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RESUMO:
Considerando a vergonha um afeto doloroso e tratado, em nossa sociedade, como
negativo e até mesmo pecaminoso, é possível inferir que a vergonha tende a ser
reprimida pelo sujeito ao invés de sentida. O artigo buscou compreender como ocorre
o processo de internalização da vergonha na infância a partir da identificação com as
figuras arquetípicas parentais. Havendo um esforço para entendê-la como um afeto
estruturante, ao analisar, além da causalidade de “visita” desse afeto, qual a sua
finalidade como estruturante da personalidade, pode-se compreender que a vergonha,
como outras emoções, aponta para possíveis transformações da nossa existência.
Não teria a vergonha uma função na personalidade? Se sim, por que então esse
potencial se torna sombrio e projetado? A repressão dessa emoção, quando ocorre a
favor de um enquadramento social, ocasionaria o desencadeamento de sintomas
neuróticos e adoecimento mais grave. Além disso, nota-se uma escassez de estudos
sobre o fenômeno da vergonha no campo da psicologia analítica, fator que elucida
uma oportunidade de promover um olhar mais atento aos aspectos psicológicos desse
universo afetivo. A pesquisa teve o viés norteador da psicologia junguiana como
aporte teórico e metodológico. A revisão narrativa foi realizada através de análise
qualitativa.
ABSTRACT:
Considering shame as a painful affection and treated, in our society, as negative and
even sinful, it is possible to infer that shame tends to be repressed by the subject, as
opposed to felt. The article sought to understand how the internalization process of
shame in childhood occurs, based on the identification with the parental archetypal
figures. Having made an effort to understand it as a structuring affect, when analyzing,
in addition to the causality of the "visit" of this affection, what is its result as a structuring
of the personality, it can be understood that shame, like other emotions, points to
possible transformations of our existence. Doesn't shame play a role in personality? If
so, why then does this potential become dark and projected? The repression of this
emotion, when it occurs in favor of a social framework, would cause or trigger neurotic
symptoms and more serious illness. Furthermore, there is a scarcity of studies on the
E-mail: anaflaura9@gmail.com
3 Doutor em Psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC- Rio) e
1 INTRODUÇÃO
A partir de sua obra Psicogênese das doenças mentais, Jung assevera que
“A base essencial de nossa personalidade é a afetividade. Pensar e agir são, por
assim dizer, meros sintomas de afetividade.” (JUNG, 2015, p.41) A partir desse
pressuposto, o autor compreende os afetos como o sedimento dos complexos que
constituem a psique, os quais possuem considerável teor emocional e afetivo, o que
será explicado mais a frente. Dessa forma, o afeto se expressa como configuração
qualitativa de força da energia psíquica, estando ligado à intensidade da emoção,
emergindo de forma espontânea e capturando, portanto, a nossa vontade, ou seja, a
consciência. Com relação a provável efeito agudo da expressão de tais afetos, ele
converte-se (na perspectiva da histeria), desloca-se, (a partir da obsessão em
pensamentos e comportamentos), e transforma-se, podendo ser através da angústia,
como experiência de sufocamento, pelo peito apertado, ansiedade, insegurança, falta
de humor, ou seja, ressentimentos que estão associados a alguma dor. Nesse sentido,
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afetivos, representados pelas alterações nas reações verificadas por meio dessas
experiências.
No processo de associação de palavras, as possibilidades ilimitadas de
respostas dos participantes deram origem a uma experiência denominada de
constelação, que significa o desencadeamento de um processo psíquico em que uma
situação exterior provoca uma aglutinação e atualização de determinados conteúdos
inconscientes. Portanto, a constelação é automática, não podendo ser detida pela
vontade e, a partir de conteúdos constelados, determinam-se os complexos, que
possuem energia específica autônoma. Partindo desse pressuposto, na experiência
de associação de palavras, os complexos da psique influenciam intensamente o seu
curso, provocando um modo de reação que não corresponde, à primeira vista, ao
sentido da palavra-estímulo. Entende-se, assim, que reação foi perturbada pelos
complexos. (JUNG, 1998)
Em sua obra Estudos experimentais, Jung (1995) sustenta que todas as
neuroses psicógenas como possuidoras de complexos, pois possuem cargas
emocionais excepcionalmente fortes, tendo uma força consteladora que captura o
indivíduo todo pela sua influência; entende-se, por conseguinte, que o complexo é a
causa ou uma disposição do transtorno. Quando um trauma psíquico ocorre na
infância, por exemplo, a experiência se firma na psique de uma criança como um
complexo emocional de alta carga energética, o qual irá constelar o seu pensamento
e o seu agir por muitos anos, caso não seja assimilado. Sendo assim, um complexo
pessoal ou coletivo ativo nos aloja num estado de não liberdade, ou seja, geralmente
somos acometidos por pensamentos obsessivos e ações compulsivas, justamente
pelo elevado grau de autonomia e forte carga emocional proveniente desses núcleos
específicos. (JUNG, 1995)
Uma causa comum que leva a essa constelação é um conflito moral, que reside,
por fim, numa aparente impossibilidade de assumir a totalidade da natureza humana
que tem por consequência, portanto, uma dissociação imediata da psique. Nesse
momento, conforme Jung (1998) sinaliza, o complexo insere-se na superfície da
consciência, não sendo possível evita-lo e, progressivamente, toma a consciência do
“eu”, resultando na dissociação neurótica da personalidade. Isso ocorre porque os
complexos tendem a causar constrangimento, e tudo se faz para ocultá-los,
acarretando num recrudescimento da sombra.
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De acordo com Stein (2013) em seu livro Jung – O mapa da alma, a vergonha
é um afeto primitivo que pode adquirir um potencial destrutivo através de sua
repressão e projeção no outro. Ao sentir esse afeto, o sujeito tende a sentir culpa
por determinadas atitudes tomadas que estão em discordância com a persona
adotada por ele. Seria esse o efeito da sombra na personalidade, trazendo ela a
experiência de vergonha, de indignidade, um sentimento de impureza. Em sua obra
O Eu e o inconsciente, Jung define a persona como “[...] uma forma de autoeducação
em benefício de uma imagem ideal, à qual o indivíduo aspira a moldar-se, em que
sacrifica-se muito de sua humanidade.” (JUNG, 1978, p. 48) Isso ocorre porque, como
assevera o autor, a persona constitui uma parte da psique coletiva, sendo papeis
sociais atribuídos ao indivíduo para que ele se adapte ao mundo exterior e às normas
coletivas. Concerne inferir que a vergonha seria mais uma qualidade “sacrificada” para
que o indivíduo se enquadre em uma cultura que preserve a exposição somente de
afetos considerados “positivos”, como alguém que aparenta considerável
autoconfiança ao se apresentar publicamente, por exemplo. Certamente essa pessoa
acaba sendo mais valorizada por essa cultura da extroversão a um indivíduo que se
expõe com certo rubor e aparenta estar envergonhado. Contudo, por mais doloroso
que seja vivenciar a nível psíquico quanto corporal a autonomia desse complexo, a
vergonha torna-se positiva, pois através dela é possível tomar consciência da sombra.
Mario Jacoby nos traz outras considerações sobre a vergonha. Em Shame and
the origins of self-esteem: a junguian approach, afirma que o desejo de esconder
esse afeto – e também aquilo que o provoca – é uma característica humana universal,
pois “[...] a vergonha nos faz querer atravessar o chão, cair dentro de um buraco e
falecer”. (JACOBY, 2002, p.8, tradução nossa)4 O autor ressalta ainda que a vergonha
possui variações, tendo vários afetos ligados a ela. Portanto, a vergonha não inclui
somente o sentimento de inferioridade e humilhação, mas também está ligada à
timidez, constrangimento, inibição, etc. Além disso, quanto mais uma pessoa duvida
de seu próprio valor, mais importante se torna a opinião de quem está ao seu redor e,
dessa forma, mais sensível o indivíduo fica com uma mínima possibilidade de rejeição
do outro. Visando chegar à origem desse complexo fenômeno, Jacoby (2002) dedicou
seu tempo de estudos e a atuação clínica à investigação de como grande parte do
processo de construção da autoestima tem seu início na relação da criança com o
ambiente, seja esse familiar, escolar ou em alguma outra instituição.
Outra abordagem, extra campo da psicologia, que discute sobre essa
construção da própria identidade a partir das relações que se configuram na infância
é a do sociólogo Anthony Giddens, em seu livro Modernidade e identidade. Em sua
obra, ele afirma que “[...] a confiança nos outros, no início da vida da criança e, de
maneira crônica, nas atividades do adulto, está na origem da experiência de um
mundo exterior estável e de um sentido coerente de autoidentidade.” (GIDDENS,
2002, p.53)
Por outro lado, outra questão abordada por Jacoby (2002) é a diferença
entre a vergonha e a culpa. Ele afirma que ambas possuem raízes arquetípicas,
porém, distingui-las não é uma tarefa simples, pois esses dois afetos tendem a atuar
em conjunto. Na obra Os arquétipos e o inconsciente coletivo, Jung advoga que
os arquétipos se caracterizam “[...] como um elemento vazio e formal em si, uma
possibilidade dada a priori da forma de sua representação. O que é herdado não são
ideias, mas as suas formas, as quais sob esse aspecto particular correspondem aos
instintos.” (JUNG, 2000, p. 91)
Assim sendo, é interessante frisar que tanto a vergonha quanto a culpa são
afetos que, na medida em que se constituem como complexos afetivos na psique
possuem representações apriorísticas e universais. Dessa forma, infere-se que as
4
“Shame makes us want to sink through the floor, crawl into a hole and die.”
experiências de culpa geralmente fazem com que o indivíduo se perceba como “má
pessoa” por conta de alguma atitude que não deveria ter tomado. Já a manifestação
da vergonha, em certa intensidade, tem a capacidade de fazer com que a pessoa se
sinta “sem valor” sem que tenha feito nada que seja considerado errado ou imoral.
Nessa perspectiva, nota-se que a vergonha pode estar associada à experiência
subjetiva de descrédito, desonra e desgraça. Um indivíduo pode, por exemplo, sentir-
se envergonhado por algo moralmente condenável que tenha feito, havendo nesse
caso uma sobreposição entre a vergonha e a culpa. Contudo, é necessário distinguir
que a unicidade do fenômeno da vergonha reside no fato de que ela não está
vinculada somente à reação para um comportamento antiético. Uma pessoa pode,
dessa forma, sentir-se desconfortável por ter determinado tipo de cabelo, por ser alto
ou baixo, por estar abaixo ou acima do peso, por exemplo. (JACOBY, 2002)
Em síntese, sentir vergonha acarreta, muitas vezes, à repressão desse afeto
e também uma evitação constante da situação que levou a pessoa a experenciar
vergonha. Partindo desse ponto, pode-se compreender a necessidade humana de
procurar manter uma atitude ideal, na medida em que “[...] reprime-se
automaticamente tudo que é incompatível com essa atitude.” (JUNG, 1998, p. 264)
Portanto, todo esse processo pode gerar uma perda de respeito pela própria
totalidade, enquanto que a culpa geralmente leva o indivíduo a tentar se redimir pelo
ato cometido.
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“Confessions of guilt also hold out the hope that mistakes will be rectified, all will be forgiven. But the
feeling that one is personally unworthy of love cuts much deeper. This may be one reason that we
tend to hear so much more about guilt than shame.”
É que as imagens dos deuses das grandes mitologias não são mais do que
fatores autônomos da psique projetados, potências arquetípicas através das
quais o ser humano comum se eleva grandioso e passa a ser visível em seus
aspectos pessoais. (JACOBI, 1995, p.99)
Além disso, Jolande Jacobi (1995) realiza outra inferência sobre esse processo
individual do simbolismo:
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“In our own cultural sphere, the most important myth dealing with the theme of shame—and guilt—is
the biblical Paradise narrative.”
a assimilação da vergonha é fundamental para que essa emoção não assuma seu
caráter destrutivo quando é reprimida na presença do outro. De uma forma geral,
observa-se nas relações humanas que a presença do outro é uma questão
desafiadora tanto na vida cotidiana quanto na prática clínica. Nesse sentido, a autora
junguiana brasileira Nise da Silveira (2010) em seu livro Jung: vida e obra, cita os
conceitos de introversão e extroversão. No caso, existem pessoas que vão
rapidamente ao encontro do objeto (nesse caso, considera-se o objeto também como
esse outro) de forma confiante e há os que recuam como se o atrito com o mundo dos
objetos fosse uma tarefa desgastante.
Com isso, o estudo segue para o entendimento de como esse processo é
internalizado na infância a partir da constelação das figuras arquetípicas parentais
que, muitas vezes, comportam-se como figuras divinas na psique infantil.
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É importante não se ater a uma ideia rígida de culpabilização dos pais e/ou cuidadores reais, na
medida em que é necessário pensar não só em uma perspectiva causal, mas em um entrelaçamento
arquetípico que possui uma finalidade, pois a própria família também passou por essa constelação
em suas infâncias; pode-se pensar, partindo desse pressuposto, em um processo de humanização
desses pais.
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Jacoby relata um caso clínico que foi tanto desafiador quanto transformador
para ambos em análise. Em síntese, foi o caso de um jovem que possuía vergonha
dos barulhos que fazia com o nariz, no ato de fungar. Para ele, era desconfortável
respirar dentro de sala de aula ou em ambientes públicos. Nas primeiras sessões de
análise, ele sentiu uma relação de segurança com o analista, até mesmo de proteção,
pois ambos tinham a mesma idade, e isso o fez se sentir mais confortável para falar
sobre a vergonha e a ansiedade que sentia. Portanto, Jacoby (2002) entendeu que,
arquetipicamente, o analisando projetava nele uma figura materna protetora, que
acolheria seus sintomas. Uma frase interessante desse rapaz, em que ele relata ter
sido transformadora, foi “Eu sou quem eu sou”9, (JACOBY, p. 97, 2002) e isso
possibilitou uma possível mudança de atitude para o início de um processo de auto
aceitação.
Contudo, ao mesmo tempo, toda inferência do analista tinha grande poder de
influência, já como uma figura arquetípica paterna. Ele enxerga seu analista, portanto,
como uma espécie de divindade (JACOBY, 2002). Esse processo passou a afetar a
análise, pois o jovem recordava de situações em que era repreendido e frustrado na
infância pelo seu pai e pela sensação de julgamento de terceiros no ambiente escolar.
Nessa perspectiva, o processo de análise passou a evoluir quando o analista teve a
ideia de dizer isso ao analisando, ou seja, tentar cautelosamente provocar esse
rompimento com esses complexos afetivos, sendo sincero com o rapaz sobre um
caminho perigoso que ambos estavam percorrendo em análise, na medida em que
ocorreu uma falha na transferência, pois o analisando não se sentia à vontade para
se expressar. Assim sendo, o próprio analista, a partir de um contato com a sua
sombra, sentiu-se ansioso em não corresponder às expectativas de seu analisando.
A partir desse momento de honestidade, o jovem se permitiu, pela primeira vez,
contestar até mesmo algumas inferências de Jacoby, e passou a ter mais autonomia
e confiança em sua análise, o que permitiu ambos a retornarem para o processo
dialógico e cooperativo entre analista e analisando.
Interessante pensar nesse percurso analítico em indivíduos que lidam com a
sensação dolorosa da vergonha, importante de ser assimilada na totalidade da psique.
Partindo desse princípio, ao valorar que todo afeto é fundamentador e criativo, pois
sua constante repressão pode provocar considerável sofrimento psíquico, entendendo
que quanto maior a sombra, maior a persona do indivíduo. Assim sendo, muitos
indivíduos com ansiedade social podem se identificar completamente uma persona
com o intuito de se encaixar em determinado ambiente, o que ocasiona esse
tamponamento de características não assimiladas na personalidade. Nessa
perspectiva, conforme Byington (2019) em nossa cultura, existe uma tendência a nos
defendermos e disfarçarmos afetos considerados pecaminosos. Dito isso, o
puritanismo enraizado em nossa sociedade promove o desconhecimento humano
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
JUNG, Carl Gustav. Psicogênese das doenças mentais. Obras Completas de C.G
Jung, Volume lll/2. Petrópolis: Vozes, 2015.
SILVEIRA, Nise da. Jung: vida e obra. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.