Terra
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PREFÁCIO
Terra, em algum momento do centésimo milênio de nosso exílio
Caro leitor:
Se pegou este livro para ler, certamente pensa tratar-se de apenas mais uma obra de ficção
científica. Sinto-me, entretanto, na obrigação de dizer que, neste caso, está enganado. Esta não é uma
história fictícia; é a história de um povo. É a história de como findou a maior das Dinastias Estelares; de
como a traição e a mentira provocaram uma enorme revolução, a qual levou ao brutal assassinato da
Imperatriz, e à fuga de sua família para os confins do Universo Conhecido; de como uma pequena esquadra
de naves, tripulada por sobreviventes do massacre, migrou para os limites do mundo em busca de salvação e
paz, e ali fundou uma colônia que lhes permitiria sobreviver para esperar o momento certo de regressar, se e
quando a oportunidade surgisse.
Esta narrativa não tem final feliz. Não tem sequer final. É o relato nu e cru daquilo que se passou,
e ainda se passa, como está descrito nos registros de nossas raças. É o retrato da decadência lenta e contínua
de um povo, com todas as suas tradições e valores, rumo, talvez, a um final amargo. Mas isso já é futuro, e
não tenho aqui a pretensão de fazer previsões. Sou apenas uma narradora, que passa a você a realidade do
que foi e do que é. Não daquilo que será.
E antes que comece a se perguntar como posso ter conhecimento dos fatos, e com isso questione a
veracidade de minhas palavras, deixo claro: tudo aquilo que aqui contarei é a mais pura verdade, inalterada
por versões intermediárias ou leituras precipitadas. É a verdade pura, passada adiante como só uma
testemunha pode fazer. Sim, pois que aquilo que escreverei não me foi dito por terceiros, ou passado por
alguma lenda antiga; eu estava lá, e me lembro. E ainda que fosse jovem à época da Revolução, tenho
vívidas em minha mente todas as imagens e lembranças de cada mero detalhe. A história que quero contar é,
portanto, a minha história. Minha, e daqueles poucos que vieram comigo para este pequeno planeta, o qual
os humanos chamaram de Terra.
Em nosso exílio, aprendemos a confiar em sua raça, leitor. Por esse motivo, e nenhum outro, é que
coube a mim a tarefa de lhe contar o que pus nestas páginas. A fim de que, ainda que nosso povo venha a
fatalmente perecer nesse prolongado exílio, nossos feitos não feneçam conosco, mas perdurem em outras
gerações, passadas de pai para filho, e de mãe para filha, evitando que outros cometam os erros que
cometemos. Peço, então, que faça bom uso dos conhecimentos que lhe passo, e que não os encare como uma
mera distração, pois muito sangue foi derramado para sua construção.
Sua raça deu muitos nomes a minha civilização: Atlantes, Lemurianos, Hiperbóreos... Sob várias
denominações, em vários lugares, desde o começo estivemos em contato com os seres humanos, cujo sangue,
após tantos séculos, misturou-se irrevogavelmente com o nosso. Assim, meu povo é seu povo. Minha história
é sua história. E se desaparecermos, será com tranquilidade, por saber que nossa herança nesta Existência foi
cumprida.
Nada mais há que possamos fazer. Enquanto nossa gente aguarda que um milagre nos permita
voltar ao lar (alguns dentre nós, nascidos aqui, já chamam a Terra de lar), podemos apenas orar. Orar, e
observar. Observar como a raça humana, nossa irmã e, ao mesmo tempo, nossa filha, evoluirá em seu
percurso pelo existir; e claro, lembrá-la de nossos erros, para que não cometam os mesmos no futuro. Porém, o
futuro só aos Deuses pertence.
Bênçãos eternas
Morgan Nerthien, Primeira de Seu Nome, princesa do perdido Império Estelar, Grande Conselheira dos
Exilados
Capítulo I
Morgan correu pela sacada vítrea, ignorando as vinhas que se prendiam a sua capa e a
seus pés; tomara aquele caminho para fugir à presença da Guarda Imperial, a fim de
encontrar-se com o único membro do exército no qual realmente podia confiar: Artheron. A
urgência não estava apenas estampada no rosto da jovem mestiça, mas no modo como seus
pés descalços batiam com pressa no chão translúcido, na respiração ofegante – não de
cansaço, pois era dotada de forma física invejável, mas de angústia e aflição – nos olhos
alaranjados que buscavam desesperadamente a figura almejada... Sentiu seu cheiro à distância
e aumentou a velocidade, os cabelos negros de pontas fulvas escapando da trança que descia
até o quadril e esvoaçando quando, impacientando-se com os pés a tropeçar em si mesmos,
revelou sua verdadeira natureza: a “capa” negra, translúcida e cintilante que se arrastava pelo
chão, abriu-se em enormes e poderosas asas coriáceas que a ergueram apenas o bastante para
lhe dar mais velocidade. Não podia arriscar voos altos.
Foi no patamar superior que encontrou o homem a quem buscava: ao contrário dela,
era um dracaeus puro, de asas douradas cuja envergadura superava seis metros, olhos
amarelos de pupilas em fenda e cabelos quase brancos, de tão louros, com as mesma pontas
vermelhas que havia nos dela. O rosto era anguloso e extremamente masculino, com escamas
douradas nas maçãs do rosto e sobre a testa, minúsculos chifres acompanhando as
sobrancelhas e finas ranhuras transversais na ponte nasal, que lhe permitiam se orientar pelo
calor de um corpo. O capitão da guarda de Eealin, capital do Império Estelar!
- Morgan! – o capitão se surpreendeu ao ver a Guardiã Imperial ali, àquela hora, mas
recebeu-a com um abraço ao perceber a angústia e urgência dela – o que houve, meu amor?!
- A Imperatriz – ofegou a jovem, as asas agitadas abrindo e fechando – eu não tenho
tempo para explicar, mas a Imperatriz estará morta em poucos dias, e não há nada que alguém
possa fazer. O clã Dalarth... – ela se obrigou a controlar as asas – uma revolução como nunca
houve, nessa dinastia. Todos que carregarem o sangue da nobreza de Elian serão mortos,
assim como os que os apoiam. – ela viu os olhos dourados de seu amante se tornarem rubros
como o sol. Ele compreendera.
- Prepararei o exército...
- NÃO! – exclamou ela – Artheron, você não entende... Isso já saiu de controle. Já se
iniciou! Nas galáxias periféricas, nossos embaixadores começam a ser massacrados, assim
como todos os que possuem ligação com a família. A Imperatriz será morta em três dias,
nossa dinastia cairá, e vocês serão dizimados, se tentarem nos defender. Só o que podemos
fazer é preparar as naves e providenciar uma fuga.
- Fugir? – para um draceus, não havia palavra mais desonrosa. Sua natureza os
incitava a lutar até a morte antes de sequer cogitar uma fuga! – Morgan, não vou...
- Você vai fazer o que eu ordenar, Capitão da Guarda! – era a primeira vez que
Morgan se utilizava da autoridade de seu posto, em toda a vida de ambos – como Guardiã
Imperial, Regente da Coroa e princesa da Casa de Elian, eu ordeno que prepare seus homens
de confiança para uma evacuação emergencial e não-oficial de todos os cidadãos ligados à
Casa de Elian, independente de raça, casta ou patente. Vou reunir os membros da nobreza que
serão alvo disso, após a assembleia de hoje. – Artheron enrijeceu o maxilar, vendo que ali não
estava sua amante, mas a Regente da Coroa, e executou uma reverência formal:
- Assim o farei, Vossa Alteza. – ia deixar o lugar, quando a mão da amante segurou
seu ombro, e ela o puxou para um beijo intenso, profundo e desesperado, antes de dizer num
sussurro:
- Fique vivo, por favor. Não posso te perder. Você é metade de meu coração.
O draceaus retribuiu o beijo com força e, deslizando o polegar pelo rosto da amada,
apenas anuiu. Lacônico como todos os de sua raça, seu olhos falavam por si.