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ASPECTOS PSICOLÓGICOS DA VERGONHA: POSSÍVEIS REFLEXÕES À LUZ


DA PSICOLOGIA ANALÍTICA1

Ana Laura Fonseca de Oliveira2


Paulo Ferreira Bonfatti3

RESUMO:
Considerando a vergonha um afeto doloroso e tratado, em nossa sociedade, como
negativo e até mesmo pecaminoso, é possível inferir que a vergonha tende a ser
reprimida pelo sujeito ao invés de sentida. O artigo buscou compreender como ocorre
o processo de internalização da vergonha na infância a partir da identificação com as
figuras arquetípicas parentais. Havendo um esforço para entendê-la como um afeto
estruturante, ao analisar, além da causalidade de “visita” desse afeto, qual a sua
finalidade como estruturante da personalidade, pode-se compreender que a vergonha,
como outras emoções, aponta para possíveis transformações da nossa existência.
Não teria a vergonha uma função na personalidade? Se sim, por que então esse
potencial se torna sombrio e projetado? A repressão dessa emoção, quando ocorre a
favor de um enquadramento social, ocasionaria o desencadeamento de sintomas
neuróticos e adoecimento mais grave. Além disso, nota-se uma escassez de estudos
sobre o fenômeno da vergonha no campo da psicologia analítica, fator que elucida
uma oportunidade de promover um olhar mais atento aos aspectos psicológicos desse
universo afetivo. A pesquisa teve o viés norteador da psicologia junguiana como
aporte teórico e metodológico. A revisão narrativa foi realizada através de análise
qualitativa.

Palavras-chave: Vergonha. Afeto. Jung. Psicologia Analítica.

ABSTRACT:
Considering shame as a painful affection and treated, in our society, as negative and
even sinful, it is possible to infer that shame tends to be repressed by the subject, as
opposed to felt. The article sought to understand how the internalization process of
shame in childhood occurs, based on the identification with the parental archetypal
figures. Having made an effort to understand it as a structuring affect, when analyzing,
in addition to the causality of the "visit" of this affection, what is its result as a structuring
of the personality, it can be understood that shame, like other emotions, points to
possible transformations of our existence. Doesn't shame play a role in personality? If
so, why then does this potential become dark and projected? The repression of this
emotion, when it occurs in favor of a social framework, would cause or trigger neurotic
symptoms and more serious illness. Furthermore, there is a scarcity of studies on the

1 Artigo de trabalho de conclusão de curso de Graduação em Psicologia do Centro Universitário


Academia, na Linha de Pesquisa Práticas clinicas. Recebido em 19/10/2021 e aprovado, após
reformulações, em 26/11/2021
2 Discente do curso de graduação em Psicologia do Centro Universitário Academia (UNIACADEMIA)

E-mail: anaflaura9@gmail.com
3 Doutor em Psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC- Rio) e

docente do Centro Universitário Academia (UNIACADEMIA). E-mail: paulobonfatti@hotmail.com


CADERNOS DE PSICOLOGIA, Juiz de Fora, v. 3, n. 6, p. 205-225, jul./dez. 2021 – ISSN 2674-9483
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phenomenon of shame in the field of analytical psychology, a factor that elucidates an


opportunity to promote a closer look at the psychological aspects of this affective
universe. The research had the guiding of Jungian psychology as a theoretical and
methodological support. A narrative review was carried out through qualitative
analysis.

Keywords: Shame. Affection. Jung. Analytical Psychology.

1 INTRODUÇÃO

A etimologia da palavra vergonha é proveniente do latim verecundia derivada


de reveriri, constituída pela sílaba re, significando “para trás”, “de novo”. Considerando
a vergonha um afeto doloroso de sentir, tal como outras emoções que são tratadas,
em nossa sociedade, como negativas e até mesmo pecaminosas, é possível inferir
que a vergonha tende a ser reprimida pelo sujeito ao invés de sentida. Havendo um
esforço para entendê-la como um afeto estruturante, ao analisar, além da causalidade
da vivência desse afeto, qual a sua finalidade como estruturante da personalidade,
pode-se compreender que a vergonha, como outras emoções, aponta para possíveis
transformações da nossa existência. Entendendo que pode ter potencial tanto criativo
quanto destrutivo, dependendo da função que adquire na psique.
Nessa perspectiva, o artigo pretende compreender como a vergonha pode ser
manifestada na infância, quando a criança, através da constelação dos complexos
materno e paterno, sente que desagradar essas figuras que, arquetipicamente, se
comportam como figuras divinas, pode significar perdê-las. A projeção psíquica
parental se estende a outros relacionamentos; com os amigos, professores, as figuras
de autoridade, nas igrejas e em outras instituições, de tal forma que a possibilidade
de perda desse outro pode ocasionar sofrimento no sujeito. Além disso, busca-se
analisar a intensidade da vergonha sentida na ansiedade social e como isso se
conecta com a constelação na primeira e segunda infância. Partindo desse
pressuposto, na realização dessa pesquisa, o artigo teve como propósito estudar
sobre a possibilidade de uma atuação positiva da vergonha na constituição da
personalidade, quando admitida, e não reprimida na profundidade da psique. Nesse
sentido, pergunta-se: Não teria a vergonha uma função na personalidade? Se sim,
por que então esse potencial se torna sombrio e projetado?

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Dentro do desenvolvimento da psique, todas as emoções podem servir como


possíveis indicadoras, uma vez que através delas podemos tomar consciência da
sombra. Portanto, o artigo busca elucidar a vivência da vergonha não como um
sintoma, mas como algo estruturante no processo de desenvolvimento e crescimento
da psique. Nesse sentido, infere-se que a repressão dessa emoção, que pode ocorrer
a favor de um enquadramento social, ocasionaria o desencadeamento de sintomas
neuróticos e um adoecimento mais grave. Sendo assim, a pesquisa terá o viés
norteador da psicologia junguiana como aporte teórico e metodológico. A revisão
narrativa, nesse caso, propõe uma análise qualitativa, com o intuito de discutir e
descrever o desenvolvimento do tema escolhido. Na busca bibliográfica foram
elencadas fontes relevantes para aprofundamento teórico, textos de Carl Gustav Jung,
além de contribuições de outros teóricos da psicologia analítica, como Jolande Jacobi,
James Hall, Murray Stein, Carlos Amadeu Byington, Erich Neumann, Nise da Silveira,
Mario Jacoby, dentre outros autores, como Yves de La Taille e Anthony Giddens.

2 A AFETIVIDADE E A CONFIGURAÇÃO DOS COMPLEXOS

“Somente aquilo que nós somos tem o poder


de nos curar.”
Carl Gustav Jung

A partir de sua obra Psicogênese das doenças mentais, Jung assevera que
“A base essencial de nossa personalidade é a afetividade. Pensar e agir são, por
assim dizer, meros sintomas de afetividade.” (JUNG, 2015, p.41) A partir desse
pressuposto, o autor compreende os afetos como o sedimento dos complexos que
constituem a psique, os quais possuem considerável teor emocional e afetivo, o que
será explicado mais a frente. Dessa forma, o afeto se expressa como configuração
qualitativa de força da energia psíquica, estando ligado à intensidade da emoção,
emergindo de forma espontânea e capturando, portanto, a nossa vontade, ou seja, a
consciência. Com relação a provável efeito agudo da expressão de tais afetos, ele
converte-se (na perspectiva da histeria), desloca-se, (a partir da obsessão em
pensamentos e comportamentos), e transforma-se, podendo ser através da angústia,
como experiência de sufocamento, pelo peito apertado, ansiedade, insegurança, falta
de humor, ou seja, ressentimentos que estão associados a alguma dor. Nesse sentido,
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o afeto como evento psíquico ocorre através de sensações corporais além de


psíquicas, o que provoca uma necessidade de reestruturação da consciência. (JUNG,
2015)
De acordo com Paolo Francesco Pieri (2002) em seu livro Dicionário
Junguiano, a afetividade constitui a esfera motora em interação com a área
intelectiva, sendo considerada parte essencial da psique. Na medida em que atua
como estrutura constituinte desta, possui uma função importante no dinamismo
psíquico. Como aspecto estruturante, a afetividade insere-se como constituinte
elementar que atua desde o nascimento do indivíduo, sendo regente do pensamento
e da ação, e também do intelecto e da vontade. Dessa forma, o agir, estando
diretamente ligado à emoção, indica que todo elo de uma cadeia de ideias possui um
valor afetivo, e mesmo o processo intelectual mais puro só chega à decisão da
vontade por meio dessa tonalidade afetiva. (PIERI, 2002).
Filosoficamente, entende-se que a vontade é semelhante à força de vontade,
fato que se distingue da ideia de desejo, como geralmente é apontada pelo senso
comum. Então, infere-se que o afeto é um evento dinâmico que interfere de forma
involuntária na consciência. Partindo desse pressuposto, quando um afeto em
questão é constantemente reprimido, ele não desaparece, pois continua conectado à
lembrança ou trauma pelo qual está vinculado. Na perspectiva de Jung, em sua obra
A prática da psicoterapia, as tendências regressivas em análise não se manifestam
somente como recaídas na infância, englobando, também, numa tentativa autêntica
do indivíduo em encontrar algo que seja importante para si, considerando também um
olhar positivo, na medida em que o analisando poderá se dar conta de suas próprias
potências criativas. (JUNG, 1985)
Assim sendo, o afeto se distingue do sentimento apenas pelo seu grau e não
se configura através da vontade, pois aparece espontaneamente. Partindo dessa
afirmação, pode-se entender que os complexos pessoais e coletivos da psique
possuem uma entonação afetiva específica. Em seu livro A dinâmica da Psique,
Jung (1998) considera que nas experiências de associação, realizadas no início de
seus estudos a respeito dos complexos, verificou-se, por meio da determinação da
velocidade média das reações e as suas qualidades, uma perturbação do
comportamento autônomo da psique através das respostas dadas. Essa experiência,
portanto, foi o ponto de partida para que ele entrasse em contato com os complexos
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afetivos, representados pelas alterações nas reações verificadas por meio dessas
experiências.
No processo de associação de palavras, as possibilidades ilimitadas de
respostas dos participantes deram origem a uma experiência denominada de
constelação, que significa o desencadeamento de um processo psíquico em que uma
situação exterior provoca uma aglutinação e atualização de determinados conteúdos
inconscientes. Portanto, a constelação é automática, não podendo ser detida pela
vontade e, a partir de conteúdos constelados, determinam-se os complexos, que
possuem energia específica autônoma. Partindo desse pressuposto, na experiência
de associação de palavras, os complexos da psique influenciam intensamente o seu
curso, provocando um modo de reação que não corresponde, à primeira vista, ao
sentido da palavra-estímulo. Entende-se, assim, que reação foi perturbada pelos
complexos. (JUNG, 1998)
Em sua obra Estudos experimentais, Jung (1995) sustenta que todas as
neuroses psicógenas como possuidoras de complexos, pois possuem cargas
emocionais excepcionalmente fortes, tendo uma força consteladora que captura o
indivíduo todo pela sua influência; entende-se, por conseguinte, que o complexo é a
causa ou uma disposição do transtorno. Quando um trauma psíquico ocorre na
infância, por exemplo, a experiência se firma na psique de uma criança como um
complexo emocional de alta carga energética, o qual irá constelar o seu pensamento
e o seu agir por muitos anos, caso não seja assimilado. Sendo assim, um complexo
pessoal ou coletivo ativo nos aloja num estado de não liberdade, ou seja, geralmente
somos acometidos por pensamentos obsessivos e ações compulsivas, justamente
pelo elevado grau de autonomia e forte carga emocional proveniente desses núcleos
específicos. (JUNG, 1995)
Uma causa comum que leva a essa constelação é um conflito moral, que reside,
por fim, numa aparente impossibilidade de assumir a totalidade da natureza humana
que tem por consequência, portanto, uma dissociação imediata da psique. Nesse
momento, conforme Jung (1998) sinaliza, o complexo insere-se na superfície da
consciência, não sendo possível evita-lo e, progressivamente, toma a consciência do
“eu”, resultando na dissociação neurótica da personalidade. Isso ocorre porque os
complexos tendem a causar constrangimento, e tudo se faz para ocultá-los,
acarretando num recrudescimento da sombra.
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Sobretudo, a sombra constitui uma parte do inconsciente, contudo não abrange


o seu todo. Ela se caracteriza como qualidades ou habilidades que são desconhecidos
pelo ego, ou seja, pelo centro da consciência. Por outro lado, a sombra também se
configurar através de circunstâncias coletivas (FRANZ, 198-).
De acordo com a concepção contemporânea, segundo Jung em A dinâmica
da Psique, o complexo seria algo “imaginado” pelo analisando, como se ele o
conferisse vida. No entanto, confirma-se que o complexo possui autonomia notável e,
portanto, as dores sem causa orgânica, ou seja, consideradas “imaginadas”,
provocam tanto sofrimento ao indivíduo quanto as ditas “verdadeiras”. (JUNG, 1998)

2 A VERGONHA À LUZ DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

De acordo com Stein (2013) em seu livro Jung – O mapa da alma, a vergonha
é um afeto primitivo que pode adquirir um potencial destrutivo através de sua
repressão e projeção no outro. Ao sentir esse afeto, o sujeito tende a sentir culpa
por determinadas atitudes tomadas que estão em discordância com a persona
adotada por ele. Seria esse o efeito da sombra na personalidade, trazendo ela a
experiência de vergonha, de indignidade, um sentimento de impureza. Em sua obra
O Eu e o inconsciente, Jung define a persona como “[...] uma forma de autoeducação
em benefício de uma imagem ideal, à qual o indivíduo aspira a moldar-se, em que
sacrifica-se muito de sua humanidade.” (JUNG, 1978, p. 48) Isso ocorre porque, como
assevera o autor, a persona constitui uma parte da psique coletiva, sendo papeis
sociais atribuídos ao indivíduo para que ele se adapte ao mundo exterior e às normas
coletivas. Concerne inferir que a vergonha seria mais uma qualidade “sacrificada” para
que o indivíduo se enquadre em uma cultura que preserve a exposição somente de
afetos considerados “positivos”, como alguém que aparenta considerável
autoconfiança ao se apresentar publicamente, por exemplo. Certamente essa pessoa
acaba sendo mais valorizada por essa cultura da extroversão a um indivíduo que se
expõe com certo rubor e aparenta estar envergonhado. Contudo, por mais doloroso
que seja vivenciar a nível psíquico quanto corporal a autonomia desse complexo, a
vergonha torna-se positiva, pois através dela é possível tomar consciência da sombra.
Mario Jacoby nos traz outras considerações sobre a vergonha. Em Shame and
the origins of self-esteem: a junguian approach, afirma que o desejo de esconder

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esse afeto – e também aquilo que o provoca – é uma característica humana universal,
pois “[...] a vergonha nos faz querer atravessar o chão, cair dentro de um buraco e
falecer”. (JACOBY, 2002, p.8, tradução nossa)4 O autor ressalta ainda que a vergonha
possui variações, tendo vários afetos ligados a ela. Portanto, a vergonha não inclui
somente o sentimento de inferioridade e humilhação, mas também está ligada à
timidez, constrangimento, inibição, etc. Além disso, quanto mais uma pessoa duvida
de seu próprio valor, mais importante se torna a opinião de quem está ao seu redor e,
dessa forma, mais sensível o indivíduo fica com uma mínima possibilidade de rejeição
do outro. Visando chegar à origem desse complexo fenômeno, Jacoby (2002) dedicou
seu tempo de estudos e a atuação clínica à investigação de como grande parte do
processo de construção da autoestima tem seu início na relação da criança com o
ambiente, seja esse familiar, escolar ou em alguma outra instituição.
Outra abordagem, extra campo da psicologia, que discute sobre essa
construção da própria identidade a partir das relações que se configuram na infância
é a do sociólogo Anthony Giddens, em seu livro Modernidade e identidade. Em sua
obra, ele afirma que “[...] a confiança nos outros, no início da vida da criança e, de
maneira crônica, nas atividades do adulto, está na origem da experiência de um
mundo exterior estável e de um sentido coerente de autoidentidade.” (GIDDENS,
2002, p.53)
Por outro lado, outra questão abordada por Jacoby (2002) é a diferença
entre a vergonha e a culpa. Ele afirma que ambas possuem raízes arquetípicas,
porém, distingui-las não é uma tarefa simples, pois esses dois afetos tendem a atuar
em conjunto. Na obra Os arquétipos e o inconsciente coletivo, Jung advoga que
os arquétipos se caracterizam “[...] como um elemento vazio e formal em si, uma
possibilidade dada a priori da forma de sua representação. O que é herdado não são
ideias, mas as suas formas, as quais sob esse aspecto particular correspondem aos
instintos.” (JUNG, 2000, p. 91)
Assim sendo, é interessante frisar que tanto a vergonha quanto a culpa são
afetos que, na medida em que se constituem como complexos afetivos na psique
possuem representações apriorísticas e universais. Dessa forma, infere-se que as

4
“Shame makes us want to sink through the floor, crawl into a hole and die.”

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experiências de culpa geralmente fazem com que o indivíduo se perceba como “má
pessoa” por conta de alguma atitude que não deveria ter tomado. Já a manifestação
da vergonha, em certa intensidade, tem a capacidade de fazer com que a pessoa se
sinta “sem valor” sem que tenha feito nada que seja considerado errado ou imoral.
Nessa perspectiva, nota-se que a vergonha pode estar associada à experiência
subjetiva de descrédito, desonra e desgraça. Um indivíduo pode, por exemplo, sentir-
se envergonhado por algo moralmente condenável que tenha feito, havendo nesse
caso uma sobreposição entre a vergonha e a culpa. Contudo, é necessário distinguir
que a unicidade do fenômeno da vergonha reside no fato de que ela não está
vinculada somente à reação para um comportamento antiético. Uma pessoa pode,
dessa forma, sentir-se desconfortável por ter determinado tipo de cabelo, por ser alto
ou baixo, por estar abaixo ou acima do peso, por exemplo. (JACOBY, 2002)
Em síntese, sentir vergonha acarreta, muitas vezes, à repressão desse afeto
e também uma evitação constante da situação que levou a pessoa a experenciar
vergonha. Partindo desse ponto, pode-se compreender a necessidade humana de
procurar manter uma atitude ideal, na medida em que “[...] reprime-se
automaticamente tudo que é incompatível com essa atitude.” (JUNG, 1998, p. 264)
Portanto, todo esse processo pode gerar uma perda de respeito pela própria
totalidade, enquanto que a culpa geralmente leva o indivíduo a tentar se redimir pelo
ato cometido.

Confissões de culpa também se seguram na esperança de que os erros serão


retificados, tudo será perdoado. Mas a sensação de que o próprio eu não
merece ser amado pode machucar muito mais. Deve ser por essa razão que
tendemos a ouvir falar muito mais sobre culpa que vergonha. (JACOBY,
2002, p.2, tradução nossa)5

Nesse contexto, aponta-se, também, a necessidade de diferenciar o sentimento


de culpa de se ter culpa. Para embasar esse aspecto, Yves de La Taille (2002), em
Vergonha: a ferida moral, aponta algumas definições que não necessariamente estão
implicadas no campo da psicologia, contudo são possivelmente complementares às

5
“Confessions of guilt also hold out the hope that mistakes will be rectified, all will be forgiven. But the
feeling that one is personally unworthy of love cuts much deeper. This may be one reason that we
tend to hear so much more about guilt than shame.”

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definições da psicologia analítica. Ele infere que, ao se colocar como agente de


determinado ato, um indivíduo pode se reconhecer como responsável, contudo não
necessariamente sentir culpa. Em contrapartida, dizer que alguém está
“envergonhado” já pressupõe afirmar que a pessoa de fato experencia o afeto.

2.1 PERSPECTIVAS ARQUETÍPICAS DA VERGONHA E A SUA RELAÇÃO COM A


ANSIEDADE SOCIAL

A fim de dissertar sobre o fenômeno da vergonha e suas raízes arquetípicas, é


de suma importância apontar o que seria o arquétipo e qual a sua função no processo
psíquico. Jolande Jacobi, em seu livro Complexo, Arquétipo e Símbolo, a respeito
das estruturas gerais da psique, sinaliza que é importante fazer uma relação entre os
conceitos de complexo, arquétipo e imagem arquetípica. Como já apontado, de início
Jung (1998) compreendia os complexos a partir de experiências individuais, facilitado
pela sua experiência com o teste de associação de palavras. Com o passar do tempo,
no entanto, observou que há uma relação entre os aspectos individuais e coletivos
(JACOBI, 1995)
Partindo desse pressuposto, percebe-se que a ideia de arquétipo está
vinculada a de inconsciente coletivo também compreender esse conceito para
entender seu atravessamento na assimilação da afetividade humana. Em Dinâmica
da Psique, Jung afirma que o inconsciente coletivo se caracteriza por conteúdos
psíquicos coletivos que concernem a um grupo de indivíduos e até mesmo a toda a
humanidade. Ele ressalta que tais conteúdos subjetivos são inatos e instintuais
(JUNG, 1998).
Acerca disso, entendem-se os arquétipos como “pontos de nó” da psique, com
carga energética específica, em que sua totalidade jaz no inconsciente coletivo e
possui função dominadora na psique, manifestando-se através dos complexos. Na
obra Os arquétipos e o inconsciente coletivo Jung aponta que o arquétipo se
constitui como núcleo expressivo invariável que pode promover o seu aspecto,
contudo não de forma palpável. A forma através da qual o arquétipo materno se
manifesta, como exemplo, é através da experiência empírica (JUNG, 2002).
Portanto, é possível ter conhecimento do arquétipo apenas de forma indireta,
através de suas manifestações na psique, por meio de imagens arquetípicas. Jacobi
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(1995) complementa que essas manifestações ocorrem por intermédio de imagens,


situação possível somente mediante ao encontro da imagem arquetípica com o
consciente, encontro este que torna o arquétipo “perceptível”, ou seja, quando o seu
contorno ou a sua forma são preenchidos de conteúdo individual, apresentando-se,
portanto, como imagem. A percepção dessa imagem aponta que o arquétipo tornou-
se ativo. Nesse sentido, chegamos a um conceito fundamental em psicologia analítica,
que é o símbolo. Ao tanger o consciente, o arquétipo em si torna-se manifesto e
recebe uma forma, seja através de uma “expressão de impulso”, em uma esfera
biológica, ou também por meio de uma imagem ou ideia, manifestando-se no aparelho
psíquico (JACOBI, 1995)
Nessa perspectiva, Eric Neumann (1995), em seu livro A Criança: Estrutura e
Dinâmica da Personalidade em Desenvolvimento, desde o início de sua formação
aponta sobre as raízes arquetípicas dos complexos infantis, aprofundando-se na
descrição e análise do arquétipo da Grande Mãe (dentre outros, como o arquétipo da
Mãe Terrível) operante na relação primal da criança com a figura materna durante o
período da infância.
A princípio, quando se trata da ansiedade social, nota-se uma
confluência entre esta e a vergonha. A fim de embasar esse aspecto, Mario Jacoby
(2002) discursa em sua obra que, ao sentimos essa vergonha em nível patológico,
podemos sentir constantemente medo de “fazer papel de bobo” na frente do outro, ou
seja, reviver todo o constrangimento e as sensações dolorosas da vergonha. Dessa
forma, há um intenso medo também, por parte do indivíduo, de ser pego de surpresa
em uma nova situação vergonhosa ou embaraçosa para ele.
Com relação à origem do fenômeno da ansiedade, sabe-se que esta
possui uma natureza instintual, na medida em que a experiência de sentir ansiedade
tem relação com a proteção da própria vida contra o perigo. Portanto, é possível
apontar que a ansiedade é uma emoção que se encontra na fronteira limiar entre a
vida e a morte (JACOBY, 2002)
Nessa perspectiva, a ansiedade ou inibição social configura-se conforme
o indivíduo vivencia esse encontro com o olhar do outro. Se a exposição e possível
rejeição do outro representa um perigo iminente, o caminho mais fácil a ser escolhido
é se esconder desse possível encontro. Esse fator pode provocar uma identificação
maior do indivíduo com a persona adotada por ele em diversos âmbitos e,
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paralelamente, a um recrudescimento de sua sombra a partir de um acúmulo de


conteúdos psíquicos não assimilados, sejam esses um potencial criativo, uma
característica considerada desagradável, dentre outros elementos psíquicos, como a
própria vergonha.
Portanto, quando ocorre esse processo, observamos que o indivíduo passa a
atribuir maior valor às opiniões e ideias do coletivo. Existe, assim, um confronto interno
de imagens: a imagem que o indivíduo tem de si e olhares sentenciosos alheios. (LA
TAILLE, 2002) Nesse sentido, Mario Jacoby (2002) assevera que os indivíduos com
ansiedade social preferem permanecer em silêncio a realizar algum comentário
desagradável que despertaria atenção sobre si. Chama atenção, também, para a
necessidade que essas pessoas têm de se sentirem amadas, enxergadas e mesmo
admiradas, fato que ocorre devido a sentimentos de rejeição ou frustração
internalizadas durante a infância.
Antes de percorrer o caminho que se trilha no período infantil e as relações
estabelecidas nesse processo, torna-se coerente dissertar sobre as raízes
arquetípicas da vergonha. Jacobi (1995) complementa dizendo que a mitologia é um
retrato vivo da formação do mundo, sendo, então, uma roupagem primária dos
arquétipos quando estes se transformam nos símbolos, possuindo autonomia própria.
Nessa perspectiva, os arquétipos, em conjunto com os seus símbolos se fazem
densos na alma humana, inferindo-se, assim, que “[...] cada indivíduo possui uma
“mitologia individual’” (JACOBI, 1995, p.99). De acordo com a autora, o símbolo, como
“imagem”, é atrativo e estimulante ao ser no sentido de provocar uma reação integral.
Então, o pensamento e o sentimento, tanto quanto a sensação, são afetados pelo
símbolo.

É que as imagens dos deuses das grandes mitologias não são mais do que
fatores autônomos da psique projetados, potências arquetípicas através das
quais o ser humano comum se eleva grandioso e passa a ser visível em seus
aspectos pessoais. (JACOBI, 1995, p.99)

Além disso, Jolande Jacobi (1995) realiza outra inferência sobre esse processo
individual do simbolismo:

O “revestimento”, isto é, a aparência, pode extrair o seu material de toda parte


e fica sempre individualmente condicionado e dependente da situação, se o
símbolo em causa aparece como positivo ou negativo ou como figura
aparente ou repugnante para o indivíduo (JACOBI, 1995, p.103)
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Mario Jacoby (2002) descreve uma possível relação entre a experimentação


da vergonha com o próprio desconforto com a exposição da nudez. Acerca disso, o
autor realiza um paralelo entre a vivência arquetípica da vergonha e a transparência
de uma nudez psíquica. “[...] Em nossa cultura, o mais importante mito que trata do
tema da vergonha – e culpa – é a narrativa bíblica sobre o paraíso”. (JACOBY, 2002,
p. 16, tradução nossa) 6
Nessa narrativa, ambos os afetos, vergonha e culpa, se originam na psique
humana a partir de um ato de desobediência a Deus, quando este proíbe estritamente
os humanos de comer da Árvore do Conhecimento. O sentimento da vergonha
aparece quando Adão e Eva provam a fruta do conhecimento e, sendo assim, passam
a ter consciência da própria nudez quando se revelaram nus perante Deus, fazendo-
os ter vontade de se esconderem. Isso somente ocorreu após a desobediência de
ambos, pois, antes, estar nu era aparentemente algo ordinário em seu cotidiano no
paraíso.
A solução que ambos encontraram para afastar essa sensação de impureza
constante foi esconder as partes íntimas com folhas. Foi um ato criativo, motivado
pela vergonha, para o “bem” da civilização. Com relação à possibilidade de
compreensão arquetípica para o complexo fenômeno da vergonha, Mario Jacoby
sinaliza que a questão em pauta seria por qual razão os primeiros humanos
precisaram se sentir envergonhados perante Deus. Isso pode explicar, portanto, que
a vergonha de se expor ao outro possui fundamento arquetípico. (JACOBY, 2002)
Essa explicação do autor respalda muitos casos citados anteriormente sobre a
relação da vergonha e o olhar de outrem, e como geralmente esse olhar pode ser
sentencioso e provocar justamente essa sensação de “estar nu” diante do outro, seja
um parente, colega, professor, um grupo em específico. No que diz respeito a uma
atuação positiva da vergonha, observa-se que esse afeto não vem sem nenhum
propósito. Muitas vezes ele sinaliza a necessidade de proteção, ou de “voltar atrás”.
Talvez seja por essa razão que a sensação seja de fato dolorosa, porque esse afeto
alerta o indivíduo sobre alguma situação que ele não gostaria de vivenciar. Por isso,

6
“In our own cultural sphere, the most important myth dealing with the theme of shame—and guilt—is
the biblical Paradise narrative.”

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a assimilação da vergonha é fundamental para que essa emoção não assuma seu
caráter destrutivo quando é reprimida na presença do outro. De uma forma geral,
observa-se nas relações humanas que a presença do outro é uma questão
desafiadora tanto na vida cotidiana quanto na prática clínica. Nesse sentido, a autora
junguiana brasileira Nise da Silveira (2010) em seu livro Jung: vida e obra, cita os
conceitos de introversão e extroversão. No caso, existem pessoas que vão
rapidamente ao encontro do objeto (nesse caso, considera-se o objeto também como
esse outro) de forma confiante e há os que recuam como se o atrito com o mundo dos
objetos fosse uma tarefa desgastante.
Com isso, o estudo segue para o entendimento de como esse processo é
internalizado na infância a partir da constelação das figuras arquetípicas parentais
que, muitas vezes, comportam-se como figuras divinas na psique infantil.

2.1.1 A constituição primal da criança com a figura arquetípica do cuidador.

A partir das proposições de Erich Neumann (1995) elencam-se alguns


conceitos importantes para se compreender o dinamismo que ocorre na primeira
infância. Na fase matriarcal, consistente tanto na vida intrauterina quanto pós-uterina,
entende-se que há uma primazia do inconsciente, já que o ego (centro da consciência)
ainda não está formado. Sendo assim, na fase embrionária, o bebê está fisicamente
e psiquicamente agregado no corpo da mãe.
No processo intrauterino, é perceptível que o mundo tangente à mãe e a criança
torna-se uma realidade unitária, pois aquilo que a nossa consciência discrimina como
“dentro” e “fora”, para o bebê não há distinção, ou seja, a criança se encontra em um
processo chamado de ouroboros, o qual representa a totalidade e, para a criança, é
uma vivência geralmente paradisíaca, pois se sente segura nessa realidade unitária
(NEUMANN, 1995)
Uma passagem realiza uma síntese da relação dual entre a criança e a mãe:

A necessidade da criança de preservar a união dual da relação primal é quase


idêntica ao seu instinto de autopreservação, pois sua existência é totalmente
dependente da mãe. Esta, porém, não é apenas orgânica e material; como
agora sabemos, não se relaciona apenas com cuidados e alimentação. A
perda da mãe ou da pessoa que a substitui é sentida menos na esfera
corporal do que na psíquica. Manifesta-se também como perda de contato
com o mundo, lesões no automorfismo e no instinto de autopreservação e
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destruição dos primeiros ensaios de desenvolvimento de um ego.


(NEUMANN, 1995, p. 19)

Ou seja, a relação primal constitui uma constelação arquetípica peculiar, sendo


assim, uma mãe com o seu filho não integra a imagem de uma mulher individual com
sua criança individual, mas evoca um arquétipo comum a toda humanidade
(NEUMANN, 1995) Ela é a Grande Mãe, a Deusa mãe, e somente na formação do
ego a criança começa a identificar a mãe como um ser individual, pois até então a
figura materna permanece com o seu devido poder.
Jung (2002) em Os arquétipos e o inconsciente coletivo aponta o que seria
o arquétipo da Grande Mãe, o qual se constitui através de todas as manifestações do
tipo de uma Deusa-mãe em diversas culturas. O símbolo, portanto, deriva do arquétipo
materno e é observado em experiências clínicas, possuindo variações de acordo com
o seu teor individual em cada constelação. Sendo assim, são traços do arquétipo
materno o “maternal”, consistindo na autoridade feminina, caracterizada pela
sabedoria, a bondade, sustentação, às condições de crescimento, a fertilidade, o
alimento, dentre outros.
Em contrapartida, há uma concepção contrária a esses atributos, quando a
manifestação arquetípica pode desencadear em um complexo negativo. Seria a bruxa,
o dragão, um animal devorador, o pesadelo e o pavor infantil (JUNG, 2002). Isso
ocorre quando a primeira figura de cuidado não provém dessas características citadas
anteriormente, consideradas importantes para o automorfismo infantil. Em síntese,
para maior esclarecimento, Jung ressalta a figura de Maria, que possui um
considerável valor histórico na cultura judaico-cristã como símbolo desse arquétipo
materno, que reúne todas essas características concernidas ao arquétipo dessa
Grande Mãe. Na índia, por exemplo, cita-se Kali, um oposto, que representa três
atributos simbólicos fundamentais nessa cultura: a bondade, a paixão e a escuridão.
“São três atributos fundamentais da mãe, isto é, sua bondade nutritiva e dispensadora
de cuidados, sua emocionalidade orgiástica e a sua obscuridade subterrânea.”
(JUNG, 2002, p.93)
Como apontado por Neumann (2002) e Jung (2002) a figura da mãe surge na
psicologia dos povos, contudo a sua imagem se altera a partir da experiência
individual. Sendo assim, a psicologia analítica sustenta o pressuposto de que [...] Não
é apenas a mãe pessoal que provêm todas as influências sobre a psique infantil, mas
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é muito mais o arquétipo projetado na mãe que outorga à mesma um caráter


mitológico e com isso lhe confere autoridade”. (JUNG, 2002, p. 93)
Portanto, naturalmente, na fase pós-natal a criança passa a se inserir na
sociedade e a internalizar a linguagem, além de assimilar os costumes de seu grupo.
A partir dessa passagem, quando há a entrada no coletivo, a atitude do grupo em
relação a essa criança pode ser uma questão extremamente significativa. Isso porque,
de acordo com o pesquisador, se as características da criança e as circunstâncias do
seu nascimento forem avaliadas de forma negativa, isso pode ser desastroso para o
seu futuro (NEUMANN, 2002). Neumann sustenta que quando um ego infantil se torna
ferido, quando sua vivência no mundo sofrer traumas como a fome, a insegurança e
o desamparo, a Boa Mãe transforma-se, arquetipicamente, em Mãe Terrível. Então,
quando essa relação primal é perturbada, o ego é despertado cedo, forçando-se à
independência pela ansiedade e pelas mágoas. Por consequência, a sensação de não
ser amado na infância leva o indivíduo a criar formas de compensação para preencher
esse vazio de amor com relações amorosas geralmente intensas.
Nessa perspectiva, a necessidade de amparo e valorização tem importância
significativa na infância, pois ser criança é estar em uma posição de determinada
fragilidade e dependência. Portanto, nesse período, quando há essa edificação da
própria representação, nenhum valor tem mais força de atração do que o valor do
outro. (LA TAILLE, 2002). Isso significa que todo juízo de valor proveniente de quem
está ao redor da criança pode ser fator crucial para o desenvolvimento de sua
identidade, que passa a depender constantemente da aceitação de quem está a sua
volta. Em Psicoterapia junguiana e a pesquisa contemporânea com crianças:
Padrões básicos de intercâmbio emocional, Jacoby (2010) disserta que as projeções
inconscientes parentais podem ter efeitos fundamentadores na psique infantil. O filho
começa a carregar todas as esperanças e expectativas frustradas de seu progenitor,
além de seu próprio sentido de valor e satisfação pessoal 7. Tal sentimento primário,
de acordo com Neumann (2002, p. 72) leva a criança a compreender que “[...] não
ser amado é o mesmo que ser ‘anormal’, ‘leproso’ e, sobretudo, condenado.”

7
É importante não se ater a uma ideia rígida de culpabilização dos pais e/ou cuidadores reais, na
medida em que é necessário pensar não só em uma perspectiva causal, mas em um entrelaçamento
arquetípico que possui uma finalidade, pois a própria família também passou por essa constelação
em suas infâncias; pode-se pensar, partindo desse pressuposto, em um processo de humanização
desses pais.
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Em Estudos Experimentais, Jung (1995) sustenta que um dos exercícios mais


importantes, no processo de desenvolvimento infantil, seria o de libertar a criança
dessa ligação inconsciente com o seu meio ambiente familiar, o que para ele parece
complicado, na medida em que se conhece tão pouco ainda sobre os processos
emocionais que concernem à infância. Dito isso, torna-se difícil afirmar algo que tenha
uma congruência universal sobre o aspecto educacional desse processo conflituoso.
Isso porque não há, ainda, condições de apontar onde se encontra o maior problema:
nos pais ou cuidadores, na criança ou nas convicções sobre o meio ambiente.
Contudo, aponta-se ainda que “A infelicidade é sempre uma vinculação muito forte
com os pais: a prole fica presa numa relação infantil.” (JUNG, 1995, p. 528).
De acordo com James Hall (2007) na processual formação do ego, algumas
atividades e tendências inatas do sujeito poderão ser aceitas pelos familiares, ao
passo que outras atividades e impulsos serão valorados de forma negativa, sendo,
portanto, rejeitados. Assim, a identidade do ego infantil é geralmente moldada pelas
preferências e aversões das pessoas de quem a criança depende. Nesse sentido,
pode-se afirmar que ambos os afetos (vergonha e culpa) possuem uma relação
intrínseca com o social. A partir desses apontamentos, os sintomas que podem
aparecer a partir de uma configuração primal prejudicada com as figuras parentais,
que possivelmente ocorrem através de vivências da vergonha e culpa, podem ter
efeitos agravantes na relação do indivíduo com o meio em que vive, ou seja, infere-se
que ambos os afetos precisam ser assimilados pela psique infantil.
Dessa forma, é possível afirmar que as tendências e os impulsos que são
rejeitados pela família não são perdidos. Pelo contrário, aglomeram-se
especificamente na sombra (HALL, 2007). A sombra continua, portanto, se
comportando como uma identidade pessoal e coletiva, porém, de uma parte
rejeitada/inaceitável, geralmente associada a sentimentos de culpa. Mediante a isso,
James Hall (2007) assevera que a sombra é projetada geralmente em sujeitos do
mesmo sexo, num outro que passa a ser antipatizado e invejado pela pessoa,
justamente por esse possuir qualidades que não estão integradas na personalidade
do próprio sujeito.
Com isso, pode-se inferir que pessoas que possuem a inibição social por conta
da vergonha, reprimida e, portanto, por vezes patológica, muitas vezes projetam a
própria sombra em pessoas que se mostram comunicativas e autoconfiantes. Jung
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(1998) aponta que o fenômeno da projeção se repete constantemente na vida


cotidiana, na medida em que há indivíduos que projetam suas próprias opiniões sobre
pessoas e objetos, podendo odiá-las ou amá-las facilmente. Ou seja, por meio de
julgamentos próprios o sujeito não se dá conta de que está projetando algo que
carrega dentro de si, ou seja, uma característica não assimilada pela consciência. É
importante frisar, portanto, que tanto na sombra pessoal quanto coletiva, também se
encontram potencialidades negligenciadas que podem positivamente serem
assimiladas.
Sobre a psicoterapia para indivíduos que não possuem a vergonha assimilada
em sua personalidade, Mario Jacoby (2002) sinaliza sobre a importância transferencial
da análise. Nesse sentido, o setting psicoterapêutico é capaz de resgatar essa relação
primal, no qual o analisando acaba projetando em seu analista as figuras e
representações simbólicas vividas por ele na infância, podendo, assim, reviver uma
situação similar à constituição primal.
Contudo, o autor sustenta que o psicoterapeuta não pode categoricamente
assumir essa função, já que o indivíduo não é mais uma criança e o analista não é
literalmente sua mãe ou o seu pai.

A psicologia analítica requer uma colaboração mútua entre analista e


analisando, pois os resultados da análise dependem não só de um esforço
consciente, mas também que o Self – o centro organizador de nossa
personalidade -, seja constelado de forma cooperativa. (JACOBY, 2002, p.
95, tradução nossa) 8

Jacoby relata um caso clínico que foi tanto desafiador quanto transformador
para ambos em análise. Em síntese, foi o caso de um jovem que possuía vergonha
dos barulhos que fazia com o nariz, no ato de fungar. Para ele, era desconfortável
respirar dentro de sala de aula ou em ambientes públicos. Nas primeiras sessões de
análise, ele sentiu uma relação de segurança com o analista, até mesmo de proteção,
pois ambos tinham a mesma idade, e isso o fez se sentir mais confortável para falar
sobre a vergonha e a ansiedade que sentia. Portanto, Jacoby (2002) entendeu que,
arquetipicamente, o analisando projetava nele uma figura materna protetora, que

8“Analyticalpsychotherapy requires the analysand’s active collaboration. The outcome of analysis


depends not only on his or her conscious efforts, but also on whether the Self—the organizational
center of the personality as a whole—can be constellated in a cooperative way.”
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acolheria seus sintomas. Uma frase interessante desse rapaz, em que ele relata ter
sido transformadora, foi “Eu sou quem eu sou”9, (JACOBY, p. 97, 2002) e isso
possibilitou uma possível mudança de atitude para o início de um processo de auto
aceitação.
Contudo, ao mesmo tempo, toda inferência do analista tinha grande poder de
influência, já como uma figura arquetípica paterna. Ele enxerga seu analista, portanto,
como uma espécie de divindade (JACOBY, 2002). Esse processo passou a afetar a
análise, pois o jovem recordava de situações em que era repreendido e frustrado na
infância pelo seu pai e pela sensação de julgamento de terceiros no ambiente escolar.
Nessa perspectiva, o processo de análise passou a evoluir quando o analista teve a
ideia de dizer isso ao analisando, ou seja, tentar cautelosamente provocar esse
rompimento com esses complexos afetivos, sendo sincero com o rapaz sobre um
caminho perigoso que ambos estavam percorrendo em análise, na medida em que
ocorreu uma falha na transferência, pois o analisando não se sentia à vontade para
se expressar. Assim sendo, o próprio analista, a partir de um contato com a sua
sombra, sentiu-se ansioso em não corresponder às expectativas de seu analisando.
A partir desse momento de honestidade, o jovem se permitiu, pela primeira vez,
contestar até mesmo algumas inferências de Jacoby, e passou a ter mais autonomia
e confiança em sua análise, o que permitiu ambos a retornarem para o processo
dialógico e cooperativo entre analista e analisando.
Interessante pensar nesse percurso analítico em indivíduos que lidam com a
sensação dolorosa da vergonha, importante de ser assimilada na totalidade da psique.
Partindo desse princípio, ao valorar que todo afeto é fundamentador e criativo, pois
sua constante repressão pode provocar considerável sofrimento psíquico, entendendo
que quanto maior a sombra, maior a persona do indivíduo. Assim sendo, muitos
indivíduos com ansiedade social podem se identificar completamente uma persona
com o intuito de se encaixar em determinado ambiente, o que ocasiona esse
tamponamento de características não assimiladas na personalidade. Nessa
perspectiva, conforme Byington (2019) em nossa cultura, existe uma tendência a nos
defendermos e disfarçarmos afetos considerados pecaminosos. Dito isso, o
puritanismo enraizado em nossa sociedade promove o desconhecimento humano

9“I am who I am”.


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acerca da verdadeira força vital da humanidade, na medida em que,


inconscientemente, os pais ou cuidadores podem tratar as suas crianças como seres
destituídos de emoções e, a partir disso, retiram sua potência criativa e as fragilizam.
Dessa forma, é importante compreender que o processo de individuação caminha em
direção de uma integração potencial da personalidade do que à perfeição de algum
aspecto particular desejado pela consciência do ego. Para que persona e sombra se
integrem, por exemplo, o sujeito precisa se envolver em uma jornada de
autocompreensão, ou seja, passar a entrar em contato a totalidade da própria psique.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dentro do esforço que se tentou empreender procurou-se apontar nesse artigo,


primeiramente, a importância de uma maior inserção de temas da psicologia analítica
no meio acadêmico, visto que é uma área de saber ampla e possuidora de vertentes
que merecem ter mais reconhecimento no campo das ciências psicológicas. Além
disso, dentro desse referencial teórico e clínico, houve a intenção de se tentar sinalizar
a vergonha não apenas como um afeto negativo, muitas vezes tratado por diversas
abordagens, sejam elas psicológicas ou não, como um afeto ou emoção que precisa
ser “vencido” através de técnicas coercitivas a fim de que o indivíduo se adapte a uma
cultura da extroversão, negligenciando e reprimindo, dessa forma, aspectos profundos
de sua psique.
Portanto, teve como intuito procurar amplificar o aspecto fundamentador da
vergonha, descrevendo o potencial criativo e teleológico desse afeto ao evidenciar o
seu caráter simbólico, importante para a estruturação da personalidade, na medida
em que o indivíduo passa a entrar em contato e assimilar a vergonha. Ou seja, permitir
aprofundar no possível aspecto doloroso dessa emoção para compreender qual a sua
provável finalidade na estrutura da psique.
Nesse sentido, também buscou compreender como ocorre o processo de
internalização da vergonha na infância a partir da identificação com as figuras

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arquetípicas parentais. Observou-se que contato e a consequente assimilação dessas


imagens, através de recursos lúdicos, seriam importantes para o desenvolvimento da
autonomia e auto identidade da criança, fato que ocorre de forma gradual, podendo
se estender até à idade adulta.
Ademais, apontou-se que se os cuidadores negligenciarem ou reprimirem a
manifestação da vergonha, principalmente em momentos em que a criança se expõe
(seja em apresentações da escola ou eventos esportivos, e até mesmo dentro do
ambiente familiar), poderá ser prejudicial para o automorfismo infantil, que se
respalda, primeiramente, através do olhar das figuras de cuidado.
Além disso, nota-se uma escassez de estudos sobre o fenômeno da vergonha
no campo da psicologia analítica, o que torna esse tema complexo, fator que elucida
uma oportunidade de promover, através de pesquisa e experiência clínica e empírica,
um olhar mais profundo sobre esse universo afetivo.
Nesse sentido, numa contramão de uma por vezes psicopatologizante
sociedade e cultura que cultua a extroversão, espera-se que esse trabalho seja uma
contribuição não só para a clínica psicológica como também para o aprofundamento
e articulações da teoria junguiana para essa perspectiva clínica.

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