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Violência Obstétrica No Contexto Da Violência Feminina

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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA – UNICEUB

INSTITUTO CEUB DE PESQUISA E DESENVOLVIMENTO – ICPD


PROGRAMA DE MESTRADO E DOUTORADO EM DIREITO

ROBERTA CORDEIRO DE MELO MAGALHÃES

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NO CONTEXTO DA VIOLÊNCIA FEMININA

BRASÍLIA
2020
ROBERTA CORDEIRO DE MELO MAGALHÃES

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NO CONTEXTO DA VIOLÊNCIA FEMININA

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de


Doutorado em Direito do Centro Universitário de
Brasília (UNICEUB).

BRASÍLIA
2020
ROBERTA CORDEIRO DE MELO MAGALHÃES

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NO CONTEXTO DA VIOLÊNCIA FEMININA

Tese de Doutorado apresentada ao programa de Pós-graduação do


Centro Universitário de Brasília (UniCeub), como requisito parcial
para obtenção do grau de Doutora em Direito.

Aprovada em:

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________

Prof. Dr. Hector Valverde Santana – Presidente

________________________________________________________

Prof. Dr. Jefferson Carús Guedes (Uniceub) – Membro

_________________________________________________________

Prof. Dr. Arnaldo S. M. Godoy. (Uniceub) – Membro

__________________________________________________________

Prof. Dr. Flávio Rodrigues Calil Daher (Centro Universitário UDF) – Membro

____________________________________________________________

Profª. Drª. Marília de Ávila e Silva Sampaio (Instituto Brasiliense de Direito Público) –
Membro

____________________________________________________________

Prof. Dr. Sandro Lúcio Dezan (Uniceub) – Suplente


Dedico esta tese a todas as mulheres e aos
homens do mundo, seres humanos...
AGRADECIMENTOS

São tantos os agradecimentos...

Impossível de plasmar, em um simples papel, a contingência do espírito


tomado por imenso júbilo em uma experiência fantástica como a de um doutorado. Solitude,
solidão, dor, amor, sofreguidão. Epopeias que se somaram aqui, cada qual em sua peculiar
contribuição para o desfecho de um ciclo. Como pedir, pois, a redução a termo de minha
devocional gratidão? Tentemos.

Pela benção da vida, agradeço a Deus e à minha família, especialmente ao meu


esposo e meus queridos filhos.

Ao meu esposo, companheiro e amigo, Caio, pelo exemplo e impulso constante


para eu superar as adversidades que se apresentaram no período 2016-2020. Pelas várias e
várias vezes em que teve paciência comigo. Por ser, enfim, meu amado esposo! Encontrei-me
com você, descobri seu amor e levarei de tudo isso a languidez de nossos diuturnos
recomeços! Eu amo você! Esse doutorado é seu...

Aos meus queridos e amados filhos, Matheus e Arthur, por terem me dado a
honra de ser sua mãe. Amo incondicionalmente vocês dois por todas as existências possíveis!

Aos meus pais Ana e Ubiratam, por terem me dado a vida, o meu muito
obrigada por ter me transformado no que sou hoje.

Aos meus alunos e às minhas alunas pelo constante aprendizado, pois minha
vida sempre foi e sempre será – até o dia em que meus olhos se cerrarem para essa realidade –
dedicada à espiritual missão de democratização do conhecimento, ou, então, à contemplação
de nossas ignorâncias e idiossincrasias.

Aos meus professores e às minhas professoras de graduação, que despertaram


em mim o amor pelo Direito desde o primeiro dia de aula.

Aos meus colegas e às minhas colegas de faculdade, pelo suporte nas horas de
intranquilidade e desesperança – que foram muitas.

Ao meu amigo e orientador, professor Hector Valverde Santana, por ter


aceitado a incumbência de me orientar e pela participação constante em minha formação
“para além” das raias acadêmicas, como um grande Mestre repleto de sensibilidade e
paciência em face de meus passeios em outros campos, sobretudo naqueles que habitam o
abscôndito da minha mente. Eu não teria chegado até aqui se não fosse por sua nobreza de
espírito, uma alma invulgar...

Ao meu colega e amigo, Professor Jefferson Carús Guedes, pessoa que admiro
por sua competência e sabedoria, por ter me acolhido num universo maravilhoso para mim: a
pesquisa.

Ao fantático Professor Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, pessoa que admiro


hoje e sempre, o meu muito obrigada por ter aceito o convite de participar deste estudo.

À minha amiga e companheira Marília de Ávila e Silva Sampaio, por sempre


estar comigo, desde o começo da Magistratura, quando nos conhecemos naquela 14ª Vara
Cível e, agora, por se tornar, para mim, uma pessoa extremamente admirável por sua
competência, inteligência e, principalmente, por ter aceito o ônus de estar na minha banca e
de me ajudar nesta caminhada. Adoro você, amiga! Obrigada por existir e participar da minha
vida.

Ao meu querido amigo Flávio, pela ajuda imensurável durante todos estes anos de
doutorado. Começamos juntos e eu só tenho a agradecê-lo por seu imenso coração. Muito
obrigada pelo apoio incondicional.
(...) Eu romperei todos os nãos que existem
dentro de mim, provarei a mim mesma que
nada há a temer, que tudo o que eu for será
sempre onde haja uma mulher com meu
princípio, erguerei dentro de mim o que sou
um dia, a um gesto meu minhas vagas se
levantarão poderosas, água pura submergindo
a dúvida, a consciência, eu serei forte como a
alma de um animal e quando eu falar serão
palavras não pensadas e lentas, não levemente
sentidas, não cheias de vontade de
humanidade, não o passado corroendo o
futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro.
Não haverá nenhum espaço dentro de mim
para eu saber que existe o tempo, os homens,
as dimensões, não haverá nenhum espaço
dentro de mim para notar sequer que estarei
criando instante por instante, não instante por
instante; sempre fundido, porque então
viverei, só então serei maior que na infância,
serei brutal e mal feita como uma pedra, serei
leve e vaga como o que se sente e não se
entende, me ultrapassarei em ondas.
Ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim,
até a compreensão de mim mesma em certos
momentos brancos porque basta me cumprir
e então nada impedirá o meu caminho até a
morte sem medo de qualquer luta ou
descanso me levantarei forte e bela como um
cavalo novo (...)”. [g.n.], conforme me sinto
diante do mundo...
Clarice Lispector
RESUMO

A violência obstétrica é uma forma de violência de gênero e de violência institucional, que


tem por base relações de poder, sendo caracterizada pela apropriação do corpo e dos
processos reprodutivos da mulher parturiente pelos profissionais de saúde, mediante uso de
um tratamento desumanizado, abuso de medicalização e patologização dos processos naturais
do parto. Essa modalidade de violência constitui-se como uma grave violação dos direitos
fundamentais, dos direitos humanos e também de princípios constitucionais e bioéticos, uma
vez que impõe a perda de autonomia, além da perda da capacidade da mulher de decidir
livremente sobre seu corpo e sobre a sua sexualidade, culminando em consequências
negativas e desastrosas para a qualidade de vida das que foram suas vítimas. Os maus-tratos e
o desrespeito durante a assistência ao ciclo gravídico-puerperal se relacionam diretamente a
questões culturais, biológicas e sociais que envolvem a assistência à mulher. Nesse sentido,
este estudo tem como finalidade apresentar critérios para a construção de uma política pública
para ajudar na solução desse tipo de violência, com a prevenção e a punição dos responsáveis.
O estudo contribuiu para uma reflexão importante acerca da assistência obstétrica em cada
etapa do ciclo gravídico-puerperal, seja na gestação, parto, pós-parto, puerpério e nos casos de
abortamento, seja espontâneo ou provocado. Para a consecução da pesquisa foram utilizados
os seguintes procedimentos metodológicos: a pesquisa bibliográfica e a análise documental de
acórdãos. Ressalta-se ser premente investir no replanejamento e em melhorias no que diz
respeito à assistência à saúde reprodutiva da mulher, principalmente no momento do pré-
natal, focando em ações educativas de qualidade, visando o empoderamento da mulher no
parto e no puerpério. De modo conclusivo, com o fim de alcançar o objetivo proposto,
apresentou-se a proposta de políticas públicas para a prevenção e a repressão do problema.

Palavras-chave: Consentimento. Gênero. Gestação. Mulher. Parto. Parturiente. Puerpério.


Responsabilidade civil. Saúde pública. Violência obstétrica.
ABSTRACT

Obstetric violence is a form of gender violence and institutional violence, which is based on
power relationships, and is characterized by the appropriation of the parturient woman's body
and reproductive processes by health professionals, through the use of dehumanized
treatment, abuse medicalization and pathologization of natural birth processes. This type of
violence constitutes a serious violation of fundamental rights, human rights and also
constitutional and bioethical principles, since it imposes the loss of autonomy, in addition to
the loss of the woman's ability to decide freely about her body and about their sexuality,
culminating in negative and disastrous consequences for the quality of life of their victims.
Mistreatment and disrespect during assistance to the pregnant-puerperal cycle are directly
related to cultural, biological and social issues that involve assistance to women. In this sense,
this study aims to present criteria for the construction of a public policy to help in the solution
of this type of violence, with the prevention and punishment of those responsible. The study
contributed to an important reflection on obstetric care at each stage of the pregnancy-
puerperal cycle, whether during pregnancy, childbirth, postpartum, puerperium and in cases of
abortion, whether spontaneous or provoked. To carry out the research, the following
methodological procedures were used: bibliographic research and documentary analysis of
judgments. It is noteworthy that it is urgent to invest in replanning and improvements with
regard to assistance to women's reproductive health, especially at the time of prenatal care,
focusing on quality educational actions, aimed at empowering women in childbirth and the
puerperium. In a conclusive way, in order to achieve the proposed objective, the proposal of
public policies for the prevention and repression of the problem was presented.

Keywords: Childbirth. Civil responsibility. Genre. Gestation. Informed consent. Obstetric


violence. Parturient. Public health. Puerperium. Violence. Violence against women.
RÉSUMÉ

La violence obstétricale est une forme de violence de genre et de violence institutionnelle, qui
est basée sur les relations de pouvoir, et se caractérise par l'appropriation du corps de la
femme parturiente et des processus de reproduction par les professionnels de la santé, à
travers l'utilisation de traitements déshumanisés, les abus médicalisation et pathologisation
des processus naturels de naissance. Ce type de violence constitue une violation grave des
droits fondamentaux, des droits de l'homme ainsi que des principes constitutionnels et
bioéthiques, car il impose la perte d'autonomie, en plus de la perte de la capacité de la femme
à décider librement de son corps et de leur sexualité, aboutissant à des conséquences négatives
et désastreuses pour la qualité de vie de leurs victimes. Les mauvais traitements et le manque
de respect pendant l'assistance au cycle grossesse-puerpéralité sont directement liés aux
problèmes culturels, biologiques et sociaux qui impliquent l'assistance aux femmes. En ce
sens, cette étude vise à présenter des critères pour la construction d'une politique publique
d'aide à la résolution de ce type de violence, avec la prévention et la sanction des
responsables. L'étude a contribué à une réflexion importante sur les soins obstétricaux à
chaque étape du cycle grossesse-puerpéralité, que ce soit pendant la grossesse,
l'accouchement, le post-partum, la puerpéralité et en cas d'avortement, spontané ou provoqué.
Pour mener à bien la recherche, les procédures méthodologiques suivantes ont été utilisées:
recherche bibliographique et analyse documentaire des jugements. Il est à noter qu'il est
urgent d'investir dans la replanification et l'amélioration de l'assistance à la santé génésique
des femmes, en particulier au moment des soins prénatals, en se concentrant sur des actions
éducatives de qualité, visant à autonomiser les femmes lors de l'accouchement et de la
puerpéralité. De manière concluante, afin d'atteindre l'objectif proposé, la proposition de
politiques publiques de prévention et de répression du problème a été présentée.

Mots-clés: Accouchement. Consentement éclairé. Gestation. Le sexe. Parturiente.


Puerperium. Responsabilité civile. Santé publique. Violence. Violence contre les femmes.
Violence obstétricale.
LISTA DE ABREVIATURAS

AISM – Ação Integral à Saúde da Mulher


AMIU – aspiração manual intrauterina
ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar
ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária
CC – Código Civil
CDC – Código de Defesa do Consumidor
CEDAW – Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
Mulher
CEJIL – Centro para a Justiça e o Direito Internacional
CEM – Código de Ética Médica
CF – Constituição Federal
CIDH/OEA – Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
CIF – Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde
CLADEM – Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher
CNDM – Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
Conesp/CNS/MS – Comissão Nacional de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos
CP – Código Penal
CPMI – Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
CRM – Conselho Regional de Medicina
DataSUS – Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil
DEAM – Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher
DEGRAN – Delegacias Regionais de Polícia da Grande São Paulo
DNCR – Departamento Nacional da Criança
DRGE – Doença do refluxo gastroesofágico
DNPM – Desenvolvimento Neuropsicomotor
DST – Doença Sexualmente Transmissível
FIGO – Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia
HIV – Human Immunodeficiency Virus
HMIB – Hospital Materno Infantil de Brasília
HRSAM – Hospital Regional de Samambaia
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INMUJERES – Instituto Nacional de las Mujeres
IPEA – Instituto de Pesquisa e Estatística Aplicada
MBE – Medicina Baseada em Evidências
MPAS – Ministério de Previdência e Assistência Social
NSP – Núcleo de Segurança ao Paciente
OEA – Organização dos Estados Americanos
OPAS – Organização Pan-Americana da Saúde
OMS – Organização Mundial da Saúde
ONGs – Organizações não Governamentais
ONU – Organização das Nações Unidas
PAISM – Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher
PNAISM – Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher
PL – Projeto de Lei
PNPM – Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
PHPN – Programa de Humanização do Pré-Natal e Nascimento
PPGAR – Programa de Prevenção da Gravidez de Alto Risco
PPP – Pré-Parto e Pós-Parto
Prevsaúde – Programa de Ações Básicas de Saúde
PSMI – Programa de Saúde Materno-Infantil
Rehuna – Rede pela Humanização do Parto e Nascimento
RN – Recém-nascido
RNFSDR – Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos
SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
SISPRENATAL – Sistema de Acompanhamento do Programa de Humanização no Pré-Natal
e Nascimento.
SPM – Secretária de Políticas para as Mulheres
SERNAM – Sistema de las Naciones Unidas em Chile
SIM – Sistema de Informações sobre Mortalidade
SUS – Sistema Único de Saúde
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
TJDFT – Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios
UBS – Unidades Básicas de Saúde
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas
UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância
USP – Universidade de São Paulo
VPI – Violência por Parceiro Íntimo
VO – Violência Obstétrica
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ……………………………………………..……………………… 14

1 ASPECTOS GERAIS, SOCIAIS, ECONÔMICOS E PENAIS DA


VIOLÊNCIA ……………………………………………..…………………………. 22
1.1 Conceito de violência ………………………………..…...……………………… 22
1.1.1 Tipologias da violência ...……………………….……………………………... 30
1.2 Violência contra a mulher ……………………..………………………………… 36
1.2.1 Conceito de gênero ………………………..…………………………………… 54
1.3 Aspectos legais e sociais da violência ……..…………………………………….. 59
1.3.1 Principais marcos sociais e legais de combate à violência contra a mulher no
Brasil ……………………………………….………………………………………... 59
1.3.2 Feminicídio …………………………..………………………………………... 65

2 VIOLÊNCIA, GRAVIDEZ E PARTO …….…………………………………… 73


2.1 Aspectos históricos relacionados ao parto ….…………………………………… 73
2.1.1 Parto normal ou cesáreo? ……………………..…..…………………………… 80
2.1.2 Gestação, parto e puerpério ………………………..…………………………... 86
2.2 Violência obstétrica ……………………………..……………………………….. 91
2.2.1 Legislações sobre violência obstétrica …………..……………………..……… 93
2.2.2 Conceito de violência obstétrica ……………..…………………………..……. 97
2.2.3 Violência obstétrica em mulheres deficientes e negras ...................................... 112
2.3 Erro médico ............................................................................................................ 122
2.4 Estudo de casos de violência obstétrica ................................................................ 122
2.5 A responsabilidade civil do médico e o Código de Defesa do Consumidor e os
pressupostos da responsabilidade civil ................................................................... 139
2.5.1 Conduta humana – ação ou omissão ................................................................... 151
2.5.2 O conceito de culpa genérica (lato sensu) ........................................................... 153
2.5.3 O conceito de dano .............................................................................................. 171
2.5.4 A relação de causalidade ..................................................................................... 183
2.6 Responsabilidade civil do profissional da área de saúde e consentimento
informado ............................................................................................................... 194
2.6.1 Consentimento informado e situações emergenciais …......…………………… 209
2.6.2. Consentimento informado e capacidade de consentir …......………………….. 215
227
3 GRAVIDEZ E PARTO SEM VIOLÊNCIA …………………………..………...
3.1 Institucionalização e medicalização do parto ……………..……………………... 227
3.2 O movimento pela humanização do parto no Brasil .............................................. 239
3.3 O Código de Ética Médica ……………………………..………………………... 253
3.4 A ética hipocrática e o paternalismo médico ......................................................... 260
3.4.1 O paternalismo …………………………….………………………………… 261
3.5 A ética pós-hipocrática e a autonomia ................................................................... 265
3.6 Decisões tomadas à revelia da paciente e a falta de informação sobre os riscos… 268
3.7 A conduta dos profissionais de saúde e o Código de Ética na assistência
obstétrica ................................................................................................................ 270
3.8 A proteção dos direitos humanos das mulheres na assistência ao parto ................ 283

4 POLÍTICAS PÚBLICAS E SAÚDE DA MULHER ........................................... 299


4.1 Políticas públicas na saúde da mulher .................................................................... 299
4.2 Da assistência à mulher ………………………………………..………………… 310
4.3 A legislação no atendimento ao parto .................................................................... 324
4.4 Proposta para resolução do problema ……………………….…………………... 336

CONSIDERAÇÕES FINAIS …………………….……...………………………… 341

REFERÊNCIAS ……………..………………………...…………………………… 345


INTRODUÇÃO

A violência obstétrica surgiu há muitos anos, fazendo inúmeras vítimas, mas


muitas delas desconhecem que passam por esse tipo de abuso. Esse tipo de violência pode ser
física e/ou psicológica e pode atingir boa parte de mulheres e bebês em todo o País. Muitas
das vítimas, inclusive, acabam ficando com sequelas. Outras, nem ao menos sobrevivem.
Mas, o que se deve entender por violência obstétrica? O que se deve fazer para prevenir,
interromper e cessar esses episódios de maus tratos?

A violência caracteriza-se como um grave fenômeno social que está em franca


expansão, de todas as maneiras e, em especial, contra a mulher, uma vez que, ao longo da
história e nos dias que se seguem, ganhou caráter endêmico, fazendo-se cotidianamente
presente em comunidades e países ao redor do mundo, sem discriminação social, racial, etária
ou religiosa.1

Restringindo o conceito, a violência contra a mulher pode ser conceituada


como sendo um ato ou uma conduta baseada no gênero, que possa causar morte, dano ou
sofrimento de ordem física, sexual ou psicológica, tanto na esfera pública como na esfera
privada.2 Logo, a violência contra a mulher apresenta-se em distintas expressões e uma delas
tem sido muito presente e não identificada: a violência obstétrica.

É sabido que a mulher, mesmo sendo formalmente cidadã, titular histórica e


política de direitos, teve várias experiências em processos vulnerabilizantes dentro dos mais
distintos cenários de produção cultural, científica, política e acadêmica, tanto no Brasil,

1
“La violencia es un problema básicamente social que va en aumento en todas sus formas. En especial la
violencia contra la mujer no es un problema de la sociedad contemporánea ni de la civilización actual; ha
existido a lo largo de la historia y mientras la aceptemos o toleremos se mantendrá. Hoy día, la padecemos como
una endemia que golpea a nuestras comunidades y países en todo el mundo, sin distinción de clases sociales,
raza, edad, sexo o religión. Más de un quinto de las mujeres en el mundo sufre de violencia física o sexual, dos
millones de niñas son sometidas cada año a alguna forma de mutilación genital, la violencia doméstica es común
en la mayoría de sociedades, las violaciones y otras formas de violencia sexual van en aumento en todo el mundo
y dos millones de niñas entre 5 y 15 años son introducidas en el mercado comercial del sexo cada año.”
(FANEITE Josmery, FEO Alejandra, MERLO Judith Toro. Grado de conocimiento de violencia obstétrica por
El personal de salud. Rev Obstet Ginecol Venez [Internet]. 2012; 72(1): 4-12). Disponível em:
http://ve.scielo.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0048-77322012000100002. Acesso 10/ago/2017.
2
“CAPÍTULO I DEFINIÇÃO E ÂMBITO DE APLICAÇÃO – Artigo l – Para os efeitos desta Convenção,
entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano
ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.”
(Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, “Convenção de Belém
do Pará”, 1996). Disponível em: http://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-61.htm. Acesso em
08/ago/2017.

14
quanto em todo o mundo. Nesse sentido, a exposição de motivos do PL n.º 4.559/2004, o qual
culminou na elaboração da Lei n.º 11.340/2006, situa amplamente o problema nos itens 6 e 7,
apresentando um compromisso político da legislação em dirimir os déficits históricos em
torno do que se elaborou socialmente em termos de hierarquia e desigualdade nas relações
sociais.

Na Exposição de motivos, em seu item 6, o projeto delimita o atendimento às


mulheres que sejam vítimas de violência doméstica e familiar, por entender que a lógica da
hierarquia de poder, em nossa sociedade, não prestigia ou privilegia as mulheres. Desse modo,
o projeto buscou atender aos princípios de ação afirmativa que têm por finalidade
implementar ações voltadas a segmentos sociais, historicamente discriminados, como é o caso
das mulheres, com o objetivo de corrigir as desigualdades e promover a inclusão social, por
intermédio de políticas públicas específicas, para dar a estes grupos tratamento diferenciado
que tenha a possibilidade de compensar as desvantagens sociais que advém da situação de
discriminação e exclusão a que foram, durante muitos anos, expostas.

No item 7, o projeto dispõe que as ações afirmativas têm por objetivo a


defasagem entre o ideal de igualdade predominante e/ou legitimado, nas sociedades
democráticas modernas, e o sistema de relações sociais marcado pela desigualdade e
hierarquia. Essa fórmula tem respaldo em vários dispositivos do ordenamento jurídico
brasileiro, mais especificamente por constituir um corolário do princípio da igualdade.

A violência contra a mulher, de uma maneira geral, vem sendo amplamente


debatida desde a criação da Lei n.º 11.340/06 (Lei Maria da Penha), que passou a ser vista
como novo paradigma no campo jurídico, sendo resultado da luta de movimentos sociais para
o aumento de ações afirmativas em defesa da mulher, à luz do recorte de gênero.

Uma das formas de violência contra a mulher é a violência obstétrica,


entendida como um ato realizado por médicos, enfermeiras, doulas, gestores públicos ou, no
geral, por quaisquer profissionais de saúde contra o corpo e/ou processos reprodutivos das
mulheres, feito por meio de ações desumanizadas, uso indevido de medicalização e
transformação dos processos fisiológicos de parturização.3

3
“Entende-se por violência obstétrica qualquer ato exercido por profissionais da saúde no que concerne ao corpo
e aos processos reprodutivos das mulheres, exprimido por meio de uma atenção desumanizada, abuso de ações
intervencionistas, medicalização e a transformação patológica dos processos de parturização fisiológicos.”
(ANDRADE, Briena Padilha; AGGIO, Cristiane de Melo. Violência obstétrica: a dor que cala. Anais do III

15
Isso se dá mediante tratamentos desumanos, transformação de processos
naturais do parto em doença ou abuso de medicalização, negando às mulheres a possibilidade
de decidir sobre seus corpos. Em hospitais públicos ou privados, mulheres são submetidas a
agressões e procedimentos cirúrgicos que causam perda da autonomia do direito de decidir
sobre seus próprios corpos e trazem graves consequências a sua saúde, sexualidade e
autoestima. A carência de informação e a falta de legislação agravam a situação.

É certo que toda pessoa merece ser tratada com respeito. Mas, infelizmente,
isso nem sempre acontece. Grande parte das violências obstétricas ocorre durante o parto e o
pós-parto, em um momento em que a mulher está em situação de vulnerabilidade, sem
condições de se defender ou de tomar medidas práticas que interrompam a violência. São
práticas consideradas comuns e que causam severos danos à mulher, ao bebê e a toda sua
família.

A violência obstétrica é uma questão complexa que exige muita coragem para
ser denunciada, mormente porque, na maioria das vezes, ela ocorre em ambientes ocultos, que
são os consultórios médicos e as salas de cirurgia. As sociedades ainda são marcadas por
machismo e patriarcalismo. A violência obstétrica é um evento passível de ser vivenciado por
qualquer mulher, de diferentes idades, raças/etnias, grupos sociais.

No Brasil, no período da gestação e do parto, existe uma verdadeira violação


dos direitos da mulher, devido ao uso exagerado de medicamentos e procedimentos que
causam danos. Desse modo, vem aumentando o número de morbidade e mortalidade da mãe e
de seu filho.4

Na medicina ocidental, o corpo passou a ser visto como uma máquina, na qual
o ventre e o útero eram vistos como uma bomba mecânica que, na maior parte dos casos, era

Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248. Universidade Estdual de Londrina, 27 a 29 de maio de
2014. GT3 – Violência contra a Mulher e Políticas Públicas – Coor. Sandra Lourenço A. Fortuna). Disponível
em: http://www.uel.br/eventos/gpp/pages/arquivos/GT3_Briena%20Padilha%20Andrade.pdf. Acesso em
10/jan/2017.
4
“A assistência ao parto no país é marcada pelo predomínio do uso de tecnologias (duras), em detrimento de
valores éticos. Persiste o uso inadequado de procedimentos, muitos dos quais invasivos e potencialmente
danosos, que podem ferir a integridade corporal e psíquica das mulheres. É frequente ainda a violação do direito
das mulheres de ter acompanhante durante o parto e ganham cada vez maior visibilidade as denúncias de
violência obstétrica ou institucional. Este modelo está associado a taxas estagnadas ou mesmo crescentes de
morbimortalidade materna e neonatal.” (ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar. O desafio do direito à
autonomia: uma experiência de Plano de Parto no SUS.) Disponível em:
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6136/tde-07112016-141429/publico/HalanaFariaDeAguiarAndrezzo.pdf.
Acesso em: 20/jan/2019.

16
adequada para a expulsão do feto. Na obstetrícia, ainda, a metáfora do útero como uma
máquina, combinada com certos instrumentos, como o fórceps, por exemplo, substituíam as
mãos das parteiras por mãos com ferramentas. Assim, o corpo da mulher era visto como uma
máquina, e o médico o seu operador.5

Essa visão de máquina e operador levava a considerar a reprodução como uma


forma de produção, ao mesmo tempo em que a menopausa e a menstruação eram encaradas
como formas de fracasso dessa produção. Assim, o médico era encarado ora como um simples
mecânico, ora como um supervisor da referida máquina.6

Os locais onde ocorre o parto são, normalmente, para muitas pessoas, banais,
onde a identidade da mulher, bem como suas referências culturais e sociais acabam diante do
poder dos profissionais de saúde. Dessa forma, a mulher é obrigada a permanecer deitada
durante todo o trabalho de parto, com a exposição forçada de suas partes íntimas a qualquer
um. Ademais, são dadas ordens que a desqualificam, demonstrando o tanto que esse momento
se torna um martírio para suas vítimas e um exercício de poder sobre a mulher em razão de
seu gênero, o que a torna vulnerável e a desconsidera enquanto ser humano.7

Como existe uma verdadeira relação de poder entre o médico e a paciente, ela
pode ser transformada, em alguns casos, em violência de gênero. Ademais, quanto menor a
escolaridade e mais escura a cor da pele das mulheres, menor é a atenção a elas dispensada e o

5
“Para compreender o tratamento médico dado ao parto, precisamos reconhecer que, no desenvolvimento do
pensamento e da medicina ocidental, o corpo passou a ser visto como máquina. Essa metáfora mecânica teve seu
início nos hospitais franceses dos séculos XVII e XVIII, em que se dizia que era como se o ventre e o útero
‘formassem uma bomba mecânica que, em situações específicas, era mais ou menos, adequada para a expulsão
do feto’. No desenvolvimento da obstetrícia, a metáfora do útero como máquina é combinada ao emprego de
instrumentos mecânicos reais (como o fórceps), que tiveram papel importante na substituição das mãos das
parteiras por mãos masculinas que usam ferramentas. É comum alegar que a metáfora do corpo como máquina
continuou a dominar a prática da medicina do século XX e que tanto fundamenta como é responsável por nossa
disposição em empregar tecnologia no parto e interferir no processo. O corpo da mulher é a máquina e o médico,
o mecânico ou técnico que a ‘conserta’.” (MARTIN, Emily. A mulher no corpo: uma análise cultural da
reprodução, Rio de Janeiro, Garamond, 2006, p. 105 e 107).
6
“Estaria a reprodução sendo tratada como uma forma de produção, da mesma maneira que vimos a
menstruação e a menopausa tratadas como fracasso na produção? A metáfora da produção, se é que ela está
envolvida, tem implicações bem diferentes que a metáfora máquina/mecânico. Ela nos permite perguntar, por
exemplo, se o médico é apenas o mecânico, ou talvez mais um supervisor de fábrica, ou até seu dono.”
(MARTIN, Emily. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução, Rio de Janeiro, Garamond, 2006, p.
108/109).
7
“Os espaços onde as mulheres vivenciam o trabalho de parto são, em geral, coletivos e impessoais. Neles, a
identidade da mulher, suas referências culturais e sociais sucumbem para que sobre ela atue o saber biomédico.
A existência de um ‘pré-parto’ anuncia que o parto taylorizado estipulou etapas para este evento, as quais
passam a ocorrer em ambientes distintos, sobretudo em espaços de preparação, de espera e espaços para o ato de
parir.” (ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar. O desafio do direito à autonomia: uma experiência de Plano de
Parto no SUS). Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6136/tde-07112016-
141429/publico/HalanaFariaDeAguiarAndrezzo.pdf. Acesso em: 20/jan/2019.

17
acesso à analgesia de parto nos locais onde são atendidas. A mortalidade materna também é
maior de mulheres negras em relação às brancas.8

É certo que a mulher deve ter o poder de decidir sobre o seu corpo, deve ter
liberdade para dar à luz e acesso a uma assistência de saúde adequada e, no mínimo,
respeitosa e humanizada. Dessa forma, durante o período gestacional, ou seja, no pré-natal, no
parto em si e no pós-parto, a mulher precisa é do apoio de profissionais de saúde, que sejam
capacitados e estejam comprometidos com a fisiologia do nascimento, bem como tenham
respeito pelo corpo dessa paciente como um processo social e fisiológico.9

Trata-se de uma pesquisa interdisciplinar, que envolve disciplinas na área do


direito penal, do direito civil, da medicina e analisa a falta de políticas públicas para
responsabilizar, penalmente, os casos de violência obstétrica que existem no Brasil. A
violência obstétrica, ainda, é aquela que ocorre durante a gestação, no momento do parto,
nascimento e/ou pós-parto e, também, no atendimento ao abortamento, provocado ou
espontâneo. Pode ser física, psicológica, verbal, simbólica e/ou sexual, além de negligência,
discriminação e/ou condutas excessivas ou desnecessárias ou desaconselhadas, muitas vezes
prejudiciais e sem qualquer embasamento em evidências científicas. Com essas práticas, a
mulher é submetida a normas e rotinas rígidas e, muitas vezes, desnecessárias, sem qualquer
respeito ao seu corpo e ao seu ritmo natural, impedindo-a de exercer o seu protagonismo.

Os problemas que surgem nesta pesquisa são os seguintes: o erro médico e a


violência obstétrica são conceitos semelhantes, diferentes ou um está contido dentro do outro?
Quem pode praticar violência obstétrica? A violência obstétrica é uma espécie de violência de

8
“Desta forma, quando se faz o recorte racial, a discussão das desigualdades que atingem as mulheres no Brasil
comumente aponta para a presença de uma tríplice discriminação: o fato de ser mulher, ser negra e a questão
social. E que a mulher negra, enquanto ser indivisível vivencia simultaneamente graus extremos de violência
decorrente do sexismo, do racismo e dos preconceitos de classe social, em um bloco monolítico.” (GOES,
Emanuelle Freitas; NASCIMENTO, Enilda Rosendo de. Intersecção do racismo e do sexismo no âmbito da
saúde sexual e reprodutiva). Disponível em:
http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278279228_ARQUIVO_INTERSECCAODORACISMOE
DOSEXISMONOAMBITODASAUDESEXUALEREPRODUTIVA.pdf. Acesso em 27/nov/2019.
9
“Acreditamos que a mulher deve ser a protagonista de sua história e, assim, deve ter poder de decisão sobre seu
corpo, liberdade para dar à luz e acesso a uma assistência à saúde adequada, segura, qualificada, respeitosa,
humanizada e baseada em evidências científicas. Para tanto, no pré-natal, no parto e no pós-parto, a mulher
precisa ter apoio de profissionais e serviços de saúde capacitados que, acima de tudo, estejam comprometidos
com a fisiologia do nascimento e respeitem a gestação, o parto e a amamentação como processos sociais e
fisiológicos.” (Dossiê da Violência Obstétrica – Parirás com dor. Parto do princípio – Mulheres em rede pela
maternidade ativa). Disponível em:
https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.pdf. Acesso em:
21/fev/2019.

18
gênero? De que formas haveria a prevenção ou repressão desse tipo de violência? Qual é o
campo ou limite objetivo que define a existência ou a inexistência da violência nas práticas
obstétricas?

As hipóteses que surgem com o problema retrocitado são: i) o médico não


responde por tal atividade, penalmente, uma vez que não existe lei específica para
responsabilizá-lo; ii) os profissionais de saúde e a doula, de uma maneira geral, também não
são responsabilizados, uma vez que, mesmo no caso de verificar-se a prática de violência
obstétrica, tanto física quanto psicológica, não existe lei específica dizendo se é cabível
responsabilidade penal nessas hipóteses; iii) de igual modo, os gestores hospitalares (em
hospitais públicos e privados), na atualidade, também não respondem penalmente por suas
condutas, nos casos de prestação de serviço.

Assim sendo, o objetivo deste trabalho é trazer à discussão os fundamentos que


amparam essas hipóteses para, em seguida, propor a criação de uma política pública voltada
paara a resolução do problema proposto. Ademais, o grande desafio no enfrentamento à
violência obstétrica é que ela, em nossa sociedade, é percebida como normal. Algumas
mulheres acreditam que o parto é um processo sofrido e, por essa razão, não se surpreendem
quando vivenciam uma experiência ruim. O que elas desconhecem é que o parto pode, e deve
ser uma experiência muito boa, e que esse modelo ofensivo deve ser modificado.

A relação entre o médico e a paciente é caracterizada pela necessidade de


proteção de dois valores que podem, em inúmeros casos, se chocar, quais sejam, o bem-estar
da paciente e a sua vontade, isto é, seu consentimento. Nesse ponto, é possível verificar que,
na medicina, de forma geral, existe uma grande lacuna na tutela da autonomia da paciente.10

Assim nasceu esta pesquisa, nominada Violência obstétrica no contexto da


violência feminina, cujo objetivo consiste no encontro de critérios para a construção de
políticas públicas para ajudar a prevenir, ou mesmo responsabilizar os autores desse tipo de
violência.

10
“A complexa relação médico-paciente é caracterizada, em uma de suas facetas, a partir do patente conflito
entre salus aegroti e voluntas aegroti, ou seja, entre a necessidade de proteção de dois valores que podem, em
diversas situações, ser colidentes: o bem-estar do paciente e a sua vontade. Nesse contexto, é possível identificar,
na orientação médica tradicional, uma considerável lacuna na tutela da autonomia do paciente.” (SIQUEIRA,
Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção
Direito Penal e Criminologia, p. 29).

19
Os cuidados obstétricos (antes, durante e após o parto) devem reconhecer que
toda mulher tem o direito legal de receber tratamento livre de danos e maus-tratos, obter
informação, consentimento esclarecido com possibilidade de recusa e garantia de respeito a
suas escolhas e preferências, incluindo acompanhante durante toda a internação; privacidade e
sigilo; tratamento com dignidade e respeito; tratamento igualitário e livre de discriminação; e
atenção. Ressalta-se que, muitas vezes, esses direitos são negligenciados e desrespeitados.

Considerando que muitas vezes a violência obstétrica não é reconhecida pelas


próprias parturientes como um ato de violência, pois, no momento que ela ocorre, as mulheres
estão vivenciando grandes emoções com o nascimento de um filho. Esse fato as leva a pensar
que é comum aceitar agressões verbais, impedindo-as de expressar o que sentem durante o
trabalho de parto, direito de ter, por exemplo, um acompanhante dentre outros direitos
negligenciados.

O objetivo geral desta pesquisa é demonstrar a existência de casos de mulheres


em situação de violência obstétrica nas práticas obstétricas no contexto da violência de
gênero, gerando ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana. A partir dessa
percepção, serão propostos parâmetros para a elaboração de políticas públicas que viabilizem
materialmente essa dignidade, a serem clarificados com o desenvolvimento da pesquisa.

De outro lado, tem-se como objetivos específicos: a) elaborar os conceitos de


hipervulnerabilidade das mulheres a partir de leituras sobre o tema; b) explicitar e conhecer os
critérios para se aferir a situação de pessoas em condição de hipervulnerabilidade das
mulheres em situação de abortamento espontâneo; b) realizar pesquisa jurisprudencial no
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, acerca de hipóteses de prática de
violência obstétrica e quais as consequências desses atos; c) articular o acervo empírico
encontrado com o preceito constitucional da dignidade da pessoa humana, buscando
compreender as eventuais tensões entre as práticas de violência obstétrica e o referido
princípio constitucional; d) estudar e propor parâmetros para a elaboração de políticas
públicas que viabilizem materialmente a dignidade da pessoa humana.

A concretização dos mencionados objetivos terá como caminho o


procedimento monográfico como metodologia de procedimento, com verificação da literatura
jurídica e de outras áreas do saber. Assim, o presente trabalho foi estruturado essencialmente
por meio da análise de literatura e de jurisprudência sobre o tema. Com a finalidade de dar

20
mais concretude à pesquisa, buscou-se contextualizar os problemas teóricos discutidos por
meio da análise de casos concretos capazes de ilustrar a problemática da violência obstétrica.

Diante disso, o trabalho foi desenvolvido, além da introdução, da conclusão e


das referências, da seguinte maneira:

No primeiro capítulo, são identificados os aspectos conceituais e políticos da


violência, apontando a posição da mulher na sociedade desde a antiguidade. Além disso, são
trazidos o conceito de violência e seus aspectos legais e sociais, bem como a violência
especificamente cometida contra a mulher.

No segundo capítulo, são abordados e regulados o exercício do direito


fundamental em relação aos aspectos do parto associado à violência, apontando o conceito, as
causas e as implicações para a morbidade e mortalidade maternas na violência obstétrica. Será
analisado, ainda, o conceito de erro médico e feita sua distinção do conceito de violência
obstétrica. Serão apresentadas, problematizadas e discutidas as causas de violência obstétrica,
a citação de casos concretos, além da responsabilidade civil do médico, associadas às relações
de consumo e responsabilidade desse tipo de violência.

No terceiro capítulo, a abordagem será sobre o parto sem violência, na qual


serão trazidas a institucionalização e a humanização desse procedimento. A discussão
provocada pelos movimentos no Brasil, pela humanização do parto leva a verificação do
Código de Ética dos profissionais de saúde no sentido de proteger os direitos humanos das
mulheres na assistência ao parto, garantindo-lhes a sua autonomia, ressaltando a importância
do consentimento da paciente para intervenções médicas.

Por fim, no último capítulo, analisam-se as políticas públicas existentes na


saúde da mulher, a legislação no atendimento ao parto, além da proposta para resolução do
problema exposto no início dos trabalhos.

21
1 ASPECTOS GERAIS, SOCIAIS, ECONÔMICOS E PENAIS DA
VIOLÊNCIA

Para melhor compreensão da situação da violência obstétrica, é necessário


discutir os aspectos teóricos, conceituais e políticos que são fundamentais para um
entendimento mais ampliado sobre essa temática.

1.1 Conceito de violência

O termo Gewalt, em alemão, pode ser entendido como sinônimo de violência,


de força, de autoridade, ou mesmo de poder. Pode, ainda, significar uma característica das
instituições sociais, isto é, geistliche Gewalt, que significa “o poder espiritual da Igreja”, e
Staatgewalt, “o poder do Estado”.

A palavra violência pode ser entendida como um conjunto de condutas


humanas comissivas, praticadas por pessoas físicas ou grupos de indivíduos que acarretam a
morte de outros seres humanos ou que afetem sua integridade física ou moral. Assim, correto
é o uso do termo violências, pois se trata de uma situação repleta de especificidades e com
características próprias, as quais necessitam ser conhecidas.11

A violência é tratada como uma quebra de qualquer forma de integridade de


outra pessoa, a qual é denominada vítima. Ela pode ser física, psíquica, sexual e moral. É
possível que a violência psíquica cause danos de natureza psicológica para a vítima e isso
ocorre, por exemplo, quando da prática de tortura, por razões políticas, ou, ainda, quando a
vítima é privada de sua liberdade e submetida ao cárcere, sendo mantida isolada de qualquer
meio de comunicação, ou mesmo de manter qualquer contato com outras pessoas.12

11 “Qualquer reflexão teórico-metodológica sobre a violência pressupõe o reconhecimento da complexidade,


polissemia e controvérsia do objeto. Por isso mesmo, gera muitas teorias, todas parciais. Neste artigo, levando
em conta o que acontece na prática, dizemos que a violência consiste em ações humanas de indivíduos, grupos,
classes, nações que ocasionam a morte de outros seres humanos ou que afetam sua integridade física, moral,
mental ou espiritual. Na verdade, só se pode falar de violências, pois se trata de uma realidade plural,
diferenciada, cujas especificidades necessitam ser conhecidas.” (MINAYO Maria Cecília de Souza, SOUZA
Edinilsa Ramos de. Violência e saúde como um campo interdisciplinar e de ação coletiva. História, Ciência,
Saúde. 1998; IV(3): 513-531). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
59701997000300006&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em 10/abr/2018.
12
“Assim, o entendimento popular da violência apoia-se num conceito, durante muito tempo, e ainda hoje, aceito
como o verdadeiro e o único. Trata-se da violência como ruptura de qualquer forma de integridade da vítima:
integridade física, integridade psíquica, integridade sexual, integridade moral. Observa-se que apenas a psíquica

22
A violência, entendida como evento histórico, atingiu e atinge as sociedades
como um todo, desde o início da existência humana, e é considerada um fenômeno
grandioso.13 Pois bem, a violência é um fenômeno que sempre existiu e que, na atualidade, se
expressa de diversas formas. Pode ter influência de vários lugares, tempos e realidades, os
quais se diferenciam uns dos outros. Alguns tipos de violência são culturalmente tolerados,
enquanto outros são condenados. O simples fato de o homem viver em sociedade faz com que
a violência exista e se apresente de diversos modos.14

De outro lado, sob a perspectiva do Estado, o custo da violência, no mundo


todo, é muito grande. Na realidade, não se sabe ao certo esse valor. O que se tem
conhecimento é de que os gastos que dela decorrem são vários, como com a saúde da vítima,
com o surgimento de vítimas que não conseguem trabalhar, ou porque são lesionadas, ou
mortas, ou, ainda, sofrem abusos sexuais, psicológicos, gerando danos imensuráveis para a
sociedade. Desse modo, o quanto se gasta com a dor e com o sofrimento da violência para
com suas vítimas não pode, em princípio, ser calculado.15

A evolução tecnológica trouxe, ainda, outras espécies de violência, como o


terrorismo, além de guerras, rebeliões, entre outras, as quais ocorrem e podem ser visualizadas
quase que diariamente. De outro lado, existem alguns atos violentos que acontecem às
escondidas, sem que suas vítimas possam perceber ou se manifestar, como a que se dá nos
lares, locais de trabalho ou, ainda, recintos médicos para atendimento ao público. Na violência
perpetrada nos lares e na que ocorre nos recintos médicos, as vítimas são, normalmente,

e a moral situam-se fora do palpável. Ainda assim, caso a violência psíquica enlouqueça a vítima, como pode
ocorrer – e ocorre com certa frequência, como resultado da prática da tortura por razões de ordem política ou de
cárcere privado, isolando-se a vítima de qualquer comunicação via rádio ou televisão e de qualquer contato
humano –, ela torna-se palpável.” (SAFFIOTI Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. 1ª ed.
São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 17/18).
13
“A violência, provavelmente, sempre fez parte da experiência humana. Seu impacto pode ser mundialmente
verificado de várias formas. A cada ano, mais de um milhão de pessoas perdem a vida, e muitas mais sofrem
ferimentos não fatais resultantes de autoagressões, de agressões interpessoais ou de violência coletiva. Em geral,
estima-se que a violência seja uma das principais causas de morte de pessoas entre 15 e 44 anos em todo o
mundo.” (DAHLBERG, Linda L; KRUG, Etienne G. Violência: um problema global de saúde pública).
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v11s0/a07v11s0.pdf. Acesso em 12/nov/2017.
14
“Understanding violence is influenced by very different times, places, circumstances and realities. There are
tolerated types of violence and others, condemned, because, since man has lived on Earth, violence exists,
presenting itself in different forms, increasingly complex and at the same time more fragmented and articulated.”
(PACHECO, Leonora Rezende; MEDEIROS, Marcelo; GUILHEM, Dirce. Intimate Partner Violence: cultural,
social and health correlations. Nursing & Care Open Acces Journal. 2017, 2(4)00046). Disponível em:
https://medcraveonline.com/NCOAJ/NCOAJ-02-00046.php. Acesso em 25/nov/2017.
15
“Embora seja difícil ter estimativas precisas, o custo da violência para o mundo se traduz em bilhões de
dólares de despesas anuais com cuidados de saúde, acrescidos de outros bilhões relativos às economias dos
países, em termos de dias não trabalhados, imposição e cumprimento da lei e investimentos perdidos.”
(DAHLBERG, Linda L; KRUG, Etienne G. Violência: um problema global de saúde pública.) Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/csc/v11s0/a07v11s0.pdf. Acesso em 12/nov/2017.

23
mulheres e jovens em situação de vulnerabilidade, os quais, por inúmeros motivos, são
forçados a guardar sigilo.16

Assim, algumas causas da violência são facilmente verificáveis; outras, estão


de tal forma enraizadas na sociedade e na cultura das pessoas que são difíceis de serem
identificadas. A predisposição para a agressão é, muitas vezes, explicada por fatores
biológicos e individuais, os quais interagem com fatores familiares, ou, ainda, com fatores
externos, em momentos em que a violência pode aparecer.17

Apesar de a violência existir desde a criação da humanidade, ela não pode e


não deve ser aceita como um fenômeno normal, ao qual certas pessoas devam se submeter
como uma consequência natural de sua condição enquanto ser humano. Com a violência,
foram desenvolvidas religiões, filosofias, leis e sistemas sociais com a finalidade de preveni-
la ou puni-la, mas, na realidade, não houve eficácia na sua criação.18

Determinados contextos favorecem o desenvolvimento das manifestações de


violência e esta, uma vez colocada em ação, manifesta o seu poder. Assim, a violência que
inicia com um contexto propício dá ensejo à violência como lógica de intervenção. O que se
questiona não é o círculo vicioso da violência, mas o fato de serem dois elementos que
interagem na constituição da violência: a objetividade e a subjetividade. Definir alguma coisa

16
“O custo humano de dor e sofrimento, naturalmente, não pode ser calculado e é, na verdade, quase invisível.
Embora a tecnologia tenha tornado certos tipos de violência – terrorismo, guerras, rebeliões e tumultos civis –
diariamente visíveis para as audiências televisivas, um número maior de atos violentos ocorre sem ser visto nos
lares, locais de trabalho e mesmo em instituições sociais e médicas destinadas ao cuidado do público. Muitas das
vítimas são muito jovens, fracas ou doentes para se protegerem. Outras, por convenções ou pressões sociais, são
forçadas a guardar silêncio sobre suas experiências.” (DAHLBERG, Linda L; KRUG, Etienne G. Violência: um
problema global de saúde pública.). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v11s0/a07v11s0.pdf. Acesso
em 12/nov/2017.
17
“Da mesma forma que seus impactos, algumas causas da violência são facilmente constatadas. Outras estão
profundamente enraizadas no tecido social, cultural e econômico da vida humana. Pesquisas recentes sugerem
que, enquanto fatores biológicos e vários fatores individuais explicam a predisposição para a agressão, com
frequência tais fatores interagem com fatores familiares, comunitários, culturais ou outros fatores externos,
criando situações em que a violência pode ocorrer.” (DAHLBERG, Linda L; KRUG, Etienne G. Violência: um
problema global de saúde pública.). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v11s0/a07v11s0.pdf. Acesso
em 12/nov/2017.
18
“Embora a violência tenha estado sempre presente, a humanidade não deve aceitá-la como um aspecto
inevitável da condição humana. Juntamente com a violência, sempre houve sistemas religiosos, filosóficos,
legais e comunitários que foram desenvolvidos a fim de preveni-la ou limitá-la. Nenhum deles foi
completamente eficaz, mas todos deram contribuições a esse traço definidor da civilização.” (DAHLBERG,
Linda L; KRUG, Etienne G. Violência: um problema global de saúde pública.). Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/csc/v11s0/a07v11s0.pdf. Acesso em 12/nov/2017.

24
ou alguém como violento implica captar as relações que existem entre objetividade e
subjetividade da violência.19

A violência, pensada a partir desses parâmetros, faz com que, necessariamente,


sejam renunciados certos julgamentos normativos e valorativos, uma vez que o que está em
jogo não é o que é legal ou correto, mas, sim, o que é vigente. Na verdade, um dos elementos
mais complexos do conceito de violência é que não há uma definição que se aplique a toda e
qualquer sociedade de uma maneira geral.20

19
“Aprofundando um pouco mais esta linha de raciocínio, é possível supor que existam, por um lado, contextos
(objetivos) mais ou menos favoráveis ao desenvolvimento da violência, e que por outro, o que é representado
como violência (dimensão subjetiva) ‘participe’ igualmente da realidade da violência. Se determinados contextos
favorecem o desenvolvimento de manifestações de violência, esta, uma vez posta em ação, manifesta aos atores
o poder de sua utilização. Neste sentido, uma violência que inicialmente se constitui a partir de um contexto
propício produz, ou pode produzir, a violência como lógica de intervenção. O que está em questão não é algo
como o círculo vicioso da violência, mas o fato, já ressaltado, de serem objetividade e subjetividade dois
elementos interagindo solidariamente na constituição do fenômeno. Assim, definir algo ou alguém como
violento implica captar as relações entre objetividade e subjetividade da violência, estratégia que o enfoque das
representações sociais parece possibilitar.” (PORTO, Maria Stela Grossi. Crenças, valores e representações
sociais da violência. Sociologias. Porto Alegre, ano 8, n.º 16, jul/dez 20007, p. 250-273). Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/soc/n16/a10n16. Acesso em 20/nov/2017.
20
“Pensar a violência a partir destes parâmetros ou abordagens demanda necessariamente abrir mão de
julgamentos normativos ou valorativos, pois o que está em questão não é o legal ou o normativamente correto,
mas o efetivamente vigente. Com isto, não se está tendendo a um relativismo exacerbado, a partir do qual todos
os valores se equivaleriam. Para dar um exemplo, a pretensão à legitimidade não é necessariamente (embora não
se exclua esta possibilidade) sinônimo de legitimidade. Ainda que eventualmente possa sê-lo para o segmento
que a reivindica. Ou, em outros termos, aqui vale a distinção weberiana (perseguida, mas nem sempre seguida
pelo próprio Weber) entre o político e o cientista (WEBER, 1974). Do ponto de vista existencial, o sociólogo,
em sua condição de cidadão, partilha um elenco de valores e dirige, através deles, sua conduta. Como cientista,
dedica-se a compreender o elenco de valores presentes na sociedade analisada para, a partir daí, avançar seu
conhecimento sobre essa sociedade. Assim, e correndo o risco da repetição, eu diria que, para a análise
sociológica, torna-se relevante para os propósitos explicativos refletir sobre a ordem empiricamente vigente, na
medida em que esta, tanto quanto, ou até mesmo mais do que a ordem legal, pode ser reveladora de contextos
societários e dos valores neles predominantes. A partir desta mesma vertente, caberia ainda considerar uma outra
característica do fenômeno, ou outro de seus elementos constitutivos, de alguma forma já mencionada ao longo
do texto, a saber, a oposição entre a relatividade de que seus conteúdos se revestem (ou são passíveis de se
revestir) e a pretensão a uma definição abrangente e universal. Do ponto de vista teórico, ressaltar o aspecto
relativo do fenômeno não é sinônimo de assumir um relativismo puro, a partir do qual tudo se equivale, nem é
sinônimo de adesão ao credo relativista, cuja exacerbação leva ao irracionalismo que, no limite, inviabiliza a
atividade científica. Do ponto de vista empírico, a ênfase posta na cultura e nas especificidades próprias a toda e
qualquer sociedade aponta ao olhar sociológico a relatividade valorativa presente nas distintas culturas (e no
interior de cada uma delas) a qual implica, necessariamente, distintas representações da violência, cabendo ao
sociólogo tomá-las como objeto de análise, caso tenha pretensões à elaboração de uma sociologia ou teoria da
violência. Aqui se situa, talvez, um dos elementos mais complexos da questão da definição da violência: não há
uma definição em abstrato, que se ‘aplique’ a qualquer sociedade. Por outro lado, o relativismo não leva a lugar
nenhum. Uma forma possível de se buscar sair do impasse seria considerar que o limite para o relativismo seria a
integridade, física e moral da pessoa. Desta forma, toda vez que tal integridade fosse atingida poder-se-ia
assumir que se está em presença de um ato violento. É claro que aí também não se está, de todo, isento de
ambiguidades, pois cabem interpretações sobre o que seja, por exemplo, integridade moral e sobre os critérios
para tal classificação.” (PORTO, Maria Stela Grossi. Crenças, valores e representações sociais da violência.
Sociologias. Porto Alegre, ano 8, n.º 16, jul/dez 20007, p. 250-273). Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/soc/n16/a10n16. Acesso em 20/nov/2017.

25
Pode-se falar de violência sempre que a outra pessoa, a vítima, seja
desconsiderada como sujeito, como ser humano e, em razão disso, tratada como um objeto,
inviabilizando a interação social, sendo esta de natureza consensual ou conflituosa. Entendida
como objetiva, a violência deve ser definida em termos que ultrapassam as particularidades e
que tem uma validade universal. Subjetivamente, ela não passa de um ponto de vista relativo,
daquele que a descreve ou sofre.21

Na década de 1980, a área da saúde pública passou a desempenhar um papel


importante no combate à violência. Vários profissionais e o sistema de saúde como um todo
têm feito estudos no sentido de uma melhor compreensão da origem da violência e as formas
de sua prevenção. E isso ocorre, na medida em que, em todos os países, inclusive no Brasil, as
complicações com a gravidez e doenças contagiosas, por exemplo, têm sido prevenidas e, em
muitas das vezes, reduzidas.22

Para a prevenção das formas de violência são necessárias ações, sejam


individuais ou governamentais, chegando-se, inclusive a políticas públicas nacionais e a
criação de leis. Para que haja uma compreensão da violência como um todo, deve-se verificar
o seu conceito pela Organização Mundial da Saúde (OMS), bem como suas várias formas. 23

21
“Pensando na relação objetivo/subjetivo já referida acima, seria viável admitir-se, pelo menos como uma
hipótese operacional, que se poderia falar de violência sempre que a alteridade fosse desconsiderada,
‘esquecida’, ‘desconhecida’, ‘negada’. Em outras palavras, sempre que o outro fosse desconsiderado como
sujeito e, em função disto, tratado como objeto, inviabilizando, em última análise, a interação social, fosse ela de
natureza consensual ou conflituosa. Argumentando a partir de reflexões propostas por Michaud (1978 e 1996)
Wieviorka afirma não ser realista se ater a uma ou outra das polaridades em questão: a violência é objetiva ou
subjetiva? Objetiva, ela deveria poder ser definida em termos que transcendem as perspectivas particulares e
adquire uma validade universal. Subjetiva, ela não passa de um ponto de vista, necessariamente relativo,
daquele que a descreve ou sofre (...) a violência jamais é redutível à imagem da pura objetividade simplesmente
porque o que é concebido ou percebido como ‘violento’ varia no tempo e no espaço (...) Mas, por outro lado, a
violência não pode ser redutível aos afetos, às representações e às normas que dela propõem tal grupo ou tal
sociedade (...) a percepção de violências reconhecidas como tal oscila constantemente entre o excesso e a falta,
entre a tendência à dramatização e à amplificação e a propensão à banalização e à indiferença (Wieviorka,
1999, p. 08).” (PORTO, Maria Stela Grossi. Crenças, valores e representações sociais da violência. Sociologias.
Porto Alegre, ano 8, n.º 16, jul/dez 20007, p. 250-273). Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/soc/n16/a10n16. Acesso em 20/nov/2017.
22
“Desde a década de 1980, a área da saúde pública tem desempenhado um crescente papel positivo a esse
respeito. Um grande número de médicos, pesquisadores e sistemas da saúde pública têm se dedicado à tarefa de
compreender as raízes da violência e à sua prevenção. A violência pode ser evitada, e suas consequências,
reduzidas, da mesma forma que a saúde pública conseguiu prevenir e reduzir, em todo o mundo, as complicações
relacionadas à gravidez, aos ferimentos em locais de trabalho, às doenças contagiosas e enfermidades causadas
por alimentos e água contaminados.” (DAHLBERG, Linda L; KRUG, Etienne G. Violência: um problema
global de saúde pública.). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v11s0/a07v11s0.pdf. Acesso em
12/nov/2017.
23
“É possível prevenir a violência. Esta afirmação não é um artigo de fé, mas baseada em evidências constatadas
a partir de exemplos de sucesso em todo o mundo, desde ações individuais e comunitárias de pequena escala até
políticas nacionais e iniciativas do legislativo.” (DAHLBERG, Linda L; KRUG, Etienne G. Violência: um

26
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a violência deve ser
conceituada como o uso da força física ou do poder. Ainda pode ser entendida como a prática,
contra si próprio, ou contra outra pessoa ou mesmo contra um grupo ou comunidade que
acarrete ou possa acarretar algum tipo de sofrimento, ou morte, ou, ainda, dano psicológico,
ou privação da liberdade e dos direitos da vítima.24

Por se tratar de um tema amplo, a violência possui várias modalidades, sendo


tipificada pela OMS em três grandes categorias segundo o agressor: a) violência autoinfligida;
b) interpessoal; e c) coletiva (a qual se subdivide-se em violência social; violência econômica;
e violência política). A violência é um problema de saúde pública que requer políticas
públicas para intervenções diferenciadas e eficientes.25

O conceito de violência dado pela Organização Mundial da Saúde relaciona-se


à conduta praticada pelo agente, independente do resultado. Logo, não entram, no conceito de
violência, as condutas não intencionais. Porém, quando o uso da força está associado ao
poder, o conceito de violência é ampliado, incluindo as condutas culposas, praticadas com

problema global de saúde pública). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v11s0/a07v11s0.pdf. Acesso


em 12/nov/2017.
24
“La Organización Mundial de la Salud define la violencia como: El uso deliberado de la fuerza física o el
poder, ya sea en grado de amenaza o efectivo, contra uno mismo, otra persona o un grupo o comunidad, que
cause o tenga muchas probabilidades de causar lesiones, muerte, daños psicológicos, trastornos del desarrollo o
privaciones. La definición comprende tanto la violencia interpersonal como el comportamiento suicida y los
conflictos armados. Cubre también una amplia gama de actos que van más allá del acto físico para incluir las
amenazas e intimidaciones.Además de la muerte y las lesiones, la definición abarca también las numerosísimas
consecuencias del comportamiento violento, a menudo menos notorias, como los daños psíquicos, privaciones y
deficiencias del desarrollo que comprometan el bienestar de los individuos, las familias y las comunidades.”
(OMS – Organização Mundial de Saúde. Informe Mundial sobre la violência y lasalud. Genebra: OMS; 2002).
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692004000200001. Acesso em
11/nov/2017.
25
“La complejidad, la ubicuidad y la diversidad de los actos violentos suscitan sentimientos de impotencia y
apatía. Se requiere un marco analítico o una clasificación que separe los hilos de este intrincado tapiz para
esclarecer la naturaleza del problema y las acciones necesarias para afrontarlo. Hasta el momento, la tarea de
contrarrestar la violencia se ha fragmentado en áreas especializadas de investigación y actuación. Para superar
este inconveniente, el marco analítico debe prestar especial atención a los rasgos comunes y las relaciones entre
los distintos tipos de violencia, dando paso a una perspectiva holística de la prevención. Son escasas las
clasificaciones de este tipo, y ninguna es integral ni goza de la aceptación general). La clasificación utilizada en
el Informe mundial sobre la violencia y la salud divide a la violencia en tres grandes categorías según el autor del
acto violento: violencia dirigida contra uno mismo, violencia interpersonal y violencia colectiva. Esta
categorización inicial distingue entre la violencia que una persona se inflige a sí misma, la infligida por otro
individuo o grupo pequeño de individuos, y la infligida por grupos más grandes, como los Estados, grupos
políticos organizados, milicias u organizaciones terroristas.” (OMS – Organização Mundial de Saúde. Informe
Mundial sobre la violência y lasalud. Genebra: OMS; 2002). Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692004000200001. Acesso em 11/nov/2017.

27
imprudência, negligência ou imperícia, além das condutas omissivas, e dos abusos sexuais e
psicológicos.26

Esse conceito de violência inclui inúmeras consequências, mesmo que se refira


à violência moral, a qual não deixa vestígios, mas, mesmo assim, impõe inúmeros sofrimentos
para suas vítimas, além de seus familiares e a sociedade como um todo. A violência
normalmente que ocorre contra mulheres, em seus lares ou mesmo nos sistemas de saúde,
pode ocasionar problemas psicológicos que não representam simplesmente ferimentos,
incapacidade ou morte.27

É certo que as consequências produzidas pela violência moral podem perdurar


por muitos anos após o agente ter praticado o primeiro ato abusivo. Esses resultados não são
obviamente lesões aparentes ou morte, mas essas ameaças podem trazer consequências
terríveis para suas vítimas, podendo levá-las a atentar contra a sua própria vida.28

Um dos casos que merece ser estudado aqui é a questão do dolo na prática da
violência. Dolo é conceituado como intenção, ou seja, a consciência e a vontade da prática da
conduta. Assim, existem indivíduos que têm dolo de praticar lesão corporal e devem
responder por este tipo penal. Ressalta-se que é possível, por questões de cultura ou crença,
que não sejam considerados seus atos como violentos. Isso pode ocorrer quando se fala em
violência contra a mulher. Para esses agressores, seus atos são culturalmente aceitos. Não

26
“A definição dada pela OMS associa intencionalidade com a realização do ato, independentemente do
resultado produzido. São excluídos da definição os incidentes não intencionais, tais como a maioria dos
ferimentos no trânsito e queimaduras em incêndio. A inclusão da palavra ‘poder’, completando a frase ‘uso de
força física’, amplia a natureza de um ato violento e expande o conceito usual de violência para incluir os atos
que resultam de uma relação de poder, incluindo ameaças e intimidação. O ‘uso de poder’ também leva a incluir
a negligência ou atos de omissão, além dos atos violentos mais óbvios de execução propriamente dita. Assim, o
conceito de ‘uso de força física ou poder’ deve incluir negligência e todos os tipos de abuso físico, sexual e
psicológico, bem como o suicídio e outros atos auto-infligidos.” (DAHLBERG, Linda L; KRUG, Etienne G.
Violência: um problema global de saúde pública.). Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/csc/v11s0/a07v11s0.pdf. Acesso em 12/nov/2017.
27
“Esta definição cobre uma ampla gama de resultados, incluindo injúria psicológica, privação e
desenvolvimento precário. Ela reflete um crescente reconhecimento entre pesquisadores da necessidade de
incluir a violência que não produza necessariamente sofrimento ou morte, mas que, apesar disso, impõe um peso
substancial em indivíduos, famílias, comunidades e sistemas de saúde em todo o mundo. Muitas formas de
violência contra mulheres, crianças e idosos, por exemplo, podem resultar em problemas físicos, psicológicos e
sociais que não representam necessariamente ferimentos, incapacidade ou morte.” (DAHLBERG, Linda L;
KRUG, Etienne G. Violência: um problema global de saúde pública.). Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/csc/v11s0/a07v11s0.pdf. Acesso em 12/nov/2017.
28
“Tais consequências podem ser imediatas ou latentes e durar por anos após o ato abusivo inicial. Assim,
definir as consequências somente em termos de ferimento ou morte limita a compreensão total da violência em
indivíduos, nas comunidades e na sociedade em geral.” (DAHLBERG, Linda L; KRUG, Etienne G. Violência:
um problema global de saúde pública.). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v11s0/a07v11s0.pdf.
Acesso em 12/nov/2017.

28
obstante esse pensamento, suas condutas podem acarretar importantes efeitos na saúde de suas
vítimas.29

Praticar violência sem que tenha havido uma provocação é um ato tido, por
alguns, como natural. Na hipótese de a pessoa considerá-la como normal, tem-se, na verdade,
uma conduta irracional. Assim, o homem será visto como um ser bestial se sua conduta for
comparada à dos animais. A violência será mais racional quando for eficaz para alcançar o
seu objetivo, o que deve justificá-la e só pode continuar sendo racional se buscar suas
finalidades a curto prazo.30

29
“Um dos aspectos mais complexos da definição é a questão da intencionalidade. Devem-se observar dois
pontos importantes em relação a isto. Primeiro, mesmo que se distinga a violência de atos não intencionais que
produzem ferimentos, a intenção de usar força em determinado ato não significa necessariamente que houve
intenção de causar dano. Na verdade, pode haver enorme disparidade entre comportamento intencional e
consequência intencional. O agressor pode cometer um ato intencional que, sob critério objetivo, pode ser
considerado perigoso e, possivelmente, ter resultados adversos para a saúde, mas não percebê-lo assim. Em
relação à intencionalidade, deve-se distinguir a intenção de ferir e a intenção de ‘usar violência’. A violência,
segundo Walters & Parke, é culturalmente determinada. Há pessoas que querem ferir outras, mas, segundo sua
formação cultural e crenças, não consideram seus atos violentos. Contudo, a OMS define violência na medida
em que ela diz respeito à saúde ou ao bem-estar dos indivíduos. Alguns comportamentos, como bater na esposa,
podem ser visto por certas pessoas como práticas culturais aceitáveis, mas são considerados atos violentos com
importantes efeitos na saúde do indivíduo.” (DAHLBERG, Linda L; KRUG, Etienne G. Violência: um problema
global de saúde pública.). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v11s0/a07v11s0.pdf. Acesso em
12/nov/2017.
30
“Em segundo lugar, os resultados de uma pesquisa nas áreas das ciências sociais, como das ciências naturais,
tendem a considerar o comportamento violento como uma reação mais ‘natural’ do que estaríamos dispostos a
aceitar na ausência destas pesquisas. A agressividade, definida como um impulso instintivo, desempenharia o
mesmo papel funcional no âmago da natureza que os instintos sexual e nutritivo no processo vital do indivíduo e
da espécie. Mas, ao contrário destes instintos, que são ativados por irresistíveis necessidades orgânicas por um
lado, e por estímulos externos por outro lado, os instintos agressivos no reino animal parecem independer de tal
provocação; ao contrário, a ausência de provocação leva aparentemente à frustração do instinto, à ‘repressão da
agressividade que, de acordo com os psicólogos resulta em uma acumulação de ‘energia’ cuja eventual explosão
será mais perigosa. (É como se a ‘sensação’ de fome no ser humano aumentasse com a diminuição do número de
pessoas famintas.). De acordo com esta interpretação, a violência sem provocação é ‘natural’; se tiver perdido a
sua base lógica, fundamentalmente a sua função de auto-preservação, torna-se ‘irracional’, e é esta a suposta
razão porque o homem pode ser mais ‘bestial’ do que os outros animais. (Na literatura, somos constantemente
lembrados do generoso comportamento dos lobos, que não devoram o inimigo derrotado.) Independentemente da
enganosa transposição de termos físicos tais como ‘energia’ e ‘força’ para dados biológicos e zoológicos, onde
não fazem sentido por não poderem ser medidos, temo que por detrás destas novas descobertas espreite a mais
antiga definição da natureza humana – a definição do homem como animal rationale, segundo a qual nada nos
distingue de outras espécies animais exceto o atributo adicional da razão. A ciência moderna, partindo sem
maiores críticas dessa velha presunção, foi bem longe ao ‘provar’ que o homem compartilha todos os demais
atributos com alguma espécie do reino animal – exceto que o dote suplementar da razão torna-o um animal mais
perigoso. É o uso da razão que nos torna perigosamente ‘irracionais’, uma vez que esta razão é propriedade de
um ‘ser instintivo em seu estado natural’. Os cientistas têm conhecimento, é claro, de que foi o homem, a partir
do momento em que passou a inventar instrumentos, quem concebeu as armas de longo alcance que o libertam
das naturais limitações que encontramos no reino animal, e que a fabricação de objetos é uma atividade ‘mental’
altamente complexa. Portanto, a ciência é chamada a curar-nos dos efeitos colaterais causados pela razão ao
manipular e controlar os nossos instintos, geralmente encontrando inofensivos meios de vazão para eles, após o
desaparecimento de sua função de ‘estimulante da vida’. O padrão de comportamento origina-se novamente de
outras espécies animais, nas quais a função dos instintos vitais não tenha sido destruída pela intervenção da razão
humana. A distinção específica entre o homem e o animal é agora, estritamente falando, não mais a razão (o
lumen naturale do animal humano), mas, sim, a ciência, o conhecimento desses padrões e as técnicas que os

29
Assim, quando se define a violência, este conceito inclui, de maneira implícita,
todas as formas de se praticá-la, sejam elas públicas ou privadas, podendo caracterizar-se
como uma reação a agressões anteriormente sofridas, ou mesmo atos criminosos praticados
pelos agressores. Assim, torna-se de suma importância a análise dos tipos de atos violentos
para a sua compreensão e para que possa haver planejamento para o seu combate.31

Sabe-se que o tema violência é muito complexo, existindo várias espécies, o


que será objeto de estudo no próximo item. Os fenômenos violentos são variáveis de tempos
em tempos e de lugares para lugares. Assim, quanto aos tipos de manifestação que causam
inúmeras consequências na vida das pessoas, a violência pode ser subdividida em criminal,
estrutural, institucional, interpessoal, intrafamiliar, de resistência, de delinquência, auto-
infligida, cultural, de gênero, racial e contra pessoa deficiente, as quais serão conceituadas a
partir de agora.32

1.1.1 Tipologias da violência

A violência criminal é objeto de prevenção e punição por parte da segurança


pública, como a polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário. É praticada por meio de
agressões à integridade, à honra ou à vida das pessoas. Existem fatores que aumentam esse
tipo de violência, quais sejam, a corrupção e a impunidade. Há uma sensação, na sociedade
como um todo, de que o crime compensa, uma vez que não há punição, de maneira eficaz,

aplicam. De acordo com esse ponto de vista, o ser humano age de maneira irracional e como um animal quando
se recusa a ouvir os cientistas ou mantém-se ignorante de suas últimas descobertas. Em oposição a estas teorias e
suas implicações, argumentarei que a violência não é nem animalesca e nem irracional – tomando-se ou não
esses termos na linguagem comum dos humanistas, ou de acordo com teorias científicas.” (ARENDT, Hannah.
Da violência. Tradutor: Maria Cláudia Drummond. Publicação da editora, 1985). Disponível em:
https://portalconservador.com/livros/Hannah-Arendt-Da-Violencia.pdf. Acesso em 28/nov/2018.
31
“Outros aspectos da violência são incluídos na definição, embora não se encontrem explicitados. Por exemplo,
a definição implicitamente inclui todos os atos de violência, quer sejam públicos ou privados, quer sejam
reativos (em resposta a fatos anteriores, como uma provocação) ou antecipatórios (ou instrumentais para
resultados automáticos), ou mesmo criminosos ou não. Cada um desses aspectos é importante para a
compreensão da violência e para o planejamento de programas preventivos.” (DAHLBERG, Linda L; KRUG,
Etienne G. Ciência & Saúde Coletiva. [Internet]. 2007; 11(Sup): 1163-1178). Available from:
http://www.scielo.br/pdf/csc/v11s0/a07v11s0.pdf. Acesso 12/nov/2017.
32
“Minayo (1994), num esforço de ampliar a discussão sobre os determinantes da violência, classifica-os em três
grandes tipos: violência estrutural, violência de resistência e violência de delinquência.” (TAVARES, Daniela
Sanches, et al. Violências durante o processo de adoecimento pelo trabalho. São Paulo: Fundacentro, 2019, p.
17).

30
para os crimes que são praticados, gerando, assim, um sentimento de impotência e de
desconfiança na justiça.33

A violência estrutural relaciona-se com as formas de desigualdades sociais, que


provocam a miséria e a fome. É uma forma de violência que mantém a miséria da população
do país. Por ser considerada uma violência naturalizada e aceita como inevitável, confirmada,
todos os dias, no cotidiano das pessoas, não sendo, muitas das vezes, reconhecida como
violência, isso a torna o início do qual brotam as demais formas de reações violentas.34

A violência institucional é a feita dentro de instituições, por meio de regras, de


normas e relações burocráticas e políticas, o que vem a reproduzir estruturas de uma
sociedade injusta. Pode-se exemplificar esse tipo de violência como aquela ocorrida dentro de
serviços de saúde, como contra idosos em atendimentos na rede do SUS.35

33
“A violência criminal é praticada por meio de agressão grave às pessoas, por atentado à sua vida e aos seus
bens e constitui objeto de prevenção e repressão por parte das forças de segurança pública: polícia, ministério
público e poder judiciário. Dentre os problemas criminais gravíssimos, hoje, no Brasil, temos as gangues e as
redes de exploração sexual que atuam, sobretudo, vitimando crianças e adolescentes e se espalham por todo o
país; o tráfico de seres humanos; a exploração do trabalho escravo, a exploração do trabalho infantil e juvenil; o
tráfico de drogas; o tráfico de armas. Todos esses problemas frequentemente juntam pessoas que agem fora da
lei com pessoas e instituições aparentemente honestas e dignas, atuando na busca do lucro dos negócios e
apostando na impunidade. Existem delinquentes pobres e ricos, embora a sociedade tenda a ver apenas os pobres
como criminosos. Frequentemente os crimes dos ricos são mais sutis e cometidos com o uso de poder e dinheiro,
para obtenção de mais poder, mais dinheiro e submissão de mais pessoas. Poucos deles são apanhados e punidos.
Os pobres, ao contrário, lotam as delegacias e as penitenciárias públicas. Os fatores que potencializam o aumento
da violência criminal são, principalmente, corrupção e impunidade: a sensação de que o crime compensa cria na
sociedade um sentimento de impotência e alimenta o clima de desconfiança em relação à legalidade, aos
políticos e à política. Na situação brasileira hoje, se destaca um tipo de delinquência organizada em torno do
crime internacionalizado de tráfico de drogas e de armas. Suas maiores ocorrências não estão nas áreas mais
pobres e sim nas regiões mais dinâmicas onde se processa a atividade econômica. Mas esse tipo de violência
inclui também os pobres que vivem nos municípios ricos. Sem emprego e sem condições de empregabilidade,
muitos deles se engajam nos projetos de comercialização de armas e drogas, a troco de um salário, para eles,
vantajoso. Entram nos conflitos, na linha de frente dos combates, sobretudo visando o acesso imediato a bens de
consumo fugazes e caros. Esses jovens fazem parte do grupo que mais morre e perde a vida precocemente,
alimentando as estatísticas policiais e das penitenciárias.” (MINAYO, Maria Cecília de Souza. Conceito, teorias,
tipologias de violência: a violência faz mal à saúde.). Disponível em:
http://www1.londrina.pr.gov.br/dados/images/stories/Storage/sec_mulher/capacitacao_rede%20/modulo_2/2056
31-conceitos_teorias_tipologias_violencia.pdf. Acesso em: 11/abr/2018.
34
“A violência estrutural é aquela proveniente das estruturas organizadas e institucionalizadas numa determinada
sociedade e que têm um papel determinante na violência do comportamento, que aparece nas relações
interpessoais. Trata-se da violência pela negação de direitos, vulnerabilizando grupos, classes, nações e
indivíduos. Quase sempre é uma violência naturalizada, aceita como inevitável, é reiteradamente confirmada no
cotidiano, muitas vezes não sendo reconhecida como violência.” (TAVARES, Daniela Sanches, et al. Violências
durante o processo de adoecimento pelo trabalho. São Paulo: Fundacentro, 2019, p. 17).
35
“É aquela que se realiza dentro das instituições, sobretudo por meio de suas regras, normas de funcionamento
e relações burocráticas e políticas, reproduzindo as estruturas sociais injustas. Uma dessas modalidades de
violência ocorre na forma como são oferecidos, negados ou negligenciados os serviços públicos. Os serviços de
saúde, de seguridade social e de segurança pública são os principais exemplos dados pela própria população
quando se refere à violência institucional: a maior parte das queixas dos idosos, quando comparecem às
delegacias de proteção, é contra o INSS e os atendimentos na rede do SUS. E os jovens reclamam

31
Violência interpessoal é aquela que ocorre no âmbito das relações pessoais
entre casais, pais e filhos, vizinhos entre outras. Quando essa relação se dá por prepotência,
por discriminação ou ainda raiva ou vingança, por exemplo, pode produzir danos morais ou
mesmo físicos.36

De outro lado, a violência pode ser, ainda, intrafamiliar, que é aquela que
ocorre dentro de casa, em casos de violência doméstica. São conflitos familiares que resultam
em intolerâncias ou abusos e que se referem a um fenômeno universal que vem de muitos
séculos, formando uma cultura de usos de costumes. Ela possui muitas manifestações, mas a
mais conhecida é a violência contra a mulher, as crianças e os idosos.37

A violência intrafamiliar contra a mulher baseia-se em determinados pilares,


quais sejam: o homem é o dono da casa e todos lhe devem obediência; a mulher é uma

principalmente das forças policiais que os tratam como se fossem ‘criminógenos’, ou pelo fato de serem jovens
ou por serem pobres. No caso do setor saúde, a tentativa de criar um programa transversal de humanização do
SUS, em última instância, é o reconhecimento de que a tendência da instituição e dos profissionais é a
burocratização ou a tecnificação. Essas falhas se apresentam na despersonalização dos pacientes e na
substituição de uma relação dialógica por exames e procedimentos que transformam o setor saúde em produtor
de violência contra os usuários.” (MINAYO, Maria Cecília de Souza. Conceito, teorias, tipologias de violência:
a violência faz mal à saúde). Disponível em:
http://www1.londrina.pr.gov.br/dados/images/stories/Storage/sec_mulher/capacitacao_rede%20/modulo_2/2056
31-conceitos_teorias_tipologias_violencia.pdf. Acesso em: 11/abr/2018.
36
“A violência é, principalmente, uma forma de relação e de comunicação. Quando essa interação ocorre com
prepotência, intimidação, discriminação, raiva, vingança e inveja, costuma produzir danos morais, psicológicos e
físicos, inclusive morte. Devemos distinguir entre conflito e violência. O conflito sempre existiu nas relações
entre casais, entre pais e filhos, entre vizinhos, entre chefes e subordinados, por exemplo. Portanto, o que é
grave, no caso das interações entre as pessoas, é a incapacidade de resolver conflitos por meio da conversa, da
explicitação civilizada de pontos de vista diferentes, da compreensão das razões de cada uma das partes,
buscando, pela negociação, uma saída pacífica para os problemas. O crescimento das taxas de morte e de
internação por violência em hospitais públicos mostra um processo de exacerbação das relações sociais – das
formas violentas de resolver conflitos – entre os brasileiros. Sabemos que grande parte das mortes por agressões
corpo a corpo, por armas brancas e armas de fogo ou por uso de outros objetos contundentes se deve à violência
interpessoal. Esse processo afeta mais a população pobre e está associado ao aumento das desigualdades, ao
efeito do desemprego crescente, à falta de perspectiva no mercado de trabalho, à facilidade de acesso a armas, à
impunidade, à arbitrariedade policial, à ausência ou à omissão das políticas públicas. A violência tornou-se um
indicador negativo da qualidade de vida no país, tanto nos espaços rurais como nas regiões urbanas.” (MINAYO,
Maria Cecília de Souza. Conceito, teorias, tipologias de violência: a violência faz mal à saúde). Disponível em:
http://www1.londrina.pr.gov.br/dados/images/stories/Storage/sec_mulher/capacitacao_rede%20/modulo_2/2056
31-conceitos_teorias_tipologias_violencia.pdf. Acesso em: 11/abr/2018.
37
“Muita gente chama a violência que ocorre dentro das casas de violência doméstica. Nesse caso o foco da
análise e da compreensão é o espaço do lar. Neste texto, o conceito de violência é tratado como fruto e
consequência de relações. Por isso, damos preferência ao termo intrafamiliar. Na prática, violência doméstica e
violência intrafamiliar se referem ao mesmo problema. Ambos os termos dizem respeito aos conflitos familiares
transformados em intolerância, abusos e opressão. Ambos os conceitos dizem respeito a esse fenômeno universal
que tem séculos de história, formando uma cultura que se expressa em usos, costumes, atitudes, negligências e
atos.” (MINAYO, Maria Cecília de Souza. Conceito, teorias, tipologias de violência: a violência faz mal à
saúde). Disponível em:
http://www1.londrina.pr.gov.br/dados/images/stories/Storage/sec_mulher/capacitacao_rede%20/modulo_2/2056
31-conceitos_teorias_tipologias_violencia.pdf. Acesso em: 11/abr/2018.

32
propriedade do homem; a criança, para ser bem educada, precisa ser castigada; os idosos, por
não serem mais produtivos, são inúteis e descartáveis.38

A violência de resistência caracteriza-se como uma resposta de grupos, classes,


nações ou pessoas que são atingidos pela violência estrutural, ou seja, que são suas vítimas.
Trata-se de uma reação a alguma coisa e é considerada natural, mas não é aceita por
indivíduos que detêm poderes econômicos, políticos e/ou culturais, sendo objeto de
repressão.39

Violência de delinquência é um termo utilizado para definir um conjunto de


ações fora da lei em vigor. Trata-se de casos de prática de crimes, como sequestros, roubos,
estupros, furtos, dentre outros tantos. Essa violência deve ser verificada tendo como marco
referencial a violência estrutural, visto sob o prisma histórico e discutível. São atos
socialmente identificados como sendo criminosos, realizados por pessoas externas ou internas
às relações de trabalho.40

Sustenta-se, ainda, que a violência advém de necessidades biológicas,


psicológicas ou sociais, como ocorre com a conduta dos animais em seu meio natural. As
guerras e rebeliões ocorrem porque o homem tem por instinto a agressão. Alguns
doutrinadores, porém, explicam a violência como um fenômeno de causalidade social,

38
“A violência intrafamiliar tem muitas manifestações, mas as mais comuns, sobretudo no Brasil, são as que
submetem a mulher, as crianças e os idosos ao pai, ao marido e ao provedor. Ou ainda, colocam crianças e
jovens sob o domínio – e não sob a proteção – dos adultos. Existem algumas crenças poderosas que
fundamentam a violência no interior dos lares:  que o homem é o chefe, o dono e sabe o que é bom ou ruim
para todos. Mas ele se exclui do julgamento dos demais;  que a criança, para ser educada, precisa ser castigada
e punida pelo pai, pela mãe e pelos seus substitutos. Como diz o povo: ‘A letra com sangue entra’;  que a
mulher é domínio e posse do homem;  que os idosos, por não produzirem mais bens e serviços materiais e
frequentemente demandarem cuidados, são inúteis, pesos mortos e descartáveis.” (MINAYO, Maria Cecília de
Souza. Conceito, teorias, tipologias de violência: a violência faz mal à saúde). Disponível em:
http://www1.londrina.pr.gov.br/dados/images/stories/Storage/sec_mulher/capacitacao_rede%20/modulo_2/2056
31-conceitos_teorias_tipologias_violencia.pdf. Acesso em: 11/abr/2018.
39
“A violência de resistência diz respeito às respostas daqueles grupos, classes, nações ou indivíduos que são
atingidos pela violência estrutural. É uma reação a algo que é tido como natural. Sendo assim, não é aceita por
aqueles que detém poderes econômico, político e/ou culturais, sendo objeto de repressão.” (TAVARES, Daniela
Sanches, et al. Violências durante o processo de adoecimento pelo trabalho. São Paulo: Fundacentro, 2019, p.
17.)
40
“A violência de delinquência delimita um conjunto de ações fora da lei estabelecida. Seriam os sadismos,
sequestros, delitos, roubos, furtos, lesões etc. Para a autora, estas violências devem ser analisadas tendo como
marco referencial a violência estrutural, numa perspectiva histórica e dialética.” (TAVARES, Daniela Sanches,
et al. Violências durante o processo de adoecimento pelo trabalho. São Paulo: Fundacentro, 2019, p. 28).

33
provocada pela dissolução da ordem, pela vingança dos oprimidos, ou, ainda, pela fraqueza do
Estado.41

A violência auto-infligida é aquela caraterizada como o atentado contra a


própria vida, como as automutilações e o suicídio. Na verdade, há uma relação entre
homicídios e suicídios, pois ambos significam sintomas de destruição de uma sociedade. Na
atualidade, tem aumentado o número de suicídios, mormente entre jovens e idosos no Brasil.
Entre adultos trabalhadores, o número desse fenômeno aumentou devido ao desemprego e às
exclusões sociais.42

A violência cultural tem relação com valores, crenças e práticas, os quais são
reproduzidos, tornando-se naturais. Aqui estão colocadas as formas de violência que são
naturalizadas na cultura de determinada sociedade. Ela apresenta-se como formas de
discriminações e preconceitos, os quais passam a prejudicar e oprimir as suas vítimas. Nesse
sentido, existem grupos mais vulneráveis a esse tipo de violência, que são as mulheres, as
crianças, os adolescentes, os idosos, os homossexuais, os deficientes, dentre outros. A
violência intrafamiliar origina-se em mitos culturais. Importantes espécies desse tipo de
violência são a de gênero, a racial e contra pessoas diferentes.43

41
“A interpretação de sua pluricausalidade é, justamente, um dos problemas principais que o tema apresenta.
Basta frequentar as páginas dos grandes jornais que publicam debates de especialistas para se perceber a
dificuldade que têm de alcançar definições consensuais. Assim, muitas são as tentativas de explicação. De um
lado estão os que sustentam que a violência resulta de necessidades biológicas, psicológicas ou sociais,
fundamentando-se na sociobiologia ou na etologia, teorias que subordinam a questão social às determinações da
natureza. De outro, estão os que explicam a violência como fenômeno de causalidade apenas social, provocada
quer pela dissolução da ordem, quer pela ‘vingança’ dos oprimidos, quer ainda pela fraqueza do Estado.”
(MINAYO, Maria Cecília de Souza; SOUZA, Edinilsa Ramos de. Violência e saúde como um campo
interdisciplinar e de ação coletiva. História, Ciência, Saúde. 1998; IV(3): 513-531). Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59701997000300006&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em
10/abr/2018.
42
“Assim são chamados os suicídios, as tentativas, as ideações de se matar e as automutilações. No Brasil, cerca
de quatro habitantes por 100 mil, em média, se suicidam, e um número difícil de se calcular tenta se autoinfligir
a morte. Os números desse fenômeno no nosso país são muito inferiores aos de outros, sobretudo na Europa,
Ásia e Estados Unidos. Mas os estudiosos da violência chamam atenção para o fato de que existe uma relação
muito forte entre homicídios e suicídios: ambos expressam sintomas destruidores da sociedade. Apesar de,
comparativamente, suas taxas não serem muito significativas, os suicídios e as tentativas de autodestruição têm
aumentado entre os jovens e os idosos em todo o país. Entre os trabalhadores, fatores como exposição aos
agrotóxicos, problemas de desemprego e exclusão também têm alguma associação – difícil de ser quantificada –
com o crescimento do fenômeno.” (MINAYO, Maria Cecília de Souza. Conceito, teorias, tipologias de
violência: a violência faz mal à saúde). Disponível em:
http://www1.londrina.pr.gov.br/dados/images/stories/Storage/sec_mulher/capacitacao_rede%20/modulo_2/2056
31-conceitos_teorias_tipologias_violencia.pdf. Acesso em: 11/abr/2018.
43
“A violência cultural é aquela que se expressa por meio de valores, crenças e práticas, de tal modo repetidos e
reproduzidos que se tornam naturalizados. Nessa categoria podem ser classificadas todas as formas de violência
que são naturalizadas na cultura de um povo, de um grupo ou de uma sociedade. A cultura reúne as formas de
pensar, sentir e agir de uma sociedade, por meio da comunicação, da cooperação e da repetição dessas ações.

34
Ainda, e não menos importante, até porque a ela será dedicado um item
completo, temos a violência de gênero, a qual é caracterizada como uma forma de opressão e
de crueldade nas relações que se estabelecem entre homens e mulheres. Esse fenômeno
acontece em qualquer classe social, em todas as raças e faixas etárias. Suas vítimas mais
eloquentes são as mulheres e suas formas de expressão mais graves são assassinatos, estupros,
abusos sexuais, entre tantos outros danos. Seus autores costumam ser pessoas próximas e
conhecidas de suas vítimas, como familiares e parceiros.44

A violência racial é uma forma de violência cultural. Em nosso País, a forma


mais comum dessa violência é contra pessoas de pele negra, tendo origem no período
colonial, época da escravidão. Na maior parte das vezes, ela encontra-se relacionada à
desigualdade social e econômica.45

Toda cultura tende a adotar como certos alguns comportamentos e práticas, e a rechaçar outros. A violência
cultural se apresenta inicialmente sob a forma de discriminações e preconceitos que se transformam em
verdadeiros mitos, prejudicando, oprimindo ou às vezes até eliminando os diferentes. Nesse sentido se fala de
grupos vulneráveis que, na nossa sociedade, são, principalmente: crianças e adolescentes, idosos, mulheres nas
relações de gênero, homossexuais, deficientes físicos e mentais, moradores de favelas, dentre outros. A violência
intrafamiliar, por exemplo, tem origem em mitos culturais, como já assinalamos. Chamamos atenção para três
tipos específicos de violência cultural: de gênero, racial e contra pessoa diferente, todos eles demonstrando a
dificuldade que a sociedade tem de viver com diferenças e de ultrapassar os padrões falsamente tidos como
normais.” (MINAYO, Maria Cecília de Souza. Conceito, teorias, tipologias de violência: a violência faz mal à
saúde). Disponível em:
http://www1.londrina.pr.gov.br/dados/images/stories/Storage/sec_mulher/capacitacao_rede%20/modulo_2/2056
31-conceitos_teorias_tipologias_violencia.pdf. Acesso em: 11/abr/2018
44
“Constitui-se em formas de opressão e de crueldade nas relações entre homens e mulheres, estruturalmente
construídas, reproduzidas na cotidianidade e geralmente sofridas pelas mulheres. Esse tipo de violência se
apresenta como forma de dominação e existe em qualquer classe social, entre todas as raças, etnias e faixas
etárias. Sua expressão maior é o machismo naturalizado na socialização que é feita por homens e mulheres. A
violência de gênero que vitima sobretudo as mulheres é uma questão de saúde pública e uma violação explícita
aos direitos humanos. Estimamos que esse problema social cause mais mortes às mulheres de 15 a 44 anos do
que o câncer, a malária, os acidentes de trânsito e as guerras. Suas várias formas de opressão, de dominação e de
crueldade incluem assassinatos, estupros, abusos físicos, sexuais e emocionais, prostituição forçada, mutilação
genital, violência racial e outras. Os perpetradores costumam ser parceiros, familiares, conhecidos, estranhos ou
agentes do Estado.” (MINAYO, Maria Cecília de Souza. Conceito, teorias, tipologias de violência: a violência
faz mal à saúde). Disponível em:
http://www1.londrina.pr.gov.br/dados/images/stories/Storage/sec_mulher/capacitacao_rede%20/modulo_2/2056
31-conceitos_teorias_tipologias_violencia.pdf. Acesso em: 11/abr/2018.
45
“Uma das mais cruéis e insidiosas formas de violência cultural é a discriminação por raça. No Brasil, essa
manifestação ocorre principalmente contra a pessoa negra e tem origem no período colonial escravocrata.
Estudiosos mostram que geralmente a violência racial vem acompanhada pela desigualdade social e econômica:
no Brasil, os negros possuem menor escolaridade e menores salários. Vivem nas periferias das grandes cidades e
estão excluídos de vários direitos sociais. Também morrem mais homens negros do que brancos e se destacam os
óbitos por transtornos mentais (uso de álcool e drogas), doenças infecciosas e parasitárias (de tuberculose a
HIV/Aids) e homicídios.” (MINAYO, Maria Cecília de Souza. Conceito, teorias, tipologias de violência: a
violência faz mal à saúde). Disponível em:
http://www1.londrina.pr.gov.br/dados/images/stories/Storage/sec_mulher/capacitacao_rede%20/modulo_2/2056
31-conceitos_teorias_tipologias_violencia.pdf. Acesso em: 11/abr/2018.

35
Finalmente, a violência contra a pessoa deficiente traz a ideia de que o ser
humano não consegue conviver com as diferenças, tendendo a isolá-las por serem diferentes,
molestando-as e menosprezando-as, fazendo-as sofrerem todo tipo de discriminação, tanto
dentro do próprio lar, como na comunidade onde vivem e nos seus locais de trabalho. Dentro
desse contexto, mulheres deficientes são mais vulneráveis e, portanto, vítimas de violência de
forma mais intensa.46

Feito o estudo inicial do conceito de violência, cabe agora destacar uma de suas
espécies anteriormente referida, que é a violência contra a mulher. Na verdade, o foco deste
estudo é a violência obstétrica, entendida como uma violência contra a mulher, e, assim, uma
espécie de violência de gênero. Desse modo, esta é a importância de se destacar um item para
a violência contra a mulher.

1.2 Violência contra a mulher

A violência contra a mulher, além de ser um problema social, é, inclusive, um


problema de saúde pública, uma vez que é tida como uma das principais causas de
mortalidade existentes, podendo ser, ainda, considerada como uma das transgressões mais
frequentes dos direitos humanos. Com isso, os custos sociais e econômicos desse tipo de
violência são extremamente altos.47

Essa violência vem de uma cultura de dominação, partindo-se da premissa da


inferioridade feminina, reconhecida, ao longo dos anos, como norma, mesmo pelas próprias

46
“Esse tipo de violência revela, de forma aguda, a dificuldade que a sociedade tem de conviver com os
diferentes, tendendo a isolar os deficientes físicos e mentais, menosprezá-los, molestá-los e a não lhes dar
oportunidade de desenvolver todas as suas potencialidades. Pela falta de reconhecimento e de apoio da sociedade
e do governo, os deficientes costumam ser considerados como um peso para suas famílias. Estudos têm mostrado
que esse tipo de discriminação ocorre nos lares, na escola, nas comunidades, no mercado de trabalho, no espaço
público. Hoje, a sociedade brasileira, alertada por movimentos sociais que incluem os vários tipos de deficiente,
vai tomando consciência dos males da discriminação. No entanto, estudos pontuais revelam que, além das
questões que citamos, as mulheres deficientes costumam ser vítimas sobretudo de violência sexual, de estupro e
de atentado ao pudor. E pessoas de ambos os gêneros frequentemente são vítimas de cárcere privado, de
violência física e de negligência. Geralmente os agressores, muitos deles vivendo na mesma residência que a
pessoa deficiente, ficam impunes e seus crimes continuam no segredo da vida privada.” (MINAYO, Maria
Cecília de Souza. Conceito, teorias, tipologias de violência: a violência faz mal à saúde). Disponível em:
http://www1.londrina.pr.gov.br/dados/images/stories/Storage/sec_mulher/capacitacao_rede%20/modulo_2/2056
31-conceitos_teorias_tipologias_violencia.pdf. Acesso em: 11/abr/2018.
47
“La violencia contra la mujer constituye un problema de Estado, puesto que es una de las transgresiones más
frecuentes de los derechos humanos, y se constituye en un problema de salud pública que genera altos costos
tanto económicos como sociales.” (FANEITE, Josmery; FEO, Alejandra; MERLO, Judith Toro. Grado de
conocimiento de violencia obstétrica por El personal de salud. Rev Obstet Ginecol Venez [Internet]. 2012;
72(1): 4-12). Disponível em: http://ve.scielo.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0048-
77322012000100002&lng=es&nrm=iso&tlng=es. Acesso 10/ago/2017.

36
mulheres que a reproduzem quando do tratamento das filhas dentro de casa ou, ainda, nas
relações de trabalho quando em submissão a outras mulheres.48

Esse tipo de violência não é algo novo, pois, desde os tempos antigos, a mulher
já era vítima das mais variadas formas de violência, desde física, quanto psicológica, sexual
e/ou patrimonial. No Brasil, mesmo sendo vítima de todo tipo de violência, somente em 2006,
veio à tona uma lei para a sua efetiva proteção.49 Assim, na antiguidade, as ideias eram
associadas à masculinidade. A mulher era vista como uma alma inferior, sem luz e que estava
na escuridão, e a ela se opunham a verdade e o conhecimento. Já o homem, por ser
considerado um ser superior, era um ser racional e de espírito elevado, a quem as mulheres
deviam obediência.50

Em 1976, no penúltimo dia do ano, Ângela Diniz foi morta a tiros em Búzios
pelo playboy Doca Street. Em um primeiro julgamento, em 18 de outubro de 1979, Doca foi
absolvido sob a alegação de legítima defesa da honra. Dois anos depois, Doca foi submetido a
novo julgamento por causa da reação da sociedade. Naquela época, o movimento feminista
estava no auge, brigando contra a impunidade de homens como Doca e cunhou o famoso
slogan “Quem ama não mata”. Após anulação do primeiro julgamento pelo Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro, em um segundo júri, o agressor foi finalmente condenado a 15 anos
de reclusão pelo homicídio praticado.

48
“A violência contra as mulheres é fato histórico, sucedido nos mais variados contextos sociais, presentes em
todas as sociedades, originária de uma cultura de dominação, cujo cerne é a inferiorização das mulheres,
legitimada ao longo do tempo e internalizada como algo natural, inclusive pelas próprias mulheres que
reproduziam/em essa violência na educação de suas filhas e na relação com outras mulheres quando da
existência de vínculo de submissão entre ambas, a exemplo das relações de trabalho doméstico.” (BRITO,
Cacília Maria Costa de; OLIVEIRA, Ana Carolina Gondim de Albuquerque; COSTA, Ana Paula Correia de
Albuquerque da. Violência obstétrica e os direitos da parturiente: o olhar do Poder Judiciário brasileiro).
Disponível em: file:///C:/Users/peric/Downloads/_Sem%20ti%CC%81tulo.pdf. Acesso em:02/mar/2020.
49
“Sabe-se que as mulheres enfrentam, desde a antiguidade, violências de diversas formas, tais como: violência
física, psicológica, sexual, patrimonial e moral (sendo inclusive, essas as formas que constam na Lei n.º
11.340/2006, que merecem atenção e proteção às mulheres para que sejam evitadas e combatidas). Não é um
fenômeno recente, há muitos anos ocorre, porém, apenas em 2006, surgiu uma Lei específica para proteger as
mulheres de tais situações.” (TRINDADE, Vitória Etges Becker. Lei Maria da Penha: violência doméstica e
familiar contra a mulher no âmbito da polícia judiciária). Disponível em:
file:///D:/Users/m313790/Downloads/14576-11326-1-PB%20(1).pdf. Acesso em 03/set/2019.
50
“No período clássico, na Grécia, toda a razão era sintetizada por Apolo, o mesmo era considerado Deus da
Razão, associava-se as ideias à masculinidade e a Apolo. Sendo que a mulher era vista como uma alma inferior,
sem luz, que se encontrava na escuridão, o oposto da verdade e do conhecimento. Os homens eram considerados,
pelos pensadores, como seres de almas superiores, e por isso as mulheres deveriam estar subordinadas a eles. A
partir desse pensamento antigo, as mulheres teriam apenas uma alma sensual e meramente carnal, que apenas
abusava da vaidade e cobiça. Já o homem, sendo um ser racional e com espírito elevado, muito superior a
mulher.” (TRINDADE, Vitória Etges Becker. Lei Maria da Penha: violência doméstica e familiar contra a
mulher no âmbito da polícia judiciária). Disponível em: file:///D:/Users/m313790/Downloads/14576-11326-1-
PB%20(1).pdf. Acesso em 03/set/2019.

37
Assim, desde 1979, ano em que as Nações Unidas aprovaram a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, foram feitas
várias reuniões com a finalidade de discutir a questão de violência de gênero, procurando
soluções viáveis para a proteção dessas vítimas.51

Com relação à criação da Lei Maria da Penha, esta passou por um processo
lento e demorado. Nos anos 70, inúmeras mulheres saíram em defesa umas das outras usando
a frase “quem ama não mata”. Dessa forma, esse assunto foi incluído, em várias pautas, como
sendo de extrema prioridade. Posteriormente, nos anos 80, o governo finalmente incluiu o
tema violência de gênero em pauta. Nesse sentido, em 1985, houve a criação da primeira
Delegacia Especializada nesse assunto.52

Na década de 1990, houve uma organização mais enérgica e eficaz das


feministas, de tal modo que elas passaram a organizar seminários para que a população
conhecesse um pouco mais sobre o tema da violência de gênero. Mesmo com toda essa
movimentação que era feita pelas feministas, não havia uma lei específica em nosso País
tratando do tema com o fim de prevenir e reprimir os casos de violência contra a mulher,
principalmente aqueles ocorridos dentro da casa das vítimas.53

51
“Desde 1979 en que las Naciones Unidas aprobaron la Convención sobre la Eliminación de todas las Formas
de Discriminación contra la Mujer (7), se han llevado a cabo un gran número de reuniones internacionales con el
propósito de discutir el tema y de buscar mecanismos de protección para cautelar los derechos de las mujeres. En
1996 la Organización Mundial de la Salud definió la violencia de género como una prioridad de salud pública.”
(FANEITE, Josmery; FEO, Alejandra; MERLO, Judith Toro. Grado de conocimiento de violencia obstétrica por
El personal de salud. Rev Obstet Ginecol Venez [Internet]. 2012; 72(1): 4-12). Disponível em:
http://ve.scielo.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0048-77322012000100002&lng=es&nrm=iso&tlng=es.
Acesso 10/ago/2017.
52
“O processo para a criação de uma lei especial de combate à violência doméstica e familiar contra as mulheres
no Brasil foi muito longo e antecipado de muitas manifestações e debates. Na década de setenta, quando grupos
de mulheres foram às ruas com o slogan ‘quem ama não mata’, levantou-se, de forma enérgica, a bandeira contra
a violência, sendo este tema incluído na pauta feminista como uma de suas principais reivindicações. Grupos
foram formados, manifestações foram feitas e a luta para ver punidos os assassinos foi iniciada. Um dos casos
mais emblemáticos daquela época foi o de Doca Street, que assassinou sua companheira e no Tribunal de Júri
alegou ‘legítima defesa da honra’, alegação até hoje usada por advogados que tentam livrar assassinos da
punição. Inicia-se, na década de oitenta, as primeiras ações governamentais no sentido de incluir, em sua agenda,
a temática da violência contra as mulheres e, em 1985, é criada a primeira delegacia especializada de
atendimento às mulheres, fruto da luta do movimento de mulheres.” (MATOS, Myllena Calazans de; CORTES,
Iáris. O processo de criação, aprovação e implementação da Lei Maria da Penha). Disponível em:
www.compromissoeatitude.org.br/wp-content/uploads/2014/02/1_3_criacao-e-aprovacao.pdf. Acesso
10/ago/2018.
53
“Nos anos noventa, as feministas se mobilizavam de forma mais contundente. Organizaram seminários e
reuniões em que a questão da violência era o foco principal. No Congresso Nacional, existiam alguns projetos de
Lei de iniciativa de parlamentares, de um modo geral voltados para aplicação de medidas punitivas e/ou ações
pontuais. Nesse período, a representação feminina no Congresso era pequena e a ação ainda não parecia
prioritária para o Executivo. Esses fatores foram determinantes para a permanência da lacuna legislativa. Como
se vê, não havia proteção específica para as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar na legislação

38
A Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, aprovada
pela ONU, em 1993, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), aprovada pela OEA em 1994,
reconheceram que a violência contra a mulher, no âmbito público e privado, constitui grave
violação aos direitos humanos e limita total ou parcialmente o exercício de todos os seus
direitos fundamentais. Definem violência contra a mulher como sendo uma conduta, baseada
no gênero, que ocasione morte, dano físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na área
pública, como na área privada, nos termos do seu artigo 1º. Ademais, a violência baseada em
gênero reflete relações de poder historicamente desiguais e de forma assimétrica entre homens
e mulheres.54

A Convenção de Belém do Pará foi adotada pela Assembleia Geral da


Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1994; foi ratificada em 1995 no Brasil,
sendo posteriormente promulgada por meio do Decreto Presidencial n.º 1.973, em 1996. Essa
Convenção foi originária da luta de movimentos feministas, para combater a violência contra
a mulher. Por intermédio desse acordo, foi definido o conceito de violência e as diversas
formas que ela pode assumir.55

brasileira e as conquistas legislativas da década de noventa e início dos anos 2000 eram tímidas e praticamente
restritas à alteração da legislação penal.” (MATOS, Myllena Calazans de; CORTES, Iáris. O processo de
criação, aprovação e implementação da Lei Maria da Penha). Disponível em:
www.compromissoeatitude.org.br/wp-content/uploads/2014/02/1_3_criacao-e-aprovacao.pdf. Acesso
10/ago/2018.
54
“A conceituação de violência contra a mulher deve ser articulada àquela de ‘discriminação contra a mulher’,
incluída na Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1975’, e
reforçada pela Resolução n.º 19 da ONU: Toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por
objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício, pela mulher, independentemente
de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades
fundamentais no campo político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo (...) a
discriminação contra a mulher viola os princípios da igualdade de direitos e do respeito da dignidade humana,
dificulta a participação da mulher, nas mesmas condições que o homem, na vida política, social, econômica e
cultural de seu país, constitui um obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e da família e dificulta o
pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher para prestar serviço a seu país e à humanidade. Ambas as
Convenções, da ONU e da OEA, definem violência e discriminação, declaram direitos e comprometem os
Estados-Membros a adotar um conjunto de medidas capazes de erradicar essas violações de direitos humanos
nos espaços público e privado, por meio de políticas públicas que comportem, inclusive, mecanismos capazes de
dar visibilidade e mensurar os avanços verificados.” (BASTERD, Leila Linhares, Lei Maria da Penha: uma
experiência bem-sucedida de advocacy feminista. Organizadora: Carmem Hein de Campos. Lúmen Júris Editora,
p. 22).
55
“A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher: Convenção de
Belém do Pará, foi adotada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 9 de
junho de 1994, sendo promulgada através do Decreto Presidencial n.º 1.973, de 1º de agosto de 1996. No Brasil,
ela foi ratificada em 27 de novembro de 1995. Esta Convenção de Belém do Pará foi mais uma das tantas lutas
do movimento feminista, em busca de combater a violência contra as mulheres. No entanto, esta convenção
procurou definir a violência e as formas que ela pode assumir, assim como cobrar a responsabilidade dos Estados
americanos em sua erradicação.” (SANTANA, Selma P.; PIEDADE, Fernando O. Um olhar acerca das medidas

39
A referida Convenção, ainda em seu artigo 1º, conceitua a violência contra a
mulher e, em seu artigo 4º, menciona que toda mulher tem direito que sejam respeitadas sua
vida, integridade física, mental e moral, liberdade e segurança pessoais e de não ser submetida
à tortura, dentre outros direitos.56 O caso Maria da Penha foi o primeiro em que essa
Convenção foi aplicada.

Em 1996, a Organização Mundial de Saúde classificou a violência de gênero


como prioridade de saúde pública. A violência contra as mulheres está presente em quase
todas as sociedades, senão em todas. No entanto, apesar de reconhecida, na maior parte das
vezes, é aceita ou tolerada pelas próprias vítimas. Muitas das vezes, seja por vergonha ou
medo, a mulher opta por não denunciar. Esse fenômeno pode ocorrer ainda durante a
gestação, sendo chamada de abuso pré-natal. A violência, seja em qualquer de suas espécies,
pode afetar negativamente a saúde da mulher, em especial sua saúde reprodutiva, aumentando
sua vulnerabilidade, como doravante será demonstrado. 57

A Constituição Federal, em seu artigo 98, inciso I, já definia o que se entende


por violência de gênero, ou seja, trata-se de agressões à mulher, ações ou omissões que se
baseiam no gênero e que causem morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano
moral ou patrimonial. No Brasil, no Judiciário, até a criação da Lei Maria da Penha, não
havia varas especializadas para julgamento de casos de violência doméstica contra mulheres.
Os casos existentes eram encaminhados para os juizados especiais cíveis e criminais (JEC e

protetivas de urgência nos termos da Lei n.º 11.340/06. XIII Seminário Nacional – Demandas sociais e políticas
públicas na sociedade contemporânea). Disponível em: file:///D:/Users/m313790/Downloads/16939-16119-2-
PB.pdf. Acesso em: 18/set/2019.
56
“Artigo 4º: Toda mulher tem direito ao reconhecimento, desfrute, exercício e proteção de todos os direitos
humanos e liberdades consagrados em todos os instrumentos regionais e internacionais relativos aos direitos
humanos. Estes direitos abrangem, entre outros: (a) direito a que se respeite sua vida; (b) direito a que se respeite
sua integridade física, mental e moral; (c) direito à liberdade e à segurança pessoais; (d) direito a não ser
submetida a tortura; (e) direito a que se respeite a dignidade inerente à sua pessoa e a que se proteja sua família;
(f) direito a igual proteção perante a lei e da lei; (g) direito a recurso simples e rápido perante tribunal
competente que a proteja contra atos que violem seus direitos; (h) direito de livre associação; (i) direito à
liberdade de professar a própria religião e as próprias crenças, de acordo com a lei; e (j) direito a ter igualdade de
acesso às funções públicas de seu país e a participar nos assuntos públicos, inclusive na tomada de decisões.”
57
“La violencia contra la mujer está presente en la mayoría de las sociedades, pero con frecuencia es reconocida
y aceptada como parte del orden establecido; de esa forma, la mujer se encuentra en una situación de indefensión
encubierta por la intimidad y privacidad de la vida familiar. En Venezuela está tipificada como delito sin
embargo, muchos casos no son denunciados por miedo o vergüenza. Durante el embarazo, la violencia
doméstica puede tener un efecto negativo importante sobre la salud materno – fetal con incremento de la
morbimortalidad y configura lo que se conoce como abuso prenatal; el cual es para muchos niños, el inicio de
una cadena cuyos resultados incluyen la muerte prematura y el abandono del hogar.” (FANEITE, Josmery; FEO,
Alejandra; MERLO, Judith Toro. Grado de conocimiento de violencia obstétrica por El personal de salud. Rev
Obstet Ginecol Venez [Internet]. 2012; 72(1): 4-12). Available from:
http://ve.scielo.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0048-77322012000100002&lng=es&nrm=iso&tlng=es.
Acesso em 10/ago/2019.

40
JECRIM), criados pela Lei n.º 9.099/95, cuja competência é o julgamento de crimes de menor
potencial ofensivo, ou seja, todas as contravenções penais e os crimes cuja pena máxima
cominada seja igual ou inferior a 2 (dois) anos.58

Assim, a violência contra a mulher, chamada, neste contexto, de violência de


gênero, traz à tona um dos graves problemas sociais, que é a violência doméstica e familiar.
Esse tipo de violência é decorrente de uma cultura patriarcal a que todas as gerações se
submeteram desde muito cedo. A mulher era tratada como um ser inferior, sem autonomia
para a prática de seus atos, submetendo-se ao gênero masculino desde o seu nascimento,
quando já estava ligada à figura paterna, até o seu casamento.

A violência ocorrida, no seio das famílias, normalmente é praticada por parte


de pessoas próximas às vítimas, como um parceiro ou mesmo ex-parceiro, e consiste em
comportamentos que causam danos, aparentes ou não, como lesões corporais, ou mesmo
danos de ordem psicológica, podendo resultar em crimes tipificados no Código Penal, ou
apenas em indenizações na área cível.59

O mais comum é que a violência contra a mulher ocorra em locais de baixa


renda. Nesses lugares, criam-se estratégias para que se aumente o empoderamento econômico
das mulheres, como, por exemplo, a utilização de microfinanças conjugadas com iniciativas
comunitárias contra a desigualdade de gênero, como forma de evitar que sejam vítimas desse
tipo de violência, o que demonstra certa eficácia na redução dos atos violentos.60

A violência que ocorre dentro de casa, entre casais, principalmente de sexos


opostos, ou mesmo de mesmo sexo (casamento de duas mulheres, por exemplo), não é algo

58
“No Judiciário, os casos de violência doméstica eram encaminhados para os juizados especiais cíveis e
criminais – JEC e JECRIM, instituídos pela Lei n.º 9.099/1995, que tinham competência para julgar os crimes de
‘menor potencial ofensivo’, crimes com pena menor ou igual a 1 ano.” (MATOS, Myllena Calazans de;
CORTES, Iáris. O processo de criação, aprovação e implementação da Lei Maria da Penha. Lei Maria da
Penha, comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Organizadora: Carmem Hein de Campos. Lúmen
Júris Editora, p. 41).
59
“A violência por parte do parceiro se refere ao comportamento de um parceiro ou ex-parceiro que causa danos
físicos, sexuais ou psicológicos – incluindo agressão física, coerção sexual, abuso psicológico e comportamentos
de controle.” (OMS – Organização Mundial da Saúde – Folha Informativa – Violência contra as mulheres,
2017). Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5669:folha-
informativa-violencia-contra-as-mulheres&Itemid=820. Acesso em 25/nov/2018
60
“Outras estratégias de prevenção primária que têm se revelado promissoras, mas que deveriam ser avaliadas
mais a fundo, são, por exemplo, as que combinam o empoderamento econômico da mulher à formação em
igualdade de gênero, as que fomentam a comunicação e as relações interpessoais dentro da comunidade, as que
reduzem o acesso ao álcool e seu uso nocivo e as que mudam as normas culturais em matéria de gênero.“ (OMS
– Organização Mundial da Saúde - Folha Informativa – Violência contra as mulheres, 2017). Disponível em:
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5669:folha-informativa-violencia-
contra-as-mulheres&Itemid=820. Acesso em 25/nov/2018.

41
novo, sendo citada pelos estudiosos desde a década de 1950. Vinte anos depois, ou seja, na
década de 1970, passou a ser chamada de violência contra a mulher. A violência conjugal,
nesse contexto, refere-se a qualquer conduta que cause destruição total ou parcial na vida das
mulheres, as quais são suas vítimas.61

Na realidade, a violência doméstica reflete as atitudes de uma sociedade


opressora em relação às mulheres, as quais eram, e ainda hoje são, submetidas a várias
agressões e negligências, inclusive do próprio Judiciário, uma vez que os julgamentos de
condutas agressivas contra as mulheres ocorriam em varas criminais comuns e juizados
especiais. Além disso, as leis que as protegiam possuíam dispositivos escassos e de reduzida
aplicabilidade prática. É uma espécie de violência entendida como ação ou omissão baseada
no gênero e subdividida em física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

Ainda há mais um conceito de violência contra a mulher, oferecido pelas


Nações Unidas, como sendo “qualquer ato de gênero que resulte ou possa resultar em danos
ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais para as mulheres, inclusive ameaças de tais atos,
coação ou privação arbitrária da liberdade, seja em sua vida pública ou privada”.62

Relativamente ao tema de violência contra a mulher, outro caso emblemático é


o de Maria da Penha Maia Fernandes, a qual, no ano de 1976, casou-se com Marco Antônio
Heredia Viveros, colombiano. Após o nascimento da primeira das três filhas do casal, já em
Fortaleza, o cônjuge obteve a cidadania brasileira e se estabilizou economicamente no Brasil,
momento em que se iniciaram as agressões contra a vítima.

Em 1983, Maria da Penha foi vítima de dupla tentativa de feminicídio por parte
de seu marido. Tendo em vista a agressão sofrida, ela ficou paraplégica. Posteriormente, sem
que nehuma providência fosse tomada, quatro meses depois, quando a vítima voltou para
casa, foi mantida em cárcere privado e o autor tentou eletrocutá-la. Somente em 1991, o
agressor foi sentenciado e condenado a 15 anos de prisão, mas manteve-se em liberdade.
61
“Marital violence has been referred to in a variety of ways since the 1950s. Named as intra family violence in
the mid-twentieth century, after twenty years, it has come to be called violence against women.” (PACHECO,
Leonora Rezende; MEDEIROS Marcelo, GUILHEM Dirce. Intimate Partner Violence: cultural, social and
health correlations. Nursing & Care Open Acces Journal. 2017, 2(4)00046). Disponível em:
https://medcraveonline.com/NCOAJ/NCOAJ-02-00046.php. Acesso em 25/nov/2017.
62
“As Nações Unidas definem a violência contra as mulheres como ‘qualquer ato de violência de gênero que
resulte ou possa resultar em danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais para as mulheres, inclusive
ameaças de tais atos, coação ou privação arbitrária de liberdade, seja em vida pública ou privada.’.” (OMS –
Organização Mundial da Saúde - Folha Informativa – Violência contra as mulheres, 2017). Disponível em:
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5669:folha-informativa-violencia-
contra-as-mulheres&Itemid=820. Acesso em 25/nov/2018.

42
Posteriormente, em 1996, em segundo julgamento, seu marido foi condenado a 10 anos e 6
meses de prisão, mas a sentença continuou sem cumprimento.

No ano de 1998, o caso ganhou dimensão internacional e o Centro para a


Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-americano e do Caribe para a
Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) denunciaram o caso para a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da Organizaçao dos Estados Americanos (CIDH/OEA)
e, mesmo assim, não foi tomada qualquer providência contra ele, isto é, não foi preso,
processado ou, sequer, condenado. Por causa dessa omissão, o Brasil foi denunciado, o que
evidenciou que no País havia um padrão de omissão e negligência em casos de violência
doméstica contra mulher.

Devido a essa omissão, em 2001, nosso País foi responsabilizado por sua
negligência, omissão e tolerância em relação à violência contra a mulher. Em 2002 foi
formado um consórcio de ONGs feministas para elaboração de uma lei de combate à
violência doméstica e familiar contra a mulher. Após inúmeros debates, o Projeto de Lei n.º
4.559/2004 da Câmara dos Deputados chegou ao Senado Federal e foi aprovado, por
unanimidade, pelas duas casas legislativas.

Assim, em 7 de agosto de 2006, finalmente, foi sancionada a Lei Maria da


Penha, com a intenção de inibir, punir e erradicar toda e qualquer forma de violência contra a
mulher, em razão de seu gênero, com a consequente punição dos agressores e, também, com o
afastamento de vez da competência dos Juizados Especiais Criminais para julgamento das
infrações praticadas. Além disso, o Estado do Ceará pagou à vítima Maria da Penha uma
indenização e a lei foi batizada com o seu nome, devido à sua luta contra as violações dos
direitos humanos das mulheres.

Com a promulgação da Lei n.º 11.340/06, foram criados mecanismos para


coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do que dispõe o artigo
226, § 8º, da Constituição Federal.63 A promulgação dessa lei torna mais rigorosa a punição
para agressões contra mulheres, quando ocorridas no âmbito doméstico e familiar, criando
mecanismos próprios para coibir e erradicar as situações de violência de gênero.

63
Artigo 226, § 8º, da Constituição Federal: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um
dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

43
Assim, com o advento da Lei Maria da Penha, destacam-se as seguintes
inovações: a) mudança de paradigma para o caso de enfrentamento da violência contra a
mulher, entendida agora como violação de direitos humanos; b) incorporação da perspectiva
de gênero; c) incorporação da ótica preventiva, integrada e multidisciplinar; d) fortalecimento
da ótica repressiva; e) harmonização com a Convenção Interamericana para prevenir, punir e
erradicar a violência contra a mulher de Belém do Pará; f) consolidação de um conceito
ampliado de família e visibilidade ao direito à livre orientação sexual; e g) estímulo à criação
de bancos de dados e estatísticas.64

64
“Daí o advento da Lei n.º 11.340, em 7 de agosto de 2006. Destacam-se sete inovações extraordinárias
introduzidas pela Lei ‘Maria da Penha’: 1) Mudança de paradigma no enfrentamento da violência contra a
mulher. A violência contra mulher era, até o advento da Lei ‘Maria da Penha’, tratada como uma infração penal
de menor potencial ofensivo, nos termos da Lei n.º 9.099/95. Com a nova lei, passa a ser concebida como uma
violação a direitos humanos, na medida em que a lei reconhece que ‘a violência doméstica e familiar contra a
mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos’ (artigo 6º), sendo expressamente vedada a
aplicação da Lei n.º 9.099/95. 2) Incorporação da perspectiva de gênero para tratar da violência contra a mulher
Na interpretação da lei, devem ser consideradas as condições peculiares das mulheres em situação de violência
doméstica e familiar. É prevista a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com
competência cível e criminal, bem como atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas
Delegacias de Atendimento à Mulher. 3) Incorporação da ótica preventiva, integrada e multidisciplinar para o
enfrentamento da violência contra a mulher, a Lei ‘Maria da Penha’ consagra medidas integradas de prevenção,
por meio de um conjunto articulado de ações da União, Estados, Distrito Federal, Municípios e de ações não-
governamentais. Sob o prisma multidisciplinar, determina a integração do Poder Judiciário, Ministério Público,
Defensoria Pública, com as áreas da segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação.
Realça a importância da promoção e da realização de campanhas educativas de prevenção da violência
doméstica e familiar contra a mulher, bem como da difusão da Lei e dos instrumentos de proteção dos direitos
humanos das mulheres. Acresce a importância de inserção nos currículos escolares de todos os níveis de ensino
para os conteúdos relativos a direitos humanos, à equidade de gênero e de raça, etnia e ao problema da violência
doméstica e familiar contra a mulher. Adiciona a necessidade de capacitação permanente dos agentes policiais
quanto às questões de gênero e de raça e etnia. 4) Fortalecimento da ótica repressive. Além da ótica preventiva, a
Lei ‘Maria da Penha’ inova a ótica repressiva, ao romper com a sistemática anterior baseada na Lei 9.099/95,
que tratava da violência contra a mulher como uma infração de menor potencial ofensivo, sujeita à pena de multa
e pena de cesta básica. De acordo com a nova Lei, é proibida, nos casos de violência doméstica e familiar contra
a mulher, penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniárias, bem como a substituição de pena que
implique o pagamento isolado de multa. Afasta-se, assim, a conivência do Poder Público com a violência contra
a mulher. 5) Harmonização com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra
a Mulher de Belém do Pará. A Lei ‘Maria da Penha’ cria mecanismos para coibir a violência doméstica e
familiar contra a mulher em conformidade com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher (‘Convenção de Belém do Pará’). Amplia o conceito de violência contra a mulher,
compreendendo tal violência como ‘qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial’, que ocorra no âmbito da unidade
doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto. 6) Consolidação de um conceito
ampliado de família e visibilidade ao direito à livre orientação sexual A nova Lei consolida, ainda, um conceito
ampliado de família, na medida em que afirma que as relações pessoais a que se destina independem da
orientação sexual. Reitera que toda mulher, independentemente de orientação sexual, classe, raça, etnia, renda,
cultura, nível educacional, idade e religião tem o direito de viver sem violência. 7) Estímulo à criação de bancos
de dados e estatísticas. Por fim, a nova Lei prevê a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras
informações relevantes, com a perspectiva de gênero, raça e etnia, concernentes à causa, às consequências e à
frequência da violência doméstica e familiar contra a mulher, com a sistematização de dados e a avaliação
periódica dos resultados das medidas adotadas.” (PIOVESAN, Flávia; PIMENTEL, Silvia. A Lei Maria da
Penha na perspectiva da responsabilidade internacional do Brasil. Lei Maria da Penha, comentada em uma
perspectiva jurídico-feminista. Organizadora: Carmem Hein de Campos. Lúmen Júris Editora, p. 113/115).

44
No mesmo sentido dos conceitos anteriormente citados, o artigo 5º da Lei
Maria da Penha define violência contra a mulher como qualquer conduta, isto é, ação ou
omissão, baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e
dano moral ou deficiências no âmbito público ou privado. O conceito é amplo e engloba
distintos tipos de violência, como doméstica, sexual, física, psicológica, moral, patrimonial e
institucional.65 66

A violência contra a mulher, sendo uma forma de violência de gênero, afeta


mulheres pelo simples fato de serem do sexo feminino. Normalmente é perpetrada por
homens, parceiros delas, e é feita para que se mantenha o controle e o domínio sobre elas. É
um tipo de violência que pode causar danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais, e
normalmente ocorre na vida privada dessas pessoas.67

Estudos indicam que cerca de 35%, ou seja, uma em cada três mulheres, em
todas as partes do planeta, já sofreu algum tipo de violência por parte de pessoas de sua
convivência íntima, durante a sua vida. É certo que a maioria dos casos, cerca de um terço, é
de violência por parte de parceiros, sendo esposos, namorados, noivos ou seus conviventes,
em um relacionamento atual ou já encerrado.68

65
CASA CIVIL. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n.º 11.340 (Lei Maria da Penha), de 7 de agosto de
2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília (Brasil): 2006.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em
25/nov/2018.
66
“Lei n.º 11.340/2006: Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial: (Vide Lei Complementar n.º 150, de 2015)
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou
sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida,
independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.” (SPM -
Secretária de Políticas para as Mulheres. Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres.
Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. Brasília (Brasil): Ministério da Cidadania;
2011). Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/rede-de-
enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 25/nov/2018.
67
“A violência contra as mulheres – particularmente a violência por parte de parceiros e a violência sexual – é
um grande problema de saúde pública e de violação dos direitos humanos das mulheres. ” (CASIQUE, Letícia;
FURECATO, Antônia Regina Ferreira. Violência contra as mulheres: reflexões teóricas). Disponível
em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
11692006000600018&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 25/nov/2018.
68
A violência contra as mulheres – particularmente a violência por parte de parceiros e a violência sexual – é
um grande problema de saúde pública e de violação dos direitos humanos das mulheres. Estimativas globais
publicadas pela OMS indicam que aproximadamente uma em cada três mulheres (35%) em todo o mundo
sofreram violência física e/ou sexual por parte do parceiro ou de terceiros durante a vida. A maior parte dos

45
Quais os tipos de violência estão previstos em lei e podem vitimar as
mulheres? O artigo 7º da Lei n.º 11.340/2006, em numeração meramente exemplificativa,
prevê alguns tipos em seu caput, estabelecendo, ao final, a expressão entre outras. A
violência física é a forma mais perceptível de violência contra mulher, por gerar resultados
materialmente visíveis, como hematomas, cortes, arranhões, fraturas, queimaduras, entre
outros tipos de ferimentos. Porém, para configurar esse tipo de violência, não é necessário que
se deixem marcas pelo corpo, uma vez que a mulher pode ser vítima de contravenção de vias
de fato, sem que isso deixe qualquer vestígio.69 Nos casos em que a violência deixe marcas,
podem configurar o crime de lesão corporal, previsto no artigo 129 do Código Penal. E, caso
não deixem, configuram a contravenção de vias de fato, prevista no artigo 21 da Lei das
Contravenções Penais (Decreto-Lei n.º 3.688/41).

Dentre os crimes dolosos contra a vida, cerca de 38% deles são cometidos
contra mulheres e perpetrados por seu parceiro do sexo masculino, conhecido como
feminicídio. Hoje esse tipo de delito, no Brasil, é tipificado no Código Penal, como crime de
homicídio qualificado e, portanto, hediondo. Sobre ele haverá uma maior abordagem em
momento oportuno deste estudo.70

Há, ainda, consequências desse tipo de violência como o suicídio e lesões


corporais. É possível que a violência não cause lesões aparentes, mas o certo é que, cerca de
42% das mulheres têm como consequência lesões da violência. A violência pode, ainda, levar
a outras consequências graves como depressão, estresse, transtornos de ansiedade,

casos é de violência infligida por parceiros. Em todo o mundo, quase um terço (30%) das mulheres que
estiveram em um relacionamento relatam ter sofrido alguma forma de violência física e/ou sexual na vida por
parte de seu parceiro. (OMS – Organização Mundial da Saúde - Folha Informativa – Violência contra as
mulheres, 2017). Disponível em:
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5669:folha-informativa-violencia-
contra-as-mulheres&Itemid=820. Acesso em 25/nov/2018.
69
“A estrutura do artigo 7º, ao apresentar elementos conceituais e descritivos sobre os diferentes tipos de
violência, tem o objetivo de facilitar, didaticamente, a aplicação do Direito. Ao estabelecer a expressão ‘entre
outras’, o caput do artigo 7º deixa clara a intenção de não exaurir as hipóteses ou prever todas as possíveis
situações, já que o Direito não pode pretender compreender a vida ou ser tão amplo quanto ela. A violência física
é a forma mais socialmente visível e identificável de violência doméstica e intrafamiliar contra a mulher por
gerar consequências e resultados materialmente comprováveis, como hematomas, arranhões, cortes, fraturas,
queimaduras entre outros tipos de ferimentos. Na prática, sua presença indica grandes possibilidades de
existência das demais formas de violência.” (FEIX, Virgínia. Das formas de violência contra a mulher – artigo
7º. Lei Maria da Penha, comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Organizadora: Carmem Hein de
Campos. Lúmen Júris Editora, p. 203).
70
Globalmente, 38% dos assassinatos de mulheres são cometidos por um parceiro masculino. A violência pode
afetar negativamente a saúde física, mental, sexual e reprodutiva das mulheres, além de aumentar a
vulnerabilidade ao HIV. (OMS – Organização Mundial da Saúde - Folha Informativa – Violência contra as
mulheres, 2017). Disponível em:
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5669:folha-informativa-violencia-
contra-as-mulheres&Itemid=820. Acesso em 25/nov/2018.

46
dificuldades para dormir, transtornos alimentares, envolvimento com álcool, dores nas costas,
na cabeça, no abdômen. Além disso, as mulheres gestantes podem ter abortos espontâneos,
ou, quando este não ocorre, podem ocorrer morte fetal, parto prematuro e nascimento de
crianças abaixo do peso. Com relação à violência sexual, ainda é possível gerar envolvimento
com drogas e comportamentos sexuais de risco na vida adulta, além de poder levar a
gestações indesejadas, abortos induzidos, problemas ginecológicos e transmissão de doenças
sexualmente transmissíveis.71

Desse modo, verifica-se que marcas ou sinais deixados pelo corpo não são os
únicos requisitos para a configuração desse tipo de violência de gênero. Assim, quando a
violência ocorre de forma continuada, pode gerar traumas psicológicos e estes ocasionam o
surgimento de doenças psicossomáticas por causa das baixas imunidades que são geradas com
a violência.72

71
“A violência contra as mulheres pode ter consequências mortais, como o homicídio ou o suicídio. Além disso,
pode provocar lesões: 42% das mulheres vítimas de violência por parte do parceiro relatam lesões como
consequência da violência. A violência por parte de parceiros e a violência sexual podem levar a gestações
indesejadas, abortos induzidos, problemas ginecológicos e infecções sexualmente transmissíveis, incluindo o
HIV. Uma análise de 2013 descobriu que as mulheres que já foram abusadas física ou sexualmente eram 1,5
vezes mais propensas a ter uma infecção sexualmente transmissível e, em algumas regiões, o HIV, em
comparação com as mulheres que não haviam sofrido violência por parte do parceiro. Elas também são duas
vezes mais propensas a sofrerem abortos. A violência por parte do parceiro na gravidez também aumenta a
probabilidade de aborto espontâneo, morte fetal, parto prematuro e nascimento de bebês com baixo peso. Essas
formas de violência podem levar a depressão, estresse pós-traumático e outros transtornos de ansiedade,
dificuldades de sono, transtornos alimentares e tentativas de suicídio. O mesmo estudo descobriu que as
mulheres que sofreram violência por parte do parceiro eram quase duas vezes mais propensas a desenvolver
depressão e problemas com álcool. A taxa foi ainda maior para as mulheres que sofreram violência sexual de
não-parceiros. Entre os efeitos para a saúde também estão dores de cabeça, dor nas costas, dor abdominal,
fibromialgia, distúrbios gastrointestinais, mobilidade limitada e problemas de saúde em geral. A violência
sexual, particularmente na infância, pode levar a um aumento no tabagismo, consumo de drogas e álcool e
comportamentos sexuais de risco na vida adulta. Também está associada à perpetração da violência (para
homens) e sofrimento da violência (para mulheres). (OMS – Organização Mundial da Saúde - Folha Informativa
– Violência contra as mulheres, 2017). Disponível em:
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5669:folha-informativa-violencia-
contra-as-mulheres&Itemid=820. Acesso em 25/nov/2018.
72
“É preciso registrar que marcas deixadas no corpo não são requisitos para configuração desse tipo de
violência, entendida como toda a forma de utilização da força física que ofenda o corpo ou a saúde da mulher
agredida. Nesse sentido, a violência física continuada, mesmo que mais sutilmente empregada (sem marcas),
pode gerar transtornos psicológicos que promovem o aparecimento de enfermidades psicossomáticas e
oportunistas decorrentes de baixas imunidades. Muitas enfermidades estão sendo hoje associadas com baixa
autoestima e sentimentos de desvalia, raiva e não gestão das emoções, tais como dores e fadiga crônicas e
também o câncer. Aliás, o Banco Interamericano de Desenvolvimento afirma que as mulheres vítimas de
violência têm diminuída em cinco anos a expectativa média de vida. Cabe referir que recente pesquisa da
Fundação Perseu Abramo (2010) concluiu que 24% das mulheres brasileiras já sofreram alguma forma de
violência física e que, além de ameaças de surra (13%), uma em cada dez mulheres (10%) já foi de fato
espancada ao menos uma vez na vida.” (FEIX, Virgínia. Das formas de violência contra a mulher – artigo 7º. Lei
Maria da Penha, comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Organizadora: Carmem Hein de Campos.
Lúmen Júris Editora, p. 204).

47
A violência moral está relacionada à violência psicológica, tendo efeitos mais
amplos, uma vez que sua ocorrência impõe, nos casos de calúnia e difamação, ofensa à honra
objetiva, isto é, ofensas à imagem e à reputação da mulher em seu meio social. Esse tipo de
violência passou a ter maiores dimensões, tendo em vista a evolução tecnológica, mediante
meios de informação e via internet, em redes sociais.73

A violência que não deixa marcas aparentes é de tal forma silenciosa, que sua
vítima muitas vezes não a reconhece. Mesmo assim, ela vai destruindo o seu bem-estar e a sua
autoestima, sendo que a mulher passa a se sentir incapaz de fazer qualquer coisa que possa
agradar ser agressor (que muitas vezes é seu parceiro), embora o tente sempre. Desse modo,
esse tipo de violência é um abuso de confiança do companheiro para com sua parceira.74

Assim, a mulher pode ser vítima de violência psicológica, a qual tem relação
com as outras formas de violência. Os ataques à sua liberdade de escolha, que ocorrem
normalmente porque existe a afirmação constante pelo agressor da incapacidade de agir e de
ter escolhas, infantilizam a vítima. Isso a impede de se desenvolver enquanto pessoa, de forma
autônoma, pelo constante ataque à sua liberdade de autodeterminação com relação ao
agressor.75

73
“A violência moral está fortemente associada à violência psicológica, tendo, porém, efeitos mais amplos, uma
vez que sua configuração impõe, pelo menos nos casos de calúnia e difamação, ofensas à imagem e à reputação
da mulher em seu meio social. Apresentada na forma de desqualificação, inferiorização ou ridicularização, a
violência moral contra a mulher, no âmbito das relações de gênero, sempre é uma afronta à autoestima e ao
reconhecimento social. Diante das novas tecnologias de informação e redes na internet, a violência moral contra
a mulher tem tomado novas dimensões, sendo necessário que o Direito e seus operadores atentem para novos
padrões de violação dos direitos de personalidade em geral e das mulheres, em particular, quando tal violação
pressupuser a manutenção da desigualdade de gênero. Ou seja, quando as ofensas forem divulgadas em espaços
virtuais massivamente e em rede, de forma instantânea e de difícil comprovação e combate, fortalecendo
sentimentos ou percepções discriminatórias e reproduzindo padrões de relações desiguais de poder entre homens
e mulheres, que importam em anular a condição de sujeito dessas.” (FEIX, Virgínia. Das formas de violência
contra a mulher – artigo 7º. Lei Maria da Penha, comentada em uma perspectiva jurídico-feminista.
Organizadora: Carmem Hein de Campos. Lúmen Júris Editora, p. 210).
74
“Uma violência que não deixa marcas aparentes é tão sutil que sua vítima – a mulher – fracassa em reconhecê-
la como tal, embora vá, passso a passo, destruindo seu bem-estar e sua autoestima, criando um estado de
confusão e incapacidade. Nessa condição, a esposa ou companheira é mantida numa relação de subserviência,
sentindo-se constantemente incapaz de fazer qualquer coisa certo ou que possa agradar ao companheiro, embora
tente desesperadamente. A violência não-física é, assim, um abuso da confiança, daquilo que a mulher considera
seu sonho de amor e relacionamento.” (MILLER, Mary Susan. Feridas invisíveis: abuso não-físico contra
mulheres. Sào Paulo: Sumus, 1999, p. 10).
75
“A violência psicológica está necessariamente relacionada a todas as demais modalidades de violência
doméstica e familiar contra a mulher. Sua justificativa encontra-se alicerçada na negativa ou no impedimento à
mulher de exercer sua liberdade e condição de alteridade em relação ao agressor. É a negação de valor
fundamental do Estado de Direito, o exercício da autonomia da vontade e, portanto, da condição de sujeito de
direitos conquistada pelos homens, nas revoluções burguesas, americana e francesa, já no século XVIII. Como
sujeitos geneticamente sociais que somos, nossa identidade é constituída culturalmente pela interação social e
inter-relação de vários ‘Outros’ sujeitos que nos constituem e com quem compartilhamos nossa trajetória de

48
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), aprovada pela OEA em 1994, estabelece,
ainda, que toda mulher tem o direito à sua integridade moral. Esta se caracteriza por ser, quase
sempre, verbal, ficando restrita aos crimes tipificados no Código Penal, dentro do Capítulo
“Dos crimes contra a honra”. Assim, a calúnia (artigo 138 do CP), a difamação (artigo 139 do
CP) e a injúria (artigo 140 do CP) são os crimes nos quais pode incidir o agressor em caso de
violência moral de gênero. Afora esses crimes, inexistem outras previsões legais para
enfrentar situações de insulto, como no caso de depreciação do indivíduo, hipóteses que,
inclusive, não deixam vestígios a despeito de ocasionarem lesão à vítima.

Assim, a violência psicológica caracteriza-se como qualquer ação que cause


um dano emocional ou redução da autoestima de sua vítima, prejudicando o livre
desenvolvimento ou que cause degradação de seu comportamento, suas decisões (praticadas
por coação, humilhação, perseguição, chantagem, ridicularização) provocam prejuízo à sua
autodeterminação.76

Existe, também, a violência patrimonial, como a violação aos direitos


econômicos das mulheres, justificando a iniciativa do Estado brasileiro em combater atos que
impeçam ou anulem o exercício desses direitos, podendo gerar formas de dependência com
relação ao agressor, inclusive a psicológica. Assim, o artigo 5º da Convenção de Belém do
Pará preceitua que toda mulher pode exercer livre e plenamente os seus direitos, sejam eles
civis, políticos, econômicos, culturais e sociais e contará com a proteção integral desses
direitos, que são consagrados em instrumentos nacionais e internacionais sobre direitos

vida. Os ataques à liberdade de escolha pela afirmação constante da incapacidade da mulher de fazer e sustentar
eticamente suas escolhas infantilizam-na enquanto sujeito; impedindo-a de desenvolver sua identidade com
autonomia, pelo permanente ataque a sua tentativa de diferenciação e afirmação de sua alteridade em relação ao
agressor, ou seja, como outro ser, capaz de autodeterminação. As condutas descritas no inciso II como violência
psicológica estão intimamente relacionadas ao boicote do ser; ao boicote à liberdade de escolha, que nos define
como humanos.” (FEIX, Virgínia. Das formas de violência contra a mulher – artigo 7º. Lei Maria da Penha,
comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Organizadora: Carmem Hein de Campos. Lúmen Júris
Editora, p. 205).
76
“Violência Psicológica – Conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima da mulher ou que lhe
prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância
constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e
vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.” (SPM – Secretaria
de Políticas para as Mulheres. Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Balanço:
Ligue 180 – Uma década de conquistas. Brasília (Brasil): Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2015).
Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-
enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 03/nov/2018.

49
humanos. Os Estados que fazem parte de referida Convenção reconhecem que a violência
praticada contra a mulher impede e anula o exercício desses direitos.77

Dentre as formas de violência referidas no artigo 7º da Lei Maria da Penha,


tem-se, ainda, a violência sexual, entendida como qualquer ato, tentado ou consumado, de
ordem sexual, ou mesmo um ato contra a sexualidade de uma pessoa, por meio de violência
ou grave ameaça, praticado por outra pessoa, tendo relação com a vítima ou não. Referido ato
sexual pode se caracterizar como o crime de estupro, o qual pode ser definido como a
penetração completa ou incompleta, mediante violência ou grave ameaça do pênis na vagina,
ou mesmo a prática de qualquer outro ato de natureza sexual mediante coação.78

Em relação ao crime de estupro, o Código Penal, tanto no artigo 213, quanto


no artigo 217-A, o tipifica. O primeiro deles tipifica o delito como sendo o constrangimento
de alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal, a praticar ou permitir
que se pratique outro ato libidinoso. A conjunção carnal é necessariamente a união do pênis
com a vagina. Já o ato libidinoso pode ser qualquer outro ato que cause satisfação da lascívia
do agente. O segundo artigo citado diz respeito ao estupro de vulnerável, que ocorre quando o
agente tem conjunção carnal ou pratica algum ato libidinoso, mesmo que sem violência,
contra pessoa menor de quatorze anos, ou pessoa alienada ou débil mental ou contra aquele
que, por qualquer causa, não pode oferecer resistência.

No que diz respeito à violência sexual, as condutas que submetem a mulher


referem-se a práticas contra a sua liberdade sexual e reprodutiva, que representam violações
aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos. Relativamente aos direitos sexuais, podem ser
citados o direito de explorar a própria sexualidade sem medo ou vergonha, o direito de viver
sua sexualidade sem violência, discriminação, ou ameaça, exercer sua relação baseada na
igualdade, respeito e justiça. A mulher tém também o direito de ser respeitada, podendo

77
“A violência patrimonial é uma inovação da Lei Maria da Penha que tipifica com clareza condutas que
necessariamente configuram violação dos direitos econômicos das mulheres, justificando a iniciativa do Estado
brasileiro de combater atos que impeçam ou anulem o exercício desses direitos, conforme determina o disposto
no artigo 5º da Convenção de Belém do Pará.” (FEIX, Virgínia. Das formas de violência contra a mulher – artigo
7º. Lei Maria da Penha, comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Organizadora: Carmem Hein de
Campos. Lúmen Júris Editora, p. 207).
78
“A violência sexual é qualquer ato sexual, tentativa de consumar um ato sexual ou outro ato dirigido contra a
sexualidade de uma pessoa por meio de coerção, por outra pessoa, independentemente de sua relação com a
vítima e em qualquer âmbito. Compreende o estupro, definido como a penetração mediante coerção física ou de
outra índole, da vulva ou ânus com um pênis, outra parte do corpo ou objeto’.” (OMS – Organização Mundial
da Saúde - Folha Informativa – Violência contra as mulheres, 2017). Disponível em:
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5669:folha-informativa-violencia-
contra-as-mulheres&Itemid=820. Acesso em 25/nov/2018.

50
escolher seus próprios companheiros ou companheiras sexuais sem discriminação, entre
outros tantos direitos.79

A violência sexual é um tipo de violência quanto à natureza e caracteriza-se


quando uma pessoa, seja homem ou mulher, obriga outra pessoa (também podendo ser
homem ou mulher) a praticar um ato de natureza sexual, podendo ser físico ou verbal, usando,
para a sua prática, de violência (força física) ou ameaça (violência moral), podendo ainda ser
utilizada qualquer outra forma de coação como forma de anular a vontade da vítima.80

Nos casos de mulheres que sofrem violência sexual, na maior parte deles, as
vítimas sofrem inúmeros traumas, que não se resumem aos atos violentos por elas sofridos,
mas apresentam cicatrizes que, depois, se manifestam ao longo de sua vida. Durante a vida
dessas vítimas, as feridas visíveis podem até vir a ser curadas, mas existem cicatrizes

79
“No que tange à violência sexual, as condutas exemplificadas referem-se, sem exceção, a práticas contra a
liberdade sexual e reprodutiva, que representam violações aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos. Ao
interpretar a lei, precisamos atentar aos padrões estereotipados sobre os papéis sexuais a serem exercidos
diferente e desigualmente pelos homens e mulheres, que ainda limitam ou reduzem a capacidade da mulher de
decidir ética e moralmente, ou seja, de exercer sua vontade. Os estereótipos geram falsas crenças e expectativas
sobre o comportamento das pessoas. Uma das crenças alimentadas culturalmente é que as mulheres não podem
desistir da relação sexual ‘no meio do caminho’. A crença expressa no jargão ‘ajoelhou tem que rezar’ implica
uma comum naturalização do uso da força e do constrangimento contra a manifestação e o exercício autônomo
da vontade. Como se o ‘sim’ dito no cartório, no altar, no bar ou no motel impusesse à mulher um consentimento
permanente, inquestionável, infalível, irretratável. Não. O exercício da sexualidade deve ser sempre contratado, e
os contratantes, para garantia de sua dignidade, devem ser livres para destratar a qualquer tempo. Outra crença, e
falsa expectativa, que promove situações de violência sexual e contraria o exercício dos direitos sexuais e dos
direitos reprodutivos das mulheres anteriormente referidos é a de que todas as mulheres nasceram para serem
mães. Em Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno, Elizabeth Badinter (1985) demonstra que essa é
uma construção cultural que não tem nada a ver com instintos. Assim, impor à mulher a reprodução em
contrariedade a sua vontade pelo sexo forçado ou com constrangimento ou com impedimento de uso de métodos
contraceptivos é uma violência de gênero e grave violação de direitos humanos. Também cabe lembrar que a
legislação brasileira, até 2005, promoveu a representação social e cultural sobre a ‘mulher honesta’ identificada a
partir de sua adesão, ou não, a um padrão sexual estabelecido por atributos exigidos somente para as mulheres: a
virgindade, a fidelidade, o recato e a responsabilidade pela gravidez não planejada. Nesse sentido, também é
preciso ter presente que o direito a relações sexuais baseadas na igualdade, no respeito e na justiça muitas vezes
é negado a mulheres, como se, entre elas, as supostamente ‘desonestas’ pudessem ser tratadas com violência,
desrespeito, negligência e/ou desonra. As mudanças legislativas necessárias a combater os estereótipos sexuais e
discriminatórios contra as mulheres exigiram também a alteração da linguagem do Código Penal que deixou de
classificar os crimes sexuais como ‘crimes contra os costumes’; passando a designá-los ‘crimes contra a
dignidade sexual’.” (FEIX, Virgínia. Das formas de violência contra a mulher – artigo 7º. Lei Maria da Penha,
comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Organizadora: Carmem Hein de Campos. Lúmen Júris
Editora, p. 206/207).
80
“Violência Sexual – É a ação que obriga uma pessoa a manter contato sexual, físico ou verbal, ou participar de
outras relações sexuais com uso da força, intimidação, coerção, chantagem, suborno, manipulação, ameaça ou
qualquer outro mecanismo que anule o limite da vontade pessoal. Manifesta-se como: expressões verbais ou
corporais que não são do agrado da pessoa; toques e carícias não desejados; exibicionismo e voyerismo;
prostituição forçada; participação forçada em pornografia; relações sexuais forçadas – coerção física ou por
medo do que venha a ocorrer.” (SPM – Secretaria de Políticas para as Mulheres. Ministério das Mulheres, da
Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Balanço: Ligue 180 – Uma década de conquistas. Brasília (Brasil):
Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2015). Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-
violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 03/nov/2018.

51
invisíveis, e estas, podem nunca desaparecer das vidas de suas vítimas.81 Essa violência pode
ocorrer por agressores conhecidos e desconhecidos e pode ter como vítimas mulheres adultas,
adolescentes e crianças. Estas últimas normalmente sofrem violência dentro da própria casa e
é perpetrada por pessoas que são mais ligadas a elas como pais, padrastos ou irmãos. Quando
as vítimas são adolescentes e mulheres adultas, a violência sexual já pode ocorrer entre
conhecidos ou desconhecidos.82

Como qualquer tipo de violência, a sexual é um problema de saúde pública e


mulheres que a ela são expostas correm maior risco de desenvolverem problemas na área
relacionada à saúde. Nesses casos, por exemplo, as vítimas de estupro, em algum momento,
apresentam medo durante o período gestacional e submetem-se, com mais frequência, ao
parto cesáreo. Na realidade, a experiência do parto pode desencadear memórias de abuso
sexual e afetar a capacidade de a mulher colaborar com a equipe médica.83

Os governos brasileiros, tanto estaduais, municipais e distrital, bem como a


sociedade civil, devem prevenir e punir a violência contra a mulher. Ocorre que ainda existe o
isolamento dos serviços e os diversos níveis de governo para enfrentar essa questão não são
articulados. É necessário que se faça um trabalho em rede para a superação dessa falta de

81
“Na maioria das vezes as mulheres vítimas de violência sexual apresentam problemas que não se reduzem às
consequências imediatas dos atos violentos vivenciados, mas apresentam interfaces que precisam contar com o
aporte interdisciplinar e transdisciplinar, como as cicatrizes deixadas na vida sexual, afetiva, social e
profissional. As feridas podem ser curadas dependendo do cuidado e de quem cuida, entretanto as cicatrizes são
as marcas visíveis e invisíveis da agressão e do não cuidado, pois somente cuida do outro aquele que cuida de
si.” (OLIVEIRA, Eleonora Menicucci de. O feminismo desconstruindo e reconstruindo o conhecimento.
Universidade Federal de São Paulo, p. 232/233). Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/ref/v16n1/a21v16n1.pdf. Acesso em 27/julho/2019.
82
“A violência sexual acontece entre conhecidos e desconhecidos com mulheres adultas, adolescentes e crianças.
A violência sexual contra as crianças acontece principalmente dentro da casa e é perpetrada pelos pais,
padrastos, irmãos ou por algum parente; contra adolescentes e mulheres, acontece entre conhecidos e
desconhecidos.” (OLIVEIRA, Eleonora Menicucci de. O feminismo desconstruindo e reconstruindo o
conhecimento. Universidade Federal de São Paulo, p. 233). Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/ref/v16n1/a21v16n1.pdf. Acesso em 27/julho/2019.
83
“Women reporting severe sexual violence (rape) had an increased risk of an elective CS, whereas those
exposed to moderate sexual violence had an increased risk of emergency CS. An association between sexual
violence and vaginal operative birth was only significant for multiparous women with a history of mild sexual
violence, with a decreased risk. Women reporting rape had a higher risk of induction and a lower risk of
episiotomy. Nulliparous women with a history of sexual violence had fewer anal sphincter tears.”
(HENRIKSEN, Lena; SCHEI, Berit; VANGEN, Siri; LUKASSE Mirjam. Sexual violence and mode of
delivery: a population-based cohort study. BJOG. 2014;(121):1237–244. in a military population. Journal of
Perinatology.2012; 32:763–769). Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24939396. Acesso em
19/ago/2019. Tradução livre: “As mulheres que relatam violência sexual grave (estupro) tiveram um risco
aumentado de CS eletivo, enquanto as que foram expostas a violência sexual moderada tiveram um risco
aumentado de CS emergencial. A associação entre violência sexual e parto vaginal foi apenas significativa para
mulheres multíparas com histórico de violência sexual leve, com risco reduzido. As mulheres que relataram
estupro apresentaram maior risco de indução e menor risco de episiotomia. Mulheres nulíparas com histórico de
violência sexual tiveram menos lágrimas no esfíncter anal.

52
articulação e a fragmentação dos serviços, por meio de uma ação integrada de diferentes áreas
do governo.84

Esta rede de atendimento é composta, entre outros serviços, por delegacias,


polícias civil e militar, defensorias públicas, casas-abrigo e significa a ação conjunta entre os
serviços governamentais, não-governamentais e a sociedade para melhorar o atendimento, a
identificação e para a realização do encaminhamento adequado de mulheres em situação de
risco, bem como para a prevenção de situações de violência. Essa rede deve ser criada para
trabalhar de forma articulada para uma assistência integral para as vítimas de violência
doméstica.85

De acordo com dados da Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180 da


Secretária de Políticas para as Mulheres (SPM), desde a sua criação, em 2005 e após dez anos,
foram registrados quase 5 milhões de atendimentos, nos quais são preponderantes os casos de
violência física e psicológica. No geral, os encaminhamentos a serviços da Rede de
Enfrentamento à Violência contra as Mulheres compõem a segunda maior demanda do Ligue
180. Logo após, estão os casos de violência em geral.86

84
“Os governos (Estaduais, Distrito Federal e Municipais) e a sociedade civil possuem um papel a desempenhar
na prevenção e no combate da violência contra as mulheres, e na assistência a ser prestada a cada uma delas.
Todavia, ainda existe uma tendência ao isolamento dos serviços e à desarticulação entre os diversos níveis de
governo no enfrentamento da questão. O trabalho em rede surge, então, como um caminho para superar essa
desarticulação e a fragmentação dos serviços, por meio da ação coordenada de diferentes áreas governamentais,
com o apoio e o monitoramento de organizações não-governamentais e da sociedade civil como um todo.” (SPM
– Secretaria de Políticas para as Mulheres. Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos
Humanos. Balanço: Ligue 180 – Uma década de conquistas. Brasília (Brasil): Secretaria de Políticas para as
Mulheres, 2015). Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-
violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 03/nov/2018.
85
“A necessidade de criação de uma Rede de Atendimento leva em conta a rota crítica (OMS/OPAS, 1998) que
a mulher em situação de violência percorre. Essa rota possui diversas portas de entrada (serviços de emergência
na saúde, delegacias, serviços da assistência social), que devem trabalhar de forma articulada no sentido de
prestar uma assistência qualificada, integral e não-revitimizante à mulher em situação de violência. (SPM –
Secretaria de Políticas para as Mulheres. Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos.
Balanço: Ligue 180 – Uma década de conquistas. Brasília (Brasil): Secretaria de Políticas para as Mulheres,
2015). Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-
nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 03/nov/2018.
86
“No ano em que a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 comemora seu aniversário de uma década de
prestação de serviços, os atendimentos quase alcançam a casa dos 5 milhões. Desde sua criação em 2005, foram
4.708.978 atendimentos. Desses, 552.748 foram relatos de violência, preponderando os relatos de violência física
(56,72%) e psicológica (27,74%). De maneira geral, os encaminhamentos a serviços da Rede de Enfrentamento à
Violência contra as Mulheres constituem a segunda maior demanda do Ligue 180 (824.498 encaminhamentos)
nesses 10 anos. Logo em seguida, estão os relatos de violência (552.748). (SPM – Secretaria de Políticas para as
Mulheres. Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Balanço: Ligue 180 – Uma
década de conquistas. Brasília (Brasil): Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2015). Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-
violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 03/nov/2018.

53
Só para se ter uma ideia, em 2015, do total de atendimentos do Ligue 180,
63.090 ocorrências de violência foram registradas. Desse total, 58,6% foram casos de
violência contra mulheres negras. De todos os relatos, 49,8% corresponderam à violência
física; 30,4% violência psicológica; 7,3% violência moral; 2,2% violência patrimonial; 4,9%
violência sexual; 4,9% cárcere privado; e 0,5% tráfico de pessoas. Neste ano, o Ligue 180
atendeu todas as unidades da federação, sendo que houve 52,4 relatos de violência por 100
mil mulheres. Em dez anos de atendimento, ou seja, de 2005 até 2015, foram feitos mais de
4,7 milhões de atendimentos, dos quais 552.748 foram casos de violência, com destaque para
os casos de violência física e psicológica.87

Desse modo, vê-se que a violência, em todas as suas formas, é algo destrutivo,
com a finalidade de destruir o outro, mas acaba por atingir, também, a humanidade como um
todo. Porém, ela é um fenômeno intrínseco ao processo civilizatório, sendo um elemento
estrutural da organização das sociedades, manifestando-se de várias formas como visto neste
tópico. A violência contra a mulher, de forma mais específica, engloba a violência doméstica
e a violência obstétrica, esta última, objeto deste estudo, será abordada em outro tópico.
Gênero é um conceito das Ciências Sociais que surge como referencial teórico para que se
analise e compreenda a desigualdade entre o que é atribuído à mulher e ao homem.

1.2.1 Conceito de gênero

A violência contra a mulher deve ser entendida dentro de um contexto de


gênero. Isso deriva de uma construção cultural da masculinidade e da feminilidade, o que tem

87
“Em 2015, do total de atendimentos, 63.090 foram relatos de violência, dos quais 58,55% praticados contra
mulheres negras. Segundo a Central de Atendimento à Mulher, ‘esses dados demonstram a importância da
inclusão de indicadores de raça e gênero nos registros administrativos referentes à violência contra as mulheres’.
Entre os relatos, 49,8% foram relatos de violência física, 30,4% de violência psicológica, 7,3% de violência
moral, 2,2% de violência patrimonial, 4,8% de violência sexual, 4,8% de cárcere privado, e 0,5% de tráfico de
pessoas. Neste ano, o Ligue 180 atendeu todas as 27 unidades da federação, com média de 52,4 relatos de
violência por 100 mil mulheres. Do total de atendimentos deste ano, 39,5% corresponderam à prestação de
informações, principalmente sobre a Lei Maria da Penha; 9,6% foram encaminhamentos para serviços
especializados; e 40,2%, direcionamentos para 190 da Polícia Militar, 197 da Polícia Civil e Disque 100 da
Secretaria de Direitos Humanos. Em dez anos de Ligue 180, foram realizados mais de 4,7 milhões de
atendimentos. Desses, 552.748 foram relatos de violência, com destaque para os de violência física (56,7%) e
psicológica (27,7%).” Disponível em:
https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2015/11/25/interna_nacional,711368/cresce-300-numero-de-
mulheres-que-denuncia-carcere-privado-no-pais.shtml. Acesso em 03/nov/2018.

54
origem nas relações entre homens e mulheres. É, assim, um fenômeno de relações e requer
mudanças culturais, educativas e sociais para que se possa enfrentá-la.88

A tendência de se considerar a violência contra a mulher como sendo de gênero


iniciou na década de 1990. O termo gênero refere-se a somente um dos aspectos das relações
entre o feminino e o masculino, e surgiu inicialmente nos Estados Unidos entre as feministas,
as quais queriam firmar o caráter social das diferenças com base no sexo. Esse termo significa
a maneira pela qual as diferenças entre homens e mulheres são inseridas na sociedade ao
longo da história. Assim, para a sua compreensão, homens e mulheres são estudados
conjuntamente, não se compreendendo os dois sexos por meio de um estudo separado.89

O conceito de gênero situa-se dentro da sociedade e indica, assim, uma


construção social e cultural. O ser masculino, desde o começo dos tempos, sempre exerceu
sua superioridade e dominação sobre o sexo feminino, o que deu origem a uma sociedade
machista e patriarcal. Desse modo, o homem passou a exercer seu domínio sobre as mulheres,
passando a justificar qualquer tipo de violência praticada contra sua vítima em uma série de
valores, de costumes e de práticas culturalmente impostos.90

88
“A violência contra as mulheres não pode ser entendida sem se considerar a dimensão de gênero, ou seja, a
construção social, política e cultural da(s) masculinidade(s) e da(s) feminilidade(s), assim como as relações entre
homens e mulheres. É um fenômeno, portanto, que se dá no nível relacional e societal, requerendo mudanças
culturais, educativas e sociais para seu enfrentamento, bem como o reconhecimento de que as dimensões de
raça/etnia, de geração e de classe contribuem para sua exacerbação.” (SPM – Secretaria de Políticas para as
Mulheres. Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Balanço: Ligue 180 – Uma
década de conquistas. Brasília (Brasil): Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2015). Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-
violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 03/nov/2018.
89
“Na sua utilização mais recente, o termo ‘gênero’ parece ter feito sua aparição inicial entre as feministas
americanas, que queriam enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra
indicava uma rejeição do determinismo biológico implícito no uso de termos como ‘sexo’ ou ‘diferença sexual’.
O termo ‘gênero’ enfatizava igualmente o aspecto relacional das definições normativas da feminilidade. Aquelas
que estavam preocupadas pelo fato de que a produção de estudos sobre mulheres se centrava nas mulheres de
maneira demasiado estreita e separada utilizaram o termo ‘gênero’ para introduzir uma noção relacional em
nosso vocabulário analítico. Segundo esta visão, as mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos e
não se poderia compreender qualquer um dos sexos por meio de um estudo inteiramente separado.” (SCOTT
Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Porto Alegre: Educação e Realidade, 1995, p. 72).
Disponível em: file:///D:/Users/m313790/Downloads/71721-297572-1-PB%20(1).pdf. Acesso em 24/dez/2018.
90
“Nessa utilização, o termo ‘gênero’ não implica necessariamente uma tomada de posição sobre a desigualdade
ou o poder, nem tampouco designa a parte lesada (e até hoje invisível). Enquanto o termo ‘história das mulheres’
proclama sua posição política ao afirmar (contrariamente às práticas habituais) que as mulheres são sujeitos
históricos válidos, o termo ‘gênero’ inclui as mulheres, sem lhes nomear, e parece, assim, não constituir uma
forte ameaça. Esse uso do termo ‘gênero’ constitui um dos aspectos daquilo que se poderia chamar de busca de
legitimidade acadêmica para os estudos feministas, nos anos 80.” (SCOTT Joan. Gênero: uma categoria útil de
análise histórica. Porto Alegre: Educação e Realidade, 1995, p. 75). Disponível em:
file:///D:/Users/m313790/Downloads/71721-297572-1-PB%20(1).pdf. Acesso em 24/dez/2018.

55
Assim, com justificativa em uma cultura conservadora, de superioridade, havia
e até hoje existe uma situação de poder, na qual a mulher submete-se aos caprichos impostos
por seu parceiro. A mulher, então, desde muito cedo, passa a ser moldada para assumir o
papel somente de mãe e reprodutora, estando subordinada a ideologias criadas pelo ser
masculino. Concomitante a isso, o homem foi, desde cedo, preparado para comandar. Esse
cenário de mando existe desde a infância, inclusive quando da prática de brincadeiras entre as
próprias crianças.

Com base nisso, a violência praticada contra a mulher, vista em seu conceito de
gênero, torna-se um problema aceito como normal pela sociedade como um todo, ofendendo,
assim, direitos básicos de suas vítimas, como a vida ou a integridade física e moral.
Fundamentado nessa normalidade, inúmeras mulheres sofrem e continuam sofrendo violência,
seja intrafamiliar ou em qualquer outra relação interpessoal, normalmente por parte de
pessoas que lhe são próximas.

Para afirmar sua autoridade sobre a mulher, muitas vezes o homem usa o
castigo, como condição para se afirmar sobre ela. Assim, quando se impõe uma punição a
uma mulher, em relações interpessoais, na verdade, o homem usa de um meio para dizer
quem manda ali e quem é o dono do poder. Com essa forma de agir, ele usa normalmente a
violência, moral ou física como meio de anular a mulher como sujeito de direitos.91

O termo gênero tem muitos significados, mas nesta pesquisa será usado como
substituto para o termo mulheres. Com a evolução dos estudos sobre sexo e sexualidade,
gênero tornou-se uma palavra útil para estabelecer a dos papéis sexuais atribuídos tanto a
homens e mulheres. Esse termo destaca o sistema de relações de pessoas por meio do sexo,
mas não necessariamente é por ele determinado.92 Essas representações de gênero geraram

91
“Vale lembrar, para melhor compreender o fenômeno da violência doméstica e intrafamiliar como violência de
gênero, indissociável do conceito de violência política (ou seja, de instrumento para perpetuar relações desiguais
de poder), que o castigo físico ainda é prática culturalmente aceita e naturalizada como condição de afirmação da
autoridade, ou poder familiar (antes conhecido como pátrio poder) dos pais sobre seus filhos. Assim, o castigo
físico imposto às mulheres nas relações afetivas e domésticas também é, em última análise, o recurso utilizado
para dizer quem manda, ou qual dos sujeitos está em condição de subordinar e submeter o outro, toda a vez que a
sua conduta ameaçar ou não atender as expectativas ou desejos de quem ‘deve’ deter a autoridade. Nesse
comportamento, como já se disse, há tentativa de perpetuar a posição de poder, pela anulação do outro como
sujeito, como diverso, que só existe como extensão ou projeção do sujeito dominador.” (FEIX, Virgínia. Das
formas de violência contra a mulher – artigo 7º. Lei Maria da Penha, comentada em uma perspectiva jurídico-
feminista. Organizadora: Carmem Hein de Campos. Lúmen Júris Editora, p. 204/205).
92
“Mas esse é apenas um aspecto. O termo ‘gênero’, além de um substituto para o termo mulheres, é também
utilizado para sugerir que qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os
homens, que um implica o estudo do outro. Essa utilização enfatiza o fato de que o mundo das mulheres faz
parte do mundo dos homens, que ele é criado nesse e por esse mundo masculino. Esse uso rejeita a validade

56
relações de poder assimétricas entre homens e mulheres, estabelecendo-se, assim, a submissão
da mulher perante o homem.93

Assim, quando se fala em gênero, na maior parte das vezes, isso quer significar
a designação de seres de sexos diferentes. Mas, o termo vem sendo utilizado, nas últimas
décadas, pelos conceitos feministas, e, assim, começou a ter várias significações. Com isso,
utiliza-se o termo gênero dentro de um conceito cultural, sendo diferente do simples conceito
de sexo, sendo este último utilizado somente em um patamar biológico.94

Violência de gênero é um conceito que abrange, normalmente, vítimas


determinadas, que são as mulheres. Na era patriarcal, o homem é o ser que tem o poder e que
determina o que deve ou não ser feito, e de que forma. Assim, ele recebe uma espécie de
“autorização” da sociedade para punir quem ele entender que mereça punição e do modo
como ele quiser. Existe todo um projeto de dominação, e este é utilizado para que haja o
exercício de sua capacidade de mando, utilizando, como instrumento, a violência.95

interpretativa da idéia de esferas separadas e sustenta que estudar as mulheres de maneira isolada perpetua o mito
de que uma esfera, a experiência de um sexo, tenha muito pouco ou nada a ver com o outro sexo. Além disso, o
termo ‘gênero’ também é utilizado para designar as relações sociais entre os sexos.” (SCOTT, Joan. Gênero:
uma categoria útil de análise histórica. Porto Alegre: Educação e Realidade, 1995, p. 75/76). Disponível em:
file:///D:/Users/m313790/Downloads/71721-297572-1-PB%20(1).pdf. Acesso em 24/dez/2018.
93
“Esta situação não é conveniente nem para homens nem para mulheres. Segundo Jung (1992), tanto homens
quanto mulheres são dotados de animus e anima, sendo o primeiro o princípio masculino e o segundo, o
princípio feminino. O ideal seria que ambos fossem igualmente desenvolvidos, pois isto resultaria em seres
humanos bem equilibrados. Todavia, a sociedade estimula o homem a desenvolver seu animus, desencorajando-
o a desenvolver sua anima, procedendo de maneira exatamente inversa com a mulher. Disto decorrem, de uma
parte, homens prontos a transformar a agressividade em agressão; e mulheres, de outra parte, sensíveis, mas
frágeis para enfrentar a vida competitiva. O desequilíbrio reside justamente num animus atrofiado nas mulheres e
numa anima igualmente pouco desenvolvida nos homens. Sendo o núcleo central de animus o poder, tem-se, no
terreno político, homens aptos ao seu desempenho, e mulheres não-treinadas para exercê-lo. Ou seja, o
patriarcado, quando se trata da coletividade, apoia-se neste desequilíbrio resultante de um desenvolvimento
desigual de animus e de anima e, simultaneamente, o produz. Como todas as pessoas são a história de suas
relações sociais, pode-se afirmar, da perspectiva sociológica, que a implantação lenta e gradual da primazia
masculina produziu o desequilíbrio entre animus e anima em homens e em mulheres, assim como resultou deste
desequilíbrio.” (SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. 1ª ed. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 36/37).
94
“O termo ‘gênero’, na sua acepção gramatical, designa indivíduos de sexos diferentes (masculino/feminino) ou
coisas sexuadas, mas, na forma como vem sendo usado, nas últimas décadas, pela literatura feminista, adquiriu
outras características: enfatiza a noção de cultura, situa-se na esfera social, diferentemente do conceito de ‘sexo’,
que se situa no plano biológico, e assume um caráter intrinsecamente relacional do feminino e do masculino.”
(ARAÚJO Maria de Fátima. Diferença e igualdade nas relações de gênero: revisitando o debate. Psic. Clin.
[Internet]. 2005; 17(2): 41-52). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pc/v17n2/v17n2a04.pdf. Acesso em
28/nov/2018.
95
“Violência de gênero é o conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de
ambos os sexos. No exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das
categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se
lhes apresenta como desvio. Ainda que não haja nenhuma tentativa, por parte das vítimas potenciais, de trilhar
caminhos diversos do prescrito pelas normas sociais, a execução do projeto de dominação-exploração da
categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência. Com efeito, a

57
Desse modo, as relações intrafamiliares são feitas de relações de poder, nas
quais mulheres e crianças obedecem ao homem, sendo este a autoridade máxima da família.
Com isso, seu poder está legitimado, pela imposição do poder, o que gera situações de medo
nas vítimas, pois se houver um mínimo desvio dos padrões que foram por ele impostos, isso
pode gerar conflitos ou mesmo a imposição de castigos. A maior parte dos casos de violência,
nessas hipóteses, decorre, assim, de relações assimétricas de dominação.96

Como se pode perceber, a violência doméstica contra mulheres é constituída de


atos que se baseiam em uma relação hierárquica de poder, surgindo como uma estratégia para
que se exerça o controle sobre o corpo e a mente da vítima. Essa violência ocorre em locais,
onde ainda se vive no sistema de patriarcado, com a dominação do homem sobre a mulher, e
essa última não tem qualquer poder de reação.97

Com o surgimento da Lei Maria da Penha, pretendeu-se modificar o cenário


do enfrentamento judicial com relação a este tipo de violência de gênero. O diploma legal
deixou explícita sua adesão à Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Violência
contra a Mulher, ratificada por 186 Estados (2010), da Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de acordo com o art. 1°, conforme
já explanado.98

ideologia de gênero é insuficiente para garantir a obediência das vítimas potenciais aos ditames do patriarca,
tendo esta necessidade de fazer uso da violência.” (SAFFIOTI, Heleite Iara Bongiovani. Contribuições
feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos PAGU, Campinas, v. 16, p. 115/116). Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/cpa/n16/n16a07.pdf. Acesso em 26/jul/2019.
96
“As relações familiares são permeadas por relações de poder, nas quais as mulheres, como também as
crianças, obedecem ao homem, tido como autoridade máxima no núcleo familiar. Assim sendo, o poder do
homem é socialmente legitimado, seja no papel de esposo, seja no papel de pai. Essa imposição normativa
constrói relações familiares permeadas pelo medo, de modo que qualquer desvio dos padrões naturalizados, de
família pode desencadear conflitos. A maioria dos casos de violência contra crianças e adolescentes é marcada
por relações interpessoais assimétricas e hierárquicas.” (GOMES, Nadielene Pereira; DINIZ, Normélia Maria
Freire; ARAÚJO, Anne Jacob de Souza; COELHO, Tâmara Maria de Freitas. Compreendendo a violência
doméstica a partir das categorias gênero e geração. Acta Paul. Enferm. [Internet]. 2007; 20(4): 504-08).
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ape/v20n4/19.pdf. Acesso em 14/jan/2019.
97
“Há necessidade de se nomear a violência doméstica e sexual contra as mulheres como atos constituintes e
estruturantes da relação hierárquica de poder entre os sexos, que operam como estratégias disciplinares de
controle sobre o corpo e a mente das mulheres no âmbito do sistema patriarcal. Na violência doméstica, como
parte do contrato social do casamento, e na violência sexual, aquela que acontece tanto dentro do confinamento
dos espaços domésticos como nos espaços públicos da rua, a mulher encontra-se sem nenhum poder de reação,
seja na esfera da subjetividade, seja na esfera da objetividade.” (OLIVEIRA, Eleonora Menicucci de. O
feminismo desconstruindo e reconstruindo o conhecimento. Universidade Federal de São Paulo, p. 241).
Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ref/v16n1/a21v16n1.pdf. Acesso em 27/julho/2019.
98
“Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos
do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência
contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de
outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos

58
De outro lado, em nível de direito interno, mencionada lei expressamente
subsume-se ao artigo 226, § 8°, da Constituição Federal, o qual impõe ao Estado o dever de
assegurar a assistência à família, na pessoa de cada um dos que a integram, com a criação de
mecanismos para impedir a violência, deixando clara sua adequação à ordem constitucional,
bem como à tendência mundial de preservar os direitos da mulher no bojo das relações
domésticas.

Nesse contexto, analisada a violência doméstica bem como o que se entende


por gênero, faz-se imprescindível discutir uma outra forma de violência contra a mulher que,
embora pouco conhecida ainda, apesar de muito sofrida, tem ganhado notoriedade e motivado
algumas recentes mudanças nos sistemas de saúde: a violência obstétrica, sobre a qual
discorreremos ainda neste estudo, no próximo capítulo.

1.3 Aspectos legais e sociais da violência

1.3.1 Principais marcos sociais e legais de combate à violência contra a mulher no


Brasil

No Brasil, houve inúmeros avanços, sociais e legislativos, que levaram a


mudanças no enfrentamento da questão da violência doméstica, inclusive com a criação de
delegacias especializadas, além de serviços de atendimento às vítimas de atos violentos. Além
disso, foram adotadas políticas públicas específicas para a resolução do problema. Mesmo
com todos esses recursos, a tarefa de enfrentar casos referentes à violência de gênero requer
mais recursos e mais mudanças.99

No Brasil, o início do movimento feminista para o fim da violência


intrafamiliar data de 1970. Foi do próprio Poder Judiciário que veio a primeira forma de

Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às
mulheres em situação de violência doméstica e familiar.”
99
“No Brasil, nos últimos anos, houve avanços em vários campos, que se traduziram em mudanças na legislação,
produção crescente de estudos sobre a incidência de atos violentos contra a mulher, criação de delegacias
especializadas e de serviços de atendimento às vítimas, além de adoção de políticas públicas específicas para
combater o problema. Mas a tarefa de enfrentar esse desafio ainda é imensa e requer, necessariamente, uma
ampla política nacional de combate à violência contra as mulheres, com a adequada alocação de recursos
orçamentários para os serviços e equipamentos necessários. Nessa luta, é fundamental colocar em prática não
apenas as ações repressivas como também medidas capazes de contribuir para o empoderamento feminino,
assegurando a todas as mulheres o acesso a seus direitos nas mais variadas dimensões da vida social.” (FNEDH
– Fórum Nacional de Educação em Direitos Humanos. Protegendo as mulheres da violência doméstica. Brasília
(Brasil): FENDH; 2006). Disponível em:
http://midia.pgr.mpf.gov.br/hotsites/diadamulher/docs/cartilha_violencia_domestica.pdf. Acesso em 04/03/2019.

59
defesa utilizada por homens que praticavam crimes de homicídio contra mulheres. Assim, até
o fim daquela década, a tese da “legítima defesa da honra” ainda encontrava aceitação dentro
do Tribunal do Júri, para absolvições, como ocorreu no caso Doca Street, já citado neste
trabalho. Desse modo, com o início do movimento feminista, essa tese passou a ser rejeitada,
mas somente em 1991. Diante do exposto, ainda no final da década 1970, mais precisamente
em 1979, foram criados os SOS Mulher em alguns Estados, e, a partir do surgimento deles,
foram criadas as delegacias especializadas, na década de 1980.100

Assim, as lutas feitas pelos movimentos feministas deram origem a conquistas


sociais, penais e políticas das mulheres, o que deu origem à criação de delegacias para fins de
combate à violência contra a mulher, além da criação de órgãos especiais, como os Conselhos
Estaduais e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). Posteriormente, os direitos
das mulheres foram ampliados com a Constituição Federal de 1988.101

Desse modo, exemplificando o que foi narrado anteriormente, tem-se a edição


do Decreto n.º 23.769/1985, procedente do Estado de São Paulo, do qual derivou a
inauguração da primeira Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (DEAM) bem

100
“A ação do movimento de mulheres brasileiras no enfrentamento da violência doméstica e sexual, de forma
mais sistemática, data do final da década de 1970, quando as feministas tiveram participação ativa no desmonte
da famosa tese da ‘legítima defesa da honra’. Foi, portanto, no campo do Poder Judiciário a primeira
manifestação organizada contra uma expressão cultural tradicionalmente utilizada com êxito pela defesa de
homens que assassinavam a mulher. De fato, tal tese, até o final daquela década, encontrava aceitação tranquila e
pacífica nos diversos tribunais do júri do país. Certamente, foi pela atuação insistente do movimento de
mulheres, que, enfim, em 1991, o Superior Tribunal de Justiça rejeitou essa ideia de forma explícita. Ainda no
final dos anos 1970, alguns grupos feministas, particularmente nas cidades de São Paulo, Belo Horizonte e Rio
de Janeiro, criaram os SOS Mulher, experiências não-governamentais de atendimento às vítimas de violência e
que foram o embrião das delegacias especializadas, criadas na década seguinte.” (FENDH – Fórum Nacional de
Educação em Direitos Humanos. Protegendo as mulheres da violência doméstica. Brasília (Brasil): FNEDH;
2006). Disponível em: http://midia.pgr.mpf.gov.br/hotsites/diadamulher/docs/cartilha_violencia_domestica.pdf.
Acesso em 04/03/2019.
101
“Na esteira do processo de redemocratização, no início da década de 1980, a luta pela criação das Delegacias
de Mulheres encontrou receptividade nos Poderes Executivos estaduais, especialmente nos estados citados
acima. Tais delegacias faziam parte de um amplo rol de propostas feitas pelo movimento feminista, que entendia
que era preciso adotar um atendimento integral às mulheres. A ideia era implantar diversos serviços articulados
entre si, tais como delegacias especializadas, abrigos, atendimento no IML, centros de orientação jurídica e
psicológica. A criação de órgãos especiais, como os Conselhos Estaduais e o Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher (CNDM), que ocorreu também nos anos 1980, impulsionou a luta pela cidadania feminina e, em
especial, a luta contra a violência. Além de fortalecer as demandas das mulheres com o Estado e especialmente
os parlamentares constituintes, o CNDM desenvolveu um amplo processo educativo voltado para toda a
sociedade por meio da mídia nacional, com o objetivo de mudar mentalidades e padrões discriminatórios. Cabe
ressaltar que a ampliação da cidadania das mulheres na Constituição de 1988 foi fruto de um notável processo
político de diálogo entre a sociedade e os Poderes Executivo e Legislativo” (FENDH – Fórum Nacional de
Educação em Direitos Humanos. Protegendo as mulheres da violência doméstica. Brasília (Brasil): FNEDH;
2006). Disponível em: http://midia.pgr.mpf.gov.br/hotsites/diadamulher/docs/cartilha_violencia_domestica.pdf.
Acesso em 04/03/2019.

60
como a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM).102 No ano seguinte,
ou seja, em 1986, foi criada a primeira Casa Abrigo no Estado de São Paulo, ampliando-se
por todo o Brasil, com a finalidade de abrigar mulheres em situação de risco.103

Em 1990, com a perda do poder político do CNDM, surgem ONGs e redes de


mulheres, o que ajuda na manutenção de movimentos feministas e a articulação com institutos
internacionais, atuando de forma organizada com as Nações Unidas. Com isso, no início do
século XXI há um avanço na luta pela cidadania das mulheres, tendo o Brasil se sensibilizado
com as ações de movimentos das mulheres em situação de violência.104

Já em 1988, a Constituição Federal garantiu a igualdade entre homens e


mulheres e estabeleceu, como obrigação da União, a criação de mecanismos para frear a
violência no âmbito doméstico.105 Em 1994, o Brasil sediou, em Belém do Pará, a Convenção

102
“Decreto n.º 23.769, de 6 de agosto de 1985.
Cria a Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher.
FRANCO MONTORO, Governador do Estado de São Paulo, no uso de suas atribuições legais, com fundamento
no Artigo 89, da Lei n.º 9.717, de 30 de janeiro de 1967, e diante da exposição de motivos do Secretário da
Segurança Pública, Decreta:
Artigo 1º – É criada, na Secretaria da Segurança Pública, a Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher,
subordinada ao Delegado de Polícia Chefe do Departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São
Paulo - DEGRAN.
Artigo 2º – À Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher cabe a investigação e apuração dos delitos contra pessoa
do sexo feminino, previstos na Parte Especial, Título I, Capítulos II e VI, Seção I, e Título VI do Código Penal
Brasileiro, de autoria conhecida, incerta ou não sabida, ocorridos no Município da Capital, concorrentemente
com os Distritos Policiais.
Artigo 3º – De acordo com as disponibilidades orçamentárias e financeiras, o Delegado Geral de Polícia
promoverá a adoção gradativa das medidas necessárias à implantação da Delegacia de que trata o Artigo 1°.
Artigo 4º – Este decreto entrará em vigor na data de sua publicação.
Palácio dos Bandeirantes, 6 de agosto de 1985.
FRANCO MONTORO.”
Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1985/decreto-23769-06.08.1985.html.
Acesso em 03/abr/2019.
103
SPM – Secretária de Políticas para as Mulheres. Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as
Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. Brasília (Brasil): Ministério da
Cidadania; 2011. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-
violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 03/abr/2019.
104
“Na década de 1990, com a perda de poder político do CNDM, o surgimento das ONGs e das redes de
mulheres possibilitou, em grande medida, a manutenção e a mobilização dos diversos movimentos feministas do
país, bem como sua articulação com as instâncias internacionais. Nesse período, destaca-se também a
importância que esse movimento deu à articulação entre as áreas da saúde e da segurança e os esforços
empreendidos para atuar, de forma organizada, nas diversas conferências das Nações Unidas. Todo esse esforço
permitiu, nos primeiros anos do século 21, um avanço significativo na luta pela cidadania das mulheres e
possibilitou uma expertise no diálogo com o Estado em diferentes áreas e dimensões. Tomando como
indicadores os artigos mencionados da Convenção de Belém do Pará, após 11 anos da ratificação desse
documento pelo país, pode-se avaliar o quanto o Estado Brasileiro foi sensível à ação dos movimentos de
mulheres e às disposições dessa Convenção.” (FENDH – Fórum Nacional de Educação em Direitos Humanos.
Protegendo as mulheres da violência doméstica. Brasília (Brasil): FNEDH; 2006). Disponível em:
http://midia.pgr.mpf.gov.br/hotsites/diadamulher/docs/cartilha_violencia_domestica.pdf. Acesso em 04/03/2019.
105
CASA CIVIL. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Constituição da República Federativa do Brasil. Atos das
disposições constitucionais. Brasília (Brasil): 1988. Disponível em:

61
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de
Belém do Pará), tendo como premissas que a violência exercida contra as mulheres é um
meio de violação dos direitos humanos, sendo essa violência uma espécie de violência de
gênero, transcendendo todos os setores sociais. Representou um marco simbólico em defesa
das mulheres, tendo o Brasil ratificado os acordos à época definidos em 1995.106

Em 2002, o Programa Nacional de Combate à Violência contra a Mulher foi


criado, vinculado ao Ministério da Justiça, cujo objetivo maior era a criação das referidas
delegacias em todos os Estados, bem como de Casas Abrigos. Em 2003, a Conferência
Mundial dos Direitos Humanos, realizada em Viena, confirmou que a violência contra a
mulher era caso a ser enfrentado pelas políticas públicas. Nessa Conferência, foi elaborada a
Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher e, nesse mesmo ano, o governo
federal criou a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), cuja finalidade era combater
todas as formas de violência por meio da inclusão e valorização da mulher no País.107

Ainda em 2003, criou-se, por meio da Lei n.º 10.714, a Central de Atendimento
à Mulher (Disque 180).108 No mesmo ano, a Lei n.º 10.778 estabeleceu que seria obrigação
dos serviços de saúde, tanto públicos quanto privados, comunicarem os casos nos quais havia
suspeita ou confirmação de qualquer tipo de violência contra a mulher.109

https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf. Acesso em
04/abr/2019.
106
“A Convenção de Belém do Pará estabeleceu, pela primeira vez, o direito das mulheres viverem uma vida
livre de violência, ao tratar a violência contra elas como uma violação aos direitos humanos. Nesse sentido,
adotou um novo paradigma na luta internacional da concepção e de direitos humanos, considerando que o
privado é público e, por consequência, cabe aos Estados assumirem a responsabilidade e o dever indelegável de
erradicar e sancionar as situações de violência contra as mulheres. (...) A primeira premissa: ‘A violência contra
as mulheres constituiu uma violação dos direitos humanos’.” (BANDEIRA, Lourdes Maria, Almeida Tânia Mara
Campos de. Vinte anos da Convenção de Belém do Pará e a Lei Maria da Penha. Rev. Estud. Fem. 2015).
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2015000200501. Acesso em
10/abr/2019.
107
SPM – Secretária de Políticas para as Mulheres. Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as
Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. Brasília (Brasil): Ministério da
Cidadania; 2011. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-
violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 03/abr/2019.
108
Lei n.º 10.714, de 13 de agosto de 2003. “O Presidente da República. Faço saber que o Congresso Nacional
decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º – É o Poder Executivo autorizado a disponibilizar, em âmbito
nacional, número telefônico destinado a atender denúncias de violência contra a mulher. §1º – O número
telefônico mencionado no caput deste artigo deverá ser único para todo o País, composto de apenas três dígitos,
e de acesso gratuito aos usuários. § 2º – O serviço objeto desta Lei deverá ser operado pela Central de
atendimento à Mulher, sob a coordenação do Poder Executivo. Artigo 2º – Esta Lei entra em vigor na data de sua
publicação. Brasília, 13 de agosto de 2003.” Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.714.htm. Acesso em 19/abr/2019.
109
Lei n.º 10.778, de 25 de novembro de 2003. CASA CIVIL. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n.º 10.778,
de 24 de novembro de 2003. Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência

62
O governo brasileiro estabeleceu 2004 como o Ano da Mulher Brasileira,
sendo, inclusive, a violência doméstica elevada à categoria de tipo penal pelo Código Penal,
por meio da Lei n.º 10.886.110 Em 2005, foi realizada a I Conferência Nacional de Políticas
para as Mulheres, o que gerou a realização do I Plano Nacional de Políticas para as
Mulheres (PNPM). Por meio dele, as ações para enfrentar qualquer tipo de violência contra a
mulher passaram a abranger outros setores da sociedade, não se limitando somente às áreas de
segurança e assistência social.111 112

Após um ano, surgiu a Lei n.º 11.340/2006, nominada Lei Maria da Penha,
que criou e estabeleceu mecanismos para não somente punir, mas para prevenir a violência
doméstica e, em resposta à determinação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violência contra a Mulher, foi alterado o Código Penal.113

Em 2007, foi realizada a II Conferência Nacional de Políticas para as


Mulheres, confirmando os pressupostos e princípios da Política Nacional para as Mulheres,
já estabelecidos na I Conferência, disso surgindo o II Plano Nacional de Políticas paras as
Mulheres (PNPM). O II PNPM aumentou a atuação do governo federal nas políticas públicas
direcionadas às mulheres, incluindo outras áreas de atuação.114 Ainda nesse ano, foi lançado o

contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Brasília (Brasil): 2003b. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.778.htm. Acesso em 10/abr/2019.
110
Lei n.º 10.826, de 17 de junho de 2004. “O Presidente da República. Faço saber que o Congresso Nacional
decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º – O art. 129 do Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 –
Código Penal, passa a vigorar acrescido dos seguintes §§ 9º e 10: Art. 129. Violência Doméstica. § 9º Se a lesão
corporal for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou
tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano. §10. Nos casos previstos nos §§ 1º a 3º deste artigo, se as
circunstâncias são indicadas no § 9º deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).” Art. 2º – Esta Lei entra
em vigor na data de sua publicação. Brasília, 17 de junho de 2004. (CASA CIVIL. Subchefia para Assuntos
Jurídicos. Lei n.º 10.886, de 17 de junho de 2004. Cria no Código Penal um tipo especial denominado Violência
Doméstica. Brasília (Brasil): 2004). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2004/Lei/L10.886.htm. Acesso em 11/abr/2019.
111
SPM – Secretária de Políticas para as Mulheres. Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as
Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. Brasília (Brasil): Ministério da
Cidadania; 2011. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-
violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 03/abr/2019.
112
SEPM – Secretária Especial de Políticas para as Mulheres. Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.
Brasília (Brasil): Secretária Especial de Políticas para as Mulheres, 2004. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/planonacional_politicamulheres.pdf. Acesso em 11/abr/2019.
113
CASA CIVIL. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 11.340 (Lei Maria da Penha), de 07 de agosto de
2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília (Brasil): 2006.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em
11/abr/2019.
114
SEPM – Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.
Brasília (Brasil): Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2008. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/planonacional_politicamulheres.pdf. Acesso em 11/abr/2019.

63
Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, consistente numa
estratégia de integração e articulação entre as três esferas de governo.115

Anos depois, já em 2010, o governo, por meio da Lei n.º 12.228/2010, criou o
Estatuto da Igualdade Racial e de Gênero.116 Em 2011, realizou-se a III Conferência Nacional
de Políticas para as Mulheres, resultando no PNPM 2013-2015, confirmando os pressupostos
e princípios da Política Nacional para as Mulheres, bem como reiterando o compromisso do
País com o fortalecimento das ações por meio da gestão da transversalidade.117

Desde o ano de 2011, vigoram o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à


Violência contra a Mulher e a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a
Mulher, que não só aumentaram, mas fortaleceram as políticas públicas já existentes por meio
de novas formas de atuação como: garantir a aplicação da Lei Maria da Penha, ampliar e
fortalecer os serviços destinados às mulheres em situação de violência, garantir sua segurança
e acesso à Justiça, garantir os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, garantir a autonomia
das mulheres em situação de violência, aumentando seus direitos.118 119

A Lei n.º 13.104/2015 entrou em vigor no mês de março de 2015, alterando o


artigo 121 do Código Penal, para prever o crime de feminicídio como qualificadora do crime
de homicídio. Logo, por ser crime qualificado, já se encontra no rol dos crimes hediondos,
nos termos do que dispõe o artigo 1º da Lei n.º 8.072/90. Logo em seguida à sanção da
referida lei, a Organização das Nações Unidas (ONU) parabenizou o Brasil pelo que

115
SPM – Secretária de Políticas para as Mulheres. Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as
Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Brasília (Brasil): Ministério da
Cidadania; 2011. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-
violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 03/abr/2019.
116
CASA CIVIL. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n.º 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto
da Igualdade Racial. Brasília (Brasil): 2010. Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2010/lei/l12288.htm. Acesso em 03/abr/2019.
117
SPM – Secretaria de Políticas para as Mulheres. Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília
(Brasil): Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2013. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pnpm_compacta.pdf. Acesso em 04/abr/2019.
118
SPM – Secretária de Políticas para as Mulheres. Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as
Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. Brasília (Brasil): Ministério da
Cidadania; 2011. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-
violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 03/abr/2019.
119
(MS – Ministério da Saúde. Protocolo de Atenção Básica – Saúde das Mulheres. Brasília: Instituto Sírio-
Libanês de Ensino e Pesquisa, 2016). Disponível em:
http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/publicacoes/protocolo_saude_mulher.pdf. Acesso em 05/abr/2019.

64
denominou expressamente como um ato político que fortaleceu a Política Nacional de
Enfrentamento à Violência contra as Mulheres.120

1.3.2 Feminicídio

Nos termos, agora previsto no Código Penal, considera-se feminicídio o


homicídio praticado contra mulher por razões da condição do sexo feminino, o que, de acordo
com o § 2º-A, diz respeito ao homicídio praticado quando o crime envolve violência
doméstica e familiar, ou quando ocorre menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Ainda, a lei acrescentou o § 7º ao mesmo artigo 121, estabelecendo aumento de pena caso o
feminicídio seja praticado durante a gestação ou nos três primeiros meses após o parto; contra
pessoa menor de 14 anos, maior de 60 anos ou com deficiência; e na presença de descendente
ou ascendente da vítima.

A expressão, constante atualmente do Código Penal, por razões do sexo


feminino, alterou o projeto original que continha o vocábulo “gênero” no texto da lei. Ainda
assim, a intepretação que parte da doutrina dá à lei é a de que a qualificadora do feminicídio
não faz referência a uma questão de sexo, a qual pertence à biologia, mas relaciona-se a uma
questão de gênero, e esta refere-se à sociologia, relacionando-se ao padrão social do papel que
cada sexo desempenha.121

120
“Os desdobramentos seguintes, nas respectivas casas legislativas, foram resultados dos encaminhamentos da
CPMI. Não se pode deixar de destacar, contudo, a inegável influência do contexto internacional sobre as
políticas locais de enfrentamento, uma vez que, desde a Lei Maria da Penha, as mais diversas modalidades de
violências contra as mulheres são expressamente reconhecidas como formas de violação dos direitos humanos
(Prá e Eppig, 2012). Imediatamente após a sanção da Lei n.º 13.104/15, que, simbolicamente, deu-se no dia
Internacional das Mulheres (8 de março), a ONU Mulheres (2015) parabenizou o Brasil por aquilo que definiu
expressamente como um ‘ato político’ que fortaleceu, por sua vez, a Política Nacional de Enfrentamento à
Violência contra as Mulheres, colocando o país no rol de outras quinze nações latino-americanas que já
tipificaram a prática. A Organização dispõe, inclusive, de um extenso documento denominado Modelo de
protocolo latino-americano de investigação das mortes violentas de mulheres por razões de gênero (2014), que,
em seus próprios termos, ‘fornece diretrizes para o desenvolvimento de uma investigação penal eficaz de mortes
violentas de mulheres por razões de gênero, em conformidade com as obrigações internacionais assumidas pelos
Estados’.” (MACHADO, Isadora Vier; ELIAS, Maria Lígia G. G. Rodrigues. Feminicídio em cena. Da
dimensão simbólica à política). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v30n1/1809-4554-ts-30-01-0283.pdf.
Acesso em 29/set/2019.
121
“A expressão ‘por razões do sexo feminino’ foi colocada por parlamentares conservadores, que retiraram do
projeto a palavra ‘gênero’ do texto final da lei, muito embora o projeto original contivesse a palavra ‘gênero’.
Em que pese o texto final, a melhor interpretação da lei é aquela que confere ao texto a amplitude protetiva em
consonância com o Direito brasileiro e o internacional. Assim, corretamente assinalam Alice Bianchini e Luiz
Flavio Gomes: ‘uma vez esclarecido que a qualificadora não se refere a uma questão de sexo (categoria que
pertence à biologia), mas a uma questão de gênero (atinente à sociologia, padrões sociais do papel que cada sexo
desempenha)’.” (PAES, Fabiana. Criminalização do feminicídio não é suficiente para coibi-lo.) Disponível em:

65
A Lei n.º 13.104/2015 foi originada do Projeto de Lei n.º 8.305/14, elaborado
pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher, e trouxe
a justificativa da necessidade de uma lei específica para os crimes contra o gênero feminino
pelo aumento no número de assassinatos de mulheres, cometidos dentro de suas próprias
residências e por seus companheiros ou ex-companheiros. Em relação ao aumento no número
de assassinatos, destaca-se que, no período de 2000 até 2010, 43,7 mil mulheres foram mortas
no Brasil, vítimas de homicídio, sendo que mais de 40% delas foram assassinadas dentro de
suas casas.122

O feminicídio seria então um crime de poder, uma vez que mantém uma lógica
de poder, na qual as mulheres são submetidas aos desejos do homem. Esse crime promove
uma ocupação do território do corpo feminino normalmente por pessoas do sexo masculino,
fixando, assim, um sistema que não somente tolera, mas também promove a violência, na
medida em que torna o feminino subalterno ao masculino.123

Em estudo do IPEA de 2013, verificou-se que, entre 2009 e 2011, o Brasil teve
uma média de 16,9 mil feminicídios. Isso significa que inúmeras mulheres morreram por
questões relacionadas ao gênero feminino e, em sua maioria, os autores desses crimes foram
seus parceiros íntimos. Esse percentual significa uma média de 5,8 casos para cada grupo de

https://www.conjur.com.br/2019-mar-18/mp-debate-criminalizacao-feminicidio-nao-suficiente-coibi-lo. Acesso
em 30/set/2019.
122
“O Projeto de Lei n.º 8.305/14 (hoje Lei n.º 13.104/15) elaborado pela Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher, justificou a necessidade de uma lei específica para os crimes
relacionados ao gênero feminino, no aumento do número de assassinatos de mulheres, cometidos dentro da
própria casa das vítimas, muitas vezes por companheiros ou ex-companheiros. A CPMI destacou que, entre os
anos 2000 e 2010, 43,7 mil mulheres foram mortas no Brasil, vítimas de homicídio. Sendo que mais de 40%
delas foram assassinadas dentro de suas casas, pelos companheiros ou ex-companheiros.” (AQUINO, Quelen
Brondani de; KONTZE, Karine Brondani. O feminicidio como tentantiva de coibir a violência de gênero. Anais
da semana acadêmica: Fadisma Entrementes. ed. 12. 2015). Disponível em:
http://sites.fadisma.com.br/entrementes/anais/wp-content/uploads/2015/08/o-feminicido-como-tentativa-de-
coibir-a-violencia-de-genero-.pdf. Acesso em 11/set/2019.
123
“Como bem destacou Rita Laura Segato (2006a), o feminicídio é, claramente, um crime de poder, porque
retém, mantém ou reproduz uma lógica de poder a que as mulheres estão submetidas. A ideia de território
mobilizada por Segato (2006b) ilustra o sentido de dominação e poder que tais crimes carregam. Segundo a
autora, território não é o mesmo que espaço ou lugar, mas refere-se à administração política do espaço, ou seja,
território é espaço traçado, delimitado e controlado, seja por um sujeito individual ou coletivo. Portanto, falar em
território é falar de relações de domínio e de poder. O feminicídio revela uma ocupação depredadora dos corpos
femininos ou feminizados, uma ocupação calcada em um sistema que não só a tolera, como, ao subalternizar o
feminino, a promove.” (MACHADO, Isadora Vier; ELIAS, Maria Lígia G. G. Rodrigues. Feminicídio em cena.
Da dimensão simbólica à política). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v30n1/1809-4554-ts-30-01-
0283.pdf. Acesso em 29/set/2019.

66
cem mil mulheres.124 Infelizmente, mesmo com a criação e a entrada em vigor da Lei Maria
da Penha, este número só faz aumentar.

Em pesquisa realizada e denominada Violência contra a mulher: feminicídios


no Brasil, apresentada na Comissão de Seguridade Social da Câmara dos Deputados, o
Espírito Santo é o estado brasileiro com a maior taxa de feminicídios, 11,24 a cada 100 mil,
seguido por Bahia (9,08) e Alagoas (8,84). Já a região com as piores taxas é o Nordeste, que
apresentou 6,9 casos a cada 100 mil mulheres.125

Ainda sobre essa pesquisa, realizada com dados do Sistema de Informações


sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, ela representa inovação em relação a
estudos anteriores por incorporar duas etapas de correção, visando diminuir o menosprezo que
se dá à prática do crime de feminicídio.

Ainda em outro estudo, o IPEA avaliou o impacto da Lei Maria da Penha


sobre a mortalidade de mulheres por agressões, mesmo após a sua publicação. Constatou-se
que não houve impacto para melhoria da situação das mulheres, ou seja, não houve redução
das taxas anuais de mortalidade. Em 2016, 4.645 mulheres foram mortas no País, o que
significa uma taxa de 4,5 homicídios para cada cem mil brasileiros. Em dez anos de entrada
em vigor da Lei, houve um aumento de 6,4% de feminicídios.126

Assim, verifica-se que a prática do feminicídio assume proporções políticas e


não individuais, compreendendo-se a verdadeira natureza desse delito, que é o ultraje, a
verdadeira ofensa e desconsideração de pessoas do gênero feminino, as quais são mortas,
diariamente, não apenas pelo que são biologicamente, ou seja, não apenas por serem do

124
“Estudo preliminar do Ipea estima que, entre 2009 e 2011, o Brasil registrou 16,9 mil feminicídios, ou seja,
‘mortes de mulheres por conflito de gênero’, especialmente em casos de agressão perpetrada por parceiros
íntimos. Esse número indica uma taxa de 5,8 casos para cada grupo de 100 mil mulheres.” (IPEA – Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada). 2013. Disponível em
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&id=19873. Acesso em 03/nov/2018.
125
“A pesquisa Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil, coordenada pela técnica de Planejamento e
Pesquisa do Instituto Leila Posenato Garcia, foi apresentada na Comissão de Seguridade Social da Câmara dos
Deputados. De acordo com os dados do documento, o Espírito Santo é o estado brasileiro com a maior taxa de
feminicídios, 11,24 a cada 100 mil, seguido por Bahia (9,08) e Alagoas (8,84). A região com as piores taxas é o
Nordeste, que apresentou 6,9 casos a cada 100 mil mulheres, no período analisado.” (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – IPEA, 2013). Disponível em
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&id=19873. Acesso em 03/nov/2018.
126
“Em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no país, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada
100 mil brasileiras. Em dez anos, observa-se um aumento de 6,4%.” (IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada. Ministério do Planejamento, orçamento e gestão. Nota Técnica n.º 17: Atlas da Violência 2018.
Brasília. 2018). Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=33410&Itemid=432. Acesso
em 03/nov/2018.

67
gênero feminino, mas pelo que são impedidas de serem e de viverem na sociedade da qual
fazem parte.127

O Relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre violência


contra a mulher do Congresso Nacional define feminicídio como:

É a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da


morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse, igualando a mulher a um
objeto, quando cometido por parceiro ou ex-parceiro; como subjugação da
intimidade e da sexualidade da mulher, por meio da violência sexual associada ao
assassinato; como destruição da identidade da mulher, pela mutilação ou
desfiguração de seu corpo; como aviltamento da dignidade da mulher, submetendo-a
a tortura ou tratamento cruel ou degradante.128

O feminicídio, ainda, pode ser classificado em três situações, quais sejam: i)


feminicídio íntimo: ocorre quando existe uma relação de afeto ou mesmo de parentesco entre
a pessoa que foi assassinada e o seu algoz; ii) feminicídio não íntimo: este existe quando há
uma relação de afeto ou parentesco entre o algoz e sua vítima, mas somente ocorre o delito se
houver, no caso concreto, violência ou abuso sexual; e iii) feminicídio por conexão: este
último se dá quando uma pessoa do gênero feminino, ao tentar intervir na conduta de um
homem que desejava matar outra mulher, é morta.129

O crime de feminicídio tem características próprias, quais sejam: é praticado


com o fim de destruição do corpo feminino, com o uso de excessiva crueldade, chegando,
inclusive, a causar a total descaracterização deste; na maior parte das vezes, é feito com meios
sexuais, embora a finalidade não seja sexual; é um delito praticado nas relações íntimas de

127
“Assim, o território corporal das mulheres é violado para consumar a morte, ou efetivar sua tentativa. O
importante é ressaltar que, com base na dimensão de gênero, a conduta toma proporções políticas inegáveis, que
permitem um enfrentamento mais incisivo e eficaz, porque compreende a verdadeira natureza de um crime que
importa na despersonificação das mulheres. Mortas não pelo que são biologicamente – para usar a mesma
definição da Câmara dos Deputados –, e sim pelo que, socialmente, são impelidas a não serem.” (MACHADO,
Isadora Vier; ELIAS, Maria Lígia G. G. Rodrigues. Feminicídio em cena. Da dimensão simbólica à política).
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v30n1/1809-4554-ts-30-01-0283.pdf. Acesso em 29/set/2019.
128
BRASIL, Senado Federal. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Relatório Final. Brasília, julho de 2013.
129
“Agressões físicas e psicológicas, como abuso ou assédio sexual, estupro, escravidão sexual, tortura,
mutilação genital, negação de alimentos e maternidade, espancamentos, entre outras formas de violência que
gerem a morte da mulher, podem configurar o feminicídio. Ademais, o feminicídio pode ser classificado em três
situações:
- Feminicídio íntimo: quando há uma relação de afeto ou de parentesco entre a vítima e o agressor;
- Feminicídio não íntimo: quando não há uma relação de afeto ou de parentesco entre a vítima e o agressor, mas
o crime é caracterizado por haver violência ou abuso sexual;
- Feminicídio por conexão: quando uma mulher, na tentativa de intervir, é morta por um homem que desejava
assassinar outra mulher.” (AQUINO, Quelen Brondani de; KONTZE, Karine Brondani. O feminicídio como
tentativa de coibir a violência de gênero. Anais da semana acadêmica: Fadisma Entrementes. ed. 12. 2015).
Disponível em: http://sites.fadisma.com.br/entrementes/anais/wp-content/uploads/2015/08/o-feminicido-como-
tentativa-de-coibir-a-violencia-de-genero-.pdf. Acesso em 11/set/2019.

68
suas vítimas, nas quais estas mantêm um relacionamento com seus agressores, ou, ainda, por
alguma razão pessoal do agressor, podendo ter relação com a violência doméstica. No
feminicídio, preponderam as relações de gênero e de desigualdade; normalmente, o crime
contém situações de terror durante a sua prática, como, por exemplo, as vítimas podem ser
decapitadas, violentadas, queimadas, asfixiadas ou até mesmo esquartejadas; é um crime no
qual existe a apropriação do corpo feminino pelo agressor, como se este fosse um território
para uso do algoz e para a comercialização de tudo o que esse corpo pode oferecer; por fim,
ocorre como o ápice de um processo de terror, pelo qual passou a mulher nas mãos do
agressor.130

Quanto à última característica, cabe observar que o feminicídio, na maior parte


das vezes, tem início com ameaças, as quais evoluem para lesões corporais, normalmente
leves, que passam para graves, além de diversos outros tipos de violência, sendo que seu
término é a morte. Assim, é ele a fase final de uma relação conturbada de poder sobre o corpo
de pessoas do gênero feminino.131

Ainda, o feminicídio, na maior parte das vezes, é cometido pelo parceiro,


acontecendo, quase sempre, sem premeditação, sem semelhança com os demais casos de
homicídio, nos quais normalmente existe um planejamento. É o feminicídio o ponto final de

130
“Na prática do crime de feminicídio evidenciam-se como pressupostos importantes a premeditação e a
intencionalidade de sua consumação. Assim, salientam-se algumas características próprias desse tipo de crime: é
praticado com vistas à destruição do corpo feminino, utilizando-se de excessiva crueldade e chegando a causar a
desfiguração do mesmo; é perpetrado com meios sexuais, ainda que sem manifestar o intento sexual; é cometido
no contexto de relações interpessoais e íntimas ou por alguma razão pessoal por parte do agressor, podendo estar
associado à violência doméstica; seu caráter violento evidencia a predominância de relações de gênero
hierárquicas e desiguais; pode haver sobreposição de delitos, geradores de situações de barbárie e terror:
mulheres são estupradas, mortas, queimadas, mutiladas, torturadas, asfixiadas, mordidas, baleadas, decapitadas
etc.; e esses diversos crimes podem ocorrer concomitantemente, sobre um mesmo corpo; é um crime de
apropriação do corpo feminino pelo marido-proprietário como sendo um território para uso e/ou comercialização
em tudo o que esse corpo pode oferecer, isto é, desde a prostituição até mesmo o tráfico de órgãos; ocorre como
o ápice de um processo de terror, que inclui abusos verbais, sexuais, humilhações e uma extensa gama de
privações a que a mulher é submetida: mamilos arrancados, seios mutilados, genitália retalhada.” (AQUINO,
Quelen Brondani de; KONTZE, Karine Brondani. O feminicidio como tentativa de coibir a violência de gênero.
Anais da semana acadêmica: Fadisma Entrementes. ed. 12. 2015). Disponível em:
http://sites.fadisma.com.br/entrementes/anais/wp-content/uploads/2015/08/o-feminicido-como-tentativa-de-
coibir-a-violencia-de-genero-.pdf. Acesso em 11/set/2019.
131
“O feminicídio representa a última etapa de um continuum de violência que leva à morte. Precedido por
outros eventos, tais como abusos físicos e psicológicos, que tentam submeter as mulheres a uma lógica de
dominação masculina e a um padrão cultural que subordina a mulher e que foi aprendido ao longo de gerações.
(OLIVEIRA, DIEMINGER, 2015, p. 8) Trata-se, portanto, de parte de um sistema de dominação patriarcal e
misógino. Como bem definiu o Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a Violência
contra a Mulher (CPMI) do Congresso Nacional.” (AQUINO, Quelen Brondani de; KONTZE, Karine Brondani.
O feminicidio como tentativa de coibir a violência de gênero. Anais da semana acadêmica: Fadisma
Entrementes. ed. 12. 2015). Disponível em: http://sites.fadisma.com.br/entrementes/anais/wp-
content/uploads/2015/08/o-feminicido-como-tentativa-de-coibir-a-violencia-de-genero-.pdf. Acesso em
11/set/2019.

69
uma derrota da mulher para o homem, momento em que a mulher chegou “ao fim da linha”.
Nesses casos, as penas devem ser maiores em virtude da hipervulnerabilidade da mulher
frente ao homem.132

É sob este aspecto de magnitude do injusto, sob o ponto de vista da


inevitabilidade do resultado morte quando os envolvidos possuem discrepância física que não
permite defesa ao mais fraco, e também sob a intensificação da medida da culpabilidade, pela
covardia do ato, que se sustenta incremento de reprimenda penal. Um terceiro alicerce para o
tratamento mais gravoso é a natural diminuição da vigília dispensada em ambientes
domésticos, o que dificulta ou impossibilita a defesa da vítima. Fazendo um corte de gênero, e
outro situacional, tem-se que o ato violento contra um homem enquanto ele trafega na rua é o
que teria menos chance de se concretizar, pois é praticado contra um ser fisicamente mais
habilitado a reagir e num contexto no qual existe vigília. A situação muda quando se muda o
gênero e o local do ataque, sendo que o ataque à mulher no ambiente doméstico (ou então
realizado por aquele que já captou sua confiança) é o que tem maior chance de êxito em seu
fim. Diante desses argumentos, é evidente que a resposta penal deve ser mais enérgica no
feminicídio.

Conforme o discurso prevalente, o feminicídio é um delito do qual são vítimas


mulheres pelo simples fato de serem pessoas do gênero feminino. É considerado um crime de
ódio, de rejeição ao feminino. Caracteriza-se, como antes explanado, como sendo o ponto
máximo de uma sequência de atos violentos originados por uma relação de desigualdade, a
qual é oriunda de uma sociedade de dominação patriarcal.133

É neste ponto que se torna necessário avaliar se esta “estrutura patriarcal”,


sociologicamente defendida como verdadeira, teria o condão de aumentar a pena. A questão é

132
“O femicídio cometido por parceiro acontece, numerosas vezes, sem premeditação, diferentemente do
homicídio nas mesmas circunstâncias, que exige planejamento. Este deriva de uma derrota presumível da mulher
no confronto com o homem. No Brasil, não há pesquisas nesse sentido. Na Inglaterra, as penas para as mulheres
que cometem homicídios de seus maridos são maiores que as sentenciadas aos homens que perpetram femicídio
de suas esposas, ou uxoricídios, exatamente em razão da premeditação, que constitui agravante penal. Não
obstante os maus-tratos de que podem ter sido vítimas durante toda a vigência da sociedade conjugal, a punição é
maior em virtude da menor força física da mulher, que exige o planejamento do homicídio, ou seja, sua
premeditação.” (SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. 1ª ed. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 73).
133
“O feminicídio caracteriza-se por atingir as mulheres, pelo simples fato de serem mulheres. Constitui um
crime de ódio ao feminino. Marcela Lagarde bem descreve o feminicídio como ‘um crime de ódio contra as
mulheres por serem mulheres. Constitui o ponto culminante de um espiral de violência originada na relação
desigual entre homens e mulheres na sociedade patriarcal’.” (PAES, Fabiana. Criminalização do feminicídio não
é suficiente para coibi-lo). Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mar-18/mp-debate-criminalizacao-
feminicidio-nao-suficiente-coibi-lo. Acesso em 30/set/2019.

70
relativamente simples, trata-se da observação do fenômeno sob o ponto de vista do embate
entre determinismo e livre arbítrio. Se as pessoas estão imersas num ambiente cultural que
replica, de forma incessante, o discurso da superioridade masculina, com a contrapartida da
obediência feminina a ser obtida com o recurso da violência se preciso for, aquele que assim
agir estará atuando conforme os valores introjetados ao longo da vida. Alicerçar o necessário
repertório de medidas para debelar a violência contra a mulher na existência de um entorno
cultural que prega a naturalidade dessa mesma violência é dogmaticamente contraditório. É,
por exemplo, inverter a lógica da co-culpabilidade134.

A violência contra a mulher com base na misoginia, se opera com o fenômeno


da desumanização que se desenvolve nas seguintes etapas: de início ocorre o distanciamento
ou a indiferença diante de tais vítimas; após, vêm as diferenças, que concebem as vítimas
como distintas e estranhas; posteriormente, em um terceiro momento, elas são vistas como
inimigas ou indesejáveis; e, finalmente, são tidas como não humanas, ou seja, seres não
dotados de direitos, sendo que disso advém a mutilação, a tortura e o extermínio, sem
qualquer sentimento de culpa.135

134
“Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também
determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de determinação, posto que a
sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as
mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação,
condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e
sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma ‘co-
culpabilidade’, com a qual a própria sociedade deve arcar. Tem-se afirmado que este conceito de co-
culpabilidade é uma ideia introduzida pelo direito penal socialista. Cremos que a co-culpabilidade é herdeira do
pensamento de Marat (ver n.º 118) e, hoje, faz parte da ordem jurídica de todo Estado Social de Direito, que
reconhece direitos econômicos e sociais, e, portanto, tem cabimento no Código Penal mediante a disposição
genérica do art. 66.” (ZAFFARONI, E. R. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 8ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2009, p. 525).
135
“A cultura da misoginia (do ódio contra as mulheres) é diametralmente oposta à cultura da afetividade e do
cuidado. A essência humana é o cuidado (diz Heidegger). Mas esse cuidado exige uma excelente educação
(que é o antídoto mais poderoso à programação neurobiológica do humano para a violência – todos os países
educacionalmente evoluídos diminuíram a violência, a começar pela Europa). Educar é cultivar (afirma
Myrthes Gonzales). Podemos cultivar o que há de nobre e belo nas pessoas ou não cuidar delas, deixando -as
viver sob o império dos seus impulsos naturais. Nas escolas e nas mídias, incluindo as sociais, podemos
cultivar atitudes violentas ou reformar o medo e a sensação de impotência. O amor e o cuidado deveriam ser o
centro da educação e das comunicações. Isso requer a presença interessada e respeitosa da ética fundada na
consideração dos outros seres humanos. Em lugar de ver o ‘outro’ (ou ‘outra’”) como um ser igual, em lugar
de ver seus talentos e acreditar no potencial das pessoas e incentivá-las, estamos, em regra, no caminho
oposto, esquecendo que o alimento essencial do humano é a presença afetiva e cuidadosa do outro se r
humano. Esse alimento é importante para todas as pessoas (adultos, crianças, mulheres etc.). Somente assim
podemos começar a criar um mundo novo, a partir de nossas atitudes e gestos cotidianos (Myrthes Gonzales,
em Bem Estar – Qualidade de Vida, ano 3, n.º 11, fevereiro/15: 14).” (BIANCHINI, Alice; GOMES, Luiz
Flávio. Uma mulher é morta a cada hora no Brasil. CNJ – Conselho Nacional de Justiça). Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/87245-meta-8-tribunais-se-movimentam-para-enfrentar-a-violencia-
domestica. Acesso em 11/set/2019.

71
Para que esse processo, que atua nitidamente como uma patologia, se instale é
necessário que o infrator tenha assimilado um arsenal de justificativas, pseudo morais ou
pseudocientífícas, para validar cada etapa, e, se existe uma conjuntura sociológica
propiciando e alimentando tais pretextos, o infrator misógino, de alguma forma, agiu
conforme as expectativas. É por isso que o discurso da violência sistematizada pelo
patriarcado, se pode servir para ações preventivas e para instruir um projeto de lei, não deve
ser utilizada dogmaticamente para fundamentar sanções penais mais severas para o
feminicídio. Essa constatação está na própria elaboração de quem vincula a violência de
gênero à questão patriarcal, quando se reconhece que os abusos físicos e psicológicos, que
normalmente precedem o feminicídio, têm por fim submeter a mulher a uma situação de
dominação patriarcal masculina e a um padrão cultural de subordinação, que vem de várias
gerações.136 Tão só o fato de identificar a transcendência geracional do padrão cultural já
reforça o status de determinismo sociológico imanente no discurso que correlaciona o
patriarcado e a violência de gênero.

Assim, foram expostos os principais marcos, tanto legais quanto sociais, as


legislações que foram criadas, bem como as políticas públicas para o combate desse tipo de
violência de gênero. Infelizmente, essa violência ainda persiste e tem vitimado muitas
mulheres atualmente.

136
“Nesse prisma, resta evidente que a unidade da ordem social é mantida através da estrutura das relações
patriarcais, e nesse cenário, está comprovado que, durante séculos, as mulheres incorporaram a imagem de meros
objetos em poder dos homens, aceitando passivamente essa condição, vez que o enfoque da subordinação
patriarcal acabava por ratificar esse retrato. É oportuno, todavia, esclarecer que ainda que a dominação patriarcal
tenha surgido de um contrato, isso não quer dizer que as mulheres simplesmente aceitaram essa condição, ao
contrário, compreender como esse contrato é apresentado só é possível porque várias mulheres (especialmente as
feministas) e alguns homens têm resistido às relações patriarcais desde o século XVII.” (AQUINO, Quelen
Brondani de; KONTZE, Karine Brondani. O feminicidio como tentativa de coibir a violência de gênero. Anais
da semana acadêmica: Fadisma Entrementes. ed. 12. 2015). Disponível em:
http://sites.fadisma.com.br/entrementes/anais/wp-content/uploads/2015/08/o-feminicido-como-tentativa-de-
coibir-a-violencia-de-genero-.pdf. Acesso em 11/set/2019.

72
2 VIOLÊNCIA, GRAVIDEZ E PARTO

2.1 Aspectos históricos relacionados ao parto

O parto é um fenômeno que atravessou todas as sociedades e todos os tempos,


tendo profundas raízes na sociedade, como um evento associado à dor e à purgação feminina.
Já se encontrava no livro bíblico do Gênesis, quando Eva, o primeiro ser humano que
conheceu o pecado, de tal forma, que acabou por corromper todos os outros seres humanos
com sua atitude, ouvindo, então, de Deus a seguinte frase: e tu mulher, parirás com dor os
seus filhos.137

O parto é um dos acontecimentos mais importantes na vida de uma mulher,


constituindo-se um momento único em sua vida e na de seu filho. Ele causa forte impacto na
vida de qualquer mulher, tendo em vista que uma gestação leva em torno de trinta e sete até
quarenta e duas semanas. Durante esse tempo, a mulher espera outro ser humano e trabalha
com mudanças ocorridas em seu corpo, de ordens biológicas, psicológicas, culturais sociais e
econômicas.138

137
“O parto inscreve-se neste universo cultural mais amplo por ser um fenômeno que atravessa todas as
sociedades e tempos/espaços. Este acontecimento está tão profundamente arraigado no imaginário popular como
um evento associado à dor e à purgação feminina que já aparece no Livro Bíblico do Gênesis, quando Eva, o
primeiro ser humano que conheceu o pecado, corrompeu o resto da humanidade com sua transgressão, ouviu de
Deus: ‘e tu mulher, parirás com dor os seus filhos’.” (TEIXEIRA, Neuma Zamariano Fanaia; PEREIRA, Wilza
Rocha. Parto hospitalar: experiências de mulheres da periferia de Cuiabá-MT. Revista Brasileira de
Enfermagem [internet].2006; 59(6): 740-744). Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672006000600004&lng=pt&tlng=pt. Acesso
em 03/set/2018.
138
O parto pode ser considerado um momento importante do processo de transição para a maternidade, por
inúmeras razões. Em primeiro lugar, é o momento em que mãe e bebê vão, finalmente, poder se encontrar frente
a frente (Lebovici, 1987). Para a mulher, é o momento de se deparar com o bebê real, que gestou por 9 meses, e
que provavelmente será diferente do tão sonhado bebê imaginário, idealizado durante a gestação (Raphael-Leff,
1997). Também é o momento de se deparar com um produto seu, do seu corpo, que mostrará para o mundo sua
capacidade ou incapacidade feminina de gerar uma criança. É hora, portanto, de pôr à prova sua competência
feminina de gerar, sua competência materna de cuidar, e sua competência física de suportar as dores, resistir à
retaliação de seus órgãos genitais e, ainda, nutrir seu filho através da amamentação (Peterson, 1996; Simkin,
1991; Stern, 1997). Além disso, o nascimento de um filho, principalmente do primeiro, inaugura definitiva e
concretamente a maternidade, e esse fato vem acompanhado de todo o status e toda a pressão social do papel de
mãe. A mulher se vê obrigada a abandonar seu papel de filha e assumir o de mãe (Brazelton & Cramer, 1992;
Klaus & Kennell, 1993). Mas o parto também dá à mulher a oportunidade de reviver seu próprio nascimento e de
renascer como mulher, além de nascer como mãe (Birksted-Breen, 2000; Maldonado, 1994; Maldonado,
Dickstein & Nahoum, 1996). (LOPES Rita de Cássia Sobreira, Donelli Tagma Schneider, Lima Carolina
Mousquer, Piccinini Cesar A. O antes e o depois: expectativas e experiências de mães sobre o parto. Psicol.
Reflex. Crit. v. 18, n.º 2, Porto Alegre, maio/ago. 2005). Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722005000200013&lng=pt. Acesso em:
19/ago/2019.

73
Na Europa, até o século XVIII, havia uma hierarquia para a realização do
parto, e, assim, os físicos ficavam no topo, uma vez que detinham formação teórica, seguidos
dos cirurgiões, que atuavam em cirurgias, e, abaixo destes, vinham os boticários ou
apotecários, os quais fabricavam e comercializavam remédios. Nessa época, o parto não era
considerado um ato médico, pois era feito por parteiras. Só eram chamados os cirurgiões-
parteiros em caso de complicações e, mesmo assim, as mulheres morriam no parto.139

Assim, o parto é uma atividade que acompanhou a história da própria


humanidade e, principalmente, a da mulher. Ele permaneceu, por muitos anos, sendo
considerado uma atividade exclusivamente de mulheres e feita por mulheres, na pessoa das
parteiras. Desse modo, a prática da obstetrícia somente passou a ser realizada por médicos, e,
dentre estes, os homens, em um primeiro momento, na Europa, a partir dos séculos XVII e
XVIII. No Brasil, a atividade da medicina obstétrica chegou com a criação das Escolas de
Medicina e Cirurgia nos Estados da Bahia e do Rio de Janeiro, em 1808. Aqueles que
exerciam a medicina, naquela época, eram chamadas de parteiros ou médicos-parteiros.140

Com o decorrer do tempo, surgiram as primeiras maternidades na Inglaterra,


nos Estados Unidos, na França e na Alemanha, na segunda metade do século XIX, passando a
atrair cada vez mais mulheres, pois, na medida em que o atendimento melhorava, o momento
do parto ganhava em qualidade e segurança. Isso ocorreu devido à assepsia, ao uso de
anestesia e às operações obstétricas, pois, quando bem feitas, resolviam partos perigosos.
Nesse contexto, surge o obstetra, que passa a ocupar o lugar do antigo cientista. Ademais, o

139
“A prática da medicina europeia, até o século XVIII, tinha uma estrutura tripartite e hierárquica: os físicos, no
topo da hierarquia, eram poucos afeitos aos conhecimentos práticos e aos corpos doentes, e tinham uma
formação excessivamente teórica e erudita; os cirurgiões, com status inferior ao do físico, atuavam nas cirurgias,
sangrias, purgas e aplicações de loções e emplastros; os boticários ou apotecários carregavam o estigma do
comércio e realizavam a fabricação e a comercialização de remédios (Coelho, 1999; Martins. 2004). O parto, um
ritual de mulheres, não era considerado um ato médico, e ficava a cargo das parteiras. Quando havia
complicações ou dificuldades no parto, os cirurgiões-parteiros, eram chamados a intervir. Essas intervenções
eram quase sempre tão ineficazes quanto as das parteiras, e, normalmente o papel dos cirurgiões-barbeiros era
retirar um feto vivo de sua mãe morta (Domingues, 20002).” (MAIA, Mônica Bara. Humanização do parto –
política pública, comportamento organizacional e ethos professional). Disponível em: books.
Scielo.org/id/pr84/pdf/maia-9788575413289.pdf. Acesso em 30/dez/2019.
140
“A arte de partejar é uma atividade que acompanha a história da própria humanidade e, particularmente, da
história da mulher. Por muito tempo, esta arte foi considerada uma atividade eminentemente feminina,
tradicionalmente realizada por parteiras. Segundo Bessa e Ferreira², o processo de incorporação da prática
obstétrica pelos médicos deu-se inicialmente na Europa, nos séculos XVII e XVIII, estendendo-se ao Brasil, com
a criação das Escolas de Medicina e Cirurgia nos Estados da Bahia e do Rio de Janeiro, em 1808. Assim, eram
aqueles que exercessem essa atividade denominados de parteiros ou médicos-parteiros.” (WOLFF, Leila Regina;
MOURA, Maria Aparecida Vasconcelos. A institucionalização do parto e a humanização da assistência: revisão
de literatura, 2004). Disponível em: file:///D:/Users/m313790/Downloads/v8n2a16.pdf. Acesso em 06/ago/2018.

74
médico é um conhecedor da mulher em sua anatomia, mormente no momento delicado do
parto.141

No século XIX, o parto, assim como tudo o que dele era derivado, passou a ser
encarado pelas mulheres como uma fatalidade, da qual elas eram vítimas e não podiam
escapar. O parto era uma experiência privada de cada mulher, uma vez que esta dava à luz a
seus filhos com ajuda de outras mulheres, as quais faziam todos os esforços para que aquela
que estava parindo tivesse todo o apoio necessário. Nessa época, havia uma verdadeira
solidariedade feminina, atrelada a todo o processo do parto. Dessa forma, o parto não passava
de um evento doméstico, no qual a dor era algo inevitável, mas, em contrapartida, havia
compreensão por parte de outras mulheres. Assim, no Brasil, a realização do parto
permaneceu nas mãos de parteiras por todo o século XIX. 142

A entrada dos médicos (na maioria da vezes, do sexo masculino), nas salas de
parto, associada ao uso de instrumentos durante esse processo, gerou o fim da sua
feminização, relegando as parteiras a um segundo plano, bem como colocando à margem de
tudo a comunidade das mulheres, durante o nascimento de seus filhos. Chegando ao século
XX, o parto hospitalar passou a predominar, principalmente na Segunda Guerra Mundial.
Essa mudança de paradigma levou à criação de condições para a inclusão de alguns
procedimentos antes desconhecidos, como a episiotomia e o fórceps profilático. O parto
normal, que antes era privilégio das parteiras, passa a ser um ato privativo de médicos. Mas,

141
“Os hospitais para mulheres e maternidades foram criados na Inglaterra, nos Estados Unidos, na França e na
Alemanha, durante a segunda metade do século XIX, atraindo um número maior de mulheres à medida que o
atendimento melhorava em qualidade e segurança devido à assepsia, ao uso de anestesia durante o parto e às
operações obstétricas que, quando bem realizadas, resolviam rapidamente partos complicados e potencialmente
perigosos (Martins, 2005). Fechava-se um ciclo, iniciado com os cirurgiões parteiros do século XVIII, munidos
de alguns poucos instrumentos e vagos conhecimentos sobre o corpo feminino. O obstetra do fim do século XIX
foi capaz de ocupar, no imaginário social, o lugar do cientista, do homem culto, piedoso e protetor da mulher.
Além disso, imagina-se o médico como o conhecedor da mulher na sua anatomia, na sua fisiologia e na sua
alma, principalmente quando atormentada pelas dúvidas da gravidez e pelos receios quanto ao parto (Martins,
2005; Marques, 2005). (MAIA, Mônica Bara. Humanização do parto – política pública, comportamento
organizacional e ethos professional). Disponível em: books. Scielo.org/id/pr84/pdf/maia-9788575413289.pdf.
Acesso em 30/dez/2019.
142
“No século XIX, a vivência do parto e tudo o que nele ocorria era aceito pelas mulheres como uma fatalidade,
algo do qual não se podia fugir. Era uma vivência privada da mulher que paria com o apoio de outras mulheres,
que faziam todos os esforços para que a parturiente tivesse o maior conforto possível durante o evento. Havia
uma cultura de solidariedade feminina profundamente associada ao processo de nascer, o que lhe conferia o
status de ser esse um evento doméstico, onde a dor podia ser inevitável, mas o entorno era de apoio e
compreensão.” (TEIXEIRA, Neuma Zamariano Fanaia; PEREIRA, Wilza Rocha. Parto hospitalar: experiências
de mulheres da periferia de Cuiabá-MT. Revista Brasileira de Enfermagem [internet]. 2006; 59 (6): 740-744).
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
71672006000600004&lng=pt&tlng=pt. Acesso em 03/set/2018.

75
como ainda não havia médicos em todos os lugares do Brasil, nesses locais as enfermeiras
realizam, ainda, o parto normal.143

Assim, na época em que o parto era feito em casa, por parteiras, as famílias
tinham muitos filhos, para que alguns deles pudessem resistir às difíceis condições da vida da
época, como as doenças, pois não havia antibióticos para prevenir e curar todas as infecções
ou doenças. Desde essa época, passou-se à realização de partos em hospitais. Com o avanço
da ciência, a criação de mais medicamentos, bem como a melhoria das condições de vida,
conseguiu-se registar uma redução real da mortalidade materna e neonatal.144

A partir do momento em que a presença masculina passou a integrar o contexto


do parto, isso passou a ser interpretado com certo desconforto pelas parturientes, pois era algo
atípico e visto fora dos padrões do que todos achavam como normal. Antes dos cirurgiões, na
maior parte das sociedades primitivas, os médicos eram os sacerdotes que auxiliavam as
parteiras na hipótese de ocorrer alguma intercorrência durante o parto. A esses médicos foi
atribuída a invenção dos primeiros instrumentos embriotômicos.145

143
“Osava escreve sobre o fim da feminização do parto dizendo que a entrada dos médicos e seus instrumentos
em cena levou as parteiras para segundo plano e marginalizou a comunidade de mulheres dos acontecimentos
que marcavam o nascimento. No século XX, passou a predominar o parto hospitalar, sobretudo após a Segunda
Guerra Mundial. A mudança criou condições para a inclusão de rotinas cirúrgicas no parto, como a episiotomia e
o fórceps profilático. O ato de dar à luz, antes uma experiência profundamente subjetiva e de uma vivência no
ambiente domiciliar para a mulher e sua família, transformou-se em experiências no âmbito hospitalar, em
momento privilegiado para o treinamento de acadêmicos e residentes de medicina e obstetrizes.” (WOLFF, Leila
Regina; MOURA Maria Aparecida Vasconcelos. A institucionalização do parto e a humanização da assistência:
revisão de literatura, 2004). Disponível em: file:///D:/Users/m313790/Downloads/v8n2a16.pdf. Acesso em
06/ago/2018.
144
“No final do século XIX, a maioria dos partos era atendida no domicílio, por parteiras. Dar à luz fora de casa
era anormal, apavorante e acontecia apenas em situações extremas. O médico era chamado somente em casos
complicados, quando a parteira não conseguia resolver o problema. Social e economicamente mais acessível que
o médico, a parteira tinha a vantagem de ajudar com as tarefas domésticas, substituindo ou auxiliando a mulher
por algum tempo após o parto, estas atendiam em domicílio ou recebiam as parturientes em suas casas. Nessa
época, o ambiente hospitalar não constituía um lugar seguro para a mulher dar à luz. Em São Paulo, apenas em
1894 foram instalados leitos obstétricos na Maternidade São Paulo, onde os partos normais eram realizados por
parteiras, e os complicados, por médicos. Nas primeiras décadas do século XX, teve início a transição do parto
doméstico para o parto hospitalar, acompanhado de mudanças graduais nos hábitos das mulheres. Foram sendo
adotados costumes de frequentar os consultórios de obstetras e pediatras, o uso de medicamentos e o consumo de
produtos da indústria de higiene e alimentação infantil.” (LEISTER, Natalie; RIESCO, Maria Luiza Gonzalez.
Assistência ao parto: história oral de mulheres que deram à luz nas décadas de 1940 a 1980). Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.pid=S0104-070720130001000020&script=sci_arttex&ting=pt. Acesso em
03/set/2018.
145
“Rezende descreve que a presença masculina no parto era vivida com inquietude pelos presentes, pois
significava que algo fora dos padrões da normalidade estava acontecendo. Antes dos cirurgiões, na maioria das
sociedades primitivas, eram os médicos sacerdotes que auxiliavam as parteiras nas situações de anomalias no
parto. A esses médicos foi atribuída a invenção dos primeiros instrumentos embriotômicos. No Brasil, a
realização do parto permaneceu nas mãos de parteiras por todo o século XIX.” (WOLFF, Leila Regina; MOURA

76
Quando se refere ao parto, a experiência de dar à luz é extremamente
importante na vida de qualquer mulher. Diante disso, por ser um turbilhão de emoções, ela
não é esquecida e, ao contrário, é lembrada por vários anos. O parto é assim tão especial que,
quando a gestação termina, os níveis de ansiedade ou medo, podem, ajudar na identidade da
mulher, acarretando benefícios ou danos psicológicos.146

A gestação como um todo é composta por várias fases, como cursos e


preparação pré-natal, juntamente com histórias anteriores vivenciadas pela gestante, podendo
culminar uma gravidez prévia ou a termo. Como formas de experiência, devem ser levados
em consideração o tipo de parto, além de experiências passadas em partos anteriores, o que
pode influenciar em como será o momento do parto.147

Ademais, o trabalho de parto é um ato fisiológico, o que, na maioria dos casos,


requer a internação da mulher em um hospital. Com isso, a mulher fica mais distante de sua
família, uma vez que, na maioria das maternidades, a presença dos familiares, durante o
trabalho de parto, não é permitida. Na verdade, quando a parturiente é internada, para que se
realize o parto, ela perde a sua identidade, passando a ser tratada como apenas um número ali,
podendo, com isso acarretar consequências negativas para a sua vida.148

Maria Aparecida Vasconcelos. A institucionalização do parto e a humanização da assistência: revisão de


literatura, 2004). Disponível em: file:///D:/Users/m313790/Downloads/v8n2a16.pdf. Acesso em 06/ago/2018.
146 “O parto é uma experiência extremamente importante na vida de uma mulher. A experiência de dar à luz é
tão marcante que, durante anos, o evento e os sentimentos experimentados durante o nascimento do bebê serão
lembrados nos mínimos detalhes (Kitzinger, 1987). O parto, por sua natureza, não é um evento neutro – ele tem
força para mobilizar grandes níveis de ansiedade, medo, excitação e expectativa e, por sua intensidade, pode
ajudar na reformulação da identidade da mulher (Peterson, 1996).” (LOPES Rita de Cássia Sobreira, Donelli
Tagma Schneider, Lima Carolina Mousquer, Piccinini Cesar A. O antes e o depois: expectativas e experiências
de mães sobre o parto. Psicol. Reflex. Crit. v. 18, n.º 2, Porto Alegre maio/ago. 2005). Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722005000200013&lng=pt. Acesso em:
19/ago/2019.
147
“A experiência do parto é influenciada por vários fatores, dentre os quais, destacam-se os procedimentos
obstétricos, os cursos de preparação pré-natal, a história obstétrica anterior, bem como o desfecho de uma
gravidez prévia (Fisher & cols., 1997). Outros autores também apontaram para o impacto do tipo de parto e das
intervenções obstétricas sobre a experiência do parto (Mercer, Hackley & Bostrom, 1983). Além desses fatores,
a própria gestação e as expectativas alimentadas em relação ao parto e ao bebê durante esse período podem
influenciar a maneira como o parto será experienciado (Maldonado, 1994). Os temores mais comuns da gravidez
têm relação estreita com as fantasias que surgem no período final da gestação. Para Soifer (1992), o temor à
morte, à dor, ao esvaziamento e à castração, são temas típicos das fantasias desse período.” (LOPES Rita de
Cássia Sobreira, Donelli Tagma Schneider, Lima Carolina Mousquer, Piccinini Cesar A. O antes e o depois:
expectativas e experiências de mães sobre o parto. Psicol. Reflex. Crit. v.18 n.2 Porto Alegre maio/ago. 2005).
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722005000200013&lng=pt.
Acesso em: 19/ago/2019.
148
“O trabalho de parto, apesar de ser um ato fisiológico, atualmente, requer a internação da mulher em uma
maternidade, porém essa forma de assistência ao parto contribui para que a parturiente fique distante da família,
pois, na maioria das maternidades, a presença dos familiares nas salas de parto não é permitida. Na verdade, a
parturiente, ao ser internada, passa a ser um caso, recebe um número de identificação, o que, provavelmente,

77
A partir do momento em que se pode impor qual o tipo de parto que a
parturiente se submeterá, é comum que ela sofra com o medo de sentir a dor do parto. Desse
modo, a realização de partos em hospitais assusta as mulheres, pois elas são colocadas em um
ambiente desconhecido, onde só existem pessoas estranhas. Desse modo, o fato de o parto
normal, que antes era realizado na residência, ter passado para a realização em hospitais, faz
com que o processo do parto passe para o controle dos médicos, que, na maior parte das
vezes, sequer se importam com as pacientes.149

Por causa da mudança ocorrida no processo do parto, como a passagem do


parto domiciliar para o parto hospitalar, isso gerou uma perda da identidade da mulher, o que
se tornou, na maioria das vezes, uma experiência desumana para muitas mulheres, pois retira
totalmente o seu controle desse processo. Na verdade, o parto e tudo o que dele decorre passa
a pertencer à medicina, sendo o médico o principal personagem de todo esse fenômeno.150

Diante do cenário que se impõe, a mulher passou a crer na necessidade de ter


seus filhos em um hospital, local em que haveria maior segurança. No entanto, é exatamente
do ambiente hospitalar, onde, em tese, deveria haver mais respeito à mulher, é que ela é,
normalmente, vítima de desrespeito e de humilhação. Com isso, o parto transforma-se em
uma cultura de dor e de sofrimento, como uma espécie de fatalidade pela qual todas as
parturientes terão de passar.151

influencia nas suas atitudes.” (BEZERRA, Maria Gorette Andrade; CARDOSO, Maria Vera Lúcia Moreira
Leitão. Fatores culturais que interferem nas experiências das mulheres durante o trabalho de parto e partos.
Rev. Latino-am Enfermagem. v. 14, n.º 3, p. 14). Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692006000300016. Acesso em 05/ago/2018
149
“Nos dias atuais, o medo de sofrer durante este evento, não só assusta as parturientes, mas provavelmente,
vêm lhes impondo uma vivência solitária em um ambiente desconhecido, no qual são cercadas por pessoas
também desconhecidas, caracterizando uma mudança cultural. Na passagem do parto normal domiciliar para o
hospital, o controle da parturição, foi assumido pelos profissionais de saúde, que, comumente, não consultam a
parturiente sobre suas preferências ou sentimentos em relação ao que vivem.” (TEIXEIRA, Neuma Zamariano
Fanaia; PEREIRA, Wilza Rocha. Parto hospitalar: experiências de mulheres da periferia de Cuiabá-MT.
Revista Brasileira de Enfermagem [internet]. 2006; 59(6): 740-744). Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672006000600004&lng=pt&tlng=pt. Acesso
em 03/set/2018.
150
“Pelos fenômenos sócio-históricos relatados, podemos constatar que várias distorções surgiram e culminaram
com o processo de despersonalização da mulher na parturição, caracterizando elementos que podem ser
explicitados no seu conjunto como uma experiência alienante e mesmo desumana, pois se expropriou da mulher
o processo de parir que foi incorporado pela medicina, sendo hoje o médico a figura central do fenômeno da
parturição.” (TEIXEIRA, Neuma Zamariano Fanaia; PEREIRA, Wilza Rocha. Parto hospitalar: experiências de
mulheres da periferia de Cuiabá-MT. Revista Brasileira de Enfermagem [internet].2006; 59(6): 740-744).
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
71672006000600004&lng=pt&tlng=pt. Acesso em 03/set/2018.
151
“Dessa forma, a parturição no ambiente hospitalar transformou-o em um evento médico e medicalizado,
solitário e despersonalizado. As mulheres acreditam que precisam ter seus filhos no hospital, pois este é o local
culturalmente trabalhado como o de ‘maior segurança’, logo o lugar certo. Mas neste ambiente, como pudemos

78
Essa mudança de paradigma cria uma relação de assimetria, que é considerada
não apenas entre homens e mulheres, mas é possível que ocorra entre mulheres também,
quando estas assumem uma posição de superioridade, como profissionais de saúde, durante a
gestação ou o processo de parto. Diante da relação de assimetria, os profissionais de saúde
não se preocupam com as necessidades das gestantes, as quais se sentem inseguras e
desamparadas nesse momento.152

Assim, apesar do entendimento de algumas mulheres de que o hospital é


considerado como o melhor lugar e o mais seguro para se ter um filho, muitas delas,
submetem-se a algum sofrimento, sentindo-se abandonadas, ou mesmo com medo de morrer,
ou de ter seu filho morto, além da angústia que sentem quando veem suas expectativas
frustradas naquele momento.153

Assim, e para finalizar este subtítulo, o parto passou por uma longa evolução, e
as transformações se seguiram, acompanhando as sociedades de cada época. Uma das maiores
mudanças, ocorrida no final do século passado, foi um aumento exagerado na incidência de
partos cesáreos, sem indicação médica. Dessa forma, além de ter caráter biológico, o parto
também tem um aspecto social, pois, na era da tecnologia, as gestantes têm acesso à

perceber ao longo da pesquisa, as mulheres são frequentemente destratadas e desrespeitadas nas suas
necessidades mais básicas. São muitos os conteúdos que revelam que essa vivência vem se configurando em uma
cultura, traduzida pela dor e pelo sofrimento, uma quase fatalidade pela qual todas as parturientes terão que
passar. Voltamos assim ao século XIX, com o agravante que agora não há mais o apoio e o conforto das amigas
e vizinhas, como veremos ao longo do processo de análise dos dados. Assim, foi nosso objetivo analisar, a partir
dos discursos de mulheres residentes na periferia de Cuiabá-MT, vários dos aspectos culturais subjetivos e
objetivos que atravessaram suas vivências ao passar pela experiência do parto normal em instituições públicas
hospitalares ou conveniadas com o SUS.” (TEIXEIRA, Neuma Zamariano Fanaia; PEREIRA, Wilza Rocha.
Parto hospitalar: experiências de mulheres da periferia de Cuiabá-MT. Revista Brasileira de Enfermagem
[internet].2006; 59(6): 740-744). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
71672006000600004&lng=pt&tlng=pt. Acesso em 03/set/2018.
152
“Esta relação de assimetria constata que as relações de gênero não se verificam somente entre homens e
mulheres; situam-se igualmente entre mulheres, igualadas na condição feminina, mas desigualadas, então, pelo
intercruzamento em especial da raça e da classe social. Essas relações desiguais verificam-se também entre as
categorias de enfermagem, estendendo essa relação assimétrica entre a enfermeira e demais membros da classe e
a usuária. Na entrevista a seguir, fica evidente que ambos profissionais não detêm seu olhar para as necessidades
de ordem psíquica, e por vezes nem às físicas, tão necessárias nesse momento em que se sentem tão inseguras,
assim diz a entrevistada.” (TEIXEIRA, Neuma Zamariano Fanaia; PEREIRA, Wilza Rocha. Parto hospitalar:
experiências de mulheres da periferia de Cuiabá-MT. Revista Brasileira de Enfermagem [internet].2006; 59(6):
740-744). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
71672006000600004&lng=pt&tlng=pt. Acesso em 03/set/2018
153
“Por ser o hospital culturalmente associado ao melhor lugar para ter um filho, como se percebe nas vivências
de mulheres que se submeteram ao parto normal no hospital, ele também é o pior lugar, onde há sofrimento,
abandono, medo, angústia, principalmente quando a realidade não correspondia às suas expectativas.”
(TEIXEIRA, Neuma Zamariano Fanaia; PEREIRA, Wilza Rocha. Parto hospitalar: experiências de mulheres da
periferia de Cuiabá-MT. Revista Brasileira de Enfermagem[internet].2006; 59(6): 740-744). Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672006000600004&lng=pt&tlng=pt. Acesso
em 03/set/2018.

79
informação e aos serviços de saúde, o que lhes permite que escolham qual tipo de parto que
querem, nada podendo lhes ser imposto. Mas, qual a diferença entre parto normal e
cesáreo?154

2.1.1 Parto normal ou cesáreo?

Como é de costume, quando uma mulher está gestante e chega a hora do parto,
ela tem como finalidade ter um parto tranquilo, sem problemas e realizado rapidamente, sem
dor. Mas mulheres têm medo do parto, ou por experiências anteriores ou por ouvirem dizer de
outras pessoas que passaram por alguma experiência. Por esse motivo, escolhem um parto a
outro. Desse modo, muitas parturientes preferem o parto normal ao cesáreo, por terem uma
recuperação mais rápida, mas as que preferem o parto cesáreo o fazem exatamente pelo medo
da dor.155

154
“O ato do parto passou historicamente por modificações de acordo com as características e disposições da
sociedade de cada época. Desde as últimas décadas do século XX, tem-se observado um aumento exponencial da
incidência de cesáreas no mundo, muitas delas sem indicação estrita (GRIBOSKI; GUILHEM, 2006). No Brasil,
essa incidência chegou a 34% de 2008 a 2009 e, em Juiz de Fora, 43,1% em 2009, mas apenas 15,4% entre 2008
e 2009 se deram por se tratarem de gestação de alto risco (BRASIL, 2010). Muito além de acontecimentos
meramente biológicos, a gravidez e o parto englobam também aspectos sociais – acesso à informação e aos
serviços de saúde – e culturais – como padrões de comportamento e valores transmitidos coletivamente, que se
modificam com o tempo (BEZERRA; CARDOSO, 2006). A dimensão sócio-cultural é capaz de interferir na
afinidade que a mulher terá por certo tipo de parto, contribuindo para a formação de mitos, crenças e opiniões
que reverberam na experiência singular de cada gestação (CÂMARA; MEDEIROS; BARBOSA, 2000).”
(FIGUEIREDO, Nathália Stela Visoná de; BARBOSA, Míriam Cristina de Almeida; SILVA Thaís Aparecida de
Souza. Fatores culturais determinantes da escolha da via de parto por gestantes). Disponível em:
file:///C:/Users/peric/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Downloa
ds/1146-Manuscrito%20sem%20identificação%20dos%20autores-6693-1-10-20110506%20(1).pdf. Acesso
em 04/set/2018.
155
“Primeiramente, quanto à expectativa das gestantes com relação ao parto, as falas indicaram o anseio por um
parto ‘tranquilo’, rápido e sem intercorrências, além do desejo de bem-estar para mãe e bebê. Neste ponto houve
consonância entre as mulheres entrevistadas. (…) Trata-se de um estudo descritivo com abordagem qualitativa
realizado no período de agosto de 2009 a julho de 2010 com 30 gestantes (20 multíparas e 10 nulíparas)
acompanhadas em ambulatório de pré-natal de um serviço público de referência em Ginecologia e Obstetrícia de
Juiz de Fora, Minas Gerais. Foram selecionadas, de forma aleatória, mulheres maiores de 18 anos com 30 ou
mais semanas de gestação, que aderiram por meio de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A
pesquisa conta com a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa – UNIPAC/ Barbacena n.° 458/09. (…)
Quando perguntadas sobre o melhor tipo de parto, na sua percepção, 67,0% (p<0,05; 91.65, 2) (Gráfico 1) das
gestantes deste estudo referiram-se ao parto normal como mais fisiológico para a mãe e o bebê. (…) Por sua vez,
23,0% (p<0,05; 91.65, 2) (Gráfico 1) consideram a cesárea a melhor via de parto. São determinantes desta
preferência: o medo em relação à dor do parto normal, experiências anteriores, a segurança e a agilidade no
processo. (…) Quanto à preferência pelas vias de parto, 60,0% das nulíparas indicaram o normal, enquanto
20,0% a cesárea; outros 20% referiram não saber a via de parto preferencial (p<0,05; 65.65, 2). Já 70,0% das
multíparas indicaram o normal e 25,0% a cesárea, sendo que 5% não souberam referir uma preferência (p<0,05;
105.9, 2). Há diferença na percepção das vias de parto de acordo com a ‘bagagem de vida’ individual,
impactando consecutivamente no tipo de parto preferido, conforme se observa também em números absolutos no
Gráfico 4.” (FIGUEIREDO, Nathália Stela Visoná de; BARBOSA, Míriam Cristina de Almeida; SILVA Thaís
Aparecida de Souza. Fatores culturais determinantes da escolha da via de parto por gestantes). Disponível em:
file:///C:/Users/peric/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Downloa

80
De outro lado, considerando-se aspectos biológicos, além dos psicológicos,
sociais, culturais, o parto é visto como um fenômeno ainda cercado de crenças e mitos, além
de sofrer influência de fatores externos, como o medo, as informações recebidas por parentes
e amigos, as experiências de gestações anteriores e características da instituição na qual será
realizado. Disso deriva a escolha da mulher com relação ao tipo de parto.156

A associação da ausência de dor com a cesárea vem sendo difundida pelos


profissionais da saúde que detêm o poder de influenciar na saúde da população feminina
brasileira. Há uma discrepância entre o número de partos normais nos hospitais públicos e
conveniados quando comparados aos hospitais particulares e, nestes, as cesarianas são ainda
mais frequentes, pois pode-se pagar por elas.157

A origem do parto cesáreo é controvertida. Os primeiros vestígios da existência


do parto cesáreo em mulheres vivas, segundo alguns, datam do século II a.C. até o século V
d.C. Posteriormente, surgiram três teorias para explicá-la. A primeira delas, deriva de uma
lenda, na qual Caio Júlio César teria nascido por meio dessa operação, mas parece não ser
verdadeira, uma vez que a cesárea era feita somente em mulheres mortas e a mãe dele viveu
até os 55 anos. 158

ds/1146-Manuscrito%20sem%20identificação%20dos%20autores-6693-1-10-20110506%20(1).pdf. Acesso
em 04/set/2018.
156
“Ao envolver aspectos biológicos, psicológicos, sociais, culturais, entre outros, o parto é considerado, por
vários autores, um fenômeno cercado de mitos e crenças, que são influenciados por fatores como medo,
informações recebidas de parentes e amigos, experiências de gestações anteriores e características da instituição
onde será realizado (CAMARA; MEDEIROS; BARBOSA, 2000). Abordaram-se vários desses aspectos no
estudo realizado. As expectativas das gestantes são por um parto ‘tranquilo’, rápido, sem dor ou intercorrências.
O ‘medo da dor’, durante ou após o parto, torna-se, inclusive, um fator de peso na preferência da gestante pelo
parto vaginal ou pela cesárea.” (FIGUEIREDO, Nathália Stela Visoná de; BARBOSA, Míriam Cristina de
Almeida; SILVA, Thaís Aparecida de Souza. Fatores culturais determinantes da escolha da via de parto por
gestantes). Disponível em:
file:///C:/Users/peric/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Downloa
ds/1146-Manuscrito%20sem%20identificação%20dos%20autores-6693-1-10-20110506%20(1).pdf. Acesso
em 04/set/2018.
157
“No Brasil, o parto normal está associado à figura de dor e sofrimento que, pelo caráter fisiológico do evento,
impõe à mulher um comportamento de superação frente à dor do trabalho de parto. Interpretada socialmente
como ‘fisiológica’, ou seja, como parte da natureza do evento, gera conflitos de natureza afetiva, emocional e
metabólica, expõe a fragilidade das mulheres frente à sua percepção pessoal e favorece a representação feminina
do parto com base em medos e mitos como, por exemplo, a crença de que a cesárea decidida e agendada com
antecedência proporcionará um ‘parto sem dor’.” (PEREIRA, Raquel da
Rocha; FRANCO, Selma Cristina; BALDIN, Nelma. A dor e o protagonismo da mulher na parturição).
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-70942011000300014. Acesso em
03/set/2018.
158
“A origem do termo operação cesariana é obscura e controversa. Há três teorias principais para explicá-la. A
primeira, e mais popular, provavelmente é uma lenda. Prega que Caio Júlio César (100-44 a.C) teria nascido por
meio dessa operação (Figura 3). Entretanto, naquela época a cesariana só era praticada após a morte materna e,
segundo Plínio, o Velho (28-70 a.C), sua mãe, Aurélia, teria vivido por mais 55 anos, a tempo de vê-lo

81
Uma segunda teoria sugere que o termo cesárea se deve à Lex Regia, ou lei dos
reis, de Roma, que determinava que o procedimento da cesárea deveria ser executado para
salvar a criança, quando a mãe vinha a óbito nas últimas semanas da gestação. Essa lei,
posteriormente, foi chamada de Lex Cesarea, o que originou o termo cesariana.159

Um terceiro posicionamento dá conta de que a palavra cesárea deriva do latim


caedere, que significa cortar. Crianças que nasciam por cesárea post mortem foram
consideradas “não-nascidas” até o século XVII. Ainda existe um entendimento de que a
origem vem de Nero, o qual teria mandado assassinar sua mãe para abrir-lhe o ventre para ver
de onde teria sido gerado.160

Assim, o aumento do número de cesáreas, nos últimos tempos, não é


justificado com base na medicina, assim como também a realização de laqueadura tubária no
momento da realização da cesárea. Dentre as razões que levam as gestantes à escolha do parto
cesáreo, além da ausência da dor, está o desejo de realização de laqueadura. Muito embora
isso seja verdadeiro, e aconteça na prática, a Portaria n.º 144/97, do Ministério da Saúde,
proíbe a realização de esterilização durante procedimento cirúrgico, quer seja parto ou aborto,
salvo caso de extrema necessidade.161

conquistar a Gália. O nome ‘César’ se originou, de acordo com Plínio, de um antepassado que nasceu por
cesariana. A História Augusta (biografia de imperadores romanos) sugere três explicações alternativas: que o
primeiro César tinha uma cabeça cheia de cabelos (do latim, caesaries); que tinha brilhantes olhos cinzentos (do
latim, oculis caesiis), ou que ele matou um elefante (caesai, em mouro) na batalha. César emitiu moedas com
imagens de elefantes, sugerindo que ele favoreceu essa interpretação do seu nome.” (PARENTE, Raphael
Câmara; MORAES FILHO, Olimpio Barbosa; REZENDE FILHO, Jorge de; BOTTINO, Nathalia Gravina;
PIRAGIBE, Pollyana; LIMA, Diego Trabulsi; GOMES, Danielle Orlandi. A história do nascimento (parte 1)
cesariana.). Disponível em: http://files.bvs.br/upload/S/0100-7254/2010/v38n9/a481-486.pdf. Acesso em:
04/set/2019
159
“A segunda teoria atribui o termo cesárea à Lex Regia, ou lei dos reis, proclamada por Numa Pompilius,
antigo rei romano (716-673 a.C.) que ordenava a execução do procedimento com o objetivo de salvar a criança
quando a morte da mãe ocorria nas últimas semanas de gestação. Em caso de falecimento, esta não poderia ser
enterrada antes que o feto fosse extraído de seu ventre. Mais tarde, essa lei foi denominada Lex Caesarea, dando
origem ao termo cesariana.” (PARENTE, Raphael Câmara; MORAES FILHO, Olimpio Barbosa; REZENDE
FILHO, Jorge de; BOTTINO, Nathalia Gravina; PIRAGIBE, Pollyana; LIMA, Diego Trabulsi; GOMES,
Danielle Orlandi. A história do nascimento (parte 1) cesariana). Disponível em:
http://files.bvs.br/upload/S/0100-7254/2010/v38n9/a481-486.pdf. Acesso em: 04/set/2019.
160
“A terceira teoria afirma que a palavra cesárea teria derivado do verbo latino caedere, que significa cortar.
Crianças nascidas por cesárea post mortem ficavam conhecidas como caesones ou caesares. Essas crianças foram
consideradas “não-nascidas” até meados do século XVII. Outra hipótese seria a de que Nero (37-68 d.C.), um
dos 12 Césares, teria mandado assassinar sua própria mãe, Agripina, e abrir-lhe o ventre para ver onde ele havia
sido gerado.” (PARENTE, Raphael Câmara; MORAES FILHO, Olimpio Barbosa; REZENDE FILHO, Jorge de;
BOTTINO, Nathalia Gravina; PIRAGIBE, Pollyana; LIMA, Diego Trabulsi; GOMES, Danielle Orlandi. A
história do nascimento (parte 1) cesariana). Disponível em: http://files.bvs.br/upload/S/0100-
7254/2010/v38n9/a481-486.pdf. Acesso em: 04/set/2019
161
“O número ampliado de cesáreas das últimas décadas muitas vezes não está respaldado por uma justificativa
obstétrica adequada, como ocorre na realização de laqueadura tubária no mesmo tempo cirúrgico de uma cesárea

82
Quanto à indicação médica do parto cesáreo, pode-se destacar alguns motivos,
citados por Figueiredo et al, tais como risco de morte para a mãe e/ou o feto, ou o caso de um
histórico obstétrico de uma ou mais cesáreas, bem como por alterações placentárias
(descolamento prematuro de placenta, placenta prévia, etc.), ou o caso de sofrimento agudo e
confirmado do feto, ou, ainda, a apresentação anômala (transversa ou pélvica), ou
desproporção céfalo-pélvica, ou distocia (qualquer problema, tanto de origem materna ou
fetal, que dificulte ou impeça o parto) funcional, ou, por fim, hipertensão arterial
caracterizando uma emergência. Em resumo, se houver uma doença materna ou fetal, que não
permita a contração uterina eficaz, é indicada a cesárea.162

A cesariana é um procedimento cirúrgico que, se feito por razões médicas,


pode salvar a vida da mãe e do seu filho. Mas isso não tem sido obedecido, na maioria dos
casos, pois, muitas das vezes, ela é realizada sem qualquer justificativa ou necessidade, o que
pode, inclusive, gerar perigo de vida para as mulheres. No mundo todo, as taxas de cesárea
têm aumentado, sem benefícios para a saúde das pacientes e de seus filhos. Diante dessa
realidade, a OMS publicou orientações para reduzir a realização de cesáreas desnecessárias.163

– visualizado por este estudo (Gráfico 2). Também segundo o trabalho de Zambrano e outros (2003), entre as
razões que levaram as gestantes à escolha da cesárea, o desejo pela laqueadura foi substancial para 41% delas,
constituindo um sério problema que deve ser analisado e refletido pelos profissionais da saúde. Embora a
Organização Mundial da Saúde (1985) incentive o emprego de outros métodos de esterilização tubária, que não
se utilizam da cesárea, esta prática, ilegal no Brasil, ainda é muito utilizada hoje em dia. A Portaria n.° 144/97 do
Ministério da Saúde (BRASIL, 1997) proíbe a realização de esterilização durante procedimento cirúrgico (parto
ou aborto), salvo em situações de extrema necessidade.” (FIGUEIREDO, Nathália Stela Visoná de; BARBOSA,
Míriam Cristina de Almeida; SILVA Thaís Aparecida de Souza. Fatores culturais determinantes da escolha da
via de parto por gestantes.) Disponível em:
file:///C:/Users/peric/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Downloa
ds/1146-Manuscrito%20sem%20identificação%20dos%20autores-6693-1-10-20110506%20(1).pdf. Acesso
em 04/set/2018.
162
“É importante pontuar também as indicações médicas precisas para a realização de cesárea – em que se faz
soberana a opção por esta via de parto por motivo de risco de morte para a mãe e/ou o feto –, uma vez que se
verificou neste estudo uma delas: o histórico obstétrico de uma ou mais cesarianas prévias (Gráfico 3). São
outras: alterações placentárias (descolamento prematuro de placenta, placenta prévia etc.), sofrimento fetal agudo
confirmado e intratável, apresentação anômala (transversa ou pélvica), desproporção céfalo-pélvica, distocia
funcional, hipertensão arterial caracterizando uma emergência; em suma, doença materna ou fetal que não
permita contração uterina eficaz (TEDESCO et al., 2004).” (FIGUEIREDO, Nathália Stela Visoná de;
BARBOSA, Míriam Cristina de Almeida; SILVA Thaís Aparecida de Souza. Fatores culturais determinantes da
escolha da via de parto por gestantes). Disponível em:
file:///C:/Users/peric/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Downloa
ds/1146-Manuscrito%20sem%20identificação%20dos%20autores-6693-1-10-20110506%20(1).pdf. Acesso
em 04/set/2018.
163
A OMS realizou duas pesquisas. A primeira foi uma revisão sistemática dos estudos que buscaram determinar
qual seria a taxa ideal de cesáreas para um país ou uma população. O segundo estudo realizado pela OMS
analisou todos os dados mais recentes de cada país sobre esse assunto. Baseada nesses estudos e usando métodos
aceitos internacionalmente para avaliar as evidências com técnicas analíticas adequadas, a OMS conclui que: 1.
A cesárea é uma intervenção efetiva para salvar a vida de mães e bebês, porém apenas quando indicada por
motivos médicos. 2. Ao nível populacional, taxas de cesárea maiores que 10% não estão associadas com redução

83
O parto cesáreo pode, ainda, estar associado a riscos de longo e curto prazos,
podendo se estender por muitos anos além do parto, acarretando consequências danosas para a
saúde da mulher e da criança. Os riscos derivados de uma cesárea sem necessidade tendem a
aumentar em mulheres mais carentes. Ainda, as cesarianas são muito caras e, quando feitas de
forma desnecessária, podem ser utilizados recursos de outros serviços que seriam essenciais à
saúde e que poderiam ter sido usados em outras áreas.164

Dentre as orientações da Organização Mundial de Saúde, podem ser citadas as


que o parto cesáreo realmente é essencial para salvar a vida das mulheres e de seus filhos, mas
somente no caso de indicação médica. Ademais, as taxas de cesáreas superiores a 10% dos
partos, de uma maneira geral, não se relacionam necessariamente à redução da mortalidade
materno-infantil.165

de mortalidade materna e neonatal. 3. A cesárea pode causar complicações significativas e às vezes permanentes,
assim como sequelas ou morte, especialmente em locais sem infraestrutura e/ou capacidade de realizar cirurgias
de forma segura e de tratar complicações pós-operatórias. Idealmente, uma cesárea deveria ser realizada apenas
quando ela for necessária, do ponto de vista médico. 4. Os esforços devem se concentrar em garantir que
cesáreas sejam feitas nos casos em que são necessárias, em vez de buscar atingir uma taxa específica de cesáreas.
5. Ainda não estão claros quais são os efeitos das taxas de cesáreas sobre outros desfechos além da mortalidade,
tais como morbidade materna e perinatal, desfechos pediátricos e bem-estar social ou psicológico. São
necessários mais estudos para entender quais são os efeitos imediatos e a longo prazo da cesárea sobre a saúde.
(OMS – Organização Mundial de Saúde. Declaração da OMS sobre taxas de cesáreas). Disponível em:
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/161442/WHO_RHR_15.02_por.pdf%3Bjsessionid%3DA8F6C6
F6B698E2E915E564C2CAB0274C%3Fsequence%3D3. Acesso: em 10/set/2018.
164
“Desde essa declaração, por diversos motivos, as cesáreas vêm se tornando cada vez mais frequentes tanto
nos países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento. Quando realizadas por motivos médicos, as
cesáreas podem efetivamente reduzir a mortalidade e a morbidade materna e perinatal. Porém, não existem
evidências de que fazer cesáreas em mulheres ou bebês que não necessitem dessa cirurgia traga benefícios.
Assim como qualquer cirurgia, uma cesárea acarreta riscos imediatos e a longo prazo. Esses riscos podem se
estender muitos anos depois de o parto ter ocorrido e afetar a saúde da mulher e do seu filho, podendo também
comprometer futuras gestações. Esses riscos são maiores em mulheres com acesso limitado a cuidados
obstétricos adequados. Em termos populacionais, a proporção de partos cesáreos reflete o nível de acesso a essa
intervenção e seu uso. Essa medida é útil para os governantes e responsáveis por políticas de saúde avaliarem os
avanços na área de saúde materno-infantil e para monitorar os cuidados obstétricos de emergência e o uso de
recursos nessa área. Nos últimos anos, autoridades governamentais e médicas têm se preocupado com o aumento
no número de partos cesáreos e suas possíveis consequências negativas sobre a saúde materno-infantil. O custo
também é um fator importante nessa questão, uma vez que recursos financeiros são necessários para melhorar o
acesso aos cuidados maternos e neonatais para todos que necessitam, e as cesáreas representam um gasto
adicional significativo para sistemas de saúde que já estão sobrecarregados e muitas vezes enfraquecidos.” (OMS
– Organização Mundial de Saúde. Declaração da OMS sobre taxas de cesáreas). Disponível em:
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/161442/WHO_RHR_15.02_por.pdf%3Bjsessionid%3DA8F6C6
F6B698E2E915E564C2CAB0274C%3Fsequence%3D3. Acesso: em 10/set/2018.
165
“Baseados na revisão sistemática da OMS, taxas populacionais de cesáreas de até 10-15% estão associadas a
uma diminuição da mortalidade materna e neonatal. Não existe associação entre aumento nas taxas de cesáreas
acima desses valores e redução da mortalidade. Porém, a associação entre o aumento nas taxas de cesáreas e a
redução da mortalidade ficou mais fraca ou desapareceu por completo nos estudos que controlaram para fatores
socioeconômicos. Como é provável que os fatores socioeconômicos poderiam explicar a associação entre o
aumento nas taxas de cesáreas e a redução da mortalidade identificada na revisão sistemática, a OMS realizou
um outro estudo para analisar mais a fundo essa questão. O estudo ecológico mundial da OMS concluiu que uma
parte substancial da associação entre taxas de cesáreas e mortalidade era explicada por fatores socioeconômicos.

84
Ademais, o uso do parto cesáreo sem indicação médica pode acarretar
problemas futuros relevantes, além de sequelas ou morte, principalmente quando feito em
locais sem infraestrutura. Desse modo, devem os profissionais de saúde somente realizar
cesáreas quando realmente necessárias. De mais a mais, ainda não existe uma comprovação
científica dos benefícios que o parto cesáreo pode trazer. O certo é que sejam feitos mais
estudos para que se verifiquem os efeitos imediatos desse tipo de parto para a saúde das
mulheres.166

Ainda, relativamente à escolha do parto, muitas gestantes entendem que sua


atitude, na maioria dos casos, é passiva com relação ao médico. Como o parto é um momento
de extrema vulnerabilidade da mulher, isto desencadeia uma relação de assimetria durante
todo o acompanhamento gestacional. Desse modo, como não há outra pessoa em quem
confiar, a gestante passa a valorizar mais a opinião do profissional de saúde. Ademais,
também se subordina a gestante à opinião do médico pela falta de conhecimento a respeito de
seu próprio corpo, ou mesmo dos processos reprodutivos e de sua sexualidade, resultando,
assim, numa diminuição de sua capacidade de decisão.167

Porém, quando as taxas de cesáreas de uma população são menores do que 10%, a mortalidade materna e
neonatal diminui conforme a taxa de cesárea aumenta. Quando as taxas populacionais de cesáreas ultrapassam os
10% e chegam até 30%, não se observa nenhum efeito sobre a mortalidade. Foi realizada uma análise
longitudinal, usando os dados nacionais ajustados conforme o nível de desenvolvimento socioeconômico de cada
país. Essa abordagem supera algumas das limitações dos estudos transversais que foram incluídos na revisão
sistemática, porém deve-se enfatizar que associações ecológicas não significam que exista uma relação causal.”
(OMS – Organização Mundial de Saúde. Declaração da OMS sobre taxas de cesáreas). Disponível em:
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/161442/WHO_RHR_15.02_por.pdf%3Bjsessionid%3DA8F6C6
F6B698E2E915E564C2CAB0274C%3Fsequence%3D3. Acesso: em 10/set/2018.
166
“Os dados populacionais atualmente disponíveis não permitem avaliar a relação entre taxas de cesáreas acima
de 30% e mortalidade materna e neonatal. A qualidade da assistência, especialmente em relação à segurança, é
um aspecto importante a ser levando em consideração quando se analisam taxas de cesáreas e mortalidade. O
risco de infecção e complicações cirúrgicas são perigos potenciais especialmente em locais sem infraestrutura
e/ou capacidade de realizar cirurgias de forma segura. Devido à falta de dados populacionais sobre as taxas de
natimortos e sobre a morbidade materna ou perinatal, não foi possível avaliar a associação entre as taxas de
cesáreas e esses desfechos. Os estudos ecológicos existentes analisaram apenas indicadores de mortalidade
materna e neonatal provavelmente porque esses dados são facilmente disponíveis ao nível nacional, o que não
ocorre com indicadores de morbidade materna e neonatal. Pelos mesmos motivos, essas pesquisas não levaram
em consideração aspectos psicológicos e sociais relacionados ao tipo de parto. Como a mortalidade é um
desfecho raro, especialmente em países desenvolvidos, novos estudos devem procurar avaliar a associação entre
taxas de cesáreas e morbidade materna e perinatal, tanto imediata como tardia (por exemplo fístula obstétrica e
asfixia intraparto). Outros aspectos a serem avaliados em futuros estudos incluem as implicações psicossociais
associadas ao tipo de parto, o vínculo mãe-bebê, a saúde mental da mulher, a capacidade de iniciar amamentação
e desfechos pediátricos.” (OMS – Organização Mundial de Saúde. Declaração da OMS sobre taxas de cesáreas).
Disponível em:
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/161442/WHO_RHR_15.02_por.pdf%3Bjsessionid%3DA8F6C6
F6B698E2E915E564C2CAB0274C%3Fsequence%3D3. Acesso: em 10/set/2018
167
“A respeito de como se procede à decisão pela via de parto a ser realizada, a maioria das mulheres
demonstrou certa passividade frente ao médico. (…) Já a respeito de como se procede à decisão pela via de parto
a ser realizada, foi notória a passividade da gestante frente ao médico. A vulnerabilidade da mulher,

85
Outrossim, a busca de informações pela gestante é de fundamental importância
para que ela mesma possa construir a sua opinião e possa decidir durante o período
gestacional e o momento do parto. Isso facilita o processo decisório da parturiente. Certo é
que, em qualquer tipo de parto, existem riscos e benefícios, sendo importante que a mulher
decida sozinha, após reunir todas as informações sobre qual o tipo de parto será melhor para
ela. O medo do parto normal pode ocorrer e, quando isso acontece, na maior parte das vezes,
se dá pela falta de informação e de diálogo com o profissional de saúde. Assim, conclui-se
que o mais importante de todo o processo é o pré-natal, pois é o momento em que a mulher
tirará todas as suas dúvidas, e é o momento em que o profissional de saúde poderá
desenvolver o seu papel educativo com relação a ela.168

2.1.2 Gestação, parto e puerpério

Durante o período gestacional, no mundo todo, aproximadamente, uma em


cada cinco mulheres grávidas, que frequentam pré-natais, relataram que passaram por
abusos. As mulheres que mencionam esses abusos, incluíam, em seus depoimentos, que as

desencadeada pelo processo parturitivo, somada à detenção do conhecimento pelo médico, favorece a construção
de uma relação assimétrica durante o acompanhamento pré-natal, de que resulta que a gestante passa a valorizar
mais a opinião do médico em detrimento da sua. Outra explicação para a subordinação da gestante ao médico
pode ser atribuída à falta de conhecimento de algumas mulheres sobre seu corpo, os processos reprodutivos e a
sexualidade, resultando por fim em redução da capacidade de decisão (SANTOS, 2008).” (FIGUEIREDO,
Nathália Stela Visoná de; BARBOSA, Míriam Cristina de Almeida; SILVA, Thaís Aparecida de Souza. Fatores
culturais determinantes da escolha da via de parto por gestantes). Disponível em:
file:///C:/Users/peric/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Downloa
ds/1146-Manuscrito%20sem%20identificação%20dos%20autores-6693-1-10-20110506%20(1).pdf. Acesso
em 04/set/2018.
168
“Igualmente, a aquisição de informações pelas gestantes é de fundamental importância para a construção de
sua interpretação e posicionamento antes e durante o parto. Tem também grande relevância por possibilitar
maior participação da mulher no processo decisório. Conforme ressalta o Ministério da Saúde (BRASIL, 2001),
em cada tipo de parto estão implicados necessidades, riscos e benefícios, sendo importante a formação de
opinião entre as mulheres para que elas possam reivindicar aquilo que é melhor para a sua saúde e a de seus
filhos. O medo do parto vaginal ocorre muitas vezes pela falta de informação e de diálogo entre os profissionais
e as pacientes. Assim, o pré-natal tem papel-chave, pois é, durante esta ocasião, que ocorre a preparação tanto
física como psicológica da mulher para o ato da maternidade, sendo a melhor oportunidade para os profissionais
desenvolverem o processo educativo (PELLOSO et al., 2000). A qualidade do pré-natal, portanto, influencia na
cadeia de crenças e opiniões sobre as vias de parto e consequentemente sobre a escolha final, devendo de fato
estar à altura das necessidades de informação das gestantes.” (FIGUEIREDO, Nathália Stela Visoná de;
BARBOSA, Míriam Cristina de Almeida; SILVA, Thaís Aparecida de Souza. Fatores culturais determinantes
da escolha da via de parto por gestantes). Disponível em:
file:///C:/Users/peric/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Downloa
ds/1146-Manuscrito%20sem%20identificação%20dos%20autores-6693-1-10-20110506%20(1).pdf. Acesso
em 04/set/2018.

86
maiores vítimas era aquelas de baixa renda. Esses abusos, na área de saúde, podem, inclusive,
originar inúmeros problemas, como, por exemplo, estresse pós-traumático e depressão.169

Ainda, foi observado que, relativamente ao momento e a escolha do tipo de


parto, mulheres que, durante suas vidas, sofreram violência sexual não permitem que nos
partos seja feito o procedimento da episiotomia nelas, uma vez que isso pode causar
sofrimento novamente e também porque, devido à violência que sofreram, têm necessidade de
permanecerem no controle. Desse modo, é muito importante as visitas ao médico e os
aconselhamentos feitos no período do pré-natal, para que o profissional de saúde possa
conhecer a história das pacientes e se elas têm histórico de violência sexual.170

169
“One in five pregnant women attending routine antenatal care reported some lifetime abuse in healthcare.
Prevalence varied significantly between the countries. Characteristics for women reporting abuse in healthcare
included a significantly higher prevalence of other forms of abuse, economic hardship and negative life events as
well as a lack of social support, symptoms of post‐traumatic stress and depression. Among nulliparous women,
abuse in healthcare was associated with fear of childbirth, adjusted odds ratio 2.25 (95% CI 1.23–4.12) for
severe abuse in healthcare. For multiparous women only severe current suffering from abuse in healthcare was
significantly associated with fear of childbirth, adjusted odds ratio 4.04 (95% CI 2.08–7.83). Current severe
suffering from abuse in healthcare was significantly associated with the wish for cesarean section, and
counselling for fear of childbirth for both nulli‐ and multiparous women.” (LUKASSE, Mirjam. Prevalence of
experienced abuse in healthcare and associated obstetric characteristics in six European countries. Acta
Obstetricia et Gynecologica Scandinavica. 2015; 94:508–517). Disponível em:
https://obgyn.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/aogs.12593 Acesso em 05/out/2018. Tradução livre:
“Uma em cada cinco mulheres grávidas atendidas no pré-natal de rotina relatou algum abuso durante a vida toda
na área da saúde. A prevalência variou significativamente entre os países. As características das mulheres que
relatam abuso nos cuidados de saúde incluíram uma prevalência significativamente mais alta de outras formas de
abuso, dificuldades econômicas e eventos negativos da vida, bem como falta de apoio social, sintomas de
estresse pós-traumático e depressão. Entre as mulheres nulíparas, o abuso nos cuidados de saúde foi associado ao
medo do parto, odds ratio ajustada 2,25 (IC 95% 1,23–4,12) para abuso grave nos cuidados de saúde. Para
mulheres multíparas, apenas a corrente severa que sofre de abuso nos cuidados de saúde foi significativamente
associada ao medo do parto, razão de chances ajustada 4,04 (IC95% 2,08-7,83). O sofrimento grave atual de
abuso na assistência médica foi significativamente associado ao desejo de cesariana e aconselhamento por medo
de parto para mulheres nulas e multíparas.
170
“Sexual violence against women is a recognised public health problem. Studies suggest that one in five
women is exposed to sexual violence during her lifetime, and those exposed are at greater risk of developing
health problems, both at the time of violence and later in life. Previous studies investigating whether women with
a history of sexual violence experience worse birth outcomes have been inconclusive. A recent Norwegian study
that examined women with various psychosocial burdens, including fear of childbirth, attending a specialised
clinic found that women who were raped as adults had a greatly increased risk of caesarean section (CS), vaginal
operative delivery and prolonged labour. In agreement with other studies, the authors did not find an increased
risk of operative deliveries or a longer duration of labour for women exposed to childhood sexual abuse.
However, an association between both childhood sexual abuse and intimate partner violence (IPV) and a higher
risk of CS have been reported. The association between sexual violence and outcomes such as induction, use of
pain relief, episiotomies and anal sphincter tears has been investigated, but in few studies and with no conclusive
findings.” (HENRIKSEN Lena, Schei Berit, Vangen Siri, Lukasse Mirjam. Sexual violence and mode of
delivery: a population-based cohort study. BJOG. 2014;(121):1237–244. in a military population. Journal of
Perinatology.2012; 32:763–769). Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24939396. Acesso em
19/ago/2019. Tradução livre: “A violência sexual contra as mulheres é um problema reconhecido de saúde
pública. Estudos sugerem que uma em cada cinco mulheres é exposta à violência sexual durante a sua vida, e as
que estão expostas correm maior risco de desenvolver problemas de saúde, tanto no momento da violência
quanto mais tarde na vida. Estudos anteriores que investigaram se mulheres com histórico de violência sexual
experimentam piores resultados ao nascer foram inconclusivas. Um estudo norueguês recente que examinou

87
De outro lado, atualmente, existem inúmeras tecnologias que foram sendo
criadas pela medicina para melhorar a vida dos pacientes, tanto homens quanto mulheres.
Uma das maiores descobertas que se fez dentro da área médica foi a anestesia, criada para que
os pacientes possam se submeter a tratamentos sem sentirem dor. A importância da anestesia
é tão grande que, na medicina obstétrica, ela é utilizada em casos de partos mais complicados,
sendo, inclusive, uma condição imposta para a sua realização. Porém, nos partos normais, não
existe essa imposição, e eles são feitos sem o seu uso, não havendo, assim, o controle da dor.
No caso de partos cesáreos, por outro lado, como normalmente são feitos em hospitais
particulares e as pacientes tendem a ter maior poder econômico, chega-se sempre a um acordo
com os médicos quanto ao momento do parto e quanto ao uso da anestesia para evitar a dor.171

A sensibilidade à dor é um sentimento que varia de pessoa para pessoa. Há


pessoas que são mais sensíveis do que outras. Cada um reage à dor de maneira diferente,
sendo esta relacionada à sociedade e à cultura. No caso das mulheres que estão em trabalho de
parto, a dor depende muito do modo pelo qual ela foi preparada para passar por aquele
momento. O que se analisa também é a história de vida dessas mulheres, como, por exemplo,
se elas já tiveram experiências de partos anteriores, ou se suas mães ou amigas já vivenciaram
partos com ou sem dor. Daí a importância do pré-natal, momento em que todas as suas
dúvidas serão solucionadas.172

mulheres com vários ônus psicossociais, incluindo o medo do parto, em uma clínica especializada descobriu que
mulheres que foram estupradas quando adultas tinham um risco muito maior de cesariana (SC), parto vaginal e
parto prolongado. De acordo com outros estudos, os autores não encontraram um risco aumentado de partos
operatórios ou uma maior duração do trabalho de parto para mulheres expostas a abuso sexual na infância. No
entanto, uma associação entre abuso sexual na infância e na violência por parceiro íntimo (VPI) e um risco maior
de SC foi relatada. A associação entre violência sexual e desfechos como indução, uso de alívio da dor,
episiotomias e ruptura do esfíncter anal foi investigada, mas em poucos estudos e sem achados conclusivos.
171
“O homem moderno, no seu constante desafio de superar as limitações impostas pela fisiologia humana,
trabalhou arduamente várias tecnologias para intervir no corpo e fazê-lo mais dócil à manipulação. Uma das
grandes tecnologias desenvolvidas pela ciência moderna, foi a anestesia, um modo de vencer a dor e permitir o
‘conserto’ da máquina corporal humana, quando esta necessitasse. Na área da obstetrícia, a anestesia sempre
esteve disponível nos partos operatórios, sendo condição para sua execução, mas, nos partos normais, não há
essa imposição médica, uma vez que esses últimos podem ocorrer sem o controle da dor. Também é importante
lembrar que, nos partos por cesariana, há uma clientela diferenciada que pode negociar com os médicos o
momento e a via da parturição, o que leva muitas mulheres a escolher aquele que lhe é oferecido como "mais
seguro e sem dor". (TEIXEIRA, Neuma Zamariano Fanaia; PEREIRA, Wilza Rocha. Parto hospitalar:
experiências de mulheres da periferia de Cuiabá-MT. Revista Brasileira de Enfermagem[internet].2006; 59(6):
740-744). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
71672006000600004&lng=pt&tlng=pt. Acesso em 03/set/2018.
172
“A dor, e seus aspectos voluntários, é influenciada por fatores sociais, culturais e psicológicos. Esses fatores
determinam se a dor privada será traduzida em comportamento de dor e a forma que tal comportamento assume,
e as condições em que ocorre. A sensibilidade à dor varia entre os indivíduos e está ligada à emoção; pessoas
mais emotivas estão mais expostas à dor, pois a dor é, além de um fator biológico, também uma construção
sócio-cultural. Cada ser humano reage diferentemente à dor, e, no caso da parturiente, depende da forma como o
grupo ao qual pertence interpreta e entende o ato de parir, da forma como esta mulher foi ou não preparada para

88
Na maior parte das vezes, o medo do parto normal decorre da falta de
informação e, também, da falta de paciência dos profissionais de saúde. De fato, esses
profissionais, na maioria das vezes, não estão preocupados com o sentimento das parturientes,
situação que favorece o aumento do medo e a sensação de que esse tipo de parto é pior do que
o parto cesáreo. Além disso, a passagem do parto de casa para o hospital tornou todo o
processo da gestação muito mais mecanizado, sendo que todo o processo do parto passou a
pertencer à equipe médica e a mulher passou a ser tratada como mais um número dentro de
um hospital.173

Mesmo com toda essa mudança, a assistência no pré-natal deve ser feita e
organizada para atender às necessidades das gestantes. Dessa forma, os hospitais e centros de
saúde devem dispor de profissionais com conhecimentos técnico-científicos, além de meios e
recursos adequados e disponíveis para que as mulheres solucionem todas as suas dúvidas,
afinal é um momento de muita vulnerabilidade para elas. As ações dos médicos devem estar
voltadas para atender as mulheres, dando-lhes um acompanhamento adequado às suas
necessidades174

Na verdade, o período gestacional, que antecede o momento do parto, é um


momento de preparação física e psicológica da gestante para a maternidade. Diante disso, os

o parto, da sua história de vida, de experiências anteriores positivas ou negativas em relação a seus partos e de
suas mães e conhecidas, interferindo também a forma como são recebidas e atendidas durante o processo de
parir.” (TEIXEIRA, Neuma Zamariano Fanaia; PEREIRA, Wilza Rocha. Parto hospitalar: experiências de
mulheres da periferia de Cuiabá-MT. Revista Brasileira de Enfermagem [internet].2006; 59(6): 740-744).
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
71672006000600004&lng=pt&tlng=pt. Acesso em 03/set/2018.
173
“(...) Mas, a situação especial que referiam estar vivenciando ao parirem, somada à expectativa de ter um
parto normal e de dar a luz a um bebê hígido, faziam com que percebessem, de forma mais aguda, a hostilidade e
a impaciência dos profissionais, mesmo quando estas não eram claramente manifestadas. (...) O processo que
transforma o corpo feminino em objeto de trabalho da equipe médica acaba por interferir na enfermagem, que,
por sua vez, colabora no processo de expropriação do corpo feminino, que passa a pertencer à equipe que a
assiste, quando a mulher transforma-se em paciente. O corpo é o foco do controle social através do
conhecimento e da autoridade médica, que o disciplina e o classifica como aquele que será dócil e submisso ao
saber que afirma garantir a vida da parturiente e do filho que está por nascer.” (TEIXEIRA, Neuma Zamariano
Fanaia; PEREIRA, Wilza Rocha. Parto hospitalar: experiências de mulheres da periferia de Cuiabá-MT.
Revista Brasileira de Enfermagem [internet].2006; 59(6): 740-744). Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672006000600004&lng=pt&tlng=pt. Acesso
em 03/set/2018.
174
“Nesse contexto, a assistência pré-natal deve ser organizada para atender às reais necessidades das gestantes,
dispondo de profissionais com conhecimentos técnico-científicos, de meios e recursos adequados e disponíveis.
As ações de saúde devem estar voltadas à cobertura de toda a população-alvo da área de abrangência da unidade
de saúde, assegurando continuidade no atendimento, no acompanhamento e na avaliação das ações sobre a saúde
materno-perinatal.” (SOUZA Viviane Barbosa de; ROECKER, Simone; MARCON, Sonia Silva. Ações
educativas durante a assistência pré natal: percepção de gestantes atendidas na rede básica de Maringá-PR.
RevEletr Enf.2011;13 (2):199-210). Disponível em: https://www.fen.ufg.br/revista/v13/n2/v13n2a06.htm.
Acesso em 12/set/2019.

89
profissionais de saúde devem assumir uma postura diferenciada, ou seja, de educadores que
compartilham os seus conhecimentos, buscando devolver à mulher sua autoconfiança para
viver a gestação, o parto e o puerpério, uma vez que o pré-natal e o nascimento são momentos
únicos na vida de qualquer mulher.175

O parto deve ser entendido como um conjunto de acontecimentos, uma


experiência totalmente feminina e familiar, a qual envolve inúmeros sentimentos por parte da
parturiente, além de emoções, mas, também, é repleto de preocupações e dúvidas. Esse
processo, que atualmente foi transferido, como regra, para a maternidade, é um momento
singular na vida da mulher. Por todos esses motivos, deve haver, por parte dos profissionais
de saúde, uma sensibilidade no tratamento da mulher que vai dar à luz. Assim, a parturiente
necessita de apoio emocional durante a assistência que lhe é ofertada pela equipe obstétrica.176

Desse modo, e, como conclusão, o parto é um evento extremamente


importante, sob os pontos de vista biológico e social e que se inclui dentro dos direitos sexual
e reprodutivos da mulher. A gestação como um todo, além do parto e do período que lhe é
posterior, ou seja, e o puerpério, constituem experiências humanas extremamente
significativas, sendo um processo enriquecedor para a mulher e todas as pessoas que dele

175
“É durante o pré-natal, que um espaço de educação em saúde deve ser criado, a fim de possibilitar o preparo
da mulher para viver a gestação e o parto de forma positiva, integradora, enriquecedora e feliz. Nesse momento,
entende-se que o processo educativo é fundamental não só para a aquisição de conhecimento sobre o processo de
gestar e parir, mas também para o seu fortalecimento como ser e cidadã. As práticas educativas referem-se às
atividades de educação em saúde, voltadas para o desenvolvimento de capacidades individuais e coletivas,
visando à melhoria da qualidade de vida e saúde. Educação em saúde não são apenas processos de intervenção
na doença, mas processos de intervenção para que o indivíduo e a coletividade disponham de meios para a
manutenção ou recuperação do seu estado de saúde, no qual estão relacionados os fatores orgânicos,
psicológicos, socioeconômicos e espirituais.” (SOUZA Viviane Barbosa de; ROECKER, Simone; MARCON,
Sonia Silva. Ações educativas durante a assistência pré natal: percepção de gestantes atendidas na rede básica
de Maringá-PR. Rev Eletr Enf. 2011; 13(2): 199-210). Disponível em:
https://www.fen.ufg.br/revista/v13/n2/v13n2a06.htm. Acesso em 12/set/2019.
176
“O parto é um universo de acontecimentos próprios, uma experiência essencialmente feminina e familiar, rica
em sentimentos, entremeada de emoções, preocupações e dúvidas. É necessário que esse afeto deva permear os
cuidados voltados para essa clientela e família. Esse processo desencadeado pela maternidade é um momento
ímpar na vivência de um casal, o que demanda habilidade e sensibilidade dos profissionais envolvidos nessa
assistência. Para Maranhão et al., a parturiente precisa de apoio emocional, durante a assistência técnica
oferecida por uma equipe obstétrica constituída de médicos, enfermeiras e demais integrantes da equipe de
enfermagem. Médicos e enfermeiras devem prestar assistência à parturiente, atendendo às necessidades
específicas ligadas à assistência obstétrica e às necessidades básicas individuais.” (WOLFF, Leila Regina;
MOURA Maria Aparecida Vasconcelos. A institucionalização do parto e a humanização da assistência: revisão
de literatura, 2004. Disponível em: file:///D:/Users/m313790/Downloads/v8n2a16.pdf). Acesso em 06/ago/2018.

90
participam, tendo importância também para os profissionais de saúde, os quais desempenham
um papel de extrema importância em todo esse cenário.177

Do exposto, após a verificação dos aspectos relacionados à gestação, ao parto e


ao puerpério, além das espécies de parto, passa-se à análise de uma das hipóteses mais
corriqueiras, infelizmente, e menos percebidas pelas mulheres nesse período: a violência
obstétrica.

2.2 Violência obstétrica

A violência, de um modo geral, é um problema social, estando em constante


processo de expansão, em especial a violência contra a mulher, que é um problema do Estado,
pois é uma das violações mais importantes dos direitos humanos, sendo um problema de
saúde pública, gerando altos custos econômicos e sociais. Esse tipo de violência tem se
perpetuado durante o tempo, por todo o mundo, independentemente de classe social, raça,
idade sexo ou religião.178

A violência contra a mulher nem sempre é praticada às claras, ou seja, nem


sempre deixa marcas pelo corpo. Muitas das vezes ela é imperceptível. Nesse sentido, existe
uma que é cada vez mais comum na sociedade: a violência obstétrica. Caracteriza-se como
qualquer conduta realizada por profissionais de saúde, seja em hospital público ou privado,
que conduza à apropriação dos processos corporais e reprodutivos das mulheres. Consiste em

177
Assistir as mulheres no momento do parto e nascimento com segurança e dignidade é compromisso
fundamental de todos os profissionais de saúde envolvidos na atenção à saúde da mulher, atendendo, dessa
forma, as recomendações preconizadas pelo Ministério da Saúde. O parto é um evento biológico e social
integrante da vivência reprodutiva de homens e mulheres. A gestação, o parto e o puerpério constituem uma das
experiências humana mais significativas, com forte potencial positivo e enriquecedora para todos os que dela
participam. Os profissionais de saúde são coadjuvantes dessa experiência e desempenham importante papel,
colocando seu conhecimento a serviço do bem-estar da mulher e do bebê; ajudando-os no processo de parturição
e nascimento de forma saudável. (WOLFF, Leila Regina; MOURA Maria Aparecida Vasconcelos. A
institucionalização do parto e a humanização da assistência: revisão de literatura, 2004). Disponível em:
file:///D:/Users/m313790/Downloads/v8n2a16.pdf. Acesso em 06/ago/2018.
178
“A violência é um problema social que está em constante processo de expansão em todas as suas formas. A
violência contra a mulher, em especial, é um problema do Estado, uma vez que é uma das violações mais
frequentes dos direitos humanos e constitui-se como um problema de saúde pública que gera custos econômicos
e sociais elevados. Tal modalidade de violência tem perdurado ao longo da história e na atualidade ganhou
caráter endêmico, uma vez que está cotidianamente presente nas comunidades e países de todo o mundo,
independentemente da classe social, raça, idade, sexo ou religião.” (SAUAIA, Artenira da Silva e Silva e
SERRA Maiane Cibele de Mesquita. Uma dor além do parto: Violência Obstétrica em foco. Revista de Direitos
Humanos e Efetividade | e-ISSN: 2526-0022| Brasília | v. 2 | n. 1 | p. 128 - 147 | Jan/Jun. 2016). Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/322630312_Uma_Dor_Alem_do_Parto_Violencia_Obstetrica_em_Foc
o. Acesso em 10/ago/2019.

91
agressões verbais, além do uso de procedimentos médicos desnecessários e abusivos, podendo
acarretar lesões coporais ou violação de um sem número de direitos da parturiente.179

Violência obstétrica é um termo utilizado, no Brasil e em países da América


Latina, para descrever as diversas maneiras de violência ocorridas na assistência à gravidez,
ao parto, ao pós-parto e ao abortamento. Pode também ser nominada: violência de gênero no
parto e aborto, violência no parto, abuso obstétrico, violência institucional de gênero e
aborto, desrespeito e abuso, crueldade no parto, assistência desumana ou desumanizada,
violações dos Direitos Humanos das mulheres no parto, abusos, desrespeito e maus-tratos
durante o parto, dentre outros.180

Usualmente, utiliza-se o termo violência obstétrica para descrever todas as


formas de violência ocorridas durante a gestação, o pré-parto, o parto, o puerpério, o
abortamento, espontâneo ou provocado, e o pós-aborto. Nos últimos anos, diversas definições
têm sido propostas, sendo a legislação da Venezuela pioneira em tipificar violência
obstétrica.181 A legislação desse país a descreve como sendo a apropriação do corpo e dos

179
“Imperioso observar que a violência perpetrada contra o feminino nem sempre é ostensiva, exteriorizando-se
pela agressão ao corpo. Em muitas ocasiões, as agressões são imperceptíveis fisicamente, manifestando-se de
modo simbólico e reproduzida em todos os âmbitos da sociedade, que incorpora a visão masculina
(androcêntrica) de mundo. Para além das espécies de violências elencadas por lei, existe um tipo que cada vez
mais se constata na sociedade contemporânea: a violência obstétrica. Definida como qualquer conduta,
comissiva ou omissiva, realizada por profissionais de saúde, em instituição pública ou privada que, direta ou
indiretamente, leva à apropriação indevida dos processos corporais e reprodutivos das mulheres. Expressa-se em
tratamento desumano, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, levando à perda da
autonomia e capacidade para decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade, impactando negativamente a
qualidade de vida. Para tanto, aludida agressão se consubstancia como o somatório de condutas que causam
constrangimento ou danos às mulheres durante o acompanhamento pré-natal, o trabalho de parto, o parto
propriamente e o pós-parto. Esse tipo de violência é caracterizado por agressões verbais, procedimentos médicos
desnecessários e abusivos, lesões corporais e negação dos direitos da parturiente, dentre outros.” (BRITO,
Cacília Maria Costa de; OLIVEIRA, Ana Carolina Gondim de Albuquerque; COSTA, Ana Paula Correia de
Albuquerque da. Violência obstétrica e os direitos da parturiente: o olhar do Poder Judiciário brasileiro).
Disponível em: file:///C:/Users/peric/Downloads/_Sem%20ti%CC%81tulo.pdf. Acesso em: 02/mar/2020.
180
“No Brasil, como em outros países da América Latina, o termo ‘violência obstétrica’ é utilizado para
descrever as diversas formas de violência ocorridas na assistência à gravidez, ao parto, ao pós-parto e ao
abortamento. Outros descritores também são usados para o mesmo fenômeno, como: violência de gênero no
parto e aborto, violência no parto, abuso obstétrico, violência institucional de gênero no parto e aborto,
desrespeito e abuso, crueldade no parto, assistência desumana/desumanizada, violações dos Direitos Humanos
das mulheres no parto, abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto, entre outros.” (DINIZ, Simone Grilo;
SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino Cardin
de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY, Denise Yoshie.
Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos
sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development. [Internet].
2015). Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.
181
“A expressão ‘violência obstétrica’ (VO) é utilizada para descrever e agrupar diversas formas de violência (e
danos) durante o cuidado obstétrico profissional. Inclui maus tratos físicos, psicológicos, e verbais, assim como
procedimentos desnecessários e danosos – episiotomias, restrição ao leito no pré-parto, clister, tricotomia e
ocitocina (quase) de rotina, ausência de acompanhante – dentre os quais destaca-se o excesso de cesarianas,
crescente no Brasil há décadas, apesar de algumas iniciativas governamentais a respeito. A história de Adelir,

92
processos reprodutivos das mulheres por um profissional de saúde que, por meio de relações
desumanizadoras, abuse de medicamentos e de patologização de processos naturais, o que
gera a perda da autonomia e da capacidade de decidir de modo livre sobre seu corpo e
sexualidade, o que impacta, de forma negativa, na qualidade de vida das mulheres.

2.2.1 Legislações sobre violência obstétrica

O sistema jurídico brasileiro já possui legislação genérica estadual, a respeito


da violência obstétrica, embora não haja lei federal específica. Podemos citar, como exemplo,
o Estado de Santa Catarina, que editou a Lei n.º 17.097, de 17 de janeiro de 2017. Essa lei
estadual foi criada para a implementação de medidas de informação e proteção da gestante e
da parturiente contra a violência obstétrica. A Lei n.º 17.097/2017 define a violência
obstétrica como o ato praticado por médico, por alguns profissionais de saúde, por um
familiar ou acompanhante, que ofenda, de forma física ou verbal, mulheres em trabalho de
parto ou no período do puerpério.

A referida lei considera como violência obstétrica a ofensa verbal ou física, nas
seguintes hipóteses: tratar a gestante ou parturiente de forma agressiva, não empática,
grosseira, zombeteira, ou de forma que a faça se sentir mal; fazer graça e recriminar a
parturiente quando esta gritar, chorar, tiver medo, vergonha ou dúvidas, bem como recriminá-
la por obesidade ou outras características físicas; não ouvir queixas ou dúvidas da parturiente;
tratar a mulher de forma inferior, com nomes diminutivos; fazer a gestante ou a parturiente
acreditar que o parto cesáreo é o melhor, mesmo que sem necessidade; recusar atendimento de
parto; promover a transferência da gestante ou parturiente sem verificar a existência de vaga e
garantia de atendimento; impedir que a gestante tenha acompanhante durante todo o trabalho
de parto; impedir a mulher de se comunicar com outras pessoas; submeter a mulher a
procedimentos dolorosos e desnecessários; deixar de aplicar anestesia na parturiente quando
esta quiser; proceder a episiotomia desnecessária; manter detentas algemadas em trabalho de
parto; fazer procedimentos sem permissão ou sem explicar a sua necessidade ou mesmo para
treinamento de estudantes; deixar de acomodar a gestante, sem qualquer justificativa, após o

por exemplo, sintetizada acima, apesar de circular na mídia em vários países, não gerou manifestações sociais ou
de entidades médicas brasileiras. Apenas ativistas da luta pela ‘humanização’ do parto criticaram a violência, e
não se tem informação de denúncias realizadas junto à justiça comum ou ao Conselho Regional de Medicina.”
(TESSER, Charles Dalcanale; KNOBEL Roxana; ANDREZZO Halana Faria de Aguiar, Diniz Simone Grilo.
Violência obstétrica e prevenção quaternária: o que é e o que fazer. RevBrasMedFam Comunidade. [Internet].
2015; 10(35): 1-12). Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1013/716. Acesso em 06/dez/2018.

93
parto; submeter o bebê saudável a procedimento na primeira hora de vida, sem que tenha
mantido contato com a mãe e de ter tido chance de mamar; retirar da mãe saudável o direito
de ter ao seu lado seu filho, igualmente saudável, em alojamento conjunto; não informar a
mulher, maior de vinte e cinco anos ou com mais de dois filhos sobre o direito de realização
de laqueadura gratuita; tratar o pai do bebê como visita e obstar seu livre acesso para
acompanhar a parturiente e o bebê.182

182
“Lei n.º 17.097, de 17 de janeiro de 2017, que dispõe sobre a implantação de medidas de informação e
proteção à gestante e à parturiente contra a violência obstétrica no Estado de Santa Catarina:
Art. 1º – A presente Lei tem por objeto a implementação de medidas de informação e proteção à gestante e à
parturiente contra a violência obstétrica no Estado de Santa Catarina e divulgação da Política Nacional de
Atenção Obstétrica e Neonatal.
Art. 2º – Considera-se violência obstétrica todo ato praticado pelo médico, pela equipe do hospital, por um
familiar ou acompanhante que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres gestantes, em trabalho de parto ou,
ainda, no período puerpério.
Art. 3º – Para efeitos da presente Lei considerar-se-á ofensa verbal ou física, dentre outras, as seguintes
condutas:
I – tratar a gestante ou parturiente de forma agressiva, não empática, grosseira, zombeteira, ou de qualquer outra
forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido;
II – fazer graça ou recriminar a parturiente por qualquer comportamento como gritar, chorar, ter medo, vergonha
ou dúvidas;
III – fazer graça ou recriminar a mulher por qualquer característica ou ato físico como, por exemplo, obesidade,
pelos, estrias, evacuação e outros;
IV – não ouvir as queixas e dúvidas da mulher internada e em trabalho de parto;
V – tratar a mulher de forma inferior, dando-lhe comandos e nomes infantilizados e diminutivos, tratando-a
como incapaz;
VI – fazer a gestante ou a parturiente acreditar que precisa de uma cesariana quando esta não se faz necessária,
utilizando de riscos imaginários ou hipotéticos não comprovados e sem a devida explicação dos riscos que
alcançam ela e o bebê;
VII – recusar atendimento de parto, haja vista este ser uma emergência médica;
VIII – promover a transferência da internação da gestante ou parturiente sem a análise e a confirmação prévia de
haver vaga e garantia de atendimento, bem como tempo suficiente para que esta chegue ao local;
IX – impedir que a mulher seja acompanhada por alguém de sua preferência durante todo o trabalho de parto;
X – impedir a mulher de se comunicar com o ‘mundo exterior’, tirando-lhe a liberdade de telefonar, fazer uso de
aparelho celular, caminhar até a sala de espera, conversar com familiares e com seu acompanhante;
XI – submeter a mulher a procedimentos dolorosos, desnecessários ou humilhantes, com lavagem intestinal,
raspagem de pelos pubianos, posição ginecológica com portas abertas, exame de toque por mais de um
profissional;
XII – deixar de aplicar anestesia na parturiente quando esta assim o requerer;
XIII – proceder a episotomia quando esta não é realmente imprescindível;
XIV – manter algemadas as detentas em trabalho de parto;
XV – fazer qualquer procedimento sem, previamente, pedir permissão ou explicar, com palavras simples, a
necessidade do que está sendo oferecido ou recomendado;
XVI – após o trabalho de parto, demorar injustificadamente para acomodar a mulher no quarto;
XVII – submeter a mulher e/ou bebê a procedimentos feitos exclusivamente para treinar estudantes;
XVIII – submeter o bebê saudável a aspiração de rotina, injeções ou procedimentos na primeira hora de vida,
sem que antes tenha sido colocado em contato pele a pele com a mãe e de ter tido a chance de mamar;
XIX – retirar da mãe, depois do parto, o direito de ter o bebê ao seu lado no Alojamento Conjunto e de
amamentar em livre demanda, salvo se um deles, ou ambos necessitarem de cuidados especiais;
XX – não informar a mulher, com mais de 25 (vinte e cinco) anos ou com mais de 2 (dois) filhos sobre seu
direito à realização de ligadura nas trompas gratuitamente nos hospitais públicos e conveniados ao Sistema
Único de Saúde (SUS);
XXI – tratar o pai do bebê como visita e obstar seu livre acesso para acompanhar a parturiente e o bebê a
qualquer hora do dia.

94
No Distrito Federal, a Lei n.º 6.144, de 7 de junho de 2018, dispõe sobre a
implantação de medidas de informação a mulheres grávidas e parturientes, visando à sua
proteção, para que não sejam vítimas de violência obstétrica. Para essa lei, considera-se
violência obstétrica todo ato praticado por profissionais de saúde no atendimento à mulher
grávida ou parida que a ofenda, de forma verbal ou física, desde o pré-natal até o puerpério.

De acordo com a citada lei, considera-se violência obstétrica, além da ofensa


verbal ou física, dentre outras, as seguintes condutas: tratar a gestante ou parturiente de forma
agressiva, grosseira ou zombeteira, de forma que a faça se sentir mal; fazer piadas sarcásticas
ou recriminar a mulher por suas características físicas ou ato físico; ignorar queixas e dúvidas
da gestante ou mulher em trabalho de parto; tratar a mulher de forma inferior; fazer a mulher
acreditar que precisa de uma cirurgia cesariana sem necessidade; recusar atendimento de
parto; promover a transferência de gestante ou mulher parida sem confirmação de haver vaga
ou garantia de atendimento; impedir a presença de acompanhante para a mulher durante o
parto e o pós-parto imediato; impedir a comunicação da mulher grávida ou parida com o
mundo exterior; submeter a mulher a procedimentos dolorosos, desnecessários ou
humilhantes ou feitos para treinar estudantes; deixar de oferecer recursos para alívio da dor;
proceder a episiotomia desnecessária; manter a mulher detenta algemada durante o trabalho
de parto; fazer procedimento sem permissão ou explicação; após o parto, demorar para
acomodar a mulher no quarto; submeter recém-nascido saudável a procedimentos
desnecessários na primeira hora de vida, sem ter tido contato com a mãe ou tido chance de
mamar; retirar da mulher, depois do parto, o direito de ter seu filho no alojamento conjunto;
não informar a mulher com mais de vinte e cinco anos ou com mais de dois filhos, sobre o
direito de realização de ligadura; tratar o pai do recém-nascido como visita.183

183
“Lei n.º 6.144, de 7 de junho de 2018
Dispõe sobre a implantação de medidas de informação a mulheres grávidas e paridas sobre a política nacional de
atenção obstétrica e neonatal, visando, principalmente, à proteção delas no cuidado da atenção obstétrica no
Distrito Federal.
O GOVERNADOR DO DISTRITO FEDERAL, FAÇO SABER QUE A CÂMARA LEGISLATIVA DO
DISTRITO FEDERAL DECRETA E EU SANCIONO A SEGUINTE LEI:
Art. 1º – Fica instituída, em âmbito distrital, a implantação de medidas de informação às mulheres grávidas e
paridas sobre a política nacional de atenção obstétrica e neonatal, visando, principalmente, à proteção delas no
cuidado da atenção obstétrica no Distrito Federal.
Art. 2º – Considera-se violência obstétrica todo ato praticado pela equipe de assistência à mulher grávida ou
parida de estabelecimentos hospitalares, postos de saúde, unidades básicas de saúde e consultórios médicos
especializados no atendimento da saúde da mulher grávida ou parida que ofenda, de forma verbal ou física,
desde o pré-natal até o puerpério.
Art. 3º – Para efeitos desta Lei, considera-se ofensa verbal ou física, entre outras, as seguintes condutas:
I – tratar a mulher grávida ou parida de forma agressiva, grosseira, zombeteira ou de qualquer outra forma que a
faça se sentir mal pelo tratamento recebido;

95
II – fazer piadas sarcásticas ou recriminar a mulher grávida ou parida por qualquer comportamento como gritar,
chorar e ter medo, vergonha ou dúvidas;
III – fazer piadas sarcásticas ou recriminar a mulher grávida ou parida por qualquer característica ou ato físico
como, por exemplo, obesidade, pelos, estrias, evacuação e outros;
IV – ignorar as queixas e dúvidas da mulher grávida ou parida internada e em trabalho de parto;
V – tratar a mulher grávida ou parida de forma inferior, dando-lhe comandos e nomes infantilizados e
diminutivos, tratando-a como incapaz;
VI – fazer a mulher grávida ou parida acreditar que precisa de uma cirurgia cesariana quando esta não se faz
necessária, utilizando-se de riscos imaginários ou hipotéticos não comprovados e sem a devida explicação dos
riscos que alcançam a parturiente e o recém-nascido;
VII – recusar atendimento de parto, haja vista este ser uma emergência médica;
VIII – promover a transferência da internação da mulher grávida ou parida sem a análise e a confirmação prévia
de haver vaga e garantia de atendimento, bem como sem verificar o tempo suficiente para que esta chegue ao
local;
IX – impedir que a mulher grávida ou parida seja acompanhada por pessoa de sua preferência, durante todo o
trabalho de parto, o parto e o pós-parto imediato, independentemente do sexo;
X – impedir a mulher grávida ou parida de se comunicar com o mundo exterior, tirando-lhe a liberdade de
telefonar, fazer uso de aparelho celular, caminhar até a sala de espera, conversar com familiares e com o
acompanhante;
XI – submeter a mulher grávida ou parida a procedimentos dolorosos, desnecessários ou humilhantes, como
lavagem intestinal, raspagem de pelos pubianos, posição ginecológica com portas abertas, exame de toque por
mais de um profissional, sem a sua devida autorização;
XII – deixar de oferecer recursos de alívio da dor, farmacológicos e não farmacológicos, inclusive analgesia e
anestesia na parida quando ela assim o requerer;
XIII – proceder a episiotomia indiscriminadamente;
XIV – manter algemada a mulher grávida ou parida detenta em trabalho de parto;
XV – fazer qualquer procedimento sem, previamente, pedir permissão ou explicar, com palavras simples, a
necessidade do que está sendo oferecido ou recomendado;
XVI – após o trabalho de parto, o parto e o pós-parto imediato, demorar injustificadamente para acomodar a
mulher grávida ou parida no quarto;
XVII – submeter a mulher grávida ou parida ou seu filho ou filha a procedimentos feitos exclusivamente para
treinar estudantes, sem sua devida autorização;
XVIII – submeter o recém-nascido saudável a aspiração de rotina, injeções ou procedimentos na primeira hora
de vida, sem que antes tenha sido colocado em contato pele a pele com a mãe e de ter tido a chance de mamar;
XIX – retirar da mulher parida, depois do parto, o direito de ter seu filho ou filha ao seu lado no alojamento
conjunto e de amamentar em livre demanda, salvo se um deles ou ambos necessitarem de cuidados especiais;
XX – não informar a mulher grávida ou parida com mais de 25 anos ou com mais de 2 filhos sobre seu direito à
realização de ligadura nas trompas gratuitamente nos hospitais públicos e conveniados ao Sistema Único de
Saúde (SUS);
XXI – tratar o pai do recém-nascido como visita e obstar seu livre acesso para acompanhar a parida e o recém-
nascido a qualquer hora do dia ou da noite.
Art. 4º – Os estabelecimentos hospitalares devem expor cartazes informativos contendo o disposto no art. 3º,
caput e incisos.
§ 1º – Equiparam-se aos estabelecimentos hospitalares, para os efeitos desta Lei, os postos de saúde, as unidades
básicas de saúde e os consultórios médicos especializados no atendimento da saúde da mulher grávida ou parida.
§ 2º – Os cartazes devem informar, ainda, os órgãos e os trâmites para a denúncia nos casos de violência, quais
sejam as referidas nos seguintes incisos:
I – exigir, às suas expensas, cópia do prontuário da mulher grávida ou parida, que deve ser entregue sem
questionamentos e custos;
II – que a mulher grávida ou parida escreva uma carta contando em detalhes que tipo de violência sofreu e como
se sentiu;
III – se o seu parto foi no Sistema Único de Saúde (SUS), envie a carta para a ouvidoria do hospital com cópia
para a diretoria clínica, para a Secretaria da Saúde do Distrito Federal, o Ministério Público e a Delegacia da
Mulher;
IV – se o seu parto foi em hospital da rede privada, envie a carta para a diretoria clínica do hospital, com cópia
para a diretoria do seu plano de saúde, para a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), para a Secretaria
da Saúde do Distrito Federal, para o Ministério Público e para a Delegacia da Mulher;
V – consulte um advogado para as outras instâncias de denúncia, dependendo da gravidade da violência
recebida;

96
Além disso, o estado de São Paulo tem o Projeto de Lei n.º 1.130, de 2017, de
autoria da deputada Leci Brandão, que trata do tema da violência obstétrica. Ainda, a Lei n.º
19.207, de 1º de novembro de 2017, dispõe sobre a implantação de medidas de informação e
proteção à gestante e à parturiente contra a violência obstétrica no Estado do Paraná. Ainda,
sobre o tema, há três projetos de lei (PL n.º 8.219/17, do deputado Francisco Floriano; PL n.º
7.867/17, da deputada Jô Moraes; e o PL n.º 7.633/14, do deputado Jean Wyllys), que
dispõem sobre a humanização da assistência à mulher e ao neonato e dá outra providências,
sobre o tipo de atitude que pode ser considerada violência obstétrica e as punições previstas,
que vão de multa a dois anos de prisão. Esses projetos de lei, em trâmite no Congresso
Nacional, também dispõem sobre as diretrizes e os princípios dos direitos da mulher durante a
gestação, o pré-parto e o puerpério e a erradicação da violência obstétrica.

Em 2013, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo lançou uma cartilha


informativa definindo a violência obstétrica como a apropriação do corpo ou processos
reprodutivos de mulheres por profissionais de saúde, por meio de tratamentos desumanizados,
abuso de medicalização e patologização de processos naturais, gerando perda de autonomia e
capacidade de decidir livremente sobre o seu corpo e sua sexualidade, gerando impacto
negativo na vida dessas mulheres.

Existem países que já editaram legislação específica sobre violência obstétrica,


como a Argentina e o México. No âmbito internacional, a legislação da Argentina (Lei n.º
26.485/2009) define violência obstétrica como sendo aquela exercida por profissionais da
saúde e se caracteriza pela apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher, por
meio de tratamento desumanizado, abuso de medicação e patologização de processos naturais.

2.2.2 Conceito de violência obstétrica

Todas as vezes que uma mulher, ao ser internada para dar à luz, sofre um
tratamento desumanizado, ela tem a sua dignidade infringida, ou porque sofreu atos que
violaram a sua integridade psíquica, muitas vezes crimes contra a sua honra, como

VI – ligue para a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 (Decreto Federal n.º 7.393, de 15 de dezembro
de 2010).
Art. 5º – Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 6º – Revogam-se as disposições em contrário. Disponível em:
http://www.sinj.df.gov.br/sinj/Norma/700564f2b3214c69a7c7c7897caab258/Lei_6144_07_06_2018.html.
Acesso em: 26/jun/2018.

97
tratamentos humilhantes, como xingamentos, ou porque sofreu ofensas à sua integridade
física, o que ocorre com a adoção de procedimentos como toques constantes e desnecessários,
manobra de Kristeller (procedimento no qual o profissional empurra a barriga da gestante para
acelerar a expulsão do feto), episiotomia (corte na região do períneo para ampliar o canal de
parto) de rotina, além de cesariana sem anestesia ou desnecessária.184 É uma espécie de
violência presente na maioria das vezes, mas, ao mesmo tempo, escondida e silenciosa, o que
traz consequências para a mulher e para seu filho.185

Assim, esses procedimentos são considerados práticas abusivas, sem qualquer


respaldo científico, quando praticados de forma desnecessária e quando feitos por decisão
unilateral dos profissionais de saúde, sem que se tenha sequer dado conhecimento à gestante e
sem seu consentimento livre e esclarecido. Na maior parte das vezes, nem constam do
prontuário médico da paciente. Infelizmente, são procedimentos de rotina em inúmeros
hospitais do País, na maioria das vezes hospitais públicos, e que não têm eficácia
comprovada. Muitos desses procedimentos, na realidade, causam na paciente dor, humilhação
e constrangimento.186

Além dos citados procedimentos, pode ocorrer, ainda, abuso de medicamentos.


Isso ocorre quando se verificam intervenções médicas desnecessárias, com a finalidade de
beneficiar somente o profissional de saúde ou o hospital, onde a paciente encontra-se
internada. Os resultados a que se chegam poderiam ser alcançados por intermédio de
intervenções menos gravosas para a mulher, mas isso não ocorre. Pode haver violência

184
“O tratamento desumanizado se verifica sempre que a mulher tem sua dignidade aviltada, seja por meio de
atos que violem sua integridade psíquica, como se passa quando a equipe médica dispensa à mulher tratamento
humilhante, xingando-a ou depreciando-a, bem como quando lesam sua integridade física, a exemplo do que
ocorre quando se adotam procedimentos sem o seu consentimento, tais como: lavagem intestinal, tricotomia
(raspagem dos pelos pubianos), imobilização física, exames de toques constantes e desnecessários, manobra de
Kristeller (procedimento pelo qual o profissional de saúde ‘empurra’ a barriga da gestante a fim de acelerar a
expulsão do feto), episiotomia (corte cirúrgico na região do períneo para ampliar o canal de parto) de rotina, e
mesmo cesariana sem anestesia.” (TERRA, Aline de Miranda Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk.
Violência obstétrica contra a gestante com deficiência. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, 2019). (e-ISSN:
2317-2150). Disponível em: https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em 26/jun/2019.
185
“Enquanto conversava com mulheres de meu ciclo de convivência sobre a produção do livro, sempre que
mencionava o tema a maioria me olhava com cara de confusão. Não sabiam do que se tratava. Mais do que
nunca, notei que se trata de uma violência tão presente, tão escondida e tão silenciada, que impacta toda a
qualidade de vida da mulher e do seu filho.” (ÁVILA, Letícia. Parto: outro lado invisível do nascer: como a
violência obstétrica afeta 1 em cada 4 mulheres no Brasil, p. 20). Disponível em:
https://issuu.com/leticiaavila8/docs/livro_parto_leticia_avila. Acesso em 26/jun/2019.
186
“Cuida-se de práticas abusivas, muitas sem respaldo científico, adotadas por decisão exclusiva do médico,
sem o consentimento livre e esclarecido da parturiente. Trata-se, com efeito, de procedimentos rotineiros nos
hospitais do país, ineficazes ou pouco eficazes, alguns reconhecidamente inseguros, e que causam desconforto,
dor, humilhação ou constrangimento.” (TERRA, Aline de Miranda Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk.
Violência obstétrica contra a gestante com deficiência. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, 2019). Disponível
em: https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em 26/jun/2019.

98
obstétrica, ainda, quando feitas intervenções químicas desnecessárias também na criança.
Como exemplo, pode-se citar o uso de ocitocina para agilizar o trabalho de parto, a realização
de cesárea sem indicação clínica contra a vontade da gestante, por simples conveniência do
médico.187

Assim, verifica-se a violência obstétrica com a prática de condutas que violam


os direitos da mulher de ter uma gestação, e tudo o que dela decorre, de forma segura, com
respeito e dignidade. É uma violência que pode afetar a mãe, a criança ou quem a acompanha.
Pode ser praticada pelos profissionais de saúde e ainda pela equipe da administração do
hospital.188

De outro lado, muitos profissinais tentam transformar o parto em uma doença,


ou seja, em um processo não natural. Para isso, passam a utilizar, durante o trabalho de parto,
procedimentos desnecessários, com a falsa sensação para a gestante de lhe garantir uma maior
segurança e ao bebê. Desse modo, pode-se citar a opção pela cesárea, porque a mulher não
obteve ainda dilatação necessária para a efetivação do parto normal.189

Durante muitos anos, essas práticas, que hoje são consideradas violência
obstétrica, eram consideradas naturais e até hoje passam despercebidas. Assim, o desrespeito
às mulheres, aos seus desejos e às suas vontades, se institucionalizou e se naturalizou, e elas
mesmas nem conseguem perceber quando são ou não vítimas desse tipo de conduta.
Considera-se como sendo a última instância da prática de não se enxergar a mulher como a

187
“O abuso da medicalização, por sua vez, é identificado sempre que se realizam intervenções médicas
desnecessárias, levadas a cabo com a finalidade exclusiva de beneficiar o médico ou o hospital no qual o parto é
realizado, e cujos resultados poderiam ser alcançados por meio de intervenções menos gravosas para a gestante,
como quando se usa indiscriminadamente a versão sintética da ocitocina para agilizar o trabalho de parto e se
realiza cesárea sem indicação clínica, contrariando a vontade da gestante de realizar parto normal, por simples
conveniência de agenda do obstetra.” (TERRA, Aline de Miranda Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk.
Violência obstétrica contra a gestante com deficiência. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, 2019). (e- ISSN:
2317-2150). https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em 26/jun/2019.
188
“A violência obstétrica está nas práticas que violam o direito da mulher como parturiente de ter uma gravidez,
um parto e um pós-parto com segurança, dignidade, respeito e autonomia, tanto para si quanto para seu bebê.
Autonomia de parir e autonomia de nascer. Pode acontecer tanto nas consultas pré-natais, durante o
acompanhamento da gravidez, quanto nos hospitais, durante o trabalho de parto, e nas enfermarias, no pós-parto.
Pode ser contra a mãe, contra a criança e até contra quem os acompanha. Pode ser por parte da equipe da
administração do hospital, dos técnicos, dos enfermeiros e dos médicos.” (ÁVILA, Letícia. Parto: outro lado
invisível do nascer: como a violência obstétrica afeta 1 em cada 4 mulheres no Brasil, p. 20/21). Disponível em:
https://issuu.com/leticiaavila8/docs/livro_parto_leticia_avila.
189
“Por fim, a patologização dos processos naturais se caracteriza pela utilização de procedimentos, por vezes
também dispensáveis e desproporcionais, com o objetivo de promover maior segurança para a gestante e para o
bebê, a exemplo do que se passa quando se realiza uma cesárea porque a gestante ainda não alcançou a dilatação
suficiente.” (TERRA, Aline de Miranda Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Violência obstétrica contra a
gestante com deficiência. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, 2019). Disponível em:
https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em 26/jun/2019.

99
protagonista de todo o trabalho de parto, mas como um acessório deste. Em 2014, a
Organização Mundial de Saúde publicou uma declaração oficial para prevenção e eliminação
desse tipo de violência, qualificando-a como violação de direitos fundamentais.190

A OMS, por seu turno, define a violência obstétrica como a “violência física,
humilhação profunda e abusos verbais, procedimentos médicos não consentidos ou
coercitivos, falta de confidencialidade, não obtenção de consentimento esclarecido antes da
realização de procedimentos, recusa em administrar analgésicos, violações de privacidade,
recusa de internação, cuidado negligente durante o parto, conduzindo a complicações que
poderiam ter sido evitadas e situações ameaçadoras da vida, bem como detenção de mulheres
e bebês em instituições de saúde, por falta de pagamento”.191

Muitas vezes, a violência obstétrica pode ocorrer quando à mulher não resta
qualquer opção. Isso ocorre quando seus desejos são desrespeitados ou mesmo quando ela
mesma não tem autonomia para escolher dentro do que lhe é oferecido. Ainda a mulher pode
ser vítima de violência obstérica quando ela mesma não conhece seu corpo, não tem acesso a
informações necessárias e em locais onde não existe uma cultura de planejamento do parto.192

190
“Durante anos, assistiu-se, com certa naturalidade, a todas essas práticas, decorrentes, em grande medida, da
medicalização do parto, cujo escopo se concentra em atribuir a tais profissionais o absoluto controle sobre todas
as etapas da gestação, desde a fase anterior à concepção até o pós-parto, colocando, em suas mãos, todas as
decisões relativas ao processo gestacional, bem como da disseminação da concepção segundo a qual os
profissionais de saúde têm o direito de acessar livremente o corpo feminino. Referida postura, somada à
perpetuação do ensino acrítico aos estudantes de Medicina de procedimentos dolorosos e, não raro,
prescindíveis, acaba por normalizar aquelas práticas antes referidas, estabelecendo uma cultura institucional que
não as reconhece como violações aos direitos da gestante. (…) A fim de combater episódios como estes, a
Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou, em 23 de setembro de 2014, declaração oficial para prevenção
e eliminação da violência obstétrica, que qualificou como violação dos direitos humanos fundamentais.”
(TERRA, Aline de Miranda Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Violência obstétrica contra a gestante
com deficiência. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, 2019). (e- ISSN: 2317-2150).
https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744 Acesso em 26/jun/2019.
191
“De acordo com a OMS, os relatos sobre os abusos praticados incluem [...] violência física, humilhação
profunda e abusos verbais, procedimentos médicos coercivos ou não consentidos (incluindo a esterilização), falta
de confidencialidade, não obtenção de consentimento esclarecido antes da realização de procedimentos, recusa
em administrar analgésicos, graves violações da privacidade, recusa de internação nas instituições de saúde,
cuidado negligente durante o parto, levando a complicações evitáveis e situações ameaçadoras da vida, e
detenção de mulheres e seus recém-nascidos nas instituições, após o parto, por incapacidade de pagamento
(OMS, 2014, s.p.).” (TERRA, Aline de Miranda Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Violência obstétrica
contra a gestante com deficiência. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, 2019). (e- ISSN: 2317-2150).
https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em 26/jun/2019.
192
“A violência também acontece quando a mulher não tem uma escolha. Quando seus desejos e vontades não
são respeitados ou quando não tem autonomia para fazer uma opção consciente dentro do que lhe é oferecido. Há
ainda violência obstétrica por parte da sociedade quando a mulher não conhece seu próprio corpo, não tem
acesso às informações necessárias e, mais além, quando não existe uma ‘cultura’ de planejamento de parto, de
incentivo à pesquisa sobre o assunto e de se manter em atualização – preparação necessária para o momento do
nascimento daquela criança.” (ÁVILA, Letícia. Parto: outro lado invisível do nascer: como a violência

100
É sabido que os atos de violência obstétrica, independentemente de edição de
lei específica, podem caracterizar fatos típicos e antijurídicos, já previstos no Código Penal,
como os crimes de homicídio, de lesão corporal, de omissão de socorro e contra a honra, entre
outras condutas, mas não há uma legislação específica para essa finalidade. O que deve ser
feita é a criação de uma lei específica, tipificando condutas previstas como crimes de
médicos, profissionais de saúde, doulas e gestores hospitalares.

Várias pesquisas envolvendo mulheres no período gravídico, ou seja,


abrangendo a gestação, o parto, o puerpério e o abortamento, espontâneo ou provocado, mas
especialmente durante o parto, descrevem uma situação bastante assustadora. Em quase todos
os lugares do mundo, mulheres sofrem diversos abusos, sejam físicos ou psicológicos,
envolvendo desrespeito, maus-tratos e negligência durante a assistência ao parto nas
instituições de saúde. Isso traz, obviamente, uma quebra de confiança da gestante com relação
à equipe médica. Esse tipo de violência pode ter consequências diretas para a mãe e a
criança.193

Mulheres que sofrem esse tipo de violência relatam os casos de abuso,


incluindo, o que já foi referido como violência física ou psicológica (humilhação e
xingamentos), além de procedimentos médicos com coerção ou sem seus consentimentos
(incluindo a esterilização). Desse modo, considera-se violência obstétrica, também, a não
obtenção de consentimento esclarecido antes da realização de procedimentos, recusa por parte
dos profissionais em administrar analgésicos, violações da privacidade, recusa de internação
nas instituições de saúde, cuidado negligente durante o parto, o que gera complicações na
paciente que poderiam ter sido evitadas, além de muitas se sentirem ameaçadas. Pode ocorrer,
ainda, detenção de mulheres e seus recém-nascidos nas instituições, após o parto, por falta de
pagamento. As mulheres mais suscetíveis de experimentar esses abusos são as mais
vulneráveis, ou seja, adolescentes, solteiras, de baixo nível sócio-econômico, de minorias

obstétrica afeta 1 em cada 4 mulheres no Brasil, p. 24/25). Disponível em:


https://issuu.com/leticiaavila8/docs/livro_parto_leticia_avila.
193
“Contudo, um crescente volume de pesquisas sobre as experiências das mulheres durante a gravidez, e em
particular no parto, descreve um quadro perturbador. No mundo inteiro, muitas mulheres experimentam abusos,
desrespeito, maus-tratos e negligência durante a assistência ao parto nas instituições de saúde. Isso representa
uma violação da confiança entre as mulheres e suas equipes de saúde, e pode ser também um poderoso
desestímulo para as mulheres procurarem e usarem os serviços de assistência obstétrica. Embora o desrespeito e
os maus tratos possam ocorrer em qualquer momento da gravidez, no parto e no período pós-parto, as mulheres
ficam especialmente vulneráveis durante o parto. Tais práticas podem ter consequências adversas diretas para a
mãe e a criança.” (OMS – Organização Mundial da Saúde - Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e
maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. OMS, 2014). Disponível em:
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf;jsessionid=219206387B778
AEA9329B22E033F6D6E?sequence=3. Acesso em 27/jun/2019.

101
étnicas, migrantes e que possuem HIV.194 Assim, há violência obstétrica quando existe a falta
de comunicação, ou seja, quando os procedimentos são realizados sem a autorização da
gestante, ou quando ela autoriza, mas sem necessidade, ou há necessidade, mas não há
consentimento.195

É certo que o direito à saúde é garantido constitucionalmente e deveria atingir


todas as pessoas, sem distinção. Isso, obviamente, inclui mulheres que deveriam ter o direito a
uma assistência digna e respeitosa, durante todo o período do pré-natal, até o momento do
parto, bem como deveriam ter o direito de estar livres de qualquer tipo de violência e de
discriminação. Os abusos, os maus-tratos, as negligências e os desrespeitos, ocorridos durante
o parto, equivalem a uma violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres. As
mulheres, nesses casos, estão em uma situação de hipervulnerabilidade e, assim, têm o direito
à igualdade e à dignidade. Essas pacientes são livres para procurar e receber informações,
além de não sofrerem discriminações e de usufruírem do mais alto padrão de saúde, seja esta
física, mental, sexual e reprodutiva.196

Apesar de haver uma convicção de que existe esse desrespeito e maus-tratos de


mulheres, não existe consenso internacional se esses casos podem ser definidos pela ciência

194
“Relatos sobre desrespeito e abusos durante o parto em instituições de saúde incluem violência física,
humilhação profunda e abusos verbais, procedimentos médicos coercivos ou não consentidos (incluindo a
esterilização), falta de confidencialidade, não obtenção de consentimento esclarecido antes da realização de
procedimentos, recusa em administrar analgésicos, graves violações da privacidade, recusa de internação nas
instituições de saúde, cuidado negligente durante o parto levando a complicações evitáveis e situações
ameaçadoras da vida, e detenção de mulheres e seus recém-nascidos nas instituições, após o parto, por
incapacidade de pagamento. Entre outras, as adolescentes, as mulheres solteiras, as mulheres de baixo nível
sócio-econômico, de minorias étnicas, migrantes e as que vivem com HIV são particularmente propensas a
experimentar abusos, desrespeito e maus-tratos.” (OMS – Organização Mundial da Saúde – Prevenção e
eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde). OMS, 2014.
Disponível em:
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf;jsessionid=219206387B778
AEA9329B22E033F6D6E?sequence=3. Acesso em 27/jun/2019.
195
“Durante o parto, a violência está em procedimentos realizados sem autorização da gestante ou quando ela
autoriza, mas são realizados sem necessidade. Ou com necessidade, mas sem o conhecimento dela. Quando
existe a má comunicação.” (ÁVILA, Letícia. Parto: outro lado invisível do nascer: como a violência obstétrica
afeta 1 em cada 4 mulheres no Brasil, p. 25). Disponível em:
https://issuu.com/leticiaavila8/docs/livro_parto_leticia_avila.
196
“Todas as mulheres têm direito ao mais alto padrão de saúde atingível, incluindo o direito a uma assistência
digna e respeitosa durante toda a gravidez e o parto, assim como o direito de estar livre da violência e da
discriminação. Os abusos, os maus-tratos, a negligência e o desrespeito, durante o parto, equivalem a uma
violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres, como descrevem as normas e os princípios de direitos
humanos adotados internacionalmente. Em especial, as mulheres grávidas têm o direito de serem iguais em
dignidade, de serem livres para procurar, receber e dar informações, de não sofrerem discriminações e de
usufruírem do mais alto padrão de saúde física e mental, incluindo a saúde sexual e reprodutiva.” (OMS –
Organização Mundial da Saúde – Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto
em instituições de saúde. OMS, 2014). Disponível em:
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf;jsessionid=219206387B778
AEA9329B22E033F6D6E?sequence=3. Acesso em 27/jun/2019.

102
como casos de violência obstétrica. Por causa disso, o impacto dessa violência, na área da
saúde e no bem-estar das mulheres, não é conhecido. Existe um esforço muito grande, seja na
área médica ou mesmo na legislativa, para definir, medir e compreender melhor o desrespeito
e os abusos sofridos por mulheres, nesses casos, assim como formas de se fazer sua prevenção
e eliminação.197

O próprio Conselho Federal de Medicina editou um Parecer198 no qual entende


que “a expressão ‘violência obstétrica’ é um termo que vem sendo utilizado mais
recentemente no Brasil, com o intuito de substituir a expressão ‘violência no parto’. Em geral,
a violência institucional se relaciona com um amplo espectro de profissionais e personagens
não apenas da área de saúde, mas também com entidades públicas, privadas e qualquer
organização da sociedade civil”.

Nesse mesmo Parecer, dispõe o CFM que a expressão “violência obstétrica”


tem produzido grande indignação entre os obstetras, pois seu uso tem se voltado em desfavor
da nossa especialidade, impregnada de uma agressividade que beira a histeria, e
responsabilizando somente os médicos por todo ato que possa indicar violência ou
discriminação contra a mulher”.

Para que se garanta um bom nível de respeito na assistência ao parto, os


sistemas de saúde devem ser, além de organizados, também bem administrados, para garantir
esse respeito a seus direitos humanos às mulheres. A necessidade de abordagem do tema
violência obstétrica existe há muito tempo nas comunidades do mundo inteiro. Devem ser
criadas políticas públicas para a promoção da assistência obstétrica de forma respeitosa.199

197
“Apesar das evidências sugerirem que as experiências de desrespeito e maus-tratos das mulheres, durante a
assistência ao parto, são amplamente disseminadas atualmente não há consenso internacional sobre como esses
problemas podem ser cientificamente definidos e medidos. Em consequência, sua prevalência e impacto na
saúde, no bem-estar e nas escolhas das mulheres não são conhecidas. Há uma agenda de pesquisa considerável
para definir, medir e compreender melhor o desrespeito e abusos das mulheres, durante o parto, assim como
formas de prevenção e eliminação.” (OMS – Organização Mundial da Saúde – Prevenção e eliminação de
abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. OMS, 2014). Disponível em:
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf;jsessionid=219206387B778
AEA9329B22E033F6D6E?sequence=3. Acesso em 27/jun/2019.
198
Parecer CFM n.º 32/2018.
199
“Para obter um alto nível de respeito na assistência ao parto, os sistemas de saúde devem ser organizados e
administrados de forma a garantir o respeito à saúde sexual e reprodutiva e aos direitos humanos das mulheres.
Enquanto muitos governos, grupos da sociedade civil e comunidades no mundo inteiro já destacaram a
necessidade de abordar esse problema, em muitos casos, políticas para promover a assistência obstétrica
respeitosa não foram adotadas, não são específicas ou não foram convertidas em ações significativas.” (OMS –
Organização Mundial da Saúde – Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto
em instituições de saúde. OMS, 2014). Disponível em:

103
No ano de 2010, os historiadores Browser e Hill propuseram agrupar a
violência obstétrica em sete categorias diferentes, ou seja, abusos físicos, procedimentos sem
consentimento, assistência não confidencial, assistência indigna, discriminação baseada nos
atributos da paciente, abandono da assistência e detenção nas unidades de saúde.200

Estima-se que, em 2015, segundo dados da Organização Mundial da Saúde,


cerca de 303 mil mulheres já morreram por causas que se relacionam com todo o período da
gravidez. Cerca de 2,7 milhões de bebês morreram enquanto recém-nascidos (ou seja, durante
os primeiros vinte e oito dias de vida). Além disso, mais ou menos, 2,6 milhões de bebês eram
natimortos. Se houvesse cuidado e respeito à gestante, durante a gravidez e no parto, essas
mortes poderiam ter sido evitadas. Atualmente, sabe-se que somente 64% das mulheres
recebem cuidados pré-natais, quatro vezes ou mais, durante a gestação.201

https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf;jsessionid=219206387B778
AEA9329B22E033F6D6E?sequence=3. Acesso em 27/jun/2019.
200
“The concerns about non-evidence-based interventions are one of the reasons for the growing international
attention and debate on the problem of disrespect and abuse of women during childbirth. In the last years, there
have been several attempts to structure the discussion on the topic. In 2010, Bowser and Hill proposed seven
categories to group disrespect during childbirth: physical abuse, non-consented care, non-confidential care, non-
dignified care, discrimination based on patient attributes, abandonment of care, and detention in facilities. 22
Freedman and colleagues argued that those categories lacked a definition in terms of the characteristics of
healthcare provider behaviour, facility conditions or other factors that could be constructed as disrespectful and
abusive. They proposed a model to assess the individual, structural, and policy level interactions that shape the
problem, and defined disrespect and abuse in childbirth as the ‘interactions or facility conditions that local
consensus deems to be humiliating or undignified, and those interactions or conditions that are experienced as
or intended to be humiliating or undignified’, acknowledging its links with the wider social dynamics of
inequality and uneven power between groups.” (SADLER, Michelle; SANTOS, Mário JDS; RUIZ-BERDÚN,
Dolores; ROJAS, Gonzalo Leiva; SKOKO Elena; GILLEN, Patrícia, CLAUSEN JETTE A. Moving beyond
disrespect and abuse: addressing the structural dimensions of obstetric violence. Reproductive Health Matters.
24(47): 47-55). Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1016/j.rhm.2016.04.002. Acesso em
25/jan. 2018. Tradução livre: “As preocupações com intervenções não baseadas em evidências são uma das
razões para a crescente atenção internacional e o debate sobre o problema do desrespeito e abuso das mulheres
durante o parto. Nos últimos anos, houve várias tentativas de estruturar a discussão sobre o tema. Em 2010,
Bowser e Hill propuseram sete categorias para agrupar o desrespeito durante o parto: abuso físico, assistência
não consentida, assistência não confidencial, assistência não digna, discriminação com base nos atributos do
paciente, abandono da assistência e detenção em instituições. Freedman e colegas argumentaram que essas
categorias careciam de uma definição em termos das características do comportamento do profissional de saúde,
condições das instalações ou outros fatores que poderiam ser construídos como desrespeitosos e abusivos. Eles
propuseram um modelo para avaliar as interações individuais, estruturais e de políticas que moldar o problema e
definir desrespeito e abuso no parto como as ‘interações ou condições das instalações que o consenso local
considera humilhantes ou indignas, e aquelas interações ou condições que são experimentadas ou pretendem ser
humilhantes ou indignas’, reconhecendo seus vínculos com a dinâmica social mais ampla da desigualdade e do
poder desigual entre grupos.
201
“A Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou nesta semana (7) uma nova série de recomendações para
melhorar a qualidade da atenção pré-natal. O objetivo é reduzir o risco de natimortos e de complicações na
gestação. Em 2015, 303 mil mulheres morreram por causas relacionadas à gravidez, segundo a agência da ONU.
No mesmo ano, 2,7 milhões de crianças morreram durante os 28 primeiros dias de vida e 2,6 milhões de bebês
nascidos eram natimortos. Atualmente, apenas 64% das mulheres grávidas recebem cuidados pré-natais quatro
ou mais vezes durante a gestação.” (OMS – Organização Mundial de Saúde, 2016. OMS publica novas

104
Segundo a OMS, a atenção pré-natal para todas as mulheres deve ter um
determinado número mínimo de consultas. A orientação atual é no sentido de aumentar esse
número de quatro, como é atualmente, para oito. É certo que uma maior frequência e um
maior número de consutas na atenção pré-natal de mulheres e adolescentes com profissionais
de saúde está relacionada com uma menor probabilidade de natimortos. Isso ocorre porque,
nesse caso, haverá mais oportunidades para o médico verificar e resolver eventuais
problemas. Pelo menos oito consultas podem reduzir ainda mais o número de mortes
perinatais em até 8 para cada mil nascidos, comparativamente ao número atual de quatro
visitas.202

Também, com o aumento do número de consultas, aumentam-se as avaliações


da mãe e do feto, com a possibilidade de detectar eventuais problemas. Isso também melhora
a comunicação entre os prestadores de saúde e as gestantes, com a crescente possibilidade de
resultados positivos na gestação. Existe, ainda, uma recomendação de que as mulheres
grávidas tenham seu primeiro contato nas doze primeiras semanas de gestação, com visitas
subsequentes na 20ª, 26ª, 30ª, 34ª, 36ª, 38ª e 40ª semana de gestação.203

As novas diretrizes contêm quarenta e nove recomendações que descrevem os


cuidados que as gestantes devem receber a cada contato com o sistema de saúde, incluindo,
dentre outros, aconselhamento sobre uma dieta saudável e nutrição ideal; atividade física; uso
de tabaco e outras substâncias; prevenção da malária e HIV; exames de sangue e vacinação

orientações sobre pré-natal para reduzir mortes de mães e bebês). Disponível em https://nacoesunidas.org/oms-
publica-novas-orientacoes-sobre-pre-natal-para-reduzir-mortes-de-maes-e-bebes/. Acesso em 25/jan/2018.
202
“O novo modelo de atenção pré-natal da OMS aumenta o número de contatos (consultas) que uma mulher
grávida deve ter com profissionais de saúde ao longo de sua gravidez de quatro para oito. Evidências recentes
indicam que uma maior frequência de contatos na atenção pré-natal de mulheres e adolescentes com o sistema de
saúde é associada a uma menor probabilidade de natimortos. Isso acontece devido ao aumento das oportunidades
para detectar e gerir potenciais problemas. Um mínimo de oito contatos pode reduzir as mortes perinatais em até
8 para cada mil nascidos quando comparado ao mínimo de quatro visitas.” (OMS – Organização Mundial de
Saúde, 2016. Mulheres grávidas devem ter acesso aos cuidados adequados no momento certo). Disponível em
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5288:mulheres-gravidas-devem-
ter-acesso-aos-cuidados-adequados-no-momento-certo-afirma-oms&Itemid=820. Acesso em 25/jan/2018.
203
“Além disso, o novo modelo aumenta as avaliações da mãe e do feto para detectar problemas, melhora a
comunicação entre os prestadores de saúde e as gestantes e amplia a possibilidade de resultados positivos na
gravidez. A publicação recomenda que mulheres grávidas tenham seu primeiro contato nas 12 primeiras semanas
de gestação, com visitas subsequentes na 20ª, 26ª, 30ª, 34ª, 36ª, 38ª e 40ª semana de gestação.” (OMS –
Organização Mundial de Saúde, 2016. Mulheres grávidas devem ter acesso aos cuidados adequados no
momento certo). Disponível em
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5288:mulheres-gravidas-devem-
ter-acesso-aos-cuidados-adequados-no-momento-certo-afirma-oms&Itemid=820. Acesso em 25/jan/2018.

105
contra tétano; medições fetais, inclusive por meio de ultrassom; e conselhos sobre como lidar
com sintomas fisiológicos comuns, como náusea, dor nas costas e constipação.204

No Brasil, o tema da violência obstétrica vem sendo estudado e, inclusive,


abordado em inúmeros trabalhos científicos e não científicos. O primeiro deles, chamado de
Espelho de Vênus, do Grupo Ceres, de 1981, fazia um estudo das mulheres, enquanto grupo,
descrevendo o parto feito em hospitais como algo violento. Existem vários depoimentos de
mulheres, demonstrando que elas podem ser vítimas de violência em outros momentos e não
somente em caso de violência doméstica. É possível que ocorram atos violentos na relação
entre os profissionais de saúde e as pacientes, mormente no momento da gestação. No
processo do parto, mais especificamente, a mulher se vê sozinha em um hospital,
desamparada, vendo seu corpo ser manipulado, em um dos momentos mais importantes de
sua vida, sem poder tomar qualquer atitude.205

No século passado, na década de 1980, a violência obstétrica era tema de


algumas políticas de saúde. Como exemplo, pode-se citar o Programa de Atenção Integral à
Saúde da Mulher (PAISM), o qual reconhecia o tratamento impessoal e, muitas das vezes,
agressivo de mulheres atendidas em hospitais. No entanto, mesmo nesse tema estando em
pauta políticas públicas, o assunto sempre foi negligenciado, e continua sendo, por haver
resistência de profissionais de saúde. Argumenta-se que existem questões mais urgentes na
agenda de movimentos feministas, como é o caso de acesso das mulheres pobres aos serviços
essenciais. Mesmo assim, o tema esteve em alguns cursos ministrados sobre o assunto, como

204
“As novas diretrizes contêm 49 recomendações que descrevem os cuidados que as gestantes devem receber a
cada contato com o sistema de saúde, incluindo aconselhamento sobre uma dieta saudável e nutrição ideal;
atividade física; uso de tabaco e outras substâncias; prevenção da malária e HIV; exames de sangue e vacinação
contra tétano; medições fetais, inclusive por meio de ultrassom; e conselhos sobre como lidar com sintomas
fisiológicos comuns, como náusea, dor nas costas e constipação.” (OMS – Organização Mundial de Saúde, 2016.
Mulheres grávidas devem ter acesso aos cuidados adequados no momento certo). Disponível em
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5288:mulheres-gravidas-devem-
ter-acesso-aos-cuidados-adequados-no-momento-certo-afirma-oms&Itemid=820. Acesso em 25/jan/2018.
205
“No Brasil, o tema já vinha sendo abordado em trabalhos feministas, na academia e fora dela. O pioneiro
Espelho de Vênus, do Grupo Ceres (1981), na década de 1980, fazia uma etnografia da experiência feminina,
descrevendo explicitamente o parto institucionalizado como uma vivência violenta. Esse grupo de pesquisadoras
ativistas publicou depoimentos demonstrando que: ‘Não é apenas na relação sexual que a violência aparece
marcando a trajetória existencial da mulher. Também na relação médico-paciente, ainda uma vez o
desconhecimento de sua fisiologia é acionado para explicar os sentimentos de desamparo e desalento com que a
mulher assiste seu corpo ser manipulado quando recorre à medicina nos momentos mais significativos da sua
vida: a contracepção, o parto, o aborto. (p. 349)’.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira;
ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila
Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica como
questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e
propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development). Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.

106
se tem o curso promovido pelo Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde e pelo Departamento
de Medicina Preventiva da USP, em 1993, dando origem, inclusive, à publicação de um
manual sobre a violência obstétrica.206

Em 1993, a Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa), em


sua carta de fundação, reconheceu que realmente existem casos de violência obstétrica no
atendimento de mulheres durante a gestação, o parto, o puerpério e nas situações de
abortamento. Porém, a organização decidiu não falar, de forma explícita, sobre a violência,
utilizando termos mais brandos como humanização do parto, promoção dos direitos humanos
das mulheres, com medo de haver uma reação hostil por parte dos profissionais de saúde, que
venham a ser acusados de condutas como essas.207

A partir do século XXI, vários estudos, no Brasil, demonstram a frequência de


casos de violência obstétrica, nos quais são realizadas atitudes discriminatórias e desumanas
na assistência ao parto, tanto no setor público, quanto no privado. Segundo estudo feito no
País, denominado Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado208, cerca de
um quarto das mulheres em trabalho de parto relatou algum modo de violência, no seu

206
“A violência obstétrica já era tema também das políticas de saúde ao final da década de 1980: o Programa de
Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), por exemplo, reconhecia o tratamento impessoal e muitas vezes
agressivo da atenção à saúde das mulheres. Porém, ainda que o tema estivesse na pauta feminista e mesmo na de
políticas públicas, foi relativamente negligenciado, diante da resistência dos profissionais e de outras questões
urgentes na agenda dos movimentos, e do problema da falta de acesso das mulheres pobres a serviços essenciais.
Mesmo assim, a violência obstétrica esteve presente em iniciativas como as capacitações para o atendimento a
mulheres vítimas de violência, como nos cursos promovidos a partir de 1993 pelo Coletivo Feminista
Sexualidade e Saúde e pelo Departamento de Medicina Preventiva da USP. A partir deste projeto, foi publicado
um pequeno manual sobre o tema.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO,
Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti
Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a
saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua
prevenção. Journal of Human Growth and Development). Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.
207
“Em 1993, a Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa), em sua carta de fundação, parte
do reconhecimento das ‘circunstâncias da violência e constrangimento em que se dá a assistência’. No entanto, a
organização deliberadamente decidiu não falar abertamente sobre violência, favorecendo termos como
‘humanização do parto’, ‘a promoção dos direitos humanos das mulheres’, temendo uma reação hostil dos
profissionais sob a acusação de violência.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira;
ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila
Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica como
questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e
propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development). Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.
208
Pesquisa de opinião pública – Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado – agosto de 2010.
Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/pesquisaintegra_0.pdf.
Acesso em 10/out/2018.

107
atendimento, durante a gestação e o parto, o que também foi afirmado por cerca da metade
daquelas que passaram por um aborto.209

Um conjunto de definições de violência obstétrica tem sido proposto, podendo-


se citar, como já referido antes, o abuso físico, como os procedimentos sem justificativa
médica, e as intervenções para aprendizado de estudantes de medicina, além de toques
vaginais dolorosos e repetitivos, as cesáreas e as episiotomias desnecessárias, a imobilização
física em posições dolorosas, além de outras intervenções sem anestesia, sob a crença de que a
paciente já está sentindo dor mesmo.210

A violência obstétrica reflete negativamente na vida das mulheres e de seus


filhos. Assim, por exemplo, como já citado, no caso de manipulação excessiva no parto
normal, com intervenções invasivas do corpo das mulheres podem resultar danos. Desse
modo, o uso desenfreado de ociticina para indução ou aceleração do parto, a manobra de
Kristeller, o uso de fórceps, a episiotomia, entre outros procedimentos, usados de forma
desnecessária, podem acarretar danos físicos e psicológicos à mulher.211

209
“Já neste século, numerosos estudos no país documentam como são frequentes as atitudes discriminatórias e
desumanas na assistência ao parto, nos setores privado e público. O interesse acadêmico se ampliou e a produção
dos últimos anos inclui pesquisas sobre a formação dos profissionais e, mais recentemente, dados de base
populacional, como a pesquisa de Venturi e colaboradores. Este último trabalho, a segunda rodada da pesquisa
nacional ‘Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado’, contribuiu, de forma inédita, para a
visibilidade do tema da violência obstétrica, despertando surpreendente interesse da grande mídia. Segundo o
estudo, cerca de um quarto das mulheres que haviam passado pelo parto relatou alguma forma de violência na
assistência, o que também foi referido por cerca da metade daquelas que passaram por um aborto.” (DINIZ,
Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula
Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY,
Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições,
tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and
Development). Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.
210
“Estes estudos mostram que as mulheres são escolhidas para o treinamento de procedimentos como
episiotomia, fórceps ou até mesmo cesarianas conforme o ordenamento hierárquico do valor social das pacientes
evidenciando a existência de uma hierarquia sexual, de modo que, quanto maior a vulnerabilidade da mulher,
mais rude e humilhante tende a ser o tratamento oferecido a ela. Assim, mulheres pobres, negras, adolescentes,
sem pré-natal ou sem acompanhante, prostitutas, usuárias de drogas, vivendo em situação de rua ou
encarceramento estão mais sujeitas a negligência e omissão de socorro. A banalização da violência contra as
usuárias relaciona-se com estereótipos de gênero presentes na formação dos profissionais de saúde e na
organização dos serviços. As frequentes violações dos direitos humanos e reprodutivos das mulheres são, desse
modo, incorporadas como parte de rotinas e sequer causam estranhamento.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO,
Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino Cardin de;
CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência
obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde
materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development). Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.
211
“A violência obstétrica tem implicações sobre a morbimortalidade materna das seguintes formas: (1) No risco
adicional associado aos eventos adversos do manejo agressivo do parto vaginal. Existem danos associados ao
uso inapropriado e excessivo (muitas vezes também não informado e não consentido) de intervenções invasivas e
potencialmente danosas no parto vaginal, como o recurso não regulado de ocitocina para indução ou aceleração

108
Além disso, pode a violência usada no parto vaginal ser um constrangimento
para que haja mais realização de partos cesáreos. É possível a realização de parto normal sem
o uso de qualquer tipo de anestesia para que se opte pela cesárea. Também há, em muitos
hospitais, negligência no atendimento de mulheres que expressam sentimentos, como choro,
gritos ou gemidos, ou, ainda, para aquelas que pedem ajuda de forma insistente. Estas são as
que recebem a pior assistência.212

Ainda há violência obstétrica no caso de mulheres que optam por fazer o parto
em casa. Nessa hipótese, os abusos verbais e as humilhações, além da demora do
atendimento, são maiores. Também, o modo de comunicação desrespeitosa com as mulheres,
subestimando e ridicularizando sua dor, desmoralizando seus pedidos de ajuda; humilhações
de caráter sexual, como os dizeres: quando estava fazendo estava bom, né? Agora fica aí
chorando..., o tratamento desigual, com base em atributos considerados positivos, como ser
casada, com gravidez planejada, adulta, branca, de classe média, entre outras, caracterizam
esse tipo de violação de direitos humanos.213

do parto, manobra de kristeller, fórceps, episiotomia, entre outras. Estas intervenções tem ocorrência muito
acima da justificável por indicações clínicas, como amplamente documentado em estudos nacionais.” (DINIZ,
Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula
Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY,
Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições,
tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and
Development). Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.
212
“Na hostilidade, na negligência e no retardo do atendimento às mulheres em situação de abortamento: quando
as equipes identificam ou supõem que o aborto tenha sido provocado, muitas vezes negam atendimento ou
demoram a realizá-lo. A indisponibilidade de serviços que realizam aborto nas situações em que é previsto por
lei também tem grande impacto na morbi-mortalidade materna, pois pode levar muitas mulheres à prática de
aborto inseguro. (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar;
CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de
Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens,
definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human
Growth and Development). Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em
10/out/2018.
213
“No parto manejado agressivamente como constrangimento à cesárea, aumentando a sua ocorrência e riscos
decorrentes. A violência no parto vaginal funciona como forma de constrangimento ou coerção à cesárea,
quando as opções disponíveis às mulheres se resumem a esta cirurgia ou a um parto vaginal manejado
agressivamente, não raramente com a negativa de qualquer forma de anestesia. Como dizem os movimentos
sociais, ‘chega de parto violento para vender cesárea’. Conforme César Victora, 23% das mortes maternas no
Brasil podem ser atribuídas apenas ao aumento nas taxas de cesárea ocorrido desde o ano 2000. Na negligência
em atender mulheres que expressam seu sofrimento (com choro, gritos, gemidos) ou que pedem ajuda de modo
insistente. Existe uma cultura disseminada nos serviços de que a mulher que chora ou grita recebe pior
assistência, sobretudo aquelas consideradas ‘descompensadas’ ou malcomportadas, ou, ainda, aquelas que
expressam qualquer desagrado com a assistência, ou insistem em ser atendidas com urgência. A demora em
responder a estas demandas é associada a riscos aumentados de morbi-mortalidade materna.” (DINIZ, Simone
Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino
Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY, Denise
Yoshie. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia,

109
Também existe violência quando as mulheres dão entrada em hospitais em
situação de abortamento, seja espontâneo ou provocado. Pior é a hipótese do aborto
provocado, no qual, a essas mulheres o atendimento é negado, ou mesmo negligenciado, o
que as leva, muitas vezes, a realizar o processo de aborto por conta própria, levando-a a óbito.
Ainda, pode ocorrer o abandono, a negligência, a recusa de assistência às mulheres que são
recebidas como muito queixosas ou descompensadas, e, em casos de aborto incompleto, no
qual há a demora proposital no atendimento a essas mulheres, gerando riscos à sua segurança
física. É possível, por fim, que pacientes fiquem retidas, até que paguem suas dívidas com os
serviços médicos.214

Pode-se concluir que a violência obstétrica ainda ocorre no caso de


impedimento da presença de um acompanhante no momento do parto, ou mesmo no pós-
parto. Normalmente, essas situações acontecem quando a mulher está dentro de um hospital.
Essa negativa da presença de um acompanhante pode gerar a morte da mulher, a qual
encontra-se sozinha em um estado que, muitas vezes, pode ser deteriorante.215

Nas faculdades de medicina, na maioria das vezes, os estudos não são mais
realizados com livros físicos, mas com doutrinas atualizadas, via internet. Ocorre que, na
maior parte dos cursos, ainda, a bibliografia é baseada em livros desatualizados, e não existem
orientações para que os estudantes possam procurar estudos disponíveis a respeito de um
determinado tema. Isso significa que os estudantes têm limitado o seu conhecimento prático.

impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development).
Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.
214
”Na hostilidade contra profissionais e mulheres considerados dissidentes do modelo hegemônico de
assistência. Nos casos de transferência de uma casa de parto ou de um parto domiciliar, os abusos verbais e as
demoras no atendimento tendem a ser maiores. Estes casos são exemplo do que tem sido chamado de
‘hostilidade interprofissional’ em estudos realizados em outros países, e constitui uma ameaça importante à
segurança das pacientes.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria
de Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR,
Cláudia de Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil:
origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of
Human Growth and Development). Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso
em 10/out/2018.
215
“No impedimento à presença de um acompanhante: A maioria das mortes maternas ocorre durante o parto e
no pós-parto (Kassebaum et al. (2014) e, paradoxalmente, a mulher encontra-se dentro de uma instituição de
saúde na quase totalidade dos casos. A negativa da presença de acompanhantes é uma ameaça à segurança das
mulheres, pois eles poderiam sinalizar, de forma enfática, aos profissionais que o estado clínico da paciente se
deteriorou. Ainda que possa ser a diferença entre a vida e a morte e seja assegurado por lei, esse direito muitas
vezes não é respeitado.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de
Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR,
Cláudia de Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil:
origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of
Human Growth and Development). Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso
em 10/out/2018

110
Diante disso, a prática é obtida com base em treinamentos de estudantes e residentes, usando
seres humanos, como as gestantes, por exemplo, para a demonstração de uma episiotomia
para fins de treinamento, sem o consentimento da paciente.216

Assim, esses estudos demonstram que as mulheres são escolhidas para


treinamento de estudantes, além, também, do uso de fórceps e até realização de cesáreas.
Desse modo, existe uma hierarquia na área de saúde, com relação à mulher, de tal forma que,
quanto maior a vulnerabilidade da mulher (por exemplo, negras, pobres, deficientes,
adolescentes, sem pré-natal, sem acompanhantes, prostitutas, usuárias de drogas,
encarceradas, entre outras), mais humilhante deverá ser o tratamento a ela ofertado, sendo
vítimas de negligência, ou mesmo de omissão de socorro.217

Para encerrar este subtítulo, cabe mencionar que a violência obstétrica é maior
com essas mulheres mais vulneráveis, sendo, assim, um estereótipo de gênero, o que,
infelizmente, ainda se encontra presente dentro de hospitais e na formação de profissionais de
saúde. Essas violações de direitos humanos e reprodutivos das mulheres são incorporadas
como parte das rotinas e não causavam qualquer estranhamento, mas essa política vem sendo

216
“A formação dos profissionais de saúde, em especial dos médicos, tem papel estruturante no desenho atual da
assistência e na resistência à mudança. Enquanto as melhores evidências são atualizadas e divulgadas
rapidamente em publicações eletrônicas, disponíveis via Internet, a maioria dos cursos de medicina tem sua
bibliografia baseada em livros desatualizados, com raras orientações aos estudantes sobre como buscar, avaliar e
revisar os estudos disponíveis a respeito de um determinado tema. Isso significa que os formandos têm limitado
seu conhecimento sobre a prática baseada em evidência, muitas vezes tratando as melhores práticas, baseadas em
evidências, como questões ‘de opinião’, ‘de filosofia’, e não como o padrão-ouro da assistência.” (DINIZ,
Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula
Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY,
Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições,
tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and
Development). Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.
217
“Estes estudos mostram que as mulheres são escolhidas para o treinamento de procedimentos como
episiotomia, fórceps ou até mesmo cesarianas conforme o ordenamento hierárquico do valor social das pacientes
evidenciando a existência de uma hierarquia sexual, de modo que, quanto maior a vulnerabilidade da mulher,
mais rude e humilhante tende a ser o tratamento oferecido a ela. Assim, mulheres pobres, negras, adolescentes,
sem pré-natal ou sem acompanhante, prostitutas, usuárias de drogas, vivendo em situação de rua ou
encarceramento estão mais sujeitas a negligência e a omissão de socorro. A banalização da violência contra as
usuárias relaciona-se com estereótipos de gênero presentes na formação dos profissionais de saúde e na
organização dos serviços. As frequentes violações dos direitos humanos e reprodutivos das mulheres são, desse
modo, incorporadas como parte de rotinas e sequer causam estranhamento.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO,
Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino Cardin de;
CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência
obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde
materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development). Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.

111
modificada no decorrer dos anos, e a mulher vem tomando conhecimento dos seus direitos e
das respectivas violações a eles.218

2.2.3 Violência obstétrica em mulheres deficientes e negras

Tendo em vista sua maior vulnerabilidade, o presente item tem por objetivo
principal discutir as situações de ocorrência de violência obstétrica perpetrada contra
mulheres deficientes e negras. Tal escolha deve-se ao fato do interesse em abordar diferentes
expressões de violência de gênero. É certo que as mulheres deficientes são mais vulneráveis,
sofrendo, de forma mais intensa, os casos de violência. De outro lado, mulheres negras
vivenciam desigualdades estruturais que dificultam o acesso a direitos sociais e humanos, com
destaque para os direitos sexuais e reprodutivos.219

Os direitos sexuais e reprodutivos devem ser compreendidos como direitos


humanos de todos os cidadãos. Esses direitos humanos englobam direitos individuais e
sociais, como a autonomia, a liberdade, a determinação reprodutiva, além de a pessoa ter
direito à informação, à educação e o direito de decisão sobre os seus próprios direitos.220

218
“A banalização da violência contra as usuárias relaciona-se com estereótipos de gênero presentes na formação
dos profissionais de saúde e na organização dos serviços. As frequentes violações dos direitos humanos e
reprodutivos das mulheres são, desse modo, incorporadas como parte de rotinas e sequer causam
estranhamento.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de
Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR,
Cláudia de Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil:
origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of
Human Growth and Development. [Internet]. 2015). Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.
219
“No que se refere à questão racial e de gênero, é importante lembrar que, na historicidade das mulheres
negras, existe um processo violento que insiste em permanecer na atualidade. Desde a travessia transatlântica, no
interior dos tumbeiros e navios negreiros, as mulheres negras são alvos de violência por terem sido,
sumariamente, separadas de seus filhos, obrigadas a terem partos análogos ao de animais, fatos que nos remetem
à realidade de muitas mulheres negras nos serviços de saúde atualmente.” (ASSIS, Jussara Francisca de.
Violência obstétrica enquanto violência de gênero e os impactos sobre as mulheres negras a partir de uma visão
integrativa. Universidade Federal do Rio de Janeiro). Disponível em
https://www.editorarealize.com.br/revistas/enlacando/trabalhos/TRABALHO_EV072_MD1_SA30_ID1268_070
82017222543.pdf. Acesso em 25/07/2019.
220
“Contudo para Ventura (2005), a atual concepção dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos não se
limita ao direito a saúde sexual e saúde reprodutiva, porém tem um sentido mais amplo contemplando os direitos
humanos, individuais e sociais como direito a liberdade, autonomia e autodeterminação reprodutiva, direito à
informação, à educação, ao desenvolvimento da capacidade para a tomada de decisão.” (GOES, Emanuelle
Freitas; NASCIMENTO, Enilda Rosendo do. Intersecção do racismo e do sexismo no âmbito da saúde sexual e
reprodutiva. Fazendo Gênero 9. Diásporas, Diversidades, deslocamentos, 23 a 26 de agosto de 2010). Disponível
em:
http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278279228_ARQUIVO_INTERSECCAODORACISMOE
DOSEXISMONOAMBITODASAUDESEXUALEREPRODUTIVA.pdf. Acesso em 26/jul/2019.

112
A Organização Mundial de Saúde entende que toda mulher tem direito ao
melhor padrão que se possa ter relativamente à saúde, incluindo o direito a um cuidado digno
e respeitoso.221 O documento da OMS (referente à prevenção e à eliminação de abusos, ao
desrespeito e aos maus-tratos durante o parto em instituições de saúde) reconhece que, em
todo o mundo, inúmeras mulheres são vítimas de abusos em instituições de saúde, no
momento do parto. Além disso, tais práticas violam os seus direitos humanos, com ameaça ao
direito à vida, à saúde, à integridade física e à não discriminação.222

É certo que existem mulheres que são mais indefesas, mais vulneráveis do que
outras, e, por essa razão, se encontram em situação de maior desamparo, sofrendo de forma
mais intensa e cruel com as práticas chamadas de violência obstétrica. Esse grupo refere-se às
mulheres com deficiência, as quais, com as sobreposições de gênero e de deficiência,
vivenciam as experiências de violência de maneira mais precária ainda.223

Não só em nosso País, mas no mundo todo, o conceito de deficiência tem


passado por várias transformações, tendo, por fim, que acompanhar as inovações na área de
saúde, bem como a forma de relacionamento da sociedade com essa parcela da população

221
“A OMS exige políticas para promover a assistência obstétrica respeitosa e sugere que algumas medidas
sejam tomadas pelos governos no mundo inteiro para evitar e eliminar o desrespeito e os abusos contra as
mulheres durante a assistência institucional ao parto. São elas: 1. Maior apoio dos governos e de parceiros do
desenvolvimento social para a pesquisa e ação contra o desrespeito e os maus-tratos. 2. Começar, apoiar e
manter programas desenhados para melhorar a qualidade dos cuidados de saúde materna, com forte enfoque no
cuidado respeitoso como componente essencial da qualidade da assistência. 3. Enfatizar os direitos das mulheres
a uma assistência digna e respeitosa durante toda a gravidez e o parto. 4. Produzir dados relativos a práticas
respeitosas e desrespeitosas na assistência à saúde, com sistemas de responsabilização e apoio significativo aos
profissionais. 5. Envolver todos os interessados, incluindo as mulheres, nos esforços para melhorar a qualidade
da assistência e eliminar o desrespeito e as práticas abusivas.” (OMS – Organização Mundial da Saúde – OMS.
Declaração contra a violência obstétrica, 2014). Disponível em:
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/134588/3/WHO_RHR_14.23_por.pdf. Acesso em: 12/dez/2018.
222
“Esta passagem é o preâmbulo da declaração da OMS referente à ‘Prevenção e eliminação de abusos,
desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde’. Este documento reconhece que, ao redor do
mundo, inúmeras mulheres são vítimas de abusos, desrespeito e maus-tratos em instituições de saúde no
momento do parto. Reconhece, também, que tais práticas violam os direitos humanos das mulheres, ameaçando
seu direito à vida, à saúde, à integridade física e à não-discriminação.” (ASSIS, Jussara Francisca de. Violência
obstétrica enquanto violência de gênero e os impactos sobre as mulheres negras a partir de uma visão
integrativa. Universidade Federal do Rio de Janeiro). Disponível em
https://www.editorarealize.com.br/revistas/enlacando/trabalhos/TRABALHO_EV072_MD1_SA30_ID1268_070
82017222543.pdf. Acesso em 25/07/2019.
223
“Há, contudo, um grupo de mulheres ainda mais indefesas, hipervulneráveis, que se encontram em situação
de maior desamparo e que sofrem de forma mais intensa e cruel com práticas violentas e hostis ligadas à
gestação: as mulheres com deficiência. Nessa perspectiva, Heloisa Helena Barboza (2009, p. 110-111) entende
que os idosos, assim como crianças, adolescentes e pessoas com deficiência, são circunstancialmente afetados e
fragilizados, isto é, são ‘vulnerados’ e demandam a aplicação de normas que compreendam a desigualdade
materialmente reproduzida para que sua dignidade seja resguardada (BARBOZA, 2008, p. 61).” (TERRA, Aline
de Miranda Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Violência obstétrica contra a gestante com deficiência.
Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, 2019. (e-ISSN: 2317-2150).
https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em 26/jun/2019.

113
deficiente. Na área médica, era tratado como deficiente somente aquele que possuía patologia
na modalidade física e que lhe proporcionava alguma incapacidade. Esse modelo surgiu no
Código Civil de 1916 e permaneceu no atual, conceituando pessoa com deficiência mental
como sendo aquela, sem o necessário discernimento para a prática dos atos civis, e
considerada como absolutamente incapaz, sendo-lhe negado o exercício, de forma autônoma,
para qualquer ato da vida civil, devendo esta pessoa ter um representante legal.224

O representante da pessoa com deficiência tem sua vontade, a qual substitui a


vontade da pessoa com deficiência. Existem dois tipos de deficiência: a física e a mental.
Quanto a esta última, caso a pessoa tenha discernimento reduzido, será considerada
relativamente incapaz, e sua manifestação de vontade somente seria válida juntamente com a
vontade de seu representante. Nessa hipótese, a pessoa com deficiência raramente será tratado
como uma pessoa desprovida de manifestação de vontade autônoma, sendo necessário que lhe
sejam assegurados espaços de liberdade dentro dos quais possa exercer a sua autonomia.225

Assim, a prática de violência obstétrica, contra mulheres com deficiência,


tornou-se mais comum e institucional do que aquela perpetrada contra mulheres sem
deficiência. Desse modo, era a pessoa que deveria se adaptar à sociedade na qual vivia. Logo,
se a sociedade não dispunha de todos os mecanismos para adaptação dessas pessoas, no caso
de deficiência física, como exigir de hospitais o uso de equipamentos adaptados a esses tipos

224
“No Brasil, como em todo o mundo, o conceito de deficiência vem passando por profundas transformações a
fim de acompanhar as inovações na área da saúde, bem como a forma pela qual a sociedade se relaciona com a
parcela da população que apresenta algum tipo de deficiência. O modelo médico de deficiência considerava
somente a patologia física e o sintoma a ela associado que dava origem a uma incapacidade. Esse modelo foi
adotado pelo Código Civil de 1916 e reproduzido no Código Civil de 2002, que estabeleceu disciplina abstrata
das incapacidades baseada no sistema de tudo-ou-nada: a pessoa com deficiência mental, que não tivesse o
necessário discernimento para a prática dos atos civis, seria considerada absolutamente incapaz, sendo-lhe
negado o exercício autônomo de qualquer ato da vida civil; fazia-se imperioso um representante para, em seu
lugar, manifestar a vontade necessária à prática de referidos atos.” (TERRA, Aline de Miranda Valverde;
MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Violência obstétrica contra a gestante com deficiência. Pensar: Revista de
Ciências Jurídicas, 2019). (e- ISSN: 2317-2150). https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em
26/jun/2019.
225
“A vontade do representante, portanto, substituía inteiramente a vontade da pessoa com deficiência. Se, no
entanto, a pessoa com deficiência mental ostentasse discernimento reduzido, seria considerada relativamente
incapaz, e a validade de sua manifestação de vontade se vinculava à conjunta manifestação de vontade de seu
assistente. Para os atos da vida civil, de maneira geral, exigia-se também a manifestação do assistente.”
(TERRA, Aline de Miranda Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Violência obstétrica contra a gestante
com deficiência. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, 2019). (e- ISSN: 2317-2150).
https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em 26/jun/2019.

114
de deficiência ou mesmo que os profissionais da área estejam aptos a lidar com esses tipos de
deficiência?226

Desse modo, a barreira física é a primeira e uma das formas de violência contra
a gestante com deficiência. Mesmo quando a deficiência é apenas física, com preservação de
sua autonomia e capacidade de entendimento, verifica-se que é muito comum que sua vontade
seja desconsiderada. Cuidando-se de deficiência intelectiva, a situação é aina mais grave.
Mesmo que essa gestante ostentasse suficiente compreensão das consequências de suas
escolhas, relativamente à sua gestação, sendo ela incapaz, o sistema codificado ignorava sua
vontade, recusando a esta mulher qualquer forma de decisão para exercer o seu direito, o que
acabava por lhe negar a qualidade da pessoa humana.227

Como consequência, tornava-se natural a prática de atos violentos e cruéis


contra mulheres com deficiência mental, uma vez que, como lhe era recusada a qualidade de
pessoa humana, não havia dignidade a ser tutelada, admitindo-se, desse modo, que sofresse
todas as formas de violência, inclusive a obstétrica.228

226
“Nesse contexto, a prática de violência obstétrica contra mulheres com deficiência se tornou ainda mais
‘normalizada’ e institucionalizada do que aquela praticada contra mulheres sem deficiência. Ora, se a deficiência
era uma patologia física mais o seu sintoma, cuidava-se de questão afeta, exclusivamente, à pessoa dela
portadora, que deveria, então, envidar todos os esforços para se adaptar à sociedade. A partir dessa percepção, se
não era a sociedade que deveria criar mecanismos para superação das barreiras que impediam a total inclusão das
pessoas com deficiência, como exigir dos hospitais e clínicas, por exemplo, a utilização de equipamentos
adaptados às diversas deficiências físicas, ou que os profissionais estejam aptos a lidar com as especificidades
inerentes a cada tipo de deficiência?” (TERRA, Aline de Miranda Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk.
Violência obstétrica contra a gestante com deficiência. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, 2019). (e- ISSN:
2317-2150). https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em 26/jun/2019.
227
“A barreira física encerra, contudo, apenas uma das formas de violência contra a gestante com deficiência.
Mesmo quando portadoras apenas de deficiência física, com preservação de sua plena autonomia e capacidade
civil, constata-se que, na realidade da vida, sua vontade é reiteradamente desconsiderada, como se constata, a
partir dos relatos feitos por Joyce, portadora de deficiência visual que, ao dar entrada em maternidade em
Guaxupé, Minas Gerais, em 2007, recebeu a notícia de que havia mecônio no líquido amniótico, sem que fosse
feito qualquer exame adicional ou lhe informassem de qualquer outra coisa que indicasse eventual gravidade da
situação. Joyce solicitou, então, que ligassem para a sua médica, mas não foi atendida. A equipe decidiu realizar
uma cesárea, e não admitiu a entrada de acompanhante ao centro cirúrgico. Depois de duas tentativas frustradas
de anestesiá-la, optou-se por prosseguir a cirurgia ‘a sangue frio’. ‘O anestesista puxava meu cabelo para eu não
desmaiar de dor’, relatou Joyce (LAZZAREI, 2015, s.p.).” (TERRA, Aline de Miranda Valverde; MATOS, Ana
Carla Harmatiuk. Violência obstétrica contra a gestante com deficiência. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas,
2019). (e- ISSN: 2317-2150). https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em 26/jun/2019.
228
“Com efeito, ainda que a gestante com deficiência mental ostentasse funcionalidade suficiente para a
compreensão das consequências de determinada escolha acerca de sua gestação, se ela fosse incapaz, o sistema
codificado ignorava sua vontade, recusando à titular do direito existencial qualquer parcela de autonomia e
capacidade para exercê-lo, o que acabava por lhe negar a própria qualidade de pessoa humana, a conduzir a sua
objetificação. E a consequência mais perversa desse processo é a naturalização da prática de atos violentos e
cruéis contra a gestante com deficiência, pois, se lhe é recusada a qualidade de pessoa humana, não há dignidade
a ser tutelada, admitindo-se que lhe seja direcionada toda sorte de violência.” (TERRA, Aline de Miranda
Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Violência obstétrica contra a gestante com deficiência. Pensar:

115
Assim, com o surgimento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, superaram-
se várias críticas ao regime codificado de incapacidades, estabelecendo-se regras diversas
para o tratamento da capacidade das pessoas com deficiência, no que se refere à prática de
atos por elas praticados. Com a adoção de um novo modelo de deficiência, houve várias
mudanças no tratamento dessas pessoas.229

A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF),


divulgada em 2001 pela Organização Mundial de Saúde, passou a conjugar o modelo de
deficiência com o modelo social, sendo que este último normalmente considera a questão da
deficiência como um problema criado pela sociedade, cujo principal desafio é a integração da
pessoa com este tipo de limitação na sociedade. Assim, a incapacidade não é um atributo da
pessoa, mas, sim, um conjunto de condições, muitas delas criadas pelo próprio ambiente onde
a pessoa vive.230

Quando se junta o modelo médico com o modelo da sociedade, compreende-se


a deficiência, na perspectiva de saúde. A incapacidade é o resultado da limitação das funções
e estruturas do corpo e da influência de fatores do ambiente onde se vive nessa limitação. De
acordo, ainda, com a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde
(CIF), deficiências são problemas na estrutura do corpo de uma pessoa e nas funções, que,
nem sempre, causam limitação da capacidade ou da funcionalidade dessa pessoa.231

Revista de Ciências Jurídicas, 2019). (e- ISSN: 2317-2150). https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744.


Acesso em 26/jun/2019.
229
“O Estatuto da Pessoa com Deficiência superou algumas críticas ao regime codificado das incapacidades,
estabelecendo regramento diverso para a capacidade das pessoas com deficiência no que tange, sobretudo, e ao
que interessa a esta análise, à prática de atos existenciais, e mitigou, em parte, a abstrativização do regime. Ao
propósito, importa sublinhar que a adoção de um novo modelo da deficiência contribuiu decisivamente para
referidas mudanças.” (TERRA, Aline de Miranda Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Violência
obstétrica contra a gestante com deficiência. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, 2019). (e- ISSN: 2317-
2150). https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em 26/jun/2019.
230
“A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), divulgada pela Organização
Mundial da Saúde em 2001, passou a conjugar, ao modelo médico de deficiência, o modelo social, que
mormente considera a questão da deficiência um problema criado pela sociedade, e cujo principal desafio é a
integração plena do indivíduo na sociedade. Sob tal perspectiva, a incapacidade não é um atributo inerente ao
indivíduo, mas ‘um conjunto complexo de condições, muitas das quais criadas pelo ambiente social’. Com
efeito, a solução do problema requer uma ação social consistente na realização das ‘modificações ambientais
necessárias para a participação plena das pessoas com incapacidades em todas as áreas da vida social’. Cuida-se,
portanto, a incapacidade de uma questão política?” (OMS, 2004, p. 22).” (TERRA, Aline de Miranda Valverde;
MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Violência obstétrica contra a gestante com deficiência. Pensar: Revista de
Ciências Jurídicas, 2019). (e- ISSN: 2317-2150). https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em
26/jun/2019.
231
“A integração do modelo médico e do modelo social inaugura a abordagem biopsicossocial da deficiência,
que oferece a compreensão das diferentes perspectivas de saúde: biológica, individual e social. Nesse contexto, a
incapacidade é, necessariamente, ‘resultado tanto da limitação das funções e estruturas do corpo quanto da
influência de fatores sociais e ambientais sobre essa limitação’ (IBGE, 2012, p. 71). De acordo com a

116
O modelo citado foi adotado pela Convenção da ONU sobre os Direitos da
Pessoa com Deficiência, aprovado pelo Decreto Legislativo n.º 186, de 9 de julho de 2008, o
qual passou a integrar o ordenamento jurídico de nosso País, tendo status de emenda
constitucional. Nessa Convenção, a deficiência é reconhecida como um conceito em
evolução, que deriva da integração entre pessoas portadoras de deficiência e das barreiras
devidas às atitudes e ao ambiente, os quais impedem a plena participação dessas pessoas na
sociedade em igualdade de condições e de oportunidade com as demais pessoas.232

Ainda, o Estatuto da Pessoa com Deficiência considera essa pessoa como


aquela que tem algum impedimento de longo prazo, seja de natureza mental, física, intelectual
ou sensorial, e este impedimento, em conjunto com uma ou mais barreiras, pode impedir sua
participação plena na sociedade em paridade de condições com as demais pessoas.233

A pessoa com deficiência tem direito de exercer a sua capacidade prevista na


lei, em igualdade de condições com as demais pessoas, sendo que a deficiência, em si, não
afeta a sua plena capacidade civil. Esse indivíduo pode casar e constituir união estável;
exercer direitos sexuais e reprodutivos; exercer o direito de decidir sobre quantos filhos quer

Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, deficiências ‘são problemas nas funções
ou na estrutura do corpo, tais como um desvio importante ou uma perda’ (OMS, 2004, p. 14), que nem sempre,
contudo, importam em limitação da capacidade ou da funcionalidade.” (TERRA, Aline de Miranda Valverde;
MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Violência obstétrica contra a gestante com deficiência. Pensar: Revista de
Ciências Jurídicas, 2019). (e- ISSN: 2317-2150). https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em
26/jun/2019.
232
“Referido modelo foi adotado expressamente pela Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com
Deficiência, aprovado pelo Decreto Legislativo n.º 186, em 9 de julho de 2008, passando a integrar o
ordenamento jurídico brasileiro com status de emenda constitucional. Ainda no preâmbulo da Convenção,
reconhece-se que a deficiência, um conceito em evolução, ‘resulta da interação entre pessoas com deficiência e
as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na
sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas’ (Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência, 2011, p. 22). A propósito, afirma Mary Keys (2017, p. 265): ‘previous reliance solely on a
narrower medical approach is no longer considered appropriate, and instead a social and human rights approach
focused on removing barriers to participation is essential to the achievement of equality’.” (TERRA, Aline de
Miranda Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Violência obstétrica contra a gestante com deficiência.
Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, 2019). (e- ISSN: 2317-2150).
https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em 26/jun/2019.
233
Lei n.º 13.146, de 6 de julho de 2015. Art. 2º – Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem
impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma
ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as
demais pessoas.
§ 1º – A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional
e interdisciplinar e considerará:
I – os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;
II – os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;
III – a limitação no desempenho de atividades; e
IV – a restrição de participação.
§ 2º – O Poder Executivo criará instrumentos para avaliação da deficiência. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 26/jun/2019.

117
ter e obter informações sobre a reprodução e o planejamento familiar; conservar-se fértil,
sendo proibida a esterilização compulsória; exercer o direito à família e o direito à guarda, à
tutela, à curatela e à adoção, como adotante e adotado.234

Hoje, como regra, temos a autonomia e a capacidade da pessoa com


deficiência. Desse modo, uma decisão médica acerca de qualquer procedimento que deve ser
tomado deve passar pelo seu crivo, inclusive, tudo o que diga respeito ao seu planejamento
familiar e autonomia reprodutiva. Se for uma mulher deficiente, deve ter acesso a todos os
tipos de informação, de forma acessível, em linguagem clara e compatível com a sua
possibilidade de compreensão, devendo se valer o médico de equipe multidisciplinar para a
garantia da mais perfeita absorção da informação. Essas decisões não podem ser submetidas
ao seu curador, sendo que a curatela alcança apenas os direitos relativos ao patrimônio e aos
negócios jurídicos. Em relação a direitos existenciais, não se pode restringir a sua capacidade
civil.235

De outro lado, em casos extremos, se houver um grave compromentimento da


funcionalidade da pessoa deficiente, deve ser considerada a sua vulnerabilidade exacerbada,
não podendo se manifestar. Nesse caso, para que ela tenha um maior apoio, deve haver a

234
Lei n.º 13.146, de 6 de julho de 2015. Art. 6º. A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa,
inclusive para:
I – casar-se e constituir união estável;
II – exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre
reprodução e planejamento familiar;
IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de
oportunidades com as demais pessoas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 26/jun/2019.
235
“Diante dessa nova normativa, constata-se que a regra passou a ser a capacidade e a autonomia da pessoa com
deficiência. Sendo assim, resta evidente que qualquer decisão médica acerca da mulher com deficiência deve ser
a ela submetida, inclusive todas aquelas que, de qualquer forma, digam respeito a sua autonomia reprodutiva e
ao seu planejamento familiar. Significa, em definitivo, que a escolha entre parto normal ou cesárea, a opção por
certo método contraceptivo ou ligadura de trompas, a decisão acerca de episiotomia e tricotomia, dentre diversas
outras, deve ser feita, sempre que ela ostente funcionalidade suficiente para entender as consequências de tais
decisões, pela mulher, que deverá ser informada acerca de todos os procedimentos, suas vantagens e
desvantagens, bem como os riscos envolvidos. A informação, evidentemente, deve ser prestada de forma
acessível, em linguagem clara e compatível com a possibilidade de compreensão da gestante com deficiência,
devendo o médico se valer, sempre que necessário, de equipe multidisciplinar, a fim de garantir a mais perfeita
apreensão da informação.” (TERRA, Aline de Miranda Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Violência
obstétrica contra a gestante com deficiência. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, 2019). (e- ISSN: 2317-
2150). https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em 26/jun/2019.

118
intervenção protetiva do curador, o qual deve buscar a manifestação presumida da pessoa por
seu histórico biográfico.236

A gestante com deficiência deve ter direito de fazer uso do seu plano de parto,
o qual estabelece os procedimentos aos quais ela aceita se submeter e os que ela não aceita.
Tratando-se de gestante com deficiência psíquica, o plano de parto, enquanto um negócio
jurídico unilateral e existencial, terá validade se ela tiver capacidade suficiente para entender
as consequências de suas escolhas e mediante sua exclusiva manifestação de vontade.237

O reconhecimento, no caso concreto, de que a gestante com deficiência ostenta


a capacidade necessária e a autonomia, no que se refere às decisões de sua gestação, afasta
qualquer possibilidade de o curador decidir por ela. Se o médico ignorar a vontade da
gestante, em prol da vontade do curador, poderá ser responsabilizado solidariamente com o
curador por violência obstétrica.238

A violência na assistência ao parto é mais ampla e remete à violência de


gênero. Essa violência tem origem em movimentos sociais e feministas. De fato, há um
legado escravocrata, patrimonialista e sexista, presente na formação do Brasil e que se
prolonga até os dias de hoje. De outro lado é a população negra que sofre, desde a abolição da
escravatura até os dias de hoje, a maior discriminação. Existem reflexos estruturais de

236
“No entanto, não se pode ignorar que, em casos extremos, considerando-se a vulnerabilidade exacerbada da
pessoa com deficiência, tendo em vista o grave comprometimento de sua funcionalidade, esta não terá condições
de se manifestar até mesmo sobre questões existenciais, autorreferentes, que apenas a ela digam respeito. Nesses
casos, a fim de melhor apoiá-la, não se vislumbra outra solução senão a intervenção protetiva do curador, que
deve buscar a manifestação presumida da pessoa pautando-se em seu histórico biográfico, não procedendo
puramente a uma substituição da vontade (BARBOZA; ALMEIDA, 2016, p. 265; MENEZES, 2016, p. 532).”
(TERRA, Aline de Miranda Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Violência obstétrica contra a gestante
com deficiência. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, 2019). (e- ISSN: 2317-2150).
https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em 26/jun/2019.
237
“Há de se assegurar, ademais, o direito às gestantes com deficiência de fazer uso do plano de parto,
instrumento elaborado durante o pré-natal e que estabelece os procedimentos aos quais a gestante aceita se
submeter e aqueles aos quais ela não aceita. Cuidando-se de gestante com deficiência psíquica, o plano de parto,
enquanto negócio jurídico unilateral existencial, será válido se ela apresentar funcionalidades suficientes para
entender as consequências de suas escolhas e mediante sua exclusiva manifestação de vontade.” (TERRA, Aline
de Miranda Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Violência obstétrica contra a gestante com deficiência.
Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, 2019). (e-ISSN: 2317-2150).
https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em 26/jun/2019.
238
“O reconhecimento, no caso concreto, de que a gestante com deficiência ostenta a funcionalidade necessária
ao exercício de sua autonomia no que tange às decisões relativas à gestação afasta, consequentemente, qualquer
possibilidade de o curador se imiscuir nessas questões, inclusive no plano de parto. Se o médico optar por
ignorar a vontade e os desejos da gestante – corporificados ou não no plano de parto –, e seguir a eventual
orientação do curador – que, repita-se, não tem, em princípio, poderes para atuar nessa seara, salvo situação
excepcional já aventada –, poderá ser responsabilizado solidariamente com o curador por violência obstétrica.”
(TERRA, Aline de Miranda Valverde; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Violência obstétrica contra a gestante
com deficiência. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, 2019). (e- ISSN: 2317-2150).
https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/8744. Acesso em 26/jun/2019.

119
violências, desde o processo de escravidão, os quais levam a população negra à condição de
subalternidade em nossa sociedade.239

A garantia dos direitos reprodutivos tem íntima relação com o modo como são
acessados os serviços de saúde. Esses, muitas vezes são violados por inúmeros fatores,
podendo-se citar o racismo, o sexismo, as condições econômicas e culturais. Os exageros que
ocorrem na área de saúde com mulheres negras, mormente no atendimento, são heranças das
desigualdades das relações sociais e políticas fundadas em discriminações de origem racial e
sexista, com violações de direitos, dificultando o acesso a um serviço de saúde igualitário.240

As mulheres negras têm menos acesso à educação, possuem status social e


econômico mais baixo, vivem em piores condições de moradia e, quanto à saúde reprodutiva,
têm menos acesso a métodos contraceptivos e apresentam maiores chances de terem uma
gravidez indesejada.241 Desde sempre e historicamente, as mulheres negras são vítimas de
violência, por terem sido separadas de seus filhos, obrigadas a terem partos análogos aos de

239
“Entender a representação social do corpo feminino negro na sociedade brasileira significa, necessariamente,
entender sua estrutura e dinâmica histórica, social, econômica e cultural. Neste processo, se faz necessário
considerar o legado escravocrata, patrimonialista e sexista, fortemente, presente na formação do Brasil e que se
perpetua até os dias atuais. Tal exercício possibilita compreender as significações direcionadas à maioria das
mulheres negras neste país.” (ASSIS, Jussara Francisca de. Violência obstétrica enquanto violência de gênero e
os impactos sobre as mulheres negras a partir de uma visão integrativa. Universidade Federal do Rio de
Janeiro). Disponível em
https://www.editorarealize.com.br/revistas/enlacando/trabalhos/TRABALHO_EV072_MD1_SA30_ID1268_070
82017222543.pdf. Acesso em 25/07/2019.
240
“A garantia dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos está diretamente associada à acessibilidade nos
serviços de saúde que muitas vezes são violados por multifatores, que, como eixos estruturantes, funcionam de
forma articulada, como o racismo, o sexismo, as condições socioeconômicas e culturais. As iniquidades em
saúde das mulheres negras são heranças das desigualdades postas pelas relações sociais e políticas pautadas nas
discriminações de origem racial e sexista violando direitos, impossibilitando as ações de políticas públicas assim
como dificultando o acesso à ascensão social e a um serviço de saúde qualidade, igualitário e que respeite a
diversidade racial.” (GOES, Emanuelle Freitas; NASCIMENTO, Enilda Rosendo do. Intersecção do racismo e
do sexismo no âmbito da saúde sexual e reprodutiva. Fazendo Gênero 9. Diásporas, Diversidades,
deslocamentos, 23 a 26 de agosto de 2010). Disponível em:
http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278279228_ARQUIVO_INTERSECCAODORACISMOE
DOSEXISMONOAMBITODASAUDESEXUALEREPRODUTIVA.pdf Acesso em 26/jul/2019.
241
“Em relação às características reprodutivas o menor número de filhos é observado nas mulheres brancas,
justamente aquelas com maior escolaridade, melhor renda e melhores condições de vida. Entre todas as mulheres
negras, cerca de 40% não usavam nenhum método contraceptivo (OLINTO; OLINTO, 2000). Em relação à
sexualidade, 21,7% das mulheres negras negaram ter satisfação sexual, e na escolha de uso de métodos
contraceptivos o de maior frequência era a pílula, seguido logo depois da laqueadura (17,9%) (CRUZ, 2004). O
acesso mais precário das mulheres negras aos anticoncepcionais também se revela através da maior parcela e na
menor amplitude do mix anticoncepcional, no qual a pílula e a esterilização respondem por 83% da regulação da
fecundidade, em contraposição com os 76% no grupo das mulheres brancas (PERPÉTUO, 2000).” (GOES,
Emanuelle Freitas; NASCIMENTO, Enilda Rosendo do. Intersecção do racismo e do sexismo no âmbito da
saúde sexual e reprodutiva. Fazendo Gênero 9. Diásporas, Diversidades, deslocamentos, 23 a 26 de agosto de
2010). Disponível em:
http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278279228_ARQUIVO_INTERSECCAODORACISMOE
DOSEXISMONOAMBITODASAUDESEXUALEREPRODUTIVA.pdf. Acesso em 26/jul/2019.

120
animais, o que não mudou com o passar dos anos, e continua ocorrendo nos serviços de saúde
da atualidade. As práticas identificadas como violência obstétrica são complexas e adquirem
maior complexidade, ainda quando se incluem as categorias de gênero e raça.242

A violência obstétrica contra mulheres negras, assim como contra outras


mulheres, inicia seu ciclo ainda no período do pré-natal. Com relação a esse tipo de violência,
muito famoso tornou-se o Caso Aline Pimentel, mulher negra de 28 anos e moradora da
Baixada Fluminense, a qual morreu no ano de 2002, no sexto mês de gestação, vítima de
negligência na Rede de Atenção de Obstetrícia Alyne Pimentel. Essa mulher, além de
discriminação de gênero, sofreu discriminação racial também.243

No pré-natal, segundo a Pesquisa Nascer no Brasil, as mulheres negras têm


menor acesso à atenção adequada com relação aos padrões do Ministério da Saúde. No
momento do parto, são mais penalizadas, uma vez que, muitas vezes, não são aceitas na
primeira maternidade que procuram e, durante o parto, também, recebem menos anestesia.244

242
“No que se refere à questão racial e de gênero, é importante lembrar que, na historicidade das mulheres
negras, existe um processo violento que insiste em permanecer na atualidade. Desde a travessia transatlântica, no
interior dos tumbeiros e navios negreiros, as mulheres negras são alvos de violência por terem sido,
sumariamente, separadas de seus filhos, obrigadas a terem partos análogos ao de animais, fatos que nos remetem
à realidade de muitas mulheres negras nos serviços de saúde atualmente.” (ASSIS, Jussara Francisca de.
Violência obstétrica enquanto violência de gênero e os impactos sobre as mulheres negras a partir de uma visão
integrativa. Universidade Federal do Rio de Janeiro). Disponível em
https://www.editorarealize.com.br/revistas/enlacando/trabalhos/TRABALHO_EV072_MD1_SA30_ID1268_070
82017222543.pdf. Acesso em 25/07/2019.
243
“Um dos estudos identificados tratam do emblemático “Caso Aline Pimentel”. Silva (2015), na monografia
“Caso Alyne Pimentel: análise do direito humano à saúde e a morte maternal”, toma como objeto de
investigação os fundamentos teóricos e práticos do caso Alyne Pimentel versus Brasil. A partir da área do
Direito, a pesquisadora busca compreender, através da doutrina nacional e internacional, os fundamentos do
direito humano à saúde e ao reconhecimento da condição das mulheres enquanto detentoras de direito de
especial proteção no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos. Os objetivos da investigação de Silva (2015)
se voltaram para o citado caso pelo fato de Alyne Silva Pimentel, mulher negra de 28 anos e moradora da
Baixada Fluminense, ter falecido em novembro de 2002, no sexto mês de gestação, vítima de negligência e
precariedade da atenção prestada na rede de atenção obstétrica. Em agosto de 2011, o Comitê pela Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Comitê CEDAW), da ONU, concluiu que o Estado
brasileiro falhou em proteger os direitos humanos à vida, à saúde, à igualdade e não discriminação no acesso à
saúde e também ao não garantir à família de Alyne o acesso efetivo à justiça. A decisão do Comitê CEDAW, no
caso Alyne Pimentel versus Brasil, foi a primeira, em âmbito internacional, a tratar do tema da mortalidade
materna como violação aos direitos humanos, considerando que Alyne Pimentel além de discriminação de
gênero sofreu discriminação por sua condição racial e de classe.” (ASSIS, Jussara Francisca de. Violência
obstétrica enquanto violência de gênero e os impactos sobre as mulheres negras a partir de uma visão
integrativa. Universidade Federal do Rio de Janeiro). Disponível em
https://www.editorarealize.com.br/revistas/enlacando/trabalhos/TRABALHO_EV072_MD1_SA30_ID1268_070
82017222543.pdf. Acesso em 25/07/2019.
244
“A Pesquisa Nascer no Brasil, por exemplo, evidencia maiores percentuais de violência obstétrica entre
mulheres negras [pretas e pardas], com menor escolaridade, com idade entre 20 e 34 anos, da Região Nordeste,
com parto vaginal e que não tiveram acompanhantes durante a internação, comparadas às mulheres brancas. A
pesquisa identificou experiências de violências verbal, física e psicológica. Esses achados denunciam uma
prática institucional excludente denominada, nas ciências sociais, como Racismo Institucional.” (OLIVEIRA,

121
Desse modo, e para finalizar este subitem, verifica-se que a maior
vulnerabilidade se encontra em mulheres deficientes e negras, e, assim, tal é a importância da
inclusão deste subtítulo no presente estudo. Isso serve como um alerta para toda a sociedade e
para o poder público. Assim, deve-se buscar uma igualdade na atenção e no atendimento a
essas mulheres, possivelmente oferendo uma assistência diferenciada a essa população na área
da medicina. Assim, as políticas públicas dos setores da sociedade devem interferir, dando
maior acesso à educação e à melhoria das condições de vida dessas mulheres, com o intuito de
atenuar essa vulnerabilidade social.

2.3 Erro médico

O erro médico pode ser estudado dentro de várias áreas, ou seja, à luz da ética,
da mídia, na Medicina, ou mesmo no Direito. Neste estudo, interessa o seu estudo sob o
aspecto jurídico. O erro integra a natureza humana e acompanha o indivíduo desde o seu
nascimento. Assim, o erro médico é um erro na profissão, como o que pode ocorrer em
qualquer outra.245

Caracteriza-se o erro médico como a ação ou omissão irregular ou inadequada


de um profissional contra determinado paciente, durante ou por causa do exercício médico, o
qual pode derivar de uma conduta praticada com culpa, nas modalidades de imprudência,
negligência ou imperícia, mas raramente praticada com dolo.246

Ellen Hilda Souza de Alcântara. Mulheres negras vítimas de violência obstétrica: estudo em um hospital público
de Feira de Santana – Bahia OLIVEIRA, Ellen Hilda Souza de Alcântara. Mulheres negras vítimas de violência
obstétrica: estudo em um hospital público de Feira de Santana – Bahia. Fundação Oswaldo Cruz. Instituto
Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira. Rio de Janeiro, fevereiro de
2018, p. 41). Disponível em:
https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/30942/2/ellen_oliveira_iff_mest_2018.pdf. Acesso em 25/jul/2019.
245
“O erro médico pode ser analisado sob aspectos vários, não constituindo um conceito estanque; pelo
contrário, permeia-se por áreas diversas: ora é encarado à luz da Ética, ora sob o prisma de sua repercussão na
Mídia; dá-se ênfase, por vezes, aos efeitos deletérios do erro na instituição médica, e assim por diante. Mas é na
esfera do Direito que o erro médico se espraia com largueza, interessando a várias esferas da Ciência Jurídica.
Essa interpenetração das duas disciplinas – a Medicina, de um lado, o Direito, de outro – não deve causar
espécie, pois não há ciência que se baste a si: essa é a visão cartesiana dos conhecimentos humanos: ‘as ciências
estão todas entrelaçadas entre si, de tal forma que é mais fácil aprendê-las todas de uma vez, do que separar uma
das outras’. É manifesto que o desenvolvimento extraordinário das ciências não mais permite a um só estudioso
abraçá-las todas elas.” (MORAES, Nereu Cesar de. Erro médcio: aspectos jurídicos. Rev Bras Cir Cardiovasc
1996; 11(2): 55-9). Disponível em: https://s3-sa-east-
1.amazonaws.com/publisher.gn1.com.br/bjcvs.org/pdf/v11n2a02.pdf. Acesso em 29/mar/2019.
246
“Erro médico é a conduta (omissiva ou comissiva) profissional atípica, irregular ou inadequada, contra o
paciente durante ou em face de exercício médico que pode ser caracterizada como imperícia, imprudência ou
negligência, mas nunca como dolo.” (CORREIA-LIMA, Fernando Gomes. Erro médico e reponsabilidade civil.
Brasília: Conselho Federal de Medicina, Conselho Regional de Medicina do Estado do Piauí, 2012, p. 19).

122
Existem decisões de Tribunais Superiores que consideram erro médico
condutas dolosas, na modalidade de dolo eventual, hipóteses em que o agente assume o risco
da prática de determinado resultado. Nesses casos, os profissionais de saúde são punidos mais
severamente. Mas, o mais comum é que a conduta seja culposa. Assim, são fundamentais a
existência dos seguintes requisitos: o dano, a conduta culposa e a relação de causalidade, os
quais constituem o fundamento da responsabilidade civil subjetiva.247

Dentre os requisitos citados anteriormente, o dano é o mais importante, uma


vez que não se caracteriza erro médico sem ele. A falta de dano descaracteriza o erro, não
cabendo qualquer reparação, desconfigurando a responsabilidade civil. É possível a existência
de responsabilidade sem culpa, mas não sem dano, o qual geralmente é a lesão que, devido a
determinado fato, recai sobre um indivíduo, contra sua vontade, afetando-o, o que implica um
interesse jurídico.248

De outro lado, é possível que haja dano sem que se caracterize o erro médico.
Assim ocorre com alguns tipos de lesões previsíveis e esperadas, decorrentes do procedimento
a ser adotado no paciente. Pode-se exemplificar com as cicatrizes ou as imputações de

Disponível em https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/erromedicoresponsabilidadecivil.pdf. Acesso


em 30/mar/2019.
247
“Em que pese esse entendimento, há decisões nos tribunais superiores considerando erro médico proveniente,
também, de condutas dolosas, na modalidade dolo eventual, onde o agente assume o risco de produzir o
resultado danoso. Desta feita, os profissionais são punidos com maior severidade, refletindo mais o anseio da
sociedade do que uma técnica jurídica racional propriamente dita. Na análise dos conceitos supramencionados
observam-se os componentes fundamentais: o dano, a ausência de dolo, configurando a culpa em sentido estrito
e o nexo de causalidade, ou seja, a relação entre a conduta inadequada do médico e o agravo. Aqueles três
elementos constituem o fundamento da responsabilidade civil subjetiva que, com algumas exceções, se relaciona
com a atividade dos facultativos, conforme preconizam o art. 951 do Código Civil brasileiro e o art. 14, § 4º, do
Código de Defesa do Consumidor (CDC).” (CORREIA-LIMA, Fernando Gomes. Erro médico e
reponsabilidade civil. Brasília: Conselho Federal de Medicina, Conselho Regional de Medicina do Estado do
Piauí, 2012, p. 19/20). Disponível em
https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/erromedicoresponsabilidadecivil.pdf. Acesso em 30/mar/2019.
248
“Não há, juridicamente, erro médico sem dano ou agravo à saúde de terceiro. A falta do dano, que é da
essência e um dos pressupostos básicos do erro médico, descaracteriza o erro, inviabiliza o seu ressarcimento e
desconfigura a responsabilidade civil. Se pode haver responsabilidade sem culpa lato sensu, não poderá haver
responsabilidade sem dano. ‘O dano é entendido como a lesão – diminuição ou subtração – de qualquer bem ou
interesse jurídico, seja patrimonial ou moral.’ Maria Helena Diniz, ao salientar o aspecto do consentimento,
ressalta: ‘O dano pode ser definido como a lesão (diminuição ou destruição) que, devido a um certo evento, sofre
uma pessoa, contra a sua vontade, em qualquer bem ou interesse jurídico, patrimonial ou moral’.” (CORREIA-
LIMA, Fernando Gomes. Erro médico e reponsabilidade civil. Brasília: Conselho Federal de Medicina,
Conselho Regional de Medicina do Estado do Piauí, 2012, p. 21). Disponível em
https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/erromedicoresponsabilidadecivil.pdf. Acesso em 30/mar/2019.

123
membros gangrenados. É possível a existência de lesões que, apesar de previsíveis, são
inesperadas como se dá no caso de um óbito decorrente de choque anafilático.249

No passado, não se consideravam os erros da Medicina, mas o que importava


eram as curas, as quais eram raras. Posteriormente, passou-se a considerar o erro médico,
oportunidade em que surgem os primeiros preceitos que procuram a punição dos erros,
nominados desvios de conduta na área médica.250

É preciso que se faça uma diferenciação entre erro e ignorância, muito embora
o Direito não leve em conta se o desvio de conduta foi praticado de uma ou de outra forma.
Desse modo, haverá responsabilidade médica no caso do mau exercício da profissão, quanto
aquele que compromete a vida ou a saúde de um paciente por ignorância. No erro, existe um
falso conhecimento, enquanto na ignorância, há a falta de conhecimento.251

O que realmente tem relevância neste estudo é aquilo que se chama de “má
prática”, aquilo que pode levar à responsabilidade legal na medicina, a qual pode assumir três

249
“Se, por um lado, não há erro médico sem dano, o inverso não é verdadeiro. Poderá haver dano na relação
médico-paciente sem caracterizar erro médico. No estudo da iatrogenia (iatros = médico, genos = geração), ou
seja, no ‘estudo das alterações patológicas provocadas no paciente por tratamento de qualquer tipo’, as lesões
previsíveis e esperadas, decorrentes do próprio procedimento, como as cicatrizes cirúrgicas, as amputações de
membros gangrenados e a retirada de órgãos internos afetados por neoplasia, por exemplo, são legitimadas pelo
próprio exercício regular da profissão médica, no qual a lesão seria a única forma de intervir para a cura ou
melhora do paciente. A lesão previsível, mas inesperada, decorrente do risco de qualquer procedimento, como a
anafilaxia determinada por um anestésico, que caracteriza uma reação idiossincrásica e, portanto, individual,
própria do paciente, podendo, inclusive, provocar o óbito, não poderá ser imputada a erro médico.” (CORREIA-
LIMA, Fernando Gomes. Erro médico e reponsabilidade civil. Brasília: Conselho Federal de Medicina,
Conselho Regional de Medicina do Estado do Piauí, 2012, p. 16/17). Disponível em
https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/erromedicoresponsabilidadecivil.pdf. Acesso em 30/mar/2019.
250
“Na Antiguidade remota, o exercício da Medicina (se é que de Medicina se cuidava) era um conglomerado de
mitos. Veja-se, por exemplo, o caso de Asclepius, conhecido pelo nome latino de Esculápio, que curava ... por
sonhos, em seu templo de Epidauro, na velha Grécia. Nessas eras, não havia porque ter em conta o erro, de tal
monta era o seu acervo; só se levava em consideração as curas, que, de tão raras, se inscreviam nas colunatas do
templo. Passada essa fase mítica, os homens começaram a ter em consideração o erro médico e essa preocupação
se perde na noite dos tempos. Surgem, então, os primeiros preceitos procurando reprimir os desvios de conduta
no exercício da Medicina.” (MORAES, Nereu Cesar de. Erro médico: aspectos jurídicos. Rev Bras Cir
Cardiovasc 1996; 11(2): 55-9). Disponível em: https://s3-sa-east-
1.amazonaws.com/publisher.gn1.com.br/bjcvs.org/pdf/v11n2a02.pdf. Acesso em 29/mar/2019.
251
“Uma coisa é o erro, outra, a ignorância. Para os efeitos da análise do desvio de conduta médica, o Direito
não leva em consideração se o mal foi praticado por erro ou por ignorância. Tanto incide em responsabilidade o
médico que, no mau exercício da profissão, causa dano ao paciente por erro, quanto o profissional que
compromete a vida ou a saúde do paciente por ignorância. O que importa, e importa decisivamente, nesse
terreno, é o que se denomina má prática. A expressão foi cunhada pelos americanos; ‘malpractice’, e se aplica a
todas as profissões. É a má prática que pode levar à responsabilidade legal do médico. Essa responsabilidade
pode assumir três aspectos: penal, civil ou administrativo. O erro é a falsa concepção acerca de um fato ou de
uma coisa; é uma ideia contrária à realidade. A ignorância, por seu turno, é a falta de conhecimento de alguma
coisa ou de um fato.” (MORAES, Nereu Cesar de. Erro médico: aspectos jurídicos. Rev Bras Cir Cardiovasc
1996; 11(2): 55-9). Disponível em: https://s3-sa-east-
1.amazonaws.com/publisher.gn1.com.br/bjcvs.org/pdf/v11n2a02.pdf. Acesso em 29/mar/2019.

124
aspectos, quais sejam, o penal, o civil e o administrativo. O erro é a falsa percepção da
realidade; a ignorância caracteriza-se como a falta de conhecimento de algo ou de algum fato.
No Direito, a diferença é meramente teórica, pois as consequências são para fins de
compensação.252

Quando se fala em “má prática”, deve-se sempre pensar na deriva da culpa, a


qual pode envolver o erro e a ignorância. Quando se trata de responsabilidade penal, deve-se
ter em mente quando o dano causa confusão da ordem social. Nesse contexto, a sanção é uma
pena, a qual recai apenas sobre seu autor, podendo privar a sua liberdade ou provocar uma
perda patrimonial, no caso de ser pecuniária.253

Na hipótese de responsabilidade civil, o dano alcança o paciente e seus


descendentes, tendo a sanção natureza patrimonial, atinge tanto o profissional responsável,
quanto seus sucessores. Já na responsabilidade administrativa, o dano tem repercussão na
reputação do profissional de saúde e da instituição na qual ele trabalha. Nesse último caso, o
profissional é punido pelos Conselhos de Medicina. Em relação aos aspectos funcionais e à
má conduta dos profissionais quando forem servidores públicos, as sanções competem à
Administração Pública.254

O erro médico e a responsabilidade civil que dele deriva traz consequências


para o Poder Judiciário, uma vez que há uma dificuldade muito grande da sua verificação no

252
“No erro, forma-se um juízo falso sobre algum aspecto da realidade; na ignorância não se tem juízo nenhum,
falso ou verdadeiro, sobre determinado objeto. Lá, no erro, um falso conhecimento; já na ignorância, há falta de
conhecimento. Para o Direito, a distinção se exaure no campo da teoria, pois, na prática, as conseqüências do
erro e da ignorância são tratadas de igual maneira. A responsabilidade pela má prática nasce da culpa, que tanto
pode envolver o erro como a ignorância.” (MORAES, Nereu Cesar de. Erro médico: aspectos jurídicos. Rev
Bras Cir Cardiovasc 1996; 11(2): 55-9). Disponível em: https://s3-sa-east-
1.amazonaws.com/publisher.gn1.com.br/bjcvs.org/pdf/v11n2a02.pdf. Acesso em 29/mar/2019.
253
“A responsabilidade legal do médico, pela má prática, espraia-se por três ramos do Direito: Direito Penal,
Direito Civil e Direito Administrativo. A responsabilidade é penal quando o dano, pela gravidade, causa
turbação da ordem social. É a comoção da comunidade, que ultrapassa o âmbito do paciente e de sua família. A
sanção é uma pena, que pode ser corporal ou pecuniária, e só recai sobre o autor da má prática.” (MORAES,
Nereu Cesar de. Erro médico: aspectos jurídicos. Rev Bras Cir Cardiovasc 1996; 11(2): 55-9). Disponível em:
https://s3-sa-east-1.amazonaws.com/publisher.gn1.com.br/bjcvs.org/pdf/v11n2a02.pdf. Acesso em 29/mar/2019.
254
“Na responsabilidade civil, o dano tem repercussões mais restritas: alcança o paciente e sua família, sem
outros extravasamentos. A sanção tem natureza exclusivamente patrimonial e alcança o profissional responsável
e seus sucessores. Na responsabilidade administrativa, o dano repercute na reputação da profissão médica e da
instituição que a representa. Os aspectos correcionais ou corretivos estão a cargo dos Conselhos de Medicina,
federal e estaduais; os aspectos funcionais, derivados da má conduta do servidor público, competem à
Administração Pública, em seus vários níveis (União, Estados e Municípios). As sanções são correcionais ou
administrativas, numa escala que vai da simples censura ou advertência reservada até a demissão a bem do
serviço público e à proibição do exercício da profissão.” (MORAES, Nereu Cesar de. Erro médcio: aspectos
jurídicos. Rev Bras Cir Cardiovasc 1996; 11(2): 55-9). Disponível em: https://s3-sa-east-
1.amazonaws.com/publisher.gn1.com.br/bjcvs.org/pdf/v11n2a02.pdf. Acesso em 29/mar/2019.

125
caso concreto. O certo é que, para que os operadores do direito tomem uma decisão é
necessário um laudo pericial, no qual as partes terão conhecimento dele, para analisar suas
conclusões, comentando-as, criticando-as ou, ainda, solicitando nova perícia. Na realidade, o
magistrado pode até mesmo repudiar o lado e decidir contrariamente a ele, baseado naquilo
que lhe surge como verdade, com base no princípio do livre convencimento motivado (ou
íntima convicção motivada), além do princípio da livre apreciação da prova.255

Deve-se, outrossim, atentar para a responsabilidade do paciente que deixa de


tomar medicamentos ou desrespeita as doses e os horários determinados, exemplificando
casos de culpa exclusiva da vítima, o que faz com que haja romprimento do nexo causal entre
a conduta praticada pelo profissional de saúde e o dano.256

Fazendo uma relação entre a violência obstétrica e o erro médico, vê-se que a
primeira não é somente um desrespeito praticado contra a gestante por ter escolhido este ou
aquele tipo de parto, mas uma violação grave dos direitos humanos das mulheres,
categorizada como violência de gênero, simbólica ou institucional. Porém, em razão das
violências sofridas e procurando uma forma de transformá-las, muitas vítimas acabam
procurando o Poder Judiciário, buscando uma decisão que reconheça as violências
vivenciadas e uma forma de compensação pelos danos sofridos. Dessa forma, quando as

255
“O erro médico e a consequente responsabilidade civil do profissional de medicina traz dificuldades para a
jurisdição, pois envolve aspectos realmente particulares, algumas vezes restritos a especialistas. Os operadores
jurisdicionais e, de modo especial, os aplicadores do Direito, enfrentam dificuldades extraordinárias no tocante à
verificação do erro médico. Para apreciar o comportamento médico, o Judiciário deveria, sempre, decidir com a
ajuda da prova pericial. Uma vez terminado o relatório pericial, as partes vão poder conhecer e analisar as
conclusões do perito, comentá-las, criticá-las e, mesmo, solicitar nova perícia. Contudo, não se deve esquecer
que as conclusões obtidas pelo especialista, mesmo que algumas vezes sejam de grande importância para a
elucidação do caso e ajudem na convicção do juiz, não obrigam o magistrado a aceitá-las, pois este poderá ter
outra visão dos fatos e julgar contrariamente à apreciação do perito. Ele decidirá baseado naquilo que emerge
como verdade, amparado nos fatos comprovados nos autos. Ou seja, decidirá de acordo com os fatos, provas e
procedimentos periciais constantes no processo − respaldado pelo princípio do livre convencimento motivado do
magistrado, ou princípio da livre convicção motivada, e pelo princípio da livre apreciação da prova.”
(CORREIA-LIMA, Fernando Gomes. Erro médico e reponsabilidade civil. Brasília: Conselho Federal de
Medicina, Conselho Regional de Medicina do Estado do Piauí, 2012, p. 16/17). Disponível em
https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/erromedicoresponsabilidadecivil.pdf. Acesso em 30/mar/2019.
256
“Lembremos, por consequente, a responsabilidade do paciente ao não tomar a medicação ou não respeitar as
doses e horários determinados, omitir a informação de outras patologias associadas, bem como ocultar a ingestão
de bebidas alcoólicas, drogas ilícitas ou outros medicamentos. Esses casos exemplificam a culpa exclusiva da
vítima, rompendo todo o nexo de causalidade entre a ação do médico e o dano ocorrido.” (CORREIA-LIMA,
Fernando Gomes. Erro médico e reponsabilidade civil. Brasília: Conselho Federal de Medicina, Conselho
Regional de Medicina do Estado do Piauí, 2012, p. 16/17). Disponível em
https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/erromedicoresponsabilidadecivil.pdf. Acesso em 30/mar/2019.

126
demandas são julgadas, não há o uso do termo “violência obstétrica”. Isso não quer dizer que
não se trate do tema, mas que o sistema de justiça não dá a atenção devida a tais casos.257

A violência obstétrica é classificada como violência de gênero, uma vez que se


refere ao tratamento apenas de mulheres, em uma conduta sempre submissa, sem
possibilidade de manifestação de suas vontades. Ainda é uma violência simbólica, sendo uma
forma de coação, na qual existe a imposição de alguma coisa que é aceita como verdade,
tendo em vista padrões impostos pelos costumes, sem qualquer questionamento sobre o certo
ou errado.258

Esta violência não é tão visível quanto à violência física, mas é tão prejudicial
quanto ela, pois causa danos psicológicos. Um dos motivos para ser considerada como natural
é a relação de hierarquia que se estabelece entre o médico e a paciente, pelo fato de ele deter
conhecimentos técnicos. O médico e os outros profissionais de saúde fazem com que várias

257
“Entretanto, o excesso de cesarianas não é o único problema relativo a violações de direitos humanos das
mulheres praticadas durante os períodos do pré-parto, do parto e do pós-parto. Em outras palavras, violência
obstétrica não necessariamente diz respeito à via de parto; na verdade, trata-se de qualquer ato que viole direitos
humanos das mulheres internacionalmente consagrados. (…) Em razão das violências sofridas, e buscando uma
forma de ressignificá-las, muitas mulheres acabam levando suas experiências ao Poder Judiciário, considerando
que uma sentença que reconheça as violências vividas já seja uma forma de reparação. Entretanto, em uma
pesquisa jurisprudencial feita em 2015 pela então aluna de graduação Beatriz Carvalho Nogueira, não foi
encontrado nenhum julgado relativo ao termo ‘violência obstétrica’, tampouco a ‘direitos reprodutivos’. Isso não
significa que não haja acórdãos tratando do tema, mas, sim, que o sistema de justiça não tem dado a tais casos o
tratamento e a atenção devida.” (LEITE, Júlia Campos. A desconstrução da violência obstétrica enquanto erro
médico e seu enquadramento como violência institucional e de gênero). Disponível em:
http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499455813_ARQUIVO_ARTIGOFAZENDOG
ENERO.pdf. Acesso em 01/abr/2019.
258
“Ao observar a história, é possível perceber o árduo caminho percorrido pelas pessoas vulneráveis em busca
da igualdade material de direitos. Destarte, é inegável que, mesmo diante das conquistas, os reflexos de uma dura
desigualdade insistam em prevalecer. Nessa vertente, a violência obstétrica pode ser classificada como violência
de gênero por basear-se, fundamentalmente, no tratamento dispensado à mulher, fruto de uma construção
histórica e social patriarcal, enxergando-a como objeto das ações de outrem, em uma postura sempre passiva e
submissa, sem a possibilidade efetiva de manifestar livremente suas vontades e preferências. A violência
obstétrica é a exteriorização de uma sociedade que relega à mulher situação de subordinação, deslegitima sua
autonomia e a considera titular de um papel reputado menor, a de reprodutora, com a dominação e fragmentação
do seu corpo, negando seus direitos. Além dos aspectos relativos ao gênero, é possível perceber que a violência
obstétrica é, também, simbólica, pois é o resultado de um processo de internalização e naturalização. Tal espécie
de violência é apresentada por Bourdieu e pode ser entendida como uma forma de coação, na qual há imposição
de algo que é aceito devido a crenças criadas no processo de socialização, ou seja, o indivíduo reproduz os
padrões e discursos impostos pelos costumes dominantes sem questionamentos, por internalizá-los e considerá-
los verdades.” (BRITO, Cacília Maria Costa de; OLIVEIRA, Ana Carolina Gondim de Albuquerque; COSTA,
Ana Paula Correia de Albuquerque da. Violência obstétrica e os direitos da parturiente: o olhar do Poder
Judiciário brasileiro). Disponível em; file:///C:/Users/peric/Downloads/_Sem%20ti%CC%81tulo.pdf. Acesso
em:02/mar/2020.

127
condutas abusivas sejam tratadas como naturais, utilizando a estrutura das instituições de
saúde, públicas ou privadas, para mitigá-las.259

Como não há, no direito brasileiro, uma legislação federal específica, seja de
natureza civil ou penal, tratando do assunto “violência obstétrica”, o Poder Judiciário, em tais
julgamentos, utiliza-se das normas gerais de responsabilidade civil dos profissionais de saúde,
abordando, muitas vezes, tais casos, como sendo de erro médico, sendo deficiente no que se
refere a decisões de questões sobre violência obstétrica. Assim, a falta de uma lei específica,
aliada à falta de conhecimento de muitos juízes contribuem para o desamparo das mulheres
que buscam a proteção de seus direitos fundamentais. Assim, essa realidade desencoraja a
realização de novas denúncias, deixando, assim, o Judiciário de exercer a sua função social, o
que gera uma situação de mais indignidade e violência para as mulheres.260

O erro médico caracteriza-se como a conduta de um profissional pautada pela


culpa em qualquer de suas modalidades. É certo que o erro médico pode ocorrer

259
“Apesar de a violência obstétrica não ser tão visível quanto a violência física, não é menos perniciosa, pois
atinge e causa também danos psicológicos. Pode ser compreendida como um meio mais sutil de dominação e
exclusão, uma vez que a sociedade criou concepções que influenciam no processo de socialização do indivíduo,
através de padrões legitimadores do discurso dos dominantes sobre os dominados. É possível, diante do exposto,
traçar paralelo com relação ao índice de partos cirúrgicos (cesarianas) no Brasil. A cultura imposta sinaliza que o
parto cirúrgico é mais seguro do que o parto vaginal, priorizando a praticidade em detrimento da saúde da mãe e
do bebê. Esse tipo de parto, por sua vez, é uma forma de manifestação da violência simbólica, tendo em vista
que, segundo a pesquisa Nascer no Brasil, 70% das mulheres desejavam parto vaginal no início da gravidez, mas
ao longo do pré-natal são sugestionadas a mudar de decisão. Um dos motivos da naturalização da violência
obstétrica é a relação de hierarquização histórica entre médico e paciente, em razão daquele deter o
conhecimento técnico, pois o médico impõe sua vontade de forma alheia à parturiente, em desobediência às
próprias normas éticas, pois o Código de Ética Médica, em seu art. 31, prescreve a proibição do médico
desrespeitar o direito de o paciente decidir livremente sobre as práticas diagnósticas e terapêuticas a que se
submeterá, à exceção de risco de morte. Já o art. 34 deixa claro a obrigação do médico de informar ao paciente o
diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento/procedimento adotado. O médico, bem como
toda a equipe de profissionais da saúde, produz e reproduz as condutas abusivas, naturalizando-as e fazendo com
que se transformem em uma cultura nos serviços de saúde, sejam públicos ou privados. Profissionais que
deveriam acolher e promover direitos, utilizam a estrutura das instituições para mitigá-los. Retirar o véu da
violência institucional é fundamental, e um dos caminhos a ser percorrido é o reconhecimento do médico como
produtor de violência, autoidentificando-se como causador de práticas violentas, não mais as banalizando e no
reconhecimento da parturiente como alguém que possui direitos. Pode-se dizer que a negativa de direitos,
agregada a uma cultura de soberania médica, resulta em um sistema de assistência ao parto caótico e
desrespeitoso. Tal situação se torna ainda mais crítica quando os direitos da mulher são desrespeitados e há
apatia do sistema jurídico.” (BRITO, Cacília Maria Costa de; OLIVEIRA, Ana Carolina Gondim de
Albuquerque; COSTA, Ana Paula Correia de Albuquerque da. Violência obstétrica e os direitos da parturiente:
o olhar do Poder Judiciário brasileiro). Disponível em;
file:///C:/Users/peric/Downloads/_Sem%20ti%CC%81tulo.pdf. Acesso em:02/mar/2020.
260
“Pela falta de uma legislação brasileira relativa à prática de violência obstétrica, tem-se aplicado a tais casos
os critérios gerais de responsabilidade civil de profissionais de saúde, hospitais, planos de saúde e Poder Público,
o que faz com que a prática de violência obstétrica seja enquadrada como erro médico.” (LEITE, Júlia Campos.
A desconstrução da violência obstétrica enquanto erro médico e seu enquadramento como violência
institucional e de gênero). Disponível em:
http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499455813_ARQUIVO_ARTIGOFAZENDOG
ENERO.pdf. Acesso em 01/abr/2019.

128
simultaneamente com a violência obstétrica, mas as duas práticas são independentes, não se
tratando de termos sinônimos. Na verdade, é difícil o enquadramento da violência obstétrica
como erro médico, porque esse tipo de violência especificamente refere-se ao gênero, sendo
um problema institucional na assistência ao parto. Ademais, o que se verifica é que há uma
falta de atenção do direito com relação à saúde da mulher.261

Conforme já explanado no presente trabalho, o Brasil é signatário de todos os


acordos internacionais que asseguram os direitos humanos das mulheres, como a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulher (CEDAW) e a
Convenção de Belém do Pará. Esta última define a violência contra a mulher como qualquer
ação ou omissão baseada no gênero, o que mostra que ela serve de modelo para conceituar a
violência obstétrica como uma espécie de violência de gênero.262

Ademais, a CEDAW prevê regras para os Estados signatários adotarem


medidas para que não ocorra violência contra a mulher dentro dos serviços médicos. Assim,

261
“Erro médico, na literatura jurídica, envolve uma conduta profissional com inobservância da técnica, uma
atuação pautada por negligência, imprudência ou imperícia. Apesar de erro médico e violência obstétrica
poderem ocorrer simultaneamente, tais práticas não dependem uma da outra e merecem tratamentos
completamente distintos. O enquadramento de casos de violência obstétrica como erro médico é problemático
por diversos motivos. Primeiramente, com esse enquadramento, aprecia-se somente uma dimensão de uma
questão muito complexa, ignorando-se que se trata de um tipo de violência de gênero e também de um problema
institucional na assistência ao parto, que, somente no Brasil, atinge uma em cada quatro mulheres. Além disso,
dificulta-se a aplicação de punições a quem pratica esse tipo de violência. Por fim, demonstra, de certa maneira,
uma falta de preocupação do Direito com temas afeitos à saúde física e psíquica da mulher.” (LEITE, Júlia
Campos. A desconstrução da violência obstétrica enquanto erro médico e seu enquadramento como violência
institucional e de gênero). Disponível em:
http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499455813_ARQUIVO_ARTIGOFAZENDOG
ENERO.pdf. Acesso em 01/abr/2019.
262
“Enquanto o erro médico de fato envolve a averiguação de responsabilidade civil, a violência obstétrica deve
ser encarada como uma violência institucional e de gênero, conforme preconizam os tratados internacionais
relativos aos direitos humanos das mulheres ratificados pelo Brasil. Dentre esses tratados, destacam-se a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulher (CEDAW) e a Convenção
de Belém do Pará. O Brasil é signatário de todos os acordos internacionais que buscam assegurar os direitos
humanos das mulheres e a eliminação de todas as formas de discriminação e violência com base no gênero
(BRASIL, 2006). A Convenção de Belém do Pará define violência contra a mulher como ‘ação ou conduta,
baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito
público como no privado’. A categoria ‘gênero’ é causa específica desse tipo de violência; a violência é dirigida
contra a mulher especificamente pelo fato de ela ser mulher. É por isso que se diz que a violência obstétrica é um
tipo de violência de gênero. Apesar de focar na violência doméstica e intrafamiliar, a Convenção de Belém do
Pará também serve de parâmetro de norma internacional de direitos humanos para todo tipo de violência de
gênero.” (LEITE, Júlia Campos. A desconstrução da violência obstétrica enquanto erro médico e seu
enquadramento como violência institucional e de gênero). Disponível em:
http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499455813_ARQUIVO_ARTIGOFAZENDOG
ENERO.pdf. Acesso em 01/abr/2019

129
na falta de lei específica, essas Convenções devem ser utilizadas como leis para a garantia de
direitos humanos básicos de mulheres vítimas de violência obstétrica.263

2.4 Estudo de casos de violência obstétrica

Neste subitem serão analisados casos de jurisprudência decididos pelo Tribunal


de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, relativos à violência obstétrica. Esse Tribunal
foi escolhido uma vez que esta pesquisadora é Juíza no Distrito Federal, tendo maior
facilidade na busca de dados. Ademais, os casos pesquisados são de fatos ocorridos
basicamente dentro de hospitais públicos do Distrito Federal, com exceção de um deles
somente. O período pesquisado é o ano de 2019, data mais atual, obviamente posterior à
entrada em vigor da Lei n.º 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, a qual aborda a
violência praticada contra a mulher em situação de vulnerabilidade, o que é o estudo da
presente tese. Ademais, existem inúmeros outros casos semelhantes, sendo escolhidos alguns
apenas para o enriquecimento deste trabalho acadêmico.

É certo que, também, existem casos semelhantes em outros tribunais do País e


nos Tribunais Superiores, mas serão tratados apenas os casos do Distrito Federal, conforme
anteriomente explicado. Na pesquisa realizada, foi possível identificar os seis últimos casos
julgados em 2019, portanto, extremamente recentes, em que decisões foram tomadas em
ações de reparação civil por danos morais e materiais, em casos de violência obstétrica.

É impresncindível observar que o índice de violência é maior na rede pública


do que na rede privada de saúde. A maioria da população brasileira usa o sistema de saúde
pública, pois muitas pessoas são economicamente hipossuficientes, não possuem alta
escolaridade e, na maior parte das vezes, desconhecem seus direitos. Somando-se esses
fatores, a possibilidade de ocorrer a violência obstétrica aumenta.

263
“A CEDAW, por sua vez, estabelece a obrigação aos Estados signatários de que adotem ‘todas as medidas
apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados médicos, a fim de assegurar,
em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive referentes ao
planejamento familiar’. Tais documentos, na falta de uma legislação brasileira sobre violência obstétrica,
oferecem subsídios suficientes para o tratamento da questão e devem ser utilizados no julgamento de todo e
qualquer caso relativo à violência contra a mulher, em qualquer de suas formas. Para que haja alteração do
cenário degradante hoje visto no país, é preciso que a legislação brasileira e o sistema de saúde se adequem aos
marcos normativos impostos pelos acordos internacionais firmados pelo Brasil relativos aos direitos das
mulheres, de modo a garantir seus direitos humanos básicos (LEITE, 2016).” (LEITE, Júlia Campos. A
desconstrução da violência obstétrica enquanto erro médico e seu enquadramento como violência institucional e
de gênero). Disponível em:
http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499455813_ARQUIVO_ARTIGOFAZENDOG
ENERO.pdf. Acesso em 01/abr/2019

130
Caso 1:

O primeiro caso foi julgado em dezembro 2019.264 Tratam-se de recursos de


apelações interpostos contra a sentença que condenou o Distrito Federal a pagar compensação
por danos morais, por falha no atendimento médico-hospitalar, no momento do parto, a qual
provocou sequelas permanentes, porém, tendo sido indeferido o pedido de pensionamento
mensal para custear o tratamento médico para pagamento das despesas decorrentes das
referidas sequelas.

Os autos noticiam ação proposta por menor, representado por sua genitora, o
qual ajuizou ação de conhecimento requerendo reparação por danos materiais e morais
supostamente sofridos por ocasião de seu nascimento. Narram os autos que a mãe do menor
deu entrada no Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB), mas se deparou com a negativa
do hospital em realizar seu parto, e que esta deveria se encaminhar ao Hospital Regional de
Taguatinga (HRT), pois o seu prontuário estaria lá. Assim, então, foi feito pela mãe do autor.

Apesar de a mãe do autor possuir gravidez de alto risco, a equipe de


profissionais de saúde optou por fazer parto normal. Como não ocorreu o nascimento, depois

264
APELAÇÕES CÍVEIS. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO INDENIZATÓRIA.
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. FALHAS EM ATENDIMENTO MÉDICO-HOSPITALAR NA
REDE PÚBLICA DO DF. PARTO. ATRASO. NEGLIGÊNCIA E IMPERÍCIA. COMPROVAÇÃO. DANOS
MORAIS. CONFIGURAÇÃO. ARBITRAMENTO DA INDENIZAÇÃO. PRINCÍPIOS DA
RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. PEDIDO DE PENSIONAMENTO. NÃO CABIMENTO. 1.
Apelações interpostas contra a r. sentença que condenou o Distrito Federal a pagar ao autor compensação por
danos morais, em decorrência de falhas no atendimento médico-hospitalar no momento do parto, causando-lhes
sequelas permanentes; e indeferiu o pedido de pensionamento mensal para custear o tratamento médico
necessário para custear as despesas médicas decorrentes das referidas sequelas. 2. A despeito de se adotar a
teoria da responsabilidade objetiva ou a da responsabilidade subjetiva para análise da responsabilidade estatal
por erro médico, certo é que, em havendo a comprovação da existência dos 3 requisitos basilares da teoria da
responsabilidade objetiva (conduta lesiva, dano e nexo causal entre eles), associada à comprovação da culpa dos
agentes estatais em qualquer de suas modalidades (negligência, imprudência e imperícia), e não havendo a
demonstração de qualquer excludente de responsabilidade pelo ofensor (culpa exclusiva da vítima, caso fortuito
ou força maior), impõe-se responsabilizar o Distrito Federal pelos danos experimentados pelo autor. 3. Diante da
existência de prova técnica simplificada apontando para a existência de provas de que as sequelas do recém-
nascido (retardo mental, epilepsia, perda auditiva) decorreram de demora no atendimento em hospital público e
de aplicação de técnica médica imprópria no socorro ao paciente, restando caracterizados a conduta lesiva, os
danos, a relação de causalidade entre a conduta estatal e o dano causado às partes, além da culpa administrativa,
mostra-se correta a responsabilização civil do ente distrital para indenizar os danos morais daí advindos. 4. A
fixação do quantum da compensação por dano moral deve ocorrer mediante prudente arbítrio do Juiz, de acordo
com o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, observada a finalidade compensatória, a extensão do
dano experimentado, o grau de culpa e a capacidade econômica das partes. Ao mesmo tempo, o montante não
pode ensejar enriquecimento sem causa, nem pode ser ínfimo a ponto de não desestimular a reiteração da
conduta ilícita. 5. Quanto ao custeio de tratamento médico, o sistema público de saúde do Distrito Federal conta,
em seu quadro de pessoal, com todos profissionais aptos a atender às demandas médicas do Autor. 6. Recursos
conhecidos e desprovidos. CONHECIDO. IMPROVIDO. UNÂNIME. Processo n.º 07081501020178070018 -
(0708150-10.2017.8.07.0018 - Res. 65 CNJ). Órgão julgador: 2ª Turma Cível. Relator: César Loyola. Publicado
no PJe: 24/12/2019.

131
de bastante tempo, resolveram fazer parto cesáreo. Devido à demora excessiva no
atendimento, a criança nasceu com parada cardiorrespiratória, precisou ser reanimada por
causa de uma asfixia perinatal, evoluindo com sepse tardia e crises de convulsão. Diante dessa
violência obstétrica, ou seja, negativa de atendimento, houve ausência de oxigênio no cérebro
por determinado tempo, a criança aspirou líquido amniótico, o que lhe acarretou sequelas, ou
seja, atrofia cerebral. Além disso, a criança possui asma, DRGE, Retardo DNPM e alteração
coclear em ambos os ouvidos.

Caso 2:

Outro caso analisado como sendo de violência obstétrica pela Terceira Turma
Cível do TJDFT265, no qual foi julgada apelação interposta pelo Distrito Federal em face de
sentença que julgou procedente pedido de existência de erro médico, para condenar o réu à
reparação de danos morais. Narram os autos que houve erro médico por omissão no
atendimento de gestante, o que caracteriza violência obstétrica, acarretando a morte do feto
por conta de má-conduta médica.

Consta que a autora estava gestante de 40 semanas e que o feto estava


transverso, com solicitação de ajuda na avaliação e na consulta. A gestante, então, dirigiu-se

265
Poder Judiciário da União TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS
Gabinete da Desembargadora Maria de Lourdes Abreu Número do processo: 0712488-44.2018.8.07.0001 Classe
judicial: APELAÇÃO CÍVEL (198) APELANTE: DISTRITO FEDERAL APELADO: CRISTYANE
FERNANDES DE ARAUJO EMENTA CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE
INDENIZAÇÃO. ATENDIMENTO EM HOSPITAL PÚBLICO. GESTANTE. PARTO. MÁ-CONDUTA
MÉDICA. OMISSÃO. MORTE DO FETO. NEXO DE CAUSALIDADE. DANO. RESPONSABILIDADE
CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. PROTOCOLO MÉDICO. AVALIAÇÃO INDIVIDUALIZADA DO CASO.
DANO MORAL. DEVER DE INDENIZAR. CORREÇÃO MONETÁRIA. FAZENDA PÚBLICA. IPCA-E. 1)
A responsabilidade civil objetiva do Estado está fundada na teoria do risco administrativo (artigo 37, §6º, da
Constituição Federal), tanto para as condutas estatais comissivas quanto para as decorrentes da omissão. No caso
de omissão estatal, o nexo de causalidade decorre da verificação da omissão frente ao dano sofrido pelo
indivíduo nos casos em que o Estado detinha o dever legal e a efetiva possibilidade de atuar para evitar o
resultado danoso. 2) A definição de protocolos médicos como instrumentos de padronização de condutas clínico-
hospitalares não deve servir como anteparo para justificar o desatendimento do dever estatal de prestar
assistência médica irrestrita ao paciente com a observância de suas condições individuais e sintomáticas próprias
do seu quadro de saúde. 3) É cogente o reconhecimento do intenso abalo sofrido pela gestante em face da
infundada peregrinação em busca de atendimento público de saúde adequado à sua situação gestacional, omissão
específica na consulta inicial que redundou em colaboração para a perda do filho que estava sendo gerado e na
iminência do nascimento. 4) Os vetores para a fixação do valor devido a título de indenização por danos morais
devem seguir o método bifásico, conjugando-se os critérios da valorização das circunstâncias do caso concreto e
do interesse jurídico violado com base em parâmetro definido a partir do exame de precedentes jurisprudenciais
lançados em casos semelhantes, o que minimiza a incidência de subjetivismos no arbitramento (Precedentes
STJ). 5) Com relação ao índice de correção aplicável, deve ser aplicado o IPCA-E às condenações impostas à
Fazenda Pública, o que encontra respaldo nas teses firmadas no RE n.º 870.947 e no REsp n.º 1.495.146/MG,
bem como em diversos precedentes desta Egrégia Corte de Justiça (Precedentes TJDFT). 6) Recurso conhecido e
desprovido. CONHECER E NEGAR PROVIMENTO, UNÂNIME. Processo n.º 07124884420188070001 -
(0712488-44.2018.8.07.0001 - Res. 65 CNJ). Órgão julgador: 3ª Turma Cível. Relator: Maria de Lourdes Abreu.
Publicado no DJE: 27/11/2019.

132
ao Hospital Regional de Samambaia (HRSAM), em busca de atendimento médico em razão
de dores fortes e de contrações. Após triagem e sem realização de exames mais aprofundados,
a apelada foi orientada a ir para sua casa e retornar pela manhã, já que era madrugada. Ocorre
que, ao retornar, foi informada que não estava em trabalho de parto, mesmo sem exames
detalhados, orientando-a a retornar somente três dias depois. No mesmo dia, no período
noturno, foi internada no HMIB, onde foi realizada cesárea de emergência, ocasião em que o
bebê foi retirado já em óbito.

A violência obstétrica ocorreu quando da consulta a que foi submetida a


gestante, quando não foi verificada a posição do feto, nem mesmo realizado exame de
cardiotografia, uma vez que, pelo protocolo médico adotado pela Secretaria de Saúde, poderia
a gestante aguardar até 41 semanas de gestação para ser feita a indução ao parto. Assim,
houve falta de cuidado com a averiguação do estado gestacional da apelada, a qual contava
com mais de 40 semanas de gestação, existindo meios e exames disponíveis e mais
aprofundados na rede, os quais poderiam ter identificado seu problema e evitado a morte de
seu filho.

Caso 3:

Em outro julgado, a 7ª Turma Cível do TJDFT julgou improcedentes os


pedidos de compensação cível dos autores, referentes ao recurso de apelação266 interposto
contra o Distrito Federal, em face de sentença proferida. A ação foi ajuizada contra o Distrito
Federal, alegando que o óbito intrauterino de sua filha ocorreu por causa de negligência no
atendimento médico recebido.

266
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO DISTRITO FEDERAL.
ÓBITO FETAL INTRA-ÚTERO. GESTAÇÃO DE RISCO. PACIENTE COM HISTÓRICO DE PARTOS
PREMATUROS. EXAMES INCOMPLETOS. NEGLIGÊNCIA CONFIGURADA PELA AUSÊNCIA DE
EXAMES COMPLEMENTARES. DANO MORAL INDENIZÁVEL. 1. Configura falha da prestação do
serviço médico a ausência de realização de exames complementares em parturiente com histórico de partos
prematuros que, com gestação avançada, se dirige ao hospital em mais de uma ocasião queixando-se de dor. 2.
Conquanto a perícia médica, em parecer inconclusivo, responda não vislumbrar, indubitavelmente, prática de
condutas culposas, reconheceu que a realização de simples ecografia poderia ter diagnosticado pouco mais cedo
o oligoâmnio e consequentemente a realização do parto cirúrgico antes do óbito intra-uterino. 3. Demonstrado
que a realização de exames complementares teria permitido o diagnóstico e evitado o óbito fetal, resta
configurada a conduta negligente pela omissão e o consequente dever de indenizar. 4. O quantum fixado a título
de reparação de danos morais deve observar os parâmetros da proporcionalidade, da razoabilidade e do bom
senso, a fim de assegurar o caráter punitivo da medida e evitar o enriquecimento ilícito da parte ofendida. 5.
Recurso conhecido e provido. CONHECIDO. PROVIDO. UNÂNIME. Processo n.º 00352744320168070018 -
(0035274-43.2016.8.07.0018 - Res. 65 CNJ). 7ª Turma Cível. Relator: Getúlio de Moraes Oliveira. Publicado no
Pje: 25/11/2019.

133
Narra a autora que, a partir de novembro de 2015, quando se aproximava de
seu sétimo mês de gestação, passou a sentir fortes dores, buscando atendimento médico com
mais frequência. A indicação dos médicos limitava-se a indicação de remédios para dores,
sem qualquer encaminhamento para realização de exames. Já no início de dezembro, a autora
foi atendida, queixando-se de lombalgia e contrações, tendo sido examinada, constatando-se
“dinâmica uterina fraca”, apenas com hidratação venosa e dispensa. Alguns dias depois, novo
atendimento com fortes dores, mas foi informada que não poderia ser internada por falta de
vagas na unidade.

A violência obstétrica existiu e consistiu na ausência de exames


complementares na gestante que, mesmo em trabalho de parto prematuro, teve negada sua
internação. Ademais, não se verificaram as peculiaridades do caso concreto, uma vez que a
gestação da apelante era de alto risco, levando-se em conta que a omissão de exames
complementares poderia ter evitado o óbito intrauterino, o que demanda compensação
pecuniária pela omissão do Estado.

Caso 4:

Em outro caso julgado pela 1ª Turma Cível do TJDFT267, em apelação


interposta de sentença em ação ajuizada contra o Distrito Federal, objetivando compensação

267
CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. RESPONSABILIDADE
CIVIL DO ESTADO. REDE PÚBLICA DE SAÚDE. ATENDIMENTO DEFEITUOSO. PARTURIENTE.
TRABALHO DE PARTO PROLONGADO. ELEVADO PESO FETAL. INTERCORRÊNCIAS NO PERÍODO
EXPULSIVO. SOFRIMENTO FETAL. NASCITURO. ASFIXIA PERINATAL GRAVE. DISTÓCIA DE
OMBRO. ASPIRAÇÃO MECONIAL. PARADA CARDIORESPIRATÓRIA. ÓBITO DO RECÉM-NASCIDO.
FALHA NA PRESTAÇÃO DE ASSISTÊNCIA MÉDICO-HOSPITALAR. INOBSERVÂNCIA DOS
PROTOCOLOS CLÍNICOS OFICIAIS E DAS ROTINAS MÉDICAS INDICADAS. PROVA PERICIAL
CONCLUSIVA. PERITO. LEGITIMIDADE. INFIRMAÇÃO E DESCONSTITUIÇÃO DO APURADO.
INSUBSISTÊNCIA. PERITO HABILITADO E TECNICAMENTE QUALIFICADO. CONCLUSÕES
PERICIAIS. EMBASAMENTO EM LITERATURA MÉDICA ESPECIALIZADA. LAUDO.
PARCIALIDADE. NÃO EVIDENCIAÇÃO. GENITORES. DANO MORAL DECORRENTE DO ÓBITO.
CARACTERIZAÇÃO. GRAVIDADE EXTREMA. PROJETOS DE VIDA. FRUSTRAÇÃO E
INDENIZAÇÃO. GRAVIDADE DA CONDUTA E DE SEUS EFEITOS. MENSURAÇÃO DA
COMPENSAÇÃO ADEQUAÇÃO. CONDENAÇÃO INDENIZATÓRIA. NATUREZA ADMINISTRATIVA
EM GERAL. FÓRMULA DE ATUALIZAÇÃO E INCREMENTO DA OBRIGAÇÃO. CORREÇÃO
MONETÁRIA. JUROS DE MORA. PRESERVAÇÃO. ACESSÓRIOS APLICADOS AOS ATIVOS
RECOLHIDOS EM CADERNETA DE POUPANÇA. TESE FIRMADA EM SEDE DE REPERCUSSÃO
GERAL (RE 870.947/SE, TEMA 810). ACÓRDÃO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO INTERPOSTOS POR
ENTES FEDERADOS. AGREGAÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS EMBARGOS PELO EMINENTE
RELATOR DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TESE. EFEITOS SUSPENSOS. SUSPENSÃO ADSTRITA
À TESE. APLICAÇÃO, POR ORA, DA SISTEMÁTICA LEGAL COM A DECLARAÇÃO DE
INCONSTITUCIONALIDADE ANTERIORMENTE PROMOVIDA (ADI N.º 4.357). ATUALIZAÇÃO DA
OBRIGAÇÃO DESDE A GERMINAÇÃO E ATÉ O PAGAMENTO. UTILIZAÇÃO DO IPCA-E A PARTIR
DA INSCRIÇÃO EM PRECATÓRIO. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. HONORÁRIOS
RECURSAIS. MAJORAÇÃO DA VERBA (CPC, ART. 85, §§ 2º e 11). 1. Aviada ação indenizatória em

134
desfavor do Estado sob a imputação de negligência havida nos serviços públicos fomentados, consubstanciando
a falha no atendimento à parturiente em trabalho de parto, culminando a inadequada assistência em
intercorrências que afetaram o recém-nato, causando-lhe gravíssimas lesões e sequelas irreversíveis que o
conduziram a óbito, a responsabilidade do ente público é de natureza subjetiva por derivar a ilicitude imputada
do comportamento omissivo debitado ao serviço público por não ter sido fomentado na forma do esperado e
exigido (faute du service publique). 2. Se a perícia fora pautada pela observância do devido processo legal,
derivando de prévia asseguração de indicação de assistentes técnicos, formulação de quesitos e participação das
partes na sua execução, a quem fora conferida, inclusive, oportunidade de impugnação específica destinada a
elucidar dúvidas passíveis de influenciar no convencimento do juiz, não se afigura acoimada de vício passível de
ensejar sua invalidação ou desconsideração em razão do inconformismo da parte insatisfeita com as conclusões
apresentadas, notadamente quando não subsistentes dúvidas acerca da habilitação, capacitação técnica e absoluta
imparcialidade do expert, que lastreara suas conclusões em substratos eminentemente técnicos, subsidiadas pela
melhor literatura médica. 3. Apurado que paciente da rede pública de saúde tivera pré-natal normal, não
apresentando o feto qualquer enfermidade ou anomalia, e, entrando em trabalho de parto, ao buscar atendimento
médico em unidade de saúde, não lhe fora fomentado a assistência devida, tendo a equipe médica deixado de
adotar as rotinas preconizadas pelo Ministério da Saúde e protocolos das boas práticas clínicas adequadas ao
caso de molde a identificar precocemente o sofrimento fetal, cujas sequelas causaram a morte do recém-nato, o
havido encerra grave falha nos serviços públicos de saúde, ensejando a germinação da responsabilidade do
Estado pela composição dos danos que o ilícito produzira. 4. Apreendido de forma incontrastável, porquanto
atestado pela prova pericial produzida, que a equipe médica que atendera a parturiente incorrera em negligência
e imperícia na avaliação clínica da evolução do trabalho de parto e na sua condução, ignorando o elevado peso
fetal e as intercorrências havidas no período expulsivo do feto, deixando de realizar o devido acompanhamento
das contrações uterinas e monitoramento clínico, que indicavam a necessidade de encaminhamento a parto
cirúrgico de modo a amenizar as complicações que se agravaram desde que iniciado os trabalhos de parto e
evitar a morte do recém-nato, culminando a conduta dos profissionais com gravíssimo e tecnicamente
injustificável retardamento do parto, provocando seríssimas sequelas no nascituro, que viera a óbito,
aperfeiçoam-se todos os requisitos para, apurada a culpa dos agentes públicos, o Estado ser responsabilizado
pelos efeitos gravíssimos sofridos pela paciente (prestação indevida e falha nos serviços médicos, negligência e
imperícia dos agentes públicos, o dano traduzido no óbito do recém-nascido e o nexo causal enlaçando o efeito
lesivo à atuação culposa). 5. Ponderado que a inobservância dos protocolos oficiais recomendados impedira a
identificação de alerta para possível distócia no trabalho de parto, sobejando patente que a equipe médica,
ignorando o quadro clínico apresentado pela parturiente, deixara de, minimamente, permear o atendimento
médico à luz das regras de experiência do cotidiano-hospitalar, culminando com a morte do recém-nato em razão
das sequelas irreversíveis advindas da demora havida na condução do parto, o havido, traduzindo-se em
elemento de previsibilidade do dano, não pode ser considerado como evento imprevisível ou inevitável, tornando
o Estado responsável pelos efeitos que irradiara por terem derivado na falha do serviço público que fomentara
(faute du service publique). 6. A perda de filho recém-nascido decorrente de falha havida na condução do parto,
frustrando e colocando termo a todas as genuínas e legítimas expectativas dos pais, irradiando-lhes sofrimento,
angústia e insegurança, pois, ao invés de levarem consigo o filho gestado, inserindo-o em suas vidas, foram
induzidos a conviver com tudo o que a perda injustificável lhes impregnara, vulnera de forma inolvidável e
imensurável os direitos de suas personalidades, legitimando que lhes seja conferida compensação pecuniária
coadunada com a gravidade do ilícito que os vitimara, que, obviamente, é impassível de apagar as efeitos
corrosivos do ilícito, mas lhes ensejará o que é possível de lhes ser conferido diante do infausto que os alcançara,
7. O dano moral, porque afeta diretamente os atributos da personalidade do ofendido, maculando os seus
sentimentos e impregnando indelével nódoa na sua existência, ante as ofensas que experimentara no que lhe é
mais caro – integridade física/psicológica, dignidade, auto-estima, honra, credibilidade, tranquilidade etc. –, se
aperfeiçoa com a simples ocorrência do ato ilícito que se qualifica como sua origem genética, não reclamando
sua qualificação que do ocorrido tenha derivado qualquer repercussão no patrimônio material do lesado. 8. A
mensuração da compensação pecuniária devida ao atingido por ofensas de natureza moral, notadamente quando
derivado da perda de um filho recém-nato, conquanto permeada por critérios de caráter eminentemente subjetivo
ante o fato de que os direitos da personalidade não são tarifados, deve ser efetivada de forma parcimoniosa e em
ponderação com os princípios da proporcionalidade, atentando-se para a gravidade dos danos havidos e para o
comportamento do ofensor, e da razoabilidade, que recomenda que o importe fixado não seja tão excessivo a
ponto de ensejar uma alteração na situação financeira dos envolvidos nem tão inexpressivo que redunde em uma
nova ofensa ao vitimado. 9. Segundo o entendimento estratificado pelo Supremo Tribunal Federal, a
inconstitucionalidade parcial do artigo 1º-F da Lei n.º 9.494/97, na redação conferida pelo artigo 5º da Lei n.º
11.960/2009 – ADIs 4.357 e 4.425 –, alcança a fórmula de atualização e incremento dos débitos tributários, e,
quanto às obrigações de natureza não tributária, alcança somente a fórmula de atualização preceituada, pois
implica tratamento dissonante da isonomia, irradiando perda aos administrados frente à Fazenda Pública,

135
pecuniária em decorrência de falecimento do filho da apelada, recém-nascido, decorrente da
conduta de agentes públicos do Estado, os quais teriam negligenciado os procedimentos
médicos necessários e adequados na realização de seu parto.

Narra a apelada, autora da ação, que estava grávida de seu primeiro filho,
quando, no mês de janeiro de 2016, procurou o Hospital Regional de Samambaia, no setor de
emergência, sentindo fortes dores abdominais, estando com dilatação do colo do útero de 4
cm. O médico plantonista, diante do caso, estourara a bolsa da parturiente, induzindo-a a
entrar em trabalho de parto. No entanto, após 14 horas de estímulo, o bebê não havia nascido
e, mesmo assim, insistia-se no parto normal. Em razão da dificuldade para a expulsão do feto,
a criança nasceu com dificuldades para respirar, quase sem batimentos cardíacos, tendo sido
submetida a manobras de reanimação e internada com ventilação mecânica no centro
obstétrico e, enquanto aguardava vaga na UTIN da rede pública, acabou evoluindo o seu
quadro negativamente, o que o levou a óbito com cerca de 10 horas de vida.

Desse modo, constata-se que houve violência obstétrica, uma vez que constava
do prontuário da gestante que, após o pré-natal sem quaisquer intercorrências, com 41
semanas de gestação, for internada e submetida a um trabalho de parto demasiadamente
longo, sem que houvesse, por parte da equipe médica que a atendeu, o adequado
acompanhamento do processo de trabalho de parto, cuja negligência impediu que o início do
sofrimento fetal fosse detectado a tempo, o que ocasionou o nascimento da criança em

ensejando que, preservados os juros de mora que deverão ser agregados ao débito em conformidade com os
acessórios aplicados aos ativos recolhidos em caderneta de poupança, deve ser atualizado monetariamente
mediante o uso de indexador que reflita com exatidão a desvalorização da moeda provocada pela inflação,
conforme a tese firmada em sede de repercussão geral (RE 870.947/SE, Tema 810). 10. Conquanto tenha havido
o julgamento do Recurso Extraordinário 870.947 com repercussão geral – Tema de Repercussão Geral 810 –,
com a fixação do entendimento de que as obrigações impostas à Fazenda Pública devem ser atualizadas
mediante a utilização de indexador que reflita a desvalorização da moeda desde a germinação, consoante a
afirmação de inconstitucionalidade parcial do artigo 1º-F da Lei n.º 9.494/97, com a redação ditada pela Lei n.º
11.960/09, anteriormente havida, o eminente relator do recurso constitucional agregara efeitos suspensivos aos
embargos de declaração manejados por entes federados até que haja eventual modulação dos efeitos do firmado,
resultando na suspensão das teses firmadas e determinando a retomada da sistemática antecedente até que haja
eventual modulação dos efeitos do decidido, afetando, inclusive, o que decidira o Superior Tribunal de Justiça
em sede da fórmula de julgamento de recursos repetitivos (REsp 1.495.114/MG). 11. Considerando que,
conquanto suspensas as teses firmadas em sede de repercussão geral, não sobeja decisão nem sustentação para
que haja suspensão das ações em curso que versem sobre obrigações da Fazenda Pública, notadamente se se
encontram na fase de conhecimento, inclusive porque eventual suspensão implicaria frustração ao direito de ação
constitucionalmente assegurado quando sequer sobeja direito reconhecido definitivamente, acolhido o pedido
condenatório formulado em face de ente público, deve ser aplicada, como fórmula de atualização da obrigação
imposta à Fazenda Pública, a sistemática legal, com a modulação havida no ambiente de ação declaratória de
inconstitucionalidade – ADIs 4.357 e 4.425 –, devendo o débito ser atualizado sob formato legal até a inscrição.
CONHECER DO RECURSO E DAR-LHE PARCIAL PROVIMENTO. DECISÃO UNÂNIME. Processo n.º
00033545120168070018 - (0003354-51.2016.8.07.0018 - Res. 65 CNJ). Órgão julgador: 1ª Turma Cível.
Relator: Teófilo Caetano. Publicado no PJe: 23/04/2019.

136
péssimas condições de saúde, em morte aparente, sem batimentos cardíacos e movimentos
respiratórios.

Assim, como consta que a gravidez da autora da ação ocorreu normalmente,


sem intercorrências, houve negligência quanto às medidas que eram absolutamente
necessárias para o quadro apresentado pela parturiente, tendo a equipe médica praticado
violência obstétrica, pois permitiu que o processo de trabalho de parto se alongasse
absurdamente, causando sérios efeitos lesivos ao nascituro, o qual veio a óbito por causa da
má oxigenação causada pela omissão dos profissionais de saúde que procederam ao
atendimento.

Caso 5:

Como penúltimo caso exemplificativo, cabe citar a apelação decidida pela 4ª


Turma Cível268, na qual, em sentença, o pedido da apelante foi julgado improcedente. Narra a
apelante que sua filha foi internada em estado gravíssimo no Hospital de Base e que, por
causa de falta de profissional especializado e de vaga em UTI, não foi realizado o parto
prematuro que poderia ter salvado a vida de seu neto.

Consta dos autos o prontuário médico do feto, o qual demonstra que este
apresentava atividade cardíaca quando a gestante deu entrada em estado grave no Hospital de
Base. Porém, o parto prematuro, com tratamento adequado, providência urgente para o caso
concreto, deixou de ocorrer, uma vez que não havia obstetras no plantão e nem vaga na UTI e
não se providenciou a transferência para a unidade hospitalar que dispunha de meios para a
realização de referido parto.

Houve violência obstétrica, na medida em que os médicos tentaram a


transferência da gestante, de forma insistente, para vários hospitais, sem realização do parto,

268
DIREITO ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. PACIENTE GRÁVIDA
INTERNADA EM ESTADO GRAVE. OMISSÃO QUANTO À ASSISTÊNCIA MÉDICO-HOSPITALAR
ADEQUADA. MORTE DO FETO. PERDA DE UMA CHANCE. DEVER DE INDENIZAR RECONHECIDO.
DANO MORAL CONFIGURADO.
I. Constatada omissão específica no atendimento médico-hospitalar, o Distrito Federal deve responder pelos
danos causados, nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal.
II. Aplica-se a teoria da perda de uma chance quando as provas dos autos denotam que a prestação da assistência
médico-hospitalar adequada poderia impedir o óbito fetal.
III. Caracteriza dano moral o profundo abalo existencial provocado pela falha na prestação do serviço público de
saúde que faz esvair a chance de sobrevivência do nascituro.
IV. Recurso conhecido e provido. DAR PROVIMENTO AO RECURSO, UNÂNIME. Processo n.º
20140111328119APC - (0032196-12.2014.8.07.0018 - Res. 65 CNJ). Órgão julgador: 4ª. Turma Cível. Relator:
James Eduardo Oliveira. Publicado no DJE: 23/01/2019.

137
até o momento em que se constatou o óbito do feto. Houve orientação da equipe do Hospital
de Base para o obstetra do Hospital Regional de Sobradinho no sentido que fosse ministrado
medicamento na gestante para maturação pulmonar do feto, pois o Hospital de Base não
dispunha da medicação. A despeito da gravidade da situação e da necessidade de transferência
para estabelecimento hospitalar apropriado, a morte do feto foi atestada e, posteriormente, a
mãe também veio a óbito. Assim, foi a falta de atendimento médico-hospitalar apropriado que
acabou com a perda da chance do nascituro nascer com vida.

Caso 6:

Por fim, caso excepcional a ser citado, uma vez que a conduta não foi praticada
em hospital público. A 8ª Turma Cível julgou caso de reparação por danos morais, em caso de
atendimento em hospital particular, por falta de atendimento à gestante com perda
perinatal.269 Foi interposto Recurso de Apelação contra decisão proferida pelo Juízo da
Primeira Vara Cível de Brasília, em Ação de Indenização por danos morais, na qual houve
parcial procedência dos pedidos formulados na inicial.

A ação foi proposta sob a alegação de descaso em atendimento realizado em


hospital com relação à parturiente, uma vez que o óbito fetal teria sido detectado quando a
autora já contava com 34 semanas de gestação. Pode a perda perinatal ocorrer a qualquer

269
DIREITO CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ATENDIMENTO EM HOSPITAL
PARTICULAR. ÓBITO FETAL. HUMANIZAÇÃO DO PARTO. FALHA NA PRESTAÇÃO DOS
SERVIÇOS. DANO MORAL CARACTERIZADO. MAJORAÇÃO. RECURSO DO RÉU CONHECIDO E
DESPROVIDO. RECURSO DOS AUTORES CONHECIDO E PROVIDO. 1. O dano moral pode ser concebido
como violação do direito à dignidade, na medida em que é consagrada como um dos fundamentos do Estado
Democrático de Direito, sendo a base de todos os valores morais, a essência de todos os direitos da
personalidade, tais como a honra, nome, privacidade, intimidade, liberdade. 2. Para que incida o dever de
indenizar por dano moral, o ato tido como ilícito deve ser capaz de imputar um sofrimento físico ou espiritual,
impingindo tristezas, preocupações, angústias ou humilhações, servindo-se a indenização como forma de
recompensar a lesão sofrida. 3. A perda perinatal ocorre a qualquer momento da gestação até o primeiro mês de
vida do bebê, desencadeando um processo definido como luto perinatal. Nesses casos, a mulher, ao procurar um
estabelecimento hospitalar para a retirada do feto morto, deve ser acolhida, aconselhada, informada e
devidamente assistida por profissionais competentes, além de ter à disposição tecnologia apropriada que garanta
respeito à sua dignidade. 4. A humanização do parto tem o condão de privilegiar o bem-estar da mulher e do
bebê, considerando os aspectos fisiológicos, psicológicos e o contexto sociocultural no qual está inserida e é
aplicada a todos os casos, desde a assistência ao recém-nascido até o abortamento, incluindo a morte. 5. A falha
na prestação de serviço do hospital, caracterizada pela falta de prática assistencial durante uma perda perinatal,
ocasionando angústia, desgosto, insegurança e aflição à parturiente, gera o dever de indenizar. 6. O quantum
indenizatório deve estar em consonância com os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade, atendendo
simultaneamente aos requisitos de desestímulo à ocorrência de novas condutas danosas, capacidade econômica
das partes e compensação ao autor quanto ao dano ocorrido, sem a caracterização do enriquecimento sem causa.
Apelação do réu conhecida e desprovida. Apelação dos autores conhecida e provida. APELAÇÃO DO RÉU
CONHECIDA E DESPROVIDA. APELAÇÃO DOS AUTORES CONHECIDA E PROVIDA. UNÂNIME.
Processo n.º 00288113920168070001 - (0028811-39.2016.8.07.0001 - Res. 65 CNJ) - Segredo de Justiça. Órgão
Julgador: 8a Turma Cível. Relator: Eustáquio de Castro. Publicado no DJE: 16/12/2019.

138
momento da gestação, até o primeiro mês de vida do bebê, desencadeando um processo de
luto perinatal. A mulher, ao procurar um estabelecimento hospitalar para a retirada do feto
morto, deve ser acolhida, aconselhada, informada, bem como devidamente assistida por
profissionais de saúde, tendo respeitada sua dignidade. Caso não ocorram as hipóteses citadas,
caracteriza-se violência obstétrica.

No caso concreto julgado, a autora, quando constatou o óbito fetal, procurou o


hospital para a realização do parto em caráter de urgência. Conforme verificado em seu
prontuário, na oportunidade que a médica verificou a dilatação do colo do útero de 3cm,
solicitou que a paciente fosse para o box da emergência, o que não foi possível, pois não
podia lá ser recebida por falta de vaga. Além disso, com relação ao atendimento, a médica
plantonista determinou que o atendimento fosse realizado pela médica assistente da paciente,
enquanto esta última disse que não iria até o hospital naquele dia, e que a responsabilidade
seria da médica plantonista. Após o parto, a autora recebeu alta por volta de uma hora da
manhã, sendo informada que deveria sair do hospital no prazo de 30 minutos.

Assim, não foi oferecido suporte necessário para uma mãe que estava perdendo
seu filho com 34 semanas de gestação, caracterizando-se claramente hipótese de violência
obstétrica. Além do mais, houve falha na prestação do serviço, cometida pelo hospital, o que
ocasionou angústia, desgosto, insegurança e aflição à autora, o que lhe concede o direito à
indenização por dano moral.

Assim, analisados os casos anteriores, simples exemplos de casos concretos e


gravíssimos de violência obstétrica, é necessário que seja, neste momento, aberto um subtítulo
sobre responsabilidade médica e hospitalar, exatamente para que se explique sobre a
responsabilidade dos profissionais de saúde em tais casos.

2.5 A responsabilidade civil do médico, o Código de Defesa do Consumidor e os


pressupostos da responsabilidade civil

Os direitos fundamentais são essenciais à existência humana e sempre são


protegidos constitucionalmente. Esses direitos foram codificados por volta do século XIX, na
época do Estado Liberal de Direito. No Brasil, eles somente foram positivados com a

139
Constituição de 1988, sendo considerados como cláusula pétrea, o que impossibilita de serem
alvo de reformas para sua diminuição ou supressão.270

Esses direitos foram criados para que os pressupostos essenciais de uma vida
digna sejam assegurados pela lei, como é o caso do direito à saúde, o qual se relaciona com o
direito à vida, pois quando se garante uma saúde de qualidade, a vida está preservada. A
privação do direito à saúde de uma pessoa pode lhe ocasionar inúmeros prejuízos. Com a
previsão do direito à saúde, na Constituição Federal, sendo um direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas.271

Todo ser humano pode adoecer em algum momento de sua vida, e, de fato,
adoece. Para preservar sua saúde, evitando doenças e mantendo-o mental e fisicamente são,
recorre-se aos profissionais de saúde. A medicina, como profissão, visa a prevenção dos
males e a melhoria dos padrões de saúde e de vida de toda a sociedade. Assim, pode-se
conceituar a saúde como ausência de enfermidade, além do completo estado de bem-estar
físico e psíquico.272

O ser humano, durante toda a sua vida, pensa que será eternamente jovem e
saudável, desejos esses que advém de uma vontade ínsita do ser humano. Em decorrência
desse pensamento, tem-se que a fuga da morte é um impulso vital de preservação da vida. Na

270
“Os Direitos fundamentais são os direitos essenciais à existência digna humana, protegidos pela Constituição
de um Estado. Não se sabe ao certo quando e como surgiram os direitos fundamentais. O movimento de
codificação dos direitos fundamentais se deu por volta do século XVII, época do Estado Liberal de Direito. Os
direitos fundamentais passaram por uma longa trajetória mundo a fora, só vindo a serem positivados no Brasil
pela Constituição de 1988. O constituinte além de dar especial importância ao direito à saúde, ao incluí-lo como
um direito fundamental, deu status de cláusula pétrea a essas espécies de direitos, determinando que jamais
pudessem ser alvos de reformas para diminuí-los ou suprimi-los, foi conferido ao direito à saúde uma
importância enorme dentro de nossa Magna Carta.” (FIGUEREDO, Carine Carvalho; SILVA, Lucas Viana da.
O direito fundamental à saúde: as relações estabelecidas pelos contratos de planos de saúde à luz do direito do
consumidor). Disponível em: Direito do consumidor aplicado ao direito à saúde: análise de julgados. Feira de
Santana: Universidade Estadual de Feria de Santana, 2017. Ebook ISBN: 978-85-7395-274-2, p. 73.
271
“Os direitos fundamentais nasceram para assegurar que os pressupostos essenciais a uma vida digna fossem
assegurados pela lei, o direito à saúde é um deles. O direito à saúde está intimamente ligado ao direito à vida,
pois é a saúde que garante a vida, a privação do direito à saúde pode causar danos à saúde do indivíduo que põe
em risco sua própria vida, dessa forma, o direito a saúde pode ser considerado verdadeiro direito fundamental.
Sendo protegido pelo poder público, deve ser observado pela iniciativa privada, pois se constitui afronta à norma
constitucional, sua violação.” (FIGUEREDO, Carine Carvalho; SILVA, Lucas Viana da. O direito fundamental
à saúde: as relações estabelecidas pelos contratos de planos de saúde à luz do direito do consumidor).
Disponível em: Direito do consumidor aplicado ao direito à saúde: análise de julgados. Feira de Santana:
Universidade Estadual de Feria de Santana, 2017. Ebook ISBN: 978-85-7395-274-2, p. 73/74).
272
“O ser humano é sujeito à dor e às enfermidades. Para preservar sua saúde, evitar doenças, mantendo-se
mental e fisicamente hígido, os homens recorrem ao médico. Enquanto profissão, a medicina visa prevenir os
males e à melhoria dos padrões de saúde e de vida da coletividade. Saúde, pois, não é apenas a ausência de
enfermidade, mas, sim, o estado de completo bem-estar físico e psíquico da pessoa.” (NETO, Miguel Kfouri. A
responsabilidade civil do médico, 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 31).

140
história, o ser humano sempre fez o que foi preciso para a sua sobrevivência, como matar e
competir. Para sua defesa, passou a se associar com os seus semelhantes.273

No século passado, a saúde era conceituada como bem-estar físico, psíquico e


social de cada indivíduo, quando considerado individualmente e na comunidade em que vive.
Quando o sujeito adquire uma doença, dela podem derivar dois efeitos, quais sejam, o
contágio, e o outro efeito é o de deixar o ser humano incapaz de sobreviver sozinho. Sendo
assim, o interesse pela saúde é fundamental tanto para o ser humano, individualmente
considerado, quanto para a sociedade como um todo.274

A Constituição Federal garante que o Estado tem o dever de prestar assistência


à saúde de forma integral, mas admite, também, que essa assistência seja feita pela iniciativa
privada. Assim, deve o direito à saúde ser requerido contra quem está prestando a referida
assistência, seja contra o Estado, em caso de o serviço ser prestado pelo Sistema Único de
Saúde (SUS), ou mesmo contra o particular.275

273
“Em estado normal de saúde mental, nenhum ser humano quer morrer, ou viver com limitações ou
sofrimento. Cada ser humano, individualmente considerado, deseja ser eternamente jovem, belo e saudável, e, no
relacionamento social (porque gregário, por índole), também deseja ser importante, devidamente reconhecido
como tal, pelos seus pares. Esse desejo decorre, naturalmente, da vontade psíquica. Já a fuga da morte também
encontra respaldo no impulso vital, biológico, contínuo, de preservação da vida. Na esteira dessa naturalidade
psíquica, todos desejam ter filhos sadios, bonitos, fortes, importantes e, também, eternos. Na história da
humanidade, o ser humano, para sobreviver, sempre fez o que julgou necessário, inclusive, nos casos extremos,
matar o semelhante, competidor. Já para se defender, o homem se associou ao semelhante, criando o viver em
comunidade. O individualismo é uma realidade biológica, enquanto que o ser social, solidário, é produto da
civilização. Na evolução desta, o convívio social tornou-se indispensável à sobrevivência de cada qual, nascendo
daí o Estado. Ao longo do tempo, o desenvolvimento e a complexidade da sociedade humana desembocaram na
atual sociedade de consumo, globalizada, de interação despersonalizada.” (SEBASTIÃO, Jurandir.
Responsabilidade civil médico/hospitalar e o ônus da prova. Revista Jurídica UNIJUS. ISSN 1518-8280. R. Jur.
UNIJUS. Uberaba/MG. V. 9, n. 11. Nov. 2006, p. 1-256). Disponível em:
file:///C:/Users/m313790/Downloads/1035-3727-1-PB.pdf. Acesso 17/jul/2019.
274
“No século recém-findo, consolidou-se o conceito de saúde, pelo ângulo de interesse público, como sendo o
bem-estar físico, psíquico e social de cada pessoa, examinada esta no particular e no contexto social. Nesse
universo, a condição material em que vive o ser humano insere-se como fator essencial ao conceito de saúde
pública. E o esforço saúde para todos (como quer a Constituição e a Lei de Ações e Serviços de Saúde – Lei n.º
8.080/90) há de ser o resultado da integração da estrutura material com o da prestação de serviços, em situação
de acessibilidade por parte de cada um do povo. 5 Pelo ângulo de interesse social, constata-se que a doença, no
ser humano, tem dois efeitos deletérios: o primeiro, de contágio (se contagiosa for), pelo risco de propagação
generalizada; o segundo, de desfalque na interação da cadeia produtiva comum, deixando o homem (doente) de
ser contribuinte social ativo para se tornar um ônus para todos (incapacidade de auto sobrevivência e de
colaboração – trabalho). Por tudo isso, por qualquer ângulo que se analise, o interesse pela saúde é básico e
fundamental tanto para o ser humano, finito e individualmente considerado, como para a sociedade, como um
todo, com vistas à continuidade da raça humana.” (SEBASTIÃO, Jurandir. Responsabilidade civil
médico/hospitalar e o ônus da prova. Revista Jurídica UNIJUS. ISSN 1518-8280. R. Jur. UNIJUS.
Uberaba/MG. V. 9, n. 11. Nov. 2006, p. 1-256). Disponível em: file:///C:/Users/m313790/Downloads/1035-
3727-1-PB.pdf. Acesso 17/jul/2019.
275
“A constituição não protege o cidadão apenas contra o Estado, a proteção também se dá contra a iniciativa
privada. Com o processo chamado de constitucionalização do Direito, a Constituição passou a figurar no centro
do sistema jurídico, ao passo que ganhou força material, outrora era apenas formal, sendo assim, todo o

141
A expressão “responsabilidade” vem do latim respondere, isto é, o direito de
ter reparado um dano sofrido. Por meio dela, quando uma determinada lei ou um contrato são
violados, por exemplo, ou, ainda, quando alguém sofre uma determinada lesão, tem direito a
uma compensação, na maior parte das vezes, pecuniária. A responsabilidade civil tem a
finalidade de restabelecer o equilíbrio patrimonial ou moral, provocado pelo autor de um
dano, para que aquele que foi ofendido retorne ao seu status anterior.276

Assim, responsabilidade significa a garantia de restituição, ou compensação do


bem que foi sacrificado, o que quer dizer que o causador do dano terá a obrigação de
restituição do mal causado. Na antiguidade, as responsabilidades penal e civil se confundiam,
sendo que tudo era resumido à imposição de uma pena. Posteriormente, com a edição da Lex
Aquilia a responsabilidade passa a ser uma compensação pecuniária, na hipótese de dano por
atos não criminosos.277

ordenamento jurídico, desde leis, decretos, regulamentos e contratos devem estar de acordo com a Carta Magna
para não padecerem de vício de inconstitucionalidade. A Constituição Federal garante que o Estado tem o dever
de prestar assistência à saúde de forma integral, no entanto, também admite que a iniciativa privada promova
assistência à saúde. Dessa maneira, o direito à saúde deve ser pleiteado contra quem está prestando a assistência,
se a assistência à saúde estiver provindo do SUS (Sistema Único de Saúde) o direito deve ser pleiteado contra o
Estado, se for uma operadora de plano de saúde, nesse caso, o direito deve ser pleiteado contra o plano de
saúde.” (FIGUEREDO, Carine Carvalho; SILVA, Lucas Viana da. O direito fundamental à saúde: as relações
estabelecidas pelos contratos de planos de saúde à luz do direito do consumidor). Disponível em: Direito do
consumidor aplicado ao direito à saúde: análise de julgados. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feria
de Santana, 2017. Ebook ISBN: 978-85-7395-274-2, p. 74.
276
“O termo ‘responsabilidade’ origina-se do latim respondere, cuja expressão nos remete à ideia de garantia de
restituição ou ressarcimento do bem sacrificado. Com muita propriedade, Giancoli e Wald (2012, p. 28)
finalizam este raciocínio e afirmam que ‘a responsabilidade é um mecanismo de resposta ou reação a uma
violação da lei ou do contrato, a determinada falha ou desvio de conduta humana ou uma consequência por uma
lesão perpetrada’. Partindo desta acepção, tem-se que o instituto da responsabilidade civil almeja restabelecer o
equilíbrio, seja patrimonial ou moral, provocado pelo autor do dano e fazendo o ofendido retornar ao status quo
ante. Cavalieri Filho (2014, p. 26) leciona: ‘Há uma necessidade fundamental de se restabelecer esse equilíbrio,
o que se procura fazer recolocando o prejudicado no statu quo ante. Impera neste campo o princípio da restitutio
in integrum, isto é, tanto quanto possível, repõe-se a vítima à situação anterior à lesão. Isso se faz através de uma
indenização fixada em proporção ao dano.’.” (CORDINI, Sthefane Machado. A responsabilidade civil nos casos
de violência obstétrica praticada na rede pública de saúde. – Unisul – Universidade do Sul de Santa Catarina,
2015). Disponível em: riuni.unisul.br. Acesso em 05/02/2019.
277
“A palavra ‘responsabilidade’ origina-se do latim respondere, que encerra a ideia de segurança ou garantia da
restituição ou compensação do bem sacrificado. Teria, assim, o significado de recomposição, de obrigação de
restituir ou ressarcir. Entre os romanos não havia nenhuma distinção entre responsabilidade civil e
responsabilidade penal. Tudo, inclusive a compensação pecuniária, não passava de uma pena imposta ao
causador do dano. A Lex Aquilia começou a fazer uma leve distinção: embora a responsabilidade continuasse
sendo penal, a indenização pecuniária passou a ser a única forma de sanção nos casos de atos lesivos não
criminosos.” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 4, 7ª ed. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 31).

142
No nosso País, sem dúvidas, a responsabilidade é importante especialmente na
área da saúde, de acordo com o disposto no artigo 186 da Constituição Federal.278 Na
realidade, o despreparo de inúmeros profissionais de saúde, aliado à precariedade da
infraestrutura de muitas unidades de saúde, são algumas causas que geram o aumento de
pedidos de reparação pecuniária.279

Assim, mesmo no caso de responsabilidade médica é preciso ter cautela, uma


vez que, no Brasil, o sistema de saúde encontra-se sucateado. Os profissionais de saúde que
atendem pelo Sistema Único de Saúde, por exemplo, não são bem remunerados, pois não há
recursos para isso. Exames complementares que poderiam, quando realizados, levar a um
melhor diagnóstico, não são feitos, ou porque não há aparelhos ou materiais necessários, ou
porque não há o próprio operador da máquina. Além disso, as condições de trabalho, a que
esses profissionais são submetidos, são péssimas.280

Com relação à reponsabilidade civil, existem duas espécies, quais sejam, a


objetiva e a subjetiva. Na responsabilidade subjetiva, baseada no dolo e na culpa, com relação
ao profissional médico, a culpa é um dos grandes problemas no que se refere à prova no caso
concreto. Para que se faça uma análise de eventual caso de erro médico, é necessário que seja

278
Constituição Federal de 1988: “Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal
igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
279
“Dentre vários aspectos que podem ser destacados sob a ótica da responsabilidade civil, indubitável que,
hodiernamente, a área da saúde se apresenta como uma das esferas mais galgadas nos tribunais pelas ações de
caráter indenizatório, mormente diante de sua tutela constitucional, assegurada no artigo 196 da Carta Magna:
‘Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação’. (BRASIL, 1988). Santos (2008, p. 21), bem elucida a relevância do tema
nos dias atuais, in verbis: ‘A evolução da ciência médica, paradoxalmente, aumenta, de forma exponencial, as
possibilidades de resultados indesejados, os quais, aliados ao perfil do cidadão esclarecido do Século XXI, ou
seja, das pessoas que hoje têm mais acesso à educação e à informação do que um dia tiveram seus antepassados,
tornaram o tema ‘erro médico’ uma questão de amplo interesse social. Desta forma, não apenas aos médicos e
aos hospitais, não somente aos pacientes, mas à sociedade como um todo interessa o assunto. O despreparo de
muitos profissionais, a precariedade da infraestrutura das unidades de saúde, a apatia frequentemente observada
na relação entre médico e paciente, são algumas das causas do aumento do número de demandas judiciais
envolvendo a questão médico-hospitalar, ao passo que a vítima, cada vez mais ciente das ilegalidades
perpetradas contra si, têm recorrido ao Judiciário com o intuito de buscar a justa reparação pelos danos
experimentados, oriundos das práticas médicas. (CORDINI, Sthefane Machado. A responsabilidade civil nos
casos de violência obstétrica praticada na rede pública de saúde. – Unisul – Universidade do Sul de Santa
Catarina, 2015). Disponível em: riuni.unisul.br. Acesso em 05/02/2019.
280
“Quando se suscita a questão da responsabilidade médica, invariavelmente surge a objeção centrada em que,
antes, deve-se discutir a saúde do brasileiro – que, como é sabido, encontra-se em fase terminal. Remuneram-se,
de modo ridículo, os profissionais que atendem ao Sistema Único de Saúde. Os recursos materiais inexistem.
Exames complementares, que poderiam levar a um diagnóstico preciso, não são realizados: ou falta o aparelho,
ou os materiais necessários, ou o operador da máquina. As condições de trabalho, enfim, são extremamente
adversas. Aos aplicadores da lei, em especial, incumbe considerar os justos queixumes dos médicos, quando tais
fatores intervêm – e condicionam – a conduta médica.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do
médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 43).

143
analisada a conduta do profissional na hipótese concreta. Então, em caso de reparação de dano
decorrente de responsabilidade civil deste profissional, o primeiro elemento e mais importante
é a culpa.281

Quando se trata de matéria de saúde, deve-se ter em mente o princípio


constitucional da dignidade da pessoa humana, previsto nos artigos 1º, inciso III, 6º e 196, da
Constituição Federal. Na realidade, o Estado não deve garantir a saúde a todos a qualquer
custo, mas deve colocar em prática políticas públicas, em especial preventivas, sociais e
econômicas, com esta finalidade.282

A Constituição assegura, ao lado das políticas públicas, espaço para que a


iniciativa privada participe da assistência à saúde, complementando a atividade estatal. Em
regra, o acesso à saúde há de ser gratuito, salvo no caso da medicina privada, sendo que o
pagamento deve ser feito pelo Estado a todos que prestarem serviços profissionais de saúde e
que fornecererem materiais e medicamentos.283

281
“A culpa profissional do médico, adverte Avecone, constitui um dos problemas científicos e deontológicos,
antes que jurídicos, mais antigos, objeto de debates potencialmente infinitos, dada a natureza particular da
atividade médica. (...) Por isso, especialmente no que pertine à responsabilidade civil do médico, a aferição do
elemento culpa é inafastável, conquanto sempre complexa.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do
médico, 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 43/44).
282
“Pelo ângulo do Direito, quando se cuida de matéria relativa à saúde, o enfoque é Constitucional, voltado para
a dignidade da pessoa humana, como se extrai da conjugação do art. 1º, III, com o art. 6º e art. 196, todos da
CF/88. Este último dispositivo é incisivo: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Trata-se de direito de todos
concomitantemente ao dever do Estado. Esse propósito há de ser cumprido por meio de políticas sociais e
econômicas destinadas à redução do risco de doença e ao acesso igualitário às ações e aos serviços. Portanto, não
significa que o Estado há de garantir saúde a todos, a qualquer custo. Mas, sim, que deve pôr em prática, efetiva
e objetivamente, políticas públicas, em especial as preventivas, sociais e econômicas, destinadas a esse fim. Para
esse desiderato, a Constituição Federal estabelece (art. 197) que as ações e os serviços de saúde estão
subordinados ao Poder Público, relativamente à sua regulamentação, fiscalização e controle, diretamente ou
através de terceiros e, também, por meio de pessoa física ou jurídica de direito privado. Em continuidade (art.
198), estabelece que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e
constituem um sistema único de saúde posto em prática por meio de descentralização administrativa, com vistas
ao atendimento integral do cidadão (com prioridade para as atividades preventivas). Implementando esses
propósitos, a Lei n.º 8.080/90 (com as alterações e adições no curso do tempo) reproduz as diretrizes acima e
regula as ações e os serviços de saúde em todo o território nacional.” (SEBASTIÃO, Jurandir. Responsabilidade
civil médico/hospitalar e o ônus da prova. Revista Jurídica UNIJUS. ISSN 1518-8280. R. Jur. UNIJUS.
Uberaba/MG. V. 9, n. 11. Nov. 2006, p. 1-256). Disponível em: file:///C:/Users/m313790/Downloads/1035-
3727-1-PB.pdf. Acesso 17/jul/2019.
283
“Ao lado dessas políticas públicas, a Constituição Federal (por meio do art. 199, em harmonia com o art. 1º,
inciso IV; art. 5º, inciso XIII; e art. 170, caput e inciso IV) assegura espaço para a iniciativa privada participar da
assistência à saúde. Não se trata, aqui, de terceirização. Mas, sim, de atividade complementar à estatal, o que
importa preservar a autonomia.” (SEBASTIÃO, Jurandir. Responsabilidade civil médico/hospitalar e o ônus da
prova). Revista Jurídica UNIJUS. ISSN 1518-8280. R. Jur. UNIJUS. Uberaba/MG. V. 9, n.º 11. Nov. 2006, p. 1-
256. Disponível em: file:///C:/Users/m313790/Downloads/1035-3727-1-PB.pdf. Acesso 17/jul/2019.

144
No início da humanidade, não se falava em culpa nas relações entre as pessoas.
A vingança privada era o único recurso ao qual recorriam as pessoas que eram lesadas. Assim,
diante da ausência de normas específicas, o dano causava uma reação instintiva da vítima,
pois não havia leis para regular qualquer espécie de compensação pecuniária. Desse modo, a
reparação do dano era feita pelo ofendido, mas não se limitava ao causador do dano, podendo
a reparação pecuniária ser feita também por seus descendentes.284

Naquela época, não havia a atividade médica tal como é hoje, sendo que quem
exercia o mister de curar eram os curandeiros, com o uso de poções feitas com remédios
naturais. Posteriormente, surgiram as primeiras previsões de reparação civil, previstas em
normas legais, advindas de erro médico, imputando severas penas aos profissionais que
agissem com culpa quando da realização de procedimentos.285

A dor e a doença nascem junto com o ser humano. Quando adquire alguma
patologia, a pessoa carrega consigo um risco decorrente dessa doença, o qual não foi
provocado pelo médico. Assim, se fosse adotada a responsabilidade objetiva, o médico

284
“Nos primórdios da humanidade, período no qual sequer se cogitava o fator da culpa nas relações, a vingança
privada, antítese do direito, era o único artifício utilizado pelo ofendido a fim de aplicar reprimenda significativa
ao causador do dano. Para Gonçalves (2015, p. 24 apud Lima, 1938), ‘forma primitiva, selvagem talvez, mas
humana, da reação espontânea e natural contra o mal sofrido; solução comum a todos os povos nas suas origens,
para a reparação do mal pelo mal’. Tendo em vista a ausência de normas norteadoras, o dano, à época, provocava
a reação instintiva do ofendido, pois inexistiam regras ou limitações para seus atos, transcendendo, muitas vezes,
a pessoa do ofensor e alcançando os seus descendentes, comportamento inspirado na Lei de Talião, ou seja,
consubstanciado na máxima ‘olho por olho, dente por dente’.” (CORDINI, Sthefane Machado. A
responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica praticada na rede pública de saúde. – Unisul –
Universidade do Sul de Santa Catarina, 2015). Disponível em: riuni.unisul.br. Acesso em 05/02/2019.
285
“Neste período, não se concebia a atividade médica propriamente dita, atribuindo-se às pessoas dedicadas ao
curandeirismo o encargo de curar ou amenizar a dor dos enfermos mediante a utilização de poções extraídas de
ervas e tratamentos com remédios naturais. (…) Importa registrar, ainda, que, sob a égide do Código de
Hamurabi, surgiram as primeiras manifestações de reparação de danos derivados de erro médico. O referido
diploma foi o primeiro documento histórico a fazer alusão à falta profissional e imputou penas severas aos
médicos quando verificada imperícia em seus procedimentos. Nas palavras de Kfouri Neto (2010, p. 50): ‘O
primeiro documento histórico que trata do problema do erro médico é o Código de Hamurabi (1790-1770 a.C.),
que também contém interessantes normas a respeito da profissão médica em geral. Basta dizer que alguns artigos
dessa lei (215 e ss.) estabeleciam, para as operações difíceis, uma compensação pela empreitada, que cabia ao
médico. Paralelamente, em artigos sucessivos, impunha-se ao cirurgião a máxima atenção e perícia no exercício
da profissão; em caso contrário, desencadeavam-se severas penas que iam até a amputação da mão do médico
imperito (ou desafortunado). Tais sanções eram aplicadas quando ocorria morte ou lesão ao paciente, por
imperícia ou má prática, sendo previsto o ressarcimento do dano quando fosse mal curado um escravo ou animal.
Evidencia-se, assim, que inexistia o conceito de culpa, num sentido jurídico moderno, enquanto vigorava
responsabilidade objetiva coincidente com a noção atual: se o paciente morreu em seguida à intervenção
cirúrgica, o médico o matou – e deve ser punido. Em suma, naquela época, o cirurgião não podia dizer, com uma
certa satisfação profissional, como o faz hoje: a operação foi muito bem-sucedida, mas o paciente está morto.”
(CORDINI, Sthefane Machado. A responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica praticada na rede
pública de saúde. – Unisul – Universidade do Sul de Santa Catarina, 2015). Disponível em: riuni.unisul.br.
Acesso em 05/02/2019.

145
poderia ser responsabilizado, sem prova da culpa.286 Antes mesmo da criação da medicina,
para a solução das enfermidades, predominava o empirismo. Assim, eram usadas ervas para a
sua cura. Mas, no caso de não se alcançar a cura, a culpa era presumida. Na antiguidade, o
médico não era considerado um especialista em determinada matéria, mas um mago ou
sacerdote, com poderes curativos sobrenaturais.287

Com o passar do tempo, foram criadas algumas formas de compensação civil,


com a imposição de pena sobre a pessoa do ofensor, ou, então, com pagamento de uma
quantia, havendo, ainda, possibilidade de acordo entre a vítima e o agressor. Com a edição da
Lex Aquilia, evolui-se a responsabilidade civil, sendo que essa lei foi a pioneira na criação da
responsabilidade subjetiva, surgindo, também, a responsabilidade extracontratual, chamada
“aquiliana”, na qual a conduta do ofensor é considerada pelo grau de culpa com que o agente
concorreu para o dano.288

286
“A dor, a doença, a morte, as alterações da saúde não constituem, em princípio um risco que nasça da
atividade médica, mas algo ínsito ao ser humano – e cada médico em particular e o conjunto deles, em todo o
mundo, busca aliviar esse sofrimento, remediar a enfermidade e restaurar a saúde. O próprio doente traz consigo
um risco, derivado se sua patologia – e não é o médico quem o provoca. Adotar uma responsabilidade objetiva,
nesse caso, equivale a lutar contra a própria natureza humana. Dar cobertura a todo risco de doença ou morte, em
atividade médica, corresponderia a obrigar o médico a dar a saúde ao doente, a prolongar a vida, ultrapassando
as potencialidades do médico enquanto homem, para trasnformá-lo nem Deus.” (NETO, Miguel Kfouri. A
responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 45/46).
287
“Pio Avecone Neto, oferece-nos escorço histórico da evolução da responsabilidade médica através dos
tempos. As doenças e as dores nascem justamente com o homem. Por isso, desde seu primeiro momento de
racionalidade, tratou ele de pressupor os meios necessários para combater ambos os males. Essas primeiras
atividades não se direcionavam propriamente ao estudo das patologias, mas essencialmente à sua cura.
Predominou, durante milênios, o empirismo. Curiosos, observadores, receitavam determinada erva para
amenizar uma dor, ou determinado modo de imobilização para solidificar um osso fraturado. Logo, eram
considerados expertos (e de bom grado aceitavam o qualificativo de taumaturgo que as pessoas lhes atribuíam),
ou eles próprios assim se rotulavam. Se, no entanto, a cura não acontecia, não é difícil imaginar que a culpa
recaísse sobre o feiticeiro, acompanhada da acusação de imperícia ou de incapacidade. Desde os primórdios,
portanto, preveem-se sanções para os casos de culpa relativa ao insucesso profissional dos médicos. Em sua fase
mais antiga, o médico não era considerado um especialista em determinada matéria, mas, sim, um mago ou
sacerdote, dotado de poderes curativos sobrenaturais. Tal crença derivava da absoluta ignorância da etiologia de
todas as doenças e da total inconsciência do modo pelo qual o organismo humano reagira àqueles processos de
cura. E quanto mais a medicina se transformava em ciência, tanto maior foi se tornando o rigor científico na
avaliação dos erros profissionais, não apenas vinculando-os, como na fase antecedente, ao singelo fato objetivo
do insucesso.” (KFOURI, Miguel. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013, p. 56).
288
“Posteriormente, com o surgimento da Lei das XII Tábuas, antiga legislação que constituía o cerne da
Constituição da República Romana, a composição sucedeu o período da vingança exclusivamente privada,
estabelecendo-se uma indenização com duplo caráter para a reparação do dano, isto é, em determinadas situações
a pena recairia sobre a integridade física do ofensor ou, então, este sofreria perda pecuniária, possibilitando,
assim, uma espécie de avença entre a vítima e o agente causador do dano. Nesse caminhar, Nader (2014) sobre a
referida regra, registra: ‘Da fórmula simétrica, evoluiu-se para a fase da composição, mais humana e racional.
Inicialmente, houve a composição voluntária, quando os lesados estipulavam o resgate (poena), que se fazia
mediante o pagamento in natura ou por certa importância em dinheiro, dando as partes por encerrado o litígio.’
Com o pactum, cujo vocábulo se associava à paz e não à convenção, cessavam as hostilidades. Contudo, somente
com o advento da Lex Aquilia foi possível verificar grande evolução na seara da responsabilidade civil,
tornando-se a precursora na introdução da culpa no dever de indenizar e originando, por via de consequência, a

146
O primeiro documento a tratar do erro médico foi o Código de Hammurabi
(1790-1770 a.C.), contendo, inclusive, importantes normas sobre a profissão médica em geral.
No corpo dessa legislação, não se falava em responsabilidade com culpa, no sentido jurídico
que hoje se conhece, mas havia a previsão da responsabilidade objetiva, tal como é hoje
conceituada. Como só se conhecia a responsabilidade objetiva, o médico sempre deveria ser
punido se houvesse uma morte em decorrência de intervenção cirúrgica. Como assim o era,
somente operações simples eram realizadas, até porque a anatomia do corpo humano ainda
era pouco conhecida.289

Ademais, a primeira vez que se tratou do assunto da responsabilidade civil na


área médica, foi na Grécia, por volta do século V a.C., quando a medicina estava em seu
ápice, oportunidade em que a culpa não se presumia, mas existia somente se o resultado do
tratamento não fosse alcançado. Também, haveria responsabilidade por culpa quando
houvesse uma conduta praticada com desatenção aos preceitos ou inobservância às práticas e
aos procedimentos médicos.290

No Brasil, entre cliente e médico estabelece-se uma autêntica relação


contratual. Haverá inexecução de uma obrigação caso o médico não consiga a cura de um
doente, ou em caso de os recursos empregados não serem suficientes. Mesmo que se aceite a

responsabilidade extracontratual, também denominada ‘responsabilidade aquiliana’, a partir da qual a conduta do


ofensor é considerada pelo grau de culpa com que concorreu para a ocorrência do dano.” (CORDINI, Sthefane
Machado. A responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica praticada na rede pública de saúde. –
Unisul – Universidade do Sul de Santa Catarina, 2015). Disponível em: riuni.unisul.br. Acesso em 05/02/2019.
289
“O primeiro documento histórico que trata do problema do erro médico é o Código de Hammurabi (1790-
1770 a.C.), que também contém interessantes normas a respeito da profissão médica em geral. Basta dizer que
alguns artigos dessa lei (215 ss) estabeleciam, para as operações difíceis, uma compensação pela empreitada, que
cabia ao médico. Paralelamente, em artigos sucessivos, impunha-se ao cirurgião a máxima atenção e perícia no
exercício da profissão; caso contrário, desencadeavam severas penas que iam até a amputação da mão do médico
imperito (ou desafortunado). Tais sanções eram aplicadas quando ocorria morte ou lesão do paciente, por
imperícia ou má prática, sendo previsto o ressarcimento do dano quando fosse mal curado um escravo ou animal.
Evidencia-se, assim, que inexistia o conceito de culpa, num sentido jurídico moderno, enquanto vigorava a
responsabilidade objetiva coincidente com a noção atual: se o paciente morreu em seguida à intervenção
cirúrgica, o médico o matou e deve ser punido. Em suma, naquela época, o cirurgião não podia dizer, com certa
satisfação profissional, como o faz hoje: ‘a operação foi muito bem-sucedida, mas o paciente está morto’. Se
essa era a lei – prossegue Avecone –, pode-se imaginar com que serenidade o médico se preparava para uma
cirurgia, com os meios de que então dispunha. Por óbvio, só operações de extrema simplicidade eram praticadas,
também porque a anatomia era muito pouco conhecida.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do
médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 56/57).
290
“A responsabilidade civil médica, no entanto, só ganhou contornos significativos na Grécia por volta do
século V a.C., período no qual a medicina estava em seu apogeu e permitiu, por conseguinte, relevantes
alterações no tocante à apuração da responsabilidade médica. A culpa do profissional, para ser declarada, não se
presumia somente pelo resultado inexitoso do tratamento eleito e, sim, pela sua conduta, sempre que restasse
comprovada desatenção aos preceitos ou inobservância às práticas e procedimentos médicos.” (CORDINI,
Sthefane Machado. A responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica praticada na rede pública de
saúde. – Unisul – Universidade do Sul de Santa Catarina, 2015). Disponível em: riuni.unisul.br. Acesso em
05/02/2019.

147
natureza contratual da responsabilidade médica, não se pode presumir a culpa, a qual deve ser
comprovada quando alegada.291

A responsabilidade contratual pode ou não ser presumida, dependendo do caso


concreto, nas hipóteses em que o devedor se tenha comprometido a alcançar determinado
resultado. Quando o médico assume determinada responsabilidade, sem se comprometer a
curar, mas somente a se comportar em conformidade com as regras da profissão.292

No estudo da responsabilidade civil do médico, a análise da culpa é inafastável,


mas a sua prova é muito complexa. Para que haja a obrigação de reparar o dano, devem estar
presentes os pressupostos da responsabilidade, quais sejam: a conduta, por ação ou omissão; a
prova da existência da culpa; o nexo de causalidade; e o dano. Assim, a adoção da
responsabilidade objetiva não cabe na responsabilidade médica.293

A área de saúde não se encaixa na classificação de atividade de risco, nas


relações de consumo, para fins de reparação de danos, porque a relação médico/paciente
caracteriza-se pela ideia de continuidade. Em caso de saúde, falar em responsabilidade
objetiva é inaceitável. No contexto da saúde, manter o ser humano vivo e sadio é o que se
espera, sendo a preservação da vida o bem maior a ser alcançado.294

291
“Não se pode negar a formação de um autêntico contrato entre o cliente e o médico, quando este o atende.
Embora muito já se tenha discutido a esse respeito, hoje já não pairam mais dúvidas sobre a natureza contratual
da responsabilidade médica. Pode-se falar, assim, em tese, em inexecução de uma obrigação, se o médico não
obtém a cura do doente, ou se os recursos empregados não satisfizerem. Entretanto, ‘o fato de se considerar
como contratual a responsabilidade médica não tem, ao contrário do que poderia parecer, o resultado de presumir
a culpa’.” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 4, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012,
p. 183/184).
292
“Explica Savatier que a responsabilidade contratual pode ou não ser presumida, conforme se tenha o devedor
comprometido a um resultado determinado ou a simplesmente conduzir-se de certa forma. É o que sucede na
responsabilidade do médico, que não se compromete a curar, mas a proceder de acordo com as regras e os
métodos da profissão.” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 4, 7ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 184).
293
“Por isso, muito especialmente no que pertine à responsabilidade civil do médico, a aferição do elemento
culpa é inafastável, conquanto sempre complexa. Alude-se ao ‘ocaso da culpa como fundamento da
responsabilidade civil’, pois ‘culpa é calidoscópio de mil faces, que varia ao sabor das convicções pessoais de
cada autor que se propõe a defini-la. Outra causa da perda do prestígio da doutrina tradicional, que tem na culpa
seu fundamento maior, é a impossibilidade de abranger, em seu conceito, a totalidade dos danos indenizáveis,
daí a prodigalização das hipóteses de presunção de culpa, de sorte a permitir o ajustamento de sua teoria às
profundas transformações do mundo contemporâneo. A responsabilidade do profissional da medicina – tirando
poucas exceções – não poderá jamais se divorciar do conceito tradicional de culpa, no intuito de se qualificar a
conduta do médico como lesiva e apta a gerar obrigação de indenizar. A objetivação da reponsabilidade, tão a
gosto de considerável parcela da doutrina jurídica hodierna, aqui não pode caber.” (NETO, Miguel Kfouri. A
responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 44).
294
“Em resumo, como tema jurídico, o trato da saúde jamais se encaixa na classificação de atividade de risco,
muito menos como estrita relação de consumo, para os fins de reparação judicial, tanto porque a relação
médico/paciente caracteriza-se por permanente continuidade, mercê da singularidade de cada pessoa humana em

148
Com relação à reparação dos danos causados, existem grandes dificuldades
para obter a prova do nexo de causalidade e, até mesmo, da autoria da conduta que teria
ocasionado o dano, facilitando, com isso, a adoção da responsabilidade objetiva. Com o
aumento do número de hospitais, e com a aquisição de equipamentos sofisticados para a cura,
isso passa a caracterizar a despersonalização da relação médico-paciente. Desse modo, seria
possível sustentar uma passagem da responsabilidade subjetiva, passando-se pela teoria do
risco (aumento da teoria objetivista), até se chegar na responsabilidade objetiva.295

Ressalta-se que a adoção da responsabilidade objetiva, no âmbito médico, é


extremamente perigosa, o que implica a equiparação da conduta do médico estudioso, atento e
diligente à de uma pessoa descuidada, que nunca teve a preocupação de abrir um livro de
medicina desde que se formou.296

sua existência temporal, como porque essa relação tem caráter e importância transnacional. Não obstante tudo
isso, é irrelevante se a relação social sobre saúde é, ou não, relação de consumo. O certo é que a atividade
profissional na área de saúde não se insere na moldura do parágrafo único do art. 927 do CC/2002, nem no caput
dos arts. 12 e 14 do CDC, já que esses dispositivos, assentados no risco, preveem reparação sem análise
axiológica da conduta humana. Isso porque o trato da saúde envolve uma necessidade biológica permanente do
ser humano. Nunca oferta aleatória de fornecimento de bens ou de serviços. Por óbvio que, para atender a essa
necessidade biológica, o profissional da área de saúde, direta ou indiretamente, assim como o fornecedor de bens
para este fim, hão de se preocupar com o destinatário – no caso, o doente. Nesse ponto, pelo aspecto de direitos
coletivos e/ou difusos, relativamente à saúde pública, aplicam-se as disposições do CDC, ou seja, para manejo de
Ação Civil Pública, Ação Coletiva, Sanção Administrativa, etc. Mas, em relação aos conflitos individuais sobre
saúde, a perquirição do elemento subjetivo (vontade, desejo, ambição, descaso, desprezo, imperícia, etc.) na
conduta individual de quem maneja atividade de natureza comercial ou de quem presta serviços com esse destino
é imprescindível. Falar em responsabilidade independentemente de culpa, em sede de saúde, parece-nos total
aberração. Em nenhuma hipótese a relação envolvendo saúde pode se assemelhar a contrato de seguro, no qual o
simples risco, previsto como base em cálculo atuarial econômico (custo/benefício), é o fundamento. A função
principal do aplicador da regra de direito, no campo da saúde, é detectar e valorar a conduta pessoal do prestador
do serviço, mesmo que sob organização empresarial. E, ao fazê-lo, há de estar atento às circunstâncias previstas
no art. 944, parágrafo único, e art. 945, do CC/2002. A nota sonante há de ser a boa-fé.” (SEBASTIÃO, Jurandir.
Responsabilidade civil médico/hospitalar e o ônus da prova. Revista Jurídica UNIJUS. ISSN 1518-8280. R. Jur.
UNIJUS. Uberaba/MG. V. 9, n. 11. Nov. 2006, p. 1-256). Disponível em:
file:///C:/Users/m313790/Downloads/1035-3727-1-PB.pdf. Acesso 17/jul/2019.
295
“Argumenta-se que as graves dificuldades encontradas pelo lesado para obter prova do nexo causal e, até, da
autoria do dano, justificam a opção pela responsabilidade objetiva. Doutro lado, a proliferação dos grandes
hospitais, onde convivem inúmeros enfermos e médicos, e a utilização sempre crescente de equipamentos
sofisticados na atividade curativa contribuiriam para despersonalizar a relação médico-paciente na vida moderna.
Haveria, pois, uma evolução, iniciando-se pela responsabilidade subjetiva, passando-se pela teoria do risco
(exacerbação da teoria objetivista), até se estabelecer, em definitivo, a responsabilidade objetiva.” (NETO,
Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 44).
296
“As críticas de CHAMMARD-MONZEIN, SAVETIER e MÉMETEAU-MÉLENNEC são inteiramente
pertinentes: é deveras perigoso adotar a responsabilidade sem culpa no âmbito médico, posto que estar-se-ia
fomentando a despersonalização em campo tão estritamente pessoal como o das relações médico-paciente, que
nenhuma semelhança possui com o ato de se conduzir automóvel por uma rua. Isso faria com que se
equiparassem o médico estudioso, atento e diligente, com o profissional descuidado, que nunca mais abriu um
livro de medicina desde sua formatura.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 45).

149
Antes mesmo do Código Civil atual, a responsabilidade civil consagrou-se com
o Código Criminal de 1830, o qual representou um avanço no instituto da reparação dos
danos. A principal característica dessa legislação era a imputação da compensação pecuniária
ao ofensor, na esfera civil, apenas após a obtenção da condenação na esfera penal.
Posteriormente, com a separação das esferas penal e civil, a reparação dos danos causados por
delitos praticados deveria ser tratada em lei própria e a competência para concessão da
indenização deveria ser de competência privativa da esfera cível.297

O Código Civil de 1916, influenciado pelo Código Francês, incorporou a


responsabilidade aquiliana, fundada na culpa e consagrou o princípio de “a ninguém ofender”,
quando da definição de ato ilícito como sendo a ação ou omissão voluntária, por negligência
ou imprudência, que cause violação a um direito ou prejuízo a outrem, nos termos do disposto
no artigo 159, devendo a reparação do dano ficar a cargo do ofensor. Nessa época, a
responsabilidade médica condicionava a indenização à demonstração de culpa do profissional
de saúde, no exercício de suas funções.298

O atual Código Civil, em seus artigos 186 e 951, em termos de reparação civil,
não se afastou da teoria subjetiva. Desse modo, em caso de responsabilidade do profissional
de saúde, tem-se que ela continua a se basear na ideia de culpa, devendo a vítima fazer prova

297
“A responsabilidade civil no direito brasileiro, todavia, somente se consagrou com a epifania do Código
Criminal de 1830 que, segundo Santos (2008, p. 38), representou o ‘marco da segunda fase do direito pré-
codificado pátrio, por esboçar, no instituto da ‘satisfação’, a ideia de ressarcimento’, trazendo, no bojo de seu
Capítulo IV, denominado ‘Da Satisfação’, normas destinadas à efetiva reparação dos danos causados. Destaca-se
que a legislação em comento tinha por principal característica a indissociabilidade dos âmbitos cível e penal, ao
passo que a imputação de eventual responsabilidade ao ofensor, na esfera civil, estava condicionada à sua
condenação criminal. Posteriormente, entretanto, adotou-se o princípio da independência da jurisdição cível e
penal, conduzido por Teixeira de Freitas, que reconheceu que a reparação dos danos ocasionados pelos delitos
deveria ser tratada em legislação própria e atribuiu tal competência privativamente à esfera cível.” (CORDINI,
Sthefane Machado. A responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica praticada na rede pública de
saúde. – Unisul – Universidade do Sul de Santa Catarina, 2015). Disponível em: riuni.unisul.br. Acesso em
05/02/2019.
298
“Adiante, sob forte influência do Código Francês, o Código Civil de 1916, com projeto elaborado pelo jurista
Clóvis Beviláqua, incorporou a responsabilidade aquiliana, fundada na culpa e consagrando o princípio neminem
laedere, máxima romana que significa ‘a ninguém ofender’, ao definir ato ilícito como sendo a ação ou omissão
voluntária, negligência ou imprudência, que importasse violação a direito ou causasse prejuízo a outrem,
consoante disposto em seu artigo 159, compelindo o ofensor à justa reparação pelos danos provocados. Por seu
turno, em se tratando de responsabilidade civil médica, essa decorria, especialmente, do artigo 1.545 do referido
diploma, que condicionava a indenização à efetiva demonstração da culpa – em quaisquer de suas modalidades:
imprudência, negligência ou imperícia – do profissional da saúde no desempenho de suas funções, ipsis litteris:
‘Art. 1.545. Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano,
sempre que da imprudência, negligência, ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de
servir, ou ferimento.’ (BRASIL, 1916).” (CORDINI, Sthefane Machado. A responsabilidade civil nos casos de
violência obstétrica praticada na rede pública de saúde. – Unisul – Universidade do Sul de Santa Catarina,
2015). Disponível em: riuni.unisul.br. Acesso em 05/02/2019.

150
do dolo ou da culpa stricto sensu do agente para obtenção do direito à reparação do dano.
Assim, a responsabilidade médica, como regra, é de natureza subjetiva.299

2.5.1 Conduta humana – ação ou omissão

Para que se caracterize a responsabilidade civil, o primeiro elemento a ser


considerado é a conduta humana, a qual pode dar-se por meio de ação ou omissão e
caracteriza-se como sendo a possibilidade de o ofensor, diante da iminente ocorrência de um
dano, poder agir de modo diverso, na tentativa de evitar o resultado lesivo.300

Alguns autores colocam a conduta humana e a culpa como se fossem o mesmo


elemento subjetivo da responsabilidade civil.301 A conduta humana, porém, pode ser uma ação
ou omissão, dolosa ou culposa. Caracteriza-se o dolo como uma violação intencional do dever
jurídico com o fim de prejudicar terceiro. Trata-se de uma ação ou omissão voluntária,
conforme o disposto no artigo 186 do Código Civil. No caso da responsabilidade civil, o dolo
não se relaciona com um negócio jurídico, não gerando anulabilidades. Caso atinja um
negócio jurídico, haverá o dever de pagar perdas e danos, por parte de seu causador.302

299
“O Código Civil brasileiro, em seus arts. 186 e 951, não se afastou da teoria subjetiva, a exemplo do Código
revogado, em seus arts. 159 e 1.545. A responsabilidade do profissional da medicina, entre nós, continua a
repousar no estatuto da culpa, incumbindo à vítima provar o dolo ou culpa stricto sensu do agente, para obter a
reparação do dano.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013, p. 71).
300
“A conduta humana constitui o elemento primário para a ocorrência do ato ilícito, ao passo que a violação ao
direito de outrem se dará tão somente mediante ação ou omissão voluntária do agente. Segundo Diniz (2007, p.
39), ‘a comissão vem a ser a prática de um ato que não se deveria efetivar, e a omissão, a não-observância de um
dever de agir ou da prática de certo ato que deveria realizar-se’. Destaca-se que a ação ou omissão volitiva do
agente, enquanto pressuposto da responsabilidade civil, corresponde à possibilidade de o ofensor, diante da
iminência do dano, agir de modo diverso na tentativa de evitar o resultado lesivo (GIANCOLI; WALD, 2012, p.
80).” (CORDINI, Sthefane Machado. A responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica praticada na
rede pública de saúde. – Unisul – Universidade do Sul de Santa Catarina, 2015). Disponível em: riuni.unisul.br
Acesso em 05/02/2019.
301
“Para alguns juristas, como exposto, a conduta humana e a culpa podem ser fundidas como um só elemento
subjetivo da responsabilidade civil. Para fins didáticos, preferimos dividi-las.” (TARTUCE, Flávio. Direito
Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 1, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 516).
302
“Para alguns juristas, como exposto, a conduta humana e a culpa podem ser fundidas como um só elemento
subjetivo da responsabilidade civil. Para fins didáticos, preferimos dividi-las. Assim sendo, a conduta humana
pode ser causada por uma ação (conduta positiva) ou omissão (conduta negativa) voluntária ou por negligência,
imprudência ou imperícia, modelos jurídicos que caracterizam o dolo e a culpa, respectivamente. Pela presença
do elemento volitivo, trata-se de um fato jurígeno. Percebe-se que a regra é a ação ou conduta positiva; já para a
configuração da omissão, é necessário que exista o dever jurídico de praticar determinado ato (omissão
genérica), bem como a prova de que a conduta não foi praticada (omissão específica). Em reforço, para a
omissão é necessária ainda a demonstração de que, caso a conduta fosse praticada, o dano poderia ter sido
evitado. (…) O dolo constitui uma violação intencional do dever jurídico com o objetivo de prejudicar outrem.
Trata-se da ação ou omissão voluntária mencionada no art. 186 do CC. Conforme foi demonstrado no Volume 1
desta coleção, não se pode confundir o dolo da responsabilidade civil com o dolo como defeito do negócio
jurídico, como vício da vontade ou do consentimento. (…) Dessa forma, em havendo dolo, por regra, deverá o

151
No entanto, a prova do dolo ou da culpa, por vezes, é muito difícil. Assim, em
algumas hipóteses, admite-se a adoção da responsabilidade objetiva, como ocorre no caso do
artigo 927 do Código Civil.303 Na responsabilidade do profissional de saúde, a sua atividade
não pode implicar risco aos direitos do paciente. Caso seja admitida hipótese de
responsabilidade objetiva, descartada estaria a verificação da culpa no caso concreto,
adotando-se a teoria do risco criado, pois, como regra, a atividade curativa não gera risco ao
paciente.304

A regra é a conduta praticada por ação. A conduta omissiva é excepcional e,


para que exista, é essencial que haja o dever jurídico de praticar um ato (chamado de omissão
genérica), além da prova de que a conduta não foi praticada (que é a omissão específica).
Além disso, é necessário verificar que, se a conduta fosse praticada, poderia ter sido evitada a
ocorrência do dano.305

A conduta deve conter o elemento da voluntariedade. Assim, a


responsabilidade civil caracteriza-se por um ato próprio do agente e este deve ser

agente pagar indenização integral, sem qualquer redução. Isso porque, em casos tais e na grande maioria das
vezes, não se pode falar na culpa concorrente da vítima ou de terceiro, a gerar a redução por equidade da
indenização. Por outro lado, se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização
será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.” (TARTUCE,
Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 1, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
2019, p. 516/520).
303
“Artigo 927 do CC: Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos
especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua
natureza, risco para os direitos de outrem”.
304
“Entretanto, essa prova muitas vezes se torna difícil. Nosso direito positivo admite, então, hipóteses
específicas, alguns casos de responsabilidade objetiva, ou responsabilidade sem culpa. Exemplo, no recente
Código, é o parágrafo único do art. 927, que estabelece: ‘Haverá responsabilidade de reparar o dano,
independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida
pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem’. A todas as luzes, o dispositivo,
que consagra a responsabilidade objetiva – descartada por completo a apuração de culpa – não se aplica ao
domínio da responsabilidade médica. Isso porque, como ocorria no Código revogado, com o art. 1545 –
dispositivo que mencionava, expressamente, o médico, o cirurgião, dentista, farmacêutico e parteira –, o atual
art. 961 estabelece: ‘O disposto nos arts e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no
exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar morte do paciente,
agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho’. A alusão à ‘atividade profissional’ e
‘paciente’ tornam induvidosos os destinatários desse dispositivo: os profissionais da saúde (médicos, dentistas,
farmacêuticos, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, biomédicos e outros). As normas gerais dos arts. 186
e 927, aplicáveis por inteiro ao domínio da responsabilidade profissional do médico, afinam-se pelo mesmo
diapasão: ‘Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imperícia, violar direito e causar
dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito’; ‘Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts.
186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo’.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil
do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 71-72).
305
“Percebe-se que a regra é a ação ou conduta positiva; já para a configuração da omissão, é necessário que
exista o dever jurídico de praticar determinado ato (omissão genérica), bem como a prova de que a conduta não
foi praticada (omissão específica). Em reforço, para a omissão é necessária ainda a demonstração de que, caso a
conduta fosse praticada, o dano poderia ter sido evitado.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das
Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 1, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 516).

152
responsabilizado, civilmente, com seu patrimônio (artigo 942 do CC). Além de ser
responsabilizada por seu próprio ato, a pessoa também pode responder por ato de terceiro
(artigo 932 do CC). Seja como for, a conduta humana deve ocasionar a ilicitude do ato
praticado, bem como o dever de reparar o dano causado.306

2.5.2 O conceito de culpa genérica (lato sensu)

A culpa caracteriza-se como o desrespeito a um anterior dever, mas sem


intenção de violar um dever jurídico, uma vez que, se houver intenção, fala-se em dolo.
Mesmo sem intenção, o dever acaba sendo violado pela conduta. São elementos para a
existência da conduta culposa: i) uma conduta voluntária; ii) um resultado involuntário; iii) a
previsão ou previsibilidade; iv) a falta do cuidado.307

Para a conceituação da culpa não se pode prescindir dos conceitos de


previsibilidade e comportamento do homem médio. Assim, somente pode haver culpa quando
o evento é previsível. O artigo 186 do Código Civil pressupõe a existência de culpa lato
sensu, que abrange o dolo, ou seja, a intenção da prática do ato, e a culpa stricto sensu ou

306
“Ainda a respeito da conduta, deverá ser voluntária, no sentido de ser controlável pela vontade à qual o fato é
imputável (DINIZ, Maria Helena. Curso..., 2002, p. 44). Surge, portanto, o elemento da voluntariedade.
Observa-se, dentro dessa ideia, que haverá responsabilidade civil por um ato próprio, respondendo o agente com
o seu patrimônio. Nesse sentido, prescreve o art. 942, caput, do CC que ‘os bens do responsável pela ofensa ou
violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e se a ofensa tiver mais de um autor,
todos respondem solidariamente pela reparação’. O dispositivo abraçou o princípio da responsabilidade civil
patrimonial, agora em sede de responsabilidade civil extracontratual. Além de responder por ato próprio, o que
acaba sendo a regra da responsabilidade civil, a pessoa pode responder por ato de terceiro, como nos casos
previstos no art. 932 do CC. Pode ainda responder por fato de animal (art. 936 do CC), por fato de uma coisa
inanimada (arts. 937 e 938 do CC) ou mesmo por um produto colocado no mercado de consumo (arts. 12, 13, 14,
18 e 19 da Lei 8.078/1990). De qualquer forma, esclareça-se que a regra é de a conduta humana gerar a ilicitude
e o correspondente dever de indenizar, sendo certo que a pessoa também pode ter a responsabilidade por danos
que não foram provocados em decorrência de sua própria conduta, no seu sentido direto, como nos casos
descritos. Fica claro, por fim, que dentro da conduta deve estar a ilicitude (…).” (TARTUCE, Flávio. Direito
Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 1, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 518).
307
“A culpa pode ser conceituada como sendo o desrespeito a um dever preexistente, não havendo propriamente
uma intenção de violar o dever jurídico, que acaba sendo violado por outro tipo de conduta. Sérgio Cavalieri
Filho apresenta três elementos na caracterização da culpa: a) a conduta voluntária com resultado involuntário; b)
a previsão ou previsibilidade; e c) a falta de cuidado, cautela, diligência e atenção. Conforme os seus
ensinamentos. ‘em suma, enquanto no dolo o agente quer a conduta e o resultado, a causa e a consequência, na
culpa a vontade não vai além da ação ou omissão. O agente quer a conduta, não, porém, o resultado; quer a
causa, mas não quer o efeito’ (Programa…, 2005, p. 59). Concluindo, deve-se retirar da culpa o elemento
intencional, que está presente no dolo.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e
Responsabilidade Civil – v. 1, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 436).

153
aquiliana, conceituada como a violação de um dever que o agente poderia observar, segundo
os padrões de comportamento de uma pessoa padrão.308

Nos dias atuais, a responsabilidade pode ser com ou sem culpa, ou seja, no
primeiro caso subjetiva e no segundo, objetiva. A culpa deve ser entendida em sentido amplo,
também chamada de culpa genérica (ou culpa lato sensu), a qual engloba o dolo e a culpa (em
sentido estrito).309

Necessário fazer a distinção dos conceitos de dolo e de culpa. O dolo, também


denominado, no direito civil, de culpa consciente, caracterizava-se como a infringência de
uma norma com o fim de causar um mal ou de cometer um delito, isto é, o ato realizado com
o fim de causar um dano. É, assim, a vontade deliberada de causar um resultado maléfico. Na
atualidade, o dolo é caracterizado na conduta antijurídica, sem que haja uma finalidade de
prejudicar. Na realidade, tem-se no dolo a consciência do resultado. O agente age consciente
do comportamento lesivo por ele praticado.310

Na culpa, não há intenção de causar o dano, existindo, porém, previsibilidade.


A culpa grave aproxima-se do dolo e integra a categoria do quase delito. Somente no caso de
o agente provar a falta de intenção na realização da conduta, é que estará afastada a conduta

308
“É consenso geral de que não se pode prescindir, para a correta conceituação de culpa, dos elementos
‘previsibilidade’ e comportamento do homo medius. Só se pode, com efeito, cogitar de culpa quando o evento é
previsível. Se, ao contrário, é imprevisível, não há cogitar de culpa. O art. 186 do Código Civil pressupõe sempre
a existência de culpa lato sensu, que abrange o dolo (pleno conhecimento do mal e perfeita intenção de praticá-
lo), e a culpa stricto sensu ou aquiliana (violação de um dever que o agente podia conhecer e observar, segundo
os padrões de comportamento médio).” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 4, 7ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 26/27).
309
“Modernamente, quando se fala em responsabilidade com ou sem culpa, deve-se levar em conta a culpa em
sentido amplo ou a culpa genérica (culpa lato sensu), que engloba o dolo e a culpa estrita (stricto sensu).
Vejamos tais conceitos de forma detalhada.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e
Responsabilidade Civil – v. 1, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 519).
310
“Isto não obstante, é necessário traçar a linha de separação entre dolo e culpa. Ainda perdura, em alguns,
aquela configuração geral de um ilícito, ou na infração de um comando, porém dicotomizados em função de um
fator diferencial. Dolo, ou culpa consciente, dizia-se a infringência de uma norma com o propósito deliberado de
causar um mal ou praticar uma ‘injúria’, ou cometer um delito. Seria o ato praticado com a finalidade de causar o
dano. Noutros termos, o ato inspirado na intenção de lesar – animus iniuriandi. No dolo haveria, então, além da
contraveniência a uma norma jurídica, a vontade de promover o resultado maléfico. Modernamente, o conceito
de dolo alargou-se, convergindo a doutrina no sentido de caracterizá-lo na conduta antijurídica, sem que o agente
tenha o propósito de prejudicar. Abandonando a noção tradicional do animus nocendi (ânimo de prejudicar),
aceitou que a sua tipificação delimita-se no procedimento danoso, com a consciência do resultado. Para a
caracterização do dolo não há mister perquirir se o agente teve o propósito de causar o mal. Basta verificar se ele
procedeu consciente de que o seu comportamento poderia ser lesivo. Se a prova da intenção implica a pesquisa
da vontade de causar o prejuízo, o que normalmente é difícil de se conseguir, a verificação da consciência do
resultado pode ser averiguada na determinação de elementos externos que envolvem a conduta do agente.”
(PEREIRA, Caio Mário da Silva; TEPEDINO, Gustavo. Responsabilidade Civil. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
2018, p. 95).

154
dolosa. Na culpa, existe um erro de conduta, uma quebra de um dever, o qual o agente, com a
diligência necessária, nas mesmas circunstâncias, não cometeria.311

A culpa de excepcional gravidade é considerada inescusável, advindo de uma


ação ou omissão voluntária, da consciência do perigo do ato realizado pelo agente e da falta
de qualquer justificativa quando da prática da conduta. Esta culpa não se equipara ao dolo, ou
à culpa intencional. Distingue-se a culpa inescusável da culpa grave, sendo esta última distinta
do dolo, apesar de a ele se aproximar. A conduta do agente praticada com culpa grave revela
por parte do agente um erro grosseiro ou uma imperícia imperdoável. Essa gravidade advém
da importância do dano causado, da previsibilidade dele e do esforço para tentar evitá-lo.312

No caso do ato culposo, deve-se abandonar o propósito de se causar um mal,


ou a consciência de que a conduta pode ser danosa. São modalidades de culpa: a imprudência,
a negligência e a imperícia. O termo negligência, utilizado pelo artigo 186 do Código Civil, é
amplo e engloba a imperícia, uma vez que significa a omissão ao cumprimento de um dever.
A conduta praticada por imprudência consiste em agir sem as devidas cautelas, com afoiteza.
A negligência é a falta de atenção e a imperícia significa a falta de aptidão técnica, sendo, em
suma, a culpa profissional.313

Negligência é o contrário de diligência. Caracteriza-se como inação,


intolerância, inércia, falta de observância dos deveres que as circunstâncias exigem. É um ato

311
“Na culpa, inexiste intenção de causar o dano, mas há previsibilidade. A culpa grave aproxima-se do dolo,
integra a categoria do quase-delito. Prosseguem Mazeaud e Tunc: ‘… a negligência ou a imprudência cometida é
de tal modo grosseira, que apenas se torna crível que o autor não tenha desejado, ao agir, causar o dano que se
produziu’. Apenas a prova da falta de intenção maliciosa afasta a caracterização do dolo. A culpa quase-delitual
é um erro de conduta tal, que não cometeria uma pessoa razoavelmente cuidadosa, que estivesse nas mesmas
condições externas do autor do fato.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 87).
312
“Quanto à culpa grave, apresenta grau de importância menor que a da culpa inescusável. Também é
despojada de malignidade, e tampouco se equipara ao dolo. A culpa grave exige julgamento mais severo da
conduta do agente, seja pelo comportamento em si, seja pelas consequências advindas de sua conduta.
Intrinsecamente, revela erro grosseiro, imperícia imperdoável, incúria patente (não perceber o que todos
perceberiam). Extrinsecamente, a gravidade decorre da importância do dano causado, da previsibilidade desse
dano e do esforço para evitá-lo.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2013, p. 89).
313
“A imprevidência do agente, que dá origem ao resultado lesivo, pode apresentar-se sob as seguintes formas:
imprudência, negligência ou imperícia. O termo ‘negligência’, usado no art. 186, é amplo e abrange a ideia de
imperícia, pois possui um sentido lato de omissão ao cumprimento de um dever. A conduta imprudente consiste
em agir o sujeito sem as cautelas necessárias, com açodamento e arrojo, e implica sempre pequena consideração
pelos interesses alheios. A negligência é a falta de atenção, a ausência de reflexão necessária, uma espécie de
preguiça psíquica, em virtude da qual deixa o agente de prever o resultado que podia e devia ser previsto. A
imperícia consiste sobretudo na inaptidão técnica, na ausência de conhecimentos para a prática de um ato, ou
omissão de providência que se fazia necessária; é, em suma, a culpa profissional.” (GONÇALVES, Carlos
Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 4, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 27).

155
de omissão. São seus exemplos: o abandono ao doente, a omissão no tratamento, a
negligência de um médico pela omissão de outro, a prática ilegal por estudantes de medicina,
gerando consequências ao responsável pelo estágio, entre outros.314 Na negligência, tem-se
um desajuste psíquico, considerado um procedimento antijurídico. Existe negligência quando
o agente se omite, sendo que, se agisse, teria evitado o resultado.315

A imprudência é a culpa por comissão, por ação. Caracteriza-se a imprudência


quando o médico tem atitudes não justificadas, precipitadas, sem cautela. É exemplo disso o
caso do cirurgião que não aguarda o anestesista, iniciando, ele mesmo, a aplicação da
anestesia e o paciente vem a óbito por parada cárdio-respiratória. É a imperícia o contrário da
prudência, a qual tem sinônimo de previdência. Na imprudência, o agente age de forma
precipitada, ou sem prever as consequências de sua ação.316

A imperícia é a falta de observância das normas, deficiência de conhecimentos


técnicos da profissão, despreparo prático. É a incapacidade para exercer um ofício, por
inabilidade ou ausência de conhecimentos necessários em uma profissão. Como exemplo de
imperícia pode-se citar o caso do obstetra que, em cesariana, corta a bexiga da parturiente, ou

314
“A negligência médica – di-lo Genival Veloso de França – caracteriza-se pela inação, indolência, inércia,
passividade. É um ato omissivo. O abandono do doente, a omissão de tratamento, a negligência de um médico
pela omissão de outro (um médico, confiando na pontualidade do colega, deixa o plantão, mas o substituto não
chega e um doente, pela falta de profissional, vem a sofrer graves danos – é a negligência vicariante); mais: a
prática ilegal por estudantes de medicina, acarretando responsabilidade, por negligência, do responsável pelo
estágio; a prática ilegal, por pessoal técnico (enfermeiro que realiza punção no doente, advindo complicações e
danos) – responde o médico; a letra do médico (receita indecifrável – em geral vê-se que os médicos têm letra
ruim –, levando o farmacêutico a fornecer remédios diversos do prescrito) também conduz à responsabilidade
por negligência; deve-se prescrever à máquina ou de forma legível e sempre com cópia; esquecimento, em
cirurgia, de corpo estranho no abdômen do paciente (pinça ou gaze, por exemplo, causando dano).” (NETO,
Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 104).
315
“Na negligência, há um desajuste psíquico traduzido no procedimento antijurídico, ou uma omissão de certa
atividade que teria evitado o resultado danoso; na imprudência o sujeito procede precipitadamente ou sem prever
integralmente as consequências da ação. Em qualquer dos casos, encontra-se um defeito de previsibilidade. Não
se procura determinar se o efeito do ato, ou se o resultado danoso foi deliberado ou consciente. O que se requer é
que a conduta do agente seja voluntária, tal como se lê no art. 186 do Código Civil, realizada por ação ou
omissão voluntária, o que levou De Cupis à afirmativa de que a culpa, em si mesma, é uma ‘noção objetiva’. O
art. 186 do Código Civil, ao abranger, no conceito de ato ilícito, a negligência e a imprudência aproximou-se do
conteúdo do art. 1.383 do Código Civil francês, cujo teor é este: Chacun est responsable du dommage qu’il a
causé non seulement par son fait, mais encore par sa négligence ou par son imprudence.” (PEREIRA, Caio
Mário da Silva; TEPEDINO, Gustavo. Responsabilidade Civil. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 99).
316
“Na imprudência, há culpa comissiva. Age com imprudência o profissional que tem atitudes não justificadas,
açodadas, precipitadas, sem usar de cautela. É o caso do cirurgião que não espera pelo anestesista, principia ele
mesmo a aplicação da anestesia e o paciente morre de parada cardíaca. Imprudente também é o médico que
resolve realizar em 30 minutos cirurgia que, normalmente, é realizada em uma hora, acarretando dano ao
paciente. A realização de anestesias simultâneas, o cirurgião que empreende cirurgia arriscada sem garantia de
vaga em UTI, a remoção de pacientes graves em ambulâncias sem equipamentos adequados – são atos
imprudentes praticados pelos médicos.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 108/109).

156
o caso do médico que, ao manusear fórceps, provoca traumatismo crânio-encefálico, com
morte do neonato.317

Na verdade, a prova da negligência e da imperícia constitui, na prática, um


sério tormento para as vítimas que são lesadas. O médico é um mero prestador de serviços, e
sua responsabilidade é regida pelo Código de Defesa do Consumidor, o que permite ao juiz
inverter o ônus da prova em favor do paciente, uma vez que este é hipossuficiente, não apenas
econômica, mas também tecnicamente. O profissional da medicina, com certeza, terá
melhores condições de trazer ao processo elementos probatórios necessários para a análise da
responsabilidade civil.318

A conduta praticada pelo agente pode gerar consequências tanto na esfera civil,
quanto na esfera penal. Desse modo, a conduta do profissional de saúde pode ocasionar
reparação civil, ou penal, ou as duas. Tanto a culpa civil quanto a penal pressupõem a
ocorrência de um dano para a saúde de um paciente, além do nexo causal. Porém, distinguem-
se as duas responsabilidades. Assim, para que haja culpa na esfera penal é necessário que haja
tipicidade formal, isto é, a previsão do tipo penal na lei, o que não se dá na culpa civil. Além
disso, no caso de o agente agir com culpa na esfera penal, a ele será aplicada uma pena,
enquanto na área civil, a consequência será a reparação do dano. Por fim, e não menos
importante, a responsalidade penal é pessoal, enquanto a civil pode alcançar terceiras
pessoas.319

317
“É a falta de observação das normas, a deficiência de conhecimentos técnicos da profissão, o despreparo
prático. Também caracteriza a imperícia a incapacidade para exercer determinado ofício, por falta de habilidade
ou ausência dos conhecimentos necessários, rudimentares, exigidos numa profissão. Em sede penal, o ‘discrime
entre a imperícia e inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício’, adquire relevo. Quando se trata de
impor a obrigação de indenizar, é indiferente que o médico deixe de observar regra cujo conhecimento não lhe
seria normal desconhecer ou que demonstre despreparo: sempre responderá civilmente pelo dano causado.
Adverte Veloso de França que diagnóstico errado não é sinal de imperícia dadas as circunstâncias que envolvem
a análise dos sintomas, às vezes confusos. Ocorreria o chamado ‘erro honesto’. (…) É imperito o obstetra que, na
operação cesariana, corta a bexiga da parturiente. Tachou-se de imperito médico que, manuseando fórceps,
provocou traumatismo cranioencefálico, com edema e congestão cerebral, dando causa à morte de neonato.”
(NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p
110).
318
“A prova da negligência e da imperícia constitui, na prática, verdadeiro tormento para as vítimas. Sendo o
médico, no entanto, prestador de serviço, a sua responsabilidade, embora subjetiva, está sujeita à disciplina do
Código de Defesa do Consumidor, que permite ao juiz inverter o ônus da prova em favor do consumidor (art. 6º,
VIII). Deve ser lembrado, ainda, que a hipossuficiência nele mencionada não é apenas econômica, mas
precipuamente técnica. O profissional médico encontra-se, sem dúvida, em melhores condições de trazer aos
autos os elementos probantes necessários à análise de sua responsabilidade.” (GONÇALVES, Carlos Roberto.
Direito Civil Brasileiro. Volume 4, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 184).
319
“O mesmo fato ilícito pode gerar efeitos civis e penais, além de outros, administrativos, tributários, estes
últimos estranhos à presente análise. A conduta do médico, como lembra Iturraspe, ativa ou passiva, por ação ou
omissão, quando danosa, pode gerar responsabilidade civil ou penal – ou ambas. A culpa civil e a culpa penal

157
No caso de responsabilidade penal, há infração de uma norma de direito
público e o interesse lesado é o da sociedade. Na responsabilidade civil, o interesse lesado é o
privado e o prejudicado poderá pleitear a reparação. Caso coincidentes as responsabilidades
penal e civil, a primeira é exercível pela sociedade e tende à punição. A segunda é executável
pela vítima e tende à reparação, sendo que a primeira influi sobre a segunda.320

Com relação aos conceitos de responsabilidade objetiva e subjetiva, estas são


maneiras de encarar a obrigação de reparação do dano. A responsabilidade subjetiva baseia-se
na ideia de culpa, a qual possui lastro moral, e a objetiva, na teoria do risco. A
responsabilidade objetiva é presumida, não se cogitando de culpa, transferindo-se para o
causador do dano o ônus de provar a culpa exclusiva da vítima ou caso fortuito, circunstâncias
estas que excluem o nexo causal, com o fim de excluir a obrigação de indenizar.321

A responsabilidade subjetiva, assim, baseia-se na culpa, a qual passa a ser


pressuposto necessário do dano indenizável. Diante da teoria clássica (teoria da culpa ou
teoria subjetiva), a responsabilidade amparava-se na culpa, a qual era o fundamento da
responsabilidade civil. Atualmente, a lei, em determinados casos, impõe a reparação de um

têm alguns pontos coincidentes. Ambas pressupõem um resultado danoso para o bem jurídico considerado – a
saúde do paciente –, a ação ou omissão desviada dos deveres de cuidado e a relação de causalidade. Casabona,
reconhecendo tais similitudes, aponta as distinções entre elas: a) a culpa penal se caracteriza por sua tipicidade, a
conduta proibida deve encontrar-se descrita na lei penal – o que não ocorre com o mesmo rigor na culpa civil; b)
as consequências de uma e outra são disitintas: a culpa penal pressupõe a cominação de uma pena, enquanto a
culpa civil gera o direito à reparação ou à recomposição do dano; c) no terreno da responsabilidade, a penal é
estritamente pessoal, ao passo que a civil poderá estender-se a outras pessoas.” (NETO, Miguel Kfouri. A
responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 116).
320
“No caso da responsabilidade penal, o agente infringe uma norma de direito público. O interesse lesado é o da
sociedade. Na responsabilidade civil, o interesse diretamente lesado é o privado. O prejudicado poderá pleitear
ou não a reparação. Se, ao causar dano, escreveu Afrânio Lyra, o agente transgride, também, a lei penal, ele se
torna, ao mesmo tempo, obrigado civil e penalmente. E, assim, terá de responder perante o lesado e perante a
sociedade, visto que o fato danoso se revestiu de características que justificam o acionamento do mecanismo
recuperatório da responsabilidade civil e impõem a movimentação do sistema repressivo da responsabilidade
penal. Quando, porém, no fato de que resulta o dano não se acham presentes os elementos caracterizadores da
infração penal, o equilíbrio rompido se restabelece com a reparação civil, simplesmente. Quando coincidem, a
responsabilidade penal e a responsabilidade civil proporcionam as respectivas ações, isto é, as formas de se
fazerem efetivas: uma, exercível pela sociedade; outra, pela vítima; uma, tendente à punição; outra, à reparação
— a ação civil aí sofre, em larga proporção, a influência da ação penal.” (GONÇALVES, Carlos Roberto.
Direito Civil Brasileiro. Volume 4, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 32).
321
“Nos casos de responsabilidade objetiva, dilucida Carlos Roberto Gonçalves, não se exige prova de culpa do
agente para que este seja obrigado a reparar o dano ou a culpa é presumida pela lei ou simplesmente se dispensa
sua comprovação. Sendo a culpa presumida, inverte-se o ônus da prova. Caberá ao autor provar tão só a ação ou
omissão do réu e o resultado danoso, posto que a culpa do agente já se presume. Exemplifica-se, com o art. 936
do CC atual, que trata da culpa do dono do animal que cause dano a outrem. Se o réu não provar nenhuma
excludente – culpa exclusiva da vítima ou força maior –, será obrigado a indenizar. A responsabilidade, aqui, a
rigor, torna-se objetiva.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2013, p. 72-73).

158
dano independentemente da prova de haver culpa. Trata-se da responsabilidade objetiva legal
ou objetiva, satisfazendo-se com o dano e com o nexo causal.322

O aumento da responsabilidade objetiva conduz à teoria do risco e havendo


dano e nexo causal, o seu ator somente se eximirá da obrigação de indenizar o dano causado
com a comprovação de culpa exclusiva da vítima, ou caso fortuito ou força maior. Para a
teoria do risco integral, não se admite qualquer prova que leve à ausência de reparação do
dano, bastando a existência deste dano e de um autor.323

Para a teoria do risco, todas as pessoas que exercem uma atividade criam um
risco de dano para terceiros, havendo a obrigação de indenizar, ainda que sua conduta seja
destituída da ideia de culpa. A responsabilidade civil é alterada da ideia de culpa, para a noção
de risco, ora encarada como risco-proveito, fundada no princípio de que é reparável o dano
causado a terceiro por uma atividade realizada em benefício do responsável. De outro lado, é
verificada como risco criado, a qual se subordinam todos os que, sem culpa, expuserem
alguém a suportá-lo.324

322
“Conforme o fundamento que se dê à responsabilidade, a culpa será ou não considerada elemento da
obrigação de reparar o dano. Em face da teoria clássica, a culpa era fundamento da responsabilidade. Esta teoria,
também chamada de teoria da culpa, ou ‘subjetiva’, pressupõe a culpa como fundamento da responsabilidade
civil. Em não havendo culpa, não há responsabilidade. Diz-se, pois, ser ‘subjetiva’ a responsabilidade quando se
esteia na ideia de culpa. A prova da culpa do agente passa a ser pressuposto necessário do dano indenizável.
Nessa concepção, a responsabilidade do causador do dano somente se configura se agiu com dolo ou culpa. A lei
impõe, entretanto, a certas pessoas, em determinadas situações, a reparação de um dano independentemente de
culpa. Quando isto acontece, diz-se que a responsabilidade é legal ou ‘objetiva’, porque prescinde da culpa e se
satisfaz apenas com o dano e o nexo de causalidade. Esta teoria, dita objetiva, ou do risco, tem como postulado
que todo dano é indenizável, e deve ser reparado por quem a ele se liga por um nexo de causalidade,
independentemente de culpa.” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 4, 7ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 36).
323
“O aumento da reponsabilidade objetiva conduz à teoria do risco. Nesta, havendo dano e nexo causal, seu
autor somente se eximirá da obrigação de indenizar mediante prova de culpa exclusiva da vítima, caso fortuito
ou força maior – conceitos jurídicos fixados com maestria por AGOSTINHO ALVIM: ‘A distinção que
modernamente a doutrina vem estabelecendo, aquela que tem efeitos práticos e já vai se introduzindo em algums
leis, é a que vê no caso fortuito um impedimento relacionado com a pessoa do devedor ou com a sua empresa,
enquanto a força maior é um acontecimento externo”.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do
médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 74).
324
“A classificação corrente e tradicional, pois, denomina objetiva a responsabilidade que independe de culpa.
Esta pode ou não existir, mas será sempre irrelevante para a configuração do dever de indenizar. Indispensável
será a relação de causalidade entre a ação e o dano, uma vez que, mesmo no caso de responsabilidade objetiva,
não se pode acusar quem não tenha dado causa ao evento. Nessa classificação, os casos de culpa presumida são
considerados hipóteses de responsabilidade subjetiva, pois se fundam ainda na culpa, mesmo que presumida. Na
responsabilidade objetiva prescinde-se totalmente da prova da culpa. Ela é reconhecida, como mencionado,
independentemente de culpa. Basta, assim, que haja relação de causalidade entre a ação e o dano. Uma das
teorias que procuram justificar a responsabilidade objetiva é a teoria do risco. Para esta teoria, toda pessoa que
exerce alguma atividade cria um risco de dano para terceiros. E deve ser obrigada a repará-lo, ainda que sua
conduta seja isenta de culpa. A responsabilidade civil desloca-se da noção de culpa para a ideia de risco, ora
encarada como ‘risco-proveito’, que se funda no princípio segundo o qual é reparável o dano causado a outrem
em consequência de uma atividade realizada em benefício do responsável (ubi emolumentum, ibi onus); ora mais

159
Na França, a jurisprudência adota, desde 1965, para as hipóteses de danos
corporais indenizáveis, a teoria da perda de uma chance de sobrevivência ou de cura. Para que
haja reparação do dano causado, é determinante a prova da perda de uma chance de resultado
favorável ao tratamento. Trata-se de uma reparação parcial e não integral, pois não se
indeniza o prejuízo final, mas a chance perdida.325 326

Na hipótese de não haver possibilidade de afirmar que determinado dano se


deve a uma ação ou omissão do médico, a Corte francesa supõe que o prejuízo, consistente na
perda de uma possibilidade de cura e, como consequência, conduz à indenização com base
nessa perda. Não subsiste a dificuldade de se estabelecer o nexo causal entre a conduta do
profissional de saúde e o agravamento da condição de saúde do paciente, o qual pode,
inclusive, vir a óbito. Isso pode advir de culpa desse profissional como também de condições
do próprio paciente, sendo que a atuação do primeiro diminui a possibilidade de cura, que era
possível.327

Como destaca a doutrina, na teoria da perda de uma chance, para a reparação


dos danos, deve ficar caracterizada a perda de uma chance séria e real, uma vez que ela
encontra seu limite no caráter de certeza que deve apresentar o dano a ser reparado. Essa
chance deve se caracterizar muito mais do que uma simples esperança subjetiva. Deve o juiz,
no caso concreto, verificar qual foi a chance perdida, com base na ciência estatística, devendo
recorrer à perícia técnica. Além disso, a reparação do dano, nesse caso, não deve ser a mesma

genericamente como ‘risco criado’, a que se subordina todo aquele que, sem indagação de culpa, expuser alguém
a suportá-lo.” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 4, 7ª ed. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 36).
325
“A jurisprudência francesa tem adotado, a partir de 1965, em caso de danos corporais indenizáveis, para
proteger a vítima e obviar os inconvenientes na formação da culpa, a teoria da perda de uma chance de
sobrevivência ou de cura. O elemento prejudicial que determina a indenização é a perda de uma chance de
resultado favorável no tratamento. A reparação, no entanto, não é integral, posto que nao se indeniza o prejuízo
final, mas, sim, a chance perdida.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2013, p. 75).
326
“A perda de uma chance está caracterizada quando a pessoa vê frustrada uma expectativa, uma oportunidade
futura, que, dentro da lógica do razoável, ocorreria se as coisas seguissem o seu curso normal. A partir dessa
ideia, como expõem os autores citados, essa chance deve ser séria e real.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil:
Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 1, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 655).
327
“Quando não é possível afirmar que determinado dano se deve a um ato ou omissão do médico, a Corte de
Cassação francesa supõe que o prejuízo consiste na perda de uma possibilidade de cura, e, em consequência,
condena à indenização por esta perda. Desaparece, desse modo, a dificuldade em se estabelecer a relação de
causalidade entre o ato ou a omissão médica e o agravamento da condição de saúde, invalidez ou morte do
paciente, que tanto podem dever-se à culpa do profissional quanto às condições patológicas do paciente. Afirma-
se que a atuação do médico diminui a possibilidade de cura desejável.” (NETO, Miguel Kfouri. A
responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 75).

160
que a vantagem em que teria resultado essa chance, caso alcançada, pois não é a mesma
chance esperada e a certeza realizada.328

A culpa do médico, segundo essa teoria, compromete as chances de vida e a


integridade do paciente. É suficiente que haja dúvida, mesmo que o juiz não esteja
convencido de que a culpa causou o dano. Existe a relação causal entre a culpa e o dano, pois
a culpa, aqui, significa que ao paciente não foram dadas todas as oportunidades, militando
uma presunção de culpa contra o médico.329

O retardamento nos cuidados, desde que cause danos ao paciente, pode


importar responsabilidade pela perda de uma chance, a qual consiste na interrupção, por
determinado fato, de um processo que causaria, à pessoa, a possibilidade de vir a obter, no
futuro, algo benéfico e que, em decorrência disso, a oportunidade ficou, para sempre,
destruída. É frustrada a chance de se obter uma futura vantagem. Com essa perda de chance,
há a caracterização de um dano, o qual será reparável quando estiverem reunidos os demais
pressupostos da responsabilidade civil.330

Na perda de uma chance, indeniza-se a oportunidade que foi retirada do doente.


Baseia-se na possibilidade e na certeza, pois é verdade que a chance poderia ocorrer, mas

328
“Em apresentação ao trabalho de Rafael Peteffi, ensina Judith Martins-Costa que os critérios para a perda de
uma chance partem da constatação da existência de ‘chances sérias e reais’, pois ‘a teoria da perda de uma
chance encontra o seu limite no caráter de certeza que deve apresentar o dano reparável’. Por essa razão, a
chance perdida deve representar ‘muito mais que uma simples esperança subjetiva’, cabendo ao réu a sua prova e
ao juiz o dever de averiguar quão foi efetivamente perdida a chance com base na ciência estatística, recorrendo
ao auxílio de perícia técnica. Além do mais, a sua quantificação segue uma regra fundamental – obedecida
também nas espécies de dano moral pela perte d’une chance –, qual seja: a reparação da chance perdida pela
vítima, não devendo ser igualada à vantagem em que teria resultado esta chance, caso ela tivesse se realizado,
pois nunca a chance esperada é igual a certeza realizada’ (PETEFFI, Rafael. Responsabilidade..., 2007, p. XX).”
(TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 1, 14ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2019, p. 655/656).
329
“Em síntese, admite-se que a culpa do médico comprometeu as chances de vida e a integridade do paciente.
Pouco importa que o juiz não esteja convencido de que a culpa causou o dano. É suficiente uma dúvida. Os
tribunais podem admitir a relação de causalidade entre culpa e dano, pois que a culpa é precisamente não ter
dado todas as oportunidades (‘chances’) ao doente. Milita uma presunção de culpa contra o médico.” (NETO,
Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 75).
330
“Assinala-se que o retardamento nos cuidados, desde que provoque dano ao paciente, pode importar em
responsabilidade pela perda de uma chance. Consiste esta na interrupção, por um determinado fato antijurídico,
de um processo que propiciaria a uma pessoa a possibilidade de vir a obter, no futuro, algo benéfico, e que, por
isso, a oportunidade ficou irremediavelmente destruída. Frustra-se a chance de obter uma vantagem futura. Essa
perda de chance, em si mesma, caracteriza um dano, que será reparável quando estiverem reunidos os demais
pressupostos da responsabilidade civil. A construção dessa hipótese – o dano derivado da ‘perda de uma chance’
– deve-se à jurisprudência francesa, que, desde o final do século XIX, entende indenizável o dano resultante da
diminuição de probabilidades de um futuro êxito, isto é, nos casos em que o fato gerador da responsabilidade faz
perder a outrem a possibilidade (chance) de realizar um lucro ou evitar um prejuízo. Se a chance existia, e era
séria, então entra no domínio do dano ressarcível.” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro.
Volume 4, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 186).

161
também é verdade que a vantagem esperada está perdida, resultando daí um dano indenizável.
Existe a incerteza no prejuízo e a certeza na probabilidade.331

Esta chance deve ser séria e viável, considerável e não eventual. No montante a
ser indenizado, não deve ser contabilizado o total do benefício que ocorreria, ou das perdas
que poderiam ser evitadas. Na estipulação deste valor, deve-se levar em conta a probabilidade
de que tal fato ocorresse, sendo indenizado o percentual de que foi privada a vítima.332

No direito civil de nosso País, quanto à responsabilidade médica, o elemento


mais importante é a culpa do médico, com o ônus da prova a cargo da vítima. Em alguns
casos, é certo, presume-se a culpa, como ocorre com cirurgias estéticas, exames de
laboratórios e check-ups. Também nos casos de hospitais e clínicas, quanto aos atos de seus
prepostos não médicos. Nessa relação de subordinação, quanto à atividade do médico, esta é
deixada em segundo plano. No caso de banco de sangue e de sêmen, apenas para
exemplificar, a responsabilidade é objetiva.333

331
“Nunca se deslembre, todavia, que, na perda de uma chance, indeniza-se, em realidade, a chance, a
oportunidade subtraída à vítima. Estampa tal conclusão julgado do extinto Tribunal de Alçada do Paraná, que
reapreciou – e manteve – sentença de procedência parcial da seguinte demanda indenizatória: associado de um
plano de saúde contratara, também, transporte por UTI aérea – justamente por ser agropecuarista, deslocando-se
frequentemente à propriedade situada no interior do Estado de São Paulo. A vítima, quando se encontrava na
fazenda, sofreu um AVC hemorrágico, derrame cerebral de significativas proporções. O médico que o atendeu,
na pequena cidade interiorana tentou entrar em contato telefônico, durante cerca de hora e meia, com a central da
UTI aérea, sem êxito. Alegou-se a ocorrência de pane no sistema de telefonia do Aeroporto de Congonhas. Por
isso, o transporte se fez por via terrestre, até a localidade que dispunha de maiores recursos. Três dias depois, não
obstante a craniotomia levada a efeito por neurocirurgião, o paciente faleceu. Ninguém, em sã consciência,
poderia afirmar com absoluta convicção que o paciente teria sobrevivido – dadas as dimensões do AVC – caso
de traslado aéreo, por jato ou helicóptero, tivesse sido imediato. Mas não há dúvida quanto ao fato de o serviço
deficientemente prestado pelo plano de saúde haver subtraído, ao menos, uma chance de o paciente sobreviver.
Com sequelas ou não, é impossível afirmar-se. A pretensão ao recebimento de valor correspondente a 3.000
salários mínimos, como compensação pelos danos morais, resultou na condenação ao pagamento de R$
16.000,00 (dezesseis mil reais). O voto condutor, após citar trecho deste trabalho, consignou: O mesmo autor, na
obra Culpa médica e ônus da prova (Ed. RT, 2002, p. 96 e ss.), argumenta que, na perda de uma chance,
indeniza-se a oportunidade perdida, não o prejuízo final. Por isso, é parcial a reparação.” (NETO, Miguel Kfouri.
A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 76-77).
332
“Sérgio Severo, a propósito da indenização pela perda de uma chance, pondera, com inteira pertinência: ‘… é
essencial que a mesma seja ‘plausível e não aponte uma simples quimera’, como ensina Le Tourneau’. E,
adiante, reforça: ‘… esta chance deveria ser séria e viável. (…) Portanto, a chance deve ser considerável e não
meramente eventual. O montante indenizatório também não deve ser correspondente ao total do benefício que
possivelmente ocorreria ou das perdas que poderiam ser evitadas. Na estipulação do quantum, deve ser levada
em conta a probabilidade de que tal sucedesse, sendo indenizado o percentual de que foi privada a vítima, ou
seja, ‘o juiz apreciará, então, não o valor global dos ganhos ou perdas, mas a proporção deste valor que em
concreto representa a frustração da chance, que é atribuível ao agente segundo as circunstâncias do caso.”
(NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.
78).
333
“No Brasil, quanto à responsabilidade médica, também à luz da nova codificação civil, o elemento de
referência é a análise da culpa individual do médico, com o ônus da prova a cargo do ofendido. Em algumas
ocasiões, entretanto, pode-se presumir a culpa, como no caso de cirurgias plásticas estéticas propriamente ditas –
cosmetológicas ou de embelezamento –, exames de laboratório e check-ups. Presume-se, também, a culpa de

162
Para caracterizar-se a responsabilidade médica, sabe-se que alguns autores a
colocam como responsabilidade contratual, enquanto outros a colocam como extracontratual
ou aquiliana. O Código Civil de 1916 a colocava em dispositivo entre aqueles que diziam
respeito à responsabilidade aquiliana, mas era considerada como responsabilidade
contratual.334

Quanto à origem, a culpa pode ser classificada em culpa contratual (incluindo a


culpa in contrahendo) e a culpa aquiliana. A primeira, a contratual, ocorre em casos de
desrespeito a uma regra contratual ou a um dever relacionado à boa-fé objetiva, a qual exige
uma conduta com lealdade dos contraentes. O desrespeito à boa-fé objetiva, pode gerar
responsabilidade pré-contratual, contratual ou pós-contratual, por parte de quem a violou.
Desse modo, surge a culpa in contrahendo.335

Assim, a responsabilidade médica é, via de regra, contratual. Pode existir


responsabilidade que não seja contratual, como em caso de atendimento de doente na rua, por
exemplo. Em qualquer caso, haverá a obrigação de reparar o dano. Além disso, a obrigação do
médico é de meio e não de resultado, devendo tentar curar, mesmo que isto não ocorra. Na
obrigação de resultado, a pessoa deve atingir determinado fim, sem o qual não terá cumprida
sua obrigação.336

hospitais e clínicas, quanto aos atos de seus prepostos não médicos. Entretanto, mesmo essa relação de
subordinação, quanto à atividade pessoal do médico, é relegada a plano secundário na jurisprudência. Quanto aos
bancos de sangue e de sêmen, a responsabilidade é objetiva.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil
do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 81).
334
“A caracterização jurídica da responsabilidade médica é posta em termos controvertidos, mostrando-se que
de um lado há os que se colocam no campo da responsabilidade contratual, e de outro, os que a entendem como
extracontratual ou aquiliana. Não obstante o Código Brasileiro de 1916 inseri-la ‘em dispositivo colocado entre
os que dizem respeito à responsabilidade aquiliana’, considera-se que se trata de ‘responsabilidade contratual’.”
(PEREIRA, Caio Mário da Silva; TEPEDINO, Gustavo. Responsabilidade Civil. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
2018, p. 191).
335
“De início, quanto à origem, a culpa pode ser classificada em culpa contratual (incluindo a culpa ao contratar
ou culpa in contrahendo) e culpa aquiliana. A classificação está de acordo com o duplo tratamento do tema da
responsabilidade civil (contratual x extracontratual), que ainda persiste apesar das tendências de unificação da
matéria. A primeira, culpa contratual, está presente nos casos de desrespeito a uma norma contratual ou a um
dever anexo relacionado com a boa-fé objetiva e que exige uma conduta leal dos contraentes em todas as fases
negociais. O desrespeito à boa-fé objetiva pode gerar a responsabilidade pré-contratual, contratual e pós-
contratual da parte que a violou, o que é interpretação dos Enunciados ns. 25 e 170 CJF/STJ, aprovados nas
Jornadas de Direito Civil. Justamente por isso é que se pode falar em culpa ao contratar ou culpa in
contrahendo, conforme tese desenvolvida originalmente por Ihering.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito
das Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 1, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 437).
336
“Apesar de o Código Civil brasileiro colocar a responsabilidade médica dentre os atos ilícitos, não mais
acende controvérsias caracterizar a responsabilidade médica como ex contractu. Aguiar Dias é taxativo: ‘Ora, a
natureza contratual da responsabilidade médica não nos parece hoje objeto de dúvida. (…) Acreditamos, pois,
que a responsabilidade do médico é contratual, não obstante sua colocação no capítulo dos atos ilícitos. É claro
que poderá existir responsabilidade médica que não tenha origem no contrato: o médico que atende alguém

163
Baseado no conceito de responsabilidade contratual, a doutrina ensina que,
para que ela exista e se caracterize, as obrigações do profissional de saúde podem ser
subdivididas em: a) dever de aconselhar; b) dever de cuidado e de assistência; c) dever de se
abster de abusos e desvios de poder. Caso o médico infrinja esses deveres, haverá falta
profissional.337

De outro lado, com relação à reparação do dano e ao pagamento de


indenizações, além da prova do dolo ou da culpa, é preciso, na maior parte das vezes, a
comprovação do dano patrimonial ou extrapatrimonial suportado pela vítima. É certo que não
cabe responsabilidade civil sem que haja dano, sendo que o ônus da prova caberá ao autor da
demanda. Em algumas situações, caberá a inversão do ônus da prova do dano, como ocorre
nos casos de relação de consumo, tendo em vista a vulnerabilidade do consumidor.338

A prestação de serviços liberais, como no caso de serviços médicos, engloba os


contratos de meios, como regra geral. O artigo 14, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor,
preceitua que a responsabilidade desses profissionais será apurada mediante a verificação de
culpa. Os artigos 948 a 951 do Código Civil estabelecem que a indenização será devida
quando o agente causar dano por qualquer modalidade de culpa, quais sejam negligência,
imprudência ou imperícia.339

desmaiado na rua, v.g. A obrigação de reparar o dano, entretanto, sempre existirá, seja produzida dentro do
contrato ou fora dele. Ao assistir o cliente, o médico assume obrigação de meio, não de resultado. O devedor tem
apenas que agir, é a sua própria atividade o objeto do contrato. O médico deve apenas esforçar-se para obter a
cura, mesmo que não a consiga. A jurisprudência tem sufragado o entendimento de que, quando o médico atende
a um cliente, estabelece-se entre ambos um verdadeiro contrato. A responsabilidade médica é de natureza
contratual. Contudo, o fato de considerar como contratual a responsabilidade médica não tem, ao contrário do
que poderia parecer, o resultado de presumir a culpa. O médico não se compromete a curar, mas a proceder de
acordo com as regras e os métodos da profissão. Já na obrigação de resultado (empreitada, transporte, cirurgia
plástica estética propriamente dita), o profissional obriga-se a atingir determinado fim, o que interessa é o
resultado de sua atividade – sem o que não terá cumprido a obrigação.” (NETO, Miguel Kfouri. A
responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 83/84).
337
“Assentados no conceito de ‘responsabilidade contratual’, os autores decompõem as obrigações do médico
em: a) deveres de conselho; b) cuidados e assistência; c) abstenção de abusos e desvios de poder. Em
consequência, caracterizar-se-iam como ‘faltas profissionais’ a infringência a esses deveres básicos.”
(PEREIRA, Caio Mário da Silva; TEPEDINO, Gustavo. Responsabilidade Civil. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
2018, p. 192).
338
“Pertinente mais uma vez deixar claro que, para o Direito Civil, não importa se o autor agiu com dolo ou
culpa, sendo a consequência inicial a mesma, qual seja a imputação do dever de reparação do dano ou
indenização dos prejuízos. Todavia, os critérios para a fixação da indenização são diferentes, eis que os arts. 944
e 945 da atual codificação trazem a chamada redução equitativa da indenização ou por equidade, consagrando a
teoria da causalidade adequada, já tratada pelo Direito Penal, mas que ganha nova feição no Direito Privado
pelo que consta da atual codificação privada.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e
Responsabilidade Civil – v. 1, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 521/522).
339
“Como sabido, a prestação de serviços profissionais liberais (nesta categoria encontram-se os médicos)
envolve contrato de meios, como regra geral. O art. 14, § 4º, do CDC, estabelece que a responsabilidade pessoal

164
Ainda, doutrina costuma classificar as obrigações, quanto ao conteúdo, em
obrigações de meio e de resultado. De outro lado, a relação jurídica é dividida em contrato de
meio, em oposição ao contrato de resultado. O artigo 14, caput, do Código de Defesa do
Consumidor, estipula para os demais prestadores de serviço, que a responsabilidade seja
objetiva, isto é, independente de culpa, ao contrário da outra responsabilidade, que se
denomina subjetiva. A responsabilidade objetiva subdivide-se em relativa ou mitigada e
absoluta.340

A diferença entre contrato de meio e de resultado tem relevância quanto ao


ônus da prova em eventual conflito judicial. Na obrigação de meio ou de diligência, o devedor
obriga-se a agir com prudência para atingir o fim desejado pelo seu ato.341 No contrato de
meio, adota-se a teoria da responsabilidade subjetiva, o que deriva do dever de, em eventual

desses profissionais será apurada mediante ‘verificação da culpa’. Já o art. 951, fazendo remissão aos arts. 948,
989 e 950, todos do CC/2002, estabelece que a indenização será devida quando o agente, no exercício
profissional, causar o dano por ‘negligência, imprudência ou imperícia’. A doutrina denomina esse tipo de
relação jurídica como contrato de meios, em oposição ao contrato de resultado. Para os demais prestadores de
serviços, em caso de dano ao consumidor, estabelece o art. 14, caput, que a reparação será feita
‘independentemente da existência de culpa’. A doutrina denomina a primeira modalidade (verificação de culpa)
como responsabilidade subjetiva. E a segunda (independentemente da existência de culpa), como
responsabilidade objetiva. Esta última, ainda pela doutrina, subdivide-se em relativa (ou mitigada) e absoluta.”
(SEBASTIÃO, Jurandir. Responsabilidade civil médico/hospitalar e o ônus da prova. Revista Jurídica UNIJUS.
ISSN 1518-8280. R. Jur. UNIJUS. Uberaba/MG. V. 9, n. 11. Nov. 2006, p. 1-256). Disponível em:
file:///C:/Users/m313790/Downloads/1035-3727-1-PB.pdf. Acesso 17/jul/2019.
340
“Como sabido, a prestação de serviços profissionais liberais (nesta categoria encontram-se os médicos)
envolve contrato de meios, como regra geral. O art. 14, § 4º, do CDC, estabelece que a responsabilidade pessoal
desses profissionais será apurada mediante ‘verificação da culpa’. Já o art. 951, fazendo remissão aos arts. 948,
989 e 950, todos do CC/2002, estabelece que a indenização será devida quando o agente, no exercício
profissional, causar o dano por ‘negligência, imprudência ou imperícia’. A doutrina denomina esse tipo de
relação jurídica como contrato de meios, em oposição ao contrato de resultado. Para os demais prestadores de
serviços, em caso de dano ao consumidor, estabelece o art. 14, caput, que a reparação será feita
‘independentemente da existência de culpa’. A doutrina denomina a primeira modalidade (verificação de culpa)
como responsabilidade subjetiva. E a segunda (independentemente da existência de culpa), como
responsabilidade objetiva. Esta última, ainda pela doutrina, subdivide-se em relativa (ou mitigada) e absoluta”.
(SEBASTIÃO, Jurandir. Responsabilidade civil médico/hospitalar e o ônus da prova. Revista Jurídica UNIJUS.
ISSN 1518-8280. R. Jur. UNIJUS. Uberaba/MG. V. 9, n. 11. Nov. 2006, p. 1-256). Disponível em:
file:///C:/Users/m313790/Downloads/1035-3727-1-PB.pdf. Acesso 17/jul/2019.
341
“(…) a classificação das obrigações quanto ao conteúdo, em obrigações de meio e de resultado, é atribuída ao
jurista francês Demogue, conforme aponta a doutrina clássica brasileira. Como se extrai da obra de Washington
de Barros Monteiro, um dos primeiros a difundir essa classificação no Brasil, na obrigação de resultado ou de
fim, ‘obriga-se o devedor a realizar um fato determinado, adstringe-se a alcançar certo objetivo’. Já na obrigação
de meio ou de diligência, ‘o devedor obriga-se a empregar diligência, a conduzir-se com prudência, para atingir a
meta colimada pelo ato’. Em outra obra, de defesa de sua titularidade na Faculdade de Direito da USP, o clássico
jurista explica com outras palavras que na obrigação de resultado ‘exige-se um resultado útil para o credor; a
obrigação não se tem por adimplida enquanto não atinge o fim colimado’. Por sua vez, na obrigação de meio, ‘o
devedor somente se obriga a usar de prudência ou diligência normais, para chegar àquele resultado’. Muito
próxima é a ideia de Rubens Limongi França, que afirma: ‘obrigações de meio são aquelas que o devedor se
obriga a ‘diligenciar’ honestamente a realizar um fim, com os meios que dispõe’. Por seu turno, nas obrigações
de resultado ‘o devedor se obriga a realizar determinado fim, independentemente da cogitação dos meios”.
(TARTUCE, Flávio. Manual de Responsabilidade Civil – Volume Único - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
Método, 2018, p. 855).

165
demanda judicial, o paciente levar aos autos a prova da constituição de seu direito e a prova
do descumprimento da obrigação. Na hipótese do contrato de resultado, compete ao autor
provar a impossibilidade de alcançar o resultado, por motivos justificáveis.342

A obrigação de meio ou de diligência é aquela na qual o devedor somente é


obrigado a se emprenhar para alcançar um resultado, ainda que este não seja alcançado.
Aqueles que assumem uma obrigação de meio, respondem tão somente se ficar comprovado o
dolo ou culpa em sentido estrito, que é aquela praticada por suas três modalidades, ou seja,
por imprudência, negligência ou imperícia. Consequentemente, haverá responsabilidade civil
subjetiva do indivíduo que assumiu tal obrigação.343

Lado outro, assumem obrigação de meio os profissionais liberais em geral,


como é o caso do advogado em relação ao seu cliente e do médico em relação ao seu paciente.
A responsabilidade dos profissionais liberais é subjetiva em decorrência da previsão do
disposto no artigo 14, § 4º, da Lei n.º 8.078/1990,344 que institui o Código de Defesa do

342
“Diga-se logo que a distinção entre contrato de meios e de resultado, assim como entre responsabilidade
subjetiva e responsabilidade objetiva, destina-se, tão-somente, ao ônus da prova, em caso de conflito judicial a
ser dirimido em juízo. Quando se fala em contrato de meios, significa adoção da teoria da responsabilidade
subjetiva, o que acarreta ao paciente (proponente da ação) o dever de levar para os autos a prova da constituição
do seu direito e a prova do descumprimento da obrigação por parte do acionado. E, quando se fala em contrato
de resultado, compete ao proponente descrever a relação contratual e o dano ocorrido, enquanto que ao acionado
cabe fazer a prova de que foi impossível ter atingido o resultado contratado, por motivos justificáveis.”
(SEBASTIÃO, Jurandir. Responsabilidade civil médico/hospitalar e o ônus da prova. Revista Jurídica UNIJUS.
ISSN 1518-8280. R. Jur. UNIJUS. Uberaba/MG. V. 9, n. 11. Nov. 2006, p. 1-256). Disponível em:
file:///C:/Users/m313790/Downloads/1035-3727-1-PB.pdf. Acesso 17/jul/2019.
343
“De grande interesse prático é a classificação das obrigações quanto ao conteúdo em obrigação de meio, de
resultado e de garatia. Essa classificação não consta do Código Civil, mas é apontada pela doutrina e pela
jurisprudência. Tem origem no trabalho de Demogue, tendo sido transposta para o Direito Civil Brasileiro
clássico, entre outros, por Washington de Barros Monteiro (Curso…, 2003, p. 56). A obrigação de meio ou de
diligência é aquela em que o devedor só é obrigado a empenhar-se para perseguir um resultado, mesmo que este
não seja alcançado. Aqueles que assumem obrigação de meio só respondem se provada a sua culpa genérica
(dolo ou culpa estrita – imprudência, negligência ou imperícia). Por conseguinte, haverá responsabilidade civil
subjetiva daquele que assumiu tal obrigação.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direito das Obrigações e
Responsabilidade Civil. Volume 2. 12 ed. Editora forense, p. 132 a 139).
344
“Art. 14 do CDC: O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela
reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por
informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 1º O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em
consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I – o modo de seu fornecimento;
II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III – a época em que foi fornecido.
§ 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.
§ 3º O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
§ 4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.”

166
Consumidor. Da mesma forma, há a mesma previsão para os profissionais da área da saúde,
conforme o art. 951 do Código Civil.345 346

Com relação à obrigação de médico, o fato de constituir-se como de meio, e


somente por exceção, de resultado, quer significar que, quanto ao ônus da prova, ao paciente
ou vítima incumbe apenas demonstrar que o resultado não foi alcançado, que o médico não
agiu com grau de diligência razoável e que houve descumprimento culposo. Ao médico,
caberá provar algum fato que o exima da responsabilidade. Além da comprovação da culpa,
deve-se comprovar o nexo causal, ou seja, o elo entre o dano e a conduta do agente. No
entanto, na maior parte das vezes, o reconhecimento do nexo é difícil.347

A doutrina cita alguns princípios gerais para verificação da culpa médica, quais
sejam: os casos de lesão, que têm origem em diagnóstico errado, nos quais só haverá
responsabilidade o médico que tiver cometido erro grosseiro; o clínico geral deve ser tratado
com maior benevolência que o especialista; com relação ao consentimento do paciente em
cirurgia na qual existe risco de mutilação e de vida, este é essencial; em caso de tratamento
que deixe sequelas, deve haver consentimento, agindo, com culpa grave, o médico que
submeter o cliente a tratamento perigoso, sem certificação da imperiosidade de seu ato; deve-
se verificar se o médico não praticou cirurgia desnecessária; pode o médico mutilar o
paciente, apenas se a vida deste o exigir; o médico sempre trabalha com uma margem de

345
“Assumem obrigação de meio os profissionais liberais em geral. Caso do advogado em relação ao cliente e do
médico em relação ao paciente, entre outros. A responsabilidade dos profissionais liberais é subjetiva em virtude
da previsão do art. 14, § 4º, da Lei n.º 8.078/1990, que institui o Código do Consumidor. O mesmo é previsto
para os profissionais da área de saúde, conforme o art. 951 do CC.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direito
das Obrigações e Responsabilidade Civil. Volume 2. 12ª ed. Revista, atualizada e ampliada. Editora forense, p.
132/133).
346
Art. 951 do CC: “O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por
aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do
paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.”
347
“Asseveramos, alhures, que o encargo assumido pelo médico configura obrigação de meios, e só por exceção
constituirá obrigação de resultado. O desdobramento, quanto ao ônus da prova, é que, nessa última, ao
paciente/vítima incumbirá a prova de um fato que o exima da responsabilidade. Quanto à primeira, a vítima
deverá fazer prova de que o médico não agiu com o grau de diligência razoável e houve descumprimento
culposo. Micheli anota a distinção, sem, no entanto, aplaudi-la. O direito pátrio, contudo, acolhe sem reservas
essa formulação doutrinária. Mas, como vimos, não basta a culpa. Deve-se evidenciar, também, o vínculo causal,
que liga o dano à conduta do agente. Nem sempre, porém, nos domínios da responsabilidade médica – e a
asserção provém do exame de inúmeros casos concretos –, o reconhecimento do nexo de causalidade é tarefa
fácil. Os médicos dizem que não há doenças, há doente, porquanto dois pacientes, acometidos do mesmo mal e
tratados de modo idêntico, podem apresentar reações absolutamente distintas à terapia: num caso, a cura; noutro,
o agravamento da enfermidade e, até, a morte.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 93/94).

167
risco; em intervenções médicas, sem finalidade terapêutica ou curativa imediata, a
responsabilidade deve ser vista com maior rigor.348

Existe obrigação de meio, quando o devedor se obriga a empregar diligência, a


conduzir-se com prudência, com a finalidade de atingir o objetivo desejado, pelo ato a ser
praticado. Assim, sustenta-se que a obrigação de meio leva à responsabilidade subjetiva, e a
obrigação de resultado conduz à responsabilidade objetiva, isto é, sem culpa ou com culpa
presumida. Na obrigação de meio, não se exige nada do devedor, mas somente o emprego de
determinado meio, sem finalidade de alcançar o resultado. Pode-se dar como exemplo o caso
do médico que se obriga a usar de todos os esforços e utilizar os meios que tem à sua
disposição para obtenção da cura de um paciente, mas não consegue atingir o resultado. Nesse
tipo de obrigação, o paciente, que é o credor, deve provar que o devedor, que é o médico, não
agiu com diligência.349

Na obrigação de resultado, também chamada obrigação de fim, cumpre-se a


obrigação obtendo-se um resultado, normalmente, oferecido antes pelo devedor. Todo aquele
que assume obrigação de resultado, responde objetivamente, isto é, independentemente de
dolo ou culpa presumida. Como exemplos de hipóteses de obrigação de resultado, tem-se o
médico cirurgião estético e o dentista estético. Nesse tipo de obrigação, a prova deve ser feita

348
“Alguns princípios gerais para a avaliação da culpa médica são sugeridos pela Professora Teresa Ancona
Lopez: 1. quando se tratar de lesão que teve origem em diagnóstico errado, só será imputada responsabilidade ao
médico que tiver cometido erro grosseiro; 2. o clínico geral deve ser tratado com maior benevolência que o
especialista; 3. a questão do consentimento do paciente em cirurgia em que há risco de mutilação e de vida é
essencial. Aguiar Dias cita caso de paciente que se recusou terminantemente a permitir que fosse amputada sua
perna esmagada em acidente, sobrevindo-lhe a morte em consequência de gangrena gasosa. Os médicos que
propuseram a operação não poderiam ter agido de outro modo, dada a comprovada lucidez do paciente ao
rejeitar a intervenção cirúrgica. Wanderby Lacerda Panasco assevera que, na atividade médica, torna-se essencial
o consentimento, e, por isso mesmo, inarredável. Entretanto, se houver iminente perigo de vida, o profissional
pode intervir sem o seu amparo, numa justificativa supralegal. Evidentemente, no abortamento, por exemplo, não
decorre efeito nenhum do consentimento da gestante – apenas se excluindo a antijuridicidade nos casos previstos
em lei, de aborto terapêutico ou honoris causa; 4. o mesmo assentimento se exige no caso de tratamento que
deixe sequelas, como, v.g., na radioterapia. E age com culpa o médico que submete o cliente a tratamento
perigoso, sem antes certificar-se da imperiosidade de seu uso; 5. dever-se-á observar se o médico não praticou
cirurgia desnecessária; 6. não se deve olvidar que o médico pode até mesmo mutilar o paciente, se um bem
superior – a própria vida do enfermo – o exigir; 7. outro dado importante é que o médico sempre trabalha com
uma margem de risco, inerente ao seu ofício, circunstância que deverá ser preliminarmente avaliada e levada em
consideração; 8. nas intervenções médicas sem finalidade terapêutica ou curativa imediata – cirurgia plástica
estética propriamente dita, por exemplo –, a responsabilidade por dano deverá ser avaliada com muito maior
rigor.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013, p. 94/95).
349
“A obrigação de meio ou de diligência é aquela em que o devedor só é obrigado a empenhar-se para perseguir
um resultado, mesmo que este não seja alcançado. Aqueles que assumem obrigação de meio só respondem se
provada sua culpa genérica (dolo ou culpa estrita – imprudência, negligência ou imperícia). Por conseguinte,
haverá responsabilidade subjetiva daquele que assumiu tal obrigação.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil.
Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. Volume 2. 12ª ed. Editora Forense, p. 133).

168
pelo médico, uma vez que recai sobre ele a culpa, que somente pode ser afastada por
demonstração de causa diversa. Assim, o devedor obriga-se a realizar um determinado fato,
filiando-se a alcançar certo objetivo. Não existe culpa presumida do médico, por estar-se
diante de um contrato. Ao autor incumbe a prova de que o médico agiu com culpa350

O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que, se houver


uma obrigação de meio e de resultado ao mesmo tempo, chamada obrigação mista, deve haver
uma análise fracionada, com a finalidade de atribuição correspondente da responsabilidade
civil. Nesse sentido, tem-se o Informativo n.º 484 desta Corte. Outrossim, a relação que se
tem entre obrigação de resultado e responsabilidade objetiva encontra-se em debate no Direito
brasileiro.351

Ainda com relação aos procedimentos cirúrgicos de fins meramente estéticos,


como obrigação de resultado, o Superior Tribunal de Justiça manifestou-se no sentido de que
caracterizam verdadeira obrigação de resultado, uma vez que neles o cirurgião assume
verdadeiro compromisso pelo efeito embelezador prometido.352 O mesmo STJ tem decisões

350
“Por outra via, na obrigação de resultado ou de fim, a prestação sé é cumprida com a obtenção de um
resultado, geralmente oferecido pelo devedor previamente. Aqueles que assumem obrigação de resultado
respondem independentemente de culpa (responsabilidade civil objetiva) ou por culpa presumida, conforme já
entendiam doutrina e jurisprudência muito antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002. Assumem
obrigação de resultado o transportador, o médico cirurgião plástico estético e o dentista estético.” (TARTUCE,
Flávio. Direito Civil. Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. Volume 2. 12 ed. Editora Forense, p.
132 a 139).
351
“Responsabilidade civil. Médico. Cirurgia estética e reparadora. Na espécie, trata-se de ação de indenização
por danos morais e materiais ajuizada pela recorrida em desfavor dos recorrentes. É que a recorrida, portadora de
hipertrofia mamária bilateral foi submetida à cirurgia para redução dos seios – operação realizada no hospital e
pelo médico, recorrentes. Ocorre que, após a cirurgia, as mamas ficaram com tamanho desigual, com grosseiras e
visíveis cicatrizes, além de ter havido retração do mamilo direito. O acórdão recorrido deixa claro que, no caso, o
objetivo da cirurgia não era apenas livrar a paciente de incômodos físicos ligados à postura, mas também de
resolver problemas de autoestima relacionados à sua insatisfação com a aparência. Assim, cinge-se a lide a
determinar a extensão da obrigação do médico em cirurgia de natureza mista – estética e reparadora. Este
Superior Tribunal já se manifestou acerca da relação médico-paciente, concluindo tratar-se de obrigação de
meio, e não de resultado, salvo na hipótese de cirurgias estáticas. No entanto, no caso, trata-se de cirurgia de
natureza mista – estética e reparadora – em que a responsabilidade do médico não pode ser generalizada,
devendo ser analisado de forma fracionada, conforme cada finalidade da intervenção. Numa cirurgia assim, a
responsabilidade do médico será de resultado em relação à parte estética da intervenção e de meio em relação à
sua parte reparadora. A Turma, com essas outras considerações, negou provimento ao recurso.” (STJ, Resp
2.097.955/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 27.09.2011).
352
“Os procedimentos cirúrgicos de fins meramente estéticos caracterizam verdadeira obrigação de resultado,
pois neles o cirurgião assume verdadeiro compromisso pelo efeito embelezador prometido. Nas obrigações de
resultado, a responsabilidade do profissional da medicina permanece subjetiva. Cumpre ao médico, contudo,
demonstrar que os eventos danosos decorreram de fatores externos e alheios à sua atuação durante a cirurgia”
(STJ, Resp 1.180.815/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy NDRIGHI, J. 19.08.2010, djE 26.08.2010).

169
no sentido de que o médico possui culpa presumida ao assumir uma obrigação de resultado,
ou seja, posiciona-se na transição para a responsabilidade sem culpa.353

O que se verifica é que a jurisprudência ora se manifesta pela responsabilidade


objetiva, com ausência de comprovação de dolo ou culpa, bastando a comprovação da
conduta, do nexo causal e do dano; ora pela responsabilidade subjetiva (com a comprovação
da culpa em sentido estrito), conforme já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça, no
Informativo n.º 491.354

No sentido da responsabilidade do médico e do hospital, manifestou-se o


Superior Tribunal de Justiça, no que tange à atuação dos médicos contratados, que neles
trabalham, ser de natureza subjetiva, dependendo da comprovação de culpa, em sentido
estrito, do preposto.355

353
“Nos procedimentos cirúrgicos estéticos, a responsabilidade do médico é subjetiva com presunção de culpa.
Esse é o entendimento da Turma que, ao não conhecer do apelo especial, manteve a condenação do recorrente –
médico – pelos danos morais causados ao paciente. Inicialmente, destacou-se a vasta jurisprudência desta Corte
no sentido de que é de resultado a obrigação nas cirurgias estéticas, comprometendo-se o profissional com o
efeito embelezador prometido. Em seguida, sustentou-se que, conquanto a obrigação seja de resultado, a
responsabilidade do médico permanece subjetiva, com inversão do ônus da prova, cabendo-lhe comprovar que
os danos suportados pelo paciente advieram de fatores externos e alheios a sua atuação profissional. Vale dizer, a
presunção de culpa do cirurgião por insucesso na cirurgia plástica pode ser afastada mediante prova contundente
de ocorrência de fator imponderável, apto a eximi-lo do dever de indenizar. Considerou-se, ainda, que, apesar de
não estarem expressamente previstos no CDC o caso fortuito e a força maior, eles podem ser invocados como
causas excludentes de responsabilidade dos fornecedores de serviços. No caso, o tribunal a quo, amparado nos
elementos fático-probatórios contidos nos autos, concluiu que o paciente não foi advertido dos riscos da cirurgia
e também o médico não logrou êxito em provar a ocorrência do fortuito. Assim, rever os fundamentos do
acórdão recorrido importaria necessariamente no reexame de provas, o que é defeso nesta fase recursal ante a
incidência da Súm. n.º 7/STJ.” (REsp 985.888-SP, Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 16/2/2012, publicado
no Informativo n.º 491 do STJ).
354
“Nos procedimentos cirúrgicos estéticos, a responsabilidade do médico é subjetiva com presunção de culpa.
Esse entendimento da Turma que, ao não conhecer do apelo especial, manteve a condenação do recorrente –
médico – pelos danos morais causados ao paciente. Inicialmente, destacou-se a vasta jurisprudência desta Corte
no sentido de que é de resultado a obrigação nas cirurgias estéticas, comprometendo-se o profissional com o
efeito embelezador prometido. Em seguida, sustentou-se que, conquanto a obrigação seja de resultado, a
responsabilidade do médico permanece subjetiva, com inversão do ônus da prova, cabendo-lhe comprovar que
os danos suportados pelo paciente advieram de fatores externos e alheios a sua atuação profissional” (STJ, Resp
985.888/SP, Min. Luiz Felipe Salomão, j. 16.02.2012).
355
“Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial. Processual Civil. Negativa de prestação jurisdicional. Não
ocorrência. Responsabilidade civil. Serviços médico-hospitalares. Falha na prestação do serviço. Danos morais e
materiais. Conjunto fático-probatório. Reexame. Súmula n.º 7/STJ.
O acórdão impugnado pelo recurso especial foi publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015
(Enunciados Administrativos ns. 2 e 3/STJ)
Não há falar em negativa de prestação jurisdicional se o tribunal de origem motiva adequadamente sua decisão,
solucionando a controvérsia com a aplicação do direito que entende cabível à hipótese.
A jurisprudência desta Corte encontra-se consolidada no sentido de que a responsabilidade dos hospitais, no que
tange à atuação dos médicos contratados que neles trabalham, é subjetiva, dependendo da demonstração da culpa
do preposto.
A responsabilidade objetiva para o prestador do serviço prevista no artigo 14 do Código de Defesa do
Consumidor, no caso, o hospital, limita-se aos serviços relacionados ao estabelecimento empresarial, tais como

170
2.5.3 O conceito de dano

O dano é o prejuízo, o encerramento de uma situação que era favorável, tanto


pela força da natureza, quanto pelo trabalho do homem. O dano deve decorrer da
inobservância de uma norma legal. Não importa para a responsabilidade civil que a conduta
seja dolosa ou culposa, mas que tenha ocasionado um prejuízo a outrem. O dano é um
elemento da responsabilidade civil, que não pode existir sem ele.356

Vários problemas ocorrem envolvendo situações em que o paciente é levado a


um hospital, e este se recusa a recebê-lo, ou, ainda, tem seu atendimento demorado, vindo,
então, a óbito. Esses casos constituem falta por omissão, que levam à incriminação do
médico. Nesse contexto, a culpa é do hospital, do médico, ou dos dois? Caso não pertença ao
hospital, ou seja, não integre sua equipe, mas apenas se utilize dele, o médico, tem
responsabilidade pessoal. Caso integre a equipe hospitalar, ou tenha relação empregatícia, o
hospital responde civilmente.357

Para que exista a responsabilidade médico-hospitalar, deve haver um dano ao


paciente, o qual deve ser indenizável, por englobar qualquer espécie para fins de
responsabilidade civil. A doença do paciente, que o médico pretendia aliviar ou curar, pode se

estadia do paciente (internação e alimentação), as instalações, os equipamentos e os serviços auxiliares


(enfermagem, exames, radiologia). Precedentes.
No caso em apreço, comprovada a falha no diagnóstico médico e no tratamento da enfermidade da agravada, o
agravante responderá objetivamente pelos danos resultantes, na forma do artigo 14 do Código de Defesa do
Consumidor, a exemplo da realização de exames e do tempo de internação alegadamente desnecessários.
A comprovação da culpa do médico atrai a responsabilidade do hospital embasada no artigo 932, inciso III, do
Código Civil, mas permite ação de regresso contra o causador do dano.
Alterar as conclusões do tribunal de origem para excluir a responsabilidade do ora agravante e afastar a
ocorrência dos danos morais e materiais suportados pela agravada demandaria a análise das circunstâncias
fático-probatórias, procedimento inviável em recurso especial, haja vista o óbice da Súmula n.º 7/STJ.
Agravo interno não provido.”
356
“De Cupis conceitua dano como prejuízo, aniquilamento ou alteração de uma condição favorável, tanto pela
força da natureza quanto pelo trabalho do homem. Acrescenta que o conceito de dano, sob qualquer aspecto, é
deveras amplo. Entretanto, pela facilidade com que se apresenta à observação, é objeto de senso comum. Para
que o dano seja um fenômeno juridicamente qualificado, deve decorrer da inobservância de uma norma. Ataz
Lopez afirma não bastar para a existência da responsabilidade civil que uma ação ou omissão sejam qualificadas
como culposas – é indispensável que a imprudência, a imperícia ou a negligência tenham causado dano a outrem.
O dano revela-se, assim, elemento constitutivo da responsabilidade civil, que não pode existir sem ele – caso
contrário nada haveria a reparar.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2013, p. 124).
357
“Esta questão suscita outra ainda, a saber, se a culpa é do hospital, ou do médico, ou de ambos. Se o médico
não pertence ao hospital, e apenas se utiliza dele, a responsabilidade é pessoal. Em caso contrário, sendo o
médico integrante da equipe hospitalar ou vinculado por uma relação de emprego, o hospital é civilmente
responsável na forma do direito comum. O julgador deverá investigar se há alguma forma de subordinação entre
o médico e o hospital, p. ex., se há a participação de enfermeiros do próprio hospital, na realização de um
procedimento cirúrgico, ou se o médico mantém consultório no próprio hospital em que foi realizada a cirurgia.”
(PEREIRA, Caio Mário da Silva; TEPEDINO, Gustavo. Responsabilidade Civil. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
2018, p. 195).

171
agravar, tornando-se um dano físico, o qual é relevante, pois a atividade médica é exercida
sobre o corpo humano. Há outros danos de ordem material ou moral. Para que haja
indenização, é indispensável que o agente cause dano a outrem, sendo este componente da
responsabilidade civil, que não pode existir sem ele. 358

Dessa forma, os danos médicos podem ser físicos (ou corporais), materiais (ou
patrimoniais) ou morais. Na área cível, para a fixação do valor do dano, tem relevância a
extensão dos danos, sua localização, a possibilidade de sua remoção, completa ou parcial, as
características pessoais da vítima, as restrições pessoais que derivam da lesão. Danos
patrimoniais ou materiais são prejuízos, perdas que atingem o patrimônio corpóreo de um
indivíduo, ou ainda de uma pessoa jurídica ou ente despersonalizado. O dano há de ser
provado, não bastando meras hipóteses. A expressão “danos materiais” leva à caracterização
do ressarcimento.359 360

Os danos materiais, chamados patrimoniais, normalmente decorrem dos


físicos, como os lucros cessantes, as despesas médico-hospitalares, os medicamentos, dentre
outros. Os danos morais incluem os estéticos, a dor sofrida, o profundo mal-estar quando os
abalos são causados na esfera das relações sexuais, dentre tantas situações vinculadas aos
direitos da personalidade.361

358
“Para que tenha origem a responsabilidade médico-hospitalar – enfatiza Costales –, deve existir um dano ao
paciente, de qualquer tipo ou espécie: lesão a um direito (à vida, à integridade física, à saúde), lesão de um
interesse legítimo, danos patrimoniais ou danos morais. Destarte, os danos médicos indenizáveis podem abranger
qualquer tipo, admitido geralmente para qualquer modalidade de responsabilidade civil. Adquirem relevância,
evidentemente, os danos físicos, visto que a atividade médica se exerce sobre o corpo humano, nos diversos
aspectos contemplados pelo tratamento médico-cirúrgico.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do
médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 124).
359
“Os danos patrimoniais ou materiais constituem prejuízos, perdas que atingem o patrimônio corpóreo de uma
pessoa natural, pessoa jurídica ou ente despersonalizado. Conforme entendimento jurisprudencial, não cabe
reparação de dano hipotético ou eventual, necessitando tais danos de prova efetiva. (…) Quando se fala em
danos materiais, a doutrina prefere utilizar a expressão ressarcimento. De qualquer forma, não há problemas em
se adotar também o termo reparação para os danos materiais. O que não é recomendável é a expressão
ressarcimento para os danos morais. Para os últimos, é melhor o uso do termo reparação.” (TARTUCE, Flávio.
Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 1, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p.
570/571).
360
“Os danos médicos, portanto, podem ser físicos (ou corporais), materiais ou morais. Os danos físicos,
dizíamos, assumem maior relevância, e o prejuízo corporal se compõe de elementos variáveis, indenizáveis
separadamente, conforme a invalidez, por exemplo, seja parcial ou total, permanente ou temporária. Também o
estado patológico do doente, que este pretendia aliviar ou curar, pode resultar agravado ou crônico, configurando
dano físico.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013, p. 124).
361
“Os danos materiais (ou patrimoniais), em sua maioria, são consequências dos danos físicos: lucros cessantes,
despesas médico-hospitalares, medicamentos, viagens, contratação de enfermeiros etc. No pertinente aos danos
de índole patrimonial, sobrevindo morte, privam-se os beneficiários da renda auferida pelo falecido, e até surge
dano igualmente indenizável. Quanto aos danos morais, incluem os danos estéticos, a dor sofrida, o profundo

172
Quando se fala em danos materiais, pode-se falar em danos emergentes ou
danos positivos, que constituem a efetiva diminuição do patrimônio da vítima, isto é, um dano
pretérito por ela suportado, o que efetivamente a vítima perdeu. Há, ainda, os lucros cessantes
ou danos negativos, os quais se caracterizam como valores que o prejudicado deixa de
receber, ou seja, aquilo que deixou de lucrar.362

O médico responde, não somente por fato próprio, mas também pode vir a
responder por fato praticado por terceiro que esteja sob suas ordens. Além disso, não se exige
que a culpa do médico seja grave para que ele tenha o dever de indenizar. A culpa torna-se
mais severa no caso de médicos especialistas, os quais devem ter um grau especial de
habilidade e cuidado.363

O contrato médico integra o gênero contrato de prestação de serviços, e o seu


conteúdo atende a uma especialidade própria da atividade humana, não havendo o dever de
curar o paciente. Com isso, concorrem elementos e fatores que distinguem a culpa dos
médicos da exigida para responsabilizar integrantes de outras profissões. A obrigação
principal é o atendimento adequado do paciente e a observação de vários deveres específicos.
O dever geral de cautela e o saber profissional integram o dever de bom atendimento,
exigindo-se, assim, do médico um empenho maior do que o de outros profissionais.364

mal-estar advindo de abalos causados à esfera das relações sexuais, a frustração pelo abrupto afastamento da
atividade profissional (uma bailarina, por exemplo, lesada em membro inferior, por cirurgia desastrada), e
infinidade de outras situações, sobretudo vinculadas aos direitos da personalidade.” (NETO, Miguel Kfouri. A
responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 125).
362
“Nunca se pode esquecer da importante classificação do dano material, constante do art. 402 do Código Civil
de 2002. Primeiramente, há os danos emergentes ou danos positivos, constituídos pela efetiva diminuição do
patrimônio da vítima, ou seja, um dano pretérito suportado pelo prejudicado – o que efetivamente se perdeu.
Como exemplo típico, pode ser citado o estrago do automóvel, no caso de um acidente de trânsito. Em reforço à
ilustração, é de se lembrar o que consta do art. 948, I, do CC, para os casos de homicídio. Em situações tais,
devem os familiares da vítima ser reembolsados quanto ao pagamento das despesas com o tratamento do morto,
seu funeral e o luto da família. Sem dúvidas que, nesse caso, merece aplicação o princípio da razoabilidade no
pedido de tais valores. Além dos danos emergentes, há os lucros cessantes ou danos negativos, valores que o
prejudicado deixa de receber, de auferir, ou seja, uma frustração de lucro – o que razoavelmente se deixou de
lucrar. No caso de acidente de trânsito, poderá pleitear lucros cessantes o taxista que deixou de receber valores
com tal evento.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 2, 14ª
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 571/572).
363
“O médico responde não só por fato próprio como pode vir a responder por fato danoso praticado por
terceiros que estejam diretamente sob suas ordens. Assim, por exemplo, presume-se a culpa do médico que
mandou sua enfermeira aplicar determinada injeção da qual resultou paralisia no braço do cliente. Convém
lembrar que não se exige que a culpa do médico seja grave, para responsabilizá-lo. Esta severidade é ainda maior
no tocante aos médicos especialistas.” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 4, 7ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 185).
364
“Embora o contrato médico integre o gênero ‘contrato de prestação de serviços’, o seu conteúdo atende à
especialidade própria a esse campo da atividade humana, não se confundindo com qualquer outro ajuste de
prestação de serviços, até porque não há o dever de curar o paciente. Por isso, concorrem elementos e fatores que

173
A relação hospital-paciente possui natureza contratual, uma vez que sua
configuração decorre da formação de um contrato, seja expresso ou tácito, de prestação de
serviços hospitalares ou contrato hospitalar. Caso haja descumprimento contratual, haverá
consequências jurídicas, as quais devem ser solucionadas pela responsabilidade por danos
contratuais. O contrato hospitalar desenvolve papel importante na área de serviços na saúde.
A atividade hospitalar possui, juntamente com a atividade médica, importante papel de
preservar, restaurar e manter a saúde humana.365

É possível que o médico pratique atividade de forma autônoma, sendo


considerado profissional liberal, nos termos do artigo 1º, § 2º, do Estatuto da Confederação
Nacional das Profissões Liberais.366 Este médico tem que preencher os seguintes requisitos:
desenvolver atividade específica de serviços, de modo permanente, com graduação
reconhecida socialmente, fiscalizada pelo Estado e pelo Conselho Regional de Medicina, com
confiança do paciente, sem vínculo de subordinação com o paciente ou com terceiro e com
liberdade de atuação.367

Na atividade médica autônoma, tem-se uma relação de natureza contratual


(expressa ou tácita) e, de forma excepcional, extracontratual, de médico e paciente. A relação

distinguem a culpa dos médicos da exigida para responsabilizar integrantes de outras profissões. A obrigação
principal consiste no atendimento adequado do paciente e na observação de inúmeros deveres específicos. O
dever geral de cautela e o saber profissional próprios do médico caracterizam o dever geral de bom atendimento.
Dele se exige, principalmente, um empenho superior ao de outros profissionais.” (GONÇALVES, Carlos
Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 4, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 185).
365
“A relação hospital-paciente possui natureza contratual, já que sua configuração decorre da formação de
contrato (expresso ou tácito) de prestação de serviços hospitalares ou contrato hospitalar. Por conseguinte, o
incumprimento do contrato hospitalar gera consequências jurídicas a serem dirimidas pelo campo da
responsabilidade por danos contratuais. O contrato hospitalar, embora não seja revestido das mesmas
características do contrato médico, desenvolve, igualmente, importante papel na prestação de serviços na área de
saúde. Isso porque, embora não se trate especificamente do mesmo exercício técnico-procedimental, a atividade
hospitalar possui, ao lado da atividade médica, crucial tarefa de preservar, de restaurar e de manter a saúde
humana, quando isso seja possível diante da condição clínica de cada paciente.” (FROTA, Pablo Malheiros da
Cunha; COSTA, José Pedro Brito da. Responsabilidade Hospitalar pela atividade médica autônoma: uma
questão de coligação contratual. /revista IBERC, v. 1, n. 1, p. 01-47, nov-fev/2019). Disponível em:
www.responsabilidadecivil.org.be/revista.iberc. Acesso em 04/mar/2019.
366
“Para fins do disposto no caput deste artigo, considera-se profissional liberal aquele legalmente habilitado a
prestar serviços de natureza técnico-científica de cunho profissional com a liberdade de execução que lhe é
assegurada pelos princípios normativos de sua profissão, independentemente do vínculo da prestação de
serviço.” (Estatuto da CNPL). Disponível em http://www.cnpl.org.br/new/images/arquivospdf/estatuto.pdf.
Acesso em 12 março 2019.
367
“Como visto, o(a) médico(a) que pratica atividade autônoma preenche os requisitos acima, porque:
desenvolve, de forma permanente, atividade específica de serviços, regulamentada em lei, com graduação
universitária, reconhecida socialmente, fiscalizada pelo Estado e pelo Conselho Federal e Regional de Medicina,
com a confiança do(a) paciente, sem vínculo de subordinação com o paciente ou com terceiro, possuindo,
portanto, liberdade técnica e de atuação.” (FROTA, Pablo Malheiros da Cunha; COSTA, José Pedro Brito da.
Responsabilidade Hospitalar pela atividade médica autônoma: uma questão de coligação contratual. /revista
IBERC, v. 1, n. 1, p. 01-47, nov-fev/2019). Disponível em: www.responsabilidadecivil.org.be/revista.iberc.
Acesso em 04/mar/2019.

174
entre médico e paciente é regida pelo Código de Defesa do Consumidor. O paciente é
vulnerável com relação ao médico. Porém, discute-se acerca da real aplicabilidade do Código
do Consumidor à relação médico-paciente, uma vez que a atividade médica é específica, além
do que se deve verificar a forma de valorar a responsabilidade do profissional em relação aos
danos suportados pelo paciente.368

A relação jurídica consumerista decorre de atividade, ambiente, sujeitos,


função, vínculos, objeto, causa, princípios e regras independentes, sem que possam ser
verificados de maneira isolada, não tendo sido definida pelo Código de Defesa do
Consumidor.369 É de natureza consumerista a relação paciente-hospital, sendo relevante tornar
claros os elementos dessa relação jurídica. Assim, quem contrata com o médico e/ou com o
hospital é consumidor e destinatário final fático e econômico do serviço que adquire, nos
termos do que dispõe o artigo 2º, caput, do CDC. Com relação à pessoa humana como
consumidora, acolhe-se a teoria conglobante do consumidor.370

368
“Desse modo, a atividade médica autônoma encerra uma relação médico-paciente de natureza contratual
(expressa ou tácita) e, excepcionalmente, extracontratual. Outrossim, entende-se que a relação médico-paciente é
tipicamente consumerista, e, portanto, submetida aos ditames postos no CDC. O paciente (consumidor) apresenta
vulnerabilidade em relação ao(à) médico(a). A vulnerabilidade não é elemento da relação de consumo, mas, de
outro modo, serve para qualificar o sentido de consumidor.” (FROTA, Pablo Malheiros da Cunha; COSTA, José
Pedro Brito da. Responsabilidade Hospitalar pela atividade médica autônoma: uma questão de coligação
contratual. /revista IBERC, v. 1, n. 1, p. 01-47, nov-fev/2019). Disponível em:
www.responsabilidadecivil.org.be/revista.iberc. Acesso em 04/03/2019.
369
“A relação jurídica de consumo não se concentra na conduta da parte ou mesmo em quem emite a declaração
de vontade. Decorre da atividade, do ambiente, dos sujeitos, da função, dos vínculos, do objeto, da causa, de
princípios e de regras interdependentes, sem que possam ser tomados de maneira isolada. A dificuldade aumenta
quando se constata que seu suporte fático advém de relações jurídicas contratuais, extracontratuais ou de
relações com origem noutra conduta negocial típica gerando uma ou várias relações ou situações jurídicas.
Talvez por isso, o Código de Defesa do Consumidor não tenha definido o que seja uma relação jurídica de
consumo.” (CATALAN, Marcos; MALHEIROS DA CUNHA FROTA, Pablo. A pessoa coletiva consumidora
no Código de Defesa do Consumidor). Disponível em: revistaeletronica.oabrj.org.br. Acesso em 05/03/2019.
370
“A relação paciente-hospital é de natureza consumerista, sendo relevante deixar clara a configuração dos
elementos dessa relação jurídica. A relação de consumo não se concentra no comportamento do agente ou
mesmo em quem emite a declaração de vontade. Tal relação se caracteriza pela atividade, pelo ambiente, pelos
sujeitos (consumidor(a) fornecedor(a)), pela percepção, abstrata e concreta, do poder dominante do fornecedor
em relação ao(à) consumidor(a) (assimetria caracterizadora da vulnerabilidade da parte consumidora), pela
função (contributo que a relação de consumo confere aos participantes e aos terceiros e à sociedade – a que serve
e a quem serve – econômica, socioambiental, programática e regulatória), pelos vínculos (contato social,
negocial ou extranegocial), pelo objeto (atividade desenvolvida pelo(a) fornecedor(a)), pela causa (razão da
utilização do bem e (ou) do serviço), pelos princípios e das regras postas ao mercado de consumo ‘– sin el cual
no habrá incidência dela CDC, aunque se presenten los otros pressupuestos.’As características da relação de
consumo no presente tema são assim esmiuçadas: (a) quem contrata com o médico e(ou) com o hospital é
consumidor(a) destinatário(a) final fático e econômico do serviço que adquire (CDC, 2º, caput). Diante das
diversas teorias existentes para qualificar a pessoa humana como consumidora, acolhe-se a teoria conglobante
do(a) consumidor(a).” (FROTA, Pablo Malheiros da Cunha; COSTA, José Pedro Brito da. Responsabilidade
Hospitalar pela atividade médica autônoma: uma questão de coligação contratual. /revista IBERC, v. 1, n. 1, p.
01-47, nov-fev/2019). Disponível em: www.responsabilidadecivil.org.be/revista.iberc. Acesso em 04/mar/2019.

175
A relação de consumo pode ser conceituada como o nexo que se estabelece
entre o fornecedor e o consumidor. Além disso, pode ser entendida sob o aspecto da
complexidade, uma vez que possui uma pluralidade de direitos, deveres, poderes, ônus e
faculdades que se relacionam. É uma relação de natureza obrigacional com três categorias de
deveres, quais sejam, os primários, secundários e laterais. Os primários são a própria
obrigação; os secundários são prestações relacionadas à obrigação; e os anexos correspondem
a deveres de conduta, obrigações que se traduzem em deveres de cooperação com a outra
parte.371

O dever de informar, constante no artigo 6º, inciso III, do Código de Defesa do


Consumidor, relaciona-se ao princípio da transparência e obriga o fornecedor a prestar todas
as informações quanto ao produto e ao serviço, sendo necessário o fornecimento de
informações corretas, claras, precisas e ostensivas sobre os serviços, e os riscos que possam
causar à saúde e à segurança dos consumidores.

O médico tem o dever de se manter informado sobre o progresso da ciência,


acerca da composição e as propriedades dos medicamentos que administra em seus pacientes,
bem como sobre as condições particulares de cada um, realizando a mais completa anamnese.
Há, ainda, o dever de informar, bem como orientar o paciente e seus familiares a respeito dos
riscos existentes quanto aos medicamentos e tratamento indicados.372

O Código de Defesa do Consumidor promove a igualdade real entre


consumidores e fornecedores, em especial porque o consumidor não pode ser tomado como

371
“Em linhas gerais, relação de consumo pode ser definida como o vínculo que une o fornecedor e o
consumidor. Porém, ao mesmo tempo pode ser entendida sob o âmbito da complexidade, sendo analisada através
das diversas perspectivas da pluralidade de direitos, deveres, poderes, ônus e faculdades que nela entrelaçam.
Ademais, a relação de consumo será sempre entendida como uma relação obrigacional complexa, no qual podem
incidir três categorias de deveres: primários, secundários e laterais ou anexos. Os primários caracterizam a
obrigação, os secundários são prestações que estão diretamente ligadas com a obrigação e os anexos,
correspondem a deveres de conduta, obrigações que se traduzem em deveres de cooperação com a contraparte.”
(SILVA, Rômulo Ruan Santos; VIEIRA, Victória Andrade. A realizabilidade do direito à saúde através do
Código de Defesa do Consumidor: Uma análise dos planos de saúde. Disponível em: Direito do consumidor
aplicado ao direito à saúde: análise de julgados. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feria de Santana,
2017. Ebook ISBN:978-85-7395-274-2, p. 16).
372
“O dever de informar, previsto no art. 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor, está ligado ao princípio da
transparência e obriga o fornecedor a prestar todas as informações acerca do produto e do serviço. Esse princípio
é detalhado no art. 31, que enfatiza a necessidade de serem fornecidas informações corretas, claras, precisas e
ostensivas sobre os serviços, ‘bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e à segurança dos
consumidores’. O aludido dever abrange o de se informar o médico acerca do progresso da ciência e sobre a
composição e as propriedades das drogas que administra, bem como sobre as condições particulares do paciente,
realizando, o mais perfeitamente possível, a completa anamnese. Integra ainda o grupo dos deveres de
informação o de orientar o paciente ou seus familiares a respeito dos riscos existentes, no tocante ao tratamento e
aos medicamentos a serem indicados.” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 4, 7ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 185/186).

176
um “modelo jurídico”. Os pressupostos da relação de consumo são os seguintes: a) os sujeitos
(consumidores e fornecedores); b) o objeto (atividade de fornecer bens e/ou serviços); c) a
causa (a finalidade de usar bens e/ou serviços como destinatário final); d) o vínculo
acobertado pelo direito; e) a função do bem e/ou serviço; f) o mercado de consumo.373

Entende-se por fornecedor a pessoa humana, o ente coletivo ou


despersonalizado que exerce, direta ou indiretamente, atividade remunerada, típica e
profissional de produção, criação, montagem, transformação, importação, exportação,
distribuição ou comercialização de produtos e serviços. Entende-se por fornecedor mediato
aquele que não celebrou o contrato, mas integra o ciclo produtivo; e imediato, aquele que
comercializa o bem e/ou serviço no mercado de consumo. Ainda existe o fornecedor: a) real,
que é o fabricante, construtor ou produtor; b) aparente, o detentor do nome, marca ou signo
colocado no bem e/ou serviço; ou c) presumido, isto é, o importador e comerciante de bem
autônomo.374

Desse modo, o indivíduo que adquire serviços hospitalares e serviços médicos,


este último em atividade autônoma, é destinatário final fático e econômico no mercado de
consumo. A pessoa humana ou coletiva, consumidora, é dotada de vulnerabilidade, a qual
pode ser entendida como permanente ou provisória, coletiva ou individual, mas que, seja

373
“Sob outro vértice, parece evidente que o Código de Defesa do Consumidor tem força para promover a
igualdade (diferenciação ou não em termos comparados com situações semelhantes) real entre consumidores e
fornecedores, especialmente, porque, o consumidor não pode ser tomado como um standard jurídico. Saliente-se
que os significados trazidos nos arts. 2º, 3º, 17 e 29 do referido códex possuem enunciados normativos abertos
ou inconclusos, a tornar a análise do caso concreto de suma importância para saber se balizará (ou não) a solução
do problema. Extraem-se os pressupostos da relação de consumo: (a) sujeitos (consumidores e fornecedores), (b)
objeto (atividade de fornecimento de bens e/ou serviços), (c) causa (a finalidade de utilização do bem e/ou
serviço como destinatário final), (d) vínculo acobertado pelo direito, (e) função (socioambiental do bem e/ou
serviço fornecido e utilizado pelos citados sujeitos), (f) mercado de consumo (sem o qual não haverá incidência
do CDC, mesmo havendo a presença dos outros pressupostos).” (CATALAN, Marcos; MALHEIROS DA
CUNHA FROTA, Pablo. A pessoa coletiva consumidora no Código de Defesa do Consumidor). Disponível em:
revistaeletronica.oabrj.org.br. Acesso em 05/mar/2019.
374
“O fornecedor é a pessoa humana, o ente coletivo ou despersonalizado que exerce atividade remunerada,
diretamente ou indiretamente, típica e profissional de produção, de montagem, de criação, de construção, de
transformação, de importação, de exportação, de distribuição ou de comercialização de serviços e/ou bens no
mercado de consumo. Como se percebe, são todos os participantes do ciclo produtivo que estejam inseridos no
mercado de consumo. Existe o fornecedor mediato – aquele que não celebrou contrato, mas integra o ciclo
produtivo – e o fornecedor imediato, quem comercializa o bem e/ou serviço no mercado de consumo, mesmo
que por meio de mandatário, preposto ou empregado. Noutro vértice, pode se pensar o fornecedor (a) real
(fabricante, produtor, construtor), (b) aparente (detentor do nome, da marca ou signo colocado no bem e/ou
serviço) ou (c) presumido (importador e comerciante de bem autônomo).” (CATALAN, Marcos; MALHEIROS
DA CUNHA FROTA, Pablo. A pessoa coletiva consumidora no Código de Defesa do Consumidor). Disponível
em revistaeletronica.oabrj.org.br. Acesso em 05/mar/2019.

177
como for, fragiliza a pessoa, e desequilibra a relação de consumo, caracterizando-se como
uma necessidade de proteção.375

Na hipótese de ter o médico vínculo empregatício com hospital e integrar sua


equipe médica, a casa de saúde terá responsabilidade objetiva, como prestadora de serviços,
nos termos do que dispõe o artigo 14, caput, do Código de Defesa do Consumidor, desde que
provada a culpa do médico. Porém, caso o profissional de saúde use apenas o hospital para
internar seus pacientes particulares, responderá de forma exclusiva por seus erros, não
havendo responsabilidade do estabelecimento.376

Assim, o primeiro aspecto a se considerar para definir o consumidor é a


vulnerabilidade, entendida como uma fragilidade de todas as pessoas (tutela geral da
dignidade humana) em uma situação de desigualdade. Nesse contexto, é possível que a pessoa
coletiva seja vulnerável. A vulnerabilidade reflete uma situação de inferioridade especial de
grupos sociais (como pessoas de idade avançada, crianças, consumidores com a saúde
debilitada, dentre outros).377

Pode-se elencar, a título exemplificativo, quatro espécies de vulnerabilidade,


quais sejam: a) informacional, que é básica do consumidor, caracterizado por seu déficit
informacional. Essa modalidade é a que mais justifica a proteção do consumidor, pois a

375
“Nesse passo, a pessoa humana que adquire serviços hospitalares e médicos, com o(a) médico(a) em atividade
autônoma, é qualificada como destinatária final fática e econômica no mercado de consumo, na forma do art. 2º,
caput, do CDC. A característica genética que configura a pessoa humana ou coletiva como consumidora é a
vulnerabilidade, entendida como ‘uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza,
enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação de consumo. Vulnerabilidade é uma característica, um
estado do sujeito mais fraco, um sinal de necessidade de proteção’.” (FROTA, Pablo Malheiros da Cunha;
COSTA, José Pedro Brito da, Responsabilidade Hospitalar pela atividade médica autônoma: uma questão de
coligação contratual. /revista IBERC, v. 1, n. 1, p. 01-47, nov-fev/2019). Disponível em:
www.responsabilidadecivil.org.be/revista.iberc. Acesso em 04/mar/2019.
376
“Se o médico tem vínculo empregatício com o hospital, integrando a sua equipe médica, responde
objetivamente a casa de saúde, como prestadora de serviços, nos termos do art. 14, caput, do Código de Defesa
do Consumidor, provada a culpa daquele. No entanto, se o profissional apenas utiliza o hospital para internar os
seus pacientes particulares, responde com exclusividade pelos seus erros, afastada a responsabilidade do
estabelecimento. Estão também sujeitos à disciplina do referido Código, com responsabilidade objetiva e de
resultado, os laboratórios de análises clínicas, bancos de sangue e centros de exames radiológicos, como
prestadores de serviços. Não se tem, todavia, admitido a denunciação da lide ao estabelecimento hospitalar.”
(GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 4, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 191).
377
“El primer aspecto a ser considerado para definir quién es consumidor es la vulnerabilidad, aunque no sea un
elemento de la relación jurídica de consumo, sino un aspecto cualitativo del concepto de consumidor. La
vulnerabilidad (Calixto, 2006, p. 315) significa la fragilidad de todos los seres humanos (tutela general de la
dignidad de la persona humana) que hace necesaria la tutela específica concreta para la protección en el ámbito
de una situación desigual, a causa de determinadas contingencias (Barboza, 2008, p. 420). En tal contexto, es
posible que la persona colectiva sea vulnerable.” (CATALAN, Marcos; MALHEIROS DA CUNHA FROTA,
Pablo. Aportes para la comprensión de la arquitectura jurídica de la relación de consumo em el derecho
brasileiro. Derecho PUCP, v. 80, p. 391-423, 2018, p. 397). Disponível em:
http://revistas.pucp.edu.pe/index.php/derechopucp/article/view/19961 Acesso em 04/mar/2019.

178
informação inadequada sobre os produtos e os serviços é geradora de danos. Essa
vulnerabilidade resulta do avanço tecnológico, da evolução de comunicação e da publicidade
da atualidade; b) técnica, uma vez que o consumidor não detém conhecimentos técnicos
capazes de medir os riscos da relação de consumo, sendo mais facilmente enganado quanto às
características da coisa ou quanto à sua utilidade, e em relação aos serviços prestados; c)
científica ou jurídica, a qual existe quando o consumidor não tem conhecimento jurídico,
contábil ou econômico, ou seja, lhe faltam conhecimentos jurídicos específicos, sendo ela
presumida para o consumidor não profissional e pessoa física, enquanto que para as pessoas
jurídicas e para os profissionais há a presunção em contrário; d) fática ou socioeconômica, na
qual se verifica grande poderio econômico do fornecedor, o qual pode exercer superioridade,
prejudicando os consumidores. Essa vulnerabilidade se presume em relação ao consumidor
não profissional, mas deve ser provada relativamente à pessoa coletiva ou profissional.378 379

378
“A literatura jurídica elenca, de forma exemplificativa, quatro espécies de vulnerabilidade: (i) informacional,
‘básica do consumidor, intrínseca e característica deste papel na sociedade’. Isso porque ‘o que caracteriza o
consumidor é justamente seu déficit informacional’. Esta é a modalidade que mais justifica a proteção do
consumidor, porque a informação inadequada sobre produtos e serviços é potencial geradora de incontáveis
danos; (ii) técnica, na qual, ‘o comprador não possui conhecimentos específicos sobre o objeto que está
adquirindo e, portanto, é mais facilmente enganado quanto às características do bem ou quanto à sua utilidade, o
mesmo ocorrendo em matéria de serviços’; (iii) jurídica ou científica, que consiste na ‘falta de conhecimentos
jurídicos específicos, conhecimentos de contabilidade ou de economia’. Esta é ‘presumida para o(a)
consumidor(a) não profissional e para o consumidor pessoa física’, enquanto que, ‘quanto aos profissionais e às
pessoas jurídicas, vale a presunção em contrário’; (iv) fática ou socioeconômica é aquela na qual se vislumbra
grande poderio econômico do fornecedor, em virtude do qual (o poderio) ele (o fornecedor) pode exercer
superioridade, prejudicando os consumidores.” (FROTA, Pablo Malheiros da Cunha; COSTA, José Pedro Brito
da. Responsabilidade Hospitalar pela atividade médica autônoma: uma questão de coligação contratual.
/revista IBERC, v. 1, n. 1, p. 01-47, nov-fev/2019). Disponível em:
www.responsabilidadecivil.org.be/revista.iberc. Acesso em 04/mar/2019.
379
“La vulnerabilidad específica refleja la situación de inferioridad especial de grupos sociales (personas de edad
avanzada, niños, desempleados, consumidores con salud debilitada). Puede ser técnica, fáctica, jurídica, relativa
a la información, ambiental, especial (Moraes, 1999, pp. 161-174)31 y cualquier otra que surja en la sociedad
contemporánea frente al proveedor de bienes y/o servicios (Agipliquigás S/A v. Gracher Hotéis e Turismo Ltda).
La vulnerabilidad es considerada de presunción absoluta en una relación de consumo por la mayoría de la
doctrina (Miragem, 2008, p. 61). Ello explica la protección dada por el Código de Defensa del Consumidor al
consumidor, con el objetivo de compensar la relación jurídica desigual existente entre las partes (Marques, 2005,
pp. 269-270, 314-326), incluso con la inversión de la carga de la prueba cuando sea necesario (CDC, artículo 6,
VIII). La presencia en un caso concreto de una de las vulnerabilidades, junto con los demás requisitos, definirá
que la relación trabada entre las partes sea de consumo. El consumidor será vulnerable a partir de la
concretización de elementos subjetivos, objetivos y funcionales que forman el sentido de consumidor stricto
sensu. La vulnerabilidad técnica es aquella en la que el consumidor no cuenta con el conocimiento técnico capaz
de medir la calidad, los medios empleados y el riesgo de los bienes de la relación de consumo. Esta
vulnerabilidad se presume, para gran parte de la literatura jurídica, en relación con el consumidor no profesional
y con el profesional, siempre y cuando su actividad no sea compatible con el bien o con el servicio adquirido
(Marques, 2005, p. 270). Un ejemplo es el caso de un médico que compra una computadora. Normalmente, no
tendrá el conocimiento técnico necesario para saber si lo que compra realmente satisface sus necesidades, y
depende de las informaciones y de la confianza depositada en el proveedor. Otro ejemplo es el del ayuntamiento
en relación con el servicio de telefonía (Telemar Norte Leste S/A v. Município de Itamogi). La vulnerabilidad
jurídica o científica existe cuando el consumidor no posee conocimiento jurídico, contable o económico del
objeto de la relación de consumo. Ella se presume, para la mayoría de la doctrina, de forma absoluta en relación
con el consumidor no profesional y de forma relativa para los demás consumidores, ya que estos últimos poseen

179
Na relação jurídica analisada, ou seja, a médica, as vulnerabilidades técnicas e
informacionais são as mais explícitas, pois o hospital e o médico têm o domínio técnico da
estrutura hospitalar e da atividade médica. Assim, a presença de uma das vulnerabilidades
acima, com os requisitos da já referida teoria conglobante, caracterizam a pessoa humana
como consumidora.380

Na teoria conglobante, para ser considerada consumidora de forma


excepcional, a pessoa coletiva precisa: que tenha adquirido ou utilizado bem e/ou serviços de
consumo, fora de sua atividade profissional; que exista uma vulnerabilidade concreta e em
sentido amplo; que exista uma destinação fática e econômica; que não haja intermediação.381

A teoria conglobante abarca a análise integral dos pressupostos da relação de


consumo, quais sejam sujeitos, objeto, causa, vínculo, função, mercado de consumo, assim

un conocimiento mínimo acerca del bien y/o servicio ofrecido en el mercado de consumo o pueden alcanzarlo
(Morato, 2008, pp. 32-33, 111-143). La vulnerabilidad fáctica o económica se presenta en el momento en el que
el consumidor se enfrenta a una superioridad económica o, incluso, ante el monopolio de determinada actividad
por parte del proveedor. Esta forma de vulnerabilidad es presumible, para la mayor parte de la doctrina, en
relación con el consumidor no profesional, pero debe ser probada en relación con la persona colectiva o
profesional (AC 2003.001.11632). La vulnerabilidad informacional (Marques, 2005, p. 330) se refiere a la
indiscutible ausencia de informaciones necesarias, adecuadas y claras disponibles a los consumidores en el
momento en el que adquieren bienes y servicios en el mercado de consumo. Esta vulnerabilidad es resultado del
avance tecnológico, del aluvión comunicacional y de la publicidad inductora al consumo que existe en la
contemporaneidad (desde el final de la década de 1960 hasta los días actuales) (Miragem, 2008, p. 64). La
vulnerabilidad ambiental apunta al desconocimiento por parte del consumidor de los daños ambientales causados
por diversos bienes y servicios colocados en el mercado de consumo por el proveedor, con la garantía de que
tales bienes son benéficos para la salud, la seguridad, la vida y el medio ambiente (Moraes, 1991, pp. 161-174).
La vulnerabilidad especial —para algunos, hipo-suficiencia (como ocurre en los casos de consumidores de edad
avanzada (Constitución Federal de Brasil (CF/88); ley 10741/2003; CDC, artículos 30, 35, 39, IV, 46, 51), niños
y adolescentes (CF/88, artículo 227; ley 8.069/1990; CDC, artículo 37, IV, § 2), analfabetos, los que poseen una
salud debilitada) – se articula de acuerdo con el principio de dignidad de la persona humana (STJ. RESP 86.095;
sobre el sentido de dignidad de la persona humana, véase Cleve & Pianovski Ruzyk).” (CATALAN, Marcos;
MALHEIROS DA CUNHA FROTA, Pablo. Aportes para la comprensión de la arquitectura jurídica de la
relación de consumo em el derecho brasileiro. Derecho PUCP, v. 80, p. 391-423, 2018, p. 397). Disponível em:
http://revistas.pucp.edu.pe/index.php/derechopucp/article/view/19961. Acesso em 04/mar/2019.
380
“Na presente relação jurídica, as vulnerabilidades técnicas e informacionais são as mais explícitas, uma vez
que o hospital e o(a) médico(a) possuem o domínio técnico acerca da estrutura hospitalar e da atividade médica,
respectivamente. Dessa forma, a presença no caso concreto de uma das vulnerabilidades, conjugada com os
demais requisitos abaixo descritos, qualifica a pessoa humana como consumidora.” (FROTA, Pablo Malheiros
da Cunha; COSTA, José Pedro Brito da, Responsabilidade Hospitalar pela atividade médica autônoma: uma
questão de coligação contratual. /revista IBERC, v. 1, n.º 1, p. 01-47, nov-fev/2019). Disponível em:
www.responsabilidadecivil.org.be/revista.iberc. Acesso em 04/03/2019.
381
“Aunque el derecho brasilero admita que la persona colectiva puede ser consumidora (Barcellos, 2007;
Morato, 2008, pp. 196-216), la controversia sobre tal posibilidad se amplía en la doctrina y en la jurisprudencia
(Lucca, 2008, pp. 125-129; Bessa, 2007a, p. 56). En efecto, después del año 2005, se fortaleció la teoría finalista.
Esta teoría fue profundizada para considerar a la persona colectiva como consumidora de forma excepcional,
siempre que: a) adquiera o utilice bienes y/o servicios de consumo, fuera de su actividad profesional; b) exista
vulnerabilidad concreta y en sentido amplio; c) exista destinación fáctica y económica; d) no haya
intermediación (Bessa, 2007a, pp. 56-61; Cavalieri Filho, 2008, pp. 56-58).” (CATALAN, Marcos;
MALHEIROS DA CUNHA FROTA, Pablo. Aportes para la comprensión de la arquitectura jurídica de la
relación de consumo em el derecho brasileiro. Derecho PUCP, v. 80, p. 391-423, 2018, p. 397). Disponível em:
http://revistas.pucp.edu.pe/index.php/derechopucp/article/view/19961. Acesso em 04/mar/2019.

180
como os princípios e as regras dessa relação. Assim, pouco importa se o consumidor é
profissional, se possui um fim de lucro, ou se tem poder econômico. Importa, na verdade, se
possui algum tipo de vulnerabilidade, abstrata e concreta, constatada a partir do caso
concreto.382

Relativamente à relação de consumo, o fornecimento de bens é o seu objeto, e


este pode ser entendido como tudo o que pode ser submetido ao poder dos sujeitos de direito.
O bem, seja móvel ou imóvel, novo ou usado, material ou imaterial, pode ser fornecido no
mercado de consumo. Os bens de produção são aqueles destinados ao ciclo produtivo, desde
que se obtenham os insumos, até a sua comercialização no mercado para o consumidor. 383

De outro lado, o serviço, na relação de consumo, vem de uma atividade


exercida pelo fornecedor, de modo habitual e com profissionalismo, mediante remuneração,
de forma direta ou indireta, podendo ser não durável, durável, público, privado,
aparentemente gratuito, sempre no mercado de consumo. Quando se fala em serviços
públicos, tem-se os de natureza uti singuli, aqueles prestados de forma individual e cobrados
por meio de tarifa ou preço público; e os de natureza uti universi, os destinados à generalidade
das pessoas e pagos via tributação. Os primeiros constam do Código de Defesa do

382
“La teoría englobante abarca el análisis integral de los presupuestos de la relación de consumo – sujetos,
objeto, causa, vínculo, función, mercado de consumo—, así como los principios y las reglas atinentes a la
mencionada relación. Desde esta perspectiva, poco importa si el consumidor es profesional, si posee un fin de
lucro, si tiene un importante poderío económico. Importa si posee algún tipo de vulnerabilidad abstracta y
concreta, constatable a partir del caso analizado; si no utiliza los bienes y/o servicios para reincorporarlos al ciclo
productivo; si agota la cadena fáctica y económica; si cumple o tiene las condiciones para cumplir la función
socio-ambiental de los aludidos instrumentos y si los mencionados instrumentos fueron adquiridos en el mercado
de consumo (AI 58564-5/180).” (CATALAN, Marcos; MALHEIROS DA CUNHA FROTA, Pablo. Aportes
para la comprensión de la arquitectura jurídica de la relación de consumo em el derecho brasileiro. Derecho
PUCP, v. 80, p. 391-423, 2018, p. 397. Disponível em:
http://revistas.pucp.edu.pe/index.php/derechopucp/article/view/19961. Acesso em 04/mar/2019).
383
“O fornecimento de bens e/ou serviços é o objeto de uma relação jurídica de consumo. Segundo Francisco
Amaral, o objeto é tudo ‘o que se pode submeter ao poder dos sujeitos de direito, como instrumento de
realização de suas finalidades jurídicas’. Os bens que os fornecedores colocam à disposição do consumidor são
tratados equivocadamente como produtos pelo Código de Defesa do Consumidor, crítica feita por serem mais
abrangentes que aqueles contidos no significado de produto. O bem móvel ou imóvel, material ou imaterial,
novo ou usado, e os demais tipos de bens, podem ser fornecidos no mercado de consumo (CDC, art. 3º, § 1º).
Rizzatto Nunes defende que os bens de consumo são os ‘fabricados em série, levados ao mercado numa rede de
distribuição, com ofertas sendo feitas por meio de dezenas de veículos de comunicação, para que alguém em
certo momento os adquira’. Esse sentido restringe os bens de consumo, porque os bens artesanais configuram-se
como de consumo, mesmo que não contenham as características citadas anteriormente. Os bens de produção são
os destinados ao ciclo produtivo ‘desde a obtenção dos insumos até a comercialização do produto final no
mercado para o consumidor’. A distinção entre os bens de consumo e os bens de produção é interessante, mas
somente auxilia na configuração da relação de consumo, tendo em vista a interdependência com os demais
elementos caracterizadores da mencionada relação.” (CATALAN, Marcos; MALHEIROS DA CUNHA
FROTA, Pablo. A pessoa coletiva consumidora no Código de Defesa do Consumidor). Disponível em:
revistaeletronica.oabrj.org.br. Acesso em 05/03/2019.

181
Consumidor, uma vez que há escolha do usuário; os segundos não são abrangidos pela
legislação consumerista.384

Quando se fala em vínculos, eles podem advir do contato social, do contrato e


podem ser gerados extracontratualmente. Entretanto, os direitos e os deveres dos
consumidores e fornecedores não diferem pelo fato do vínculo ser contratual, fático ou
extracontratual. Já a função socioambiental dos bens e serviços conforma o objeto e a causa
da relação de consumo, que deve ser respeitada por consumidores e fornecedores, pois podem
abranger direitos individuais, individuais homogêneos, coletivos e difusos, no início da
relação de consumo e/ou na fase em que ofertam os bens e/ou os serviços no mercado.385

Finalmente, como último elemento da relação de consumo, a doutrina coloca o


mercado de consumo, o qual pode ser conceituado, segundo Catalan et al, como uma unidade
jurídica de relações de troca de bens e prestação de serviços dentro da relação consumerista,
uma vez que o consumo é o resultado da relação econômica.386

384
“O serviço deriva de uma atividade exercida pelo fornecedor com habitualidade e profissionalismo, mediante
remuneração direta ou indireta, podendo ser durável, não durável público, privado, aparentemente gratuito,
sempre no mercado de consumo. Lembra-se de que o sentido trazido pelo art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do
Consumidor é equívoco, uma vez que, como aponta Paulo Lôbo, não ‘é atividade que se fornece, mas os
produtos e serviços produzidos e distribuídos. Atividade é pressuposto de existência de qualquer fornecedor’.
Em relação aos serviços públicos, destacam-se os serviços de natureza uti singuli – utilizados, prestados
individualmente e cobrados por meio de tarifa ou preço público – como o fornecimento de água e esgoto, luz,
gás, telefone e transportes coletivos – são balizados pelo Código de Defesa do Consumidor, por existir escolha
do usuário. Os serviços de natureza uti universi – destinados à generalidade de pessoas e pagos via tributação –
não são abrangidos pelo diploma consumerista.” (CATALAN, Marcos; MALHEIROS DA CUNHA FROTA,
Pablo. A pessoa coletiva consumidora no Código de Defesa do Consumidor). Disponível em:
revistaeletronica.oabrj.org.br. Acesso em 05/03/2019.
385
“Os vínculos que se apresentam na ambiência de uma relação de consumo poderão advir do contato social, do
contrato e extracontratualmente, não obstante esta dicotomia seja supérflua, visto que os direitos e os deveres de
consumidores e de fornecedores não diferem se o vínculo é contratual, extracontratual ou fático. Intimamente
ligada ao vínculo está a oferta (métodos, técnicas e instrumentos de liame entre o consumidor e o fornecedor,
atando o segundo ao marketing por ele apresentado). A função socioambiental dos bens e dos serviços conforma
o objeto e a causa da relação de consumo, pois, alicerçada na teoria da posse democrática, ‘confere tutela a quem
adquire a posse de um bem e se preocupa com a saúde, a alimentação, a educação, o trabalho, os direitos de
vizinhança, a integridade psicofísica, o acesso igualitário aos bens materiais e imateriais, à proteção ao meio
ambiente [realizando] variadas dimensões do Estado Democrático de Direito’. Consumidores e fornecedores
deverão respeitar a função socioambiental que permeia cada relação, já que podem abarcar direitos individuais,
individuais homogêneos, coletivos e difusos (CDC, art. 81) no momento em que entabulam uma relação de
consumo e/ou na fase em que se ofertam os bens e os serviços no mercado consumerista.” (CATALAN, Marcos;
MALHEIROS DA CUNHA FROTA, Pablo. A pessoa coletiva consumidora no Código de Defesa do
Consumidor). Disponível em: revistaeletronica.oabrj.org.br. Acesso em 05/03/2019.
386
“O mercado de consumo é o último elemento necessário à configuração de uma relação de consumo, dado
que se caracteriza como uma unidade jurídica de relações de troca de bens e de prestação de serviços no âmbito
de uma relação de consumo, por ser o consumo o resultado final da atividade econômica.” (CATALAN, Marcos;
MALHEIROS DA CUNHA FROTA, Pablo. A pessoa coletiva consumidora no Código de Defesa do
Consumidor). Disponível em: revistaeletronica.oabrj.org.br. Acesso em 05/03/2019.

182
2.5.4 A relação de causalidade

O nexo causal é o elemento imaterial da responsabilidade civil, e se caracteriza


como uma relação de causa e efeito, entre a conduta e o resultado danoso causado contra a
vítima. O conceito de liame causal decorre de leis naturais, e não do Direito. Mesmo que a
responsabilidade seja objetiva, subsiste o nexo causal entre a conduta e o resultado. Caso
exista dano, e não haja relação de causalidade, não haverá obrigação de indenizar. Enquanto
na responsabilidade subjetiva, o nexo é formado pela culpa, em sentido genérico, a qual inclui
o dolo e a culpa em sentido estrito, na responsabilidade objetiva, o nexo é constituído pela
conduta com a previsão da responsabilidade sem culpa, ou pela atividade de risco.387

Assim, a relação de causalidade é o elo entre dois extremos, quais sejam, a


conduta culposa e o dano causado. Se ficar evidenciado o dano, mas não se verifica o nexo
com o comportamento do réu, o pleito indenizatório deve ser julgado improcedente. A teoria
da equivalência das condições causais conceitua causa como toda condição que contribua para
o resultado. Para a teoria da causalidade adequada, causa é a condição da qual normalmente
deriva o resultado danoso. A teoria da causa próxima conceitua causa como o fator que
condiciona, com mais proximidade no tempo, o resultado, de maneira que o mais próximo
exclui o mais remoto.388

387
“O nexo de causalidade ou nexo causal constitui o elemento imaterial ou virtual da responsabilidade civil,
constituindo a relação de causa e efeito entre a conduta culposa ou o risco criado e o dano suportado por alguém.
De acordo com a doutrina de Sérgio Cavalieri Filho, ‘trata-se de noção aparentemente fácil, mas que, na prática,
enseja algumas perplexidades (...). O conceito de nexo causal não é jurídico; decorre das leis naturais. É o
vínculo, a ligação ou relação de causa e efeito entre a conduta e o resultado’ (Programa..., 2005, p. 70). (...) A
responsabilidade civil, mesmo objetiva, não pode existir sem a relação de causalidade entre o dano e a conduta
do agente. Se houver dano sem que a sua causa esteja relacionada com o comportamento do suposto ofensor,
inexiste a relação de causalidade, não havendo a obrigação de indenizar. Fundamental, para tanto, conceber a
seguinte relação lógica: – na responsabilidade subjetiva o nexo de causalidade é formado pela culpa genérica ou
lato sensu, que inclui o dolo e a culpa estrita (art. 186 do CC). – Na responsabilidade objetiva, o nexo de
causalidade é formado pela conduta, cumulada com a previsão legal de responsabilização sem culpa ou pela
atividade de risco (art. 927, parágrafo único, do CC).” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das
Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 2, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 537/538).
388
“Deve haver uma relação entre a ação ou omissão culposa do agente e o dano à vítima. Acentua Forchielli
que, para se poder chegar, partindo de um evento danoso, até seu autor, é indispensável assentar uma ponte entre
esses dois extremos: em termos jurídicos, essa ponte se chama nexo de causalidade. (…) Se a vítima sofre o
dano, mas não se evidencia o liame de causalidade com o comportamento do réu, improcedente será o pleito
indenizatório. Casabona aponta, com precisão, a principal dificuldade para se estabelecer a relação de
causalidade, quando o ato não é consequência de uma só causa claramente evidenciável, mas, sim, resultado da
concorrência de múltiplos fatores. As teorias penais que explicam a causalidade também aqui têm ingresso.
Assim, segundo a ‘teoria da equivalência das condições causais’, causa será toda condição que haja contribuído
para o resultado, em sua configuração concreta; na ‘teoria da causalidade adequada’, causa será aquela condição
da qual normalmente deriva o resultado danoso; e a ‘teoria da causa próxima’ considera causa o fator que tenha
condicionado, mais proximamente no tempo, o resultado, de modo que o mais próximo exclui o mais remoto.”

183
Das teorias existentes com relação à relação de causalidade, a primeira,
denominada teoria da equivalência das condições ou do histórico dos antecedentes (também
chamada de conditio sine qua non) dispõe que todos os fatos relacionados com o dano geram
a responsabilidade civil. Todas os fatos que, de algum modo, concorreram para o resultado,
são considerados sua causa. Essa teoria não é adotada no direito brasileiro, no direito civil,
uma vez que possibilita, na análise do nexo causal, um regresso ao infinito.389

A teoria da equivalência das condições, que preconiza que todas as condições


que levam a um evento são causas dele, sejam mediatas ou imediatas. Assim, basta que o
agente tenha realizado uma condição para que exista nexo causal. Para se verificar se uma
condição é causa do resultado, basta que se faça sua eliminação mental, sendo impossível
admitir que o fato consequentemente se teria produzido da maneira que ocorreu (conditio sine
qua non).390

Outra teoria é a da causalidade adequada, a qual foi desenvolvida por Von


Kries. Para o autor, deve-se identificar, diante de uma causa, se ela, de alguma forma,
provocou o resultado. Assim, somente o fato relevante para produzir o resultado danoso é que
gera responsabilidade civil e a reparação dos danos. Ainda, a teoria do dano direto e imediato
ou teoria da interrupção do nexo causal preconiza que se rompe o nexo causal toda vez que
houver violação do direito por parte de credor ou de terceiro, resultando daí a
irresponsabilidade do agente. Nessa última teoria, somente haverá reparação do dano, quando
forem efeitos necessários da conduta do agente.391

(NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.
129-130).
389
“Superada tal elucidação técnica, é notório que existem várias teorias justificadoras do nexo de causalidade,
muitas já amplamente debatidas no âmbito penal. A partir da doutrina de Gustavo Tepedino (Notas..., 2006, p.
63) e Gisela Sampaio da Cruz (O problema..., 2005, p. 33-110), três delas merecem destaque e aprofundamentos:
a) Teoria da equivalência das condições ou do histórico dos antecedentes (sine qua non) – todos os fatos
relativos ao evento danoso geram a responsabilidade civil. Segundo Tepedino, ‘considera-se, assim, que o dano
não teria ocorrido se não fosse a presença de cada uma das condições que, na hipótese concreta, foram
identificadas precedentemente ao resultado danoso’ (TEPEDINO, Gustavo. Notas..., 2006, p. 67). Essa teoria,
não adotada no Brasil, tem o grande inconveniente de ampliar em muito o nexo de causalidade, até o infinito.”
(TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 2, 14ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2019, p. 539).
390
“(…) 1) teoria da equivalência das condições: esta doutrina sustenta que todas as condições que conduzem a
um resultado são a causa desse resultado, sejam imediatas ou mediatas; portanto, basta que o sujeito tenha
realizado uma condição desse resultado para que exista relação causal; um fenômeno é condição do outro
quando, suprimindo-o mentalmente, faz-se impossível admitir que o fato consequente se teria produzido tal
como ocorreu (condição sine qua non); (...).” (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 5ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 72).
391
“b) Teoria da causalidade adequada – teoria desenvolvida por Von Kries, pela qual se deve identificar, na
presença de uma possível causa, aquela que, de forma potencial, gerou o evento danoso. Na interpretação deste

184
Existe, ainda, uma diferença entre a teoria do dano direto e imediato, que
utiliza mais as exclusões de responsabilidade, isto é, a exclusão total do nexo causal e a teoria
da causalidade adequada, a qual trabalha com as concausas, ou seja, com as contribuições de
fatos para gerar o evento danoso.392

Na responsabilidade civil, não há a adoção obrigatória de uma dessas teorias,


devendo-se analisar o nexo causal, bem como levar em conta os fatores que ligam a ilicitude
da conduta ao resultado. Nessa seara, em caso de responsabilidade do médico, importa
verificar se o dano é ou não consequência de conduta culposa, ou se advém de causa diversa
ou desconhecida.393

Na realidade, a questão sobre a adoção de uma das três teorias, com relação à
responsabilidade civil e à reparação dos danos, pelo Código Civil, não é pacífica. Somente
para exemplificar, para os professores Gustavo Tepedino e Gisela Sampaio da Cruz, foi
adotada a teoria do dano direto e imediata, nos termos do art. 403 do CC. Já para o professor
Flávio Tartuce, o Código Civil, em seus arts. 944 e 945, adotou mesmo a teoria da causalidade
adequada, havendo, inclusive autores a elencar mais teorias, além das três clássicas já
referidas.394

autor, por esta teoria, somente o fato relevante ou causa necessária para o evento danoso gera a responsabilidade
civil, devendo a indenização ser adequada aos fatos que a envolvem. c) Teoria do dano direto e imediato ou
teoria da interrupção do nexo causal – havendo violação do direito por parte do credor ou do terceiro, haverá
interrupção do nexo causal com a consequente irresponsabilidade do suposto agente. Desse modo, somente
devem ser reparados os danos que decorrem como efeitos necessários da conduta do agente.” (TARTUCE,
Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 2, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
2019, p. 539).
392
“Todavia, pode ser notada uma diferença sutil entre as duas teorias. A teoria do dano direto e imediato
trabalha mais com as exclusões totais de responsabilidade, ou seja, com a obstação do nexo causal. Por outra via,
a teoria da causalidade adequada lida melhor com a concausalidade, isto é, com as contribuições de fatos para o
evento danoso.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 2, 14ª
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 5).
393
“Na responsabilidade civil, não se dá a adoção obrigatória de uma dessas teorias, devendo a análise do nexo
causal levar em linha de conta os fatores que podem ligar a ilicitude da conduta ao resultado produzido. Muitas
vezes, a jurisprudência se inclina, reconhecendo a ocorrência de culpa, a determinar a existência de nexo causal;
ou, quando há concorrência de culpas, da própria vítima ou de terceiros com autor, considerar rompido o liame
de causalidade. (…) Para que haja a exclusão do nexo causal devido à ocorrência de caso fortuito, este deve estar
intimamente relacionado com o dano; caso contrário, servirá apenas para atenuar a responsabilidade. A culpa do
prejudicado afeta a relação causal, excluindo-a, se foi decisiva para a produção do evento danoso; ou atenuando-
a, em benefício do agente, se meramente contribui para o resultado, o que se traduz na redução do quantum
indenizatório.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013, p. 130).
394
“Para Gustavo Tepedino e Gisela Sampaio da Cruz, a teoria adotada foi a do dano direto e imediato, pelo que
consta do art. 403 do Código Civil em vigor, a saber: ‘Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as
perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem
prejuízo do disposto na lei processual’. Cita Gustavo Tepedino, por oportuno, que esta teoria é seguida
amplamente pelo Supremo Tribunal Federal (Notas..., 2006, p. 67). Todavia, a questão não é tão pacífica assim.

185
Há, ainda, que se distinguir os conceitos de ressarcimento e indenização. A
indenização abarca os danos causados em decorrência do sacrifício de direitos particulares,
em razão do exercício de uma faculdade concedida pela lei ao poder público. Por outro lado, o
ressarcimento reserva-se para os casos de responsabilidade por danos ilegítimos, de atividade
lesiva de direito de terceiras pessoas.395

Com base em princípios publicísticos, evoluiu-se da culpa individual para a


culpa impessoal, passando-se a falar em culpa do serviço ou falta do serviço, que se dá
quando o serviço não funciona, funciona mal ou atrasado, decorrendo daí o dever de indenizar
do Estado. Assim, o que gera a reparação do dano é a culpa anônima do Estado. Alguns
autores a entendem como sinônimo de responsabilidade objetiva, enquanto outros a colocam
como modalidade de responsabilidade subjetiva, porque baseada na culpa do próprio Estado,

Em nosso parecer o Código Civil de 2002 adotou, em melhor sentido, a teoria da causalidade adequada, eis que a
indenização deve ser adequada aos fatos que a cercam. Essa conclusão pode ser retirada dos arts. 944 e 945 do
CC, antes comentados. Nesse sentido, o Enunciado n.º 47 da I Jornada de Direito Civil preceitua que o último
dispositivo não exclui a teoria da causalidade adequada. É imperioso dizer que a adoção desta teoria não afasta a
investigação dos fatores que excluem ou obstam o nexo de causalidade. Não restam dúvidas de que a questão é
controvertida no meio acadêmico. A propósito, comenta Anderson Schreiber que, ‘em que pese a inegável
importância do debate acadêmico em torno das diversas teorias da causalidade, em nenhuma parte alcançou-se
um consenso significativo em torno da matéria’ (Novos paradigmas..., 2007, p. 59). Na mesma linha, pondera
Bruno Miragem que, ‘a rigor, não se pode perder de vista que nenhuma das teorias explicativas do nexo de
causalidade, por maior que sejam seus méritos, deixará de ser desafiada por situações da realidade da vida, em
que se ponha em dúvidas sua autoridade. Em outros termos, não faltarão situações em que os fatos teimem em
desmentir ou desafiar as várias teorias’ (MIRAGEM, Bruno. Direito civil..., 2015, p. 238). Na mesma linha, com
obra completa sobre o assunto, analisada em nosso Manual de responsabilidade civil, Pablo Malheiros da Cunha
Frota afirma que a situação a respeito da análise do nexo de causalidade é ‘assaz preocupante pelo fato de serem
as decisões sobre a existência do nexo causal, em um caso concreto, intuitivas, diversas vezes, e se fundarem,
consciente ou inconscientemente, em um ‘princípio do bom senso’, e não nos critérios trazidos pelas teorias
relacionadas ao nexo causal. Isso pode intensificar a rasa cientificidade presente em algumas decisões judiciais
sobre o assunto’ (FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade..., 2014, p. 68). A propósito, o último
doutrinador demonstra a existência de quatorze teorias sobre o assunto. Doze delas foram desenvolvidas nos
sistemas romano-germânicos, interessando diretamente a esta obra, a saber: a) teoria da equivalência das
condições ou do histórico dos antecedentes (sine qua non); b) teoria da causa eficiente e causa preponderante; c)
teoria da ação ou da causa humana; d) teoria do seguimento ou da continuidade da manifestação danosa; e) teoria
da causalidade adequada, teoria da regularidade causal ou teoria subjetiva da causalidade; f) teoria do dano direto
ou imediato ou teoria da interrupção do nexo causal; g) teoria da norma violada, da causalidade normativa, da
relatividade aquiliana ou do escopo da norma; h) teoria da causalidade específica e da condição perigosa; i)
causalidade imediata e da variação; j) teoria da causa impeditiva; k) teoria da realidade de causalidade por falta
contra a legalidade constitucional; e l) teoria da formação da circunstância danosa (por ele mesmo desenvolvida).
As teorias do modelo anglo-saxão, são: a) causation as fact; e b) causa próxima e proximate cause (FROTA,
Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade... 2014, p. 71-102).” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito
das Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 2, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 539/540).
395
“Mas a distinção é proveitosa, de forma que a doutrina tende a vislumbrar o instituto do ressarcimento
verdadeiro e próprio, diverso do instituto da indenização dos danos legitimamente provocados; abrange esta os
danos causados em razão do sacrifício de direitos particulares, mas, por força do exercício de uma faculdade
concedida em lei ao Poder Público; e reservando-se aquela para os casos de responsabilidade por danos
ilegítimos, de atividade lesiva de direitos de terceiros.” (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do
Estado. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 11).

186
não suscetível de ser atribuída a determinado agente público. Cabe a comprovação da não
prestação do serviço, para gerar a responsabilidade estatal.396

Quanto à responsabilidade objetiva, ela exige a presença do nexo de


causalidade, não havendo qualquer elemento subjetivo, psíquico ou volitivo. Além disso,
exige-se para esse tipo de responsabilidade a causa, que é a atividade do Estado e o dano
sofrido por particular, como consequência, o que elimina o exame de qualquer forma de culpa
da conduta do funcionário, ou de qualquer culpa anônima decorrente de falha da máquina
administrativa, sendo a culpa de presunção absoluta, ou seja, invencível.397

Na responsabilidade objetiva, o dano sofrido pelo administrado tem como


causa o fato objetivo da atividade administrativa, seja por ação ou omissão, seja regular ou

396
“Com base nesses princípios publicísticos evoluiu-se da culpa individual para a culpa anônima ou impessoal.
A noção civilista da culpa ficou ultrapassada, passando-se a falar em culpa do serviço ou falta do serviço (faute
du service, entre os franceses), que ocorre quando o serviço não funciona, funciona mal ou funciona atrasado.
Noutras palavras, o dever de indenizar do Estado decorre da falta do serviço, não já da falta do servidor. Bastará
a falha ou o mau funcionamento do serviço público para configurar a responsabilidade do Estado pelos danos daí
decorrentes aos administrados. Idealizada por Paul Duez, a responsabilidade fundada na faute du service foi
primeiramente acolhida pelo Conselho de Estado Francês. De acordo com essa nova concepção, a culpa anônima
ou falta do serviço público, geradora de responsabilidade do Estado, não está necessariamente ligada à ideia de
falta de algum agente determinado, sendo dispensável a prova de que funcionários nominalmente especificados
tenham incorrido em culpa. Basta que fique constatado um mal agenciador geral, anônimo, impessoal, na
defeituosa execução do serviço, à qual o dano possa ser imputado. Alguns autores não fazem distinção entre a
culpa anônima e a responsabilidade objetiva, chegando, mesmo, a afirmar que são a mesma coisa. Estamos, neste
ponto, com o professor Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ao advertir que a responsabilidade por falta do
serviço, falha do serviço ou culpa do serviço, seja qual for a tradução que se dê à fórmula francesa faute du
service, não é de modo algum, modalidade de responsabilidade objetiva, mas subjetiva, porque baseada na culpa
do serviço diluída na sua organização, assumindo feição anônima ou impessoal. Responsabilidade com base na
culpa, enfatiza o Mestre, a culpa do próprio Estado, do serviço que lhe incumbe prestar, não individualizável em
determinado agente público, insuscetível de ser atribuída a certo agente público, porém no funcionamento ou não
funcionamento do serviço, por falta na sua organização. Cabe, neste caso, conclui o professor, à vítima
comprovar a não prestação do seriço ou a sua prestação retardada ou má prestação, a fim de ficar configurada a
culpa do serviço, e, consequentemente, a responsabilidade do Estado, a quem incumbe prestá-lo (Oswaldo
Aranha Bandeira de Mello, Princípios gerais do Direito Adminsitrativo, v. II/482-483, Forense, 1989).”
(FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil, 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 322/323).
397
“Rigorosamente, a responsabilidade objetiva tende a se bastar com o simples nexo de causalidade material,
eliminada a perquirição de qualquer elemento psíquico ou volitivo; a aceitação incondicionada da teoria da
responsabilidade objetiva, bastando-se com a identificação do vínculo etiológico – atividade do Estado, como
causa, e dano sofrido pelo particular, como consequência –, eliminaria a priori o exame de qualquer coeficiente
de culpa na conduta do funcionário, ou de culpa anônima decorrente de falha da máquina administrativa,
investindo a culpa de presunção absoluta, juris et de jure, portanto invencível e sem possibilidade de qualquer
contraprova; nem mesmo a teoria do risco criado, do risco-proveito, seria com ela compatível, na medida em que
simplesmente tornaria relativa aquela presunção de culpa, fazendo-a presumida juris tantum, para simplesmente
liberar o lesado da produção da respectiva prova, com a transferência para o Estado da prova de fatos
excludentes da responsabilidade.” (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 5ª ed., São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014, p. 30-31).

187
irregular, não sendo possível a composição com qualquer concepção de culpa administrativa,
culpa anônima do serviço, falha ou irregularidade no funcionamento do serviço.398

A teoria do risco integral é a que mais se relaciona com a responsabilidade


objetiva, como já explanado antes, uma vez que se encerra na simples verificação do nexo
causal, ou seja, o dano sofrido pelo particular é uma consequência do funcionamento, seja
regular ou irregular do serviço público. Essa teoria do risco conduz à responsabilidade
objetiva, com a dispensa do pressuposto de falha do serviço, ou culpa anônima da
Administração, na verificação do dano.399

Para fundamentar a responsabilidade objetiva do Estado, alguns doutrinadores


valeram-se da teoria do risco administrativo, segundo a qual a Administração Pública causa
risco para os administrados, ou seja, a possibilidade de dano que os membros da coletividade
podem sofrer pela atividade do Estado. Como a atividade estatal é exercida em favor de todos,
seus ônus devem ser suportados por todos, devendo, inclusive, o Estado arcar com os ônus de
sua atividade, não cabendo falar, aqui, em culpa de seus agentes.400

Assim, imputa-se ao Estado a responsabilidade pelo risco criado por sua


atividade administrativa. A teoria do risco administrativo é decorrência do princípio da
igualdade dos indivíduos diante de encargos públicos. Qualquer lesão sofrida por particular
deve ser indenizada, independente de prova de culpa do servidor que a causou, sendo
necessário verificar somente o nexo causal entre a ação do administrador e o dano sofrido
pelo particular.401

398
“No plano da responsabilidade objetiva, o dano sofrido pelo administrado tem como causa o dado objetivo da
atividade (comissiva ou omissiva) administrativa, regular ou irregular, incompatível, assim, com qualquer
concepção de culpa administrativa, culpa anônima do serviço, falha ou irregularidade no funcionamento deste.”
(CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 33).
399
“Não se pode negar que a teoria do risco integral é a que mais se identifica com a responsabilidade objetiva,
já que se esgota na simples verificação do nexo de causalidade material: o prejuízo sofrido pelo particular é
consequência do funcionamento (regular ou irregular) do serviço público.” (CAHALI, Yussef Said.
Responsabilidade Civil do Estado. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 32).
400
“Em busca de um fundamento para a responsabilidade objetiva do Estado, valeram-se os juristas da teoria do
risco, adaptando-a para a atividade pública. Resultou daí, a teoria do risco administrativo, imaginada,
originariamente por Léon Duguit e desenvolvida por renomados administrativistas, teoria, essa, que pode ser
assim formulada: a Administração Pública gera risco para os administrados, entendendo-se como tal a
possibilidade de dano que os membros da comunidade podem sofrer em decorrência da normal ou anormal
atividade do Estado. Tendo em vista que essa atividade é exercida em favor de todos, seus ônus devem ser
também suportados por todos, e não apenas por alguns. Consequentemente, deve o Estado, que a todos
representa, suportar os ônus de sua atividade, independentemente de culpa de seus agentes.” (FILHO, Sérgio
Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil, 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 324).
401
“Em apertada síntese, a teoria do risco administrativo importa atribuir ao Estado a responsabilidade pelo risco
criado pela sua atividade administrativa. Esta teoria, como se vê, surge como expressão concreta do princípio da

188
A teoria do risco integral é uma modalidade extremada do risco para justificar
o dever de indenizar mesmo no caso de culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, caso
fortuito ou força maior. Caso essa teoria fosse admitida, o Estado estaria obrigado à
compensação pecuniária sempre que haja dano ao particular, ainda que não decorrente de sua
atividade, uma vez que estaria impedido de alegar causas excludentes do nexo causal.402

A Constituição de 1988 adotou a responsabilidade objetiva das pessoas


jurídicas, o que leva à conclusão de que basta o nexo causal entre o dano e a ação ou omissão
do ente público ou privado prestador do serviço público, não havendo necessidade de prova
de dolo ou culpa por parte de seus agentes, uma vez ser desnecessária a sua prova. Assim,
aceita-se que a teoria do risco administrativo não conduz à obrigação de indenizar todo e
qualquer ato do poder público, mas ocorre a dispensa da vítima de comprovação da culpa,
cabendo a esta a demonstração da culpa total ou parcial do lesado, para que fique ela total ou
parcialmente livre da indenização.403

Cabe destacar que o nexo de causalidade, como pressuposto para a


determinação da responsabilidade objetiva, nem sempre aparece de forma nítida, mormente
naqueles casos de atos omissivos da Administração, identificados como falha anônima do

igualdade dos indivíduos diante dos encargos públicos. É a forma democrárica de repartir os ônus e os encargos
sociais por todos aqueles que são beneficiados pela atividade da Administração Pública. Toda lesão sofrida pelo
particular deve ser ressarcida, independentemente de culpa do agente público que a causou. O que se tem que
verificar é, apenas, a relação de causalidade entre a ação administrativa e o dano sofrido pelo administrado.”
(FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil, 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 324).
402
“A teoria do risco integral é modalidade extremada da doutrina do risco para justificar o dever de indenizar
mesmo nos casos de culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, caso fortuito ou de força maior. É o que ocorre,
por exemplo, no caso de acidente de trabalho, em que a indenização é devida mesmo que o acidente tenha
decorrido de culpa exclusiva da vítima ou caso fortuito. Se fosse admitida a teoria do risco integral em relação à
Administração Pública, ficaria o Estado obrigado a indenizar sempre e em qualquer caso o dano suportado pelo
particular, ainda que não decorrente de sua atividade, posto que estaria impedido de invocar as causas de
exclusão do nexo causal, o que, a toda evidência, conduzira ao abuso e à iniquidade. De qualquer forma, fica
registrado que alguns autores, embora falem em teoria do risco integral, estão, na realidade, se referindo àquilo
que para outros é a teoria do risco administrativo. Lembre-se, todavia, que, qualquer que seja o rótulo ou
qualificação que se dê à teoria que justifica o dever de indenizar do Estado, não poderá ser ele responsabilizado
quando não existir relação de causalidade entre a sua atividade administrativa e o dano suportado pelo
particular.” (FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil, 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.
325).
403
“Tendo a Constituição de 1988 (a exemplo das anteriores) adotado a teoria da responsabilidade objetiva das
pessoas jurídicas indicada em seu art. 37, § 6º, a que bastaria o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou
omissão do ente público ou privado prestador de serviço público, mostra-se, em princípio, despicienda qualquer
averiguação do dolo ou da culpa por parte de seus agentes, por desnecessária a sua prova. Nesse contexto, aceita-
se (pois o enunciado é válido também em sede de risco integral) que ‘a teoria do risco administrativo não leva à
responsabilidade objetiva integral do Poder Público, para indenizar em todo e qualquer caso, mas, sim, dispensa
a vítima da prova da culpa do agente da Administração, cabendo a esta a demonstração da culpa total ou parcial
do lesado, para que então fique ela total ou parcialmente livre da indenização’.” (CAHALI, Yussef Said.
Responsabilidade Civil do Estado. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 41/42).

189
serviço, quando se verifica se o ato de omissão seria razoavelmente exigível, para se deduzir
da sua omissão ou falta da causa originária do prejuízo causado.404

O dano é um pressuposto da responsabilidade civil, seja contratual ou


extracontratual, como já explanado, e, no caso de responsabilidade civil, não se pode
prescindir do evento danoso. A ilegalidade ou irregularidade do ato que se verifique sem
danos a terceiros não pode gerar responsabilidade alguma, mas somente, se for o caso, a
invalidade do ato.405

O dano indenizável pode resultar de um ato doloso ou culposo do agente


público e, também, de ato que, mesmo que sem culpa ou praticado por falha do serviço, seja
caracterizado como sendo injusto na visão do particular e lesivo ao seu direito subjetivo.
Assim, no caso de dano sofrido por particular por dolo ou culpa de agente estatal, ou por
deficiência do serviço, por culpa anônima da Administração, nasce o direito ao ressarcimento,
sendo que a indenização deve ser a mais completa possível, comparando-se à
responsabilidade civil do direito comum.406

A Administração atua por meio de seus órgãos, os quais se utilizam de pessoas


físicas como titulares e agentes de seus diversos setores. Desse modo, a responsabilidade da
pessoa coletiva resulta sempre da atuação de indivíduos que agem em seu nome, ou como
seus representantes.407

404
“Mas impende reconhecer que o nexo de causalidade, erigido à condição de pressuposto bastante para a
determinação da responsabilidade objetiva do Estado, nem sempre aparece com a necessária precisão e clareza; e
isto transparece especialmente naqueles casos de atos omissivos da Administração, substancialmente
identificados como falha anônima do seviço, quando então se examina se o ato omitido seria razoavelmente
exigível, para se deduzir da sua omissão ou falta a causa primária do prejuízo reclamado.” (CAHALI, Yussef
Said. Responsabilidade Civil do Estado. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 43).
405
“É de direito comum o princípio segundo o qual ‘o dano insere-se como pressuposto da responsabilidade
civil, contractual ou extracontratual. Também no plano da responsabilidade civil do Estado, em caso algum se
pode prescindir do evento danoso: a só ilegalidade ou irregularidade do ato, que se verifique sem dano a
terceiros, não pode produzir nenhuma responsabilidade, mas apenas, quando for o caso, a invalidade do ato’.”
(CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 65).
406
“O dano ressarcível tanto resulta de um ato doloso ou culposo do agente público como, também, de ato que,
embora não culposo ou revelador de falha do serviço, tenha-se caracterizado como injusto para o particular,
como lesivo ao seu direito subjetivo. (...) Em outros termos, no caso de dano sofrido por particular em razão de
dolo ou culpa do agente estatal, de deficiência ou falha do serviço público, de culpa anônima da Administração,
da chamada faute de servisse, nasce a pretensão ressarcitória: a indenização, compreendendo os danos certos e
não eventuais, atuais ou futuros, deve ser a mais completa possível, assimilando-se a responsabilidade civil do
direito comum.” (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 5ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014, p. 66).
407
“A Administração atua, na esfera que lhe é própria, através de seus órgãos; estes, por sua vez, utilizam-se de
pessoas físicas como titulares de seus diversos setores ou para servirem de seus agentes; em condições tais, a
responsabilidade da pessoa coletiva é sempre resultante da atuação de indivíduos que agem em seu nome ou

190
A partir do momento em que se estabelece o nexo causal, bem como o dano
que deriva da ação ou omissão, surge, assim, o dever de indenizar. Quanto às teorias a
respeito do nexo causal,408 a teoria da causa próxima ou da causa direta procura selecionar,
entre todas as condições de um resultado, uma de particular relevância, a que considera causa.
Causa é a condição cronologicamente mais próxima do evento que se quer imputar.409

A teoria da causalidade eficiente, para a qual as condições que conduzem a um


resultado não são equivalentes, e há sempre um antecedente, o qual, tendo em vista um
intrínseco poder qualitativa ou quantitativamente apreciado, é uma verdadeira causa do
resultado. Assim, é causa aquela que tem um intrínseco poder de produção de um
determinado evento.410

Ainda, e não menos importante, a teoria negativa de Mayer, a qual aceita os


postulados da teoria da equivalência das condições para chegar a uma posição negativa da
problemática da causalidade pois entende que, sendo toda condição relevante para a produção
do resultado, não há necessidade de comprovação, no caso concreto, da existência de nexo
causal para se imputarem as consequências, sendo decisiva a indagação da culpabilidade.411

como seus representantes.” (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 5ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2014, p. 72).
408
“Estabelecido o liame causal, a decorrência do dano à causa da atividade ou omissão da Administração
Pública, ou de seus agentes, exsurge daí o dever de indenizar; e, sob esse aspecto, considera-se irrelevante o fato
de o funcionário estar ou não em horário de expediente no momento do fato, ocorrendo este em razão da função
pública, a qual lhe propiciou os meios necessários à sua prática (TJRS, 5ª Turma, rel. Lopes do Canto,
30.11.2011, RJTJRS 284/211).” (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 5ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014, p. 72).
409
“(...) 2) teoria da causa próxima ou da causa direta: esta doutrina (tal como a da causa eficiente) procura
selecionar, entre todas as condições de um resultado, uma de particular relevância, a que considera causa; a
teoria da causa próxima, pelo menos em sua formulação inicial, escolhe como causa a condição
cronologicamente mais próxima do evento que se quer imputar; (...).” (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade
Civil do Estado. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 72).
410
“(…) 3) teoria da causalidade eficiente: de acordo com esta doutrina, as condições que conduzem a um
resultado não são equivalentes, e existe sempre um antecedente que, em virtude de um intrínseco poder
qualitativa ou quantitativamente apreciado, é verdadeira causa do evento; causa seria, pois, para esta teoria, a que
tem um intrínseco poder de produção do fenômeno; (...)” (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do
Estado. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 72).
411
“(…) 4) teoria negativa de Mayer: M. E. Mayer aceita os postulados da teoria da equivalência das condições
para chegar a uma posição negativa do problema da causalidade porque entende que, sendo toda condição sine
qua non relevante, carece de importância na prática comprovar a existência de uma relação de causalidade para o
efeito de imputação das consequências; o que resultaria decisivo sob tal aspecto seria a indagação da
culpabilidade; (...)” (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 5ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014, p. 72-73).

191
A teoria da causalidade típica, preconizada por Ernest Beling conduz à negação
do problema da causalidade, pelo menos no que tange ao âmbito do Direito Penal, com a
substituição pela subordinação da ação a um tipo penal incriminador.412

Por fim, a teoria da causalidade adequada sustenta que não basta que um fato
seja condição de um resultado para que o agente possa ser considerado autor desse evento,
todas as vezes que as condições não sejam equivalentes.413

Em sede de Tribunais, a controvérsia com relação a qual teoria será ou não


adotada permanece. Assim, o Superior Tribunal de Justiça, de início, adotou a teoria da
causalidade adequada, possuindo, porém, julgados com a adoção da teoria do dano direto e
imediato, sendo que esta é majoritária na doutrina. Desse modo, verifica-se que não há
unanimidade nem na doutrina, muito menos na jurisprudência quanto à teoria adotada pelo
Código Civil, com relação à relação causal.414

412
“(...) 5) teoria da causalidade típica: Beling enuncia uma doutrina que, de certa forma, conduz também à
negação do problema da causalidade, pelo menos dentro do âmbito do direito penal, substituindo-a pela
subordinação da ação a um tipo; (...)” (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 5ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 73).
413
“(...) 6) teoria da causalidade adequada: esta doutrina sustenta, assentando, assim, a sua discrepância
fundamental com a doutrina da equivalência, que não basta que um fato seja condição de um resultado para que
o agente possa se considerar autor desse evento, toda vez que as condições não sejam equivalentes.” (CAHALI,
Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 73).
414
“No Superior Tribunal de Justiça, de início, julgados podem ser encontrados fazendo menção à teoria da
causalidade adequada, como o seguinte: ‘Agravo regimental – Agravo de instrumento – Responsabilidade civil –
Descarga elétrica – Ausência de corte das árvores – Contato com os fios de alta-tensão – Nexo de causalidade
reconhecido – Culpa exclusiva da vítima – Inocorrência. 1. Em nenhum momento a decisão agravada cogitou da
falta de prequestionamento dos artigos apontados como violados, ressentindo-se de plausibilidade a alegação
nesse sentido. 2. O ato ilícito praticado pela concessionária, consubstanciado na ausência de corte das árvores
localizadas junto aos fios de alta-tensão, possui a capacidade em abstrato de causar danos aos consumidores,
restando configurado o nexo de causalidade ainda que adotada a teoria da causalidade adequada. 3. O
acolhimento da tese de culpa exclusiva da vítima só seria viável em contexto fático diverso do analisado. 4.
Agravo regimental desprovido’ (STJ, AgRg no Ag 682.599/RS, 4.a Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j.
25.10.2005, DJ 14.11.2005, p. 334). Entretanto, do mesmo Tribunal Superior, podem ser colacionadas ementas
trazendo a ideia de acordo com a teoria do dano direto e imediato, que parece ser a majoritária na doutrina:
‘Responsabilidade civil do Estado – Decisão condenatória transitada em julgado – Liquidação – Extensão dos
danos – Pretensão de revisão das provas – Impossibilidade – Súmula 07/STJ – Critério da razoabilidade da
indenização. 1. Hipótese em que o cidadão (vítima) em 07.07.1984 foi arbitrariamente detido por oficiais da
Marinha do Brasil em razão de simples colisão de seu veículo com outro conduzido por aspirante daquela Arma.
Após colidir, a vítima sofreu agressão física e verbal e foi ilegalmente presa por seis dias em cela da Marinha.
Ficou incomunicável e sem cuidados médicos, comprovadamente diante do acórdão transitado em julgado no
processo de cognição plena. O fato resultou em danos físicos e morais, e causou-lhe a deterioração da saúde.
Devido o desenvolvimento de isquemia e diabetes, teve, inclusive, os dedos dos pés amputados. 2. Ato ilícito,
nexo direto e imediato, bem como danos comprovados e ratificados na instância ordinária. Liquidação de
sentença que reconheceu pormenorizada e fundamentadamente a extensão dos abalos psíquicos sofridos pela
vítima. Valor arbitrado de forma fundamentada, incluindo-se juros de 0,5% ao mês a partir da sentença de
liquidação, no montante de R$ 72.600,00 (setenta e dois mil e seiscentos reais), mais honorários advocatícios no
montante de R$ 3.630,00 (três mil, seiscentos e trinta reais). 3. Em casos excepcionais, a jurisprudência do STJ
tem entendido, diante da abstração das teses, ser possível a revisão do montante arbitrado a título de danos

192
Conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal, com o exame da causa
geradora da responsabilidade civil do Estado, a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade
é a teoria do dano direto e imediato, nominada de teoria da interrupção do nexo causal,
dispondo que, inobstante a responsabilidade do Estado seja objetiva, isso não dispensa o
requisito, também objetivo, do nexo causal, ou seja, o vínculo entre a conduta dos agentes do
Estado e o resultado danoso causado a terceiro.415

O Estado, as entidades de direito privado prestadoras de serviço público e as


pessoas jurídicas apenas podem agir por meio de seus representantes, prepostos ou agentes. O
conceito de funcionário abrange não somente os indivíduos dos quadros do Estado, em

morais, quanto teratológica a fundamentação da decisão condenatória ou absolutamente desarrazoado o valor,


desde que não implique revisão do acervo fático-probatório. 4. No caso dos autos, ao revés, a peculiaridade é
justamente a dor, a tristeza e o sofrimento vividos pela vítima, não havendo razão para tachar a condenação de
desarrazoada, também não se pode ir além para revolver, como pretende a União, o substrato fático dos autos,
por óbvio óbice da Súmula 07/STJ. 5. Razoável o quantum indenizatório devido a título de danos morais, que
assegura a justa reparação do prejuízo sem proporcionar enriquecimento sem causa do autor, além de levar em
conta a capacidade econômica do réu, devendo ser arbitrado pelo juiz de maneira que a composição do dano seja
proporcional à ofensa, calcada nos critérios da exemplaridade e da solidariedade. Recurso especial improvido’
(STJ, REsp 776.732/RJ, 2.a Turma, Rel. Min. Humberto Martins, j. 08.05.2007, DJ 21.05.2007, p. 558)”.
(TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 2, 14ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2019, p. 541/543).
415
“O STF, examinando a causa geradora da responsabilidade civil do Estado, manifestou-se no sentido de que a
teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da
interrupção do nexo causal: ‘A responsabilidade do Estado, embora objetiva, não dispensa, obviamente,
requisito, também objetivo, do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão atribuída a seus agentes e o dano
causado a terceiros. No caso, o acórdão recorrido, para reconhecer a existência desse nexo de causalidade
declarou: ‘No que concerne ao nexo de causalidade, verifica-se que um dos componentes do bando, na qualidade
de preso-condenado, fugiu do Hospital para onde fora provisoriamente removido para suposto tratamento de
saúde, tendo, meses depois, participado da referida atividade criminosa. Sua fuga decorreu de defeito do sistema
penitenciário, configurado pela conduta negligente dos funcionários encarregados da guarda do preso. O prejuízo
sofrido pelos lesados representa consequência direta da conduta desses funcionários que, ao se descuidarem do
seu dever de vigilância, deram causa a que o preso, tempos depois da fuga, se associasse a outros elementos
igualmente perigosos e, na qualidade de mentor, líder ou chefe do bando, organizasse o roubo. Estabelecido tal
vínculo de causalidade entre a conduta do Poder Público e o dano, a consequência é o dever de indenizar’. Ora,
em nosso sistema jurídico, como resulta do disposto no art. 1.060 do CC [de 1916 – v. art. 403, CC/2002], a
teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da
interrupção do nexo causal. Não obstante aquele dispositivo da codificação civil diga respeito à impropriamente
denominada responsabilidade contratual, aplica-se ele também à responsabilidade extracontratual, inclusive
objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das
outras duas teorias existentes: a da equivalência das condições e a da causalidade adequada. Essa teoria, como
bem demonstra Agostinho Alvim (Da inexecução das obrigações, p. 370), só admite o nexo de causalidade
quando o dano é efeito necessário de uma causa, o que abarca o dano direto e imediato sempre, e, por vezes, o
dano indireto e remoto, quando, para a produção deste, não haja concausa sucessiva. Daí, dizer Agostinho Alvim
(loc. cit.): ‘Os danos indiretos ou remotos não se excluem, só por isso; em regra, não são indenizáveis, porque
deixam de ser efeito necessário, pelo aparecimento de concausas. Suposto não existem estas, aqueles danos são
indenizáveis.’ No caso, em face dos fatos tidos certos pelo acórdão recorrido, e com base nos quais reconheceu
ele o nexo de causalidade indispensável para o reconhecimento da responsabilidade objetiva constitucional, é
inequívoco que o nexo de causalidade inexiste, e, portanto, não pode haver a incidência da responsabilidade
prevista no art. 107 da Emenda Constitucional 1/69. Com efeito, o dano decorrente do assalto por uma quadrilha
de que participava um dos evadidos da prisão não foi o efeito necessário da omissão da autoridade pública que o
acórdão recorrido teve como causa da fuga dele, mas resultou de concausas, como a formação da quadrilha, e o
assalto ocorrido cerca de 21 meses após a evasão.” (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 5ª
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 73/74).

193
virtude do direito público, mas também todos aqueles que, sem distinção de função, são
chamados a colaborar no funcionamento dos serviços dos corpos públicos.416

Na atual Constituição Federal, fala-se em agente no lugar de funcionário,


compreendendo-se as pessoas que, de alguma forma, regular ou irregularmente, encontram-se
no exercício de qualquer atividade inerente ao serviço público e que são hábeis a produzir
danos a terceiros, pelos quais a responsabilidade é do Estado. Certo é que, a Constituição não
exige que o agente tenha agido no exercício de suas funções, mas na qualidade de agente
público.417

Assim, a responsabilidade civil do Estado depende de estar o funcionário ou o


agente no exercício de um múnus público, quando da causação de determinado ato danoso.
Desse modo, sempre que a condição de funcionário ou de agente público contribuir, de
alguma forma, para a prática de algum evento danoso, mesmo que somente lhe
proporcionando a oportunidade para o comportamento ilícito, o Estado responderá, com a
obrigação de indenizar o terceiro lesado.418

2.6 Responsabilidade civil do profissional da área de saúde e consentimento


informado

Este subitem tem relevância uma vez que o consentimento informado é um


documento de extrema importância no contexto da Medicina, mormente na hipótese da
responsabilidade civil do médico. O consentimento informado pode ser conceituado como o

416
“Na realidade, ‘a expressão (funcionário) abrange não apenas os indivíduos dos quadros do Estado ou dos
corpos locais, em virtude de título de direito público, isto é, os que são designados para executar funções
pertinentes ao domínio do direito público, mas também, em geral, todos os que, sem distinção de função, são
chamados, de um modo ou doutro, para colaborar no funcionamento dos serviços dos corpos públicos’.”
(CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 79).
417
“Sensível a tais enunciados da doutrina e da jurisprudência, o constituinte de 1988 substituiu a expressão
‘funcionário’, que se continha nas Constituições anteriores, por ‘agente’, que, mesmo fora do plano jurídico-
administrativo, revela-se mais adequada, pela sua maior compreensão; assim, o art. 37, §6º, da atual Constituição
dispõe que ‘as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos
responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de
regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa’, o que é reiterado no art. 43 do atual CC. (…)
acrescente-se que não mais se exige que o funcionário tenha agido nessa qualidade, ‘como representante do
Estado’: ‘A Constituição não exige que o agente tenha agido no exercício de suas funções, mas na qualidade de
agente público’.” (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 5ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014, p. 79 e 81).
418
“Em síntese, sempre que a condição de funcionário ou agente público tiver contribuído de algum modo para a
prática do ato danoso, ainda que simplesmente lhe proporcionando a oportunidade para o comportamento ilícito,
responde o Estado pela obrigação de indenizar.” (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 5ª
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 85).

194
comportamento por meio do qual se autoriza algum indivíduo a atuar de determinada forma.
O consentimento é fornecido para a atuação do próprio médico.419

O consentimento informado, em sua acepção genérica, é o comportamento por


meio do qual se autoriza algum indivíduo a atuar de determinado modo. No contexto da
relação médico/paciente, caracteriza-se pela autorização de atuação na esfera físico-psíquica
do paciente, com o fim de melhora de sua saúde ou de terceiros, indo além da faculdade do
paciente de escolher o médico que irá cuidar de sua saúde ou de recusar determinado
tratamento, mas afirmando a autonomia existencial do paciente em relação a sua saúde e
qualidade de vida.420

O consentimento é muito mais do que uma simples faculdade de o paciente


escolher qual o médico que irá cuidar de sua saúde, ou de se recusar a se submeter a um certo
tratamento médico que lhe seja indesejado. A primeira vez que se fez referência ao
consentimento foi em 1767, na Inglaterra. No caso, um paciente procurou um médico para
que ele continuasse o tratamento de uma fratura óssea, em sua perna. No caso concreto, os
médicos, com o fim de fazer uso de um aparelho não convencional, teriam provocado, por
culpa, nova fratura, causando danos desnecessários, além de o paciente não haver sido
informado, ou sequer consultado sobre o procedimento que seria realizado.421

419
“Consentimento é o comportamento mediante o qual se autoriza a alguém determinada atuação. No caso do
consentimento para o ato médico, uma atuação na esfera físico-psíquica do paciente, com o propósito de
melhoria da saúde do próprio enfermo ou de terceiro.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do
médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 46).
420
A primeira vez que se fez referência ao consentimento e à informação vem de 1767, na Inglaterra. Naquela
época, um paciente, de nome Slater procurou o Dr. Baker, que atuava juntamente com o Dr. Stapleton, para que
este dessa continuidade ao tratamento de uma fratura óssea em sua perna. Estes referidos médicos, sem qualquer
consulta ao paciente, quando retiraram a bandagem, desuniram o calo ósseo, de maneira proposital, com o fim de
fazer uso de um aparelho não convencional, para causar uma tração durante o processo de consolidação. O
paciente foi à Justiça com a acusação de que os médicos teriam provocado, por ignorância e imperícia, nova
fratura, causando danos desnecessários, além de não haver sido informado, ou sequer consultado sobre o
procedimento que seria realizado. Ele informou ainda que teria contestado os médicos quando o procedimento
foi feito, solicitando, inclusive, que não fosse levado adiante. Diante do quadro apresentado, a Corte condenou os
médicos por quebra de contrato na relação médico-paciente. No momento da sentença, o juiz preocupou-se tanto
com a ausência de consentimento, quanto com a ausência de informação. (In NETO, Miguel Kfouri. A
responsabilidade civil do médico. 8ª ed. São Paulo; Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 47).
421
“Com efeito, o consentimento informado representa mais do que uma mera faculdade de escolha do médico,
de dissenso (ou recusa) sobre uma terapia, ou mero requisito para afastar o espectro da negligência médica. A
obtenção do consentimento representará o corolário do ‘processo dialógico e de recíprocas informações’ entre
médico e paciente, a fim de que o tratamento possa ter início. Clotet, Goldim e Francisconi mencionam que a
primeira referência a consentimento e informação data de 1767: ‘Na Inglaterra, um paciente, Sr. Slater, procurou
o Dr. Baker, que atuava junto com o Dr. Stapleton para dar continuidade ao tratamento de uma fratura óssea de
sua perna. Os dois médicos, sem consultar o paciente, ao retirarem a bandagem, desuniram o calo ósseo,
propositadamente, com o objetivo de utilizar um aparelho, de uso não convencional, para provocar tração
durante o processo de consolidação. O paciente foi à Justiça acusando os médicos de terem provocado por

195
De outro lado, o paciente relatou que não houve consentimento quanto ao
procedimento médico. Diante do quadro apresentado, houve condenação dos médicos. No
momento da sentença, o juiz preocupou-se tanto com a ausência de consentimento, quanto
com a ausência de informação. Na época do ocorrido, era comum os médicos informarem
seus pacientes sobre os procedimentos a serem realizados, devido à necessidade de sua
colaboração durante as cirurgias, uma vez que ainda não existia anestesia.422

O Código Civil brasileiro, no capítulo relativo aos direitos de personalidade,


inseriu, em seu art. 15, a necessidade de obtenção do consentimento do paciente para a
realização de tratamentos médicos ou intervenções cirúrgicas, consignando que ninguém pode
ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção
cirúrgica.

Nos termos do dispositivo transcrito, incorre o médico em responsabilidade na


hipótese de tratamento ministrado sem obtenção de seu consentimento livre e esclarecido.
Assim, verifica-se que o consentimento é um pré-requisito de todo tratamento ou intervenção
a ser realizado. Para que se caracterize a responsabilidade do médico nesses casos, deve haver
uma relação entre a falta de informação e o prejuízo causado.

A ausência de consentimento, por si só, já significa uma espécie de lesão,


sendo, portanto, passível de reparação de dano. Não obstante, no caso de o dano ser causado
por culpa do médico, é possível que não tenha importância a discussão sobre a qualidade da
informação. Porém, quando a intervenção médica é correta, mas não houve informação
adequada, a questão torna-se relevante, uma vez que o médico pode responder pela falta ou

ignorância ou imperícia nova fratura, causando danos desnecessários, além de não o terem informado ou
consultado sobre o procedimento que seria realizado.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do
médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 46/47).
422
“Com o objetivo de esclarecer detalhes do caso, foram utilizadas testemunhas peritas, ou seja, outros médicos
reconhecidamente competentes nesta área para darem sua opinião sobre o ocorrido. Os dois médicos que
testemunharam como peritos foram unânimes em afirmar que o equipamento utilizado não era de uso corrente,
que somente seria necessário refraturar uma lesão óssea no caso de estar sendo muito mal consolidada, e,
finalmente, que eles somente realizariam uma nova fratura em um paciente que estivesse em tratamento com seu
consentimento. O paciente alegou, inclusive, que teria protestado quando o procedimento foi realizado,
solicitando que o mesmo não fosse levado adiante. A Corte condenou os médicos por quebra do contrato na
relação assistencial com o paciente. (…). Na sentença ficou claro que o juiz estava preocupado tanto com a falta
de consentimento quanto com a falta de informação. Vale lembrar que, naquela época, era prática dos cirurgiões
informarem o paciente sobre os procedimentos que seriam realizados devido à necessidade de sua colaboração
durante as cirurgias, pois ainda não havia anestesia.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do
médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 47).

196
carência no cumprimento desse dever, mesmo que não haja prova de ter ocorrido culpa deste
profissional.423

A responsabilização, na relação médico-paciente, surge pela falta de


informação ou quando esta é incorreta, não sendo necessária a prova de negligência no
tratamento. No que tange à relação de causalidade, a vítima deve demonstrar que o dano
adveio de um risco a respeito do qual deveria ter sido avisada, para que houvesse aceitação ou
recusa do tratamento.424

O ônus de provar que houve o adequado cumprimento do dever de informar


previamente ao paciente sobre os riscos do tratamento/procedimento incumbe ao médico 425. O
consentimento deve ser esclarecido, ou seja, o paciente deve ser previamente informado dos
atos a que vai se submeter, dos riscos previsíveis, conforme o estado de evolução da ciência e
as consequências que podem advir do ato que será realizado.426

423
“Lorenzetti afirma que a ausência do consentimento pode constituir lesão autônoma, por si só danosa e
passível de indenização. Refere-se ao caso Schoendorff vs. Society os New York Hospital, no qual a autora,
portadora de um fibroma, teve o tumor extraído cirurgicamente. Ocorre que a paciente acreditava que se tratava
de simples intervenção para corroborar o diagóstico. Houve agravamento do estado de saúde da paciente, que
passou a sofrer de outros males, que imputou ao médico. O tribunal considerou que, além da responsabilidade
por culpa, caracterizou-se ofensa à liberdade pessoal. Nesses casos, verifica-se o nexo causal entre a omissão de
informação e o dano, a fim de se estabelecer o dever de indenizar. Na eventualidade de o dano ter sido causado
por culpa do médico, normalmente torna-se irrelevante discutir a qualidade da informação – que é um dever
secundário de conduta. Entretanto, quando a intervenção médica é correta – e não se informou adequadamente –,
a questão se torna crucial. Poderá haver responsabilização pela falta ou deficiência no cumprimento do dever de
informar, ainda que não se possa provar claramente haver culpa no descumprimento da obrigação principal.”
(NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico. 8ª ed. São Paulo; Editora Revista dos Tribunais,
2013, p. 48/49).
424
Importante registrar, entretanto, que a questão da falta de informação não tem relevância, se a discussão se
der no caso do prejuízo que o paciente sofreria, se recusado o tratamento, fosse maior do que o dano derivado da
intervenção. Essa objeção de Miguel Kfouri é importante para delimitação do âmbito do debate acerca das
consequências do descumprimento do dever de informação. (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do
médico. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 49).
425
“O ônus de provar a obtenção do consentimento informado cabe ao médico. Tal prova, preferentemente, deve
ser escrita, revestir forma documental. Decisão da Corte de Cassação francesa (1ª Câm., 14.10.1997) –
mencionada pelo Prof. Galán – confirmou julgado da Corte de Apelação de Tennes (31.05.1995), para absolver
ginecologista que aconselhou jovem paciente a realizar uma celioscopia (exame endoscópico da cavidade
abdominal depois de insuflada). O exame se destinaria a investigar possível etiologia ovariana, pois a moça, não
obstante mãe de um filho, há muito se encontrava em tratamento hormonal para novamente engravidar, sem
êxito. No curso da celioscopia, após insuflado ar na cavidade, sobreveio embolia gasosa, que determinou a morte
da paciente. O marido e o filho da falecida sustentaram, em essência, a falta de informação sobre o risco daquele
exame. As Cortes entenderam que, por ser a paciente técnica de laboratório naquele mesmo hospital onde
ocorrera a intervenção – e tendo ela mantido distintas conversações com o médico –, seria de se presumir estar
perfeitamente informada dos riscos inerentes ao procedimento.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil
do médico. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 51).
426
O consentimento escrito é o melhor para o fim de comprovar que houve a concordância do paciente, bem
como se o consentimento foi obtido respeitando-se a autonomia e se houve suficiente esclarecimento do
paciente. Ocorre que, a atividade médica, por ser dinâmica, realiza procedimentos em relação aos quais a
exigência do consentimento por escrito pode ser difícil, a depender das circunstâncias e do tipo de procedimento.

197
Quando for impossível ao doente a manifestação de sua vontade, deve o
médico obter autorização por escrito, para o tratamento médico ou para a intervenção
cirúrgica de risco, de qualquer parente maior, da linha reta ou na colateral até o segundo grau,
ou do cônjuge, por analogia com o que se encontra previsto no artigo 4º da Lei n.º 9.434/97, o
qual cuida da retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoa falecida.427

Caso não haja tempo hábil para ouvir o paciente ou para tomar as providências
referidas acima, e se tratar de emergência ou urgência que exige pronta intervenção médica,
como é o caso de parada cardíaca, tem o profissional a obrigação de realizar o tratamento,
independentemente de autorização, não restando qualquer tipo de responsabilidade pela falta
de consentimento. Na hipótese de a conduta médica mostrar-se inadequada, fruto de
imperícia, haverá responsabilidade médica.428

O dever de informação é de suma importância e contém um forte conteúdo de


relacionamento entre as partes envolvidas, o que significa que ele deve se adaptar aos casos
concretos ocorridos, além do que, devem ser consideradas as características pessoais dos
envolvidos na relação obrigacional. O médico deve, assim, no momento do consentimento,
verificar o nível cultural de cada paciente e a sua capacidade de entendimento.429

Nestes casos, o que importa é a comunicação e a explicação oral ou gestual, entre o médico e o paciente, bem
como a confiança mútua entre os dois. São obrigações do médico o respeito a autonomia do paciente e o
esclarecimento de todas as suas dúvidas e incertezas. 426 (SLAWKA, Sérgio. O termo de consentimento livre e
esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área de saúde: uma revisão crítica. São Paulo: 2005. Biblioteca
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Disponível em www.USP/FM/SBD-009/05. Acesso
em 04/04/2019.
427
“Na impossibilidade de o doente manifestar a sua vontade, deve-se obter a autorização escrita, para o
tratamento médico ou a intervenção cirúrgica de risco, de qualquer parente maior, da linha reta ou na colateral
até o 2º grau, ou do cônjuge, por analogia com o disposto no art. 4º da Lei n.º 9.434/97, que cuida da retirada de
tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoa falecida.” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro.
Volume 4, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 186).
428
“Se não houver tempo hábil para ouvir o paciente ou para tomar essas providências, e se se tratar de
emergência que exige pronta intervenção médica, como na hipótese de parada cardíaca, por exemplo, terá o
profissional a obrigação de realizar o tratamento, independentemente de autorização, eximindo-se de qualquer
responsabilidade por não tê-la obtido. Responsabilidade haverá somente se a conduta médica mostrar-se
inadequada, fruto de imperícia, constituindo-se na causa do dano sofrido pelo paciente ou de seu agravamento.”
(GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 4, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 243).
429
“O dever de informar, previsto no art. 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor, está ligado ao princípio
da transparência e o obriga a fornecer e a prestar as informações acerca do produto e do serviço. Esse princípio
é detalhado no art. 31, que enfatiza a necessidade de serem fornecidas informações corretas, claras, precisas e
ostensivas sobre os serviços, ‘bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores’.
O aludido dever abrange o de se informar o médico acerca do progresso da ciência sobre a composição e as
propriedades das drogas que administra, bem como sobre as condições particulares do paciente, realizando, o
mais perfeitamente possível, a completa anamnese.” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro.
Volume 4, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 241/242).

198
Em caso de realização de cirurgia desnecessária, o consentimento dado é
considerado inválido. A obrigação dos médicos é prestar uma informação ao paciente de
forma objetiva, completa, com veracidade e acessível. Deve o médico informar ao paciente o
diagnóstico, o prognóstico, os riscos e quais são os objetivos do tratamento. Além disso, tem
o dever de aconselhar o paciente, prescrevendo cuidados que o ele deve adotar. Caso essa
obrigação não seja adimplida, haverá a obrigação de indenizar.430

De outro lado, cabe ao médico o ônus de provar que houve a obtenção do


consentimento informado. Essa prova deve ser escrita, para que possa ficar documentada. Ao
médico é imposta a comprovação por escrito do consentimento e a prova da informação pode
ser feita por todos os meios em direito admitidos. O consentimento deve ser esclarecido, ou
seja, o paciente deve ser previamente informado dos atos a que vai se submeter, dos riscos
previsíveis, conforme o estado de evolução dos conhecimentos científicos e as consequências
do ato que será realizado.431

Tendo em conta a necessidade dos médicos de informar acerca de todos os


procedimentos e intervenções que serão realizadas no paciente, e reconhecendo sua
importância na tomada de decisão por parte desse último, o Conselho Federal de Medicina
editou a Recomendação n.º1/2016, que dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento
livre e esclarecido na assistência médica.

A primeira questão – que salta aos olhos quando da leitura da dita


recomendação – é que seu título já faz alusão ao consentimento livre, o que, de plano,

430
“O consentimento para uma cirurgia desnecessária é inválido, com base na norma que declara a invalidade do
ato que ocasiona diminuição permanente da integridade física. A jurisprudência italiana relata, a propósito, caso
ilustrativo: a cirurgia programada destinava-se à extração de um pequeno lipoma (tumor benigno e indolor) da
coxa direita – intervenção modesta, de caráter quase ambulatorial. O médico, porém, sem o consentimento da
paciente e sem que ela ao menos soubesse, removeu uma lipomatose (condição mórbida caracterizada por
acúmulos anormais de gordura em tecidos), significativamente destrutiva, na coxa esquerda. O ato cirúrgico,
sobretudo, não era justificado por nenhuma necessidade premente – e daí resultou deformação permanente, de
natureza estética e funcional, por complicações pós-operatórias, imputáveis também à negligente assistência
prestada pelo profissional. Os médicos, repita-se, devem aos pacientes uma informação objetiva, veraz, completa
e acessível. (...) O médico deve informar ao paciente o diagnóstico, prognóstico, riscos e objetivos do tratamento.
Haverá, também, de aconselhá-lo, prescrevendo cuidados que o enfermo deverá adotar. O inadimplemento desse
deve conduzir à obrigação de indenizar.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 50-51).
431
“Até então, sempre se impusera ao medico a comprovação por escrito do consentimento. A decisão sob
comento assegurou que a prova da informação pode ser realizada por todos os meios em direito admitidos. Em
França, a obrigação de se obter o consentimento está claramente expressa nos arts. 35 e 35 do novo Código de
Deontologia. O consentimento deve ser livre e renovado para cada ato médico ulterior, bem assim esclarecido,
vale dizer, o paciente deve ser previamente informado dos atos a que vai se submeter, dos riscos normalmente
previsíveis, de acordo com o estado atual de evolução dos conhecimentos científicos, quais as consequências do
ato a ser realizado.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013, p. 50).

199
remonta à ideia de capacidade plena. Com a entrada em vigor da Lei n.º 13.146, conhecida
como Estatuto do Deficiente, os incapazes, exceto os menores de 18 anos, passaram a ser
considerados legalmente capazes, independente do estado de incapacidade que os acomete.

Não é objetivo do presente estudo uma discussão aprofundada das


repercussões dessa inovação legislativa, mas importa registrar que, nos termos da referida
recomendação, o representante legal, muitas vezes é instado, juntamente com o paciente, a
assumir a responsabilidade de cumprimento fiel de todas as recomendações feitas pelo médico
assistente.

O mesmo documento assevera que crianças, adolescentes e pessoas que,


mesmo com deficiência de ordem física ou mental, estão aptas a compreender e a manifestar
sua vontade por intermédio do assentimento, de forma livre e autônoma, não devem ser
afastadas do processo de informação e compreensão do procedimento médico que lhes é
recomendado432.

Segundo a exposição de motivos da Recomendação n.º1/2016, a obediência ao


mandamento constitucional de respeito à dignidade da pessoa humana, na área da saúde, passa
pelo direito a uma escolha livre, por parte do paciente, nas questões atinentes ao seu
tratamento de saúde e procedimentos cirúrgicos a que deve ser submetido. Na dicção do
próprio documento, o princípio de respeito à autonomia tornou-se, nas últimas décadas, uma
das principais ferramentas conceituais da ética aplicada, sendo utilizado em contraposição
ao assim chamado princípio paternalismo médico433.

O Código de Ética Médica, em seus arts. 31 e 34, expressamente consigna que


é vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de
decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso
de iminente risco de morte e deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os

432
“A participação do menor na obtenção do assentimento livre e esclarecido deve ser incentivada: o Estatuto da
Criança e do Adolescente garante-lhe a liberdade de opinião e a expressão e o direito ao respeito de sua
autonomia, sendo que, durante o processo, serão levadas em consideração sua idade e maturidade intelectual e
emocional. Nos demais casos de incapacidade, a participação dos envolvidos também deverá ser estimulada, a
partir da avaliação do grau de comprometimento da capacidade de entendimento dos pacientes. Pacientes que,
por qualquer razão, apresentam maior dificuldade em entender a informação devem receber explicações mais
detalhadas e adequadas a seu grau de compreensão.”) Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo
de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em
https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/recomendacoes/BR/2016/1. Acesso em 22/07/2019.
433
Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido
na assistência médica. Disponível em https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/recomendacoes/BR/2016/1.
Acesso em 22/07/2019.

200
riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar
dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal. 434

A recomendação em comento também traz várias orientações quanto à forma


do consentimento informado, a começar pela adoção de uma forma escrita. Muito embora as
informações e esclarecimentos possam ser realizados verbalmente, a recomendação é que se
faça por escrito para uma maior segurança do médico, a fim de que se evite a sua
responsabilidade. Tal recomendação tem aspectos positivos e negativo, mas, essencialmente,
facilita ao médico comprovar que as informações essenciais foram, efetivamente, prestadas.

Não obstante, a práxis aponta no sentido de que esse documento escrito,


normalmente, é entregue ao paciente para que ele assine, contendo informações técnicas, que,
muitas vezes, escapam à sua capacidade de compreensão, mas cumprem um dever formal de
registro da assinatura do paciente, sem que ele tenha efetivamente concordado com o
procedimento. Esse é o aspecto negativo da recomendação, pois a comunicação entre o
médico e o paciente não é um simples ato de se apor uma assinatura em um documento.

Assim, o chamado termo de consentimento livre e esclarecido deve ser


elaborado em linguagem clara, que permita ao paciente entender o procedimento e suas
consequências, na medida de sua compreensão. Se houver necessidade de termo científico, ele
precisa vir acompanhado de seu significado, com linguagem acessível, com vistas a facilitar a
comunicação médico-paciente.435

A finalidade da comunicação nesse caso é agregar informações, construir


relacionamentos, explicar e planejar. Trata-se de um processo fundamental para que se
estabeleça um nível satisfatório de confiança na tomada de decisão, daí a necessidade de ser a
mais clara e transparente possível: sem exageros, sem dramas, mas com respeito, não só ao
direito de escolha do paciente, mas, sobretudo, ao seu estado de vulnerabilidade, diante da
necessidade de tratamento.

434
Código de Ética Médica. Conselho Federal de Medicina. 2019. Disponível em
http://www.portalmedico.org.br/novocodigo/integra_5.as. Acesso em 22/07/2019.
435
“Em resumo, as seguintes recomendações são apresentadas neste documento: (…) c) A redação do
documento deve ser feita em linguagem clara, que permita ao paciente entender o procedimento e suas
consequências, na medida de sua compreensão. Os termos científicos, quando necessários, precisam ser
acompanhados de seu significado, em linguagem acessível.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o
processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em
https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/recomendacoes/BR/2016/1. Acesso em 22/07/2019.

201
A literatura sobre o tema sugere que, quando há a obtenção, a partir de um rito
burocrático, do termo de consentimento, ele pode ter influência no comportamento do
paciente em relação ao tratamento. A desatenção do médico também pode influenciar o
paciente, que, por não receber as informações adequadas, terá uma maior tendência em
abandonar o tratamento e não aderir à medicação que lhe foi indicada. As distorções de
comunicação entre médico e paciente influenciam na maior ou menor aceitação do termo de
consentimento pelo paciente.436

Em caso de doenças que causam risco de morte, como câncer ou aids, a


comunicação do médico com o paciente é mais crítica, uma vez que, à medida em que o
paciente vai se tornando mais doente, o seu sentido de controle pessoal vai sendo substituído
por uma maior dependência ao médico, dando outro rumo em sua capacidade de decisão
perante o termo de consentimento e, ainda, prejudicando a sua obtenção.437

Com relação a letra a ser utilizada, recomenda-se que seja pelo menos em
tamanho 12 e com finalidade de incentivar a leitura e a compreensão. Além disso, deve o
termo ser escrito com espaços em branco ou alternativas para que o paciente possa, se desejar,
completá-lo com perguntas a serem respondidas pelo médico assistente ou assinalar
alternativas que incentivem a compreensão do documento. Após ser assinado pelo paciente,
esses espaços em branco e/ou alternativas, se não forem preenchidos, devem ser considerados
inválidos.438

436
Sergio Slawka aponta que, quando existe uma comunicação efetiva do médico com o paciente, o primeiro
pode identificar o problema dos pacientes mais facilmente, os pacientes ficam mais satisfeitos e podem
compreender melhor os seus problemas e opções terapêuticas, os pacientes ficam mais propensos a aderir ao
tratamento e segui-lo, há uma diminuição do estresse do paciente e de sua vulnerabilidade à depressão e à
ansiedade, havendo, ainda, melhoria do bem-estar dos médicos. (SLAWKA, Sérgio. O termo de consentimento
livre e esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área de saúde: uma revisão crítica. São Paulo: 2005.
Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Disponível em www. USP/FM/SBD-
009/05. Acesso em 04/04/2019.
437
“No caso de doenças com risco de vida, tais como câncer e aids, a comunicação médico-paciente é ainda mais
crítica e vulnerável aos atributos que os pacientes depositam em seus médicos: à medida que o paciente vai
tornando-se mais enfermo, o seu sentido de controle pessoal vai sendo substituído por uma maior dependência
física e emocional do seu médico, produzindo um viés em sua capacidade decisória perante o TCLE e
prejudicando o seu processo de obtenção (HALL, 2001).” (SLAWKA, Sérgio. O termo de consentimento livre e
esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área de saúde: uma revisão crítica. São Paulo: 2005. Biblioteca
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Disponível em www. USP/FM/SBD-009/05. Acesso
em 04/04/2019.
438
“Em relação ao tamanho da letra, recomenda-se que seja pelo menos 12 e, com a finalidade de incentivar a
leitura e a compreensão, que o termo seja escrito com espaços em branco ou alternativas para que o paciente
possa, querendo, completá-los com perguntas a serem respondidas pelo médico assistente ou assinalar as
alternativas que incentivem a compreensão do documento. Depois de assinado pelo paciente, tais espaços em
branco e/ou alternativas, quando não preenchidos, deverão ser invalidados.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 –

202
As funções do consentimento livre e esclarecido são as seguintes: respeitar os
princípios da autonomia, da liberdade de escolha, da dignidade, da igualdade e do respeito ao
paciente, quando o paciente for cientificado sobre o que se trata, o porquê da recomendação e
como será o procedimento a ser realizado, essas informações devem ser suficientes, claras,
amplas e esclarecedoras, para que o paciente tenha condições de decidir se consentirá ou não
com a execução do procedimento.

Esse processo de esclarecimento deve ainda estreitar as relações de


colaboração e de participação entre o médico e o paciente; definir a maneira pela qual será a
atuação do médico. Para que o paciente possa fornecer um consentimento livre e esclarecido,
é necessária a presença dos seguintes requisitos: informação plena, participação voluntária e
capacidade de tomar uma decisão. Assim, o processo de obtenção do termo de consentimento
significa o dever de o médico informar e explicar a respeito dos procedimentos específicos a
que se submeterá o paciente.439

O consentimento deve ser obtido após o médico esclarecer ao paciente, de


forma suficiente, sobre qual procedimento ele será submetido440. Caso haja dúvidas, ou o
paciente solicitar outros esclarecimentos, ou sentir-se inseguro, deverá ser atendido com

Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em
https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/recomendacoes/BR/2016/1. Acesso em 22/07/2019.
439
“Para que o sujeito da pesquisa possa fornecer um consentimento livre e esclarecido genuíno, é necessária a
presença de três elementos diferenciados no processo de obtenção deste TCLE: informação plena, participação
voluntária e capacidade de tomar uma decisão (Dunn; Jeste, 2001). Portanto, o processo de obtenção do TCLE
significaria não apenas o dever do médico em informar os procedimentos específicos do estudo clínico, mas
também o dever de envolver e apoiar o paciente no seu processo de decisão sobre cuidados com a saúde.”
(SLAWKA, Sérgio. O termo de consentimento livre e esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área de
saúde: uma revisão crítica. São Paulo: 2005. Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo. USP/FM/SBD-009/05). Acesso em 04/04/2019.
440
O termo de consentimento livre e esclarecido deve conter, obrigatoriamente: a) a justificativa, os objetivos e a
descrição sucinta, clara e objetiva, em linguagem acessível, do procedimento que foi recomendado ao paciente;
b) a duração e a descrição dos possíveis desconfortos no curso do procedimento; c) os benefícios esperados, os
possíveis riscos, os métodos alternativos e as eventuais consequências da não realização do procedimento; d) os
cuidados que o paciente deve adotar após o procedimento; e) a declaração do paciente de que foi devidamente
esclarecido sobre o procedimento a ser realizado, apondo a sua assinatura; f) declaração de que o paciente é livre
para não consentir com o procedimento, sem qualquer penalidade ou sem qualquer prejuízo; g) declaração do
médico de que explicou, de forma clara, todo o procedimento; h) os nomes completos do paciente e do médico,
assim como, quando couber, de membros de sua equipe, seu endereço e contato telefônico, para que possa ser
facilmente localizado pelo paciente; i) a assinatura ou identificação por impressão datiloscópica do paciente ou
de seu representante legal e assinatura do médico; j) o documento deve ser impresso em duas vias, ficando uma
com o paciente e outra arquivada no prontuário médico. (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o
processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em
https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/recomendacoes/BR/2016/1. Acesso em 22/07/2019.

203
respeito e presteza, sem qualquer constrangimento, fraude, coação, com o objetivo de
preservar sua dignidade e autonomia.441

Na hipótese de o paciente prestar o seu consentimento, ele deve compreender a


informação que lhe é dada e aceitá-la como verdadeira. Deve haver um tempo para que faça
as suas perguntas, tire as suas dúvidas e aceite algumas notícias, principalmente diante de um
prognóstico negativo. Quando um paciente recebe más notícias, ele pode não estar pronto para
dar seu consentimento ou mesmo para negá-lo.442

O termo de consentimento genuíno pressupõe a compreensão de todas as


informações oferecidas pelos sujeitos, incluindo expressões como possivelmente,
provavelmente, entre outras, que são usadas para se referir a riscos de ocorrerem efeitos
adversos durante o tratamento. A idade do paciente, seu nível intelectual, sua prévia
experiência com riscos de saúde, sua preferência por expressões de probabilidade, o contexto
no qual as informações lhe são apresentadas, dentre outros, são fatores que interferem na
compreensão das informações apresentadas e, como consequência, na obtenção do
consentimento.443

Como o objetivo do profissional de saúde é o esclarecimento do paciente,


necessário se faz que o profissional valide a informação que é transmitida. A validação faz

441
“O consentimento do paciente deve ser obtido após o médico ou a pessoa capacitada por ele indicada
esclarecê-lo, suficientemente, sobre o procedimento médico a que será submetido. Se o paciente tiver dúvidas,
solicitar outros esclarecimentos ou sentir-se inseguro, deverá ser atendido com presteza, respeito e sem qualquer
tipo de influência, constrangimento, coação ou ameaça, a fim de preservar sua autonomia e dignidade.”
(Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na
assistência médica). Disponível em https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/recomendacoes/BR/2016/1.
Acesso em 22/07/2019.
442
“Além de compreender a informação, o paciente tem de aceitá-la como verdadeira e não manipulada. Para
isso, é preciso reservar tempo para que o paciente faça suas indagações e para aceitação de algumas notíciais.
Por exemplo, especialmente nos prognósticos negativos, pode ocorrer uma fase de negação logo após o paciente
tomar conhecimento de sua situação, tornando-se necessário, sempre que possível, um período de tempo para
adaptação.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e
esclarecido na assistência médica). Disponível em
https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/recomendacoes/BR/2016/1. Acesso em 22/07/2019.
443
“A presença de um distúrbio psiquiátrico, ainda que seja um problema, não predetermina se um paciente irá
compreender, ou não, as informações importantes antes de decidir aceitar ou recusar o TCLE (Dunn; Jeste,
2001). As variáveis que dificultam a compreensão das informações e tomada de decisão pelo sujeito não estão
restritas apenas a pacientes psiquiátricos ou com disfunções cognitivas, uma vez que várias patologias ou
medicações podem reduzir a compreensão do sujeito sobre o TCLE. Os estudos mostram que a idade e nível
educacional interferem na compreensão, por conseguinte, no processo de decisão. A escolaridade mais elevada
tem sido considerada estar associada a uma melhor compreensão do TCLE.” (SLAWKA, Sérgio. O termo de
consentimento livre e esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área de saúde: uma revisão crítica. São
Paulo: 2005. Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. USP/FM/SBD-009/05).
Acesso em 04/04/2019.

204
com que o profissional se certifique de que se fez entender pelo paciente. Com esse fim, pode
pedir para o paciente repetir o que foi dito ou acertado entre os dois.444

O médico deve deixar de atender ao paciente, caso seja impossível ou


contraindicado satisfazer o seu desejo. Caso seja possível e indicado o procedimento, o
percentual de risco de complicação deve ser informado para que o paciente não se surpreenda
com eventual insucesso. Se, no caso concreto, o médico souber do insucesso da cirurgia e,
mesmo assim, resolver agir, agirá com alheamento ou flagrante má-fé.445

No caso de a conduta do médico ser culposa e ter ocasionado um dano ao


paciente, é possível que não tenha importância a discussão acerca da qualidade da informação,
que é, no caso, um dever secundário. Porém, quando a intervenção médica é feita de forma
correta, mas não houve informação adequada, a questão assume relevância, pois pode haver
responsabilização, pela falta ou carência no cumprimento desse dever de informar, mesmo
sem a prova da culpa no descumprimento da obrigação principal.446

A culpa, na relação médico/paciente, surge pela falta de informação, ou quando


esta é incorreta, não sendo necessária a prova de negligência no tratamento. No que tange à
relação de causalidade, a vítima deve demonstrar que o dano adveio de um risco a respeito do
qual deveria ter sido avisada, para que houvesse aceitação ou recusa do tratamento. Mas, no

444
“Como o objetivo é o esclarecimento, é preciso que o profissional valide a informação que está transmitindo
ao paciente. A validação permite certificar se ele se fez entender pelo paciente. Para isso, pode-se pedir para o
paciente repetir o que foi dito ou acertado entre os dois.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o
processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em
https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/recomendacoes/BR/2016/1. Acesso em 22/07/2019.
445
“Se o médico sabe não ser possível atender ao desejo do paciente insatisfeito com o próprio corpo e, mesmo
assim, assume o compromisso de fazer a cirurgia, estará agindo com alheamento ou com má-fé. Daí a distinção
doutrinária e jurisprudencial. De qualquer modo, em caso de insatisfação do paciente, cabe ao médico dessa
especialidade provar que aceitou a incumbência porque o intento era plenamente possível, plausível e adequado,
e que, a seguir, o empenho técnico foi absolutamente acertado, mas que, por motivo superveniente impossível de
ser afastado, ou por reações inexplicáveis do corpo humano, o resultado não foi o desejado.” (SEBASTIÃO,
Jurandir. Responsabilidade civil médico/hospitalar e o ônus da prova. Revista Jurídica UNIJUS. ISSN 1518-
8280. R. Jur. UNIJUS. Uberaba/MG. V. 9, n.º 11. Nov. 2006, p. 1-256). Disponível em:
file:///C:/Users/m313790/Downloads/1035-3727-1-PB.pdf. Acesso 17/jul/2019.
446
“Na eventualidade de o dano ter sido causado por culpa do médico, normalmente torna-se irrelevante discutir
a qualidade da informação – que é um dever secundário de conduta. Entretanto, quando a intervenção médica é
correta – e não se informou adequadamente –, a questão se torna crucial. Poderá haver responsabilização pela
falta ou deficiência no cumprimento do dever de informar, ainda que não se possa provar claramente ter havido
culpa no descumprimento da obrigação principal.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico,
8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 49).

205
caso do prejuízo que o paciente sofreria, se recusado o tratamento, fosse maior do que o dano
derivado da intervenção, a questão da falta de informação não tem relevância.447

No caso de recusa do tratamento, a pessoa deve demonstrar que haveria a


recusa mesmo se convenientemente informada sobre o tratamento. Não é concedida
indenização no caso de, com as mesmas informações e mesmas circunstâncias, outra pessoa
aceitar submeter-se à terapia. A deficiente obrigação de se obter o consentimento esclarecido,
com o paciente, deve ser devidamente provada.448

Sob a ótica contratual, é condição indispensável o consentimento para a


formação do contrato, o qual é, na perspectiva de direito público, expressão de liberdade
fundamental do indivíduo, qual seja, de recusar sofrer dano à sua integridade física e corporal,
com a consciência das consequências dessa recusa. Desse modo, o reconhecimento deve ser
obtido previamente à execução de qualquer ato médico.449

O médico deve verificar o nível cultural e a capacidade de discernimento do


paciente e prestar, de maneira severa, a informação sobre o diagnóstico, o prognóstico e as
terapêuticas possíveis. Resumindo: o paciente deve compreender as consequências do ato,
levando em conta os conhecimentos médicos disponíveis. Essas providências são necessárias
para que se assegure o respeito à dignidade da pessoa e aos direitos do paciente. Na hipótese

447
“Segundo Lorenzetti, a culpa surge pela falta de informação, ou pela informação incorreta. Não é necessário
negligência no tratamento. Quanto ao nexo causal, a vítima deve demonstrar que o dano provém de um risco
acerca do qual deveria ter sido avisada, a fim de deliberar sobre a aceitação ou não do tratamento. Porém, caso o
prejuízo que o paciente sofreria, recusando o tratamento, fosse maior que o dano decorrente da intervenção, a
questão da falta de informação resultaria sem importância.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do
médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 49).
448
“Deve-se demonstrar que a pessoa comum teria recusado o tratamento, caso fosse convenientemente
informada. Nega-se a indenização com as mesmas informações e nas mesmas circunstâncias, se outra pessoa,
razoavelmente, aceitasse submeter-se à terapia. O deficiente adimplemento da obrigação de se obter, junto ao
paciente, o consentimento esclarecido há que resultar satisfatoriamente provado.” (NETO, Miguel Kfouri. A
responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 49).
449
“Decisão do tribunal civil de Liége, em 27.11.1889, afirmou, pela primeira vez, a necessidade da obtenção do
consentimento prévio do paciente, como dever do médico para realizar uma intervenção. A doutrina do
consentimento informado, nos dias atuais, encontra-se positivada no Código Civil, no Código de Saúde Pública e
no já referido Código de Deontologia Médica. Penneau enfatiza o aspecto dúplice do consentimento como o ato
médico. Através da ótica da relação contratual entre o médico e o doente, é condição indispensável para a
formação do contrato. Paralelamente a essa relação contratual, quando ela existe, ou, em sua ausência, o
consentimento é, na perspectiva de direito público, expressão de uma liberdade fundamental do indivíduo: de
recusar sofrer – consciente das consequências da recusa – o mínimo de dano à sua integridade corporal. Por isso,
a jurisprudência sempre exigiu que o consentimento do paciente seja obtido previamente à execução de todo ato
médico.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013, p. 51/52).

206
de alcançar seu objetivo, o médico deve estimular um diálogo aberto e humanamente paritário
com o seu paciente.450

O valor da indenização, no caso de obtenção de consentimento livre e


esclarecido, causa certa dificuldade. Imagine-se a seguinte situação: paciente se submete a
determinado procedimento, sem ter sido devidamente informado sobre possíveis riscos
inerentes ao ato. Não há falhas na intervenção, porém, adveio o risco. No entanto, mesmo que
tivesse havido a informação, o dano seria inevitável, pois decorreu de causas alheias à
conduta médica. Mas o doente não foi consultado ou informado sobre o dano que ocorreu.451

Para que se possa quantificar o valor da indenização, deve-se adotar um critério


semelhante àquele adotado para a perda de uma chance. A totalidade do valor a ser
indenizado não será fixado pela totalidade do dano, isoladamente considerado, como na
hipótese de lesão causada pela falha técnica ou pela deficiente atuação do médico, mas, sim,
diante da possibilidade de o doente, caso tivesse sido convenientemente esclarecido, não se
submeter ao tratamento. O parâmetro seria a decisão previsível de outro paciente que
estivesse na mesma situação e que fosse devidamente esclarecido.452

450
“Discorrendo sobre o consentimento informado, Mário Raposo expende as seguintes considerações: ‘Sem
margem de dúvida é a problemática do consentimento informado um dos essenciais segmentos da relação
médico-doente. Aceitando como bitola o nível cultural e a capacidade de discernimento do doente, está o médico
adstrito a prestar-lhe a ‘mais serena’ informação sobre o diagnóstico, o prognóstico e as terapêuticas possíveis,
sintetizando, com compreensibilidade, as divisáveis consequências deste, tendo em conta os conhecimentos
médicos disponíveis: isto para que assegurado fique o respeito pela irrepetível dignidade da pessoa (que, no caso,
é o doente ou, mais alargadamente, o destinatário do acto médico) e pelos seus direitos; tudo para que promovida
fique uma esclarecida adesão às propostas terapêuticas. E no intento de alcançar este objetivo, deve o médico
estimular um diálogo aberto e humanamente paritário. Não se tratará, por certo de adoptar um modelo
paternalístico nem contratual, mas de fazer nascer uma interacção fiduciária, radicada no denso valor ético-social
da recíproca confiança.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2013, p. 53/54).
451
“A quantificação da indenização, quando se trata de não obtenção do consentimento livre e esclarecido do
paciente, suscita alguma dificuldade. Desenha-se a seguinte situação: o paciente se submete a uma cirurgia, por
exemplo, sem ter sido convenientemente informado sobre os possíveis riscos inerentes ao ato. A intervenção se
realiza sem falhas, mas o risco, embora pouco frequente, se concretiza – e o paciente sofre alguma forma de
lesão. Noutras palavras, caso o doente, após informado, houvesse aquiescido, o dano seria inevitável – pois não
decorreu de culpa médica, e sim de causas absolutamente alheias à atuação do médico. Mas o enfermo não foi
consultado, tampouco informado, e o dano sobreveio.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do
médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 54).
452
“Galán Cortés, ao abordar a questão dos critérios para a quantificação da indenização, presente a alegação de
dano resultante da falta ou deficiência de informação devida pelo médico, sugere solução assemelhada àquela
adotada para a ‘perda de uma chance’. A soma indenizatória não seria fixada pela totalidade do dano,
isoladamente considerado, como no caso de a lesão ter sido provocada por falha técnica ou deficiente, caso
tivesse sido convenientemente informado, não se submeter ao tratamento. O parâmetro seria, hipoteticamente, a
decisão previsível e razoável de outro paciente, diante da mesma situação e bem informado.” (NETO, Miguel
Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 54).

207
No caso de indenização, devem ser analisados o estado de saúde do paciente, o
prognóstico, a gravidade da doença, quais as alternativas terapêuticas que existem, a
necessidade de intervenção do médico, a natureza do risco e as condições em que se deu o
tratamento. Há que se diferenciar, em caso de reparação de danos, se, por exemplo, é uma
cirurgia eletiva ou emergencial, se existe outra alternativa terapêutica para a doença, entre
outras hipóteses.453

Caso o dano tenha sido causado por má prática médica, apesar da ausência de
consentimento informado, a indenização deve ser menor do que aquela estabelecida para o
caso de dano diretamente causado por culpa médica, ou seja, em casos de imprudência,
negligência ou imperícia. Ainda, cabe indenização por dano moral gerado por privar o
paciente de sua capacidade de autodeterminação, e não a lesão decorrente de ato cirúrgico, no
caso de intervenção correta e ter sido a única opção terapêutica existente. Assim, o
consentimento, naquelas circunstâncias, teria sido dado por qualquer outro paciente.454

O juiz, quando da fixação da indenização, deve levar em consideração: a) a


existência de outros tratamentos menos perigosos ou sem potencialidade lesiva; b) se, de
acordo com o que comumente ocorrer, outro paciente, nas mesmas condições, teria
consentido, após saber dos riscos inerentes à intervenção; c) se esses riscos, que não foram
informados, eram comuns ou excepcionais. Posteriormente, deve o magistrado valorar as
consequências da falta do consentimento, fixando reparação consentânea. Assim, deve o juiz

453
“Também outros fatores seriam analisados, como o estado de saúde do paciente, prognóstico e gravidade do
processo patológico, as alternativas terapêuticas existentes, a necessidade da intervenção médica, a natureza do
risco e condições em que se deu a intervenção ou o tratamento. Assim, prossegue o Prof. Galán, não seria a
mesma indenização fixada quanto ao risco de uma lombalgia ou de uma hemiplegia; se se tratasse de cirurgia
im[prescindível ou eletiva; em presença de patologia sem outra alternativa terapêutica, que não é a realizada, ou
com diversas opções, algumas menos arriscadas ou até isentas de risco. Considerar-se-á, ainda, se seria razoável
que outro paciente, devidamente informado, optasse pela terapia realizada – ou, ao contrário, declinasse daquela
intervenção –, bem como se o prognóstico da patologia agravar-se-ia, caso não realizado o ato médico, ou não.”
(NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.
54-55).
454
“De qualquer forma, como o dano não foi causado por má prática médica, apesar da ausência do
consentimento informado, a indenização será menor que aquela estabelecida para a hipótese de dano diretamente
ocasionado por imperícia, imprudência ou negligência do profissional. A propósito, julgado proferido por corte
espanhola; ‘Não pode equiparar-se, no plano da responsabilidade, o dano que é consequência da negligência
médica, durante a intervenção, com aquele que resulta da omissão de informação concreta sobre um risco
infrequente, mas não excepcional, da operação. Indeniza-se o dano moral gerado por privar-se o paciente de sua
capacidade de autodeterminação – e não a lesão causada pela cirurgia – toda vez que a intervenção tiver sido
correta e representado a única opção terapêutica existente. Por isso mesmo, o consentimento, naquelas
circunstâncias, teria sido concedido por qualquer outro paciente’.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade
civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 55).

208
avaliar a diferença entre a falta de informação e o nexo com o dano sofrido pelo paciente, para
que fique bem definida a causa da indenização.455

Desse modo, com o estudo da violência obstétrica, além da responsabilidade,


com seus pressupostos e o direito à reparação do dano causado, além do termo de
consentimento livre e esclarecido, encerra-se o segundo capítulo desta pesquisa.

2.6.1 Consentimento informado e situações emergenciais

Na atualidade, discute-se sobre o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido


(TCLE) com relação a pacientes que se encontram em emergência. É possível que o paciente
realmente esteja em situação emergencial ou de urgência, e não tenha capacidade de fornecer
seu consentimento. Outrossim, a explicação do termo requer tempo, mas, em emergências, é
necessário que se salve a vida do paciente.456

Em algumas hipóteses, é possível que não se obtenha o consentimento livre e


esclarecido, como emergências, possibilidade de danos psicológicos graves, recusa do
paciente de receber informação, tratamento compulsório, riscos para a saúde pública e pessoas
com transtornos mentais. Nesses casos, que são hipóteses em que não se pode obter o
consentimento do paciente ou de seu representante legal, o médico atuará em favor da vida do
paciente. Nesse momento, o médico deve avaliar o que é melhor ao paciente e adotar o

455
“O juiz, ao fixar a indenização, deverá examinar os fatores enfatizados por Galán Cortés, em especial: a) a
existência de outras terapias menos perigosas ou desprovidas de potencialidade lesiva; b) se, à luz do que
comumente ocorre, outro paciente, em idênticas condições teria consentido, após inteirar-se dos perigos
inerentes à intervenção; c) se tais riscos, não informados, eram comuns ou excepcionais. Após, incumbirá ao
julgador mensurar as consequências concretas da falta de consentimento, arbitrando reparação consentânea.
Fundamental é que o juiz avalie a distinção entre as duas hipóteses – falta de informação e nexo etiológico com o
dano sofrido pelo paciente –, a fim de que resulte bem definida, no julgado, qual a fonte originária da reparação.”
(NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.
55).
456
“Atualmente, há grande discussão sobre a aplicação de TCLE em pacientes que se encontram em situações de
urgência/emergência. Nesses casos, alguns pontos devem ser considerados como: – O paciente, em situação real
de urgência/emergência, não tem capacidade de fornecer seu consentimento de forma livre e esclarecida, como
orientado nas resoluções e normas nacionais e internacionais. – A explicação do Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido requer tempo, que, em situações de urgência/emergência, é fundamental para ações que
efetivamente salvem a vida do paciente.” (BARBOSA, Lilian Mazza, et al. Pesquisa clínica em medicina de
urgência: abordagem ao paciente e termo de consentimento livre e esclarecido. Rev Soc Bra Clin Med 2008;
6(4): 135-138). Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/301297564_Pesquisa_clinica_em_medicina_de_urgencia_abordagem_
ao_paciente_e_termo_de_consentimento_livre_e_esclarecido. Acesso em 03 de abril de 2019.

209
procedimento mais adequado e reconhecido, sempre considerando as diretivas antecipadas de
vontade do paciente, se existirem e estiverem disponíveis.457

Em casos de emergência médica, a equipe deve levar em consideração o risco-


benefício do protocolo que foi proposto. No caso de se considerar maior o benefício do que o
risco, devem ser pensadas outras formas de consentimento. Uma dessas formas poderia ser a
transmissão do consentimento a um responsável pelo paciente. A concessão do termo de
consentimento, em casos emergenciais, é sempre uma solução temporária. Atualmente, a
maioria das leis prescreve que o consentimento pode ser prorrogado para o momento em que
o paciente apresente retorno de sua capacidade cognitiva ao normal, ou que seja transferida a
um representante legal, quando ele for identificado.458

É possível que haja situações emergenciais. Nessas hipóteses, não seria


racional ou mesmo viável que se exigisse o consentimento informado. Sendo assim, o
profissional de saúde está autorizado a agir com base em mandamentos clássicos, como
lugares-comuns, da ética hipocrática, quais sejam: fazer o bem, que é a beneficência, e evitar
o mal, ou seja, a não maleficência.459

457
“Em situações de emergência, nas quais não seja possível obter o consentimento do paciente ou de seu
representante, o médico atuará em favor da vida do paciente, amparado no princípio da beneficência, entre
outros. Nesse momento, ao avaliar o que é melhor para o paciente (privilégio terapêutico), o médico adotará o
procedimento mais adequado e cientificamente reconhecido para alcançar a beneficência. No entanto, o médico
sempre deverá considerar as diretivas antecipadas de vontade do paciente, se existentes e disponíveis, conforme
determina a Resolução CFM n.º 1.995/12.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de
obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em:
https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em 21/abr/2019.
458
“A autonomia do paciente deve ser protegida pelo pesquisador em qualquer circunstância, sendo que, nos
casos de emergência médica, a equipe deve sempre levar em consideração o risco-benefício do protocolo
proposto, antes de cogitar a hipótese de inclusão do paciente no estudo. Nos casos em que a equipe considerou
maior benefício do que risco ao paciente, outras formas de consentimento devem ser consideradas. Uma destas
formas seria a transmissão do consentimento a uma pessoa responsável pelo paciente. Em concordância, a
legislação britânica orienta que, em casos em que não é possível o fornecimento do TCLE pelo paciente, um
representante legal pode consentir a participação do paciente na pesquisa e, posteriormente em situação não
emergencial, o paciente deve fornecer seu próprio consentimento. (...) A concessão do TCLE, em situações de
urgência/emergência, é sempre uma solução temporária. A maioria das legislações, atualmente, prescreve que o
consentimento do paciente pode ser prorrogado, para o momento em que o paciente apresente retorno da
capacidade cognitiva ao normal, ou transferida a um representante legal, quando o mesmo for identificado, sendo
que o conceito de representante legal depende da legislação de cada país.” (BARBOSA, Lilian Mazza, et al.
Pesquisa clínica em medicina de urgência: abordagem ao paciente e termo de consentimento livre e esclarecido.
Rev Soc Bra Clin Med 2008; 6(4): 135-138). Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/301297564_Pesquisa_clinica_em_medicina_de_urgencia_abordagem_
ao_paciente_e_termo_de_consentimento_livre_e_esclarecido. Acesso em 03 de abril de 2019.
459
“Em situações de emegência, não seria racional a exigência do consentimento informado, de tal modo que o
profissional de saúde estaria autorizado a agir com base nos mandamentos clássicos (lugares-comuns) da ética
hipocrática: fazer o bem (beneficência) e evitar o mal (não-maleficência).” (JUNIOR, Dalmir Lopes.
Consentimento informado na relação médico-paciente. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2018, p. 234/235).

210
Incapacidade e emergência são hipóteses que não têm dificuldades
compreensivas. Na prática clínica, as coisas não são tão simples, mormente quanto às
questões que envolvem a incapacidade do paciente. Consideram-se situações de emergência
aquelas em que o paciente se encontra incapacitado de consentir ou de receber qualquer
informação. Nesse caso, pode o paciente discordar quanto ao procedimento a ser realizado,
mas o médico tem a justificativa para apoiar a sua posição unilateral.460

Nessas hipóteses, o médico poderá agir para preservação de uma possível ação
autônoma futura, uma vez que esperar o consentimento não é possível ou é excessivamente
prejudicial para o paciente. Os esforços para a manutenção da vida ou para a convalescença
do paciente são o tema principal da ação médica, tendo em vista a situação emergencial, a
qual deve ser verificada pelo médico como sendo imediata. Caso contrário, ou seja, não
constatada uma situação emergencial imediata, haverá o questionamento de se a autorização
não poderia ser obtida em outra ocasião, ou mesmo por meio de um representante do
paciente.461

Em caso de doenças que causam risco de morte, como câncer ou aids, a


comunicação do médico com o paciente é mais crítica, uma vez que, à medida em que o
paciente vai se tornando mais doente, o seu sentido de controle pessoal vai sendo substituído
por uma maior dependência ao médico, dando outro rumo em sua capacidade de decisão
perante o termo de consentimento e, ainda, prejudicando a sua obtenção.462

460
“A emergência e a incapacidade são situações que, teoricamente, não possuem grandes dificuldades
compreensivas, embora na prática clínica das coisas não sejam tão simples como a dogmática jurídica pressupõe,
especialmente quanto às questões que versam sobre incapacidade do paciente. Novamente, o raciocínio de Grald
Dworkin parece adequado sobre essas situações de emergência em que o paciente se encontra incapacitado de
dar seu assentimento ou de receber uma informação. Nestas circunstâncias, o paciente pode discordar sobre a
conveniência do procedimento realizado, mas, sob a circunstância de necessidade que ensejou o ato, o médico
teria uma justificativa clara para apoiar a tomada de posição unilateral.” (JUNIOR, Dalmir Lopes.
Consentimento informado na relação médico-paciente. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2018, p. 235).
461
“O médico age para preservar uma possível ação autônoma futura, pois esperar pelo consentimento era
impossível ou excessivamente prejudicial para o paciente. Os esforços para a manutenção da vida ou para a
convalescença do paciente é o mote principal da ação médica em face da situação de emergência. Definir as
situações de emergência nem sempre é tarefa fácil. Não basta que o paciente esteja em estado de incapacidade
transitória, a medida tomada unilateralmente pelo profissional de saúde precisa estar amparada por uma situação
de necessidade premente, do contrário surgirá a indagação se a autorização não poderia ser obtida em outro
momento ou por intermédio de um representante legal.” (JUNIOR, Dalmir Lopes. Consentimento informado na
relação médico-paciente. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2018, p. 235).
462
“No caso de doenças em risco de vida, tais como câncer e aids, a comunicação médico-paciente é ainda mais
crítica e vulnerável aos atributos que os pacientes depositam em seus médicos: à medida que o paciente vai
tornando-se mais enfermo, o seu sentido de controle pessoal vai sendo substituído por uma maior dependência
física e emocional do seu médico, produzindo um viés em sua capacidade decisória perante o TCLE e
prejudicando o seu processo de obtenção (Hall, 2001).” (SLAWKA, Sérgio. O termo de consentimento livre e
esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área de saúde: uma revisão crítica. São Paulo: 2005. Biblioteca

211
Assim, nos casos de risco de morte, nos termos do que dispõe o artigo 15 do
Código Civil e artigo 22 do Código de Ética Médica, é obrigação do médico intervir
independentemente do consentimento do paciente. A discussão que surge na doutrina é se
essa intervenção é legítima, mormente se o enfermo se manifesta em sentido contrário de
forma expressa, como no caso de recusar uma transfusão de sangue por razões de crença ou
religião.463

Os casos de tratamento compulsório devem ser considerados como


excepcionais, como no caso de internação compulsória, ou seja, quando existe interesse de
proteção à coletividade. De outro lado, não haverá tal imposição quando o risco for somente
do paciente, uma vez que prevalece seu direito à autodeterminação. Havendo consentimento,
deve-se verificar se o paciente era responsável e consciente e, ainda, se foi devidamente
esclarecido sobre os riscos do tratamento a que se submeterá. Desse modo, agrava-se a
responsabilidade do médico se o consentimento foi obtido sem o paciente estar devidamente
esclarecido.464

É possível que ocorram situações limites, em que se justifica a situação de


emergência, sem que o paciente esteja inconsciente. O exemplo hipotético é o do paciente que
chega a um nosocômio com uma mão amputada, sendo estrangeiro, sem conhecimento da
língua local e sem tradutor. Como a única chance de salvar o membro amputado é a realização
de uma cirurgia emergencial, há uma justificativa para o profissional de saúde agir em
benefício do paciente.465

da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. USP/FM/SBD-009/05). Disponível em:


http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5137/tde-15092005-120212/pt-br.php. Acesso em 04/04/2019.
463
“O Código Civil (art. 15) e o Código de Ética Médica (art. 22) consideram obrigação do médico intervir
independentemente do consentimento do paciente nos casos de risco de morte. Nada obstante, discute-se em
doutrina se tal intervenção se afigura legítima ainda que o enfermo se manifeste expressamente em sentido
contrário, como se verifica na hipótese de recusa à transfusão de sangue por motivos religiosos.” (PEREIRA,
Caio Mário da Silva; TEPEDINO, Gustavo. Responsabilidade Civil. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p.
194).
464
“Considera-se que as hipóteses de tratamento compulsório devem ser consideradas excepcionais, como a
aplicação de medida de segurança em sede criminal ou a internação psiquiátrica por determinação do Poder
Judiciário, casos em que há nítido intuito de proteção à coletividade. A imposição não se justifica, contudo,
quando o risco é assumido unicamente pelo enfermo, a prevalecer seu direito à autodeterminação. Em face do
consentimento do cliente, é de ver se este era pessoa consciente e responsável e foi devidamente esclarecido
sobre os efeitos do tratamento e dos riscos, agravando-se a deliberação do médico se obteve a anuência sem os
interessados estarem devidamente esclarecidos.” (PEREIRA, Caio Mário da Silva; TEPEDINO, Gustavo.
Responsabilidade Civil. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 195).
465
“É preciso considerar a complexidade existente na prática clínica, pois podem ocorrer situações limites em
que a emergência também se justificaria sem que o paciente esteja inconsciente. Por exemplo, G. Dworkin
fornece um exemplo hipotético, no qual o paciente chega a um hospital com sua mão decepada. O paciente é
estrangeiro, fala uma língua incompreensível e não há ninguém para traduzir. A única esperança médica de

212
Sendo assim, é preciso que a emergência seja um caso de perigo iminente ao
paciente que se encontre impossibilitado de decidir. Caso haja alternativas à opção terapêutica
adotada, isso resultará em uma justificativa sobre a decisão tomada pelo profissional no caso
concreto. Deve ficar claro, na hipótese, que o respeito à autonomia não era uma opção tendo
em vista a situação concreta apresentada pelo paciente.466

O certo é que, nos casos de emergência médica, não há acordo, nem de forma
explícita e nem implícita. Também não ocorre violação à autonomia. Nessas situações, o que
interessa é o bem-estar do paciente e não a sua autonomia. É presumido aqui não um acordo
sobre o ato que foi realizado sobre o paciente, mas, sim, uma aceitação das pessoas
envolvidas de que não havia decisão diferente no caso concreto.467

De outro lado, o procedimento terapêutico também poderá ser utilizado em


casos nos quais a revelação da verdade sobre a saúde do paciente possa lhe ocasionar prejuízo
psicológico grave, de modo a constituir um motivo que proíbe a obtenção do consentimento.
Nessa hipótese, é recomendável a utilização do Protocolo Spikes, ou similar, com o fim de
oferecer uma maior quantidade de informações possíveis, sem traumas, buscando perceber a
quantidade que o paciente está preparado para receber. A omissão deve perdurar pelo tempo
que houver necessidade. Caso tenha sido indicado representante legal, este deve ser
comunicado sobre a decisão.468

salvar o membro mutilado seria a realização de uma cirurgia imediata. Nessas circunstâncias, haveria igualmente
uma justificativa ex ante para o profissional de saúde agir em benefício do paciente, pois compreendia os reais
interesses do paciente, representaria a perda de uma opção terapêutica importante.” (JUNIOR, Dalmir Lopes.
Consentimento informado na relação médico-paciente. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2018, p. 235/236).
466
“De fato, podem surgir outras situações hipotéticas em que a caracterização de emergência clínica seja
duvidosa, no âmbito judicial. O importante é que a situação de emergência represente um perigo iminente ao
paciente que está impossibilitado de decidir. Se havia alternativas à opção terapêutica adotada, isso ensejará
uma justificação sobre a decisão tomada pelo profissional em face das circunstâncias. Deve ficar claro, todavia,
que o respeito à autonomia não era uma opção em face da situação clínica do paciente.” (JUNIOR, Dalmir
Lopes. Consentimento informado na relação médico-paciente. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2018, p. 236).
467
“Outro ponto que parece relevante ressaltar reside no fato de que as situações de emergência não comportam
uma ‘decisão tácita’ ou ‘implícita’. A opção terapêutica não pode ser justificada a partir do argumento de que o
paciente ‘teria optado pelo procedimento realizado’. Nos casos de emergência, não há acordo, nem explícito,
nem implícito. Mas, também, não se pode dizer que a decisão violou a autonomia. ‘Na verdade, se não houver
perda da autonomia nessas situações por não se ter obtido o consentimento [do paciente], é porque a autonomia
já estava anteriormente comprometida e não porque o paciente consentiu’. Aqui, o bem-estar do paciente, e não a
autonomia, é que pauta a conduta médica. O que pode ser presumido, não é um acordo sobre o ato
concretamente realizado, mas uma aceitação racional dos envolvidos de que não se poderia tomar decisão
diferente.” (JUNIOR, Dalmir Lopes. Consentimento informado na relação médico-paciente. Belo Horizonte:
Editora D’Placido, 2018, p. 236-237).
468
“O privilégio terapêutico também poderá ser utilizado nos casos em que a revelação da verdade sobre a saúde
do paciente possa causar-lhe prejuízo psicológico grave, de forma a constituir um motivo proibidor para a
obtenção de seu consentimento. Nesse caso, recomenda-se a utilização prévia do Protocolo Spikes, ou técnica
similar, para o oferecimento da maior quantidade de informações possível, sem traumas, buscando perceber

213
É possível, ainda, que haja recusa do paciente de receber informação a respeito
de si mesmo. Há situações em que ele não deseja ter conhecimento, ou nega-se a decidir, o
que impossibilita a obtenção do procedimento livre e esclarecido. Cabe ressaltar que se
recusar a dar informação não significa que haja negativa em consentir. É possível que o
paciente prefira que o médico decida. Após a obtenção do consentimento, a atuação do
médico deve se ater principalmente pelo princípio da beneficência.469

Quando o paciente é portador de enfermidades transmissíveis, que podem


causar risco grave para terceiro, ele mesmo pode negligenciar o tratamento ou negar seu
consentimento para adoção de medidas necessárias para sua saúde. Nessa hipótese, justifica-
se o tratamento compulsório depois de esgotados todos os meios para seu convencimento, se
não houver possibilidade de se separar o indivíduo do grupo que esteja em risco pelo contato
com a doença. Esse fato deverá estar suficientemente descrito e justificado pelo médico no
prontuário do paciente e, se for o caso, comunicado à autoridade competente.470

As pessoas com transtornos mentais graves poderão ser internadas


compulsoriamente para tratamento, por determinação judicial ou involuntariamente, a pedido
do médico ou de algum familiar, devendo a referida decisão ser comunicada ao Ministério

previamente a quantidade que o paciente está preparado para receber. A duração da omissão da informação
deverá restringir-se ao período em que perdurar a necessidade de omissão da informação. O representante legal,
caso indicado, será comunicado da decisão.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de
obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em:
https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em 21/abr/2019.
469
“Existem situações em que o paciente não deseja saber, nega a verdade a seu respeito ou nega-se a decidir,
impossibilitando a comunicação do procedimento para a obtenção do consentimento livre e esclarecido. No
entanto, a recusa de receber informação não significa, necessariamente, negativa de consentimento do paciente.
Caso o paciente prefira que o médico decida, após a obtenção do consentimento, sua atuação guiar-se-á pelos
princípios da beneficência, entre outros que possam estar especificamente indicados para o caso, como os
princípios acessórios da totalidade, do mal menor e duplo efeito, nos casos mais complexos.” (Recomendação
CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência
médica). Disponível em: https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em
21/abr/2019.
470
“Em saúde pública, podem ocorrer situações de risco em que pacientes portadores de enfermidades
transmissíveis, potencialmente causadoras de riscos graves para terceiros, sobretudo a menores, negligenciam o
tratamento ou negam seu consentimento para a adoção dos cuidados necessários. Nessas situações, não havendo
possibilidade de separar o indivíduo do grupo em risco de contato com a doença, justifica-se o tratamento
compulsório, que somente pode ocorrer depois de esgotadas todas as possibilidades de convencimento. Em casos
excepcionais, após conferência com outros médicos e visando à saúde do paciente e à preservação do bem
comum, o consentimento do paciente pode ser dispensado. Tal fato, no entanto, deverá estar suficientemente
descrito e justificado pelo médico no prontuário do paciente e, conforme o caso, ser comunicado à autoridade
competente.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e
esclarecido na assistência médica). Disponível em:
https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em 21/abr/2019.

214
Público estadual no prazo de 72 horas.471 É permitido, ainda, o tratamento sem
consentimento, em casos de urgência ou quando as condições clínicas não permitem a sua
obtenção, devendo-se, neste caso, buscar o consentimento de um representante legal.472

2.6.2 Consentimento e capacidade para consentir

O consentimento possui um elemento básico, que é a capacidade. Essa é a


aptidão necessária para que a pessoa exerça os atos da vida civil de forma pessoal. De acordo
com o Código Civil, para haver capacidade deve haver maioridade civil, isto é, 18 anos ou
mais, sendo considerados absolutamente incapazes os menores de 16 anos, os que não tiverem
o necessário discernimento para a prática de determinados atos por enfermidade ou
deficiência mental, e os que, por qualquer causa, não podem expressar sua vontade. Tratando-
se de menor entre 16 e 18 anos, será considerado relativamente incapaz, devendo, portanto,
ser assistido por seus pais, levando-se em consideração a manifestação destes.473

Uma criança pode dar seu consentimento livre e esclarecido. Inicialmente, os


pais ou seus responsáveis recebem todas as informações, com esclarecimentos de todas as
dúvidas e dão o seu consentimento. É possível que os adultos recusem o termo de
consentimento. Nesse caso, o processo de autorização é interrompido. Se houver autorização
dos pais ou responsáveis, a criança deve dar seu consentimento depois de receber todas as
informações em linguagem adequada à sua capacidade de compreensão, devendo conter os

471
“Art. 8º A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico devidamente registrado
no Conselho Regional de Medicina – CRM do Estado onde se localize o estabelecimento. § 1º A internação
psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público
Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo
procedimento ser adotado quando da respectiva alta.” (Lei n.º 10.216, de 6 de abril de 2001, artigo 8º, § 1º).
472
“Em situações de emergência, nas quais não seja possível obter o consentimento do paciente ou de seu
representante, o médico atuará em favor da vida do paciente, amparado no princípio da beneficência, entre
outros. Nesse momento, ao avaliar o que é melhor para o paciente (privilégio terapêutico), o médico adotará o
procedimento mais adequado e cientificamente reconhecido para alcançar a beneficência. No entanto, o médico
sempre deverá considerar as diretivas antecipadas de vontade do paciente, se existentes e disponíveis, conforme
determina a Resolução CFM n.º 1.995/12.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de
obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em:
https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em 21/abr/2019.
473
“A capacidade constitui elemento básico do consentimento e pode ser definida como a aptidão necessária para
que uma pessoa exerça, pessoalmente, os atos da vida civil. Segundo o Código Civil brasileiro, a capacidade é
um estado que compreende, em regra, a exigência da maioridade civil, ou seja, ter 18 anos ou mais, sendo
considerados absolutamente incapazes para atos da vida civil os menores de 16 anos, os que não tiverem o
necessário discernimento para a prática de determinado ato, em decorrência de enfermidade ou deficiência
mental, e aqueles que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.” (Recomendação CFM
n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica).
Disponível em: https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em
21/abr/2019.

215
seguintes elementos: dizer para a criança o que esperar dos testes e tratamentos; avaliar a
compreensão da criança; perguntar à criança se ela quer aceitar o tratamento.474

Os pais ou responsáveis podem ajudar a criança a tomar uma decisão,


esclarecendo as dúvidas que houver. Também podem conversar com a criança para saber se
ela compreende o que vai acontecer. Caso a criança demonstre insegurança, os adultos podem
pedir que as informações sejam repetidas até se ter a certeza de que a criança compreendeu o
que irá acontecer com ela. Se a criança decidir não aceitar, sua decisão é soberana e deverá ser
respeitada. Para que a criança possa tomar sua decisão, devem os pais, os responsáveis ou
mesmo o pediatra verificarem se a criança tem capacidade para decidir, devendo a decisão ser
compatível com essa capacidade.475

O desenvolvimento de uma criança, como tomadora de decisões, envolve dois


tópicos, sendo o primeiro deles a confidencialidade, que ocorre quando o médico considera a
criança capaz de decidir, devendo sua decisão ser respeitada como a de um adulto. Já quando

474
Como uma criança pode dar seu consentimento livre e esclarecido? Assim, como para os adultos, a criança
poderá decidir aceitar ou recusar o estudo e esta decisão deverá ser respeitada. Para crianças, o TCLE é
fornecido em duas etapas: 1. Inicialmente, os pais ou responsáveis recebem todas as informações sobre o estudo,
esclarecem todas as dúvidas e dão seu consentimento livre e esclarecido para que a criança participe do estudo.
Caso os adultos tomem a decisão de recusar o TCLE, o processo de autorização é interrompido neste momento.
2. Após autorização dos pais ou responsáveis, a criança deve fornecer seu assentimento depois de receber todas
as informações do estudo em linguagem adequada à sua capacidade de compreensão e contendo os seguintes
elementos: (a) dizer para a criança o que esperar dos testes e tratamentos; (b) avaliar a compreensão da criança
sobre as condições e fatores que possam influenciar sua decisão (exemplo: dor não controlada adequadamente,
pressão dos pais e outros); (c) perguntar à criança se ela decide aceitar o tratamento proposto.” (SLAWKA,
Sérgio. O termo de consentimento livre e esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área de saúde: uma
revisão crítica. São Paulo: 2005. Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
USP/FM/SBD-009/05). Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5137/tde-15092005-
120212/pt-br.php. Acesso em 04/04/2019.
475
“Qual o papel dos pais ou responsáveis legais têm neste processo de tomada de decisão? Os pais ou
responsáveis legais podem ajudar a criança a tomar a decisão adequada ouvindo cuidadosamente as informações
que recebem sobre os estudos e esclarecendo todas suas dúvidas. Eles podem também conversar com a criança
para ter certeza de que ela compreende o que vai acontecer durante o estudo; caso ela esteja insegura sobre
algum aspecto, eles deverão pedir aos investigadores para repetir as informações à criança até terem certeza de
que ela compreendeu. Se a criança decidir não participar, eles deverão apoiar esta decisão (Mayo Clinic, 2002).
Os adultos devem ter em mente que o processo decisório sobre aceitar ou recusar o TCLE pode ser uma escolha
difícil para pais e filhos; portanto, uma conversa aberta e honesta, entre todos os adultos envolvidos e a criança,
poderá fazer com que esta decisão seja mais honesta e mais justa para com a criança. A literatura mostra que
pais, pediatras, e mesmo cortes judiciais reconhecem que, até certo nível, muitas crianças possuem a capacidade
de tomar decisões referentes ao TCLE. Para desenvolver o papel da criança como ‘tomadora’ de decisões sobre
sua própria saúde e aumentar a efetividade do processo de obtenção do TCLE, caberia ao pediatra e aos pais (ou
responsáveis legais) avaliarem a capacidade da criança em decidir, oferecendo-lhe um papel neste processo
decisório que se assemelhe, ou mesmo desafie, sua capacidade. Como resultado, pode ser que a criança venha a
liderar o processo de decisão: tomará as decisões, será consultada somente sobre suas preferências, ou será
solicitada a ratificar uma decisão já feita pelos adultos (King; Cross, 1989).” (SLAWKA, Sérgio. O termo de
consentimento livre e esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área de saúde: uma revisão crítica. São
Paulo: 2005. Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. USP/FM/SBD-009/05).
Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5137/tde-15092005-120212/pt-br.php. Acesso em
04/04/2019.

216
a criança não for considerada capaz, poderá o médico, ainda, optar pela confidencialidade e
privacidade e respeitar o seu desejo, enquanto reconhece os pais ou os responsáveis legais a
função de dar a decisão final. Se houver conflito, quando os pais estão envolvidos e a criança
não tem condições de decidir, caberá ao médico negociar, verificando que algumas
discordâncias sejam solucionadas pelos pais.476

A resolução de conflitos entre pais e filhos, no processo decisório do termo de


consentimento, é sempre em favor da criança. Porém, para o médico, a solução desses
conflitos serve para que a criança desenvolva sua autonomia, para evitar uma excessiva
influência dos pais, enfim, para melhor servir aos interesses da criança.477

Caso os procedimentos médicos envolvam comunidades culturalmente


diferenciadas, como é o caso dos índios, eles devem ser precedidos de consentimento livre e
esclarecido do próprio paciente. Além disso, no momento do consentimento, devem ser
avaliados o desenvolvimento psicológico e a possibilidade de comunicação do paciente.
Incluem-se no grupo das pessoas sem capacidade para consentir as crianças, os adolescentes
menores de 18 anos, os portadores de doenças físicas ou mentais que comprometam o
entendimento, as pessoas inconscientes e as severamente debilitadas. Nessas hipóteses, o
Código Civil determina que o incapaz seja representado e, no caso de menor ou havendo
divergência dos pais, caberá ao juiz decidir a respeito.478

476
“O desenvolvimento da criança como ‘tomadora’ de decisões envolve, portanto, dois aspectos importantes
salientados pela literatura: – confidencialidade: quando o médico considerar a criança capaz de uma tomada de
decisão autônoma, a confidencialidade de suas informações deverá ser respeitada como a de um adulto. Quando
a criança não for considerada capacitada a tomar decisões, ainda assim poderá optar por confidencialidade e
privacidade, e o médico deverá respeitar este desejo enquanto, simultaneamente, reconhecendo os pais (ou
responsáveis legais) como responsáveis pela decisão final. – conflito: quando os pais estão envolvidos e a criança
não for capaz de uma decisão autônoma, caberá ao médico negociar os desacordos existentes entre todos,
percebendo também que algumas discordâncias devem ser legitimamente decididas pelos pais (exemplo:
necessidade de vacinação e recusa da criança).” (SLAWKA, Sérgio. O termo de consentimento livre e
esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área de saúde: uma revisão crítica. São Paulo: 2005. Biblioteca
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. USP/FM/SBD-009/05). Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5137/tde-15092005-120212/pt-br.php. Acesso em 04/04/2019.
477
“A resolução de conflitos entre pais e filhos no processo decisório do TCLE é sempre a favor da criança.
Entretanto, para o médico, a mediação de conflitos no processo de decisão entre pais e crianças significa
reconhecer a necessidade de equilibrar diversas variáveis: desenvolver a autonomia da criança, evitar influência
excessiva dos pais, reconhecer os valores e planos dos pais para a criança, e servir aos melhores interesses da
criança (King; Cross, 1989).” (SLAWKA, Sérgio. O termo de consentimento livre e esclarecido e a pesquisa em
seres humanos na área de saúde: uma revisão crítica. São Paulo: 2005. Biblioteca da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo. USP/FM/SBD-009/05). Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5137/tde-15092005-120212/pt-br.php. Acesso em 04/04/2019.
478
Procedimentos médicos que envolvam comunidades ou indivíduos pertencentes a comunidades culturalmente
diferenciadas, como os indígenas, devem ser precedidos de consentimento livre e esclarecido do paciente,
mesmo que seja costumeiro o consentimento, por exemplo, do líder da comunidade. Dessa forma, verifica-se
que, além do critério etário, o desenvolvimento psicológico e a possibilidade de comunicação também integram a

217
Nos termos do que dispõe o Código de Ética Médica, para que tenha validade,
o consentimento, na hipótese de haver intervenção médica preventiva, diagnóstica ou
terapêutica, deve levar em conta a opinião do paciente. Na verdade, a escolha do paciente
deverá ser considerada na medida de sua capacidade. Quanto ao menor, sua participação no
assentimento livre e esclarecido deve ser incentivada, levando-se em consideração a sua idade
e maturidade intelectual e emocional. Nos demais casos de incapacidade, a participação dos
envolvidos deve ser estimulada, obviamente, conforme suas capacidades, uma vez que,
dependendo da dificuldade de entendimento da informação, as explicações devem ser mais
detalhadas e adequadas ao seu grau de compreensão.479

A referida capacidade de consentimento é um elemento dinâmico que pode ser


alterado durante o período em que a pessoa esteja submetida a cuidados médicos, conforme as
variações de seu estado físico e psicológico, com necessidade de constante reavaliação. A
capacidade é sempre presumida, devendo ser comprovada apenas a incapacidade sempre
quando houver evidências de ela existir.480

É certo que o consentimento é um processo e não apenas um ato isolado. O


consentimento esclarecido tem como seu elemento a participação ativa do paciente quando da

capacidade e são critérios que devem ser avaliados no momento do consentimento. Assim, incluem-se no grupo
daqueles que não possuem capacidade para outorgar o consentimento as crianças, os adolescentes menores de 18
anos, os portadores de doenças físicas ou mentais que comprometam o entendimento, pessoas inconscientes ou
severamente debilitadas. Nesses casos, a legislação civil determina que o incapaz seja representado por quem a
lei estabelecer, sendo que, na hipótese de menor, havendo divergência entre os pais que os representam, caberá
ao juiz decidir a respeito.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de
consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em:
https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em 21/abr/2019.
479
“Sob o prisma ético, consoante disposto no Código de Ética Médica, para a garantia da validade moral do
consentimento dado, no caso de uma intervenção médica preventiva, diagnóstica ou terapêutica, sempre deverá
ser considerada a opinião do paciente. A escolha do paciente será considerada na medida de sua capacidade de
decisão individual, com base no domínio de diversas habilidades, entre as quais o envolvimento com o assunto, a
compreensão das alternativas e a possibilidade de comunicação de uma preferência. A participação do menor na
obtenção do assentimento livre e esclarecido deve ser incentivada: o Estatuto da Criança e do Adolescente
garante-lhe a liberdade de opinião e a expressão e o direito ao respeito de sua autonomia, sendo que, durante o
processo, serão levadas em consideração sua idade e maturidade intelectual e emocional. Nos demais casos de
incapacidade, a participação dos envolvidos também deverá ser estimulada, a partir da avaliação do grau de
comprometimento da capacidade de entendimento dos pacientes. Pacientes que, por qualquer razão, apresentam
maior dificuldade em entender a informação devem receber explicações mais detalhadas e adequadas a seu grau
de compreensão.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento
livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em:
https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em 21/abr/2019.
480
“A capacidade para consentir constitui elemento dinâmico que se pode alterar durante o período em que o
indivíduo esteja submetido a cuidados médicos, de acordo com as variações de seu estado físico e psicológico,
sendo necessária uma constante reavaliação. A capacidade será sempre presumida, devendo ser comprovada
apenas a incapacidade sempre que surgirem evidências desse estado.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe
sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em:
https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em 21/abr/2019.

218
tomada de suas decisões. O consentimento não é somente um acordo, mas é um processo
contínuo que envolve trocas de informações e um diálogo, que lhe permite explorar suas
emoções, sentimentos, crenças, além de dados técnicos.481

O consentimento deve ser obtido após o médico esclarecer ao paciente, de


forma suficiente, sobre qual procedimento será submetido. Caso haja dúvidas, o paciente
solicitar outros esclarecimentos, ou sentir-se inseguro, deverá ser atendido com respeito e
presteza, sem qualquer constrangimento, fraude, coação, com o objetivo de preservar sua
dignidade e autonomia.482

Caso o consentimento seja feito por escrito, deve o paciente ler o termo com
calma e, se quiser, discuti-lo com seu cônjuge, parceiro, familiares, podendo fazer anotações
sobre suas dúvidas, voltando a conversar com seu médico, com o fim de ser suficientemente
esclarecido. O paciente somente deve consentir se estiver convencido de que lhe foram
prestados os devidos esclarecimentos sobre o procedimento a ser realizado, seus riscos, seus
benefícios e quais as suas consequências.483

Na hipótese de o paciente prestar o seu consentimento, isso só acontecerá se ele


compreender a informação que lhe é dada e aceitá-la como verdadeira. Deve haver um tempo
para que o paciente faça as suas perguntas, tire as suas dúvidas e aceite algumas notícias,

481
“O consentimento é um processo e não um ato isolado. Como processo, o consentimento esclarecido
incorpora a participação ativa do paciente nas tomadas de decisão, o que é essencial na relação médico-paciente.
O consentimento é mais do que um acordo, é um processo contínuo que envolve trocas de informações e um
diálogo que permite, igualmente, explorar emoções, crenças e sentimentos, além de dados técnicos.”
(Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na
assistência médica). Disponível em: https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf.
Acesso em 21/abr/2019.
482
“O consentimento do paciente deve ser obtido após o médico ou a pessoa capacitada por ele indicada
esclarecê-lo, suficientemente, sobre o procedimento médico a que será submetido. Se o paciente tiver dúvidas,
solicitar outros esclarecimentos ou sentir-se inseguro, deverá ser atendido com presteza, respeito e sem qualquer
tipo de influência, constrangimento, coação ou ameaça, a fim de preservar sua autonomia e dignidade.”
(Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na
assistência médica). Disponível em: https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf.
Acesso em 21/abr/2019.
483
“Se o consentimento ocorrer por escrito, pode ser sugerido ao paciente que leia o respectivo termo de
consentimento livre e esclarecido com calma e que, se quiser, discuta com seu cônjuge, parceiro, familiares e
amigos, fazendo anotações sobre suas dúvidas, receios ou incertezas, voltando a conversar com seu médico, a
fim de ser suficientemente informado e esclarecido. O consentimento livre e esclarecido só deve ser dado, pelo
paciente, quando este estiver convencido de que lhe foram prestados os indispensáveis esclarecimentos sobre o
procedimento, assim como riscos, benefícios e consequências.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre
o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em:
https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em 21/abr/2019.

219
principalmente diante de um prognóstico negativo. Quando um paciente recebe más notícias,
ele pode não estar pronto para dar seu consentimento ou mesmo para negá-lo.484

O termo de consentimento genuíno pressupõe a compreensão pelos sujeitos de


todas as informações oferecidas, incluindo expressões como “possivelmente”,
“provavelmente”, entre outras, que são usadas para se referir a riscos de ocorrerem efeitos
adversos durante o tratamento. A idade do paciente, seu nível intelectual, sua prévia
experiência com riscos de saúde, sua preferência por expressões de probabilidade, o contexto
no qual as informações lhe são apresentadas, dentre outros, são fatores que interferem na
compreensão das informações apresentadas e, como consequência, na obtenção do
consentimento.485

484
“Se o consentimento ocorrer por escrito, pode ser sugerido ao paciente que leia o respectivo termo de
consentimento livre e esclarecido com calma e que, se quiser, discuta-o com seu cônjuge, parceiro, familiares e
amigos, fazendo anotações sobre suas dúvidas, receios ou incertezas, voltando a conversar com seu médico, a
fim de ser suficientemente informado e esclarecido. O consentimento livre e esclarecido só deve ser dado pelo
paciente, quando estiver convencido de que lhe foram prestados os indispensáveis esclarecimentos sobre o
procedimento, assim como riscos, benefícios e consequências.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre
o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em:
https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em 21/abr/2019.
485
“A incerteza está presente em muitas áreas da vida diária. Uma vez que a maior parte dos eventos não é
completamente previsível, é necessária a compreensão sobre sua possibilidade de ocorrência. Expressões verbais
de probabilidade são também utilizadas nas conversas do dia-a-dia, nas comunicações médico-médico e médico-
paciente, e também nas respostas para questionários e enquetes. Ainda que as expressões verbais sobre
probabilidade possam ter significados radicalmente diferentes para as diferentes pessoas (Clarke et al., 1992) os
médicos frequentemente as utilizam para caracterizar sua incerteza sobre resultados riscos ou efeitos colaterais
dos tratamentos propostos. Uma vez que médico e paciente participam conjuntamente do processo decisório
sobre TCLE, deve haver uma comunicação eficaz entre ambos sobre as informações relevantes à decisão. Ao
discutir com o paciente as probabilidades sobre alternativas de tratamento ou riscos de eventos adversos, o
médico deverá fornecer dados ao paciente, que terá o ônus de tentar entendê-los dentro do seu processo de
decisão sobre o TCLE (Mazur; Hickam, 1991). Para adultos, as expressões probabilidades de eventos
apresentados no TCLE, quanto compreendidas, podem influenciar suas respostas emocionais e motivar a
aderência aos procedimentos do estudo proposto (Hoffner; Cantor; Badzinski, 1990). Entretanto, o simples
fornecimento das probabilidades de ocorrência de eventos adversos ao sujeito de pesquisa, durante a
apresentação do TCLE, não permite ao médico pressupor que estas informações tenham sido compreendidas e
que serão utilizadas no processo de tomada de decisão do sujeito. Portanto, a simples divulgação destas
probabilidades sem verificação acurada de sua compreensão pode impactar negativamente na eficácia do
processo de obtenção do TCLE. Numerosos estudos em adultos sobre o uso e compreemsão das expressões
verbais de probabilidade demonstraram que fatores importantes (tais como variabilidade intrasujeito,
discriminação das expressões, variabilidade intersujeitos, efeitos do contexto, implicações educacionais do
paciente dentre outros) influenciam a percepção das expressões verbais de probabilidade pelo sujeito de
pesquisa, e devem ser levados em consideração pelo médico ao apresentar as informações sobre probabilidade
do TCLE ao sujeito. (…) Se médico e paciente participam conjuntamente no processo para tomada de decisão,
eles devem comunicar-se de maneira efetiva sobre as informações relevantes a esta decisão: o médico deve
fornecer dados ao paciente quando discutir alternativas terapêuticas ou riscos associados a uma alternativa em
particular, e o paciente deve compreender a dimensão destes dados. Uma vez que o médico frequentemente
utiliza expressões verbais de probabilidade para descrever componentes do risco médico (por exemplo, a chance
de ocorrerem efeitos adversos causados por medicações ou procedimentos), deixará de haver comunicação
efetiva entre médico e paciente caso este não compreenda as expressões.” (SLAWKA, Sérgio. O termo de
consentimento livre e esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área de saúde: uma revisão crítica. São
Paulo: 2005. Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. USP/FM/SBD-009/05).

220
Como o objetivo do profissional de saúde é o esclarecimento do paciente,
necessário se faz que o profissional valide a informação que é transmitida, o que permitirá que
o profissional se certifique de que se fez entender pelo paciente. Com esse fim, o médico pode
pedir para o paciente repetir o que foi dito ou acertado entre os dois.486

É possível que o paciente negue o seu consentimento para a realização de


algum procedimento médico, restando graves consequências para a sua própria saúde. Nessa
hipótese, havendo dúvidas acerca da capacidade de decisão, é conveniente que o médico
solicite uma avaliação especializada. No caso de o paciente ser capaz, e, mesmo assim,
recusar-se a consentir, deve o médico registar sua decisão por escrito, propor outras
alternativas, dar-lhe um tempo para refletir sobre sua decisão, explicar as consequências do
seu ato e, por fim, preencher o termo de recusa.487

É possível a concessão de novo prazo, para mais reflexão do paciente, de modo


a favorecer a obtenção do consentimento em uma visita futura, gerar um acrescimento de
esclarecimentos sobre o prognóstico da doença, e, ainda, favorecer o entendimento sobre as
consequências desfavoráveis que podem ocorrer, inclusive, impactando na mudança de
decisão do paciente. A recusa pela execução de determinado procedimento pode se dar por
falta de confiança no médico. Se esse for o caso, o paciente busca uma segunda opinião, com
a finalidade de viabilizar o tratamento proposto.488

Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5137/tde-15092005-120212/pt-br.php. Acesso em


04/04/2019.
486
“Como o objetivo é o esclarecimento, é preciso que o profissional valide a informação que está transmitindo
ao paciente. A validação permite certificar se ele se fez entender pelo paciente. Para isso, pode-se pedir para o
paciente repetir o que foi dito ou acertado entre os dois.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o
processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em:
https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em 21/abr/2019.
487
“Podem ocorrer situações em que o paciente negue seu consentimento para a realização de determinado
procedimento médico, com graves consequências para sua saúde. Nesses casos, havendo dúvidas sobre sua
capacidade de decisão, convém que o médico solicite avaliação especializada. Se o paciente é capaz de negar seu
consentimento o médico deve registrar sua decisão por escrito; propor alternativas, se existentes; dar-lhe tempo
para reflexão; explicar o prognóstico e as consequências; e, finalmente, preencher um termo de recusa.”
(Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na
assistência médica). Disponível em: https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf.
Acesso em 21/abr/2019.
488
“A menção a alternativas possibilita a oportunidade de se encontrar e propor um procedimento que coincida
com os objetivos pessoais do paciente, permitindo a concessão do consentimento. A concessão de novo prazo
gera a oportunidade de ampliar o período de reflexão do paciente, favorecendo a obtenção do consentimento na
próxima visita ou o amadurecimento de sua negativa. O acréscimo de esclarecimentos sobre o prognóstico da
doença, caso não se realize o procedimento, favorece o entendimento das consequências desfavoráveis, podendo
influir na mudança de decisão do paciente. A recusa de consentimento pode significar falta de confiança no
médico. Nesse caso, a sugestão de o paciente ouvir uma segunda opinião poderá significar nova oportunidade de
obtenção do consentimento, viabilizando o tratamento proposto.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe

221
De outro lado, é possível que a recusa em dar o consentimento ocorra por
motivo de crença religiosa. O Código de Ética Médica estabelece os limites da autonomia do
paciente nos casos de risco de morte, vedando ao médico, nos termos dos artigos 22 e 31,
deixar de obter o consentimento do paciente ou de seu representante legal após o
esclarecimento sobre o procedimento a ser realizado, bem como desrespeitar o direito do
paciente ou de seu representante legal de decidir, de forma livre, sobre a execução de práticas
diagnósticas ou terapêuticas. No mesmo sentido, a Resolução CFM n.º 1.021/80 dispõe, em
seu artigo 2º, que, havendo iminente risco de morte, deve ser feita a transfusão de sangue,
independentemente de consentimento.489

No mesmo sentido, o Código Penal prevê, em seu artigo 135, o crime de


omissão de socorro.490 De outro lado, prevê a Constituição Federal, em seu artigo 5º, incisos
VI, VII e VIII, a liberdade de religião como direito fundamental, que integra a dignidade
humana. A interpretação constitucional, juntamente com os princípios da liberdade e da
autonomia, autoriza acatar a recusa do paciente quanto à transfusão, desde que seja maior e
capaz. Assim, a recusa desse tipo de paciente deve ser respeitada, buscando-se alternativas
terapêuticas para o caso concreto.491

sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em:
https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em 21/abr/2019.
489
“A estreita relação entre certezas/incertezas e religião é muito antiga e persiste até os tempos atuais, nos quais
é notório o debate envolvendo crença e ciência e sua presença na sociedade. Tal é a situação dos membros da
Comunidade Testemunhas de Jeová, que se recusam receber transfusão de sangue. O Código de Ética Médica é
claro ao estabelecer os limites da autonomia do paciente em caso de risco iminente de morte, como referem os
artigos abaixo transcritos: É vedado ao médico: Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu
representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de
morte. […] Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a
execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. Nesse mesmo
sentido, a Resolução CFM n.º 1.021/80, em seu artigo 2º, diz: ‘Se houver iminente perigo de vida, o médico
praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis’.”
(Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na
assistência médica). Disponível em: https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf.
Acesso em 21/abr/2019.
490
Artigo 135. Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou
extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses
casos, o socorro da autoridade pública: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único – A pena
é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.
491
“Beauchamp e Childress (2002) consideram que os pacientes testemunhas de Jeová fornecem consentimento
de forma substancialmente autônoma pelo fato de ser dado por pessoa de firme convicção religiosa. Assim, não
cabe ao médico oferecer alternativas ao caráter religioso do paciente, discutindo com ele sobre a interpretação
religiosa do recebimento do sangue, mas apenas é sua obrigação dar as informações adequadas sobre a condição
do paciente e oferecer as alternativas clínicas e cirúrgicas que o caso requer. Bonamigo (2011) afirma que os
cuidados devem ser redobrados para que a solução de conflitos seja a menos problemática possível, ressaltando
que a recusa do paciente deve ser respeitada e a busca de alternativas terapêuticas, considerada.” (Recomendação
CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência

222
Os deveres da profissão médica têm uma grande complexidade e não podem
ser reduzidos a uma missão biológica de tão somente salvar uma vida, a todo custo. Isso não
significa que o profissional tenha que salvar vidas, a qualquer preço. O princípio que deve
viger nesses casos é o do respeito à pessoa. Assim, os deveres hipocráticos tradicionais devem
ser considerados em conjunto com a autonomia do paciente.492

Sabe-se que, atualmente, com o avanço da ciência, existem várias alternativas à


transfusão sanguínea, com a utilização de materiais sintéticos que são aceitos para aqueles que
professam a religião testemunhas de Jeová. Mas os médicos devem ter conhecimento sobre
essas opções que são oferecidas aos pacientes. Assim, se existem essas alternativas, deve o
médico utilizá-las. Ademais, nos casos em que não há risco de morte, a transfusão de sangue
deve ser evitada.493

No entanto, mesmo havendo alternativas à transfusão de sangue, é possível que


ela seja necessária. É exatamente nesses casos que o médico deve informar o paciente sobre
os riscos e benefícios da realização do procedimento, bem como os riscos decorrentes da sua
não aceitação. No Anteprojeto do Código Penal do Senado Federal, existe a proposta de
considerar crime a realização de procedimento médico ou cirúrgico, ainda que indispensável
para salvar a vida do paciente, contra a vontade deste, caracterizando crime de
constrangimento ilegal.494

médica). Disponível em: https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em


21/abr/2019.
492
“Os deveres da profissão médica são complexos e não se reduzem à missão biológica de salvar a vida a todo o
custo – ainda que essa possa ser o objetivo central da ciência médica, tal máxima não pode ser estabelecida pelo
profissional de forma absoluta e fora de qualquer contexto. Se for preciso eleger um princípio prima facie, esse
deve ser o respeito à pessoa, o qual pressupõe que os deveres hipocráticos tradicionais devem ser considerados
em conjunto com o respeito à autonomia do paciente. Se por um lado, é permitido ao médico opor a objeção de
consciência para recusar um tratamento, por outro a recusa sem fundamento é um desrespeito à pessoa.”
(JUNIOR, Dalmir Lopes. Consentimento informado na relação médico-paciente. Belo Horizonte: Editora
D’Placido, 2018, p. 247/248).
493
“Essa tendência atual visa o respeito à autonomia do paciente, princípio defendido pelo Comitê de
Bioética/Unesco na atualidade, embora reconheça que antigamente o desfecho era pelo respeito à vida. Por outro
lado, é inquestionável que o avanço da ciência contribuiu com várias alternativas terapêuticas à transfusão
sanguínea, com a utilização de materiais sintéticos aceitos pelos que professam a crença das testemunhas de
Jeová. Por sua vez, os médicos precisam conhecer essas outras opções. Portanto, parece evidente que, na
existência de acesso a essas alternativas, o médico deve utilizá-las para evitar o conflito moral e ético. Também,
claramente, nos casos em que não há risco iminente de vida para o paciente, é consenso que a transfusão de
sangue deve ser evitada.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de
consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em:
https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em 21/abr/2019.
494
“Resta, assim, a situação do risco iminente de morte e ausência de outras possibilidades terapêuticas, bem
como a decisão sobre a conduta em menores de idade. E é nessa linha de raciocínio que a questão do
consentimento esclarecido deve ser discutida, lembrando também à equipe médica que ela precisa tomar
conhecimento sobre as demais formas de abordagem de tratamento. Mesmo quando houver alternativas à

223
O consentimento escrito é o melhor, para o fim de comprovar que houve a
concordância do paciente, bem como se o consentimento foi obtido respeitando-se a
autonomia e se houve suficiente esclarecimento do paciente. A atividade médica, por ser
dinâmica, realiza procedimentos em relação aos quais a exigência do consentimento por
escrito pode ser difícil, a depender das circunstâncias e do tipo de procedimento. Nesses
casos, o que importa é a comunicação e a explicação oral ou gestual, entre o médico e o
paciente, bem como a confiança mútua entre os dois. São obrigações do médico o respeito a
autonomia do paciente e o esclarecimento de todas as suas dúvidas e incertezas.495

O médico, para acautelar-se contra futuras demandas e imputação de


responsabilidades, poderia fazer presente pessoa para testemunhar o ato, mas essa conduta
poderia quebrar o sigilo médico. De outro lado, para os procedimentos médicos que envolvam
maior complexidade, tais como cirurgias, exames invasivos, a critério médico, recomenda-se
que o consentimento seja feito por escrito, o que se denomina termo de consentimento livre e
esclarecido. Ainda, sendo caso de emergência, deverá o médico, obrigatoriamente, descrever
e justificar o fato, por escrito, de preferência no prontuário do paciente, ou em documento
apartado, cujo original deverá ser anexado ao prontuário.496

transfusão sanguínea, em certas ocasiões, a transfusão de sangue torna-se necessária, e é nessas situações que o
médico precisa informar ao paciente os riscos e benefícios da realização do procedimento, assim como aqueles
decorrentes da sua não aceitação. Esta, aliás, também tem sido a orientação jurídica, a de que deve prevalecer o
bom senso e o respeito à autonomia do paciente. Recente proposta da comissão de juristas que elabora o
Anteprojeto de Código Penal do Senado Federal propôs considerar crime a realização de procedimento médico
ou cirúrgico, ainda que indispensável para salvar a vida do paciente, contra a vontade deste. Especificamente,
conforme a proposta da Comissão, a intervenção médica ou cirúrgica realizada em paciente capaz, sem sua
anuência, caracterizará crime de constrangimento ilegal. O relator da matéria, o procurador da República Luiz
Carlos Gonçalves, atendeu a um pedido das testemunhas de Jeová. Assim, caso a proposta da comissão seja
aprovada, as testemunhas de Jeová que não desejarem submeter-se a transfusão de sangue, mesmo em hipótese
de risco de morte, estarão salvaguardadas pela legislação penal.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe
sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível em:
https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em 21/abr/2019.
495
“Sob o ponto de vista da comprovação da concordância do paciente, assim como sobre se o consentimento foi
obtido com respeito à autonomia, se foi obtido de forma suficiente ao perfeito esclarecimento do paciente, não há
dúvidas de que o consentimento escrito é o que melhor se presta a tal. No entanto, a atividade médica, por
natureza muito ampla, variada e dinâmica, também realiza procedimentos para os quais a exigência do
consentimento livre e esclarecido escrito pode causar até estranheza e dificultar, dependendo das circunstâncias,
a dinâmica do procedimento e o próprio relacionamento médico-paciente. Nestas situações, o que mais importa é
a comunicação e a explicação de viva voz, oral, gestual, entre o médico e o paciente, e a confiança mútua que
deve ser estabelecida entre os mesmos. Sempre, no entanto, deve-se respeitar a autonomia do paciente e a
obrigação, por parte do médico, de esclarecer todas as dúvidas e incertezas do paciente.” (Recomendação CFM
n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica).
Disponível em: https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em
21/abr/2019.
496
“Poder-se-ia aventar a possibilidade de que o médico, para acautelar-se contra futuras demandas de
responsabilidade, deva fazer presente pessoa para testemunhar o ato. Isso, no entanto, por não ser confiável para
o médico e o paciente, pode configurar quebra do sigilo médico. Já para os procedimentos médicos que

224
O termo de consentimento livre e esclarecido, que é indicado para pacientes
incapazes, deve conter os mesmos elementos do termo de consentimento, mas sua linguagem
deve ser acessível para o entendimento de crianças e adolescentes. O termo de consentimento
não substitui o termo de consentimento a ser assinado pelos pais ou responsáveis pela criança
ou adolescente. Ressalta-se que os dois termos não podem servir como autorização do
paciente à pesquisa, bem como substituir o termo de consentimento da Resolução n.º 466/12,
de competência da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos
(Conesp/CNS/MS). De igual modo, não pode substituir nem servir de consentimento ou
recusa de doação de órgãos ou tecidos do paciente.497

Assim, é o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido um instrumento para


que se possa reduzir a crise que existe entre médicos e pacientes. Essa crise de confiança tem
como um de seus fatores o excesso de tecnologia na medicina. É certo que,
contemporaneamente, o conhecimento do médico é tido com menor importância do que a
sofisticação tecnológica usada para diagnóstico e/ou conduta diante do paciente. Assim, na
atualidade, a confiança saiu do médico e passou para a tecnologia. A assimetria de natureza
técnico-científica da relação médico-paciente é um importante obstáculo no processo de
obtenção do termo de consentimento.498

envolvem maior ou grande complexidade, como exames invasivos, cirurgias, transplantes e outros, a critério
médico, recomenda-se consentimento livre e esclarecido escrito, que recebe o nome de termo de consentimento
livre e esclarecido. É importante destacar que, no dia a dia de todas as atividades profissionais, inclusive na
médica, apresentam-se circunstâncias que fogem da estrutura e dos contornos ordinários previstos, o que resulta
na adoção de soluções extraordinárias. Isso ocorre, por exemplo, em situações de emergência, nas quais é
impossível estabelecer-se a relação de informação-esclarecimento-consentimento entre médico e paciente ou seu
representante, o que impossibilita a obtenção do consentimento livre e esclarecido. Nesses casos, o médico
deverá, obrigatoriamente, descrever e justificar o fato, por escrito, preferencialmente no prontuário do paciente,
ou em documento apartado, cujo original deverá ser anexado ao prontuário.” (Recomendação CFM n.º 1/2016 –
Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica). Disponível
em: https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf. Acesso em 21/abr/2019.
497
“O termo de assentimento livre e esclarecido, indicado para pacientes incapazes, deve conter os mesmos
elementos acima, mas sua linguagem deve estar adaptada ao entendimento por menores e adolescentes. Não
substitui, salvo raras e justificadas hipóteses, previamente submetidas à Câmara de Bioética ou ao Comitê de
Bioética competente, o termo de consentimento livre e esclarecido a ser assinado pelos pais ou responsáveis pela
criança ou adolescente. É importante observar que o termo de consentimento ou assentimento do paciente para a
realização de procedimento médico não pode servir como autorização do paciente à pesquisa científica e
tampouco substituir o termo de consentimento livre e esclarecido da Resolução n.º 466/1214, da competência da
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (Conep/CNS/MS). Da mesma forma, não
pode substituir nem servir ao consentimento ou recusa de doação de órgãos e tecidos pelo paciente.”
(Recomendação CFM n.º 1/2016 – Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na
assistência médica). Disponível em: https://www.ghc.com.br/files/Sobre%20Consentimento%20Informado.pdf.
Acesso em 21/abr/2019.
498
“O TCLE, aqui, pode ser percebido como um instrumento para reduzir a magnitude da crise de confiança
entre médico e paciente, e a redução da magnitude dessa crise será tão mais acentuada quanto mais adequado,
por referência às diretrizes, for o processo de obtenção do TCLE. A crise de confiança existente na relação
médico-paciente tem também como um de seus fatores causais o excesso de tecnologia na medicina armada. Na

225
Dessa forma, para que o processo de obtenção do consentimento seja feito de
forma plena e efetiva e não simplesmente como um ritual burocrático, faz-se mister que o
médico e o paciente tenham controle de todas as variáveis, interferindo no processo de
obtenção do consentimento. O controle de todas essas variáveis é uma utopia e inatingível,
impedindo, desse modo a obtenção de um consentimento que possa ser considerado, sob
todos os ângulos, plenamente informado e autônomo.499

medicina contemporânea, o conhecimento do médico é percebido como tendo menor importância do que a
sofisticação tecnológica utilizada para diagnóstico e/ou conduta diante do paciente; portanto, atualmente a
confiança do paciente saiu do médico e passou para a tecnologia. Para pesquisas em seres humanos conduzidas
sob tais circunstâncias de técnica armada, o TCLE pode valorizar o conhecimento e a ética médica perante o
tecnicismo no agir médico, e também balizar a tensão já existente na relação médico-paciente. A assimetria de
natureza técnico-científica, sempre presente na relação médico-paciente, é um obstáculo importante na
efetividade do processo de obtenção do TCLE.” (SLAWKA, Sérgio. O termo de consentimento livre e
esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área de saúde: uma revisão crítica. São Paulo: 2005. Biblioteca
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. USP/FM/SBD-009/05). Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5137/tde-15092005-120212/pt-br.php. Acesso em 04/04/2019.
499
“Ainda que haja desigualdade de poderes dentro da própria categoria dos médicos, este profissional é
percebido pelo sujeito da pesquisa como um indivíduo poderoso, informado e ‘dono do saber’: ao reconhecer sua
autoridade técnica e moral, o sujeito da pesquisa espera que o médico pratique o ‘tecnicismo no agir médico’
concomitantemente ao exercício de uma moral no trabalho e a realização da ética no trabalho (Schraiber, 1997).
A relação médico-paciente, portanto, será sempre uma relação de poderes desiguais, vulnerável às variáveis
presentes na comunicação médico-paciente, na tomada de decisão do sujeito da pesquisa, e na interpretação das
expressões de probabilidade no TCLE. Médico e sujeito da pesquisa podem controlar apenas algumas variáveis
envolvidas no processo de obtenção do TCLE, quer na comunicação médico-paciente, no processo de decisão do
sujeito da pesquisa, ou mesmo na interpretação das expressões de probabilidade. Uma vez que a realidade
vivenciada pela relação médico-paciente, durante a obtenção do TCLE, não permite o controle de todas as
variáveis envolvidas neste processo, a decisão do sujeito da pesquisa sobre o TCLE pode ser considerada apenas
substancialmente autônoma, não havendo condições reais para uma decisão sobre TCLE que seja plenamente
informada, autônoma e genuína. Ainda que médico e/ou paciente possam ter o controle de algumas variáveis
envolvidas nos processos de comunicação médico-paciente, tomada de decisão do sujeito de pesquisa e
interpretação das expressões de probabilidade do TCLE, esses processos, individualmente, também não são
plenamente controlados; portanto, não podem ser considerados totalmente efetivos. A prevenção de apenas
alguns procedimentos individualmente efetivos nesses processos (isto é, o controle de apenas algumas de suas
variáveis), torna o processo de obtenção do TCLE – em sua totalidade – ‘apenas’ substancialmente efetivo,
necessitando ainda de inúmeros controles em seu modus operandi para que possa ser considerado plenamente
autônomo e efetivo. Para que este processo possa ser considerado plenamente efetivo e não apenas um ritual
burocrático, é necessário que o médico e o sujeito da pesquisa tenham o controle de todas as variáveis
interferindo no processo de obtenção do TCLE. O controle de todas as variáveis envolvidas durante a obtenção
do TCLE é utópico e inatingível, impedindo, portanto, a obtenção de um termo de consentimento livre e
esclarecido que possa ser considerado, sob todos os ângulos, genuíno, plenamente informado e autônomo.”
(SLAWKA, Sérgio. O termo de consentimento livre e esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área de
saúde: uma revisão crítica. São Paulo: 2005. Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo. USP/FM/SBD-009/05). Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5137/tde-15092005-
120212/pt-br.php. Acesso em 04/04/2019.

226
3 GRAVIDEZ E PARTO SEM VIOLÊNCIA

3.1 Institucionalização e medicalização do parto

Como já explanado, a gravidez é um evento que muda a vida de qualquer


mulher, tal o seu significado. É repleta de valores e de transformações que são
experimentados de formas diferentes por cada mulher. Caracteriza-se por um período de
mudanças físicas e emocionais que determinam o acompanhamento pré-natal, com prioridade
de acolhimento, oferecimento de respostas e apoio aos sentimentos de medo, dúvidas
angústias, fantasias, ou somente curiosidade de saber os acontecimentos com seu corpo.500

Os profissionais de saúde são coadjuvantes e desempenham papel importante,


sendo capazes de reconhecer quando há momentos críticos, intervindo, no caso concreto, com
seu conhecimento, que, inclusive, pode ser decisivo para o bem-estar da mulher e de seu filho.
A equipe de saúde, quando da assistência às mulheres, precisa priorizar a humanização do
parto das pacientes. Esse procedimento deve ser uma prática voltada para os princípios da
integralidade e equidade das ações, evidenciando as usuárias como sujeitos de direitos e
participantes ativos do seu processo de saúde.501

Durante o período do pré-natal, a educação em saúde deve ser criada para


possibilitar o preparo da mulher durante a gestação e o parto. Nessa etapa, é de fundamental
importância o processo educativo para aquisição de conhecimento sobre a gestação e o parto,
para o fortalecimento da mulher como cidadã. Esses processos de educação não são apenas

500
“A gravidez é um evento de muita significação na vida da mulher e permeada por valores e transformações
que se constituem como ímpares, sendo experimentados de formas diferentes pelas mulheres. É caracterizada
como um período de mudanças físicas e emocionais que determinam o acompanhamento pré-natal, com a
prioridade do acolhimento à mulher, o oferecimento de respostas e de apoio aos sentimentos de medo, dúvidas,
angústias, fantasias ou, simplesmente, à curiosidade de saber sobre o que acontece com o seu corpo.” (SOUZA,
Viviane Barbosa; ROECKER, Simone; MARCON, Sonia Silva. Ações educativas durante a assistência pré-
natal: percepção de gestantes atendidas na rede básica de Maringá-PR. RevEletr Enf.2011;13(2):199-210).
Disponível em https://www.fen.ufg.br/revista/v13/n2/v13n2a06.htm. Acesso em 05/fev/2018.
501
“Evidentemente, os profissionais de saúde são coadjuvantes desta experiência e desempenham importante
papel, sendo capazes de reconhecer momentos críticos e intervir com seu conhecimento que pode ser decisivo no
bem-estar da mulher e do seu bebê. A equipe de saúde, ao realizar a assistência, precisa priorizar a humanização
durante o atendimento aos distintos grupos populacionais e, em particular, à mulher gestante. É preciso entender
a humanização como prática pautada em princípios como integralidade e equidade das ações, evidenciando os
usuários como sujeitos de direitos e participantes ativos do seu processo saúde/doença.” (SOUZA, Viviane
Barbosa; ROECKER, Simone; MARCON, Sonia Silva. Ações educativas durante a assistência pré-natal:
percepção de gestantes atendidas na rede básica de Maringá-PR. RevEletr Enf.2011;13(2):199-210).
Disponível em https://www.fen.ufg.br/revista/v13/n2/v13n2a06.htm. Acesso em 05/fev/2018.

227
para intervenção na doença, mas para que o indivíduo disponha de meios para sua
manutenção e recuperação de seu estado de saúde.502

A realidade dos serviços de saúde nem sempre corresponde às expectativas


sentidas pelas mulheres durante a gestação. Na maioria das vezes, o sistema não dispõe de
profissionais habilitados para realizar a educação em saúde no período gestacional. Para que
seja solucionado esse problema, necessário se faz o início de uma nova forma de
planejamento e avaliação do que é oferecido e a diferença entre a perspectiva, a percepção e a
experiência vivida pelas gestantes dentro desses serviços de saúde. Essas mulheres têm que
ser valorizadas, além de passar a compreender o período de gestação como um fenômeno
experimentado por elas de forma particular e individualizada.503

O atendimento à gestante deve ser feito de forma qualificada e contextualizada,


proporcionando a ela um acompanhamento clínico, com a prevenção de intercorrências,
verificando suas necessidades sociais, culturais, psicológicas, econômicas e espirituais. É
direito das pacientes serem informadas sobre os cuidados com a saúde, bem como sua
participação nas decisões que influenciem suas vidas e saúde. Deve haver um vínculo da
gestante com a equipe de saúde, pois, sem ele aumenta-se o risco de desistência ou menor
frequência no acompanhamento pré-natal e nas ações de educação em saúde.504

502
“É durante o pré-natal, que um espaço de educação em saúde deve ser criado, a fim de possibilitar o preparo
da mulher para viver a gestação e o parto de forma positiva, integradora, enriquecedora e feliz. Neste momento,
entende-se que o processo educativo é fundamental não só para a aquisição de conhecimento sobre o processo de
gestar e parir, mas também para o seu fortalecimento como ser cidadã. As práticas educativas referem-se às
atividades de educação em saúde, voltadas para o desenvolvimento de capacidades individuais e coletivas,
visando à melhoria da qualidade de vida e saúde. Educação em saúde não são apenas processos de intervenção
na doença, mas processos de intervenção para que o indivíduo e a coletividade disponham de meios para a
manutenção ou a recuperação do seu estado de saúde, no qual estão relacionados os fatores orgânicos,
psicológicos, socioeconômicos e espirituais.” (SOUZA, Viviane Barbosa; ROECKER, Simone; MARCON,
Sonia Silva. Ações educativas durante a assistência pré-natal: percepção de gestantes atendidas na rede básica
de Maringá-PR. ver Eletr Enf. 2011; 13(2):199-210). Disponível em
https://www.fen.ufg.br/revista/v13/n2/v13n2a06.htm. Acesso em 05/fev/2018.
503
“A realidade dos serviços de saúde, nem sempre responde às necessidades de saúde e expectativas sentidas
pelas mulheres durante a gestação, pelo fato de, muitas vezes, não dispor de profissionais habilitados a realizar
educação em saúde no período gestacional. Para que este tipo de problema seja solucionado, é preciso que se dê
início a uma nova forma de planejamento e avaliação do que é oferecido, e nesta, a perspectiva, a percepção e a
experiência vivida pelas gestantes dentro destes serviços têm de ser valorizadas, além, é claro, de passar a
compreender o período de gestação enquanto um fenômeno experienciado pelo ser humano de forma particular e
individualizada, pois elas constituem, junto com seus filhos, a razão da existência destes serviços.” (SOUZA,
Viviane Barbosa; ROECKER, Simone; MARCON, Sonia Silva. Ações educativas durante a assistência pré-
natal: percepção de gestantes atendidas na rede básica de Maringá-PR. RevEletr Enf. 2011; 13(2):199-210.
Disponível em https://www.fen.ufg.br/revista/v13/n2/v13n2a06.htm. Acesso em 05/fev/2018).
504
“Todavia, quando o atendimento é feito de forma contextualizada e qualificada proporciona, além do
acompanhamento clínico com a prevenção de intercorrências, a atuação em face das necessidades sociais,
culturais, psicológicas, econômicas e espirituais. Para tanto, deve-se praticar mais a escuta, valorizar as

228
Antigamente, como o parto era considerado um evento horrível, os
profissionais de saúde ofereciam uma espécie de esquecimento da experiência do parto. Por
vários anos do século passado, muitas mulheres, de classe média e alta, no mundo todo,
tiveram seus filhos de forma inconsciente. O parto era feito sob sedação total, sob o efeito de
anestésicos e de diversos tipos de medicamentos, o que era chamado de sono crepuscular, já
que era considerado como uma violência contra a mulher. Esse tipo de experiência começou
na Europa e nos Estados Unidos, fazendo muito sucesso entre os médicos e parturientes na
época.505

O processo de sedação era realizado com a aplicação de uma injeção de


morfina no início do trabalho de parto e, logo após, era aplicada uma dose de um amnésico
chamado escopolamina. Com isso, a gestante não sentia dor e, assim, não tinha qualquer
lembrança consciente do que havia acontecido. Normalmente, induzia-se o parto com
ocitócitos (fármacos que estimulam a contração do miométrio, os quais são usados para
induzir o trabalho de parto, impedir ou controlar a hemorragia pós-parto ou pós-aborto e
acessar o estado fetal na gravidez de alto risco), o colo era dilatado com instrumentos e o bebê
retirado com fórceps.506

expressões não verbais e respeitar a individualidade de cada um, considerando as múltiplas dimensões que
circundam o viver em sociedade, proporcionando a criação de vínculos, o diálogo e a participação ativa das
mulheres no momento do pré-natal, parto e puerpério. Perante esse panorama espera-se contribuir para a
melhoria das ações educativas dos enfermeiros direcionadas às gestantes nas unidades de saúde, pois, expor e
satisfazer todas as intercorrências e alterações experimentadas durante a gestação beneficia a mulher no alívio e
enfrentamento destas. É direito dos clientes serem informados sobre os cuidados de saúde e participarem das
decisões que influenciam suas vidas, sua saúde e os serviços comunitários. Nessa perspectiva, as chances das
gestantes virem a adotar medidas de autocuidado, com vistas ao alcance de metas de saúde, tornam-se concretas.
Portanto, ver atendidas, as necessidades que as pessoas desejam no cuidado à sua saúde, aponta a importância da
criação de um vínculo com o(a) usuário(a). Evidentemente, quando uma equipe de saúde não está sensibilizada
para a importância da criação do vínculo com a gestante, aumenta-se o risco de desistência ou de menor
frequência no acompanhamento pré-natal e nas ações de educação em saúde.” (SOUZA, Viviane Barbosa;
ROECKER, Simone; MARCON, Sonia Silva. Ações educativas durante a assistência pré-natal: percepção de
gestantes atendidas na rede básica de Maringá-PR. RevEletr Enf.2011; 13(2):199-210). Disponível em
https://www.fen.ufg.br/revista/v13/n2/v13n2a06.htm. Acesso em 05/fev/2018.
505
“Uma vez que o parto é descrito como um evento medonho, a obstetrícia médica oferece um apagamento da
experiência. Durante várias décadas do século 20, muitas mulheres de classe média e alta no mundo
industrializado deram à luz inconscientes. O parto sob sedação total (‘sono crepuscular’, ou twilight sleep)
começou a ser usado na Europa e nos Estados Unidos nos anos 10, e fez muito sucesso entre os médicos e
parturientes das elites.” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os
muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p.627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
506
Envolvia uma injeção de morfina no início do trabalho de parto e, em seguida, uma dose de um amnésico
chamado escopolamina, assim a mulher sentia a dor, mas não tinha qualquer lembrança consciente do que havia
acontecido. Geralmente o parto era induzido com ocitócitos, o colo dilatado com instrumentos e o bebê retirado
com fórceps altos. Como a escopolamina era também um alucinógeno, podendo provocar intensa agitação, as
mulheres deveriam passar o trabalho de parto amarradas na cama, pois se debatiam intensamente e às vezes
terminavam o parto cheias de hematomas. Para evitar que fossem vistas nesta situação vexatória, os leitos eram

229
Esse processo de sedação total, com parto instrumental, foi abandonado após
várias décadas, quando a mortalidade materna e perinatal não era mais aceita. Com o
surgimento de novas formas de anestesia, o modelo hospitalar de parto – pré-parto, parto, pós-
parto – subdivide-se como uma linha de montagem. O modelo hospitalar, que antes era
restrito às elites e às mulheres indigentes que recorriam às maternidades-escola, expandiu-se
para as áreas urbanas. A partir da metade do século passado, o modelo de parto hospitalar
estava instalado em muitos países, mesmo que sem qualquer evidência científica de que fosse
mais seguro que o parto domiciliar.507

No modelo hospitalar dominante nessa época, nos países industrializados, o


parto era feito com as mulheres imobilizadas, com as pernas abertas e levantadas, o
funcionamento do útero acelerado ou reduzido, com a assistência de pessoas desconhecidas.
Sem qualquer acompanhante, a mulher era submetida a uma série de procedimentos de rotina,
como a abertura cirúrgica da musculatura da vulva e vagina (conhecida como episiotomia),
extração do bebê com fórceps, entre outros. Hoje em dia, inclusive, este é o modelo utilizado
pelo SUS, mas no setor privado, esse sofrimento pode ser prevenido por meio de uma cesárea
eletiva.508

cobertos, como uma barraca (Wertz, 1993). No Brasil, o parto inconsciente teve em Magalhães um expoente: ele
desenvolveu para uso no parto a mistura de morfina com cafeína: ‘Lucina’, um dos nomes da deusa Juno
(Magalhães, 1916).” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos
sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p.627-37, 2005. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
507
“O modelo de assistência acima descrito, da sedação completa associada ao parto instrumental, foi
abandonado após várias décadas, quando a alta morbimortalidade materna e perinatal passou a ser considerada
inaceitável. Porém, com o advento de formas mais seguras de anestesia, persistiu o modelo de assistência com a
mulher sendo ‘processada’ em várias estações de trabalho (pré-parto, parto, pós-parto), como em uma linha de
montagem (Martin, 1987). Inicialmente restrito às elites e às indigentes que acorriam às maternidades-escola, o
modelo hospitalar se expandiu como padrão da assistência nas áreas urbanas. Na metade do século 20, o
processo de hospitalização do parto estava instalado em muitos países, mesmo sem que jamais tivesse havido
qualquer evidência científica consistente de que fosse mais seguro que o parto domiciliar ou em casas de parto
(Tew, 1995). Não sem resistência das parteiras, em alguns países, a obstetrícia não-médica, leiga ou culta, foi
ilegalizada, assim como o parto não-hospitalizado.” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência
ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v.10, n.3, p.627-37, 2005).
Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em
10/nov/2018.
508
“No modelo hospitalar dominante na segunda metade do século 20, nos países industrializados, as mulheres
deveriam viver o parto (agora conscientes) imobilizadas, com as pernas abertas e levantadas, o funcionamento de
seu útero acelerado ou reduzido, assistidas por pessoas desconhecidas. Separada de seus parentes, pertences,
roupas, dentadura, óculos, a mulher é submetida à chamada ‘cascata de procedimentos’ (Mold & Stein, 1986).
No Brasil, aí se incluem como rotina a abertura cirúrgica da musculatura e tecido erétil da vulva e vagina
(episiotomia), e em muitos serviços como os hospitais-escola, a extração do bebê com fórceps nas primíparas.
Este é o modelo aplicado à maioria das pacientes do SUS hoje em dia. Para a maioria das mulheres do setor
privado, esse sofrimento pode ser prevenido, por meio de uma cesárea eletiva.” (DINIZ, Carmen Simone Grilo.
Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v.

230
Parto ativo, humanizado, digno ou respeitoso são expressões semelhantes. Na
assistência ao parto, humanizar é um termo usado há muitas décadas, com vários sentidos.
Fernando Magalhães, o pai da obstetrícia brasileira, o empregou no início do século XX, e o
professor Jorge de Rezende, na segunda metade do mesmo século. Ambos defendem que a
narcose e o uso de fórceps vieram humanizar a assistência aos partos.509

A referida humanização desse tipo de assistência determina uma alteração na


compreensão do que é o parto uma experiência humana e, para quem o assiste, gera uma
mudança no que fazer diante do sofrimento dessas mulheres. O modelo anterior de assistência
médica era tutelado pela Igreja Católica, entendendo o parto como um desígnio divino, uma
pena pelo pecado original, sendo que tudo aquilo que pudesse ser utilizado para alívio dos
riscos e das dores era dificultado e mesmo ilegalizado.510

A mulher passa a ser considerada não mais culpada, mas vítima da natureza,
sendo que o obstetra passa a ter o papel de antecipar e combater os perigos que a mulher
possa correr. O parto era concebido como uma forma de violência intrínseca, um fenômeno
fisiologicamente patogênico e, como implicava sempre riscos, danos e sofrimento, seria
patológico. A maternidade iniciaria com violência física e sexual da passagem da criança
pelos genitais, como um estupro invertido.511

10, n.º 3, p. 627-37, 2005). Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-


81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
509
“Na assistência ao parto, o termo humanizar é utilizado há muitas décadas, com sentidos os mais diversos.
Fernando Magalhães, o Pai da Obstetrícia Brasileira, o empregou no início do século 20 e o professor Jorge de
Rezende, na segunda metade do século. Ambos defendem que a narcose e o uso de fórceps vieram humanizar a
assistência aos partos (Rezende, 1998). Esses conceitos eram difundidos por autoridades em obstetrícia médica
no cenário internacional, entre eles o norte-americano Joseph DeLee (Rothman, 1993).” (DINIZ, Carmen
Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc.
Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
510
“A humanização da assistência, nas suas muitas versões, expressa uma mudança na compreensão do parto
como experiência humana e, para quem o assiste, uma mudança no ‘que fazer’ diante do sofrimento do outro
humano. No caso, trata-se do sofrimento da outra, de uma mulher. O modelo anterior da assistência médica,
tutelada pela Igreja Católica, descrevia o sofrimento no parto como desígnio divino, pena pelo pecado original,
sendo dificultado e mesmo ilegalizado qualquer apoio que aliviasse os riscos e dores do parto (Diniz, 1997). A
obstetrícia médica passa a reivindicar seu papel de resgatadora das mulheres, trazendo: uma preocupação
humanitária de resolver o problema da parturição sem dor, revogando assim a sentença do Paraíso, iníqua e
inverídica, com que há longos séculos a tradição vem atribulando a hora bendita da maternidade (Magalhães,
1916).” (DINIZ Carmen Simone Grilo 1997. Assistência ao parto e relações de gênero: elementos para uma
releitura médico-social. Dissertação de mestrado. Faculdade de Medicina/USP, São Paulo). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&ref=000089&pid=S1413-
8123200500030001900014&lng=pt. Acesso em 15/out/2018.
511
“Agora a mulher é descrita não mais como culpada que deve expiar, mas como vítima da sua natureza, sendo
papel do obstetra antecipar e combater os muitos perigos do ‘desfiladeiro transpelvino’. Segundo DeLee, para a
mãe o parto equivaleria a cair com as pernas abertas sobre um forcado (a passagem do bebê pela vulva), e para o

231
Como esse uso irracional provoca mais danos que prejuízo, há cerca de 35
anos, iniciou-se um movimento internacional, denominado humanização do parto, o qual
priorizava o uso de tecnologia apropriada, qualidade de interação entre a mulher e os
profissionais e a retirada de tecnologia danosa.512

É certo que o processo de parto é um momento único na vida de qualquer


mulher. Todavia, o parto em si pode transcorrer com algumas intercorrências devido a
condições da própria gestante ou mesmo condições do feto. Nesses casos, por diversas vezes,
necessário se faz o uso de medicamentos que possibilitem a indução do parto, o que favorece
a realização do parto normal.513

Indica-se, na atualidade, que se faça a indução ao parto somente quando a


gestação apresentar riscos para a gestante e/ou para o feto. Podem-se citar como exemplos os
casos de pré-eclâmpsia da mãe, a rutura prematura das membranas ovulares, o pós-datismo.

bebê, a ter sua cabeça esmagada por uma porta (a passagem pela pélvis óssea). Através da pelvimetria, ‘base da
ciência obstétrica’, a pélvis feminina é esquadrinhada com base na física e na matemática, com o
desenvolvimento dos pelvímetros, compassos, ângulos e cálculos. Nesse período disseminam-se os itens do
armamentário cirúrgico-obstétrico, uma variedade de fórceps, craniótomos, basiótribos, embriótomos,
sinfisiótomos, instrumentos hoje considerados meras curiosidades arqueológicas e de que nos vexamos ao
lembrá-las (Cunha, 1989). Para esses autores, o parto é concebido como uma forma de violência intrínseca,
essencial, um fenômeno ‘fisiologicamente patogênico’; e se implicaria sempre danos, riscos e sofrimentos, seria,
portanto, patológico (Rothman, 1993). A maternidade se inauguraria com a violência física e sexual da passagem
da criança pelos genitais: uma espécie de estupro invertido (Diniz, 1997). Oferecendo solidariedade humanitária
e científica diante do sofrimento, a obstetrícia cirúrgica, masculina, reivindica sua superioridade sobre o ofício
feminino de partejar, leigo ou culto.” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no
Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p.627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
512
“Para além da pobreza das relações humanas nessa forma de assistência e do sofrimento físico e emocional
desnecessário que causa, o uso irracional de tecnologia no parto levou ao seu atual paradoxo: é justamente o que
impede muitos países de reduzir a morbimortalidade materna e perinatal (Barros et al., 2005, Costello, 2005).
Uma vez que esse uso irracional provoca mais danos que benefícios, há cerca de 25 anos, inicia-se um
movimento internacional por priorizar a tecnologia apropriada, a qualidade da interação entre parturiente e seus
cuidadores, e a des-incorporação de tecnologia danosa. O movimento é batizado com nomes diferentes nos
diversos países, e no Brasil é em geral chamado de humanização do parto.” (DINIZ, Carmen Simone Grilo.
Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v.
10, n.º 3, p. 627-37, 2005). Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
513
“A gravidez é um período único e o mais crítico da vida de uma mulher, pois, durante o seu transcorrer, tanto
mãe quanto feto podem apresentar condições clínicas que desfavoreçam o prognóstico materno ou fetal. São
esses casos, nos quais as circunstâncias não possibilitam esperar o curso fisiológico da mãe, que a indução do
trabalho de parto tem seu papel importante, pois reproduz o parto normal e espontâneo.” (SCHINCAGLIA,
Cristine Yuri; SANTOS, Graziela Camargo dos; RIBEIRO, Juliana Aparecida; FIGUEIREDO, Renata
Yamashiro de Bueno Figueiredo; MENEZES, Simone; MAIA, Janize Silva; MAIA, Luiz Faustino dos Santos,
As consequências do uso de ocitócitos durante o parto; São Paulo: Revista Recien. 2017; 7(19):75-82).
Disponível em
https://www.researchgate.net/publication/315936495_As_consequencias_do_uso_de_ocitocitos_durante_o_part
o Acesso em 05/out/2018.

232
Não deve ser induzido o parto de gestantes com placenta prévia anterior, cirurgia uterina
anterior de grande escala, além de caso de apresentação fetal transversa.514

De outro lado, os primeiros relatos de indução do parto aconteceram no Egito,


há mais de 400 anos, com óleo de rícino. Em 1906, Henry Dale realizou o isolamento do
hormônio ocitocina, o qual foi uma grande conquista, e, em 1953, essa substância passou a ser
utilizada.515

Uma das formas de indução ao parto se dá com o uso de ocitocina, a qual é


utilizada no processo do parto, e consiste em um hormônio produzido pelo hipotálamo, sendo
armazenado na neurohipófise posterior. Sua principal função é promover as contrações
musculares uterinas, de forma ritmada, além de reduzir o sangramento durante o parto, pós-
parto e aborto; estimular a liberação do leite materno; e estreitar o vínculo afetivo entre mãe e
filho. A partir do momento que a ocitocina foi sintetizada em laboratório, tornou-se uma das
medicações mais utilizadas na indução e na condução do parto, podendo também ajudar a
salvar vidas se corretamente utilizada.516

514
“Na indução, o parto deixa de ser natural para adotar uma configuração intervencionista. Há indicações para
sua realização, mas também existem contraindicações. A indução é indicada quando a gestação apresenta riscos
para mãe e/ou bebê, como em gestantes que apresentem pré-eclâmpsia, rutura prematura das membranas
ovulares (RPMO), pós-datismo, entre outros fatores. Por outro lado, não se deve induzir o parto de gestantes que
apresentam placenta prévia anterior, cirurgia uterina anterior de grande escala, ruptura uterina anterior e
apresentação fetal transversa, por exemplo.” (SCHINCAGLIA, Cristine Yuri; SANTOS, Graziela Camargo dos;
RIBEIRO, Juliana Aparecida; FIGUEIREDO, Renata Yamashiro de Bueno Figueiredo; MENEZES, Simone;
MAIA, Janize Silva; MAIA, Luiz Faustino dos Santos, As consequências do uso de ocitócitos durante o parto;
São Paulo: Revista Recien. 2017; 7(19):75-82). Disponível em
https://www.researchgate.net/publication/315936495_As_consequencias_do_uso_de_ocitocitos_durante_o_part
o. Acesso em 05/out/2018.
515
“Os primeiros relatos de indução do parto aconteceram no Egito, há mais de 400 anos, com óleo de rícino.
Em 1906, Henry Dale realizou o isolamento do hormônio ocitocina, o qual foi uma grande conquista, e em 1953
passou a ser utilizada.” (SCHINCAGLIA, Cristine Yuri; SANTOS, Graziela Camargo dos; RIBEIRO, Juliana
Aparecida; FIGUEIREDO, Renata Yamashiro de Bueno Figueiredo; MENEZES, Simone; MAIA, Janize Silva;
MAIA, Luiz Faustino dos Santos, As consequências do uso de ocitócitos durante o parto; São Paulo: Revista
Recien. 2017; 7(19):75-82). Disponível em
https://www.researchgate.net/publication/315936495_As_consequencias_do_uso_de_ocitocitos_durante_o_part
o. Acesso em 05/out/2018.
516
“A ocitocina é um hormônio produzido pelo hipotálamo e é armazenado na neurohipófise posterior. Sua
principal função é promover as contrações musculares uterinas, de forma ritmada, reduzir o sangramento durante
o parto, pós-parto e aborto, estimular a liberação do leite materno e estreitar o vínculo afetivo entre mãe e filho.
A ocitocina foi sintetizada em laboratório e, a partir de então, tornou-se uma das medicações mais utilizadas na
indução e na condução do parto, podendo também ajudar a salvar vidas se corretamente indicado. Pode ser
utilizada isoladamente ou associada com outros métodos farmacológicos ou não-farmacológicos quando o parto
é prolongado, auxiliando nas contrações uterinas até que o bebê nasça. Seu uso é indicado para induções com o
colo favorável, na qual se faz necessária apenas a estimulação das contrações uterinas.” (SCHINCAGLIA,
Cristine Yuri; SANTOS, Graziela Camargo dos; RIBEIRO, Juliana Aparecida; FIGUEIREDO, Renata
Yamashiro de Bueno Figueiredo; MENEZES, Simone; MAIA, Janize Silva; MAIA, Luiz Faustino dos Santos,
As consequências do uso de ocitócitos durante o parto; São Paulo: Revista Recien. 2017; 7(19):75-82).
Disponível em

233
A ocitocina sintética, via endovenosa, é considerada o agente uterotônico mais
utilizado para indução e condução do parto, em pacientes com colo pérvio. É usada para
aumentar as contrações uterinas, o que contribui para a saída do bebê ou feto. E, em situações
de pós-parto, minimiza o risco de hemorragias, como atonia uterina, favorecendo, ainda, no
escoamento lácteo das mamas para o aleitamento materno.517

O efeito e a eliminação da ocitocina, após sua suspensão, são efetivamente


rápidos, contudo, a sua administração por via endovenosa, dificulta a movimentação da
grávida, e, também, pode acarretar riscos de intoxicação hídrica, por ser antidiurético.
Existem complicações em relação ao uso de ocitocina, como qualquer outro fármaco
utilizado. Em todos os casos, a conduta correta é a redução ou suspensão da droga, até que o
padrão de contrações esteja adequado; se for necessário, pode-se utilizar uterolíticos para
reversão.518

A escopolamina era utilizada, também, mas essa substância possui um efeito


alucinógeno, podendo provocar intensa agitação. As mulheres deveriam passar o trabalho de
parto amarradas na cama, pois se debatiam intensamente e, às vezes, terminavam o parto
cheias de hematomas. Para evitar que fossem vistas nessa situação vexatória, os leitos eram
cobertos, como uma barraca. No Brasil, o parto inconsciente desenvolveu-se com o uso de
uma mistura de morfina com cafeína, chamada Lucina, um dos nomes da deusa Juno.519

https://www.researchgate.net/publication/315936495_As_consequencias_do_uso_de_ocitocitos_durante_o_part
o. Acesso em 05/out/2018.
517
“A ocitocina sintética via endovenosa é considerada o agente uterotônico mais utilizado para indução e
condução do parto, em pacientes com colo pérvio. Pode ser utilizada para o aumento das contrações uterinas,
contribuindo para a saída do bebê ou do feto. E, em situações de pós-parto, minimiza risco de hemorragias, como
atonia uterina e favorece o escoamento lácteo das mamas para o aleitamento materno.” (SCHINCAGLIA,
Cristine Yuri; SANTOS, Graziela Camargo dos; RIBEIRO, Juliana Aparecida; FIGUEIREDO, Renata
Yamashiro de Bueno Figueiredo; MENEZES, Simone; MAIA, Janize Silva; MAIA, Luiz Faustino dos Santos,
As consequências do uso de ocitócitos durante o parto; São Paulo: Revista Recien. 2017; 7(19):75-82).
Disponível em
https://www.researchgate.net/publication/315936495_As_consequencias_do_uso_de_ocitocitos_durante_o_part
o. Acesso em 05/out/2018.
518
“O efeito e a eliminação da ocitocina, após sua suspensão, são efetivamente rápidos, contudo sua via
endovenosa dificulta a movimentação da grávida, e também pode acarretar em riscos de intoxicação hídrica por
ser antidiurético. Existem complicações em relação ao uso de ocitocina, como qualquer outro fármaco utilizado.
Em todos os casos, a conduta é redução ou suspensão da droga até que o padrão de contrações esteja adequado;
se for necessário pode-se utilizar uterolíticos para reversão.” (SCHINCAGLIA, Cristine Yuri; SANTOS,
Graziela Camargo dos; RIBEIRO, Juliana Aparecida; FIGUEIREDO, Renata Yamashiro de Bueno Figueiredo;
MENEZES, Simone; MAIA, Janize Silva; MAIA, Luiz Faustino dos Santos. As consequências do uso de
ocitócitos durante o parto. São Paulo: Revista Recien. 2017; 7(19):75-82). Disponível em
https://www.researchgate.net/publication/315936495_As_consequencias_do_uso_de_ocitocitos_durante_o_part
o. Acesso em 05/out/2018.
519
Como a escopolamina era também um alucinógeno, podendo provocar intensa agitação, as mulheres deveriam
passar o trabalho de parto amarradas na cama, pois se debatiam intensamente e às vezes terminavam o parto

234
No final do século passado, houve um aumento de uma espécie de movimento
dentro da Medicina, denominado Medicina Baseada em Evidências, e que tem sido muito
difundido pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Sua origem deve-se ao aumento de
técnicas de diagnóstico e terapêutica, sendo que se verificou, após anos de uso, que muitas
não tinham efetividade, ou que causavam maiores problemas do que aqueles que se
destinavam a tratar.520

Na atenção de mulheres durante a gestação, e no período do parto, foi criada a


Biblioteca de Saúde Reprodutiva da OMS, a qual, em parceria com a Colaboração Cochrane,
fez um estudo sobre os métodos utilizados, derivado da publicação de um manual
(Organização Mundial da Saúde, 1996) no qual se encontra a seguinte classificação: Grupo A,
das práticas que são benéficas e merecem ser incentivadas; Grupo B, das práticas que são
danosas ou inefetivas e merecem ser abandonadas; Grupo C, das práticas para as quais ainda
não há evidências suficientes e que necessitam mais pesquisas; e, finalmente, o Grupo D das
práticas que até são benéficas, mas que frequentemente têm sido utilizadas de maneira
inadequada.521

Em nosso País, verificou-se que muitas das práticas adotadas pelos


profissionais de saúde, que prescreviam o modelo de atenção humanizada, eram confirmadas

cheias de hematomas. Para evitar que fossem vistas nesta situação vexatória, os leitos eram cobertos, como uma
barraca (Wertz, 1993). No Brasil, o parto inconsciente teve em Magalhães um expoente: ele desenvolveu para
uso no parto a mistura de morfina com cafeína: ‘Lucina’, um dos nomes da deusa Juno (Magalhães, 1916).”
(DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um
movimento. Cienc. Saúde Colet., v.10, n.3, p.627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
520
Aprofundando a primeira interpretação, de legitimidade científica, cabe salientar que a maior parte das
práticas adotadas no atendimento ao parto foi à medida que iam sendo criadas, não havia critérios para sua
avaliação. Nos anos noventa do século passado, intensificou-se um movimento na Medicina que foi denominado
Medicina Baseada em Evidências, e que tem sido muito difundido pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Sua origem deve-se à proliferação de técnicas de diagnóstico e terapêutica, sendo que se verificou, após anos de
uso, que muitas eram inefetivas, ou mesmo provocavam problemas maiores do que os que se destinavam a tratar.
(Violência Obstétrica – “Parirás com dor”. – Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da
Violência Contra as Mulheres – 2012). Disponível em:
https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.pdf. Acesso em
15/jan/2019.
521
“No campo da atenção perinatal, foi criada a Biblioteca de Saúde Reprodutiva da OMS que, em parceria com
a Colaboração Cochrane, estudou as práticas adotadas na atenção a partos e nascimentos, publicando um manual
(Organização Mundial da Saúde, 1996) em que as classifica em quatro grupos: Grupo A, das práticas que são
benéficas e merecem ser incentivadas; Grupo B, de práticas que são danosas ou inefetivas e merecem ser
abandonadas; Grupo C, de práticas para as quais ainda não há evidências suficientes e que necessitam mais
pesquisas; e, finalmente, o Grupo D é de práticas que até são benéficas, mas que frequentemente têm sido
utilizadas de maneira inadequada. (...).” (Violência Obstétrica – “Parirás com dor”. – Dossiê elaborado pela Rede
Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres – 2012). Disponível em:
https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.pdf. Acesso em
15/jan/2019.

235
pelas evidências científicas e estavam classificadas no Grupo A. Como se pode exemplificar,
a presença de um acompanhante de escolha da parturiente é a melhor técnica possível para
que o seu parto seja bem-sucedido. Mulheres que tiveram esse tipo de suporte emocional
durante todo o processo de parto, tiveram menor chance de receber analgesia ou de ter parto
cesáreo, e confirmaram estarem mais satisfeitas com a experiência do parto.522

O uso irracional de tecnologia no parto levou a um paradoxo: é justamente o


que impede muitos países de reduzir a morbimortalidade materna e perinatal, uma vez que
esse uso irracional provoca mais danos que benefícios. Há mais de 25 anos, iniciou-se um
movimento internacional para priorizar a tecnologia apropriada, a qualidade da interação entre
parturiente e seus cuidadores, e a des-incorporação de tecnologia danosa. O movimento tem
nomes diferentes nos diversos países, e, no Brasil, é em geral chamado de humanização do
parto.523

Em 1979, criou-se o Comitê Europeu para estudar as intervenções para reduzir


a morbimortalidade perinatal e materna no continente, o qual detectou os mesmos problemas
de hoje, isto é, o aumento de custos, sem a respectiva melhoria nos resultados da assistência, a
falta de consenso sobre os melhores procedimentos e a total variabilidade geográfica de
opiniões. A partir desse trabalho, vários grupos se organizam para sistematizar os estudos de

522
“No Brasil, foi interessante constatar que muitas das práticas adotadas pelos profissionais que preconizavam o
modelo de atenção humanizada eram referendadas pelas evidências científicas e estavam classificadas no Grupo
A. Por exemplo, hoje em dia, reconhece-se que a presença de um acompanhante da escolha da mulher é a melhor
‘tecnologia’ disponível para um parto bem-sucedido: mulheres que tiveram suporte emocional contínuo durante
o trabalho de parto e, no parto, tiveram menor probabilidade de receber analgesia, de ter parto operatório, e
relataram maior satisfação com a experiência do parto. Esse suporte emocional estava associado com benefícios
maiores quando quem o provia não era membro da equipe hospitalar e quando era disponibilizado desde o início
do trabalho de parto (Hodnett et al., 2007). Dessas evidências deriva a Lei n.º 11.108/2005, denominada Lei do
Acompanhante (Brasil, 2005).” (Violência Obstétrica – “Parirás com dor”. – Dossiê elaborado pela Rede Parto
do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres – 2012). Disponível em:
https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.pdf. Acesso em
15/jan/2019.
523
“Para além da pobreza das relações humanas nessa forma de assistência e do sofrimento físico e emocional
desnecessário que causa, o uso irracional de tecnologia no parto levou ao seu atual paradoxo: é justamente o que
impede muitos países de reduzir a morbimortalidade materna e perinatal (Barros et al., 2005, Costello, 2005).
Uma vez que esse uso irracional provoca mais danos que benefícios, há cerca de 25 anos inicia-se um
movimento internacional por priorizar a tecnologia apropriada, a qualidade da interação entre parturiente e seus
cuidadores, e a des-incorporação de tecnologia danosa. O movimento é batizado com nomes diferentes nos
diversos países, e no Brasil é em geral chamado de humanização do parto.” (DINIZ, Carmen Simone Grilo.
Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v.10,
n.3, p.627-37, 2005). Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.

236
eficácia e segurança na assistência à gravidez, ao parto e ao pós-parto, apoiado pela OMS.
Esse movimento teve como forte prioridade a defesa dos direitos dos pacientes.524

Em 1985, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e os escritórios


regionais da OMS, na Europa e nas Américas, realizaram uma conferência sobre tecnologia
apropriada no parto. Esse encontro teve forte apelo de saúde pública e de defesa de direitos
das mulheres, assim como a resultante Carta de Fortaleza, texto que teve a capacidade de
inspirar muitas ações de mudança. O documento recomenda a participação das mulheres no
desenho e na avaliação dos programas, a liberdade de posições no parto, a presença de
acompanhantes, o fim dos enemas (introdução de água no ânus para lavagem intestinal,
purgação ou administração de medicamentos por meio de uma sonda retal), raspagens e
amniotomia (procedimento médico no qual uma ruptura é feita nas membranas que envolvem
o feto, na tentativa de induzir o parto), a abolição do uso de rotina da episiotomia (é uma
incisão efetuada na região do períneo – área muscular entre a vagina e o ânus – para ampliar o
canal do parto) e da indução do parto.525

Na assistência ao parto, a redescrição, operada pela Medicina Baseada em


Evidências (MBE), é definida como o elo entre a boa pesquisa científica e a prática clínica.

524
“No campo da saúde pública, a crítica do modelo tecnocrático se acelera no Ano Internacional da Criança
(1979), com a criação do Comitê Europeu para estudar as intervenções para reduzir a morbimortalidade perinatal
e materna no continente. Se detectavam os mesmos problemas de hoje: aumento de custos, sem a respectiva
melhoria nos resultados da assistência; falta de consenso sobre os melhores procedimentos, e a total
variabilidade geográfica de opiniões. O Comitê é composto inicialmente por profissionais de saúde e
epidemiologistas, e posteriormente por sociólogos, parteiras e usuárias. A partir desse trabalho, vários grupos se
organizam para sistematizar os estudos de eficácia e segurança na assistência à gravidez, ao parto e ao pós-parto,
apoiado pela OMS. Inicia-se uma colaboração internacional, que desenvolveu a metodologia de revisão
sistemática, dando os primeiros passos do que viria a ser o movimento pela medicina baseada em evidências,
MBE (Cochrane, 1989; WHO, 1996; Wagner, 1997). Ainda que o movimento da MBE tenha tomado rumos
diversos, mais progressistas ou mais conservadores, esta inspiração inicial é fortemente questionadora,
evidenciando as contradições e a distância entre as evidências sobre efetividade e segurança, e a organização das
práticas. Trouxe à tona também o papel do poder econômico e corporativo na definição das políticas, e no
desenho e financiamento das pesquisas. Além disso, teve como forte prioridade a defesa dos direitos dos
pacientes (Cochrane, 1973).” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os
muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
525
“Como resultado daquela colaboração, em 1985, a OPAS e os escritórios regionais da OMS na Europa e
Américas realizaram uma conferência sobre tecnologia apropriada no parto. Esse encontro foi um marco, com
forte apelo de saúde pública e de defesa de direitos das mulheres, assim como a resultante Carta de Fortaleza
(WHO, 1985), texto que teve a capacidade de inspirar muitas ações de mudança. Recomenda a participação das
mulheres no desenho e avaliação dos programas, a liberdade de posições no parto, a presença de acompanhantes,
o fim dos enemas, raspagens e amniotomia, a abolição do uso de rotina da episiotomia e da indução do parto.
Argumenta que as menores taxas de mortalidade perinatal estão nos países que mantêm o índice de cesárea
abaixo de 10% e afirma que nada justifica taxa maior que 10%-15% (WHO, 1985). Publicado no prestigioso
Lancet, o texto provocou reações indignadas por parte de entidades médicas (Wagner, 1997).” (DINIZ, Carmen
Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc.
Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.

237
Em outras palavras, a MBE utiliza provas científicas que existem naquele momento e que
estão disponíveis, com boa validade interna e externa, para a aplicação de seus resultados na
prática clínica (El Dib). O corpo feminino é redescrito como apto a dar à luz, na grande
maioria das vezes, sem necessidade de quaisquer intervenções ou sequelas previsíveis. O
nascimento, que antes era considerado um perigo para o bebê, é redefinido como processo
fisiológico necessário à transição (respiratória, endócrina, imunológica) para a vida
extrauterina.

A MBE, segundo Parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM)526, tem a


finalidade de oferecer informações de melhor qualidade e com segurança para os pacientes,
no que se refere ao uso de medicamentos e procedimentos diagnósticos e de intervenção.
Assim, caracteriza-se como um novo paradigma para a melhora da qualidade no sistema de
saúde.

O parto, antes, por definição, um evento médico-cirúrgico de risco, deveria ser


tratado com o devido respeito como experiência altamente pessoal, sexual e familiar. Os
familiares, agora, são convidados à cena do parto, especialmente os pais, antes relegados ao
papel passivo de espectadores. De evento medonho, o parto passa a inspirar uma nova
estética, na qual estão permitidos os elementos antes tidos como indesejáveis – as dores, os
genitais, os gemidos, a sexualidade, as emoções intensas, as secreções, a imprevisibilidade, as
marcas pessoais, o contato corporal, os abraços.

Desse modo, humanizar é respeitar a mulher, inicialmente. É saber que a


mulher é a protagonista do seu parto. Mas isso não significa que a mãe pode ditar as ordens do
parto, mas quer dizer que ela tem o direito de ter seus desejos atendidos, desde que sejam
viáveis para sua saúde e de seu filho. Reconhecer o direito da mulher não significa
desqualificar o profissional de saúde, mas, sim, esclarecer o papel de cada um no momento do
parto, permitindo ao recém-nascido condições seguras de vir ao mundo.527

526
Parecer CFM n. 32/2018,
527
“O protagonismo da mulher no parto não é baseado na mãe ditar as ordens do parto, mas, sim, de ter seus
desejos e preferências atendidos, desde que sejam viáveis para sua saúde e para a saúde do bebê. ‘Sempre
converso sobre o que a gestante quer para seu parto. A gente trabalha sempre em cima dos desejos dela. Nunca
sabemos como vai ser o trabalho de parto, mas se for possível, vai ser do jeito que ela escolher’, explica a doula
Tatiana Marinho. Reconhecer o papel da mulher tampouco significa desqualificar o papel do médico diante do
parto e da sua necessidade. É esclarecer sobre os papéis de cada um, seja médico, parteira, enfermeira, doula ou
mãe, e desta forma, permitir ao recém-nascido condições mais seguras para sua vinda.” (ÁVILA, Letícia. Parto:
outro lado invisível do nascer: como a violência obstétrica afeta 1 em cada 4 mulheres no Brasil, p. 20).
Disponível em: https://issuu.com/leticiaavila8/docs/livro_parto_leticia_avila. Acesso em 26/jun/2019

238
3.2 O movimento pela humanização do parto no Brasil

No Brasil, na época colonial, não havia a preocupação de Portugal com


questões de saúde aqui na colônia. Muitas pessoas que aqui estavam eram acometidas por
epidemias como o sarampo, a febre amarela e tantas outras, o que levava à morte muitas
delas. Quase não havia médicos na colônia, mas havia poucos hospitais, algumas Santas
Casas, os quais tinham um atendimento extremamente precário.528

Com a vinda da família real para o Rio de Janeiro, no início do século XIX,
foram criados os primeiros cursos de medicina no Brasil, além da Junta de Saúde Pública. As
principais medidas tomadas na área de saúde foram relativas ao controle de epidemias, com a
adoção de medidas de saneamento básico, inspeções sanitárias e de portos. Até o início do
século XX, observou-se um aumento do número de centros de formação de profissionais de
saúde, como médicos, enfermeiros, farmacêuticos e odontólogos. Além disso, foram criados
centros de estudo e de pesquisa. Assim, iniciou-se a saúde pública no Brasil, com Emílio
Ribas, em São Paulo, e Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro.529

Posteriormente, o primeiro órgão do Governo criado para cuidar da saúde


materno-infantil foi o Departamento Nacional da Criança (DNCR), criado já em 1940. Esse
órgão tinha a finalidade de fazer a integração dos planos e atividades para proteção da

528
“Enquanto colônia, o Brasil não foi alvo de nenhuma preocupação sistemática de Portugal no que tange às
questões de saúde dos que aqui viviam, assolados por diversas epidemias como as de varíola, sarampo e febre
amarela, entre outras (Machado, 1996; Bertolli Filho, 1999). A colônia quase não tinha médicos e contava com
leprosários, algumas Santas Casas e poucos hospitais, que funcionavam de maneira precária (Machado, 1996).”
(MAIA, Mônica Bara. Humanização do parto – política pública, comportamento organizacional e ethos
profissional. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2010, p. 189. ISBN 978-85-7541-328-9). Disponível em:
http://books.scielo.org/id/pr84k/pdf/maia-9788575413289.pdf. Acesso em 19/ajn/2020.
529
“A situação começou a mudar após a chegada da família real ao Rio de Janeiro, no início do século XIX.
Foram criados os dois primeiros cursos de medicina do Brasil, bem como a Junta de Saúde Pública. As primeiras
ações de saúde pública dessa época se concentraram na capital, Rio de Janeiro, e se voltaram para o controle das
epidemias com medidas de saneamento, inspeção sanitária e inspeção dos portos (Machado, 1996). Com a
proclamação da República, os sucessivos governos passaram, paulatinamente, a assumir a responsabilidade de
propor e gerir políticas de saúde mais abrangentes. Do fim do século XIX até 1920, observa-se o aumento no
número de centros de formação de profissionais da saúde (médicos, odontólogos, farmacêuticos, enfermeiros) e
na intervenção governamental mediante políticas públicas, bem como a criação de centros de estudo e pesquisa.
Ensaiou-se uma política de cunho nacional e a divisão de atribuições entre estados e União (Machado, 1996). A
saúde pública, no Brasil, inaugurou-se no começo do século XX com Emílio Ribas, em São Paulo, e Oswaldo
Cruz, no Rio de Janeiro (Merhy & Queiroz, 1993). A principal motivação era superar as precárias condições de
saúde da população, que impactavam negativamente a economia nacional.” (MAIA, Mônica Bara. Humanização
do parto – política pública, comportamento organizacional e ethos profissional. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2010, 189 p. ISBN 978-85-7541-328-9). Disponível em: http://books.scielo.org/id/pr84k/pdf/maia-
9788575413289.pdf. Acesso em 19/ajn/2020.

239
maternidade, da infância e da adolescência, sejam na área pública ou privada, com programas
de saúde pública de uma maneira geral.530

Na realidade, esse Departamento aumentou seus cuidados com as crianças e


mães, com relação à gravidez e à amamentação. Entre os anos de 1940 até 1965, período em
que houve a atuação desse Departamento, havia duas claras visões da maternidade, sendo a
primeira de que a reprodução é uma função social, a qual interessa mais à sociedade do que ao
indivíduo isoladamente considerado; e a segunda entendia que as práticas de higiene deveriam
ser feitas para a defesa e a conservação da vida. Assim, não havia uma preocupação em
colocar uma disciplina na reprodução, mas, sim, combater a mortalidade infantil, uma vez que
isso representava a garantia de uma nação forte e com vistas ao progresso.531

Com a criação do Ministério da Saúde, em 1953, foi passado a ele a


coordenação da assistência materno-infantil, em todo o território brasileiro, com a finalidade
de defesa da criança, a qual era vista como o futuro da nação. Desse modo, buscava-se uma
proteção da gestante e da criança, como assuntos de saúde pública, inserida em um modelo
centralizador e voltada para as camadas mais pobres. Já no início de 1960, essa proteção foi
perdendo a importância, o que levou ao aumento da preocupação com o combate às moléstias
endêmicas rurais. Em 1969, por fim, extinguiu-se o Departamento Nacional da Criança.532

530
“O primeiro órgão governamental voltado exclusivamente para o cuidado da saúde materno-infantil foi o
Departamento Nacional da Criança (DNCR), criado em 1940. Suas diretrizes de trabalho visavam integrar os
planos e as atividades de proteção à maternidade, à infância e à adolescência, públicos e privados, com os
programas de saúde pública em geral.” (NAGAHAMA, Elizabeth Eriko Ishida; SANTIAGO, Silvia Maria. A
institucionalização médica do parto no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 10, n.º 3. Rio de Janeiro
July/Sept. 2005). Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232005000300021&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 28/jan/2018.
531
“O DNCR associou seu projeto educativo à puericultura, enfatizando não só os cuidados com as crianças, mas
também com as mães, no que se referia à gravidez e à amamentação (Brasil, 1940). Nesse período de atuação do
DNCR (1940-1965), existiram duas visões quanto ao significado da atenção prestada ao grupo materno-infantil:
uma seria a de que a reprodução se constituía em uma função essencialmente social, interessando muito mais à
sociedade que ao indivíduo; a outra era a que encarava as práticas de higiene simplesmente como defesa e
conservação da vida. Não se preocupava em disciplinar a reprodução, mas o combate à mortalidade infantil era
enfatizado como garantia de se construir uma nação forte, sadia e progressista. (Tyrrell & Carvalho, 1995).”
(NAGAHAMA, Elizabeth Eriko Ishida; SANTIAGO, Silvia Maria. A institucionalização médica do parto no
Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 10, n.º 3. Rio de Janeiro July/Sept. 2005). Disponível em:
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300021&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
Acesso em 28/jan/2018.
532
Em 1953 foi criado o Ministério da Saúde, que coordenou, em nível nacional, a assistência materno-infantil.
Suas diretrizes iniciais primaram também pelo cunho nacionalista, sendo ‘um dever imperioso defender, de
maneira eficaz, a criança brasileira, em verdade, ainda o melhor elemento a salvaguardar o futuro da
nacionalidade’ (Canesqui, 1987). Portanto, a proteção à maternidade e à infância, como assunto de saúde
pública, obedeceu à tendência geral das políticas dessa área a partir do Estado Novo: ela esteve inserida no
modelo centralizador, concentrado nas ações de puericultura, e voltada para as camadas urbanas mais pobres,
com o intuito fundamental de garantir braços fortes para a nação. No final dos anos 50 e início da década de

240
Entre os anos de 1964 e 1973, foi criado um modelo de atenção à saúde médico
assistencial privatista. Em 1971, foi feita a primeira menção aos cuidados que se deve ter com
o grupo materno-infantil pós-64, em um documento denominado Diretrizes Gerais de Política
Nacional de Saúde Materno-Infantil. Esse documento continha a previsão de programas de
assistência ao parto, ao puerpério, à gravidez de alto risco, além do controle de crianças (do
nascimento até os 4 anos), do estímulo ao aleitamento materno, nutrição, e, também, continha
orientações para mulheres no período entre uma gestação e outra, com o intuito de espaçar o
nascimento dos filhos.533

De outro lado, as questões de fertilidade e esterilidade da mulher foram


inseridas no movimento em prol da saúde da América Latina, por meio de políticas
internacionais e medidas que tinham por finalidade uma cobertura universal, com eficiência
operativa, além de acessibilidade geográfica, institucional e financeira. Com isso, o conceito
de saúde, como bem universal, torna-se público.534

Em 1974, com a criação do Ministério de Previdência e Assistência Social


(MPAS), o Programa de Assistência Materno-Infantil deu mais importância para programas
de prevenção de gravidez de alto-risco, assim como a suplementação alimentar de gestantes e

1960, essa proteção foi perdendo importância para a prioridade que passou a ser dada ao combate às moléstias
endêmicas rurais e, em 1969, o DNCR foi extinto.” (NAGAHAMA, Elizabeth Eriko Ishida; SANTIAGO, Silvia
Maria. A institucionalização médica do parto no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 10, n.º 3. Rio de Janeiro
July/Sept. 2005). Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232005000300021&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 28/jan/2018.
533
“Entre 1964 e 1973 instituiu-se um modelo de atenção à saúde médico assistencial privatista, reflexo da
intervenção estatal na expansão da medicina previdenciária fundada no cuidado médico individualizado, de base
hospitalar e ambulatorial. A primeira menção a cuidados específicos com o grupo materno-infantil pós-64
apareceu em 1971 no documento Diretrizes Gerais da Política Nacional de Saúde Materno-Infantil (Brasil,
1971). Este documento previa programas de assistência ao parto, ao puerpério, à gravidez de alto risco, ao
controle das crianças de 0 a 4 anos de idade, estímulo ao aleitamento materno e nutrição. Considerava ainda a
possibilidade de oferecer às mulheres orientação no período intergestacional, com o propósito de espaçar o
nascimento dos filhos por problemas de saúde.” (NAGAHAMA, Elizabeth Eriko Ishida; SANTIAGO, Silvia
Maria. A institucionalização médica do parto no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 10, n.º 3. Rio de Janeiro
July/Sept. 2005). Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232005000300021&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 28/jan/2018.
534
“A Saúde Materno-Infantil e o Bem-estar da Família como área programática tem suas raízes na
recomendação do Plano Decenal de Saúde para as Américas, produto da III Reunião Especial de Ministros de
Saúde das Américas (REMS) realizado em Santiago, Chile, de 2 a 9 de outubro de 1972 (Opas, 1973). Dessa
forma, a saúde materno-infantil e o bem-estar da família, as questões de fertilidade e esterilidade da mulher
como área programática ficaram inseridas no movimento em prol da saúde na América Latina, através de
políticas internacionais e medidas que visavam à cobertura universal, eficiência operativa, acessibilidade
geográfica, institucional e financeira. E, torna-se público e amplamente divulgado, o conceito universal de saúde,
conforme pauta e debates da III REMS. O Brasil, como país membro da Opas/OMS, não poderia fugir às
propostas, recomendações e compromissos firmados na referida III REMS.” (NAGAHAMA, Elizabeth Eriko
Ishida; SANTIAGO, Silvia Maria. A institucionalização médica do parto no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva,
vol. 10, n. 3. Rio de Janeiro July/Sept. 2005). Disponível em:
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300021&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
Acesso em 28/jan/2018.

241
puérperas mais carentes. Nesse contexto, surgiu o primeiro programa de atenção ao grupo
materno-infantil em 1975, ou seja, Programa de Saúde Materno-Infantil (PSMI), com
destaque para a nutrição do grupo infantil.535

Em 1978, o Ministério da Saúde criou o Programa de Prevenção da Gravidez


de Alto Risco (PPGAR), com o fim de regulamentar e operacionalizar as ações para
assistência aos riscos de obstetrícia de uma maneira geral, bem como da prevenção de
gestações futuras e o diagnóstico e o tratamento de infertilidade e esterilidade.536

Em 1980 surgiu o Programa de Ações Básicas de Saúde (Prevsaúde), com o


fim de estender os cuidados de saúde à quase toda população brasileira, com o
estabelecimento de um amplo programa materno-infantil, que previa ações relativas a
intervalos entre os nascimentos dos filhos, informações sobre métodos contraceptivos e uma
revisão da lei sobre a fecundidade.537

535
“No contexto da criação do Ministério de Previdência e Assistência Social (MPAS), em 1974, o Programa de
Assistência Materno-Infantil teve como ênfase os programas de prevenção à gravidez de alto risco e
suplementação alimentar às gestantes e puérperas de baixa renda. Neste documento consta que o grupo materno-
infantil é vulnerável por suas características biológicas e sociais, exigindo adequada atenção às suas
necessidades através de programas desenvolvidos de maneira sistemática, integral e coordenada (Brasil, 1974).
A partir desta versão preliminar em 1974, surge o primeiro programa de atenção ao grupo materno-infantil em
1975: Programa de Saúde Materno-Infantil (PSMI). Este programa retomava a ênfase com a nutrição do grupo
infantil; em relação às mulheres, o alvo eram as gestantes, as parturientes, as puérperas, e as que estavam em
idade fértil. As ações planejadas tinham como objetivo contribuir para a maior produtividade com o ingresso de
novas e mais hígidas gerações na força de trabalho (Brasil, 1975). Ambos os programas referidos acima previam
atividades de planejamento familiar como uma medida para compatibilizar as gestações com as condições do
organismo materno, com a garantia do nascimento de crianças saudáveis e da integralização do núcleo familiar.”
(NAGAHAMA, Elizabeth Eriko Ishida; SANTIAGO, Silvia Maria. A institucionalização médica do parto no
Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 10, n. 3. Rio de Janeiro July/Sept. 2005). Disponível em:
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300021&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
Acesso em 28/jan/2018.
536
“Com a preocupação de prevenir as gestações de risco, o Ministério da Saúde criou em 1978 o Programa de
Prevenção da Gravidez de Alto Risco (PPGAR). O propósito de sua elaboração foi regulamentar e
operacionalizar as ações de assistência especial e especializada aos riscos reprodutivo e obstétrico, à prevenção
de gestações futuras, quando indicada, e ao diagnóstico e tratamento da esterilidade ou da infertilidade (Brasil,
1978).” (NAGAHAMA, Elizabeth Eriko Ishida; SANTIAGO, Silvia Maria. A institucionalização médica do
parto no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 10, n.º 3. Rio de Janeiro July/Sept. 2005). Disponível em:
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300021&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
Acesso em 28/jan/2018.
537
“Em 1980 surgiu o Programa de Ações Básicas de Saúde (Prevsaúde), que pretendia estender a cobertura de
cuidados primários de saúde à quase totalidade da população brasileira, com articulação simultânea das diversas
organizações estatais e privadas em uma rede única, hierarquizada e regionalizada. Previa o estabelecimento de
um amplo programa materno-infantil: ações referentes aos intervalos entre os nascimentos dos filhos,
informação seletiva e ampla sobre os diferentes métodos anticoncepcionais e uma revisão da legislação sobre a
fecundidade (Canesqui, 1987).” (NAGAHAMA, Elizabeth Eriko Ishida; SANTIAGO, Silvia Maria. A
institucionalização médica do parto no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 10, n. 3. Rio de Janeiro July/Sept.
2005). Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232005000300021&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 28/jan/2018.

242
Mais uma vez, a proposta não foi implementada, por causa da crise econômica
e pelas pressões de grupos de interesses relacionados com empresários do setor de assistência
médica. No início dos anos 80, alguns médicos ligados à Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), discutiram qual seria a melhor assistência à mulher, chegando-se à conclusão de
que a assistência deveria ser integral, de modo que a preocupação deveria ser com o corpo da
parturiente como um todo e não somente com alguns de seus órgãos.538

Nessa mesma época, os movimentos feministas passaram a colocar a questão


da contracepção no contexto de saúde reprodutiva, como um direito das mulheres. Essa
mudança de paradigma, relativamente à fecundidade, foi uma tendência mundial, tendo,
inclusive, os Estados Unidos mostrado muita preocupação com o crescimento populacional do
Terceiro Mundo, passando a determinar a necessidade do controle da natalidade. Desse modo,
passou a haver uma recomendação para que os governos possibilitassem às pessoas, em
especial a mulheres, o direito de escolha sobre quantos filhos gostariam de ter, com a
informação devida e correta sobre métodos contraceptivos, controle de natalidade, entre
outros.539

538
“Entretanto, novamente, esta proposta não foi efetivada devido à crise econômica que se agravava e pelas
pressões de grupos de interesses relacionados às ligações burocráticas entre os dirigentes dos programas de
assistência médico-previdenciária e os empresários do setor da assistência médica. No final da década de 1970 e
início dos anos 80, alguns profissionais médicos envolvidos na experiência de um Ambulatório de
Tocoginecologia Preventiva na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), discutiam sobre que tipo de
atenção seria a melhor e mais adequada para a clientela que procurava os serviços oferecidos pela Unicamp
nessa área. Aos poucos, foi se tornando claro que a preocupação era ‘oferecer à mulher uma assistência integral,
no sentido de enfatizar a necessidade de o médico se preocupar com o corpo dela como um todo, e não apenas
como órgãos isolados a serem tratados por diferentes especialistas’ (Osis, 1994).” (NAGAHAMA, Elizabeth
Eriko Ishida; SANTIAGO, Silvia Maria. A institucionalização médica do parto no Brasil. Ciência & Saúde
Coletiva, vol. 10, n. 3. Rio de Janeiro July/Sept. 2005). Disponível em:
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300021&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
Acesso em 28/jan/2018.
539
“Paralelamente, os movimentos organizados de mulheres ganhavam destaque nas esferas do poder público.
Nos primeiros anos da década de 1980, esses movimentos passaram a colocar a questão da sexualidade feminina
em outros termos, deslocando o eixo da discussão para situar a anticoncepção no contexto da saúde reprodutiva,
como um direito das mulheres. Nesta nova perspectiva, qualquer atividade voltada para a regulação da
fecundidade deveria fazer parte de uma abordagem integral da saúde da mulher, mais amplamente ainda, de uma
abordagem sobre os direitos das mulheres. Esta mudança do enfoque em relação à regulação da fecundidade foi
um fenômeno mundial: especialmente os Estados Unidos mostraram-se muito preocupados com a questão do
crescimento populacional do Terceiro Mundo, e passaram a enfatizar a necessidade de se controlar a natalidade.
A partir desta premissa, fazia-se a recomendação de que os governos possibilitassem a liberdade das pessoas
decidirem sobre o número de filhos que teriam, oferecendo-lhes informações e acesso a métodos
anticoncepcionais eficazes, vantagens da família pequena e, especialmente, derrubando as barreiras legais às
atividades de controle da fecundidade.” (NAGAHAMA, Elizabeth Eriko Ishida; SANTIAGO, Silvia Maria. A
institucionalização médica do parto no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 10, n.º 3. Rio de Janeiro
July/Sept. 2005). Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232005000300021&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 28/jan/2018.

243
A partir dos anos 70, o interesse de várias mulheres estava voltado para
transformar o modelo desenvolvido pela Unicamp em programa nacional, incluindo educação
sexual e em saúde. Sendo assim, em 1983, foi elaborado o Programa de Assistência Integral
à Saúde da Mulher (PAISM). Em 1984, o Ministério da Saúde definiu o conceito de Ação
Integral à Saúde da Mulher (AISM) como sendo aquelas na área de saúde que estão
direcionadas ao atendimento global das necessidades primárias das mulheres e de aplicação
no sistema básico de assistência à saúde. A inclusão de atividades de planejamento familiar
nesse Programa tinha por base o princípio da equidade e o controle do risco na gravidez,
produzido pelo médico.540

De 1980 em diante, surgiu um movimento mundial para a humanização do


parto e do nascimento, com a preocupação na valorização do ser humano, para que houvesse
um estímulo aos profissionais de saúde no sentido de repensarem sua prática. A gestante, no
momento do parto, mereceria uma maior assistência, com o mínimo de intervenção sobre o
seu corpo e de procedimentos com base nas suas necessidades particulares e não com base nas
necessidades das instituições. Desse modo, surge um novo paradigma de assistência ao parto,
chamado de humanista.541

540
“Desta forma, na década de 1970, houve interesse de grupos organizados de mulheres em conhecer este
modelo de atenção desenvolvido na Unicamp, denominado de Atenção Integral à Saúde da Mulher (AISM), bem
como em transformá-lo em um programa nacional. Os movimentos de mulheres insistiram que a transformação
do conceito de AISM em programa de saúde incluísse um componente de educação sexual e em saúde. Portanto,
em 1983, um grupo que reuniu sanitaristas, psicólogas e sociólogas, representantes dos grupos de mulheres,
demógrafos e pesquisadores das universidades elaborou o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher
(PAISM). Em 1984, o Ministério da Saúde estabeleceu base de ação programática para a Assistência Integral à
Saúde da Mulher, com objetivo de incluir a assistência à mulher desde a adolescência até a terceira idade e
explicitar o compromisso com o direito das mulheres, na opção de exercer ou não a maternidade e/ou a
reprodução, tentando contemplar a mulher em todo o ciclo vital. Neste documento, denominado de Assistência
Integral à Saúde da Mulher: Bases de Ação Programática (AISM), publicado pelo Ministério da Saúde em 1984,
o conceito de AISM era definido como sendo ações de saúde dirigidas para o atendimento global das
necessidades prioritárias desse grupo populacional e de aplicação ampla no sistema básico de assistência à saúde.
A inclusão de atividades de planejamento familiar no Programa baseava-se nos princípios de equidade –
oportunidade de acesso às informações e aos meios para a regulação da fertilidade por parte da população – e no
controle do risco gravídico, exercido pelo médico (Brasil, 1984).” (NAGAHAMA, Elizabeth Eriko Ishida;
SANTIAGO, Silvia Maria. A institucionalização médica do parto no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 10,
n.º 3. Rio de Janeiro July/Sept. 2005). Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232005000300021&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 28/jan/2018.
541
“A partir da década de 1980, ocorreu um movimento mundial em prol da humanização do parto e do
nascimento, uma preocupação crescente em dar lugar a novos paradigmas que considerassem e valorizassem o
ser humano em sua totalidade, e que estimulassem os profissionais de saúde a repensarem sua prática, buscando
a transformação da realidade no cotidiano do cuidado. A avaliação científica das práticas de assistência
evidenciou a efetividade e a segurança de uma atenção ao parto com um mínimo de intervenção sobre a
fisiologia, e de muitos procedimentos centrados nas necessidades das parturientes – ao invés de organizados em
função das necessidades das instituições. Isto resultou em um novo paradigma de assistência ao parto,
denominado de humanista (Davis-Floyd, 2001).” (NAGAHAMA, Elizabeth Eriko Ishida; SANTIAGO, Silvia
Maria. A institucionalização médica do parto no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 10, n.º 3. Rio de Janeiro

244
Em 1988, o Ministério da Saúde criou várias ações, por meio de portarias
ministeriais, as quais, em seu conjunto, constituíram o Programa de Humanização no Pré-
natal e Nascimento (PHPN). Esse programa tinha como características a integralidade da
assistência obstétrica e a afirmação dos direitos da mulher, incorporadas como diretrizes
institucionais, com o fim de organizar a assistência ao parto e de vincular o pré-parto ao parto
e ao puerpério, aumentando, assim, o acesso das mulheres aos serviços de saúde e garantindo
a elas a qualidade da assistência, com a realização de um mínimo de procedimentos
possíveis.542

Em 1993 foi fundada a Rede de Humanização do Parto e do Nascimento


(Rehuna), com vários participantes, sendo pessoas físicas e jurídicas. Essa rede foi criada pela
Carta de Campinas, na qual houve denúncias de casos de violência e constrangimento durante
a assistência a mulheres em processo de parto, em condições desumanas. No parto normal,
por exemplo, os abusos vão desde a imposição de rotinas até interferências obstétricas
desnecessárias, o que acaba levando as mulheres a fazerem a opção pelo parto cesáreo.543

O Ministério da Saúde, quando da instituição do PHPN, teve por finalidade


integrar a capacidade técnica da equipe multiprofissional à humanização do processo para
atenção da gestante, no momento do parto, bem como resgatar esse momento como único

July/Sept. 2005). Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-


81232005000300021&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 28/jan/2018.
542
“Sendo assim, a partir de 1988, o Ministério da Saúde implantou um conjunto de ações por meio de portarias
ministeriais que, em seu conjunto, constituiu o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN).
As características principais do programa são a integralidade da assistência obstétrica e a afirmação dos direitos
da mulher incorporados como diretrizes institucionais, com objetivo principal de reorganizar a assistência e
vincular formalmente o pré-natal ao parto e ao puerpério, ampliar o acesso das mulheres aos serviços de saúde e
garantir a qualidade da assistência com a realização de um conjunto mínimo de procedimentos (Brasil, 2000).
Estas medidas têm despertado polêmicas e mobilizado defensores e opositores nos diversos segmentos
envolvidos, dentro e fora das instituições de assistência ao parto no Brasil.” (NAGAHAMA, Elizabeth Eriko
Ishida; SANTIAGO, Silvia Maria. A institucionalização médica do parto no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva,
vol. 10, n. 3. Rio de Janeiro July/Sept. 2005). Disponível em:
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300021&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
Acesso em 28/jan/2018.
543
“Em 1993, é fundada a Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (Rehuna), que atualmente
congrega centenas de participantes, entre indivíduos e instituições. A Carta de Campinas, documento fundador
da Rehuna, denuncia as circunstâncias de violência e constrangimento em que se dá a assistência, especialmente
as condições pouco humanas a que são submetidas mulheres e crianças no momento do nascimento (Rehuna,
1993). Considera que, no parto vaginal, a violência da imposição de rotinas, da posição de parto e das
interferências obstétricas desnecessárias perturbam e inibem o desencadeamento natural dos mecanismos
fisiológicos do parto, que passa a ser sinônimo de patologia e de intervenção médica, transformando-se em uma
experiência de terror, impotência, alienação e dor. Desta forma, não surpreende que as mulheres introjetem a
cesárea como melhor forma de dar à luz, sem medo, sem risco e sem dor (Rehuna, 1993).” (DINIZ, Carmen
Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc.
Saúde Colet., v.10, n.º 3, p.627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.

245
para as mulheres que o vivem. A Conferência Internacional sobre Humanização do Parto,
realizada em Fortaleza/CE, no ano de 2000, representou uma oportunidade importante para
abrir uma discussão e aprofundar propostas, ideias e experiências vindas de várias regiões do
País e da comunidade internacional.544

Em 1994, no Rio de Janeiro, surgiu a primeira maternidade tida como


humanizada, recebendo o nome de Leila Diniz. Ainda em 1998, foi criado o Prêmio Galba
Araújo para Maternidades Humanizadas, além da proposição das Casas de Parto. Com isso,
surgiu um processo de maior humanização do parto, conduzido pelo PHPN e pelo Programa
de Humanização de Hospitais, no ano de 2000, procurando abranger diversas instituições.545

Assim, no Brasil, o movimento pela humanização do parto foi impulsionado


por experiências em vários Estados. Na década de 1970, surgiram profissionais dissidentes,
inspirados por práticas tradicionais de parteiras e índios, como Galba de Araújo no Ceará e
Moisés Paciornick (1979) no Paraná, além do Hospital Pio X em Goiás, e de grupos de
terapias alternativas como a Yoga, com o Instituto Aurora no Rio. Na década de 1980, vários
grupos ofereceram assistência humanizada à gravidez e ao parto e propuseram mudanças nas

544
“O Ministério da Saúde, ao instituir o Programa de Humanização ao Pré-Natal e Nascimento, pretende
integrar a capacitação técnica da equipe multiprofissional à humanização do processo de atenção à mulher
durante a gestação e parto e resgatar esse momento único da parturição para as mulheres e profissionais que o
vivem. (…) A Conferência Internacional sobre Humanização do Parto, realizada em Fortaleza-CE, no ano de
2000, representou uma oportunidade especialmente importante para discutir e aprofundar propostas, ideias e
experiências provenientes de diversas regiões do país e da comunidade internacional.” (WOLFF, Leila Regina;
MOURA, Maria Aparecida Vasconcelos. A institucionalização do parto e a humanização da assistência: revisão
de literatura. 2004; 8(2)). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&ref=000110&pid=S1414-
8145200600030001200001&lng=pt. Acesso em 29/jan.2019.
545
“Já em 1994 surge no Rio uma primeira maternidade pública ‘autodefinida’ como humanizada, que recebeu o
justo nome de Leila Diniz. Outros marcos em termos de políticas públicas foram a criação do Prêmio Galba
Araújo para Maternidades Humanizadas, em 1998, e a proposição das Casas de Parto. Os critérios para a
concessão do prêmio são baseados na adesão às recomendações da OMS, tais como a presença de
acompanhantes no pré-parto, parto e pós-parto, a assistência aos partos de baixo risco por enfermeiras, e controle
das taxas de cesárea. Concedido em nível estadual, regional e nacional, o Galba tem provocado uma mobilização
dos hospitais e tido a participação de um número de serviços crescente a cada edição, contribuindo para conferir
legitimidade ao modelo humanizado – ainda que os serviços premiados enfrentem incontáveis problemas para a
implementação do modelo (Tornquist, 2004). O projeto de Casas de Parto, após um início promissor, encontra
limites e resistências principalmente dos médicos. Estas iniciativas inauguraram um processo mais amplo de
humanização dos serviços conduzido pelo Ministério da Saúde, como o Programa de Humanização no Pré-Natal
e Nascimento (PHPN) e o de Programa de Humanização de Hospitais, lançados em maio e junho de 2000, com
objetivo de abranger centenas de instituições. No caso do PHPN, talvez pela ênfase em garantir um padrão
mínimo na assistência (número de consultas, imunizações, etc.) e seu registro, o programa não incorporou os
questionamentos feitos pelo movimento de humanização à técnica desumanizada e sem base na evidência, sendo
basicamente um instrumento de gestão.” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto
no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37, 2005). Disponível
em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em
10/nov/2018.

246
práticas, como o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde e a Associação Comunitária Monte
Azul em São Paulo, e os grupos Curumim e Cais do Parto em Pernambuco.546

Essas iniciativas inauguraram um processo mais amplo de humanização dos


serviços conduzidos pelo Ministério da Saúde, como o Programa de Humanização no Pré-
Natal e Nascimento (PHPN) e o de Programa de Humanização de Hospitais, lançados em
maio e junho de 2000, com objetivo de abranger centenas de instituições. No caso do PHPN,
talvez pela ênfase em garantir um padrão mínimo na assistência (número de consultas,
imunizações etc.) e seu registro, o programa não incorporou os questionamentos feitos pelo
movimento de humanização à técnica desumanizada e sem base na evidência, sendo
basicamente um instrumento de gestão.547

Em relação à humanização, o Ministério da Saúde, ao descrevê-la em relação à


assistência obstétrica, destaca que a conceituação de atenção humanizada é ampla e engloba
um conjunto de conhecimentos, práticas e atitudes que têm por finalidade a promoção do
parto, bem como do nascimento, saudáveis e a prevenção da morbimortalidade materna e
perinatal. Inicia-se, no pré-natal, e procura garantir que a equipe de profissionais de saúde
realize procedimentos comprovadamente benéficos para a mulher e o bebê, assim como para
que se evitem intervenções desnecessárias e que se preserve sua privacidade e autonomia.548

546
“No Brasil, o movimento pela humanização do parto é impulsionado por experiências em vários Estados. Na
década de 1970, surgem profissionais dissidentes, inspirados por práticas tradicionais de parteiras e índios, como
Galba de Araújo no Ceará e Moisés Paciornick (1979) no Paraná, além do Hospital Pio X em Goiás, e de grupos
de terapias alternativas como a Yoga, com o Instituto Aurora no Rio. Na década de 1980, vários grupos oferecem
assistência humanizada à gravidez e ao parto e propõem mudanças nas práticas, como o Coletivo Feminista
Sexualidade e Saúde e a Associação Comunitária Monte Azul em São Paulo, e os grupos Curumim e Cais do
Parto em Pernambuco.” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os
muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
547
“Estas iniciativas inauguraram um processo mais amplo de humanização dos serviços conduzido pelo
Ministério da Saúde, como o Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento (PHPN) e o de Programa de
Humanização de Hospitais, lançados em maio e junho de 2000, com objetivo de abranger centenas de
instituições. No caso do PHPN, talvez pela ênfase em garantir um padrão mínimo na assistência (número de
consultas, imunizações, etc.) e seu registro, o programa não incorporou os questionamentos feitos pelo
movimento de humanização à técnica desumanizada e sem base na evidência, sendo basicamente um
instrumento de gestão.” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os
muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
548
Em relação à humanização, o Ministério da Saúde (p.9), ao descrevê-la em relação à assistência obstétrica,
destaca que: o conceito de atenção humanizada é amplo e envolve um conjunto de conhecimentos, práticas e
atitudes que visam à promoção do parto e do nascimento saudáveis e à prevenção da morbimortalidade materna
e perinatal. Inicia-se no pré-natal e procura garantir que a equipe de saúde realize procedimentos
comprovadamente benéficos para a mulher e o bebê, que evite as intervenções desnecessárias e que preserve
sua privacidade e autonomia.” (WOLFF, Leila Regina; MOURA, Maria Aparecida Vasconcelos. A
institucionalização do parto e a humanização da assistência: revisão de literatura. 2004;8(2)). Disponível em

247
As medidas adotadas pelo Ministério da Saúde sobre a humanização do
atendimento à mulher datam de 2000, quando a Organização Mundial da Saúde já alertava os
países membros para a adoção de medidas para humanização da assistência ao parto e ao
nascimento. A OMS faz uma classificação das práticas mais comuns na condução do parto
normal, categorizando-as de acordo com o bem-estar e o conforto da parturiente. Mas a OMS
coloca algumas práticas que deveriam ser eliminadas, por serem danosas ou ineficazes.
Também existem práticas que deveriam ser estimuladas em virtude da sua utilidade e respeito
à mulher. E, ainda, mostra procedimentos usados regularmente, porém de maneira
inapropriada.549

O Ministério da Saúde implantou um conjunto de ações, por meio de portarias


ministeriais, com o objetivo de estimular a melhoria da assistência obstétrica. Entre elas,
destaca-se a Portaria n.º 9, de 5 de julho de 2000, que normatiza a adesão dos municípios ao
Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento, conforme estabelecem as Portarias n.º
569 e n.º 570, ambas de 1º de junho de 2000.550

No nosso País, por exemplo, as Recomendações da OMS tornaram-se as


grandes referências para os defensores da humanização do parto. Alguns desses temas viraram
bandeiras políticas para campanhas no Brasil, como o direito a acompanhantes no SUS
(tornado lei em alguns municípios, estados e agora nacional). Outro tema técnico-político é a

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&ref=000110&pid=S1414-
8145200600030001200001&lng=pt. Acesso em 29/jan.2019.
549
“As medidas adotadas pelo Ministério da Saúde sobre a humanização do atendimento à gestante e à
parturiente datam do ano 2000, quando a Organização Mundial da Saúde – OMS já alertava os países membros
no sentido de adotar estratégias visando à humanização da assistência ao parto e ao nascimento. Dessa forma, a
OMS classifica as práticas comuns na condução do parto normal, caracterizando-as de acordo com o bem-estar e
conforto da parturiente. Por um lado, a OMS coloca algumas práticas que deveriam ser eliminadas, por seu
caráter danoso ou ineficaz. Em outro, estão aquelas que deveriam ser estimuladas em virtude da sua utilidade e
respeito à parturiente. E, ainda, mostra procedimentos usados regularmente, porém de maneira inapropriada.”
(WOLFF, Leila Regina; MOURA, Maria Aparecida Vasconcelos. A institucionalização do parto e a
humanização da assistência: revisão de literatura.2004;8(2). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&ref=000110&pid=S1414-
8145200600030001200001&lng=pt. Acesso em 29/jan.2019.
550
“Exercendo seu papel normatizador e regulador, o Ministério da Saúde vem implantando um conjunto de
ações através de portarias ministeriais com o objetivo de estimular a melhoria da assistência obstétrica. Entre
elas, destaca-se a Portaria n.º 9, de 5 de julho de 2000, que normatiza a adesão dos municípios ao Programa de
Humanização no Pré-Natal e Nascimento, conforme estabelecem as Portarias n.º 569 e n.º 570, ambas de 1º de
junho de 2000.” (WOLFF, Leila Regina; MOURA, Maria Aparecida Vasconcelos. A institucionalização do
parto e a humanização da assistência: revisão de literatura.2004;8(2). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&ref=000110&pid=S1414-
8145200600030001200001&lng=pt. Acesso em 29/jan.2019.

248
abolição da episiotomia de rotina, que já foi objeto de uma campanha, sendo caso, inclusive,
de violação de direitos humanos na saúde.551

As recomendações da OMS foram publicadas no Brasil pelo Ministério da


Saúde, sob o título Assistência ao Parto Normal – Um Guia Prático, e enviada a cada um dos
ginecologistas-obstetras e enfermeiras obstetrizes do País em 2000. O livro trata do
atendimento ao parto no Brasil e se baseia em grande medida naquilo que se busca superar. A
distância impressionante entre o chamado padrão-ouro da ciência e a prática obstétrica no
Brasil é um exemplo de quanto a cultura (institucional, técnica, corporativa, sexual,
reprodutiva) tem precedência sobre a racionalidade científica, como conhecimento
autoritativo na organização das práticas de saúde.552

Com a expansão do termo humanizar, e sua utilização pelos diferentes atores


sociais, cada um deles faz sua interpretação e recriação do termo, aplicado para outras formas
de assistência, como propostas de humanização de hospitais, da assistência ao recém-nascido,
ao prematuro (associado ao modelo de mãe-canguru), ao abortamento, e inclusive à morte. A
humanização aparece como a necessária redefinição das relações humanas na assistência,
como revisão do projeto de cuidado, e mesmo da compreensão da condição humana e dos
direitos humanos.553

551
“Assim, a chamada MBE – ela própria redescrita pela interpretação dos ativistas – vem ampliando a
legitimidade do discurso pela mudança das práticas, e vice-versa. No Brasil, por exemplo, as Recomendações da
OMS e o livro do Enkin tornaram-se as grandes referências para os defensores da humanização do parto. Alguns
desses temas viraram bandeiras políticas para campanhas no Brasil, como o direito a acompanhantes no SUS
(tornado lei em alguns municípios, estados e agora nacional). Outro tema técnico-político é a abolição da
episiotomia de rotina, que já foi objeto de uma campanha (Xô Episio, 2003). A episiotomia é um caso
emblemático de violação dos direitos humanos na saúde (França Jr., 2003), um procedimento danoso quando
feito de rotina, aos milhões por ano até hoje, apesar de toda a evidência em contrário (Diniz & Chacham, 2004).”
(DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um
movimento. Cienc. Saúde Colet., v.10, n.3, p.627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
552
“As recomendações da OMS foram publicadas no Brasil pelo Ministério da Saúde, sob o título Assistência ao
Parto Normal – Um Guia Prático, e enviada a cada um dos ginecologistas-obstetras e enfermeiras obstetrizes do
país em 2000. O livro evidencia que o atendimento ao parto no Brasil se baseia em grande medida naquilo que se
busca superar. A distância impressionante entre o chamado padrão-ouro da ciência e a prática obstétrica no
Brasil é um exemplo de quanto a cultura (institucional, técnica, corporativa, sexual, reprodutiva) tem
precedência sobre a racionalidade científica, como conhecimento autoritativo na organização das práticas de
saúde.” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de
um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-8123200500030001. Acesso em 10/nov/2018.
553
“À medida que o uso do termo humanizar se expande e é utilizado pelos diferentes atores sociais, cada um
deles faz sua interpretação e recriação do termo, aplicado para outras formas de assistência. Entre elas, as
propostas de humanização de hospitais, da assistência ao recém-nascido, ao prematuro (associado ao modelo de
‘mãe-canguru’), ao abortamento, e inclusive à morte. A humanização aparece como a necessária redefinição das
relações humanas na assistência, como revisão do projeto de cuidado, e mesmo da compreensão da condição

249
Mas, então, o que se deve entender por humanização do parto? É a
legitimidade científica da medicina, ou da assistência baseada na evidência, sendo
considerada pelas pessoas que estão iniciando na área como o padrão ouro. É, assim, a prática
orientada por meio de revisões sistemáticas de ensaios, nos quais os participantes são
aleatoriamente distribuídos em dois ou mais grupos de intervenções, em oposição à prática
orientada somente pela opinião e tradição. A superposição que existe entre a crítica política e
a crítica à técnica da indicação clínica dos procedimentos, é tão grande, que a adesão à
Rehuna, por seus filiados, é condicionada à defesa por parte daqueles mesmos textos técnico-
políticos.554

Os ativistas entendem que a humanização do parto pressupõe que a técnica é


política e inscrita nos procedimentos de rotina, e que condutas contrárias como a
imobilização, a indução das dores do parto e os cortes desnecessários, a solidão, o desamparo,
estão encarnadas nas relações sociais de desigualdade de gênero, de classe, de raça, entre
outros. A mudança técnica busca inverter a lógica que entende o parto vaginal como primitivo
e arcaico.555

A equivalência dos termos humanização e adesão às recomendações da OMS


causa certa estranheza. Porém, isso significa que essas recomendações expressam uma
perspectiva de que haverá mudanças no atendimento da mulher gestante, o que se deve ao fato

humana e de direitos humanos.” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no
Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
554
“Humanização como a legitimidade científica da medicina, ou da assistência baseada na evidência (evidence-
based, orientada pelo conceito de tecnologia apropriada e de respeito à fisiologia). É considerada pelos iniciados
como o padrão ouro; a prática orientada através de revisões sistemáticas de ensaios clínicos randomizados, em
oposição à prática orientada pela opinião e tradição. A superposição entre a crítica política (da organização do
cuidado) e a crítica à técnica (da indicação clínica dos procedimentos) é tão intensa, que a adesão à Rehuna por
seus filiados é condicionada exatamente à defesa por parte daqueles mesmos textos técnico-políticos (WHO,
1985; 1996).” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos
sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
555
“Pelo menos na interpretação dos ativistas, a humanização, no caso do parto, pressupõe que a técnica é
política, e que inscritos nos procedimentos de rotina – na imobilização, na indução das dores do parto e cortes
desnecessários, na solidão, no desamparo – estão ‘encarnadas’ as relações sociais de desigualdade: de gênero, de
classe, de raça, entre outras. Assim, a mudança técnica busca inverter a lógica que avalia o parto vaginal como
primitivo e arcaico. Propõe que o objetivo de facilitação da fisiologia e da satisfação com a experiência é o
‘moderno’, enquanto a intervenção tecnológica acrítica, iatrogênica e sem base na evidência é o que se busca
superar.” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de
um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019 Acesso em 10/nov/2018.

250
de que houve a participação das usuárias e ativistas no desenho e na disseminação das
pesquisas de humanização, tornando o parto um momento de respeito.556

A humanização ainda pode ser entendida como a legitimidade para reivindicar


e defender os direitos das mulheres e de seus filhos na assistência ao período gestacional. Essa
assistência deve basear-se no direito ao parto seguro e na assistência não-violenta, relacionada
às ideias de humanismo e de direitos humanos, dando às usuárias o direito de conhecer e
decidir sobre os procedimentos a serem realizados no seu parto.557

Além disso, falar em humanização é uma estratégia, mais diplomática do que


quando se fala em violência de gênero e das demais violações de direitos praticados por
instituições de saúde, o que facilita o diálogo com os profissionais de saúde. Entre esses
direitos estão o direito a ter sua integridade corporal preservada, o direito à condição de
pessoa, significando o direito de ser informada sobre os procedimentos, direito de estar livre
de tratamento cruel, desumano ou degradante, entre outros. Desse modo, pretende-se
combinar os direitos sociais em geral aos direitos reprodutivos e sexuais em especial. O
direito de decidir sobre sua vida e saúde não pode existir sem que os direitos sociais dessas
pessoas sejam respeitados.558

556
“Trata-se de uma apropriação política do discurso técnico – uma estratégia não isenta de riscos. A
equivalência dos termos humanização e adesão às recomendações da OMS causa justificável estranhamento.
Porém, reflete o fato de que essas recomendações expressam, em grande medida, a perspectiva do movimento
pela mudança, resultantes do processo de interfecundação conceitual, não sem contradições, que se deu pela
participação das usuárias e ativistas no desenho e na disseminação das pesquisas. Isto se reflete também na
criação de novos objetos de estudos randomizados, digamos, extra-clínicos, tais como os acompanhantes no
parto e a satisfação com a assistência (Hodnett, 2002), o respeito aos direitos no parto e a abordagem baseada
em direitos (Panos, 2001), e mesmo na recuperação dos chamados ensaios pragmáticos sobre promoção da
mudança institucional (BBI, 2005).” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no
Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
557
“Humanização como a legitimidade política da reivindicação e defesa dos direitos das mulheres (e crianças, e
famílias) na assistência ao nascimento. Uma assistência baseada nos direitos (rights-based), demandando um
cuidado que promova o parto seguro, mas também a assistência não-violenta, relacionada às ideias de
‘humanismo’ e de ‘direitos humanos’, dando às usuárias inclusive o direito de conhecer e decidir sobre os
procedimentos no parto sem complicações: [...] As mudanças na oferta de serviços e no acesso a eles não são
suficientes. Os objetivos da Iniciativa Maternidade Segura não serão alcançados até que as mulheres sejam
fortalecidas e os seus direitos humanos – incluindo seu direito a serviços e informação de qualidade durante e
depois do parto – sejam respeitados (WHO, 1998).” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da
assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37,
2005). Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019.
Acesso em 10/nov/2018.
558
“Falar em humanização é também uma estratégia: uma forma mais dialógica e diplomática, menos acusatória,
de falar da violência de gênero e demais violações de direitos praticadas pelas instituições de saúde, o que
facilitaria o diálogo com os profissionais de saúde. Entre eles os direitos à integridade corporal (não sofrer dano
evitável), à condição de pessoa (o direito à escolha informada de procedimentos); o direito a estar livre de
tratamento cruel, desumano ou degradante (prevenção de procedimentos física, emocional ou moralmente

251
Ainda, fala-se em humanização com o redimensionamento dos papéis e
poderes na cena do parto, com o deslocamento da função principal, no parto normal, do
cirurgião-obstetra para a enfermeira obstetriz. Desloca-se o ambiente do parto, do centro
cirúrgico para a sala de parto ou casa de parto. Essa mudança origina muitos conflitos, uma
vez que os médicos sentem seu espaço invadido, reagindo de várias formas a esse tipo de
invasão.559

A humanização ainda significa que a parturiente possui legitimidade para


participar de todas as decisões que digam respeito à sua saúde, à melhora na relação médico-
paciente ou enfermeira-paciente, com destaque na importância do diálogo, com a inclusão do
pai no parto, com a presença de doulas (acompanhantes de parto), negociações nos
procedimentos de rotina, necessidade de gentileza e de boa educação na relação entre
instituições e seus consumidores. Isso inclui a mudança de vários serviços particulares para a
superação do modelo de linha de montagem, com a instalação de salas de pré-parto e pós-
parto (PPP) ou Labour and Delivery Rooms, banheiras de hidromassagem para o trabalho de
parto, dentre outras inovações.560

penosos), o direito à equidade, tal como definida pelo SUS etc. Esta abordagem baseada nos direitos busca
compor uma agenda que combine os direitos sociais em geral e direitos reprodutivos e sexuais em especial. Está
relacionada à reivindicação do movimento de mulheres por desfazer as supostas incompatibilidades entre essas
gerações de direitos, reivindicando sua integralidade. Considera que o direito de decidir sobre sua vida e saúde
(um direito individual, à liberdade) não pode se realizar sem que existam os direitos sociais (serviços, equidade)
que viabilizem essas escolhas (Dora, 1998).” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao
parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37, 2005).
Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em
10/nov/2018.
559
“Humanização como legitimidade profissional e corporativa de um redimensionamento dos papéis e poderes
na cena do parto. Incluiria o deslocamento da função principal, ou pelo menos exclusiva, no parto normal, do
cirurgião-obstetra para a enfermeira obstetriz – legitimado pelo pagamento desse procedimento pelo Ministério
da Saúde. Desloca também o local privilegiado do parto, do centro cirúrgico para a sala de parto ou casa de
parto, a exemplo dos modelos europeu e japonês de assistência. Essa perspectiva envolve disputas corporativas e
de recursos, e é um campo de intenso conflito, pois os médicos sentem seu espaço expropriado, reagindo de
várias formas. Como na proposta de lei do Ato Médico, em que os demais profissionais de saúde devem estar
submetidos à sua supervisão – o que seria incompatível com a prática autônoma das enfermeiras obstetrizes. Esta
lei estaria em contradição com as próprias portarias do Ministério da Saúde, inclusive as que instituem os
Centros de Parto Normal, constituindo um dos impasses atuais da mudança das políticas públicas.” (DINIZ,
Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento.
Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
560
“Humanização referida à legitimidade da participação da parturiente nas decisões sobre sua saúde, à
melhora na relação médico-paciente ou enfermeira-paciente – ênfase na importância do diálogo com a paciente,
inclusão do pai no parto, presença de doulas (acompanhantes de parto), alguma negociação nos procedimentos
de rotina, a necessidade da gentileza e da ‘boa educação’ na relação entre instituições e seus consumidores.
Diferentemente de uma noção referida a direitos sociais, aqui está fortemente presente a tradição liberal, de
direitos do consumidor à escolha, criando uma ‘rede privada de assistência humanizada’ e ampliando a
legitimidade do modelo da MBE, até então restrita ao setor público. Isto inclui a mudança arquitetônica de vários
serviços particulares para a superação do modelo de linha de montagem, com a instalação de salas PPP (pré-

252
A humanização também é um direito ao alívio da dor, da inclusão para
pacientes do SUS no consumo de procedimentos tidos como humanitários, antes restritos às
pacientes privadas, como a analgesia de parto. Entre os médicos menos próximos do ideário
baseado em evidências ou baseado em direitos, parto humanizado é praticamente
um sinônimo de acesso à anestesia peridural. Mesmo que a anestesia seja formalmente
prevista e pagável desde 1998 pelo SUS, segundo a Portaria GM/MS n.º 2.815, na prática ela
é inviabilizada, pois o pagamento do parto foi aumentado de valor, sem incluir honorários
específicos para o anestesista.561

3.3 O Código de Ética Médica

O Código de Ética Médica, instituído pela Resolução n.º 1.931/09, e em vigor


desde 13 de abril de 2010, representou a introdução da medicina no século XXI. Subordinada
à Constituição Federal e à legislação brasileira, essa regra reafirmou os direitos dos cidadãos
como pacientes, bem como a necessidade de informar e de proteger a população assistida.
Com esse Código, busca-se a harmonização entre os princípios da autonomia dos médicos e
dos pacientes, vindo, inclusive, a ser considerado o contrato tácito de todo ato médico.562

Os profissionais de saúde terão por base este Código para a tomada de decisões
profissionais quando, conforme os ditames de suas consciências e as previsões legais, tiverem
que aceitar as escolhas de seus pacientes relativas a procedimentos diagnósticos e terapêuticos

parto e pós-parto) ou ‘Labour and Delivery Rooms’, banheiras de hidromassagem para o trabalho de parto e
outras inovações.” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos
sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37, 2005). Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019. Acesso em 10/nov/2018.
561
“Humanização como direito ao alívio da dor, da inclusão para pacientes do SUS no consumo de
procedimentos tidos como humanitários, antes restritos às pacientes privadas – como a analgesia de parto. Entre
os médicos menos próximos do ideário baseado em evidências ou baseado em direitos, ‘parto humanizado’ é
praticamente um sinônimo de acesso à anestesia peridural, como explica essa médica: Primeiro, eu acho que não
pode haver humanização sem ter peridural. Como podemos ser humanos com a parturiente sem sedar a dor
dela, que é uma tarefa primordial do médico? [...] Aí a gente vê que na prática não tem anestesia disponível no
SUS, é só discurso. Ainda que a anestesia seja formalmente prevista e pagável desde 1998 pelo SUS (portaria/
GM/MS 2815), na prática é inviabilizada, pois o pagamento do procedimento ‘parto’ foi aumentado de valor,
sem incluir honorários específicos para o anestesista.” (DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da
assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saúde Colet., v. 10, n.º 3, p. 627-37,
2005). Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300019.
Acesso em 10/nov/2018.
562
“Subordinado à Constituição Federal e à legislação brasileira, o novo Código reafirma os direitos dos
pacientes, a necessidade de informar e proteger a população assistida. Buscou-se um Código justo, pois a
medicina deve equilibrar-se entre estar a serviço do paciente, da saúde pública e do bem-estar da sociedade. O
imperativo é a harmonização entre os princípios das autonomias do médico e do paciente. Permeando o novo
Código, esse é o contrato tácito e implícito de todo ato médico.” (Código de Ética Médica. Resolução CFM n.º
1.931, de 17 de setembro de 2009). Disponível em
http://www.cremers.org.br/pdf/codigodeetica/cem_e_cpep.pdf. Acesso em 05/fev/2019.

253
propostos. Também deverão se basear nessa lei, quando da proibição de se obter o
consentimento do paciente, ou de seu representante legal, após os esclarecimentos sobre os
procedimentos a serem realizados, salvo quando houver iminente risco de ocorrer a morte.563

Ainda, o referido Código enfatiza que é essencial para a prática médica que a
relação médico-paciente se baseie na confiança mútua. Além disso, outro pilar dessa
legislação é o princípio da liberdade. O paciente é livre para escolher o médico de sua
confiança, livre para aceitar ou rejeitar o que lhe for oferecido. Esse princípio, também,
depende de o paciente ter recebido informações justas, claras e adequadas. Disso decorre a
importância do consentimento informado, livre e esclarecido.564

563
“Entre outros momentos, isso se materializará na tomada de decisões profissionais, quando, de acordo com os
ditames de sua consciência e as previsões legais, o médico aceitar as escolhas de seus pacientes relativas aos
procedimentos diagnósticos e terapêuticos propostos. E também na proibição de que deixe de obter o
consentimento do paciente ou de seu representante legal, após esclarecê-lo, sobre o procedimento a ser realizado,
salvo em iminente risco de morte. As inovações estendem-se ao nível de se recomendar a obtenção do
assentimento de menor de idade em qualquer ato médico a ser realizado, pois a criança tem o direito de saber o
que será feito com o seu corpo, e à possibilidade de recusa de pacientes terminais a tratamentos considerados
excessivos e inúteis.” (Código de Ética Médica. Resolução CFM n.º 1.931, de 17 de setembro de 2009).
Disponível em http://www.cremers.org.br/pdf/codigodeetica/cem_e_cpep.pdf. Acesso em 05/fev/2019.
564
“Capítulo I – Princípios Fundamentais - I – A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e
da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza. II – O alvo de toda a atenção do médico
é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade
profissional. III – Para exercer a Medicina com honra e dignidade, o médico necessita ter boas condições de
trabalho e ser remunerado de forma justa. IV – Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético
da Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão. V – Compete ao médico aprimorar
continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente. VI – O
médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus
conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e
acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade. VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia,
não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje,
excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa
possa trazer danos à saúde do paciente. VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum
pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam
prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho. IX – A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou
forma, ser exercida como comércio. X – O trabalho do médico não pode ser explorado por terceiros com
objetivos de lucro, finalidade política ou religiosa. XI – O médico guardará sigilo a respeito das informações de
que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei. XII – O
médico empenhar-se-á pela melhor adequação do trabalho ao ser humano, pela eliminação e pelo controle dos
riscos à saúde inerentes às atividades laborais. XIII – O médico comunicará às autoridades competentes
quaisquer formas de deterioração do ecossistema, prejudiciais à saúde e à vida. XIV – O médico empenhar-se-á
em melhorar os padrões dos serviços médicos e em assumir sua responsabilidade em relação à saúde pública, à
educação sanitária e à legislação referente à saúde. XV – O médico será solidário com os movimentos de defesa
da dignidade profissional, seja por remuneração digna e justa, seja por condições de trabalho compatíveis com o
exercício ético-profissional da Medicina e seu aprimoramento técnico-científico. XVI – Nenhuma disposição
estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos
meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da execução do
tratamento, salvo quando em benefício do paciente. XVII – As relações do médico com os demais profissionais
devem basear-se no respeito mútuo, na liberdade e na independência de cada um, buscando sempre o interesse e
o bem-estar do paciente. XVIII – O médico terá, para com os colegas, respeito, consideração e solidariedade,
sem se eximir de denunciar atos que contrariem os postulados éticos. XIX – O médico se responsabilizará, em
caráter pessoal e nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e

254
É dever de todo médico exercer a medicina sem qualquer discriminação,
devendo praticar a solidariedade entre os próprios pares e preservar sua independência
profissional, livrando-se de influências externas. Nos dias atuais, existem muitas restrições
aos médicos, o que põe em perigo a relação médico-paciente. No entanto, as políticas públicas
são muito deficientes, os recursos a que os médicos têm direitos são extremamente escassos e
a saúde tem sido cada vez mais diminuída e reduzida à condição de coisa, com incorporação
cada vez mais de tecnologias.565

executados com diligência, competência e prudência. XX – A natureza personalíssima da atuação profissional do


médico não caracteriza relação de consumo. XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo
com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas
aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente
reconhecidas. XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de
procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os
cuidados paliativos apropriados. XXIII – Quando envolvido na produção de conhecimento científico, o médico
agirá com isenção e independência, visando ao maior benefício para os pacientes e a sociedade. XXIV – Sempre
que participar de pesquisas envolvendo seres humanos ou qualquer animal, o médico respeitará as normas éticas
nacionais, bem como protegerá a vulnerabilidade dos sujeitos da pesquisa. XXV – Na aplicação dos
conhecimentos criados pelas novas tecnologias, considerando-se suas repercussões tanto nas gerações presentes
quanto nas futuras, o médico zelará para que as pessoas não sejam discriminadas por nenhuma razão vinculada a
herança genética, protegendo-as em sua dignidade, identidade e integridade.” (Código de Ética Médica.
Resolução CFM n.º 1.931, de 17 de setembro de 2009).
https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf. Acesso em
05/fev/2019.
565
“Capítulo I – Princípios Fundamentais: I – A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e
da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza. II – O alvo de toda a atenção do médico
é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade
profissional. III – Para exercer a Medicina com honra e dignidade, o médico necessita ter boas condições de
trabalho e ser remunerado de forma justa. IV – Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético
da Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão. V – Compete ao médico aprimorar
continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente. VI – O
médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus
conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e
acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade. VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia,
não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje,
excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa
possa trazer danos à saúde do paciente. VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum
pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam
prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho. IX – A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou
forma, ser exercida como comércio. X – O trabalho do médico não pode ser explorado por terceiros com
objetivos de lucro, finalidade política ou religiosa. XI – O médico guardará sigilo a respeito das informações de
que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei. XII – O
médico empenhar-se-á pela melhor adequação do trabalho ao ser humano, pela eliminação e pelo controle dos
riscos à saúde inerentes às atividades laborais. XIII – O médico comunicará às autoridades competentes
quaisquer formas de deterioração do ecossistema, prejudiciais à saúde e à vida. XIV – O médico empenhar-se-á
em melhorar os padrões dos serviços médicos e em assumir sua responsabilidade em relação à saúde pública, à
educação sanitária e à legislação referente à saúde. XV – O médico será solidário com os movimentos de defesa
da dignidade profissional, seja por remuneração digna e justa, seja por condições de trabalho compatíveis com o
exercício ético-profissional da Medicina e seu aprimoramento técnico-científico. XVI – Nenhuma disposição
estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos
meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da execução do
tratamento, salvo quando em benefício do paciente. XVII – As relações do médico com os demais profissionais
devem basear-se no respeito mútuo, na liberdade e na independência de cada um, buscando sempre o interesse e
o bem-estar do paciente. XVIII – O médico terá, para com os colegas, respeito, consideração e solidariedade,

255
O Código de Ética Médica deve basear-se no princípio da liberdade do
médico, o que deve estar ligado à liberdade do paciente. Esse é um contrato tácito de todo ato
praticado pelo profissional. O Código deve, ainda, preservar a independência profissional do
médico. Ainda, dentro da legislação referida, verifica-se que, em relação ao menor de idade,
ele deve consentir em qualquer ato médico a ser realizado, uma vez que a criança tem o
direito de saber o que será feito com seu corpo. De outro lado, também existe a possibilidade
de recusa de pacientes terminais a tratamentos considerados excessivos ou inúteis.566

Logo no Preâmbulo, o Código de Ética Médica dispõe que o documento


contém normas que devem ser seguidas por médicos, no exercício de seu mister, incluindo o
exercício de atividades relativas ao ensino, à pesquisa e à administração de serviços de saúde,
assim como, também, no exercício de qualquer atividade em que se utilize o conhecimento
que advém do estudo da medicina.

O Código de Ética Médica dispõe, ainda, em seu Capítulo I, sobre os princípios


fundamentais da medicina, explicitando que o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do
ser humano. Estão previstos os princípios tradicionais que regem a ética médica, quais sejam,
a honestidade e a dedicação do médico, sua obrigação de preservar a vida, de não prejudicar
os doentes, mas de respeitar os seus interesses, sua privacidade e sua confidencialidade.
Ressalta-se que, para exercer a medicina, o médico necessita ter boas condições de trabalho e
ser remunerado de forma justa, o que nem sempre ocorre no sistema de saúde do nosso País,
mormente em se tratando de Sistema Único de Saúde.

sem se eximir de denunciar atos que contrariem os postulados éticos. XIX – O médico se responsabilizará, em
caráter pessoal e nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e
executados com diligência, competência e prudência. XX – A natureza personalíssima da atuação profissional do
médico não caracteriza relação de consumo. XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo
com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas
aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente
reconhecidas. XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de
procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes, sob sua atenção, todos os
cuidados paliativos apropriados. XXIII – Quando envolvido na produção de conhecimento científico, o médico
agirá com isenção e independência, visando ao maior benefício para os pacientes e a sociedade. XXIV – Sempre
que participar de pesquisas envolvendo seres humanos ou qualquer animal, o médico respeitará as normas éticas
nacionais, bem como protegerá a vulnerabilidade dos sujeitos da pesquisa. XXV – Na aplicação dos
conhecimentos criados pelas novas tecnologias, considerando-se suas repercussões tanto nas gerações presentes
quanto nas futuras, o médico zelará para que as pessoas não sejam discriminadas por nenhuma razão vinculada a
herança genética, protegendo-as em sua dignidade, identidade e integridade.”. (Código de Ética Médica.
Resolução CFM n.º 1.931, de 17 de setembro de 2009). Disponível em
https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf. Acesso em
05/fev/2019.
566
“Capítulo I – Princípios Fundamentais”. (Código de Ética Médica. Resolução CFM n.º 1.931, de 17 de
setembro de 2009). Disponível em
https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf. Acesso em
05/fev/2019.

256
Dispõe, ainda, o diploma legal que ao médico compete aprimorar seus
conhecimentos e usar o que há de melhor do progresso científico em benefício do paciente.
Ademais, deve o médico exercer sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar
serviços que contrariem sua consciência ou que não deseje prestar, salvo casos de ausência de
outro médico, ou situações emergenciais, ou, ainda, quando sua recusa possa causar danos ao
paciente.

Importante destacar que o referido Código traz como princípio que o médico
deve guardar sigilo sobre informações que tenha conhecimento no exercício der suas funções,
excetuadas as hipóteses previstas em lei. No tocando à tomada de decisões profissionais, em
conformidade com sua consciência e com a lei, o médico aceitará as escolhas de seus
pacientes, com relação a procedimentos diagnósticos e terapêuticos, desde que guardem
adequação com o caso concreto e desde que sejam cientificamente reconhecidos.

Em relação aos direitos do médico, com previsão no seu Capítulo II, o referido
diploma legal prevê que o médico deve exercer a medicina sem ser discriminado por questões
de religião, etnia, sexo, nacionalidade, cor, orientação sexual, idade, condição social, opinião
política ou qualquer outra natureza. Também consta, como direito do médico, a indicação do
procedimento mais adequado, no caso concreto, ao paciente, observadas as práticas
cientificamente reconhecidas e com respeito à legislação vigente, dentre outros tantos.

Outrossim, o Código impõe responsabilidade profissional do médico, sendo


que o Capítulo III, a partir do artigo 1º, dispõe sobre vedações. Assim, é vedado ao médico
causar dano ao paciente, por ação ou omissão culposa, sendo essa responsabilidade pessoal e
não presumida. Também lhe é vedado, dentre outros, delegar atos profissionais exclusivos da
profissão médica; deixar de assumir a responsabilidade de procedimento que indicou ou
participou; deixar de atender pacientes em caso de urgência ou emergência; afastar-se de suas
atividades, mesmo que temporariamente, sem deixar outro médico em seu lugar; deixar de
comparecer a plantão em horário preestabelecido ou abandoná-lo sem haver um substituto no
local; praticar ou indicar atos desnecessários ou proibidos por lei; descumprir legislação
específica em casos como esterilização, abortamento, fertilização artificial, manipulação ou
terapia genética.

No Capítulo IV do referido diploma, a partir do artigo 22, que trata dos direitos
humanos, ainda são estipuladas outras vedações, podendo-se citar, dentre essas, que é probido

257
ao médico deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal, após
esclarecimento sobre o procedimento a ser realizado, salvo os casos de risco iminente de
morte; deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua
pessoa; deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada física e mentalmente
capaz; desrespeitar a integridade física e mental do paciente, bem como o interesse e a
integridade do paciente.

No Capítulo V, a partir do artigo 31 da lei, existem mais vedações aos médicos,


agora com relação aos pacientes e seus familiares. Assim, é defeso, dentre outros casos,
desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a
execução de práticas diagnósticas e terapêuticas, salvo caso de iminente risco de morte; deixar
de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos,
em favor do paciente; deixar de atender o paciente em casos de urgência ou emergência,
quando não exista outro médico que possa fazê-lo; deixar de informar o paciente sobre os
riscos de seu tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe causar dano, a qual
deve ser feita com seu representante legal; exagerar a gravidade de diagnóstico e prognóstico,
além de abandonar o paciente sob seus cuidados; prescrever tratamento ou outros
procedimentos sem examinar direito o paciente, ressalvado o caso de urgência ou emergência;
desrespeitar o pudor de qualquer paciente; desrespeitar o direito do paciente de decidir
livremente sobre o método contraceptivo adotado por ele.

Ainda, por interessarem a este estudo, existem proibições constantes no


Capítulo IX, quanto ao sigilo profissional, a partir do artigo 73, dentre outros, tais como:
revelar fato que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por
motivo justo, legal ou consentimento expresso do paciente; revelar sigilo profissional relativo
a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou representantes legais, desde que o menor
tenha capacidade de discernimento, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao
paciente; revelar informações confidenciais de pacientes; deixar de orientar seus auxiliares e
alunos a respeitar o sigilo profissional e zelar para que sejam por eles mantido.

O Código de Ética Médica dispõe, ainda, que não é lícito ao médico revelar
fato que tenha conhecimento em virtude de exercício da profissão, salvo por justo motivo,
dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. O artigo 154 do Código Penal prevê
como crime a violação do segredo profissional, a qual ofende o direito à intimidade. Haverá o

258
dever de indenizar quando, por culpa, o profissional revelar segredo que lhe foi confiado,
causando dano, além da comprovação da relação de nexo sob a causalidade.567

O médico tem o dever de não revelar os fatos de que tem conhecimento no


exercício da profissão e que afetem a esfera privada do paciente. Mesmo com o fim da relação
médico-paciente, perdurará o dever de sigilo. O segredo médico é uma obrigação e um direito,
junto com a moral e a lei, que o médico tem de não revelar fatos, considerados sigilosos, de
que tenha conhecimento, direta ou indiretamente, no exercício de sua profissão.568

O sigilo hospitalar é diferente do sigilo médico, porque outras pessoas,


discretamente, como médicos, enfermeiros e auxiliares, tomam conhecimento de informações
que não devem ser transmitidas a estranhos. Arquivos e prontuários médicos devem ser
preservados. Se houver informações sigilosas, somente os médicos e os pacientes poderão ter
acesso. Se admitida a quebra do sigilo, é recomendável a adoção da cautela do envio da
documentação em envelope lacrado, acessível ao perito, às partes e ao juiz, mediante segredo
de justiça.569

Os elementos indispensáveis para caracterizar o delito de quebra de sigilo que


poderá levar à reparação do dano, são: i) a existência de um segredo; ii) conhecê-lo em razão

567
“O Código de Ética Médica (Res. n.º 1.931, de 24.9.2009), em seu art. 73, estabelece: ‘[É vedado ao médico]
Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever
legal ou consentimento por escrito do paciente.’ Significativa é a passagem do Juramento de Hipócrates: ‘O que,
no exercício ou fora do exercício e no comércio da vida, eu vir ou ouvir, que não seja necessário revelar,
conservarei como segredo’. O art. 154 do CP comina pena de detenção, de três meses a um ano, ou multa, a
quem violar segredo profissional. A violação do segredo médico ofende um dos direitos da personsalidade, o
direito à intimidade. Configurar-se-á o dever de indenizar quando, culposamente, o profissional revelar segredo
que lhe fora confiado, causando dano ao paciente, provado o nexo de causalidade.” (NETO, Miguel Kfouri. A
responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 223).
568
“O médico tem o dever de não revelar os fatos de que teve conhecimento em razão da profissão e que afetem
a esfera privada do paciente. Entre nós, além da obrigação moral, manter tais segredos é, como visto, imposição
jurídica, o que ocorre, igualmente, na Bélgica, Itália e França. Mesmo que se extinga a relação médico-paciente,
perdurará o dever de sigilo. Para Iturraspe, do ponto de vista civil, a quebra do dever de sigilo poderá ocasionar
dano tanto moral quanto profissional. Em ambos os casos, abrir-se-á oportunidade à reparação. Segredo médico,
di-lo Hermes Rodrigues de Alcântara, ‘é uma obrigação e um direito, irmanados da moral e da lei, que o médico
tem, diante do paciente, de não revelar fatos, considerados sigilosos, de que tome conhecimento, direta ou
indiretamente, no exercício de sua profissão. É um daqueles imperativos hipotéticos, da teoria de Kant, porque
dele depende a confiança que a medicina precisa do paciente, para que seu fim seja alcançado.” (NETO, Miguel
Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 224).
569
“O sigilo hospitalar diferencia-se do segredo médico pelo fato de outras pessoas, discretamente – médico,
enfermeiro, auxiliares –, tomarem conhecimento das informações que não devem ser transmitidas a estranhos.
Prontuários e arquivos médicos devem ser preservados. Se contiverem informações sigilosas, a elas somente os
médicos (e os próprios pacientes) poderão ter acesso.” (NETO, Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do
médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 224).

259
da função, ofício, ministério ou profissão; iii) possibilidade de dano a outrem; iv) ausência de
justa causa; v) dolo. O crime é punível dolosamente. Se houver culpa, caberá indenização.570

Em relação às vedações no âmbito do ensino e da pesquisa médica, o Capítulo


XII, a partir do artigo 99, impõe, dentre outras, as seguintes proibições ao médico: participar
de qualquer tipo de experiência que atente contra a dignidade humana envolvendo seres
humanos; deixar de obter aprovação de protocolo para a realização de pesquisa em seres
humanos, conforme legislação vigente; deixar de obter de paciente o termo de consentimento
livre e esclarecido para a realização de pesquisa envolvendo seres humanos; deixar de utilizar
a terapêutica correta, quando seu uso estiver liberado no País.

3.4 A ética hipocrática e o paternalismo médico

A ética hipocrática é aquela que determina quais os preceitos que servem para
orientar a atuação dos médicos, seja durante o exercício profissional da medicina, seja fora
dele. A principal orientação da ética médica, a máxima salus aegroti suprema les, que quer
dizer que a promoção da saúde de um paciente é considerada lei suprema na medicina.571

O princípio da beneficência impõe que se deve promover o bem do paciente,


havendo, ainda, o princípio da não-maleficência, que proíbe os médicos de causarem danos de
forma intencional. Desse modo, ao profissional de saúde cabe decidir e aplicar o melhor
tratamento, de acordo com seu poder e sua mente. Nessa relação, o papel do paciente é fazer
prevalecer a sua vontade e os seus desejos, o que impõe como dever do médico informá-lo
sobre o diagnóstico e o tratamento. Todavia, esses direitos do paciente, em muitas das vezes,
não são, sequer, mencionados.572

570
“Genival Veloso de França aponta os elementos indispensáveis à caracterização do delito de quebra de sigilo,
que, por sua vez, poderá conduzir à reparação: 1. existência de um segredo; 2. conhecê-lo em razão da função,
ofício, ministério ou profissão; 3. possibilidade de dano a outrem; 4. ausência de justa causa; 5. dolo. O crime é
sempre punível existindo dolo. Se culposa a revelação, sobrevindo dano, possível a indenização.” (NETO,
Miguel Kfouri. A responsabilidade civil do médico, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 224).
571
“A chamada ética hipocrática ou ética do cuidado fixa os preceitos que orientam a atuação médica
tradicional, seja durante o exercício profissional ou fora dele. O juramento de Hipócrates elege a máxima salus
aegroti suprema lex como a principal orientação da ética médica, de acordo com a qual a promoção da saúde do
paciente é a lei suprema da medicina.” (SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da
Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p. 43).
572
“Isto é, dá-se absoluta primazia aos princípios da benevolência (bonum facere), que impõe a promoção do
bem do paciente, e da não-maleficência (primum nil nocere), que proíbe os médicos de causarem danos
intencionalmente. Cabe ao médico, então, decidir e aplicar o melhor tratamento ‘segundo seu poder e juízo’. O
papel do paciente nessa relação, a relevância da sua vontade e de seus desejos individuais ou mesmo um dever
do médico de informá-lo sobre o diagnóstico e o tratamento sequer são mencionados.” (SIQUEIRA, Flávia.

260
Com uma relação assimétrica, o médico é colocado em um pedestal, no qual
lhe é dado um imenso poder de cura. Sendo o único que possui conhecimentos técnicos, o que
lhe dá uma superioridade moral. Somente ele é competente para tomar as decisões quanto à
saúde do seu paciente, como se sempre fosse possível determinar o que é melhor ou pior para
a pessoa que vai receber o tratamento.573

O paciente, por seu turno, deve suportar, de uma maneira passiva, o tratamento
médico. O significado da palavra paciente, tem sua origem no latim patiens, que quer dizer
aquele que sofre, que padece. É ele uma pessoa vulnerável, que está fragilizada pela sua
doença. Por esse fato, não é capaz de tomar decisões sobre sua saúde, sobre sua vida, nem
mesmo tem condições de se orientar sobre o destino de seu corpo.574

No Brasil, a ética hipocrática influenciou o Código de Moral Médica de 1929,


aprovado pelo Sindicato Médico Latino-Americano, que determinava, em seu artigo 4º, que
“o médico, em suas relações com o enfermo, procurará tolerar seus caprichos e fraquezas
enquanto não se oponham as exigências do tratamento (...)”575. Assim, a vontade do paciente
era tratada com verdadeiro desprezo, como se fosse um capricho.

3.4.1 O paternalismo

O que vem a ser paternalismo? O termo remete ao latim pater, que significa
pai. Assim, leva-se a uma estrutura de domínio patriarcal, na qual o indivíduo é tratado como
uma criança pelo Estado, por uma instituição ou por terceiro como, por exemplo, o médico. O
paternalista é aquele que acha que sabe mais sobre o bem-estar de outrem, do que a própria

Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção Direito
Penal e Criminologia, p. 43).
573
“A relação medico-paciente é caracterizada, assim, por uma acentuada assimetria. O médico, colocado num
pedestal, é visualizado como protetor do paciente, dotado de poder de cura, ‘cujo título lhe [garante] a
onisciência, por ser o único que possui conhecimentos técnicos, o que lhe certificaria até mesmo certa
superioridade moral, apenas ele seria competente para a tomada de decisões acerca da saúde do paciente, se fosse
sempre possível determinar a partir da indicação da lex artis, o que é ‘melhor’ para o sujeito a ser tratado.”
(SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons,
2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p. 43/44).
574
“Já ao paciente incumbe suportar com passividade o tratamento médico. Seu papel pode ser depreendido
inclusive da etiologia da palavra ‘paciente’, derivada do latim patiens, que significa ‘aquele que padece, que
sofre”. Ele é visto, assim, como uma pessoa vulnerável que, fragilizada pela doença, não é capaz de tomar
decisões sobre o seu estado de saúde e/ou determinar o destino do seu próprio corpo. No juramento do Corpus
Hippocraticum, portanto, os pacientes são colocados numa posição de submissão e obediência às determinações
médicas.” (SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo:
Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p. 44).
575
Código de Moral Médica, aprovado pelo VI Congresso Médico Latino-Americano. Disponível em:
https://portal.cfm.org.br/images/stories/documentos/EticaMedica/codigomoralmedica1929.pdf. Acesso em
03/nov/2019.

261
pessoa, impondo, então, um padrão de conduta baseado em certos valores, para a promoção
de seu bem, mesmo que contra a sua vontade.576

Desse modo, no paternalismo, o indivíduo age como se fosse um pai atuando


no melhor interesse da criança. Assim, pode o médico ser paternalista com relação a um
paciente, mesmo que sua atuação seja feita contra a vontade deste último, com o fim de
promoção de sua saúde, do mesmo modo que o Estado pode ser paternalista ao punir certas
condutas, para a prevenção de danos.577

Caracteriza-se o paternalismo como a relação entre pessoas ou entre um


indivíduo e o Estado. Nesse último caso, pode ocorrer o paternalismo legal, no qual existe
uma postura que autoriza o Estado a estabelecer padrões de conduta a cidadãos capazes. Só
haverá paternalismo legal quando a norma fundamentar proibições penais, feitas com o fim de
proteger a pessoa de autolesões, de autocolocações em perigo, de heterolesões consentidas ou
de heterolesões em perigo consentidas.578

Nesse sentido, autolesiona-se quem se coloca em perigo, dominando o fato e


executando o comportamento lesivo, como é o caso da pessoa que ingere medicamentos que a
levarão à morte, ou, como é o caso da prostituta, ou, ainda, daquele que usa drogas. De outro

576
“Afinal, o que entendemos concretamente por paternalismo? O vocábulo paternalismo, cuja origem remete ao
termo pater (que significa pai), alude a uma estrutura de domínio ou de autoridade patriarcal, em que o indivíduo
é tratado como uma criança pelo Estado-pai, por alguma instituição ou por algum terceiro, como um médico. A
discussão sobre o paternalismo, na verdade, não se vincula apenas a questionamentos acerca da legitimação de
proibições e mandamentos estatais.” (SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da
Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p. 47).
577
“O paternalista é aquele que, na certeza de que sabe mais sobre o bem-estar de um terceiro do que ele próprio,
impõe-lhe, de alguma forma, um padrão de conduta baseado em certos valores, de modo a ‘promover o seu
bem’, mesmo que contra a sua vontade. Ou seja, age como se fosse um pai atuando no melhor interesse de uma
criança. Um médico pode ser paternalista em relação ao paciente ao executar uma intervenção contra a vontade
destes visando à promoção da sua saúde, da mesma forma que o Estado pode ser paternalista ao punir
determinado tipo de conduta para prevenir danos ao próprio indivíduo que a pratica ou então ao autorizar
intervenções paternalistas de terceiros na liberdade de seus cidadãos.” (SIQUEIRA, Flávia. Autonomia,
consentimento e Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e
Criminologia, p. 47).
578
“A conduta paternalista, assim, pode caracterizar apenas uma relação entre pessoas ou entre indivíduos e o
Estado. No entanto, somente dessa última hipótese pode decorrer o paternalismo legal, que se refere a uma
postura que autoriza o Estado a fixar, por meio de normas impositivas ou mandamentais, determinados padrões
de cultura ‘autoprotetivos’ a cidadãos plenamente capazes, sobrepondo-se à hierarquização de valores própria
dos indivíduos considerados. Paternalismo penal, evidentemente, só haverá quando esta norma fundamentar
proibições penais, erigidas com o intuito de proteger o indivíduo de autolesões, de autocolocações em perigo, de
heterolesões consentidas ou de heterocolocações em perigo consentidas. Tais poibições, acabam, assim, por
limitar a liberdade individual em favor de um alegado ‘bem-estar’, ainda que esse objetivo, na verdade, não
corresponda à vontade do indivíduo. Como ressaltado por Feinberg, o princípio não liberal tão criticado por
Stuart Mill, segundo o qual a prevenção de danos físicos, psicológicos e econômicos ao sujeito por suas próprias
ações seria uma boa razão para limitar a sua liberdade.” (SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e
Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p. 48).

262
lado, a heterolesão, ou colocação consentida, ocorre quando a vítima consente a prática do
comportamento perigoso realizado sob o domínio de terceiro, podendo-se citar o caso do
agente que desfere um tiro contra outrem, ou daquele que executa uma cirurgia que causa
alteração de substância corporal.579

Paternalismo deve ser entendido como a liberdade de ação de uma pessoa,


justificada por razões que se referem ao bem-estar, à felicidade, às necessidades, aos
interesses e valores da pessoa que é coagida.580 Podem ser mencionadas algumas
características do paternalismo, como o seu objetivo, que é o bem-estar da pessoa que foi
afetada; o meio para haver a intervenção paternalista é a coação; além disso, o paternalismo
ignora a vontade livre e informada do indivíduo.581 Este é o paternalismo nominado rígido ou
forte.

Quanto ao paternalismo rígido, a vontade do indivíduo é ignorada, a qual deve


ser livre e informada. Assim, diante da existência de déficits de autonomia, a conduta
beneficente do Estado ou de terceiro, com base nessa compreensão, não pode ser considerada
paternalista, mormente porque não é possível proteger a autonomia daquele que não tem
condições, sejam permanentes ou não, de atuar de forma autônoma ou de autodeterminar-se.
Esse tipo de intervenção é considerada como um tipo de paternalismo, chamado moderado ou

579
“Resumidamente, autolesiona-se/coloca-se em perigo aquele indivíduo que domina o fato e executa, ele
mesmo, o comportamento lesivo/perigoso (por exemplo, ingerindo os remédios que o conduzirão à morte,
prostituindo-se, utilizando drogas ou dirigindo perigosamente). Já a heterolesão/colocação em perigo consentida
ocorre quando a vítima consente na prática do comportamento lesivo/perigoso realizado sob o domínio de um
terceiro (que, por exemplo, desfere o tiro mortal, executa a cirurgia que provoca a alteração da substância
corporal ou mantém com a vítima relações sexuais desprotegidas, a despeito de ser portador de doença
sexualmente transmissível).” (SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. 1ª
ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p. 48).
580
“By paternalism I shall understand roughly the interference with a person's liberty of action justified by
reasons referring exclusively to the welfare, good, happiness, needs, interests, or values of the person being
coerced. One is always well-advised to illustrate one's definitions by examples but it is not easy to find ‘pure’
examples of paternalistic interferences.” (DWORKIN, Gerald. Paternalism, The Monist, v. 56, n. 1, 1972, p. 65).
Disponível em: http://www.sjsu.edu/people/paul.bashaw/courses/phil186fall2012/s1/Paternalism.pdf. Acesso em
04/nov/2019. Tradução livre: “Pelo paternalismo, entenderei aproximadamente a interferência na liberdade de
ação de uma pessoa justificada por razões que se referem exclusivamente ao bem-estar, bem, felicidade,
necessidades, interesses ou valores da pessoa que está sendo coagida. É sempre aconselhável ilustrar as
definições por meio de exemplos, mas não é fácil encontrar exemplos ‘puros’ de interferências paternalistas.”
581
“Desse conceito é possível extrair algumas características do paternalismo: o objetivo da intervenção
paternalista é o bem-estar subjetivo do sujeito afetado; o meio empregado para efetivar a intervenção paternalista
possui, na maioria das vezes, caráter de coerção; e, por fim, o paternalismo ignora a vontade livre e informada
do indivíduo afetado. Referimo-nos, aqui, à concepção de paternalismo em seu sentido mais genuíno, isto é, ao
chamado paternalismo rígido ou forte.” (SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da
Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p. 49).

263
fraco, inerente aos casos em que a vontade ignorada não é necessariamente autônoma ou
livre.582

Diante do que foi exposto, nos casos em que a pessoa não conhece todos os
riscos que são inerentes à conduta do profissional, sua ação não é necessariamente livre, o que
legitima a imposição de uma restrição de sua liberdade. É livre a decisão individual tomada
com base em todas as informações disponíveis que lhe são prestadas. Assim, a ética
hipocrática autoriza intervenções paternalistas, uma vez que impõe ao médico o dever de
promover a vida e a saúde do paciente, com a obrigação de atuar de acordo com a
beneficência e ou não-maleficência. Assim, a conduta médica deve se orientar de modo a
promover o bem-estar e/ou a vida do paciente. Para tanto, o médico estaria autorizado a
ignorar a vontade livre e informada do paciente, atuando mesmo sem seu consentimento ou
contra sua vontade.583

Desse modo, estaria o médico autorizado a usar a coerção, inclusive a física.


Outrossim, poderia, até mesmo, mentir para o paciente, ou mesmo deixar de revelar-lhe
informações necessárias, induzindo-o a consentir justamente por não conhecer a extensão do
tratamento ao qual terá que se submeter. Esse paternalismo parte do pressuposto de que o
médico possui conhecimentos técnicos e, portanto, sempre terá condições de definir o melhor
para o paciente, podendo impor o que pensa ser o melhor. Assim, uma postura dogmática que
chancela as orientações da ética hipocrática será paternalista.584

582
Por fim, a indiferença quanto à vontade do indivíduo afetado é também característica do paternalismo rígido
e, nessa concepção, a vontade ignorada pelo paternalista há de ser livre e informada. Isso significa que, diante da
existência de déficits de autonomia, a conduta beneficente do terceiro ou do Estado, com base nessa
compreensão, não pode ser considerada paternalista, em especial porque não é possível proteger a autonomia
daquele que não possui condições, momentâneas ou permanentes, de atuar autonomamente e de se
autodeterminar. Esse tipo de intervenção, contudo, é tido por muitos como uma variação do paternalismo: o
chamado paternalismo moderado ou fraco, inerente justamente aos casos em que a vontade ignorada não é
essencialmente autônoma e/ou livre. O objetivo da nossa crítica, no entanto, é apenas o paternalismo rígido e,
como pretendemos demonstrar adiante, a acepção moderada, na nossa visão, nem mesmo merece a alcunha de
paternalista.” (SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo:
Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p. 51).
583
“A partir dessas características apresentadas, não restam dúvidas de que a tradicional ética hipocrática
autoriza intervenções verdadeiramente paternalistas. Em primeiro lugar, porque impõe ao médico um dever
quase absoluto de promoção da vida e da saúde e, dessa forma, estipula uma obrigação de atuar em consonância
com a beneficência e/ou com não-maleficência. Nessa perspectiva ética, a conduta médica deve ser sempre
orientada de modo a alcançar a finalidade última, que prepondera em relação a qualquer outro valor: a de
promover, em qualquer situação, o bem-estar e/ou a vida do paciente. Para tanto, o médico estaria autorizado a
ignorar a vontade livre e informada do paciente, atuando sem o seu consentimento ou mesmo contra a sua
vontade expressa.” (SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São
Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p. 52).
584
“Para atingir este objetivo, o médico também poderia utilizar meios coercitivos, inclusive a coerção física.
Assim, estaria autorizado a segurar uma paciente que oferece resistência ou sedá-la contra a sua vontade para

264
3.5 A ética pós-hipocrática e a autonomia

O reconhecimento do direito à autodeterminação gerou influências e deu lugar


a uma lenta mudança de paradigma na ética médica, o que favoreceu a transição da ética de
cuidado para a ética da autonomia, cuja base está no princípio pós-hipocrático da
autodeterminação e da autonomia do paciente. Desse modo, a vontade do paciente passa a
prevalecer sobre a promoção da sua saúde, e é elevada à principal orientação da ética
médica.585

Sob a perspectiva ética e para os filósofos, era urgente o respeito à autonomia


dos pacientes. Para os juristas, essa autonomia era tratada como direito à autodeterminação.
Assim, o modelo da ética hipocrática passou a ser confrontado, com base nos ideais da
autonomia e da autodeterminação, com valores como a liberdade individual e a dignidade
humana, dando ao paciente o direito de escolher os tratamentos a que deseja se submeter.586

Diante da nova concepção, mesmo que fosse possível para o médico


determinar qual o tratamento a que o paciente deveria se submeter, ainda assim, não se pode
mais negar ao paciente o direito de se determinar sobre seu bem-estar e sua saúde, valores que
devem estar em primeiro plano. Na ética da autonomia do paciente, este se emancipa ao jugo

realizar uma transfusão de sangue, mesmo diante de sua negativa expressa. Também poderia o médico mentir
para o paciente, dizendo falsamente que está inserindo em sua corrente sanguínea uma substância diversa do
sangue para assim convencê-lo a consentir na intervenção, fazendo-o acreditar que não se trata de uma
transfusão. Da mesma forma, o médico estaria autorizado a deixar de revelar as informações necessárias para a
tomada de decisão do paciente, induzindo-o a consentir justamente por não conhecer a extensão do diagnóstico,
do prognóstico ou do tratamento em si. Esse é o chamado paternalismo do ‘médico que sabe o melhor’ (doctor
knows best), isto é, que parte do pressuposto de que o médico, por possuir conhecimentos técnicos, sempre terá
condições de definir o que é ‘melhor’ para o paciente e, portanto, poderá lhe impor a decisão mais racional ou
medicamente indicada, para o seu próprio bem. Diante disso, uma postura dogmática que chancela as orientações
da ética hipocrática será, igualmente, paternalista.” (SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito
Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p. 52/53).
585
“O reconhecimento do direito à autodeterminação, resultado de um processo de emancipação dos indivíduos
relativamente a vínculos e condições externas que limitam o exercício de sua liberdade, produziu influências e
ensejou uma paulatina mudança de paradigma na ética médica, favorecendo a transição da ética do cuidado para
a ética da autonomia, baseada no princípio pós-hipocrático da autodeterminação e autonomia do paciente.
Nessa perspectiva, a vontade do paciente passa a ter prevalência em relação à promoção da saúde e é erigida à
principal orientação da ética médica: voluntas aegroti suprema lex!” (SIQUEIRA, Flávia. Autonomia,
consentimento e Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e
Criminologia, p. 53/54).
586
“Para os filósofos, e também sob uma perspectiva ética, fazia-se urgente o respeito à autonomia dos
pacientes; para os juristas, por sua vez, isso seria traduzido para o direito pelo reconhecimento do direito à
autodeterminação. Desta forma, o arquétipo da ética hipocrática passou a ser confrontado, a partir dos ideais da
autonomia e da autodeterminação, com valores como a liberdade individual e a dignidade humana, atribuindo-se
ao paciente, na ética da autonomia, o direito de escolher os tratamentos a que deseja submeter-se.” (SIQUEIRA,
Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção
Direito Penal e Criminologia, p. 54).

265
médico, tornando-se sujeito de si mesmo, deixando de ser objeto de intervenção médica. Ao
paciente cabe a decisão acerca dos tratamentos a que deseja ou não se submeter.587

O conceito de autonomia advém, de início, da própria etiologia do termo, isto


é, a junção das duas palavras de origem grega: autos (si mesmo) e nomos (norma, lei). Assim,
autonomia quer dizer determinação das próprias regras. É ela uma característica do indivíduo
que segue seus próprios planos. No plano jurídico, a autonomia é caracterizada pelo direito de
autodeterminação, o que se opõe a heteronomia, a qual significa a observância de regras
impostas por terceiros. Assim, todas as vezes que a ação de uma pessoa for determinada por
coerção externa, haverá uma conduta não autônoma.588

A autonomia é a habilidade de tomar decisões racionais. A capacidade é, na


maior parte das vezes, traduzida como competência, entendida como a detenção de poderes
legais. Na verdade, a partir de certo grau de capacidade mínima para a realização de
determinado trabalho, todos os detentores desse mínimo necessário seriam considerados
capazes. Não há que se falar em autonomia como direito, sem que haja capacidade de
autonomia.589

587
“Muito embora essas modificações culturais e tecnológicas tenham, de fato, relativizado as concepções
individuais de saúde e de bem-estar, o reconhecimento da autonomia ultrapassa essa dimensão. Mesmo que fosse
possível para o médico determinar com segurança o real conteúdo desses valores sob a perspectiva do sujeito a
ser tratado, ‘ainda assim não se pode negar [ao paciente] o direito de hierarquizar seus valores de tal maneira que
saúde e bem-estar não estejam em primeiro plano. Não se trata, portanto, de uma relativização do conteúdo
desses valores, mas unicamente do reconhecimento do direito de nivelá-los de acordo com suas percepções
individuais ou, em outras palavras, do direito de hierarquizá-los ‘segundo seus próprios critérios’. Assim, uma
testemunha de Jeová que recusa uma transfusão de sangue tem consciência das consequências da ausência de
tratamento para sua saúde, mas, mesmo reconhecendo esse valor, procede a uma poderação feita pelo paciente há
de ser respeitada pelo médico. Com isso, na ética da autonomia, o paciente se emancipa do jugo médico, torna-
se sujeito e deixa de ser objeto da intervenção médica. Ao paciente incumbe, enfim, a decisão acerca dos
tratamentos a que deseja ou não ser submetido.” (SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal
da Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p. 55).
588
“Numa primeira aproximação, a ideia fundamental do conceito de autonomia pode ser depreendida da própria
etimologia do termo: enquanto junção das duas palavras de origem grega autos (‘si mesmo’) e nomos (‘norma,
lei’), autonomia significa determinação das suas próprias regras e, assim, é característica do indivíduo que traça
e segue seus próprios planos e concretiza a sua vida a partir dos seus próprios ideais. No plano jurídico, a
autonomia é concretizada, em especial, a partir do direito de autodeterminação, de autogoverno, de
independência. A autonomia se opõe justamente à heteronomia, que, por sua vez, significa a observância de
regras impostas por terceiros. Destarte, toda vez que o sujeito for determinado em suas ações por coerções ou
controles que lhe são externos, haverá uma conduta não-autônoma ou heterônoma, ou seja, determinada de fora
para dentro.” (SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo:
Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p. 56).
589
“Enquanto capacidade, a autonomia é compreendida como a habilidade de tomar decisões racionais. Com
base nessa concepção, entende-se, por exemplo, que adultos e pessoas que dispõem das ‘adequadas faculdades
mentais’ seriam efetivamente capazes de exercer a autonomia e, portanto, competentes para governar a si
próprios. Crianças, pessoas portadoras de deficiência mental, comatosos etc., por sua vez, são geralmente
excluídos desta concepção. A capacidade, no entanto, é usualmente traduzida como competência, compreendida
como a detenção de poderes legais. Feinberg esclarece, contudo, que esta compreensão de competência exprime

266
A autonomia tem como principal consequência, para a bioética e para o direito,
o reconhecimento do direito à autodeterminação do paciente sobre o próprio corpo e mente. A
autonomia, sendo o ponto principal da personalidade do indivíduo, garante a ele o direito de
viver, segundo seu próprio ponto de vista, uma vida boa. Sendo assim, a autonomia não é uma
característica do indivíduo, mas um direito que lhe é concedido, qual seja, o de controlar as
questões que dizem respeito à sua vida privada. Assim, o respeito à autonomia depende da
liberdade de decisão do paciente e não de seu conteúdo.590

De acordo com a bioética, considera-se autonomia o direito de tomar as


próprias decisões sobre intervenções médicas. Com ela, o indivíduo tem o domínio ou o
direito soberano sobre seu corpo. Desse modo, somente o paciente possui o condão de tomar
decisões e de determinar o que pode ou não pode ser feito com o seu corpo. A autonomia do
paciente engloba o direito que ele tem de não ser submetido, contra a sua vontade e seu
consentimento, a tratamentos médicos. Além disso, abrange o direito de escolher os
tratamentos aos quais quer se submeter, independentemente da indicação médica.591

O consentimento, dessa forma, é imprescindível e, também suficiente para que


a intervenção médica seja legitimada. Para o paciente, a autonomia não é vista como um dever
de tomar decisões, mas tão somente como uma prerrogativa, que é a faculdade de
autodeterminação. Além disso, tem o paciente o direito de delegar a competência de decisão

uma ideia diferente, no sentido de tudo-ou-nada, ou seja, o indivíduo é competente ou não é; não são
discriminados, em regra, os distintos graus de competência.” (SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e
Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p.
58/59).
590
“A partir desses apontamentos, podemos concluir que o respeito à autonomia possui como principal
consequência, para a bioética e para o direito, o reconhecimento do direito à autodeterminação do paciente
sobre o próprio corpo e mente. Em termos gerais, a autonomia, enquanto cerne da personalidade do indivíduo,
garante a ele o ‘direito de viver segundo a própria concepção de uma vida boa’, assim, respeitá-la significa
reconhecer, na esfera nuclear da vida privada, limites dentro dos quais somente o próprio indivíduo poderá tomar
decisões, sem a interferência de terceiros. Nessa acepção, a autonomia não é característica que qualifica o
sujeito, mas, sim, o direito que lhe é concedido: o de controlar, ele mesmo, certas questões que lhe são privadas.
Como privado, referimo-nos aqui a uma dimensão política – e não ética – da autonomia, o que significa que o
respeito a ela depende apenas da liberdade da decisão do paciente e não do seu conteúdo.” (SIQUEIRA, Flávia.
Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção Direito
Penal e Criminologia, p. 71/72).
591
“Para a bioética, a autonomia é traduzida como o direito de tomar suas próprias decisões sobre intervenções
médicas. Ela confere ao indivíduo o domínio ou o direito soberano sobre o território do próprio corpo, o que
implica dizer, a princípio, que somente o paciente possui o condão de tomar decisões e determinar o que pode ou
não ser feito com o seu corpo. Autonomia do paciente abrange, por um lado, o direito de não ser submetido,
contra a sua vontade ou sem o seu consentimento, a tratamentos médicos, e, por outro lado, o direito de escolher
os tratamentos aos quais deseja se submeter, independentemente da indicação médica daquela determinada
intervenção.” (SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo:
Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p. 72).

267
para o próprio médico, bem como para sua família, especialmente nos casos em que crê que
as informações passadas lhe prejudicam mais do que beneficiam.592

O direito à autonomia impõe a terceiros o dever de respeitá-la. Esse dever


engloba a proibição de interferir nas questões que dizem respeito à vida privada. No âmbito
da medicina, o respeito à autonomia gera para o médico dois deveres, quais sejam: o de não
impedir o exercício da vontade do paciente e o de não interferir em seu corpo sem antes
informá-lo dos riscos e consequências da intervenção e, desse modo, fornecer todo o material
necessário para a tomada de decisão.593

3.6 Decisões tomadas à revelia do paciente e falta de informação sobre os riscos

É possível que ocorram hipóteses nas quais haja necessidade de substituição da


vontade do paciente pela vontade do médico. No caso concreto, o paciente pode adotar um
plano de ação ou autorizar um determinado tratamento, mas, no meio de todo o processo,
substitui por outro que ainda não havia sido discutido em sua relação com o médico. Essa
divergência entre os dois planos de ação não se opõe à voluntariedade do consentimento, mas
tal fato é considerado ilícito.594

Pode ocorrer, ainda, que haja ausência ou insuficiência de informações


necessárias para que o paciente possa tomar uma decisão. O respeito às pessoas exige que se

592
“Assim-, o consentimento é não apenas imprescindível, como também, via de regra, suficiente para atribuir-se
legitimidade a uma intervenção médica. Sob a ótica do paciente, a autonomia não impõe um dever de tomar
decisões, mas apenas uma prerrogativa: a faculdade de autodeterminar-se, caso queira fazê-lo. Os pacientes
também possuem, assim, o direito de delegar a competência decisional para o próprio médico e/ou para a sua
família, em especial nos casos em que acreditam que o fluxo de informações lhe fará mais mal do que bem.”
(SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons,
2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p. 72).
593
“É claro que o reconhecimento da autonomia, enquanto direito oponível a terceiros, impõe também a estes a
obrigação de respeitá-la; esse direito abrange, naturalmente, a proibição da interferência alheia nas questões
pertencentes à esfera privada do indivíduo. No contexto da medicina, o respeito à autonomia gera concretamente
para o médico dois deveres negativos: o de impedir o exercício da vontade do paciente, e, principalmente, o de
não interferir na sua esfera corporal sem antes informá-lo acerca dos riscos e consequências da intervenção e,
assim, fornecer todo o substrato necessário para tornar possível a tomada de uma decisão autônoma.”
(SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons,
2019. Coleção Direito Penal e Criminologia, p. 72).
594
“Com base na análise dos casos concretos, foi possível identificar pelo menos três classes de interferências
concretas sobre a autonomia, duas delas são objeto de reflexão desse capítulo, enquanto a terceira será trabalhada
no próximo. A primeira classe de casos diz respeito à substituição do processo de deliberação do paciente pelo
médico. O paciente adota um plano de ação, autoriza um determinado procedimento, e, no seu transcurso, é
substituído por outro que não havia sido discutido inicialmente na relação. A divergência entre os planos de ação
nesses casos não é diametralmente oposta à voluntariedade do consentimento, mas tal fato não retira a ilicitude
da ação praticada.” (Dalmir Lopes. Consentimento informado na relação médico-paciente. Belo Horizonte:
Editora D’Placido, 2018, p. 283).

268
obtenha o consentimento antes de um procedimento médico ser realizado, mas a deficiência à
revelação da informação dá origem a um defeito no ato do consentimento, o que gera ausência
de autonomia.595

Não há que se falar em consentimento válido sem que haja uma divulgação
adequada dos fatos, dos prognósticos e das recomendações sobre a saúde do paciente. Nas
decisões que são tomadas à revelia do paciente, é necessário um exame cuidadoso sobre a
divergência entre o plano de ação do paciente e o ato médico do profissional de saúde. Assim,
há uma semelhança entre essa situação e as decisões tomadas contra a vontade expressa do
paciente. Nas duas situações, existe uma autorização do paciente para a prática do ato a ser
realizado ou que se pretende realizar.596

Também não se pode confundir as decisões tomadas contra a vontade do


paciente e as decisões tomadas à sua revelia, uma vez que, naquelas existe um desvio
intencional e essencial entre o plano de ação e a ação realizada, de forma que o paciente
deseja uma determinada ação médica, mas outra é realizada; enquanto que, na última, o
desvio de voluntariedade existe como uma intercorrência, a qual representa a melhor opção
terapêutica, conforme o julgamento do profissional de saúde, mas não a partir do julgamento
do paciente.597

As ações dos profissionais de saúde, que são tomadas à revelia do paciente


estão sempre associadas a situações emergenciais. Assim, uma vez configuradas, autorizam o
médico a agir em prejuízo da autonomia do paciente. De outro lado, não havendo emergência

595
“A segunda classe de casos versa sobre o problema mais comumente verificado na prática judicial: o da
ausência ou da insuficiência de informações necessárias para que o paciente possa tomar uma decisão autônoma.
Como sustenta John Harris, se o respeito às pessoas exige que se obtenha o consentimento (autônomo) antes de
um tratamento ou procedimento, uma deficiência quanto à relação da informação implica defeito no ato de
consentir e ausência de autonomia.” (JUNIOR, Dalmir Lopes. Consentimento informado na relação médico-
paciente. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2018, p. 283).
596
“Nas decisões tomadas à revelia do paciente se faz necessário um exame cuidadoso acerca da potencial
divergência entre o plano de ação traçado pelo paciente e o ato médico levado a cabo pelo profissional de saúde.
Nesse sentido existe uma certa semelhança entre essa situação e as decisões tomadas contra a vontade expressa
do paciente, sobretudo porque ambas carecem de uma autorização do paciente para a prática do ato realizado ou
que se visa realizar.” (JUNIOR, Dalmir Lopes. Consentimento informado na relação médico-paciente. Belo
Horizonte: Editora D’Placido, 2018, p. 284).
597
“No entanto, como se sustentou no capítulo anterior, as decisões tomadas contra a vontade do paciente
diferenciam-se das decisões tomadas à revelia porque naquelas há um desvio intencional e essencial entre o
plano de ação e a ação realizada, de tal modo que o paciente deseja uma ação médica X e se realiza Y, enquanto
nestas, o desvio da voluntariedade [Y] aparece como uma intercorrência, que representa a melhor opção
terapêutica de acordo com o julgamento do profissional de saúde, mas não necessariamente a partir do
julgamento do paciente.” (JUNIOR, Dalmir Lopes. Consentimento informado na relação médico-paciente. Belo
Horizonte: Editora D’Placido, 2018, p. 284).

269
no caso, a decisão tomada pelo médico é ilícita e violadora do consentimento, uma vez que os
casos emergenciais são a única hipótese que torna legítima essa situação.598

Nas hipóteses de decisões tomadas à revelia do paciente, mister se faz verificar


se o paciente teve acesso à informação acerca dos riscos que adviriam daquela opção. Caso a
ação por ele escolhida ocasione um risco ponderável, deve o paciente estar ciente dele. O
respeito ao consentimento determina que o médico deve alertar o paciente sobre os riscos
ponderáveis e potenciais, não somente sobre o ato, mas, também, sobre intercorrências que
podem oportunizar um tratamento alternativo.599

Em seguida, deve-se verificar se a ação do profissional de saúde representa a


melhor opção para o paciente, o que dá ensejo à verificação entre a voluntariedade e a ação
praticada pelo médico. Finalmente, cabe analisar se o consentimento poderia ter sido obtido
em outro momento.600

3.7 A conduta dos profissionais de saúde e o Código de Ética na assistência


obstétrica

O exercício da Medicina é respeitar o Código de Ética Médica (CEM). Assim,


a harmonização entre a ética e a ciência, no momento do parto, que pode ser realizado por um
médico, obstetra ou não, passa pelo conhecimento e pela aplicação das normas constantes do
CEM. No capítulo referente aos Princípios Fundamentais, fica claro que o atendimento à
paciente é prioridade absoluta da Medicina e do médico. Porém, mesmo voltado

598
“Por isso que as ações médicas tomadas à revelia do paciente estão sempre associadas a pretensas situações
emergenciais que, uma vez configuradas, autorizam o profissional a agir em detrimento da autonomia. Por outro
lado, ao não se configurar uma situação emergencial no caso concreto, a decisão tomada se torna ilícita e
violadora do consentimento informado. Eis que as situações de emergência seriam a única via para legitimar-se
uma decisão dessa natureza.” (JUNIOR, Dalmir Lopes. Consentimento informado na relação médico-paciente.
Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2018, p. 284-285).
599
“Nas avaliações acerca das decisões tomadas à revelia, é preciso verificar se o paciente teve acesso à
informação sobre os riscos que aquela opção terapêutica comportava; se a ação empreendida implicava um risco
ponderável, o paciente precisava estar ciente dele. O respeito ao consentimento informado impõe que o médico
alerte o paciente sobre riscos ponderáveis e potenciais, não apenas sobre o ato em si, mas também sobre as
eventuais intercorrências (habituais) que podem ensejar um procedimento alternativo.” (JUNIOR, Dalmir Lopes.
Consentimento informado na relação médico-paciente. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2018, p. 286).
600
“Em seguida, caberia verificar se, de fato, a ação médica representa os melhores interesses do paciente, o
que implicaria a já citada avaliação entre a voluntariedade e a ação médica praticada. Por último, como
decorrência do primeiro parâmetro, cabe verificar se o consentimento poderia ser obtido em outro momento
temporal.” (JUNIOR, Dalmir Lopes. Consentimento informado na relação médico-paciente. Belo Horizonte:
Editora D’Placido, 2018, p. 286).

270
prioritariamente ao atendimento da paciente, tem o médico autonomia e liberdade no seu
mister.601

Entretanto, a autonomia do médico não é ilimitada e os próprios limites estão


no texto do Princípio Fundamental V, uma vez que o médico não pode recusar atendimento
quando seja o único, independente de ser ou não obstetra. Do mesmo modo, se for o único
obstetra no local ou no momento, ele não pode deixar as pacientes aos cuidados de outros
médicos não treinados para as situações obstétricas. Outrossim, o parto é uma urgência
médica, podendo se transformar numa emergência quando vier a ocorrer um risco de morte da
mãe ou da criança. O não atendimento de urgência ou de emergência caracteriza crime de
omissão de socorro e infração grave ao CEM.602

Alguns atos são exclusivos de obstetras, como o diagnóstico e o tratamento das


complicações da gestação, do parto e do puerpério e os procedimentos cirúrgicos do parto. A
gestação, considerada em si mesma, é uma condição fisiológica da mulher e não um estado de
doença. Assim, durante o parto, que pode durar poucos minutos ou várias horas, as ações não
são todas obrigatoriamente realizadas por médicos.603

601
“Exercer a medicina em qualquer circunstância é respeitar o Código de Ética Médica (CEM), portanto a
harmonização entre a ciência e a ética, no momento do parto realizado por um médico, obstetra ou não, passa
pelo conhecimento e aplicação das normas emanadas do CEM. Dentre os diversos artigos do CEM, alguns
merecem destaque na questão em tela, a começar pelo capítulo dos Princípios Fundamentais. Já, nos dois
primeiros princípios fundamentais, fica claro que o atendimento à paciente é prioridade absoluta da Medicina e
do médico, como pode ser visto em seus textos:
PF I – A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem
discriminação de nenhuma natureza.
PF II – O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o
máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.” (TIMI, Jorge Rufino Ribas. Parto: como
harmonizar a Ciência e Ética? Arquivos do Conselho Regional de Medicina do Paraná. 2016; 33(129)).
Disponível em: http://crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/741/724. Acesso em
30/mar/2018.
602
“Entretanto a autonomia do médico não é ilimitada e os próprios limites estão expressos no texto do princípio
fundamental V, pois o médico não pode recusar atendimento à paciente quando seja o único médico,
independentemente de ser ou não obstetra. Da mesma forma que, ser for o único obstetra no local ou no
momento, este não pode deixar a paciente aos cuidados de outro médico não treinado para as situações
obstétricas. Por fim, parto é uma urgência médica, podendo ser também uma emergência quando vier a ocorrer o
risco de morte da mãe ou da criança, por conta das definições médicas e legais. O não atendimento de urgência e
emergência caracteriza crime de omissão de socorro e também esta omissão é infração grave ao CEM.” (TIMI,
Jorge Rufino Ribas. Parto: como harmonizar a Ciência e Ética? Arquivos do Conselho Regional de Medicina
do Paraná. [Internet]. 2016; 33(129)). Disponível em:
http://crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/741/724. Acesso em 30/mar/2018.
603
“São atos exclusivos de obstetras o diagnóstico e o tratamento das complicações da gestação, do parto e do
puerpério, bem como os procedimentos cirúrgicos do parto. A gestação em si é uma condição fisiológica da
mulher e não um estado de doença. Portanto, no período expulsivo do parto, que pode durar de poucos minutos
até várias horas, nem todas as ações são obrigatoriamente realizadas por médicos. Por exemplo, o
acompanhamento da dinâmica uterina pode ser realizado por outro profissional da saúde preferencialmente
treinado para tanto. As chamadas ‘Casas de Parto’, instituídas em 1999 pela Portaria do Ministério da Saúde n.º

271
A responsabilidade do médico incide não somente sobre os seus atos, mas
também, pelos atos que tenha indicado para que outros profissionais realizem. O pedido do
paciente para o ato ou seu consentimento válido não se caracterizam como excludentes da
responsabilidade profissional do médico. Essa responsabilidade será sempre subjetiva, isto é,
há necessidade de se comprovar a culpa, por negligência, imprudência ou imperícia por parte
do médico.604

Como o parto é um momento impreciso, todas as maternidades são obrigadas a


manter obstetra de plantão, sendo que este não pode se ausentar, conforme consta de vedação
expressa prevista no artigo 9º do Código de Ética Médica, não podendo o médico deixar de
comparecer a plantão no horário preestabelecido ou abandoná-lo sem estar presente um
substituto, salvo caso de impedimento.605 A ausência do médico obstetra plantonista leva à
responsabilidade da direção técnica de arrumar um substituto, mesmo que haja justo
impedimento, como doença aguda, óbito na família do médico durante o plantão, dentre
outros.606

Em maternidades, a prática de atos ilícitos de modo doloso, não é frequente. O


médico obstetra deve sempre estar atento se a instituição médica está dentro das normas de
Vigilância Sanitária. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e seus órgãos

888/99 do Ministério da Saúde, não contam com médicos no seu corpo de profissionais.” (TIMI, Jorge Rufino
Ribas. Parto: como harmonizar a Ciência e Ética? Arquivos do Conselho Regional de Medicina do Paraná.
2016; 33(129)). Disponível em:
http://crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/741/724. Acesso em 30/mar/2018.
604
“A responsabilidade do médico recai não apenas sobre atos que tenha realizado, também, o médico é
responsável por atos que tenha indicado para que outros profissionais realizem. A solicitação da paciente para o
ato ou consentimento válido da paciente ou de seu representante legal para a realização do mesmo não se
caracterizam como excludentes da responsabilidade profissional do médico. Esta responsabilidade será sempre
subjetiva, ou seja, necessitando da comprovação da culpa, pela existência de negligência, imprudência ou
imperícia por parte do médico.” (TIMI, Jorge Rufino Ribas. Parto: como harmonizar a Ciência e Ética?
Arquivos do Conselho Regional de Medicina do Paraná. 2016; 33(129)). Disponível em:
http://crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/741/724. Acesso em 30/mar/2018.
605
Artigo 9º do CEM – “É vedado ao médico: Deixar de comparecer a plantão em horário preestabelecido ou
abandoná-lo sem a presença de substituto, salvo por justo impedimento. Parágrafo único. Na ausência de médico
plantonista substituto, a direção técnica do estabelecimento de saúde deve providenciar a substituição.”
606
“Por ser o momento do parto um momento impreciso, todas as maternidades são obrigadas a manter obstetra
de plantão, sendo que este não pode se ausentar. Isto está previsto no artigo 9º do CEM: Art. 9º. É vedado ao
médico: Deixar de comparecer a plantão em horário preestabelecido ou abandoná-lo sem a presença de
substituto, salvo por justo impedimento. Parágrafo único. Na ausência de médico plantonista substituto, a direção
técnica do estabelecimento de saúde deve providenciar a substituição.
Qualquer ausência de médico obstetra plantonista acarreta na responsabilidade da direção técnica em arrumar
substituto, mesmo nos casos de justo impedimento. Como justo impedimento pode-se citar doença aguda do
médico plantonista, óbito na família do médico durante o turno de plantão, entre outros casos similares.” (TIMI,
Jorge Rufino Ribas. Parto: como harmonizar a Ciência e Ética? Arquivos do Conselho Regional de Medicina
do Paraná. 2016; 33(129)). Disponível em:
http://crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/741/724. Acesso em 30/mar/2018.

272
correspondentes em nível estadual e municipal determinam os requisitos para o
funcionamento de uma maternidade. Assim, não é possível a realização de parto no quarto,
sem a presença de obstetra e neonatologista, mesmo que a paciente esteja acompanhada por
uma doula e deseje ficar com seu recém-nascido isolada na primeira hora de vida.607

O médico obstetra deve cumprir as normas emanadas dos Conselhos Federal e


Regional de Medicina, que normatizam o exercício da Medicina no Brasil por meio de
resoluções, pareceres e recomendações. Com o uso de resoluções, o Conselho Federal de
Medicina pode determinar limitações para o uso das cesarianas no Brasil, como aquela
noticiada pelo Conselho Federal de converter em infração ética a cesariana eletiva abaixo da
38ª semana de gestação.608

Nos termos do que consta do Código de Ética Médica, é proibido ao médico


deixar de obter o consentimento da paciente ou de seu representante legal, depois que esta
obtiver esclarecimento sobre o procedimento a ser realizado, salvo hipótese de risco iminente
de morte.609 Tem-se como única exceção, para obtenção prévia do consentimento da paciente
ou de seu representante legal, o risco iminente de morte, da mãe ou do bebê.610

607
“Não é frequente a prática de atos ilícitos em maternidades de modo doloso. Entretanto, o obstetra deve estar
atento se a instituição médica está enquadrada nas normas da Vigilância Sanitária. A Agência Nacional de
Vigilância Sanitária e seus órgãos correspondentes a nível estadual e municipal apresentam uma série de
requisitos para o funcionamento de uma maternidade. Por isso é impossível para o estabelecimento médico a
realização de parto no quarto, sem a presença de obstetra e neonatologista, mesmo que a paciente, por sua
vontade, esteja acompanhada por uma doula e deseje ficar com seu recém-nato isolada na primeira hora de vida.”
(TIMI, Jorge Rufino Ribas. Parto: como harmonizar a Ciência e Ética? Arquivos do Conselho Regional de
Medicina do Paraná. 2016; 33(129)). Disponível em:
http://crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/741/724. Acesso em 30/mar/2018.
608
“O médico obstetra deve cumprir as normas emanadas dos Conselhos. Os Conselhos normatizam o exercício
da Medicina no Brasil através de Resoluções, Pareceres e Recomendações. As Resoluções são impositivas aos
médicos e com o uso destas o Conselho Federal de Medicina pode determinar limitações para o uso das
cesarianas no Brasil, como a noticiada pelo Conselho Federal de converter em infração ética a cesariana eletiva
abaixo da 38ª semana de gestação.” (TIMI, Jorge Rufino Ribas. Parto: como harmonizar a Ciência e Ética?
Arquivos do Conselho Regional de Medicina do Paraná. 2016; 33(129)). Disponível em:
http://crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/741/724. Acesso em 30/mar/2018.
609
Artigo 22 do CEM: “É vedado ao médico: Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante
legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.”
610
“Independente da via de parto, o obstetra tem a obrigação de obter o consentimento livre e esclarecido da
paciente e na impossibilidade legal desta, de seu representante legal, conforme preconiza o artigo 22 do CEM:
Art. 22. É vedado ao médico: Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após
esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. A única exceção
para a obtenção prévia dão consentimento da paciente ou de seu representante legal é o risco iminente de morte,
da mãe ou do concepto. O risco de morte do binômio mãe-filho pode acontecer de modo agudo e não previsto
durante o trabalho de parto, levando o obstetra a obrigação de realizar os procedimentos necessários para tentar
preservar a vida da mãe ou do concepto ou de ambos. (TIMI, Jorge Rufino Ribas. Parto: como harmonizar a
Ciência e Ética? Arquivos do Conselho Regional de Medicina do Paraná. 2016; 33(129). Disponível em:
http://crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/741/724. Acesso em 30/mar/2018.

273
O artigo 31 do CEM determina o direito da paciente de escolher se quer um
parto domiciliar ou hospitalar e, neste último caso, se o parto será por via alta ou baixa.
Porém, da mesma forma que a autonomia e a liberdade do médico sofrem limitações, também
a decisão da paciente tem que ser avaliada de forma crítica. Essa avaliação não depende do
grau de conhecimento da paciente, mas do correto esclarecimento dos riscos das escolhas
realizadas. Deve a decisão da paciente ser respeitada, mas a necessidade de esclarecimento
dos riscos inerentes a estas escolhas é dever do médico, que deve estar certo do entendimento
por parte da paciente, mesmo que esta detenha aparentemente conhecimento.611

O médico, ao encerrar seu plantão, tem a obrigação de passar, detalhadamente,


o quadro clínico dos pacientes, bem como o quadro do trabalho de parto de cada parturiente
que estava atendendo, antes de concluir seu plantão, conforme o que se encontra disposto no
Código de Ética Médica.612 613

Alguns princípios bioéticos norteiam a atuação médica, os quais serão


estudados adiante, como a beneficência, a não-maleficência, a justiça e a autonomia, devendo
ser levados em conta no momento em que o profissional se encontra em situações nas quais a
ética e a ciência estão em planos opostos. Relativamente ao parto, cabe destacar o princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana, além dos princípios bioéticos.

611
“No mesmo sentido, o artigo 31 CEM mostra a necessidade de o médico respeitar as decisões da paciente
sobre a execução de práticas terapêuticas: Art. 31. É vedado ao médico: Desrespeitar o direito do paciente ou de
seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em
caso de iminente risco de morte.
Também repete o artigo 22 na exceção da conduta impositiva da ação do médico nos casos de risco de morte.
O artigo 31 mostra o direito da paciente em escolher se quer um parto domiciliar ou hospitalar. Se optar pelo
parto hospitalar, se quer por via alta ou por via baixa. Entretanto se a autonomia e a liberdade do médico sofrem
limitações, a autonomia e a liberdade de decisão da paciente também têm que ser avaliada de forma crítica. Esta
avaliação independe do grau de conhecimento da paciente e de seu companheiro, mas, sim, do correto
esclarecimento dos riscos inerentes das escolhas por eles realizados.” (TIMI, Jorge Rufino Ribas. Parto: como
harmonizar a Ciência e Ética? Arquivos do Conselho Regional de Medicina do Paraná. 2016; 33(129).
Disponível em: http://crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/741/724. Acesso em
30/mar/2018.
612
“O dever do médico de informar ao seu substituto não é apenas na situação do parágrafo primeiro do artigo
36. Por ser uma atividade de turnos de plantão, o médico, ao encerrar seu plantão, tem a obrigação de passar,
detalhadamente, o quadro do trabalho de parto de cada parturiente que estava atendendo, antes de concluir seu
plantão.” (TIMI, Jorge Rufino Ribas. Parto: como harmonizar a Ciência e Ética? Arquivos do Conselho
Regional de Medicina do Paraná. 2016; 33(129). Disponível em:
http://crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/741/724. Acesso em 30/mar/2018.
613
Art. 55 do CEM: “Deixar de informar ao substituto o quadro clínico dos pacientes sob sua responsabilidade
ao ser substituído ao fim do seu turno de trabalho.”

274
Especificamente com relação à obstetrícia, existem dilemas éticos imprevistos em cada
avanço do conhecimento médico.614

A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da ordem constitucional.


Após a Segunda Guerra Mundial, houve um aumento no seu reconhecimento, como reação ao
nazismo e ao fascismo. Constitui-se, de um lado, como um direito de proteção individual, em
relação ao Estado e aos demais indivíduos. De outro lado, caracteriza-se como um dever de
tratamento igualitário das demais pessoas.615

Pode-se definir a bioética como a ética aplicada à vida, com relação à Biologia,
ao Direito, à Ética e à Medicina. Seu estudo busca discutir limites e parâmetros éticos e
morais, mormente no que tange aos avanços das pesquisas científicas e das relações entre
profissionais de saúde e pacientes. Existem quatro princípios bioéticos fundamentais já
citados anteriormente, quais sejam: beneficência, não-maleficência, justiça e autonomia.616

614
“Tanto no direito constitucional quanto na bioética alguns princípios devem nortear a atuação médica nas
relações profissionais. Princípios bioéticos como beneficência, não-maleficência, justiça e autonomia devem ser
levados em consideração quando o profissional se depara com situações onde a ética e a ciência se encontram em
planos opostos. No que diz respeito à atenção ao parto, merecem destaque o princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana, bem como os princípios bioéticos. A obstetrícia enfrenta dilemas éticos
imprevistos em cada avanço do conhecimento médico, por esse motivo o estudo desses princípios é de extrema
relevância.” (CAVALCANTE, Lívia de Araújo. O parto no Brasil: pressupostos para uma assistência
humanizada à gestante e ao nascituro. Arquivos do Conselho Regional de Medicina do Paraná. 2016; 33(131).
Disponível em: http://www.crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/761/745.
Acesso em 30/mar/2019.
615
“A dignidade da pessoa humana apresenta-se como um dos fundamentos da ordem constitucional. Seu
reconhecimento e proteção tiveram considerável aumento após a Segunda Guerra Mundial, como uma forma de
reação às práticas ocorridas durante o nazismo e o fascismo. De acordo com Barroso: A dignidade humana tem
seu berço secular na filosofia. Constitui, assim, em primeiro lugar, um valor, que é conceito axiológico, ligado à
ideia de bom, justo, virtuoso. Nessa condição, ela se situa ao lado de outros valores centrais para o Direito, como
justiça, segurança e solidariedade. É nesse plano ético que a dignidade se torna, para muitos autores, a
justificação moral dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. (BARROSO, 2010, p. 9).”
(CAVALCANTE, Lívia de Araújo. O parto no Brasil: pressupostos para uma assistência humanizada à
gestante e ao nascituro. Arquivos do Conselho Regional de Medicina do Paraná. 2016; 33(131). Disponível em:
http://www.crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/761/745. Acesso em
30/mar/2019.
616
“A bioética pode ser definida como a ética aplicada à vida, se relacionando de forma interdisciplinar com a
Biologia, o Direito, a Ética e a Medicina. O estudo da bioética busca discutir limites e parâmetros éticos e morais
principalmente no que diz respeito aos avanços das pesquisas científicas e das relações entre profissionais de
saúde e pacientes. Fernando Freitas a define como: A bioética é uma reflexão, pois exige que sejam discutidos os
diferentes aspectos envolvidos no problema apresentado, é um tempo dedicado a pensar sobre o problema, em
suas diferentes formas de entendimento e enfrentamento. É uma reflexão qualificada, pois deve ser
compartilhada, complexa e interdisciplinar. Desse modo, é reflexão compartilhada, uma vez que pressupõe a
existência do diálogo, só ocorrendo quando existe troca de saberes, experiências e opiniões; complexa por não se
basear apenas em relações lineares entre possíveis causas e seus efeitos, ao admitir que uma mesma realidade
permite diferentes abordagens; e interdisciplinar por reconhecer a necessidade de utilizar diferentes
competências específicas, com interfaces que permitem interações entre conhecimentos aparentemente não
relacionados. (FREITAS et al. 2011, p. 90). O modelo de análise bioética utilizado na maioria dos países,
inclusive no Brasil é o Principialista, introduzido por Beauchamp e Childress, em 1989. Esses autores propõem

275
O primeiro deles, o da beneficência, preceitua que o médico tem por obrigação
fazer o bem ao paciente, minimizando o prejuízo. O segundo princípio dispõe que a ação do
médico sempre deve causar o menor prejuízo ou agravo à saúde do paciente, tendo por fim a
redução dos efeitos indesejáveis das ações diagnósticas e terapêuticas na pessoa.617

De acordo com o princípio da autonomia, as pessoas capacitadas podem


deliberar sobre suas escolhas pessoais, devendo ser respeitadas pela sua capacidade de
decisão, tendo o direito de decidir sobre seu corpo e sobre as questões relativas à sua vida. A
consequência disso é que, qualquer ato médico deve ser autorizado pelo paciente. Segundo a
Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo), os profissionais de saúde devem
estar atentos à vulnerabilidade feminina, respeitando suas escolhas e opiniões.618

Sobre o referido princípio, destaca-se que este se aplica também aos


profissionais de saúde, pois o Código de Ética Médica, em seu Capítulo I, preceitua que o
médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que

quatro princípios bioéticos fundamentais: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça.”


(CAVALCANTE, Lívia de Araújo. O parto no Brasil: pressupostos para uma assistência humanizada à
gestante e ao nascituro. Arquivos do Conselho Regional de Medicina do Paraná. 2016; 33(131). Disponível em:
http://www.crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/761/745. Acesso em
30/mar/2019.
617
“O princípio da beneficência refere-se à obrigação ética de fazer o bem ao paciente, ou seja, de maximizar o
benefício e minimizar o prejuízo. Assim, os profissionais de saúde devem ter a maior convicção, segurança e
informação técnicas possíveis para assegurar que a sua atuação é a mais adequada no caso concreto. De acordo
com Krikor Boyaciyan, como o princípio da beneficência proíbe infligir dano deliberado, esse fato é destacado
pelo princípio da não-maleficência. Esse, estabelece que a ação do médico sempre deve causar o menor prejuízo
ou agravos à saúde do paciente (ação que não faz o mal). É universalmente consagrado através do aforismo
hipocrático primum non nocere (primeiro não prejudicar), cuja finalidade é reduzir os efeitos adversos ou
indesejáveis das ações diagnósticas e terapêuticas no ser humano.” (CAVALCANTE, Lívia de Araújo. O parto
no Brasil: pressupostos para uma assistência humanizada à gestante e ao nascituro. Arquivos do Conselho
Regional de Medicina do Paraná. 2016; 33(131). Disponível em:
http://www.crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/761/745. Acesso em
30/mar/2019.
618
“Autonomia é a capacidade de uma pessoa para decidir, realizar ou submeter-se ao que ela julga ser o melhor
para si mesma. Immanuel Kant define autonomia como sendo a independência de vontade de todo o desejo,
sendo autônoma a vontade do sujeito quando regulada pela razão. Nessa linha de pensamento, o sujeito é
autônomo quando seu desejo, sua vontade, está orientada pela razão, independente da influência de outros
(KANT, p. 120). Para Krikor Boyaciyan, o princípio da autonomia requer que os indivíduos capacitados
deliberem sobre suas escolhas pessoais e devam ser tratados com respeito pela sua capacidade de decisão. As
pessoas têm o direito de decidir sobre as questões relacionadas ao seu corpo e à sua vida. Assim, quaisquer atos
médicos devem ser autorizados pelo paciente. A Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo),
por intermédio do seu Comitê para Assuntos Éticos da Reprodução Humana e Saúde da Mulher, divulga, desde
1994, em um dos seus marcos de referência ética para os cuidados ginecológicos e obstétricos: o princípio da
autonomia enfatiza o importante papel que a mulher deve adotar na tomada de decisões com respeito aos
cuidados de sua saúde. Os médicos deverão observar a vulnerabilidade feminina, solicitando expressamente sua
escolha e respeitando suas opiniões (Boyaciyan, p. 13).” (CAVALCANTE, Lívia de Araújo. O parto no Brasil:
pressupostos para uma assistência humanizada à gestante e ao nascituro. Arquivos do Conselho Regional de
Medicina do Paraná. 2016; 33(131). Disponível em:
http://www.crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/761/745. Acesso em
30/mar/2019.

276
contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de
ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa
trazer danos à saúde do paciente.619

Desse modo, o princípio da autonomia tem relevância para todos os


profissionais de saúde, no que se refere à autonomia do paciente, bem como quanto à sua
própria autonomia na recusa de fazer procedimentos contrários às suas crenças. Mas, na
hipótese de emergência ou urgência, os profissionais de saúde não poderão negar atendimento
com fundamento em tal princípio.620

Com relação às condutas de enfermagem, elas também podem afetar, de forma


direta, a vida dos clientes/pacientes, causando satisfação ou insatisfação. Para que não ocorra
um resultado desfavorável, o profissional deve ter sempre um diálogo que esclareça o fim da
assistência, dando liberdade de suas escolhas. Com relação à enfermagem obstétrica, essas
questões são mais evidentes, uma vez que, conforme a atitude do profissional, a mulher torna-
se vulnerável e submissa, deixando de exercer seus direitos de escolha sobre o tipo de
parto.621

Pelos danos causados aos pacientes, o profissional tem responsabilidade civil,


conforme o Código Civil (CC), a Constituição Federal (CF) e o Código de Defesa do
Consumidor (CDC), devendo a reparação do dano ser feita por meio de indenização dos
prejuízos causados pelo erro na assistência. Além da responsabilidade civil, o enfermeiro

619
“Capítulo I – Princípios Fundamentais. (...) VII – O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e
atuará sempre em seu benefício, mesmo depois da morte. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar
sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativas contra sua
dignidade e integridade.” (Código de Ética Médica – CEM, Capítulo I, inciso VII)
620
“Sobre o referido princípio, é importante ressaltar que os profissionais de saúde também estão por ele
amparados, uma vez que o Código de Ética Médica, em seu Capítulo I, estabelece que o médico exercerá sua
profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou
a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou
quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. (Código de Ética Médica, Capítulo I, inciso VII).”
(CAVALCANTE Lívia de Araújo. O parto no Brasil: pressupostos para uma assistência humanizada à gestante
e ao nascituro. Arquivos do Conselho Regional de Medicina do Paraná. 2016; 33(131). Disponível em:
http://www.crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/view/761/745. Acesso em
30/mar/2019.
621
“Estes conceitos são observados pelo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem, Lei n.º 7.498/86, que
regulamenta a atuação, estabelecendo direitos e competências das diferentes categorias existentes na
enfermagem, além das penalidades a serem impostas aos infratores dos preceitos éticos determinados. No
tocante às competências, convêm salientar que, ao enfermeiro obstetra, além do que compete ao enfermeiro
generalista, cabe prestar assistência à parturiente e ao parto normal, identificação de distocias obstétricas e
tomada de providências até a chegada do médico, assim como a realização de episiotomia e episiorrafia com
aplicação de anestesia local, quando necessária.” (WINCK, Daniela Ries; BRÜGGEMANN, Odaléa Maria.
Responsabilidade legal do enfermeiro em obstetrícia. Rev Bras Enferm. 2010; 63(3): 464-69). Disponível em:
http://oaji.net/articles/2015/672-1437680835.pdf. Acesso em 25/jun/2018.

277
poderá ser responsabilizado penalmente, como, por exemplo, pelo crime de lesão corporal,
previsto no artigo 129 do Código Penal, na falta de um tipo penal específico.622

Assim, o enfermeiro que praticar erro profissional pode ser responsabilizado,


nas esferas penal e civil, não se confundindo as duas responsabilidades. Na esfera penal, a
sanção imposta é em nome de toda a coletividade, uma vez que há uma agressão à paz social,
enquanto; na esfera civil, deve-se observar o prejuízo causado diretamente ao envolvido.623

Assim, devem as parturientes ter todos os esclarecimentos, tanto pelo médico


obstetra, quanto pelo enfermeiro a respeito das alternativas que elas têm quanto ao parto e às
práticas autorizadas e recomendadas pelo Ministério da Saúde e Organização Mundial da
Saúde. Isso quer significar uma atitude de respeito para com as mulheres, que, desse modo,
são tratadas com dignidade, autonomia e respeito.624

A responsabilidade civil do enfermeiro decorre do dano e consiste na obrigação


de responder pelos atos lesivos praticados. Essa responsabilidade se dá de forma pecuniária,
pelo pagamento de indenização, por dano material ou moral, desde que comprovada a conduta
(comissiva ou omissiva), o dano, o nexo causal e o resultado. Tanto o enfermeiro generalista,

622
“A aplicação de medidas que obriguem o profissional a reparar os resultados negativos, ou danos causados
aos pacientes é a responsabilidade civil. Atualmente, a responsabilidade civil do enfermeiro encontra-se regulada
pelo Código Civil, Constituição Federal e Código de Defesa do Consumidor (CDC) que obrigam a reparação
através de indenização, dos prejuízos causados pelo erro na assistência profissional. Além da responsabilização
civil, o enfermeiro poderá ser responsabilizado penalmente, diante de uma conduta prevista como contrária a lei
penal vigente. As condutas consideradas delitos constituem perigo de lesão a um bem jurídico-penal individual
ou coletivo e ainda, mais amplamente, um atentado a valor estabelecido como fundamental para a perenidade
humana e cultural de um grupo.” (WINCK, Daniela Ries; BRÜGGEMANN, Odaléa Maria. Responsabilidade
legal do enfermeiro em obstetrícia. Rev Bras Enferm. 2010; 63(3): 464-69). Disponível em:
http://oaji.net/articles/2015/672-1437680835.pdf. Acesso em 25/jun/2018.
623
“Nota-se, portanto, que o enfermeiro que cometer um erro profissional pode ser responsabilizado na esfera
civil e criminal, pela mesma situação. Porém, uma não se confunde com a outra, na responsabilidade penal, a
sanção é imposta em nome de toda a coletividade, devido à agressão a paz social, enquanto que na
responsabilidade civil, é observado o prejuízo causado diretamente ao envolvido.” (WINCK, Daniela Ries;
BRÜGGEMANN, Odaléa Maria. Responsabilidade legal do enfermeiro em obstetrícia. Rev Bras Enferm. 2010;
63(3): 464-69). Disponível em: http://oaji.net/articles/2015/672-1437680835.pdf. Acesso em 25/jun/2018.
624
“Cabe ao enfermeiro observar os direitos de seus assistidos, como condição indispensável para a atuação
profissional ética. Um dos direitos do cliente é o de ser informado sobre as possibilidades de escolha e os riscos
inerentes aos procedimentos e condutas, consentindo com as intervenções de enfermagem que venham a ser
feitas. Da mesma forma, o enfermeiro obstetra, deve informar à parturiente as alternativas de assistência ao parto
e práticas benéficas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde, como forma de respeito a seus valores e
vontade, primando pela manutenção da integridade moral da mulher.” (WINCK, Daniela Ries;
BRÜGGEMANN, Odaléa Maria. Responsabilidade legal do enfermeiro em obstetrícia. Rev Bras Enferm. 2010;
63(3): 464-69). Disponível em: http://oaji.net/articles/2015/672-1437680835.pdf. Acesso em 25/jun/2018.

278
quanto o obstetra, podem ser obrigados a indenizar danos materiais advindos da falta de zelo
na prática profissional.625

A responsabilidade do enfermeiro tem natureza contratual, sendo uma


obrigação de meio, ou seja, o compromisso de prestar um serviço com prudência e diligência
para atingir determinado resultado, sem a vinculação de efetivamente obtê-lo. Como ocorre
com outros profissionais de saúde, como os médicos, os enfermeiros que agem de forma
autônoma criam uma relação contratual com os pacientes, mesmo que não haja um contrato
escrito. No exercício de suas atividades, deve o enfermeiro empregar todos os meios possíveis
e que estejam à sua disposição para uma assistência adequada ao paciente, sem poder garantir
o resultado final.626

Não pode o enfermeiro obstetra garantir o resultado do processo de parto, mas


deve tomar todos os cuidados para evitar que a mulher e o bebê se exponham a riscos
desnecessários. Deve agir estritamente dentro do que dispõe a lei. Desse modo, o profissional
garante a sua obrigação, que é a assistência livre e resguardada de ações culposas, que podem
resultar em dano e, por consequência, em obrigação de indenizar.627

625
“A obrigação de restaurar, ressarcir ou reparar o prejuízo, advinda da responsabilidade civil, se dá de forma
pecuniária, através do pagamento de indenização seja o dano material ou moral, desde que constatada a
conjunção da conduta comissiva ou omissiva, o dano e o nexo causal, que é a relação de causa e efeito entre a
conduta do agente (enfermeiro) e o resultado da assistência. Dessa forma, tanto o enfermeiro generalista, quanto
o obstetra e demais especialidades, podem ser obrigados, por determinação judicial, a indenizar o cliente que
sofrer danos materiais, que são decorrentes da perda de uma função física, ou morais, resultantes da dor ou
sofrimento advindos da falta de zelo na prática profissional.” (WINCK, Daniela Ries; BRÜGGEMANN, Odaléa
Maria. Responsabilidade legal do enfermeiro em obstetrícia. Rev Bras Enferm. 2010; 63(3): 464-69). Disponível
em: http://oaji.net/articles/2015/672-1437680835.pdf Acesso em 25/jun/2018.
626
“A natureza da responsabilidade profissional do enfermeiro é contratual, ou seja, é estabelecido um contrato
entre este e o cliente que o procura, mesmo que tácito. Assim, é aplicado ao enfermeiro, assim como de outros
profissionais liberais, que se vinculam à prestação de um serviço, os princípios da obrigação de meio, isto é, o
compromisso de prestar um serviço com prudência e diligência para atingir um resultado, sem se vincular a obtê-
lo. A exemplo de outros profissionais da área da saúde, como médicos e odontólogos, aos enfermeiros, ao
prestarem a assistência, de forma autônoma ou institucionalizada, criam uma relação contratual, mesmo que não
tenha sido firmada de forma escrita. No desempenho de suas atividades, o enfermeiro deve empregar todos os
meios (materiais, equipamentos, conhecimento técnico-científico atualizado, entre outros) possíveis e
disponíveis para que a assistência prestada seja adequada às necessidades do cliente, porém não pode garantir o
resultado final da mesma.” (WINCK, Daniela Ries; BRÜGGEMANN, Odaléa Maria. Responsabilidade legal do
enfermeiro em obstetrícia. Rev Bras Enferm. 2010; 63(3): 464-69). Disponível em:
http://oaji.net/articles/2015/672-1437680835.pdf. Acesso em 25/jun/2018.
627
“O enfermeiro obstetra também não pode garantir o resultado final do processo de parturição, porém, pode
munir-se de cuidados e zelo, evitando expor à mulher e nascituro a riscos desnecessários ao exercer suas
atividades na assistência ao parto. Deve voltar constantemente sua atenção aos limites da competência, agindo
estritamente dentro do que a legislação lhe autoriza fazer. Procedendo desta forma, o profissional garante o que é
de sua obrigação, ou seja, assistência livre e resguardada de ações negligentes, imperitas ou imprudentes que
podem resultar em danos a gestante e nascituro.” (WINCK, Daniela Ries; BRÜGGEMANN, Odaléa Maria.
Responsabilidade legal do enfermeiro em obstetrícia. Rev Bras Enferm. 2010; 63(3): 464-69). Disponível em:
http://oaji.net/articles/2015/672-1437680835.pdf. Acesso em 25/jun/2018.

279
Apesar do enfermeiro ser considerado um profissional liberal, atua,
normalmente, na condição de empregado de serviços de saúde, com subordinação à
instituição na qual trabalha. Na enfermagem obstétrica, é comum a atuação de profissionais
sem vínculo institucional, com autonomia, prestando, muitas vezes, assistência domiciliar às
pacientes, ficando sujeitos a suportar, de forma individual, as consequências do dano que
causarem.628

O hospital, sendo uma empresa prestadora de serviços e na qualidade de


empregadora, também tem obrigação de reparação dos danos sofridos pelo paciente. Porém,
terá o hospital o direito de pleitear a descaracterização da denúncia, alegando inexistência de
erro, ou culpa exclusiva do profissional, entrando com ação regressiva da indenização já paga
ao cliente. Normalmente, a culpa do hospital é considerada objetiva, sem comprovação de
dolo ou culpa, precisando da comprovação do dano e do nexo causal entre a conduta e o
resultado. Assim, em caso de condenação, o hospital poderá demonstrar, judicialmente, que
proporcionou ao enfermeiro todos os meios necessários para sua atuação, mas este não os
utilizou por sua própria vontade.629

A relação entre clientes e profissionais de saúde é regulada pelo Código de


Defesa do Consumidor (CDC). Consumidor é aquele que utiliza os serviços, sendo os
profissionais e as instituições de saúde os fornecedores de serviços. Todos estão submetidos
ao CDC, inclusive com relação à inversão do ônus da prova, o que facilita a defesa do
consumidor, por ser este hipossuficiente.630

628
“O enfermeiro é considerado um profissional liberal, porém, a sua atuação é predominantemente, na condição
de empregado de serviços de saúde, com subordinação e reduzida autonomia, levando a responsabilização civil à
instituição de saúde que o mantém de forma assalariada, resguardada as peculiaridades. Na enfermagem
obstétrica, tem-se observada a atuação de profissionais sem vínculo institucional, logo de forma autônoma,
prestando assistência domiciliar às gestantes, às parturientes e aos recém-nascidos, casos em que ficarão sujeitos
a suportar individualmente as consequências do dano que derem ensejo.” (WINCK, Daniela Ries;
BRÜGGEMANN, Odaléa Maria. Responsabilidade legal do enfermeiro em obstetrícia. Rev Bras Enferm. 2010;
63(3): 464-69). Disponível em: http://oaji.net/articles/2015/672-1437680835.pdf. Acesso em 25/jun/2018.
629
“O hospital, como empresa prestadora de serviços e empregadora do enfermeiro, também terá obrigação na
área civil de reparar o dano sofrido pelo cliente. Contudo, terá o hospital direito de pleitear a descaracterização
da denúncia do cliente, demonstrando a inexistência do erro ou, posteriormente, alegar a culpa exclusiva do
profissional, cobrando dele por regresso, a indenização que tiver sido paga ao cliente. Cabe salientar que a culpa
do hospital geralmente é considerada objetiva, não precisando ser provada pelo cliente lesado, necessitando
apenas a demonstração do dano e da ligação deste com a assistência hospitalar. Desta forma, em caso de
condenação, o hospital, poderá demonstrar, por via judicial, que proporcionou todos os recursos necessários e
disponíveis a atuação profissional e o enfermeiro não utilizou por vontade própria.” (WINCK, Daniela Ries;
BRÜGGEMANN, Odaléa Maria. Responsabilidade legal do enfermeiro em obstetrícia. Rev Bras Enferm. 2010;
63(3): 464-69). Disponível em: http://oaji.net/articles/2015/672-1437680835.pdf. Acesso em 25/jun/2018.
630
“As relações que se estabelecem entre clientes e prestadores de serviços de saúde, quer sejam eles
profissionais ou instituições, são reguladas também pelo CDC. Essa legislação considera consumidor aquele que

280
Como nesse tipo de obrigação de meio, existe grande dificuldade probatória,
por isso poderá o juiz inverter o ônus da prova, passando a ser do profissional de saúde a
incumbência de provar a sua não responsabilidade, ou seja, que o dano alegado não resultou
de culpa na assistência prestada. O hospital responde solidariamente pelos danos causados
pelo profissional que integra seu quadro funcional.631

Os enfermeiros obstetras, tendo em vista as intercorrências que podem ocorrer


durante o trabalho de parto, que podem atingir a mulher e seu bebê, devem, assim, dedicar
total atenção e cautela para agir e decidir com habilidade e rapidez. Podem, mesmo que com
intenção de agir acertadamente, cometer erros, uma vez que são seres humanos e, portanto,
falíveis. Esses erros podem gerar consequências trágicas para a própria pessoa e seus
familiares, provocando, inclusive, ilícitos penais, mesmo que a despeito de sua vontade.632

No Código Penal, em seu artigo 1º, da mesma forma que no artigo 5º, inciso
XXXIX, da Constituição Federal, existe a previsão do princípio da legalidade, dispondo que
não há crime (ou contravenção) nem pena (ou medida de segurança) sem lei que o defina,
bem como, não há crime (ou contravenção) nem pena (ou medida de segurança) sem prévia
cominação legal. Assim, esse princípio abarca dois outros: a reserva legal e a anterioridade da
lei penal.

utiliza serviços (cliente), sendo os profissionais e instituições de saúde os fornecedores de serviços. Portanto,
todos estão submetidos a esse ordenamento, inclusive no que tange a inversão do ônus da prova, facilitando a
defesa dos direitos do consumidor quando for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente.”
(WINCK, Daniela Ries; BRÜGGEMANN, Odaléa Maria. Responsabilidade legal do enfermeiro em obstetrícia.
Rev Bras Enferm. 2010; 63(3): 464-69). Disponível em: http://oaji.net/articles/2015/672-1437680835.pdf.
Acesso em 25/jun/2018.
631
“Em regra, na obrigação de meio, o ônus de provar as alegações recai sobre o cliente/consumidor que se
considerar lesado. Porém, diante da dificuldade probatória do cliente, poderá o juiz determinar a inversão do
ônus da prova, passando a ser do enfermeiro a incumbência de demonstrar sua não responsabilidade, ou seja, que
o dano alegado não resultou de impudência, negligência ou imperícia na assistência prestada. É oportuno
destacar que tal possibilidade contraria o previsto no Código de Processo Civil de 1973 e o Código de Processo
Penal de 1941, ambos em vigor.” (WINCK, Daniela Ries; BRÜGGEMANN, Odaléa Maria. Responsabilidade
legal do enfermeiro em obstetrícia. Rev Bras Enferm. 2010; 63(3): 464-69). Disponível em:
http://oaji.net/articles/2015/672-1437680835.pdf. Acesso em 25/jun/2018.
632
“Os enfermeiros obstetras, sabedores da possibilidade de intercorrências repentinas e imprevisíveis, atingindo
a mulher e o feto ou recém-nascido, durante a assistência ao trabalho de parto e parto, devem dedicar total
atenção e cautela para agir e decidir com rapidez e habilidade. A ciência ainda precisará de muito tempo para a
compreensão e o domínio total do funcionamento do organismo humano e suas diferentes respostas, tornando-se
inegável a existência de eventos acidentais e que fogem ao controle na assistência à saúde, sendo estes distintos
das situações caracterizadas como erro. Um exemplo claro disso são alguns traumas ocorridos com a parturiente
e recém nascida, em decorrência do próprio trabalho de parto, que, em muitos casos, nem mesmo a habilidade do
profissional mais experiente poderá afastá-los ou minimizá-los.” (WINCK, Daniela Ries; BRÜGGEMANN,
Odaléa Maria. Responsabilidade legal do enfermeiro em obstetrícia. Rev Bras Enferm. 2010; 63(3): 464-69).
Disponível em: http://oaji.net/articles/2015/672-1437680835.pdf. Acesso em 25/jun/2018.

281
De acordo com o princípio da reserva legal, somente a lei pode criar crimes ou
contravenções penais, penas e medidas de segurança. De acordo com o outro princípio, o da
anterioridade, esta lei que cria crimes ou contravenções, comina penas e prevê medidas de
segurança, tem que estar em vigor antes do cometimento do fato. Assim, somente podem ser
consideradas infrações penais, sejam delitos ou contravenções, aqueles casos que tiverem
previstos na lei penal.

Para que haja um crime ou uma contravenção, é necessário que haja uma
conduta, a qual pode ser dolosa ou culposa. Nos termos do que dispõe o artigo 18 do Código
Penal, o crime será doloso quando o agente quiser o resultado ou assumir o risco de produzi-
lo.

Como no exercício da enfermagem, ou mesmo da Medicina, os crimes dolosos


apresentem menor probabilidade de ocorrência, pois seus profissionais normalmente não
atuam com essa finalidade, é mais comum que sejam cometidos na modalidade culposa, ou
seja, condutas que decorrem de imprudência, negligência ou imperícia. Assim, a conduta que
causar ao paciente lesão corporal será classificada em leve, grave, gravíssima ou seguida de
morte, dependendo da quantidade do dano causado, determinando, ainda, o quantum da
penalidade a ser imposta e cumprida.633

Convém ressaltar que, no âmbito penal, o profissional de saúde poderá ser


responsabilizado, além dos casos que causem dano aos pacientes e à sociedade, por exercício
ilegal da profissão. De acordo com o princípio da legalidade, constitui contravenção penal,
com pena de prisão simples ou multa, exercer a profissão ou anunciar que a exerce sem
preencher as condições legais que a lei determina.634

633
“Os crimes podem ser cometidos por vontade deliberada, como a eutanásia, aspecto pouco tratado nos artigos
analisados. Provavelmente devido a que, no exercício da enfermagem, os crimes dolosos, ou seja, aqueles em
que o agente quis o resultado e assumiu o risco de produzi-lo, apresentam menor probabilidade de acontecer,
posto que os profissionais não atuem com essa finalidade. Normalmente, os crimes são cometidos na modalidade
culposa decorrentes de imperícia, imprudência e negligência. A ação ou omissão que causar ao cliente lesão
corporal, tanto funcional quanto mental, será classificada conforme a quantidade de dano que proporcionar,
podendo ser leve, grave, gravíssima e seguida de morte, determinando, assim, a graduação da penalidade a ser
imposta.” (WINCK, Daniela Ries; BRÜGGEMANN, Odaléa Maria. Responsabilidade legal do enfermeiro em
obstetrícia. Rev Bras Enferm. 2010; 63(3): 464-69). Disponível em: http://oaji.net/articles/2015/672-
1437680835.pdf. Acesso em 25/jun/2018.
634
“No âmbito da responsabilidade penal, o enfermeiro poderá responder, além das situações que causem danos
aos clientes e à sociedade, por exercício ilegal da profissão. Pelo ordenamento jurídico, constitui contravenção
penal com pena culminada em prisão simples ou multa, exercer profissão ou anunciar que a exerce sem
preencher as condições legais que a lei determina, ou seja, sem a devida capacidade legal. Essa prerrogativa
compreende que, além da capacidade técnica, os títulos devem estar devidamente registrados e a inscrição

282
Por fim, os enfermeiros deverão registrar seus títulos de graduação ou
especialização no Conselho Regional de Enfermagem, para o exercício da profissão, pois, por
exemplo, no caso de enfermagem obstétrica, haverá uma ampliação de suas atribuições
profissionais, sendo, então, permitida a realização de assistência ao parto normal, sem
distócia, não competindo tal procedimento ao enfermeiro generalista, salvo em casos de
urgência ou emergência.635

3.8 A proteção dos direitos humanos das mulheres na assistência ao parto

A marginalização do gênero feminino, segundo vários doutrinadores, possui


origem na Bíblia, especificamente na figura de Eva. Essa diferenciação é recorrente desde a
antiguidade grega até o capitalismo industrial, chegando aos dias de hoje. Desse modo, ao
lado da igreja e do Estado patriarcal, a ciência, que é essencialmente masculina, ajuda a
legitimar essa “escravidão do sexo feminino”.636

Os direitos sexuais e reprodutivos fazem parte dos Direitos Humanos já


reconhecidos nacional e internacionalmente e começaram a ganhar força na década de 1960.
De outro lado, são os Direitos Humanos, direitos fundamentais. Dessa forma, para que exista
o pleno exercício da cidadania, é preciso garantir esse conjunto dos Direitos Humanos,

efetuada no órgão disciplinador do exercício.” (WINCK, Daniela Ries; BRÜGGEMANN, Odaléa Maria.
Responsabilidade legal do enfermeiro em obstetrícia. Rev Bras Enferm. 2010; 63(3): 464-69). Disponível em:
http://oaji.net/articles/2015/672-1437680835.pdf. Acesso em 25/jun/2018.
635
“Embora os artigos selecionados para essa revisão não tenham destacado aspectos referentes às
especializações, os enfermeiros portadores desses títulos deverão registrá-los no Conselho Regional de
Enfermagem, da mesma forma como procederam com o título de graduação, para o exercício legal da profissão.
A importância desse registro pode ser exemplificada pela especialização em enfermagem obstétrica, uma vez que
ocorre a ampliação das atribuições profissionais conferidas pela obtenção do título, a partir do qual é permitida a
realização da assistência ao parto normal sem distócia. Tal procedimento não compete ao enfermeiro generalista,
salvo em situações de emergência.” (WINCK, Daniela Ries; BRÜGGEMANN, Odaléa Maria. Responsabilidade
legal do enfermeiro em obstetrícia. Rev Bras Enferm. 2010; 63(3): 464-69). Disponível em:
http://oaji.net/articles/2015/672-1437680835.pdf. Acesso em 25/jun/2018.
636
“Daí se falar que essa espécie de ‘marginalização’ do papel feminino, segundo o entendimento de muitos,
possui origem bíblica (na figura de Eva) e se tornou recorrente, desde a antiguidade grega até o capitalismo
industrial, chegando à concepção hodierna. Desta forma, ‘ao lado da Igreja e de um Estado patriarcal, a ciência,
epistemologicamente masculina, ajuda a legitimar a condição de subalternidade feminina, segundo ideologia de
um determinismo biológico’ (GOMES, 2003, p. 51-54). Analisando o estudo de Engels, Gomes (2003, p. 52)
revela como marco ideológico dessa ‘escravização do sexo feminino’ o despontar das primeiras noções de
propriedade privada, por se tratar de momento em que se procedeu à ‘divisão sexual do trabalho e
consequentemente de posses, sendo imprescindível para os homens – agora proprietários – uma descendência
segura para herdar seus bens e, para tanto, mulheres subservientes, guardadas como fiéis reprodutoras’,
estabelecendo-se a monogamia como coincidente à primeira luta de classes, qual seja, a opressão do sexo
masculino sobre o feminino. (PEROGER, Mayara Alice Souza; ALVES, Pedro Gonzaga. O reconhecimento dos
direitos sexuais e reprodutivos da mulher como direitos fundamentais frente aos novos paradigmas sociais:
reafirmando a democracia). Disponível em: www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=3dd48ab31d016ffc.
Acesso em: 12/jan/2020.

283
obviamente com respeito ao ser humano, sem qualquer discriminação. Assim, para que haja
igualdade de direitos, necessário se faz o respeito às diferenças.637

Esses direitos são os mais humanos de todos os direitos, que precisam ser
reconhecidos, vividos e transcendidos pela humanidade. Pode-se dizer que os direitos são um
conjunto de leis e princípios que regulam as relações das pessoas, são normas criadas para
orientar a vida dos indivíduos que vivem na sociedade, garantindo as responsabilidades dos
cidadãos.638

Tais direitos têm sua história vinculada aos movimentos sociais, incluindo o
movimento das mulheres e o movimento homossexual. A cidadania das mulheres data do
final do século XVIII, na época da Revolução Francesa, quando houve o processo para
reivindicação de suas necessidades, uma vez que eram vítimas de desigualdades sociais.
Inicialmente, as mulheres passaram a reivindicar os mesmos direitos que os homens, como o
direito de votar e o direito à educação.639

637
“Os direitos sexuais e reprodutivos são, antes de tudo, Direitos Humanos já reconhecidos em leis e outros
dispositivos nacionais e, inclusive, em documentos internacionais. Os Direitos Humanos consistem em direitos
fundamentais da pessoa humana. Esses direitos são considerados fundamentais, pois, sem eles, o indivíduo não é
capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida. Sendo assim, aquele que tem esses direitos violados
ou que não os tem reconhecidos pela sociedade em que vive, não participa plenamente de sua própria vida.
Segundo Diaz, Cabral e Santos (2004), os direitos sexuais e reprodutivos e a saúde reprodutiva são temas que
começaram a ganhar força na década de 1960, período em que são promovidas internacionalmente as políticas de
planejamento familiar.” (LEÃO, Renata Almeida; MONTE, Angélica Augusta Linhares do. Direitos Sexuais e
Reprodutivos das Mulheres no Brasil, 2013 – VI Jornada Internacional de Políticas Públicas). Disponível em:
www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2013/JornadaEixo2013/anais-eixo7-
questoesdegeneroetniaegeracao/direitossexuaisereprodutivosdasmulheresnobrasil-notasparaodebate.pdf. Acesso
em 28/nov/2018.
638
“Parafraseando María Ladi Lodoño, podemos dizer que os direitos sexuais e reprodutivos são os mais
humanos de todos os direitos, que precisam não somente ser reconhecidos, mas vividos e transcendidos pela
humanidade (Lodoño, 1996). Os direitos são um conjunto de leis ou princípios que regulam as relações sociais,
ou seja, são as normas criadas em cada sociedade para orientar a vida em comum: o que se pode ou não fazer,
que garantias os cidadãos e cidadãs têm do Estado, definindo o que é importante e quais são as responsabilidades
de cada um.” (DÍAZ, Margarida; CABRAL, Francisco; SANTOS, Leandro. Os Direitos Sexuais e Reprodutivos,
2004). Disponível em
www.reprolatina.institucional.ws/site/respositorio/materiais_apoio/textos_de_apoio/Os_direitos_sexuais_e_direit
os_reprodutivos.pdf Acesso em 29/nov/2018
639
“A noção dos direitos sexuais e direitos reprodutivos têm uma história vinculada aos movimentos sociais,
principalmente ao movimento de mulheres e movimento homossexual. Inicialmente como uma articulação
crítica às políticas controlistas e ao gerenciamento da sexualidade. A construção da cidadania das mulheres data
do final do século XVIII, na Revolução Francesa, quando do processo de reivindicações das necessidades
começa-se a perceber os lugares de desigualdade, suas ocupações e consequências (pelos atores sociais: homens,
mulheres, nobres, plebeus etc.). A princípio as mulheres buscavam participação igualitária na sociedade, tendo
como marco referencial os homens, ou seja, reivindicavam o direito de votar e de se educarem. Assim, passou-se
a construir uma crítica à desigualdade. Porém, para a efetiva constituição da cidadania, era preciso o
reconhecimento do sujeito como tal, não bastava buscar o espaço da cidadania centrada ou explicada por duas
referências definidas: voto/educação, como as demandas iniciais da Revolução Francesa, era necessário abordar
as ideias e os saberes justificantes e legitimadores das desigualdades, o que começou a ter força com o
movimento de mulheres nos séculos XIX e XX, principalmente na década de 70.” (BUGLIONE, Samantha.

284
Os direitos sexuais estão intimamente ligados ao direito à dignidade da pessoa
humana e ao direito à vida. Devem ser entendidos como forma de liberdade individual de
decidir se e como desejam reproduzir-se, sem interferência do Estado para regular e controlar
a sexualidade e a reprodução, como dever estatal de garantir direitos que assegurem seu livre
exercício, como o desenvolvimento de políticas públicas para promover a igualdade de
gêneros, com a eliminação da discriminação social e a eliminação de qualquer tipo de
violência, para que se chegue ao acesso à educação sexual e à reprodutiva.640

Os direitos reprodutivos são formados por princípios e normas de direitos


humanos que garantem o exercício da sexualidade bem como a reprodução humana.
Caracterizam-se como o direito de toda pessoa decidir sobre quantos filhos quer ter, o
intervalo de nascimento entre eles, bem como ter acesso aos meios para o exercício de sua
autonomia reprodutiva, sem qualquer discriminação, coerção ou preconceito.641

Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça, 2012). Disponível em


http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reprodução-e-sexualidade-uma-questão-de-justiça. Acesso em
01/dez/2018.
640
“Portanto, os direitos sexuais e reprodutivos são concepções recentes, apesar de direitos primitivos
intimamente ligados ao direito à vida, à dignidade da pessoa humana e tantos outros. Trata-se de conceitos
plurívocos quando analisados sob a ótica dos direitos humanos, calcando-se nas relações equitativas entre os
gêneros: de um lado, aponta para a dimensão individual desses direitos, afirmando o direito à liberdade, à
privacidade, à intimidade e à autonomia, o que compreende a garantia do livre exercício da sexualidade e da
reprodução humana, sem qualquer tipo de discriminação, coerção ou violência. [...] Por outro lado, o efetivo
exercício dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos de forma consciente, responsável e satisfatória,
demanda políticas públicas específicas que assegurem um conjunto de direitos indispensáveis para o seu livre
exercício. (ADVOCACI, 2003. p. 50-51) [grifo nosso] Nesta perspectiva, devem ser entendidos ora como forma
de liberdade individual de decidir se e como desejam reproduzir-se (direito à procriação), sem qualquer
interferência do Estado para regular ou controlar a sexualidade e a reprodução, ora como dever estatal de garantir
outros direitos correlatos que assegurem seu livre e seguro exercício, tal como o desenvolvimento de políticas
públicas para a promoção e a garantia da igualdade de gêneros, para a eliminação da discriminação social, a
coibição e a eliminação de qualquer tipo de violência, para o acesso à educação sexual e reprodutiva, para o
estímulo à responsabilidade social e pessoal do homem ao que concerne ao seu comportamento sexual, sua
fertilidade frente a seus filhos e companheiras e, por fim, para a promoção de serviços de saúde sexual e
reprodutiva, por meios sociais e legais, com acesso de todos. (ADVOCACI, 2003. p. 50-51)”. (PEROGER,
Mayara Alice Souza; ALVES, Pedro Gonzaga. O reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher
como direitos fundamentais frente aos novos paradigmas sociais: reafirmando a democracia). Disponível em:
www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=3dd48ab31d016ffc. Acesso em: 12/jan/2020.
641
“Os Direitos Reprodutivos são constituídos por princípios e normas de direitos humanos que garantem o
exercício individual, livre e responsável da sexualidade e da reprodução humana. É, portanto, o direito subjetivo
de toda pessoa decidir sobre o número de filhos e os intervalos entre seus nascimentos, e ter acesso aos meios
necessários para o exercício livre de sua autonomia reprodutiva, sem sofrer discriminação, coerção, violência ou
restrição de qualquer natureza. A natureza dos Direitos Reprodutivos envolve assegurar direitos relativos à
autonomia e à autodeterminação das funções reprodutivas, que correspondem às liberdades e aos direitos
individuais. E direitos de dimensão social, como aqueles relativos à saúde, à educação, à segurança, que têm
como finalidade proporcionar as condições e os meios necessários para a prática livre, saudável e segura das
funções reprodutivas e da sexualidade.” (LEÃO, Renata Almeida; MONTE, Angélica Augusta Linhares do.
Direitos Sexuais e Reprodutivos das Mulheres no Brasil, 2013 – VI Jornada Internacional de Políticas Públicas).
Disponível em: www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2013/JornadaEixo2013/anais-eixo7-
questoesdegeneroetniaegeracao/direitossexuaisereprodutivosdasmulheresnobrasil-notasparaodebate.pdf. Acesso
em 28/nov/2018.

285
Com a primeira versão da Declaração de Independência dos Estados Unidos
da América, em 1776 e, posteriormente, com a Revolução Francesa, despontaram as primeiras
manifestações pelos direitos das mulheres, sedimentadas nos ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade. De fato, havia uma crença na posição de inferioridade das mulheres, pela
vulnerabilidade que lhe era ínsita, tendo apenas algumas funções sociais, como a
maternidade.642

Posteriormente, a luta pelos direitos das mulheres continuou no século XIX e


na primeira metade do século XX, quando o movimento das mulheres já lutava por igualdade,
tendo ênfase os direitos de educação e de voto, já iniciados com a Revolução Francesa. Já na
década de 1960 ou 1970, as feministas começaram uma luta para acabar com a opressão da
mulher. Nessa época, a preocupação das feministas centralizou-se nos aspectos relacionados
com a sexualidade e a reprodução das mulheres.643

O movimento feminista significou o rompimento do processo social de


desigualdade e opressão das mulheres. As ideias marxistas determinaram a percepção da
forma de dominação dos seres humanos. Os movimentos feministas destacavam que, além da
opressão que sofriam, havia a necessidade de se verificar outras formas de dominação, que

642
“A concepção de gêneros diante de diferenças que, mais do que o aspecto biológico, alcançam os âmbitos
psíquico e moral, deve ser analisada sob a perspectiva das relações sociais, do emprego das culturas e seus
efeitos nas instituições e nas organizações sociais, econômicas e políticas através dos tempos. Partindo-se de
uma análise social da História, Brauner (2003, p. 2) ressalta que essa ‘consciência de gênero’ despontou no calor
das revoluções burguesas entre as mulheres da Inglaterra e França, principalmente quando na Revolução
Francesa (1789), época em que podem ser observadas as primeiras manifestações em prol dos direitos das
mulheres, inspiradas nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. De fato, sempre persistiu a crença de que
a mulher assumia um papel inferior ao homem, pela ‘vulnerabilidade’ que lhe era inerente, impingindo-lhe
somente algumas funções dentro da vida social, tal como a maternidade. Este entendimento era apregoado pela
Igreja Católica Romana (MATTAR, 2008), fundado na crença de que o próprio Deus, ao criá-la, teria dado todas
as condições biológicas para que exercesse exclusivamente este papel.” (PEROGER, Mayara Alice Souza;
ALVES, Pedro Gonzaga. O reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher como direitos
fundamentais frente aos novos paradigmas sociais: reafirmando a democracia). Disponível em:
www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=3dd48ab31d016ffc. Acesso em: 12/jan/2020.
643
“Os direitos sexuais e reprodutivos e a saúde reprodutiva são temas que começaram a ganhar força na década
de 60, período em que são promovidas internacionalmente as políticas de planejamento familiar. Entretanto, é
muito importante reconhecer que a luta pelos direitos das mulheres já se iniciava no século 19 e na primeira
metade do século 20, época em que o movimento de mulheres já lutava pela igualdade, com ênfase nos direitos à
educação e ao voto. Até a década de 60 do século XX, persistiu a luta pela igualdade, mas essa crítica à
desigualdade que incluía as relações sociais baseadas nas relações de poder entre homens e mulheres se
fortaleceu ainda mais nos anos 60 e 70, momento em que os grupos feministas começaram com a luta para
romper com a opressão da mulher e com um intenso trabalho para desmontar as formas de construção dos papéis
sociais de mulheres e homens.” (DÍAZ, Margarida; CABRAL, Francisco; SANTOS, Leandro. Os Direitos
Sexuais e Reprodutivos, 2004). Disponível em
www.reprolatina.institucional.ws/site/respositorio/materiais_apoio/textos_de_apoio/Os_direitos_sexuais_e_direit
os_reprodutivos.pdf. Acesso em 29/nov/2018.

286
iam além das relações de classe. O tema populacional encontrava-se vinculado ao Estado e
muitas políticas foram feitas envolvendo a capacidade reprodutiva da mulher.644

Relativamente aos direitos sexuais e reprodutivos, surge uma crítica de análise


conjunta deles, uma vez que, com relação aos direitos reprodutivos, estes já se encontravam
legitimados, mas, quanto aos sexuais, não existia o reconhecimento em sua extensão ideal, de
forma isolada. Assim, tanto as leis, quanto as políticas públicas são bastante generalistas,
restringindo os direitos de certos grupos sociais, que precisam atender suas demandas de
modo satisfatório, sem discriminação.645

Os direitos sexuais e os reprodutivos são inseparáveis, pois asseguram o livre


exercício da sexualidade e a autonomia de decisão dos seres no que se refere à sua vida sexual

644
“O movimento feminista representou o rompimento do processo social de construção da opressão do
feminino. As idéias marxistas foram determinantes para a percepção das formas de dominação entre os
indivíduos. Anteriormente, as ideias liberais, que contribuíram com o processo de constituição dos direitos civis
e políticos, centravam a dominação em relações de poder basicamente vinculadas às relações entre Estado/Igreja
e pessoas. Tanto, que, neste primeiro momento, foi necessário construir a própria ideia de indivíduo, de pessoa
sujeita de direito. Porém, tanto as ideias liberais, quanto marxistas, abarcavam instâncias parciais das relações de
poder. O movimento de mulheres destaca que, além da opressão apresentada, principalmente pelo marxismo, era
necessário visualizar outras formas de dominação e opressão, que iam além das relações de classe e produção.
As estruturas de poder se constituem de forma mais complexa, através de um conjunto de elementos, que podem
ser morais, jurídicos etc., criadores e legitimadores de relações de dominação. O tema populacional sempre foi
vinculado às questões do Estado, da ordem pública, e muitas políticas foram estruturadas envolvendo a
capacidade reprodutiva da mulher, por exemplo as leis de liberação do aborto, editadas na Rússia, logo após a
revolução bolchevique. Anos depois, os dirigentes soviéticos mudaram estas leis, e desenvolveram campanhas
de elogio à maternidade, para aumentar o número de nascimentos. Hitler, durante a II Guerra Mundial, também
estabeleceu esta política de elogio à maternidade, inclusive premiando mulheres que tivessem mais filhos.
Explícita ou implicitamente os países e as agências internacionais vão adotando medidas que causam impacto
demográficos pautados pela pergunta: podem as populações crescer e/ou diminuir sem limites postos pelo
Estado? Quem define: o indivíduo, a família ou a sociedade?” (BUGLIONE, Samantha. Reprodução e
sexualidade: uma questão de justiça, 2012). Disponível em
http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reprodução-e-sexualidade-uma-questão-de-justiça. Acesso em
01/dez/2018.
645
“Mirian Ventura, no Caderno de Direitos Reprodutivos no Brasil (2009), coloca que: a crítica a esta
abordagem conjunta dos Direitos Sexuais e Reprodutivos é que ela restringe fortemente a formulação dos
direitos sexuais no âmbito das ações de saúde reprodutiva e de prevenção e tratamento dos agravos resultantes da
violência sexual. Apesar da importância e dos avanços das leis e políticas públicas neste sentido, o fato é que há
um atraso na discussão e dificuldades para a formulação positiva, autônoma e mais ampla dos direitos sexuais;
por exemplo, que definam os direitos sexuais de adolescentes, de pessoas com orientação homossexual,
transexuais, travestis, trabalhadoras e trabalhadores sexuais, e outros segmentos. (VENTURA, 2009, p.23). O
que se observa, diante do exposto, é que as leis e as políticas públicas existentes são bastante generalistas,
restringindo, por muitas vezes, os direitos de novos segmentos da sociedade, que precisam de uma abordagem
mais específica, que seja capaz de atender as suas demandas de forma satisfatória, sem discriminação, efetivando
assim esses direitos na sociedade, para que sejam conhecidos e garantidos com seriedade, e não somente no nível
abstrato como temos acompanhado no curso da história.” (LEÃO, Renata Almeida; MONTE, Angélica Augusta
Linhares do. Os Direitos Sexuais e Reprodutivos das Mulheres no Brasil, 2013 – VI Jornada Internacional de
Políticas Públicas). Disponível em: www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2013/JornadaEixo2013/anais-eixo7-
questoesdegeneroetniaegeracao/direitossexuaisereprodutivosdasmulheresnobrasil-notasparaodebate.pdf. Acesso
em 28/nov/2018.

287
e reprodutiva, assumindo a responsabilidade por suas decisões.646 Os direitos reprodutivos
vêm se consolidando na seara das normas e das políticas de assistência à saúde, com
dificuldades, em decorrência de limitações, que necessitam ser superadas, tanto no âmbito
político quanto legislativo. A luta por esses direitos surgiu no século XX, principalmente com
os movimentos feministas, tema que foi incorporado à sua agenda.647

No Brasil, essa subalternidade feminina não foi diferente do resto do mundo,


do período colonial até a República, com forte influência da Igreja Católica. Houve uma
grande luta das mulheres para alcançar a igualdade de direitos e deveres, independente do seu
sexo. Essas lutas feministas foram sendo reconhecidas pela legislação brasileira, trazendo
modificações legislativas, que foram feitas na atual Constituição Federal, o novo Código
Civil de 2002, o Estatuto da Mulher Casada de 1962, a Lei do Divórcio de 1977, entre
outras.648

Na década de 1970, os direitos reprodutivos estavam sendo reivindicados pelas


mulheres por conta da sua autonomia corporal, controle da fecundidade e atenção à saúde
reprodutiva. Esse foi um período marcado pela luta de descriminalização do aborto e pelo
direito à contracepção, começando a ganhar força a liberdade sexual com o surgimento de

646
“Os direitos reprodutivos e os direitos sexuais são inseparáveis, já que garantem o livre exercício da
sexualidade e da autonomia para as decisões das pessoas no que se refere à vida sexual e à reprodução, bem
como assumir as responsabilidades dessas decisões.” (DÍAZ, Margarida; CABRAL, Francisco; SANTOS,
Leandro. Os Direitos Sexuais e Reprodutivos, 2004). Disponível em
www.reprolatina.institucional.ws/site/respositorio/materiais_apoio/textos_de_apoio/Os_direitos_sexuais_e_direit
os_reprodutivos.pdf. Acesso em 29/nov/2018.
647
“Ainda, Ventura (2009) destaca que podem ser igualmente observadas dificuldades no desenvolvimento e na
inserção dos Direitos Reprodutivos em uma concepção mais ampla, no sentido de fundamentá-los como direitos
de liberdade individual e de cidadania plena. Basicamente, os Direitos Reprodutivos vêm se consolidando no
âmbito das normas e das políticas de assistência à saúde, com dificuldades em razão de algumas limitações que
devem ser superadas no âmbito político e legislativo, como, por exemplo, o tratamento dado à questão da
interrupção voluntária da gravidez. De acordo com Matos e Gitahy (2007), a luta pelos direitos sexuais e
reprodutivos surge no século XX, principalmente, com o movimento de mulheres. O tema foi incorporado à
agenda feminista, por ser considerado fundamental face às demandas que emergiam dos novos contextos sociais
e culturais vivenciados pelas mulheres na sociedade contemporânea.” (LEÃO, Renata Almeida; MONTE,
Angélica Augusta Linhares do. Direitos Sexuais e Reprodutivos das Mulheres no Brasil, 2013 – VI Jornada
Internacional de Políticas Públicas). Disponível em:
www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2013/JornadaEixo2013/anais-eixo7-
questoesdegeneroetniaegeracao/direitossexuaisereprodutivosdasmulheresnobrasil-notasparaodebate.pdf. Acesso
em 28/nov/2018.
648
“Ainda de acordo com as respectivas autoras, a luta da mulher brasileira foi intensa para alcançar a igualdade
de direitos e deveres independente de seu sexo. Grandes lutas foram reconhecidas por nossa legislação trazendo
mudanças, entre elas podemos citar as modificações promovidas na atual Constituição Federal, o novo Código
Civil de 2002, o Estatuto da Mulher Casada de 1962, a Lei do Divórcio de 1977, entre outras.” (LEÃO, Renata
Almeida; MONTE, Angélica Augusta Linhares do. Direitos Sexuais e Reprodutivos das Mulheres no Brasil,
2013 – VI Jornada Internacional de Políticas Públicas). Disponível em
www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2013/JornadaEixo2013/anais-eixo7-
questoesdegeneroetniaegeracao/direitossexuaisereprodutivosdasmulheresnobrasil-notasparaodebate.pdf. Acesso
em 28/nov/2018.

288
anticoncepcionais (1980 e 1990), bem como com o exercício da maternidade e de novas
tecnologias reprodutivas, que passaram a ser incorporadas na agenda dos direitos.649

Em nosso País, ainda hoje, com relação ao desenvolvimento dos direitos, tanto
reprodutivos quanto sexuais, existe o debate, o qual é marcado pela cultura religiosa,
predominantemente cristã. Ao longo do tempo, foram feitas normas legais, com a servidão da
mulher em relação ao homem. A sexualidade, ainda, relacionava-se somente com a
procriação. A relação do Estado com a Igreja colaborou para que, por muitos anos, se
defendesse o crescimento das taxas de natalidade. Todavia, com o aumento da crise da
economia, nos anos 80, houve uma diminuição desse crescimento, por poder causar um
esgotamento dos recursos ambientais.650

Com o processo de industrialização, urbanização, aumento da escolaridade,


entrada das mulheres no mercado de trabalho, maior autonomia e melhoria do status sócio-
legal da mulher, houve um crescimento pela procura por meios de controle da fecundidade.
Dessa forma, na década de 1980, o movimento feminista passa a reforçar suas reivindicações
sobre a melhoria das políticas públicas de saúde, em especial, o acesso aos meios de exercer

649
“Na década de 1970, as reivindicações que envolviam os Direitos Reprodutivos estavam centradas nas
reivindicações das mulheres pela autonomia corporal, o controle da própria fecundidade e atenção especial à
saúde reprodutiva. Foi um período fortemente marcado pela luta em face da descriminalização do aborto e pelo
acesso à contracepção, onde a liberdade sexual começou a ganhar espaço com o surgimento dos
anticoncepcionais, nos anos 1980 e 1990, além do exercício da maternidade e das novas tecnologias
reprodutivas, que passaram a ser incorporadas na agenda dos direitos, tendo o seu uso garantido legalmente.”
(LEÃO, Renata Almeida; MONTE, Angélica Augusta Linhares do. Direitos Sexuais e Reprodutivos das
Mulheres no Brasil, 2013 – VI Jornada Internacional de Políticas Públicas). Disponível em:
www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2013/JornadaEixo2013/anais-eixo7-
questoesdegeneroetniaegeracao/direitossexuaisereprodutivosdasmulheresnobrasil-notasparaodebate.pdf Acesso
em 28/nov/2018.
650
“No Brasil, no que diz respeito ao desenvolvimento dos direitos sexuais e reprodutivos, pode-se destacar que
o debate ainda é marcado pela cultura religiosa, predominantemente cristã. Ao longo da história do país, as
normas legais foram elaboradas, perpassando os valores religiosos de obediência e de servidão da mulher em
relação ao homem. Da mesma forma, a sexualidade relacionava-se apenas à procriação, segundo os preceitos e
valores cristãos. A relação igreja e Estado possibilitou que, por muito tempo, se defendesse o crescimento
elevado das taxas de natalidade, mas com o aprofundamento da crise econômica brasileira nos anos 80,
impulsionou a diminuição da defesa desse crescimento, de modo que a ideia de que o crescimento populacional
podia constituir um entrave para o desenvolvimento e provocar um esgotamento dos recursos ambientais, ganhou
importância. Para Alves (2004), a própria Igreja Católica diminui a ênfase na defesa das teses natalistas e, ao
invés da quantidade, passou a defender, prioritariamente, a qualidade de vida dos brasileiros. Com isso, entende-
se que não pode haver imposição sobre o uso de métodos anticoncepcionais ou sobre o número de filhos.”
(LEÃO, Renata Almeida; MONTE, Angélica Augusta Linhares do. Direitos Sexuais e Reprodutivos das
Mulheres no Brasil, 2013 – VI Jornada Internacional de Políticas Públicas). Disponível em:
www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2013/JornadaEixo2013/anais-eixo7-
questoesdegeneroetniaegeracao/direitossexuaisereprodutivosdasmulheresnobrasil-notasparaodebate.pdf Acesso
em 28/nov/2018.

289
seus direitos reprodutivos. Assim, a discussão sobre a fecundidade aumentou, ingressando na
agenda dos Direitos Humanos.651

A reprodução passa a ser percebida como algo de foro individual, dentro dos
direitos civis. Ainda, há um rompimento das relações entre o Estado controlista de natalidade
para o Estado do planejamento, incrementando-se o princípio da cidadania, que só é viável
por meio da autonomia. O direito de decisão não era viável sem a oferta, pelo próprio Estado,
de condições de escolha. Daí decorre a vinculação com os direitos sociais. Houve a criação de
uma nova concepção de reprodução e sexualidade, desvinculando-as da biologia.652

Com o aumento da discussão sobre fecundidade, foi criado um novo discurso


para a reprodução humana, tendo por base os princípios do direito à saúde e da autonomia
quanto à reprodução. Em 1983 foi criado o Programa de Assistência Integral à Saúde da
Mulher (PAISM), de abrangência federal, e do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher

651
“Para, além disso, o processo de industrialização, urbanização, o aumento da escolaridade e a entrada das
mulheres no mercado de trabalho, as mudanças nas relações de gênero, a maior autonomia e a melhoria do status
sócio-legal da mulher fizeram crescer a demanda por meios de regulação de fecundidade. Empreende-se,
portanto, que, nos anos 80, o movimento feminista reivindicava o retorno da democracia brasileira, além de
reforçar suas reivindicações em torno à melhoria das políticas de saúde, especialmente, o acesso às informações
e aos meios para o pleno exercício dos Direitos Reprodutivos. Dessa forma, a discussão sobre a regulação da
fecundidade se ampliou, ingressando na agenda da saúde e dos direitos humanos. A partir desse ingresso na
agenda da saúde brasileira, é criado um novo discurso para a reprodução humana, baseado nos princípios do
direito à saúde e na autonomia das pessoas quanto à sua reprodução se consolida.” (LEÃO, Renata Almeida;
MONTE, Angélica Augusta Linhares do. Direitos Sexuais e Reprodutivos das Mulheres no Brasil, 2013 – VI
Jornada Internacional de Políticas Públicas). Disponível em:
www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2013/JornadaEixo2013/anais-eixo7-
questoesdegeneroetniaegeracao/direitossexuaisereprodutivosdasmulheresnobrasil-notasparaodebate.pdf. Acesso
em 28/nov/2018.
652
“Em meados dos anos 80, depois do Congresso Internacional de Saúde e Direitos Reprodutivos, ocorrido em
Amsterdã, no ano de 1984, houve significativa expansão deste tema junto às práticas dos movimentos sociais. A
pauta de então privilegiava denúncias às políticas demográficas em curso nos países do sul, ao mesmo tempo que
assinalava questões emergentes, tais quais o incremento das técnicas conceptivas nos países do norte. Essa
conjuntura permitiu o surgimento de um novo discurso, baseado nos princípios do direito à saúde e na autonomia
das mulheres e dos casais na definição do tamanho de sua prole. Esta nova perspectiva teve como respaldo o
processo avançado da reforma sanitária brasileira, que definiu a saúde como direito do cidadão e o dever do
Estado em provê-la, culminando com o surgimento, em 1983, do Programa de Assistência Integral à Saúde da
Mulher (PAISM). A década de 80 destaca-se, ainda, pela luta democrática pelas eleições diretas presidenciais e
as eleições dos governos estaduais. O governo democrático de São Paulo, através do governador Franco
Montouro, cria o primeiro Conselho da Condição Feminina que tem como uma das pautas a discussão sobre o
planejamento familiar. Neste momento temos em paralelo as políticas de controle de natalidade (BEMFAM,
CPAIMC, IPPF etc.) e o incentivo à natalidade como forma de garantir soberania estatal, os partidos de esquerda
e os movimentos de mulheres apontando críticas às políticas controlistas com a inserção da ideia de
planejamento e de associação à saúde. A substituição dos termos ‘controle’ por ‘planejamento’ implica uma
nova percepção da reprodução e da sexualidade como questões desvinculadas da biologia, pois insere a ideia de
autonomia, o ‘natural’, o ‘biológico’, não são mais os justificadores das políticas, bem como do direito, mas,
sim, o indivíduo enquanto integrante de uma sociedade moral. Além disso, a forma como a sociedade lida com a
fecundidade, é um sintoma de uma nova organização familiar, como também da ideia de família, e da
comunidade em geral.” (BUGLIONE, Samantha. Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça, 2012).
Disponível em http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reprodução-e-sexualidade-uma-questão-de-justiça.
Acesso em 01/dez/2018.

290
(CNDM), em 1985. Em 1996, com regulamentação legal, passaram as mulheres a ter direito à
esterilização cirúrgica voluntária, quando da realização do parto cesáreo, se assim desejassem.
Antes dessa legislação, este procedimento de esterilização era considerado crime de lesão
corporal.653

Com a criação do PAISM, houve o surgimento da linguagem a respeito de


reprodução, considerada como algo de foro individual, sendo depois legitimada pela atual
Constituição Federal e pela Convenção do Cairo de 1994, na qual houve a construção da
linguagem dos direitos sexuais e reprodutivos, e o rompimento com as políticas demográficas.
É nesse momento que surge o conceito de cidadão como sujeitos de direitos, sem que se
vinculasse com qualquer tipo de religião, incluindo esses cidadãos nas relações da vida
reprodutiva e sexual, tais como os adolescentes, as mulheres solteiras, os homens e as pessoas
da terceira idade, ampliando-se a própria ideia de humanidade.654

No nosso País, outras políticas de saúde contribuíram para a melhoria da


atenção à saúde das mulheres, em seus direitos sexuais e reprodutivos, quais sejam, a
implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e sua definição, em 1988. Em 1993,

653
“As reivindicações feministas se integram às do movimento de reforma sanitária brasileira, contribuindo para
a mudança de paradigma dos modelos de intervenção na saúde reprodutiva. Esta mudança proporcionou a
criação, em 1983, do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), de abrangência federal, e do
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). É válido ressaltar que foi somente em 1996, a partir da
regulamentação legal, que as mulheres ganharam o direito de terem esterilização cirúrgica voluntária durante a
realização da cesariana se assim desejassem, a fim de não terem mais filhos. Anteriormente a essa
regulamentação, a prática da esterilização era considerada crime de lesão corporal. Nessa perspectiva, têm-se
buscado historicamente no país o reforço da concepção de Direitos Reprodutivos, e estimular o processo de
elaboração legislativa e jurisprudencial relativa a esses direitos.” (LEÃO, Renata Almeida; MONTE, Angélica
Augusta Linhares do. Direitos Sexuais e Reprodutivos das Mulheres no Brasil, 2013 – VI Jornada Internacional
de Políticas Públicas). Disponível em: www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2013/JornadaEixo2013/anais-eixo7-
questoesdegeneroetniaegeracao/direitossexuaisereprodutivosdasmulheresnobrasil-notasparaodebate.pdf. Acesso
em 28/nov/2018.
654
“O PAISM é o embrião da linguagem que foi posteriormente legitimada pela Constituição Federal de 1988 e
pela Convenção do Cairo em 1994. O destaque à Conferência do Cairo é porque ali se constrói a linguagem dos
direitos sexuais e reprodutivos, rompendo, assim, a linguagem das políticas demográficas. No Cairo emerge o
conceito de cidadão como sujeito de direitos e deveres, sem condicionamentos religiosos, com a ampliação dos
sujeitos de direito incluídos nas relações da vida reprodutiva e sexual: os adolescentes, as mulheres solteiras, os
homens e as pessoas da 3ª idade, há uma ampliação da própria ideia de humanidade – pauta das discussões. É
importante destacar que tanto a Constituição Federal de 1988, no que se refere a planejamento familiar, quanto o
Cairo e Beijing, refletem a mobilização e as demandas dos movimentos de mulheres, gerando consequências
concretas principalmente no perfil dos serviços oferecidos ou gerenciados pelo Estado. Pelo fato de as
conquistas, em termos de constituição de direito, serem resultado das demandas do movimento de mulheres é
importante destacar que muitas vezes não era incluído o masculino como ator determinante do processo de
reprodução e paternidade, que, de certa forma, poderia ter como consequência uma imagem social de homem
ausente, irresponsável e pouco colaborar. Podendo contribuir para a cristalização dos papéis sociais, dificultando
a compreensão de gênero e a redefinição das relações de poder.” (BUGLIONE, Samantha. Reprodução e
sexualidade: uma questão de justiça, 2012). Disponível em
http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reprodução-e-sexualidade-uma-questão-de-justiça Acesso em
01/dez/2018.

291
consolidaram-se as regras quanto à descentralização e aos mecanismos para a coordenação
política entre a União, os estados e municípios. Em 1994, surgiu o Programa de Saúde da
Família e o Programa de Agentes Comunitários da Saúde.655

Um dos fatores que influenciou o aumento da pesquisa sobre sexualidade foi o


interesse internacional sobre temas como população e saúde reprodutiva de mulheres e de
homens. A conquista do gerenciamento da reprodução, por meio da pílula anticoncepcional,
colaborou para desvincular a reprodução da relação sexual, com reflexão direta nas relações
sociais. A mudança das condições de vida da população, com o surgimento de grupos de gays,
lésbicas e feministas, contribuiu para a transformação de significados atribuídos à concepção
e contracepção. Assim, as práticas reprodutivas, bem como a sexualidade, além de serem
episódios biológicos, estão condicionadas por fatores socioculturais.656

A partir dos anos 50 do século passado, ocorreram várias modificações no


padrão da morbimortalidade no Brasil. Houve redução de 64% da mortalidade infantil, de
1940 até 1990, bem como diminuição de quase 30% das taxas de mortalidade materna entre
1981 e 1988, ocorrendo, também, a diminuição da participação da mortalidade proporcional
de doenças infecciosas e parasitárias.657

655
“Outras políticas de saúde adotadas no Brasil contribuíram significativamente para uma abordagem de
melhoria da atenção em saúde sexual e reprodutiva, a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), cuja
definição se inicia em 1988, e em 1993 se consolidam as regras de descentralização e os mecanismos de
coordenação técnico-política entre os níveis federal, estadual e municipal. Em 1994 surge o Programa de Saúde
da Família e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde.” (DÍAZ, Margarida; CABRAL, Francisco;
SANTOS, Leandro. Os Direitos Sexuais e Reprodutivos, 2004). Disponível em
www.reprolatina.institucional.ws/site/respositorio/materiais_apoio/textos_de_apoio/Os_direitos_sexuais_e_direit
os_reprodutivos.pdf. Acesso em 29/nov/2018.
656
“Outro fator que influenciou o aumento da pesquisa e a reflexão sobre sexualidade foi o crescente interesse
internacional em torno de temas como população, saúde reprodutiva de mulheres e homens. A conquista pelo
gerenciamento da reprodução (pílula anticoncepcional) contribuiu diretamente para separar a relação sexual da
reprodução, alterando significativamente, ou refletindo significativamente, nas relações sociais. Outro destaque é
a pandemia do HIV/AIDS que interagiu, em grande parte, com a construção de agendas em torno dos interesses
feministas, gays e lésbicos. Estes movimentos indicam uma mudança nas práticas sexuais e a sua desvinculação
da identidade sexual, seguindo a lógica das categorizações sociais e pensando a sexualidade por uma perspectiva
de construção social: daí o direito à livre orientação sexual. A mudança das condições de vida da população
contribui para a transformação dos significados atribuídos à concepção e à contracepção. Isso ressalta que as
práticas reprodutivas, assim como a sexualidade, além de serem episódios biológicos, estão condicionadas por
determinantes sócio-culturais, além de remeterem constantemente ao campo da ética.” (BUGLIONE, Samantha.
Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça, 2012). Disponível em
http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reprodução-e-sexualidade-uma-questão-de-justiça. Acesso em
01/dez/2018.
657
“Nas últimas décadas, especialmente a partir dos anos 50, ocorreram intensas modificações no padrão da
morbi-mortalidade no Brasil. Podendo destacar o descenso dos níveis de mortalidade infantil (redução de 64%,
de 1940 até a década de 90), a diminuição de quase 30% das taxas de mortalidade materna entre 1981 e 1988 e a
redução da participação da mortalidade proporcional das doenças infecciosas e parasitárias que, em 1930, eram
responsáveis por mais de 45% do total das mortes e, na década de 90, representavam aproximadamente 5%.”

292
Apesar da redução da mortalidade infantil e das taxas de mortalidade materna e
do avanço na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres adultas, para a população
adolescente, esse processo está apenas se iniciando, com vários movimentos de divulgação,
defesa e criação de condições para o exercício desses direitos sexuais e reprodutivos. Tudo
isso é para que essa parcela da sociedade tenha possibilidade de reduzir a vulnerabilidade que
lhe é inerente em questões relacionadas à sua saúde sexual e reprodutiva, as consequências do
início e da manutenção de uma vida sexual sem proteção ou qualquer preparo.658

A mortalidade materna é um excelente indicador de saúde, pois reflete as


condições de assistência ao pré-natal, ao parto e ao puerpério, bem como os aspectos
biológicos da reprodução humana e as doenças agravadas ou provocadas pelo ciclo gravídico-
puerperal. Pode a morte ocorrer durante a gestação ou dentro de um período de 42 dias após
seu término, independentemente da duração da gravidez.659

As taxas de mortalidade materna são, normalmente, calculadas tendo por


numerador o número de mortes maternas e como denominador o número de crianças nascidas
vivas, isto é, o coeficiente de mortalidade materna no País é o cruzamento de dados dos
registros de mortes maternas (DataSUS) e nascidos vivos (IBGE). A mortalidade materna está
associada a alguns fatores e, dentre eles, destacam-se as taxas de fecundidade vigente, e o

(BUGLIONE, Samantha. Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça, 2012). Disponível em


http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reprodução-e-sexualidade-uma-questão-de-justiça. Acesso em
01/dez/2018.
658
“Se por um lado as mulheres adultas têm avançado muito na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, já para
a população adolescente mais de 35 milhões de adolescentes, que representa 20,78% da população total de nosso
país (IBGE, 2000), essa luta está no início, com alguns movimentos se articulando para divulgar, defender e criar
condições para o efetivo exercício dos direitos sexuais e reprodutivos, de modo que essa importante parcela da
população tenha a possibilidade de reduzir sua vulnerabilidade nas questões relacionadas à saúde sexual e
reprodutiva, e as consequências do início e muitas vezes manutenção de uma vida sexual sem nenhum preparo
e/ou proteção.” (DÍAZ, Margarida; CABRAL, Francisco; SANTOS, Leandro. Os Direitos Sexuais e
Reprodutivos, 2004). Disponível em
www.reprolatina.institucional.ws/site/respositorio/materiais_apoio/textos_de_apoio/Os_direitos_sexuais_e_direit
os_reprodutivos.pdf. Acesso em 29/nov/2018.
659
“A mortalidade materna é um importante indicador de saúde por refletir as condições de assistência ao pré-
natal, parto e puerpério, os aspectos biológicos da reprodução humana e as doenças agravadas ou provocadas
pelo ciclo gravídico-puerperal. Como mortalidade materna se compreende a morte durante a gestação ou dentro
de um período de 42 dias após o seu término, independentemente da duração ou da localização da gravidez,
devida a qualquer causa relacionada com ou agravada pelo estado gravídico ou por medidas tomadas em relação
a ela, porém não devido a causas acidentais ou incidentais.” (BUGLIONE, Samantha. Reprodução e
sexualidade: uma questão de justiça, 2012). Disponível em
http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reprodução-e-sexualidade-uma-questão-de-justiça. Acesso em
01/dez/2018.

293
acesso e a qualidade dos serviços de controle de pré-natal e parto assistido, correspondendo a
cerca de 6% dos óbitos de mulheres de 10 a 49 anos, sendo que destas, 90% são evitáveis.660

Os problemas de certificação médica dessa causa de morte e a fidedignidade


das estimativas fazem com que esse tipo de morte seja subinformada, omitindo-se, com maior
frequência, que ela é decorrente de complicações na gestação, no parto ou no puerpério.
Estima-se que, para cada morte declarada como materna, uma não é declarada como tal.
Desse modo, o Brasil aproxima-se dos países mais pobres da América Latina, levando-se em
conta esse referencial.661

As quatro principais causas de morte materna no Brasil são: hemorragias,


síndromes hipertensivas, complicações do aborto e infecções puerperais, que são causas
obstétricas diretas, responsáveis por, aproximadamente, 90% das mortes maternas no Brasil.
As causas obstétricas diretas dependem da qualidade da assistência durante o ciclo gravídico-
puerperal, e são mais evitáveis do que as indiretas.662

660
“As taxas de mortalidade materna, em geral, são calculadas tendo como numerador o número de mortes
maternas nesse conceito e como denominador o número de crianças nascidas vivas, ou seja, o coeficiente de
mortalidade materna no Brasil é o cruzamento de dados sobre os registros de mortes maternas (DataSUS) e
nascidos vivos (IBGE). A mortalidade materna está associada a diversos fatores, entre os quais se destacam: a)
as taxas de fecundidade vigente, e b) o acesso e a qualidade dos serviços de controle pré-natal e parto assistido,
correspondem, hoje, por cerca de 6% dos óbitos de mulheres de 10 a 49 anos no Brasil, sendo que destes 90%
são evitáveis.” (BUGLIONE, Samantha. Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça, 2012). Disponível
em http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reprodução-e-sexualidade-uma-questão-de-justiça Acesso em
01/dez/2018.
661
“Ressalta-se, também, os problemas recorrentes da certificação médica desta causa específica de morte e,
consequentemente, da fidedignidade das estimativas obtidas, a morte materna é a mais subinformada, quer dizer,
é a morte onde se omite com maior frequência que é decorrente de complicações na gestação, parto ou puerpério,
estima-se que para cada morte declarada como materna existe uma que não foi declarada como tal. Desta forma,
se os dados atuais indicam que no Brasil, em 1997, a taxa de mortalidade materna foi de 55,1 por 100 mil
nascidos vivos, na realidade deve estar, no ano referido, muito próxima de 110 por 100 mil nascidos vivos. Este
valor aproxima o Brasil dos países mais pobres da América Latina.” (BUGLIONE, Samantha. Reprodução e
sexualidade: uma questão de justiça, 2012). Disponível em
http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reprodução-e-sexualidade-uma-questão-de-justiça. Acesso em
01/dez/2018.
662
“As quatro principais causas de morte materna no Brasil são: síndromes hipertensivas, hemorragias,
complicações do aborto e as infecções puerperais, que são causas obstétricas diretas, responsáveis por 89% das
mortes maternas no Brasil. As causas obstétricas diretas são mais evitáveis que as indiretas, pois dependem da
qualidade da assistência durante o ciclo gravídico-puerperal. Estudo realizado na França mostrou que 66% dos
óbitos ocorridos no período estudado eram evitáveis, sendo que 54,1% foram devidos à inadequação da
assistência, 10,8% à negligência da paciente e 2,7% à má prática. Os problemas assistenciais ocorrem
principalmente nas causas hipertensivas e nas hemorrágicas, seja pela inexperiência do médico em cuidar da
doença seja pela demora em admitir a gravidade do caso. No Brasil, em 1995, as mortes devidas às síndromes
hipertensivas apareceram em 29% das declarações de óbito; as síndromes hemorrágicas, em 17%; o aborto, em
9%; e as infecções puerperais, em 6% dos casos.” (BUGLIONE, Samantha. Reprodução e sexualidade: uma
questão de justiça, 2012). Disponível em http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reprodução-e-sexualidade-
uma-questão-de-justiça. Acesso em 01/dez/2018.

294
Existem várias outras causas de morte materna, e, dentre elas, é possível
exemplificar as complicações anestésicas, as infecções e hemorragias, relacionadas à via do
parto, e, também, à cesariana. Ainda, o aborto é a terceira causa de óbito no Brasil,
verificando-se a completa falta de assistência à população, por causa da garantia
constitucional do planejamento familiar. Esse tipo de morte indica que as ações de
planejamento familiar não estão funcionando de forma adequada. Além disso, o fato de a
prática do aborto ser criminalizada contribui para agravar o problema, pois a maior parte dos
casos ocorre na clandestinidade.663

A Portaria n.º 773/94 do Ministério da Saúde instituiu o Comitê Nacional de


Mortalidade Materna, para implementar um sistema de vigilância do óbito materno, o qual
passou a ser um evento de notificação compulsória, em face da Resolução n.º 256/97 do
Ministério da Saúde. A mortalidade materna, na maioria das vezes, refere-se à assistência
precária que a mulher recebe, cabendo destacar que a relação do usuário com o médico ou
hospital é uma relação resguardada pelo Código de Defesa do Consumidor, o qual oferece
mecanismos para a defesa dos sujeitos, bem como meios para prevenção de lesões nas
relações de consumo. Não há necessidade de comprovação de culpa, nos casos de morte
materna, por ação de reparação civil, o que é diferente na responsabilidade penal.664

De outro lado, o que se tem consagrado no Brasil, nos últimos tempos, é a


prática da esterilização feminina como método de contracepção, proporcionando o controle

663
“Dentre as causas de morte materna não se pode esquecer que, além das complicações anestésicas, as
infecções e as hemorragias estão relacionadas à via de parto, principalmente à cesariana. Pesquisa realizada por
Tanaka e Mitsuiki, em 1999, mostrou que, para os 15 municípios estudados, a taxa de morte materna por
cesariana foi 3,7 vezes maior do que no parto normal, cujos coeficientes foram de 46,20 e 12,57 por 100 mil
nascidos vivos. O aborto é a terceira causa de óbito no país, o que demonstra a completa falência da assistência à
população, visto a garantia constitucional do planejamento familiar. A morte de mulheres por aborto indica que
as ações de planejamento familiar não estão funcionando adequadamente. Associado a isso, existe a questão da
sua criminalização, que contribui como agravante do problema, em decorrência da clandestinidade e da maior
vulnerabilidade das mulheres pobres.” (BUGLIONE, Samantha. Reprodução e sexualidade: uma questão de
justiça, 2012). Disponível em http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reprodução-e-sexualidade-uma-questão-
de-justiça. Acesso em 01/dez/2018.
664
“A mortalidade materna levou o Estado a incrementar seu rol de estratégias para a redução do problema e
implementação de um sistema de vigilância do óbito materno. A Portaria n.º 773/94 do Ministério da Saúde
institui o Comitê Nacional de Mortalidade Materna e o óbito materno passou a ser evento de notificação
compulsória face a Resolução n.º 256/97 do Ministério da Saúde. Considerando que a mortalidade materna
refere-se, em sua maioria, à precariedade da assistência, é importante destacar que a relação usuário x serviço de
saúde (médico/hospital), é uma relação que possuiu guarda no Código de Defesa do Consumidor – Lei n.º
8.078/90. O Código de Defesa do Consumidor veio para proteger a vida quotidiana dos sujeitos, enquanto parte
de relações de prestação de serviço, oferecendo-lhes mecanismos próprios e adequados para a sua defesa, em
caso de patologia na relação de consumo, mas antes de tudo fornecer meios hábeis à prevenção da mesma.”
(BUGLIONE, Samantha. Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça, 2012). Disponível em
http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reprodução-e-sexualidade-uma-questão-de-justiça. Acesso em
01/dez/2018.

295
definitivo da fecundidade, estando o nosso País dentre aqueles com uma das mais altas taxas
de esterilização feminina do mundo. Esse dado também se relaciona com o abuso de partos
cirúrgicos. É certo que 74% das esterilizações no Brasil são feitas no momento do parto, das
quais 80% em um parto cesáreo.665

É possível que se faça uma relação entre a escolaridade e a esterilização. Dessa


análise, temos que a queda da fecundidade está associada à generalização do conhecimento e
do uso de métodos contraceptivos no Brasil. Muito embora, nos últimos anos, exista uma
maior diversidade dos métodos de contracepção, a esterilização continua sendo o método mais
frequente. Nas regiões mais pobres, existem as mais altas taxas de esterilização, as quais
aumentam à medida que diminuem os anos de escolarização. Ainda existe uma grande
dificuldade no serviço público de saúde em oferecer um serviço integral de contracepção,
fazendo com que as mulheres tenham de decidir entre esterilização, aborto clandestino ou
gravidez não planejada.666

665
“A consagração no Brasil da prática da esterilização feminina como método de contracepção, proporcionando
às mulheres brasileiras o controle definitivo de sua fecundidade, trouxe à tona contradições do debate sobre
direitos reprodutivos num país marcado por profundas desigualdades sociais e alvo de políticas demográficas de
controle populacional. A taxa de esterilização feminina das mulheres brasileiras que possuem parceiro fixo e
usam algum método contraceptivo, com idade entre 15-49 anos, passou de 26.9% em 1986 para 40.1% em 1996,
aumentando 49.07%, o que situa o Brasil entre os países com uma das mais altas taxas de esterilizações
femininas do mundo. Este dado também está relacionado ao abuso de partos cirúrgicos que passaram de 31.6%
em 1991, para 36.4% em 1996. Cabe lembrar que 74% das esterilizações no Brasil são realizadas no momento
do parto, das quais, 80% em um parto cesáreo (50). Segundo Daphne Rattner, do Instituto de Saúde da Secretaria
de São Paulo, um dos fatores que possam ter contribuído com o acentuado número de partos cesáreos no Brasil,
mesmo com os riscos conhecidos, é a adoção de um paradigma ‘médico’, proveniente dos EUA, ao contrário do
‘social’ dos países Europeus e Japão, cuja diferença básica centra-se na lógica controlista e risco zero do parto,
tirando da mulher o principal gerenciamento do processo. Ainda nesta lógica, Tânia Di Giácomo do Lago,
coordenadora da Área Técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, 2000, salienta o fato de que os
médicos recebiam pela cesárea o equivalente ao parto, sendo aquela mais cômoda em termos de organização do
serviço. Entre as medidas adotas pelo Ministério da Saúde para reverter este quadro, face os riscos de saúde à
mulher e os custos do Estado, estão o aumento em 30% para os médicos que fizerem parto, a equiparação de
enfermeiras obstétricas, limite de 40% de cesáreas por hospital e o prêmio Galba de Araújo que visa reconhecer
o trabalho mais humanizado.” (BUGLIONE, Samantha. Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça,
2012). Disponível em http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reprodução-e-sexualidade-uma-questão-de-
justiça. Acesso em 01/dez/2018.
666
“A vinculação entre escolaridade e esterilização ressaltam que a queda da fecundidade está associada à
generalização do conhecimento e do uso de métodos contraceptivos na sociedade brasileira. Apesar dos anos
mais recentes, simbolizar para uma maior diversidade dos métodos contraceptivos a esterilização continua sendo
o método mais frequente. Por outro lado, a idade média das mulheres que se esterilizam diminuiu de 31.4 anos
em 1986 para 28.9 anos em 1996, indicando aumento de precocidade na decisão de não mais procriar. Os
argumentos a favor da esterilização baseiam-se em inúmeros fatores, entre os quais, destacam-se: 1. a falta de
outras opções contraceptivas; 2. a sua eficácia contraceptiva; 3. a não verificação de efeitos imediatos sobre a
saúde das mulheres e 4. a sua característica de atuar sem a necessidade de controle diário. É inócuo desvincular a
prática de esterilização das mulheres brasileiras das desigualdades sociais existentes no país. As regiões mais
pobres do país, por exemplo, são as que têm as mais altas taxas de esterilização e estas aumentam conforme
diminui os anos de escolarização, mostrando-nos o alcance desta prática entre as camadas mais pobres da
sociedade. Ainda há o agravante relacionado às dificuldades que ainda enfrentam as redes públicas de saúde em
oferecerem um serviço integral de anticoncepção, acabando por colocar as mulheres diante de uma perigosa

296
O artigo 10 da Lei n.º 9.263/96 permite a esterilização voluntária, com o
cumprimento de uma série de formalidades, com o fim de desencorajar a escolha por tal
método de controle de fecundidade, em homens e mulheres com capacidade civil plena e
maiores de vinte e cinco anos. A lei proíbe a esterilização no período do parto e aborto e por
meio de histerectomia (remoção do útero, em extensão variável) e ooforectomia (extirpação
do ovário em extensão variável).667

Na realidade, explicitamente, os direitos sexuais e reprodutivos, nos dias atuais,


somente encontram previsão na Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340/2006), legislação que
representa um avanço na proteção dos direitos da mulher, dependendo da criação dos
mecanismos de defesa da mulher, tais como os Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher, o atendimento policial capacitado, a assistência judiciária integral,
especializada e humanizada, imposição de restrições não privativas de liberdade ao agressor,
por meio de imposição de medidas protetivas de urgência, a recente alteração legislativa de
indenização de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, além de outros tantos.668

encruzilhada: esterilização, aborto clandestino ou gravidez não planejada.” (BUGLIONE, Samantha.


Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça, 2012). Disponível em
http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reprodução-e-sexualidade-uma-questão-de-justiça. Acesso em
01/dez/2018.
667
“Em agosto de 1997, os vetos aos artigos 10, 11, 14 e 15 da Lei n.º 9.263/96 que regulamenta o §7º do artigo
226 da CF/88 foram afastados, retornando à lei os dispositivos referentes à esterilização cirúrgica do homem e da
mulher. Atualmente, conforme o artigo 10 da lei é permitida a esterilização voluntária, desde que cumprida uma
série de formalidades previstas para desencorajar a opção por tal método de controle de fecundidade, em homens
e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos. A lei proíbe, ainda, a esterilização no
período do parto e aborto, e através de histerectomia (remoção do útero, em extensão variável) e ooforectomia
(extirpação de ovário em extensão variável). O artigo 12 da lei proíbe a indução ou instigamento individual ou
coletivo à prática da esterilização cirúrgica. O art. 13 reafirma a proibição existente na Lei n.º 9.029/95 de exigir-
se atestado de esterilização ou teste de gravidez para quaisquer fins. No Capítulo II, arts. 15 a 21, a lei cuida dos
crimes e das penalidades para o caso de descumprimento das previsões nela contidas. Passam a ser crimes: a) a
omissão por parte do médico de notificação à autoridade sanitária das esterilizações cirúrgicas que realizar, art.
16; b) induzir ou instigar dolosamente a prática de esterilização cirúrgica, art. 17; ou c) exigir atestado de
esterilização para qualquer fim, art. 18. O artigo 14, parágrafo único da Lei n.º 9.263/96, apresenta os critérios
para autorização das instituições interessadas em fornecer os serviços de esterilização.” (BUGLIONE, Samantha.
Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça, 2012). Disponível em
http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reprodução-e-sexualidade-uma-questão-de-justiça. Acesso em
01/dez/2018.
668
“Explicitamente, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher somente encontram previsão na chamada lei
“Maria da Penha” ou “Lei de Violência Doméstica” (Lei n.º 11.340/06), legislação recente que representa um
avanço na proteção dos direitos da mulher, abarcando situações das mais diversas em âmbito doméstico, familiar
e por relação íntima de afeto, presente ou pretérita, ainda que sem coabitação ou parentesco (PORTO, 2007, p.
25), a serem protegidas através de mecanismos também descritos pela lei, como a criação de Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, o atendimento policial capacitado, assistência judiciária
integral, especializada e humanizada, imposição emergencial de restrições não-privativas de liberdade ao
agressor traduzidas em medidas protetivas de urgência, abertura para maior atuação do Ministério Público,
dentre outros tantos.” (PEROGER, Mayara Alice Souza; ALVES, Pedro Gonzaga. O reconhecimento dos
direitos sexuais e reprodutivos da mulher como direitos fundamentais frente aos novos paradigmas sociais:

297
Assim, verifica-se que a discussão sobre os direitos sexuais e reprodutivos
surgiu inicialmente de forma velada, por causa da existência de uma visão da mulher como
submissa em relação ao homem, tendo, apenas, a função inicial de procriação, não havendo
uma distinção entre reprodução e sexualidade. Com a mudança na conjuntura dos direitos
humanos, fundada na igualdade de gêneros, houve um efetivo reconhecimento desses direitos,
baseado em direitos correlatos como a vida, a segurança e a não discriminação da mulher.
Desse modo, esses direitos devem ser considerados como direitos humanos e fundamentais,
estando ligados a valores intrínsecos do homem, principalmente a dignidade da pessoa
humana.669

reafirmando a democracia). Disponível em: www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=3dd48ab31d016ffc.


Acesso em: 12/jan/2020.
669
“Nota-se que a discussão acerca dos direitos reprodutivos e sexuais surgiu historicamente de maneira velada,
na medida em que a mulher sempre fora vista em posição de inferioridade com relação ao homem, tendo como
função primordial a procriação, sendo que o questionamento focava tão somente uma solução ao problema
demográfico e não os direitos individuais que transpareciam, sem fazer a distinção entre reprodução e
sexualidade, condicionando-os a interesses político-econômicos através da promoção do controle natalista.
Contudo, com a mudança na conjuntura advinda de avanços teóricos, calcados na concepção dos direitos
humanos, na igualdade material dos gêneros (principalmente pelos movimentos feministas) e na vertente
ambiental, a década de 90 tornou-se um marco ao efetivo reconhecimento dos direitos reprodutivos e sexuais,
através de sua base em direitos correlatos, como a vida, a segurança e a não discriminação da mulher. Diante dos
conceitos de direitos reprodutivos e sexuais e, principalmente, da saúde sexual e reprodutiva, formados por esse
amadurecimento histórico frente à construção de gêneros e do entendimento da sexualidade e da reprodução
como fenômenos distintos, mostrou-se que tais direitos devem ser tomados como direitos humanos e
fundamentais, haja vista estarem ligados a valores intrínsecos ao homem, principalmente a dignidade da pessoa
humana (o que lhes confere valor de direitos do homem), ter sua previsão em legislação de caráter internacional
(que a caracterizam como direitos humanos) e no ordenamento interno (trazendo-lhes o status de direitos
fundamentais).” (PEROGER, Mayara Alice Souza; ALVES, Pedro Gonzaga. O reconhecimento dos direitos
sexuais e reprodutivos da mulher como direitos fundamentais frente aos novos paradigmas sociais: reafirmando
a democracia). Disponível em: www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=3dd48ab31d016ffc. Acesso em:
12/jan/2020

298
4 POLÍTICAS PÚBLICAS

4.1 Políticas públicas na saúde da mulher

A Organização Mundial de Saúde, em 1948, definiu saúde como um bem-estar


físico, psíquico e mental e não somente como ausência de saúde ou presença de enfermidade.
E, ainda, mais recentemente, a OMS passou a definir a saúde como a habilidade de identificar,
bem como realizar aspirações, satisfazer necessidades e interagir com o meio ambiente, sendo
um recurso para a vida diária.670

São importantes e necessários o planejamento e a criação de políticas públicas


para a saúde no Brasil, uma vez que ainda existe um modelo cruel de desigualdades históricas
internas de acordo com diferentes grupos sociais, gênero, cor, regiões de residência, entre
outros. Com relação à saúde da mulher, tem-se a saúde materna, reprodutiva, percebendo-se
um avanço com relação à sua condição feminina. Nesse contexto, deve-se atentar para o
aspecto psicossocial em que ela se insere, incluindo aspectos relativos à enfermidade, à
doença, ao bem-estar, à prevenção, aos diagnósticos, aos cuidados e à cura.671

670
“Em 1948, a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu saúde não apenas como ausência de doença ou
enfermidade, mas como um bem-estar físico, psíquico e social. No entanto, apesar de multidimensional este
conceito ainda se baseia num modelo biomédico. Mais recentemente, a OMS ampliou esta definição,
reconhecendo os laços entre as pessoas e o ambiente sócio-cultural. Saúde é então concebida como a habilidade
de identificar e realizar aspirações, satisfazer necessidades, e de mudar ou interagir com o meio ambiente.
Logo, saúde é um recurso para a vida diária, não o objetivo de viver. Saúde é um conceito positivo enfatizando
os recursos pessoais e sociais, assim como as capacidades físicas.” (MORI, Maria Elizabeth; COELHO, Vera
Lúcia Degnop; ESTRELLA, Renata da Costa Netto. Sistema Único de Saúde e políticas públicas: atendimento
psicológico à mulher na menopausa no Distrito Federal, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2006; 22(9): 1825-33).
Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2006000900013. Acesso em
22/nov/2018.
671
“A evolução dos conceitos sobre saúde da mulher, ao longo das últimas décadas, merece aqui um breve
comentário. Saúde materna, saúde reprodutiva e saúde da mulher são expressões que apontam para discussões
conceituais. Da primeira à terceira pode-se perceber um avanço no que diz respeito à condição feminina. Falar da
saúde da mulher significa atentar para todo o contexto psicossocial em que esta se insere. Isto inclui aspectos
relativos à enfermidade, à doença, ao bem-estar, assim como às atividades de prevenção, diagnóstico, cuidados e
cura. A referência canadense, em relação à saúde da mulher, é representativa de um conceito integral e amplo: A
saúde da mulher envolve aspectos emocionais, sociais e seu bem-estar físico e é determinada por um contexto
político, cultural e econômico da vida das mulheres, assim como biológico. Essa ampla definição reconhece a
validade das experiências das mulheres, suas opiniões sobre saúde e suas experiências de saúde. Cada mulher
deveria ter oportunidade de alcançar e manter sua saúde, tal como definida por ela própria, no seu mais alto
potencial (Women's Health Interschool Curriculum Committee, 1995, apud Galvão; p. 173)”. (MORI, Maria
Elizabeth; COELHO, Vera Lúcia Degnop; ESTRELLA, Renata da Costa Netto. Sistema Único de Saúde e
políticas públicas: atendimento psicológico à mulher na menopausa no Distrito Federal, Brasil. Cad. Saúde
Pública. 2006; 22(9): 1825-33). Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X2006000900013. Acesso em 22/nov/2018.

299
As mulheres, normalmente, são vistas como usuárias passivas e não como
protagonistas de sua história. Daí ser importante a vontade da mulher com relação às suas
necessidades, políticas públicas e seus programas. Existem diferenças entre homens e
mulheres em suas trajetórias de vida. Ultimamente, vem ocorrendo menor crescimento
populacional bem como transformações nas estruturas por idade e sexo. Com o fenômeno da
longevidade, criam-se novos estágios de desenvolvimento. A adolescência vem se
prolongando e, ao mesmo tempo, aumenta-se a expectativa de vida das pessoas, mudando-se,
também, a sexualidade e a reprodução, ocorrendo novas tecnologias de saúde.672

Essas transformações precisam estar incluídas dentro de políticas públicas de


saúde, as quais devem inserir a precocidade da menstruação e do início das relações sexuais,
os meios de contracepção, o aumento da incidência da gravidez na adolescência, bem como o
crescimento da gravidez após os quarenta anos devido ao uso de fertilizações, inclusive após a
menopausa, dentre outros.673

A promoção da saúde da mulher surgiu como modelo na década de 1970, no


Canadá, com base na biologia humana, no sistema de organização dos serviços, no ambiente
social, psicológico e físico, e no estilo de vida, que se encontra em processo de construção.
Em 1986, foi estabelecido o conceito de promoção da saúde, durante a Conferência de

672
“As mulheres costumam ser vistas como usuárias passivas e não como protagonistas da própria história,
capazes de articular prioridades e tomar decisões. Daí a importância das vozes femininas na definição de suas
necessidades e no desenho de políticas e programas. Isto vai na direção do conceito de clínica ampliada, que visa
produzir saúde e aumentar a autonomia do sujeito, da família e da comunidade (p. 44-5). Indicadores sociais
mostram as diferenças enfrentadas por homens e mulheres em suas trajetórias de vida. Menor crescimento
populacional e transformações nas estruturas por idade e sexo vêm ocorrendo nas últimas décadas. O ciclo vital
vem se modificando e o fenômeno da longevidade tem forçado a criação de novos estágios de desenvolvimento.
A adolescência tem se prolongado, adiando o início da vida adulta. Homens e mulheres experienciam situações
diversas das que seus pais e avós viveram. Além do aumento da expectativa de vida, mudanças na sexualidade e
reprodução, nas relações de gênero, nos processos de subjetivação e em novas tecnologias de saúde estão
ocorrendo. Tais transformações necessitam ser contempladas pelas políticas públicas de saúde.” (MORI, Maria
Elizabeth; COELHO, Vera Lúcia Degnop; ESTRELLA, Renata da Costa Netto. Sistema Único de Saúde e
políticas públicas: atendimento psicológico à mulher na menopausa no Distrito Federal, Brasil. Cad. Saúde
Pública. 2006; 22(9): 1825-33). Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X2006000900013. Acesso em 22/nov/2018.
673
“Tais políticas devem considerar fenômenos como: precocidade da menarca e do início das relações sexuais
entre jovens; meios contraceptivos que desvinculam sexo de reprodução; aumento da incidência de gravidez na
adolescência e tardia (depois dos quarenta, devido às tecnologias que garantem a fertilização mesmo após a
menopausa); jovens adultos solteiros e mesmo divorciados moram com os pais; homens e mulheres coabitam por
mais tempo antes de formalizarem uma união; divórcios e re-casamentos promovem rearranjos familiares. Idosos
convivem com doenças crônico-degenerativas com amplas repercussões sobre a família. Por outro lado, aqueles
que possuem uma vida saudável na velhice enfrentam maiores desafios para sua inserção social.” (MORI, Maria
Elizabeth; COELHO, Vera Lúcia Degnop; ESTRELLA, Renata da Costa Netto. Sistema Único de Saúde e
políticas públicas: atendimento psicológico à mulher na menopausa no Distrito Federal, Brasil. Cad. Saúde
Pública. 2006; 22(9): 1825-33). Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X2006000900013. Acesso em 22/nov/2018.

300
Ottawa, caracterizada como o processo de capacitação da comunidade como um todo para
atuar na melhoria da qualidade de vida e saúde, com a inclusão de uma maior participação no
controle desse processo.674

Em 1991, a Conferência de Sundsvall reconheceu a mulher com papel


importante para a construção de ambientes saudáveis à saúde, pois passou a considerar o
crescimento populacional como uma ameaça ao desenvolvimento sustentável, levando em
conta a superpopulação e o aumento da pobreza, o que aumentou a discussão sobre o
planejamento familiar.675

Em 1992, aconteceu a Declaração de Bogotá, a qual buscava uma adaptação


dos princípios da saúde à realidade dos países latinos. Como nas convenções anteriores, esse
documento estabeleceu, como compromisso para a promoção da saúde, a eliminação dos
efeitos diferenciais da iniquidade sobre a mulher, considerando-a como elo na promoção da
saúde na América Latina.676

No Brasil, nas primeiras décadas do século passado, a saúde da mulher foi


integrada dentro das políticas públicas. Entre os anos de 1930 e 1970, a visão que se tinha da

674
“O modelo de Promoção da Saúde surgiu na década de 70 no Canadá, baseando-se em quatro pólos: a
biologia humana; o sistema de organização dos serviços; o ambiente social, psicológico e físico; e o estilo de
vida, que está em amplo processo de construção. A Conferência de Alma-Ata, realizada em 1978, estabeleceu,
em sua Declaração, a atenção à assistência materno-infantil como prioridade, com inclusão do planejamento
familiar, relacionado não só a aspectos procriativos, mas abrangendo o conjunto das necessidades de uma
família, tais como: saúde, educação, moradia e lazer. A II Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde,
realizada em Adelaide em 1988, teve como tema central políticas públicas voltadas para a saúde. Foram
apresentadas quatro áreas prioritárias para a promoção de ações, e o apoio à saúde da mulher foi considerado
como uma destas áreas, com destaque para a valorização da mulher trabalhadora e a igualdade de direitos na
divisão do trabalho. No entanto, somente em 1986 foi estabelecido o conceito de Promoção da Saúde, durante a
Conferência de Ottawa, como sendo o processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da
qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle desse processo.” (FREITAS, Giselle
Lima; VASCONCELOS, Camila Teixeira Moreira; MOURA, Escolástica Rejane Ferreira; PINHEIRO, Ana
Karina Bezerra. Discutindo a política de atenção à saúde da mulher no contexto da promoção da saúde).
Disponível em: https://www.fen.ufg.br/revista/v11/n2/v11n2a26.htm. Acesso 06/dez/2017.
675
“A Conferência de Sundsvall (1991) que teve como tema central a criação de Ambientes Saudáveis à Saúde,
reconheceu a mulher como peça importante para a sua construção ao considerar o crescimento populacional uma
ameaça ao desenvolvimento sustentável, tendo em vista a super-povoação de ambientes insalubres e o aumento
da pobreza, o que incrementou a discussão sobre políticas de saúde da mulher e sobre o planejamento familiar.”
(FREITAS, Giselle Lima; VASCONCELOS, Camila Teixeira Moreira; MOURA, Escolástica Rejane Ferreira;
PINHEIRO, Ana Karina Bezerra. Discutindo a política de atenção à saúde da mulher no contexto da promoção
da saúde). Disponível em: https://www.fen.ufg.br/revista/v11/n2/v11n2a26.htm. Acesso 06/dez/2017.
676
“Com o objetivo de adaptar os princípios, as estratégias e os compromissos relacionados ao sucesso da saúde
da população à realidade dos países latinos, aconteceu a Declaração de Bogotá (1992). Partindo dos pressupostos
já estabelecidos pelas conferências anteriores, este evento estabeleceu como compromisso para a promoção da
saúde, a eliminação dos efeitos diferenciais da iniquidade sobre a mulher, considerando-a como um elo
indispensável na promoção da saúde na América Latina.” (FREITAS, Giselle Lima; VASCONCELOS, Camila
Teixeira Moreira; MOURA, Escolástica Rejane Ferreira; PINHEIRO, Ana Karina Bezerra. Discutindo a política
de atenção à saúde da mulher no contexto da promoção da saúde). Disponível em:
https://www.fen.ufg.br/revista/v11/n2/v11n2a26.htm. Acesso 06/dez/2017.

301
mulher era restritiva, reducionista e fragmentada, uma vez que se enxergava a mulher em seu
papel de esposa e mãe, ser responsável pela procriação, havendo, assim, uma diferenciação
biológica. Dessa forma, as políticas de saúde eram dirigidas somente para mulheres em idade
fértil, para controle de natalidade e para ações materno-infantis.677

A preocupação com a saúde materno-infantil vem desde a década de 1940,


quando foi criado o Departamento Nacional da Criança, o qual cuida não somente de crianças,
mas também das mães, no que se referia à gravidez e à amamentação. O perfil da assistência
pré-natal tem por princípio acolher a mulher do início ao fim da gestação, para garantir o
nascimento de uma criança saudável, assim como o bem-estar materno infantil.678

Na década de 1970, foi lançado o Programa de Saúde Materno-Infantil, cujo


objetivo era a redução das taxas de morbidade e mortalidade materna e infantil. Em 1983,
lançou-se o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), o qual adotava
algumas medidas para permitir o acesso da população a meios de contracepção e buscava
integralizar essa assistência, incorporando medidas educativas, de prevenção, promoção,
diagnóstico, tratamento e recuperação ginecológicos.679

677
“No Brasil, a saúde da mulher foi incorporada às políticas nacionais de saúde nas primeiras décadas do século
XX, sendo limitada, nesse período, às demandas relativas à gravidez e ao parto. Os programas materno-infantis,
elaborados nas décadas de 30, 50 e 70, traduziam uma visão restrita sobre a mulher, baseada em sua
especificidade biológica e no seu papel social de mãe e doméstica, responsável pela criação, pela educação e
pelo cuidado com a saúde dos filhos e demais familiares (BRASIL, 2011). No âmbito do movimento feminista
brasileiro, esses programas são vigorosamente criticados pela perspectiva reducionista com que tratavam a
mulher, que tinha acesso a alguns cuidados de saúde no ciclo gravídico-puerperal, ficando sem assistência na
maior parte de sua vida. Com forte atuação no campo da saúde, o movimento de mulheres contribuiu para
introduzir na agenda da política nacional, questões, até então, relegadas ao segundo plano, por serem
consideradas restritas ao espaço e às relações privadas (BRASIL, 2011).” (LIMA, Christiane Teixeira; PENA,
Karla Maria Fernandes; FONSECA, Mayare Prates; ANDRADE, Dina Luciana Batista; COSTA, Fernanda
Marques da. Análise das políticas públicas em saúde da mulher: uma revisão da literatura). Disponível em:
https://www.efdeportes.com/efd197/politicas-publicas-em-saude-da-mulher.htm. Acesso 06/dez/2017.
678
“No cenário brasileiro, a preocupação com a saúde materno-infantil remonta à década de 1940, com a criação
do Departamento Nacional da Criança, que enfatizava não somente cuidados com as crianças, mas também com
as mães, no que se referia à gravidez e à amamentação. O perfil da assistência pré-natal tem como princípio
fundamental acolher a mulher do início ao fim da gestação, garantindo o nascimento de uma criança saudável e o
bem-estar materno infantil.” (JORGE Herla Maria Furtado; HIPÓLITO Maiza Cláudia Vilela; MASSON Valéria
Aparecida; SILVA Raimunda Magalhães da. Assistência pré-natal e Políticas Públicas de Saúde da Mulher:
revisão integrativa. Ver Bras Promoç Saúde. 2015; 28(1): 140-148). Disponível em:
http://ojs.unifor.br/index.php/RBPS/article/view/2864/pdf. Acesso em 03/nov/2018.
679
“Na década de 70, foi então lançado o Programa de Saúde Materno-Infantil, no qual o planejamento familiar
figurava sob o enfoque da paternidade responsável, objetivando reduzir as elevadas taxas de morbidade e de
mortalidade infantil e materna. Em 1983, o governo brasileiro lançou o Programa de Assistência Integral à Saúde
da Mulher (PAISM) que adotava, com dificuldade, políticas e medidas para permitir o acesso da população aos
meios de contracepção e buscava integralizar essa assistência, incorporando medidas educativas, preventivas, de
promoção, diagnóstico, tratamento e recuperação nos âmbitos da ginecologia; pré-natal, parto e puerpério;
climatério; planejamento familiar; doenças sexualmente transmissíveis e câncer de mama e colo de útero.”
(FREITAS, Giselle Lima; VASCONCELOS, Camila Teixeira Moreira; MOURA, Escolástica Rejane Ferreira;

302
Com a análise das ações de atenção à mulher, entre 1998 e 2002, afirmou-se
que as políticas públicas voltadas à ginecologia, mantiveram ênfase na resolução de
problemas de ordem reprodutiva. Noutro giro, observou-se a incorporação de um novo tema,
ou seja, a redução da violência sexual contra a mulher, demonstrando, com isso, a
preocupação dessas políticas em atender a mulher nos aspectos gerais.680

Na década de 1990, não se verificaram grandes mudanças na área de saúde


com relação às mulheres, a não ser iniciativas com a finalidade de redução das cesáreas, bem
como humanização do parto. Nessa época, a taxa de mortalidade materna era de
aproximadamente 140 óbitos por 100.000 nascidos vivos. Assim, em 2000, o Ministério da
Saúde, com o intuito de redução dessa taxa, instituiu o Programa de Humanização no Pré-
natal e Nascimento (PHPN), por meio da Portaria GM n.º 569, de 1º/06/2000.681

Esse Programa tem a finalidade de assegurar a melhoria de acesso da cobertura


e da qualidade do acompanhamento pré-natal, da assistência ao parto e ao puerpério, assim
como assistência ao recém-nascido, dentro dos direitos de cidadania. Leva em consideração
que a humanização da assistência obstétrica e neonatal é a primeira condição para o
acompanhamento do parto e do puerpério, tendo por fundamento o dever das unidades de
saúde em receber as mulheres com dignidade e a adoção de medidas e procedimentos
benéficos para o acompanhamento do parto e do nascimento, evitando práticas

PINHEIRO, Ana Karina Bezerra. Discutindo a política de atenção à saúde da mulher no contexto da promoção
da saúde). Disponível em: https://www.fen.ufg.br/revista/v11/n2/v11n2a26.htm. Acesso 06/dez/2017.
680
“Uma análise das ações de atenção à saúde da mulher realizada de 1998 a 2002 afirmou que, apesar do
discurso integralizador, ainda assim, as políticas públicas voltadas a essa área do cuidado, mantiveram a ênfase
na resolução de problemas de ordem reprodutiva. Por outro lado, pôde ser observada a incorporação de um novo
tema, a redução da violência sexual, demonstrando a preocupação dessas políticas em atender a mulher em seus
aspectos mais gerais.” (FREITAS, Giselle Lima; VASCONCELOS, Camila Teixeira Moreira; MOURA,
Escolástica Rejane Ferreira; PINHEIRO, Ana Karina Bezerra. Discutindo a política de atenção à saúde da
mulher no contexto da promoção da saúde). Disponível em:
https://www.fen.ufg.br/revista/v11/n2/v11n2a26.htm. Acesso 06/dez/2017.
681
“O Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento foi instituído pelo Ministério da Saúde através da
Portaria/GM n.º 569, de 1/6/2000, subsidiado nas análises das necessidades de atenção específica à gestante, ao
recém-nascido e à mãe no período pós-parto, considerando como prioridades: – concentrar esforços no sentido
de reduzir as altas taxas de morbimortalidade materna, peri e neonatal registradas no país; – adotar medidas que
assegurem a melhoria do acesso, da cobertura e da qualidade do acompanhamento pré-natal, da assistência ao
parto, puerpério e neonatal; – ampliar as ações já adotadas pelo Ministério da Saúde na área de atenção à
gestante, como os investimentos nas redes estaduais de assistência à gestação de alto risco, o incremento do
custeio de procedimentos específicos, e outras ações como o Maternidade Segura, o Projeto de Capacitação de
Parteiras Tradicionais, além da destinação de recursos para treinamento e capacitação de profissionais
diretamente ligados a esta área de atenção, e a realização de investimentos nas unidades hospitalares integrantes
destas redes.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE. Programa Humanização do Parto, humanização do Pré-Natal e
Nascimento. Brasília (Brasil): Ministério da Saúde. 2002). Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/parto.pdf. Acesso em 04/mai/2019.

303
intervencionistas desnecessárias, que não trazem benefícios, embora sejam usadas na prática e
com frequência acarretam mais riscos para a própria mulher e o recém-nascido.682

O Programa baseia-se nos princípios de que toda gestante tem direito de acesso
e atendimento com dignidade durante a gestação, o parto e o puerpério; tem direito de ter
acesso à maternidade em que será atendida no momento do parto; tem direito à assistência ao
parto e que ele seja realizado de forma humanizada e segura; e o recém-nascido tem direito à
assistência neonatal humanizada e segura.683

Aos estados e municípios o programa incumbe, relativamente, o


acompanhamento pré-natal e puerperal e algumas recomendações. Assim, deve-se fazer a
primeira consulta de pré-natal até o quarto mês de gestação; realizar, pelo menos, seis
consultas de pré-natal, preferencialmente uma no primeiro trimestre de gestação, duas no
segundo e três no terceiro; fazer uma consulta no puerpério, até 10 dias após o parto, e outra
decorridos até 42 dias do nascimento; garantir exames laboratoriais, tais como hemograma
completo, glicemia de jejum, dentre outros; oferecer a realização de teste anti-HIV; aplicar
vacina antitetânica; realizar atividades educativas, submeter-se à classificação de risco
gestacional, para garantir o atendimento ambulatorial e/ou hospitalar em gestações
consideradas de alto risco.684

682
“O Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento fundamenta-se nos preceitos de que a humanização
da Assistência Obstétrica e Neonatal é condição primeira para o adequado acompanhamento do parto e do
puerpério. A humanização compreende pelo menos dois aspectos fundamentais. O primeiro diz respeito à
convicção de que é dever das unidades de saúde receber com dignidade a mulher, seus familiares e o recém
nascido. Isto requer atitude ética e solidária por parte dos profissionais de saúde e a organização da instituição de
modo a criar um ambiente acolhedor e a instituir rotinas hospitalares que rompam com o tradicional isolamento
imposto à mulher. O outro se refere à adoção de medidas e procedimentos sabidamente benéficos para o
acompanhamento do parto e do nascimento, evitando práticas intervencionistas desnecessárias, que, embora
tradicionalmente realizadas, não beneficiam a mulher nem o recém-nascido, e que com frequência acarretam
maiores riscos para ambos.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE. Programa Humanização do Parto, humanização do
Pré-Natal e Nascimento. Brasília (Brasil): Ministério da Saúde. 2002). Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/parto.pdf. Acesso em 04/maio/2019.
683
“O Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento está estruturado nos seguintes princípios: toda
gestante tem direito ao acesso a atendimento digno e de qualidade no decorrer da gestação, do parto e do
puerpério; toda gestante tem direito de saber e ter assegurado o acesso à maternidade em que será atendida no
momento do parto; toda gestante tem direito à assistência ao parto e ao puerpério e que esta seja realizada de
forma humanizada e segura, de acordo com os princípios gerais e condições estabelecidas na prática médica;
todo recém-nascido tem direito à assistência neonatal de forma humanizada e segura.” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE. Programa Humanização do Parto, humanização do Pré-Natal e Nascimento. Brasília. (Brasil):
Ministério da Saúde. 2002). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/parto.pdf. Acesso em
04/maio/2019.
684
“Em relação ao adequado acompanhamento pré-natal e assistência à gestante e à puérpera deverão ser
realizadas as seguintes atividades: 1 Realizar a primeira consulta de pré-natal até o 4° mês de gestação; 2
Garantir os seguintes procedimentos: 2.1 Realização de, no mínimo, seis consultas de acompanhamento pré-
natal, sendo, preferencialmente, uma no primeiro trimestre, duas no segundo trimestre e três no terceiro trimestre

304
Em 2004, o Ministério da Saúde confeccionou o documento da Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher – Princípios e Diretrizes (PNAISM), o qual
traz o compromisso com a implementação de ações para a mulher, com a garantia de seus
direitos à saúde, com enfoque à atenção obstétrica, planejamento familiar, atenção ao
abortamento seguro, com combate à violência sexual e à violência doméstica.685

O novo programa para a saúde das mulheres tinha por fim instituir ações
educativas, com prevenção de doenças, diagnósticos, tratamento e recuperação, com
assistência à mulher no pré-parto, no parto e no puerpério, além de instituir o planejamento
familiar, a prevenção de doenças, como o câncer de colo de útero e mama, bem como outras
necessidades compatíveis com o perfil das mulheres.686

da gestação. 2.2 Realização de uma consulta no puerpério, até quarenta e dois dias após o nascimento. 2.3
Realização dos seguintes exames laboratoriais: a) ABO-Rh, na primeira consulta; b) VDRL, um exame na
primeira consulta e outro na trigésima semana da gestação; c) Urina, um exame na primeira consulta e outro na
trigésima semana da gestação; d) Glicemia de jejum, um exame na primeira consulta e outro na trigésima
semana da gestação; e) HB/Ht, na primeira consulta. 2.4 Oferta de Testagem anti-HIV, com um exame na
primeira consulta, naqueles municípios com população acima de cinquenta mil habitantes. 2.5 Aplicação de
vacina antitetânica dose imunizante, segunda, do esquema recomendado ou dose de reforço em mulheres já
imunizadas. 2.6 Realização de atividades educativas. 2.7 Classificação de risco gestacional a ser realizada na
primeira consulta e nas consultas subsequentes. 2.8 Garantir às gestantes classificadas como de risco,
atendimento ou acesso à unidade de referência para atendimento ambulatorial e/ou hospitalar à gestação de alto
risco.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE. Programa Humanização do Parto, humanização do Pré-Natal e
Nascimento. Brasília. (Brasil): Ministério da Saúde. 2002). Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/parto.pdf Acesso em 04/maio/2019.
685
“Tendo em vista a necessidade de mudanças no cenário nacional referente às políticas voltadas à saúde da
mulher, que englobe os pressupostos da promoção da saúde, foi formulada a PNAISM para nortear as ações de
atenção à saúde da mulher de 2004 a 2007. Os princípios e diretrizes dessa nova proposta foram discutidos em
parceria com diversos segmentos da sociedade, em especial com o movimento de mulheres, o movimento negro
e o de trabalhadores rurais, sociedades científicas, pesquisadores e estudiosos da área, organizações não-
governamentais, gestores do SUS e agências de cooperação internacional. Esta foi uma iniciativa importante do
Governo e que se baseia nos princípios da promoção, respeitando a autonomia dos sujeitos em questão e
tornando-os co-autores de um processo decisório relevante para a categoria. Também demonstra a preocupação
em adotar políticas consoantes às necessidades das mulheres brasileiras e, assim, reduzir os índices de morbidade
e de mortalidade por causas preveníveis e evitáveis, o que não aconteceu na gênese das políticas anteriores.
Além disso, este documento consolida avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, com ênfase na
melhoria da atenção obstétrica, no planejamento familiar, na atenção ao abortamento inseguro e no combate à
violência doméstica e sexual. Propõem-se também a contemplar áreas como: prevenção e tratamento de
mulheres vivendo com HIV/aids e as portadoras de doenças crônicas não transmissíveis e de câncer
ginecológico.” (FREITAS, Giselle Lima; VASCONCELOS, Camila Teixeira Moreira; MOURA, Escolástica
Rejane Ferreira; PINHEIRO, Ana Karina Bezerra. Discutindo a política de atenção à saúde da mulher no
contexto da promoção da saúde). Disponível em: https://www.fen.ufg.br/revista/v11/n2/v11n2a26.htm. Acesso
06/dez/2017.
686
“O novo programa para a saúde da mulher incluía ações educativas, preventivas, de diagnóstico, tratamento e
recuperação, englobando a assistência à mulher em clínica ginecológica, no pré-natal, parto e puerpério, no
climatério, em planejamento familiar, DST, câncer de colo de útero e de mama, além de outras necessidades
identificadas a partir do perfil populacional das mulheres (BRASIL, 1984).” (MINISTÉRIO DA SAÚDE.
Informe da Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Princípios e Diretrizes.
Brasília. (Brasil): Ministério da Saúde; 2004b). Disponível em:
http://www.redeblh.fiocruz.br/media/pactopsfinfo22.pdf. Acesso em 04/maio/2019.

305
A PNAISM foi formulada para nortear as ações de atenção da saúde da mulher
entre os anos de 2004 e 2007. Essa política foi formulada tendo como base as políticas
anteriores e, assim, buscou-se preencher lacunas deixadas na saúde das mulheres, como
climatério ou menopausa, queixas ginecológicas, infertilidade e reprodução assistida, saúde da
mulher na adolescência, doenças crônico-degenerativas, saúde ocupacional e mental, doenças
infectocontagiosas, e, ainda, atenção às mulheres com deficiência, que moram no campo,
negras, indígenas, presidiárias e lésbicas.687

Mesmo com o aumento do número de consultas pré-natal, a assistência à saúde


da mulher ainda continua precária. Prova disso é a alta incidência de algumas doenças como a
sífilis congênita, a hipertensão arterial como causa mais frequente de morte materna no nosso
País, e a falta da 2ª dose ou a dose de reforço ou a dose imunizante da vacina antitetânica para
muitas gestantes. Na realidade, apenas parte das gestantes realizam o número mínimo de
consultas de pré-natal ou de puerpério.688

Com relação ao aborto, no nosso País, quando realizado em condições de risco


vem acompanhado de severas complicações, uma vez que muitas mulheres desconhecem os
seus sinais e, daí, vem a demora em procurar os serviços de saúde, e estes, em sua maioria,
não estão capacitados para seu atendimento. As preocupações que ocorrem com mais
frequência são a perfuração do útero, a hemorragia e a infecção, que podem levar a diferentes
graus de morbidade e mortalidade.689

687
“Esta nova política foi formulada tendo por base a avaliação das políticas anteriores e, a partir de então,
buscou preencher as lacunas deixadas, como: climatério/menopausa; queixas ginecológicas; infertilidade e
reprodução assistida; saúde da mulher na adolescência; doenças crônico-degenerativas; saúde ocupacional; saúde
mental; doenças infecto-contagiosas, bem como, a atenção às mulheres rurais, com deficiência, negras,
indígenas, presidiárias e lésbicas.” (FREITAS, Giselle Lima; VASCONCELOS, Camila Teixeira Moreira;
MOURA, Escolástica Rejane Ferreira; PINHEIRO, Ana Karina Bezerra. Discutindo a política de atenção à
saúde da mulher no contexto da promoção da saúde). Disponível em:
https://www.fen.ufg.br/revista/v11/n2/v11n2a26.htm. Acesso 06/dez/2017.
688
“Apesar do aumento do número de consultas de pré-natal, a qualidade dessa assistência é precária, o que pode
ser atestado pela alta incidência de sífilis congênita, estimada em 12 casos/1.000 nascidos vivos, no SUS (PN-
DST/AIDS, 2002), pelo fato da hipertensão arterial ser a causa mais frequente de morte materna no Brasil, e
também porque apenas 41,01% das gestantes inscritas no Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento
(PHPN) receberam a 2ª dose ou a dose de reforço ou a dose imunizante da vacina antitetânica, segundo o sistema
de informação do Programa (BRASIL, 2002). Os indicadores do SISPRENATAL (2002) demonstram que
somente 4,07% das gestantes inscritas no PHPN realizaram o elenco mínimo de ações preconizadas pelo
Programa (BRASIL, 2001) e que somente 9,43% realizaram as seis consultas de pré-natal e a consulta de
puerpério.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE. Informe da Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Integral à
Saúde da Mulher. Princípios e Diretrizes. Brasília. (Brasil): Ministério da Saúde; 2004b). Disponível em:
http://www.redeblh.fiocruz.br/media/pactopsfinfo22.pdf. Acesso em 04/maio/2019.
689
“O aborto realizado em condições de risco frequentemente é acompanhado de complicações severas,
agravadas pelo desconhecimento desses sinais pela maioria das mulheres e da demora em procurar os serviços de
saúde, que, na sua maioria, não está capacitado para esse tipo de atendimento (OLIVEIRA, 2003). As

306
O aborto feito em condições inseguras está entre as principais causas de morte
materna, sendo fonte de discriminação contra mulheres no serviço de saúde, bem como
violência institucional, que pode traduzir-se em demora no atendimento, falta de interesse das
equipes em escutar e orientar as mulheres ou na discriminação por meio de palavras e atitudes
preconceituosas. Pode ser que o aborto seja entendido como recusa da maternidade, o que
gera restrições por parte dos profissionais de saúde.690

Pouco se faz para evitar que ocorra o aborto, uma vez que as mulheres que têm
complicações com o aborto estão entre as pacientes mais negligenciadas na saúde e, como
regra, não são sequer encaminhadas a serviços ou profissionais capacitados. No SUS, o
atendimento a mulheres nessas condições tem diminuído, provavelmente como consequência
do uso de métodos contraceptivos.691

Com relação à gravidez na adolescência, de outro lado, poucos serviços


oferecem atenção à saúde sexual e reprodutiva dessas mulheres. Esse tipo de gravidez tem

complicações imediatas mais frequentes são a perfuração do útero, a hemorragia e a infecção, que podem levar a
graus distintos de morbidade e mortalidade (LANGER, 2001). Pesquisa realizada no Brasil, por Hardy e Costa,
estimou que 20% dos abortos clandestinos, realizados por profissional médico em clínicas, e 50% dos abortos
domiciliares, realizados pela própria mulher ou por curiosas, apresentam complicações.” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Princípios e Diretrizes. Brasília (Brasil)
2004a). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nac_atencao_mulher.pdf. Acesso em
04/mai/2019.
690
“O aborto realizado em condições inseguras figura entre as principais causas de morte materna e é causa de
discriminação e violência institucional contra as mulheres nos serviços de saúde. Violência que pode traduzir-se
no retardo do atendimento, na falta de interesse das equipes em escutar e orientar as mulheres ou mesmo na
discriminação explícita com palavras e atitudes condenatórias e preconceituosas. Pela representação simbólica da
maternidade, como essência da condição idealizada do ser mulher e da realização feminina, o aborto pode
sugerir uma recusa da maternidade e por isso pode ser recebido com muitas restrições por parte dos profissionais
de saúde.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Princípios e
Diretrizes. Brasília (Brasil) 2004a). Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nac_atencao_mulher.pdf. Acesso em 04/maio/2019.
691
“No entanto, pouco se faz para evitar que o aborto se repita, haja vista que as mulheres que tiveram
complicações de aborto estão entre as pacientes mais negligenciadas quanto aos cuidados de promoção da saúde
reprodutiva e, via de regra, nem são encaminhadas a serviços e profissionais capacitados (HUNTINGTON;
PIET-PELON, 1999). O atendimento às mulheres em processo de abortamento, no SUS, apresenta uma
tendência de estabilização na última década, consequência possível do aumento de mulheres usando métodos
anticoncepcionais e da elevada prevalência de laqueadura tubária, especialmente nos estados do Nordeste e
Centro-Oeste. Ainda assim, considerando-se que nem todas as mulheres buscam os serviços de saúde por ocasião
de um aborto, supõe-se que os registros do SUS não retratam a realidade brasileira. O melhor conhecimento do
número de mortes de mulheres por aborto no Brasil será um subsídio fundamental para a elaboração de políticas
que visem a prevenir a situação acima descrita.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE. Política Nacional de Atenção
Integral à Saúde da Mulher. Princípios e Diretrizes. Brasília (Brasil) 2004a). Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nac_atencao_mulher.pdf. Acesso em 04/mai/2019.

307
aumentado principalmente em regiões mais pobres, áreas rurais e na população com menos
escolaridade.692

Na realidade, a adolescência é um período no qual existe um rápido


crescimento e desenvolvimento do corpo, da mente e das relações em sociedade. É nessa fase
que se desenvolve o pensamento crítico, com um maior senso de independência emocional e
autoconhecimento. A sexualidade, também, tem uma grande dimensão, uma vez que ocorre o
aparecimento da capacidade reprodutiva do indivíduo.693

Nesse contexto, em 2011, com o fim de aumentar o acesso, bem como


melhorar a qualidade do pré-natal, da assistência ao parto e ao puerpério e assistência a
crianças até vinte e quatro meses de vida, o Governo Federal criou a Rede Cegonha. O intuito
disso foi garantir o acesso, o acolhimento, a resolução e a redução da mortalidade materno-
infantil. Tem como princípios o respeito, a proteção e a realização de direitos humanos; o
respeito à diversidade ética, cultural e racial; a promoção da equidade; o enfoque de gênero; a
garantia de direitos sexuais e reprodutivos de mulheres, homens, adolescentes ou não; a
participação e a mobilização social; e a compatibilização com as atividades das redes de
atenção à saúde materno-infantil. 694

692
“Poucos serviços oferecem atenção à saúde sexual e reprodutiva dos adolescentes. A gravidez na adolescência
vem sendo motivo de discussões controvertidas. Enquanto existe uma redução da taxa de fecundidade total, a
fecundidade no grupo de 15 a 19 anos de idade vem aumentando. Esse aumento se verifica mais nas regiões mais
pobres, áreas rurais e na população com menor escolaridade (PNDS, 1996). O censo de 2000 também evidencia
o aumento de fecundidade nessa faixa etária. Há dez anos, em cada grupo de 1.000 adolescentes, 80 tinham um
filho. Hoje, são 90 em cada grupo de 1.000. Dentre os fatores que contribuem para o aumento da fecundidade
nesse grupo está o início cada vez mais precoce da puberdade, assim como da atividade sexual (BERQUÓ,
2000). A análise mais aprofundada da questão da gravidez na adolescência é uma tarefa urgente a ser realizada
pela Área Técnica de Saúde da Mulher e pela Área Técnica de Saúde do Adolescente e outras áreas afins, para
que se possa dispor de políticas mais adequadas para essa faixa etária.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE. Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Princípios e Diretrizes. Brasília (Brasil) 2004a). Disponível
em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nac_atencao_mulher.pdf. Acesso em 04/mai/2019.
693
“A adolescência é marcada por um rápido crescimento e desenvolvimento do corpo, da mente e das relações
sociais. O crescimento físico é acompanhado de perto pela maturação sexual. A capacidade de abstração e o
pensamento crítico também se desenvolvem na juventude, juntamente com um maior senso de independência
emocional e de autoconhecimento. Na adolescência, a sexualidade tem uma dimensão especial que é o
aparecimento da capacidade reprodutiva no ser humano, concomitante à reestruturação do seu psiquismo. Ocorre
ainda a incorporação de novos valores éticos e morais à personalidade que se delineia, bem como a incorporação
de novos comportamentos e atitudes frente a uma estrutura de padrões sociais e sexuais, fortemente
influenciados pelas relações de gênero, estabelecidos social e culturalmente.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE.
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Princípios e Diretrizes. Brasília (Brasil) 2004a).
Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nac_atencao_mulher.pdf. Acesso em
04/mai/2019
694
“Art. 2° A Rede Cegonha tem como princípios:
I – o respeito, a proteção e a realização dos direitos humanos;
II – o respeito à diversidade cultural, étnica e racial;
III – a promoção da equidade;

308
A Rede Cegonha, que foi instituída pelo Sistema Único de Saúde (SUS),
consiste numa rede de cuidados que assegura às mulheres o direito ao planejamento
reprodutivo, à atenção humanizada na gravidez, no parto e no puerpério e assegura às crianças
o direito a ter um nascimento seguro, crescimento e desenvolvimento saudáveis. Possui quatro
componentes: pré-natal; parto e nascimento; puerpério e atenção integral à saúde da criança;
sistema logístico de transporte sanitário e regulação.695

Em 2017, o Ministério da Saúde editou as Diretrizes Nacionais de Assistência


ao Parto Normal, que devem ser utilizadas pelas Secretarias de Saúde dos Estados, Distrito
Federal e Municípios. Esse documento teve a finalidade de promover, proteger e incentivar o
parto normal, por meio da atenção à saúde da mulher durante o período gravídico-puerperal.
Também, uniformizou, além de padronizar as práticas de assistência ao parto, diminuindo as
intervenções desnecessárias e, assim, favorecendo mudanças durante todo o processo de parto
normal.696

As diretrizes nacionais, com fundamento em comprovações científicas,


estipulam recomendações para consulta e auxílio na tomada de decisões dos profissionais de
saúde, representando um avanço para a garantia dos direitos das mulheres e de sua autonomia.
Assim, o parto passa a ser entendido não como um conjunto de técnicas de procedimentos,

IV – o enfoque de gênero;
V – a garantia dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos de mulheres, homens, jovens e adolescentes;
VI – a participação e a mobilização social; e
VII – a compatibilização com as atividades das redes de atenção à saúde materna e infantil em desenvolvimento
nos Estados.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria n.º 1.459, de 24 de junho de 2011. Institui no âmbito do
Sistema Único de Saúde – SUS – a Rede Cegonha. Brasília (Brasil): 2011). Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt1459_24_06_2011.html. Acesso em 10/mai/2019.
695
“Art. 1° A Rede Cegonha, instituída no âmbito do Sistema Único de Saúde, consiste numa rede de cuidados
que visa assegurar à mulher o direito ao planejamento reprodutivo e à atenção humanizada à gravidez, ao parto e
ao puerpério, bem como à criança o direito ao nascimento seguro e ao crescimento e ao desenvolvimento
saudáveis, denominada Rede Cegonha.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria n.º 1.459, de 24 de junho de 2011.
Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS - a Rede Cegonha. Brasília (Brasil): 2011). Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt1459_24_06_2011.html. Acesso em 10/maio/2019.
696
“2. Escopo e Finalidades. 2.1. Objetivos gerais: Sintetizar e avaliar sistematicamente a informação científica
disponível em relação às práticas mais comuns na assistência ao parto e ao nascimento fornecendo subsídios e
orientação a todos os envolvidos no cuidado, no intuito de promover, proteger e incentivar o parto normal. 2.2.
Objetivos específicos: • Promover mudanças na prática clínica, uniformizar e padronizar as práticas mais
comuns utilizadas na assistência ao parto normal; • Diminuir a variabilidade de condutas entre os profissionais
no processo de assistência ao parto; • Reduzir intervenções desnecessárias no processo de assistência ao parto
normal e consequentemente os seus agravos; Difundir práticas baseadas em evidências na assistência ao parto
normal; e • Recomendar determinadas práticas sem, no entanto, substituir o julgamento individual do
profissional, da parturiente e dos pais em relação à criança, no processo de decisão no momento de cuidados
individuais.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE. Diretrizes nacionais de assistência ao parto normal. Brasília (Brasil):
Ministério da Saúde: 2017). Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_nacionais_assistencia_parto_normal.pdf Acesso em
10/mai/2019.

309
mas como algo que deve ser informado e garantido, respeitando-se sempre as escolhas da
gestante.697

4.2 Da assistência à mulher

Nos últimos anos, em vários países, tem-se verificado um aumento de casos de


violência contra a mulher, principalmente em instituições de saúde, especialmente aquelas que
se especializam em serviços de saúde reprodutiva, com a consequente violação dos direitos
humanos e reprodutivos.698

A violência na área de saúde é, na maioria das vezes, invisível. Em países


subdesenvolvidos, existem estudos que relatam maus-tratos contra mulheres durante o parto,
como, por exemplo, abuso verbal e físico, além de negligência, discriminação e práticas

697
“3. A quem estas diretrizes se destinam. Estas Diretrizes deverão servir de referência e orientação para a
assistência a:
• mulheres em trabalho de parto com parto normal planejado (espontâneo ou induzido) entre 37 e 42 semanas de
gestação com feto único, vivo e em apresentação cefálica;
• gestantes com ruptura prematura de membranas no termo ou imediatamente antes do parto;
• parturientes que apresentarem eliminação de mecônio imediatamente antes ou durante o trabalho de parto;
• anormalidades ou complicações mais comuns encontradas na assistência ao trabalho de parto e parto em todas
as suas fases;
• recém-nascido normal imediatamente após o parto e nas primeiras horas de vida;
• recém-nascido imediatamente após o parto na presença de líquido meconial;
• recém-nascido normal em alojamento conjunto e no momento da alta; e
• aleitamento materno e estímulo à amamentação.
As seguintes situações não estão cobertas por estas Diretrizes:
• mulheres em trabalho de parto prematuro (antes de 37 semanas de gestação);
• conduta em outras anormalidades ou complicações do trabalho de parto e parto não constantes das diretrizes;
• mulheres com diagnóstico de morte fetal ou com complicações da gestação tais como desordens hipertensivas,
diabetes, gravidez múltipla, restrição de crescimento fetal, apresentações anômalas, etc.;
• métodos e técnicas de indução do parto;
• técnicas de parto vaginal operatório ou cesariana;
• mulheres que necessitem de cuidados adicionais por infecção pelo HIV, herpes genital, estreptococo do grupo
B ou outras infecções;
• tratamento da hemorragia pós-parto.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE. Diretrizes nacionais de assistência ao parto
normal. Brasília (Brasil): Ministério da Saúde; 2017). Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_nacionais_assistencia_parto_normal.pdf. Acesso em
10/maio/2019.
698
“En los últimos 25 años se han acumulado evidencias en varios países de América Latina que demuestran que
los servicios de salud —en particular los de salud reproductiva— constituyen otro espacio en el que se ejerce
violencia contra las mujeres. En el ámbito internacional se han realizado estudios que recogen el testimonio de
las mujeres sobre su experiencia en los servicios de salud durante el parto, y en los que queda claro que muchas
de ellas fueron maltratadas, humilladas, intimidadas o sufrieron abusos (Asowa-Omorodion, 1997; Grossmann-
Kendall et al., 2001).” (CASTRO Roberto. Génesis y práctica del habitus médico autoritario en México. Ver
MexSociol. 2014; 76(2): 167-97). Disponível em:
http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0188-25032014000200001. Acesso em
10/ago/2018.

310
tradicionais. Relativamente aos casos de países onde o aborto é proibido, quando este ocorre,
muitas mulheres sofrem abuso e desrespeito nos serviços de saúde.699

Também na América Latina, esse tipo de violência tem se verificado, em países


como o México, Peru, Costa Rica e Brasil, sendo relatadas como formas de abuso mais
frequentes a desatenção ou abandono, assim como os abusos verbal, físico e sexual. Em uma
investigação na Argentina, relatam-se casos de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes à
saúde de mulheres em serviços de saúde reprodutiva. Praticamente na totalidade dos estudos
citados, atribui-se as violações a esses direitos a condições difíceis de trabalho por parte dos
profissionais, como um elevado número de pacientes para atender, em poucas horas, e como
um problema de falta de formação ética dos médicos.700

699
“Maternal morbidity and mortality in childbirth is a matter of utmost importance in public health. In this
article, we argue that part of the problem lies in violence committed by health workers in childbearing or
abortion services, which affects health-service access, compliance, quality, and effectiveness. We analysed
rigorous research from the past decade and discuss four forms of violent abuse by doctors and nurses: neglect
and verbal, physical, and sexual abuse. These forms of violence recur, are often deliberate, are a serious violation
of human rights, and are related to poor quality and effectiveness of health-care services. This abuse is a means
of controlling patients that is learnt during training and reinforced in health facilities. Abuse occurs mainly in
situations in which the legitimacy of health services is questionable or can be the result of prejudice against
certain population groups. We discuss ways to prevent violent abuse.” (D’OLIVEIRA, Ana Flávia Lucas;
DINIZ, Simone Grilo; SCHARAIBER, Lília Blima. Violence against women in health - care institutions: an
emerging problem. The Lancet. [Internet]. 2002; 359(9318): 1681-85). Disponível em:
http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0140673602085926. Acesso em 10/ago/2018. Tradução livre:
“A morbimortalidade materna no parto é uma questão de extrema importância na saúde pública. Neste artigo,
argumentamos que parte do problema está na violência cometida por profissionais de saúde em serviços de parto
ou aborto, que afeta o acesso, a conformidade, a qualidade e a eficácia dos serviços de saúde. Analisamos
pesquisas rigorosas da década passada e discutimos quatro formas de abuso violento de médicos e enfermeiros:
negligência e abuso verbal, físico e sexual. Essas formas de violência recorrem, geralmente são deliberadas, são
uma violação grave dos direitos humanos e estão relacionadas à baixa qualidade e eficácia dos serviços de saúde.
Esse abuso é um meio de controlar os pacientes, aprendidos durante o treinamento e reforçados nas unidades de
saúde. O abuso ocorre principalmente em situações em que a legitimidade dos serviços de saúde é questionável
ou pode resultar de preconceito contra determinados grupos populacionais. Discutimos maneiras de prevenir
abusos violentos.”
700
“En América Latina se ha documentado el estilo coercitivo que asumieron los programas de planificación
familiar en la década de los años ochenta (Bronfman y Castro, 1989), la existencia de diversas formas de
violencia contra las mujeres en los servicios públicos de Perú (Cladem, 1998), así como la ejecución de un
programa de Estado para la imposición de la anticoncepción quirúrgica entre los sectores más vulnerables y
desprotegidos de esa población (Cladem, 1999). En Costa Rica, la ginecobstetricia era una de las especialidades
que más acusaciones de mala práctica médica enfrentaban al principio de la década pasada (Chaves, Madrigal y
Ugalde, 2001), al tiempo que desde Brasil ya en esos años se identificaban cuatro formas de abuso de las mujeres
por parte de los médicos y el personal de enfermería: desatención o abandono, abuso verbal, abuso físico y abuso
sexual (D'Oliveira, Diniz y Schraiber, 2002). Más recientemente, una investigación testimonial en Argentina
detalló los ‘tratos crueles, inhumanos y degradantes a mujeres en servicios de salud reproductiva’ (Insgenar,
2006), mientras que otras investigaciones han identificado el ‘encarnizamiento terapéutico’, que se refiere al uso
innecesario de procedimientos médicos y quirúrgicos y que se efectúan básicamente porque se tiene el poder
para hacerlo (Pérez y Gérvas, 1999; Diniz y Chacham, 2004). En el caso de México, existen diversos estudios
que han abordado este problema, pero generalmente desde un enfoque de salud pública o en forma meramente
testimonial. En el primer caso, los análisis se basan en una perspectiva gerencial que aborda estas cuestiones
como un problema de ‘calidad’ de los servicios (Jiménez-Corona et al., 2006; Peña, Rodríguez y López, 2004;
Valdés, Molina y Solís, 2001); en el segundo caso, se trata de testimonios o denuncias individuales, ricas en

311
Desde os primeiros semestres da faculdade de Medicina, alunos em geral,
aprendem a hierarquia que existe na profissão, baseada na suposição de que os pacientes, em
particular as mulheres, subordinam-se aos seus comandos e às ações da equipe. Dessa forma,
é possível ignorá-las, repreendê-las e até mesmo agir de modo autoritário com elas quando
estiverem em atendimento. Assim, por meio de várias atitudes repressivas, os profissionais
desqualificam e ridicularizam a dor e as necessidades das mulheres, tendo isso como natural e
mesmo profissional. Dessa forma, há uma atitude de superioridade profissional e de gênero.701

Apenas para exemplificar, em Mato Grosso, na cidade de Cuiabá (uma das


maiores recordistas de partos cirúrgicos), dados apontam que o número de partos normais foi
de 50%, enquanto 49,6% foi de parto cesáreo. Ainda nessa cidade, em hospitais particulares, o
número de cesáreas é ainda maior. Assim, a pobreza e a falta de escolaridade apresentam-se

detalles acerca de las modalidades del abuso que se sufrió a manos del personal médico (Cruz, 2000), o de
noticias que publica la prensa normalmente porque se trata de demandas que los tribunales han resuelto en favor
de las mujeres.” (CASTRO Roberto. Génesis y práctica del habitus médico autoritario en México. Ver
MexSociol. 2014; 76(2): 167-97). Disponível em:
http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0188-25032014000200001. Acesso em
10/ago/2018.”
701
“A partir de estas consideraciones, en este trabajo busco documentar la solución de continuidad que existe
entre el habitus médico que comienza a fundarse durante la formación universitaria en las facultades de medicina
y que se consolida durante los años de especialización en los hospitales, y la relación autoritaria que los médicos
propenden a establecer con las mujeres durante la atención del parto. Es decir, postulo que existe una vinculación
estructural entre el conjunto de mensajes, enseñanzas, conminaciones, recriminaciones, clasificaciones,
etiquetaciones, descalificaciones, regulaciones y jerarquizaciones (de clase, de género, etcétera), que los
estudiantes de medicina y los médicos viven en carne propia o atestiguan de cerca durante los años de formación,
y los rasgos autoritarios que eventualmente exhiben durante su práctica profesional y que encuentran su vehículo
más propicio en el habitus médico. Se trata de ‘tecnologías del yo’ (cuya relevancia no ha sido dimensionada
adecuadamente), por cuanto constituyen prácticas pautadas a través de las cuales el campo médico se legitima y
se reproduce. La socialización de los estudiantes de medicina surgió al final de la década de los años cincuenta
del siglo pasado como objeto de estudio dentro de la sociología médica estadounidense. La escuela de Columbia
(Merton, Reader y Kendall, 1957) y la escuela de Chicago (Becker et al., 1961) lideraron la investigación en esta
materia. Desde entonces, varios tipos de aprendizajes fueron identificados como cruciales para los estudiantes en
su proceso de formación. Destacan entre ellos el entrenamiento para la "incertidumbre" (el estudiante debe
acostumbrarse a la dificultad de diferenciar entre las limitaciones de conocimiento de la ciencia médica y sus
propias limitaciones personales); el entrenamiento para la "atención distante" (el estudiante debe aprender a
regular su involucramiento personal con los pacientes), y el entrenamiento para el ‘manejo de los errores y
fracasos’ en su práctica. Común a estos aprendizajes es el desarrollo de cierto cinismo que los estudiantes y los
médicos generan con respecto a su trabajo, y en relación con otros colegas y con los pacientes (Wear et al.,
2009). En años recientes comenzaron a sobresalir las investigaciones referidas al maltrato que sufren los
estudiantes de medicina y a las agotadoras jornadas que deben cubrir los residentes, así como a los efectos que
tales aspectos tienen sobre su formación y su práctica (por ejemplo, Baldwin y Daugherty, 1997; Silver y
Glicken, 1990; Rautio et al., 2005). Se postula incluso que existe una ‘cultura’ del abuso de los estudiantes en las
escuelas de medicina que está vinculada con una sistemática ‘violación de la dignidad’ en los servicios de salud
(Uhari, 1994; Kassebaum y Cutler, 1998; Jacobson, 2009). También en México y América Latina diversos
estudios describen el abuso como algo constitutivo del ‘currículum no formal, con posibles vinculaciones con el
tipo de práctica que se ejerce, así como con el tipo de relaciones que pueden llegar a desarrollarse con los
propios colegas (Loría et al., 2010; Cortés, 2010; Fernández, 2007).” (CASTRO Roberto. Génesis y práctica Del
habitus médico autoritario en México. Ver MexSociol. 2014; 76(2): 167-97). Disponível em:
http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0188-25032014000200001. Acesso em
10/ago/2018.

312
como o fator maior para o parto normal. Desse modo, são essas mulheres que utilizam os
serviços do SUS, com as quais ocorrem mais complicações na gravidez, no parto e no
puerpério.702

Na relação médico-paciente, relação esta de dominação, a parte dominada é


sempre a mulher e, quando ela tenta exercitar seu poder e seu conhecimento, ou expressa o
seu descontentamento com o tratamento recebido, pode ser silenciosamente calada ou, na
maior parte das vezes, ignorada em suas manifestações de desagrado. Ressalta-se que a
sensibilidade à dor varia entre as mulheres e está ligada à emoção. Cada ser humano reage de
forma diferente à dor.703

Essa autoridade técnico-científica é a fonte do poder médico, baseada em dois


pilares: o médico detém a legitimidade científica dos conhecimentos e o paciente tem a
dependência em relação a esses conhecimentos, vez que a saúde tem um valor importante para
todos e não obedecer a autoridade médica pode resultar em danos para a saúde do próprio
paciente.704

A violência institucional, praticada em hospitais, no atual modelo tecnológico,


ocorre pela valorização do uso da tecnologia em detrimento de interações humanas, ou seja,
os recursos tecnológicos, ao invés de meios, são tomados como fins em si mesmos. Isso acaba
gerando uma despersonalização dos cuidados com a saúde, fragilizando os vínculos na relação

702
“Este fato tornou o Estado de Mato Grosso um dos recordistas nacionais nos partos cirúrgicos e há dados que
apontam que o número de partos normais em Cuiabá, no ano de 1998, foi de 50,0%, enquanto houve 49,6% de
cesáreas. Há uma discrepância entre o número de partos normais nos hospitais públicos e conveniados quando
comparados aos hospitais particulares e, nestes, as cesarianas são ainda mais frequentes. Desse modo, confirma-
se que ser pobre e com baixo grau de instrução parece apresentar-se como um ‘fator de proteção’ para o parto
operatório. É neste estrato específico da população que utiliza os serviços do SUS que ocorre, com maior
frequência, complicações na gravidez, parto e puerpério, mas é nele também que, curiosamente, se concentra o
menor percentual de cesarianas.” (TEIXEIRA, Neuma Zamariano Fanaia; PEREIRA, Wilza Rocha. Parto
hospitalar: experiências de mulheres da periferia de Cuiabá-MT. Revista Brasileira de Enfermagem.2006;
59(6): 740-744). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
71672006000600004&lng=pt&tlng=pt Acesso em 03/set/2018.
703
“A sensibilidade à dor varia entre os indivíduos e está ligada à emoção; pessoas mais emotivas estão mais
expostas à dor, pois a dor é, além de um fator biológico, também uma construção sócio-cultural. Cada ser
humano reage diferentemente à dor, e, no caso das parturientes, depende da forma como o grupo ao qual
pertence interpreta e entende o ato de parir, da forma como esta mulher foi ou não preparada para o parto, da sua
história de vida, de experiências anteriores positivas ou negativas em relação a seus partos e de suas mães e
conhecidas, interferindo também a forma como são recebidas e atendidas durante o processo de parir.”
(TEIXEIRA, Neuma Zamariano Fanaia; PEREIRA, Wilza Rocha. Parto hospitalar: experiências de mulheres da
periferia de Cuiabá-MT. Revista Brasileira de Enfermagem.2006; 59(6): 740-744). Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672006000600004&lng=pt&tlng=pt Acesso
em 03/set/2018.
704
AGUIAR, Janaína Marques de; D’OLIVEIRA, Ana Flávia Pires Lucas; SCHAIBER, Lilia Blima. Violência
institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais. Cad. Saúde Pública.
2013; 29(11): 2287-96. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v29n11/15.pdf. Acesso em 14/jan/2018.

313
entre eles. Desse modo, a Medicina moderna acaba perdendo valor ético humano e
necessidade técnica.705

Muitas mulheres não sabem como demonstrar seus sentimentos e suas emoções
que afloram no momento do parto, e passam, assim, a assumir comportamentos diferentes dos
que são esperados pela equipe médica, a qual, por sua vez, não aceita facilmente que as
parturientes podem não ter esse controle durante os procedimentos a que são submetidas. Ao
serem abordadas por profissionais de saúde, que nem sempre orientam ou esclarecem sobre os
exames que serão realizados, as mulheres se sentem manipuladas, pois são orientadas a
sentirem dor, mas a terem um comportamento adequado, sendo, portanto, boas
parturientes.706

Diante desse pensamento, as mulheres de baixo poder aquisitivo, passam a


aceitar e incorporar a verdade da classe dominante. Muitas dessas mulheres passam a
acreditar que procedimentos técnicos usados em hospitais são necessários e importantes,
mesmo que, atualmente, sejam desaconselhados e sem comprovação. Normalmente, dentro do
Sistema Único de Saúde (SUS) revela-se uma assistência com violência velada, tanto
psicológica quanto física, assim como desrespeito aos direitos das mulheres, como dor e

705
“A violência institucional em maternidades no atual modelo da medicina tecnológica se dá em um contexto
de ‘crise de confiança’, caracterizado principalmente por uma valorização do uso da tecnologia em detrimento
das interações humanas, ou seja, os recursos tecnológicos, ao invés de meios, passam a ser tomados como fins
em si mesmos. De acordo com Schraiber, tal mudança acaba resultando em uma série de rupturas interativas em
diversos planos, tanto entre profissional de saúde e paciente, conduzindo a uma despersonalização dos cuidados
em saúde, com fragilização dos vínculos na relação entre os mesmos, quanto entre profissionais de saúde e
destes com o seu próprio saber – o que a autora denomina de ‘anulação da reflexividade em sua prática’, ou seja,
a não reflexão sobre sua atuação na aplicação do saber técnico-científico para cada caso. Essa mudança no
caráter das relações imputa à medicina moderna uma dupla perda: como valor ético humano e como necessidade
técnica.” (AGUIAR, Janaína Marques de; D’Oliveira, Ana Flávia Pires Lucas, SCHAIBER, Lilia Blima.
Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais. Cad. Saúde
Pública. 2013; 29(11): 2287-96). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v29n11/15.pdf. Acesso em
14/jan/2018.
706
“Muitas mulheres não sabem como se comportar diante dos sentimentos e emoções que afloram nesse
momento, passam a assumir comportamentos distintos dos culturalmente esperados pela equipe de saúde, que
não aceita com facilidade que as parturientes podem não ter controle sobre seus atos durante as contrações e
procedimentos a que são submetidas. Ao serem abordadas pelos profissionais de saúde, que nem sempre
orientam e/ou esclarecem sobre os exames que serão realizados, as mulheres se sentem manipuladas, quase como
se fossem uma coisa sem vontade própria e sem direito de manifestar sua dor, pode sentir a dor, mas deve ter um
comportamento ‘adequado’ e parar de gritar e ficar quieta; é o que se espera da ‘boa’ parturiente. As mulheres
esperam que, durante intervenções técnicas, haja interação do profissional com elas, mas no parto hospitalar isso
não ocorre com frequência, pois ‘esta necessidade pode não ser sentida pelos profissionais que, ao se
centralizarem nos fazeres técnicos, não os integram aos fazeres interpessoais’.” (TEIXEIRA, Neuma Zamariano
Fanaia; PEREIRA, Wilza Rocha. Parto hospitalar: experiências de mulheres da periferia de Cuiabá-MT.
Revista Brasileira de Enfermagem.2006; 59(6): 740-744). Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672006000600004&lng=pt&tlng=pt. Acesso
em 03/set/2018.

314
negligência. Pode-se citar os casos de relações desiguais, com comunicação sem eficácia, uso
de termos técnicos, discurso, por parte dos profissionais de saúde, rude e autoritário.707

Em agosto de 2010, a Fundação Perseu Abramo publicou um relatório de


pesquisa chamado A mulher brasileira nos espaços público e privado, contendo entrevistas
com 2.365 mulheres, em áreas urbanas e rurais, de todos os estados brasileiros. A pesquisa foi
feita com 2.365 mulheres e 1.181 homens, com mais de 15 anos de idade, em 25 unidades da
federação, em áreas urbanas e rurais. Dentre as entrevistadas, 25% disseram ter sofrido algum
tipo de violência durante o parto, como abuso verbal, recusa em aliviar a dor, além de
manipulação dolorosa na vagina.708

A Pesquisa Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre o Parto e Nascimento,


realizada pela Fundação Oswaldo Cruz, demonstrou que predomina, no nosso País, com

707
“Por ser este o pensamento dominante e muito difundido, a comunidade de baixo poder aquisitivo, por não
deter os meios de produção, passa a aceitar e a incorporar a verdade da classe dominante. Muitas acreditam que
procedimentos técnicos utilizados nos hospitais são necessários e importantes, mesmo estando estes
desaconselhados na atualidade. Lembramos aqui da Manobra de Kristeller, que consiste na compressão
abdominal do fundo uterino, pelas mãos do obstetra ou outro profissional de saúde para auxiliar na expulsão
fetal, já condenada, porém ainda usada, como lembra a entrevistada: Ah! Tem que ajudar. Tem que ajuda a
criança a nascer. Ah! (...) Tem que ajudar fazer força, né? Tem que segurar, porque eu fui segurada, né, as
enfermeira ajudaram eu muito fazer força pro nenê nascer, porque tava demorando muito pra nascer. Elas
subiram aqui (mostrou o abdôme), apertaram minha barriga assim, e o nenê nasceu. Ah! Eu achei bom, porque
não queria nascer, com a força delas e a minha força o nenê nasceu (Ent. 7). Ao ouvir esses relatos e sabendo
das graves consequências que esta manobra provoca – como trauma das vísceras abdominais, do útero,
descolamento da placenta e traumas fetais – restando-nos a pergunta, porque ainda é utilizada? A resposta
provável é de que o atendimento hospitalar, tal como foi mencionado por várias das depoentes, traduz-se em dor,
descaso, abandono, que refletem a violência física, psicológica ou emocional a que quase todas revelaram terem
sido submetidas dentro dos serviços de atenção ao parto pelo SUS na cidade de Cuiabá/MT. Relatos esses que
nos lembram haver ainda muito por fazer para implementar o Programa de Humanização do Nascimento do
Ministério da Saúde e que há muitos investimentos ainda a serem feitos para melhorar a qualidade da assistência
ao parto e ao nascimento normais nos locais estudados.” (TEIXEIRA, Neuma Zamariano Fanaia; PEREIRA,
Wilza Rocha. Parto hospitalar: experiências de mulheres da periferia de Cuiabá-MT. Revista Brasileira de
Enfermagem.2006; 59(6): 740-744). Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672006000600004&lng=pt&tlng=pt. Acesso
em 03/set/2018.
708
A pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado realizada em 2010 pela Fundação
Perseu Abramo, por meio de seu Núcleo de Opinião Pública, e em parceria com o SESC, apresenta a evolução
do pensamento e do papel das mulheres brasileiras na sociedade. Entre os temas abordados no estudo estão:
Percepção de Ser Mulher: Feminismo e Machismo; Divisão Sexual do Trabalho e Tempo Livre; Corpo, Mídia e
Sexualidade; Saúde Reprodutiva e Aborto; Violência Doméstica e Democracia, Mulher e Política. A introdução
do recorte de gênero é a grande inovação deste estudo que desta vez ouviu mulheres e homens sobre a situação
da mulher brasileira. Os resultados podem ser comparados aos do estudo realizado pela FPA em 2001. Essa
comparação aponta melhorias na situação da mulher, mas também comprova que há um longo caminho a
percorrer na valorização e na inserção da mulher na sociedade. A pesquisa foi realizada em agosto de 2010 e
ouviu a opinião de 2.365 mulheres e 1.181 homens, com mais de 15 anos de idade, de 25 unidades da federação,
cobrindo as áreas urbanas e rurais de todas as macrorregiões do país. O levantamento envolve a inclusão de 176
municípios na amostra feminina e 104 na masculina. A margem de erro da pesquisa é entre 2 e 4 pontos
percentuais para mulheres e entre 3 e 4 pontos para os homens, em ambos o intervalo de confiança é de 95%.”
(FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Relatório da Pesquisa: A mulher brasileira nos Espaços Púbico e Privado.
2010). Disponível em: https://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/05629-introd.pdf. Acesso em 02/set/2018.

315
relação ao parto, um modelo totalmente medicalizado e com intervenções demasiadas,
contrariando recomendações e evidências científicas disponíveis para esse tipo de
intervenção. Dessa forma, como outros procedimentos complexos, a cesariana segue o padrão
de desigualdade na atenção à saúde. No setor privado, a proporção de cesarianas é de 88% dos
nascimentos. No setor público, envolvendo serviços próprios do SUS e os contratados do
setor privado, as cesarianas chegam a 52%. As cesarianas são mais frequentes em mulheres
adolescentes, as quais representam 19% das entrevistadas. Essa proporção elevada é
preocupante, pois mulheres que iniciam a vida reprodutiva cedo, tendem a ter um maior
número de filhos e, portanto, são expostas a mais risco nas futuras gestações, as quais geram
atraso escolar, além de desvantagens no acesso ao pré-natal e ao número de consultas
realizadas. Essas pesquisas mostram que há necessidade de se alterar o modelo utilizado para
realização de partos que se encontra em vigor no Brasil, pois demonstram cada vez mais
violência na assistência à mulher.709

A violência em maternidade ocorre por uma desigualdade na relação


hierárquica entre médico e paciente, com o fim de dominar e oprimir o segundo, de tal forma
a impedir ou anular a autonomia, a subjetividade ou a comunicação entre as partes. O poder

709
“Parto e Nascimento são eventos transformadores na vida de mulheres e bebês e, na maioria das vezes, não
apresentam riscos. A pesquisa ‘Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nacimento’ foi coordenada
pela Fundação Oswaldo Cruz e realizada com a participação de renomados pesquisadores de um grande número
de instituições científicas do país. Teve como objetivo conhecer os determinantes, a magnitude e os efeitos das
intervenções obstétricas no parto, incluindo as cesarianas desnecessárias; descrever a motivação das mulheres
para opção pelo tipo de parto; as complicações médicas durante o puerpério e o período neonatal; bem como
descrever a estrutura das instituições hospitalares quanto à qualificação dos recursos humanos, disponibilidade
de insumos, equipamentos, medicamentos e unidade de terapia intensiva (UTI) para adultos e neonatos. (…) A
maioria das mulheres teve seus filhos por meio de cesarianas, cirurgia realizada em 52% dos nascimentos, ao
analisar apenas o setor privado, a situação é ainda mais alarmante: 88% nasceram por meio de cesarianas. Não
há justificativas clínicas para um percentual tão elevado dessas cirurgias. Estima-se que, no país, quase um
milhão de mulheres, todos os anos, são submetidas à cesariana sem indicação obstétrica adequada, perdem a
oportunidade de ser protagonistas do nascimento de seus filhos, são expostas com eles a maiores riscos de
morbidade e mortalidade e aumentam desnecessariamente os recursos gastos com a saúde. Estudos recentes
mostram também as consequências e as repercussões da via de nascimento no curso natural do desenvolvimento
intrauterino dos recém-nascidos e sobre a saúde futura das crianças, incluindo o risco aumentado de obesidade,
diabetes, asma, alergias e outras doenças não transmissíveis. As cesarianas foram frequentes até mesmo nas
adolescentes (42%), que representaram 19% de todas as mulheres incluídas no estudo. Proporção tão elevada
dessa cirurgia é preocupante, pois mulheres que iniciam a vida reprodutiva cedo tendem a ter número maior de
filhos e, consequentemente, estarão expostas a mais risco nas gestações futuras. Há de se destacar nos achados
do estudo que as adolescentes entrevistadas apresentam perfil bastante desfavorável em relação às adultas. Mais
de dois terços delas estavam em atraso escolar ou fora da escola, pertenciam às classes sociais mais baixas (D e
E), além de apresentarem desvantagens relacionadas com o acesso ao pré-natal e ao número de consultas
realizadas. As adolescentes, em sua maioria, eram pretas ou pardas (71%). Essa desigualdade se refletiu também
na fonte de pagamento do parto, já que apenas 4,5% delas pariram em estabelecimento privado.” (ESCOLA
NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA. Inquérito Nacional sobre o Parto e Nascimento. Nascer no Brasil –
Sumário Executivo Temático da Pesquisa. Projeto Nascer no Brasil. Fundação Oswaldo Cruz; 2014). Disponível
em: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/arquivos/anexos/nascerweb.pdf. Acesso em 02/set/2018.

316
nessas instituições é exercido, sendo que o que deveria ocorrer era o cuidado à mulher e ao
bebê.710

Assim, é necessário que a relação entre a paciente e o profissional de saúde


esteja estruturada na confiança, no respeito, na segurança, devendo o profissional valorizar as
escolhas da mulher, além de fornecer os necessários esclarecimentos de quais procedimentos
serão adotados e utilizados. Toda gestante tem direito ao acesso a atendimento digno e de
qualidade no decorrer da gestação, parto e puerpério; direito de saber e ter assegurado o
acesso à maternidade em que será atendida no momento do parto; direito à assistência ao
parto e ao puerpério e que este seja realizado de forma humanizada e segura, de acordo com
os princípios gerais e condições estabelecidas na prática médica. Além disso, o recém-nascido
tem direito à assistência neonatal de forma humanizada e segura. As políticas de humanização
do parto dependem da postura dos profissionais de saúde, os quais devem ter uma postura
ética e humanizada e investir numa comunicação eficaz, tornando o processo de parturição
saudável e livre de todo o tipo de violência obstétrica.711

O combate da violência obstétrica é um caminho longo, mas necessário, sendo


por meio de denúncia, informação ou educação para que essa violação de direitos humanos
seja cessada. É certo que os problemas são inúmeros. Faz-se necessário o reconhecimento dos
direitos das mulheres, a luta por modelos ideais de atendimento a um parto digno e respeitoso,
independentemente da instituição ou do profissional. É preciso que se façam ações
preventivas, com informações e desconstrução de preconceitos.712

710
“A fim de definir o que consideramos como violência em maternidades, adotamos o conceito proposto por
Chauí sobre violência, entendida como a transformação de uma diferença em desigualdade numa relação
hierárquica com o objetivo de explorar, dominar e oprimir o outro que é tomado como objeto de ação, tendo sua
autonomia, subjetividade, comunicação e ação livres impedidas ou anuladas. Nesse sentido, buscamos
compreender os mecanismos pelos quais o poder é exercido nessas instituições e o que torna possível o exercício
de uma assistência violenta em um contexto em que se espera o cuidado à mulher e ao bebê. Tomamos
adicionalmente dois outros autores que também discutem, ainda que por aproximações diversas, a relação entre
violência e poder: Arendt e Foucault.” (AGUIAR, Janaína Marques de; D’Oliveira, Ana Flávia Pires Lucas,
SCHAIBER, Lilia Blima. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos
profissionais. Cad. Saúde Pública. 2013; 29(11): 2287-96). Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/csp/v29n11/15.pdf Acesso em 14/jan/2018.
711
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Humanização do parto e do nascimento. Brasília (Brasil): Ministério da Saúde;
2014. Disponível em:
http://www.redehumanizasus.net/sites/default/files/caderno_humanizasus_v4_humanizacao_parto.pdf. Acesso
em: 02/set/2018.
712
“A caminhada para combater a violência obstétrica é árdua, mas necessária. Seja por meio da denúncia – no
caso de uma ação violenta que aconteça na maternidade –, ou através da informação, educação e visibilidade
para que, cada vez mais, essa forma de hostilidade e violação não passe camuflada pela visão da sociedade. Os
problemas ainda são muitos. É necessário obter o reconhecimento dos próprios direitos, lutar pelo modelo ideal
de parto, respeitoso e digno, independente de instituição ou profissional. A ação precisa ser preventiva – baseada

317
Porém, mesmo diante de investimentos e esforços do Ministério da Saúde com
relação à redução das taxas de violência, elas ainda permanecem altas, com abusos no
processo de parturição por parte desses profissionais, sendo a violência obstétrica, ainda, uma
realidade nos serviços de saúde, havendo distinções dependendo de cada região e instituição
do Brasil.713

Vale ressaltar que, para a melhoria dessa situação, deve haver intervenções na
formação dos estudantes durante a graduação, a pós-graduação ou qualquer outra forma de
especialização, incluindo os direitos das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos nas
disciplinas de graduação em áreas de saúde, desde aqueles previstos no Código de Ética
Médica, como a autonomia e a escolha informada, até os direitos recentemente assegurados
pelo SUS, como o direito a acompanhantes na internação.714

Também devem ser exigidos, nas provas de residência e na pós-graduação,


dentre outras formas de especialização, os direitos dos profissionais e das pacientes, suas
violações e o modo de preveni-las. Deve haver investimentos na formação de obstetrizes e
enfermeiras obstetras, ou seja, em especialistas em parto fisiológico. O médico deve ser
valorizado como profissional, por ter capacidade de fazer diagnósticos e prescrições médicas
ou cirúrgicas nos casos necessários, que são a maioria, de forma que a maioria dos casos deve
ser conduzida por profissionais treinados para atenção ao parto fisiológico.715

no trabalho de informação e desconstrução de preconceitos para evitar qualquer ato violento que prejudique a
integridade física e mental, tanto da mãe quanto do bebê.” (ÁVILA, Letícia. Parto: Outro Lado Invisível do
Nascer: Como a violência obstétrica afeta 1 em cada 4 mulheres no Brasil, p. 111). Disponível em:
https://issuu.com/leticiaavila8/docs/livro_parto_leticia_avila.
713
ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA. Inquérito Nacional sobre o Parto e Nascimento. Nascer no
Brasil – Sumário Executivo Temático da Pesquisa. Projeto Nascer no Brasil. Fundação Oswaldo Cruz; 2014.
Disponível em: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/arquivos/anexos/nascerweb.pdf. Acesso em
02/set/2018.
714
“Intervenções na formação dos recursos humanos durante a graduação e a especialização e na formação
continuada: 1. Incluir os direitos das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos nas disciplinas de graduação
em saúde (medicina, enfermagem, obstetrícia, psicologia, entre outros), desde aqueles previstos no código de
ética médica, como a autonomia e a escolha informada, até os direitos recentes assegurados pelo SUS, como o
direito a acompanhantes na internação. Os direitos dos profissionais e das pacientes, suas violações e como
preveni-las devem ser contemplados nas provas de residência e no ensino de pós-graduação, nas várias formas de
especialização. (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar;
CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de
Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens,
definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human
Growth and Development. [Internet]. 2015). Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.
715
“Intervenções na formação dos recursos humanos durante a graduação e a especialização e na formação
continuada: 2. Investir na formação de obstetrizes e enfermeiras obstetras, ou seja, em especialistas em parto
fisiológico. Não é razoável esperar que a assistência ao parto deixe de ser eminentemente médico-cirúrgica, se
mais de 90% dos nascimentos no Brasil são assistidos por um médico com formação em cirurgia. Esse

318
Vale ressaltar que a preocupação principal, durante a gravidez e o parto deve
ser com as gestantes, em suas peculiaridades. Infelizmente muitas mulheres não denunciam a
prática desse tipo de violência, o que dificulta a ação de Conselhos de áreas de saúde, uma vez
que, quando não há denúncia, não há investigação. Deveria haver uma equipe para avaliar
periodicamente os dados que chegarem aos Conselhos, assim como a implementação de
campanhas educativas e uma maior visibilidade dos movimentos sociais que lutam por um
parto mais humanizado.716

Deve-se ensinar a assistência fisiológica e modificar as rotinas e as ambiências


de ensino, com ênfase em centros de parto normal-escola. Ainda, deve-se rever o conteúdo
curricular de todas as profissões de saúde para que o ensino prático não seja, como hoje,
baseado na exposição dos alunos a intervenções sem base em evidências científicas de sua
segurança e efetividade (por exemplo, mulheres com partos acelerados com ocitocina, em
posição de litotomia, com o uso desregulado de episiotomia e fórceps, muito frequentemente
sem acompanhantes), e na ausência de reflexão crítica sobre as intervenções, em sala de aula.
Deve-se promover o ensino da neuroendocrinologia do parto, do seu desenrolar fisiológico e
sua facilitação, e da promoção do conforto materno, o que exige igualmente uma mudança da

profissional deve ser valorizado por sua capacidade de fazer diagnósticos e prescrições médicas ou cirúrgicas nos
casos que deles necessitam (a minoria), de modo que a maioria dos casos seja conduzida por profissionais
treinados para a atenção ao parto fisiológico. A experiência do curso de Obstetrícia da Escola de Artes, Ciências
e Humanidades da USP pode ser um excelente ponto de partida para a replicação em todo o país.” (DINIZ,
Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula
Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY,
Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições,
tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and
Development. [Internet]. 2015). Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em
10/out/2018.
716
“Cada vez mais, é preciso que a preocupação central durante a gravidez e o parto estejam em atender as
peculiaridades de cada gestante. ‘O foco não é profissional. É a mãe, o bebê, a família. A violência obstétrica
ocorre pela vaidade, pela falta de respeito àquela família’, diz a enfermeira Alice. A falta de denúncias dificulta a
ação investigativa dos Conselhos relacionados à área de saúde, mas Alice também acredita que é preciso ter uma
fiscalização mais eficaz. ‘Quando não há denúncias, o Conselho não investiga. Deveria ter uma equipe para
avaliar periodicamente, em relação aos dados obstétricos, seja pré-natal, seja parto, seja pós-parto. A relação
entre o médico e paciente vem mudando ao longo dos anos, e o diálogo e o respeito precisam vir em primeiro
lugar. O médico Roberto, explica que essa mudança, além de necessária, é fundamental para o resgate do poder
da mulher sobre o seu parto. ‘A mulher precisa vir para o centro do processo, não como algo a parte. Ela é a atriz
principal, nós somos coadjuvantes’, afirma. Segundo o médico, para combater a violência obstétrica são
necessárias ações de mudança, como campanhas educativas e uma maior visibilidade dos movimentos sociais
que lutam por um parto mais respeitoso.” (ÁVILA, Letícia. Parto: outro lado invisível do nascer: como a
violência obstétrica afeta 1 em cada 4 mulheres no Brasil, p. 112/113). Disponível em:
https://issuu.com/leticiaavila8/docs/livro_parto_leticia_avila.

319
ambiência da assistência, combinada com o ensino teórico e prático, assim como o ensino de
evidências em saúde.717

As intervenções devem ser voltadas a informar e a fortalecer a autonomia de


usuárias e famílias, com o fornecimento de informações sobre assistência ao parto para as
mulheres como rotina do pré-natal, de modo que o conteúdo possa ser explorado com calma
nos meses em que a gravidez se desenvolve. As atividades educativas devem fazer parte da
rotina de pré-natal e não devem ser tratadas como algo secundário, mas, sim, essencial para a
promoção da saúde. O uso de planos de parto deve ser estimulado como recurso educativo.718

Ainda, o direito a acompanhantes deve ser garantido e todas as mulheres


devem ser informadas, no decorrer do pré-natal, sobre o seu direito durante toda a internação
para o parto (da admissão até a alta), passando pelo trabalho de parto, parto e recuperação
cirúrgica e/ou anestésica, bem como nos casos de aborto e de outras complicações, como
gestação ectópica e gestação molar. Essa informação deve ser fornecida com antecedência e
clareza suficientes para que a mulher e a família possam fazer os arranjos necessários para
garantir a escolha e a participação do acompanhante. Devem ser criados cursos paralelos para
o acompanhante para que ele entender o trabalho de parto, os benefícios e conseguir auxiliar,

717
“Intervenções na formação dos recursos humanos durante a graduação e a especialização e na formação
continuada: 3. Ensinar a assistência fisiológica e modificar as rotinas e as ambiências de ensino, com ênfase em
Centros de Parto Normal-escola. Rever o conteúdo curricular de todas as profissões de saúde para que o ensino
prático não seja, como hoje, baseado na exposição dos alunos a intervenções sem base em evidências científicas
de sua segurança e efetividade (por exemplo, mulheres com partos liberalmente acelerados com ocitocina, em
posição de litotomia, com o uso desregulado de episiotomia e fórceps, muito frequentemente sem
acompanhantes), e na ausência de reflexão crítica sobre as intervenções, em sala de aula. Promover o ensino da
neuroendocrinologia do parto, do seu desenrolar fisiológico e sua facilitação, e da promoção do conforto
materno, o que exige igualmente uma mudança da ambiência da assistência, combinada com o ensino teórico e
prático, assim como o ensino de evidências em saúde.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira;
ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila
Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica como
questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e
propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development. [Internet]. 2015). Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.
718
“Intervenções voltadas a informar e a fortalecer a autonomia de usuárias e famílias: 1. Fornecer
informações sobre assistência ao parto para as usuárias como rotina do pré-natal, de modo que o conteúdo possa
ser explorado com calma nos meses em que a gravidez se desenvolve. As atividades educativas devem fazer
parte da rotina de pré-natal e não devem ser tratadas como algo secundário, mas, sim, essencial para a promoção
da saúde. O uso de planos de parto deve ser estimulado como recurso educativo, conforme proposto por Tesser
et al.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar;
CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de
Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens,
definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human
Growth and Development. [Internet]. 2015). Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.

320
além da criação de uma política na qual exista apenas uma paciente por quarto, com a
companhia de seu acompanhante, direito já previsto em lei.719

Encontrado o problema, deve-se encontrar de quem é a responsabilidade. O


Ministério Público tem assumido a responsabilidade de enfrentar a cultura de
desconhecimento dos direitos das mulheres nos serviços, compilando denúncias e convocando
os responsáveis pelos serviços e pelo ensino para um diálogo sobre as mudanças necessárias.
Com essas iniciativas, provocadas por movimentos de mulheres, houve a promoção de um
clima de reconhecimento dos direitos, até então inédito na sociedade brasileira, repercutindo
em políticas públicas, como na ação contra a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)
sobre regulação das taxas de cesárea a partir de 2015. Além disso, importante é a criação, em
alguns Estados, de uma promotoria especializada para garantia do pré-natal, vagas em
hospitais e internações.720

Devem-se incentivar pesquisas e o desenvolvimento de indicadores de


violência obstétrica, pois, nos últimos anos, essas pesquisas vem demonstrando que o tema é
relevante e que existe urgência em seu conhecimento, uma vez que as próprias vítimas
desconhecem que foram lesadas. Ainda, desenvolver indicadores para o estudo da incidência
da violência obstétrica, como pesquisas de opinião, com a criação de um canal nacional para

719
“Intervenções voltadas a informar e a fortalecer a autonomia de usuárias e famílias: 2. Garantir o direito a
acompanhantes: todas as mulheres devem ser informadas, no decorrer do pré-natal, sobre o seu direito a
acompanhantes durante toda a internação para o parto, da admissão até a alta, passando pelo trabalho de parto,
parto e recuperação cirúrgica e/ou anestésica, bem como nos casos de aborto e de outras complicações, como
gestação ectópica e gestação molar. Essa informação deve ser fornecida com antecedência e clareza suficientes
para que a mulher e a família possam fazer os arranjos necessários para garantir a escolha e a participação do
acompanhante.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar;
CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de
Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens,
definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human
Growth and Development. [Internet]. 2015). Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf
Acesso em 10/out/2018.
720
“Visibilização e responsabilização: 1. Visibilizar o problema e responsabilizar atores: várias instituições,
como o Ministério Público, têm assumido a responsabilidade de enfrentar a cultura de desconhecimento dos
direitos das mulheres nos serviços, compilando denúncias e convocando os responsáveis pelos serviços e pelo
ensino para um diálogo sobre as mudanças necessárias. Tais iniciativas, provocadas por movimentos de
mulheres, foram decisivas para promover um clima de reconhecimento dos direitos, até então inédito na
sociedade brasileira, repercutindo em políticas públicas, como na ação contra a Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS) sobre regulação das taxas de cesárea a partir de 2015.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO,
Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino Cardin de;
CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência
obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde
materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development. [Internet]. 2015).
Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf Acesso em 10/out/2018.

321
avaliação do parto, podendo, com essa coleta de dados, buscar a sua prevenção. Essas
medidas devem incluir o monitoramento da mudança das práticas, das rotinas e ambiências.721

A divulgação da Central de Atendimento à Mulher – Disque 180 – se faz


necessária, bem como a sua capacidade para receber denúncias de violência obstétrica: casos
de violação dos direitos das mulheres na assistência ao pré-natal, ao parto, ao pós-parto e ao
abortamento devem ser encaminhados também à ouvidoria do serviço e do SUS, e até mesmo
ao Ministério Público.722

Devem ser uma prioridade a assistência ao abortamento e o acesso ao aborto


seguro. A violência obstétrica ocorre nesses casos, bem como há uma dificuldade da
interrupção da gravidez, mesmo nos casos permitidos por lei, ou seja, para salvar a vida da
gestante ou quando ela é vítima de estupro. Devem ser criados serviços que funcionem
efetivamente com o emprego de técnicas menos agressivas que a curetagem, técnica utilizada
amplamente e caso sério de violência. Essa procedimento deveria ser substituído pela
aspiração manual intrauterina (Amiu).723

721
“Visibilização e responsabilização: 2. Fomentar pesquisas e o desenvolvimento de indicadores de violência
obstétrica: nos últimos anos, pesquisas primárias e revisões desses estudos têm mostrado a relevância, a urgência
e as lacunas no conhecimento de tema tão emergente. Um dos desafios atuais consiste em desenvolver
indicadores para o estudo da incidência da violência obstétrica, assim como recursos para a mensuração do efeito
de intervenções para a sua prevenção. Estas medidas devem incluir o monitoramento da mudança das práticas,
das rotinas e ambiências.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria
de Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR,
Cláudia de Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil:
origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of
Human Growth and Development. [Internet]. 2015). Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.
722
“Visibilização e responsabilização: 3. Divulgar a Central de Atendimento à Mulher – Disque 180 e capacitá-
la para receber denúncias de violência obstétrica: casos de violação dos direitos das mulheres na assistência ao
pré-natal, ao parto, ao pós-parto e ao abortamento devem ser encaminhados também à ouvidoria do serviço e do
SUS, e mesmo ao Ministério Público.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO,
Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti
Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a
saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua
prevenção. Journal of Human Growth and Development. [Internet]. 2015). Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.
723
“Visibilização e responsabilização: 4. Incluir a assistência ao abortamento e o acesso a aborto seguro na
pauta de prioridades: o enfoque materno-infantil das atuais políticas voltadas para a saúde das mulheres
invisibiliza a precariedade e a violência da assistência nas situações de abortamento e também as dificuldades de
acesso à interrupção da gravidez, mesmo nas situações em que ela está prevista por lei. A falta de serviços que
funcionem efetivamente e o uso de técnicas agressivas como a curetagem – que deveria ser substituída pela
aspiração manual intrauterina (Amiu) – constituem situações graves de violência obstétrica amplamente
disseminadas pelo país e que necessitam de intervenção imediata.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa
de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO,
Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica
como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e

322
A implementação de um fórum perinatal se faz necessária, com regulação e
controle social. Essa estratégia tem como um de seus objetivos promover o diálogo entre os
atores envolvidos na assistência perinatal, incluindo os gestores do SUS e do setor
suplementar, os profissionais diretamente ligados a assistência, usuárias e grupos organizados,
representações do controle social, aparelho formador, universidades, pesquisadores,
ministérios públicos, defensorias públicas, conselhos profissionais, entre outros. A criação do
fórum perinatal é uma vitória, diante da grande resistência ao diálogo e à mudança, e sua
implementação e seu fortalecimento como arena de debate e de estabelecimento de pactos têm
se mostrado muito potentes na produção de mudanças.724

Assim, verifica-se que a violência obstétrica constitui um problema de saúde


pública complexo e multifatorial, de crescente importância e potencial explicativo, e de
grande repercussão sobre a saúde de mães e nascidos. A prevenção e a superação dessa forma
de violência demandam o engajamento de todos os envolvidos com a assistência, por exigir a
necessária coragem para a incorporação de abordagens inovadoras, tanto quanto às melhores
evidências de segurança dos pacientes, quanto da promoção dos seus direitos nas ações de
saúde.725

propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development. [Internet]. 2015). Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.
724
“Visibilização e responsabilização: 5. Implementar o Fórum Perinatal, com regulação e controle social: essa
estratégia tem como um de seus objetivos promover o diálogo entre os atores envolvidos na assistência perinatal,
incluindo os gestores do SUS e do setor suplementar, os profissionais diretamente ligados à assistência, usuárias
e grupos organizados, representações do controle social, aparelho formador, universidade, pesquisadores,
ministérios públicos, defensorias públicas, conselhos profissionais, entre outros. A criação do Fórum Perinatal é
uma vitória, diante da grande resistência ao diálogo e à mudança, e sua implementação e seu fortalecimento
como arena de debate e de estabelecimento de pactos têm se mostrado muito potentes na produção de
mudanças.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar;
CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; AGUIAR, Cláudia de
Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens,
definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human
Growth and Development. [Internet]. 2015). Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf
Acesso em 10/out/2018.
725
“De acordo com o que foi exposto, verifica-se que a violência obstétrica constitui um problema de saúde
pública complexo e multifatorial, de crescente importância e potencial explicativo, e de grande repercussão sobre
a saúde de mães e nascidos. A prevenção e a superação desta forma de violência demanda o engajamento de
todos os envolvidos com a assistência, por exigir a necessária coragem para a incorporação de abordagens
inovadoras, tanto quanto às melhores evidências de segurança dos pacientes, quanto da promoção dos seus
direitos nas ações de saúde.” (DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloísa de Oliveira; ANDREZZO, Halana
Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque;
AGUIAR, Cláudia de Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência obstétrica como questão para a saúde pública
no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção.
Journal of Human Growth and Development. [Internet]. 2015). Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v25n3/pt_19.pdf. Acesso em 10/out/2018.

323
Dessa forma, justifica-se como relevante esta pesquisa, não somente para
aprofundar o debate sobre violência obstétrica e suas formas de ocorrência, mas, também,
para encontrar políticas públicas voltadas para extingui-la, ou, ao menos, preveni-la, além de
promover o debate sobre as relações entre os profissionais de saúde que atuam nessa área e as
mulheres.

4.3 A legislação no atendimento ao parto

A Lei n.º 11.108, de 7 de abril de 2005, também chamada Lei do


Acompanhante, foi um marco na representação do reconhecimento do bem-estar da
parturiente, nas perspectivas da Medicina Baseada em Evidências e da Humanização. Ela
alterou a Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990, para garantir, desse modo, à parturiente, o
direito de ter a presença de um acompanhante durante o trabalho de parto, no próprio parto e
no pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

O artigo 19-J da Lei n.º 8.080/90 dispõe que os serviços de saúde do Sistema
Único de Saúde, de rede própria ou conveniada, têm por obrigação permitir a presença de um
acompanhante com a parturiente, durante todo o período de trabalho de parto e pós-parto
imediato. Essa pessoa deve ser indicada pela própria parturiente.726

O Ministério da Saúde, em dezembro de 1990, lançou a Portaria n.º 2.418,


regulamentando a Lei n.º 8.080/90 e estabelecendo o prazo de julho de 2006 para que as
instituições se adequassem à norma. Essa portaria previa, ainda, que a presença do
acompanhante não se limitava apenas ao parto, mas compreendia o período do pós-parto
imediato, ou seja, 10 dias, salvo intercorrências, bem como a autorização da cobrança das
despesas do acompanhante, de acordo com a tabela do SUS, pelo gestor.727

726
Lei n.º 8.080/90 – Art. 19-J: “Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde – SUS, da rede própria ou
conveniada, ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o
período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.
§ 1º O acompanhante de que trata o caput deste artigo será indicado pela parturiente.
§ 2º As ações destinadas a viabilizar o pleno exercício dos direitos de que trata este artigo constarão do
regulamento da lei, a ser elaborado pelo órgão competente do Poder Executivo. (Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11108.htm Acesso em 29/nov/2018).
Art. 19-L. (VETADO)”
727
PORTARIA N.º 2.418, DE 02 DE DEZEMBRO DE 2005
Regulamenta, em conformidade com o art. 1º da Lei n.º 11.108, de 7 de abril de 2005, a presença de
acompanhante para mulheres em trabalho de parto, parto e pós-parto imediato nos hospitais públicos e
conveniados com o Sistema Único de Saúde – SUS.
O MINISTRO DE ESTADO DA SAÚDE, no uso de suas atribuições, e

324
O direito ao acompanhante é reafirmado pela Resolução da Diretoria
Colegiada n.º 36 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), de 3 de junho de
2008, trazendo ainda informações sobre a estrutura física, biossegurança, prevenção e
controle de infecção para trabalhadores, mulheres e seus acompanhantes.

Na mencionada Resolução, a ANVISA traz algumas definições, ressaltando


que boas práticas para o funcionamento do serviço de saúde são componentes para garantir a
qualidade para que os serviços sejam ofertados com os devidos e adequados padrões de
segurança. Ademais, cultura de segurança é um conjunto de valores, atitudes, competências e
comportamentos que determinam o comprometimento da gestão da saúde e de segurança,
substituindo tanto a culpa quanto a punição por oportunidade de aprendizado com as falhas,
buscando melhorar a atenção à saúde.

O dano causado por uma conduta errada do profissional de saúde pode


comprometer a estrutura ou a função do corpo do paciente, incluindo doenças, lesão,
sofrimento, morte, incapacidade ou disfunção, o que evidencia que o dano não é apenas físico,
mas social e até psicológico. Considera-se efeito adverso o que resulta em dano à saúde.

A garantia de qualidade deve ser entendida como a totalidade de ações


sistemáticas e necessárias para que os serviços prestados estejam dentro dos padrões de
qualidade exigidos. Ainda, gestão de risco é a aplicação sistêmica e contínua de políticas,

Considerando o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento que visa assegurar a melhoria do acesso,
da cobertura e da qualidade do acompanhamento pré-natal, da assistência ao parto e ao puerpério às gestantes e
ao recém-nascido, na perspectiva dos direitos de cidadania;
Considerando que vários estudos da medicina baseados em evidências científicas apontam que o
acompanhamento da parturiente reduz a duração do trabalho de parto, o uso de medicações para alívio da dor e o
número de cesáreas, a depressão pós-parto e se constitui em apoio para amamentação; e
Considerando a Lei n.º 11.108, de 7 de abril de 2005, que altera a Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990, para
garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto
imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, resolve:
Art. 1º Regulamentar, em conformidade com o art. 1º da Lei n.º 11.108, de 7 de abril de 2005, a presença de
acompanhante para mulheres em trabalho de parto, parto e pós-parto imediato nos hospitais públicos e
conveniados com o Sistema Único de Saúde – SUS.
§ 1º Para efeito desta Portaria entende-se o pós-parto imediato como o período que abrange 10 dias após o parto,
salvo intercorrências, a critério médico.
§ 2º Fica autorizada ao prestador de serviços a cobrança, de acordo com as tabelas do SUS, das despesas
previstas com acompanhante no trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, cabendo ao gestor a devida
formalização dessa autorização de cobrança na Autorização de Internação Hospitalar – AIH.
§ 3º No valor da diária de acompanhante, estão incluídos a acomodação adequada e o fornecimento das
principais refeições.
Art. 2º Os hospitais públicos e conveniados com o SUS têm prazo de 6 (seis) meses para tomar as providências
necessárias ao atendimento do disposto nesta Portaria.
Art. 3º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2005/prt2418_02_12_2005.html. Acesso em 29/nov/2018.

325
procedimentos, condutas e recursos na análise, na identificação, na comunicação, na avaliação
e no controle de riscos e eventos adversos que afetem a saúde, a segurança, a integridade
profissional, o meio ambiente e a imagem institucional.

Todavia, é possível acontecer incidentes, os quais consistem em eventos ou


circunstâncias que podem ter como resultado um dano desnecessário à saúde. Para diminuir
essa possibilidade, o Núcleo de Segurança ao Paciente (NSP) é uma instância do serviço de
saúde criada para a promoção e o apoio à implementação de ações voltadas à segurança do
paciente.

O plano de segurança do paciente, nos serviços de saúde, é o documento que


identifica situações de risco e descreve quais estratégias e ações – definidas pelo serviço de
saúde para a gestão de risco – podem ser usadas para prevenir e mitigar os incidentes. Esse
plano acompanha o paciente desde sua admissão até sua transferência, alta ou o seu óbito.
Quanto à segurança, esta significa a redução, a um mínimo aceitável, de risco de dano sem
necessidade, cumulado com a atenção à saúde.

Os serviços de saúde são realizados em estabelecimentos destinados ao


desenvolvimento de ações relacionadas à promoção, à proteção, à manutenção e à
recuperação da saúde, qualquer que seja o seu nível de complexidade, em regime de
internação ou não. Também podem ser incluídas ações realizadas em domicílios, consultórios
e unidades móveis. Entende-se como tecnologias em saúde o conjunto de equipamentos,
medicamentos, insumos e procedimentos que sejam usados para a atenção à saúde, assim
como processos de trabalho, infraestrutura e organização do serviço de saúde.728

728
PORTARIA N.º 2.418, DE 02 DE DEZEMBRO DE 2005:
“Seção III Definições Art. 3º – Para efeito desta Resolução são adotadas as seguintes definições: I – boas
práticas de funcionamento do serviço de saúde: componentes da garantia da qualidade que asseguram que os
serviços são ofertados com padrões de qualidade adequados; II – cultura da segurança: conjunto de valores,
atitudes, competências e comportamentos que determinam o comprometimento com a gestão da saúde e da
segurança, substituindo a culpa e a punição pela oportunidade de aprender com as falhas e melhorar a atenção à
saúde; III – dano: comprometimento da estrutura ou função do corpo e/ou qualquer efeito dele oriundo, incluindo
doenças, lesão, sofrimento, morte, incapacidade ou disfunção, podendo, assim, ser físico, social ou psicológico;
IV – evento adverso: incidente que resulta em dano à saúde; V – garantia da qualidade: totalidade das ações
sistemáticas necessárias para garantir que os serviços prestados estejam dentro dos padrões de qualidade
exigidos para os fins a que se propõem; VI – gestão de risco: aplicação sistêmica e contínua de políticas,
procedimentos, condutas e recursos na identificação, análise, avaliação, comunicação e controle de riscos e
eventos adversos que afetam a segurança, a saúde humana, a integridade profissional, o meio ambiente e a
imagem institucional; VII – incidente: evento ou circunstância que poderia ter resultado, ou resultou, em dano
desnecessário à saúde; VIII – núcleo de segurança do paciente (NSP): instância do serviço de saúde criada para
promover e apoiar a implementação de ações voltadas à segurança do paciente; IX – plano de segurança do
paciente em serviços de saúde: documento que aponta situações de risco e descreve as estratégias e ações

326
A Resolução Normativa n.º 428 da Agência Nacional de Saúde Suplementar
(ANS), de 7 de novembro de 2017, considera ilegal a cobrança de despesas do acompanhante
para planos de saúde que contemplem o atendimento hospitalar com obstetrícia, seja em
modalidade de quarto coletivo, isto é, enfermaria, seja privativo, isto é, individual.

O artigo 23 dessa Resolução Normativa prevê que o parto hospitalar com


obstetrícia engloba toda a cobertura definida no artigo anterior, com o acréscimo dos
procedimentos referentes ao pré-parto, à assistência ao parto e ao puerpério, com as
exigências de cobertura das despesas, com a inclusão de paramentação, acomodação e
alimentação, relativas ao acompanhante indicado pela mulher durante o pré-parto, o parto e o
pós-parto imediato, ou seja, aquele período que abrange os dez dias posteriores ao parto, salvo
a hipótese de intercorrências, a critério do médico.729

O artigo 19-L, vetado pela Lei n.º 11.108, de 7 de abril de 2005, bem como sua
respectiva Mensagem n.º 198, estipula que o descumprimento do disposto no artigo 19-J e em
seu regulamento constitui crime de responsabilidade e sujeita o infrator diretamente
responsável às penalidades previstas na lei.

Com relação ao veto, passa-se a expor as suas razões. A Constituição Federal,


em seu artigo 85, dispõe que são crimes de responsabilidade os atos que atentem contra a
existência da União; o livre exercício dos Poderes Legislativo, Judiciário, do Ministério
Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; o exercício dos direitos
políticos, individuais e sociais; a segurança interna do País; a probidade na administração; a
lei orçamentária; o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Diante disso, não há como enquadrar a conduta prevista no artigo 19-L em


quaisquer das hipóteses constitucionais. Assim, o preceito em estudo viola o art. 85 da

definidas pelo serviço de saúde para a gestão de risco visando a prevenção e a mitigação dos incidentes, desde a
admissão até a transferência, a alta ou o óbito do paciente no serviço de saúde; X – segurança do paciente:
redução, a um mínimo aceitável, do risco de dano desnecessário associado à atenção à saúde; XI – serviço de
saúde: estabelecimento destinado ao desenvolvimento de ações relacionadas à promoção, proteção, manutenção
e recuperação da saúde, qualquer que seja o seu nível de complexidade, em regime de internação ou não,
incluindo a atenção realizada em consultórios, domicílios e unidades móveis; XII – tecnologias em saúde:
conjunto de equipamentos, medicamentos, insumos e procedimentos utilizados na atenção à saúde, bem como os
processos de trabalho, a infraestrutura e a organização do serviço de saúde.”
729
“Art. 23. O Plano Hospitalar com Obstetrícia compreende toda a cobertura definida no art. 22, acrescida dos
procedimentos relativos ao pré-natal, da assistência ao parto e ao puerpério, observadas as seguintes exigências: I
– cobertura das despesas, incluindo paramentação, acomodação e alimentação, relativas ao acompanhante
indicado pela mulher durante: a) pré-parto; b) parto; e c) pós-parto imediato, entendido como o período que
abrange 10 (dez) dias após o parto, salvo intercorrências, a critério médico;”

327
Constituição, uma vez que não se trata de uma infração político-administrativa. Ademais, a
regra prevista no artigo 19-L não encontra respaldo em nenhum diploma legal
infraconstitucional que discipline delitos de responsabilidade. Outrossim, o citado artigo não
define um novo ilícito penal, faltando tipificar a conduta a ser incriminada, já que permite ao
regulamento a referida tarefa e não comina a pena a ser aplicada.

Desse modo, não observa a estrutura da norma penal. Por esses argumentos, o
dispositivo ofendia o princípio da legalidade estipulado no art. 5º, inciso XXXIX, da
Constituição, o qual prevê que não há crime (ou contravenção penal) sem lei anterior que o
defina; nem pena (ou medida de segurança) sem prévia cominação legal. Quando o artigo
remete para o regulamento a tipificação da conduta criminosa, deixa de atender ao postulado
da reserva legal, subprincípio da legalidade, que impõe a tipificação de condutas por meio de
espécie normativa elaborada por meio de processo legislativo constitucional.

Ademais, o artigo vetado em comento não observa a estrutura da norma penal,


pois não define com clareza a conduta a ser incriminada, seja porque deixa de prever o
preceito secundário, desrespeitando, assim, a garantia elevada à condição de norma
constitucional dos cidadãos de não serem punidos por crimes cuja descrição seja vaga e
imprecisa e de não serem castigados com penas cuja espécie e quantidade não são
predeterminadas pelo legislador.

Assim, a Lei n.º 11.108, de 7 de abril de 2005, institui o direito de apenas um


acompanhante de escolha da parturiente, mas não traz os meios de punir aquele que impedir
ou não fizer cumprir essa previsão, por falta de amparo no corpo do Código Penal. Da forma
como está prevista, de certa forma, há um esvaziamento parcial da eficácia do instrumento
legal, pois, tendo o gestor da instituição de saúde conhecimento jurídico do fato, e, na sua
negativa em cumprir o dispositivo, ele tem conhecimento de que, após a denúncia não há
maiores consequências no sentido de reparar o dano cometido.

Ainda com relação ao direito ao acompanhante, a Agência Nacional de Saúde


Suplementar (ANS), que regula e fiscaliza os hospitais privados, prevê, na Resolução
Normativa n.º 262, a cobertura de despesas, incluindo paramentação, acomodação e
alimentação do acompanhante indicado pela mulher durante o pré-parto, o parto; e o pós-parto
imediato por 48 horas, salvo contraindicação do médico assistente. O descumprimento dessas

328
determinações representa negativa de cobertura e cabe reclamação à agência por meio do
telefone 0800 7019656 ou pelo sítio www.ans.gov.br.

Dessa forma, desde 2005, a gestante tem direito a um acompanhante de sua


escolha, o que é de extrema importância para o bom desenvolvimento do trabalho de parto,
podendo gerar a diminuição do número de cesáreas, necessidade de medicamento para alívio
da dor, redução do tempo de trabalho de parto e diminuição dos casos de depressão pós-parto.

Assim, tem-se que o direito ao acompanhante não constitui um privilégio da


mulher usuária da rede pública do SUS, mas uma medida que se aplica a todos os
estabelecimentos de atendimento à saúde nos quais sejam realizados partos,
independentemente de convênio público ou particular.

As Portarias do Ministério da Saúde n.º 1.067, de 4 de julho de 2005; e n.º


1.820, de 13 de agosto de 2009, estabelecem, a primeira, princípios, diretrizes e referências
para o atendimento à saúde da mulher em seus processos reprodutivos e ao recém-nascido; ao
passo que a segunda constitui o dispositivo legal que caracteriza os direitos e deveres dos
usuários da saúde. Ambas, do ponto de vista normativo, preveem os aspectos que envolvem o
atendimento humanizado.

A Portaria n.º 1.067 define os mecanismos de regulação e criação dos fluxos de


referência e contra-referência que garantam o adequado atendimento à gestante, à parturiente,
à puérpera e ao recém-nascido, e é, ainda, complementada pela Resolução RDC n.º 36, de 3
de julho de 2008, da ANVISA, que dispõe sobre o regulamento técnico para funcionamento
dos serviços de atenção obstétrica e neonatal.730

Em seu Anexo I, a Portaria n.º 1.067, de 4 de julho de 2005, prevê os princípios


gerais e diretrizes para a atenção obstétrica e neonatal, prescrevendo que esta deve ter como
características a qualidade e a humanização. Dessa forma, descreve como dever dos
profissionais de saúde acolher com dignidade a mulher e o recém-nascido, como sujeitos de
direitos. Humanizar quer diz adotar valores de autonomia e protagonismo dos sujeitos, de

730
Portaria n.º 1.067, de 04 de julho de 2005. Institui a Política Nacional de Assistência Obstétrica e Neonatal, e
dá outras providências. Disponível em:
file:///C:/Users/m313790/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Dow
nloads/portaria%20n%201067%202005%20-
%20institui%20a%20poltica%20nacional%20de%20ateno%20obsttrica%20e%20neonatal%20(2).pdf. Acesso
em 06/jun/2019.

329
corresponsabilidade entre eles, de solidariedade dos vínculos estabelecidos, de direitos dos
usuários e de participação coletiva no processo de gestão.731

De acordo com os mesmos princípios, o principal objetivo é o acolhimento da


mulher desde o início da gravidez, assegurando, ao seu final, o nascimento de uma criança
saudável, e o bem-estar da mulher e do recém-nascido. Essa atenção, com qualidade e
humanizada, depende da provisão de recursos necessários, da organização de rotinas com
procedimentos comprovadamente benéficos, evitando-se intervenções desnecessárias (com a
garantia de privacidade, autonomia), compartilhando com a mulher e sua família as decisões
sobre as condutas a serem adotadas.732

Cabe destacar, ainda, a necessidade de atenção especial à gestante adolescente,


entre 10 e 19 anos de idade, e a outros grupos específicos, como de mulheres negras, índias e
portadoras de HIV ou outras doenças infecciosas de transmissão vertical.733

Os estados e os municípios necessitam de uma rede de serviços, que seja


organizada para atenção obstétrica e neonatal, contendo mecanismos estabelecidos de
referência e contra referência, considerando alguns critérios, quais sejam, vinculação das
unidades que prestam atenção pré-natal às maternidades e aos hospitais; garantia de recursos
humanos, físicos, materiais e técnicos, necessários à atenção pré-natal, à assistência ao parto e
ao recém-nascido e à atenção puerperal, com critérios mínimos para funcionamento de
maternidades, hospitais e unidades de saúde; captação precoce de gestantes na comunidade;
garantia de atendimento a todas as gestantes que procurem os serviços de saúde; garantia da
realização dos exames complementares necessários; garantia de atendimento a todas as

731
Portaria n.º 1.067, de 4 de julho de 2005, institui a Política Nacional de Assistência Obstétrica e Neonatal e dá
outras providências. Disponível em:
file:///C:/Users/m313790/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Dow
nloads/portaria%20n%201067%202005%20-
%20institui%20a%20poltica%20nacional%20de%20ateno%20obsttrica%20e%20neonatal%20(2).pdf. Acesso
em 06/jun/2019.
732
Portaria n. 1.067, de 04 de julho de 2005. Institui a Política Nacional de Assistência Obstétrica e Neonatal, e
dá outras providências. Disponível em:
file:///C:/Users/m313790/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Dow
nloads/portaria%20n%201067%202005%20-
%20institui%20a%20poltica%20nacional%20de%20ateno%20obsttrica%20e%20neonatal%20(2).pdf. Acesso
em 06/jun/2019.
733
Portaria n. 1.067, de 04 de julho de 2005. Institui a Política Nacional de Assistência Obstétrica e Neonatal, e
dá outras providências. Disponível em:
file:///C:/Users/m313790/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Dow
nloads/portaria%20n%201067%202005%20-
%20institui%20a%20poltica%20nacional%20de%20ateno%20obsttrica%20e%20neonatal%20(2).pdf. Acesso
em 06/jun/2019.

330
parturientes e recém-nascidos que procurem os serviços de saúde e garantia de internamento,
sempre que necessário; vinculação das unidades de saúde à Central de Regulação Obstétrica e
Neonatal de modo a garantir a internação da parturiente e do recém-nascido nos casos de
demanda excedente; transferência da gestante e/ou do neonato em transporte adequado,
mediante vaga assegurada em outra unidade, quando necessário; garantia de atenção pré-
hospitalar qualificada à gestante e ao neonato em casos de urgência, conforme efetivado pelo
Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU); garantia de atendimento das
intercorrências obstétricas e neonatais; e garantia de atenção à mulher no puerpério e ao
recém-nascido.734

Tem-se como principal objetivo da atenção pré-natal o acolhimento da mulher,


desde o início da gravidez, sendo assegurado, ao fim da gestação, o nascimento de uma
criança saudável, além da garantia do bem-estar materno e neonatal. Para que essa atenção
seja qualificada e humanizada deve haver a incorporação de condutas acolhedoras e sem
intervenções desnecessárias, além de fácil acesso a serviços de saúde de qualidade, com ações
que integrem todos os níveis da atenção, ou seja, a promoção, a prevenção e a assistência à
saúde da gestante e do recém-nascido, desde o atendimento ambulatorial básico ao
atendimento pré-hospitalar e hospitalar para alto risco.735

Os estados e os municípios devem garantir uma atenção pré-natal realizada em


conformidade com os seguintes parâmetros: captação precoce das gestantes com a realização
da primeira consulta de pré-natal até 120 dias da gestação; realização de, no mínimo, seis
consultas de pré-natal, sendo, preferencialmente, uma no primeiro trimestre, duas no segundo
trimestre e três no terceiro trimestre da gestação; desenvolvimento de atividades ou
procedimentos durante a atenção pré-natal como a identificação da gestante pelo nome e dos
profissionais de saúde responsáveis pelo atendimento; escuta da mulher e de seus
acompanhantes, esclarecendo dúvidas e informando-os sobre o que vai ser feito durante a

734
Portaria n.º 1.067, de 4 de julho de 2005. Institui a Política Nacional de Assistência Obstétrica e Neonatal, e
dá outras providências. Disponível em:
file:///C:/Users/m313790/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Dow
nloads/portaria%20n%201067%202005%20-
%20institui%20a%20poltica%20nacional%20de%20ateno%20obsttrica%20e%20neonatal%20(2).pdf Acesso
em 06/jun/2019.
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Portaria n.º 1.067, de 4 de julho de 2005. Institui a Política Nacional de Assistência Obstétrica e Neonatal, e
dá outras providências. Disponível em:
file:///C:/Users/m313790/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Dow
nloads/portaria%20n%201067%202005%20-
%20institui%20a%20poltica%20nacional%20de%20ateno%20obsttrica%20e%20neonatal%20(2).pdf Acesso
em 06/jun/2019.

331
consulta e as condutas a serem adotadas; e atividades educativas a serem realizadas em grupo
ou individualmente ao longo da gestação, com linguagem clara e compreensível,
proporcionando respostas às indagações da mulher ou da família e as informações necessárias,
envolvendo temas como a importância do pré-natal, modificações corporais e emocionais
durante a gestação, atividade sexual, incluindo a prevenção de HIV e DST, preparo para o
parto, orientação para o aleitamento materno, entre outros.736

Deve-se assegurar, ainda, atendimento às gestantes classificadas como de risco,


garantindo o vínculo e o acesso à unidade de referência para atendimento ambulatorial e/ou
hospitalar especializado. Deve-se garantir o registro, em prontuário e cartão da gestante, de
intercorrências ou urgências que requeiram avaliação hospitalar em situações que não
necessitem de internação. E, ainda, atenção à mulher e ao recém-nascido na primeira semana
após o parto, com realização de avaliação global da saúde da criança; realização do teste do
pezinho; orientações sobre amamentação; e aplicação de vacinas, se necessário, e realização
da consulta puerperal entre a 30ª e 42ª semanas após o parto.737

No que diz respeito ao parto, deve-se, dentre outras medidas, acolher e


examinar a parturiente, chamando-a pelo nome, esclarecendo suas dúvidas e informando-a
sobre o que vai ser feito e compartilhando as decisões sobre condutas que serão tomadas,
garantir a visita do pai e familiares, sem restrições de horários; garantir o direito a
acompanhante, apoio diagnóstico necessário, medicamentos essenciais; acompanhar mulheres
em trabalho de parto com monitoramento; realizar partos normais ou cirúrgicos, respeitando a
escolha da mulher sobre o local e a posição do parto; permitir uso restrito de episiotomia,
garantir a presença de pediatra na sala de parto ou de profissional capacitado.738

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Portaria n.º 1.067, de 04 de julho de 2005. Institui a Política Nacional de Assistência Obstétrica e Neonatal, e
dá outras providências. Disponível em:
file:///C:/Users/m313790/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Dow
nloads/portaria%20n%201067%202005%20-
%20institui%20a%20poltica%20nacional%20de%20ateno%20obsttrica%20e%20neonatal%20(2).pdf. Acesso
em 06/jun/2019.
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Portaria n.º 1.067, de 04 de julho de 2005. Institui a Política Nacional de Assistência Obstétrica e Neonatal, e
dá outras providências. Disponível em:
file:///C:/Users/m313790/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Dow
nloads/portaria%20n%201067%202005%20-
%20institui%20a%20poltica%20nacional%20de%20ateno%20obsttrica%20e%20neonatal%20(2).pdf. Acesso
em 06/jun/2019.
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Portaria n.º 1.067, de 04 de julho de 2005. Institui a Política Nacional de Assistência Obstétrica e Neonatal, e
dá outras providências. Disponível em:
file:///C:/Users/m313790/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Dow
nloads/portaria%20n%201067%202005%20-

332
Assim, não faltam referências técnicas sobre os procedimentos necessários à
humanização do atendimento à saúde, sendo o Ministério da Saúde, em suas atribuições,
bastante competente segundo os aspectos teórico e abstrato. É importante verificar, sob a ótica
sociológica, o peso, no aspecto semântico, da palavra lei, ainda que, do ponto de vista
executivo, lei e portaria tenham o mesmo peso.

Mesmo assim, a título comparativo, com a finalidade de evidenciar a


morosidade, o descompromisso e o atraso das autoridades legais brasileiras e seus códigos
diante da situação de assistência ao parto e nascimento, passa-se à análise da legislação de
outros países. Ainda em março de 2009, a República Argentina sancionava a Lei n.º 26.485 de
Proteção Integral para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres nos
Âmbitos em que se Desenvolvem suas Relações Interpessoais, na qual estão tipificadas seis
tipos de violência contra a mulher, a saber: doméstica, institucional, laboral, contra a
liberdade reprodutiva, obstétrica e midiática.

Na Argentina, por exemplo, a Lei Nacional n.º 25.929, chamada Lei do Parto
Humanizado, autodefine-se como os Direitos dos Pais e Filhos durante o Processo de
Nascimento, sendo bastante minuciosa. Essa norma determina que o Poder Executivo faça
campanhas com a finalidade de conscientizar a sociedade sobre a importância do
acompanhamento da mulher durante o parto por uma pessoa de sua escolha, e dos benefícios
que significa para a saúde do binômio mãe-filho.

A lei argentina tem aplicação tanto ao âmbito público como privado da atenção
da saúde no território argentino. É uma lei que vale a pena ser citada no presente estudo,
devido à relevância de seus dispositivos. Dispõe a lei sobre os direitos da mulher durante a
gestação, o trabalho de parto, o parto e o pós-parto.

O primeiro deles é o direito de ser informada sobre as distintas intervenções


médicas que poderão ocorrer durante os processos de gestação, parto e pós-parto, de forma
que possa optar livremente quando existirem diferentes alternativas.

O segundo prevê o direito de ser tratada com respeito, e de modo individual e


personalizado com o fim de garantir sua intimidade durante todo o processo assistencial,
inclusive com consideração a seus padrões culturais.

%20institui%20a%20poltica%20nacional%20de%20ateno%20obsttrica%20e%20neonatal%20(2).pdf. Acesso
em 06/jun/2019.

333
Como terceiro direito temos o de ser considerada, em sua situação, como
pessoa sã, para facilitar sua participação como protagonista de seu próprio parto. Ainda tem
direito ao parto natural, respeitoso dos tempos biológico e psicológico, evitando práticas
invasivas e ministração de medicamentos que não estejam justificados pelo estado de saúde da
parturiente ou do bebê.

Há, ainda, o direito de ser informada sobre a evolução de seu parto, o estado de
seu bebê, participando das diferentes atuações dos profissionais. Tem direito a não ser
submetida a nenhum exame ou intervenção com finalidade de investigação, salvo manifesto
consentimento.

Tem o direito de estar acompanhada, por uma pessoa de sua confiança e


escolha, durante o trabalho de parto, parto e pós-parto, bem como de ter, a seu lado, seu filho
ou filha durante a permanência no estabelecimento de saúde, sempre que o recém-nascido não
requeira de cuidados especiais.

Um outro direito é o de ser informada, desde a gestação, sobre os benefícios do


aleitamento materno e receber apoio para amamentar; de receber assessoria e informação
sobre os cuidados de si mesma, e do filho ou filha; de ser informada sobre os efeitos adversos
do tabaco, álcool e drogas sobre seu bebê e a si mesma.

Com relação ao recém-nascido, ele tem direito de ser tratado de forma


respeitosa e digna, de ser identificado, de não ser submetido a nenhum exame ou intervenção
com o fim de docência ou investigação, salvo consentimento de seus representantes legais.
Tem direito, ainda, a internação conjunta com sua mãe no quarto, e que esta seja o mais breve
possível, bem como o direito que seus pais recebam ajuda e informação sobre os cuidados
com seu crescimento e desenvolvimento e direito a um plano de vacinação.

Com relação aos pais do recém-nascido, a lei argentina ainda prevê os


seguintes direitos: de receber informações sobre o processo ou evolução da saúde do seu filho,
incluindo o diagnóstico, prognóstico e tratamento; de ter acesso contínuo a seu filho,
enquanto a situação clínica permita, bem como participar de seu cuidado e na tomada de
decisões sobre sua assistência; de prestar seu consentimento, manifestado por escrito, a
exames ou intervenções a que seja submetido seu filho ou filha com fins de pesquisa; de ter
facilidades do aleitamento materno sempre que não incida desfavoravelmente sobre sua

334
saúde; e o direito de receber auxílio e informação sobre os cuidados especiais do seu filho ou
filha.739

739
Lei Nacional n.º 25.929: Declaração de Interesse do Sistema Nacional de Informação Mulher, por parte do
Senado da Nação
Declaração sobre a difusão do Parto Humanizado
A CÂMARA DOS DEPUTADOS DA NAÇÃO DECLARA
Solicitar ao Poder Executivo, que através do organismo que corresponda, inicie dentro de suas atividades uma
campanha destinada a conscientizar a sociedade sobre a importância do acompanhamento da mulher durante o
parto por uma pessoa de sua escolha, e dos benefícios que significa para a saúde do binômio mãe-filho.
O Senado e Câmara dos Deputados da Nação Argentina reunidos em Congresso, etc. sancionam com força de
lei:
Art. 1º– A presente lei será de aplicação tanto ao âmbito público como privado da atenção da saúde no território
da Nação. As obras sociais regidas por leis nacionais e as entidades de medicina particulares deverão deve
fornecer benefícios obrigatórios nos termos desta lei, que são incorporados automaticamente ao Programa
Médico Obrigatório.
Art. 2º – Toda mulher, em relação à gestação, trabalho de parto, parto e pós-parto, tem os seguintes direitos:
a) a ser informada sobre as distintas intervenções médicas que poderão ocorrer durante estes processos, de modo
que possa optar livremente quando existirem diferentes alternativas.
b) a ser tratada com respeito, e de modo individual e personalizado que lhe garanta a intimidade durante todo o
processo assistencial e tenha em consideração seus padrões culturais.
c) a ser considerada, em sua situação a respeito do processo de nascimento, como pessoa sã, de modo que se
facilite sua participação como protagonista de seu próprio parto.
d) ao parto natural, respeitoso dos tempos biológico e psicológico, evitando práticas invasivas e ministro de
medicação que não estejam justificados pelo estado de saúde da parturiente ou da pessoa por nascer.
e) a ser informada sobre a evolução de seu parto, o estado de seu filho ou filha e, em geral, que seja participante
das diferentes atuações dos profissionais.
f) a não ser submetida a nenhum exame ou intervenção cujo propósito seja de investigação, salvo consentimento
manifestado por escrito e sob protocolo aprovado pelo Comitê de Bioética.
g) a estar acompanhada, por uma pessoa de sua confiança e escolha, durante o trabalho de parto, parto e pós-
parto.
h) a ter a seu lado seu filho ou filha durante a permanência no estabelecimento sanitário, sempre que o recém-
nascido não requeira de cuidados especiais.
i) a ser informada, desde a gestação, sobre os benefícios do aleitamento materno e receber apoio para
amamentar.
j) a receber assessoria e informação sobre os cuidados de si mesma, e do filho ou filha.
k) a ser informada especificamente sobre os efeitos adversos do tabaco, álcool e drogas sobre o filho ou filha e
ela mesma.
Art. 3º – Toda pessoa recém-nascida tem direito:
a) a ser tratada de forma respeitosa e digna.
b) a sua inequívoca identificação.
c) a não ser submetida a nenhum exame ou intervenção cujo propósito seja de investigação ou docência, salvo
consentimento, manifestado por escrito de seus representantes legais, sob protocolo aprovado pelo Comitê de
Bioética.
d) a internação conjunta com sua mãe no quarto, e que a mesma seja o mais breve possível, tendo em
consideração seu estado de saúde, bem como da mãe.
e) que seus pais recebam adequado assessoramento e informação sobre os cuidados para o seu crescimento e
desenvolvimento, bem como de seu plano de vacinação.
Art. 4º – O pai e a mãe da pessoa recém-nascida em situação de risco têm os seguintes direitos:
a) a receber informações compreensíveis, suficiente e continuada, em um ambiente adequado, sobre o processo
ou evolução da saúde do seu filho, incluindo o diagnóstico, prognóstico e tratamento.
b) a ter acesso contínuo a seu filho, enquanto a situação clínica permita, bem como participar de seu cuidado e na
tomada de decisões sobre sua assistência.
c) a prestar seu consentimento manifestado por escrito a quantos exames ou intervenções que se queira submeter
seu filho ou filha com fins de pesquisa, sob protocolo aprovado pelo Comitê de Bioética.
d) a que se facilite o aleitamento materno da pessoa recém-nascida sempre que não incida desfavoravelmente
sobre sua saúde.
e) a receber assessoramento e informação sobre os cuidados especiais do filho ou filha.

335
4.4 Proposta para resolução do problema

A resolução do problema exposto vem com a proposta de formulação de uma


política pública para a proteção jurídica da gestante, parturiente, puérpera, mulher em situação
de abortamento, seja ele espontâneo ou provocado.

Verifica-se que, na atualidade, existem leis estaduais descrevendo o que vem a


ser a violência obstétrica, porém esse problema está longe de ter uma solução, uma vez que
não existe uma lei criminalizando, de forma específica, as condutas das pessoas que realmente
praticam esse tipo de violência. Na verdade, existe o Código Penal criminalizando condutas
de forma genérica, mas sem prever, especificamente, a conduta do médico, dos profissionais
de saúde, do gestor hospitalar, seja ele de hospital público ou privado e da própria doula. A
criação de uma norma jurídica nesse sentido positivaria uma política pública nessa área.

Diante de toda a problemática exposta, pode-se sugerir a criação de um projeto


de lei prevendo crimes próprios, ou seja, aqueles que somente podem ser praticados por
determinadas pessoas que estão descritas no próprio tipo penal. Ademais, as condutas
criminalizadas podem ser de forma específica, com penas mais severas, exatamente por causa
da qualidade do sujeito ativo do delito. Caso não fosse criada uma lei específica, seria
possível uma alteração do próprio Código Penal, com a inclusão dessas condutas como
crimes.

Essa lei deveria prever condutas de médicos, profissionais de saúde, gestores


hospitalares e doulas, dispondo sobre os crimes praticados por essas pessoas em situação de
violência obstétrica contra mulheres durante a gestação, o trabalho de parto, o puerpério e os
casos de abortamento.

Art. 5º – Será autoridade de aplicação da presente lei o Ministério da Saúde da Nação no âmbito de suas
competências, nas províncias e na Cidade de Buenos Aires e suas respectivas autoridades sanitárias.
Art. 6º – O não cumprimento das obrigações decorrentes da presente lei, por parte das obras sociais e instituições
médicas privadas, bem como o não cumprimento por parte dos profissionais de saúde e seus colaboradores em
que prestam serviços, será considerada falta grave aos fins punitivos, sob pena de responsabilidade civil ou penal
que possa corresponder.
Artigo 7 º – Esta Lei entra em vigor 60 (sessenta) dias após a sua promulgação.
Artigo 8 º – Comunicado ao Executivo.
Dada no Salão do Congresso argentino, em Buenos Aires, no dia vinte e cinco de agosto de 2004.
Sanção – 25 de agosto de 2004
Promulgação – 17 de Setembro de 2004

336
Não existe a previsão de um crime específico contra a honra praticado pelas
pessoas elencadas acima. Diante da ausência de legislação a respeito, utiliza-se, de forma
genérica, a tipificação dos crimes contra a honra previstos no Código Penal. A doutrina divide
a honra em duas formas, quais sejam, a objetiva e a subjetiva. A primeira delas representa a
reputação, ou seja, a boa-fama da pessoa perante terceiros, enquanto que a honra subjetiva
tem relação com a dignidade e o decoro.

Dos crimes contra a honra, quais sejam, a calúnia, a difamação e a injúria, os


dois primeiros tutelam a honra objetiva, isto é, o sentimento que se tem perante terceiro,
enquanto, o último, tutela a honra subjetiva, ou seja, o sentimento que a pessoa tem de si
própria. A calúnia e a difamação são atribuições de fatos, sendo a calúnia a atribuição a uma
pessoa de um fato falso definido como crime; e a difamação, a atribuição de um fato não
criminoso, verdadeiro ou falso, também ofensivo à reputação. Por fim, a injúria caracteriza-se
como sendo a atribuição a uma pessoa de um xingamento, de uma qualidade negativa.

Caso fosse criada uma lei, as penas cominadas conduziriam à competência do


Juizado Especial Criminal para seus julgamentos, no caso de previsão de penas inferiores a
dois anos. Se as penas fossem superiores a esse patamar, o procedimento poderia ser o
sumário, no caso de penas inferiores a quatro anos; ou o ordinário, no caso de penas iguais ou
superiores a quatro anos. Nesses dois casos, a competência deveria ser da Vara Criminal e não
dos Juizados. A previsão deveria levar em conta a gravidade das condutas praticadas em
situação de violência obstétrica. Diante do exposto, como proposta, deveria ser criado um tipo
penal criminalizando especificamente condutas de difamação e injúria praticadas por médicos
e profissionais de saúde com penas mais severas do que as constantes atualmente no Código
Penal.

Assim, a sugestão seria tipificar esse tipo de conduta como difamar a gestante
durante o período gestacional, o trabalho de parto, o pós-parto ou em caso de abortamento,
imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação; e injuriar a gestante ou puérpera durante o
período gestacional, o trabalho de parto, pós-parto ou em situação de abortamento, ofendendo
sua dignidade ou o decoro, com a previsão de penas que retirassem a competência para
julgamento dos Juizados Especiais Criminais, conduzindo o julgamento para as Varas
Criminais.

337
Deveria, ainda, constar como tipo penal autônomo, ou, talvez como uma
majorante desse tipo penal, o crime contra a honra perpetrado, utilizando-se contra a vítima
elementos de raça, cor, etnia ou religião, o que, com certeza, traz maiores sofrimentos para a
vítima.

Ainda, com relação ao médico e ao profissional de saúde, deveria ser previsto


um outro tipo penal descrevendo a conduta de quem usasse de violência, grave ameaça ou
fraude contra a gestante ou a puérpera durante o período gestacional ou trabalho de parto para
realizar cirurgia cesariana desnecessária e sem a devida explicação dos riscos. No caso da
opção pela cesárea, deve haver o registro no prontuário da gestante e de sua autorização, salvo
caso de emergência devidamente constatada pelo médico e registrado no prontuário. A não
anotação no prontuário da gestante dessas informações deve ser prevista, também, como uma
causa de aumento de pena.

Como sugestão legislativa, ainda, deveria ser criado um crime praticado por
médico ou profissional de saúde, em caso de recusa de atendimento à gestante ou à puérpera
durante o período gestacional, o trabalho de parto, o pós-parto ou a situação de abortamento,
de emergência médica. Nesse caso, a pena deveria ser aumentada pela metade, se da recusa
ocasionar a morte da gestante ou do bebê.

Também deveria ser criminalizada a conduta praticada por médico ou


profissional de saúde em caso de manter algemada a mulher gestante detenta, durante o
trabalho de parto. Essa conduta deveria ser considerada grave, com penas máximas superiores
a quatro anos, de tal forma que o procedimento adotado deveria ser o ordinário.

Outro tipo penal a ser criado deveria ser o crime praticado pelo médico ou
profissional de saúde, cujas condutas: impeçam que a gestante ou puérpera seja acompanhada
de pessoa de sua preferência, durante o pré-natal, o parto e o pós-parto, independente do sexo
dessa pessoa; impeçam a comunicação, por qualquer meio, da gestante ou puérpera com
familiares, amigos, pessoa de sua confiança e com o acompanhante; realizem qualquer
procedimento sem permissão ou explicação prévia da real necessidade do que está sendo
oferecido ou recomendado, exceto casos de urgência atestada pelo médico ou profissional
assistente; deixem de oferecer à puérpera ambulatórios para planejamento familiar.

Como conduta praticada pelo gestor hospitalar, deveria o legislador tipificar o


fato de esse profissional: deixar de oferecer exames, bem como o mínimo de consultas

338
obstétricas previstos pelo Ministério da Saúde; deixar de oferecer vaga para gestantes em
trabalho de parto; deixar de realizar a primeira consulta gestacional dentro do prazo de 30
dias, após diagnosticada a gravidez, desde que procurado pela gestante; retirar da mulher,
após o parto, o direito de ter seu recém-nascido ao seu lado em alojamento conjunto e de
amamentar em livre demanda, salvo necessidade de qualquer deles de cuidados especiais.

Como conduta criminosa praticada pela doula ou por profissionais de saúde


deveria ser previsto o tipo de induzir ou instigar a recusa de tratamentos que possam diminuir
o risco materno ou fetal. Como qualificadora da pena, se do fato resultar em lesão corporal de
natureza grave ao feto. E como majorante, se da conduta resultar morte da gestante ou do feto.

Outro tipo importante que deveria ser previsto como crime é a conduta do
representante legal da gestante menor de 14 anos de não a acompanhá-la nas consultas de pré-
natal previstas em lei.

Ainda, como sugestão de previsão de tipo penal, deveria abarcar situações em


que o médico ou o gestor hospitalar deixem de oferecer à gestante analgesia, conforme
indicação médica. Com relação ao gestor hospitalar, especificamente, deveria ser tipificada a
conduta de retardar, injustificadamente, a acomodação à mulher após o trabalho de parto ou
em caso de abortamento espontâneo já confirmado.

Os crimes a serem definidos deveriam ser ajuizados mediante ação penal


pública incondicionada. O objetivo do projeto de lei seria impedir que a mulher – no período
gestacional, no trabalho de parto, no puerpério, no pós-parto ou na situação de abortamento,
espontâneo ou provocado – sofra qualquer tipo de constrangimento ou tratamento vexatório,
desumano ou degradante, por parte de médicos ou outros profissionais de saúde.

No mundo todo, muitas mulheres sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos


durante o parto nas instituições de saúde. É certo que esse tipo de tratamento não viola
somente os direitos das mulheres ao cuidado desrespeitoso, mas, também, ameaça seu direito
à vida, à saúde, à integridade física e à não discriminação.

Durante o atendimento pré-natal, trabalho de parto, pós-parto e em caso de


abortamento, as mulheres são vítimas de agressões silenciosas, sutis, disfarçadas e, na maioria
das vezes, cheias de discriminações. Os abusos vão desde pressão psicológica até realização

339
de procedimentos cirúrgicos desnecessários ou mesmo sem consentimento da mulher nessas
situações.

Comportamento dessa natureza, tanto do médico quanto do profissional de


saúde, é covarde, pois gera uma sensação de insegurança na mulher em um momento de
maior fragilidade e vulnerabilidade. Assim, tem-se um sofrimento calado, de temor, pois é
nesse momento que a mulher não pode controlar suas emoções, necessitando ter confiança na
equipe médica e nos profissionais de saúde que estão participando do parto.

Além do preconceito contra a mulher, a violência obstétrica é decorrência de


uma falha na formação dos profissionais de saúde. Verifica-se, ademais, que esse tipo de
violência traz em si uma discriminação de gênero e, desse modo, deve ser combatida assim
como vem sendo a violência doméstica, desde 2006, quando da criação da Lei Maria da
Penha, da inclusão do crime de feminicídio dentro das hipóteses de homicídio qualificado e a
da declaração da Organização Mundial da Saúde sobre violência obstétrica, bem como da
criação de várias leis estaduais definindo o que vem a ser esse tipo de violência.

Toda mulher tem direito ao melhor padrão de saúde, o qual inclui o direito a
um cuidado de saúde com dignidade e respeito. Por ser um tema de relevante valor social,
deve a sugestão de proposta de projeto de lei ser submetida e aprovada pelo Congresso
Nacional para que seja feita uma legislação específica ou para que se promova uma alteração
no Código Penal.

340
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo da pesquisa nominada Violência obstétrica no contexto da violência


feminina consistiu na realização de um esforço de compreensão das práticas obstétricas que
acarretam lesões de ordem moral e física, podendo ocasionar a morte de mulheres e crianças.
A assistência aos períodos de gestação, parto, pós-parto, puerpério e em casos de
abortamento, tem se revelado, em um contexto de constantes violações a direitos
fundamentais e direitos humanos básicos das mulheres, e isso ocorre por inúmeros fatores,
que envolvem desde o problema de igualdade de gêneros até mesmo a patologização e a
medicalização do parto.

Existe um paradoxo que permeia ser mãe, não somente no Brasil, mas em todo
o mundo; um misto de expectativas e realidades, principalmente quando essa realidade vem
acompanhada de uma forma grave de violação: a violência obstétrica. Assim, existe uma
dualidade de sentimentos, ou seja, de um lado a alegria pela chegada do filho e, de outro, a
tristeza pela possibilidade de experimentação, ou mesmo, pela vivência da violência obstétrica
institucional, que assola milhares de mulheres, em todo o País, materializada em comentários
humilhantes, insultos, perda de identidade e autonomia, episiotomia sem consentimento,
invisibilidade da dor e da humilhação.

Assim, a violência obstétrica existe e precisa, não somente ser combatida, mas
criminalizada. No entanto, o estudo foi além disso, demonstrando, descortinando paradigmas,
que, além de constituir violência contra a mulher, violência de gênero, o tipo de violência
estudado segue, de forma natural, no meio dos profissionais de saúde, o que, por sua vez,
contribui para a sua minimização no meio jurídico, que, ainda, percebe equivocadamente a
violência obstétrica predominantemente como erro médico, ou mesmo algo inexistente,
inviabilizando, ainda mais, uma das formas mais dolorosas de concretização de violência
referenciada pelas suas vítimas: sua forma psicológica, cujos danos psíquicos são capazes de
desestabilizar a esfera emocional de quem a sofre, por prazo indeterminado, pois esses atos
possuem o condão de humilhar, sujeitar, oprimir e retirar da mulher o respeito à sua
integridade moral.

Dessa forma, conforme foi ponderado no presente estudo, para a compreensão


da violência obstétrica em toda a sua amplitude, faz-se necessário depreender a dimensão
histórica e cultural do parto e como este deixou de ser um evento essencialmente feminino
341
para se tornar um evento totalmente mecanizado, supervisionado e incorporado pelos médicos
em detrimento das parteiras. Da anterior “punição” da mulher, por liderar a humanidade para
“o pecado”, a mulher passou a ser vista como uma “vítima da sua própria natureza”. Por conta
dos avanços médicos e tecnológicos, o parto passou de algo natural, que acontecia em casa,
para dentro de um hospital e sobre o total controle médico, em práticas de poder. No
momento em que se institucionalizou o parto, as mulheres deixaram de conhecer seus corpos
e perderam totalmente a sua autonomia. Com a perda desses direitos, elas passaram a chamar
esse tipo de parto de violência obstétrica e, assim, começaram a lutar por um parto
humanizado, respeitoso e no ambiente em que se sentissem seguras.

O fato de as mulheres estarem, na maioria das vezes, em uma condição


submissa ao homem, deve-se a uma estrutura historicamente patriarcal. Nesse contexto, era
atribuído aos homens o poder absoluto dentro das relações familiares e, por causa disso,
restava às mulheres tomar conta do lar e dos filhos, submetendo-se ao controle masculino
sobre seus corpos, especialmente a maternidade, base para a continuidade patrimonial. A luta
por direitos é um processo em andamento, e, por isso, em determinada etapa, as mulheres que
optaram pela maternidade, viram o fim do seu protagonismo no parto.

A violência obstétrica é uma violência de gênero e institucional, baseada em


padrões de comportamento, em costumes arraigados da sociedade e dispensados à mulher
parturiente, tendo em vista uma construção histórica de uma cultura paternalista que
desrespeita a autonomia da mulher em dispor de seu próprio corpo, de sua sexualidade e de
seu processo reprodutivo, ferindo, desse modo, sua integridade psíquica e física. Dessa forma,
a maternidade, permeada do papel social idealizado de mãe, vinculada aos estereótipos
femininos de submissão, proteção e abnegação da mulher, contribuem para a reprodução da
violência, naturalizando-a e inviabilizando-a nos diversos segmentos da sociedade.

As situações de violência obstétrica, sob a perspectiva de violência contra a


mulher, no especial aspecto de violência de gênero, são aceitas de forma natural no meio
social. A ausência de sanções e meios de coibição dessa prática corroboram para a
inviabilização desse fenômeno, tanto por parte daqueles que infringem as regras, quanto por
parte daqueles que operacionalizam o sistema da justiça, justamente por conta da criação do
estereótipo da mulher como um ser doce, submisso, que nasceu para ser mãe e que, devido a
esses conceitos, aceita como “normal” sentir as dores do parto.

342
Assim, o entendimento que coloca as mulheres na posição de “mães por
natureza” as inscreve como naturalmente dispostas a sentir dor e a aguentarem o sofrimento,
porque esses sentimentos devem ser interpretados como “naturais” no momento do parto.
Nesse sentido, não se reconhece como violência as práticas intervencionistas como violações
dos direitos das mulheres parturientes e, portanto, não se encontram sob a pecha de violência
obstétrica.

A violência obstétrica é, assim, um flagrante instrumento de perpetuação de


violência contra a mulher, na qual o médico se apropria do corpo feminino e impede que ele
seja o protagonista do próprio parto, para decidir sobre o procedimento que melhor lhe
convém. Ela não se resume à imposição de cesariana, da episiotomia ou demais
procedimentos, pois, ainda que sejam técnicas que danificam o corpo feminino, não se
desconhece que, muitas vezes, são necessárias para o nascimento da criança. O que se
pretendeu demonstrar neste estudo é que, a utilização dessas práticas vem ocorrendo mesmo
sem nenhum indicativo que justifique o seu uso, sendo, portanto, mera técnica de acelerar o
mecanismo do parto. Daí a importância do plano de parto, que deve ser elaborado pela
paciente, com o seu médico, mediante consentimento e conhecimento das reais condições do
nascimento e dos desejos da parturiente.

Dessa forma, a maneira assimétrica da relação entre os homens e as mulheres


revela uma desigualdade, não apenas simbólica, mas real, dificultando o exercício dos direitos
básicos pelas mulheres. Mesmo sendo claras as violações aos direitos das mulheres, deve-se
verificar que o princípio mais vilipendiado deles é o da dignidade da pessoa humana, além do
direito à vida, direito à saúde, direitos sexuais e reprodutivos, direito à informação, e, ainda o
princípio da autonomia.

Atualmente, o direito carece de aprimoramentos legislativos, uma vez que não


possui uma lei federal, ou sequer as condutas praticadas são criminalizadas em lei específica.
Os tribunais possuem tímidas decisões sobre o assunto, as quais sequer trazem, no corpo do
seu texto, o termo “violência obstétrica”. Assim, existe um certo limite em atuar nessa área e,
também, esse limite depende de mudanças na estrutura da sociedade, que vão desde a
formação dos profissionais de saúde, até mesmo a questão cultural de gênero.

Infelizmente, ainda não há instrumentos próprios para identificar e notificar a


violência obstétrica, o que colabora para que o problema persista, inviabilizando tanto a esfera

343
social quanto a jurídica. Desse modo, enquanto não forem criadas políticas públicas para o
combate dessas condutas, as mulheres seguem sendo vilipendiadas em seus direitos,
desconsideradas e silenciadas em sua dor. Apesar de haver algumas legislações estaduais
conceituando as condutas que levam ao entendimento da violência obstétrica, não há a
previsão de como elas poderiam ser evitadas ou punidas.

Observou-se que, independentemente de ser o setor público ou privado, há


mulheres que acabam sendo vítimas de violência obstétrica e, ainda, essa violência tem se
tornado rotineira, sendo considerada um procedimento comum. Assim, este trabalho é uma
resposta a todas as mulheres, vítimas de violência, principalmente a obstétrica, um clamor
para que ela não siga naturalizada. Ainda, é um clamor para que todas as pessoas que
trabalham no sistema de saúde, ou não, de serem despertadas para a importância desse tema,
infelizmente, um mal, que, apesar de secundarizado, impera poderoso e cruel no Brasil,
violentando mulheres de diferentes classes sociais e é, lamentavelmente, invisibilizado.

Desse modo, é importante que o direito incorpore e aplique o conceito de


violência obstétrica e, ainda, a tipifique em sua legislação para que todas essas mulheres,
vítimas desse tipo de violência, se sintam amparadas e protegidas. Dessa forma, acredita-se
que os profissionais da área de saúde busquem se especializar melhor, no mundo da
humanização, e repensem as suas práticas.

344
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