6 Janette Oke - Quando Chega o Amanhã
6 Janette Oke - Quando Chega o Amanhã
6 Janette Oke - Quando Chega o Amanhã
Q UANDO
chega o
AmanhÃ
chega o
AmanhÃ
1ª EDIÇÃO
ITAPIRA, SP
2021
Com profunda gratidão
a Deus
por Seu auxílio infalível,
orientação e respostas às orações,
em todos os aspectos da minha vida.
Deus é sublime —
e Deus é bom.
Capítulo 1
O
vento despertou Christine, golpeando ramos contra a janela cheia de gelo e agitando
cristais de neve com uma força incontrolável nas laterais da pequena cabana de
madeira. Soava no fundo da chaminé de tijolos de barro uma lastimosa melodia,
como se fosse algum ser místico.
Sem abrir os olhos, Christine sabia que aquele não ia ser um dia agradável. Mas
sorriu com estranho contentamento, e encolheu-se ainda mais debaixo das cobertas
aquecidas de sua cama.
O bramido abafado do vento do Norte a fez voltar muitos anos antes — aquela era
mais uma sensação do que uma memória propriamente dita. Não era medo o que
sentia quando era criança e ouvia o uivo do vento numa manhã invernal. Nem se
sentia também frustrada ao ter que ficar dentro de casa, por causa da neve. Não, o
que sentia era uma sensação de aconchego, de contentamento. Ela espalhava seus
livros ilustrados favoritos diante da lareira, onde estalava a madeira de pinho, e
sentia cócegas nos pés por causa do pelo macio do tapete de pele de urso onde
costumava se deitar. Podia quase sentir o aroma do mingau quentinho preparado
para o café da manhã, e sentia o estômago roncar.
Ao pensar nessa época, Christine se sentiu quase uma criança novamente. Segura,
protegida, aquecida e amada. Era um sentimento delicioso, estar fortemente
envolvida com seu cobertor de lã Hudson Bay.
Deixando de lado seu devaneio, Christine se mexeu com relutância. Não pôde
deixar de se questionar o que seria mais agradável, se puxar as cobertas até o queixo
e ficar ouvindo aos brados implacáveis, porém fúteis, do furioso intruso, que
parecia decidido a infligir sua vontade aos ocupantes da casinha; ou sair da cama
para assistir a tempestade consumir sua fúria na segurança de seu quarto.
A força bruta da tempestade fez Christine recordar que os pais, habitantes de longa
data do norte, tinham mais uma vez superado o pior da natureza. Não importava a
forma como os atingia, como lutava e se enfurecia, eles estavam quentes e seguros.
As paredes da cabana que o pai construíra para a família ainda estavam robustas e
fortes. O pequeno alpendre, orientado à leste, tinha uma pilha alta de madeira de
pinho e bétula. A luz dos candeeiros da manhã estava extinta e bruxuleante. Ela
sabia que a cozinha já estava aquecida e perfumada com o aroma de café e torradas
de canela.
Por fim, Christine não conseguiu resistir. Passou as pernas pela beirada da cama, na
intenção de ignorar o frio do quarto, enquanto procurava, à meia luz, o roupão que
tinha atirado na noite anterior sobre a cadeira ao lado da cama.
Ao sair do quarto amarrando o roupão na cintura, Christine pode ver a luz do fogo
aceso na sala de estar e um feixe de luz de amarelo pálido que passava pelo umbral
da cozinha. Dirigiu-se diretamente para lá, sabendo exatamente o que ia encontrar.
O pai estava sentado à mesa, e já tinha uma xícara de café fumegando na mão. A
mãe estava no grande fogão de ferro, mexendo uma panela com o irresistível
mingau quente. Uma pequena pilha de torradas era colocada no forno aquecido
enquanto o mingau era servido. O cão, com a cabeça sobre patas, estava esticado no
tapete junto à porta — para o caso de alguém resolver decidir que era seguro
arriscar um passeio na rua.
— Oh... vai ser um milagre se eu não tiver telhas para substituir depois dessa
tempestade. — comentou Wynn com ironia. — Vai ser como arrancar tudo até às
tábuas. Nem sei quanto tempo faz que não ouço um vento tão bravio.
Christine levou a xícara e o bule de café para a mesa. Encheu novamente a xícara
do pai, serviu a mãe e a si mesma, e o colocou de volta no fogão. De fato, o vento
estava bravio. Mas Christine sentia-se tão bem por estar segura e aquecida. De uma
forma estranha, sentia-se favorecida. Especial.
— Oh minha nossa... espero que eles não estejam sofrendo esta tempestade nas
pradarias. Detestaria pensar que Henry...
— Francamente. O Henry é totalmente capaz de tomar conta de si mesmo. Ele tem
um forte treinamento de sobrevivência e sabe...
Christine concordou com o pai, mas não conseguiu esconder o sorriso.
O papel tinha se invertido agora. O pai estava tentando assegurar a mãe sobre o
filho, não era mais o filho afirmando que o pai ficaria bem na tempestade.
Wynn estendeu uma mão tranquilizadora para segurar a de Elizabeth quando ela se
sentou na cadeira ao lado dele. Ela forçou um sorriso e um aceno, mas Christine
notou que, mais uma vez, a preocupação não deixava realmente os olhos dela. Os
dedos da mãe se entrelaçaram à mão que segurava a sua como se estivesse agarrada
à promessa que acabara de fazer.
— O Henry telefonou? — perguntou Christine, assumindo a cadeira no lado oposto
da pequena mesa.
— Não, desde a semana passada.
— Pensei que ele tinha dito que nos avisaria assim que ele e Amber decidissem a
data do casamento.
— Ele disse isso mesmo. Portanto, creio que ainda não decidiram.
Outra rajada de vento sacudiu o vidro da janela.
— Espero que não esperem que viajemos nisto.
O olhar de Christine dirigiu-se para a janela.
— A tempestade vai se extinguir num instante. É sempre assim — respondeu o pai.
Era verdade, as tempestades não duravam muito tempo. Mas quando uma
tempestade o segurava em seu abraço gelado, parecia que nunca pretendia deixá-lo
partir.
— Está mesmo nevando ou está apenas soprando o que caiu ontem à noite?—
Christine questionou.
Wynn riu.
— É difícil dizer. Levei o cachorro para passear mais cedo, e não se conseguia ver
dois palmos na frente do nariz. Uma parte era a escuridão, mas mesmo na luz das
janelas, continuava sem conseguir enxergar.
— Acho que não vou conseguir ir embora hoje — Christine murmurou num
suspiro.
Elizabeth olhou para cima, com os olhos arregalados.
— Você não estava planejando...
— Não, não de fato — Christine se apressou a tranquilizara mãe. — Mas tenho
mesmo que ir procurar um emprego. Não posso simplesmente ficar sentada aqui e...
— Pensei que tínhamos concordado que você ia esperar para ir depois do casamento
do Henry.
Christine deu de ombros.
— Sim, a senhora sugeriu isso. Mas parece que o Henry não está com muita pressa
para marcar a data. Não posso simplesmente ficar aqui sentada, sugando você e o
papai.
— Você não está nos sugando. Gostamos de tê-la conosco. Sua companhia
compensa muito mais do pouco que come. Tem sido maravilhoso ter você aqui,
ajudando a cuidar o jardim, a limpar a adega e juntar as folhas com o ancinho, e...
Christine sorriu conforme a lista continuava. Era bom ser útil em casa. Mas ela era
adulta agora. Já tinha experimentado o que significa ganhar o próprio sustento. Ela
precisava realmente se manter fora desse ninho aconchegante e confortável, e
cuidar de si mesma.
Embora a cozinha estivesse aquecida,, Christine sentiu um arrepio ao pensar em
voltar para a cidade. Ela realmente não era uma moça da cidade. Adorava a
abertura, a liberdade do vasto céu. A natureza, mesmo em sua ferocidade, era uma
com a sua alma.
A cidade parecia afogá-la na velocidade, na aglomeração e na humanidade
apressada.
— Será que o senhor Kingsley vai te dar uma referência?
Isto causou outro arrepio na alma de Christine. Será que o senhor Kingsley, o antigo
patrão, ainda estava zangado por ela ter se recusado a se casar com o filho? Em caso
afirmativo, será que ele estava sendo justo? Ela tinha sido uma funcionária
satisfatória. Não mais do que satisfatória. Ele tinha demonstrado preferência pelo
trabalho dela ao das outras secretárias do escritório. Certamente ele não
comprometeria uma futura posição por puro despeito.
Mas Christine não tinha certeza. Talvez fosse mais sensato não se arriscar a pedir ao
homem uma referência.
— Não sei — respondeu ela à mãe, com a voz baixa e tensa.
— Bem, conseguiu o primeiro emprego sem uma referência. Tenho certeza de que
pode fazer isso novamente.
O pai parecia bastante confiante de que Christine não teria problemas para
conseguir um emprego.
— Queria que houvesse algum lugar aqui... — Christine não terminou o
pensamento. O vento parecia incapaz de perturbar a ideia, deixando o pensamento
ali pairando, para que cada um ao redor da mesa refletisse no assunto mais uma vez.
Já tinham conversado antes, na tentativa de pensar em algum trabalho para
Christine na pequena cidade, para que não precisasse se afastar da família mais uma
vez. “Mesmo que você se mudasse para uma casa própria, perto daqui — embora
saiba que é bem-vinda aqui pelo tempo que desejar... — era o que dizia Elizabeth.
Mas todas as vezes essa tentativa fracassava. Parecia não haver nada para Christine
na cidadezinha ou nas cidadelas vizinhas.
— Talvez você devesse aceitar o convite da tia Mary, para se juntar a eles em
Calgary.
Elizabeth parecia estar totalmente absorta na tarefa de espalhar marmelada em sua
torrada.
— Mas é tão longe de casa.
— Pelo menos estaria com a família. E o trem...
— O trem é um pinga-pinga, para em todas as cidadezinhas ao longo do caminho.
Pensei que nunca chegaria a Calgary da última vez. Mesmo assim, eu ainda teria
que...
— Eu sei — Elizabeth suspirou. — É difícil. Continuaríamos separadas por muitos
quilómetros.
— Preciso ter meu próprio carro, isso sim. Assim eu poderia...
— Misericórdia! — Elizabeth disse, atirando as suas mãos para cima. — Assim eu
nunca mais ia conseguir pregar o olho. Com o seu próprio carro — sozinha —,
dirigindo por toda a zona rural. Ora, eu jamais teria paz de espírito.
— Oh, mãe!
— É verdade — Elizabeth se defendeu. — Já é ruim o bastante ter o Henry num
carro — e ele sendo um homem. Mas você... E se um pneu furasse ou...
— Eu o trocaria.
— Como você poderia... ?
— Com um macaco. Todos os carros têm estepes. Basta apenas... bem, eu viu um
homem trocar um uma vez. Não pareceu tão difícil. Qualquer mulher poderia trocar
um pneu.
Elizabeth ergueu os olhos para o teto e levantou as mãos novamente. Wynn riu. Lá
fora, a tempestade ainda bramia.
— A senhora preferia que eu saísse com uma matilha de cães?
A pergunta foi feita de forma provocativa, mas Elizabeth não estava disposta a
aceitar a brincadeira.
— Sim, acho que preferiria. Pelo menos os cães não ficam sem pneus ou param de
repente, ou... fervem e soltam vapor, ou ficam presos em buracos de lama ou em
fendas de neve.
Christine riu, mesmo contra sua vontade.
— Mas você costumava ficar preocupada com o pai quando ele estava fora com a
matilha.
A expressão de Elizabeth admitiu que tinha sido apanhada, mas ela se recusou a
ceder.
— Isso era diferente — argumentou ela.
— Diferente como?
— Bem, não era com os cães que eu me preocupava.
— Se preocupava com o quê, então?
— Algum... algum bêbado ou louco com uma faca... ou uma arma. Alguma...
alguma tempestade repentina, um rio ou lago com gelo derretendo, ou erosão.
Relâmpagos que iniciavam o fogo nas florestas. Esse tipo de coisas.
— Mamãe — anunciou Christine — acho que a senhora só é uma preocupada
profissional.
Mas ela disse essas palavras com amor, não em tom de condenação.
A resposta de Elizabeth foi se levantar e encher de novo as xícaras de café.
Christine observou Elizabeth com carinho. Ela sabia que a mãe tinha tentado ao
longo dos anos levar cada preocupação a Deus em oração. Não era difícil orar sobre
os seus medos e dúvidas. Mas deixar o fardo com Deus era, algumas vezes, algo
ainda mais difícil.
Elizabeth tinha dito uma vez a Christine que tinha por hábito manter suas
preocupações consigo mesma, remoendo a dificuldade em seu coração e mente,
uma e outra vez, aterrorizada, quando devia estar descansando em sua fé. Disse que
tinha tido anos de prática, e, no entanto... no entanto... ela se perguntava se estava
crescendo em seu nível de confiança — ou se estava ficando pior. Christine lhe deu
um abraço e disse à Elizabeth que não tinha uma resposta para isso, mas sabia que a
mãe tinha sido, ao longo dos anos, um exemplo, tanto para Henry quanto para ela,
de como era confiar profundamente em Deus.
Naquele momento, Wynn admitiu:
— Creio que também ia ficar bem preocupado, imaginando você sozinha nas
estradas, num automóvel. Essas máquinas de condução parecem... ora, parecem que
precisam da mão de um homem. Pelo menos aqui nesse território mais selvagem.
Christine olhou fixamente para o pai. Wynn nunca tinha sido desses homens que
determinam o que era ou não adequado para cada sexo. O rosto dela deve ter
mostrado a surpresa, pois Wynn apressou-se a prosseguir.
— Não que uma mulher não possa fazer essas coisas — trocar pneus, encher
radiadores, e tudo isso. Mas me parece que elas não deveriam serem obrigadas a
fazê-lo.. É um trabalho duro e sujo, nenhum pouco adequado para saias limpas e
mãos macias.
Antes que Christine pudesse responder, o pai continuou:
— É como esta guerra aqui.
A guerra. Sim, o Canadá estava agora em guerra. Christine sentiu outro arrepio. De
fato, não parecia real, e de fato, estava acontecendo há muitos quilômetros de
distância dali. Na verdade, em outro continente. No entanto, ainda era um fato, o
país estava agora oficialmente em guerra.
Christine, assim como muitos outros, ficaram chocados com os jornais do 1 de
setembro de 1939, que traziam as duras e assustadoras manchetes. A Alemanha
tinha invadido a Polônia. No dia seguinte, os jornais gritaram em negrito que a Grã-
Bretanha havia declarado guerra. O Canadá, um país independente, tinha seguido o
exemplo uma semana mais tarde. Jovens rapazes canadenses — e algumas mulheres
— foram instados a alistarem-se e a juntarem-se à causa. Christine se perguntara se
era isso que deveria fazer — defender seu país. Fazer parte das tropas que partiam
para deter o inimigo. Mas não se atrevera a mencionar essa ideia aos pais.
De repente, sentiu-se como se os ventos frios tivessem finalmente conseguido
encontrar seu caminho até a pequena cozinha. Christine viu a mãe tremer, e ela
inconscientemente apertou o agasalho mais de perto de si.
— Consigo compreender por que é que os jovens estão ansiosos por defender o país
— e tudo aquilo em que acreditamos. Se fosse mais jovem, provavelmente... — os
olhos de Wynn repousaram inadvertidamente na perna lesionada — eu ia querer ir.
Mas as moças? Isso simplesmente não me parece correto, de forma alguma. O lodo
e a lama das trincheiras não é o lugar certo para mulheres.
— Mas elas não estão no lodo e na lama — protestou Christine. — Estão servindo
nos dispensários, cantinas e escritórios. Elas...
— Os horrores da guerra ainda as atingem. Não há como fugir disto.
— Como é que nos metemos nesse... nesse assunto mórbido? — Christine
questionou. — Era um dia perfeitamente bom, e agora, aqui estamos nós, discutindo
a guerra.
Um dia perfeitamente bom? O vento uivava e levava tudo em seu caminho. A neve
açoitava e batia nas laterais da pequena cabana. A temperatura caíra perigosamente,
tornando o vento frio impróprio para homem ou animal. No entanto, o fogo ainda
crepitava, o café fumegava nas xícaras, os estômagos estavam cheios, os pés
aquecidos dentro de pantufas confortáveis. Estavam seguros em seu pequeno
mundo.
— Até que termine, este conflito vai afetar tudo o que nós pensemos ou façamos —
previu Wynn. Era um pensamento sóbrio. — Eu perdi outro jovem oficial ontem.
Ele disse que tinha que ir ou não seria capaz de viver consigo mesmo. Eu
compreendo. Me sentiria da mesma maneira.
Christine sabia que muitos jovens oficiais montados tinham essa opinião. Será que o
Henry também se sentia assim? Mas ele estava noivo, prestes a se casar com a
Amber. Será que ele se afastaria agora dela e do seu pequeno Danny? Será que
conseguiria?
— Sabia que John Rabo-de-Castor e Wynn Ermineskin se alistaram?
Christine não sabia. Os dois rapazes eram de famílias de aldeias que tinham
abraçado a fé cristã. Ambos tinham sido educados na pequena sala de aula da mãe e
fizeram a diferença para o seu povo. Os Ermineskins até deram o nome do seu filho
em homenagem ao Policial Montado que tanto admiravam. Wynn não era um nome
usado entre os Cree até que o pai ganhara a confiança deles. Christine sentiu o
aperto do medo no estômago.
Não era certo. Não era justo. Por que é que esse homem — esse tal de este Hitler
—, pensou que podia marchar e tomar conta do mundo? Por que? Por que é que
Deus não o abateu? Não era justo. Por que é que pessoas boas têm de morrer? Por
que é que os rapazes — e moças — eram chamados a dar as suas vidas para deter
este mal?
Christine se afastou da mesa.
— É melhor eu ir me vestir — disse ela como desculpa, mas na verdade desejava
apenas fugir. Para tentar fugir, de alguma forma, da presença da guerra longínqua,
que parecia suspensa no ar como um manto, que segurava o país inteiro — o mundo
inteiro — em seu aperto maléfico.
Alguém precisa detê-lo, Christine pensou enquanto fugia para o seu quarto.
Então, lhe sobreveio um novo pensamento.
É exatamente isso que eles estão tentando, todos os jovens, homens e mulheres, que
se apressaram a alistar-se. Foram oferecer-se a si mesmos — as suas próprias
vidas se necessário — para tentar deter esta onda de maldade do outro lado do
oceano.
Por que pensava que podia simplesmente ficar em casa e desfrutar o mundo como
ela o conhecera? Será que não devia ir também? Será que sua vida era mais preciosa
do que as outras que já tinham partido? E ainda...?
JANETTE OKE
Quando chegou ao quarto, não se vestiu como dissera, mas atirou-se de barriga para
baixo na cama. O arrepio no coração era muito maior do que o frio do quarto não
aquecido.
Deus , ela clamou, quantos outros estão passando por isso... por essa angústia?
Como é que se sabe se é correto ir... ou ficar? Eu quero orar — implorar — por
segurança. Que o Senhor mantenha aqui aqueles que amo, protegidos do mal. Mas
será que é justo? Será que é justo? Não sei. Eu apenas não sei. Quem, então, irá?
Quem irá deter essa loucura? Esse desejo de poder? A perversidade da guerra.
Não está certo.
Mesmo enquanto orava, Christine sabia que o mundo nunca tinha sido justo. Ou
correto. Não, desde o dia em que Adão e Eva tinham provado do fruto do jardim e
soltado toda a fúria, ódio e maldade do maligno. Sempre houve aqueles que lutaram
contra ele. Sempre houve aqueles que estavam dispostos a pagar o preço da
resistência. De fato, não era justo — mas era assim. E ela — assim como todos os
outros serem humanos que caminharam sobre a terra — precisavam decidir quando
e onde deveriam se posicionar.
Capítulo 2
C
omo o pai tinha previsto, a nevasca logo passou, deixando para trás um mundo
branco reluzente. Uma enorme quantidade de neve estava amontoada nas laterais da
cabana e bloqueava as trilhas que iam até o poço e o celeiro, onde ficava
armazenada a madeira para as lareiras. O brilho do
sol refletindo as massas de cristais brancos tornava difícil encarar o ar livre sem
estreitar os olhos. Christine, empacotada com roupas quentes por insistência da
mãe, trabalhou duro para desfazer os montes de neve, abrindo um caminho entre as
construções e as fontes de abastecimento. Era bom estar ao ar livre. Era bom ter que
usar a força e os músculos contra uma força da natureza a que podia realmente
conquistar. Pá por pá, ela ganhava a sua própria guerra. Gradualmente, o tumulto
interior também diminuía, embora ela soubesse que estava muito longe de encontrar
a resposta para os conflitos em seu coração e mente.
À sua volta, a cão passeava pelos montes de neve, saltando e pulando, prestes a
espalhar brancura fofa como se fosse uma espessa espuma. Um instante depois, se
deitava e rolava, enfiando as costas e a cabeça o mais fundo possível nos montes,
mexendo-se e contorcendo-se como se fosse se enterrar no gelo. Christine não pôde
deixar de rir das travessuras, como se fosse uma criança brincando.
— Henry pediu que Christine fosse mais cedo e Mary convidou você para ficar lá.
— Para uma moça que não gosta da cidade, parece que você consegue direitinho
inventar coisas para fazer por lá — brincou Wynn.
Christine enrubesceu. Não era sua intenção parecer tão entusiasmada.
— Quando iríamos viajar? — Elizabeth pareceu cogitar a ideia.
— No fim do mês, eu acho — sugeriu Wynn. — Eu poderia me juntar a você alguns
dias antes do Natal, e ficaríamos até o Ano Novo. Isso vai dar um mês inteiro de
viagem.
— Não sei... — Elizabeth começou de novo. — As estradas podem ser tão
arriscadas nessa época do ano.
— Você vai ter que viajar sobre elas uma hora ou outra, se pretende estar presente
no casamento do Henry — Wynn a fez recordar.
— Suponho que eu...
— Claro que pode.
Christine sentiu vontade de atirar o chapéu para o ar, se estivesse usando um. Seria
bom fazer algo diferente, andar por aí, em vez de ficar confinada sem ter muito que
fazer dia após dia.
A partir daí, os dias foram tomados por planos e preparativos para a viagem. Para
Christine parecia que Elizabeth passava um tempo fora do comum cozinhando,
assando e armazenando todo o tipo de coisas para Wynn comer enquanto estivesse
sozinho.
— Mamãe, o pai nunca vai conseguir comer tudo isto — ela dizia de vez em
quando, mas suas palavras de nada adiantaram para tranquilizar Elizabeth. Mais e
mais latas, jarras e recipientes eram levados para a “cozinha de trás”, como
Elizabeth chamava o pequeno aposento atrás da cabana. Nos meses de inverno, tudo
o que era colocado na cozinha de trás ficava congelado em questão de minutos. Era
perfeito para armazenar artigos que precisavam de ser refrigerados, mas nada bom
para ser utilizado como uma simples câmara fria.
Agora Elizabeth preparava refeições em tamanho de porções e guardava em
recipientes onde os ratos à procura de calor ou os esquilos saqueadores não
conseguiam alcançar. Wynn só tinha de tirar, descongelar, e aquecer as porções para
o jantar. Tudo era rotulado com instruções cuidadosas. “Retirar da cozinha de trás
três horas antes de ser usado”. Ou, “Aquecer em chaleira aberta até ferver”, ou
“Não se esqueça de remover a embalagem antes de a colocar a quente forno”.
Christine sorria frequentemente, mas não dizia nada. A mãe tinha que estar
tranquila de que o pai estaria bem alimentado em sua ausência.
Finalmente, a preparação e o congelamento estavam terminados, e Elizabeth voltou
sua atenção para a viagem.
— Acha que eu deveria usar o meu tailleur cinza ou o azul-marinho?
— Na viagem de trem?
— Oh, não. No trem vou usar o marrom. Digo no casamento.
— Não vai mandar fazer um novo?
— Eu? Meu Deus, não. Eu nem tinha pensado nisso. Não há nada de errado com o
cinza — ou com o azul-marinho. Qualquer um dos dois seria perfeitamente
adequado.
Christine assentiu. Qualquer um dos dois seria adequado.
— Por que não leva os dois e depois decide em Calgary? — sugeriu Christine.
— Mas detesto ter que embalar os dois.
— Pode ser que você precise dos dois.
— Pra quê?
— Bem... se formos passear de vez em quando. Para jantar — ou para um concerto.
Além disso, temos culto na igreja todos os domingos. Quer ter apenas uma roupa
para usar o tempo todo?
— Não, acho que não. Mas parece bastante extravagante usar dois em tão pouco
tempo.
Foi um lembrete para Christine de quanto tempo se passado desde a última vez que
a sua mãe tinha visitado a cidade.
— Que mais pretende levar? — perguntou Christine em vez de continuar a
argumentar.
— A minha saia preta e a listrada azul marinho, além de algumas blusas e o meu
casaco. Então pensei em levar o meu vestido de crepe. O meu mais novo.
Christine concordou. O crepe “mais novo” de Elizabeth já tinha quatro anos.
— Isso me parece bem — respondeu ela. — Mas acho que você talvez seja uma boa
levar os dois tailleurs.
— Creio que você tem razão.
Elizabeth ainda parecia relutante.
Finalmente chegou o dia em que iam para Edmonton, para tomar o trem para sul.
Christine sabia que nos últimos dias os olhos da mãe estiveram focados no céu.
Como a própria Christine, ela sabia que outra tempestade de inverno poderia
facilmente estragar seus planos. Mas embora tenha ocorrido uma ocasional queda
de neve na estrada, não tinha sido suficiente para atrasar a viagem. O vento não
soprava com força suficiente para levantar mais do que um leve nevoeiro correndo
pelo pátio.
Os últimos momentos de Elizabeth em casa foram passados informando Wynn onde
encontrar o que e como lidar com o desobediente fogão de cozinha.
— O medidor do forno não funciona corretamente — ela o informou. — Por isso,
não conte com ele. Deve registar quinhentos graus se desejar que o calor seja de
cinquenta e três.
— Eu vou me virar bem — Wynn pacientemente assegurou a esposa uma vez mais.
— Tem comida suficiente para me sustentar até o verão, e eu agradeço por cada
delicioso pedaço. Quando chegar o casamento não vou conseguir nem entrar no
meu uniforme oficial.
— Até parece! — retorquiu Elizabeth.
Wynn nunca tinha ganhado uma única grama em todos os anos de casamento. Era
ela quem tinha que vigiar o seu peso.
Depois dos abraços e beijos de despedida e muitas promessas, elas entraram na
cabina da picape ao lado do condutor que fazia viagens regulares a Edmonton, e
com frequência aceitava levar passageiros. Elizabeth esticou o pescoço para ver
enquanto se afastavam e acenou uma última vez quando a picape virou para entrar
na autoestrada. Christine esperava fervorosamente que a mãe não ficasse chorosa.
Mas assim que entraram na autoestrada, ela endireitou as costas, suavizou uma mão
amassada com a outra, e virou-se para Christine com um sorriso. — Essa é uma
verdadeira aventura, não é mesmo?
Christine concordou.
— Vamos passar a noite naquele hotel em Edmonton.
— O Rei Eduardo?
— Sim, o Rei Eduardo. Seu pai fez as reservas.
Christine concordou novamente.
— Faz não sei quanto tempo que não fico hospedada num hotel. — Sente falta
disso?
— Sentir falta? Claro que não. — Elizabeth parou um momento. — Ainda assim...
será bem divertido.
O senhor Carter mudou a picape da madeira serrada para a primeira marcha.
— Sabe o que estou mais ansiosa para desfrutar? — Elizabeth sussurrou para
Christine.
Christine lançou um olhar de soslaio para a mãe, cujos olhos brilhavam com a
empolgação por algum prazer antecipado.
— O salão de jantar? Comer algo que não precisou cozinhar?
— Isso será muito bom, admito. Acho que vou pedir algo totalmente exótico
Elizabeth estava sorrindo agora. Até mesmo imaginar a aventura que tinham pela
frente estava se tornando divertido.
— Tipo o que?
perguntou Christine.
— Ora, o que você quiser.
Christine riu. Ia mesmo ser divertido. Estava tão contente que o pai tenha
— Bem-vindas ao Rei Eduardo. Por aqui, senhoras — disse ele com um pouco mais
de entusiasmo do que devia.
Ele insistiu em ficar em cima das duas malas, enquanto Elizabeth assinava o nome
no registo, e então o homem as conduziu novamente. O quarto ficava no quinto
andar, e Christine ia gostar de subir pelas escadas ricamente acarpetadas, apenas
para contemplar todos os corredores no caminho. Mas o homem as conduziu para
um elevador e as fez entrar.
— Então, o que traz vocês à cidade? Compras de Natal?
Os olhos dele estavam postos em Christine, mas as palavras pareciam ser dirigidas
para Elizabeth. Christine pensou que ele estava sendo um pouco ousado, por
perguntar o que estavam fazendo ali. Mas Elizabeth respondeu sem reservas:
— Só paramos aqui para passar a noite. Viajamos para Calgary amanhã. Temos
família por lá. Vamos passar algum tempo com eles antes de irmos para o
casamento do meu filho.
Francamente, mãe, pensou a preocupada Christine. Ele não tem por que saber toda a
nossa história.
— Isso é bom — respondeu o rapaz, mas seus olhos ainda estavam em Christine.
Ela percebeu que estava ruborizada. Por que ele tinha que ficar encarando-a tão
abertamente? — Só esta noite? — Desta vez ele estava definitivamente falando com
Christine. — Saio dentro de uma hora, se quiserem assistir algum espetáculo... ou
algo assim.
Christine não podia acreditar na ousadia do rapaz. Ela nem sequer se dignou a
responder. Apenas lançou um olhar de rejeição.
O rapaz deu de ombros. Christine presumiu que ele já tinha sido rejeitado antes.
O elevador bateu suavemente até parar, e a porta abriu, permitindo que elas
fugissem. O jovem conseguiu sacudir as chaves dos quartos com as mãos cheias de
bagagem. Ele logo abriu a porta e, com um aceno da mão cheia de habilidade, fez
que elas entrassem.
— A sala de jantar fica no primeiro andar à esquerda. O jantar é servido das
dezessete às vinte horas, todas as noites. Começam a servir o café da manhã às seis.
A hora de almoço...
— Não estaremos aqui durante a hora de almoço — Elizabeth o interrompeu. —
Obrigada por... nos indicar nosso quarto.
Elizabeth deixou cair as moedas na mão enluvada dele e tomou posse da porta
aberta. O rapaz fez outra reverência para sair, e ela fechou a porta o mais rápido
possível.
— Que malandro mais atrevido, não é? — disse ela ao se virar. — Imagina, ele
convidar você para sair mesmo sem te conhecer.
Christine abanou a cabeça e cruzou o aposento para colocar o casaco sobre uma
cadeira.
— Bem, acho que teria sido uma forma de passar o tempo enquanto você fica
submersa na banheira a noite toda — disse Christine rindo
Elizabeth atirou uma luva na filha.
— Por falar em atrevimento — ela disse, abanando a cabeça. — Você é quase um
adversário à altura dele.
Mãe e filha riram.
O restaurante não pôde matar a vontade de Elizabeth de comer ostras. — É a guerra
— argumentou o garçom que usava um terno escuro. — Não conseguimos mais
trazer essas iguarias nos trens. Parece que os vagões são todos utilizados para o
transporte de tropas e mantimentos neste momento.
Christine se perguntou se era a verdade ou uma mentira cabeluda para desculparem
a sua falha. Elizabeth mascarou o desapontamento e pediu o pato em vez de ostras.
Para compensar, disse a Christine, ela pediu pudim de cereja para sobremesa e
bebeu quatro xícaras do forte café saboroso
— Não vou conseguir dormir essa noite — disse ela parecendo uma menina.
Christine tinha a certeza de nunca ter visto a sua mãe tão... tão pouco maternal. Tão
relaxada e divertida.
— Ficar na banheira de molho vai te deixar relaxada.
— Sim, sim, vai mesmo. Só espero não adormecer ali mesmo. Jamais conseguiria
levar a mim mesma para a cama.
— Eu ia ficar acrescentando um pouco mais de água quente de vez em quando.
Elas riram da brincadeira e se levantaram-se da mesa.
— Vamos subir a pé — sugeriu Christine. — Quero ver como mobiliaram e
decoraram todos os salões.
— Estou muito cheia para caminhar — protestou Elizabeth. — Nunca ia conseguir
subir os cinco andares.
— Pode subir de elevador, mamãe. Nos encontramos no quarto.
— Mas só temos uma chave.
— Pode levá-la. Você vai chegar lá primeiro. Eu bato na porta.
Elizabeth concordou e dirigiu-se para o elevador. Christine começou a longa
caminhada pelos cinco lances de escadas. Ela não se apressou, mas desfrutou de
cada novo andar, com o mobiliário rico e fino, além das obras de arte. Pesadas
cortinas de veludo agraciavam as amplas janelas no final de cada corredor e
candelabros cintilantes lançavam prismas de luz sobre o tapete cor de vinho
profundo.
Foi só quando chegou no quarto andar que Christine viu alguém, um homem e uma
mulher, saindo do quarto. Parecia que estavam discutindo e rapidamente abafaram
as vozes quando Christine se aproximou. A mulher disparou um olhar furioso na
direção de Christine, mas o homem evitou o contacto visual, enquanto se
atrapalhava com a chave na fechadura. Christine não se deu o trabalho de saudá-los.
Ela se apressou a passar, olhando apenas para a pintura da Inglaterra rural que
estava pendurada perto da porta do elevador. Moveu-se em direção ao sinal de saída
que anunciava o próximo lance de escadas e prosseguiu para o quinto andar. Mas
sua pequena jornada tinha sido atrapalhada pela hostilidade do casal um com o
outro, e também em relação a ela. A mãe respondeu a porta ao ouvir a batida.
— Aí está você. Estava começando a me preocupar.
— Demorei um pouco. Havia tantas coisas para ver. Nunca vi pinturas tão
magníficas.
— Talvez devêssemos descer pela escada quando formos tomar café amanhã. É
muito mais fácil descer do que subir.
Christine fez que sim. Ela esperava que não cruzassem com aquele casal
novamente. Ela tinha a sensação de que o estado de espírito deles não estaria
melhor com a chegada de um novo dia.
— Estou surpresa por você não estar naquela banheira — observou Christine.
— Tive de esperar para abrir a porta para você. Lembra?
— Desculpe.
— Há tempo de sobra. Temos a noite toda só para nós.
A noite inteira. Christine se perguntou se poderia ficar um pouco entediada. Ela não
tinha trazido nem um livro ou algum trabalho manual. E com a mãe enterrada nos
sais da banheira, ia ter muito pouco a fazer. Pensou no rapaz ousado do elevador, e
suas bochechas coraram mais uma vez.
Ela jamais teria considerado sair com um estranho, mas ia ser terrivelmente difícil
pensar numa forma de ocupar o tempo nesta luxuosa prisão.
— Por que você não telefona para algum dos seus velhos amigos, querida? —
Elizabeth perguntou enquanto se dirigia para o banheiro. — Eu vi um telefone ali
mesmo junto àquela porta verde, à esquerda no lobby.
Meus velhos amigos, pensou Christine. Era de se supor que, depois de passar todos
aqueles meses na cidade, ela teria alguns velhos amigos para quem telefonar. Mas
não conseguia pensar em ninguém. A verdade é que os seus dias e noites na cidade
tinham sido preenchidos pelo Boyd, o filho do patrão que tinha capturado o seu
coração. Ela não conseguia pensar nem em alguém do antigo grupo de jovens da
igreja, que ainda pudesse estar por perto e quisesse saber notícias dela.
— Creio que vou apenas descansar — disse ela à mãe. — Posso até ir rapidinho ao
saguão e pegar o jornal do dia.
— Um jornal. Isso seria ótimo. Faz não sei quanto tempo que não leio as notícias.
Christine pegou a chave do quarto e ficou girando na mão sem parar. Parecia que o
jornal era de fato sua única possibilidade de entretenimento.
Mas o jornal pouco fez para animar a sua noite. As manchetes alardeavam as
notícias do conflito no estrangeiro. Fotografias de sorridentes rapazes e moças
fardados, acenando o sinal de vitória, preenchiam suas páginas. Havia até uma
coluna de nomes daqueles que tinham “zarpado”, mandados para a Inglaterra para
se prepararem melhor para a batalha que se avizinhava. Estes que até pouco tempo
atrás eram jovens despreocupados, cheios de esperanças brilhantes para o amanhã,
poderiam no futuro jazer em algum túmulo estrangeiro — se é que teriam algum
túmulo.
Christine pensou em Boyd. Ele tinha entrado para a Força Aérea. Será que ele
estava bem? Será que ela ia saber se algo acontecesse com ele? Será que ia ser
informada? Não, provavelmente não. Ela não tinha ideia de onde ele estava, se
estava mesmo vivo. Quando percebeu, estava sussurrando outra oração por ele.
Do banheiro, podia ouvir o som de água corrente. A mãe estava novamente
aquecendo a banheira. Christine atirou o jornal na cadeira mais próxima. As
notícias só serviram para deprimi-la. Já tinha visto o bastante. Com todo o coração
orou para que Henry não decidisse se alistar.
Certamente ele já tinha tomado essa decisão. Ele não deixaria a Amber e o Danny.
Mas e ela? Será que tinha o direito de ficar para trás, enquanto outros jovens davam
suas vidas por causa da liberdade? Não parecia correto. Ela não tinha mais razões
para viver do que aqueles jovens. Ela estava pronta para morrer, caso a morte fosse
necessária. Sabia que estava preparada para a eternidade. Não porque era boa ou
favorecida, mas porque tinha feito as pazes com Deus. No entanto, não ansiava por
ter sua vida encurtada.
Ela odiava a guerra. Odiava o egoísmo, a ganância, que fazia que um país, uma
pessoa, se sentisse superior a outro. Não estava certo. Alguém tinha de ajudar a
parar esta guerra terrível.
Mas será que ela devia se envolver? Era a guerra dela? Mas também não era a deles
— da longa lista de voluntários que faziam parte da próxima onda de novos recrutas
a serem “enviados”.
JANETTE OKE
Ela podia ouvir a mãe se mexer no aposento ao lado. Certamente tinha terminado o
longo molho na banheira e logo estaria ali. Christine respirou fundo para ajudar a
acalmar os seus sentimentos de agitação e as perguntas. Esperava que o semblante
não a entregasse. A noite delas não seria agradável se ela não se controlasse.
uando apanharam o trem para Calgary, na manhã seguinte, Christine pensou que
nunca tinha visto a mãe tão entusiasmada.
Elizabeth conversou sem parar sobre Jon e Mary, e o tempo que passou
com eles quando veio pela primeira vez para o oeste para lecionar. Recordou cada
um dos filhos deles: William, Sarah, Kathleen e Lisbeth; suas falas infantis
divertidas e anedotas engraçadas.
Christine arriscou.
— Pelo que dizia antes, sempre pensei que a senhora tinha sido bem infeliz.
— Infeliz?
A palavra pareceu ter chocado Elizabeth.
— Sim. Ficava se questionando quem era o papai e se ele gostava de você de
alguma maneira.
Para surpresa de Christine, as bochechas de Elizabeth coraram.
— Ora, ele me manteve em suspense — admitiu ela. — Eu pensava que ele era
marido da Lydia. Isso me incomodava porque ele... parecia... devotar certa atenção
a mim também.
— Mas você queria a atenção dele.
— Não, se ele fosse um homem casado não ia querer.
Elizabeth foi enfática.
— Mas você flertou com ele... só um bocadinho.
Christine não pôde deixar de prolongar um pouco mais o evidente desconforto da
mãe. O rosto de Elizabeth estava agora cor de rosa.
— Eu não flertei. Bem, eu... queria que ele reparasse em mim... no início. Mas
quando... quando pensei que ele era casado com a Lydia, estou certa de que não fiz
nada... nada que lhe chamasse a atenção.
Elizabeth baixou os olhos e fingiu endireitar as saias que já estavam lisas. Christine
não conseguia esconder o sorriso. Ela nunca tinha visto a mãe tão perturbada.
Estendeu a mão e tomou a mão de Elizabeth.
— Mamã — disse ela —, se eu tivesse visto o papai, creio que talvez não tivesse
sido tão honrada quanto você. Eu poderia ter flertado com ele... mesmo se achasse
que ele era um homem casado. O papai é tão... tão bonito... e vestido de uniforme...
— Não teria não! — declarou Elizabeth, levantando o queixo. — Nós a criamos
melhor que isso.
Ela deve ter reconhecido a provocação nos olhos de Christine e percebeu que tinha
caído na brincadeira. Deu um aperto na mão que tinha segura na sua.
— Sua bobinha — disse ela com uma risadinha. Não havia nenhuma censura em
seu tom de voz ou palavras.
Christine encostou-se de novo no assento.
— Mas me conta — Christine provocou. — Como era viver sozinha na casinha da
professora no campo? Era solitário?
A cor abandonou o rosto de Elizabeth, e em seu lugar, Christine pôde ver um
semblante reflexivo, olhando para os anos passados com carinho.
— Solitária? Suponho que sim... de certa maneira... algumas vezes. Mas não, não
exatamente. Sentia saudades da minha família. Muito, muito mesmo no início. Eu
nunca tinha ficado fora de casa antes. Mas... mesmo assim, eu sempre tive esta
estranha e... e muito real sensação de paz, um sentimento de que eu estava onde
devia estar. Eu me sentava naquela poltrona velha e esburacada, e bebia chá na
minha xícara de porcelana no final do dia, e olhava as carinhas das queridas
crianças que tinha o privilégio de ensinar e...
Elizabeth parou de falar. Um olhar pensativo fez que seus olhos brilhassem com
lágrimas que insistiam em cair.
— Suponho que agora todos eles são adultos com famílias... e lutas... e
recompensas próprias.
Christine assentiu silenciosamente com a cabeça.
— Mas eu... ainda gosto de pensar que, de alguma forma... de alguma forma eu fiz a
diferença na vida deles. O pouco que pude ensinar, o amor que não pude deixar de
lhes demonstrar... gosto de pensar que ajudou de alguma forma a... moldar as
pessoas que se tornaram.
— Tenho a certeza que sim.
— As coisas mudam muito ao longo dos anos. Acho que... acho que eu estava com
medo de... bem... descobrir algo que arruinasse minhas preciosas memórias. As
memórias são muito frágeis, sabe. Às vezes sinto que é melhor deixá-las sem serem
perturbadas.
— Quando o seu pai foi ferido e pensamos que íamos perdê-lo, aconteceu algo
dentro de mim. Antes... antes, quando eu tinha medo... ou ficava perturbada, eu
sempre tinha ele. Seu pai era a minha força, o meu conforto. Contanto que tivesse
isso, poderia continuar. Mas quando pensei que poderia perdê-lo, percebi que não
tinha força em mim mesma. Não mesmo. Se eu o perdesse...
civilizado. Não acho que seu pai quisesse realmente vir. Ele teria ficado ali mesmo,
com a perna ferida e tudo, caminhado por quilômetros e acampado no frio e se
expondo, para ser atacado por outros doidos. Eu... eu acho que o coração dele ainda
está no norte. Se voltássemos...
Christine falou com tal veemência que as duas se surpreenderam. — Você está
zangada comigo? — Elizabeth perguntou suavemente. Christine agitou-se no
assento de veludo desgastado, com a súbita explosão
agora controlada.
— Não estou zangada. Só... só um pouco chateada, eu acho. Eu amo o
norte. Você... não tirou só o papai de lá, mas nós também... Henry e eu. Isso...
isso simplesmente não parece justo.
Elizabeth remexia as luvas no colo.
— Acho que foi o que fiz — ela admitiu. — E peço desculpas. Mas não...
não, eu não lamento. Era a hora de saírem de lá. Vocês dois precisavam...
aprender sobre o resto do mundo. Precisavam ver e ouvir coisas e... e crescer. E
o seu pai, ele precisava dormir numa cama à noite. Poder ter horas regulares de
trabalho. Andar por aí sem precisar ficar olhando para trás.
— Andar sem “ficar olhando para trás”? — Christine ficou agitada ao
retrucar. — Mas ele era amado, e respeitado.
— Pela maioria, sim. Mas havia sempre alguns — aqueles que tinham
violado a lei e eram obrigados a pagar por ela —, os que esperavam oportunidades
para... bem, digamos que o seu pai tinha de ser muito vigilante quando estava
na trilha.
— Vocês nunca contaram isso para a gente...
— Claro que não. Não queríamos deixá-los assustados. Mas essa é uma
parte da vida de um Policial Montado.
— Faz parte da vida do Henry...?
— Se ele fez inimigos, sim.
— Mas isso não é justo.
— A vida nunca é justa. O melhor que alguém pode esperar é que lhe seja
dada uma oportunidade.
Christine tinha muito a ponderar. Era a primeira vez que Elizabeth tinha
realmente aberto o seu coração a ela — não simplesmente como filha, mas
agora como amiga. No passado, ela sempre tinha sido a protetora. A guardiã.
Agora ela tinha se exposto como vulnerável. Carente. Humana. Christine não
tinha a certeza de como responder.
Ela tinha mais uma pergunta que devia fazer.
— O papai tinha... o papai tinha medo?
— Medo? Razoavelmente sim. Ele sempre foi cauteloso. Às vezes ele se
preocupava de que algo pudesse acontecer a ele, e eu... eu ficaria abandonada,
sem meios de sair do norte, sem ter para onde ir. Nós conversávamos sobre isso.
Ele... guardou um pouco de dinheiro — não muito, mas um pouco. Ele disse
que se acontecesse alguma coisa, eu devia usar esse dinheiro para procurar uma
casinha, em alguma cidade segura. Ele disse...
Mas Christine não queria mais ouvir. Era demais para ela. Todos esses
pensamentos mórbidos em um dia tão brilhante. Ela estremeceu e interrompeu
a mãe.
— Veja! Há rastros por todo o campo. Os veados devem ter jogado
bandeira ou algo parecido.
Elizabeth entendeu.
— Nós os perdemos — lamentou ela.
O feitiço fora quebrado. Christine inclinou a cabeça para trás contra o
assento alto e fechou os olhos. Suas emoções ainda estavam tempestuosas.
Tantas coisas tinham acontecido na sua família, coisas sobre as quais ela era
completamente ignorante. Tantas batalhas travadas e ganhadas — ou perdidas.
Tantas lutas, com conflitos internos e externos. Quando criança, ela assumira que os
adultos tinham tudo bem pensado, que estavam encarregados de seu mundo, que
não havia nada que perturbasse o seu sono ou lhes causasse alarme. Agora estavam
lhe dizendo que nunca houve um lugar no mundo livre de preocupações ou
desafios? Isso não era o que Christine esperava ouvir naquele momento.
Tanto Jon como Mary estavam esperando por elas na estação de Calgary.
— Vejo que a cidade voltou a crescer — disse Elizabeth ao olhar para fora da janela
do carro.
— Desenvolvida. Crescendo. Cada vez que a gente se vira, tem um novo o edifício
sendo erguido.
O Jonathan parecia muito satisfeito e orgulhoso da sua cidade.
— Está crescendo depressa demais pro meu gosto — se intrometeu Mary. — Nós
não conseguimos acompanhar as coisas.
— Vamos recuperar o atraso — respondeu Jonathan confortavelmente.
Christine não podia deixar de comparar Calgary com a Edmonton que ela conhecia.
Era verdade que Calgary estava crescendo rapidamente. Percebeu vários edifícios
novos desde o tempo em que tinha passado um tempo com o tio Jon e a tia Mary,
enquanto fazia o curso de secretariado. Mas se tivesse que escolher em qual das
cidades faria sua casa, Christine não tinha certeza qual delas seria. As duas cidades
eram muito diferentes — tanto na aparência quanto na atmosfera.
— Ah, você pintou casa! — Elizabeth exclamou enquanto paravam na entrada da
garagem.
— Estava na hora de mudar. Tinha a mesma guarnição azul-esverdeada há mais de
trinta anos.
— Eu gostei — disse Elizabeth e rapidamente completou: — Esta também tem bom
aspecto. Uma cor tão agradável e fresca.
— É muito popular atualmente — disse Mary. — Suponho que, como todo o resto,
vai precisar de algo novo no futuro. Sem dúvida, em breve será datado. Mas por
agora...
Ela deu de ombros.
— Sabe o que dizem: ‘A única coisa constante é a mudança’. Ou algo com esse
efeito.
Exceto no Norte, pensou Christine. No norte, as coisas têm permanecido as mesmas
de geração em geração. E irão continuar na mesma. É disso que eu gosto no norte.
Bem, pelo menos, essa é uma das coisas que me agradam.
Elas descarregaram as malas e conheceram os quartos, depois foram convidadas
para uma refrescante xícara de chá e pães recém assados. Não havia fogo crepitando
na lareira.
— Não precisamos mesmo dela agora, porque o aquecimento central é muito
eficiente — explicou Mary, com praticidade. — Só a acendemos se nos sentimos
emotivos. O aquecimento faz muito menos bagunça.
Mas Christine sentia falta da dança das chamas e da crepitação dos troncos em
chamas. O aquecimento central não poderia jamais preencher essa necessidade.
— Então o nosso Henry vai se casar — comentou Mary. — Que maravilha! Ele
parou por aqui e nos apresentou a futura noiva. Ela parece ser muito querida. E
aquele rapazinho, não é um amor? Você deve estar emocionada, Elizabeth.
Christine foi envolvida pela conversa. Era evidente que as mulheres tinham muito
que falar e estavam determinadas a desfrutar de horas e horas na companhia uma da
outra. Será que ela precisava ficar ali sentada ouvindo, ou poderia colocar a xícara
vazia no aparador com um sorriso e se retirar para o quarto? Ou quem sabe, pudesse
dizer que precisava de um pouco de exercício. Mas Christine se sentia satisfeita.
Ociosa. Por fim, mexeu-se até ficar numa posição confortável na cadeira macia e
bem estofada, e se acomodou para desfrutar do subir e descer das vozes familiares.
O jantar daquela noite foi bastante ruidoso. A família estava toda aglomerada na
mesa. Dois cadeirões e seus pequenos ocupantes tomavam o seu lugar entre os pais
nas duas extremidades da mesa. A menina tinha sido chamada Elizabeth, em
homenagem à sua tia-avó, um fato encantou e agradou a Elizabeth.
O rapazinho, dois meses mais novo que a prima, se chamava Matthew. Ele tinha
grandes olhos castanhos e cílios grossos. Christine estava certa de que jamais viu
um bebê tão bonito. Outros pequeninos estavam sentados em listas telefónicas
empilhadas ou pequenas caixas laranja colocadas em cadeiras de sala de jantar. Os
mais velhos — de sete e dez anos de idade — puderam se sentar em cadeiras de
tamanho adulto. O menino era um pouco travesso, mas a menina era bastante
educada e cheia de boas maneiras. Christine lembrava do tempo que ela passou na
cidade, mas eles tinham mudado muito ao longo dos anos desde que ela partiu. Eles
ou não se lembravam bem dela ou fingiam que não se lembravam. De qualquer
modo, responderam apenas educadamente aos seus cumprimentos.
Pensando no pai, Christine sentiu uma pontada de tristeza. Ela já sentia falta dele.
Como será que estava se virando sozinho? Certamente não tinha como passar fome
com toda a comida que a mãe tinha deixado para ele. Será que se sentia solitário?
Será que sentia falta da agitação da esposa na cozinha? A conversa diante do fogo
numa noite?
Talvez o papai goste de ter alguns momentos de sossego, para ordenar seus
pensamentos, concluiu Christine. Todos nós precisamos de momentos tranquilos de
vez em quando.
Mas todos precisamos de comunicação também, prosseguiu em seu monólogo. Eu
jamais teria imaginado que a mamãe sentisse qualquer uma das coisas que ela
confidenciou hoje. Daqui em diante, devo ser mais... aberta, mais preparada para
ouvir, para perceber as necessidades dela.
Era certamente algo de novo a pensar.
Capítulo 5
O
trouxe Christine de volta aos dias que antecediam ao casamento. O novo tailleur de
Christine foi cuidadosamente dobrado em tecido e embalado para a viagem. Ela
tinha finalmente escolhido uma peça de azul marinho suave, tendo chegado à
conclusão que a sarja vermelha da Polícia Montada não era uma cor fácil de
combinar.
Mas ela estava contente com a estampa que tinham encontrado e mais que satisfeita
com a habilidade de costureira da sua mãe. O tailleur lhe caía à perfeição, até
mesmo ela podia apreciar esse fato. Ela esperava que Amber ficasse igualmente
satisfeita com o traje.
Uma coisa tinha desanimado a sua visita à movimentada cidade. Tinha a impressão
de que, para onde quer que se virasse, via jovens completamente uniformizados.
Jamais imaginara que tantos jovens do seu país estivessem dispostos a ir para a
guerra. Pareciam estar todos aglomerados na cidade, gritando uns para os outros
jovialmente em cada esquina, juntando-se em paradas de ônibus, rindo e
acotovelando-se nos cantos dos refeitórios.
— Dava para pensar que era uma travessura, em vez de uma guerra que precisa ser
combatida — Christine ouviu uma matrona insatisfeita exclamar.
Q UANDO chega o AMANHÃ
E era verdade. Os rapazes e moças pareciam estar celebrando em vez de se
prepararem para uma perigosa incumbência que poderia lhes custar a vida. Pode ser
que tenham tido momentos mais sóbrios, em que se depararam com a enormidade
do que estava em jogo, mas pareciam tomar muito cuidado para deixar transparecer.
Talvez seja por isso, Christine se perguntou. Eles estão tentando manter o ânimo
para o que está por vir.
“Senhor, mostra-me como queres que eu me envolva. Não me deixe entrar com os
meus próprios planos. Mostra-me, Senhor.”
Lembretes. Havia lembretes por todos os lados. Desde placas pedindo a população a
comprar títulos de guerra, a listas publicadas em jornais locais, até notícias de
avanços ou recuos nos noticiários a cada noite, até jovens uniformizados em cada
rua da cidade. Em todos os lugares, Christine se deparava com o fato de que o
Canadá estava em guerra.
Ao ouvir o ruído de um carro encostando na entrada, Christine se apressou em
atender à porta. Elizabeth estava logo atrás dela.
Henry estava desdobrando as longas pernas do interior do carro. Christine ficou
contente ao ver que o irmão estava sozinho. Ela estava ansiosa para tê-lo só para ela
pela última vez e esperava que não fosse considerado egoísmo da sua parte.
Ele caminhou em sua direção, com o sobretudo pesado balançando no vento da
tarde, e um largo sorriso iluminando o seu rosto.
— Bem, olha só pra isso. Duas das minhas mulheres favoritas.
— Sim — Christine disse rindo —, estamos contentes por ainda fazermos parte de
sua lista.
Elizabeth passou por Christine para alcançá-lo primeiro. Ela levantou os braços
para aproximá-lo e para que pudesse dar-lhe um beijo na bochecha.
— Como estavam as estradas? — perguntou ela assim que o filho se endireitou.
— Boas. Passei por algumas pequenas áreas de derrapagem aqui e ali — mas nada
de mais. Não tive qualquer problema para conseguir chegar.
Ela acariciou a bochecha do filho e recuou para que Christine também pudesse
abraçá-lo.
— Está pronta? — perguntou Henry.
— Está tudo bem aqui na porta — informou Christine.
— Ótimo.
— Você vai entrar, não vai? — perguntou Elizabeth alarmada.
Elizabeth só queria se certificar de que o filho não ia dar meia volta e retornar,
como estava implícito em sua atitude.
— Só alguns minutos, não posso ficar muito tempo. Temos que partir antes que as
estradas...
— Pensei que tinha dito que elas estavam boas — Elizabeth segurou a porta para
Henry entrar.
— Elas estavam boas — mas o vento está começando a soprar. As estradas podem
rapidamente começar a ficar intransitáveis se o vento começar a soprar.
Elizabeth franziu o cenho.
— Talvez devesse partir, então.
Sua voz revelava relutância, pois detestava vê-los partir.
Henry deve ter sentido o desconforto da mãe e mudou o curso da conversa. Tirou o
sobretudo pesado e o pendurou no armário.
— Achei que a tia Mary poderia ter pronta uma daquelas deliciosas xícaras de café.
— Ela acabou de correr para o telefone para ligar para Jonathan. Ele pediu para que
o avisassem no minuto em que você chegasse, pois está vindo direto para a casa.
— Oh, ele não devia fazer isso. Não posso ficar muito tempo.
— Ele disse que uma pequena pausa lhe faria bem.
Henry assentiu.
— Então como tem sido sua visita à cidade? — perguntou ele.
— Agradabilíssima — exclamou Elizabeth. — Fiquei relaxando na banheira todas
as noites.
Henry riu alto.
— Vem para a frenética cidade de Calgary e fica na banheira!
Mas a provocação não suscitou qualquer resposta da mãe, exceto um pequeno aceno
com a mão.
— E você? — ele se voltou para Christine. — Teve a oportunidade de usar a
banheira?
— Bem, não passei tanto tempo lá dentro como a mamãe, mas sim, já tive a minha
vez.
Quando Mary entrou pela porta, Henry se levantou para cumprimentá-la.
— O seu tio Jon logo estará em casa. Só leva um minuto. Acho que você fica mais
alto cada vez que eu te vejo. Preciso ficar na ponta dos pés só para te dar um
abraço.
Henry envolveu a tia com os longos braços e deu-lhe um abraço caloroso.
— É muito bom ver a senhora, tia Mary.
— Tenho desfrutado tanto da Christine. Nos divertimos muito juntas. E estou tão
contente por ter este tempo especial com sua mãe. Tínhamos tanto para falar. Só
queria que não tivessem tantos quilómetros nos separando. Não me parece justo que
nosso país seja tão extenso. Agora sentem-se. A Lucy vai trazer o café. Sei que
você está com pressa para voltar antes que anoiteça. Gostaria que pudéssemos
mantê-lo por aqui alguns dias, mas sei que é impossível. Como estão a Amber e o
Danny? — Mary se apressou em perguntar. — Será que já está tendo crise de
nervoso de noiva? Está muito perto, não está? As coisas estão correndo bem com os
preparativos? Eu ia adorar poder ajudar. Quem me dera estar mais perto. Eu disse
para o Jon que adoraria preparar o bolo de casamento ou ajudar com a decoração.
Será que a Amber gosta desse tipo de coisas? Talvez ela nem precise de ajuda. Ela
certamente parece que tem coisas planejadas. E o Danny? Ele se entusiasmou por
ter um novo papai?
Henry mal sabia qual pergunta responder, por isso ele apenas acenou com a cabeça
e deixou a tia continuar a falar.
Mary parou de repente quando Lucy chegou com o bule fervendo e um jogo de
xícaras numa bandeja, que também continha um prato de sanduíches de carne e um
bolo de limão.
— Pensei que talvez estivesse com um pouco de fome, depois da longa viagem.
Não quero que você vá embora sem algo no estômago.
— Está com uma aparência e um cheiro deliciosos, tia Mary.
— Não vamos esperar pelo Jonathan. Ele nunca come entre as refeições, e só vai
querer o café.
E os sanduíches foram passados primeiro para Henry e depois à Christine.
— É melhor comer — Henry a advertiu. — Quem é que sabe quando você vai ter
outra dessas oportunidades? Não há muitos restaurantes na estrada até chegarmos
em casa. E não tem muita variedade na minha despensa
Christine seguiu o conselho do irmão. Eles ainda estavam desfrutando o lanche
quando Jonathan chegou. Após saudações sinceras, ele aceitou a xícara de café
preto servido pela esposa e sentou-se na cadeira ao lado do Henry.
Durante os momentos seguintes, foi a conversa entre os homens que fluiu pela sala.
Christine notou os olhos de Henry cuidando o relógio do avô de vez em quando. Os
ponteiros estavam ocupados a fazer tique taque nos minutos, e Christine sabia que
Henry estava ansioso por causa do tempo. Ela decidiu ajudá-lo no assunto.
— Vou só buscar as minhas mantas no quarto e te encontro no vestíbulo.
Ele fez que sim, com um olhar de gratidão pela compreensão.
Houve a habitual agitação com as recomendações de última hora e abraços. E logo
em seguida os dois estavam no carro e passando pelas ruas da cidade em direção à
rodovia. Henry parecia concentrado na intenção de sair da cidade e entrar na
rodovia, por isso, passaram vários minutos antes que qualquer um deles falasse.
— Como tem sido a visita? — Henry finalmente perguntou.
— Boa. Compramos o material e a mãe fez um ótimo trabalho costurando o tailleur.
— A mamãe sempre faz.
Christine concordou.
— Espero que a Amber goste da nossa escolha.
— Amber vai adorar.
— Ah, agora falamos em nome dela agora, não é? — provocou Christine.
Henry sorriu.
— Sabe o que dizem as Escrituras: “E se tornarão uma só carne”.
— Mas ainda não são uma só carne.
— Ainda não. Parece que todos os dias se arrastam um bocadinho mais. Jamais
imaginei que o tempo pudesse passar tão lentamente — gemeu Henry.
Christine sabia que ele estava brincando, mas não pode deixar de lançar um olhar de
soslaio na direção do irmão.
— Então, não mudou de ideia...
— Cada dia estou mais convencido.
Ela fez que sim com a cabeça.
— Isso é bom.
— E você? — perguntou Henry após um momento de silêncio. — Mudou de ideia?
— Sobre o Boyd, você quer dizer? Não. Sem mudanças de ideia. Essa era a única
atitude a ser tomada. Mas... mas por vezes fico preocupada. E se... se eu tivesse
mantido meus padrões cristãos, será que poderia ter feito mais para apresentar
Cristo a ele? O Boyd está na Força Aérea, sabe. Por vezes penso como seria
horrível se o seu avião fosse abatido — sem que ele tivesse feito as pazes com
Deus.
Henry concordou, o seu rosto sério.
— Receio que haja muitos deles nessa circunstância. Marchando para a guerra sem
esperança caso morram nas trincheiras. É assustador.
— Calgary estava cheio deles. Por todos os lados, em todos os lugares onde se
olhava: uniformes.
— Eu sei. Eu os vi quando entrei de carro.
O vento tinha de fato começado a soprar. A neve passou a percorrer a estrada à
frente deles em fragmentos ondulados. Henry segurou o volante firmemente para
manter o carro estabilizado.
— Você já... alguma vez pensou sobre... quero dizer, alguma vez já pensou em se
alistar? — Christine finalmente encontrou coragem para perguntar.
— Muitas vezes pensei... E tive dúvidas. E passei por lutas.
— Sério?
— Sim. Não me lembro de ter lutado tanto em oração por qualquer outro assunto.
Christine podia sentir a garganta apertada.
— E se decidiu? Você não vai... vai?
— Eu planejava ir. Cheguei mesmo a dirigir até à sede para entregar a minha
demissão da Polícia Montada. Mas fui dissuadido.
— Te convenceram a desistir? Foi a Amber?
— Não, não foi Amber. Tínhamos conversado sobre isso — muitas vezes, pra falar
a verdade —, e ela sabia que a decisão tinha que ser minha. Não, foram os meus
superiores. Disseram que há dois trabalhos a serem feitos em tempo de guerra.
Alguns precisam ir. Mas há também um trabalho que precisa continuar a ser feito
em casa — para manter a estabilidade. Para manter as coisas unidas para que
aqueles que partiram tenham algo para que voltar. Precisamos de uma base forte e
segura. Os nossos rapazes precisam disso.
Christine expirou lentamente. Henry não iria para a guerra.
— Então agora você... se sente em paz com tudo isto?
— Sim. Oh, não foram apenas as conversas. Foi uma publicação. Eu li quando
estava à procura da resposta. Parecia falar diretamente a mim. Falou em “ficar junto
às coisas”. Percebi que essa era também uma parte importante do trabalho. Não é
um caso de pular fora, não quando se leva seus deveres a sério.
— Amber deve estar aliviada.
Henry sorriu.
— Está sim. Mas ela teria me deixado ir, se eu tivesse decidido dessa forma. Ela
disse que Deus deve governar minha vida — não a esposa.
Christine permaneceu em silêncio. Essa era outra coisa para se pensar.
JANETTE OKE
hristine e Laray estavam no meio da refeição quando Henry chegou. Ele nem sequer
se preocupou com um pedido de desculpas. Christine estava sentindo-se mais
relaxada enquanto conversava com o seu parceiro de almoço. No entanto, ela deu a
Henry um olhar de alívio.
com Laray?
— Laray? — Christine levantou uma sobrancelha.
— Ainda não se conheceram?
— Oh sim, já nos conhecemos. Só ainda não me disseram quem eu tinha
conhecido.
Laray ficou ruborizado.
— Desculpe — ele gaguejou. — Eu nem pensei...
Mas Christine acenou com o seu pedido de desculpas à parte.
— Está tudo bem. Eu devia saber. Foi você que tomou conta do urso. — Na
verdade... foi ideia do urso. Eu teria de bom grado passado para
usar mais meu braço como desculpa para me obrigar a fazer todo o trabalho de
escritório, enquanto saem por aí nas viaturas de polícia.
Henry riu.
— Já decidiu? — perguntou uma jovem garçonete, colocando uma xícara de café
em frente ao Henry.
— Vou querer o que ele está comendo. — Henry acenou em direção a Laray e
entregou o menu de volta à moça. — O que é que você está comendo? — Henry
perguntou a Laray quando a moça não estava ouvindo.
— A lasanha.
— E está boa?
— Sim, se você gostar de pimenta.
Henry tomou um gole de café.
— Uma coisa que temos que admitir sobre a Jessie — disse ele ao pousar a xícara
—, ela não tem sido mesquinha com os grãos de café.
Laray fez que sim com a cabeça.
— Mas por vezes me pergunto quanto tempo ela usa os mesmos grãos.
— Parem com isso vocês os dois — disse Christine, dando a Henry um pontapé
debaixo da mesa de brincadeira.
— Me esqueci — disse Henry. — É melhor termos cuidados os nossos modos. Há
uma dama presente.
Laray o encarou.
— Você me disse que ela era sua irmã mais nova.
— Ela é. Christine é minha irmã mais nova.
— Mas ela tá longe de ser uma criança.
— Eu também lhe disse que ela ia ser a dama de honra da Amber... não?
Laray abanou a cabeça.
— Não me lembro de nada ter sido dito sobre a dama de honra. — Bem, então,
conheça a dama de honra.
Com o olhar de surpresa de Laray, Christine lembrou-se que era ele que ia ser o
padrinho de Henry. Era provável que eles se encontrariam mais vezes.
Por um momento, Laray pareceu ficar sem palavras. Ele corou ligeiramente, depois
recuperou a voz com uma tossida:
— Pelo menos eu poderei escoltá-la no meu braço bom.
Christine sentiu seu rosto ruborizar-se.
— Olha — disse Henry como se de repente pensasse em algo. — Vamos jantar com
a Amber esta noite para repassarmos os planos de casamento. Que tal se juntar a
nós, Laray?
Laray deslocou os pés.
— Acho melhor confirmar com a pequena dama primeiro.
— Amber não se vai importar. Vou telefonar para ela assim que voltar para o
escritório.
— Eu não estava me referindo a Amber — murmurou Laray, dando a Christine um
olhar de relance.
Henry virou-se para Christine, com uma ruga franzindo sua testa.
Ficou claro que ele não achava que ela teria alguma razão para se opor.
— Bem — disse ela dando de ombros. —, se não tiver nenhum problema para a
Amber, parece-me uma boa ideia.
Christine caminhou até à barbearia da Amber naquela tarde, para oferecer ajuda nos
preparativos para o jantar. No caminho da casa de Amber, pararam na casa dos pais
dela para ir buscar o Danny.
— Na-uh — disse ele abanando a cabeça. — O Tommy contou. Tommy contou pra
todas as crianças. Rebecca ficou tão assustada que começou a chorar. Acho que ela
pensou que a guerra ia acontecer aqui, por isso a senhora Wilbur mostrou no mapa.
É um longo, longo caminho. Bem em cima do oceano. Mas a Rebecca diz que vai
ter pesadelos de qualquer maneira. Ela tem sempre pesadelos com alguma coisa.
Serpentes e gatos maus e até aranhas. Ela sempre tem pesadelos.
para Christine.
Ela detestava a ideia de ser a pessoa a negar s panquecas ao Danny. — Acho que as
panquecas são ótimas. Mas eu concordo com a sua mãe.
Por vezes, os homens que trabalham muito gostam da sua carne e batatas. Danny
olhou para a mãe.
— Depois, se precisarmos de carne, vamos ter peixe frito.
— Receio que não temos peixe neste momento.
— O que é que tem?
— Frango.
— Está bem, então. Vamos ter frango frito — concordou ele, mas com
menos entusiasmo.
roupa e lavar minhas mãos. Por que não pega um biscoito e um pouco de leite, e
depois vai brincar com o caminhão?
— Será que também preciso trocar de roupa?
— Por favor, troque.
— Eu troco primeiro... depois vou buscar os biscoitos.
— Um único biscoito — corrigiu Amber.
Danny correu para se trocar.
Conversando enquanto trabalhavam, as duas cozinheiras fizeram não demoraram
muito para encaminhar a refeição. Christine sentiu que teria finalmente a irmã por
quem sempre ansiou. Ela desejava que as suas vidas não fossem vividas a tantos
quilómetros de distância.
— Você já conheceu o Laray? — perguntou Amber.
— Conheci. Henry me convidou para almoçar no café, mas ele ficou ocupado.
Acho que o Laray acabou perdendo no par ou ímpar..
— Ele é um cara fantástico. O Henry gosta mesmo dele.
— Ele parece mesmo simpático.
— Foi uma pena — o acidente com o urso. Mas ele está muito bem agora. O Henry
diz que ele já recuperou quase todos os movimentos do braço. A força talvez ainda
não, mas isso também virá.
Amber provou o molho, acenando com a cabeça com a sua aprovação.
— Nem mesmo pelotas — disse ela com satisfação.
A campainha tocou, e Danny apressou-se para cruzar a casa. — É o seu amigo, mãe
— gritou ele.
Amber sorriu.
—Tem sido um pouco problemático decidir como Danny deveria chamar Henry até
o grande dia. Não achávamos que “pai” fosse apropriado ainda, e não queríamos
Henry — mas qualquer outra coisa soava tão formal.
— Bem, não vai demorar muito até que o “papai” esteja certo.
Christine sorriu ao pensar no irmão como pai.
— Oito dias. Dá para acreditar? Apenas oito dias!
Danny guiou Henry pela mão.
— Ele trouxe o outro rapaz também, mãe — anunciou ele com um aceno em
direção a Laray.
— Entra, “outro rapaz” — convidou Amber com uma gargalhada.
— Estamos quase servindo.
— Mal posso esperar — disse Henry, respirando fundo.
— Vá em frente e sente-se. Vai ficar um pouco apertado ao redor da nossa pequena
mesa — mas vamos conseguir. Laray, pode simplesmente pegar numa dessas
cadeiras que estão nos fundos.
Laray agradeceu à anfitriã e deslizou para dentro conforme as instruções.
Quando todos se reuniram ao redor da mesa, pediram que Laray dirigisse a oração
de graças. A comida, as gargalhadas e as brincadeiras passaram facilmente ao redor
da mesa. Até o Danny foi ultrapassado em sua tagarelice.
Fazia muito tempo que Christine não tinha uma noite de divertimento tão gostoso e
descontraído. Depois que colocaram Danny na cama, os quatro começaram a falar
seriamente sobre os detalhes do casamento. Amber pegou uma folha de papel e
desenhou pequenos diagramas com homens de pauzinho, enquanto explicava como
desejava que fosse arranjada a entrada no altar.
— O papai não vai entrar comigo dessa vez. Ele já fez isso antes. Ele e a mamãe
estarão aqui sentados antes do início da cerimónia. — Ela virou os olhos para
Henry. — Você e o pastor vão entrar pela porta do escritório, aqui.
Ele concordou com a cabeça, parecendo sério, pensou Christine.
— Então Laray e Christine vão entrar pelas portas dos fundos... aqui. — Quer dizer
que não vou ter ele para me apoiar?
O pequeno gracejo de Henry pareceu relaxar um pouco o rapaz. — Pensei que seria
bom se eles entrassem juntos.
Henry concordou.
— Então, entraremos eu e o Danny.
— Juntos?
— Ele pode fazer alguma coisa... bem tola, se entrar sozinho. Além disso, posso
precisar que ele segure minha mão.
— Ah, que fofura — comentou Christine.
— Na verdade, eu quero ele comigo. É que... bem... as coisas vão mudar... depois.
Temos sido apenas o Danny e eu por tanto tempo. Uma última vez... só eu e ele.
Você se importa?
Ela ficou desiludida. Tinha trabalhado durante toda a manhã para preparar alguns
dos pratos favoritos de Henry.
— Bem, eu posso aquecê-la amanhã de novo. Mas não vai estar tão bom quanto
hoje.
— Então vou falar com Laray para ele ir almoçar. Ele ia adorar uma refeição
caseira.
— Henry, não pode fazer isso. Como ficaria para... as pessoas da cidade...
— Oh — disse Henry. Apenas “Oh”. — Bem, então, por que não embala a comida e
leva para o escritório.
— Embalar tudo? Não permaneceria aquecido nem por dois minutos.
— Depois o Laray pode ir buscar a Amber, e vocês almoçam juntos. Isso ia parecer
bem, não é mesmo?
— Está tudo bem. Podemos comer amanhã.
— Não. Não... você trabalhou tanto! — Henry parecia estar pensando. — Já sei. Eu
paro em casa quando sair da cidade, e levo o Laray comigo.
Não havia nada a fazer, a não ser pôr outro prato.
Christine esperava ter preparado comida suficiente. Ela não tinha contado que ia ter
que alimentar dois homens famintos.
Mas Henry mal parou em casa tempo o bastante para comer. Ele apressou-se a
engolir algumas batatas fritas e um pequeno pedaço do rocambole de carne, depois
empurrou outra fatia entre duas bolachas, embrulhou-os num guardanapo, e voltou a
encher a xícara de café.
— Preciso correr.
E desapareceu.
— Sinto muito — começou Christine enquanto a porta se fechava atrás de Henry.
— Eu não sabia...
— Acho que a sua perda é o meu ganho — disse Laray confortavelmente. —
Estamos habituados a comer correndo assim. Não se preocupe com o Henry. É mais
do que ele normalmente tá acostumado. E muito mais saboroso também.
Christine colocou mais café e passou o bolo de carne novamente.
— Espero que tenha tempo para pelo menos mastigá-lo — ela respondeu.
Laray sorriu enquanto dava uma mordida.
— Você é uma excelente cozinheira — disse ele um pouco mais tarde, enquanto
alcançava o seu Stetson. — Vejamos. Quem eu posso pedir que telefone para o
Henry amanhã?
Christine conseguiu rir.
— O Henry está de folga amanhã. Ele e a Amber irão até Lethbridge para algumas
compras. Eu vou ficar tomando conta do Danny para eles.
— Puxa... vou estar de plantão o dia todo. Quem dera eu pudesse ajudá-la com
Danny.
— Ele não é um problema.
— Quem me dera poder ajudá-la da mesma forma.
Ele deu a Christine outro sorriso, um pouco charmoso desta vez. Ela sentiu as
bochechas arderem.
— Obrigado pelo almoço. Muito melhor do que o da Jessie. Talvez você devesse
abrir um restaurante na cidade, para dar a ela um pouco de concorrência.
Christine riu.
— Eu não, não, senhor. Nem mesmo muitas pimentas conseguiriam esconder os
meus fracassos.
— Estava tudo delicioso.
— Acho que tive sorte.
— Não é isso que estou achando. Fui eu que tive sorte.
Laray colocou o Stetson nos cabelos escuros, deu a Christine outro sorriso, e saiu.
Depois que Laray foi embora, ela ficou refletindo na conversa. O que será que ele
quis dizer? Será que estava flertando com ela? Será que Laray tinha achado que a
ideia de ele almoçar ali tinha sido dela? Christine precisava ter uma conversa séria
com o irmão.
Q
horas riscando tarefas da sua própria lista de afazeres. A véspera de Natal, a data do
casamento, cairia numa sexta-feira à noite. Na quinta-feira, Elizabeth e Wynn
chegaram, juntamente com Jonathan e Mary. Isto significava mais gente para
refeições e visitas, apesar de tomadas providências para que os dois casais ficassem
hospedados na casa dos pais da Amber.
— Danny, você tem que sair do meio das pés da gente — repreendia
Âmbar. — Tenho medo de que alguém esbarre em você com algo quente. — Vou
arranjar um pai... bem rapidinho — cantarolou o menino, indo
para um canto da cozinha, mas sem sair do aposento.
O clima tinha cooperado, e foi muito melhor do que qualquer um deles
se atrevera a esperar. Embora as temperaturas de inverno significassem que
ninguém conseguia ficar mais que alguns minutos do lado de fora, não ocorreram
mais tempestades fortes, com neve soprando por toda a pradaria descampada.
Obrigada, Senhor, Christine sussurrou enquanto realizava o seu trabalho. Ela tivera
a conversinha com Henry e foi bastante clara. Não queria ser
empurrada a um contato repetido com Laray. É verdade, ele parecia ser um
bom rapaz, mas ela estava longe de estar pronta para qualquer tipo de relação.
Depois, ela ficou se perguntando se Henry tinha conversado com Laray. O
jovem policial montado estivera evidentemente ausente a partir de então.
Christine quase lamentou a decisão apressada. Ela esperava não ter feito nada
para magoá-lo. E se ele pensasse que a hesitação de Christine estava relacionada
ao ferimento do seu braço? Laray fez algumas insinuações de que estava
consciente do fato de que já não era mais o homem que tinha sido. Mas Christine
teve pouco tempo para se preocupar com isso. Todos
os momentos em que estava desperta foram destinados à preparação para o
casamento. Ela não fazia ideia de que casamentos, mesmo os mais simples,
exigissem tanto tempo e preparação.
Assim que Elizabeth entrou em cena, seguida pela tia Mary, as duas se
apressaram para fazer isso e se envolver naquilo. Christine percebeu que a mãe
estava verdadeiramente tentando ajudar e sentir que fazia parte de tudo, mas
na verdade, tornou as coisas mais difíceis. As listas de tarefas cuidadosamente
preparadas estavam continuamente sendo perturbadas e alteradas. Ninguém
teve a coragem ou a insensibilidade de pedir às duas entusiasmadas mulheres
para fazerem favor de se absterem de ser tão prestativas.
A manhã de sexta-feira amanheceu brilhante e fria. Tão fria, que Christine
teve de proteger o rosto enquanto caminhava rapidamente a curta distância
até à casa de Amber. Ela não lembrava nem de o Norte ser tão gelado. Mas ela
certamente estivera mais preparada para o frio no norte. As parkas revestidas
com pelo eram bastante diferentes dos quadrados fininhos de algodão sobre a
cabeça das pessoas.
De alguma forma, eles conseguiram passar o dia com a maioria das coisas
saindo como o planejado. Henry, que iria apanhar flores em Lethbridge, ficou
se perguntando se as flores congelariam antes de levá-las para casa. Laray, que
o tinha acompanhado, acabou levando o buquê de Amber nos braços durante
todo o percurso de regresso. O aquecedor do carro mal conseguia manter o
interior do veículo acima do congelamento.
O casamento estava marcado para as cinco horas — a primeira hora que
as luzes das velas seriam eficientes. Os convidados do casamento seriam levados
do salão da igreja logo depois para o recepção que ocorreria logo em seguida.
Enquanto eles estivessem sendo acomodados, seriam tiradas fotografias da noiva
com a família diante do altar. Depois, se tudo corresse bem, prosseguiriam para
a ceia de casamento.
Seria sem dúvida tarde quando terminassem o curto programa e a abertura
de presentes. Henry tinha decidido não se arriscar a pegar estrada em lua-demel
numa hora tão tardia. Em vez disso, fez arranjos com um rancheiro local
para pedir emprestada uma pequena cabana escondida nas colinas, a oeste da
cidade.
Laray conhecia o local. Era seu dever atear a fogueira para que dessa
forma, o lugar já estivesse agradável e aquecido quando Henry e a nova noiva
chegassem. Christine tinha sido informada do plano, embora ela não tivesse
visto a cabana. Parecia maravilhosamente romântico para ela. Uma cabana
acolhedora no bosque, com lareira acesa e à luz de velas. Henry tinha até
acertado para ter o seu tapete de pele de urso diante da lareira.
Os pensamentos de Christine foram mais uma vez para Boyd. Ela tinha
amado ele. O pensamento da sua escolha errada ainda trazia dores ao coração,
apesar de já não se sentir atraída pelo homem. Ele tinha tanta raiva e arrogância
enterrada nas profundezas da sua alma. Ela orou para que um dia, muito em
breve, ele se entregasse a Deus.
Depois veio o sussurro em voz alta de Danny, “Ele é o meu pai agora?” O “shh” de
Laray foi submerso pela onda de gargalhadas por toda a congregação. “Logo, logo”,
Christine ouviu Laray sussurrar. Danny balançou um pé, calçado com um par
novinho de mocassins, arrancando a fita que segurava os anéis na almofada.
Christine temia que ele de alguma forma conseguisse arrancá-las. Ela enviou uma
mensagem silenciosa para Laray, que se aproximou e segurou dedos inquietos de
Danny nos seus. Christine lançou outra mensagem de agradecimento.
Quando o casal trocou as alianças, Christine ficou aliviada ao ver que os dois
pequenos arcos de ouro tinham sido transferidos em segurança da pequena
almofada de Danny e tinham sido colocados nos dedos apropriados.
A cerimónia continuou. “...Eu vos declaro marido e mulher”, acabou ouvindo o
ministro dizer.
— Agora posso? — perguntou Danny, e Laray fez que sim com a cabeça.
A almofada do anel de Danny foi jogada para o ar, junto com um triunfante whoop,
depois abraçou as pernas de Henry.
Havia lágrimas nos olhos de outras pessoas além de Henry quando ele tomou o
garotinho em seus braços. O beijo do noivo e sua nova noiva acabou sendo um
evento com três participantes. Christine mal conseguia ver através das próprias
lágrimas. Estava muito contente por se ter lembrado de esconder um lenço no seu
ramo de flores. Quando conseguiu se recuperar, descobriu que, de alguma forma,
em toda a emoção do momento, ela estava de pé com a mão firmemente agarrada
por Laray. Será que ela tinha se achegado a ele? Será que ele tinha visto suas
lágrimas e oferecido apoio? Ela não fazia ideia de como isso tinha acontecido. Suas
bochechas queimaram de vergonha. Como ela ia conseguir escapar sem causar uma
cena? Mas Christine não precisava de se ter preocupado. Quase que imediatamente
ela sentiu que os dedos de Laray suavemente libertarem os dela.
Danny, Henry e Amber finalmente terminaram a seção de abraços e retomaram o
decoro apropriado para uma cerimónia de casamento. Mas os olhos de Danny
brilhavam enquanto Henry o punha de pé e ele se virava para Laray. Antes mesmo
que o dedo de Laray pudesse tocar-lhe os lábios em aviso, Danny anunciou
orgulhosamente:
— Agora ele é realmente o meu pai!
Laray concordou enquanto o ministro dizia:
— Senhoras e senhores, permitam-me que vos apresente o Sargento e a Sra. Henry
Delaney... e seu filho, Danny.
Aplausos calorosos e prolongados seguiram o grupo do casamento até a porta.
O longo dia estava terminando. Christine, que agora tinha trocado seu novo tailleur
de madrinha da noiva para uma simples saia e camisa, os saltos altos trocou por um
par de sapatilhas de malha, colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e enrolou
outro comprimento de serpentina de papel crepom.
— Cansada? — Laray foi capaz de oferecer a sua simpatia na única palavra.
— Exausta — respondeu Christine, com a insinuação de um sorriso.
— Estamos quase acabando.
Ela concordou com a cabeça.
— Por que não se senta um pouco enquanto eu termino?
— Estou bem.
— Pensei que talvez pudéssemos tomar um café quando terminarmos, para
relaxarmos um pouco.
— Onde? Nem a Jessie vai estar de portas abertas na véspera de Natal.
Laray concordou.
— Talvez tenhamos de preparar nosso próprio café.
— Onde? — Christine não conseguiu esconder a surpresa ao ouvir tal sugestão.
Laray parecia estar pensando, mas quando lhe respondeu, Christine perguntou-se se
ele ainda não tinha pensado bem no assunto.
— Vai sair daqui direto para tomar conta do Danny?
— Sim. Meus pais levaram ele para casa, para dormir, mas eu disse que ia pra lá.
— Talvez possamos usar a cozinha da Amber. — Antes que Christine pudesse
expressar uma objecção, ele continuou falando em tom jocoso: — Não consigo
fazer muita coisa, mas sei preparar uma boa xícara de café.
Christine não pode deixar de rir.
— Está bem. Uma xícara de café. Talvez a mamãe e o papai também estejam
prontos para uma.
Se não era realmente isso que Laray tinha em mente, ele não disse nada.
Rapidamente Christine colocou a última peça das decorações nas caixas. —
Finalmente. Muito obrigada pela ajuda. Eu teria ficado aqui até à meianoite, se não
fosse você por você.
— Detesto te dizer isso — mas agora é quase meia-noite.
Christine olhou de relance para o relógio.
— É mesmo. Não é de admirar que eu esteja assim cansada. Agora temos que
carregar este material.
— Por que não o empilhamos aqui? Virei apanhar tudo isso pela manhã.
— Você não tem que trabalhar?
— Rogers está no primeiro turno de amanhã. Eu vou substituí-lo à tarde.
Christine fez que sim com a cabeça, agradecida por ter terminado o dia. Ela tirou as
pantufas e deslizou os pés para dentro das botas.
— Se quiser passar, e vir me buscar, eu ajudo — sugeriu ela.
Ela não deixou de ver a animação nos olhos de Laray.
— Vou fazer isso.
— Desde que, claro, não seja muito cedo.
— Que horas é cedo demais?
— Meio-dia — disse ela rindo.
— E o Danny?
— O Henry vai voltar para buscar o Danny e levá-lo para a cabana. Eles vão ter a
primeira manhã de Natal juntos.
— Ei. Isso é ótimo. Esse seu irmão pensa em tudo. Será que o Danny sabe?
— Não ousamos contar a ele. Achamos que ele nunca ia conseguir dormir se
estivesse ansioso pela manhã, ou poderia ter insistido em ir com eles esta noite.
Laray pegou no casaco de Christine e ajudou-a a vestir.
Quando deixaram a igreja, Christine ficou surpresa ao descobrir que o ar mais
quente tinha substituído o frio extremo, e suaves flocos de neve tinham começado a
cair. Ela levantou o rosto em direção aos céus e deixou os grandes flocos felpudos
esfriarem as bochechas aquecidas.
— É lindo — ela sussurrou. — Como devia ser na véspera de Natal.
Laray limpou a sua garganta.
— Por falar em beleza... — ele hesitou. — Hoje você estava muito bem.
Christine se virou. Ela esperava mesmo que ele não fosse falar nenhuma bobagem,
mas não disse mais nada.
— Obrigada — murmurou ela em resposta ao elogio. Afinal de contas, “muito
bem” não era tão difícil de aceitar.
Depois da curta jornada até à casa de Amber, eles viram uma luz brilhando na
janela da frente. Christine podia ver a mãe numa poltrona, a cabeça recostada em
repouso, e sorriu. Elizabeth tinha ficado tão elegante com o tailleur cinza, que se
destacava com uma nova blusa de seda azul pálido. Estava contente porque o pai a
convencera a comprá-la.
Christine estava prestes a abrir a porta da frente quando sentiu a mão de Laray
segurando a sua. Ele estava perto... muito perto. Ele a fez sentir-se aflita. Estendeu o
relógio de bolso, que ela mal conseguia enxergar através da luz da janela.
— Feliz Natal — sussurrou-lhe ao ouvido.
Christine sentiu o corpo se contrair, mas conseguiu responder num sussurro “Feliz
Natal”.
Laray abriu então a porta silenciosamente e eles entraram. Elizabeth ergueu a
cabeça imediatamente.
— Acabou finalmente? Eu devia ter ficado e ajudado.
— De jeito nenhum. Desculpe por ter mantido a senhora acordada por tanto tempo.
Como está o Danny?
— Bem — respondeu Wynn, pondo de lado o jornal —, tivemos que contar meia
dúzia de histórias sobre o norte congelado e os índios, e prometer uma ou duas
excursões de pesca — e uma dúzia das musiquinhas de ninar da sua mãe. Mas ele
finalmente dormiu.
— Desculpa — disse Christine novamente. — Vocês devem estar horrivelmente
cansados.
— Não há necessidade de desculpas. Tivemos uma noite encantadora — Elizabeth
se levantou com um sorriso contente no rosto. — Fiz café fresco e cortamos um
bolo de Natal. Pensei que gostariam de desfrutar aqui junto ao fogo.
Christine sentiu o rosto enrubescer. Ela estava encurralada. Não havia maneira de
mandar Laray embora agora sem parecer muito mal-educada. Ela fez que sim com a
cabeça, incapaz de dizer sequer um agradecimento. Quando se recuperou, falou
rapidamente.
— Vocês vão ficar e comer alguma coisa com a gente?
— Sua mãe e eu já celebramos juntos o Natal que se aproxima — disse o pai,
procurando o casaco de Elizabeth. — Agora vai ser bom descansarmos um pouco.
— Mas é Natal — salientou Christine, em movimento em direção ao relógio da
lareira.
— É mesmo. Bem, Feliz Natal para vocês — disse Wynn rindo. Depois inclinou-se
e beijou Elizabeth no nariz. — E um Feliz Natal para você também, minha querida.
Pai, não começa com disso, Christine queria exclamar. Mas Laray não fez nenhum
movimento para fazer o mesmo e se despedir.
— Vou buscar o café — disse ele em vez disso, e, desejando aos Delaneys uma boa
noite, dirigiu-se para a cozinha.
Sentindo-se ainda tensa, Christine tirou o casaco e foi até a lareira para olhar
fixamente para o fogo. Ela esperava que não tivesse dificuldade em conseguir que o
rapaz fosse embora. Sentia-se cansada e sem um pingo de ânimo para qualquer tipo
de papinho e conversa íntima. Como é que ia lidar com essa situação?
Logo em seguida, Laray voltou com duas xícaras de café. Ele colocou uma sobre a
mesinha ao lado de Christine.
— Sei que você está cansada — disse ele, colocando a xícara dele no chão — por
isso vou embora assim que provar um pedaço do bolo de Natal da sua mãe.
Christine sentiu os ombros relaxarem, e sentou-se enquanto Laray voltava para a
cozinha para pegar o bolo.
— Qual foi o momento que você mais gostou no dia? — perguntou Laray quando
entregou o prato a Christine.
Ela sorriu.
— Danny, acho eu. Ele é fofo demais, não é?
— Sim. O Danny tirou realmente a tensão de toda o evento.
— Acha casamentos... tensos? — Christine olhou para ele sobre a borda da xícara.
Laray não hesitou.
— Sim. Você não acha?
Christine negou com a cabeça.
— Acho que são... bonitos.
Laray se mexeu de forma desconfortável.
— Sim — ele concordou —, quando acabam.
Ele deu uma mordida no bolo e murmurou com apreço.
Christine esticou os pés cansados mais próximos ao fogo.
— Bem, este aqui está acabado. Não posso acreditar que finalmente tenho a irmã
que sempre sonhei em ter. E um sobrinho esperto para completar. Só queria que eles
não vivessem tão longe.
A voz dela ficou melancólica.
— Então por que não fica aqui? — perguntou Laray.
— Isso, e assim que eu conseguir me estabelecer, a Polícia Montada vem e transfere
o Henry.
Christine sorriu com pesar.
Laray concordou. Isso era o mais provável de acontecer mesmo.
— Você viveu com a Polícia Montada por tempo demais — observou ele.
— A maior parte da minha vida.
— Você já teve algum tipo de... ressentimento?
Christine ficou surpresa com a pergunta.
— Nunca — disse ela enfaticamente.
Ele se mexeu no lugar.
— Algumas mulheres têm.
Foi uma afirmação simples. Uma que Christine não podia negar.
— E você gostava de morar no norte?
— Eu amo o norte.
— Você voltaria pra lá?
— Sem nem parar pra pensar.
Houve silêncio, exceto pelo crepitar do fogo.
— Acho que eu ia gostar de tentar morar no norte — disse Laray.
Christine inspirou rapidamente, prestes a lançar-se numa animada ladainha falando
sobre as belezas e vantagens do Norte. Mas optou por fechar a boca com firmeza.
Que rumo estava tomando essa conversa?
— Acho que você ia gostar — foi só o que disse.
— Sim, então... agora gosto deste bolo de Natal aqui. Mas acho que já estou farto,
por isso é melhor ir pra casa, direto pra cama. Eu trabalho no turno da noite de
amanhã, por isso terei de ser capaz de manter os meus olhos abertos. Espero que
seja tranquilo, considerando que é Natal — mas nunca se sabe.
Christine ficou aliviada quando Laray pôs de lado a xícara e ficou de pé.
— Suponho que a verei no culto de Natal?
— Oh, eu tinha esquecido — exclamou Christine com um lamento. — Que horas
começa o culto?
— Às oito e meia.
— Oito e meia — significa não dormir muito. Por que vai ser tão cedo?
— Porque é Natal. Porque as crianças se acordam às cinco, e o almoço só sai à uma
hora.
Laray arriscou.
— Estarei lá — concordou Christine —, mas não tenho certeza de que meus olhos
estarão abertos.
— Eu vou passar por aqui para te pegar.
— Não, não, a caminhada me fará bem. Pode ser até que me deixe desperta o
bastante para saber o que está acontecendo.
Laray riu novamente:
— Mas nós íamos carregar essas caixas — Christine lembrou-se.
Laray deu de ombros.
— Não se preocupe com as caixas. Eu tomo conta delas.
Acenou com uma mão em direção à Christine e foi embora.
Christine ficou olhando para ele, depois voltou para a lareira. Só restavam brasas
piscando e estalando entre as cinzas e os pedaços carbonizados do tronco.
Ela não precisava de ter ficado tão preocupada. Laray não tinha dito ou feito nada
de mal. Nenhuma indicação de interesse numa futura aliança. Nenhuma tentativa de
fazer mais elogios. Nenhuma sutil aproximação. Nada.
Por um breve momento, Christine não estava certa se sentia alivio — ou
desapontamento.
Foi uma leve agitação que despertou Christine. Por um momento, ela buscou por
um significado, enquanto se esforçava para retomar a consciência. Henry tinha
vindo buscar o Danny, podia afirmar, pelos sons e vozes abafadas, que ele estava
advertindo o Danny para ficar quieto e não acordar a tia Christine. Com um sorriso
adormecido, ela saiu da cama e pegou o robe.
JANETTE OKE
dirigiu-se para a cozinha. Henry já tinha colocado um bule de café no fogo. Ela ia
se vestir. O café estaria pronto quando voltasse.
Christine não teve problemas para ficar alerta. A caminhada para a igreja a
despertara totalmente. Fiel à sua palavra, Laray já tinha retirado as caixas para
guardar mais tarde. Ela podia relaxar totalmente e entregar-se ao culto de
celebração. Christine sentou-se ao lado da mãe no momento em que o órgão iniciou
a primeira canção. Em seu coração, tinha a sensação de que este seria um Natal a
ser recordado durante muito tempo.
Capítulo 8
C
hristine fez mais uma viagem ao quarto para dar uma olhada em Danny, antes de se
retirar. Tinha sido mais um dia atarefado, e ela estava cansada. O dia seguinte ia ser
domingo, e depois da manhã de culto, ela ia poder desfrutar de um dia de
relaxamento e descanso. Os pais, com
o tio Jon e a tia Mary, iam partir à tarde para a viagem de regresso a Calgary. De
certa forma, Christine mostrou-se relutante ao vê-los partir. Desejava ir com eles, ao
mesmo tempo que aguardava ansiosamente a semana com o sobrinho. Mas sem
aulas na escola para Danny frequentar, por causa das férias de Natal, Christine não
sabia muito bem como iam preencher seus dias juntos.
Parece-me que teria sido mais sábio se Henry desse a ele um ursinho de pelúcia,
pensou. Seria um companheiro de sono muito melhor.
Colocou as cobertas sobre os ombros gorduchos e foi para a sala. Planejara começar
a ler o novo romance que a mãe lhe dera de presente de Natal, mas sentia-se
sonolenta demais para sequer pensar no assunto. Depois de ir mais uma vez até a
porta da frente, para se certificar de que estava trancada com segurança, ela apagou
a luz.
Um motor de carro roncou, e assim que ela espreitou pela cortina, uma viatura
policial deslocou-se para o fim da rua. Será que Laray teve a intenção de visitá-la
mas mudou de ideia quando a luz apagou? Ela ficou na sala escurecida e perguntou-
se mais uma vez se tinha ficado aliviada ou desapontada.
Os dias com Danny correram melhor do que Christine ousara imaginar. Ele era uma
criança fácil de cuidar. Ficava um pouco cansada de ler o mesmo livro várias vezes,
e era um pouco cansativo jogar Cobras e Escadas uma dúzia de vezes, mas, na
maior parte do tempo, os dois se deram muito bem.
Às vezes de manhã, depois de um generoso café da manhã, ou à tarde, quando o sol
estava no auge, eles saíam para caminhar. Christine viu-se fazendo anjos na neve e
desenhando na vastidão branca. Tentaram construir um boneco, mas a neve era
grossa e fria o sufuciente, e não se moldava adequadamente.
Na quarta-feira, Laray apareceu à porta.
— Como vão? — perguntou ele casualmente, e Christine acenou, dizendo que as
coisas estavam muito bem, e o convidou para entrar.
— Que bom. Estava pensando se já estava cansada da sua própria comida.
— Ela é uma boa cozinheira — respondeu Danny, que estava no chão brincando
com o carro.
Laray não voltou a mencionar a comida, mas sentou-se no chão ao lado de Danny.
— Como têm ido as coisas no escritório? Aconteceu alguma grande... como é que
vocês chamam? Ocorrência?
— Nada muito sério. — Ele virou a cabeça para olhar para ela. — Mesmo assim,
vou ficar contente quando o chefe voltar.
Christine falou num impulso repentino e com a mesma rapidez lamentou suas
palavras.
— Olha, por que você não fica e janta conosco?
Ora, por que é que fui fazer isso? repreendeu-se intimamente enquanto se levantava
da cadeira. Não que estivesse preocupada se teria comida suficiente para três. Ela
tinha feito muito. Só que Laray poderia entender de forma equivocada.
Mas era tarde demais. Ele já estava sorrindo.
— Você me convenceu, eu ia adorar.
Danny voltou correndo com o velho carro, que entregou a Laray.
— O meu novo é muito melhor — disse ele, como um pedido de desculpas. —
Podemos revezar.
— Ei, esse aqui tá muito bom para mim. Não tenho que me preocupar nem um
pouco em talhar um para-lamas.
Christine saiu para a cozinha. Enquanto trabalhava, ouvia os dois brincando. Não
sabia dizer qual dos dois estava se divertindo mais. Brincar de carrinho deve ser
algo que um homem jamais deixa de gostar.
A brincadeira continuou até mesmo na mesa de jantar. Os carros só foram
estacionados quando inclinaram a cabeça para a oração de agradecimento.
Danny estava perfeitamente à vontade com Laray, por isso manteve uma constante
falação durante a refeição. Christine sentiu-se aliviada. Pelo menos ela não ia ter
que tentar puxar assunto.
Laray insistiu em secar os pratos. Christine protestou:
— Está tudo bem. Você tem que voltar ao trabalho.
— Já terminei meu expediente por hoje.
— Ah.
Parecia que não havia muito mais a dizer.
Mas não foi tão ruim quanto ela temia que fosse. Laray falava facilmente sobre
Henry e seu trabalho no escritório da Real Polícia Montada do Canadá. Christine se
percebeu ouvindo atentamente todos os elogios tecidos pelo jovem ao seu irmão
mais velho.
— Ele sempre foi assim — disse ela. — Consciente e cuidadoso.
Laray pendurou a toalha de cozinha.
— Eu acrescentaria outra palavra com ‘c’. Confiante. Não... não arrogante. Mas
confiante. Faz uma grande diferença quando o seu chefe está seguro de si mesmo.
Eu nunca vi ele perder o controle. O Delaney — Henry, só segue tranquilamente
fazendo o que tem que ser feito.
Christine torceu o pano de prato, pensando no que Laray tinha dito. Ela sabia que,
tradicionalmente, os policiais montados chamavam uns aos outros pelos
sobrenomes. Perguntou-se por um instante se “'Laray” era o primeiro ou último
nome. Então disse:
— Eu nunca pensei no Henry dessa forma — mas você tem razão. Talvez ele tenha
aprendido a ser assim com o papai. O papai sempre foi assim.
— Seus pais são gente muito boa.
Christine concordou.
— São mesmo.
— Eu perdi meu pai quando tinha seis anos. — Foi dito sem emoção, mas a
declaração devastou o coração de Christine. Uma imagem do pequeno Danny
passou pela sua mente. O que ele tinha perdido — e agora tinha encontrado.
— O que aconteceu?
— Ele era um lenhador. Foi esmagado.
— Sinto muito.
— Minha mãe se casou outra vez — quando eu tinha sete anos. Christine esperou.
O novo pai era bom ou... mau?
— Ele era um bom homem. Até fez que entrássemos na igreja. Aliviada, ela
começou a guardar os pratos secos de volta no armário. — Nós nos dávamos bem
— mas não era o mesmo que ter o meu pai. Ele
nos alimentou e vestiu, e nunca nos maltratou — mas nunca nos deu muita atenção.
Acho que isso já era esperar demais. Com o tempo, nasceram mais cinco crianças
na família. Isso é o máximo que o amor pode alcançar.
Christine queria argumentar, mas não sabia o que dizer ou como o dizer. — De
qualquer modo, nos demos bem. Eu tenho duas irmãs mais velhas e um irmão mais
velho e outras duas irmãs mais novas do que eu, que eram da primeira família.
Todos nos saímos bem.
entrar com eles. Acompanhou os dois até à porta e esperou até que Christine
acendesse a luz, depois desejou-lhes boa noite.
Danny tomou banho, vestiu o pijama e foi colocado na cama. Christine sorriu ao
ouvir a oração do menino. Além das costumeiras súplicas, ele tinha acrescentado
mais uma.
— E, Senhor Deus, por favor, não deixe que muitas de Suas estrelas caiam, porque
gosto de olhar para elas.
Christine beijou-lhe a bochecha e o cobriu até o pescoço.
De volta à sala de estar, ela agitou o fogo e o alimentou. Não porque o calor era
necessário, mas pelo conforto. Por alguma razão, que ela não conseguia explicar,
sentiu-se estranhamente solitária. Perguntou-se se isso teria algo a ver com aquela
estrela cadente, que estava perdida para sempre.
— E vamos para o... o café. Na viatura dele hoje à noite. Ele disse.
Christine não sabia se devia pedir o telefone de volta, para que pudesse se explicar,
ou simplesmente para se retirar em humilhação.
Quando Danny lhe entregou o receptor, Henry estava de volta à linha.
— Parece que vocês estão sendo bem tratados.
Christine sentiu o rosto ainda mais enrubescido.
— Laray passou por aqui ontem à noite, para ver como estávamos nos saindo. O
jantar estava quase pronto, por isso convidamos ele para jantar conosco. Ele e
Danny brincaram de carrinho, enquanto eu servia a comida na mesa. Depois demos
um passeio de carro para mostrar ao Danny as estrelas.
— Que bom — disse Henry, mas Christine não conseguiu se conter e agregou
apressadamente:
— Ele se ofereceu para nos levar para sair esta noite — como uma retribuição.
— Ele tem que retribuir?
— Não, claro que não. Mas ele... achou que devia.
Christine ouviu passos subindo os degraus da frente. Ela não sabia se devia
mencionar o fato para o Henry ou esperar que ele desligasse rapidamente. Danny
resolveu o dilema por ela.
— Ele chegou! — exclamou o garoto em voz alta. — O policial Laray chegou.
— Ele está aí agora? — perguntou Henry.
Christine pôs a mão na bochecha quente.
— Ele... ele está acabando de chegar.
Danny já estava abrindo a porta.
— Ótimo. Vou falar com ele — disse Henry. — Dessa forma eu economizo uma
chamada.
Quando os dois homens terminaram de falar de assuntos policiais, Christine tinha
conseguido se acalmar. O rubor tinha saído das bochechas, e as mãos tinham parado
de tremer.
Mesmo assim, desejou com todo o seu coração que não tivesse aceitado este
convite.
No pequeno restaurante, ela teve o cuidado de colocar Danny bem junto a ela em
seu lado da mesa. Mas logo lamentou a decisão. Isso pôs Laray diretamente em sua
frente. Ela sentia o olhar dele sobre ela mesmo quando não estava olhando
diretamente para ele.
Pediram costeletas de porco com molho de cogumelos, concluindo que esse prato
tinha menor probabilidade de ser picante demais.
Danny gostou muito da experiência. Era evidente que ele não estava acostumado a
comer fora. Quando Laray deixou que ele escolhesse a sobremesa, o menino ficou
quase fora de si. Finalmente, contentou-se com sorvete de morango numa torta de
limão. Parecia uma combinação estranha para Christine, e ela balançou a cabeça
enquanto observava o garoto comer.
— Bem, talvez ele tenha descoberto alguma coisa — foi o comentário de Laray em
voz baixa.
Ao voltarem para casa, Laray mais uma vez não sugeriu que entrasse, embora
Danny tentasse coagi-lo a entrar para brincar com os carrinhos.
— O chefe estará de volta dentro de poucos dias — foi a resposta. — Eu tenho que
me certificar de que está tudo nos trinques.
— O que é estar tudo nos trinques?
— Quando está tudo em ordem. Como sua tia Christine mantém a casa.
Danny ficou satisfeito.
— Quando é que você vai poder vir brincar de carrinho?
— Bem... isso é difícil de dizer. Agora tenho de trabalhar com bastante firmeza até
seu pai chegar em casa.
— Ah.
Os ombros de Danny caíram, tamanha sua decepção, e o garoto olhou para o chão.
— Mas, ei... vamos voltar a brincar de carrinho. Pode contar com isso.
Laray deu um soquinho de brincadeira no ombro de Danny.
— Eu gosto dele — disse Danny quando a porta fechou atrás deles.
Christine não tinha comentários. A verdade é que ela não conseguia entender o que
sentia por Laray. Ela não se tinha sentido assim agitada ou confusa desde as
inquietantes últimas semanas com Boyd.
Capítulo 9
H
enry e Amber chegaram em casa, e foram recebidos por gritos frenéticos e muitos
abraços. Danny estava pronto para se adaptar ao novo pai. Mesmo assim, ele não
estava pronto para se despedir de sua
tia Christine.
— A tia Christine pode ficar também? — perguntou ele ao pai.
— Isso seria ótimo — respondeu Henry —, mas creio que a tia Christine
Mas não cria que isso tivesse acontecido. Haveria uma grande celebração em toda a
terra se assim fora. Ela certamente já teria ouvido falar no assunto.
A guerra.
Christine, pronta ou não, estava prestes a retornar ao mundo real.
O plano era que Henry a levasse até Calgary no domingo à tarde. Laray telefonou
no sábado de manhã.
— Isto pode... isto pode ser um pouco inapropriado — ele começou dizer,
parecendo nervoso —, mas gostaria muito de ter a oportunidade vê-la antes de sua
partida.
Oh meu Deus, pensou Christine, eu não queria que isto acontecesse. Será que não
mesmo? Ela não tinha muita certeza.
— Muito bem — ouviu sua voz concordando. — O que você está planejando?
— Eu não saio antes das dez da noite de hoje. Poderíamos dar um pequeno passeio
depois desse horário?
— Eu... eu... claro. Está bem.
— Eu sei que não é o quê...
— Não... está bem. De verdade.
— Obrigado.
O telefonema cortou, e Christine ficou olhando para o telefone em sua mão.
Quando Laray chegou alguns minutos depois das dez, Christine estava pronta. Eles
não trocaram mais que um aceno com a cabeça enquanto ele a conduzia até o carro
e a ajudava a entrar. Sentiu um frio no estômago e fez questão de recordar a si
mesma que estava agindo como uma garotinha.
— Então, você vai ficar em Calgary por um tempo ou vai direto para casa? —
perguntou ele enquanto o carro arrancava.
— Ainda não decidi. A tia Mary me convidou para ficar com eles e procurar
trabalho em Calgary, mas eu realmente não sei o que fazer.
99
trabalho.
— Não... não, acabei... me saindo muito bem.
Eles seguiram em direção ao leste, para fora da cidade. Christine ficou
aliviada porque Laray não estava levando-a novamente para o mirante. Ela podia
imaginar que aquele era um lugar frequentado pelos casais da cidade. Laray colocou
uma marcha mais alta e olhou em direção a ela.
— Se você não se importar, eu vou continuar dirigindo enquanto falo. Eu nunca fui
muito bom em... falar o que quero falar.
Christine fez que sim de forma estúpida.
— Henry me contou que você recém... passou por uma... separação. Devolveu a
aliança de noivado para o cara.
Ah não, gemeu Christine silenciosamente. Que mais que o Henry te disse?
Ela lançou um rápido olhar em direção a Laray, mas ele seguia olhando para estrada
em frente.
— Lamento que não tenha dado certo. Essas coisas podem ser difíceis.
Christine apreciou a compreensão dele, mas ela não sabia o que dizer.
— Por causa disso... eu recuei — continuou ele. — Eu mesmo passei por isso uma
vez. Sei que é preciso tempo. Claro que encontrei uma forma de descarregar, por
assim dizer. Eu fui e me alistei à Polícia Montada. Isso funcionou. Me deu muito
em que pensar.
Laray conseguiu dar-lhe um sorriso distorcido.
Mais uma vez silêncio.
— De qualquer forma, não vou insistir. Só quero que saiba que eu acho você muito
especial — embora esse possa não ser o momento ideal pra se dizer isso. Suponho
que não voltarei a vê-la, a menos que...
Ele não terminou o pensamento. Christine poderia tê-lo terminado por ele. Ela sabia
exatamente o que ele queria dizer.
— Então, pensei — disse ele lentamente — talvez devêssemos ter... ora, algum tipo
de combinado. Ter um pequeno sinal entre nós, por assim dizer.
100
Christine virou-se para olhar para ele. Ela engoliu e esperou, perguntandose o que é
que ele ia sugerir.
— Pensei que talvez quando chegasse o momento em que... quando você achasse
que já está pronta para... pensar em... você sabe... voltar a namorar e pensa que
talvez... bem, você sabe... então pode simplesmente deixar para mim um bilhete no
correio. Mesmo que eu seja transferido, vou me certificar de que seu irmão sempre
saiba onde me encontrar. Você não precisa me fazer nenhuma promessa. Não espero
isso. Só um bilhetinho dizendo que as coisas estão bem. Vou buscá-la a partir disso.
Christine sentia vontade de chorar. Ele estava sendo tão galante. Tão cavalheiresco.
Parte de seu coração queria dizer a ele que estava pronta agora. Mas ela sabia que
isso não era verdade. Ela não estava pronta para outra relação. Era possível que
nunca estivesse. Seu coração tinha sido despedaçado de verdade na última tentativa
de se apaixonar.
Ela tomou consciência das lágrimas que lhe corriam pelas bochechas. Procurou um
lenço no bolso. Ela tinha que dizer alguma coisa. Não podia simplesmente deixar
este homem tão gentil e atencioso sem nenhuma resposta.
Limpou o rosto e engoliu as lágrimas.
— Desculpe-me — começou ela, com a voz trêmula. — Você tem razão. Eu não
estou pronta... ainda. Não tenho... nenhum desejo de me envolver novamente com
alguém. Talvez um dia. Eu não sei... mas não agora.
Ela assoou o nariz e recomeçou.
— Quero que saiba que se... se eu estivesse pronta... acho que você é um homem
muito bom, e eu ficaria orgulhosa se me convidasse para sair. Estou sendo sincera.
De verdade.
Ele sorriu.
— Isso é um grande elogio. E é tudo o que eu posso pedir... no momento.
Ele estendeu a mão e pegou a mão de Christine na sua, mas não a segurou por
muito tempo. Apenas apertou-lhe suavemente, como se fosse para selar o
combinado entre eles, e a soltou. Depois, encontrou um local para fazer o retorno e
dirigiu-se para casa.
Foi uma viagem tranquila de regresso, pois parecia que tudo tinha sido dito.
— Foi um prazer conhecê-la. Desejo que você receba apenas o melhor de Deus...
independentemente do que seja.
101
Laray disse aquelas palavras com tanta sinceridade que Christine temia que fosse
começar a chorar novamente. Ela conseguiu dizer que desejava o mesmo para ele, e
então, Laray estava abrindo a porta do carro para ela, e dando a volta no carro para
ajudá-la. Ele não fez menção de beijá-la, nenhum braço ao redor dos ombros dela,
ou qualquer exigência.
Quando chegaram ao alpendre, Laray se inclinou para abrir a porta, o rosto dele
muito próximo dela.
— Basta me enviar uma carta — sussurrou ele.
Logo em seguida ele se foi.
Christine estava grata por não haver ninguém acordado ainda, para observar sua
entrada. Ela chorava tanto que mal conseguia enxergar o caminho para o quarto que
ia usar pela última noite. Laray tinha sido tão doce. Será que estava cometendo o
maior erro da sua vida ao partir?
Mas ela não estava pronta para entregar seu coração. Com certeza — se isto fosse
mesmo para acontecer — tudo se resolveria no futuro.
Mas o travesseiro de Christine estava úmido antes que ela conseguisse adormecer.
Danny acompanhou a viagem a Calgary. Amber pretendia juntar-se a eles, mas o
início de um resfriado a manteve em casa.
— É melhor você ficar em casa, eu vou tomar conta dele — Henry aconselhou.
Christine ficou contente pela tagarelice de Danny. Significava que seria menos
provável que o irmão percebesse seu silêncio. Felizmente, Henry não fez nenhuma
pergunta relativa à noite anterior, e Christine não ofereceu nenhuma informação.
Quando Danny parou para tomar um ar, Henry virou-se para Christine com a
mesma pergunta que Laray tinha feito.
— Você vai ficar em Calgary? Ou vai para casa?
— Bem, vou ter que ir para casa, independentemente de qualquer coisa. Não trouxe
nada além dessa mala.
— Pretende voltar a procurar trabalho em Edmonton?
102
103
queremos tudo resolvido antes que ocorra a próxima transferência — seja lá quando
for.
— Acho que é uma ideia sensata — concordou Christine.
Durante vários minutos, andaram em silêncio. Christine percebeu-se pensando em
Laray. Como ele se sentiria se Henry fosse transferido para outro lugar?
Certamente, Laray poderia ser transferido antes. Quem poderia saber? Christine
ansiava conversar com o irmão sobre Laray, mas não fazia ideia do que dizer. Aliás,
ela não fazia ideia do que realmente sentia. Era tudo um grande nó confuso no
peito.
Christine se despediu da tia Mary e do tio Jon, e partiu para casa no dia seguinte. A
viagem de trem não foi tão agradável sem a companhia de ninguém. Ela percebeu a
chegada a Lacombe, pensando no fato de que a mãe nunca mais voltou à cidade,
exceto para visitar a família. Mas pode ser que Lacombe não tivesse nada que a
atraísse para voltar — não como o norte, onde ela tinha crescido.
Ela teve de passar uma noite em Edmonton antes de embarcar no trem até
Athabasca. Não havia nada para fazer e nem onde ir, então, o tempo se arrastava.
Ficou contente quando chegou uma hora razoável de ir para cama. Mas mesmo
assim não conseguia dormir.
Henry tinha perguntado o que faria se tivesse como escolher, e ela tinha respondido
com sinceridade: voltaria para o Norte. Sem nenhuma hesitação, ela voltaria para a
região onde tinha nascido. Ela pertencia àquele lugar. Nunca tinha se encaixado
bem na cidade, ou mesmo na cidade pequena. No entanto, era uma insensatez
pensar que poderia ir sozinha para o Norte. O que ela poderia fazer ganhar a vida?
No Norte certamente não havia necessidade de secretárias ou taquígrafas, pelo
menos não que soubesse.
Pensou novamente em Laray. Ele dissera que gostaria de tentar a vida no Norte. Ele
também dissera que tudo o que ela tinha de fazer era escrever um bilhete. Apenas
um bilhete.
104
Mas Christine tirou essa ideia da cabeça. Não seria justo. Não seria correto. Tirar
partido do interesse dele por ela só para realizar seu sonho. Ela nunca seria capaz de
conviver consigo mesma se fizesse tal coisa.
Mas ela ia orar a respeito dessa ideia. Deus conhecia o desejo do seu coração.
Talvez Ele pudesse arranjar uma maneira de fazê-la voltar para a parte do país que
amava.
105
— Ele é um menino grande para a idade. Acho que ele mentiu.
Alguém devia tê-lo impedido, dito a verdade sobre a idade dele. O garoto tem
apenas dezessete anos de idade, jovem demais para ser mandado para a guerra.
— Acho que tem um monte de garotos fazendo isso, mentindo a idade para
conseguir ir.
Christine ficou chocada. Já era terrível o suficiente que os maiores de idade se
alistassem.
Então nem mesmo em casa ela ia conseguir escapar da guerra. Talvez não houvesse
lugar na terra onde não fossem tocados por ela.
Mas o Henry não irá, ele é necessário em casa. Esse fato lhe trouxe certo consolo.
— Está prevista outra tempestade hoje mais tarde, por isso o meu objetivo é correr
um pouco — disse o motorista. E ele acelerou. Christine ficou contente por ter sido
avisada.
A certa altura, ela estava certa de que eles iam parar numa vala. Estavam descendo
muito rápido quando a caminhão chegou a uma parte da estrada onde havia gelo.
Rodopiando, girando, balançando de um lado para o outro, o grande homem lutava
com as rodas, por um lado, depois por outro, por outro novamente. A neve voava,
tornando mais difícil a visão. Os pneus guincharam e a carga deslocou-se.
Quando o caminhão finalmente parou, com a frente ainda apontando para a direção
certa, Christine soltou lentamente o fôlego. O grande homem parecia absolutamente
tranquilo.
— Já esgotou toda a estrada principal — foi o único comentário.
Christine abriu os olhos e gradualmente abriu os punhos. Olhou para os nós dos
dedos e observou a cor retornar lentamente. Estava demorando ainda mais para
encher os pulmões de ar novamente.
Chegaram à cidade quando o sol estava se pondo, e, confirmando a previsão do
homem, um vento tinha se erguido e estava a começar a nevar.
— Vai ficar bem complicado daqui a pouco — disse o motorista. — Chegamos bem
a tempo.
Christine fez que sim com a cabeça, grata por ter chegado em casa inteira. Graças a
Deus eles não estavam na vala, indefesos e desesperados, presos na tempestade.
106
Assim que o caminhão encostou na frente da casa, ela viu a mãe abrir a cortina da
cozinha e olhar para fora, na escuridão quase completa. Quando Christine pegou a
mala, a porta estava aberta e a mãe estava à sua espera.
107
JANETTE OKE
Tomou um tempo para desempacotar e guardar suas coisas. Na cozinha, podia ouvir
a mãe se movendo, dando os retoques finais na refeição da noite. Teeko veio até sua
porta mais uma vez e clamou por atenção. Quando ela não respondeu, o cão saiu
novamente, provavelmente para se sentar à porta e esperar por Wynn.
Christine soube no momento em que o seu pai estava subindo pela trilha. Mesmo do
quarto conseguiu ouvir o excitado latido de Teeko e a batida da cauda maciça.
Wynn chegaria em breve.
— Tem notícias da Christine? — foram suas primeiras palavras.
— Ela chegou.
— Já chegou. Pensei que iam levar pelo menos mais uma hora. Está ficando muito
ruim lá fora. O vento mudou e está soprando forte. Vai ser um pesadelo ao ar livre.
— Bem, graças a Deus ela já está aqui, sã e salva.
Christine ouviu água sendo vertida. O pai estava se lavando para o jantar.
Quando se virou para sair do quarto e se juntar aos pais, Christine ouviu. O vento
estava atingindo seu pico, gemendo e chorando, enquanto corria ao redor da casa e
arrastava os bebedouros debaixo dos beirados. Houve a batida de algo, depois o
silêncio. Depois mais uma batida. Esperava que não fosse nada muita importante, o
que quer que fosse, e que não fosse arrancado na tempestade.
Christine entrou na cozinha a tempo de ouvir a mãe dizer:
— Este é a primeira tempestade que temos desde antes do Natal. Deve ser algum
tipo de recorde.
Wynn se endireitou, limpando as mãos na toalha grossa de algodão.
— Tem sido um inverno excepcionalmente bom até agora. Não é sempre que temos
tantos dias seguidos sem tempestades. — Ele se virou para olhar para Christine. —
Olá, Pequena. Ainda bem que você está em casa. — Wynn sorriu e pendurou a
toalha. — Como foram os dias com seu sobrinho?
Wynn atravessou a sala para dar um abraço na filha.
108
Capítulo 10
E
110
Christine se preparou para mais uma viagem inquietante.
A primeira coisa que Christine fez em Edmonton foi arranjar um quarto hotel. O
Rei Eduardo teria esgotado seus limitados recursos em apenas algumas noites, então
encontrou um pequeno hotel no centro da cidade. Parecia central para os negócios e
a maior dos lugares ficariam a apenas uma curta distância. Assim que se instalou no
quarto, foi ao saguão, comprou um jornal, e espalhou as folhas na mesa onde estava
comendo.
Não havia muitos anúncios de trabalho que parecessem promissores. Ela circulou
dois anúncios e disse a si mesma que entraria em contato logo na manhã seguinte.
— Eles tinham um anúncio para o turno da tarde — para trabalhar lavando pratos.
O garçom nem sequer olhou para ela quando respondeu. Apenas dispôs a sopa na
mesa — de forma bem desleixada —, e se virou para sair. Christine observou a
mancha da sopa na toalha de mesa e balançou a cabeça. Lavar pratos não era bem o
que ela tinha em mente, mas podia bem ser o que ia precisar fazer.
Ela comeu a sopa — o que ainda restava na tigela —, junto com uma ou duas fatias
de um pão que não estava muito fresco, bebeu o chá, e contou o dinheiro para a
refeição. Ela ia ter que ser cuidadosa até que garantisse um emprego.
Christine parou na recepção para perguntar ao cavalheiro careca com os óculos
redondos:
— Por acaso o senhor sabe de alguma vaga de emprego? Estou à procura de
trabalho.
O homem não a agraciou com uma resposta. Apenas balançou a cabeça e retornou a
atenção ao jornal que estava lendo.
Ela deu de ombros e foi para o quarto. Se era para encontrar trabalho, só podia
contar consigo mesma. Não havia grande ajuda de outras pessoas.
111
Christine não tinha a certeza se tinha sido a sopa do jantar ou o próprio frio na
barriga que a faziam sentir o estômago enjoado, mas teve dificuldade para pegar no
sono. Ela estava tentada a se vestir e ir até o saguão do hotel, e fazer um telefonema
para casa. Apenas ouvir a voz da mãe e do pai já lhe causaria um efeito calmante.
Mas o pensamento das taxas para chamadas de longa distância a mantinha na cama.
Por alguma estranha razão pensou em Laray. Basta apenas me mandar uma carta.
Parecia uma coisa tão fácil a se fazer. Estava disposto até a ir para Norte, ele disse.
E Laray era um bom rapaz. E, ainda mais importante, ele partilhava a sua fé. Então
por que ela estava hesitante?
Christine sabia a resposta. Ela só estava interessada nele por causa do que ele
poderia lhe proporcionar. Estaria usando ele. Essa não era a premissa certa para
iniciar uma relação que se esperava que levasse a um casamento sólido. Não
conseguia fazer isso. Simplesmente, não conseguia. Se fosse se casar com um
homem apenas para conseguir fazer sua vontade, ela sempre ia se sentir culpada.
Que tipo de relação poderia ser construída com base nisso? Ela esteve tão perto de
cometer um erro terrível, não ia se permitir errar novamente.
Ele merece muito mais do que isso, pensou repreendendo a si mesma. Ela nunca
conseguiria fazer isso com ele.
Então os seus pensamentos voltaram-se para Henry, o irmão mais velho que ela
sempre amara e admirara. Henry tinha sido paciente e permitiu que Deus tomasse a
frente de sua vida. E veja agora. Henry estava tão contente com a sua Amber e com
o seu filho, Danny. Sem dúvidas eles enfrentariam problemas pela frente, mas
estavam empenhados em resolvê-los juntos. Era assim que o casamento devia ser.
Uma parceria em pé de igualdade. Uma atitude de amor e respeito, de se unirem
para dar, não para receber.
Christine se virou e atirou as cobertas, lutando com muitos pensamentos e dúvidas.
Por fim, saiu da cama e ajoelhou-se sobre o tapete desbotado. O quarto estava frio,
mas ela não deu muita importância.
Havia apenas um lugar para ir com toda a sua agitação. Apenas Uma Pessoa que
poderia lhe trazer qualquer direção certa em meio à sua confusão. Christine
começou:
— Pai, preciso da Tua ajuda...
112
Estava ainda mais frio no quarto quando se levantou na manhã seguinte. Ela não
tinha dormido o bastante, mas depois que conseguiu pegar no sono, tinha dormido
bem. Por essa razão estava grata.
Estava ansiando por um bom banho quente, para ajudar a tirar o frio de seus
membros e começar o dia, mas a ida até o banheiro, que ficava no fim do corredor,
a deixou desapontada.
Christine inclinou-se para abrir a torneira, mas saiu apenas um chuvisco de água.
Não importava o quanto abrisse, a água não aquecia. Ela ia ter que tomar um banho
tépido, se de fato conseguisse que a água ficasse pelo menos morna.
Tomou banho apressadamente, sem qualquer incentivo para permanecer ali muito
tempo. Ela rapidamente se vestiu com o que esperava que fosse uma roupa
adequada para uma entrevista de emprego e desceu as escadas para o andar térreo
do hotel.
Christine pediu torradas e café. A torrada estava fria e velha, e o café amargo —
nada a ver com o da mãe. Tomou o desjejum da mesma forma que tinha tomado o
banho, como uma tarefa necessária antes de começar o dia. Segurando firme o
jornal que comprara, foi para a rua.
O frio matinal estava forte. Ela puxou a gola do casaco para cobrir o rosto e tentou
se desviar do vento enquanto caminhava, e quase esbarrou num cavalheiro
apressado, que vestia um sobretudo escuro. O homem murmurou algo que Christine
não desejava ouvir e seguiu em frente apressado.
O primeiro endereço era mais longe do que havia calculado. Quando chegou, já
estava congelada até aos ossos e desejou ter gastado o dinheiro num bonde.
O local parecia suficientemente promissor. Tinha esperança de que fosse bem-
sucedida.
O pequeno escritório incluía apenas uma escrivaninha. Havia uma mulher sentada
atrás da mesa, analisando as unhas longas e polidas.
— Desculpe-me — disse Christine após alguns momentos.
A mulher encarou Christine da cabeça aos pés. Ela inclinou a cabeça, mas não disse
uma palavra ao redor do chiclete que tinha na boca.
113
— Já foi preenchida.
— Preenchida?
— Sim. Foi o que eu disse.
— Mas estava no jornal da noite passada.
— Olha, foi preenchida, tá bem? Eu consegui o emprego.
— Você... ?
A mulher assentiu indiferente, enquanto mascava o chiclete com ainda
mais diligência.
— Entendi — disse Christine enquanto recuava lentamente em direção à
porta. Mas ela não entendia, não mesmo.
Christine voltou para a rua e conseguiu abrir o jornal contra o vento. Localizou o
próximo endereço e começou a caminhar novamente através da neve. Ela não viu
nenhum bonde passando, e essa acabou sendo uma caminhada de vários quarteirões
também. Seu rosto já estava dormente quando chegou.
Ficou se questionando se as suas bochechas estavam vermelhas ou brancas, de
tão congeladas.
O edifício não tinha um aspecto tão agradável quanto o anterior. Na verdade, as
coisas pareciam bastante desleixadas. O chão estava sujo, a cortina na
janela desajeitada e torta, as cadeiras na sala de espera desgastadas e atravessadas.
Christine não estava bem certa de que queria trabalhar num escritório
como aquele. Mas precisava do emprego. Ela respirou fundo e aproximou-se da
escrivaninha onde presidia uma mulher idosa e de aparência cansada. A senhora a
encarou com olhar lacrimoso e perguntou numa voz cansada: — Sim?
Christine sentiu imediata simpatia.
— Estou aqui por causa do anúncio no jornal. Sobre o cargo de secretária. Os olhos
da mulher brilharam.
— Oh sim — disse ela, e ficou em pé imediatamente.
114
Foi até uma porta e deu uma batidinha. Quando houve um exclamação rouca lá de
dentro, a mulher abriu a porta e colocou a cabeça lá dentro.
— Tem uma moça aqui, para tratar a respeito do trabalho.
Ela soou empolgada.
— Mande ela entrar.
No entanto, não parecia haver a mesma empolgação vinda de dentro da sala.
— Pode entrar — a mulher disse, e Christine prosseguiu sem sequer fazer uma
pausa para tirar o casaco.
Um homem idoso ergueu o olhar, tirando os olhos dos papéis que tinha na
escrivaninha. Sua expressão não era convidativa.
— Oh, era o que eu temia — murmurou ele.
Christine não fazia ideia do que o homem temia.
— Acabou de sair da escola — resmungou o homem.
— Não, senhor. Já tenho experiência.
— Então por que está procurando trabalho? Foi despedida?
O que ela poderia dizer? Christine tinha sido mesmo despedida — de certa forma.
Ela certamente não ia iniciar uma longa explicação sobre o noivado rompido com o
filho do patrão.
— Havia... circunstâncias...
— Circunstâncias? É o que todos dizem. Você não fez seu trabalho, é por isso que
as pessoas são despedidas. Os jovens de hoje parecem não se dar conta disso. Você
tem que aprender a fazer o trabalho se quer ficar empregada.
— Sim, senhor — Christine conseguiu dizer, olhando para a mancha no piso do
escritório.
— A minha mulher faz este trabalho há quarenta e três anos. Nunca foi despedida.
Quarenta e três anos, veja bem. Nunca precisou procurar outro trabalho durante
toda a vida. Esse é o tipo de funcionária que eu quero aqui.
— Sim, senhor — disse Christine novamente, sentindo-se como uma criança
repreendida por violar as regras no recreio da escola.
O homem acenou com a mão para ela, e depois em direção à porta.
— Eu não estou à procura de uma jovenzinha para embelezar meu escritório. Quero
alguém que saiba como trabalhar.
115
Christine entendeu que estava sendo dispensada. Ela fez um aceno com a cabeça e
virou-se para a porta.
Ao passar pela escrivaninha onde estava a mulher de ombros caídos, notou que o
rosto dela parecia novamente abatido. Pobrezinha, Christine pensou. Ficou tentada a
parar e oferecer um abraço reconfortante à mulher idosa, mas não se atreveu. As
duas podiam começar a chorar.
Christine não tinha nada a fazer senão enfrentar o vento novamente. Todo o longo,
longo caminho de regresso ao pequeno e simples hotel. Onde estavam os bondes
quando se precisava deles?
Ela decidiu parar numa pequena “lanchonete” para almoçar. Talvez uma xícara de
café quente pudesse ajudá-la a se aquecer.
Um cartaz na janela anunciava “Precisa-se de Garçonete com Experiência”.
Christine ficou tentada a se oferecer para a vaga. Poderia começar imediatamente.
Mas ela não tinha experiência. Era bem provável que fosse dispensada na mesma
hora, e sentia que não ia conseguir suportar mais uma rejeição. Não tão em cima
dos desapontamentos da manhã.
Christine não tinha boas notícias para partilhar quando foi até o saguão para
telefonar para casa, mas precisava falar com os pais. Sentia-se profundamente
sozinha, muito isolada, e profundamente deprimida. Tentou não deixar aparente seu
estado de espírito ao falar sobre o clima, sobre Edmonton e o quarto de hotel, mas
estava bem certa de que não conseguia enganar ninguém.
— Tem muitos anúncios de emprego, querida? — a mãe finalmente perguntou.
— Bem, tenho comprado o jornal, e visitado alguns lugares, mas até agora nada deu
certo. Vou seguir tentando. Estou certa de que o emprego certo logo vai aparecer.
Esperava que sua voz conseguisse demonstrar pelo menos uma pontinha de
esperança.
— Tenho certeza que sim. Essas coisas levam tempo.
Elas conversaram sobre outras coisas. Elizabeth tinha recebido uma carta de Henry
e Amber. Cada um deles tinha escrito uma — era tão bonito. Até mesmo o pequeno
Danny tinha assinado o nome e mandado beijos e abraços.
Havia algumas mudanças no escritório de Henry. O Sargento Rogers tinha sido
transferido — para algum lugar na Província de British Columbia.
116
Havia um novo recruta, e Henry estava ocupado ensinando a ele as rotinas. Henry
não sabia ainda como o novo policial ia se sair. Ele parecia estar meio ressabiado.
Então quer dizer que Laray ainda estava lá, pensou Christine. Ele provavelmente
não seria transferido para outro lugar tão cedo, com um novo recruta no escritório.
— Sim — murmurou Christine —, tenho certeza que sim. — Parece que eles
arranjaram um comprador para a barbearia. Amber está bastante entusiasmada. Diz
que terá todo o prazer do mundo em pendurar a tesoura. Henry diz que ela não vai
se safar assim tão facilmente. Depois de ter se habituado ao trabalho que ela faz, ele
não vai deixar que ninguém mais toque em seu cabelo.
Elizabeth riu.
Christine começou a pensar no custo da chamada. O simples fato de ouvir a voz de
sua mãe lhe trouxera grande conforto, mas ela não podia realmente se dar ao luxo
de continuar.
— É melhor eu ir, mãe. A ligação está ficando cara demais — disse ela finalmente.
— Há alguma forma de podermos falar com você?
Christine encontrou o número do hotel e esperava que o recepcionista pudesse
repassar um telefonema. Então ela se despediu e desligou.
Ela não tinha a certeza se sentia-se melhor ou pior enquanto subia as escadas até o
quarto. Tinha sido bom falar, mas agora sua solidão parecia ainda mais intensa.
Será diferente quando eu encontrar um emprego, prometeu a si mesma. Depois vou
conhecer novas pessoas e ter alguns amigos.
O que tinha que fazer imediatamente era encontrar uma igreja por perto. Isso lhe
daria as amizades que ela tanto precisava. Ela estava contente, pois o
117
JANETTE OKE domingo seria apenas dois dias depois. Certamente haveria uma
igreja à distância de uma caminhada. De alguma forma, ela ia encontrá-la.
A música fez mais do que animá-la. Tocou sua alma. Ela sentiu sair de seus ombros
o peso dos últimos e sentiu-se completamente pronta para o sermão da manhã.
Mas ao deixar o santuário, ansiava por mais do que uma saudação com a cabeça,
um sorriso, e um aperto de mão. Ela ansiava por amizade, conversa, talvez até um
convite para o almoço.
“Essas coisas levam tempo”, ouviu a voz de sua mãe dizendo. Christine sabia que
era verdade. Mas em sua solidão, orava para que não demorasse muito tempo.
118
Capítulo 11
D
urante os dias que se seguiram, Christine caminhou pelas ruas da cidade, seguindo
uma pista vazia atrás da outra. Estava ficando perigosamente sem fundos e seu
espírito ainda mais desanimado. Ela começava a temer que precisasse reconhecer a
derrota e voltar para casa. O
Parecia perfeito. Mal conseguia dormir, tamanha sua empolgação. Naquela noite,
suas orações foram mais específicas. Ela realmente desejava — necessitava —
aquele trabalho.
Quando chegou ao edifício de escritórios, as portas ainda não estavam abertas. Ela
andava de um lado para o outro, pisando os pés e batendo palmas para se aquecer.
Por fim, um cavalheiro com uma chave apareceu. Ele destrancou a porta, olhou
brevemente para Christine, e depois entrou sem dizer uma palavra. A porta fechou-
se atrás dele com um som de finalidade. Mas ela se recusou a ceder às suas emoções
conflitantes.
Não demorou muito até que aparecesse outro homem bem-vestido, que também
tinha uma chave. Ele até cumprimentou Christine com um aceno, e lhe desejou um
bom dia. Ela deu um passo para mais perto da porta, mas não foi convidada a entrar.
Uma mulher chegou, tão embrulhada em peles e cachecóis que Christine não
conseguia ver seu rosto. Ela tirou uma chave e abriu a porta.
— Com licença — Christine atreveu-se a dizer. — Estou aqui por causa do anúncio
no jornal. Para a vaga de secretária.
— Não abrimos antes das nove.
— Tem... tem algum lugar onde eu possa esperar... longe do frio?
Christine perguntou corajosamente.
A mulher hesitou, depois assentiu com a cabeça.
— Creio que não teria problemas.
Ela segurou a porta e Christine entrou, agradecida pelo calor que se apressou a
recebê-la.
— Pode usar uma daquelas cadeiras ali — gesticulou ela. — Vou chamá-la quando
o senhor Stearns estiver pronto.
Mas à medida que a manhã passava, Christine não era chamada. Quando era quase
meio-dia, ela tomou coragem de procurar alguém que pudesse ajudála. Ela andou
por um corredor curto.
Ali estava a mulher, ocupada manuseando um telefone e várias folhas de papel.
Christine esperou pacientemente até que a mulher desligasse o telefone.
— Com licença. Estou aqui para falar com o senhor Stearns.
A mulher, assustada, olhou fixamente para Christine com os olhos arregalados. Ela
passou a mão na testa, num gesto de agitação.
— Oh, meu Deus — ela disse. — Me esqueci de você.
O tom usado pela mulher indicava que Christine era, de fato, uma intromissão em
seu dia atarefado.
Christine recusou-se a ficar acovardada.
— Eu queria falar com o senhor Stearns — repetiu ela.
120
— Ele acabou de sair para um almoço. Você vai ter que voltar mais tarde. Não havia
nenhum arrependimento na voz.
— Vou esperar — disse Christine.
E ela realmente esperou. Dessa vez ela não foi se sentar no saguão exterior.
Tomou assento numa cadeira bem na recepção. Não queria ser esquecida
novamente.
Quase duas horas mais tarde, o senhor Stearns regressou. Ele era mais jovem que
qualquer um dos dois homens que Christine tinha visto entrar no edifício.
A recepcionista o viu tirar o chapéu e desabotoar o casaco.
— Aqui tem uma moça para o senhor entrevistar, senhor — disse ela abruptamente.
O homem lançou um rápido olhar na direção de Christine, e então disse para a
mulher.
— Eu vou avisá-la quando estiver pronto.
Não era o que Christine queria ouvir. Antes que pudesse se conter, estava de pé.
— Senhor — disse ela, com a voz soando mais forte do que ela pretendia. — Já
estou aqui desde antes das nove horas da manhã de hoje, e se este trabalho não
estiver disponível, agradeceria a cortesia de ser informada, para que eu possa sair
para procurar em outro lugar.
O homem olhou para ela por um momento, um ligeiro sorriso nas comissuras de sua
boca.
— Pode entrar — disse ele finalmente com um aceno de cabeça.
Ele liderou o caminho para o seu escritório.
Christine sentou-se na cadeira que lhe fora indicada. Seu rosto ainda estava
ruborizado devido a recente perturbação. Sentou-se com firmeza, cutucando
nervosamente a bolsa que tinha na mão. Ela tinha a certeza de que qualquer chance
que pudesse ter tido estava agora terminada.
O senhor Stearns conduziu a entrevista de forma muito profissional, e depois de
certo tempo, Christine sentiu a tensão se esvair. Ela ia gostar de trabalhar para este
homem. Ele era cortês, conciso e claro, e aparentemente bem-organizado.
Exatamente o tipo de chefe que iria apreciar. Oh, espero conseguir esta vaga
continuava passando por sua mente.
121
Embora Christine não tivesse perguntado, o salário foi mencionado, e era mais do
que ela ousara esperar. Mais do que recebia quando trabalhava para o senhor
Kingsley. Ia poder pagar por alojamento decente. A ideia fez seu coração pulsar
mais rápido.
122
Christine estava se preparando para dormir quando recebeu uma mensagem de que
a mãe a esperava ao telefone. Ela apressou-se a descer para o saguão e o telefone
público partilhado.
— Ela escorregou numa poça de gelo. O médico diz que nada parece estar
fraturado, mas ela vai precisar ficar de repouso por pelo menos duas semanas.
Christine gelou.
— Repouso? Então ela vai ter que ficar em casa?
— Foi o que disse o Jonathan. Ele não tem a certeza de como eles vão se virar. As
meninas não podem vir para ficar com ela, por causa dos pequenos em casa.
Jonathan diz que vai tentar encontrar uma pessoa que venha todos os dias para
ajudar. Ele não pode deixá-la sozinha. Não é que ele não possa pagar alguém —
mas é que trabalho com convalescentes está tão difícil de achar nesse momento, por
causa da guerra e tudo mais.
— Eu vou ajudar.
As palavras saíram da boca dela antes mesmo de Christine pudesse se conter.
— Oh, mas, querida...
— Está tudo bem.
123
Fiel à sua palavra, a recepcionista telefonou às dez horas. Quando Christine correu
para o saguão, não tinha certeza do que esperava ouvir. Se a mulher dissesse:
“Desculpe-me, mas você não conseguiu o trabalho”, pelo menos Christine sentiria
que não tinha sacrificado um trabalho de sonho pelo bem de sua tia Mary. Que Deus
sempre soube a resposta e estava preparando algo mais para ela.
Por outro lado, seria outro golpe em sua confiança, que já estava frágil, se a
recepcionista a informasse que eles tinham decidido que ela não tinha sido aceita,
afinal.
Mas foi uma voz entusiasmada que a saudou no outro extremo da linha.
125
— Eu sei. Lamento muito. Peço imensa desculpa, eu... eu queria mesmo esse
trabalho. De verdade.
Um longo suspiro foi ouvido através da linha telefónica.
— Eu também lamento. O senhor Stearns estava tão satisfeito com as suas
qualificações, e eu... realmente pensei que podíamos trabalhar bem em conjunto.
— Obrigada. Eu pensei o mesmo.
— Não tem outra pessoa que possa... que possa ir?
— Não. Não... já esgotamos a lista de possibilidades.
— Bem — a mulher suspirou novamente —, acho que não há nada mais a dizer,
exceto boa sorte, então. Lamento que não tenha dado certo.
— Por favor... por favor, diga ao senhor Stearns que lamento imensamente. Eu...
estou muito grata por sua... sua consideração por mim. Tenho certeza de que teria
gostado de trabalhar para ele.
— Vou dizer sim.
— E obrigada. Espero que encontre alguém para... para ajudá-la... logo. Desculpe.
Christine sentiu-se entorpecida ao largar o receptor. Por que? Por que as coisas
foram assim? Tinha pedido um emprego a Deus, e a vaga perfeita tinha aparecido
— essa que tinha sido oferecida há pouco. Então por que que a queda da tia Mary
veio no momento errado? Christine nunca ia entender. Nunca.
Mas Christine não podia se permitir chafurdar em autocomiseração. Tinha que
pegar um trem e muito pouco tempo para chegar à estação. Ela chamou um táxi.
Não ia conseguir caminhar e carregar todas as suas coisas. Contou o dinheiro que
tinha na bolsa. Era o suficiente para a tarifa de táxi, a passagem de trem e lhe
sobrava só um pouco mais. Assim que chegasse no tio Jon, é claro, ela teria
alojamento e alimentação.
Engolindo a profunda desilusão, Christine transportou as malas e caixas para o
saguão e ficou perto da porta, para que pudesse observar a chegada de seu
transporte para a estação.
Christine descansou a cabeça no encosto do banco alto
como muitos
126
outros viajantes tinham feito ao longo dos anos. A viagem de trem sem percalços
estava dando a ela tempo — muito tempo — para pensar. Não era para ser assim.
Não era assim que tinha planejado. Havia mesmo um propósito para tudo isto? Será
que estava fazendo a coisa certa? Ela certamente ia ter poucas oportunidades de ter
um trabalho como esse que tinha acabado de recusar. Será que estava cometendo
um erro terrível?
Mas será que conseguiria fazer o contrário? Havia alguma outra escolha sensata?
Não seria ela terrivelmente egoísta, se colocasse seus desejos próprios diante das
necessidades de um membro da família, uma pessoa que tinha se doado de forma
desinteressada à mãe de Christine — e à própria Christine — ao longo dos anos?
Gradualmente, Christine sentiu uma calma tomando conta de seu ser. Concluiu que
teria ficado ainda mais angustiada se tivesse aceitado o trabalho e deixado o tio Jon
a resolvendo as coisas por conta própria.
127
— Nem pense nisso! — Christine respondeu com um sorriso. — Ainda bem que eu
estava disponível.
— Mary mal pode esperar para te ver. Ela ainda está com bastante dor, receio eu,
com a coluna machucada, mas ela tenta se mostrar corajosa.
— Lamento muito mesmo, tio Jon — disse Christine com outro abraço.
— Sim, bem, estas coisas acontecem. Nem sempre para o nosso prazer. Mas a Mary
já encontrou uma lista enorme de coisas para estar agradecida.
— Agradecida?
— Está grata por não ter sofrido nenhuma fratura. Que não tenha sofrido uma
queimadura por causa do gelo, enquanto estava caída na calçada. Que um vizinho
estava passando quase que imediatamente. Que ela recebeu um bom tratamento
médico. Que ela não tenha que passar tempo internada no hospital. Que ela tem
uma casa acolhedora e confortável — a lista prossegue. Mas o maior de todos os
agradecimentos é porque você se dispôs a vir para ficar com ela. Este é o número
um da lista, creio eu.
Ele voltou a sorrir.
Christine conseguiu sorrir também. Ficou extremamente contente por não ter dito
não para essa oportunidade. Certamente, certamente, Deus tinha todo o resto
cuidadosamente planejado.
Em seguida, arrumaram a bagagem de Christine no carro e se afastavam da estação.
Jonathan continuou informar Christine sobre a situação em casa.
— Ela não pode se mover por conta própria de maneira nenhuma, o que significa
que ela precisa de ser virada de tantas em tantas horas. A dificuldade é fazê-la
relaxar e não tentar ajudar com o movimento. Ela se sente tão mal por precisar da
ajuda de outra pessoa. Mary nunca se acostumou a ser ajudada. É sempre ela que
oferece a ajuda. Esta é a maior dificuldade que ela tem.
Christine fez que sim com a cabeça.
— Claro que ainda temos a Lucy, e temos a senhora que ajuda na limpeza e
lavandaria. Mas me disseram que cuidado de enfermagem é outra coisa. O médico
apenas deu de ombros e me desejou boa sorte. Dizem que os hospitais estão
terrivelmente carentes de pessoal de enfermagem.
Conduziu o carro através de um cruzamento, depois continuou.
— Portanto, a sua responsabilidade será cuidar da Mary. Nada além disso. Não há
muito que ela possa fazer deitada de bruços, mas gosta que leiam para
128
ela, se você sentir que ia gostar de fazer isso. Eu trabalho das oito da manhã às
dezoito, todos os dias. Eu vou assumir quando estiver em casa.
Ele acelerou a subida da colina que levava à sua casa no Monte Royal.
— Espero que isso não seja pedir muito.
— Não, de jeito nenhum. Terei todo o prazer do mundo em cuidar dela.
— Neste tipo de situação, sempre senti que a melhor política é ter tudo claramente
compreendido logo à partida — prosseguiu o tio.
Christine assentiu em concordância.
— Não tive tempo de redigir nada no papel, mas se você quiser, posso fazer isso.
Christine ficou surpresa.
— Não. Não, isso não é necessário!
— Você vai ser paga mensalmente, com meio mês de salário pago adiantado.
— Salário? Oh, eu não posso aceitar um salário. Eu vim para ajudar. Meu quarto e
alojamento estão...
— Um salário sim, jamais ia pensar em fazer de outra forma. Aceite o salário ou te
enviamos de volta.
O tio Jon a encarou de relance, com a sobrancelha arqueada.
Christine fez que sim com a cabeça de forma estúpida. Ela nem sequer tinha
considerado trabalhar para receber algum pagamento.
— Se precisar de um novo adiantamento, em qualquer momento, para qualquer
coisa, por favor, não hesite em me falar — acrescentou o tio Jon, e então mencionou
o montante do salário.
Christine engasgou.
— Oh, isso é demais. Certamente...
— Averiguei o quanto seria o salário normal para essa posição. Foi-me assegurado
que esse é o custo para esse tipo de serviço, e eu jamais ia pedir que minha própria
sobrinha trabalhasse por menos que isso.
— Mas eu vim para ajudar...
— E você não sabe como estamos gratos — disse o tio Jon ao virar-se para olhar
para ela mais uma vez. — Eu estava tão preocupado com a Mary.
129
JANETTE OKE
Ela estava completamente fora de si, por causa das complicações da queda. Sua
presença aqui é de verdade a resposta para as nossas orações.
Parecia não haver nada mais para Christine dizer.
Ela subiu as escadas até ao quarto da tia. Parecia mesmo estranho ver a enérgica tia
Mary deitada quieta e pálida na enorme cama.
— Tia Mary — Christine sussurrou, e as pálpebras da mulher vibraram e abriram.
— Christine. Você veio, querida.
Um sorriso iluminou seu rosto, e ela estendeu a mão.
— Estou aqui. Vou voltar para cuidar da senhora assim que receber as instruções do
tio Jon. Ele disse que logo vai chegar a hora de tomar o remédio para a dor.
— Um comprimido. Sim. Estou ansiosa por esse momento.
Christine podia ver a dor no olhar da tia.
—Vou buscar água fresca e já volto — prometeu ela.
— Obrigada, querida.
Christine estava na porta quando a tia voltou a falar.
— Christine, estou tão contente por você ter vindo. Não estava muito animada para
passar os próximos dias na companhia de uma estranha. Vai ser tão bom ter você
aqui, minha querida.
Christine assentiu, sorriu, e saiu com a jarra de água.
130
Capítulo 12
C
hristine não podia negar que as semanas seguintes testaram a sua determinação em
confiar a Deus suas circunstâncias. Embora a tia Mary fosse pouco exigente e
cooperante, os dias se arrastavam de forma tediosa. Virar a tia na cama para evitar
as escaras era uma das maiores
Christine lia para a tia até ficar rouca, na esperança que o ritmo das palavras
servisse como distração. Ela não tinha certeza de que a tia estava realmente
acompanhando a história.
Mas as noites lhe pertenciam. No início, ela não tinha ideia como aproveitá-las, mas
depois fez amizade com duas moças da igreja, que acabaram sabendo de sua
situação. Logo as moças a convidaram a envolver-se com elas no auxílio ao centro
de militares, trabalhando com jovens soldados — homens e mulheres que estavam
alojados em Calgary.
Christine estava hesitante a princípio. O que ela podia fazer para ajudar? Mas
depois de uma ou duas visitas ao centro, descobriu que havia muitas coisas que ela
podia fazer — coisas tão simples como manter um bule cheio de café disponível ou
servir bolinhos quadrados. Não demorou para que estivesse totalmente envolvida
muitas noites da semana, procurando formas de trazer algum tipo de distração ou
alívio para aqueles que estavam de uniforme.
Muitos eram extremamente jovens e não eram tão corajosos ou confiantes quanto
fingiam ser. O coração de Christine sofria com eles, e orava com todo o seu coração
para que ela pudesse oferecer algum encorajamento, alguma luz para os que
estavam marchando para viver os horrores da guerra sem ter uma fé pessoal.
Não demorou muito para que ela descobrisse que muitos dos rapazes eram notórios
paqueradores. Pareciam ter a opinião de que a única razão por que as moças
voluntárias estavam ali era para conhecer algum jovem galã uniformizado, para
iniciar um romance tórrido. Christine não tinha essa intenção, e estava
continuamente tendo que esclarecer esse fato.
Apesar das complicações, Christine adorava o trabalho. Muitos destes jovens
tinham sido arrastados para as forças armadas numa onda de sentimentalismo
público, ou como um convite aberto a aventura, para conhecer o mundo. Poucos
pareciam ter devotado cuidadosa consideração para onde a sua escolha poderia
levá-los, e eles agora estavam repensando suas decisões. Não é que não fariam a
mesma escolha num momento mais sério, se sentissem que seu país
132
Ela não estava tentado minimizar o sacrifício deles. Longe disso. Ela os admirava
pela decisão que tinham tomado... desde que essa decisão tivesse sido tomada com
a compreensão das potenciais consequências.
Noite após noite ela ouvia as histórias das suas vidas, seus medos secretos —
quando se permitiam ser sérios o suficiente para falar abertamente. Brincadeiras
tolas, a aparente virilidade e as gargalhadas espalhafatosas geralmente mascaravam
o que realmente sentiam. Mas quando se sentiam seguros para partilhar seus
sentimentos mais íntimos, aquele momento era, muitas vezes, um convite aberto
para mostrar a eles Alguém que ia acompanhá-los, mesmo atrás das linhas inimigas.
Vários jovens, homens e mulheres, apareciam nos cultos dominicais nas igrejas
locais.
Mas havia muitos outros que não compareciam, que riam na face do perigo
iminente e reforçavam a sua própria ousadia com discursos vulgares e uma postura
de vaidade. Por vezes, Christine desejava sacudi-los para a realidade. Mas ela sabia
que a tática nunca iria funcionar. Eles precisavam de amor, precisavam de oração.
Precisavam ter a sensação de que havia quem os ouvisse. Os voluntários
esforçaram-se por fornecer o apoio que pudessem.
Finalmente chegou o dia em que o médico permitiu que Mary saísse da cama pela
primeira vez. Christine podia dizer pelo semblante da tia que ela ainda sentia dor,
mas mordeu o lábio e guardou para si qualquer comentário. Fraca pela falta de uso
de músculos, ela precisou de apoio enquanto dava os primeiros passos até a cadeira
que a esperava.
133
Em poucas horas, Mary estava pronta para voltar para a cama. Mas ela tinha
superado as expectativas do médico para o primeiro dia. No dia seguinte ela esteve
acordada por um período mais longo, e no dia seguinte ela passou quase metade do
dia numa posição vertical.
Mas não demorou muito até que Mary pudesse assumir a maior parte dos
alongamentos e elevações musculares por conta própria. Salvo se houvesse
complicações, Christine sabia que não seria necessária por muito mais tempo.
— Por que não procura um emprego por aqui, querida? — perguntou a tia Mary
numa manhã, enquanto trabalhavam em conjunto com a rotina diária. — Deve ter
muitos postos de trabalho disponíveis. Calgary está em plena expansão, me
disseram . E muitos jovens se alistaram e têm sido enviados para o estrangeiro.
134
realizado. As igrejas das cidades iam pagar juntas o salário do pastor. Parecia uma
ideia maravilhosa para Christine.
— O trabalho que você está fazendo é tão importante — prosseguiu a tia Mary. —
Estou ansiosa para voltar ao meu grupo de senhoras, para começar novamente a
preparar as caixas de cuidados. Estou sentindo falta de estar envolvida.
— Vou falar com o Jon. Acho que está na hora de você ser liberada para ir em busca
desse trabalho. Talvez ele até tenha algumas sugestões.
Christine estava entusiasmada. Tinha certeza de que jamais encontraria um emprego
tão perfeito como o que tinha perdido em Edmonton, mas não duvidava de que
Deus estava atuando em toda esta questão. Se ela tivesse ficado em Edmonton não
teria descoberto o projeto Cantina Esperança.
No dia vinte e cinco de março, Christine aproximou-se do prédio que Jonathan tinha
sugerido para a primeira entrevista de emprego em Calgary. Estava surpresa, porque
esse projeto ainda lhe causava nervoso. Desta vez tinha marcado um horário para a
entrevista e veio com a referência de Jonathan nas mãos. Ela esperava que a
entrevista fosse tão bem quanto a entrevista com o senhor Stearns, e que fosse
encontrar um chefe tão simpático como ele parecia ser.
O homem por detrás da grande escrivaninha parecia educado o bastante. O senhor
Burns fez perguntas lógicas e delineou requisitos lógicos.
— Conheço o Jonathan há anos, e não creio que ele a recomendaria se não
conseguisse fazer o trabalho — disse ele simplesmente. — Você pode começar na
segunda-feira de manhã.
Christine não podia acreditar que tinha acontecido com tanta facilidade — e assim
tão rápido. Pensou naquelas caminhadas durante o inverno frio em Edmonton e o
seu retorno desanimado no final de cada dia. Estava certa de que Deus estava de
fato no comando. Ela decidiu parar no caminho de volta para comprar uma caixa de
doces para a tia Mary e uma gravata nova para o tio Jon. Ela tinha um emprego.
Tinha dinheiro na conta bancária. Tinha um lugar para viver — se ainda quisesse
ficar com eles. E, mais importante, sentia que estava fazendo a diferença nas vidas
das pessoas. Que mais poderia pedir?
135
Mas por que não se sentia feliz? É evidente que estava feliz. Não, sentiase satisfeita.
Ela não se sentia realmente estabelecida. Perguntava-se se seria verdadeiramente
feliz até estar de volta ao norte, onde pertencia. Em qualquer outro lugar, sentia-se
como se estivesse apenas passando um tempo.
Seus pensamentos saltaram de repente para Laray. Estivera ocupada demais para
sequer pensar nele durante muitas semanas. Mas agora os dias de cuidar da tia Mary
tinham acabado. Agora ela podia retomar sua própria vida.
O que Laray estava fazendo agora? Será que tinha sido transferido? Henry não tinha
dito nada, nem a mãe mencionara nada a respeito em qualquer de suas frequentes
conversas ao telefone.
Não, era provável que ainda estivesse por lá. Será que ainda esperava por um
bilhete dela? De repente, a ideia de voltar a manter contato parecia interessante.
Christine ia gostar de saber o que estava acontecendo na vida dele. Queria que ele
pudesse fazer uma visita à cidade. Ia adorar levá-lo na Cantina da Esperança.
Deixar que ele ouvisse as conversas — algumas eram conversas casuais, outras
eram conversas sérias, onde alguns deles abriam o coração a respeito de seus medos
e esperanças. Ela ia gostar de que Laray conseguisse sentir o pulsar dos jovens que
estavam se preparando para servir seu país.
Basta me mandar uma carta. Será que ela conseguiria fazer isso? Mas o que isso ia
significar? Será que ele ia ter grandes expectativas? “Sem promessas”, ele dissera.
“Eu vou dar continuidade dali ”. O que ele quis dizer com isso? E será que ainda se
sentia da mesma maneira? Já tinha se passado quase três meses desde que tiveram
essa conversa. As coisas podem ter mudado desde então.
Ela decidiu aceitar o gentil convite do tio Jon e da tia Mary, de ficar morando com
eles pelo menos por um tempo. Eles elaboraram um acordo como se fosse um
aluguel, e Christine tinha certeza de que ela jamais teria feito um acordo melhor em
qualquer outro lugar. E nem teria tido mais cuidado mais amoroso — ou melhores
refeições. Ela se sentia abençoada.
Todas as coisas cooperam juntas para o bem, repetia muitas vezes para si mesma,
embora para ela fosse um mistério que Deus tenha permitido que a tia Mary
suportasse tamanho sofrimento só para que Christine fosse para Calgary. Quando
mencionou essa ideia para Mary, a tia disse rindo.
— Acho que não é isso que o verso significa... realmente — respondeu a tia Mary
ponderadamente. — Eu não responsabilizo a Deus pela minha queda. Foi o meu
próprio descuido. Eu sabia que as ruas estavam congeladas, e não devia ter me
apressado tanto. Mas você me conhece. O Jonathan está sempre me dizendo que eu
preciso desacelerar. Mas, quando acabou acontecendo, foi aí que Deus interveio e
fez com que algo de bom viesse de algo ruim. Concordo que você esteja aqui por
um propósito. Você tem um verdadeiro talento para ajudar, ouvir, partilhar sua fé,
que está colocando em uso na Cantina Esperança. Acho que esse é o lugar que Deus
preparou para você nesse momento. Não faço ideia do que Ele tem em mente para o
futuro. Mas Ele vai te deixar saber, para que você tenha tempo o suficiente para se
preparar para isso.
Christine fez que sim em concordância. Tinha certeza de que Ele lhe faria saber.
Mas seria um tremendo alívio ter tudo arrumado e apresentado claramente diante
dela. Era muito difícil dar um passo de cada vez.
137
tão curto. Pensei que talvez você pudesse vir, querida. Não é uma viagem muito
longa de trem. Depois você pega carona com o senhor Carson. Você vai ter um
feriadão, não vai?
— Tenho uma ideia melhor — sugeriu Christine. — Por que é que não você e o
papai não vem para cá? Ele também tem um feriadão, não tem? Vocês poderiam vir
de trem, e talvez Henry e Amber podiam vir até aqui de carro, pelo menos para o
Domingo de Páscoa.
Houve silêncio.
— Vou ter que falar com seu pai — Elizabeth finalmente disse. Mas
Christine podia dizer que a mãe ficara entusiasmada com a ideia. — Tem certeza de
que não seria problema para a tia Mary? — perguntou
ela.
— A ideia foi dela. Ainda outro dia ela disse: “Não seria divertido se eles
pudessem vir?” disse a tia Mary. “Talvez o Henry e aquele outro rapaz podiam
encontrar com seus pais aqui”, ela falou.
— Que outro rapaz? Danny?
— Não. Acho que ela se referia a Maurice Laray.
— Oh, não seria maravilhoso? Mas ele não pode ir. Eles jamais poderiam
deixar o Milton sozinho — concluiu Elizabeth.
Christine não tinha a certeza se sentia-se desapontada ou aliviada com essa
parte do plano.
— Vou falar com seu pai — disse a mãe novamente. — Seria maravilhoso
se pudéssemos ir.
Quando Christine desligou o telefone, virou-se para a tia.
— Acho que eles vão vir — ela disse, demonstrando sua empolgação
na voz. — Minha mãe disse que vai ter que falar com o papai, mas deu pra
perceber que ela está pronta para convencê-lo. A menos que aconteça algo que
o impeça de sair, creio que eles vão vir.
— Bom — disse Mary. — Não sei quando foi a última vez que tivemos
a oportunidade de passar a Páscoa juntos. Viu? Essa é outra vantagem de ter
você aqui.
Christine já estava planejando mentalmente todas as coisas que queria
fazer com os pais. Ela os levaria para a cantina uma noite, para que vissem em
138
primeira mão o trabalho que estava fazendo com os jovens em serviço. Ela os
levaria até o prédio onde ficava o novo emprego. Deixaria até que eles espiassem
sua caderneta bancária, para que soubessem que ela não estava desperdiçando seu
pagamento.
Seria tão bom voltar a ter uma longa e agradável visita, em vez de apressadas e
caras chamadas telefónicas.
— Oh, espero que eles venham — explicou ela, beijando a tia na bochecha. —
Obrigada por dizer que podíamos convidá-los.
A tia Mary riu.
— Minha querida menina — disse ela —, seus pais são sempre mais que bem-
vindos em nossa casa. Eles não podem visitar com frequência suficiente. Faremos
uma grande celebração. Teremos todas as crianças em casa para se juntarem a nós.
Vou chamar a Lucy imediatamente para começarmos a trabalhar nos planos .
139
Capítulo 13
Q
uando chegou a notícia de que os pais estavam planejando vir durante o feriadão de
Páscoa, Christine começou a contar os dias. E quando Henry telefonou para dizer
que eles viriam se encontrar com a família
todas juntos ao mesmo tempo? Oh, William e a sua família tem que vir, tem mesmo.
Christine ouviu o suave clique do receptor. A tia voltou a entrar na sala, passando as
mãos pela saia numa agitação nervosa. Os olhos dela estavam brilhantes.
Christine sorriu e perguntou-se o que tinha acontecido com o “Faça o que achar
melhor”.
— Ele disse que está muito ocupado no escritório nessa época do ano, mas que
tentará ajeitar as coisas para que possam vir. Disse que as crianças têm implorado
para ir para a casa da Nana. Não é um amor? Meu Deus, sinto tanta saudade deles.
Mais tarde nessa noite, William voltou a telefonar para dizer que estavam se
organizando para vir. Christine nunca tinha visto a tia Mary tão animada. Ela
começou imediatamente a telefonar para as filhas.
— Elas estão vindo. Estaremos todos aqui. Oh, não é maravilhoso? Será como
aniversários e o Natal todos misturados num só.
Um após o outro os telefonemas foram repetidos para Sarah, Kathleen, e Lisbeth,
cada uma com mais empolgação que a outra.
— Vamos nos reunir para planejar. Temos que trabalhar nos detalhes. Vamos
organizar o jantar de Páscoa aqui, é claro. Vai ser tão divertido ter que esticar a
mesa. Ainda não parei para contar quanto seremos. Pode vir aqui amanhã de manhã
para o café? Daí vamos tratar de tudo.
Christine teve de concordar. Seria como um grande Natal e aniversário juntos.
Wynn e Elizabeth iam ser os primeiros a chegar. Wynn
tinha conseguido uns dias a mais para ficar em Calgary, pois tinha alguns assuntos
da polícia para
141
— Será tão bom ver William, Violet, e os pequenos. Faz séculos que não os vejo —
disse ela entusiasmada.
— Os pequenos deles já não são tão pequenos — Jonathan comentou rindo.
— Meu Deus, não — acrescentou Mary. — Leticia já tem catorze anos. Eu mal
posso acreditar nisso. Brenda tem dez anos e Mark oito. E depois eles têm a raspa
do tacho. Paul Jonathan tem apenas dois.
Estavam falando de membros da família que Christine não conhecia.
— Eles vão ficar na casa de Kathleen — exceto Leticia. Ela vai ficar na casa do
Tom e da Sarah. A Janet, filha da Sarah é mais ou menos da mesma idade. Elas
escrevem uma para a outra com regularidade. Janet passou algumas semanas em
Winnipeg, no verão passado. Audrey não acha justo que ela não tenha uma prima da
sua idade. Ela diz: ‘Os meninos não são muito bons como primos’. William e Toby
tem a mesma idade, mas são um pouco desordeiros demais para Audrey. E Mitchell
está sempre ocupado tentando acompanhálos, apesar de ter apenas seis aanos. Claro
que o pequeno Andrew, o caçula da Lisbeth, ainda é muito novo para tentar
acompanhar a manada. Ele não está nem caminhando ainda.
— Estou tão ansiosa para ver todos eles — exclamou Elizabeth novamente.
—Vai ser divertido — foi o consenso de todos os presentes no carro.
Chovia quando o vagão vindo do leste parou na estação. Estavam todos reunidos
para recebê-los, os primos correndo por todo lado, chamando uns aos outros
excitadamente, enquanto os pais tentavam mantê-los firmemente sob controle.
Christine sorriu. Como é que alguém consegue controlar tanta exuberância? Até o
bebé Andrew protestou ao ser segurado, contorcer-se para descer e rastejar sobre o
chão da estação.
Por fim, o apito soprou. Tiveram de segurar as crianças para esperar que os
passageiros desembarcassem, e depois se rompeu o caos. Os primos se saudaram
142
com empolgação tão selvagem que Christine teve que dar alguns passos atrás.
Preocupava-se com a possibilidade de o chefe da estação se aproximar e pedir que
eles deixassem as instalações. Por fim, as saudações foram apaziguadas a um nível
mais normal, e se ocuparam em separar passageiros e bagagens, e se preparam para
carregar os veículos para a viagem de regresso à casa de Nana. Havia uma refeição
noturna planejada para todos partilharem juntos. Christine se perguntou como
seriam as coisas quando os primos fossem soltos em casa.
Mas foi mais tranquilo do que ela imaginava que seria. Os primos pareciam separar-
se em pequenos grupos por idades e iam um grupo para cada lado, deixando os
adultos tentrm recuperar o fôlego e partilharem as novidades.
Após alguns momentos, os primos foram reunidos mais uma vez e a refeição foi
servida. As crianças comeram muito mais depressa do que os adultos e, por causa
das circunstâncias, foram dispensados mais cedo e autorizados a sair para brincar
mais uma vez. Só ficaram os bebês, Andrew e Elizabeth, nos cadeirões, e o pequeno
Paul Jonathan, que tinha adormecido no colo do pai.
O alegre caos transformou-se agora em suaves murmúrios, pontuados por
gargalhadas ocasionais.
— Quando é que Henry chega? — William quis saber.
— Amanhã — respondeu Elizabeth. — Ele tem que trabalhar até às quatro horas e,
a partir daí, vai viajar de carro. Ele nos avisou que não vai chegar cedo. Disse que
devíamos pendurar a chave do trinco e irmos todos para a cama. Mas estou certa de
que ele sabe que vamos esperá-lo.
William sorriu conscientemente e brincou:
— Por isso ninguém o verá até sábado, então.
Ele riu-se enquanto Elizabeth tentava explicar que ia ficar acordada até eles
chegarem.
— Você sempre foi um provocador, William — disse ela quando se deu conta.
— Estamos planejando um lanche aqui no sábado de manhã — disse a tia Mary. —
Pensamos por volta das nove horas se as crianças puderem aguentar tanto tempo.
William assentiu.
— Nós damos a eles uma torrada, se acordarem muito cedo.
Gradualmente, a reunião foi terminando, com promessas de um para o
143
outro a respeito do que a atividade do dia seguinte ia trazer, mas Christine prestou
pouca atenção. Ela tinha que ir para o escritório.
Sentia-se um pouco contrariada, por não poder partilhar das atividades do dia. Ser
parte de uma família grande e unida a fez recordar a sensação da aldeia indígena
onde tinha crescido. Como se todos pertencessem uns aos outros. Cuidassem uns
dos outros. Ela tinha sentido falta disso.
144
esperava. Bateu dez horas, ainda sem o ruído do carro encostando na entrada.
Dez e meia.
— Por que não telefona para o Maurice, para verificar se o Henry estava ocupado
antes de sair? — Elizabeth perguntou a Wynn.
— Não tenho o número dele. Além disso, ele deve ter ido descansar agora.
— Então, basta telefonar para o escritório. Alguém deve estar trabalhando.
Wynn olhou para o relógio.
— Vamos dar a eles mais meia hora ou algo assim — sugeriu ele.
Quinze para as onze.
Christine percebeu que estava bocejando. Estava ficando tarde e ela tinha acordado
cedo. A mãe deve ter percebido.
— Por que não vai para a cama, querida? Vai ver eles pela manhã. — Depois
Elizabeth virou-se para Jon e Mary. — Por que vocês não vão para a cama também?
Não há necessidade de ficarmos todos acordados, esperando.
— Eu não me importo — disse Mary.
— Mas está ficando tão tarde. Você deve estar exausta. Já teve um dia tão longo e
amanhã...
— Está tudo bem, Beth — disse Mary enquanto se punha de pé e começava a
recolher xícaras de café na bandeja. — Acho que vou rapidinho para a cozinha lavar
essa loucinha, enquanto esperamos.
Christine também ficou de pé, e se espreguiçou.
— Eu vou ajudar a senhora — ela ofereceu, contente por ter algo a fazer para ajudar
a passar o tempo. A conversa tinha arrastado quase até uma parada.
Elas ficaram na cozinha durante vinte minutos. Christine tinha ficado atenta, para
ver se ouvia o som da abertura da porta da frente, seguido de saudações
entusiasmadas, mas não tinha ouvido nada.
Quando voltaram para a sala de estar, o rosto de Elizabeth demonstrava tensão. Era
agora onze e quinze. Sem uma palavra, Wynn se levantou da cadeira e foi até o
telefone no corredor. Passou algum tempo sem que ouvissem qualquer som da sua
parte.
145
Christine estava certa de que a mãe tinha ouvido a conversa com emoções mistas.
Henry tinha saído a tempo. Isso deve ser uma boa notícia, mas porque eles ainda
não tinham chegado? O pai tinha sugerido problemas com o carro. Era plausível.
Carros estavam sempre estragando em momentos inconvenientes.
Talvez as estradas. Só porque Calgary tinha recebido apenas uma leve precipitação
não significava que a chuva tinha sido fraca em outros lugares. Podia ter chovido
com muito mais força na área de Henry. Talvez até tenha causado uma enxurrada ou
problemas com uma ponte...
— Ele teria telefonado se...
— Ele não teria um telefone — disse Wynn antes que Elizabeth pudesse terminar.
— Certamente ele teria sido capaz de encontrar um — em algum lugar — por
agora.
— Talvez tenham decidido fazer um lanche pelo caminho — sugeriu Jonathan. —
Fazer um dia especial. Sabe como Danny adora pescar. O tempo pode passar
sorrateiramente quando não se está prestando atenção.
— Esso não é o jeito de Henry — murmurou Elizabeth, visivelmente perturbada.
— Por que não vai para a cama? — sugeriu Wynn. — Não há necessidade que
você...
— Você sabe que eu jamais ia conseguir dormir.
— Bem, podia pelo menos descansar.
— Não... não podia.
As palavras foram ditas com bastante rispidez.
— Acho que vou preparar um chá para nós — disse Mary, ficando de pé.
— Minha nossa. Vamos ficar encharcados — murmurou Elizabeth distraidamente,
mas Mary saiu para fazer o chá ainda assim.
146
Christine foi até a lareira. Desejava que tivessem feito um fogo. Pelo menos teriam
as chamas para observar, algo para desviar a atenção das expressões preocupadas
nos olhares uns dos outros. Ela apertou a nuca dolorida. Olhou novamente para o
relógio. Quase meia-noite. Concordava com a mãe num ponto. Não era típico de
Henry fazê-los esperar sem dar notícias. Ele ia saber sobre a agitação e preocupação
dos pais. Esse simplesmente não era o jeito de Henry.
E ele saberia que a chave não estaria pendurada do lado de fora, que todos estariam
sentados, à espera da sua chegada. Christine foi para perto da mãe.
— Gostaria que eu fizesse uma massagem no pescoço? — perguntou ela, sabendo
como se sentia e que Elizabeth gostava de ter o pescoço massageado.
A mãe nem sequer olhou para ela.
— Não — disse ela de forma concisa, depois pareceu ter se dado conta, dando a
Christine um sorriso forçado agregando: — Agora não, obrigada.
Christine retirou-se.
Mary chegou com o chá. Todos os presentes na sala aceitaram uma xícara, embora
ninguém parecesse prestar qualquer atenção ao seu conteúdo. Apenas se sentaram
segurando a xícara, observando distraidamente o vapor subir.
O telefone tocou e todos na sala saltaram. Jonathan estava lá em poucos passos.
— Sim. Sim. Não... não, receio que não. Não. Muito bem.
— Um número errado — disse ele encolhendo os ombros cansado. — Alguns
rapazes passaram tempo demais no bar.
Ombros de todos os presentes desanimaram com mais fadiga.
Elizabeth pôs sua xícara de lado e começou a andar de um lado para o outro.
— É só que... algo não está bem — disse ela, engolindo as lágrimas angustiadas. —
Henry não faria isto.
Wynn se levantou e a abraçou durante um bom tempo, antes de dizer:
— Acho que você tem razão, Elizabeth. Algo deve ter acontecido que saiu do
planejado. Essa não é a forma como nosso filho agiria. Creio que precisamos orar.
Gentilmente ele a levou para o sofá e se sentou ao lado da esposa.
147
Elizabeth agora chorava livremente. Wynn lhe entregou o lenço e a deixou enxugar
as lágrimas. Depois, pegou a mão da esposa e começou a orar. Os outros membros
da família presentes na sala se aproximaram e estenderam as mãos para se juntarem
num círculo, cabeças curvadas, e fechados os olhos cheios de lágrimas.
148
Wynn abraçou Elizabeth e acenou para o homem.
149
Capítulo 14
P
ensando naquela noite, fica difícil desemaranhar o restante dos eventos. De alguma
forma, Christine e os pais chegaram ao hospital local. De alguma forma, eles
revisitaram os escassos detalhes. De alguma forma, encontraram-se no quarto de
Henry, buscando no rosto inchado e enfaixada
o homem que era seu filho e seu irmão. O médico que estava ali na volta informou-
os numa voz baixa, mas profissional, que Henry “sofreu um golpe na cabeça, que
resultou numa concussão. O prognóstico é bom. As radiografias indicam que
podemos esperar que ele recupere a consciência sem muito atraso e não deverá ter
problemas significativos no futuro”.
151
Wynn se aproximou para pegar a mão de Amber, enquanto Christine ficou para trás.
Parada. Muda. O que pensavam que seria uma grande celebração em família
transformara-se num trágico pesadelo.
152
foram mandados para casa. Não adiantava nada ficarem sentados à noite na sala de
espera.
— Creio que seja melhor irmos para casa e tentarmos descansar um pouco — ele
aconselhou. — Vamos ter que voltar mais tarde. Danny vai estar acordado, e talvez
o Henry...
— Oh, tia Beth — disse Kathleen, atirando os braços em volta da sua tia favorita,
com lágrimas nas bochechas. — Lamento muitíssimo.
Elizabeth devolveu o abraço caloroso, segurando Kathleen apertado durante algum
tempo. Quando ela finalmente recuou, enxugou algumas lágrimas, mas o seu
semblante estava extraordinariamente controlado.
153
— Poderia ter sido muito pior — disse ela resoluta. — Sinto que nossa oração foi
respondida. Deus os protegeu.
— O que aconteceu exatamente? — perguntou William.
— Um homem avançou o sinal de pare, foi o que o Wynn descobriu a partir do
relatório policial. Ele tinha bebido um pouco demais e disse que não o viu.
— E suponho que saiu intacto?
— Nem sequer um corte.
William abanou a cabeça.
— Acertou-lhes precisamente no lado do passageiro — Wynn explicou. — A batida
foi pior no lado da Amber. O Henry bateu a cabeça, mas não têm certeza em que
bateu. Danny foi atirado por todo lado. Ele vai ficar sentindo dores por alguns dias,
mas não teve nenhuma fratura.
Wynn passou a mão pela nuca. Ele tinha confessado apenas para Christine que não
ia conseguir relaxar antes que Henry estivesse fora do coma, mas não ousou deixar
Elizabeth sentir a sua agitação.
Elizabeth se obrigou agora a sorrir em meio ao grupo.
— Nós iremos para o Hospital Geral, mas porque vocês não... não tentam fazer a
festa mesmo assim? Não vai ajudar em nada vocês todos perderem a diversão de
estarem juntos. Todos vão ficar bem. Vai levar certo tempo... mas eles vão
conseguir. Nós temos muito porque agradecer. Então... vão em frente. Aproveitem o
seu tempo juntos. É assim que Henry e Amber gostariam que fosse.
Foi um discurso corajoso. Christine admirava a mãe e esperava que os membros da
família fossem capazes de seguir com os seus planos.
Os três voltaram para o hospital logo depois de beberem um pouco de café. Não
tinham muito apetite.
Assim que se aproximaram da recepção, uma enfermeira os atendeu:
— Estava prestes a telefonar para a senhora — disse ela. — Creio que seu filho está
tentando acordar.
Apressaram-se a ir para o quarto do Henry. A única indicação de que ele já não
estava em coma era um gemido de vez em quando e um movimento da cabeça ou
da mão. Wynn foi o primeiro a estar ao lado dele.
154
— Filho. Filho, consegues me ouvir? Estamos aqui com você. Sua mãe, eu e a
Christine. Você consegue abrir os olhos, Henry? Consegue me ouvir, filho?
Elizabeth se aproximou e começou a fazer suas próprias súplicas.
— Henry? Querido? Consegue nos ouvir? Estamos aqui contigo. A Amber está
bem, e o Danny também. Eles estão preocupados contigo. Está acordado?
Mas Henry não respondeu.
— Vou ver a Amber e o Danny — Christine sussurrou, pois não suportava ver as
tentativas aparentemente fúteis dos pais.
Encontrou Amber ainda dormindo. A enfermeira que estava saindo do quarto dela a
advertiu:
— Ela precisa descansar. Essa é a melhor coisa para ela, no estado em que está.
Christine assentiu. Jamais ia acordar a cunhada.
Foi então até o quarto do Danny. O garotinho estava recém despertando. Quando
abriu os olhos, parecia totalmente confuso. Olhou para o quarto desconhecido, e
depois pareceu extremamente aliviado quando viu Christine.
— Onde está a minha mãe? — ele perguntou imediatamente.
— Ela está aqui, ainda está dormindo.
Ele parecia confuso.
— Que lugar é esse? É a casa da tia Mary?
— Não. Aqui... é um hospital.
Ele se levantou do travesseiro e fez uma careta.
— Por que estamos aqui?
— Os dois, mamãe e papai, estão aqui com você. Só que... que estão em outro
quarto —disse Christine, na esperança de evitar uma crise de pânico. Não tinha a
certeza sobre o que dizer à criança.
— Por que? — perguntou ele. — Por que não fomos à casa da tia Mary?
Havia medo nos olhos de Danny.
— Porque... — disse Christine, buscando palavras — porque o carro de vocês
sofreu um acidente. Vocês tiveram alguns machucados, que precisavam de ser
tratados.
— Será que a mamãe também ficou machucada?
155
Quando Danny recebeu alta naquela tarde, Elizabeth mandou Wynn e Christine
saíram para comprar uma roupa nova para ele. Ela não queria preocupá-lo com a
visão das manchas de sangue nas peças de vestuário. O
156
menino parecia animado com as novas roupas, mas não compreendia por que ele
tinha saído do hospital sem os pais.
157
— Por que a senhora está na cama?
Amber indicou para que erguessem Danny, para se sentar ao lado dela, e
algum tempo.
O menino franziu o cenho.
— Mas você vai para casa agora. Bem, não para casa, mas para a casa da tia
mãe e foi embora com o avô e a tia Christine. Elizabeth tinha retornado para o
quarto do filho, pois queria estar presente quando ele despertasse. — Você ainda
está preocupado, não tá? — Christine perguntou ao pai em voz baixa, na curta
distância até a casa do tio Jon.
158
Christine não voltou para o hospital com o pai. Todos concordaram que era preciso
que Danny tivesse alguém próximo a quem ele conhecesse. Não precisam de se ter
preocupado. Os primos pareciam todos entusiasmados em conhecê-lo, e os meninos
que estavam mais próximos à sua idade rapidamente o envolveram numa
brincadeira. Christine esperava que nenhuma das crianças fizesse,
inadvertidamente, um comentário que perturbasse Danny, mas os pais garantiram-
lhe que tinham transmitido o mínimo de informação possível. Qualquer fato que as
crianças soubessem o próprio Danny também saberia. Christine tentou relaxar.
159
JANETTE OKE
— Creio que o Danny está se saindo muito bem com as crianças. Quer que alguém
te leve ao hospital?
Christine não confiou em si mesma para falar. Sentiu as lágrimas ardendo os seus
olhos.
— Por favor — foi tudo o que conseguiu sussurrar.
Frank deu uma de chofer. Ela agradeceu sinceramente e apressou-se a encontrar os
pais. Eles estavam no quarto de Amber, oferecendo consolo, mesmo em meio ao
seu próprio pesar. Ela tinha perdido o bebê afinal de contas.
Com a alma em prantos, Christine fugiu do quarto. Ela não podia suportar ouvir os
soluços entrecortados da jovem mulher.
Ela entrou cambaleando no quarto de Henry. Ele se mexia de forma agitada, mas
ainda não tinha recuperado a consciência. Christine nem sequer conseguia forçar-se
a tocá-lo. Afastou-se, observando a luta do irmão para chegar à consciência. Oh,
Henry, exclamou ela silenciosamente, quando você acordar — se acordar —, quem
vai ter coragem de te contar que você e a Amber acabaram de perder o bebê?
As lágrimas rolaram pelo rosto de Christine, e já estava em meio a uma oração
quando percebeu que estava derramando sua tristeza e preocupação nos ouvidos do
Pai celestial. O que é que ela tinha dito a Deus? Ela não tinha a certeza. Mas Ele
sabia. Ele sabia. Ele conhecia o grito do seu coração.
Querido Deus, eu amo o meu irmão, continuou a dizer entre lágrimas. Eu o amo
tanto. Ele tem sido... tem sido tudo para mim. Por favor... por favor, permita que ele
fique bem. Permita que ele seja... o Henry novamente.
Ela só podia esperar e orar.
160
Capítulo 15
C
hristine encontrou finalmente coragem para visitar Amber mais tarde, naquela noite.
Os olhos de Amber ainda estavam vermelhos por causa do choro, mas ela estava
calma agora.
— Eu não consigo suportar a ideia de ter que contar ao Henry que... perdi
162
que ele ficasse aflito. Ele parecia totalmente envolvido na brincadeira quando saí de
casa.
— Deus não foi amável, ao arranjar todos esses primos para estarem aqui
exatamente quando Danny precisava deles?
Christine não tinha pensado por esse ponto de vista. Ela tinha pensado que os
planos deles tinham sido todos totalmente estragados.
Uma enfermeira entrou no quarto.
— Senhora Delaney. Como estamos indo? Conseguimos descansar um pouquinho?
Está na hora de tomar outra medicação.
Por que elas fazem isso? Christine queixou-se de si para si. Por que dizem sempre
“nós”, como se fizessem realmente parte de tudo isto? Bem, essa talvez seja a
resposta. Talvez elas queiram que o paciente sinta que estão juntos nisso, que eles
têm um companheiro na sua dor.
— Acho que vou voltar e ver como está o Henry — disse Christine, dando um
aperto na mão de Amber. — Te vejo mais tarde.
Não tinha ocorrido nenhuma alteração no estado do irmão que Christine pudesse
ver. Wynn e Elizabeth ainda falavam com ele, ainda lhe tocavam, ainda o
persuadiam para dar alguma resposta, mas não havia nada, apenas o ocasional
movimento ou gemido.
— Por que vocês não vão até a casa da tia Mary, para comer alguma coisa e vejam
como está o Danny? — Christine sugeriu. — Depois eu faço uma pausa quando
voltarem.
— Tem razão — concordou o pai, se levantando. — Se isto vai demorar algum
tempo, devemos elaborar algum tipo de sistema. Ninguém pode estar de serviço
vinte e quatro horas por dia.
Elizabeth parecia relutante, mas quando Wynn lhe trouxe o casaco, ela não
argumentou.
Christine instalou-se na cadeira junto ao leito e tocou a mão de Henry com a sua.
— Ei... acorda — disse ela, tentando manter a voz estável. — Chega de dormir.
Abra os olhos. Pisca. Aperta a minha mão. Faz alguma coisa.
Ela apertou-lhe a mão, mas não houve resposta.
— Boa noite.
163
Delaney — disse ele, apertando-lhe a mão. Pareceu sincero. — Foi bom ouvir que o
garotinho recebeu alta. Danny, não é?
— Sim, isso — respondeu Christine novamente.
Christine se levantou e moveu a cadeira para que o médico tivesse livre acesso ao
leito. Ele trabalhava rapidamente, verificando os instrumentos e gráficos, e falando
com Henry o tempo todo, como se ele estivesse totalmente desperto.
— A sua esposa, Amber, está bem, Henry, mas está ansiosa para vê-lo. E Danny foi
para a casa da avó.
Christine não tentou corrigi-lo. Não havia necessidade de ele tentar desvendar o
bando de parentes que tinham se reunido para o final de semana.
— Agora só precisamos te colocar de pé outra vez, Henry. Será que pode abrir os
olhos para mim? Pense, Henry. Concentre-se com força. Pode abrir os olhos? Pode
apertar a minha mão? E quanto à outra mão? Aperta.
— Ele tem feito algum movimento? — perguntou o médico a Christine quando não
houve uma resposta visível. — Viu os olhos dele piscando? Movese de alguma
maneira?
— Ele se movimenta um pouco... às vezes. Apenas... a mão esquerda e... a cabeça
um pouco. E ele geme. Não forma palavras, realmente.
O médico assentiu.
Christine encontrou pouco encorajamento na fraca descrição que ela tinha acabado
de fazer.
— Pelo menos algo está acontecendo ali. — O médico fez algumas notações no
bloco. —As enfermeiras logo vão vir para dar banho nele, e trocar a roupa de cama.
164
Christine assumiu que este era um convite educado para que ela saísse do quarto.
— Vou visitar a minha cunhada — disse ela, dirigindo-se para a porta.
— Acabei de vir de lá. Ela está dormindo.
— Oh. Bem... Então vou para o saguão.
— Há uma pequena sala para familiares, no final do corredor. Alguém te mostrou?
Christine abanou a cabeça.
— É um pouco mais tranquilo e privado do que o saguão. Fica na terceira porta à
direita. É só entrar.
Ele ainda estava fazendo anotações na prancheta. Christine murmurou um
agradecimento e saiu.
Terceira porta à direita. Não foi difícil de encontrar. Christine ficou aliviada ao
descobrir que o quarto estava vazio. Tomou assento num lugar, perto da única janela
e deitou a cabeça para trás. Ela estava tão cansada. Tão, tão cansada, e tinha uma
longa noite estendida à sua frente. Será que Henry ia acordar algum dia?
Ela fechou os olhos. Só então apercebeu que uma música suave vinha de algum
lugar. Era um hino simples. Ela o conhecia. Ficou tentando buscar as palavras na
mente. Quando a canção chegou ao refrão, Christine a acompanhou
silenciosamente.
Conte as bênçãos, conta quantas são.
Recebidas da divina mão.
Uma a uma, dize-as de uma vez.
Hás de ver surpreso o quanto Deus já fez.
Christine deixou que as palavras lavassem sua alma. Se fosse começar a contar,
quantas estariam em sua lista? Ela não tinha contado as bênçãos. Tinha contado os
infortúnios — mas certamente...
Eles estavam todos vivos — Henry, Amber, e Danny.
Estavam num hospital onde podiam receber cuidados.
Podia haver outros bebês — por maior que fosse a dor da perda agora.
Tinham membros da família que os amavam e partilhavam de sua preocupação.
165
lhe trouxe um café. Não sei como gosta de tomá-lo, mas sendo café de hospital,
achei que ia precisar de toda a ajuda que pudesse dar a ele. Coloquei creme e
açúcar. Encontrei uns biscoitos amanhecidos também.
— Obrigada — disse ela, aceitando a xícara. — Terei que acrescentar isso à minha
lista.
— Lista?
— Eu estava aqui sentada contando as minhas bênçãos — disse ela, com um ligeiro
aceno em direção ao rádio no canto, que continuava tocando.
— É um grande exercício para todos nós.
— É sim — respondeu ela. — Um exercício que eu tinha temporariamente
negligenciado.
— Você tem muito em que pensar — disse ele.
Christine tomou um gole do café. Normalmente ela não usava açúcar, mas estava
quentinho e estranhamente reconfortante.
— Apenas me diga como ele está? — perguntou ela com franqueza.
O jovem médico balançou a cabeça.
— Estas coisas são tão difíceis de prever. Ao que parece, deve estar bem. — Ele
hesitou, absorto em profundo pensamento. — Mas eu não pararia de orar ainda —
disse com a mesma franqueza.
— Então... há uma chance de... que ele possa estar mais seriamente...
— Há sempre uma chance. Nunca podemos ter cem por cento de certeza. O raio-X
parece bom. Vamos nos apegar a isso.
Ele sorriu.
A música mudou para “Oh, que Amigo em Cristo Temos”.
— Aqui, coma um biscoito.
Tirou um guardanapo branco do bolso e desembrulhou duas bolachas.
— Não tenho a certeza se os biscoitos servem para tirar o sabor do café ou se o café
serve para ajudar a engolir os biscoitos — mas foi o melhor que pude fazer.
166
Com um sorriso, Christine aceitou um biscoito.
— Você também não é da cidade? Soube que o seu irmão estava chegando à cidade.
— É isso mesmo. Mas eu sou... bem... não tenho bem certeza de onde sou nesse
momento.
O médico a encarou com surpresa.
— Os meus pais moram em Athabasca.
— Seu pai também é policial, pelo que entendi.
— É um Policial Montado, isso mesmo.
— Ele não gosta de ser chamado de policial?
Christine deu de ombros.
— Nunca o ouvi falar nada, as a minha a mãe não gosta muito do termo.
— Vou manter isso em mente. — Ele sorriu. — Mas você não está morando com
eles, acredito.
— Não, estou trabalhando aqui na cidade mesmo.
— Aqui? — ele ergueu o cenho novamente admirado. — Então, onde você
trabalha?
Christine contou.
— E você mora...?
Christine contou a ele como veio ajudar a tia Mary e acabou ficando com eles.
— E se não estou sendo muito ousado, que mais você faz... além de trabalhar?
— Eu ajudo na Cantina Esperança... como voluntária.
— Já ouvi falar desse lugar. Parece ser um grande ministério.
— E também vou à igreja.
— Ora, nunca te vi na minha.
Dava para perceber que ele estava brincando.
— E a sua é...?
— Comunidade Fellowship.
— Não... não, nunca estive lá. Frequento uma congregação na Terceira Rua, com a
minha tia e o meu tio.
167
— É um pequeno grupo?
— Era pequeno. Já não é mais um grupo, estão planejando construir. — Isso é bom.
— Ele terminou o café e ficou de pé. — A propósito, fui
até o quarto da sua cunhada quando vinha para cá. Ela está acordada agora.
Christine se levantou também.
— Obrigada. Eu vou... vou até lá.
Ele assentiu e segurou a porta.
— Pode usar essa sala a qualquer momento — ele disse. — Ela está aqui
168
— Acho que seria uma boa — ela concordou.
Deu um beijo de boa noite na mãe e olhou para Henry uma última vez. A
enfermeira ainda estava lidando com a injeção. Depois, Christine se virou e seguiu
o pai até o carro.
— Acho que o Danny ia gostar que você o colocasse na cama, se já não estiver
dormindo quando chegar. Ele acabou de tomar o remédio, antes de sairmos de casa.
Não sei se o remédio também é um sedativo, além de ser analgésico. Mas se o for,
já deve estar dormindo.
— Vou ver.
— Nem pense em voltar esta noite — disse Wynn para a filha. — Você precisa
descansar um pouco.
— Você não está planejando ficar a noite toda, está?
— Não tenho a certeza se consigo afastar sua mãe. Talvez façamos bom uso
daquela saleta que você mencionou. Tem algum um sofá, onde ela poderia deitar?
— Eu nem sequer reparei. Sentei-me numa cadeira. Mas era confortável.
Pararam em frente à casa de Jon. Christine segurou o trinco da porta do carro.
— Pai — disse ela, virando-se. — O que acontece se... se o Henry não sair dessa?
— Não temos razões para pensar que ele não vai sair — disse Wynn, rápido demais.
— Mas, o que acontece se... se ele não melhorar? Se não puder mais trabalhar?
As palavras quase não passaram pelo nó que tinha na garganta.
— Não sei — disse ele com franqueza. — Vamos ter que aceitar o que vier.
— Ele ia odiar isso — não ser um policial. — Christine usou o termo apesar da mãe
não gostar. — Essa é a única coisa que ele sempre quis ser.
— Eu sei.
Ela abriu a porta e saiu. A noite ainda estava quente. Christine se virou para ver o
pai se afastar. Tinha quase esquecido — amanhã era Domingo de Páscoa. Um dia de
novos começos. Um dia de esperança — de ressurreição. Um dia de celebração. Ela
se perguntou o que aquele dia reservaria para eles.
169
No início era apenas um tremor numa das pálpebras. Eles quase não conseguiram
ver. Quando não voltou a ocorrer, pensaram que talvez tivessem imaginado. Depois
um dedo se mexeu. Uma vez... depois outra. Passaram-se quase quinze minutos até
que os olhos de Henry tivessem aberto parcialmente. Mas voltaram a fechar, e
apesar da urgente persuasão, eles não abriram novamente.
Aperta, Henry.
De repente, os olhos dele se arregalaram, olhando assustados. — Ele apertou —
exclamou Elizabeth arfando. — Ele apertou! — Faça de novo — sugeriu Wynn.
Christine sabia que o pai achava que
poderia ser apenas uma reação involuntária. Wynn inclinou-se sobre a mão e
observou cuidadosamente conforme Elizabeth repetiu o comando.
— Aperta a minha mão, Henry. Aperta, filho — implorou ela, como só uma mãe
poderia fazer.
Os dedos apertaram-se visivelmente ao redor da mão de Elizabeth.
— Ele apertou. Ele apertou — gritou Christine, enquanto Wynn abriu um largo
sorriso.
— Chame a enfermeira — Wynn a instruiu. Elizabeth estava empenhado demais
falando com o filho.
— Henry... estávamos tão preocupados — disse Elizabeth. — Abra os olhos, filho.
Fale conosco. Estamos aqui, Henry. Estamos aqui mesmo. Fale conosco, filho.
Consegue abrir os olhos?
Henry abriu.
No início o olhar parecia vago, dando a impressão de que não se concentravam em
nada na sala. Em resposta à chamada, uma enfermeira entrou apressada pela da
porta, seguida em rapidamente por dois médicos. Mas Elizabeth recusou-se a ceder
seu lugar, mesmo para o pessoal médico.
— Sou eu, Henry. Sua mãe. Consegue falar conosco?
A cabeça de Henry moveu-se ligeiramente, como que para limpar a visão. Ele ainda
parecia confuso. Seus olhos voltaram-se para Elizabeth. Ele franziu o cenho.
170
— Temos que ir ver a Amber — sugeriu Wynn. — Ela vai querer saber tudo sobre...
— Sim. — Elizabeth virou-se para o quarto da Amber. — Nós temos notícias tão
maravilhosas para dar.
Mas será que era realmente uma boa notícia? Christine não tinha a certeza. Não
tinha havido oportunidade de levar Amber até o leito de Henry antes que ele
retornasse para seu estado de inconsciência. Mas ele tinha, para aqueles breves
minutos, sido capaz de se lembrar — capaz de raciocinar. Talvez isso fosse
suficiente para dar esperança a Amber.
Christine seguiu os pais saindo da sala. Ela pensou no culto da manhã na pequena
igreja, onde todos tinham ido para adorar juntos antes de virem para o hospital.
Tinha acontecido uma sincera oração, quando a congregação se ajoelhava unida.
— Senhor, neste Domingo de Páscoa, de entrega e restauração, pedimos outro
milagre da Tua mão — orou o pastor. — Se é da Sua vontade, ponha Seu toque
curativo sobre o jovem Henry. Toque em seu corpo e em sua mente. Traze-o de
volta à sua família, Senhor, nós oramos.
Parecia que as suas preces estavam a começar a ser respondidas.
172
Capítulo 16
—T
á faltando um monte de... peças.
O progresso de Henry pareceu terrivelmente lento para Christine, mas ele estava
gradualmente parecendo e soando como ele mesmo. Deixaram que fosse ver Amber
de cadeira de rodas e agora podia para fazer a maioria das coisas sozinho. Os
médicos estavam até mesmo falando em lhe dar alta.
174
de vidas. Para trazer dor e preocupação a muito mais pessoas do que as que estavam
no carro que atingiu.
Christine podia ver que Henry estava ficando irritado. Ela esticou a mão para
tranquilizá-lo.
— Não pense nisso. Tente não...
— Como posso não pensar nisso? — Henry olhou fixamente no rosto de
Christine. — O meu filho está sendo cuidado por outros, numa casa que não é dele.
Minha mulher está deitada com a pélvis fraturada e um coração partido ainda mais
dolorido. Não sei se um dia vou ser capaz de trabalhar novamente, Christine. Talvez
eu seja apenas um... um corpo inútil para o resto dos meus dias. Eu não estava em
serviço, por isso não haverá compensação para a minha mulher e minha família.
Eu...
175
Christine ergueu a cabeça para poder olhar o rosto pálida de Henry, agora contrito
com a emoção.
— A canção era “Conta as Bênçãos”. No início, nem pensava que tivesse alguma
bênção para contar, e depois comecei a pensar em... como as coisas poderiam ter
sido muito piores. Comecei a contar. Eu realmente contei... e como dizia a canção,
eu fiquei impressionada. Nós realmente temos razões para sermos agradecidos,
Henry.
Henry concordava com a cabeça, de forma sutil.
— Depois este doutor — o Dr. Carlton, acho que era o nome dele — apareceu de
repente com uma xícara de café — um café realmente horrível... — Christine
conseguiu dar um sorriso —, e uma bolacha amanhecida. E eu acrescentei isso à
minha lista. Oh, não o café e o biscoito — mas a compreensão. A compaixão de
alguém.
O maxilar de Henry tinha relaxado.
— Ele me deu uma animada — realmente deu.
— O Dr. Carlton? — perguntou Henry.
— Acho que é esse o nome dele.
— Sim, eu o conheço. É um bom homem. Ele me deu uma animada também, em
mais de uma ocasião.
Christine esfregou as mãos juntas, perguntando-se se ela se atreveria a falar mais.
Finalmente engoliu seco, e seguiu adiante.
— A tia Mary e eu estávamos conversando uns dias atrás. Sobre a queda dela — e
tudo. E sobre o versículo que diz, “Todas as coisas cooperam para o bem”. Bem, ela
disse que não via a queda dela como obra de Deus, como parte do Seu plano ou
algo assim. Mas ela via o bem que acabou vindo depois, bem que talvez não tivesse
acontecido se ela não tivesse caído e se machucado.
— Então você está dizendo que eu deveria ver isto como uma espécie de bem?
— Não. Não, não estou dizendo isso de forma alguma. Estou apenas... estou apenas
tentando dizer que... mesmo no caso desse acidente, Deus pode trazer algo bom
como resultado... se permitirmos que Ele aja.
Ela ouviu o suspiro profundo do irmão. Quando olhou para Henry, percebeu que as
lágrimas estavam espremidas de debaixo dos olhos fechados e deslizando pelo rosto
pálido.
176
— Eu precisava ouvir isso — disse ele num meio sussurro. E isso foi tudo.
Henry teve alta primeiro. Por causa das circunstâncias, a sede da Real Polícia
Montada Canadense permitiu que ele ficasse em Calgary, para estar perto da esposa
e para buscar tratamento médico adicional, se necessário. Christine achou que a
cada dia ele lembrava de mais coisas que faltavam, pedaços da sua vida, mas ela
não tinha a certeza. Talvez ele fosse apenas muito bom em esconder.
Grande parte do seu tempo era passado na cabeceira do leito de Amber. Os médicos
pareciam satisfeitos com o progresso da fratura, e ela gradualmente estava lidando
com seu luto.
Christine foi para o hospital depois do trabalho para ficar com Amber, e Henry e
Danny passaram esse tempo juntos à noite. Danny não obteve o privilégio de visitar
o hospital, portanto, algumas palavras eram levadas de um para o outro. Christine
tinha certeza de que uma visita real teria sido benéfica para todos, mas regras eram
regras.
Ela estava apenas de saída uma noite quando quase colidiu com um médico
apressado de jaleco branco. Enquanto ambos se desculpavam, Christine percebeu
que era o Dr. Carlton. Quando a reconheceu, o jovem médico sorriu.
que as enfermeiras possam preparar os pacientes para a noite. Não tem nada a ver
com o quarto dos visitantes.
177
— Não... imagino que não mesmo. — De alguma forma, eles tinham começado a
caminhar juntos para o refeitório. — Em vez de ajudar outros a se prepararem para
a batalha, você teve que lutar uma batalha pessoal.
Christine concordou.
— Como está o Henry, desde que teve alta?
— Eu não sei bem — Christine admitiu depois de uma cuidadosa reflexão
sobre sua resposta. — Às vezes, acho que ele está muito bem. Mas aí então, ele...
muda de humor. Henry nunca foi mal-humorado. Nunca.
— Mas isso é algo esperado. — Ele agora falava como médico. — Muitas pessoas
que tiveram o mesmo trauma que o Henry teve passam por essa crise emocional.
Christine ficou alarmada. Ninguém tinha mencionada nada a respeito disso. — Será
que isso vai passar? — perguntou ela.
— Normalmente sim. Quase sempre, na verdade. Mas leva tempo. O
Christine fez que sim. Ela realmente conseguiu ter uma imagem mental do
ferimento.
— Quanto tempo...?
— Não dá para saber. Depende de muito fatores.
Eles tinham chegado à porta do refeitório, e o Dr. Carlton segurou-a para que
Christine entrasse.
— O café aqui é um pouquinho melhor do que o lá em cima. Mas talvez você
queira experimentar o chá.
— Na verdade, estava pensando em tomar algo frio. Talvez uma Coca
-Cola.
— Coca-Cola parece ótimo.
Ele segurou a cadeira enquanto Christine se sentava na pequena mesa, depois pediu
duas Cocas à jovem garçonete com o avental listrado e gorro rígido.
— Seus pais foram embora da cidade? — perguntou ele quando a moça —
“'Molly”, pelo que dizia no crachá — colocou os copos gelados na frente deles.
178
— Sim. Eles foram para casa na quinta-feira passada. Meu pai teve que voltar ao
trabalho. Ele sugeriu que minha mãe ficasse — mas ela me surpreendeu. Insistiu em
ir para casa. Acho que isso significa que ela estava um pouco mais tranquila a
respeito do Henry.
— A Amber? Sim. Ela estava muito alegre essa noite. Contando os dias para poder
receber alta.
— Eu não consigo entender — disse ele, fazendo um gesto de simulada aflição. —
Aqui tomamos conta deles tão bem. Levamos café na cama todas as manhãs,
esfregamos as costas deles todas as noite, atendemos tudo, a qualquer momento —
e ainda assim mal podem esperar para sair do nosso hospital.
Christine percebeu que a leve brincadeira a ajudava a relaxar.
— Exceto uma velhinha querida — ele disse rindo. — Tínhamos que praticamente
empurrá-la porta a fora, e toda vez que nos virávamos, lá estava ela de novo. Era o
ombro que tinha dado um jeito, ou o dedão do pé que doía. Qualquer coisa servia.
Me contaram que ela deixava prontinha a mala do hospital, caso sentisse uma
pontada. Querida Senhora Maria das Dores.
— Era esse o nome dela de verdade?
— Não oficialmente.
Christine riu.
O Dr. Carlton colocou os cotovelos sobre a mesa e inclinou-se para a frente.
— Conte-me sobre a Cantina Esperança.
— Faz tanto tempo que não vou lá que é como se eu tivesse perdido o contato —
admitiu Christine.
— Quase duas semanas — respondeu o médico. — Completa duas semanas
amanhã.
Ela ficou surpresa.
— Visitei o local algumas vezes. Queria ver por mim mesmo. É um lugar e tanto.
Me disseram que sentem a sua falta.
Christine sentiu as suas bochechas coradas.
— Você acha que consegue voltar logo?
— Eu... eu espero que sim. Henry passa os dias com Amber, mas ele... gosta de
passar tempo com o Danny à noite. Por isso, eu visito o hospital. Não
179
a informou.
— Eles tem?
— Recém saíram da fazenda, e das ruas da cidade, também, eu acho. Todos
crianças.
— Sim, eu sei.
180
Ele sorriu. Christine deu um pequeno aceno e pegou a bolsa.
Finalmente, Amber recebeu alta e foi trazida para a casa de Jon e Mary,
acompanhada por um aliviado Henry e um exultante Danny.
— Olha! — ele exclamou antes mesmo de chegar à porta. — Minha mãe está aqui.
Amber foi levada para dentro, e conduzida para o sofá na sala.
— Eu sou absolutamente péssima com as muletas — admitiu ela com uma
gargalhada. — Parece que não consigo encontrar o ritmo certo.
— Não há ritmo certo para as muletas — respondeu a tia Mary.
— Estou totalmente convencida disso.
Celebraram fazendo sorvetes, que comeram com morangos enlatados e calda de
chocolate. Ainda estava muito cedo para morangos frescos colhidos no jardim dos
fundos.
— Este é o melhor que já provei — anunciou Danny. Christine tinha a certeza de
que até os espinafres teria um sabor maravilhoso para o garoto, tamanha era sua
animação. — Vamos para casa agora, pai?
— Talvez amanhã — Henry sorriu. — Vamos ver.
Henry tinha uma reunião no escritório local do RPMC na manhã seguinte. Após
consultas com os médicos, eles iam decidir o que seria feito no caso de Henry.
Christine sabia Henry que estava, sem dúvida, ansioso. Ela orava em seu íntimo que
as coisas corressem bem.
Amber se retirou cedo, após o dia estafante. Christine estava certa de que todos
estavam se sentindo esgotados. Ela gostaria de ter ido para o seu quarto também,
mas não queria deixar Henry sozinho.
Mary e Jon tinham saído para uma reunião na igreja.
— Amber está com um aspecto muito melhor — observou ela enquanto se
sentavam na sala de estar depois de terem colocado Danny na cama.
Henry concordou.
— Creio que ela finalmente aceitou a perda do nosso filho. O pastor Blessing —
não é um nome interessante para um pastor — a visitou várias vezes. Isso ajudou
muito.
— Ela me contou.
— Para começar, ele disse que o bebé podia ter sofrido severos danos no acidente.
Foi muito mais bondoso da parte de Deus levar o pequeno para casa do que o bebê
sofrer com alguma terrível deficiência.
— Você acredita nisso?
— O quê? Que o bebê pode ter sofrido danos? Mas é claro.
— Que foi mais amável que ele partisse?
Henry balançou a cabeça.
— Não tenho certeza. Amber e eu teríamos amado e aceitado ele — ou ela —
independentemente de qualquer coisa. Quanto à deficiência trazer sofrimento,
depende. Muitos portadores de deficiência vivem uma vida plena e rica. Eu não
tiraria a deficiência deles. Nós só não compreendemos o mundo deles, só isso.
— Há um jovem que ajuda na Cantina Esperança. Ele tem síndrome de Down, eu
acho... mas ele... está sempre feliz. Ele serve o café e entrega sanduíches, e por onde
ele passa, está sempre sorrindo e chamando as pessoas. Às vezes acho que ele traz
mais alegria aos outros do que qualquer um de nós.
— Acho que dependeria se a deficiência traria também dor insuportável.
— Sim. Mas ainda assim, como sabemos se a alegria de apenas estar vivo — de
interagir com os outros —, supera o peso da dor?
— Estou contente por essa decisão não ser minha — mas de Deus.
Christine deixou os minutos passarem.
— Eu encontrei aquele jovem médico novamente. Eu te contei? — ela disse por
fim.
— Eric Carlton?
— Eric? Esse é o nome dele? Bem, eu literalmente esbarrei nele no hospital.
Tomamos um refrigerante. Ele tem ido de vez em quando na Cantina Esperança. Ele
fica tão perturbado quanto eu, com todos aqueles jovens indo para a guerra.
— Nem todos são jovens. Muitos maridos e os pais também estão...
— Eu sei. Mas é basicamente os jovens que nós acompanhamos na cantina. São
eles que estão à procura de alguma maneira de preencher suas noites. Algo para
distrai-los.
182
— Estou contente que o doutor Carlton esteja indo lá. Ele deve ser bom com os
jovens.
— Sim, creio que sim. Ele disse... ora, talvez isso tenha servido apenas como um
encorajamento, mas ele disse “estão com saudades de mim”.
— Tenho a certeza de que estão mesmo. — Henry esticou as longas pernas e se
recostou para trás. — Bem, a sua vida logo deve voltar ao normal.
— E a sua?
— Depende do que disserem amanhã. Eu me sinto um pouco melhor a respeito de
tudo isto. Pareço ser capaz de me concentrar melhor, e eu não... bem, eu tenho
conseguido, com a ajuda de Deus, lidar com a raiva. Devo admitir que ainda me
preocupo um pouco. Se eu não for visto como apto para o trabalho, não sei o que
vamos fazer. Não quero que Amber tenha que sustentar a família cortando cabelo
pelo resto da vida.
— Oh, Henry... não vai chegar a esse ponto.
Ele sorriu, mas parecia um pouco escuso.
— Bem, o que quer que seja, eu finalmente consegui entregar nas mãos de Deus. Eu
amo o meu trabalho — você sabe disso. Mas se eu não for considerado apto o
suficiente para continuar, tenho a certeza de que Deus, como você disse, pode
realizar algum bem. Pelo menos ainda tenho a minha mulher e o meu filho. Depois
de um acidente de automóvel como o que tivemos, sou verdadeiramente abençoado.
O refrão da canção começou a soar na mente de Christine mais uma vez.
— Sabe, Chrissy — Henry prosseguiu calmamente —, se eu puder continuar com a
RPMC, não sei como vou agir, se um dia tiver que ir até a porta de alguém e
informar pais — ou uma esposa, ou marido —, que seu ente querido acaba de ser
morto ou gravemente ferido. Tive que dar essa terrível mensagem à Amber há
muitos anos. Pensei que tinha empatia naquela época, mas sendo eu mesmo a vítima
do acidente, sei que tipo de devastação esse acidente traz a tantas vidas.
— Se esse momento chegar, você vai encontrar a força. Deus mesmo vai te dar.
— Ele terá que me encher dela. Não vou conseguir lidar com isso sozinho.
183
Capítulo 17
A
noite quente de junho não exigia o suéter que Christine carregava no braço. Mas ela
o trazia para o centro de serviço para agradar à tia Mary, que sugeriu que ela
poderia precisar dele mais tarde. A vida tinha de
fato voltado ao normal. Henry, Amber e Danny tinham voltado para sua própria
casa. Henry foi avaliado e considerado física e mentalmente apto, e tinha sido
autorizado a retomar suas funções de policiamento. Um novo oficial havia
substituído Milton. O jovem percebeu que o RPMC não tinha chegado a ser o que
ele tinha imaginado afinal de contas. Juntou-se à RAF e estava supostamente a
caminho da Grã-Bretanha, para ajudar a derrotar os nazistas.
Laray tinha recebido uma promoção pela sua gestão do escritório na ausência de
Henry. Christine ficou satisfeita por Laray. Mas afastou os pensamentos a respeito
do rapaz quando tocou na maçaneta da porta.
— Não vou demorar — ela gritou para a tia. — Tenha uma boa noite, querida —
respondeu tia Mary no momento em que tocou o telefone do corredor.
— Quer que eu o atenda? Ainda estou aqui — Christine gritou novamente. — Por
favor, querida.
Christine levantou o receptor, esperando ouvir a voz da mãe.
— Alô.
— Alô. É a senhorita Delaney?
Q UANDO chega o AMANHÃ
— Sim?
Christine estava hesitante.
— Aqui quem fala é Eric Carlton. Lembra-se de mim? O cara do refrigerante e do
café.
Christine franziu o cenho. Será que o médico tinha ligado no número certo? Fazia
semanas que não falava com ele.
— Estou ouvindo — ela conseguiu dizer.
— Acabei de completar minha residência e me ofereceram uma vaga aqui mesmo
no General.
— Oh, isso é maravilhoso! Parabéns!
— Obrigado. Portanto... eu sei que isto é... um pouco fora do usual. Mas queria
saber se poderia pedir a você que me ajudasse a celebrar o fato de eu ser um médico
de medicina, de pleno direito e na ativa.
Ele terminou um pouco rapidamente.
— Eu estava na porta, já de saída. Estava indo para a Cantina Esperança.
— Para ajudar?
— Sim.
— Eles estão te esperando?
— Bem... não exatamente. Quer dizer, eu vou quando posso. Todos nós vamos
quando podemos.
— Portanto, se você não fosse hoje, não estaria quebrando nenhuma promessa.
Christine hesitou.
— Não... não exatamente.
— Então, você se importa de mudar de planos?
Christine foi apanhada totalmente desprevenida.
— O que... o que você tem em mente?
185
— Um jantar.
— Mas eu já jantei.
— Então, quer vir comigo e ficar me vendo comer? — Ela podia dizer pela
voz dele que estava brincando novamente. — Falando sério — ele apressou-se em
dizer —, vou comer qualquer coisa aqui no refeitório e vou te buscar umas sete
horas. Há um concerto hoje à noite no Salão de Ópera — uma orquestra completa.
Pensei que podíamos assistir, se você estiver interessada. Depois, saímos para tomar
um café. Prometo que vou tentar encontrar algo melhor do que o que conseguimos
aqui.
— Um concerto?
— E está sendo anunciado como uma homenagem a Mozart. — Mozart?
Ela soava terrivelmente estúpida, tinha certeza.
— Que tal?
— Acho que posso. Sim, isso será ótimo.
— Obrigado. Vou te pegar às sete.
Christine colocou o telefone no lugar, ainda em estado de choque. O telefonema foi
totalmente inesperado. Ela tinha quase esquecido a existência de Eric Carlton. Sem
as visitas diárias ao hospital, ela tinha tirado da mente todos os pensamentos sobre
toda aquela experiência.
Agora ela estava parada, olhando de forma estúpida para sua saia e blusa, tentando
enfiar em seu cérebro amortecido que, se ela ia à um concerto, em vez de ir ao
centro de serviço, ela ia ter que se trocar. Mas não estava se mexendo.
Fazia tanto tempo que ela não saía para uma noite de entretenimento, que mal sabia
por onde começar a se preparar. Finalmente, Christine sacudiu as teias de aranha da
mente e foi até o armário. Ela tinha o adorável tailleur que
186
usara no casamento de Henry. Mal tinha tido oportunidade de usá-lo desde então.
Parecia elegante demais para ir à igreja. Ela o tirou do armário e ficou olhando para
o traje, depois entendeu a mão e passou por cima do tecido suave.
Assim que estava vestida, sentou-se na penteadeira. Ela tinha que fazer algo no
cabelo. O seu estilo casual não combinava nenhum pouco com o traje elegante.
Enrolou de uma forma, prendeu-o de outra, e não gostou de nada do que
experimentou. Finalmente, escolheu as presilhas decoradas que Henry lhe dera de
presente de Natal. Ela o escovou para trás e para cima, prendeu-o com as presilhas,
e então deixou que caíssem numa cascata sobre os ombros. Não ficou perfeito, para
seu gosto, mas servia.
mexera. Primeiro olhando de um para o outro, ela então estendeu a mão e pegou as
flores de Christine.
— Tomarei conta delas para você, se quiser. Não deve se atrasar.
Christine conseguiu assentir.
—Vamos?
Eric ofereceu o braço, e Christine o aceitou hesitante.
187
— Foi um prazer conhecê-la, senhora Thatcher — disse ele acenando a cabeça para
Mary.
— Tenham uma boa noite — ela respondeu, e a porta se fechou atrás deles.
Eric não disse que ela estava linda, pelo menos não verbalmente. Mas Christine
entendeu a mensagem clara de sua franca aprovação. Ele a agradeceu por ter
aceitado o convite de última hora.
— Não foi justo da minha parte — admitiu ele ao ajudá-la a entrar no carro. — Mas
eu simplesmente tinha que tentar. Pensei em você, Christine, no momento em que
percebi que tinha algo para celebrar.
Christine ficou surpresa. Ela mal se lembrara dos seus encontros no hospital.
— Na verdade, se eu for totalmente sincero, teria que admitir que tenho pensado
muito em você ao longo dos últimos meses. Mas queria tirar essa história da
residência do caminho — disse ele ao colocar o carro em movimento.
Christine enrubesceu, sem saber bem o que era para entender com essas palavras.
— Não consegui nem ir à Cantina Esperança como tinha planejado.
Christine tinha percebido — à princípio. Depois tinha tirado de mente, e esquecido
a respeito de tudo isso. Ela sabia que os médicos eram muito ocupados.
O concerto acabou sendo encantador. Christine sentiu-se totalmente absorta pela
música. Fazia tanto tempo que não conseguia se sentar e desfrutar completamente
alguma coisa, além do trabalho e da família. E ser capaz de esquecer,
momentaneamente, todas as lutas e conflitos do mundo. Sentiu que estava
relaxando, a sua mente tornando-se mais clara, as suas emoções mais elevadas com
a música.
Eric a encarou e lhe deu um sorriso. Por um momento, Christine se perguntou se ele
ia pegar a mão dela e estragar tudo, mas ele não fez isso, e ela conseguiu relaxar
novamente. Logo ela esqueceu de tudo, menos a música. A música maravilhosa que
a inundava por todos os lados. Quando tocaram o movimento lento do concerto de
piano de Mozart número 21 em dó, Christine fechou os olhos e recostou no encosto
do banco. Isto é perfeição musical, ela pensou. Verdadeiramente Mozart tinha sido
um génio. Um presente do Criador de todas as coisas belas para o mundo.
188
189
Por trechos da conversa, Christine compreendeu que a família dele era uma das
“antigas” famílias da cidade.
Isto foi confirmado quando ele contou onde os pais viviam e que o pai trabalhara no
ramo imobiliário e desenvolvimento, assumindo o negócio do pai antes dele.
— Alguns dos edifícios da Rua Principal foram obras do meu avô — disse ele com
simplicidade, sem evidente ostentação.
Ele de fato é muito agradável, pensou Christine enquanto ouvia seu relato da vida
familiar. E de boa aparência. Os seus olhos eram especialmente bonitos. Muito
azuis, emoldurados por cílios escuros. As mãos dele eram longas e finas, como as
mãos de um pianista — ou de um cirurgião. Christine estava surpresa por não ter
reparado nestas coisas antes.
— Eu ia adorar que você conhecesse meus pais — continuou ele, e Christine sentiu
o aperto no estômago.
Conhecer os pais dele. Christine tinha certeza de que não estava acostumada ao tipo
de vida deles. Ela tinha sido criada no Norte, num ambiente bastante primitivo, a
filha de um agente da polícia. Estava acostumada às coisas ásperas e rústicas.
Estava acostumada a fazer render e a ficar sem. O que poderia ter em comum com
as pessoas que tinham ajudado a construir uma cidade? O próprio pensamento a
assustou. Ela tentou forçar um sorriso e murmurou algo como, talvez um dia, ou
palavras pouco comprometedoras, mas esperava que o dia não chegasse tão cedo.
Para falar a verdade, ela tinha agora um emprego num escritório sofisticado da
cidade e se saía muito bem. É verdade, vivia atualmente com o tio Jonathan e a tia
Mary, que tinham uma das melhores casas de Monte Royal. Mas aquela não era a
sua casa. Ela voltaria para o Norte na primeira oportunidade. Não precisava nem de
encorajamento. E ela ainda esperava, de todo o coração, que tal oportunidade por
fim chegasse.
— Essa foi uma noite adorável, mas eu devia mesmo ir para casa.
Ele não argumentou.
— Ainda não consigo acreditar que agora vou trabalhar durante o dia — exceto
quando estiver de plantão — comentou Eric quando a conduziu até à porta do carro
que o manobrista mantinha aberta. — Vai parecer que me devolveram a vida —
gracejou ele.
190
— Obrigado. Tenha uma boa noite, Dr. Carlton — enquanto enfiava as notas no
bolso.
Então ele é conhecido neste restaurante chique, pensou Christine.
Foi uma viagem bastante silenciosa para casa. Talvez ele esteja contrariado. Talvez
esteja cansado depois de um longo dia, Christine pensou. Na verdade, ela ficou
contente pela oportunidade de organizar suas ideias.
— É uma pena que este tenha sido o último concerto da temporada — ele disse,
virando-se um pouco para ela. Ela se perguntou onde estiveram os pensamentos
dele. — Eles não vão retomar os concertos até setembro.
Christine tinha visto o anúncio no programa.
— Bem, nós certamente não podemos esperar até lá. O que gostaria de fazer? —
perguntou ele.
— Eu... não estou certa se entendi o que você quer dizer — Christine conseguiu
responder.
— Estou sendo pretencioso? Esperava que você tivesse gostado da noite.
— Oh, eu gostei — disse ela rapidamente. Talvez rápido demais.
— Só da música?
Havia aquele tom de provocação na voz dele novamente. Ela não tinha certeza se
devia entrar na brincadeira ou se devia levar a sério.
— Não... não apenas da música — admitiu ela timidamente. — Gostei de todas as
partes da noite.
— Então você vai concordar em sairmos novamente?
Ela lançou um olhar em direção a Eric. Ele não estava brincando agora.
— Isso depende. Se... se eu... se nós dois acharmos sensato e... e desejável, então...
— Eu acho que seria sensato... e desejável.
Eles já estavam chegando em frente à casa. A luz do alpendre ainda estava acesa e
uma luz fraca brilhava na janela do corredor, embora Christine não tenha visto
nenhuma luz na sala de estar. Eles já deve ter ido dormir.
191
192
— Bom. Eu vou telefonar.
193
JANETTE OKE
Como ela poderia alcançar as expectativas que a família dele provavelmente teria
para ela?
Ela disse “'Amém”, mas se perguntou se tinha realmente falado com Deus, com
seus pensamentos divagantes e inquietantes, ou simplesmente tinha repetido por
rotina as coisas que vinha dizendo há muitas noites?
E com a firme decisão, Christine puxou a coberta até ao queixo e tentou acalmar o
seu coração perturbado, para que pudesse dormir.
194
Capítulo 18
O
tio Jonathan chamou Christine até o telefone. Quando ela ergueu o receptor ao
ouvido e disse alô, a primeira palavra ouviu foi:
— Jantar?
— Eric?
— Na verdade, aqui é o Bob.
Ela reconheceu a voz dele. Se tivesse pensado mais rápido... e fosse mais
— É o Eric — disse ele num tom mais sério quando ela não respondeu. — Que tal
jantar?
— Hoje à noite?
— Hoje à noite — se for possível. Se não — na primeira oportunidade que você
tiver.
— Hoje à noite eu não posso, tenho outros planos.
— Que tal amanhã?
Ela sentiu-se tentada a dizer que amanhã também não ia dar certo De fato, esperava
estar ocupada pelo resto da sua vida.
Mas ela sabia que tinha que explicar a ele pessoalmente que não havia esperança
para um relacionamento. Ela temia o pensamento. Ela ia fugir e nunca mais
precisaria enfrentá-lo novamente. Mas essa era a saída dos covardes. — Eu... sim...
acho que sim... amanhã vai dar certo.
Eric deve ter percebido pela voz de Christine que ela estava hesitante, mas não fez
nenhum comentário.
— Posso ir buscá-la às seis?
— Seis está ótimo.
— Gostaria de um jantar elegante — ou algo mais descontraído e contemporâneo?
— Realmente não sei... sobre o contemporâneo, digo. O que você tem em mente?
— Tem um novo café, na zona sul, frequentado pelos jovenzinhos. É bem casual.
— Parece ótimo.
Ela realmente não queria usar o mesmo vestido duas vezes seguidas. — Excelente,
até às seis.
Christine sentia-se perturbada quando desligou o receptor. Era realmente assim que
devia se sentir ao aceitar um encontro? Ela pegou o suéter e gritou para os tios, “não
vou demorar”, e saiu da casa. A jornada apressada de bonde não foi suficientemente
longa para acalmar seus nervos abalados. Ela entrou na Cantina Esperança ainda se
sentindo agitada. Jane, uma das outras voluntárias, estava lá para recebe-la. A
jovem parecia entusiasmada e agarrou Christine pelo ombro.
— Eles conseguiram. Conseguiram! — disse ela.
Christine não conseguia imaginar o que tinha sido conseguido. Naquele instante,
Paula correu com um sorriso largo e feliz. — Finalmente — disse ela. —
Finalmente vamos ter direção de verdade por aqui.
Christine deu um passo atrás, soltando-se das mãos de Jane. — O quê? Do que
vocês duas estão falando?
— Contrataram um capelão... finalmente — Paula respondeu entusiasmada.
196
Essa era mesmo uma boa notícia. Todos os voluntários estiveram orando por um
capelão em tempo integral para administrar o projeto. Eles sentiram que para
realmente fazer um trabalho eficaz de ministério, precisavam de liderança.
197
momento, ela estava exatamente onde devia estar, servindo como devia servir. Esta
era uma revelação maravilhosa, que lhe trouxe uma onda de alegria ao coração. Ela
devia, desde sempre, ter confiado nEle para conduzi-la. Tinha orado pedindo a
direção dEle, não tinha? Então por que estava surpresa que Ele tenha guiado? “Nem
toda a direção de Deus vem com detalhes, instruções ou grande fanfarra”, lembrou-
se de ouvir um pastor uma vez dizer. “Às vezes é aquela voz calma e serena. E
talvez nem sequer estejamos conscientes da voz, e apenas sintamos a sensação de
paz''.
E era exatamente isso que tinha acontecido com Christine. Aquela belíssima
sensação da paz de Deus. Da presença de Deus. Da aceitação de Deus a respeito de
onde ela estava na vida e o que estava fazendo.
“A ausência de conflito interior é uma das bênçãos mais ricas da vida”. O pastor
também dissera. “E vem apenas da mão de Deus”.
E era isso. Ela podia confiar nEle. Podia mesmo. Se ela honestamente procurasse
caminhar em Seus caminhos — ela podia confiar nEle.
Então por que me preocupar agora com este novo capelão? Perguntou a si mesma.
Não é Deus que manda aqui também?
Christine respirou fundo e avançou para assumir suas responsabilidades noturnas e
talvez até trazer algum encorajamento, nova fé, a alguém no salão lotado. Como de
costume, ela sussurrou uma oração, “Senhor, leva-me esta noite a alguém que tenha
um coração aberto para o Senhor. Quando eu fizer essa conexão, me conceda as
palavras certas para dizer. Permita que eu fale com sabedoria e amor. Em nome de
Jesus. Amém”.
Ela tinha acabado de levar uma bandeja de café para um grupo de jovens
barulhentos quando Jane correu até ela.
— É a sua vez. Ele quer te ver agora. Está na sala que usávamos como despensa.
Christine ignorou o tal gelo que tentava tomar conta de todo seu ser, e caminhou em
direção à antiga despensa. Aquele jamais seria um grande escritório.
A porta estava fechada. Ela deu uma batidinha e ouviu a voz de um homem pedindo
que ela entrasse. Ele tinha um diário de algum tipo aberto diante dele, e estava
ocupado escrevendo. Ao som dos passos de Christine, ele levantou a cabeça, depois
baixou-a novamente para verificar as anotações.
198
— Senhorita Delaney, creio eu.
Ela fez que sim com a cabeça. Ele era extremamente jovem. Jovem demais para
estabelecer a liderança adequada para um ministério tão importante. Eles tinham
esperado por alguém experiente, que fosse consistente, mais velho.
Ela mal reconheceu a antiga sala de armazenamento. Tinha uma leve camada de
tinta fresca, fazendo-a parecer maior, mais convidativa. Podia ver que a
escrivaninha era bem utilizada, mas também estava com tinta fresca. Uma pequena
cômoda com quatro gavetas servia de arquivo, e as três cadeiras da sala eram
diferentes, mas pareciam utilizáveis. Tinha até uma imagem na parede, de Jesus
caminhando sobre a água. A legenda era “Ele pode acalmar qualquer tempestade se
O convidar para estar em seu barco”.
199
Tommy como um retardado. Como louco. Um imbecil ou um idiota. Ser mais como
ele parecia uma oração incomum. Christine agora observava o jovem capelão com
novo interesse.
Christine ficou admirada com a rapidez com que foi capaz de relaxar e abrir o
coração. Este jovem estava realmente ali para servir, e pretendia fazer isso com todo
o seu ser. Com todo os recursos disponíveis. Jovens de ambos os sexos estavam
indo para a guerra. Eles precisavam da garantia de que Deus estava com eles, que
tinham feito as pazes com seu Criador através do sacrifício do Seu Filho, o
Salvador. Era uma questão de vida e morte espirituais.
Christine não podia acreditar que haviam conversado por tanto tempo. Eles
partilhavam muitos dos mesmos pensamentos e sentimentos. Os mesmos sonhos e
objetivos. O mesmo senso de comprometimento. Quando saiu do pequeno
escritório, sentia que certamente Deus ia elevar o Ministério da Cantina Esperança a
um novo nível.
— Então, o que achou dele? — Jane foi rápida em perguntar quando Christine
tomou o seu lugar outra vez na lanchonete.
Christine sentia-se corada, por causa de alegria interior.
— Acho que ele vai se sair bem. O coração dele certamente...
— Um gato daqueles e você tá pensando em coração?
Paula deu uma gargalhada.
Christine se virou e a encarou. Sobre que raios Paula estava falando? Ela nem tinha
reparado se ele era bonito.
Que diferença isso fazia? O importante era se ele ia ou não se agarrar à obra da
Cantina Esperança como um ministério importante. A aparência não tinha nada a
ver, na verdade, com isso. Ela pegou nos copos de refrigerante que tinha acabado de
encher e levou-os para as mesas.
200
Christine não estava ansiosa pelo próximo encontro com Eric. Não tinha o que fazer
para que tivessem algo em comum. Não havia esperança de que qualquer relação
futura se desenvolvesse — então, por que ela estava se deixando levar pela maré?
Era ridículo.
Mas ela tinha se comprometido a conversar com ele pessoalmente. Ia até o fim com
isso.
Eric chegou exatamente às seis. Ele estava usando calças e uma camisa casual
aberta no pescoço e mangas arregaçadas até os cotovelos. Parecia ainda mais bonito
do que estivera vestindo o terno aparentemente caro.
— Bob, a seu serviço — ele disse brincando quando Christine abriu a porta. Depois
avaliou abertamente a saia longa e o suéter cor-de-rosa e acenou com a cabeça. —
Você está linda.
Ela murmurou um agradecimento de cortesia.
— Espero que você goste deste lugar — disse ele enquanto o carro se afastava do
meio-fio. — É um pouco barulhento às vezes. Muitos jovens militares frequentam o
bar. Por isso, como bem pode imaginar, há muitos moças da cidade também.
Christine o encarou surpresa. Ela esperava que este não fosse um desses pubs
desagradáveis que tinham no centro da cidade, que acatavam todo tipo de
comportamento barulhento e ofensivo.
— Eles têm uma comida excelente — e depois de comermos, se acharmos que é
muito barulhento para ter uma conversa decente, podemos ir para outro lugar.
Quanto tempo vai durar este encontro? perguntou Christine. Você me disse que ia
ser um jantar. Mas ela não disse nada. Ela ia tentar dar um jeito de passar a noite, e
se se sentisse desconfortável, pediria para ser levada para casa.
O lugar já estava repleto de uma multidão jovem. Estava barulhento; não tinha
como negar. Na verdade, todo a sensação era de alta energia. Mas tudo parecia
saudável e sem alto teor de álcool, e Christine não se sentiu nenhum pouco
desconfortável, mas sim revigorada. Eric encontrou uma mesa no canto, onde eles
podiam conversar confortavelmente, apesar das gargalhadas e a confusão de
atividades à sua volta.
A comida era mesmo deliciosa. Christine logo se encontrou desfrutando da noite,
apesar das suas dúvidas.
201
Depois de comerem, Eric sugeriu que fossem dar um passeio de carro ao longo do
rio. Eles apenas passaram e conversaram, apreciando a paisagem e a brisa quente
que entrava pelas janelas abertas do carro. Ele não fez qualquer esforço para
estacionar em algum ao longo do percurso, e Christine gostou desse fato. Não era
tarde quando ele a deixou em casa.
— Vou estar de plantão por uma porção de noites agora — ele explicou à medida
que se aproximavam da entrada da casa. — Mas quero te ver novamente... em
breve. Que tal domingo?
Christine não tinha proferido o discurso que tinha preparado. Agora repreendia a si
mesma ao mesmo tempo em que se via concordar com a cabeça.
— Vai ter que ser bem cedo — ele disse. — Culto da manhã e um almoço rápido.
Preciso estar na enfermaria às duas.
Christine fez que sim novamente com a cabeça.
— Vou te dizer. Dessa vez, vou levá-la na sua igreja. Mas você vai ter que
concordar em me acompanhar na minha da próxima vez. Eu quero exibir você.
Isso não parecia ser a melhor razão para frequentar a igreja, mas Christine assentiu
de novo.
— Se for um domingo em que eu estiver de folga, vou falar com minha mãe para
convidá-la para almoçar — continuou ele, e agora Christine sentiu um aperto no
estômago. O que ela poderia dizer? Já tinha concordado com esses planos de certa
forma.
Eric a acompanhou até à porta tratando de mais detalhes sobre como ia buscá-la
para ir à igreja no domingo de manhã. Depois de entrar pelo vestíbulo, contornou a
sala de estar onde conseguia ouvir vozes. Quando houve uma breve pausa, ela
gritou, “Estou em casa”, depois foi imediatamente para o quarto.
Por que se sentia tão agitada? Eles tiveram uma noite encantadora. Eric fora um
companheiro agradável e atencioso. Ela tinha visto olhares admirados e invejosos
de outras mulheres. Mas o fato de ele ter vindo de uma família abastada não o
tornara esnobe. Só porque o tio Jon e a tia Mary tinham dinheiro não significava
que se sentissem superiores aos outros. Ela estava julgando os pais dele
injustamente, sem ao menor tê-los conhecido. Isso não era correto.
Então por que se sentia tão desconfortável? Era por causa de Boyd? Será que tinha
ficado tão magoada com esse erro do passado, que agora estava com
202
medo de se comprometer novamente? Mas isso também não estava certo. Nem era
justo com o Eric. Ela devia ser capaz de aceitá-lo por quem ele era.
Sentiu-se muito melhor ao pegar a Bíblia para a leitura noturna. Acabou abrindo em
Provérbios a abria com as mãos, e palavras que havia sublinhado e prometido ter
como norma de vida lhe chamaram a atenção. “Confia no Senhor de todo teu
coração e não te inclines para teu próprio entendimento; reconhece o Senhor em
todos os teus caminhos, e Ele endireitará as tuas veredas”.
Sim, Senhor, ela sussurrou. Vou confiar em Ti a respeito dessa situação. Eu não
tenho ideia do que e como o Senhor pode fazer acontecer, mas será muito
empolgante caminhar Contigo e descobrir.
203
JANETTE OKE
fazer a escolha final, ainda sentia-se grata por não precisar confiar nas suas próprias
conclusões. Deus tinha colocado muitas pessoas em sua vida, que podiam atuar
como sinaleiros quanto ao caminho que ela devia seguir.
Sentindo-se muito mais tranquila, Christine preparou-se para dormir, o que esperava
que acontecesse rapidamente. Amanhã seria mais um dia atarefado, e ela pretendia
passar mais uma vez na Cantina Esperança a noite. Uma moça com quem tinha
conversado na última noite parecia estar muito aberta para as boas notícias do
Evangelho. Os últimos pensamentos de Christine foram orações sussurradas para
que a moça pudesse regressar prontamente para assumir um compromisso. “Deus, o
Senhor sabe tudo sobre Krista. Traga-a de volta para nós. Traga-a de volta ao
Senhor”.
204
Capítulo 19
A
Cantina Esperança tinha fechado as portas para a noite, e os voluntários estavam
conversando enquanto faziam as suas tarefas de limpeza. Havia uma boa dose de
animação enquanto comparavam impressões.
Krista tinha voltado e orado com Christine para receber a Cristo como seu Salvador.
Um jovem também orou de forma semelhante, e outro jovem tinha prometido
pensar seriamente no assunto, enquanto outros dois tinham dito que voltariam para
conversar mais. Essa tinha sido a resposta mais promissora que tiveram,
comparando com todas as outras noites.
206
no norte?
E enquanto esperavam que o bonde chegasse, Christine contou a ele.
Quanto mais falava, mais nostálgica se sentia. Ela sabia que era melhor parar
antes que começassem a escorrer as lágrimas.
— Onde você cresceu? — perguntou ela para se distrair.
— Em Camrose.
— Nunca estive em Camrose.
— Devia conhecer. É um ótimo lugar. É uma comunidade agrícola. — Seu pai era
agricultor?
— Não. Ele tinha um armazém. Mas eu trabalhava numa fazenda, desde o
tempo em que era grande o bastante para erguer um rastelo. Trabalhava para o
meu tio. Ele tem uma fazenda bem no extremo da cidade. Eu costumava ir até
lá de bicicleta, assim que saía da escola. Incomodei meu tio até ele ficar quase
doido, perguntando “O que posso fazer”? Ele finalmente decidiu que já que eu
estava “grudado” nele de qualquer maneira, era melhor que me colocasse para
trabalhar. Então ele me contratou. Eu adoro a fazenda.
— Mas em vez disso você se tornou um pastor.
— Sim. — O tom de voz dele também soava nostálgico. — Acho que
foi um pouco como Amós, o profeta pastor, ou como Eliseu. Eu acredito que
Deus, figurativamente falando, estava a dizer-me para partir meu arado, oferecer os
bois como sacrifícios, e ir pregar. O que mais eu poderia fazer? Christine viu o
sorriso brincalhão, mas também a seriedade nos olhos
escuros. De fato, o que poderia ele fazer?
207
208
Como sempre, foi difícil encontrar um lugar vazio quando Eric e Christine
chegaram à igreja no domingo.
— Entendi porque você disse que “precisam construir” — sussurrou-lhe ao ouvido.
Ela viu algumas cabeças se virarem, à medida que se aproximavam da frente do
púlpito — a maioria eram jovens que, sem dúvida, se perguntavam se eles era “um
casal”. Bem, ela não estava lá para se preocupar com isso, estava lá para adorar.
Eles se espremeram ao lado de um casal de idosos que Christine não conhecia,
cumprimentou-os com um sorridente bom dia, e pegou hinário para participar.
Ela ficou impressionada com a maravilhosa voz tenor de Eric, e ele cantava com o
coração. Parecia inspirar aqueles que os rodeavam — incluindo ela. Ela prestou
mais atenção aos hinos e cantou com mais fervor do que o habitual.
Christine olhou para ele algumas vezes durante o culto e notou que Eric dava ao
pastor toda sua atenção. Em um momento ouviu até um “Amém” sussurrado.
Sentiu-se satisfeita. Ela gostava de pensar que o rapaz tinha vindo à igreja para
adorar a Deus — não para passar tempo com uma moça, ainda que a moça fosse ela
mesma.
209
Ele tinha sido convidado para almoçar, por isso levou-a diretamente para a casa. A
tia Mary tinha lhe assegurado que eles compreendiam o horário apertado, e o
almoço seria servido o mais rápido possível. Ela planejou a refeição em
conformidade, e já tinha uma caçarola no forno e a salada prontinha na geladeira.
Lucy tinha se colocado à disposição para ficar em casa e preparar a refeição, mas
Mary não permitiu nada disso.
— Não é preciso que você perca o culto na igreja — Christine ouviu a tia dizer. —
Vamos apenas preparar uma refeição simples, que possamos servir prontamente.
210
Christine teve uma nova crise de nervos no domingo em que iam visitar a igreja de
Eric. Era um belo edifício, mas longe de ostentoso, e os adoradores pareciam tão
calorosos e entusiásticos quanto na igreja dela. Christine sentiu-se confortável desde
o momento em que se sentou no banco de carvalho e se uniu aos cânticos
conhecidos.
Mas quando a última canção foi cantada, o último amém pronunciado, Eric deu um
jeito de pegar na mão enluvada de Christine, e a apertou levemente.
— Vem — sussurrou ele —, vou apresentá-la aos meus pais.
— Não podemos esperar até chegarmos na sua casa? — perguntou Christine muito
nervosa, na esperança de ter algum tempo para se recompor.
— Os meus irmãos e as esposas também querem te conhecer. Eles não vão
participar do almoço. Tinham outros planos. — Eric a observou por um
211
instante e disse: — Você não tem nada com que se preocupar, Christine. Eles vão te
achar fantástica, como eu também acho.
Christine deu um sorrisinho em resposta ao sorriso dele, e deixou que Eric a levasse
para o saguão. O local já estava lotado, com várias pessoas animadas em conversas.
Eric dirigiu-se diretamente para um grupo que estava a esquerda. Christine
presumiu que devia ter dito a todos eles onde os encontraria.
Os dois irmãos eram claros como ele. Um era um pouquinho mais alto e o outro um
pouquinho mais robusto, mas dava para perceber à primeira vista que os três eram
irmãos. As moças que estavam com eles pareciam ser muito simpáticas. Mesmo
com a sua inexperiência em tais assuntos, Christine podia dizer que os seus trajes
vinham das melhores lojas da cidade. Enquanto Eric a conduzia até o grupo, eles
ficaram em silêncio. Christine concluiu que eles estavam avaliando a nova moça
que Eric trazia no braço. Ela se perguntou, por um instante, quantas outras moças
Eric tinha trazido para conhecer a família no passado. Christine encarou todo o
grupo, e ela viu que todos lhe devolveram o sorriso. Isso foi um conforto.
Havia uma mulher de costas para eles, que conversava com outra mulher da igreja.
Eric olhou na direção dela e balançou a cabeça.
— A minha mãe — sussurrou ele, mas havia respeito e amor em sua voz. — Ela
está sempre em reuniões de comitês — até mesmo no saguão da igreja.
Ela deve ter ouvido o comentário, pois se virou rapidamente.
— Eric.
Ela tinha um olhar muito amável. E o sorriso mais franco e sincero que Christine já
tinha visto. A mulher lançou todo a calidez de seu sorriso na direção de Christine.
— E esta deve ser Christine — disse ela, estendendo ambas as mãos.
Christine esperava que a mulher não fosse exagerar e envergonhá-la com um abraço
emocionado. Mas embora ela tenha tomado as mãos de Christine nas suas, não fez
nada além disso.
— Estou tão contente por te conhecer — disse ela de forma genuína. Christine
gostou dela imediatamente.
O pai de Eric foi um pouco mais efusivo na sua saudação. Embora não houvesse
nada ofensivo em seu trejeito, Christine ficou com a nítida impressão de que ele
pensava que já passava da hora do filho mais novo se estabelecer. Ele
212
também parecia ter entendido que Eric já tinha feito sua escolha, e tanto através das
suas palavras como de seus atos, indicou sua sincera aprovação. Christine sentiu as
bochechas enrubescendo. Por que as pessoas chegam a conclusões tão precipitadas?
perguntou ela.
Ela foi então apresentada aos outros membros da família. Cada um deles foi cortês e
gracioso. Supunha que devia sentir-se aliviada — mas por alguma razão, que não
conseguia definir, não se sentia. Foi como se todos eles tivessem concluído que ela
e Eric já eram um casal. Que ela estava “amarrada”, antes mesmo de tomar a
decisão. Isso a deixou desconfortável. Eles tinham partilhado apenas alguns
momentos juntos. O que será que ele dissera à família?
A casa era refinada, como Christine tinha imaginado. O almoço estava delicioso,
como ela também tinha imaginado. Todos eram muito cordiais, muito sinceros na
sua fé, inteiramente dedicados à família, como Christine pôde perceber quando a
senhora Carlton mostrou fotografias da filha, do genro e dos netos que viviam em
Victoria. Mas Christine não conseguia relaxar. Meu lugar não é aqui — continuava
a surgir em sua mente, embora ela não conseguisse explicar por que.
Que moça não se sentiria especialmente abençoada por ser bem recebida numa
família assim? E por um jovem médico tão bonito e bem-educado — um rapaz que
partilhava de sua fé e parecia gostar dela profundamente? Sua hesitação não fazia o
menor sentido. Nenhum sentido mesmo.
— RPMC. Temos que agradecer a eles que o oeste tenha se estabelecido de forma
tão civilizada — comentou o senhor Carlton. — Meu pai, que ajudou a construir
esta cidade, disse que ele nunca tve qualquer problema com as tribos indígenas
locais — graças, em grande parte, ao RPMC, a Polícia Montada do Nordeste, como
era conhecida naquele tempo.
Christine assentiu. Ela sabia de cor a história da Força, e tinha muitas vezes
implorado por histórias do seu princípio quando era colocada para dormir à noite.
213
— Bem, eles fizeram um bom trabalho. Tiro o chapéu para o seu pai e seus
companheiros.
Christine sentiu um momento de orgulho.
— O irmão dela também é um oficial — prosseguiu Eric.
— Ele também está no Norte?
— Não. Não, ele serve no sul.
— Ele esteve envolvido num terrível acidente de automóvel na última Páscoa —
explicou Eric. — Foi então que conheci Christine. Ela vinha com frequência ao
hospital.
— Bem... há males que vem para bem, como costumam dizer — disse o pai. — Eu
não desejaria um acidente de automóvel a ninguém, mas pelo menos este uniu
vocês dois.
O sorriso jovial e as palavras deixaram Christine sentindo-se inquieta. Outra
suposição. Ela sentiu um leve estremecimento.
Eric deve ter percebido.
— Você está bem? Quere que eu feche a janela?
— Não, estou bem. Obrigada — ela conseguiu dizer, mas ficou contente por enrolar
dedos trémulos ao redor da xícara de café quente.
— Os meus pais te adoraram — disse-lhe Eric mais tarde enquanto a levava para
casa.
De algum lugar nas profundezas do seu ser, Christine encontrou coragem.
— Eric, eu... também gostei dos seus pais. Mas você não acha... quero dizer, tudo
parece estar acontecendo rápido demais. As pessoas estão fazendo suposições sobre
coisas que... que nem sequer discutimos. Sinto como... como se eu estivesse sendo
empurrada de um abismo ou apanhada numa rede. Eu...
Eric riu.
214
— Bem, suas raízes Nortenhas estão certamente aparecendo. Apanhada numa rede?
Não há muitas corredeiras por aqui.
Christine corou.
— Você sabe o que estava tentando dizer — disse ela com seriedade.
— Eles não querem presumir as coisas — ele se defendeu. — Acho que exagerei no
meu entusiasmo quando falei sobre você. E quando a conheceram e perceberam que
eu não estava exagerando — que você é tudo o que eu tinha dito —, é evidente que
iriam tirar conclusões precipitadas. Afinal de contas, eu terminei a minha formação
e estou pronto para me assentar. Porque não haveriam de pensar...
— Mas estão errados. Nunca sequer discutimos quaisquer... planos para o futuro.
Isto...
— Vamos discuti-los agora?
Para seu espanto, ele virou o carro para o lado da rua e parou. Depois virou-se para
ela muito sério, como ela jamais o tinha visto. Christine enrubesceu.
— Eric — ela conseguiu desabafar antes que ele pudesse dizer qualquer coisa mais.
— Nós mal nos conhecemos. Não acho que se possa ao menos considerar algo tão...
tão importante sem...
Mas ele a interrompeu.
— Eu sei que há muitas coisas que ainda não sabemos um sobre o outro. Sei disso.
Mas, Christine, tudo o que sei sobre você... me fascina. Não, não, me deixe
terminar. Não é que eu não tenha conhecido outras moças. Eu conheci. E não é que
eu não tenha tido oportunidade de ter outros relacionamentos.
Ela podia bem imaginar que era verdade. Com sua boa aparência e jeito suaves, as
moças deviam estar tropeçando umas nas outras para se aproximarem dele.
— Mas eu não conheci nenhuma como você — continuou ele. — De verdade não.
Você não é apenas atraente — e admito que isso tem o seu peso. — O olhar
rapidamente se tornou provocador, mas rapidamente tornou-se sério novamente. —
Mas é mais do que isso. Muito mais do que isso. Gosto da sua devoção, da sua
dedicação à sua família e ao Senhor. Gosto da forma como você sorri, e até mesmo
como franze a testa. Gosto da sua classe...
— Por favor, Eric — implorou ela. — Por favor.
Ele parou.
215
Ele enrolou o cacho ao redor do dedo e fez que sim com a cabeça, mas havia mágoa
em seus olhos azuis.
— Eu entendo — concordou ele. — Se você precisa tempo para orar...
— Não, Eric. Não apenas eu. Quero que você ore também. Para buscar a vontade de
Deus sobre isso. Nós dois temos que ter certeza. Não se trata apenas do que nós
queremos — é o que Ele quer para nós.
Ele concordou.
— Não posso discutir contra isso.
Os dois se calaram. Christine estava orando em silêncio. Ela não tinha a certeza do
que Eric estava pensando.
— Então, para onde vamos a partir daqui? — perguntou ele.
Havia súplica em seu tom de voz, embora não a expressasse em palavras.
Christine sentiu os ombros desanimarem.
— Não tenho ideia.
Depois de outro período de silêncio, ela voltou a falar.
— Que tal se concordarmos em orar franca e honestamente durante uma semana?
Então você me telefona.
— Orar franca e honestamente — ele repetiu. Depois assentiu com a cabeça. —
Está bem.
Continuou a tocar o cabelo de Christine com os dedos, observando a maneira como
o cacho enrolava firmemente ao redor do seu dedo.
— Quer ir para casa agora?
216
— Por favor.
Onde começo a procurar pela resposta de Deus? questionou-se Christine. Bem, por
que não começar pelo princípio? Ela abriu o livro do Gênesis. A leitura das
Escrituras de segunda-feira de manhã foi a história da Criação. No princípio Deus....
ela leu. E ali era precisamente por onde devia começar, concluiu ela. Com Deus.
Com a compreensão de quem Ele foi e ainda é. Com o reconhecimento que Ele
tinha um plano — que era Seu direito ter um plano e direção que traria a ela apenas
o bem.
Ela leu sem parar sobre os primeiros dias da criação. Deus viu que era bom. Ele
estava satisfeito com o que tinha criado. Façamos o homem à nossa imagem...
prosseguiu o relato. E Deus fez. Não é bom que o homem esteja só chamou a
atenção de Christine. Far-lhe-ei uma ajudadora. Ela anotou isso sob o Número Um
na página do caderno que tinha diante de si. Deus planejou para que o homem e a
mulher se unam em parceria. Ela colocou uma pequena marca de verificação ao
lado. Não precisava temer que se casar fosse um erro.
Mas o resultado da primeira parceria não foi exatamente o desejado. Eva, tentada
pela serpente, também introduziu Adão ao pecado. Número Dois, escreveu
Christine. Para cumprir o plano de Deus, os dois membros da parceria
Q UANDO chega o AMANHÃ
devem procurar segui-Lo. Colocou outra marca de verificação. Eric também estava
em busca da vontade de Deus.
Ela continuou a leitura. Deus tinha vindo à procura de Adão e Eva. Ele tinha mesmo
preparado a roupa para cobri-los, indicando o Seu amor e perdão — para os dois,
não apenas um ou outro. Mas eles tinham sido expulsos do Jardim.
Ponto Número Três. Se e quando cometermos um erro, Deus ainda nos ama, pode e
irá nos perdoar, se estivermos arrependidos. Mas ainda há consequências.
Ela tinha cometido um erro no passado, ao prometer unir sua vida com um
descrente. Tinha sido perdoada, pelo que estava verdadeiramente grata. As
consequências tinham sido um coração perturbado e partido, e a subsequente
dificuldade a respeito dos relacionamentos.
Mas agora, Christine sentia fervorosamente que era tempo de seguir em frente.
Certamente ela não estava errada em procurar com sinceridade o parceiro que Deus
tinha em mente para ela. Mas era esse um homem específico? Ou era um campo
mais amplo, a partir do qual ela poderia escolher, desde que se mantivesse dentro
das diretrizes de Deus? Não tinha certeza.
Sua mãe não lhe dissera uma vez: “Às vezes, a forma que Deus escolhe nos
conduzir é através do nosso próprio espírito inquieto?” Bem, o espírito dela estava
inquieto. Será que isso significava que Deus estava tentando lhe dizer que este
relacionamento não era da Sua escolha? Christine não sabia. Realmente não sabia.
O que sabia era que não podia avançar até que seu espírito estivesse em repouso.
219
Ele vai te mostrar o caminho. E Christine acalmou seu coração inquieto e
concordou em ser paciente.
Christine passou pela rotina habitual do seu dia. Aparentemente, em seu exterior,
nada tinha mudado. Mas em seu interior sentiu que seu mundo inteiro tinha sido
virado de cabeça para baixo. Ou estava apenas em suspenso, enquanto ela lutava
para descobrir qual devia ser seu próximo passo?
Henry telefonou com a notícia de que todos eles estavam bem. Gradualmente, as
peças do quebra cabeça de sua memória pareciam se encaixar. Era uma notícia
excelente. Amber, embora ainda estivesse de luto pela perda do filho por nascer,
podia agora olhar adiante e sonhar que, no futuro, outro bebê lhe encheria o coração
e a vida. Danny não parecia ter ficado com sequelas por causa do acidente.
220
— Não. Não, foi algo que aconteceu do nada. Engraçado, né? — Sim — murmurou
Christine. — Sim, acho que sim.
— Ele nunca trabalhou com cães, e depois do que aquele urso fez com
ele, fico um pouco preocupado. Espero que um cão nunca ameace atacá-lo, ou ele
pode entrar em pânico. Os cães podem sentir seu medo. A gente tem que lidar com
eles...
Henry prosseguiu, mas Christine não estava ouvindo. Ela adorava os cães. Adorava
trabalhar com a matilha. Adorava o som dos yips e yaps, quando expressavam sua
ânsia para correr. Adorava o guincho dos corredores de trenó sobre a frieza da neve
compacta. O ruído dos sapatos de neve. As nuvenzinha de gelo na respiração que
subiam quando corriam pela geada numa manhã gelada. Será que o Henry sente
falta de tudo isso? perguntou ela.
— É melhor te deixar ir embora — dizia Henry. — Não quero que se atrase para ir à
Cantina.
Christine sabia que ele não gostava muito do termo “cantina”, e ele sempre chamou
o pequeno centro de missão pela única palavra. Mas encontrar um nome amigável e
de som aberto era importante na atração de jovens homens e mulheres.
Os dedos de Christine estavam tremendo quando ela desligou o telefone.
Laray vai para Norte. Ele disse: “Basta me enviar uma carta”. Isso significa que...?
Ela sacudiu a cabeça e saiu em direção à porta, com a bolsa na mão.
Não seja tola, repreendeu a si mesma. Muitos Policiais Montados são enviados ao
Norte. O fato de Maurice Laray ser um deles não tem nada a ver com você. Não vá
complicar ainda mais as coisas.
As coisas estavam tensas aquela noite na Cantina Esperança. A guerra na Europa
tinha se agravado, e as notícias vindas dos frontes Aliados não eram boas. Uma
nova leva de recrutas em breve seria enviada para o estrangeiro. Embora a
empolgação pudesse ser ouvida em suas vozes, Christine sentia que, nos momentos
que tinham de maior sanidade, o medo também permeava esses jovens corações.
Muitos deles buscavam encontrar alguma espécie de âncora sólida antes de serem
enviados para o fronte.
221
Ele se daria muito bem no norte, se pegou imaginando. Ele tem o talento de ouvir,
mas sabe liderar também. Pergunto-me se um dia ele já considerou participar de
uma missão do Norte. Não seria uma maravilha se Deus liderasse...?
Ela parou. Que razão ela tinha para pensar que o pastor Tim poderia incluíla em
qualquer um dos seus planos? Bem, ela tinha que admitir honestamente que
demonstrara algum interesse nela. Talvez...
Christine se controlou. A direção que seus pensamentos tinham tomado
inesperadamente trouxe um rubor às suas bochechas. Agora, disse uma voz interior,
você não está querendo apenas planejar a sua própria vida; você quer também traçar
planos para a vida dos outros. Ela sentiu-se humilhada e envergonhada.
Ela observou cuidadosamente seus pensamentos durante o resto da noite. Mais uma
vez, o grupo de voluntários partilhava experiências enquanto trabalhavam juntos na
limpeza. Outro jovem tinha feito um compromisso de fé, e um outro tinha marcado
uma reunião com o pastor Tim no dia seguinte. Ele não tinha sido suficientemente
corajoso para abrir o coração com os seus amigos que partilham a mesa.
Uma vez mais o jovem pastor e Christine caminharam juntos até à parada do bonde.
— Você está tão cansada quanto eu? — perguntou ele.
Christine não admitiu que tinha dormido pouco na noite anterior e tinha levantado
mais cedo para estudar as Escrituras. Sim, estava cansada.
222
— Mas vale a pena — prosseguiu ele. — Imagine só, os anjos estão celebrando esta
noite. Outra ovelha perdida entrou no redil.
Era um pensamento maravilhoso. Christine sorriu com ele.
— Às vezes me pergunto: O que farei quando este pesadelo acabar? Quando as
tropas estiverem todas em casa outra vez, em segurança, isto é, aqueles que
voltarem para casa. Para onde Deus me levará então?
Não diga nada — ou sequer pense... Christine repreendeu-se a si mesma. Seria
errado até mesmo você sugerir o norte. Ela mordeu-a língua.
— Bem, eu não preciso me preocupar com isso — disse Tim com tranquilidade. —
Ele vai me mostrar. Mas é muito empolgante pensar no que pode acontecer depois.
Eu jamais teria pensado em servir aqui — mas tem sido extremamente gratificante.
Não consigo me imaginar em qualquer outro lugar. Creio que é assim que deve ser
quando estamos onde Deus quer que estejamos. Quando estamos no caminho, por
assim dizer.
Christine assentiu. No caminho com Deus era exatamente onde ela queria estar.
O bonde chegou e eles embarcaram, comentando sobre o dia, o futuro, os horrores
da guerra. Então Christine foi pega totalmente despreparada quando ele perguntou,
aparentemente do nada:
— Você está saindo com alguém?
— Sim — ela respondeu tranquilamente, surpreendendo até a si mesma. — Sim, eu
estou.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Não conseguia imaginar que você não estivesse comprometida — ele disse com
um sorriso irônico.
Mas eu não estou realmente comprometida, Christine quis argumentar e foi
surpreendida com a sensação de que, sim, ela estava. De certa forma, ela estava
comprometida.
— Fale-me sobre ele — sugeriu o pastor.
— Ele é... é um médico, que conheci quando o meu irmão e a mulher dele estavam
no hospital.
— Um médico?
O pastor Tim olhou surpreso.
223
— Ele é muito simpático — Christine percebeu a si mesma agregando. —
perfeitamente normal.
— Não vi nenhum anel no seu dedo — acrescentou ele, e depois disse
com um sorriso — Admito que eu procurei.
Christine ruborizou.
De repente, ela viu o homem ao seu lado não só como um rapaz muito
atraente, não como um bilhete para o seu amado Norte, mas como um homem
de Deus. Ela meio que se virou para ele.
— Eu tenho me sentido... confusa. Veja bem, eu quase cometi um erro
grave. Fiquei noiva de um descrente durante algum tempo. Quando esse
relacionamento acabou, eu fique... assustada. Duvidando da minha própria
capacidade de... saber como escolher. Eu pedi... bem, decidimos tomar uma
semana, para buscarmos a vontade de Deus para as nossas vidas. Para qualquer
relacionamento futuro. Eu... não vou conseguir francamente responder à sua
pergunta até essa semana acabar.
Os olhos dele tinham ficado reflexivos conforme ele a ouvia. Christine
baixou o olhar. Houve um silêncio.
— Eu admiro vocês. Os dois — disse o jovem pastor. — Se todos os casais
buscassem a vontade de Deus, sem dúvida haveria lares mais felizes e fortes. E
menos idas para os tribunais de divórcios. Menos crianças ficariam se culpando
por eventos que estavam fora do seu controle.
Christine assentiu. Essas eram as palavras que ela esperava ouvir de um
pastor.
Mas as próximas palavras não estavam longe do que ela esperava. — Christine, vou
procurar orar honestamente pela vontade de Deus —
não pela minha — para guiar sua vida, sabendo que a vontade dEle pode estar
em conflito com o meu desejo humano.
Christine arregalou os olhos. Será que ele estava dizendo... ? Sim, temia
que estivesse.
Ela estava contente por estar se aproximando a parada dele.
224
— Estarei orando... mas admito que também vou estar atento àquele dedo —
sussurrou ele com um sorriso irônico quando se levantava para sair.
Christine sentiu-se apavorada. A semana estava para terminar. Eric ia telefonar para
saber sua resposta. O que ela diria? Orou para que, independentemente de qual
fosse a conclusão de sua busca, ele estivesse de acordo. E se ela decidisse que
deviam continuar a relação e ele decidisse que estava terminado? O que fariam
então? É evidente que acabaria, e ela ficaria novamente com o coração partido. Será
que essa era uma das consequências da sua desobediência anterior? Christine
esperava que não. Orava que não fosse.
Mas, endureceu o coração para o pior, mas ainda assim, esperava pelo... pelo quê?
225
Capítulo 21
N
si mesma. Fez uma breve oração, pedindo que Deus lhe desse sabedoria e
compreensão ao pegar a Bíblia.
Ela tinha passado pelo livro de Génesis, fazendo anotações conforme avançava.
Mas não sentia que, além de orientações gerais, o Génesis não tinha dado uma
resposta ao seu dilema particular. Passou então para as conhecidas histórias do
Êxodo. A escravidão do povo, o nascimento e a proteção milagrosa do menino
Moisés. O pecado dele ao matar o egípcio, que resultou em sua fuga para o deserto.
Ela tinha ouvido essas histórias na classe bíblica, nas leituras da Bíblia em família,
e ela mesma tinha lido inúmeras vezes. Concluiu que a fuga de Moisés realmente
tinha pouco a ver com o lugar de direito de Eric na sua vida.
Ela passou para o relato da sarça ardente. Moisés certamente não estava esperando
se encontrar com o Deus hebreu no meio do deserto — e de forma tão estranha e
insólita.
No entanto, o próprio fato de Deus estar lá, falando com ele, era uma indicação de
que este Deus Santo e Todo-Poderoso estava disposto a inclinarSe e intervir em
nome do Seu povo. Mas antes que Ele pudesse fazer grandes coisas, tinha que ficar
claro quem Ele era.
Moisés.
“Moisés — Eu sou Deus. Eu sou o seu Deus”. E quando Moisés entendeu,
ele caiu sobre seu rosto.
Após alguns momentos de contemplação, Christine leu a respeito de Deus
ter dado a Moisés uma tarefa a cumprir. Uma tarefa espantosa. Uma tarefa que
Moisés não tinha procurado. Nem se sentia capaz de levar à compleição. “Tu
cometeu um erro aqui, Senhor”, ele parecia dizer. “Eu não sou o homem que o
Senhor está procurando. Eles nunca vão me ouvir”.
Christine pensou em quando ela e Henry eram crianças e gostavam
de representar histórias bíblicas. Henry sempre tinha feito um Moisés
impressionante. Ele batia na testa e cambaleava por todo lado, gritando: “Oh,
eu não. Eu não. Não posso fazer isso. Eles não vão me ouvir. Estou fugindo.
Não me mande de volta, Deus. Eles podem me matar. E eu nem sequer consigo
falar direito”.
Ele prosseguia desta maneira até que caíssem numa crise de risos. Ela
sorriu agora só de se lembrar disso.
Ela sempre tinha que fazer o papel de Deus, dizendo a Moisés que não
haveria mudança de planos. Uma vez ela tinha até mesmo batido na perna do
Henry, mandando ele se levantar e seguir em frente com a tarefa. Isso não tinha
terminado bem, nem para Henry, nem para ela.
“Deus não bateu nele” , Henry declarava firmemente, esfregando o local
da batida.
“Devia ter batido”, Christine dizia. “Ele estava agindo como um bebê”. Ela pensou
nisso agora. “Ele estava agindo como um bebê”. Com que
frequência ela tinha agido como um bebê, se perguntava, quando Deus lhe deu
instruções?
227
“O que é isso na sua mão?” ela leu a seguir.
Será que Moisés se perguntava por que Deus tinha que fazer essa pergunta? Era
evidente que Ele sabia o que Moisés tinha na mão. Não, a pergunta não foi feita
porque Deus precisava de saber. Era Moisés que precisava saber.
“É um bordão”.
Ele poderia ter dito: “É o meu bordão”. Esse bordão representava a maior parte da
vida de Moisés. Ele era um pastor. O bordão era necessário para proteger ele
mesmo e as ovelhas de saqueadores, para guiar, para instruir as ovelhas. Era o
instrumento do ofício de Moisés. Era seu dinheiro no banco. O seu senso de
segurança. Quando ele estava sozinho no deserto, era tudo o que ele tinha.
“Atire-o no chão”.
Como ela se lembrava bem desta parte da história. Ela sempre se sentia tão
poderosa, tão absolutamente no controle quando mandava que Henry jogasse seu
bordão, que era uma das colheres de cozinha da mãe ou um pequeno graveto da
caixa de lenha.
Henry reagia de acordo com seu próprio roteiro não escrito. Ele agarrava qualquer
coisa que estivesse segurando, fechava os olhos, e se balançava para trás e para a
frente. “Não posso. Não posso”, ele gemia e gemia. “É meu. Eu não quero desistir.
Quero ficar com ele. Por favor. Por favor”, e caía de joelhos, implorando.
Christine sorriu, e depois ficou rapidamente sóbria. Já não tinha mais graça. De
repente, viu uma imagem totalmente diferente. O bordão não era mais um longo
pedaço de madeira. Era qualquer coisa a que as pessoas se agarravam, que as
impedia que aceitassem o plano de Deus.
Será que ela ainda queria seguir sua própria vontade ao escolher o futuro
companheiro?
Não. Por mais que admirasse Eric — talvez até o amasse —, ela não estivera
disposta a avançar com os planos, a menos que sentisse a aprovação de Deus.
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Eu não posso, Senhor, ela começou a responder, e depois ouviu novamente sua
própria voz nos tempos de outrora: “Ele está agindo como um bebé”.
Christine deu a si própria uma pancada mental. Desista. Não vale a pena agarrar-se
a isso e perder o melhor de Deus.
Mas todas as minhas esperanças, os meus sonhos, o meu amor?
“Atire-os no chão”.
Christine abriu a mão e a manteve para cima — vazia. Era sua admissão — estava
dizendo que concordava em abrir mão de tudo.
Apesar das lágrimas que se seguiram, ela jamais sentira uma paz tão esmagadora.
“Christine”, uma voz suave parecia sussurrar, “se Eu quiser você no norte, não acha
que posso te levar para lá? Você não precisa resolver esse problema. Confie em
Mim. E se não for o norte, não acha que eu poderia te dar contentamento — paz —
até mesmo alegria — onde quer que te peça para ir?”.
Christine assentiu. Deus parecia estar tão perto. Ela se perguntou, por um instante,
se Moisés sentiu a mesma sensação da presença de Deus enquanto atirava seu
bordão.
“Agora”, Deus parecia estar dizendo. “Qual é a sua hesitação em aceitar este
rapaz”?
Para espanto de Christine, ela não tinha resposta. Não parecia haver qualquer razão.
Não havia qualquer razão porque Eric, que partilhava sua fé e o seu sentido do
propósito de Deus para a vida, devesse ser recusado simplesmente porque ela não
podia vê-lo como parte do seu Norte. Ele era um ótimo rapaz. Dedicado a Deus, à
sua família, e aos seus pacientes. Não apenas isso, mas ele tinha ganhado seu
respeito — seu coração, sim, o seu amor —, com sua gentileza e integridade. Ela
não podia acreditar que tinha lutado tanto tempo a respeito de algo tão simples.
Talvez a batalha não tivesse sido sobre o Eric, mas, sim, sobre a questão de quem
ou o que tinha prioridade na sua vida. Agora que tinha abdicado de seus próprios
planos e sonhos, e estava disposta a permitir que Deus controlasse seu futuro,
Christine sentiu-se totalmente em paz. Ela tinha a sua resposta.
229
Mas será que Eric tinha chegado à mesma conclusão? Com um pouco de luta,
Christine foi finalmente capaz de entregar também essa preocupação para Deus. Se
Eric não tivesse chegado à mesma conclusão, esse era o plano de Deus e ela iria
aceitá-lo. De alguma forma, Ele ia fazer que ela superasse a desilusão. Ela era filha
de Deus, e confiaria nEle.
Não havia nada sobre o comportamento de Eric que indicasse a sua decisão, para
um lado ou para outro. Ele foi educado, como sempre, mas não mais íntimo do que
tinha sido antes.
230
quanto ela. Ele se virou de costas para a água corrente afim de dar a ela toda sua
atenção. Ela podia ver a tensão em seu maxilar, e os seus olhos estavam sérios. —
Uma coisa que aprendi foi sobre tirar a sorte — disse ele.
Christine franziu o cenho. Certamente ele não estava sugerindo que tirassem a sorte
numa moeda para determinar seu futuro.
— Bem... talvez tenha sido mais sobre uma votação do que tirar a sorte.
— Uma votação?
— Uma votação secreta. Pergunto-me se você está preocupada que a decisão de um
possa influenciar a decisão do outro.
— É, eu pensei nisso.
Ele indicou um banco ao lado da trilha, e Christine deixou que ele a guiasse até o
banco. Os patos nadavam até a margem, à espera de uma guloseima. Quando não
havia nada disponível, eles protestavam em voz alta.
— Por isso pensei que talvez, para termos certeza de que isso não vá acontecer, nós
podíamos escrever a nossa resposta num pedaço de papel, então trocá-los e
desdobrá-los juntos.
Parecia mais uma brincadeira infantil, mas Christine concordou.
— Você já se decidiu? É importante que estejamos certos — disse ele, olhando para
ela atentamente.
— Sinto que Deus me deu orientação... sim — respondeu ela, sentindo-se tímida de
repente.
— Muito bem... eis a questão, para que nós dois saibamos exatamente o que
estamos respondendo: ‘Você sente que Deus deu a Sua aprovação para
prosseguirmos nesse relacionamento?’ Sim, se sentir que Ele aprovou. Não, se sente
que não aprova. Tudo bem?
— Entendido.
Eric entregou a ela uma folha de papel preparada. A pergunta estava até escrito no
topo da folha, para que não houvesse mal-entendido.
— Precisa de um lápis?
Christine sorriu.
— Você veio mesmo preparado — foi sua tentativa de brincar, apesar de estar
sentindo o nervosismo apertando seu estômago.
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JANETTE OKE
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Vencedora do Gold
Book Award (500.000 cópias vendidas)
A Escritora
JANETTE OKE nasceu em Champion, Alberta, filha de canadense, fazendeiro de
pradaria, e sua esposa, e cresceu em uma grande família cheia de risos e amor.
Formou-se na Faculdade Mountain View Bible, em Alberta, onde conheceu seu
marido, Edward, e eles se casaram em maio de 1957. Depois de pastorear igrejas
em Indiana e no Canadá, os Okes passaram alguns anos em Calgary, onde Edward
serviu em diversos cargos em faculdades, enquanto Janette continuou a escrever.
Ela escreveu mais de quatro dezenas de romances para adultos e crianças, e as
vendas de seus livros totalizam mais de vinte e dois milhões de cópias.
Os Oke têm três filhos e uma filha, todos casados e o casal está desfrutando de seus
doze netos. Edward e Janette são ativos na igreja local e vivem perto de Didsbury,
Alberta.
C
B.
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