa — comentou Amber, olhando vagamente para o
teto.
— O que aconteceu?
Ela abanou a cabeça.
— Eu... não estou bem certa. Tínhamos recém chegado à cidade...
— Estavam na cidade... aqui? — Elizabeth parecia incrédula.
Amber fez que sim com a cabeça.
— Tínhamos chegado pouco antes das dez, eu acho. O Henry tinha acabado de
comentar que tínhamos feito um bom tempo. Nos aproximamos de um cruzamento.
Depois ouvi o Henry dizer, “Oh não”, ou algo assim, e quando olhei, esse carro veio
e bateu no nosso. Eu não... não acho que tenha perdido a consciência em nenhum
momento. Ouvi o Danny gritando, mas não conseguia vê-lo. Estendi a mão para
tocar no Henry, mas ele estava... estava paralisado. Caído sobre o volante. Fiquei
tão assustada. Pensei que ele estava morto.
Amber voltou a soluçar enquanto Elizabeth lhe dava palmadinhas no ombro. Ela
conseguiu finalmente continuar.
— E então as pessoas começaram a chegar, e todos estavam gritando e correndo, e
logo eu ouvi sirenes. Eu sabia que a ajuda estava a caminho. Fiquei tão agradecida
quando vi um homem verificando o pulso do Henry e o ouvi dizer, “Ele está
respirando”, mas tive medo de que ele nunca chegasse ao hospital. Havia sangue
por todos os lados e...
— Shh — sussurrou Elizabeth, abraçando a jovem novamente. — Não fale isso.
Tente não pensar sobre o acidente. Estão todos a salvo agora. Vai ficar tudo bem.
Shh...

151
Wynn se aproximou para pegar a mão de Amber, enquanto Christine ficou para trás.
Parada. Muda. O que pensavam que seria uma grande celebração em família
transformara-se num trágico pesadelo.

— Estou tão preocupada — sussurrou Amber. — Pensamos que estávamos trazendo


boas notícias... agora estou tão assustada...
— O que quer dizer com isso? — Christine viu os olhos da mãe arregalados por
causa da preocupação.
— Nós... queríamos contar a vocês juntos. Nós... vamos ter um bebê.
Elizabeth deu um pequeno suspiro, e depois abraçou Amber tão perto quanto pode.
— Nós... estávamos tão entusiasmados. Henry mesmo queria contar a vocês. Essa
foi uma das razões porque decidimos vir agora. Mas depois... depois disto tenho
medo de perdê-lo.
Amber estava chorando novamente.
— O médico sabe? — começou Wynn, aproximando-se da cama.
— Sim, sim, contei a ele imediatamente. Ele disse que farão tudo que puderem, mas
a pélvis...
Amber tentou sufocar as lágrimas.
Seu ferimento ganhou de repente maior significado.
— Estou só com oito semanas de gestação. É tão cedo. Eu... Realmente estou com
medo de que...
— Você precisa tentar descansar — Elizabeth a confortou, dando palmadinhas no
braço da nora. — Vamos ver o Danny... e depois vamos voltar para ficar com você.
Danny dormia profundamente com a ajuda do sedativo. O rostinho do menino tinha
dois cortes, mas fora isso, parecia inteiro. Cada um deles sussurrou uma oração de
agradecimento. Ele precisava ficar em observação, o médico dissera. Se tudo saísse
como o esperado, ele podia ser liberado em algum momento da tarde.
Os Delaneys voltaram para o quarto de Amber. Ela parecia ter conseguido se
controlar. Wynn deixou as mulheres sentadas na cama, dizendo que ia até o saguão
para informar Jonathan e Mary sobre a situação. Ele voltou em seguida com os dois,
e fizeram uma breve visita aos três quartos e depois

152
foram mandados para casa. Não adiantava nada ficarem sentados à noite na sala de
espera.

Depois Wynn saiu novamente. Ao perceber o olhar interrogativo de Elizabeth, ele


dissera algo sobre dar uma olhada no relatório policial. Christine tinha a certeza de
que o pai queria saber exatamente o que tinha acontecido. E porque tinha demorado
tanto tempo para que a família fosse notificada.
Quando retornou, Amber tinha finalmente conseguido adormecer e parecia estar
descansando confortavelmente. Elizabeth parecia prestes a dormir sentada na
cadeira.

— Creio que seja melhor irmos para casa e tentarmos descansar um pouco — ele
aconselhou. — Vamos ter que voltar mais tarde. Danny vai estar acordado, e talvez
o Henry...

— Quero ver o Henry antes de irmos embora — Elizabeth disse rapidamente.


Wynn acenou com a cabeça.
Com uma última palmadinha na mão de Amber, Elizabeth levantou-se da cadeira.
Entraram no quarto de Henry sem conversar. Ele estava exatamente como o
deixaram. Christine notou com gratidão que a respiração dele parecia tranquila.
Elizabeth parecia ter dificuldade em sair do quarto.
— Por favor, não se esqueça de telefonar no instante que ele despertar — informou
Elizabeth à enfermeira responsável pela enfermaria. A mulher simplesmente
assentiu.
Christine se perguntou se alguém seria capaz de conseguir dormir.

A notícia se espalhou rapidamente, e a família respondeu com choque e tristeza. A


reunião tornou-se mais como um velório sombrio do que a reunião alegre que
esperavam. Elizabeth agradeceu plenamente todas as manifestações de simpatia.

— Oh, tia Beth — disse Kathleen, atirando os braços em volta da sua tia favorita,
com lágrimas nas bochechas. — Lamento muitíssimo.
Elizabeth devolveu o abraço caloroso, segurando Kathleen apertado durante algum
tempo. Quando ela finalmente recuou, enxugou algumas lágrimas, mas o seu
semblante estava extraordinariamente controlado.

153
— Poderia ter sido muito pior — disse ela resoluta. — Sinto que nossa oração foi
respondida. Deus os protegeu.
— O que aconteceu exatamente? — perguntou William.
— Um homem avançou o sinal de pare, foi o que o Wynn descobriu a partir do
relatório policial. Ele tinha bebido um pouco demais e disse que não o viu.
— E suponho que saiu intacto?
— Nem sequer um corte.
William abanou a cabeça.
— Acertou-lhes precisamente no lado do passageiro — Wynn explicou. — A batida
foi pior no lado da Amber. O Henry bateu a cabeça, mas não têm certeza em que
bateu. Danny foi atirado por todo lado. Ele vai ficar sentindo dores por alguns dias,
mas não teve nenhuma fratura.
Wynn passou a mão pela nuca. Ele tinha confessado apenas para Christine que não
ia conseguir relaxar antes que Henry estivesse fora do coma, mas não ousou deixar
Elizabeth sentir a sua agitação.
Elizabeth se obrigou agora a sorrir em meio ao grupo.
— Nós iremos para o Hospital Geral, mas porque vocês não... não tentam fazer a
festa mesmo assim? Não vai ajudar em nada vocês todos perderem a diversão de
estarem juntos. Todos vão ficar bem. Vai levar certo tempo... mas eles vão
conseguir. Nós temos muito porque agradecer. Então... vão em frente. Aproveitem o
seu tempo juntos. É assim que Henry e Amber gostariam que fosse.
Foi um discurso corajoso. Christine admirava a mãe e esperava que os membros da
família fossem capazes de seguir com os seus planos.
Os três voltaram para o hospital logo depois de beberem um pouco de café. Não
tinham muito apetite.
Assim que se aproximaram da recepção, uma enfermeira os atendeu:
— Estava prestes a telefonar para a senhora — disse ela. — Creio que seu filho está
tentando acordar.
Apressaram-se a ir para o quarto do Henry. A única indicação de que ele já não
estava em coma era um gemido de vez em quando e um movimento da cabeça ou
da mão. Wynn foi o primeiro a estar ao lado dele.

154

— Filho. Filho, consegues me ouvir? Estamos aqui com você. Sua mãe, eu e a
Christine. Você consegue abrir os olhos, Henry? Consegue me ouvir, filho?
Elizabeth se aproximou e começou a fazer suas próprias súplicas.
— Henry? Querido? Consegue nos ouvir? Estamos aqui contigo. A Amber está
bem, e o Danny também. Eles estão preocupados contigo. Está acordado?
Mas Henry não respondeu.
— Vou ver a Amber e o Danny — Christine sussurrou, pois não suportava ver as
tentativas aparentemente fúteis dos pais.
Encontrou Amber ainda dormindo. A enfermeira que estava saindo do quarto dela a
advertiu:
— Ela precisa descansar. Essa é a melhor coisa para ela, no estado em que está.
Christine assentiu. Jamais ia acordar a cunhada.
Foi então até o quarto do Danny. O garotinho estava recém despertando. Quando
abriu os olhos, parecia totalmente confuso. Olhou para o quarto desconhecido, e
depois pareceu extremamente aliviado quando viu Christine.
— Onde está a minha mãe? — ele perguntou imediatamente.
— Ela está aqui, ainda está dormindo.
Ele parecia confuso.
— Que lugar é esse? É a casa da tia Mary?
— Não. Aqui... é um hospital.
Ele se levantou do travesseiro e fez uma careta.
— Por que estamos aqui?
— Os dois, mamãe e papai, estão aqui com você. Só que... que estão em outro
quarto —disse Christine, na esperança de evitar uma crise de pânico. Não tinha a
certeza sobre o que dizer à criança.
— Por que? — perguntou ele. — Por que não fomos à casa da tia Mary?
Havia medo nos olhos de Danny.
— Porque... — disse Christine, buscando palavras — porque o carro de vocês
sofreu um acidente. Vocês tiveram alguns machucados, que precisavam de ser
tratados.
— Será que a mamãe também ficou machucada?

155

Ele pôs uma mão no rosto e sentiu os esparadrapos.


— Sim, sim, sua mãe também teve alguns ferimentos.
Ele parecia preocupado.
— E o papai?
— Sim... o papai também.
— Eles estão bem?
— Estão machucados neste momento, mas vão ficar bem.
— Eu também estou machucado.
— Eu sei — disse Christine, estendendo os braços para ele. Danny aceitou

o abraço, agarrando-se à tia enquanto o abraçava.


— Onde estão todas as outras pessoas? — perguntou ele, afastando-se
para olhar para o rosto de Christine.
— As outras pessoas?
— O... O vô e a vó e... os primos e todos os outros.
— Bem...O vovô e a vovó estão visitando seu papai, e os primos e outras
pessoas estão na casa da tia Mary.
— Também quero visitar o meu pai.
— E vai poder visitar, assim que o médico vir te examinar, e disser que
você pode sair da cama. Mas seu pai ainda está muito sonolento, e pode ser que
não esteja acordado.
— E a mamãe?
— A mamãe também estava dormindo, quando fui vê-la uns minutos
atrás. Mas espero que ela acorde em breve. Ah, olha só. Tem um livro do lado
da sua cama. Vamos lê-lo?
O garotinho distraiu-se facilmente quando Christine começou a história.
Ela esperava que o médico não demorasse muito para chegar. Ela não desejava
responder mais perguntas do pequeno Danny.

Quando Danny recebeu alta naquela tarde, Elizabeth mandou Wynn e Christine
saíram para comprar uma roupa nova para ele. Ela não queria preocupá-lo com a
visão das manchas de sangue nas peças de vestuário. O

156
menino parecia animado com as novas roupas, mas não compreendia por que ele
tinha saído do hospital sem os pais.

— Vamos passar para vê-los quando estivermos saindo — prometeu Christine.


Fiel à sua palavra, ela levou Danny primeiro ao quarto do pai.
Danny questionou:
— Por que ele ainda está dormindo? — Como não havia uma resposta imediata, ele
continuou. — Por que ele tem aquela coisa enfiada no braço dele?
— Essa é uma agulha especial de hospital. O médico pode dar os medicamentos
através dela.
— Por que ele precisa de medicamentos?
Christine olhou para os pais, pedindo ajuda.
— Sabe como se sentiu quando se machucou? — perguntou Wynn.
Danny fez que sim.
— Bem, seu pai também está machucado e o medicamento ajuda ele a ficar bom.
— Por que não me deram medicamentos?
— Ah, mas eles deram sim. Só que pra você foi diferente. Nós temos um pacotinho
de comprimidos para levar, para ajudar você com seus machucados.
Danny parecia satisfeito.
— Posso ver a mamãe agora? — perguntou ele.
Eles trocaram olhares, e depois Christine se apressou, para se certificar de que
Amber estava pronta para ver o filho. Wynn e Elizabeth seguiram mais lentamente
com Danny.
Christine não podia acreditar como Amber era corajosa. Apesar da dor que sentia,
apesar dos seus medos, ela pôs uma cara sorridente e estendeu a mão para o filho.
— Danny. Minha nossa, olhe só para você. Estás todo estiloso.
— Eles compraram para mim — disse ele, sorrindo enquanto olhava para os três.
— Bem, você está tão bonito!
Danny não devia ia se deixar distrair por muito tempo.

157
— Por que a senhora está na cama?
Amber indicou para que erguessem Danny, para se sentar ao lado dela, e

Wynn levantou o menino.


— Porque eu tive um machucado muito grave, causado no acidente. — Estou vendo
onde seu rosto foi cortado.
Amber assentiu.
— Eu também me cortei. — Danny tocou os esparadrapos com os dedos.

— Mas a senhora tem mais cortes.


— Alguns mais. Mas cortes cicatrizam.
Danny fez que sim com a cabeça.
— Onde foi seu machucado?
— A minha perna. Não é bem a minha perna. Aqui em cima. Ela apontou a mancha.
— Dói muito?
Amber assentiu.
— Está quebrada.
Danny arregalou os olhos.
— Será que o conseguem colar de volta?
— Sim. Mas vai demorar um pouquinho. Tenho que ficar no hospital por

algum tempo.
O menino franziu o cenho.
— Mas você vai para casa agora. Bem, não para casa, mas para a casa da tia

Mary, com a tia Christine. Você vai conhecer todas os primos.


Danny parecia incerto.
— Quando você vai vir para casa?
— Assim que eu puder.
Isso pareceu deixar Danny satisfeito. Ele deu um abraço de despedida na

mãe e foi embora com o avô e a tia Christine. Elizabeth tinha retornado para o
quarto do filho, pois queria estar presente quando ele despertasse. — Você ainda
está preocupado, não tá? — Christine perguntou ao pai em voz baixa, na curta
distância até a casa do tio Jon.

158

Ele apenas fez que sim.


— Por causa dele, ou dela?
Ela pretendia falar de forma vaga, para que Danny, que estava distraído

com o novo carro de brinquedo, não ficasse alarmado.


— Os dois... Eu acho. A perna vai melhorar, mas ela poderia, bem... você
sabe.
Christine assentiu para confirmar que estava seguindo seu pensamento. — E ele? O
médico disse que ele vai ficar bem, assim que... — Eles nunca sabem... com
certeza.
A voz de Wynn baixou para quase um sussurro, mas não por causa de
Danny.
— Então...
— Não diga nada à sua mãe — disse Wynn rapidamente. — Isso só iria
preocupá-la desnecessariamente. Confio que o médico esteja certo. Mas a
verdade é que não saberemos até que ele acorde e responda.
Christine sentiu o seu estômago apertado. E se o médico estivesse errado?
E se Henry não acordasse? Ou pior ainda, em sua opinião, e se ele acordasse,
mas as coisas estivessem todas erradas?
O que isso faria a toda a família? O próprio pensamento a fez sentir-se
doente por dentro.

Christine não voltou para o hospital com o pai. Todos concordaram que era preciso
que Danny tivesse alguém próximo a quem ele conhecesse. Não precisam de se ter
preocupado. Os primos pareciam todos entusiasmados em conhecê-lo, e os meninos
que estavam mais próximos à sua idade rapidamente o envolveram numa
brincadeira. Christine esperava que nenhuma das crianças fizesse,
inadvertidamente, um comentário que perturbasse Danny, mas os pais garantiram-
lhe que tinham transmitido o mínimo de informação possível. Qualquer fato que as
crianças soubessem o próprio Danny também saberia. Christine tentou relaxar.

Os pais tinham prometido telefonar quando houvesse qualquer mudança no estado


do Henry. Ao longo de todo o dia, Christine observou o relógio.

159
JANETTE OKE

Sabia que as pessoas ao seu redor tentavam bravamente distraí-la — envolvêla em


conversas ou atividades, mas ela não conseguia se concentrar. Os seus pensamentos
estavam inteiramente com Henry e Amber. Será que o bebê ainda estava a salvo?
Será que o Henry ainda seria... Henry, quando finalmente acordasse?

Ao final da tarde, Kathleen se aproximou dela.

— Creio que o Danny está se saindo muito bem com as crianças. Quer que alguém
te leve ao hospital?
Christine não confiou em si mesma para falar. Sentiu as lágrimas ardendo os seus
olhos.
— Por favor — foi tudo o que conseguiu sussurrar.
Frank deu uma de chofer. Ela agradeceu sinceramente e apressou-se a encontrar os
pais. Eles estavam no quarto de Amber, oferecendo consolo, mesmo em meio ao
seu próprio pesar. Ela tinha perdido o bebê afinal de contas.
Com a alma em prantos, Christine fugiu do quarto. Ela não podia suportar ouvir os
soluços entrecortados da jovem mulher.
Ela entrou cambaleando no quarto de Henry. Ele se mexia de forma agitada, mas
ainda não tinha recuperado a consciência. Christine nem sequer conseguia forçar-se
a tocá-lo. Afastou-se, observando a luta do irmão para chegar à consciência. Oh,
Henry, exclamou ela silenciosamente, quando você acordar — se acordar —, quem
vai ter coragem de te contar que você e a Amber acabaram de perder o bebê?
As lágrimas rolaram pelo rosto de Christine, e já estava em meio a uma oração
quando percebeu que estava derramando sua tristeza e preocupação nos ouvidos do
Pai celestial. O que é que ela tinha dito a Deus? Ela não tinha a certeza. Mas Ele
sabia. Ele sabia. Ele conhecia o grito do seu coração.
Querido Deus, eu amo o meu irmão, continuou a dizer entre lágrimas. Eu o amo
tanto. Ele tem sido... tem sido tudo para mim. Por favor... por favor, permita que ele
fique bem. Permita que ele seja... o Henry novamente.
Ela só podia esperar e orar.
160
Capítulo 15
C

hristine encontrou finalmente coragem para visitar Amber mais tarde, naquela noite.
Os olhos de Amber ainda estavam vermelhos por causa do choro, mas ela estava
calma agora.
— Eu não consigo suportar a ideia de ter que contar ao Henry que... perdi

o filho dele — disse ela.

Ficou puxando a borda do cobertor branco sem perceber, inclinada sobre os


travesseiros.
— Era seu filho também — Christine a fez recordar.
Amber acenou com a cabeça.
— Mas o Henry... ele estava tão entusiasmado. Ele mal podia esperar para contar a
vocês a novidade. Ele queria telefonar na mesma hora em que começamos a
desconfiar.
Christine quase disse que haveria outros bebês, mas se segurou. Ela sabia que não
era isso que Amber precisava ouvir no momento.
— Ele vai lamentar — disse Christine em vez disso. — Mas grande parte do luto
dele será por você.
Amber assoou o nariz e respirou com dificuldade. Christine temia que tivesse dito a
coisa errada. Mas quando Amber ergueu o olhar para Christine, conseguiu até
mesmo abrir um sorriso fraco.
— Eu sei que vai. Ele é tão querido, tão gentil e carinhoso. Eu jamais pensei que
seria abençoada com um homem como ele. Eu tenho sido tão... a palavra não é
sortuda, não gosto dessa palavra.... abençoada. Maravilhosamente abençoada.
— E o Henry também — declarou Christine, trazendo um sorriso para o rosto
pálida de Amber.
— Sabe... — Amber começou a dizer —, eu estava um pouco preocupada... no
começo. Parece uma tolice agora, mas... Henry era tão... tão dedicado a você, aos
seus pais, que me perguntei se ele um dia poderia me amar tanto quanto ama vocês.
Mas eu não precisava ter me preocupado. Henry tem um coração... — O resto foi
deixado por dizer. Ela começou de novo. — Não tenho dúvida de que ele me ama.
Ele demonstra uma dúzia de vezes por dia, de muitas maneiras. Ele é um homem
maravilhoso, seu irmão mais velho.
Christine só conseguia assentir com a cabeça, com os olhos desfocados por causa
das lágrimas.
Uma agitação atrás da cortina que dividia a cama ao lado do leito de Amber chamou
a atenção delas. Exceto pela entrada e saída de estranhos que visitavam os
familiares, era fácil esquecer que havia outros pacientes na sala. Christine tentou
não se distrair com a intrusão. Voltou sua atenção para Amber.
— Só queria poder estar com ele — lamentou Amber. — É muito difícil estar
separada.
Christine se perguntou silenciosamente quanto conforto Amber encontraria ao ver
Henry no estado em que estava agora.
— Mesmo que pudesse apenas vê-lo... saber que ele está bem.
— Ele não está realmente bem... ainda — disse Christine com cautela. — Mas o
médico nos assegurou que ele logo ficará bem.
— Sim... eu sei. Eles prometeram me avisar no instante em que ele acordar. Parece
que está levando uma eternidade. Se eu pudesse apenas falar com ele, ele poderia...
— Ele poderia — concordou Christine.
Ficaram em silêncio durante alguns instantes, as duas profundamente absortas em
seus pensamentos.
— Estou preocupada com o Danny. Será que ele compreende o que está
acontecendo? — Amber finalmente perguntou.
— Não contamos a ele mais do que era necessário. Nós não queríamos

162
que ele ficasse aflito. Ele parecia totalmente envolvido na brincadeira quando saí de
casa.

— Deus não foi amável, ao arranjar todos esses primos para estarem aqui
exatamente quando Danny precisava deles?
Christine não tinha pensado por esse ponto de vista. Ela tinha pensado que os
planos deles tinham sido todos totalmente estragados.
Uma enfermeira entrou no quarto.
— Senhora Delaney. Como estamos indo? Conseguimos descansar um pouquinho?
Está na hora de tomar outra medicação.
Por que elas fazem isso? Christine queixou-se de si para si. Por que dizem sempre
“nós”, como se fizessem realmente parte de tudo isto? Bem, essa talvez seja a
resposta. Talvez elas queiram que o paciente sinta que estão juntos nisso, que eles
têm um companheiro na sua dor.
— Acho que vou voltar e ver como está o Henry — disse Christine, dando um
aperto na mão de Amber. — Te vejo mais tarde.
Não tinha ocorrido nenhuma alteração no estado do irmão que Christine pudesse
ver. Wynn e Elizabeth ainda falavam com ele, ainda lhe tocavam, ainda o
persuadiam para dar alguma resposta, mas não havia nada, apenas o ocasional
movimento ou gemido.
— Por que vocês não vão até a casa da tia Mary, para comer alguma coisa e vejam
como está o Danny? — Christine sugeriu. — Depois eu faço uma pausa quando
voltarem.
— Tem razão — concordou o pai, se levantando. — Se isto vai demorar algum
tempo, devemos elaborar algum tipo de sistema. Ninguém pode estar de serviço
vinte e quatro horas por dia.
Elizabeth parecia relutante, mas quando Wynn lhe trouxe o casaco, ela não
argumentou.
Christine instalou-se na cadeira junto ao leito e tocou a mão de Henry com a sua.
— Ei... acorda — disse ela, tentando manter a voz estável. — Chega de dormir.
Abra os olhos. Pisca. Aperta a minha mão. Faz alguma coisa.
Ela apertou-lhe a mão, mas não houve resposta.
— Boa noite.

163

A voz e os passos fizeram Christine se virar. Um homem vestido um jaleco de


laboratório branco, levando uma prancheta de hospital na mão, estava na entrada da
porta.
— Eu sou o Dr. Carlton — disse ele, dirigindo-se para o leito. — E você é...? —
Christine. Christine Delaney.
— A irmã dele?
— Sim.
— Lamento conhecê-la em circunstâncias tão desagradáveis, Senhorita

Delaney — disse ele, apertando-lhe a mão. Pareceu sincero. — Foi bom ouvir que o
garotinho recebeu alta. Danny, não é?
— Sim, isso — respondeu Christine novamente.
Christine se levantou e moveu a cadeira para que o médico tivesse livre acesso ao
leito. Ele trabalhava rapidamente, verificando os instrumentos e gráficos, e falando
com Henry o tempo todo, como se ele estivesse totalmente desperto.
— A sua esposa, Amber, está bem, Henry, mas está ansiosa para vê-lo. E Danny foi
para a casa da avó.
Christine não tentou corrigi-lo. Não havia necessidade de ele tentar desvendar o
bando de parentes que tinham se reunido para o final de semana.
— Agora só precisamos te colocar de pé outra vez, Henry. Será que pode abrir os
olhos para mim? Pense, Henry. Concentre-se com força. Pode abrir os olhos? Pode
apertar a minha mão? E quanto à outra mão? Aperta.
— Ele tem feito algum movimento? — perguntou o médico a Christine quando não
houve uma resposta visível. — Viu os olhos dele piscando? Movese de alguma
maneira?
— Ele se movimenta um pouco... às vezes. Apenas... a mão esquerda e... a cabeça
um pouco. E ele geme. Não forma palavras, realmente.
O médico assentiu.
Christine encontrou pouco encorajamento na fraca descrição que ela tinha acabado
de fazer.
— Pelo menos algo está acontecendo ali. — O médico fez algumas notações no
bloco. —As enfermeiras logo vão vir para dar banho nele, e trocar a roupa de cama.

164

Christine assumiu que este era um convite educado para que ela saísse do quarto.
— Vou visitar a minha cunhada — disse ela, dirigindo-se para a porta.
— Acabei de vir de lá. Ela está dormindo.
— Oh. Bem... Então vou para o saguão.
— Há uma pequena sala para familiares, no final do corredor. Alguém te mostrou?
Christine abanou a cabeça.
— É um pouco mais tranquilo e privado do que o saguão. Fica na terceira porta à
direita. É só entrar.
Ele ainda estava fazendo anotações na prancheta. Christine murmurou um
agradecimento e saiu.
Terceira porta à direita. Não foi difícil de encontrar. Christine ficou aliviada ao
descobrir que o quarto estava vazio. Tomou assento num lugar, perto da única janela
e deitou a cabeça para trás. Ela estava tão cansada. Tão, tão cansada, e tinha uma
longa noite estendida à sua frente. Será que Henry ia acordar algum dia?
Ela fechou os olhos. Só então apercebeu que uma música suave vinha de algum
lugar. Era um hino simples. Ela o conhecia. Ficou tentando buscar as palavras na
mente. Quando a canção chegou ao refrão, Christine a acompanhou
silenciosamente.
Conte as bênçãos, conta quantas são.
Recebidas da divina mão.
Uma a uma, dize-as de uma vez.
Hás de ver surpreso o quanto Deus já fez.
Christine deixou que as palavras lavassem sua alma. Se fosse começar a contar,
quantas estariam em sua lista? Ela não tinha contado as bênçãos. Tinha contado os
infortúnios — mas certamente...
Eles estavam todos vivos — Henry, Amber, e Danny.
Estavam num hospital onde podiam receber cuidados.
Podia haver outros bebês — por maior que fosse a dor da perda agora.
Tinham membros da família que os amavam e partilhavam de sua preocupação.

165

Ainda estavam nas mãos de Deus.


Alguém à porta trouxe a cabeça de Christine para cima.
— Você se achou — disse o médico com um sorriso. — Ótimo. Aqui... eu

lhe trouxe um café. Não sei como gosta de tomá-lo, mas sendo café de hospital,
achei que ia precisar de toda a ajuda que pudesse dar a ele. Coloquei creme e
açúcar. Encontrei uns biscoitos amanhecidos também.

Mesmo sem perceber, Christine sorriu.

— Obrigada — disse ela, aceitando a xícara. — Terei que acrescentar isso à minha
lista.
— Lista?
— Eu estava aqui sentada contando as minhas bênçãos — disse ela, com um ligeiro
aceno em direção ao rádio no canto, que continuava tocando.
— É um grande exercício para todos nós.
— É sim — respondeu ela. — Um exercício que eu tinha temporariamente
negligenciado.
— Você tem muito em que pensar — disse ele.
Christine tomou um gole do café. Normalmente ela não usava açúcar, mas estava
quentinho e estranhamente reconfortante.
— Apenas me diga como ele está? — perguntou ela com franqueza.
O jovem médico balançou a cabeça.
— Estas coisas são tão difíceis de prever. Ao que parece, deve estar bem. — Ele
hesitou, absorto em profundo pensamento. — Mas eu não pararia de orar ainda —
disse com a mesma franqueza.
— Então... há uma chance de... que ele possa estar mais seriamente...
— Há sempre uma chance. Nunca podemos ter cem por cento de certeza. O raio-X
parece bom. Vamos nos apegar a isso.
Ele sorriu.
A música mudou para “Oh, que Amigo em Cristo Temos”.
— Aqui, coma um biscoito.
Tirou um guardanapo branco do bolso e desembrulhou duas bolachas.
— Não tenho a certeza se os biscoitos servem para tirar o sabor do café ou se o café
serve para ajudar a engolir os biscoitos — mas foi o melhor que pude fazer.

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Com um sorriso, Christine aceitou um biscoito.

— Você também não é da cidade? Soube que o seu irmão estava chegando à cidade.
— É isso mesmo. Mas eu sou... bem... não tenho bem certeza de onde sou nesse
momento.
O médico a encarou com surpresa.
— Os meus pais moram em Athabasca.
— Seu pai também é policial, pelo que entendi.
— É um Policial Montado, isso mesmo.
— Ele não gosta de ser chamado de policial?
Christine deu de ombros.
— Nunca o ouvi falar nada, as a minha a mãe não gosta muito do termo.
— Vou manter isso em mente. — Ele sorriu. — Mas você não está morando com
eles, acredito.
— Não, estou trabalhando aqui na cidade mesmo.
— Aqui? — ele ergueu o cenho novamente admirado. — Então, onde você
trabalha?
Christine contou.
— E você mora...?
Christine contou a ele como veio ajudar a tia Mary e acabou ficando com eles.
— E se não estou sendo muito ousado, que mais você faz... além de trabalhar?
— Eu ajudo na Cantina Esperança... como voluntária.
— Já ouvi falar desse lugar. Parece ser um grande ministério.
— E também vou à igreja.
— Ora, nunca te vi na minha.
Dava para perceber que ele estava brincando.
— E a sua é...?
— Comunidade Fellowship.
— Não... não, nunca estive lá. Frequento uma congregação na Terceira Rua, com a
minha tia e o meu tio.

167

— É um pequeno grupo?
— Era pequeno. Já não é mais um grupo, estão planejando construir. — Isso é bom.
— Ele terminou o café e ficou de pé. — A propósito, fui

até o quarto da sua cunhada quando vinha para cá. Ela está acordada agora.
Christine se levantou também.
— Obrigada. Eu vou... vou até lá.
Ele assentiu e segurou a porta.
— Pode usar essa sala a qualquer momento — ele disse. — Ela está aqui

para as famílias dos nossos pacientes.


— Obrigada — disse ela novamente. Depois acrescentou: — E obrigada
também pelo café e o biscoito. Foi...
— Não diga que estava delicioso — brincou ele.
— Ia dizer “muito atencioso” da sua parte. Fiquei agradecida. Ele acenou com a
cabeça e tinha desaparecido.
Quando Christine chegou ao quarto de Amber, descobriu que os pais
tinham retornado.
— Eu estava prestes a pedir que seu pai fosse te procurar — disse Elizabeth. —
Tem uma saleta no final do corredor. Eles estavam a dando um banho
no Henry, e Amber estava dormindo, por isso eu...
— Ótimo — disse Wynn. — Estou contente que você tenha descansado
um pouco. Conseguiu tirar um cochilo?
Christine não disse que tinha tido uma conversa relaxante com um dos
médicos do hospital.
— Não. Tomei uma xícara de café.
Amber parecia muito mais animada, seus olhos mais claros por causa do
descanso. Christine trocou um olhar aliviado com a mãe.
— Tem uma enfermeira com o Henry agora — disse o pai. — Estão dando a ele
outra dose de medicamento. Ela disse que vai levar apenas um minuto. — Acho que
o papai devia te levar para casa agora — disse Elizabeth. — É
sua vez de fazeres uma pausa.
Christine ficou surpresa com o cansaço que estava sentindo. O copo de
café e bolacha tinham servido sobretudo para lembrar como estava faminta.

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— Acho que seria uma boa — ela concordou.

Deu um beijo de boa noite na mãe e olhou para Henry uma última vez. A
enfermeira ainda estava lidando com a injeção. Depois, Christine se virou e seguiu
o pai até o carro.

— Acho que o Danny ia gostar que você o colocasse na cama, se já não estiver
dormindo quando chegar. Ele acabou de tomar o remédio, antes de sairmos de casa.
Não sei se o remédio também é um sedativo, além de ser analgésico. Mas se o for,
já deve estar dormindo.

— Vou ver.

— Nem pense em voltar esta noite — disse Wynn para a filha. — Você precisa
descansar um pouco.
— Você não está planejando ficar a noite toda, está?
— Não tenho a certeza se consigo afastar sua mãe. Talvez façamos bom uso
daquela saleta que você mencionou. Tem algum um sofá, onde ela poderia deitar?
— Eu nem sequer reparei. Sentei-me numa cadeira. Mas era confortável.
Pararam em frente à casa de Jon. Christine segurou o trinco da porta do carro.
— Pai — disse ela, virando-se. — O que acontece se... se o Henry não sair dessa?
— Não temos razões para pensar que ele não vai sair — disse Wynn, rápido demais.
— Mas, o que acontece se... se ele não melhorar? Se não puder mais trabalhar?
As palavras quase não passaram pelo nó que tinha na garganta.
— Não sei — disse ele com franqueza. — Vamos ter que aceitar o que vier.
— Ele ia odiar isso — não ser um policial. — Christine usou o termo apesar da mãe
não gostar. — Essa é a única coisa que ele sempre quis ser.
— Eu sei.
Ela abriu a porta e saiu. A noite ainda estava quente. Christine se virou para ver o
pai se afastar. Tinha quase esquecido — amanhã era Domingo de Páscoa. Um dia de
novos começos. Um dia de esperança — de ressurreição. Um dia de celebração. Ela
se perguntou o que aquele dia reservaria para eles.

169

No início era apenas um tremor numa das pálpebras. Eles quase não conseguiram
ver. Quando não voltou a ocorrer, pensaram que talvez tivessem imaginado. Depois
um dedo se mexeu. Uma vez... depois outra. Passaram-se quase quinze minutos até
que os olhos de Henry tivessem aberto parcialmente. Mas voltaram a fechar, e
apesar da urgente persuasão, eles não abriram novamente.

Elizabeth pegou a mão imóvel com as duas mãos.


— Filho. Filho, me ouça. Filho, consegue me ouvir? Aperta a minha mão.

Aperta, Henry.
De repente, os olhos dele se arregalaram, olhando assustados. — Ele apertou —
exclamou Elizabeth arfando. — Ele apertou! — Faça de novo — sugeriu Wynn.
Christine sabia que o pai achava que

poderia ser apenas uma reação involuntária. Wynn inclinou-se sobre a mão e
observou cuidadosamente conforme Elizabeth repetiu o comando.

— Aperta a minha mão, Henry. Aperta, filho — implorou ela, como só uma mãe
poderia fazer.
Os dedos apertaram-se visivelmente ao redor da mão de Elizabeth.
— Ele apertou. Ele apertou — gritou Christine, enquanto Wynn abriu um largo
sorriso.
— Chame a enfermeira — Wynn a instruiu. Elizabeth estava empenhado demais
falando com o filho.
— Henry... estávamos tão preocupados — disse Elizabeth. — Abra os olhos, filho.
Fale conosco. Estamos aqui, Henry. Estamos aqui mesmo. Fale conosco, filho.
Consegue abrir os olhos?
Henry abriu.
No início o olhar parecia vago, dando a impressão de que não se concentravam em
nada na sala. Em resposta à chamada, uma enfermeira entrou apressada pela da
porta, seguida em rapidamente por dois médicos. Mas Elizabeth recusou-se a ceder
seu lugar, mesmo para o pessoal médico.
— Sou eu, Henry. Sua mãe. Consegue falar conosco?
A cabeça de Henry moveu-se ligeiramente, como que para limpar a visão. Ele ainda
parecia confuso. Seus olhos voltaram-se para Elizabeth. Ele franziu o cenho.

170

— Sou eu, Henry — disse Elizabeth novamente.


— Mãe. Onde estou? — foram suas primeiras palavras, soando roucas, mas claras
— palavras que fizeram os dois médicos se aproximarem de sua cama.
— Henry — disse o mais velho. — Henry, como se sente?
— O que aconteceu? — perguntou Henry.
— Você teve um pequeno acidente, e bateu a cabeça.
Henry esforçou-se para levantar a cabeça.
— Amber? Ela está...
— Ela está bem. E aquele seu garotinho também.
— Danny.
— Sim, Danny. Ele já teve alta.
Henry deitou a cabeça outra vez no travesseiro e fechou os olhos novamente.
Elizabeth inclinou-se ansiosamente, mas a mão gentil de um médico a imobilizou.
— Ele precisa descansar — aconselhou ele, e Elizabeth relaxou.
Ele fez sinal com a cabeça em direção à porta, e o grupo o seguiu. O outro médico
ficou para trás, verificando o ritmo cardíaco e escrevendo notas em sua prancheta.
— Isso é muito bom para o começo. — O médico parecia francamente satisfeito. —
Ele reconheceu vocês e se lembrou da família. Isso é um sinal positivo.
— E agora? — questionou Wynn.
— Só podemos esperar para ver. Da próxima vez que ele acordar, espero que ele
esteja muito mais alerta. Lembre-se, além da concussão, ele também está tomando
medicamentos para ajudá-lo a descansar para que a cura possa ocorrer. Acho que
podemos começar a diminuir essa medicação.
— Quanto tempo vai levar?
— Eu de fato sugiro que vocês vão todos para casa, e tenham uma boa noite de
sono. Vamos ver o que o amanhã nos reserva. Queremos que o Henry possa dormir
tranquilamente esta noite.
— Mas e se ele acordar e perguntar por nós? — Christine podia ver que a mãe não
podia imaginar não estar presente nesse momento.
171
JANETTE OKE
— Creio que vamos mantê-lo dormindo esta noite.

— Temos que ir ver a Amber — sugeriu Wynn. — Ela vai querer saber tudo sobre...
— Sim. — Elizabeth virou-se para o quarto da Amber. — Nós temos notícias tão
maravilhosas para dar.
Mas será que era realmente uma boa notícia? Christine não tinha a certeza. Não
tinha havido oportunidade de levar Amber até o leito de Henry antes que ele
retornasse para seu estado de inconsciência. Mas ele tinha, para aqueles breves
minutos, sido capaz de se lembrar — capaz de raciocinar. Talvez isso fosse
suficiente para dar esperança a Amber.
Christine seguiu os pais saindo da sala. Ela pensou no culto da manhã na pequena
igreja, onde todos tinham ido para adorar juntos antes de virem para o hospital.
Tinha acontecido uma sincera oração, quando a congregação se ajoelhava unida.
— Senhor, neste Domingo de Páscoa, de entrega e restauração, pedimos outro
milagre da Tua mão — orou o pastor. — Se é da Sua vontade, ponha Seu toque
curativo sobre o jovem Henry. Toque em seu corpo e em sua mente. Traze-o de
volta à sua família, Senhor, nós oramos.
Parecia que as suas preces estavam a começar a ser respondidas.
172
Capítulo 16
—T
á faltando um monte de... peças.
O progresso de Henry pareceu terrivelmente lento para Christine, mas ele estava
gradualmente parecendo e soando como ele mesmo. Deixaram que fosse ver Amber
de cadeira de rodas e agora podia para fazer a maioria das coisas sozinho. Os
médicos estavam até mesmo falando em lhe dar alta.

Mas Christine percebia que o irmão preocupado.

— Isso leva tempo — ela tentou tranquilizá-lo. — Todos os médicos dizem...


— Eu sei o que dizem os médicos. Mas pelo menos um pouco da confusão já devia
ter passado.
— Grande parte da confusão já passou. Pense bem. Mesmo nos últimos dias, você
melhorou tremendamente.
Ela falava tanto para reafirmar a si mesma como ao irmão. Ele sorriu ironicamente.
— Agradeço a tentativa de me animar — mas eu teria cuidado com o uso da palavra
“tremendamente”.
— Mas você admite que houve melhoras?
Henry fez que sim com a cabeça.
— Bem... pra mim... qualquer melhoria é tremenda.
— Tá certo. Muito bem — disse Henry com um risinho. Depois, ficou sóbrio. —
Mas estou pronto para uma melhoria muito mais tremenda. É que simplesmente não
acontecendo rápido o bastante, Chrissy.
O olhar de Christine caiu para as mãos que seguravam a revista que ela estivera
lendo.
— Quem me dera poder... fazer alguma coisa.
— Ei — respondeu ele, estendendo a mão para erguer o queixo da irmã, como
fizera tantas vezes enquanto cresciam, e ela estava amuada ou sentindo-se
desanimada. — Você está fazendo alguma coisa. Só de estar aqui, me encorajando e
me animando, isso é fazer alguma coisa. Muito mais do que você pode imaginar. —
Antes de Christine responder, ele prosseguiu: — E cuidando de Danny por nós...
isso é fazer alguma coisa.
— A verdade é que é a tia Mary que está fazendo a maior parte do cuidado com o
Danny — e amando cada minuto.
— Faz a Amber se sentir muito melhor, saber que ele está feliz, ocupado — e
amado.
Christine assentiu e sorriu, pensando na rapidez com que o garotinho tinha
conquistado seu lugar na família.
— Tudo isso tem sido muito duro para Amber — observou Henry sobriamente. —
Ela se sente tão mal por ter perdido o bebê. Preocupa-me que ela se sinta... sinta-se
quase como se fosse culpada por isso.
— A culpa não foi dela, isso é fato.
— Não... não, mas há alguns... estranhos... Eu não sei. Não compreendo
completamente. Mas... bem... a mulher vê o seu corpo como... a morada protegida
para seu filho que está por nascer. Ela... ela nutre, ama e o ajuda a crescer e a se
tornar... alguém... uma pessoa. Quando algo de mal acontece, ela sente que, de
alguma forma, falhou. Falhou em ser a protetora que estava destinada a ser. É difícil
para a Amber. É difícil para mim também.
Henry prosseguiu, olhando para a janela do quarto do hospital.
— Eu já amava aquela criança. Eu queria ele... ou a ela... tanto quanto a Amber.
Mas há uma diferença, de algum modo. Eu não me sinto culpado — apenas
zangado. Zangado com o condutor que bebeu muito e se atreveu a ir para trás do
volante. Para levar outra vida, mesmo antes de ter tido a oportunidade de viver
plenamente. Para ferir, mutilar e causar a total perturbação

174
de vidas. Para trazer dor e preocupação a muito mais pessoas do que as que estavam
no carro que atingiu.

Christine podia ver que Henry estava ficando irritado. Ela esticou a mão para
tranquilizá-lo.
— Não pense nisso. Tente não...
— Como posso não pensar nisso? — Henry olhou fixamente no rosto de

Christine. — O meu filho está sendo cuidado por outros, numa casa que não é dele.
Minha mulher está deitada com a pélvis fraturada e um coração partido ainda mais
dolorido. Não sei se um dia vou ser capaz de trabalhar novamente, Christine. Talvez
eu seja apenas um... um corpo inútil para o resto dos meus dias. Eu não estava em
serviço, por isso não haverá compensação para a minha mulher e minha família.
Eu...

— Henry... não — ela implorou, as lágrimas começavam a correr pelas bochechas.


— Por favor, não. Isso... isso não ajuda...
Henry se deitou novamente no travesseiro e fechou os olhos. Christine podia ver
que Henry fazia força com a mandíbula, na intenção de lutar contra sua raiva. Ela
não falou nada. O que poderia dizer?
Os dois passaram alguns minutos em silêncio. Christine fechou os olhos também e
recostou a cabeça na cadeira alta. Tinha sido um momento terrível para todos eles.
Henry estava certo. O descuido de um homem tinha certamente trazido dor a muitas
pessoas. A planejada celebração familiar nunca acontecera. Os pais finalmente
tinham tomado o trem de volta para casa, assim que o perigo havia passado. Era
preciso que o pai voltasse ao seu posto, e Christine percebeu que a mãe só insistiu
para ir junto porque não podia suportar ficar separada dele, num momento em que
se apoiava na força do marido. Então agora era Christine que fazia a jornada diária
até o hospital, depois de seu expediente de trabalho. Ela sequer estivera na Cantina
Esperança, desde o dia do acidente. Sentia saudades, e pensou que eles poderiam
estar com saudades dela também.
Por fim, abriu os olhos novamente, mas não levantou a cabeça.
— Na semana passada, quando estávamos terrivelmente preocupados que você...
que não saísse do coma, eu estava num quartinho... que fica no fundo do corredor.
Enquanto estava lá sentada, havia um rádio tocando na sala. Não conheço o
programa. Só passava hinos. Apenas um após o outro, tocados num piano. Eu
estava me sentindo... deprimida de verdade, quando reconheci o hino que estava
tocando.

175

Christine ergueu a cabeça para poder olhar o rosto pálida de Henry, agora contrito
com a emoção.
— A canção era “Conta as Bênçãos”. No início, nem pensava que tivesse alguma
bênção para contar, e depois comecei a pensar em... como as coisas poderiam ter
sido muito piores. Comecei a contar. Eu realmente contei... e como dizia a canção,
eu fiquei impressionada. Nós realmente temos razões para sermos agradecidos,
Henry.
Henry concordava com a cabeça, de forma sutil.
— Depois este doutor — o Dr. Carlton, acho que era o nome dele — apareceu de
repente com uma xícara de café — um café realmente horrível... — Christine
conseguiu dar um sorriso —, e uma bolacha amanhecida. E eu acrescentei isso à
minha lista. Oh, não o café e o biscoito — mas a compreensão. A compaixão de
alguém.
O maxilar de Henry tinha relaxado.
— Ele me deu uma animada — realmente deu.
— O Dr. Carlton? — perguntou Henry.
— Acho que é esse o nome dele.
— Sim, eu o conheço. É um bom homem. Ele me deu uma animada também, em
mais de uma ocasião.
Christine esfregou as mãos juntas, perguntando-se se ela se atreveria a falar mais.
Finalmente engoliu seco, e seguiu adiante.
— A tia Mary e eu estávamos conversando uns dias atrás. Sobre a queda dela — e
tudo. E sobre o versículo que diz, “Todas as coisas cooperam para o bem”. Bem, ela
disse que não via a queda dela como obra de Deus, como parte do Seu plano ou
algo assim. Mas ela via o bem que acabou vindo depois, bem que talvez não tivesse
acontecido se ela não tivesse caído e se machucado.
— Então você está dizendo que eu deveria ver isto como uma espécie de bem?
— Não. Não, não estou dizendo isso de forma alguma. Estou apenas... estou apenas
tentando dizer que... mesmo no caso desse acidente, Deus pode trazer algo bom
como resultado... se permitirmos que Ele aja.
Ela ouviu o suspiro profundo do irmão. Quando olhou para Henry, percebeu que as
lágrimas estavam espremidas de debaixo dos olhos fechados e deslizando pelo rosto
pálido.

176
— Eu precisava ouvir isso — disse ele num meio sussurro. E isso foi tudo.

Henry teve alta primeiro. Por causa das circunstâncias, a sede da Real Polícia
Montada Canadense permitiu que ele ficasse em Calgary, para estar perto da esposa
e para buscar tratamento médico adicional, se necessário. Christine achou que a
cada dia ele lembrava de mais coisas que faltavam, pedaços da sua vida, mas ela
não tinha a certeza. Talvez ele fosse apenas muito bom em esconder.

Grande parte do seu tempo era passado na cabeceira do leito de Amber. Os médicos
pareciam satisfeitos com o progresso da fratura, e ela gradualmente estava lidando
com seu luto.

Christine foi para o hospital depois do trabalho para ficar com Amber, e Henry e
Danny passaram esse tempo juntos à noite. Danny não obteve o privilégio de visitar
o hospital, portanto, algumas palavras eram levadas de um para o outro. Christine
tinha certeza de que uma visita real teria sido benéfica para todos, mas regras eram
regras.

Ela estava apenas de saída uma noite quando quase colidiu com um médico
apressado de jaleco branco. Enquanto ambos se desculpavam, Christine percebeu
que era o Dr. Carlton. Quando a reconheceu, o jovem médico sorriu.

— Oh, eu sinto muito — disse ele novamente. — A maior parte do pessoal já


aprendeu a sair do caminho quando me veem chegando. Eu tenho o péssimo hábito
de estar sempre totalmente absorto.
Christine devolveu o sorriso.
— Você não teria tempo para uma xícara de um excelente café, teria? — A
campainha da hora de visita já tocou — respondeu ela. — Oh, isso. Sim, bem, ela
toca para que todos saiam dos quartos, para

que as enfermeiras possam preparar os pacientes para a noite. Não tem nada a ver
com o quarto dos visitantes.

Christine inclinou ligeiramente a cabeça, certa de que a campainha significava que


os visitantes deveriam deixar as instalações do hospital.
— O refeitório? Ninguém é expulso do refeitório.
Christine teve que sorrir novamente.
— Gostaria muito de ouvir mais sobre a Cantina Esperança.
— Eu... Não tenho conseguido ir lá ultimamente.

177

— Não... imagino que não mesmo. — De alguma forma, eles tinham começado a
caminhar juntos para o refeitório. — Em vez de ajudar outros a se prepararem para
a batalha, você teve que lutar uma batalha pessoal.

Christine concordou.
— Como está o Henry, desde que teve alta?
— Eu não sei bem — Christine admitiu depois de uma cuidadosa reflexão

sobre sua resposta. — Às vezes, acho que ele está muito bem. Mas aí então, ele...
muda de humor. Henry nunca foi mal-humorado. Nunca.

— Mas isso é algo esperado. — Ele agora falava como médico. — Muitas pessoas
que tiveram o mesmo trauma que o Henry teve passam por essa crise emocional.

Christine ficou alarmada. Ninguém tinha mencionada nada a respeito disso. — Será
que isso vai passar? — perguntou ela.
— Normalmente sim. Quase sempre, na verdade. Mas leva tempo. O

Henry levou um golpe fortíssimo na cabeça. Chamamos de hematoma cerebral. Há


um termo muito mais técnico, mas as pessoas entendem quando chamamos de
“hematoma cerebral”.

Christine fez que sim. Ela realmente conseguiu ter uma imagem mental do
ferimento.
— Quanto tempo...?
— Não dá para saber. Depende de muito fatores.
Eles tinham chegado à porta do refeitório, e o Dr. Carlton segurou-a para que
Christine entrasse.
— O café aqui é um pouquinho melhor do que o lá em cima. Mas talvez você
queira experimentar o chá.
— Na verdade, estava pensando em tomar algo frio. Talvez uma Coca
-Cola.
— Coca-Cola parece ótimo.
Ele segurou a cadeira enquanto Christine se sentava na pequena mesa, depois pediu
duas Cocas à jovem garçonete com o avental listrado e gorro rígido.
— Seus pais foram embora da cidade? — perguntou ele quando a moça —
“'Molly”, pelo que dizia no crachá — colocou os copos gelados na frente deles.

178

— Sim. Eles foram para casa na quinta-feira passada. Meu pai teve que voltar ao
trabalho. Ele sugeriu que minha mãe ficasse — mas ela me surpreendeu. Insistiu em
ir para casa. Acho que isso significa que ela estava um pouco mais tranquila a
respeito do Henry.

— A senhora Delaney parece estar indo bem.

— A Amber? Sim. Ela estava muito alegre essa noite. Contando os dias para poder
receber alta.
— Eu não consigo entender — disse ele, fazendo um gesto de simulada aflição. —
Aqui tomamos conta deles tão bem. Levamos café na cama todas as manhãs,
esfregamos as costas deles todas as noite, atendemos tudo, a qualquer momento —
e ainda assim mal podem esperar para sair do nosso hospital.
Christine percebeu que a leve brincadeira a ajudava a relaxar.
— Exceto uma velhinha querida — ele disse rindo. — Tínhamos que praticamente
empurrá-la porta a fora, e toda vez que nos virávamos, lá estava ela de novo. Era o
ombro que tinha dado um jeito, ou o dedão do pé que doía. Qualquer coisa servia.
Me contaram que ela deixava prontinha a mala do hospital, caso sentisse uma
pontada. Querida Senhora Maria das Dores.
— Era esse o nome dela de verdade?
— Não oficialmente.
Christine riu.
O Dr. Carlton colocou os cotovelos sobre a mesa e inclinou-se para a frente.
— Conte-me sobre a Cantina Esperança.
— Faz tanto tempo que não vou lá que é como se eu tivesse perdido o contato —
admitiu Christine.
— Quase duas semanas — respondeu o médico. — Completa duas semanas
amanhã.
Ela ficou surpresa.
— Visitei o local algumas vezes. Queria ver por mim mesmo. É um lugar e tanto.
Me disseram que sentem a sua falta.
Christine sentiu as suas bochechas coradas.
— Você acha que consegue voltar logo?
— Eu... eu espero que sim. Henry passa os dias com Amber, mas ele... gosta de
passar tempo com o Danny à noite. Por isso, eu visito o hospital. Não

179

que eu não viesse de qualquer forma — apressou-se em dizer.


Ela brincava com o copo na mão.
— É que... bem, tudo tem sido tão... tão tumultuado. Eu meio que... saí

da rotina. É difícil retomar o passo.


O médico concordou.
— Eles têm um lote de recrutas fresquinhos, que são agora regulares — ele

a informou.
— Eles tem?
— Recém saíram da fazenda, e das ruas da cidade, também, eu acho. Todos
crianças.

— Sim, eu sei.

— Alguns deles parecem assustados. Os convencidos podem estar assustados


também, mas o fingimento deles é melhor.
Christine balançou a cabeça.
— São os muito jovens que me preocupam. Mandá-los assim para a guerra.
— Creio que chegará o dia em que vamos olhar para trás e perceber o quanto
devemos a eles.
As palavras dele eram solenes.
— Gostaria que a guerra tivesse terminado. Queria... eu tenho tanto medo... de que
eles não voltem.
Ela ficou contente porque ele não tentou tranquilizá-la com palavras vazias e tolas.
Ambos sabiam que muitos dos jovens soldados não voltariam. A realidade sombria
da guerra significava que o marido, o irmão de alguém, em breve deixaria as costas
do Canadá pela última vez.
— Aceita outra Coca-Cola? — perguntou ele.
Christine se moveu.
— Não, obrigada. Tenho que ir para casa.
Ela se levantou e ele ficou de pé junto com ela.
— Planejo ir lá novamente, sempre que encontrar tempo — ele disse suavemente.
Quase lhe soou como um convite para se juntar a ele.
— Também espero voltar, quando as coisas...
— Não espere muito tempo. Eles precisam de você.

180
Ele sorriu. Christine deu um pequeno aceno e pegou a bolsa.

Finalmente, Amber recebeu alta e foi trazida para a casa de Jon e Mary,
acompanhada por um aliviado Henry e um exultante Danny.
— Olha! — ele exclamou antes mesmo de chegar à porta. — Minha mãe está aqui.
Amber foi levada para dentro, e conduzida para o sofá na sala.
— Eu sou absolutamente péssima com as muletas — admitiu ela com uma
gargalhada. — Parece que não consigo encontrar o ritmo certo.
— Não há ritmo certo para as muletas — respondeu a tia Mary.
— Estou totalmente convencida disso.
Celebraram fazendo sorvetes, que comeram com morangos enlatados e calda de
chocolate. Ainda estava muito cedo para morangos frescos colhidos no jardim dos
fundos.
— Este é o melhor que já provei — anunciou Danny. Christine tinha a certeza de
que até os espinafres teria um sabor maravilhoso para o garoto, tamanha era sua
animação. — Vamos para casa agora, pai?
— Talvez amanhã — Henry sorriu. — Vamos ver.
Henry tinha uma reunião no escritório local do RPMC na manhã seguinte. Após
consultas com os médicos, eles iam decidir o que seria feito no caso de Henry.
Christine sabia Henry que estava, sem dúvida, ansioso. Ela orava em seu íntimo que
as coisas corressem bem.
Amber se retirou cedo, após o dia estafante. Christine estava certa de que todos
estavam se sentindo esgotados. Ela gostaria de ter ido para o seu quarto também,
mas não queria deixar Henry sozinho.
Mary e Jon tinham saído para uma reunião na igreja.
— Amber está com um aspecto muito melhor — observou ela enquanto se
sentavam na sala de estar depois de terem colocado Danny na cama.
Henry concordou.
— Creio que ela finalmente aceitou a perda do nosso filho. O pastor Blessing —
não é um nome interessante para um pastor — a visitou várias vezes. Isso ajudou
muito.
— Ela me contou.
— Para começar, ele disse que o bebé podia ter sofrido severos danos no acidente.
Foi muito mais bondoso da parte de Deus levar o pequeno para casa do que o bebê
sofrer com alguma terrível deficiência.
— Você acredita nisso?
— O quê? Que o bebê pode ter sofrido danos? Mas é claro.
— Que foi mais amável que ele partisse?
Henry balançou a cabeça.
— Não tenho certeza. Amber e eu teríamos amado e aceitado ele — ou ela —
independentemente de qualquer coisa. Quanto à deficiência trazer sofrimento,
depende. Muitos portadores de deficiência vivem uma vida plena e rica. Eu não
tiraria a deficiência deles. Nós só não compreendemos o mundo deles, só isso.
— Há um jovem que ajuda na Cantina Esperança. Ele tem síndrome de Down, eu
acho... mas ele... está sempre feliz. Ele serve o café e entrega sanduíches, e por onde
ele passa, está sempre sorrindo e chamando as pessoas. Às vezes acho que ele traz
mais alegria aos outros do que qualquer um de nós.
— Acho que dependeria se a deficiência traria também dor insuportável.
— Sim. Mas ainda assim, como sabemos se a alegria de apenas estar vivo — de
interagir com os outros —, supera o peso da dor?
— Estou contente por essa decisão não ser minha — mas de Deus.
Christine deixou os minutos passarem.
— Eu encontrei aquele jovem médico novamente. Eu te contei? — ela disse por
fim.
— Eric Carlton?
— Eric? Esse é o nome dele? Bem, eu literalmente esbarrei nele no hospital.
Tomamos um refrigerante. Ele tem ido de vez em quando na Cantina Esperança. Ele
fica tão perturbado quanto eu, com todos aqueles jovens indo para a guerra.
— Nem todos são jovens. Muitos maridos e os pais também estão...
— Eu sei. Mas é basicamente os jovens que nós acompanhamos na cantina. São
eles que estão à procura de alguma maneira de preencher suas noites. Algo para
distrai-los.

182

Q UANDO chega o AMANHÃ

— Estou contente que o doutor Carlton esteja indo lá. Ele deve ser bom com os
jovens.
— Sim, creio que sim. Ele disse... ora, talvez isso tenha servido apenas como um
encorajamento, mas ele disse “estão com saudades de mim”.
— Tenho a certeza de que estão mesmo. — Henry esticou as longas pernas e se
recostou para trás. — Bem, a sua vida logo deve voltar ao normal.
— E a sua?
— Depende do que disserem amanhã. Eu me sinto um pouco melhor a respeito de
tudo isto. Pareço ser capaz de me concentrar melhor, e eu não... bem, eu tenho
conseguido, com a ajuda de Deus, lidar com a raiva. Devo admitir que ainda me
preocupo um pouco. Se eu não for visto como apto para o trabalho, não sei o que
vamos fazer. Não quero que Amber tenha que sustentar a família cortando cabelo
pelo resto da vida.
— Oh, Henry... não vai chegar a esse ponto.
Ele sorriu, mas parecia um pouco escuso.
— Bem, o que quer que seja, eu finalmente consegui entregar nas mãos de Deus. Eu
amo o meu trabalho — você sabe disso. Mas se eu não for considerado apto o
suficiente para continuar, tenho a certeza de que Deus, como você disse, pode
realizar algum bem. Pelo menos ainda tenho a minha mulher e o meu filho. Depois
de um acidente de automóvel como o que tivemos, sou verdadeiramente abençoado.
O refrão da canção começou a soar na mente de Christine mais uma vez.
— Sabe, Chrissy — Henry prosseguiu calmamente —, se eu puder continuar com a
RPMC, não sei como vou agir, se um dia tiver que ir até a porta de alguém e
informar pais — ou uma esposa, ou marido —, que seu ente querido acaba de ser
morto ou gravemente ferido. Tive que dar essa terrível mensagem à Amber há
muitos anos. Pensei que tinha empatia naquela época, mas sendo eu mesmo a vítima
do acidente, sei que tipo de devastação esse acidente traz a tantas vidas.
— Se esse momento chegar, você vai encontrar a força. Deus mesmo vai te dar.
— Ele terá que me encher dela. Não vou conseguir lidar com isso sozinho.

183
Capítulo 17
A
noite quente de junho não exigia o suéter que Christine carregava no braço. Mas ela
o trazia para o centro de serviço para agradar à tia Mary, que sugeriu que ela
poderia precisar dele mais tarde. A vida tinha de

fato voltado ao normal. Henry, Amber e Danny tinham voltado para sua própria
casa. Henry foi avaliado e considerado física e mentalmente apto, e tinha sido
autorizado a retomar suas funções de policiamento. Um novo oficial havia
substituído Milton. O jovem percebeu que o RPMC não tinha chegado a ser o que
ele tinha imaginado afinal de contas. Juntou-se à RAF e estava supostamente a
caminho da Grã-Bretanha, para ajudar a derrotar os nazistas.

Laray tinha recebido uma promoção pela sua gestão do escritório na ausência de
Henry. Christine ficou satisfeita por Laray. Mas afastou os pensamentos a respeito
do rapaz quando tocou na maçaneta da porta.

— Não vou demorar — ela gritou para a tia. — Tenha uma boa noite, querida —
respondeu tia Mary no momento em que tocou o telefone do corredor.

— Quer que eu o atenda? Ainda estou aqui — Christine gritou novamente. — Por
favor, querida.
Christine levantou o receptor, esperando ouvir a voz da mãe.
— Alô.
— Alô. É a senhorita Delaney?
Q UANDO chega o AMANHÃ
— Sim?
Christine estava hesitante.
— Aqui quem fala é Eric Carlton. Lembra-se de mim? O cara do refrigerante e do
café.

Havia um tom de brincadeira na voz dele.


— Claro que sim. Como vai?
Christine estava mais do que surpresa.
— Estou ótimo. Simplesmente fantástico. De fato... eu gostaria de celebrar. E
pensei em você.

Christine franziu o cenho. Será que o médico tinha ligado no número certo? Fazia
semanas que não falava com ele.
— Estou ouvindo — ela conseguiu dizer.
— Acabei de completar minha residência e me ofereceram uma vaga aqui mesmo
no General.
— Oh, isso é maravilhoso! Parabéns!
— Obrigado. Portanto... eu sei que isto é... um pouco fora do usual. Mas queria
saber se poderia pedir a você que me ajudasse a celebrar o fato de eu ser um médico
de medicina, de pleno direito e na ativa.
Ele terminou um pouco rapidamente.
— Eu estava na porta, já de saída. Estava indo para a Cantina Esperança.
— Para ajudar?
— Sim.
— Eles estão te esperando?
— Bem... não exatamente. Quer dizer, eu vou quando posso. Todos nós vamos
quando podemos.
— Portanto, se você não fosse hoje, não estaria quebrando nenhuma promessa.
Christine hesitou.
— Não... não exatamente.
— Então, você se importa de mudar de planos?
Christine foi apanhada totalmente desprevenida.
— O que... o que você tem em mente?

185
— Um jantar.
— Mas eu já jantei.
— Então, quer vir comigo e ficar me vendo comer? — Ela podia dizer pela

voz dele que estava brincando novamente. — Falando sério — ele apressou-se em
dizer —, vou comer qualquer coisa aqui no refeitório e vou te buscar umas sete
horas. Há um concerto hoje à noite no Salão de Ópera — uma orquestra completa.
Pensei que podíamos assistir, se você estiver interessada. Depois, saímos para tomar
um café. Prometo que vou tentar encontrar algo melhor do que o que conseguimos
aqui.

— Um concerto?
— E está sendo anunciado como uma homenagem a Mozart. — Mozart?
Ela soava terrivelmente estúpida, tinha certeza.
— Que tal?
— Acho que posso. Sim, isso será ótimo.
— Obrigado. Vou te pegar às sete.
Christine colocou o telefone no lugar, ainda em estado de choque. O telefonema foi
totalmente inesperado. Ela tinha quase esquecido a existência de Eric Carlton. Sem
as visitas diárias ao hospital, ela tinha tirado da mente todos os pensamentos sobre
toda aquela experiência.

Agora ela estava parada, olhando de forma estúpida para sua saia e blusa, tentando
enfiar em seu cérebro amortecido que, se ela ia à um concerto, em vez de ir ao
centro de serviço, ela ia ter que se trocar. Mas não estava se mexendo.

— Quem era, querida? Sua mãe?


Christine se mexeu.
— Não. Não... um amigo. Fui convidada para ir a um concerto. — Que bom. Você
precisa sair mais.
Christine virou-se e subiu lentamente os degraus até ao seu quarto, levando o
casaco ainda pendurado no braço. Achou que não ia precisar disso também.

Fazia tanto tempo que ela não saía para uma noite de entretenimento, que mal sabia
por onde começar a se preparar. Finalmente, Christine sacudiu as teias de aranha da
mente e foi até o armário. Ela tinha o adorável tailleur que

186

usara no casamento de Henry. Mal tinha tido oportunidade de usá-lo desde então.
Parecia elegante demais para ir à igreja. Ela o tirou do armário e ficou olhando para
o traje, depois entendeu a mão e passou por cima do tecido suave.

Sim, era o que ia usar. Deve ser ideal para o concerto.


Ela tinha tomado banho naquela manhã, mas resolveu que não parecia correto vestir
o belo tailleur sem primeiro tomar banho. Polvilhou sais de banho generosamente
na água enquanto enchia a banheira. O aroma agradável era deliciosamente jasmim.
Não era muito forte, mas rico o suficiente para ser notado.

Assim que estava vestida, sentou-se na penteadeira. Ela tinha que fazer algo no
cabelo. O seu estilo casual não combinava nenhum pouco com o traje elegante.
Enrolou de uma forma, prendeu-o de outra, e não gostou de nada do que
experimentou. Finalmente, escolheu as presilhas decoradas que Henry lhe dera de
presente de Natal. Ela o escovou para trás e para cima, prendeu-o com as presilhas,
e então deixou que caíssem numa cascata sobre os ombros. Não ficou perfeito, para
seu gosto, mas servia.

Ela estava apenas dando umas palmadinhas de pó no nariz quando ouviu a


campainha. Pegando a bolsa e sua autoconfiança, ela desceu lentamente as escadas.

Christine mal o reconheceu como o mesmo homem, sem a roupas brancas de


hospital. Ele usava um garboso terno de listras pretas, com dois botões, incluindo
um lenço que combinava com a gravata xadrez no bolso. A camisa branca
praticamente farfalhava de tão bem passada. Por um breve instante, os dois ficaram
parados, olhando um para o outro.

Então, Eric pareceu se recuperar e sorriu.


— Senhorita Delaney.
Ele estendeu um ramo de flores.
Christine reparou que a tia Mary, que tinha respondido à porta, não se

mexera. Primeiro olhando de um para o outro, ela então estendeu a mão e pegou as
flores de Christine.
— Tomarei conta delas para você, se quiser. Não deve se atrasar.
Christine conseguiu assentir.
—Vamos?
Eric ofereceu o braço, e Christine o aceitou hesitante.

187

— Foi um prazer conhecê-la, senhora Thatcher — disse ele acenando a cabeça para
Mary.
— Tenham uma boa noite — ela respondeu, e a porta se fechou atrás deles.
Eric não disse que ela estava linda, pelo menos não verbalmente. Mas Christine
entendeu a mensagem clara de sua franca aprovação. Ele a agradeceu por ter
aceitado o convite de última hora.
— Não foi justo da minha parte — admitiu ele ao ajudá-la a entrar no carro. — Mas
eu simplesmente tinha que tentar. Pensei em você, Christine, no momento em que
percebi que tinha algo para celebrar.
Christine ficou surpresa. Ela mal se lembrara dos seus encontros no hospital.
— Na verdade, se eu for totalmente sincero, teria que admitir que tenho pensado
muito em você ao longo dos últimos meses. Mas queria tirar essa história da
residência do caminho — disse ele ao colocar o carro em movimento.
Christine enrubesceu, sem saber bem o que era para entender com essas palavras.
— Não consegui nem ir à Cantina Esperança como tinha planejado.
Christine tinha percebido — à princípio. Depois tinha tirado de mente, e esquecido
a respeito de tudo isso. Ela sabia que os médicos eram muito ocupados.
O concerto acabou sendo encantador. Christine sentiu-se totalmente absorta pela
música. Fazia tanto tempo que não conseguia se sentar e desfrutar completamente
alguma coisa, além do trabalho e da família. E ser capaz de esquecer,
momentaneamente, todas as lutas e conflitos do mundo. Sentiu que estava
relaxando, a sua mente tornando-se mais clara, as suas emoções mais elevadas com
a música.
Eric a encarou e lhe deu um sorriso. Por um momento, Christine se perguntou se ele
ia pegar a mão dela e estragar tudo, mas ele não fez isso, e ela conseguiu relaxar
novamente. Logo ela esqueceu de tudo, menos a música. A música maravilhosa que
a inundava por todos os lados. Quando tocaram o movimento lento do concerto de
piano de Mozart número 21 em dó, Christine fechou os olhos e recostou no encosto
do banco. Isto é perfeição musical, ela pensou. Verdadeiramente Mozart tinha sido
um génio. Um presente do Criador de todas as coisas belas para o mundo.

188

Prematuramente, o concerto terminou, e Christine retornou à realidade. Quando se


levantou com o restante da audiência para oferecer os aplausos finais à orquestra,
Christine sentiu-se ao mesmo tempo eufórica e decepcionada. Tinha sido uma noite
tão maravilhosamente renovadora e estimulante que detestara seu fim.

— Obrigada — sussurrou ela ao acompanhante. — Não tenho como expressar o


quanto gostei.
Ele então pegou a mão de Christine na sua, apenas tempo bastante para lhe dar um
leve aperto. Depois a soltou novamente.
— Foi incrível — concordou ele —, e duplamente para mim, apenas vendo o seu
rosto.
Christine percebeu que estava ruborizando e ficou contente pela distração ao
abrirem caminho através da multidão que saía.
Eric não perguntou para onde ela gostaria de ir. Ela tinha certeza de que ele já tinha
um restaurante em mente. Era lugar com iluminação suave, assentos ricamente
estofados e tapete espesso no chão. Christine pensou que devia ser um lugar
terrivelmente caro e estava prestes a protestar quando se lembrou que esta era uma
noite de celebração. Ela não estragaria nada para ele.
Eles pediram café e sobremesa, a mousse de chocolate. O café tinha um sabor rico,
mas suave. Christine imediatamente considerou aquele o melhor café que já tinha
provado. Eric riu.
— Está comparando com o café do hospital?
Mas ela balançou a cabeça.
Eles conversaram à vontade no ambiente elegante. Eric falou sobre seu trabalho e
perguntou sobre Henry e Amber. Questionou também sobre o trabalho dela e como
estavam indo as coisas na Cantina Esperança.
— Sua tia parece ser uma pessoa encantadora — continuou ele, e Christine iniciou
uma descrição de sua extensa família.
Por fim, Eric contou que era o caçula de quatro filhos, nascido e criado em Calgary.
O irmão mais velho era professor universitário, o outro irmão advogado, e a irmã
era casada com um pastor. Ela, o marido e os três filhos do casal tinham se mudado
para Victoria. Como eles eram os únicos netos, os avós sentiam falta dos
pequeninos.

189

Por trechos da conversa, Christine compreendeu que a família dele era uma das
“antigas” famílias da cidade.
Isto foi confirmado quando ele contou onde os pais viviam e que o pai trabalhara no
ramo imobiliário e desenvolvimento, assumindo o negócio do pai antes dele.
— Alguns dos edifícios da Rua Principal foram obras do meu avô — disse ele com
simplicidade, sem evidente ostentação.
Ele de fato é muito agradável, pensou Christine enquanto ouvia seu relato da vida
familiar. E de boa aparência. Os seus olhos eram especialmente bonitos. Muito
azuis, emoldurados por cílios escuros. As mãos dele eram longas e finas, como as
mãos de um pianista — ou de um cirurgião. Christine estava surpresa por não ter
reparado nestas coisas antes.
— Eu ia adorar que você conhecesse meus pais — continuou ele, e Christine sentiu
o aperto no estômago.
Conhecer os pais dele. Christine tinha certeza de que não estava acostumada ao tipo
de vida deles. Ela tinha sido criada no Norte, num ambiente bastante primitivo, a
filha de um agente da polícia. Estava acostumada às coisas ásperas e rústicas.
Estava acostumada a fazer render e a ficar sem. O que poderia ter em comum com
as pessoas que tinham ajudado a construir uma cidade? O próprio pensamento a
assustou. Ela tentou forçar um sorriso e murmurou algo como, talvez um dia, ou
palavras pouco comprometedoras, mas esperava que o dia não chegasse tão cedo.
Para falar a verdade, ela tinha agora um emprego num escritório sofisticado da
cidade e se saía muito bem. É verdade, vivia atualmente com o tio Jonathan e a tia
Mary, que tinham uma das melhores casas de Monte Royal. Mas aquela não era a
sua casa. Ela voltaria para o Norte na primeira oportunidade. Não precisava nem de
encorajamento. E ela ainda esperava, de todo o coração, que tal oportunidade por
fim chegasse.
— Essa foi uma noite adorável, mas eu devia mesmo ir para casa.
Ele não argumentou.
— Ainda não consigo acreditar que agora vou trabalhar durante o dia — exceto
quando estiver de plantão — comentou Eric quando a conduziu até à porta do carro
que o manobrista mantinha aberta. — Vai parecer que me devolveram a vida —
gracejou ele.

190

Christine deslizou para o lado do passageiro, e o manobrista fechou a sua porta. O


rapaz foi até o lado de Eric e, com uma leve reverência, segurou a porta para ele.
Christine viu o dinheiro trocar de mãos e o manobrista se afastar com um alegre:

— Obrigado. Tenha uma boa noite, Dr. Carlton — enquanto enfiava as notas no
bolso.
Então ele é conhecido neste restaurante chique, pensou Christine.
Foi uma viagem bastante silenciosa para casa. Talvez ele esteja contrariado. Talvez
esteja cansado depois de um longo dia, Christine pensou. Na verdade, ela ficou
contente pela oportunidade de organizar suas ideias.
— É uma pena que este tenha sido o último concerto da temporada — ele disse,
virando-se um pouco para ela. Ela se perguntou onde estiveram os pensamentos
dele. — Eles não vão retomar os concertos até setembro.
Christine tinha visto o anúncio no programa.
— Bem, nós certamente não podemos esperar até lá. O que gostaria de fazer? —
perguntou ele.
— Eu... não estou certa se entendi o que você quer dizer — Christine conseguiu
responder.
— Estou sendo pretencioso? Esperava que você tivesse gostado da noite.
— Oh, eu gostei — disse ela rapidamente. Talvez rápido demais.
— Só da música?
Havia aquele tom de provocação na voz dele novamente. Ela não tinha certeza se
devia entrar na brincadeira ou se devia levar a sério.
— Não... não apenas da música — admitiu ela timidamente. — Gostei de todas as
partes da noite.
— Então você vai concordar em sairmos novamente?
Ela lançou um olhar em direção a Eric. Ele não estava brincando agora.
— Isso depende. Se... se eu... se nós dois acharmos sensato e... e desejável, então...
— Eu acho que seria sensato... e desejável.
Eles já estavam chegando em frente à casa. A luz do alpendre ainda estava acesa e
uma luz fraca brilhava na janela do corredor, embora Christine não tenha visto
nenhuma luz na sala de estar. Eles já deve ter ido dormir.

191

— Então... talvez você pudesse me telefonar — disse ela suavemente —, e então,


falaremos sobre isso.
— Vou fazer isso.
Ele sorriu e abriu a porta.
Quando deu a volta para o lado de Christine, ele abriu a porta e esperou que ela
saísse.
— Você não está deixando pra mim a sua bolsa, um lenço ou algo assim, para que
eu tenha uma desculpa para telefonar amanhã, está? — brincou ele.
Ela balançou a cabeça. A conversa graciosa de Eric a fez se questionar o que ela
deveria levar a sério. Talvez um médico precise de senso de humor — apenas para
enfrentar alguns dos seus dias, ela decidiu.
Ele colocou o braço dela no dele, e a conduziu pela trilha.
— Creio que tenha sido aqui que a sua tia caiu.
— Foi aqui mesmo.
— Bem, não queremos que o mesmo aconteça com você, não é? Por isso vou ter
que segurar firme.
— A minha tia caiu no gelo — ela retorquiu, mas no momento em que as palavras
saíram de seus lábios, ela o ouviu rindo.
Christine pegou a chave, mas não precisava dela. A porta tinha sido deixada
destrancada.
Ele deu um passo para trás. O alpendre acima lançou luz sobre a cabeça de Eric,
fazendo parecer que ele estava usando uma rara auréola. O rosto dele estava em
sombras, mas ela conseguia ouvir a seriedade na voz, mesmo que não conseguisse
ler os olhos dele.
— Eu não sei quando foi que tive uma noite tão agradável, Christine. Me senti o
cara mais sortudo no salão, e gostaria de repetir essa noite — muito em breve.
— Não há mais concertos, lembra?
— Não precisamos de concertos. Vamos fazer a nossa própria música. Pelo menos
podemos sair para jantar, fazer um piquenique, ou mesmo um passeio. Alguma
coisa. Qualquer coisa.
Ela assentiu com a cabeça. Ele deve ter percebido o aceno positivo na
semiescuridão, pois sussurrou:

192
— Bom. Eu vou telefonar.

Christine o observou se afastar com passo ligeiro antes de fechar a porta


suavemente.
A casa estava em silêncio. Ela acendeu a luz do alpendre e subiu as escadas até seu
quarto. Sua cabeça estava rodopiando. O que estava acontecendo? Em alguns
aspectos, ele parecia tão sério. Noutros, tão... tão casual. Não tinha certeza de como
interpretar seu jeito de ser, suas intenções. Ela tinha que pensar muito, orar muito,
antes de entender seus próprios pensamentos.
Acendeu a luz do quarto e começou os preparativos para dormir, mas a sua mente
ainda estava totalmente preocupada. Ela tinha que pensar cuidadosamente em
algumas coisas, antes que suas emoções entrassem no jogo. Já tinha cometido um
erro grave num relacionamento, não queria voltar a enveredar por esse tipo de
caminho.
Ele tem de fato fé em Deus. Esse era o ponto de partida para começar seu
inventário. Ela nunca mais se permitiria envolver-se com um descrente. Mas o que
mais ela realmente sabia sobre Eric?
Henry gostava dele. Essa era outra grande vantagem. Ela confiava no julgamento
que o irmão mais velho fazia das pessoas.
Ele parece ter amor e respeito pela família. Isso era bom. A família era muito
importante para Christine.
Ele tem senso de humor. Christine supunha que isso era bom, embora por vezes
tenha tido dificuldade em compreender se ele estava falando sério ou provocando.
Ele é de uma família bem estabelecida, provavelmente rica. Essa não era uma
vantagem, de acordo com Christine. Essa parte a assustou. Ela conseguia imaginar
uma mãe afetada e sisuda, com os lábios apertados, desafiando uma garota qualquer
a tentar tirar o filhinho dela. Podia imaginar um pai austero, movido a dinheiro, de
mãos dobradas sobre peito largo, espreitando com os olhos frios para outra caçadora
de herança interessada em botar as mãos numa parte da riqueza da família. Não era
um quadro bonito. Christine balançou a cabeça. Ela não queria fazer parte disso.
Apressadamente colocou a camisola sobre a cabeça e se ajoelhou para fazer sua
oração da noite. Mas teve dificuldade em se concentrar. Ela gostava de Eric Carlton,
gostava mesmo, mas tinha medo da riqueza e prestígio de sua família.

193
JANETTE OKE
Como ela poderia alcançar as expectativas que a família dele provavelmente teria
para ela?

Ela disse “'Amém”, mas se perguntou se tinha realmente falado com Deus, com
seus pensamentos divagantes e inquietantes, ou simplesmente tinha repetido por
rotina as coisas que vinha dizendo há muitas noites?

Christine apagou a luz e subiu na cama, com os pensamentos ainda tumultuados.


Não sei porque eu disse que ele podia telefonar, repreendeu a si mesma. Esta
pequena farsa não vai chegar a lugar nenhum. Tenho que encontrar coragem de
dizer isso a ele quando telefonar.

E com a firme decisão, Christine puxou a coberta até ao queixo e tentou acalmar o
seu coração perturbado, para que pudesse dormir.
194
Capítulo 18
O
tio Jonathan chamou Christine até o telefone. Quando ela ergueu o receptor ao
ouvido e disse alô, a primeira palavra ouviu foi:
— Jantar?

— Eric?
— Na verdade, aqui é o Bob.
Ela reconheceu a voz dele. Se tivesse pensado mais rápido... e fosse mais

atrevida, podia ter respondido, “Bob, estava à espera do seu telefonema. Eu ia


adorar”. Só para que ele provasse de seu próprio veneno. Mas Christine não gostava
desse tipo de brincadeiras. Limitou-se a ficar corada e confusa.

— É o Eric — disse ele num tom mais sério quando ela não respondeu. — Que tal
jantar?
— Hoje à noite?
— Hoje à noite — se for possível. Se não — na primeira oportunidade que você
tiver.
— Hoje à noite eu não posso, tenho outros planos.
— Que tal amanhã?
Ela sentiu-se tentada a dizer que amanhã também não ia dar certo De fato, esperava
estar ocupada pelo resto da sua vida.
Mas ela sabia que tinha que explicar a ele pessoalmente que não havia esperança
para um relacionamento. Ela temia o pensamento. Ela ia fugir e nunca mais
precisaria enfrentá-lo novamente. Mas essa era a saída dos covardes. — Eu... sim...
acho que sim... amanhã vai dar certo.
Eric deve ter percebido pela voz de Christine que ela estava hesitante, mas não fez
nenhum comentário.
— Posso ir buscá-la às seis?
— Seis está ótimo.
— Gostaria de um jantar elegante — ou algo mais descontraído e contemporâneo?
— Realmente não sei... sobre o contemporâneo, digo. O que você tem em mente?
— Tem um novo café, na zona sul, frequentado pelos jovenzinhos. É bem casual.
— Parece ótimo.
Ela realmente não queria usar o mesmo vestido duas vezes seguidas. — Excelente,
até às seis.
Christine sentia-se perturbada quando desligou o receptor. Era realmente assim que
devia se sentir ao aceitar um encontro? Ela pegou o suéter e gritou para os tios, “não
vou demorar”, e saiu da casa. A jornada apressada de bonde não foi suficientemente
longa para acalmar seus nervos abalados. Ela entrou na Cantina Esperança ainda se
sentindo agitada. Jane, uma das outras voluntárias, estava lá para recebe-la. A
jovem parecia entusiasmada e agarrou Christine pelo ombro.
— Eles conseguiram. Conseguiram! — disse ela.
Christine não conseguia imaginar o que tinha sido conseguido. Naquele instante,
Paula correu com um sorriso largo e feliz. — Finalmente — disse ela. —
Finalmente vamos ter direção de verdade por aqui.
Christine deu um passo atrás, soltando-se das mãos de Jane. — O quê? Do que
vocês duas estão falando?
— Contrataram um capelão... finalmente — Paula respondeu entusiasmada.

196

Essa era mesmo uma boa notícia. Todos os voluntários estiveram orando por um
capelão em tempo integral para administrar o projeto. Eles sentiram que para
realmente fazer um trabalho eficaz de ministério, precisavam de liderança.

— É um dos pastores que tem trabalhado como voluntários? — perguntou


Christine.
— Não. Não, é alguém totalmente novo.
— Quando ele começa?
— Ele está aqui... agora. Já organizou até um escritoriozinho. Está conversando
com os voluntários. Ele disse que quer discutir as coisas com cada um de nós — só
para ter uma noção de que as coisa estão. Sabe, o que já tem sido feito. O que
esperamos realizar. Qual nossa visão sobre o ministério. Tudo isso.
Finalmente Christine sorriu. Era realmente uma notícia maravilhosa. Era o que eles
esperavam — e oravam. Um ministério sólido — não apenas um serviço de
refeitório.
— Ele está falando com o Tommy neste momento.
Oh não. O pobre Tommy não. Será que Tommy sabia mesmo o que estava
acontecendo? Certamente que este novo capelão compreenderia que Tommy era de
fato um trunfo para o ministério. Era verdade que ele sofria provocações, de vez em
quando, de alguns dos jovens recrutas, mas assim que passavam a conhecê-lo,
pareciam aceitá-lo por quem ele era, apesar das suas deficiências.
— Ele quer te ver em seguida.
De repente, Christine sentiu o gelo angustiante tomar conta de seu estômago. Não
conseguia entender porque, mas sentia-se ainda mais incerta do que tinha ficado na
entrevista de trabalho. Ela deveria ser a próxima. E se este novo capelão decidisse
que ela não estava apta para este trabalho? E se ele os conduzisse por um caminho
que não estavam dispostos a seguir? E se ele estivesse esperando gerenciar um
refeitório, em vez de um ministério da esperança? Será que ela poderia continuar
oferecendo seus serviços num local onde só fosse distribuído refeições e conversa
fiada?
Pela primeira vez, Christine se deu conta de como se sentia à vontade neste
ministério. Ela ainda lamentava que o mundo estivesse em guerra, mas já há algum
tempo ela deixara de lutar consigo mesma, se devia ou não ir para o estrangeiro.
Sem que percebesse, Deus tinha trazido paz à sua mente. No

197

momento, ela estava exatamente onde devia estar, servindo como devia servir. Esta
era uma revelação maravilhosa, que lhe trouxe uma onda de alegria ao coração. Ela
devia, desde sempre, ter confiado nEle para conduzi-la. Tinha orado pedindo a
direção dEle, não tinha? Então por que estava surpresa que Ele tenha guiado? “Nem
toda a direção de Deus vem com detalhes, instruções ou grande fanfarra”, lembrou-
se de ouvir um pastor uma vez dizer. “Às vezes é aquela voz calma e serena. E
talvez nem sequer estejamos conscientes da voz, e apenas sintamos a sensação de
paz''.

E era exatamente isso que tinha acontecido com Christine. Aquela belíssima
sensação da paz de Deus. Da presença de Deus. Da aceitação de Deus a respeito de
onde ela estava na vida e o que estava fazendo.

“A ausência de conflito interior é uma das bênçãos mais ricas da vida”. O pastor
também dissera. “E vem apenas da mão de Deus”.
E era isso. Ela podia confiar nEle. Podia mesmo. Se ela honestamente procurasse
caminhar em Seus caminhos — ela podia confiar nEle.
Então por que me preocupar agora com este novo capelão? Perguntou a si mesma.
Não é Deus que manda aqui também?
Christine respirou fundo e avançou para assumir suas responsabilidades noturnas e
talvez até trazer algum encorajamento, nova fé, a alguém no salão lotado. Como de
costume, ela sussurrou uma oração, “Senhor, leva-me esta noite a alguém que tenha
um coração aberto para o Senhor. Quando eu fizer essa conexão, me conceda as
palavras certas para dizer. Permita que eu fale com sabedoria e amor. Em nome de
Jesus. Amém”.
Ela tinha acabado de levar uma bandeja de café para um grupo de jovens
barulhentos quando Jane correu até ela.
— É a sua vez. Ele quer te ver agora. Está na sala que usávamos como despensa.
Christine ignorou o tal gelo que tentava tomar conta de todo seu ser, e caminhou em
direção à antiga despensa. Aquele jamais seria um grande escritório.
A porta estava fechada. Ela deu uma batidinha e ouviu a voz de um homem pedindo
que ela entrasse. Ele tinha um diário de algum tipo aberto diante dele, e estava
ocupado escrevendo. Ao som dos passos de Christine, ele levantou a cabeça, depois
baixou-a novamente para verificar as anotações.

198
— Senhorita Delaney, creio eu.

Ela fez que sim com a cabeça. Ele era extremamente jovem. Jovem demais para
estabelecer a liderança adequada para um ministério tão importante. Eles tinham
esperado por alguém experiente, que fosse consistente, mais velho.

Ela engoliu seco e concordou com a cabeça novamente.


O pastor sorriu, se levantou, e estendeu a mão.
— Eu sou Tim. Timothy Marcus — disse ele.
Ela ficou impressionada com o aperto de mão firme e de disposição franca.
Christine pode sentir calos na palma da mão dele. Recém-saído da fazenda foi seu
pensamento inesperado. Ainda não estava pronta para dizer se isso era bom ou
ruim. Será que ele conseguiria estabelecer uma conexão com todos estes jovens?
Então se lembrou que muitos desses jovens também estavam vindo diretamente da
fazenda.

— Não quer se sentar? — ele convidou, e Christine sentou-se.

Ela mal reconheceu a antiga sala de armazenamento. Tinha uma leve camada de
tinta fresca, fazendo-a parecer maior, mais convidativa. Podia ver que a
escrivaninha era bem utilizada, mas também estava com tinta fresca. Uma pequena
cômoda com quatro gavetas servia de arquivo, e as três cadeiras da sala eram
diferentes, mas pareciam utilizáveis. Tinha até uma imagem na parede, de Jesus
caminhando sobre a água. A legenda era “Ele pode acalmar qualquer tempestade se
O convidar para estar em seu barco”.

Christine apertou firme as mãos no colo.


— Acabei de ter a conversa mais encantadora — disse ele, com um sorriso
brincando nos lábios. — Thomas. Tommy, como ele prefere ser chamado. A
senhorita já trabalhou com ele.
Christine fez que sim com a cabeça.
— Um jovem tão incrível. Tão franco, tão sincero com Deus. Tão disposto a
partilhar a sua fé. Ele foi um... um... na verdade, senti que Deus o enviou até mim,
para que tivesse certeza de era aqui que eu devia estar.
Christine só conseguia olhar fixamente.
— Ele tem uma... uma paixão tão singela. Oro a Deus para que Ele possa me fazer
mais parecido com o Tommy.
Mais parecido com o Tommy? Alguns grupos da sociedade rotulam

199

Tommy como um retardado. Como louco. Um imbecil ou um idiota. Ser mais como
ele parecia uma oração incomum. Christine agora observava o jovem capelão com
novo interesse.

Ele virou as páginas que tinha à sua frente.


— A senhorita está aqui há algum tempo.
Christine assentiu. O pastor se recostou na cadeira, brincando com o lápis

que segurava nas mãos largas.


— A consistência é boa para qualquer ministério — observou ele. Foi muito mais
uma conversa calorosa e informal do que uma entrevista.

Christine ficou admirada com a rapidez com que foi capaz de relaxar e abrir o
coração. Este jovem estava realmente ali para servir, e pretendia fazer isso com todo
o seu ser. Com todo os recursos disponíveis. Jovens de ambos os sexos estavam
indo para a guerra. Eles precisavam da garantia de que Deus estava com eles, que
tinham feito as pazes com seu Criador através do sacrifício do Seu Filho, o
Salvador. Era uma questão de vida e morte espirituais.

Christine não podia acreditar que haviam conversado por tanto tempo. Eles
partilhavam muitos dos mesmos pensamentos e sentimentos. Os mesmos sonhos e
objetivos. O mesmo senso de comprometimento. Quando saiu do pequeno
escritório, sentia que certamente Deus ia elevar o Ministério da Cantina Esperança a
um novo nível.

— Então, o que achou dele? — Jane foi rápida em perguntar quando Christine
tomou o seu lugar outra vez na lanchonete.
Christine sentia-se corada, por causa de alegria interior.
— Acho que ele vai se sair bem. O coração dele certamente...
— Um gato daqueles e você tá pensando em coração?
Paula deu uma gargalhada.
Christine se virou e a encarou. Sobre que raios Paula estava falando? Ela nem tinha
reparado se ele era bonito.
Que diferença isso fazia? O importante era se ele ia ou não se agarrar à obra da
Cantina Esperança como um ministério importante. A aparência não tinha nada a
ver, na verdade, com isso. Ela pegou nos copos de refrigerante que tinha acabado de
encher e levou-os para as mesas.

200

Christine não estava ansiosa pelo próximo encontro com Eric. Não tinha o que fazer
para que tivessem algo em comum. Não havia esperança de que qualquer relação
futura se desenvolvesse — então, por que ela estava se deixando levar pela maré?
Era ridículo.

Mas ela tinha se comprometido a conversar com ele pessoalmente. Ia até o fim com
isso.
Eric chegou exatamente às seis. Ele estava usando calças e uma camisa casual
aberta no pescoço e mangas arregaçadas até os cotovelos. Parecia ainda mais bonito
do que estivera vestindo o terno aparentemente caro.
— Bob, a seu serviço — ele disse brincando quando Christine abriu a porta. Depois
avaliou abertamente a saia longa e o suéter cor-de-rosa e acenou com a cabeça. —
Você está linda.
Ela murmurou um agradecimento de cortesia.
— Espero que você goste deste lugar — disse ele enquanto o carro se afastava do
meio-fio. — É um pouco barulhento às vezes. Muitos jovens militares frequentam o
bar. Por isso, como bem pode imaginar, há muitos moças da cidade também.
Christine o encarou surpresa. Ela esperava que este não fosse um desses pubs
desagradáveis que tinham no centro da cidade, que acatavam todo tipo de
comportamento barulhento e ofensivo.
— Eles têm uma comida excelente — e depois de comermos, se acharmos que é
muito barulhento para ter uma conversa decente, podemos ir para outro lugar.
Quanto tempo vai durar este encontro? perguntou Christine. Você me disse que ia
ser um jantar. Mas ela não disse nada. Ela ia tentar dar um jeito de passar a noite, e
se se sentisse desconfortável, pediria para ser levada para casa.
O lugar já estava repleto de uma multidão jovem. Estava barulhento; não tinha
como negar. Na verdade, todo a sensação era de alta energia. Mas tudo parecia
saudável e sem alto teor de álcool, e Christine não se sentiu nenhum pouco
desconfortável, mas sim revigorada. Eric encontrou uma mesa no canto, onde eles
podiam conversar confortavelmente, apesar das gargalhadas e a confusão de
atividades à sua volta.
A comida era mesmo deliciosa. Christine logo se encontrou desfrutando da noite,
apesar das suas dúvidas.

201

Depois de comerem, Eric sugeriu que fossem dar um passeio de carro ao longo do
rio. Eles apenas passaram e conversaram, apreciando a paisagem e a brisa quente
que entrava pelas janelas abertas do carro. Ele não fez qualquer esforço para
estacionar em algum ao longo do percurso, e Christine gostou desse fato. Não era
tarde quando ele a deixou em casa.

— Vou estar de plantão por uma porção de noites agora — ele explicou à medida
que se aproximavam da entrada da casa. — Mas quero te ver novamente... em
breve. Que tal domingo?

Christine não tinha proferido o discurso que tinha preparado. Agora repreendia a si
mesma ao mesmo tempo em que se via concordar com a cabeça.
— Vai ter que ser bem cedo — ele disse. — Culto da manhã e um almoço rápido.
Preciso estar na enfermaria às duas.
Christine fez que sim novamente com a cabeça.
— Vou te dizer. Dessa vez, vou levá-la na sua igreja. Mas você vai ter que
concordar em me acompanhar na minha da próxima vez. Eu quero exibir você.
Isso não parecia ser a melhor razão para frequentar a igreja, mas Christine assentiu
de novo.
— Se for um domingo em que eu estiver de folga, vou falar com minha mãe para
convidá-la para almoçar — continuou ele, e agora Christine sentiu um aperto no
estômago. O que ela poderia dizer? Já tinha concordado com esses planos de certa
forma.
Eric a acompanhou até à porta tratando de mais detalhes sobre como ia buscá-la
para ir à igreja no domingo de manhã. Depois de entrar pelo vestíbulo, contornou a
sala de estar onde conseguia ouvir vozes. Quando houve uma breve pausa, ela
gritou, “Estou em casa”, depois foi imediatamente para o quarto.
Por que se sentia tão agitada? Eles tiveram uma noite encantadora. Eric fora um
companheiro agradável e atencioso. Ela tinha visto olhares admirados e invejosos
de outras mulheres. Mas o fato de ele ter vindo de uma família abastada não o
tornara esnobe. Só porque o tio Jon e a tia Mary tinham dinheiro não significava
que se sentissem superiores aos outros. Ela estava julgando os pais dele
injustamente, sem ao menor tê-los conhecido. Isso não era correto.
Então por que se sentia tão desconfortável? Era por causa de Boyd? Será que tinha
ficado tão magoada com esse erro do passado, que agora estava com

202
medo de se comprometer novamente? Mas isso também não estava certo. Nem era
justo com o Eric. Ela devia ser capaz de aceitá-lo por quem ele era.

Christine se preparou para dormir, ainda lutando suas emoções conflituosas.


Finalmente, disse a si mesma: Tá, estou enganada ao formar um julgamento — isso
eu sei. Também estou errada ao recusar dar uma oportunidade a esse novo
relacionamento. Seria igualmente errado me atirar em uma situação sem pensar e
orar cuidadosamente. Preciso levar esta... esta amizade num passo cauteloso de cada
vez, permitindo que Deus me conduza. Assim como Ele me deu paz para trabalhar
na Cantina Esperança, acredito que Ele possa me dar paz sobre esta área da minha
vida.

Sentiu-se muito melhor ao pegar a Bíblia para a leitura noturna. Acabou abrindo em
Provérbios a abria com as mãos, e palavras que havia sublinhado e prometido ter
como norma de vida lhe chamaram a atenção. “Confia no Senhor de todo teu
coração e não te inclines para teu próprio entendimento; reconhece o Senhor em
todos os teus caminhos, e Ele endireitará as tuas veredas”.

Sim, Senhor, ela sussurrou. Vou confiar em Ti a respeito dessa situação. Eu não
tenho ideia do que e como o Senhor pode fazer acontecer, mas será muito
empolgante caminhar Contigo e descobrir.

Sentiu-se muito mais tranquila e confiante ao ajoelhar-se mais tarde em oração.


Domingo, ela pensou ao começar a se despir para dormir. Domingo o Eric vai
visitar a sua igreja. Ele provavelmente vai conversar com a tia e o tio. Talvez a tia
Mary até o convide para o almoço — se desse tempo. Ela confiava no julgamento
deles. A forma como eles respondessem ao Eric certamente lhe daria algum tipo de
direção sobre como devia proceder. Esse pensamento tranquilizou a mente de
Christine. Ela não estava totalmente sozinha. Tinha outras cabeças e corações para
orientá-la.
E ela ia conhecer os pais dele, se era isso que ele queria. Ela ia tentar manter a
mente aberta. Talvez eles fossem pessoas decentes, tementes a Deus, com o mesmo
desejo de seguir a vontade do Senhor que ela. Eles também poderiam servir de guia
para a relação que Eric aparentemente desejava estabelecer entre eles. Ia procurar
ser sensível a eles também.
Oh, quem me dera que a mãe e o pai estivessem aqui, encontrou-se pensando
enquanto subia na cama. A escolha de um parceiro de vida era um assunto sério, e
embora ela soubesse que, em última análise, era ela que precisava

203
JANETTE OKE

fazer a escolha final, ainda sentia-se grata por não precisar confiar nas suas próprias
conclusões. Deus tinha colocado muitas pessoas em sua vida, que podiam atuar
como sinaleiros quanto ao caminho que ela devia seguir.

Sentindo-se muito mais tranquila, Christine preparou-se para dormir, o que esperava
que acontecesse rapidamente. Amanhã seria mais um dia atarefado, e ela pretendia
passar mais uma vez na Cantina Esperança a noite. Uma moça com quem tinha
conversado na última noite parecia estar muito aberta para as boas notícias do
Evangelho. Os últimos pensamentos de Christine foram orações sussurradas para
que a moça pudesse regressar prontamente para assumir um compromisso. “Deus, o
Senhor sabe tudo sobre Krista. Traga-a de volta para nós. Traga-a de volta ao
Senhor”.
204
Capítulo 19
A
Cantina Esperança tinha fechado as portas para a noite, e os voluntários estavam
conversando enquanto faziam as suas tarefas de limpeza. Havia uma boa dose de
animação enquanto comparavam impressões.

Krista tinha voltado e orado com Christine para receber a Cristo como seu Salvador.
Um jovem também orou de forma semelhante, e outro jovem tinha prometido
pensar seriamente no assunto, enquanto outros dois tinham dito que voltariam para
conversar mais. Essa tinha sido a resposta mais promissora que tiveram,
comparando com todas as outras noites.

Sorrindo, Timothy Marcus aproximou-se do grupo de trabalho, com uma garrafa


aberta de refrigerante de laranja na mão.
— Bom trabalho, pessoal. Aquele jovem aviador era na realidade um homem de
negócios. Acreditam que este foi seu primeiro contato com o evangelho de Cristo?
E o rapaz da Marinha. Ele foi criado na igreja — era como um Jonas moderno —
mas sabia que nunca teria fugido de Deus.
Ele estendeu a mão e colocou uma mão no ombro de Tommy.
— Sabe o que ele me disse? Que você foi o primeiro a pôr na mente dele a vontade
de vir aqui. O seu sorriso e o seu ‘Entre, marujo’. Ele estivera quase pronto a dar
meia volta e correr.
Ele deu uma palmadinha nas costas de Tommy de forma apreciativa. Tommy sorria
para o grupo, depois, voltou-se para o pastor Tim com lágrimas nos olhos.
— Obrigado a todos por sua dedicação à Cristo. Não a um programa, nem a uma
causa... mas a Cristo. Lembrem-se, nenhum de nós trabalha para a Cantina
Esperança, trabalhamos para Ele — concluiu o jovem capelão, apontando para o
céu.
Christine estava certa de que se tratava de um lembrete importante.
O pastor deixou de lado o refrigerante e pegou num balde e um pano de prato.
— Em que mesa você parou? — perguntou para Paula, ao mover-se para ajudar.
Com a ajuda de todos, não demorou muito para o resto do trabalho fosse terminado.
Logo estavam todos pegando os casacos e agasalhos, e dirigindo-se aos vários
carros estacionados na rua, exclamando “boa noite” uns para os outros.
— Você vai na mesma direção que eu?
Christine ficou surpresa ao ouvir a voz ao seu lado. Era o Pastor Tim.
— Eu pego o bonde na esquina — respondeu ela.
— Vai para a zona Norte ou sul?
— Para Sul.
— Eu também.
Ela ainda não sabia que parte da cidade ele chamava de casa.
— Até onde você vai? — perguntou ele.
— Quase até o final da linha do bonde — respondeu Christine com uma gargalhada.
— Eu também. Pouco antes de Mount Royal. Estou ficando com meus avós até
encontrar um lugar para mim.
— Oh, eu moro com os meus tios.
— É ótimo ter familiares na cidade.
Christine concordou silenciosamente.
O pastor Tim riu.
— Claro que a cidade não era minha primeira escolha. Teria preferido ser enviado
para uma pequena igreja rural ou mesmo uma cidade menor. — Ele deu de ombros.
— Mas aqui estou.
— Também não teria sido minha primeira escolha — admitiu Christine.
— Isso me surpreende muito. Você parece uma moça da cidade.

206

— Eu? Creio que não.


— Você é da zona rural?
— Eu sou do Norte.
— Do Norte?
Ele pareceu realmente surpreso.
— O meu pai é da Real Polícia Montada. Eu cresci no norte. — E você adora o
Norte.
— E eu o adoro o Norte.
— Não preciso nem dizer. Sua voz fala por você. Então, do que mais gosta

no norte?
E enquanto esperavam que o bonde chegasse, Christine contou a ele.
Quanto mais falava, mais nostálgica se sentia. Ela sabia que era melhor parar
antes que começassem a escorrer as lágrimas.
— Onde você cresceu? — perguntou ela para se distrair.
— Em Camrose.
— Nunca estive em Camrose.
— Devia conhecer. É um ótimo lugar. É uma comunidade agrícola. — Seu pai era
agricultor?
— Não. Ele tinha um armazém. Mas eu trabalhava numa fazenda, desde o
tempo em que era grande o bastante para erguer um rastelo. Trabalhava para o
meu tio. Ele tem uma fazenda bem no extremo da cidade. Eu costumava ir até
lá de bicicleta, assim que saía da escola. Incomodei meu tio até ele ficar quase
doido, perguntando “O que posso fazer”? Ele finalmente decidiu que já que eu
estava “grudado” nele de qualquer maneira, era melhor que me colocasse para
trabalhar. Então ele me contratou. Eu adoro a fazenda.
— Mas em vez disso você se tornou um pastor.
— Sim. — O tom de voz dele também soava nostálgico. — Acho que
foi um pouco como Amós, o profeta pastor, ou como Eliseu. Eu acredito que
Deus, figurativamente falando, estava a dizer-me para partir meu arado, oferecer os
bois como sacrifícios, e ir pregar. O que mais eu poderia fazer? Christine viu o
sorriso brincalhão, mas também a seriedade nos olhos
escuros. De fato, o que poderia ele fazer?

207

O bonde encostou e eles subiram a bordo. Sentaram-se juntos e continuaram


conversando.
— Tenho pensado em começar a organizar um culto de domingo de manhã —
prosseguiu Tim. — Sei que há muitos destes jovens militares que não se sentiriam à
vontade para frequentar uma das igrejas da cidade, mas que talvez assistissem um
culto na cantina. O que você acha?
Christine pensou por um instante.
— Acho que é uma boa ideia.
— Precisaríamos de um pequeno núcleo de voluntários.
Ela fez que sim.
— Pode ser que comece como um pequeno grupo, mas espero que cresça.
— Ajudaria se tivéssemos um piano... ou algo assim.
— Eu toco violão, e tenho um amigo que toca acordeão. Ia servir por um tempo.
Não sei onde iríamos arranjar um piano. Você toca?
Christine balançou a cabeça. Ela sempre lamentou não ter conseguido aprender a
tocar. A mãe tocava tão bem, mas não havia nenhum instrumento no Norte para que
ela aprendesse.
— Sabe se alguma das outras moças toca?
— Ouvi algo sobre a Bernice tocar.
— Bernice? Não me lembro dela.
— Não, ela não vindo ultimamente. Pelo que soube, ela tinha se interessado por um
dos jovens aviadores. Havia até a conversa sobre um compromisso, mas creio que
ele foi mandado para a Europa. Faz algumas semanas que não a vejo e nem ouço
falar sobre ela.
Ela viu o olhar preocupado do pastor. Havia o risco de serem estabelecidas
relacionamentos inapropriados, quando rapazes e moças eram colocados em contato
tão íntimo em tempos de guerra.
— O nome dela está na nossa lista? Gostaria de entrar em contato com ela e ver
como ela está.
— Não tenho certeza. Mas a Violet talvez saiba como encontrá-la. Pareciam ser
muito próximas.
— Não gosto de pedir aos nossos voluntários que desistam das suas próprias
igrejas, mas se começássemos um culto dominical, você estaria disponível para
ajudar?

208

— Não ia gostar de perder o culto na minha igreja — disse Christine com


sinceridade —, mas vou orar a respeito disso.
— É tudo o que poderia pedir.
O bonde virou a esquina e deu a volta na rua que conduzia a Mount Royal.
Christine sabia que logo ele ia desembarcar. Disseram a ela que o pastor Tim não
passava longas horas apenas no escritório, mas que também andava pelas ruas
durante o dia, visitando cafés e bares, distribuindo informações sobre a cantina e
fazendo convites. Era evidente que ele estava cansado.
— Bem, está chegando minha parada — anunciou ele ao ficar de pé. — Obrigado
mais uma vez pela ajuda. Jamais conseguiríamos administrar a cantina sem os
serviços dos voluntários.
Christine sorriu um pouco antes dele se virar e saltar as escadas. Ela ouviu o pastor
assobiando enquanto se afastava, antes que bonde seguisse em frente. A canção era
“Conta as Bênçãos”. Ela sorriu novamente.

Como sempre, foi difícil encontrar um lugar vazio quando Eric e Christine
chegaram à igreja no domingo.
— Entendi porque você disse que “precisam construir” — sussurrou-lhe ao ouvido.
Ela viu algumas cabeças se virarem, à medida que se aproximavam da frente do
púlpito — a maioria eram jovens que, sem dúvida, se perguntavam se eles era “um
casal”. Bem, ela não estava lá para se preocupar com isso, estava lá para adorar.
Eles se espremeram ao lado de um casal de idosos que Christine não conhecia,
cumprimentou-os com um sorridente bom dia, e pegou hinário para participar.
Ela ficou impressionada com a maravilhosa voz tenor de Eric, e ele cantava com o
coração. Parecia inspirar aqueles que os rodeavam — incluindo ela. Ela prestou
mais atenção aos hinos e cantou com mais fervor do que o habitual.
Christine olhou para ele algumas vezes durante o culto e notou que Eric dava ao
pastor toda sua atenção. Em um momento ouviu até um “Amém” sussurrado.
Sentiu-se satisfeita. Ela gostava de pensar que o rapaz tinha vindo à igreja para
adorar a Deus — não para passar tempo com uma moça, ainda que a moça fosse ela
mesma.

209

Ele tinha sido convidado para almoçar, por isso levou-a diretamente para a casa. A
tia Mary tinha lhe assegurado que eles compreendiam o horário apertado, e o
almoço seria servido o mais rápido possível. Ela planejou a refeição em
conformidade, e já tinha uma caçarola no forno e a salada prontinha na geladeira.
Lucy tinha se colocado à disposição para ficar em casa e preparar a refeição, mas
Mary não permitiu nada disso.

— Não é preciso que você perca o culto na igreja — Christine ouviu a tia dizer. —
Vamos apenas preparar uma refeição simples, que possamos servir prontamente.

Então foi isso que fizeram.


Quando Christine e Eric chegaram, foram recebidos pelos calorosos e convidativos
aromas dos biscoitos quentes, assim que passaram pela porta para o corredor.
— Umm — disse Eric. — Acho que vou gostar deste restaurante — quando a tia
Mary apareceu com a fôrma de biscoitos na mão, para dar as boas-vindas e informar
que estava tudo pronto.
A refeição foi muito agradável. Eric, bastante familiarizado com os negócios de Jon
na cidade, conversou com facilidade tanto com o casal. Jon conhecia a família de
Eric, embora na realidade não tenham sido apresentados. Eric acrescentou a sua
marca registada de humor à conversa apenas em alguns momentos. Christine sentia-
se grata, pois ele parecia saber onde ficava a linha limite. Para ela, saber quando
não se envolver em brincadeiras era tão importante quanto saber quando usá-las.
Ela estava ciente de que, embora Eric parecesse relaxado e gostasse de conversar
com os outros à mesa, ele também vigiava cuidadosamente o relógio.
Aparentemente, ele levava suas responsabilidades muito a sério. Esse fato ganhou
mais uma marca na crescente lista de vantagens.
Desfrutaram da torta de limão e uma segunda xícara de café. Então, depois de um
olhar de relance para o relógio, Eric colocou o guardanapo sobre a mesa.
— Esse momento foi muito agradável — disse ele, dando um sorriso caloroso para
tia Mary —, mas vejo que meu tempo desapareceu rapidamente. Receio que eu
tenha que me despedir. Muito obrigado pelo delicioso almoço.
Voltou-se para Lucy, que sempre se juntava a eles na mesa aos domingos.

210

— A senhora é uma cozinheira maravilhosa, senhora Taylor. Estou surpreso que


essa notícia ainda não tenha chegado ao Hotel Palliser. Tenho certeza de que eles
adorariam roubá-la para a cozinha deles, caso soubessem.

Lucy dispensou o elogio, mas suas bochechas ruborizaram, demonstrando sua


satisfação.
— Não precisa me levar até a porta — disse Eric, colocando a mão no ombro de
Christine. — Aproveite seu café. Vou telefonar mais tarde.
Com outra saudação para o anfitrião e anfitriã, ele saiu da sala de jantar.
— Que jovem agradável — disse a tia Mary.
— Sim — disse o tio Jonathan. — Você escolheu bem, Christine. Os seus pais vão
ficar satisfeitos.
Christine sentiu as bochechas arderem. Ela ainda não tinha “escolhido”. Ainda não
estava certa de como iria escolher se lhe fosse dada a oportunidade. Mas era sensato
protestar contra a suposição que tinha sido aparentemente feita? Ela também não
tinha a certeza disso. Eles estavam saindo. Christine deixou passar essa declaração.

Christine teve uma nova crise de nervos no domingo em que iam visitar a igreja de
Eric. Era um belo edifício, mas longe de ostentoso, e os adoradores pareciam tão
calorosos e entusiásticos quanto na igreja dela. Christine sentiu-se confortável desde
o momento em que se sentou no banco de carvalho e se uniu aos cânticos
conhecidos.

O pastor apresentou uma mensagem instigante, e Christine ouviu muitos améns


após o desafio inspirador. Ela estava tão entretida com tudo o que acontecia, que
quase se esqueceu que eles iam almoçar na casa do Eric.

Mas quando a última canção foi cantada, o último amém pronunciado, Eric deu um
jeito de pegar na mão enluvada de Christine, e a apertou levemente.
— Vem — sussurrou ele —, vou apresentá-la aos meus pais.
— Não podemos esperar até chegarmos na sua casa? — perguntou Christine muito
nervosa, na esperança de ter algum tempo para se recompor.
— Os meus irmãos e as esposas também querem te conhecer. Eles não vão
participar do almoço. Tinham outros planos. — Eric a observou por um

211
instante e disse: — Você não tem nada com que se preocupar, Christine. Eles vão te
achar fantástica, como eu também acho.

Christine deu um sorrisinho em resposta ao sorriso dele, e deixou que Eric a levasse
para o saguão. O local já estava lotado, com várias pessoas animadas em conversas.
Eric dirigiu-se diretamente para um grupo que estava a esquerda. Christine
presumiu que devia ter dito a todos eles onde os encontraria.

Os dois irmãos eram claros como ele. Um era um pouquinho mais alto e o outro um
pouquinho mais robusto, mas dava para perceber à primeira vista que os três eram
irmãos. As moças que estavam com eles pareciam ser muito simpáticas. Mesmo
com a sua inexperiência em tais assuntos, Christine podia dizer que os seus trajes
vinham das melhores lojas da cidade. Enquanto Eric a conduzia até o grupo, eles
ficaram em silêncio. Christine concluiu que eles estavam avaliando a nova moça
que Eric trazia no braço. Ela se perguntou, por um instante, quantas outras moças
Eric tinha trazido para conhecer a família no passado. Christine encarou todo o
grupo, e ela viu que todos lhe devolveram o sorriso. Isso foi um conforto.

Havia uma mulher de costas para eles, que conversava com outra mulher da igreja.
Eric olhou na direção dela e balançou a cabeça.
— A minha mãe — sussurrou ele, mas havia respeito e amor em sua voz. — Ela
está sempre em reuniões de comitês — até mesmo no saguão da igreja.
Ela deve ter ouvido o comentário, pois se virou rapidamente.
— Eric.
Ela tinha um olhar muito amável. E o sorriso mais franco e sincero que Christine já
tinha visto. A mulher lançou todo a calidez de seu sorriso na direção de Christine.
— E esta deve ser Christine — disse ela, estendendo ambas as mãos.
Christine esperava que a mulher não fosse exagerar e envergonhá-la com um abraço
emocionado. Mas embora ela tenha tomado as mãos de Christine nas suas, não fez
nada além disso.
— Estou tão contente por te conhecer — disse ela de forma genuína. Christine
gostou dela imediatamente.
O pai de Eric foi um pouco mais efusivo na sua saudação. Embora não houvesse
nada ofensivo em seu trejeito, Christine ficou com a nítida impressão de que ele
pensava que já passava da hora do filho mais novo se estabelecer. Ele

212

também parecia ter entendido que Eric já tinha feito sua escolha, e tanto através das
suas palavras como de seus atos, indicou sua sincera aprovação. Christine sentiu as
bochechas enrubescendo. Por que as pessoas chegam a conclusões tão precipitadas?
perguntou ela.

Ela foi então apresentada aos outros membros da família. Cada um deles foi cortês e
gracioso. Supunha que devia sentir-se aliviada — mas por alguma razão, que não
conseguia definir, não se sentia. Foi como se todos eles tivessem concluído que ela
e Eric já eram um casal. Que ela estava “amarrada”, antes mesmo de tomar a
decisão. Isso a deixou desconfortável. Eles tinham partilhado apenas alguns
momentos juntos. O que será que ele dissera à família?

A casa era refinada, como Christine tinha imaginado. O almoço estava delicioso,
como ela também tinha imaginado. Todos eram muito cordiais, muito sinceros na
sua fé, inteiramente dedicados à família, como Christine pôde perceber quando a
senhora Carlton mostrou fotografias da filha, do genro e dos netos que viviam em
Victoria. Mas Christine não conseguia relaxar. Meu lugar não é aqui — continuava
a surgir em sua mente, embora ela não conseguisse explicar por que.

Que moça não se sentiria especialmente abençoada por ser bem recebida numa
família assim? E por um jovem médico tão bonito e bem-educado — um rapaz que
partilhava de sua fé e parecia gostar dela profundamente? Sua hesitação não fazia o
menor sentido. Nenhum sentido mesmo.

Ela tentou pôr os pensamentos de lado e entrar na conversa do almoço. — Christine


cresceu no norte — anunciou Eric.
— No Norte?! Que interessante.
Palavras ditas pela mãe de Eric, com um sorriso.
— O meu pai é da Real Polícia Montada Canadense — informou Christine.

— RPMC. Temos que agradecer a eles que o oeste tenha se estabelecido de forma
tão civilizada — comentou o senhor Carlton. — Meu pai, que ajudou a construir
esta cidade, disse que ele nunca tve qualquer problema com as tribos indígenas
locais — graças, em grande parte, ao RPMC, a Polícia Montada do Nordeste, como
era conhecida naquele tempo.

Christine assentiu. Ela sabia de cor a história da Força, e tinha muitas vezes
implorado por histórias do seu princípio quando era colocada para dormir à noite.

213

— Os nativos confiavam neles — observou o Sr. Carlton. — Aprenderam


rapidamente que não aceitariam disparates de brancos renegados, como esses não
aceitariam dos índios.

Mais uma vez Christine assentiu.

— Bem, eles fizeram um bom trabalho. Tiro o chapéu para o seu pai e seus
companheiros.
Christine sentiu um momento de orgulho.
— O irmão dela também é um oficial — prosseguiu Eric.
— Ele também está no Norte?
— Não. Não, ele serve no sul.
— Ele esteve envolvido num terrível acidente de automóvel na última Páscoa —
explicou Eric. — Foi então que conheci Christine. Ela vinha com frequência ao
hospital.
— Bem... há males que vem para bem, como costumam dizer — disse o pai. — Eu
não desejaria um acidente de automóvel a ninguém, mas pelo menos este uniu
vocês dois.
O sorriso jovial e as palavras deixaram Christine sentindo-se inquieta. Outra
suposição. Ela sentiu um leve estremecimento.
Eric deve ter percebido.
— Você está bem? Quere que eu feche a janela?
— Não, estou bem. Obrigada — ela conseguiu dizer, mas ficou contente por enrolar
dedos trémulos ao redor da xícara de café quente.
— Os meus pais te adoraram — disse-lhe Eric mais tarde enquanto a levava para
casa.
De algum lugar nas profundezas do seu ser, Christine encontrou coragem.
— Eric, eu... também gostei dos seus pais. Mas você não acha... quero dizer, tudo
parece estar acontecendo rápido demais. As pessoas estão fazendo suposições sobre
coisas que... que nem sequer discutimos. Sinto como... como se eu estivesse sendo
empurrada de um abismo ou apanhada numa rede. Eu...
Eric riu.

214

— Bem, suas raízes Nortenhas estão certamente aparecendo. Apanhada numa rede?
Não há muitas corredeiras por aqui.
Christine corou.
— Você sabe o que estava tentando dizer — disse ela com seriedade.
— Eles não querem presumir as coisas — ele se defendeu. — Acho que exagerei no
meu entusiasmo quando falei sobre você. E quando a conheceram e perceberam que
eu não estava exagerando — que você é tudo o que eu tinha dito —, é evidente que
iriam tirar conclusões precipitadas. Afinal de contas, eu terminei a minha formação
e estou pronto para me assentar. Porque não haveriam de pensar...
— Mas estão errados. Nunca sequer discutimos quaisquer... planos para o futuro.
Isto...
— Vamos discuti-los agora?
Para seu espanto, ele virou o carro para o lado da rua e parou. Depois virou-se para
ela muito sério, como ela jamais o tinha visto. Christine enrubesceu.
— Eric — ela conseguiu desabafar antes que ele pudesse dizer qualquer coisa mais.
— Nós mal nos conhecemos. Não acho que se possa ao menos considerar algo tão...
tão importante sem...
Mas ele a interrompeu.
— Eu sei que há muitas coisas que ainda não sabemos um sobre o outro. Sei disso.
Mas, Christine, tudo o que sei sobre você... me fascina. Não, não, me deixe
terminar. Não é que eu não tenha conhecido outras moças. Eu conheci. E não é que
eu não tenha tido oportunidade de ter outros relacionamentos.
Ela podia bem imaginar que era verdade. Com sua boa aparência e jeito suaves, as
moças deviam estar tropeçando umas nas outras para se aproximarem dele.
— Mas eu não conheci nenhuma como você — continuou ele. — De verdade não.
Você não é apenas atraente — e admito que isso tem o seu peso. — O olhar
rapidamente se tornou provocador, mas rapidamente tornou-se sério novamente. —
Mas é mais do que isso. Muito mais do que isso. Gosto da sua devoção, da sua
dedicação à sua família e ao Senhor. Gosto da forma como você sorri, e até mesmo
como franze a testa. Gosto da sua classe...
— Por favor, Eric — implorou ela. — Por favor.
Ele parou.

215

Um braço percorreu a distância entre eles, descansando sobre o encosto do banco.


Os dedos dele mexeram com uma mecha de cabelo que pairava sobre o ombro de
Christine. Era a primeira vez que ele a tocava dessa maneira. Era inquietante.

— Eu também gosto de você — gaguejou ela. — Não posso negar. Eu fico


repetindo para mim mesma o quanto sou afortunada por você... ter reparado em
mim. Mas eu acho... bem... acho que estamos indo rápido demais. Ainda não tive
tempo para pensar. Tempo para orar. Uma vida é muito tempo, Eric. Eu fiz uma
escolha errada no passado. Eu quase me casei com um homem que... não era nada
bom para mim. Não quero cometer esse erro novamente. Consegue entender? Eu
preciso de tempo. Preciso ter certeza.

Ele enrolou o cacho ao redor do dedo e fez que sim com a cabeça, mas havia mágoa
em seus olhos azuis.
— Eu entendo — concordou ele. — Se você precisa tempo para orar...
— Não, Eric. Não apenas eu. Quero que você ore também. Para buscar a vontade de
Deus sobre isso. Nós dois temos que ter certeza. Não se trata apenas do que nós
queremos — é o que Ele quer para nós.
Ele concordou.
— Não posso discutir contra isso.
Os dois se calaram. Christine estava orando em silêncio. Ela não tinha a certeza do
que Eric estava pensando.
— Então, para onde vamos a partir daqui? — perguntou ele.
Havia súplica em seu tom de voz, embora não a expressasse em palavras.
Christine sentiu os ombros desanimarem.
— Não tenho ideia.
Depois de outro período de silêncio, ela voltou a falar.
— Que tal se concordarmos em orar franca e honestamente durante uma semana?
Então você me telefona.
— Orar franca e honestamente — ele repetiu. Depois assentiu com a cabeça. —
Está bem.
Continuou a tocar o cabelo de Christine com os dedos, observando a maneira como
o cacho enrolava firmemente ao redor do seu dedo.
— Quer ir para casa agora?

216
— Por favor.

Ele a surpreendeu, inclinando-se para a frente e depositando gentilmente um beijo


na mecha de cabelo. Depois, deixou-a deslizar do dedo e virou-se para ligar o motor
do carro.
217
Capítulo 20
C

hristine começou a semana levantando-se cedo e passando tempo a mais em estudo


da Bíblia e oração. Ela queria a vontade de Deus para sua vida. Queria mesmo.
Como poderia saber qual era a Sua vontade? “Pedi e recebereis”, diziam as
Escrituras. Christine pretendia perguntar.

Onde começo a procurar pela resposta de Deus? questionou-se Christine. Bem, por
que não começar pelo princípio? Ela abriu o livro do Gênesis. A leitura das
Escrituras de segunda-feira de manhã foi a história da Criação. No princípio Deus....
ela leu. E ali era precisamente por onde devia começar, concluiu ela. Com Deus.
Com a compreensão de quem Ele foi e ainda é. Com o reconhecimento que Ele
tinha um plano — que era Seu direito ter um plano e direção que traria a ela apenas
o bem.

Ela leu sem parar sobre os primeiros dias da criação. Deus viu que era bom. Ele
estava satisfeito com o que tinha criado. Façamos o homem à nossa imagem...
prosseguiu o relato. E Deus fez. Não é bom que o homem esteja só chamou a
atenção de Christine. Far-lhe-ei uma ajudadora. Ela anotou isso sob o Número Um
na página do caderno que tinha diante de si. Deus planejou para que o homem e a
mulher se unam em parceria. Ela colocou uma pequena marca de verificação ao
lado. Não precisava temer que se casar fosse um erro.

Mas o resultado da primeira parceria não foi exatamente o desejado. Eva, tentada
pela serpente, também introduziu Adão ao pecado. Número Dois, escreveu
Christine. Para cumprir o plano de Deus, os dois membros da parceria
Q UANDO chega o AMANHÃ
devem procurar segui-Lo. Colocou outra marca de verificação. Eric também estava
em busca da vontade de Deus.

Ela continuou a leitura. Deus tinha vindo à procura de Adão e Eva. Ele tinha mesmo
preparado a roupa para cobri-los, indicando o Seu amor e perdão — para os dois,
não apenas um ou outro. Mas eles tinham sido expulsos do Jardim.

Ponto Número Três. Se e quando cometermos um erro, Deus ainda nos ama, pode e
irá nos perdoar, se estivermos arrependidos. Mas ainda há consequências.

Ela tinha cometido um erro no passado, ao prometer unir sua vida com um
descrente. Tinha sido perdoada, pelo que estava verdadeiramente grata. As
consequências tinham sido um coração perturbado e partido, e a subsequente
dificuldade a respeito dos relacionamentos.

Mas agora, Christine sentia fervorosamente que era tempo de seguir em frente.
Certamente ela não estava errada em procurar com sinceridade o parceiro que Deus
tinha em mente para ela. Mas era esse um homem específico? Ou era um campo
mais amplo, a partir do qual ela poderia escolher, desde que se mantivesse dentro
das diretrizes de Deus? Não tinha certeza.

Até agora, o carácter e a personalidade de Eric Carlton apenas mostraram traços


positivos. A única negativa, ela percebeu, era o fato de haver poucas hipóteses de
que o Dr. Eric Carlton alguma vez fosse em direção ao norte. Não havia sequer
clínicas de postos avançados e muito menos hospitais. Não, não parecia que Eric
Carlton se encaixaria em seu sonho de regressar à terra e às pessoas que ela amava.
Será que era por isso que seu coração estava tão perturbado? Sim. Sim, acreditava
que era isso.

Sua mãe não lhe dissera uma vez: “Às vezes, a forma que Deus escolhe nos
conduzir é através do nosso próprio espírito inquieto?” Bem, o espírito dela estava
inquieto. Será que isso significava que Deus estava tentando lhe dizer que este
relacionamento não era da Sua escolha? Christine não sabia. Realmente não sabia.
O que sabia era que não podia avançar até que seu espírito estivesse em repouso.

Christine fechou a Bíblia e se ajoelhou em oração. Aos seus habituais pedidos


diários, acrescentou fervorosas súplicas por orientação.
Ela ainda se sentia inquieta quando ficou de pé, mas de algum lugar no fundo de seu
ser, uma pequena voz sussurrava, Confie. Apenas confie nEle.

219
Ele vai te mostrar o caminho. E Christine acalmou seu coração inquieto e
concordou em ser paciente.

Christine passou pela rotina habitual do seu dia. Aparentemente, em seu exterior,
nada tinha mudado. Mas em seu interior sentiu que seu mundo inteiro tinha sido
virado de cabeça para baixo. Ou estava apenas em suspenso, enquanto ela lutava
para descobrir qual devia ser seu próximo passo?

Henry telefonou com a notícia de que todos eles estavam bem. Gradualmente, as
peças do quebra cabeça de sua memória pareciam se encaixar. Era uma notícia
excelente. Amber, embora ainda estivesse de luto pela perda do filho por nascer,
podia agora olhar adiante e sonhar que, no futuro, outro bebê lhe encheria o coração
e a vida. Danny não parecia ter ficado com sequelas por causa do acidente.

— Você se encontrou novamente com aquele jovem médico? — perguntou

Henry, casualmente. — Qual era o nome dele... Dr. Carlson?


— Dr. Carlton, isso — admitiu Christine. — Ele terminou a residência,
e eu tenho visto ele de vez em quando.
— Fiquei impressionado com ele — continuou Henry. — Gostei de como
seu profissionalismo não interferia na forma sincera de cuidar de seus pacientes.
Christine mudou o tema da conversa. Falou por vários minutos sobre a
Cantina Esperança, depois perguntou ao Henry sobre o trabalho. Henry gemeu.
— Laray acabou de receber sua transferência. Caramba, vou sentir
saudades dele.
Christine foi apanhada de surpresa. Fazia tempo que não pensava nele. — Para onde
ele vai? — ela conseguiu perguntar.
— Para Beaver River. Imagine isto. Foi lá que a mãe e o pai começaram. Christine
sentiu um pequeno choque atravessar seu corpo. Laray estava
indo para o Norte. Como parecia irônico. Será que podia ter alguma coisa a
ver com ela?
— Será que ele pediu para ser mandado pra lá? — se deu conta que estava
perguntando.

220

— Não. Não, foi algo que aconteceu do nada. Engraçado, né? — Sim — murmurou
Christine. — Sim, acho que sim.
— Ele nunca trabalhou com cães, e depois do que aquele urso fez com

ele, fico um pouco preocupado. Espero que um cão nunca ameace atacá-lo, ou ele
pode entrar em pânico. Os cães podem sentir seu medo. A gente tem que lidar com
eles...

Henry prosseguiu, mas Christine não estava ouvindo. Ela adorava os cães. Adorava
trabalhar com a matilha. Adorava o som dos yips e yaps, quando expressavam sua
ânsia para correr. Adorava o guincho dos corredores de trenó sobre a frieza da neve
compacta. O ruído dos sapatos de neve. As nuvenzinha de gelo na respiração que
subiam quando corriam pela geada numa manhã gelada. Será que o Henry sente
falta de tudo isso? perguntou ela.

— É melhor te deixar ir embora — dizia Henry. — Não quero que se atrase para ir à
Cantina.
Christine sabia que ele não gostava muito do termo “cantina”, e ele sempre chamou
o pequeno centro de missão pela única palavra. Mas encontrar um nome amigável e
de som aberto era importante na atração de jovens homens e mulheres.
Os dedos de Christine estavam tremendo quando ela desligou o telefone.
Laray vai para Norte. Ele disse: “Basta me enviar uma carta”. Isso significa que...?
Ela sacudiu a cabeça e saiu em direção à porta, com a bolsa na mão.
Não seja tola, repreendeu a si mesma. Muitos Policiais Montados são enviados ao
Norte. O fato de Maurice Laray ser um deles não tem nada a ver com você. Não vá
complicar ainda mais as coisas.
As coisas estavam tensas aquela noite na Cantina Esperança. A guerra na Europa
tinha se agravado, e as notícias vindas dos frontes Aliados não eram boas. Uma
nova leva de recrutas em breve seria enviada para o estrangeiro. Embora a
empolgação pudesse ser ouvida em suas vozes, Christine sentia que, nos momentos
que tinham de maior sanidade, o medo também permeava esses jovens corações.
Muitos deles buscavam encontrar alguma espécie de âncora sólida antes de serem
enviados para o fronte.

221

O pastor Tim misturou-se com a multidão, passando de mesa em mesa,


cumprimentando muitos jovens enquanto passava, batendo nos ombros, apertando
as mãos. Até mesmo entrando num jogo de dardos. Não era permitido fazer apostas
em nenhum jogo na cantina. Christine observou enquanto ele virava uma cadeira e
se sentava nela como se estivesse montado, inclinando os braços nas costas da
cadeira. Três jovens com uniformes da Marinha inclinavamse ligeiramente para a
frente, ouvindo atentamente tudo que era dito pelo pastor. Ele fazia as coisas de
forma tão casual. Mas ela não conhecia ninguém que pudesse entrar no íntimo de
uma questão mais rapidamente do que este jovem pastor. No entanto, ele não se
limitava a falar, ele ouvia também. Estava agora ouvindo enquanto um dos jovens
falava. Ele é muito bom, pensou ela. E muito dedicado. Ela o admirava.

Ele se daria muito bem no norte, se pegou imaginando. Ele tem o talento de ouvir,
mas sabe liderar também. Pergunto-me se um dia ele já considerou participar de
uma missão do Norte. Não seria uma maravilha se Deus liderasse...?

Ela parou. Que razão ela tinha para pensar que o pastor Tim poderia incluíla em
qualquer um dos seus planos? Bem, ela tinha que admitir honestamente que
demonstrara algum interesse nela. Talvez...
Christine se controlou. A direção que seus pensamentos tinham tomado
inesperadamente trouxe um rubor às suas bochechas. Agora, disse uma voz interior,
você não está querendo apenas planejar a sua própria vida; você quer também traçar
planos para a vida dos outros. Ela sentiu-se humilhada e envergonhada.

Ela observou cuidadosamente seus pensamentos durante o resto da noite. Mais uma
vez, o grupo de voluntários partilhava experiências enquanto trabalhavam juntos na
limpeza. Outro jovem tinha feito um compromisso de fé, e um outro tinha marcado
uma reunião com o pastor Tim no dia seguinte. Ele não tinha sido suficientemente
corajoso para abrir o coração com os seus amigos que partilham a mesa.

Uma vez mais o jovem pastor e Christine caminharam juntos até à parada do bonde.
— Você está tão cansada quanto eu? — perguntou ele.
Christine não admitiu que tinha dormido pouco na noite anterior e tinha levantado
mais cedo para estudar as Escrituras. Sim, estava cansada.

222

— Mas vale a pena — prosseguiu ele. — Imagine só, os anjos estão celebrando esta
noite. Outra ovelha perdida entrou no redil.
Era um pensamento maravilhoso. Christine sorriu com ele.
— Às vezes me pergunto: O que farei quando este pesadelo acabar? Quando as
tropas estiverem todas em casa outra vez, em segurança, isto é, aqueles que
voltarem para casa. Para onde Deus me levará então?
Não diga nada — ou sequer pense... Christine repreendeu-se a si mesma. Seria
errado até mesmo você sugerir o norte. Ela mordeu-a língua.
— Bem, eu não preciso me preocupar com isso — disse Tim com tranquilidade. —
Ele vai me mostrar. Mas é muito empolgante pensar no que pode acontecer depois.
Eu jamais teria pensado em servir aqui — mas tem sido extremamente gratificante.
Não consigo me imaginar em qualquer outro lugar. Creio que é assim que deve ser
quando estamos onde Deus quer que estejamos. Quando estamos no caminho, por
assim dizer.
Christine assentiu. No caminho com Deus era exatamente onde ela queria estar.
O bonde chegou e eles embarcaram, comentando sobre o dia, o futuro, os horrores
da guerra. Então Christine foi pega totalmente despreparada quando ele perguntou,
aparentemente do nada:
— Você está saindo com alguém?
— Sim — ela respondeu tranquilamente, surpreendendo até a si mesma. — Sim, eu
estou.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Não conseguia imaginar que você não estivesse comprometida — ele disse com
um sorriso irônico.
Mas eu não estou realmente comprometida, Christine quis argumentar e foi
surpreendida com a sensação de que, sim, ela estava. De certa forma, ela estava
comprometida.
— Fale-me sobre ele — sugeriu o pastor.
— Ele é... é um médico, que conheci quando o meu irmão e a mulher dele estavam
no hospital.
— Um médico?
O pastor Tim olhou surpreso.

223
— Ele é muito simpático — Christine percebeu a si mesma agregando. —

Ele cresceu aqui mesmo em Calgary.


— Vocês já... tem um compromisso?
Por alguma razão, Christine não se ressentiu do interesse do pastor. Parecia

perfeitamente normal.
— Não vi nenhum anel no seu dedo — acrescentou ele, e depois disse
com um sorriso — Admito que eu procurei.
Christine ruborizou.
De repente, ela viu o homem ao seu lado não só como um rapaz muito
atraente, não como um bilhete para o seu amado Norte, mas como um homem
de Deus. Ela meio que se virou para ele.
— Eu tenho me sentido... confusa. Veja bem, eu quase cometi um erro
grave. Fiquei noiva de um descrente durante algum tempo. Quando esse
relacionamento acabou, eu fique... assustada. Duvidando da minha própria
capacidade de... saber como escolher. Eu pedi... bem, decidimos tomar uma
semana, para buscarmos a vontade de Deus para as nossas vidas. Para qualquer
relacionamento futuro. Eu... não vou conseguir francamente responder à sua
pergunta até essa semana acabar.
Os olhos dele tinham ficado reflexivos conforme ele a ouvia. Christine
baixou o olhar. Houve um silêncio.
— Eu admiro vocês. Os dois — disse o jovem pastor. — Se todos os casais
buscassem a vontade de Deus, sem dúvida haveria lares mais felizes e fortes. E
menos idas para os tribunais de divórcios. Menos crianças ficariam se culpando
por eventos que estavam fora do seu controle.
Christine assentiu. Essas eram as palavras que ela esperava ouvir de um
pastor.
Mas as próximas palavras não estavam longe do que ela esperava. — Christine, vou
procurar orar honestamente pela vontade de Deus —
não pela minha — para guiar sua vida, sabendo que a vontade dEle pode estar
em conflito com o meu desejo humano.
Christine arregalou os olhos. Será que ele estava dizendo... ? Sim, temia
que estivesse.
Ela estava contente por estar se aproximando a parada dele.

224
— Estarei orando... mas admito que também vou estar atento àquele dedo —
sussurrou ele com um sorriso irônico quando se levantava para sair.

Durante toda a semana, Christine passou as primeiras horas da manhã pesquisando


as Escrituras e orando, anotando no caderno qualquer verdade que lhe parecesse
aplicável ao seu dilema. Seu coração e mente não pareciam estar mais próximos da
solução do que antes. Laray estava indo para Norte. O pastor Tim poderia até ser
levado por Deus a trabalhar numa missão indígena. Ela podia imaginá-lo lá. No
entanto, foi Eric que pediu seu compromisso. Eric que, de alguma forma, estava
constantemente em seus pensamentos. Eric que a conquistara. Christine reviveu o
momento em que ele brincava com seu cabelo, quando ele se inclinou para beijar a
única trança. Era como uma delicada promessa. Mas Eric no norte? Isso ela não
conseguia imaginar.

Christine sentiu-se apavorada. A semana estava para terminar. Eric ia telefonar para
saber sua resposta. O que ela diria? Orou para que, independentemente de qual
fosse a conclusão de sua busca, ele estivesse de acordo. E se ela decidisse que
deviam continuar a relação e ele decidisse que estava terminado? O que fariam
então? É evidente que acabaria, e ela ficaria novamente com o coração partido. Será
que essa era uma das consequências da sua desobediência anterior? Christine
esperava que não. Orava que não fosse.
Mas, endureceu o coração para o pior, mas ainda assim, esperava pelo... pelo quê?

225
Capítulo 21
N

o sábado, apenas um dia antes da conclusão do prazo combinado, Christine estava


desesperada por uma resposta. Ela realmente não sentia que estava mais perto de
saber o que Deus queria para sua vida. Vou ficar no meu quarto, lendo e orando até
ouvir do Senhor, disse a

si mesma. Fez uma breve oração, pedindo que Deus lhe desse sabedoria e
compreensão ao pegar a Bíblia.

Ela tinha passado pelo livro de Génesis, fazendo anotações conforme avançava.
Mas não sentia que, além de orientações gerais, o Génesis não tinha dado uma
resposta ao seu dilema particular. Passou então para as conhecidas histórias do
Êxodo. A escravidão do povo, o nascimento e a proteção milagrosa do menino
Moisés. O pecado dele ao matar o egípcio, que resultou em sua fuga para o deserto.
Ela tinha ouvido essas histórias na classe bíblica, nas leituras da Bíblia em família,
e ela mesma tinha lido inúmeras vezes. Concluiu que a fuga de Moisés realmente
tinha pouco a ver com o lugar de direito de Eric na sua vida.
Ela passou para o relato da sarça ardente. Moisés certamente não estava esperando
se encontrar com o Deus hebreu no meio do deserto — e de forma tão estranha e
insólita.

“Tire as sandálias”, disse Deus.


Christine parou de ler. “Tire as sandálias”. O que isso significa?
Certamente era algo cultural. Mas qual era o significado?
Ela começou a ponderar nas palavras, algo que não tinha feito antes com

essa passagem. As sandálias eram necessárias para proteção no deserto. Moisés


Q UANDO chega o AMANHÃ
precisava delas. Mas Deus disse para tirá-las, para deixá-las de lado. Nada do que
Moisés possuía, que estivesse conectado à terra ou bens materiais, o preparava para
estar na própria presença de Deus. Ele estava perante um Deus santo, de pé em solo
sagrado. Ele devia mostrar uma apropriada humildade de espírito.

No entanto, o próprio fato de Deus estar lá, falando com ele, era uma indicação de
que este Deus Santo e Todo-Poderoso estava disposto a inclinarSe e intervir em
nome do Seu povo. Mas antes que Ele pudesse fazer grandes coisas, tinha que ficar
claro quem Ele era.

“Você sabe quem Eu Sou?” Ele deve ter perguntado.


Através desta ação aparentemente simples, Deus estava confrontando

Moisés.
“Moisés — Eu sou Deus. Eu sou o seu Deus”. E quando Moisés entendeu,
ele caiu sobre seu rosto.
Após alguns momentos de contemplação, Christine leu a respeito de Deus
ter dado a Moisés uma tarefa a cumprir. Uma tarefa espantosa. Uma tarefa que
Moisés não tinha procurado. Nem se sentia capaz de levar à compleição. “Tu
cometeu um erro aqui, Senhor”, ele parecia dizer. “Eu não sou o homem que o
Senhor está procurando. Eles nunca vão me ouvir”.
Christine pensou em quando ela e Henry eram crianças e gostavam
de representar histórias bíblicas. Henry sempre tinha feito um Moisés
impressionante. Ele batia na testa e cambaleava por todo lado, gritando: “Oh,
eu não. Eu não. Não posso fazer isso. Eles não vão me ouvir. Estou fugindo.
Não me mande de volta, Deus. Eles podem me matar. E eu nem sequer consigo
falar direito”.
Ele prosseguia desta maneira até que caíssem numa crise de risos. Ela
sorriu agora só de se lembrar disso.
Ela sempre tinha que fazer o papel de Deus, dizendo a Moisés que não
haveria mudança de planos. Uma vez ela tinha até mesmo batido na perna do
Henry, mandando ele se levantar e seguir em frente com a tarefa. Isso não tinha
terminado bem, nem para Henry, nem para ela.
“Deus não bateu nele” , Henry declarava firmemente, esfregando o local
da batida.
“Devia ter batido”, Christine dizia. “Ele estava agindo como um bebê”. Ela pensou
nisso agora. “Ele estava agindo como um bebê”. Com que
frequência ela tinha agido como um bebê, se perguntava, quando Deus lhe deu
instruções?

227
“O que é isso na sua mão?” ela leu a seguir.

Será que Moisés se perguntava por que Deus tinha que fazer essa pergunta? Era
evidente que Ele sabia o que Moisés tinha na mão. Não, a pergunta não foi feita
porque Deus precisava de saber. Era Moisés que precisava saber.

“É um bordão”.

Ele poderia ter dito: “É o meu bordão”. Esse bordão representava a maior parte da
vida de Moisés. Ele era um pastor. O bordão era necessário para proteger ele
mesmo e as ovelhas de saqueadores, para guiar, para instruir as ovelhas. Era o
instrumento do ofício de Moisés. Era seu dinheiro no banco. O seu senso de
segurança. Quando ele estava sozinho no deserto, era tudo o que ele tinha.

“Atire-o no chão”.

Como ela se lembrava bem desta parte da história. Ela sempre se sentia tão
poderosa, tão absolutamente no controle quando mandava que Henry jogasse seu
bordão, que era uma das colheres de cozinha da mãe ou um pequeno graveto da
caixa de lenha.

Henry reagia de acordo com seu próprio roteiro não escrito. Ele agarrava qualquer
coisa que estivesse segurando, fechava os olhos, e se balançava para trás e para a
frente. “Não posso. Não posso”, ele gemia e gemia. “É meu. Eu não quero desistir.
Quero ficar com ele. Por favor. Por favor”, e caía de joelhos, implorando.

Christine sorriu, e depois ficou rapidamente sóbria. Já não tinha mais graça. De
repente, viu uma imagem totalmente diferente. O bordão não era mais um longo
pedaço de madeira. Era qualquer coisa a que as pessoas se agarravam, que as
impedia que aceitassem o plano de Deus.

“Atira-o no chão”, disse Deus. “Desista disso”.

As lágrimas começaram a se derramar pelas pálpebras de Christine e rolar por suas


bochechas. Havia alguma coisa na sua vida que impedia Deus de ser livre para
conduzi-la? Era o a sensação de não ter sido perdoada por seu erro do passado?
Não, não, sentia que podia honestamente dizer que aceitava com gratidão o perdão
dado por Deus.

Será que ela ainda queria seguir sua própria vontade ao escolher o futuro
companheiro?
Não. Por mais que admirasse Eric — talvez até o amasse —, ela não estivera
disposta a avançar com os planos, a menos que sentisse a aprovação de Deus.

228

De repente, um pensamento a pegou totalmente desprevenida. Christine viu a que


ela estava se agarrando com tanta força. Era o Norte. Mas certamente, Deus não lhe
pediria que desistisse disso. Não havia nada errado com o norte. Ela o adorava.
Sentiu que podia até servir aos outros ali. Certamente não era errado...

“Lança-o aos meus pés”, sentiu Deus sussurrando em seu coração.

Eu não posso, Senhor, ela começou a responder, e depois ouviu novamente sua
própria voz nos tempos de outrora: “Ele está agindo como um bebé”.
Christine deu a si própria uma pancada mental. Desista. Não vale a pena agarrar-se
a isso e perder o melhor de Deus.
Mas todas as minhas esperanças, os meus sonhos, o meu amor?
“Atire-os no chão”.
Christine abriu a mão e a manteve para cima — vazia. Era sua admissão — estava
dizendo que concordava em abrir mão de tudo.
Apesar das lágrimas que se seguiram, ela jamais sentira uma paz tão esmagadora.
“Christine”, uma voz suave parecia sussurrar, “se Eu quiser você no norte, não acha
que posso te levar para lá? Você não precisa resolver esse problema. Confie em
Mim. E se não for o norte, não acha que eu poderia te dar contentamento — paz —
até mesmo alegria — onde quer que te peça para ir?”.
Christine assentiu. Deus parecia estar tão perto. Ela se perguntou, por um instante,
se Moisés sentiu a mesma sensação da presença de Deus enquanto atirava seu
bordão.
“Agora”, Deus parecia estar dizendo. “Qual é a sua hesitação em aceitar este
rapaz”?
Para espanto de Christine, ela não tinha resposta. Não parecia haver qualquer razão.
Não havia qualquer razão porque Eric, que partilhava sua fé e o seu sentido do
propósito de Deus para a vida, devesse ser recusado simplesmente porque ela não
podia vê-lo como parte do seu Norte. Ele era um ótimo rapaz. Dedicado a Deus, à
sua família, e aos seus pacientes. Não apenas isso, mas ele tinha ganhado seu
respeito — seu coração, sim, o seu amor —, com sua gentileza e integridade. Ela
não podia acreditar que tinha lutado tanto tempo a respeito de algo tão simples.
Talvez a batalha não tivesse sido sobre o Eric, mas, sim, sobre a questão de quem
ou o que tinha prioridade na sua vida. Agora que tinha abdicado de seus próprios
planos e sonhos, e estava disposta a permitir que Deus controlasse seu futuro,
Christine sentiu-se totalmente em paz. Ela tinha a sua resposta.

229

Eric telefonou na tarde seguinte.


— Estou livre nas próximas quatro horas. Podemos conversar? Christine
concordou, ansiosa para vê-lo.
Mas ela não estava livre de preocupações. Ela sabia agora como se sentia.

Mas será que Eric tinha chegado à mesma conclusão? Com um pouco de luta,
Christine foi finalmente capaz de entregar também essa preocupação para Deus. Se
Eric não tivesse chegado à mesma conclusão, esse era o plano de Deus e ela iria
aceitá-lo. De alguma forma, Ele ia fazer que ela superasse a desilusão. Ela era filha
de Deus, e confiaria nEle.

Não havia nada sobre o comportamento de Eric que indicasse a sua decisão, para
um lado ou para outro. Ele foi educado, como sempre, mas não mais íntimo do que
tinha sido antes.

— Que tal um passeio ao longo do rio? — sugeriu ele, e Christine concordou.


— Talvez você queira pegar um agasalho. Não há muito sol hoje.
Christine foi buscar sua blusa, informando à tia que ficaria fora durante algum
tempo, e eles saíram.
— Como foi sua semana?
Havia mais significado nas palavras dele do que uma pergunta por educação.
— Eu... aprendi muito. — Ela sorriu. — Principalmente com Moisés.
— Moisés? As minhas lições foram com o apóstolo Paulo.
Ele pegou uma pedra lisa e a lançou saltando pela água. Christine lembrouse de
Henry fazendo isso. Parecia que ele nunca conseguia caminhar perto da água sem
lançar pedras saltando.
— Gostaria de ouvir tudo sobre as suas lições. Devemos discuti-las primeiro — ou
depois?
— Depois? — perguntou Christine.
— Depois de decidirmos se vamos continuar a nos ver.
Ele lançou outra pedra, sem olhar para ela.
Christine estava hesitante.
— Não tenho certeza.

230

Ela se perguntou se eles ainda iam se falar... depois.


— Vamos esperar até depois. Estou muito ansioso...
Eric não prosseguiu. Christine perguntou-se se ele estava tão agitado

quanto ela. Ele se virou de costas para a água corrente afim de dar a ela toda sua
atenção. Ela podia ver a tensão em seu maxilar, e os seus olhos estavam sérios. —
Uma coisa que aprendi foi sobre tirar a sorte — disse ele.
Christine franziu o cenho. Certamente ele não estava sugerindo que tirassem a sorte
numa moeda para determinar seu futuro.
— Bem... talvez tenha sido mais sobre uma votação do que tirar a sorte.
— Uma votação?
— Uma votação secreta. Pergunto-me se você está preocupada que a decisão de um
possa influenciar a decisão do outro.
— É, eu pensei nisso.
Ele indicou um banco ao lado da trilha, e Christine deixou que ele a guiasse até o
banco. Os patos nadavam até a margem, à espera de uma guloseima. Quando não
havia nada disponível, eles protestavam em voz alta.
— Por isso pensei que talvez, para termos certeza de que isso não vá acontecer, nós
podíamos escrever a nossa resposta num pedaço de papel, então trocá-los e
desdobrá-los juntos.
Parecia mais uma brincadeira infantil, mas Christine concordou.
— Você já se decidiu? É importante que estejamos certos — disse ele, olhando para
ela atentamente.
— Sinto que Deus me deu orientação... sim — respondeu ela, sentindo-se tímida de
repente.
— Muito bem... eis a questão, para que nós dois saibamos exatamente o que
estamos respondendo: ‘Você sente que Deus deu a Sua aprovação para
prosseguirmos nesse relacionamento?’ Sim, se sentir que Ele aprovou. Não, se sente
que não aprova. Tudo bem?
— Entendido.
Eric entregou a ela uma folha de papel preparada. A pergunta estava até escrito no
topo da folha, para que não houvesse mal-entendido.
— Precisa de um lápis?
Christine sorriu.
— Você veio mesmo preparado — foi sua tentativa de brincar, apesar de estar
sentindo o nervosismo apertando seu estômago.

231
JANETTE OKE

Eles se viraram de costas um para o outro e escreveram as respostas. Quando


Christine se virou, segurou a respiração.
Ela estava agora comprometida. Independente do que dissesse o papel dele, o dela
já estava escrito em preto e branco.
— Muito bem, vamos trocar — disse Eric, enquanto chegava um pouco mais perto.
—Quando eu contar até três.
Christine apertou bem os olhos. Ela não tinha certeza se conseguia olhar.
— Um. Dois. Três — ele contou, e ela desdobrou o papel. Havia a única palavra,
em grandes letras maiúsculas: SIM. Ela fechou novamente os olhos, e seu coração
sussurrava a sua gratidão a Deus.
Ela ouviu Eric sussurrando, “Obrigado, Senhor” e abriu os olhos. O papel que ela
escrevera estava diretamente na frente dele, com seu longo “Sim”, incidindo uma
luz sobre o rosto de Eric que a tocou profundamente.
Eric colocou um dedo no queixo de Christine e ergueu o rosto dela em direção ao
dele. Ela nunca o vira tão sério.
— Precisamos conversar... e conversar... e conversar — sussurrou ele. — Quero
saber... tudo... sobre você.
O braço dele deslizou ao redor dos ombros de Christine, aproximando-a. Os olhos
azuis, sérios e convidativos, estavam muito perto dos seus.
— Então, por onde começamos?
Eric sorriu.
— Suponho que não precisamos ter nenhuma pressa em particular. Teremos uma
vida inteira; mas mesmo assim, não estou certo de que será tempo o bastante.
Ela sentiu lágrimas na bochecha, mas não tinha certeza se eram dela — ou dele.
Nenhum dos dois parecia ter se dado conta quando os patos finalmente desistiram
de suas súplicas e nadaram para longe.
Fim

232
Vencedora do Gold
Book Award (500.000 cópias vendidas)

A Escritora
JANETTE OKE nasceu em Champion, Alberta, filha de canadense, fazendeiro de
pradaria, e sua esposa, e cresceu em uma grande família cheia de risos e amor.
Formou-se na Faculdade Mountain View Bible, em Alberta, onde conheceu seu
marido, Edward, e eles se casaram em maio de 1957. Depois de pastorear igrejas
em Indiana e no Canadá, os Okes passaram alguns anos em Calgary, onde Edward
serviu em diversos cargos em faculdades, enquanto Janette continuou a escrever.
Ela escreveu mais de quatro dezenas de romances para adultos e crianças, e as
vendas de seus livros totalizam mais de vinte e dois milhões de cópias.

Os Oke têm três filhos e uma filha, todos casados e o casal está desfrutando de seus
doze netos. Edward e Janette são ativos na igreja local e vivem perto de Didsbury,
Alberta.
C

B.
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