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23-Texto Do Artigo-43-1-10-20170620

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Interdiscursividade e Intertextualidade

João Hilton Sayeg de Siqueira1

Resumo
Este texto tem por tema um estudo da constituição da interdis-
cursividade e da intertextualidade, levando-se em conta as noções de
polifonia (BAKHTIN, 1982), intertextualidade (KRISTEVA, 1981),
heterogeneidade constitutiva e a heterogeneidade mostrada (AU-
THIER-REVUZ, 1982). Para o desenvolvimento da pesquisa foram
selecionados textos em que ocorre a interdiscursividade, por meio da
heterogeneidade constitutiva (Tragédia brasileira de Manuel Bandeira e
Juca de Chico Buarque de Holanda); e a intertextualidade, por meio da
heterogeneidade mostrada marcada (Bom conselho de Chico Buarque
de Holanda e Provérbios) e da heterogeneidade mostrada não marcada
(Queixa de Caetano Veloso e Cantiga de amor de Afonso Fernandes).

Palavras-chave
Interdiscursividade; Intertextualidade; Heterogeneidade consti-
tutiva; Heterogeneidade mostrada.

Abstract
This text is a study of the issue of the constitution interdiscursivity
and intertextuality, taking into account the notions of polyphony (Bakhtin,
1982), intertextuality (Kristeva, 1981), constitutive heterogeneity and
heterogeneity shown (AUTHIER-Revuz, 1982) . To develop the research
texts that interdiscursivity occurs through constitutive heterogeneity (Tra-
gédia brasileira of Manuel Bandeira and Juca of Chico Buarque de Holan-
da) were selected; and intertextuality, shown by the marked heterogeneity
(Bom conselho of Chico Buarque de Holanda and Proverbs) and shown no

1
Professor Doutor, Titular do Programa de Estudos Pós-graduados em Língua
Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Dire-
tor da Faculdade Alfa, Praia Grande, SP.

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Revista Técnico-Científica das Faculdades Atibaia

marked heterogeneity (Queixa of Caetano Veloso and Cantiga de amor of


Afonso Fernandes).

Key Words
Interdiscursivity; Intertextuality; Constitutive heterogeneity; Hete-
rogeneity shown.

Introdução
Este texto tem por tema um estudo da interdiscursivida-
de e da intertextualidade, considerando-se as noções de polifonia
(BAKHTIN, 1982), de intertextualidade (KRISTEVA, 1981), de
heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada (AU-
THIER-REVUZ, 1982).
Objetiva-se examinar como a interdiscursividade e a inter-
textualidade se presentificam em textos escritos em língua portu-
guesa a partir de marcas implícitas e explícitas, tendo por critério
de análise fatores que envolvem a heterogeneidade constitutiva e
a heterogeneidade mostrada.
Entende-se por heterogeneidade constitutiva as expressões
linguísticas e seus meios: realizações de processos, tipologias tex-
tuais, regras retóricas, trabalhos de estilo e de época; e por he-
terogeneidade mostrada, o controle e a regulagem do processo,
evidenciados, no discurso, pela presença explícita do outro.
A tentativa de verificar a maneira como a interdiscursivida-
de e a intertextualidade são manifestadas justifica-se na medida
em que o texto enunciado apresenta diferentes dimensões de lei-
tura e de interpretação, respectivamente associadas ao procedi-
mento adotado e aos sentidos construídos. Para Lajolo (1985:59):

Ler não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de


um texto. É, a partir do texto, ser capaz de atribuir-lhe significação,
conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos para

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FAAT

cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia
e, dono da própria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se
contra ela, propondo outra não prevista.

Nenhum texto possui uma única leitura, quer se situem di-


ferentes leitores, quer se situe um mesmo leitor, nos seus diferen-
tes momentos de leitura. O homem é o produtor de significações
e elas ocorrem, necessariamente, na contextualização discursiva.
No dizer de Seixo (1977:15), “o texto produz e engloba os discur-
sos, o discurso lê os textos”. Por isso, o homem consegue, a par-
tir de sua competência textual de leitura, dinamizar os diferentes
sentidos que um texto comporta, seja intra ou intertextualmente.
Vigner (1988:32) ressalta a importância do fenômeno da
interdiscursividade e da intertextualidade como fator essencial da
legibilidade do texto:

Só é legível o já lido, o que pode inscrever-se numa estrutura de


entendimento elaborada a partir de uma prática e de um reconhe-
cimento de funcionamentos textuais adquiridos pelo contato com
longas séries de textos.

O procedimento metodológico adotado é o teórico e analí-


tico, pois partimos de conceitos teóricos que orientam as análises.
Os passos seguidos são:

l. Estabelecimento do tema.
2. Levantamento bibliográfico direcionado para o estudo da
interdiscursividade e da intertextualidade.
3. Seleção de textos para análise.
4. Análise dos textos selecionados.
5. Apresentação dos resultados obtidos.

Para a análise, foram selecionados textos que possibilitam


examinar as marcas implícitas e explícitas, que evidenciam a inter-
discursividade e a intertextualidade, considerando os fatores da he-
terogeneidade constitutiva e a heterogeneidade mostrada; a saber:
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1. para a interdiscursividade, implicitamente, a heterogenei-


dade constitutiva em tipologias narrativas que:
1.1 obedece à ordem canônica da superestrutura
• Tragédia brasileira, Manuel Bandeira;
1.2 altera a ordem canônica da superestrutura
• Juca, Chico Buarque de Holanda.
2. para a intertextualidade, explicitamente, a heterogeneida-
de mostrada marcada e não marcada:
2.1 marcada
• Bom conselho, Chico Buarque de Holanda;
• Provérbios.
2.2 não marcada
• Queixa, Caetano Veloso;
• Cantiga de amor, Afonso Fernandes.

Considerações Teóricas
A primeira noção de diálogos entre discursos (e textos)
aparece, implicitamente, em Bakhtin (1982:192), quando este tra-
ta do romance polifônico de Dostoievski, caracterizado pela plu-
ralidade de vozes redutíveis a uma “mediação unitária”. Bakhtin
mostra como a palavra tende a ser bivocal (ou mesmo plurivocal),
estabelecendo múltiplos contatos no interior do mesmo discurso
ou com outros discursos (discurso dialógico).
Em outras palavras, na base de sua análise do romance,
encontra-se a convicção de que todo texto tem internamente,
imanentemente, um caráter sociológico. Nele se cruzam as forças
sociais vivas e cada elemento está impregnado de valores sociais
vivos. Diz Bakhtin (id. Ibid.):

Em Dostoievski, o argumento carece de toda classe de funções con-


clusivas. Seu propósito está em situar o homem em diversas posi-

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FAAT

ções a fim de que ele se descubra e se deixe provocar, e se reúna e se


choque entre si e o mundo, de tal maneira que o mundo não per-
maneça dentro de um marco deste choque argumentativo, mas saia
dele, fora de seus limites. Os vínculos autênticos se iniciam ali onde
um argumento normal se acaba, havendo cumprido sua função
auxiliar. [...] Em todas as partes dos diálogos de suas personagens,
existe um determinado conjunto de idéias, pensamentos e palavras
que se conduzem através de várias vozes separadas, somando-se
em cada uma delas de maneira diferente.

A intenção de Dostoievski é precisamente a variação do


tema em muitas e diversas vozes, um plurivocalismo e um hetero-
vocalismo fundamentais e insubstituíveis do tema. A ele importa
a mesma disposição das vozes e a sua interação.
A partir dessas noções apontadas por Bakhtin, Ducrot de-
senvolve a teoria da polifonia e Kristeva, a da intertextualidade.
Retomando o conceito de polifonia de Bakhtin e operando-o em
nível linguístico, Ducrot (1987:161) mostra, segundo a perspec-
tiva da Semântica da Enunciação, como, mesmo num enunciado
isolado, é possível detectar mais de uma voz. No seu trabalho Es-
boço de uma Teoria Polifônica da Enunciação, o objetivo funda-
mental é contestar a tese da unicidade do sujeito falante como
fonte do discurso. Parte do pressuposto de que o sentido do enun-
ciado é uma descrição de sua enunciação e para essa descrição o
enunciado fornece indicações.
Kristeva (1981:15-16) procura explicar a intertextualidade,
considerando o texto como ideologema: função intertextual pre-
sente nos diferentes níveis da estrutura organizacional de cada tex-
to, e que se estende ao longo de todo o seu trajeto, conferindo-lhe
suas coordenadas históricas e sociais. Não se trata de um processo
explicativo-interpretativo posterior à análise, que explicaria como
produto ideológico aquilo que primeiro tenha sido conhecido como
produto linguístico. A aceitação de um texto como ideologema de-
termina o próprio procedimento de uma semilogia que, estudan-
do o texto como uma intertextualidade, pensa-o assim, em rela-

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ção com (os textos de) a sociedade e a história. O ideologema de


um texto é o lugar no qual a racionalidade conhecedora integra a
transformação dos enunciados em um todo, assim como as inser-
ções dessa totalidade no texto histórico e social. O encontro de uma
organização textual dada com os enunciados que assimila em seu
espaço ou aos que remete no espaço dos textos exteriores.
Todo texto pressupõe várias classes de discursos, contem-
porâneos ou anteriores, e se apropria deles para confirmá-los ou
recusá-los, mas, de qualquer forma, para possuí-los e de tal sorte
que o corpus que precede o texto age, pois, como uma pressupo-
sição generalizada. Assim, todo texto está sob a jurisdição de ou-
tros discursos que lhe impõem um universo. É dizer que o texto
é uma intertextualidade, uma permutação de textos, absorção e
transformação de uma multiplicidade de outros textos, rede de
conexões internas e externas.
De uma maneira geral, a intertextualidade diz respeito aos
fatores que tornam a utilização de um texto dependente do co-
nhecimento de um ou mais textos previamente existentes, com-
preendendo as diversas maneiras pelas quais a produção e a re-
cepção de dado texto depende do conhecimento de outros textos
(Cf. BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981:10).
Os fatores que tornam a utilização de um texto dependente
de um ou mais textos previamente existentes envolvem aspectos
constitutivos e mostrados em marcas da ocorrência textual. Os
ligados ao aspecto constitutivo evidenciam questões do conheci-
mento adquirido. Os de aspectos mostrados, marcado e não mar-
cado, apoiam-se nas marcas linguísticas atualizadoras do texto.
Tanto um quanto outro são apreendidos na prática dos indivíduos
como sujeitos discursivos, receptores de textos.
Na busca da constituição do sujeito do discurso surgiram
vários estudos, dentre os quais pode-se destacar o de Heteroge-
neidade discursiva, de Authier-Revuz (1982) em que se destaca a
noção de que todo discurso é atravessado por outros discursos.
Essa é a característica constitutiva de todo e qualquer discurso. O
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FAAT

discurso é heterogêneo e as marcas palpáveis de outros discursos


são heterogeneidades mostradas em negociação com a heteroge-
neidade constitutiva.
O sujeito dá lugar, em seu discurso, ao discurso do outro.
Essa dialogicidade interna do discurso orienta a estrutura de todo
e qualquer discurso e garante a interação, pois constitui o espaço
verbal de identidade sócio-histórica dos sujeitos implicados no
discurso, seja implícita ou explicitamente.
A heterogeneidade constitutiva não está manifestada expli-
citamente no texto por meio de marcas linguísticas, mas é con-
dição essencial para a ocorrência de discurso, dada sua condição
sócio-histórica de constituição. O interdiscurso e a orientação
dialógica de todo discurso é o princípio de sustentação para a ma-
nifestação da heterogeneidade mostrada: marcada e não marcada.
A heterogeneidade mostrada é uma maneira de negociação
do sujeito com a heterogeneidade constitutiva. O sujeito elabora
o seu próprio dizer, marcando seu discurso com o dizer do outro.
Como resultado, o sujeito garante um efeito de sentido de que o
resto do dizer é todo seu. Isto é, ao se circunscrever na alteridade
o sujeito garante uma unidade, mesmo que aparente.
No domínio da heterogeneidade mostrada, pode-se apre-
ender linguisticamente a presença do outro no discurso, por meio
de marcas linguísticas explícitas (heterogeneidade mostrada mar-
cada); ou por meio de ocorrências não visíveis na materialidade
linguística, mas por um efeito de sentido depreendido da confi-
guração estética do dizer que revela a presença de outro(s) (hete-
rogeneidade mostrada não marcada).
Um discurso nasce de discursos anteriores e projeta discur-
sos posteriores. Um texto sempre tem relação com outros textos
nos quais ele se embasa para existir. A interdiscursividade sempre
está implícita em todo e qualquer texto. A intertextualidade pode
ocorrer marcada ou não, seja explicitamente assinalada por pa-
lavras e estruturas sintáticas, seja por configurações estéticas de
resgate sócio-histórico de manifestações textuais.
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Análises

1. A interdiscursividade:
Para a interdiscursividade, implicitamente, será considera-
da a heterogeneidade constitutiva presente na tipologia textual da
narrativa. Segundo Van Dijk (l989:53):

o conto tem outro tipo de estrutura: uma estrutura esquemáti-


ca que chamaremos superestrutura. Uma superestrutura pode
caracterizar-se intuitivamente como a forma global de um dis-
curso, que define a ordenação global do discurso e as relações
(hierárquicas) de seus respectivos fragmentos. Tal superestrutu-
ra, em muitos aspectos parecida à ‘forma’ sintática de uma ora-
ção se descreve em termos de categorias e de regras de formação.
Entre as categorias do conto figuram, por exemplo: a introdução,
a complicação, a resolução, a avaliação e a moral. As regras deter-
minam a ordem em que as categorias aparecem. Assim, a ordem
canônica (normal) da superestrutura de um conto é a ordem em
que acabamos de mencionar as categorias narrativas. A estrutura
de um conto que se obtém desta maneira é chamada esquema
narrativo ou superestrutura narrativa.

Nos estudos que o referido autor desenvolveu com Kints-


ch (1983:56-57), as categorias da narrativa aparecem reduzidas
a três: toda história, em princípio, canonicamente, apresenta: uma
situação inicial, uma complicação e uma resolução... Essa tipologia
mais simplificada será a adotada para a análise da interdiscursivi-
dade nos textos que seguem, verificando se eles obedecem ou não
à ordem canônica proposta.

1.1. narrativa que obedece à ordem canônica da superestrutura:

TRAGÉDIA BRASILEIRA
Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade,
conheceu Maria Elvira na Lapa - prostituída, com sífilis,
dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em
petição de miséria.

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FAAT

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado


no Estácio, pagou médico, dentista, manicura. Dava tudo
quanto ela queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou
logo um namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro,
uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael
mudava de casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua Ge-
neral Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua
Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra
vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca
de Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sen-
tidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi
encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.

Manuel Bandeira, in Estrela da vida inteira.


15 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, l988:l33

O texto, em sua organização, obedece à ordem canônica


proposta para a superestrutura da narrativa:

l. Situação inicial: apresentação das personagens Misael e


Maria Elvira e das condições em que se conheceram.
2. Complicação: criação de um conflito para Misael a partir
das atitudes volúveis de Maria Elvira.
3. Resolução: procedimentos adotados por Misael para re-
solver o conflito que lhe foi criado.

A superestrutura e a ordem canônica de seus constituintes


são sócio-historicamente apreendidas e estão na concepção supe-
restrutural de toda manifestação textual narrativa.
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1.2. narrativa que altera a ordem canônica da superestrutura nar-


rativa:

JUCA

Juca foi autuado em flagrante


Como meliante
Pois sambava bem diante
Da janela de Maria
Bem no meio da alegria
A noite virou dia
O seu luar de prata
Virou chuva fria
A sua serenata
Não acordou Maria
Juca ficou desapontado
Declarou ao delegado
Não saber se amor é crime
Ou se samba é pecado
Em legítima defesa
Batucou assim na mesa:
O delegado é bamba
Na delegacia
Mas nunca fez samba
Nunca viu Maria

In Chico Buarque. RGE, l963.

O texto, em sua organização, não obedece à ordem canôni-


ca proposta para a superestrutura da narrativa e a transforma em
sua atualização, iniciando-se pela complicação:

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FAAT

l. Complicação: Juca é autuado em flagrante como meliante,


o que cria para ele um conflito, pois não consegue acordar
Maria e declarar-lhe seu amor pela serenata.
2. Situação inicial: Juca faz uma serenata para Maria, sam-
bando, para declarar-se.
3. Resolução: Juca argumenta com o delegado a validade de
seu procedimento.

Mesmo não obedecendo à ordem canônica, a superestru-


tura da narrativa está presente no texto, o que indica que ela é
necessária para a identificação de um texto como tal.

2. para a intertextualidade, explicitamente, a heterogeneidade


mostrada marcada e não marcada:
2.1. heterogeneidade mostrada marcada:

BOM CONSELHO

Ouça um bom conselho


Eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espera sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança
Venha meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar
Corro atrás do tempo

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Revista Técnico-Científica das Faculdades Atibaia

Vim de não sei onde


Devagar é que não se vai longe
Eu semeio o vento na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade...

Chico Buarque, Phonogram, 1975

Nem todo texto que se utiliza, explicitamente, de uma cita-


ção tem por objetivo confirmá-la, às vezes, a intenção é recusá-la
por meio de contestações, como ocorre nesse texto que contesta
os seguintes provérbios:

Se conselho fosse bom não se dava, vendia-se.


Dorme que a dor passa.
Quem espera sempre alcança.
Quem brinca com fogo acaba se queimando.
(transposição do sentido negativo: dor; para o positivo: prazer)
Faça o que eu digo e não o que eu faço.
Pense duas vezes antes de agir.
Devagar é que se vai longe.
Quem semeia vento, colhe tempestade.
(transposição do sentido negativo para o positivo)

In Raimundo Magalhães Jr. Dicionário de


provérbios. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s.d.

2.2. heterogeneidade mostrada não marcada:

QUEIXA

Um amor assim delicado


Você pega e despreza

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FAAT

Não o devia ter despertado


Ajoelha e não reza
Dessa coisa que mete medo
Pela sua grandeza
Não sou o único culpado
Disso eu tenho certeza
Princesa
Surpresa
Você me arrasou
Serpente
Nem sente que me envenenou
Senhora e agora
Me diga onde eu vou
Senhora
Serpente
Princesa
Um amor assim violento
Quando torna-se mágoa
É o avesso de um sentimento
Oceano sem água
Onda: desejos de vingança
Nessa desnatureza
Bateu forte sem esperança
Contra tua dureza
Princesa
Surpresa
Você me arrasou
Serpente
Nem sente que me envenenou
Senhora e agora
Me diga onde eu vou

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Revista Técnico-Científica das Faculdades Atibaia

Senhora
Serpente
Princesa
Um amor assim delicado
Nem um homem daria
Talvez tenha sido pecado
Apostar na alegria
Você pensa que tem tudo
E vazio me deixa
Mas Deus não quer que eu fique mudo
E eu te grito esta queixa
Princesa
Surpresa
Você me arrasou
Serpente
Nem sente que me envenenou
Senhora e agora
Me diga onde eu vou
Senhora
Serpente
Princesa

Caetano Veloso, in Circuladô. Polygram, 1992

O texto, por seu estilo e por seus recursos lexicais, reporta-


-se a uma época, Idade Média, em que se produziam cantigas de
amor e a elas se assemelha, por retratar o amor cortês, a vassala-
gem à mulher amada que é mantida no anonimato e designada
por senhora, a servidão, o sofrimento, a mágoa, a crueldade e a
tristeza. Não se tem uma cantiga de amor, mas uma referência a
ela, que pode ser notada mas não marcadamente mostrada.

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FAAT

Esse tipo de cantiga originou-se na região de Provença, sul


da França, no século XI e se espalhou por toda a Europa, influen-
ciando as composições literárias galego-portuguesas. O texto
abaixo é dessa época e está transcrito em português atual:

CANTIGA DE AMOR

Senhora minha, desde que vos vi,


lutei para ocultar esta paixão
que me tomou inteiro o coração;
mas não o posso mais e decidi
que saibam todos o meu grande amor,
a tristeza que tenho, a imensa dor’
que sofro desde o dia em que vos vi.

Quando souberem que por vós sofri


tamanha pena, pesa-me, senhora,
que diga a alguém, vendo-me triste agora,
que por vossa crueza padeci,
eu, que sempre vos quis mais que ninguém,
e nunca me quisestes me fazer bem,
nem ao menos saber o que eu sofri.

E quando eu vir, senhora, que o pesar


que me causais me vai levar à morte,
direi, chorando minha triste sorte:
“Senhor, por que me vão assim matar?”
E, vendo-me tão triste e sem prazer,
todos, senhora, irão compreender
que só de vós me vem este pesar.

Já que assim é, eu venho-vos rogar


que queirais pelo menos consentir

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Revista Técnico-Científica das Faculdades Atibaia

que passe a minha vida a vos servir,


e que possa dizer em meu cantar
que esta mulher, que em seu poder me tem,
sois vós, senhora minha, vós, meu bem:
graça maior não ousarei rogar.

Afonso Fernandes. Apud C. Berardinelli, Cantigas de trovadores


medievais em português moderno. Rio de Janeiro: Simões, s.d.:l9

EM SUMA, em toda manifestação textual encontram-se,


implicitamente, uma retomada discursiva e, explicitamente, uma
teia de manifestações léxico-sintáticas que tecem diálogos textu-
ais marcados e não marcados.

Considerações Finais
Um estudo sobre a interdiscursividade e a intertextualidade
possibilita, mais claramente, a visualização de como o escritor/lei-
tor se apropria de textos armazenados, em sua memória, ao longo
de sua existência, como ser sócio-historicamente situado, e esta-
belece com eles um jogo interacional.
A produção textual, aqui entendida tanto como escritura
quanto como leitura, é construída a partir da relação com muitos
outros textos, seja explícita ou implicitamente. Seu caráter é inter-
discursivo e intertextual, uma vez que todo discurso decorre de
discursos anteriores e o texto sempre está inserido num conjunto
textual por fatores que lhe determinam, pelo menos, a tipologia.
Produzir um texto implica a recorrência ampla ou estrita a
outros textos, a fim de absorvê-los, confirmá-los, transformá-los
ou recusá-los, numa tensão dinâmica, processada por movimen-
tos contínuos de escritura/leitura.
Sob esse ponto de vista, embasado por estudos de represen-
tantes do grupo Tel Quel (apud Perrone-Moisés, 1978), pode-se
conceber o texto como duplo escritura-leitura: ler aparece como
26
FAAT

um ato de escritura, e escrever revela-se como um ato de leitura,


de tal sorte que ler e escrever não são senão momentos simultâne-
os de uma mesma produção. Assim, a leitura deve ser considerada
como escritura que transforma o texto e permite ler um outro
texto, de tal forma que a superfície do texto torna-se o produto de
um espaço pluridimensional: escritura/leitura de uma escritura/
leitura/escritura de uma leitura, e assim sucessivamente.

Bibliografia
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constitutive: elements pour une approche de láutre dans Le
discours. In: DRLAV – Revue de Linguistique, 26, 1982, p.
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BAKHTIN, M. (1982) Estética de la criación verbal. Mexico: Siglo
Veintiuno.
BEAUGRANDE, R.; DRESSLER, W.(1981) Introduction to text
linguistic. London: Longman.
DUCROT, O. (l987) O dizer e o dito. Campinas: Pontes.
KINTSCH, W.; VAN DIJK, T. (1983) Strategies of discourse com-
prehension. New York: Academic Press.
KRISTEVA, J. (1981) El texto de la novela. Barcelona: Lumen.
LAJOLO, M (1985) O texto não é pretexto. In Zilberman (org.)
Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. 5 ed.
Porto Alegre: Mercado Aberto.
PERRONE-MOISÉS, L. (l978) Texto, crítica, escritura. São Paulo:
Ática.
SEIXO, M. (l977) Discursos do texto. Amadora: Bertrand.
VAN DIJK, T (1989) Estructuras y funciones del discurso. 6 ed.
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VIGNER, G.(1988) Intertextualidade, norma e legibilidade. In
Galves, Orlandi & Otoni (org.) O texto: escrita e leitura.
Campinas: Pontes.
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