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Aula 084 Revisada

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Curso Online de Filosofia


Olavo de Carvalho

Aula Nº 84
20 de novembro de 2010

[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.

Boa noite a todos! Sejam bem-vindos. Queria lembrar a vocês que do dia 10 a 11 de Dezembro o
poeta e filósofo Ângelo Monteiro estará no Instituto Olavo de Carvalho para proferir duas
conferências as 15h00.

O tema de hoje remete-nos um pouco ao livro do Dardo Scavino, quando eu expliquei o fenômeno
do movimento interno, a história interna das ideias em que se observa “cada nova ideia”, “cada
nova doutrina”, “cada novo sistema”, como se fosse uma resposta ou um prolongamento do
anterior, criando-se a visão de um processo dialético como se fosse uma mesma pessoa a pensar ao
longo dos tempos e a levantar objeções e dificuldades a si próprio, e a tentar de algum modo
completar um raciocínio que em si mesmo é impossível de se completar. Eu disse-lhes que este
modelo de história da filosofia havia surgido com Hegel. Antes, praticamente não se encontra
nenhuma história da filosofia que tenha uma narrativa contínua. A história da filosofia anterior
limitava-se a autores particulares e descrevia o sistema de cada um, mas não havia um fio de
continuidade. A partir de Hegel, este modelo evidentemente torna-se moda e hoje é quase natural, é
quase espontâneo que as pessoas esperem que uma história da filosofia mostre o desenvolvimento
temporal das ideias, das doutrinas correntes, como se fossem saindo umas das outras. A tentativa de
relacionar este movimento interno das ideias com o panorama mais amplo das condições culturais,
sociais, econômicas, etc, já é um assunto bem mais complexo. Embora hoje também se espere que
um historiador da filosofia mostre qual é o panorama mais amplo do qual emergiram “as ideias”,
em geral as pessoas não percebem a dificuldade desta tarefa, o quão problemático pode ser a tarefa
de descobrir qual é a relação precisa entre uma ideia e o panorama sócio-econômico, cultural, etc.
Estabelecer esta relação com uma única ideia é impossível; no entanto, em qualquer cursinho de
filosofia no ginásio, o professor fará isso. Ou seja, apresenta ideias e o panorama sócio-cultural do
qual elas emergiram. Imaginem a relação entre o cogito cartesiano e a economia mercantilista da
época. Pode-se somente fazer uma relação analógica, muito longínqua e forçada. Eu pessoalmente
acho que é quase impossível de relacioná-los. De qualquer modo, a curiosidade é legítima e a
pergunta permanece. Qual é a relação entre esta e aquela ideia filosófica e o panorama cultural do
tempo? Esta ligação estabelece-se através de uma série de mediações, em que quanto mais se afasta
do campo preciso das ideias filosóficas para abranger outras dimensões, as ligações ficam cada vez
mais sutis, mais problemáticas e mais ambíguas. Em suma, esta expectativa de que uma história da
filosofia ou um curso de história da filosofia deva apresentar as relações entre a evolução das ideias
e a evolução histórica, embora seja quase um lugar comum, é uma expectativa totalmente utópica.
Quando as pessoas propõem-se – como se fosse uma obviedade – a apresentar um panorama da
evolução das ideias e relacioná-las com o panorama histórico, é sinal de que elas nunca tentaram
fazer isto pessoalmente. Elas se baseiam em algum material que encontraram em livros e
simplesmente o repassam. Eu creio que não há um único caso em que se possa mostrar a relação
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óbvia e indiscutível entre uma ideia que um filósofo pensou e o seu panorama histórico.
Experimentem fazer isto com vocês mesmos. Imagine uma crença ou uma ideia e diga para si qual é
a relação dela com o panorama social em torno. Se você não consegue fazer isso consigo mesmo,
menos ainda quanto aos outros. No entanto essas figuras de linguagem propagam-se de tal maneira
que acabamos por crer que são exigências óbvias e elas nos parecem óbvias precisamente porque
jamais tentamos realizá-las. Na primeira tentativa você veria como é difícil, problemática, e em
última análise, impossível. Nós poderíamos questionar as origens desta ideia de Hegel, de um
processo histórico que se manifesta sobretudo no reino das ideias, ou seja, de que há em cima um
fio, uma continuidade das ideias, e embaixo, outras linhas de continuidade cultural, religiosa,
política, etc.. Qual é a sua origem remota? Como a ideia de um processo histórico surgiu na mente
humana? Nós estamos tão acostumados com isto, inclusive com a expressão “processo histórico”
que aparece com frequência em nossa linguagem, que nos parece uma coisa óbvia e não
problemática. No entanto, se recuarmos um pouco no tempo histórico, dois mil anos – que na escala
total é só um pouco – veremos que quase a totalidade dos povos não teve a menor ideia de processo
histórico. Absolutamente! Das civilizações antigas, a única que apresenta algum registro histórico
dos quais se consegue obter uma narrativa contínua é a civilização chinesa. Nos palácios chineses, a
classe real mantinha um cronologista incumbido de anotar os fatos importantes relacionados aos
reis, acrescentando outros dados, como o estado da economia, da sociedade, etc. Então há ali
registros suficientes. Mas não há registros desta natureza em nenhuma outra civilização, ou seja, a
China é uma exceção. Nas outras civilizações encontra-se registros muito fragmentários ou então
apenas a cronologia dos reis: o fulano reinou por tal tempo, foi sucedido por beltrano, etc.. Não há
nada além disso. Quer dizer que a própria preocupação histórica é uma coisa muito tardia na
história humana. Como estas civilizações antigas consideravam-se o centro do mundo, ou a única
parte interessante do mundo, e o resto aparecia como um círculo caótico em torno, as civilizações
antigas não poderiam ter uma ideia de uma história universal, pois para elas o universo era apenas a
sua própria civilização e o resto em volta era caos. Eric Voegelin dá o exemplo da civilização
mongol, que considerava que existia apenas o império mongol, e todas as demais regiões do mundo
ou eram regiões que ainda não haviam sido ocupadas ou eram regiões que se consideravam em
estado de rebelião. Quem não estivesse submetido ao Império mongol ou era um bárbaro ou era um
rebelde. Não havia outros impérios, não havia outros estados que fossem reconhecidos como
legítimos. O mundo é o império mongol e em volta deste mundo existe o que? O caos, as trevas
exteriores. Praticamente todas as civilizações antigas tinham alguma ideia desse tipo. Como
poderiam ter se elevado à ideia de uma história universal? A história é a história daquele império e
ponto final. Quem não entrou na história é apenas uma sombra em volta daquela zona iluminada.
Quando se lê, por exemplo, a Bíblia, vê-se ali a história de Israel. A história de Israel é uma história
significativa, quer dizer, é um povo que tem uma relação direta com Deus, e isto é a coisa mais
importante que está acontecendo. [00:10] E o resto? E a história do Império romano? E a história da
Babilônia? Só entra como um cenário longínquo dentro do qual está se desenvolvendo a história de
Israel. Então a história de Israel passa a ser para os judeus a história da humanidade. Mas quando se
vê o tamanho do povo judeu e o tamanho dos impérios onde se desenrolaram a história deles, vê-se
que é uma coisa completamente desproporcional. Para nós também, a história de Israel tem uma
importância grande por ser o início da história do cristianismo e pelo fato de a civilização cristã ter
alcançado uma expansão mais universal. Mas é a ideia da continuidade de uma história, da história
exclusiva de um povo, que se torna então a única narrativa que interessa, e o resto tudo se desfaz em
sombras, como se fosse a sombra dos personagens que estão se movendo. Os personagens da
história bíblica se movem, Abrão, Moisés, etc., tendo em volta o Faraó e outras pessoas que
aparecem apenas como coadjuvantes da história, como personagens secundários. Já na Bíblia
aparece uma certa ideia de continuidade e de coerência interna da história. Os profetas judeus
contam a história do seu povo como se fosse um contínuo diálogo e um confronto com Deus, em
que às vezes eles aceitam as instruções divinas e as seguem, e outras vezes eles se esquecem, eles se
rebelam, e sofrem as consequências. Assim obtém-se uma chave da história judaica. Esta chave o
que é? É o mandamento divino. Ele é o padrão pelo qual pode-se explicar o que aconteceu. A
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história de Israel é um constante sobe-e-desce, com momentos de triunfo e momentos de miséria,


desgraça, sofrimento, num contraste às vezes extremo. Mas este contraste não é fortuito, existe um
princípio explicativo. É a própria ordem divina. Tudo o que acontece, a totalidade do real, está
submetida ao mandamento divino e a conformidade com o mandamento divino ou o afastamento
dele traz consequências que configuram o conteúdo da história. É neste momento somente que se
tem a ideia de uma chave histórica. Mas note bem, não é a chave da história universal, é a chave
apenas da história do povo de Israel. E os outros povos? É como se os outros povos não tivessem
história, eles entram apenas como capítulos da história de Israel. Quando aparece o faraó, o leitor
não sabe de onde ele saiu. A história toda do império egípcio que resultou no reinado daquele faraó
não interessa absolutamente. Não interessa de onde saiu o faraó. Nós não sabemos também se a
história do império egípcio estava submetida à mesma regra formadora da história de Israel. Se
estivesse, nós deveríamos dizer que era uma espécie de regra inconsciente, porque os egípcios não
tinham recebido a mensagem divina e não sabiam qual era a chave da sua própria história (isto
ocorre quando observamos os egípicios desde o ponto de vista de um profeta judaico). Ou seja, nós
judeus, nós sabemos a chave e a coerência interna da nossa história, que é dada pelo mandamento
divino. Os outros também estão submetidos ao mandamento divino, mas eles não têm consciência
disso. Então a história deles não faz sentido e, não fazendo sentido, não pode ser contada. É como
se somente os judeus tivessem uma história durante este período. Somente os judeus tinham uma
história porque somente eles tinham uma consciência histórica e a tinham graças à ideia de um
princípio orientador do fio da meada, que era justamente a ideia da revelação divina. Ou seja, Deus
baixou os Dez Mandamentos, e de acordo com o comportamento do povo seguiam-se as
consequências que são compreensíveis somente à luz do princípio estruturador do conjunto.
Pergunto eu: como esta ideia que aparece apenas dentro da esfera judaica universaliza-se? Como
surge a ideia de que a história da humanidade inteira pode ter um fio da meada? Esta ideia só surge,
evidentemente, com o cristianismo. Com a revelação cristã estabelece-se o seguinte: o princípio
estruturante que dá o fio da meada não foi anunciado somente a um povo em particular, mas urbe et
orbi (para cidade e para o mundo), ou seja, a mensagem cristã é para todos. Então, em princípio,
tendo ou não consciência, os demais povos também estão submetidos à mesma regra, e portanto a
sua história deve ter uma coerência por trás de todas as modificações, de todos os percalços,
exatamente como a história dos cristãos. Este fio da meada no caso cristão deve aparecer de uma
maneira bastante evidente. Por exemplo, quando os cristãos perderam a primeira cruzada, São
Bernardo disse que a derrota era um escândalo tão grande, que a sentença que Deus baixou sobre
eles era tão incompreensível, que o simples fato de uma pessoa não se escandalizar bastaria para
fazer dela um santo. O que ele quer dizer? Que a história tem um sentido e que naquele momento o
sentido apareceu obscurecido por um fenômeno estranho. Teoricamente os cristãos deveriam vencer
a primeira cruzada porque eles estavam obedecendo a voz de Deus. Se apesar de obedecerem eles
foram derrotados é porque Deus tem algum motivo secreto, e isto escapa da nossa compreensão.
Mas isto não desmente a existência de um fio da meada e de uma racionalidade da história. É a
racionalidade divina e nós não estamos conseguindo captá-la neste momento. E quanto à história
dos outros povos? Eles também estavam sendo regidos pelo mesmo princípio, mas de uma maneira
inconsciente. Outros povos, sem terem recebido a mensagem cristã, podiam se aproximar dela, ou
se afastar dela, sem nem mesmo saber que ela existia. Existe aquela expressão anima naturaliter
christiana – uma alma que é naturalmente cristã. Esta expressão, salvo engano meu, Santo
Agostinho aplicou a Platão. Ele certamente não conhecia a revelação cristã porque esta ocorre
quatrocentos anos depois. Mas naturalmente ele tendia naquela direção. Este princípio pode ser
aplicado à história de vários povos. Os povos não tinham recebido a mensagem cristã, mas podiam
estar agindo de uma maneira que fosse pelo menos parcialmente harmônica com ela, ou que fosse
parcialmente antagônica com ela, e isto seria então a chave explicadora do seu destino. É daí que
surge a ideia de que toda a história humana pode ser remetida a um conjunto de princípios
explicativos, evidentemente numa perspectiva escatológica. Escathon não é aquilo que se refere ao
fim do mundo, refere-se às últimas coisas que vão acontecer. Sem as últimas coisas não é possível
ter a ideia de um percurso racionalmente compreensível da história. Se a história está em aberto, se
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nós não sabemos onde ela vai terminar, nem quando ela vai terminar, então evidentemente o
percurso histórico não chega a adquirir uma forma. Se está em aberto, ele não tem forma. Ignorando
se a história vai continuar por mais dez anos, ou por mais dez bilhões de anos, por mais dez trilhões
de anos, é absolutamente impossível de se traçar uma figura do percurso histórico. O processo
histórico é impensável nessas condições. Existe apenas a história, ou seja, a sucessão dos
acontecimentos, ou mais ainda, uma coexistência de linhas de sucessão, umas articuladas com as
outras, outras totalmente desarticuladas e separadas. Há o acontecer apenas, em toda a sua
variedade inabarcável, irredutível a uma figura racionalmente compreensível. [00:20] É a ideia do
escathon, do fim do mundo, que permite pela primeira vez conceber a história do mundo como um
percurso identificável. Mais ainda, a forma desse percurso não podia ser alterada pela duração do
processo. Não importa se o apocalipse virá amanhã ou daqui dez bilhões de anos, pois nós já
sabemos o que será o apocalipse. Nós sabemos que no apocalipse o tempo é absorvido dentro da
eternidade e tudo aquilo que aconteceu em sucessão aparece de maneira simultânea como se fosse
num quadro. Todas as relações de causa e efeito que o tempo e o esquecimento encobriram
aparecem novamente de maneira clara. Façamos uma imagem disso no plano individual, das ações
que desencadearam consequências sobre a nossa vida ou sobre a vida de terceiros. Façamos a
seguinte pergunta: em que as minhas ações desencadearam consequências na vida de outras
pessoas? Vê-se logo que isto é inabarcável. Mesmo que uma pessoa aborde-me e diga-me que falei
algo que foi lhe decisivo, e que lhe mudou a vida, eu talvez nem me lembre de ter mencionado
aquilo. Seja no sentido bom ou no mal, a coisa desencadeou consequências que escapam totalmente
da minha percepção. O esquecimento vai apagando a unidade da sua história. Quando o tempo é
reabsorvido na eternidade, todas estas conexões que o tempo e o esquecimento apagaram aparecem
de novo, já que da eternidade nada se perde. Tudo o que sucede no tempo, por mais fugaz e
transitório que seja, tudo o que acontece, não desacontece. Ou seja, o acontecimento não pode ser
reabsorvido no nada. Não pode voltar a ser um nada. Desde que a coisa entrou na esfera do ser, ela
está ali eternamente. Ela não aparece porque o tempo é uma contínua destruição de si mesmo. O
tempo vai passando e apagando a si mesmo. Mas na esfera da eternidade tudo aquilo está lá gravado
para sempre. Eis o que é o apocalipse. Ocorre quando o tempo terrestre acaba e o conjunto das
conexões, das causas e consequências aparece tudo de uma vez e torna-se visível para todos os seres
humanos. Se a figura do fim dos tempos é esta, pouco importa se a história dure um pouco mais ou
um pouco menos, pois a duração total da história é um nada em face da eternidade. Pouco importa
se a história dure mais dez anos, mais vinte anos, mais cem anos ou cem trilhões de anos. Somando
tudo isto, é um nada em face da eternidade e tanto faz se na eternidade estejam gravadas as
conexões de dez mil anos ou de dez milhões de anos. A diferença é relativamente pouca quando se
compara o finito com o infinito. Dentro desta ideia de uma passagem do tempo para a eternidade, a
concepção de um percurso histórico torna-se pensável, pouco importando a duração do percurso.
Aconteça o que acontecer, vai terminar assim, o tempo cessará e tudo se transporá para a
eternidade, e tudo o que estava oculto aparecerá, tudo o que foi esquecido será relembrado. Tudo o
que era incompreensível se tornará compreensível, tudo aquilo que foi perdido estará reconquistado.
Note bem que isso aí permitia formar uma ideia da história humana como unidade, sem prejulgar
qual é o curso exato que as coisas vão tomar aqui. O fato de saber como tudo vai terminar não
significa que se vai chegar neste término. Esta concepção que aparece com a revelação cristã torna
pensável a figura do processo histórico apenas como um símbolo. Não como um conceito científico.
Há a ideia de que a história é um processo fechado, pouco importando a imensidão humanamente
inabarcável dos fatos que a compõem, de que ela tem uma forma e um fecho, por assim dizer. Pode-
se pensar mais ou menos como uma assíntota, ou seja, uma curva que vai se aproximando de uma
reta, mas quanto mais se aproxima, vira um pouco mais e nunca se sabe quando se emenda ou se vai
emendar um dia. Quanto mais perto chega, mais se desvia. Esta figura hiperbólica da totalidade do
processo histórico, tal como aparece no pensamento cristão, e que surge de maneira muito
consciente, é apenas uma imagem ou um símbolo. Ou seja, nós conseguimos conceber a história
humana como uma totalidade fechada, e que tem uma forma, mas nós não sabemos precisamente
qual é essa forma, e jamais saberemos. Sabemos como vai terminar, mas não sabemos o que vai
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acontecer. O próprio Cristo, quando lhe perguntam quando virá o fim do mundo, diz: “Isso só Deus
Pai sabe”. Veja, Ele está dizendo: “Eu não sei”. Nós sabemos que Jesus Cristo é o logos, é a
inteligência divina. E Deus Pai é o poder divino, a vontade divina. Isto significa que o fim do
mundo é uma livre decisão da vontade divina e não algo que possa ser racionalmente justificado.
Não é uma imposição da inteligência divina, mas é um ato livre da vontade divina. É isto que Cristo
quer dizer quando ele diz “Só Deus Pai sabe”. É um ato da vontade divina e não da inteligência
divina, do logos, que é ele mesmo. O fim do mundo depende da liberdade divina, da liberdade que
Deus tem de escolher. É o mesmo que dizer que isso não é racionalmente compreensível. Não um
fundamento lógico que possa ser exposto, pois se houvesse um fundamento lógico, dele poderia se
deduzir mais ou menos a duração dos tempos e assinalar aproximadamente o fim. Sem contar o fato
de que esse fim é precedido de muitos outros fins que o simbolizam. Por exemplo, o fim de uma
civilização, a morte de uma pessoa, etc. simbolizam o fim do mundo. Este fim do mundo tem vários
significados analógicos que se empilham uns em cima dos outros sem um limite previsível.

Eu estou dizendo que com o cristianismo torna-se pela primeira vez acessível ao ser humano a ideia
muito vaga de um percurso total da humanidade. Mas este percurso só torna-se total e adquire uma
forma porque tem um fim. Isso não quer dizer de maneira alguma que no seu conteúdo, nos vários
processos que o compõem, o percurso e o processo histórico humano tenham uma unidade
substantiva. A tentativa de recompor esta unidade do ponto de vista substantivo, quer dizer,
quantitativo, fracassa. Existem inúmeras linhas de desenvolvimento histórico que não tem nada a
ver umas com as outras, e que se desenrolaram de maneira totalmente independente sem que se
tivesse a notícia de como as outras desenrolaram-se. O conjunto tem uma unidade e um término
porque esta história desenrola-se em um lugar determinado que é o planeta Terra, e porque tem um
término. O que nós podemos apreender da forma total do percurso humano é apenas isso.
Substantivamente qual é essa forma? [00:30] Como se desenrolou esse processo histórico e quais são
as “leis” que o determinam? Isto não é possível de se saber, isso é absolutamente inacessível.
Porém, quando a partir do século XVI ou XVII, o domínio que o cristianismo exercia sobre a
imaginação das pessoas na Europa vai se dissolvendo, na mesma medida a ideia do processo
histórico vai perdendo a sua referência à infinitude e à eternidade e vai se tornando uma ideia
substantiva e materializada. Começa-se a entender o processo histórico como algo cuja forma e cuja
figura pode ser conhecida materialmente, por assim dizer. Ou seja, nós podemos recompor todos os
processos causais na sua interconexão, e chegar a apreender a figura substantiva do processo
histórico. Esta noção de processo histórico surge de uma transposição de uma ideia ou de um
símbolo escatológico para o plano da realidade histórica material e concreta. É como se fosse uma
figura de linguagem mal interpretada. Quando nós chegamos em Hegel, vemos claramente que ele
tem a ideia de que ele pode, não só ele como outras pessoas também, dominar materialmente a
figura inteira do processo histórico e explicá-lo. Note que na concepção bíblica, o que conferia o
fechamento da figura do processo histórico era somente o seu término, o fato de que vai terminar.
Nós sabemos que não é infinito porque termina, e se termina, então tem uma forma. Mas esta
forma, considerada em si mesma é tão complexa e tão inabarcável que nós jamais conseguiríamos
conhecê-la. Jamais poderemos explicar tudo o que aconteceu e remeter todos os fatos a um
princípio explicativo. Se só Deus sabe o término do processo histórico, então só Deus sabe a forma
substantiva do processo histórico. Nós sabemos apenas que existe a forma, mas não podemos
conhecê-la.

Acontece que, depois de Hegel, a ideia de encontrar princípios explicativos para o processo
histórico dissemina-se e torna-se quase uma obrigação. Todo pensador tem de ter uma filosofia da
história e tem de tentar descobrir o fio da meada. O fio da meada pode, por exemplo, ser as
constantes do processo histórico. As constantes e os padrões de mudança. As coisas mudam, mas
mudam dentro de um padrão mais ou menos identificável. Apareceram inúmeras teorias
explicativas a partir daí, como por exemplo, a lei dos três estados, de Comte, a teoria da luta de
classes de Karl Marx e assim por diante. E apareceram tantas, que a ideia de que nós podemos ter
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um controle intelectual do processo histórico disseminou-se ao ponto de todo garoto de escola hoje
imaginar que sabe a forma do processo histórico e para onde o mundo está indo. É claro que esta
ideia é incorreta. Quando um expectativa desta natureza dissemina-se culturalmente e torna-se
quase uma obrigação cultural, ninguém mais vai parar para pensar se isso é de fato exeqüivel. Claro
que também sempre há reações, como a dos céticos, que negam a possibilidade deste conhecimento
e enfatizam a irracionalidade e a inabarcabilidade do processo. Mas a simples existência dos céticos
prova também a existência daquilo que eles estão contestando. De um lado há milhares de pessoas,
milhares de cérebros tentando, uns após os outros, mostrar alguma unidade do processo histórico, e
do outro lado, outros tantos milhares de cérebros negando que essa unidade exista ou que ela seja
cognoscível. É claro que neste caso, a razão, substantivamente falando, está com os céticos. O
processo histórico não é de fato redutível a uma forma identificável. Porém, o desejo, o impulso de
buscar esta forma, esta explicação, ainda que sabendo que não é possível encontrá-la, já se tornou
um dado cultural permanente. Por que? Cada indivíduo que pode tomar alguma decisão, que pode
interferir de alguma maneira no curso das coisas, sente-se impelido a se orientar não apenas no
quadro da situação imediata, mas no quadro que ele imagina ser o conjunto. Por exemplo, um
estadista, ciente de que os atos presentes podem afetar não apenas os próximos acontecimentos, mas
o curso inteiro da história, não resiste à tentação de encaixar racionalmente as suas ações ou os
acontecimentos da atualidade no quadro geral do processo histórico. Mais ainda, o político, o
estadista, ou o líder que tome as suas decisões sem considerar esta totalidade do processo histórico
será considerado um irresponsável, pois ele não está medindo as consequências dos seus atos.
Então, de certo modo, todos estão obrigados ao impossível. Todos estão obrigados a tentar
compreender o significado das suas ações e o significado dos fatos presentes dentro de uma
totalidade que nós sabemos ser inabarcável e incognoscível. É claro que esta é uma situação
bastante desconfortável, mas a mentalidade contemporânea já se acostumou tanto a ela que sempre
se espera de qualquer intelectual, formador de opinião, líder político, tenha alguma visão do
processo histórico. Mesmo as pessoas mais modestas intelectualmente são de algum modo
obrigados a tomar uma posição. Na última campanha eleitoral brasileira, por exemplo, as pessoas
prometem transformar o Brasil em uma grande potência. O que significa a expressão “grande
potência”? Significa um poder decisório, que dentro do quadro total da história vai deixar alguma
marca e não vai passar como se fosse uma fumaça que se desfez no ar. Nós vamos afetar o processo
histórico, não apenas o nosso processo, mas o curso inteiro da história da humanidade. Esta é a
promessa. É claro que a promessa nesse caso é totalmente descabida. Mas o simples fato de que ela
existe já é significativo. Também é normal que no curso das discussões políticas e culturais, os
porta-vozes das distintas correntes de ideias se sintam obrigados a colocar as suas ideias e propostas
à luz de uma interpretação total da história. Nos últimos dois séculos, a versão do processo histórico
que se tornou a mais conhecida foi evidentemente a de Karl Marx. Mas quando vemos a pretensão
totalizante do marxismo e comparamos com a estreiteza dos dados que ele leva em conta, vemos
que é totalmente desproporcional. Como pode um indivíduo tentar traçar a figura total do processo
histórico apenas a partir de dados sobre aquilo que ele chama de sistema de produção? Dentro da
história acontecem tantos fenômenos, e alguns dos mais espetaculares tem pouco ou nada a ver com
o sistema de produção. O que uma epidemia tem a ver com o sistema de produção? [00:40] Como
remeter ou tentar criar um elo causal ou um princípio comum que explique ao mesmo tempo o
sistema de produção feudal e a peste negra? Nós sabemos que essas duas coisas emergem de causas
totalmente heterogêneas. De um lado há decisões humanas que criaram o sistema feudal e por outro
lado há um dado da natureza que veio duma direção completamente diferente e interferiu no
processo. Por exemplo, as grandes mudanças climáticas. Como se pode relacionar uma guerra a um
sistema de produção? Mesmo que uma determinada guerra tenha começado com algum intuito
econômico, é evidente que as guerras escapam do controle dos supostos interesses econômicos que
as determinaram. Mesmo porque numa guerra, a chance de ganhar ou perder é sempre 50%. É claro
que as decisões que geraram a guerra não são da mesma natureza daquelas tomadas em vista da
realização de um objetivo econômico cognoscível. Quando decide-se, por exemplo, plantar um
tomate, as chances de que o tomate venha de fato a germinar e crescer para a colheita são enormes.
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É claro que o plantio pode falhar, pode ocorrer uma geada, mas 98% das chances é de que o tomate
realmente nasça. Mas quando ocorre uma guerra perde-se esta capacidade de previsão. Sabe-se que
pode-se ganhar muito ou perder tudo. É claro que as decisões de ordem militar não obedecem ao
mesmos princípios de realidade econômica. Isto é óbvio. Isto quer dizer que em princípio, nenhuma
guerra pode ter sido determinada por motivos econômicos exclusivamente. Qualquer cálculo
econômico que se faça, por mais tosco que seja, é mais seguro que o raciocínio de um estrategista
militar. O plantio de batatas ou tomates, ou a construção de um carro não se faz contra ninguém,
não há um antagonismo, não existe nenhuma força da natureza e nenhuma força histórica que se
oponha ao ato de plantar batata ou construir automóveis. Mas uma guerra, por definição, só se faz
porque existe o inimigo, e o plano do inimigo é contrário ao da outra parte beligerante. O simples
fato de se querer explicar o processo histórico pelo sistema de produção é tão desproporcional que
teria de ser rejeitada in limine. Não é possível explicar os fatos da ordem militar pelo processo de
produção. O contrário é possível, pois os fatos da ordem militar têm efeitos monumentais sobre o
sistema de produção. Por exemplo, hoje está claro que a classe feudal que dominou a Europa
constituiu-se somente em parte da velha nobreza romana que se espalhou pelo território quando da
dissolução do Império Romano. Quando da queda do Império Romano, os nobres que moravam na
cidade e tinham propriedades rurais mudam-se para o campo e ali instalam um poder autônomo
para poder sobreviver. Hoje nós sabemos que só uma parte ínfima dos proprietários feudais
originou-se desta nobreza romana. A maioria é composta de pessoas que se destacaram no campo
militar, quando das invasões bárbaras, e tendo conquistado um prestígio militar, adquiriram
propriedades. Há aí um fator militar que determina a criação de uma nova classe de proprietários.
São pessoas que comandaram a resistência aos invasores bárbaros, adquiriram um prestígio e foram
premiados pela coletividade com terras e bens, tornando-se então proprietários feudais. Não houve
uma causa econômica nisto. Foi um fato de ordem puramente militar que erige de um indivíduo um
proprietário de terras. O fator militar não se explica pela propriedade da terra, mas exatamente o
contrário. No entanto, quando considerado internamente, isto é, somente no universo dos dados com
que Marx lidou, o marxismo parece bastante coerente. Então o marxismo impregna-se facilmente
sobre a cabeça de milhões de pessoas, e mesmo aqueles que não gostam ou tenham objeções,
começam a raciocinar segundo o mesmo padrão, ou seja, procurando outras explicações para o
processo histórico ou pelo menos para certos capítulos desse processo histórico. Por exemplo, a
obra do Max Weber tenta relacionar a ética religiosa com a economia, e estende a investigação à
China, à Índia, ao Israel Antigo, etc. Em geral lê-se somente A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo e não ocorre de ver o que Weber escreveu sobre outras civilizações. É monumental.
Ele estava tentando esboçar uma constante da história humana, que é a relação entre a ética
religiosa e a conduta econômica. E estava tentando verificar se isso se confirmava no estudo
comparado de várias civilizações. A quantidade de dados que ele reuniu é monstruosa. Ele era mais
comedido e mais honesto do que Karl Marx e não chegou a enunciar uma conclusão, ficando apenas
uma interrogação. Ao passo que Karl Marx afirma que o processo histórico dá-se por determinadas
causas. De qualquer modo, Weber empenha-se para chegar a uma explicação universal como Karl
Marx. Quando Freud explica a origem das civilizações pela repressão sexual, trata-se de uma
ambição igual à de Karl Marx, ou seja, empenha-se para identificar um princípio que indique (ao
menos idealmente) as causas profundas, totais e constantes por trás do processo histórico. Hoje nós
sabemos o quanto estes empreendimentos são utópicos. Mas mesmo assim nós não podemos
permanecer alheios a isto, porque parece-nos que toda a esperança de uma compreensão racional
dos acontecimentos humanos repousa nisto. Nós só podemos compreender o que aconteceu se nós
tivermos uma ideia da forma total do processo histórico e das causas, das forças fundamentais que o
determinam. Dito de outro modo, compreender alguma coisa sobre o processo histórico é relacioná-
la a uma interpretação de conjunto. Eu não creio que seja possível nenhuma interpretação de
conjunto. A inteligibilidade de cada fato consiste na possibilidade de relacioná-la com o conjunto.
Como do conjunto nós não sabemos nada além da perspectiva escatológica cristã, então das duas
uma: ou dá-se uma interpretação escatológica, ou seja, relaciona-se o fato com o juízo final, e
notem bem que isto não é tão difícil de se fazer, ou então tenta-se relacionar com uma visão
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substantiva do processo histórico. Há a visão escatológica e a visão substantiva. A visão


escatológica é, por assim dizer, vazia, pois só se sabe que há um começo e haverá um fim. E neste
fim as coisas adquirirão o seu verdadeiro sentido. Mas nós nada sabemos do conteúdo do processo.
E a outra visão é chamada de substantiva porque tenta identificar forças positivas ou reais que estão
em ação no processo histórico. [00:50] Pode-se facilmente compreender que fenômenos como o
holocausto, a matança na União Soviética tem um significado no Juízo Final. Nós podemos sem
muita margem de erro acreditar que o inferno está cheio destas pessoas e que dificilmente os
indivíduos que contribuíram para tais matanças terão alguma explicação suficiente para apresentar
diante do Trono do Altíssimo.

Então nós podemos entender que isto tem um significado escatológico relativamente acessível. Há
uma encarnação manifesta do mal, do pecado, tomado no seu sentido mais extremo. O significado
disto em termos escatológicos é perfeitamente pensável. Mas e em termos de uma interpretação
substantiva do processo histórico? Na verdade, nós nada sabemos. Acontece que a explicação
escatológica não satisfaz a maioria das pessoas. Embora ela nos forneça antecipadamente e
independentemente da duração do processo uma visão suficiente do seu significado total, ela não
satisfaz a mentalidade moderna. Por que? Porque a mentalidade moderna quer fazer da história um
conhecimento científico. Ou seja, quer encontrar explicações causais, constantes, etc., pelas quais
ela possa explicar o que acontece. Ora, considerando a totalidade do que nós sabemos da história
humana, nós sabemos que as únicas constantes observadas até agora são as chamadas constantes de
Huntington. Não é o Huntington autor do livro O Choque das Civilizações, mas o seu avô ou tio,
Ellsworth Huntington, o geógrafo. Ele diz o seguinte: na totalidade do processo histórico, nós só
notamos as seguintes constantes: (1) O crescimento da população, e o fato de a população jamais ter
parado de crescer; (2) Os vários núcleos civilizacionais que se aproximam cada vez mais uns dos
outros pelo simples fato do crescimento, que proporciona os contatos civilizacionais; (3) Há uma
tentativa cada vez maior de organizar e de dar forma ao conjunto. Estas são as três únicas constantes
que existem. Mesmo essas constantes não são tão constantes assim. A progressiva aproximação dos
núcleos civilizacionais tem hiatos, e tem momentos de separação, como o próprio fim do Império
Romano e a própria origem do feudalismo. Havia uma civilização integrada, organizada, onde tudo
estava conectado a um centro. Com o desmantelamento do centro, os seus vários componentes
espalham-se por toda a parte e não têm mais contato nenhum. Isto quer dizer que esta aproximação
dos núcleos é uma constante no sentido total, mas não é uma constante linear, por assim dizer. Além
disso, nós não temos mais nada. Mas no debate de ideias que se processa diante dos nossos olhos,
tanto na esfera cultural, acadêmica, quanto na esfera política, as tentativas de justificar esta ou
aquela política em função de uma noção do processo são muitas, e são frequentes. Recentemente eu
estava lendo o livro do Malachi Martin, que se chama The Windswept House (A casa varrida pelo
vento). Trata-se de um roman à clef, um romance que tem uma chave que permite ao leitor
identificar pelos personagens ficcionais os correspondentes históricos reais. Um dos personagens
principais aqui é o Cardeal Mastroiani, que na verdade é o Cardeal Agostino Casaroli. Eu estava
lendo isto justamente no momento em que apareceu a entrevista do Mohemed Ali Agca, que
cometeu o atentado contra o Papa em 1981. Na televisão turca ele declarou que quem o mandou
cometer o atentado foi o Cardeal Casaroli. Eu não sei se é verdade ou não, mas pelo retrato que o
Malachi Martin traça do Cardeal Casaroli, faz sentido. Eu vou ler um trecho para que vocês tenham
um ideia de como foi a mudança de mentalidade nos altos círculos do Vaticano que determinou o
Concílio Vaticano II e todas as modificações que ocorreram posteriormente. Vocês verão qual é a
origem de tudo isto. O Cardeal Mastroiani tinha uma grande admiração pelas pessoas que eram os
engenheiros, os chefes do projeto mundial. Ele mesmo não tinha se tornado um engenheiro-chefe,
mas não foi por falta de desejo. “Como clérigo, como sacerdote, como arcebispo, como homem de
carreira na Igreja e diplomata, ele tinha progressivamente abandonado todas as imagens e conceitos
da sua fé original que vieram a criar tanta oposição entre ele e o Papa eslavo”. Papa eslavo é
evidentemente João Paulo II, que nunca é referido pelo nome, mas sempre como o Papa eslavo, ou
como Papa. “Todas aquelas imagens do Reino de Cristo e do reino mariano, e da Igreja como corpo
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místico de Cristo...” O cardeal tinha abandonado progressivamente. “Para o Arcebispo Mastroiani, a


força por trás das forças da história cessava de ser a mão de Cristo como Senhor da história
humana. Para ele, como para Bunt Hack...” O Bunt Hack é uma espécie de capitalista, como George
Soros. “...a força por trás das forças retirava-se como imagem para dentro de um misterioso
desconhecido. Ela se tornava não mais coerente do que todo o inindentificável fator x por trás de
todos os assuntos humanos. Toda a atividade do arcebispo emergia da sua compreensão profunda
do Processo e da sua cada vez mais profunda reverência por este misterioso fator x, a força por trás
das forças. Tudo para ele juntava-se e coeria-se muito bem. A única maneira lógica de servir àquela
força primordial era através do Processo”. Ou seja, havia uma força misteriosa por trás de tudo que
colaborava no Processo, e havia então de se servir a esta força. “A ideia era de ajudar o Processo em
direção ao objetivo último da força, a homogeneização cultural, política e social de todas as nações
da terra”.

Esse Cardeal tinha se afastado cada vez mais da noção da providência. Quer dizer, dentro da
perspectiva escatológica, nós podemos entender que, ainda que nós não consigamos estabelecer
relações lógicas entre todos os inumeráveis processos particulares históricos, nós sabemos que a
mão de Deus está por trás de tudo. Ou seja, na mente de Deus isto faz sentido, ainda que para nós
seja inacessível. Esta é a noção tradicional escatológica. Ainda que se possa procurar às vezes uma
explicação racional, sabe-se que não se vai alcançá-la, e que em última análise, o que está
determinando o conjunto é a vontade de Deus. A vontade de Deus às vezes abre-se para o ser
humano e torna-se compreensível, mas outras vezes, não. Ou seja, nós não temos um domínio
intelectual do processo, embora ele não seja totalmente opaco. Ex post-facto, depois que as coisas
aconteceram, percebe-se por vezes o dedo de Deus, a intencionalidade divina. [1:00] Assim como na
nossa própria vida, não podemos prever o que Deus fará, mas às vezes identificamos uma intenção
de Deus por trás de um ou outro acontecimento. Já no caso deste Arcebispo, que era o Mastroiani
ou o Casaroli, a força por trás das forças tornava-se ou manifestava-se através do processo histórico,
e esse processo histórico adquiria forma e sentido na ideia da unificação e homogeneização
planetária. É o que nós chamamos hoje de projeto globalístico. Um dos livros ou uma das
contribuições fundamentais do Brasil à compreensão deste processo foi o livro do José Guilherme
Merchior, que se chama justamente A Natureza do Processo. Neste livro, o autor, em discussão com
marxistas que têm uma determinada visão do processo histórico, primeiro critica todas as teorias
unificantes, como o marxismo, o positivismo, que pretendem ter uma explicação. Ele diz que é
preciso opor a estas grandes construções teorizantes e ao estudo científico experimental, pois temos
de partir da validade dos fatos e quando extraimos alguma generalização, esta generalização tem de
ter uma base empírica suficiente. Mesmo assim sabemos que não vamos obter uma filosofia da
história no sentido total. Não vamos compreender o sentido da história total, mas empiricamente
podemos, do desenrolar dos fatos tal como nós os conhecemos, tirar algumas constantes, ainda que
parciais e momentâneas. Ou seja, não há uma explicação metafísica do todo, e não há uma teoria
unificante, mas há certas constantes que são empiricamente constatáveis. Ele anota algumas destas
constantes. Vamos ver o que acontece então. Ele diz que “ao longo dos últimos séculos, nós
observamos em escala planetária a expansão progressiva de alguns fatores que aos poucos vão se
tornando dominantes”. Um dos fatores – ele diz – é a rapidez dos meios de transporte, a mobilidade
humana, que nos últimos dois ou três séculos, aumentou de uma maneira formidável e portanto
ampliou as possibilidades de ação de milhões de pessoas em toda a Terra. Um segundo fator seria
os progressos da biologia e da medicina, que então, diz ele, “com as primeiras revoluções na
biologia, quebrou-se a maldição milenar que ceifava a vida de tantos recém-nascidos e crianças, e
deixava as populações expostas às chacinas dos contágios fatais. As pestes, flagelo crônico da
sociedade tradicional, impressão inelutável do castigo divino, passaram a ser encaradas como
fenômenos naturais e controláveis; a peste virou epidemia”. Evidentemente, diz ele, ouve um
aumento enorme do conforto físico para milhões de pessoas. Ele constata que hoje qualquer família
de classe média obtém mais conforto físico do que um faraó. Tudo isto é verdade, isto é, a presença
constante da ciência e da técnica em todos os domínios da vida humana também introduz
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modificações. Ele analisa certas modificações econômicas e diz: “o que a industrialização trouxe e
continua trazendo à sociedade foi uma ampliação sem precedentes do acesso à riqueza e ao status
por parte de gente nascida fora de uma e do outro. No universo tradicional, o privilégio era
hereditário. Somente a Igreja era uma hierarquia parcialmente aberta aos filhos das classes
inferiores. Mas na sociedade moderna a posição do indivíduo não é pré-determinada. A
desigualdade deixou de ser um destino”. O fato de um indivíduo pertencer à classe rica ou à classe
pobre, já não é mais uma questão de hereditariedade. Há a interferência de outros fatores que
ampliam consideravelmente a margem de manobra. O que ele está tentando dizer é que nos últimos
séculos o processo histórico total está indo no sentido da democracia liberal. Haverá uma economia
de livre mercado no mundo inteiro, e esta economia de livre mercado por sua vez vai corresponder à
democratização progressiva da vida social. Em suma, a democracia liberal parece ser o ponto de
desembocadura de todo o processo histórico, pelo menos dentro de um prazo previsível. Ele não
tenta fazer uma filosofia total da história, diz ele que está apenas tirando conclusões de certos fatos
empiricamente verificáveis e tentando ver para onde estes fatos estão levando. Este mesmo
empreendimento, intelectualmente tão mais modesto e comedido que ele está tentando realizar aqui,
é realizável? Pode-se fazer uma única generalização, mesmo parcial, com base nisso? Vamos ver.
Ele diz que o coeficiente de livre arbítrio das pessoas na produção do seu destino aumentou
formidavelmente graças à democratização da economia, da política, etc. Mas há um outro fator que
está completamente esquecido, e que geralmente todos os analistas influenciados de algum modo
por este ideal democrático-liberal também se esquecem. É que os meios de ação da classe
dominante sobre os seus dominados aumentaram numa proporção que era impensável para qualquer
governantes da antiguidade, da idade média ou da renascença. Por exemplo, hoje um governante
pode ter acesso às conversações privadas de qualquer cidadão. Isto seria considerado na Idade
Média e na antiguidade como um poder divino. O que as pessoas estão conversando dentro da casa
delas? Isso só Deus sabe. Mas hoje em dia há meios de, à distância, saber. Fixando um microfone
unidirecional é possível de se gravar tudo o que as pessoas estão falando. É uma facilidade. Em
segundo lugar, há o processo do qual o Miguel Reale chama jurisfação. O que é jurisfação? O
sistema legal vai abrangendo dimensões cada vez maiores e mais variadas da existência social.
Tudo o que não era regulamentado passa a ser regulamentado. A criação de uma nova
regulamentação exige a criação de agências que vão implementar o cumprimento dessas leis. Então
ocorre inevitavelmente a expansão ilimitada da burocracia estatal. Isso não depende de se ter feito
uma opção socialista ou uma opção democrático-liberal. No mundo democrático-liberal, a
burocracia expande da mesma maneira. Em terceiro lugar, aumentou o fator mais terrível de todos,
que é o fator da secretude. No início da Idade Moderna, a vida privada, por exemplo, de um
governante como o Luis XIV, era totalmente transparente. [1:10] Todos sabiam quem eram as
amantes de Luis XIV, onde ele tinha passado a noite, e assim por diante. E as fofocas a respeito
podiam se propagar por toda a sociedade. Não havia muitos meios de ocultação. Por outro lado, as
atividades secretas do Estado eram de escala muito pequena. Os Estados Unidos somente tiveram
um serviço secreto para atuar em tempo de paz depois da Segunda Guerra. Antigamente só havia o
serviço secreto militar, que só entrava em ação em tempos de guerra. Luís XIV tinha os seus
espiões, é claro, mas a atividade de espionagem era centrada no campo militar e só entrava em ação
quando havia algum risco de guerra. No século XX, a expansão dos serviços secretos foi tal que em
algumas sociedades como a União Soviética, o serviço secreto chegou a ser o coração de toda a
administração. A KGB, por exemplo, fazia atividade de espionagem? Não. A KGB controlava a
atividade bancária, a educação, o movimento editorial, o que se fazia nos consultórios psiquiátricos,
etc. Emerge pela primeira vez na história o governo secreto. O governo que sabe tudo e onde o
cidadão não pode saber de nada. A quantidade de informações que foi armazenada na KGB pode
ser avaliada por um dado que nos é fornecido pelo Mitrokin, que era um funcionário da KGB
encarregado de fiscalizar a mudança da sede da KGB para um novo prédio. Ele tinha de examinar
as pastas, os dossiês que eram transportados de um arquivo para outro. Graças à complexidade e ao
tamanho dos arquivos, a mudança levou doze anos, e passaram pelas mãos dele oito bilhões de
dossiês. Uma massa de informações como essa é inacessível a qualquer ser humano individual.
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Somente governos podem ter. Isso então coloca na mão desses governos poderes que, para qualquer
governante da humanidade anterior, são absolutamente inimagináveis. Isso quer dizer também que
estes governos podem empreender ações que permanecem totalmente desconhecidas a toda
população. E não são ações militares ou ações no tempo de guerra. É planejamento social,
engenharia social, etc. Um governo pode planejar uma modificação de comportamento que vai
abranger todos os membros da sociedade sem exceção, sem que nenhum deles saiba que esta ação
está sendo empreendida no momento. De modo que, na medida que as coisas vão modificando, as
pessoas aceitam estas modificações de comportamento como se fossem coisa naturais, ou como se
fosse a vontade dos céus, sendo que por trás há uma ação humana muito bem planejada e
racionalmente executada. Esta possibilidade nunca existiu. Dizer que a posição do indivíduo não é
pré-determinada e que a desigualdade deixou de ser um destino é uma inversão inexata da realidade.
O aumento da importância e o volume do elemento secreto no governo e na sociedade
simplesmente não fazem parte do repertório dos assuntos acadêmicos discutidos pelos esquerdistas
ou pelos liberais democratas. Isso se tornou de certo modo um tabu. E foi feito para ser um tabu,
pois estas entidades incumbidas de administrar toda a sociedade por meio de operações discretas ou
secretas têm uma influência tremenda nas universidades. Então, quer dizer, eles delimitam o que se
pode discutir ali e simplesmente ninguém se lembra de fazer as perguntas contrárias. Curiosamente
lendo nosso amigo José Guilherme Merchior, eu noto o seguinte: ele leu muito, estava muito bem
informado sobre todos os autores. Mas ele só lia autores que tinham prestígio acadêmico, ou seja,
um prestígio acadêmico já formado, isto é, importante. Um prestígio acadêmico leva trinta, quarenta
anos para se formar. O sujeito pode ter publicado um livro genial ontem, só que ninguém na
academia sabe. Daqui cinqüenta anos ele vai ter um tremendo prestígio acadêmico, mas hoje não
tem. Eu li muita coisa do José Guilherme Merchior, e eu vi que ele nunca cita autores que fizeram
uma descoberta genial, mas são desconhecidos. Ele só comenta autores que já têm um prestígio
acadêmico consolidado. Isto dá a ele um senso de segurança, porque ele está sempre falando de algo
que será confirmado pelo consenso dos seus pares. Eu estava comentando um famoso debate entre
ele e o embaixador Mário Vieira de Melo, no qual o Mário Vieira de Melo cita o Eric Voegelin.
Eric Voegelin na época era um obscuro professor da Universidade de Louisiana – uma universidade
que está fora do circuito do Evy League ou das grandes universidades – e que tinha publicado
Ordem e História, a obra mais original de filosofia de história dos últimos cem anos. Só que
Voegelin ainda não era conhecido no meio acadêmico. E o Merchior reclama ao Mário Viera de
Melo por ter citado um autor menor.

Claro que Eric Voegelin não era um autor menor. Provavelmente era o maior de todos, mas não
tinha ainda o prestígio acadêmico. Hoje tem, mas na época não tinha. A confiança que o José
Guilherme, como outros intelectuais, depositam no prestígio acadêmico, considerando este como
um seletor qualificado do que é importante e do que não é, leva-o a ignorar continentes inteiros do
assunto que ele está estudando. Quando se discute as mudanças fundamentais do século XX ou a
modificação na vida das pessoas neste século, lembra-se da ciência, da técnica, da indústria, mas
não do fator secretude. Que é a maior diferença entre o século XX e tudo o que aconteceu antes?
Observe o fenômeno do tamanho da KGB, a maior organização de qualquer tipo que já existiu, com
quinhentos mil funcionários só dentro da Rússia e mais cinco milhões de colaboradores pelo
mundo, no mínimo. Não houve nenhuma organização deste tamanho no mundo. Tudo aquilo que
acontece pela primeira vez e que não há termos de comparação com o que aconteceu antes é uma
diferença específica de uma determinada época. Além disso, a expansão das atividades deste
serviço secreto, vai para muito além, infinitamente além, daquilo que se considera espionagem. Para
o cidadão comum, desinformado, a KGB é espionagem tipo James Bond, mas espionagem é 1% das
atividades de uma entidade destas. Não é possível de se explicar nada do movimento das ideias na
Europa sem o recurso à KGB, pois praticamente todos os movimentos culturais sempre tiveram a
KGB por trás. Hoje temos acesso a estes fatos, os congressos culturais, editoras, publicações,
universidades, rodas culturais que vieram por exigência e foram financiados pela KGB. Nós
imaginamos a história e o movimento das ideias entre os grandes intelectuais como sendo uma
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conversa criativa entre pessoas que raciocinam livremente, e não é nada disso. Como podemos
entender algo da sociedade moderna sem isto aqui? Quando começamos a levar isto em conta, nós
vemos que a distância entre as camadas dominantes e os dominados, mesmo nas democracias,
aumentou de uma maneira que seria impensável para todos os governantes da antiguidade. [1:20] Ou
seja, o homem poderoso está colocado em relação ao cidadão comum a uma distância quase divina.
E o homem poderoso é inacessível, há uma nuvem de invisibilidade em torno dele. Eu me lembro,
por exemplo, que numa das reuniões do grupo Bilderberg, o David Rockfeller, se dirigindo aos
jornalistas presentes, agradeceu a imprensa que, por durante quarenta anos, manteve silêncio sobre
as atividades do grupo. Quarenta anos! Claro que o segredo não foi perfeito. Houve muitas pessoas
que escreveram livros, fizeram conferências, mas nada disso saiu na grande mídia. Livros sobre a
atividade destes movimentos globalistas podem ser encontrados em centenas ou milhares. Ou seja,
o segredo não foi perfeito. Nos círculos intelectuais, havia pessoas informadas do que estava
acontecendo, mas não chegava até o povo. A divulgação não chegava a oferecer perigo ou
incomodidade para os homens poderosos. Quantas empresas jornalísticas estavam ali
representadas? Digamos umas cinquenta. E durante cinquenta anos elas têm um consenso de não
tocar em certos assuntos. Eu creio que, por exemplo, a expressão Bilderberg apareceu na mídia
cinco ou seis anos atrás, quando nem era mais necessário manter o segredo. Na verdade não se trata
nem de segredo, trata-se apenas de um coeficiente, um controle da divulgação. A divulgação não
pode passar de um certo ponto. No Brasil, houve dezesseis anos de silêncio em torno do Foro de
São Paulo. A possibilidade de controlar a informação, de ligar ou desligar a luz, de controlar o
visível e o invisível, nunca existiu na Antiguidade nem na Idade Média. Luis XIV não podia
impedir que ninguém soubesse do que quer que fosse. Nem imaginava uma coisa destas. Átila o
Uno, não podia fazer isto. E hoje não só os governantes, mas a camada inteira que compõe o
establishment dos vários países tem um controle quase total do que a população pode saber ou não.
Isto significa que as vidas de milhões de pessoas são decididas por fatores que permanecem não só
desconhecidos, mas invisíveis e até inverossímeis. Por exemplo, toda esta mudança recente dos
costumes, o feminismo, o casamento gay, etc.. Quantas pessoas sabem de onde isto apareceu? A
maioria interpreta isto no sentido do Merchior, ou seja, como sendo a expansão natural da
democracia. Ora, se aos fundadores da democracia moderna, os teóricos iluministas, etc., fosse dito
que aconteceriam movimentos to tipo gay e que isto seria a continuidade natural da democracia,
eles nem iriam entender do que se trata. Pois no século XVIII, supunha-se a democracia como uma
convivência igualitária de pessoas adultas. E a pessoa adulta era aquela capaz de manter uma
família. Eram os pais e mães e mais ninguém. Que a democracia de repente fosse nivelar as
diferenças de idade, de modo que a opinião de uma criança de cinco anos tivesse o mesmo valor
que de um homem de sessenta, era uma coisa que não podia ser imaginada. A ideia mesma de
expansão da democracia aparece como um topos fundamental em todo o debate contemporâneo.
Quem quer que defenda alguma proposta automaticamente justifica-a como algo que é exigido pela
expansão da democracia. Não basta a democracia, é necessário expandi-la. Estão tratando a
democracia como se fosse uma substância material que pode ser aumentada indefinidamente sem
perder a sua homogeneidade, como uma massa de pão que se põe no forno e vai aumentando de
tamanho. É claro que esta é uma concepção materializada e coisificada da democracia, e que ignora
que a regra do jogo democrático é essencialmente uma proporção, uma relação. Se essa relação se
rompe porque um dos fatores cresceu demais, a democracia acabou. Por exemplo, quando nós
falamos em democratizar a cultura ou o ensino. Um conjunto de bens culturais que antigamente
eram possuídos teoricamente por uma classe dominante ou por uma aristocracia serão agora
expandidos para toda a população. Esta é a primeira ideia de expansão da cultura que temos. Porém,
quem disse que a democratização da cultura consiste em distribuir para mais pessoas um conjunto
de bens de elite? Aqueles indivíduos que são a primeira geração, que são beneficiados pela
expansão destes bens, raciocinam o seguinte: a democracia não é consiste somente em distribuir os
bens da elite. Temos também o direito de decidir o que deve ser ensinado e divulgado. Na medida
em que as massas beneficiadas pela expansão da distribuição dos bens de elite começa a opinar na
seleção dos bens, elas podem escolher novos bens que estão à altura dos seus interesses. Por que
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nós temos que distribuir discos de Johann Sebastian Bach para todo mundo? Por que nós não
podemos distribuir rap, que é mais popular? Resultado: a democratização cria uma nova elitização
invencível, em que os antigos bens da elite agora são acessíveis somente a uma elite, e se tornaram
incompreensíveis para as massas. Este é o famoso livro do Richard Hoggart The Uses of Literacy
(Os usos da alfabetização), que mostra que a expansão do ensino escolar na Inglaterra, de fato
alfabetizou todo mundo, mas criou uma nova modalidade de produção cultural, uma sub-literatura
com livros do tipo Sabrina, para alimentar as pessoas que agora tinham acesso à leitura. Elas têm
acesso à leitura, mas o que elas vão ler? Elas vão ler a mesma coisa que a elite lia? No começo essa
é a ideia, democratizar, expandir para todo mundo. Mas em seguida o processo democratizante
retroage sobre si mesmo democratizando a seleção dos bens a serem democratizados e criando
portanto um novo processo de elitização. Elitização que inclui o acesso à compreensão dos
elementos de segredo. Quantas pessoas estão hoje habilitadas a discutir a participação desses
elementos secretos na criação da cultura, na condução da vida social, etc.? É um número ínfimo de
pessoas. É o mesmo que dizer que o conhecimento dos fatores reais que determinam o curso da vida
nesta ou naquela sociedade tornou-se proibitivo. Não que alguém tenha baixado um decreto que
proíba, mas na prática a coisa é montada de tal maneira que ninguém vai ter acesso. Muito mais
razoável do que descrever o curso das coisas nos últimos séculos como um progressivo império da
liberdade, da democracia, etc., é fazer como Bertrand de Jouvenel e dizer que nos últimos quatro
séculos o poder governamental saiu sempre fortalecido. Isto não depende absolutamente de se ter
propostas políticas que defendam o crescimento do poder de Estado. [1:30] O processo por assim
dizer é automático e incoercível. Seja num país socialista, seja numa democracia liberal, o governo
vai crescer e vai dominar cada vez mais porque existe a luta pelos direitos, e esta luta significa que
vai haver novas legislações, e portanto vai ter de haver agências para implementar a obediência a
estes direitos. O Estado cresce de qualquer maneira. No entanto, há pessoas que acreditam que
promulgar novos direitos é um elemento essencial ao desenvolvimento e expansão da democracia.
Quando o simples crescimento do número de direitos regulamentados em lei implica um domínio
maior do Estado sobre a sociedade. O processo tal como o Merchior descreve existe de fato e está
indo nessa direção. Porém ao mesmo tempo há um outro processo que está indo na direção
exatamente oposta. Mesmo dentro de um período histórico limitado, digamos três séculos, como
nós podemos responder à pergunta “para onde o mundo está indo”? Nós só podemos responder
através de duas respostas contraditórias. Ele está indo na direção de a para b, E também está indo na
direção de b para a. Ele está indo para frente, mas também está indo para trás. E mais ainda: nós
também não sabemos se está indo para frente ou para trás. Por exemplo, a ideia de progresso, tudo o
que representa o progresso numa certa direção, representa um retrocesso na outra. Por outro lado, o
retrocesso pode ser democratizante e o progresso pode ser elitizante. Esta identificação do progresso
com a democracia não faz o menor sentido.

Isto para dizer que, se nós transpormos esta ideia do “processo” para a nossa compreensão da
história da filosofia, nós podemos cometer erros tão gigantescos quanto este aqui. Em suma, todo o
estudo que nós fazemos da história da filosofia, da história das ideias, e sobretudo o estudo que nós
fazemos neste curso, eu gostaria de oferecer como ser fosse uma oportunidade, não para as pessoas
captarem a unidade do processo e terem a ilusão de que sabem para onde as coisas estão indo. Mas
apenas como um estímulo para que se lembrem da complexidade inabarcável das situações
humanas. Tomemos a criação de uma filosofia. Nós estudamos René Descartes, por exemplo. Como
nós podemos saber qual é a origem e o processo formativo interno de uma filosofia? De onde o
indivíduo tirou as suas ideias? E quantas vezes nós vemos que o processo mergulha em mudanças
de estado emocional absolutamente irracionais e inexplicáveis. Os famosos três sonhos de René
Descartes, que eu comentei nas outras aulas, oferecem para ele imagens de grande impacto que têm
um poder estruturante sobre o restante das suas ideias. Neste sentido, o que é compreender uma
filosofia? Nós podemos, por exemplo, fazer como Martial Guéroult, para quem só interessa a
filosofia tal como está nos textos, e até certo ponto ignorar os elementos externos, que não estão no
texto. Mas será que isso é compreender uma filosofia ou é compreender uma imagem que eu
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mesmo estou construindo, ou seja, eu selecionei das ideias de Descartes um certo conjunto que está
legitimado por textos, e estou discutindo isto aqui como se tivesse saído do nada. Estaria discutindo
como se discutisse um cálculo matemático. Posso saber se a conta está certa ou errada,
independentemente de saber algo dos processos mentais, psicológicos, pelos quais se fez o cálculo.
Então o cálculo tem uma autonomia em relação à mente que o produziu. Em que medida pode-se
fazer o mesmo com as teorias filosóficas? Muitos filósofos gostariam que fosse assim, mas o fato é
que nenhum sistema filosófico e nenhuma teoria filosófica tem esta autonomia. Não existem leis do
processo filosófico similares às leis da aritmética elementar, que permitem que todos cheguem
idealmente ao mesmo resultado. Algo da sondagem do elemento biográfico, psicológico, torna-se
absolutamente inevitável, e frequentemente nós nos vemos em face de enigmas insolúveis. Quanto
mais eu estudo René Descartes, mais eu vejo que aquilo é um enigma insolúvel. Sem contar o
elemento de secretude, que começa a entrar na história moderna a partir desta época. Toda a origem
da intelectualidade moderna gira em torno de uma elite que pretendia representar o advento de uma
mentalidade científica, racional, etc., em “oposição” à autoridade medieval. Mas ao mesmo tempo,
estas pessoas impõem a sua presença no mundo cultural através de um procedimento infinitamente
mais elitista do que as autoridades anteriores poderiam jamais ter tentado usar, que é o processo do
segredo. Ou seja, das nossas ideias, uma parte aparecerá em público, mas a origem e o que nós
combinamos entre nós, jamais será sabido. Sobre a formação da Royal Society inglesa, que é uma
organização maçônica, só agora começa a aparecer um mestre maçom francês a revelar a história.
Mas mesmo assim, ele não sabe a história inteira. É um grande engano pensar que uma sociedade
secreta guarda ou esconde um segredo e não o divulga a terceiros, mas os membros têm
conhecimento. O mestre maçon chama-se Alain Bauer, um francês com nome alemão. Ele mostra
que uma grande parte das atividades dos primeiros historiadores maçônicos foi disfarçar a história
da maçonaria e inventar imaginárias, repassando-as aos próprios membros da maçonaria.
Decorridos quatro séculos, um mestre maçom constata que não compreende a história da
maçonaria.

Ele sabe que a maçonaria do século XVII participou de certas operações importantes, dentre as
quais a criação da Royal Society. A Royal Society criou a imagem da mentalidade científica
moderna e, ao mesmo tempo, todos seus participantes eram alquimistas, astrólogos, praticantes de
magia, etc. Então há um conjunto de crenças absolutamente irracionais, que a própria ciência vai
rejeitar, criando a imagem da ciência que a rejeita. E em cima disso, várias camadas de
desinformação e disfarce são colocadas ao ponto de criar uma massa inexplicável de dados. É claro
que desconhecendo a história da maçonaria moderna, é impossível de se entender a história da
ciência moderna, da mentalidade moderna, etc. Mas e se dentro da própria maçonaria os seus
próprios historiadores estão mentindo uns para os outros? A história das luzes — de repente nós
escapamos das trevas da antiguidade e tudo se fez luz —, como se chegou a pensar, que sobre todo
o universo Newton lançou a luz sobre toda a constituição do universo. E eu digo: sim, mas quem era
Newton e de onde ele veio? A história de Newton é pior que a história do Barack Obahma. É tudo
disfarçado, é mentira em cima de mentira, e em cima de disfarce. E qual é o sentido então da obra
de Newton? [1:40] Hoje nós entendemos que toda a teoria da gravitação universal era parte de uma
teologia que ele estava construindo. Mais ou menos uma teologia de tipo islâmico que ele pretendia
substituir — não que ele tivesse influência islâmica, mas era o mesmo esquema de pensamento da
unidade absoluta — que ele pretendia impor em lugar da trindade cristã. E isto por sua vez baseado
em estudos que ele fez de numerologia, de alquimia, etc. A lei da gravitação universal separada
desses elementos tem um sentido, mas o fato é que ela nunca esteve separada. Ela só esteve
separada na mentalidade das gerações seguintes, às quais não foi contada a história inteira. Isso quer
dizer que uma das obrigações que foi incumbida a esta geração de estudiosos é de não esclarecer
tudo. Nós jamais esclarecemos tudo isto. É uma massa de disfarces e camuflagens inexplicáveis. A
primeira obrigação é entender que as luzes não existem. Não existe uma passagem das trevas para a
luz. Não existe o império universal da luz, como queria Kant, onde todo mundo irá saber tudo e
tudo estará esclarecido, e então diremos adeus às trevas da antiguidade onde as pessoas eram
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conduzidas por fatores misteriosos. Nós continuamos nas mãos dos fatores misteriosos. Eu acredito
que uma das obrigações da presente geração de estudiosos é tomar consciência deste elemento de
segredo e de mistificação que existe por trás de todas as forças históricas desde a origem da
chamada modernidade, e cuja presença no cenário torna-se cada vez mais intensa à medida que o
tempo passa. A presença do elemento secreto na sociedade torna-se possível graças à evolução da
tecnologia. Quando se diz que a ciência e a técnica aumentaram o poder do homem sobre a
natureza, a que homem esta afirmação se refere? Na realidade a ciência e a técnica aumentaram o
poder de uns homens sobre outros homens. E na mesma medida aumentam a distância entre eles e
aquilo que parece ser uma democratização em um sentido, é uma elitização em outro sentido. Isto é
absolutamente inevitável. Qualquer instrumento técnico que se invente, qualquer um, coloca certas
possibilidades nas mãos de umas pessoas e evidentemente aumenta o poder delas sobre as outras
pessoas, e não sobre a natureza. Dizer que o homem tem poder sobre a natureza é risível. A
totalidade das ações materiais que a humanidade pôde empreender desde o início dos tempos até
hoje mal arranhou a superfície de um planeta. E o restante do universo continua indiferente às
nossas ações. No que as nossas ações mudam as condutas das galáxias? Em absolutamente nada.
Natureza, mesmo no sentido físico do termo, refere-se a tudo isto. Pode-se dizer que aumentou um
pouquinho o poder de algumas pessoas sobre o ambiente imediato, porém aumentou muito mais o
poder destas pessoas sobre outras pessoas. A associação da técnica com a democratização é um dos
grandes mitos que nós temos que subtrair das nossas cabeças. Se a técnica confere poder de ação, é
em primeiro lugar um poder de ação sobre outras pessoas, e só muito secundariamente sobre a
“natureza”, ou sobre um fragmento seu infinitesimal. Imaginem, por exemplo, os projetos que
existem hoje de controle do clima. Quantas pessoas dedicam-se a isto? Algumas milhares. Mas a
ação destes algumas milhares vai afetar a vida de bilhões de pessoas, que jamais vão entender o que
eles estão fazendo. A ideia, por exemplo, do Al Gore, de que as ações humanas estão modificando o
ambiente cósmico inteiro e que portanto nós, através de uma certa organização da sociedade,
podemos racionalizar e controlar esta ação. Em outras palavras, nós estamos exercendo uma ação
destrutiva porque as nossas ações são anárquicas. Se organizarmos tudo, teremos uma ação
planejada e racional sobre o planeta. O planejamento do ambiente ecológico! A terra onde já não
vai ser uma livre doação da natureza, mas é a propriedade de uma administração planetária, que
determina o que se pode produzir, o que se pode consumir, quanto se pode respirar, e assim por
diante. Isto quer dizer que, no fim de dois séculos de “evolução democrática”, nós temos um
panorama de uma elitização monstruosa que permanece secreta à maior parte das pessoas. Então,
quanto mais as pessoas acreditam que estão vivendo em um mundo de liberdade, democracia, etc.,
mais elas estão sob poder de um planejamento tecnológico cuja compreensão lhes escapa
completamente. Qual é a nossa obrigação? É tentar entender isto. Nós não vamos conseguir decifrar
o processo histórico, mas aquilo que está ao nosso alcance de entender dentro do panorama
imediato, e dentro da história dos dois ou três últimos séculos, nós temos obrigação de tentar
entender. Entender não quer dizer que vai ficar tudo claro, porque muitas ações humanas emergem
de um abismo de loucuras e de maldades que às vezes fica difícil de imaginar. Quando se identificar
a origem e constatar que ela é abissal e tem um elemento demoníaco, não será possível de se
entender este elemento demoníaco, por que ele não tem explicação. Mas o entender é somente uma
parte do saber, e do conjunto do saber, só uma parte vai se entender. E admitir que o
incompreensível é incompreensível e que há de se aceitá-lo como realidade mesmo quando não
possa compreendê-lo. Isto para mim tornou-se uma regra da vida intelectual. Admitir a existência
dos fatos que eu não compreendo. Se não se admite isto, só admite-se um fato quando já se tem uma
explicação para ele. Isto quer dizer que o cérebro se fechou, que lhe foi dada uma explicação de
algo existente, e o que quer que saia fora desta explicação vai ser negada. A negação do fato
incompreensível tornou-se quase uma cláusula pétrea do debate acadêmico contemporâneo, porque
aquilo que é considerado compreensível é aquilo que é aceito pelo consenso da classe falante.
Raciocinando mais ou menos como o Guilherme Merchior, os intelectuais de prestígio merecem
respeito e atenção, mas aquilo que os outros dizem não tem a menor importância. Portanto, o que
quer que venha daí para adiante, só será aceito se passar pelo crivo destas pessoas. Ou seja, os fatos
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novos só serão admitidos se o consenso da classe acadêmica já tiver uma explicação prévia para
eles. Isso aí é o anti-conhecimento, é o obscurantismo mais extremo que você pode imaginar
resultante de dois ou três séculos de império das luzes. No nosso estudo de história das ideias e da
história da filosofia, jamais fugiremos dos elementos secretivos, irracionais, demoníacos, etc., pois
fazem parte da estrutura da realidade.

Eu queria lembrar uma coisa. Quando falamos da função da maçonaria no começo da Idade
Moderna, esse simples fato que eu mencionei já mostra quanto é inviável a compreensão destas
sociedades como se fosse um poder secreto que está controlando a história humana. Claro que
existe dentro destas sociedades, não só na maçonaria, indivíduos que tem a presunção de ser os
administradores do cosmos. Quando se vê o pouco controle que a maçonaria tem sobre a sua
própria história, ao ponto de um grão mestre maçônico ter de dar saltos para tentar se orientar no
meio da auto-mistificação, é de se perguntar como uma sociedade que conhece tão mal a sua
própria história pode dirigir a história humana. [1:50] A história do poder secreto não existe. O que
existe é uma presunção do poder secreto. Certos indivíduos gostariam de ser um poder secreto, mas
isto de fato não acontece. Só Deus dirige o curso da história humana, ninguém mais. Não adianta
tentar hipertrofiar o poder ou a imagem destes indivíduos e pensar que eles estão realmente
controlando tudo. O fato de ser secreto não significa que tem poder de fato sobre o curso total dos
acontecimentos. Nem somente sobre uma parte dele. O governo global mais comete erros, tropeça e
fracassa do que realiza os seus planos. É necessário levar em conta que existe esta interferência
secreta, mas não imaginar que, por ser secreta, é a explicação do que está acontecendo. É só mais
um elemento do conjunto. Eu sugeriria o seguinte: em vez da mania de ter uma explicação para
tudo, o que nós temos que buscar é o conhecimento, o saber, e não necessariamente a explicação.
Admitir os fatos que não se compreende é abrir-se para a realidade. Na verdade, desde o momento
que nascemos nós estamos abertos para uma realidade que nós não compreendemos. Qual é o
problema de não compreender? Não compreender significa que não se tem o domínio intelectual
sobre aquilo que está acontecendo, e portanto também não se tem o domínio prático. Ninguém é
senhor do processo, e na verdade nem se consegue apreender a forma do processo. Nós estamos
acabando de ver que todas as tentativas de apreender a forma do processo são ilusórias. O que se
capta são processos parcelares, e a verdadeira forma de instalação do ser humano na realidade é a
abertura total e a confiança em Deus. Não encontraremos nenhum princípio explicativo mais
abrangente e maior do que o Evangelho. Não passaremos disso, ninguém vai passar. Quando as
grandes presunções de domínio ideológico ou intelectual da realidade esfarelarem-se, esboroarem-
se na sua frente como estas de Hegel, Karl Marx e Augusto Comte, então está na hora de saber que
o verdadeiro trato do ser humano com a realidade não consiste em domínio intelectual da situação.
Consiste em aceitação da realidade, tão somente. E por que eu deveria ficar aterrorizado pelo fato
de o universo não está sob meu controle? Se estivesse sob o meu controle é que eu estaria
aterrorizado.

Vamos a algumas perguntas.

Aluno: Muito obrigado pela aula sobre as doze camadas. Na época em que li sua apostila, fiz uma
pergunta sobre a aplicação da teoria para a literatura que agora repito. Um escritor que tratou da
ascensão humana para as camadas superiores, especialmente a décima, não foi Herman Hesse?

Perfeitamente. Essa é uma das ideias dele. Sidartha vê a mente imediata, e também Demian. Um
romance de Somerset Maughan, O fio da navalha, gira em torno de um personagem que está
alcançando as últimas camadas e da capacidade incompleta de todos em volta compreenderem o
que se passa com ele.
Muitos romances do Georges Bernanos também. O diário de um pároco de aldeia, mostra um
indivíduo cuja vida inteira é presidida pela providência divina, que ele mesmo também não entende,
mas muito menos os outros o entendem. É aí que ele dá outros exemplos. A aplicação das doze
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camadas como um instrumento para descrição dos personagens literários é perfeita. Eu nunca tentei
isto, mas acho que é perfeitamente factível. Se você quiser desenvolver algum estudo sistemático
neste sentido, você fará uma grande contribuição, porque é evidente que, se as doze camadas
existem no ser humano real, vai ter de ser referido também nos personagens de ficção, que são os
modelos das vidas possíveis.

Aluno: Na aula passada o senhor falou sobre a blasfêmia que alguns ditos religiosos cometem ao
citar textos bíblicos para dar crédito às suas opiniões. Gostaria de saber também como se dá o
cuidado disso dentro de uma obra literária. Obviamente os discursos são extremamente diferentes
quando o autor cita a bíblia como epígrafe de um conto ou faz referência a um texto bíblico. Ele
não o faz desejando colocar a sua palavra como sendo a palavra de Deus. O fato é que o autor, no
entanto, não deixa de mexer com coisa séria.

É o seguinte. É claro que nem toda citação bíblica visa a legitimar algo que você está dizendo e nem
a conferir autoridade divina às suas palavras, mas muitas vezes tem esta função. Se você coloca
uma epígrafe tirada da bíblia, obviamente você não está fazendo isto, você está apenas contando
uma história e não apresentando uma teoria. Então a sua história pode ilustrar aquele ponto
positivamente ou negativamente. Ontem mesmo eu estava comentando com um amigo o livro do
Wulpert Selber, onde a história mostra precisamente o contrário do que está na epígrafe. Ele coloca
uma epígrafe bíblica, e depois mostra o personagem fazendo exatamente o contrário do que a bíblia
está dizendo para fazer. Note que ao fazer isto ele não está sequer interpretando textos bíblicos. Ele
está usando um texto bíblico para iluminar uma situação específica e isto é perfeitamente legítimo,
você deve fazer isso. Eu estou me referindo especificamente aos casos em que a citação visa a
conferir um prestígio, uma autoridade a mais. Nós não temos esta autoridade, jamais. O máximo
que nós podemos fazer é esperar que as nossas ideias estejam convergindo com aquilo que Deus
desejaria que falássemos. É isso o máximo a que nós podemos chegar. Nós não sabemos se Deus
aprova as nossas palavras, se ele assina em baixo. Nós nunca vamos saber isso.

Aluna: Sua última aula abordou o problema central da minha vida hoje. Gostaria de fazer uma
pergunta. Formei-me em direito em 2008 e desde que peguei o diploma não sei o que fazer com ele.
Advoguei por um tempo apenas o suficiente para constatar que não levo jeito para a coisa. Preciso
ingressar na camada seis.

Muito bem. Isto aqui é um grande problema. Uma vez na vida você tem que dominar alguma
técnica, algum conhecimento que lhe permita, com relativa margem de certeza, alcançar resultados
naquilo que você faz. Não interessa qual seja a técnica, pode ser engraxar sapatos. Se você tem
certeza de que sabe engraxar sapatos, você dominou o assunto, em todos os seus aspectos. Por mais
modesta que seja a atividade, compreendê-la com começo, meio e fim é o elemento central da sua
personalidade. Isto vai servir muitas vezes para você saber diferenciar as ocasiões em que você está
de fato instalado na realidade e outras em que você está fantasiando. Quando eu comecei a trabalhar
em jornal com dezessete anos, eu fiz questão, o mais rápido possível, de compreender tudo o que
compunha a elaboração de um jornal, desde a coleta de notícias até a diagramação, a pauta que se
fazia, a composição e impressão do jornal, os equipamentos usados, as marcas dos equipamentos,
como funcionava a oficina, como se fazia a distribuição. Ver a coisa inteira pelo menos para saber
onde eu estava. Não que eu tivesse a presunção de algum dia dirigir uma empresa jornalística e ter
que comandar todo esse processo. Mas aquilo era uma sequência de ações humanas ordenadas em
função de um fim e saber como isto funciona dá uma segurança muito grande e permite perceber até
que ponto a mera afirmação da sua capacidade pessoal é insuficiente. Porque a sua ação sempre vai
estar encaixada nas ações de outros que você não governa de maneira alguma, e às vezes este
encaixe é mais importante que a sua capacidade pessoal. Você está trabalhando numa equipe, você
pode ser um gênio, mas se as suas ações não se encaixarem com as dos outros, vai dar tudo errado.
A sexta camada é um elemento básico do processo de socialização do indivíduo. Então Marcela,
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não interessa aonde você vai aplicar isto, interessa o seguinte: veja uma área onde você possa
dominar tecnicamente todos os conhecimentos necessários. [2:00] Por exemplo, se o sujeito vai ser
advogado, ele sabe como vai tratar as pessoas do cartório? Eu quando era moleque acompanhava o
meu pai no cartório e via ele conversando com uma vasta rede de amigos ali dentro. Se ele não
tivesse essa rede de amigos, todo o conhecimento de leis que ele tivesse não ia adiantar
absolutamente nada. Um advogado que tivesse bons amigos no cartório funcionaria melhor que um
outro que tivesse estudado muito. Essa é uma outra parte da profissão. Todos estes detalhes, que
parecem às vezes ser o lado menos nobre da profissão, eles são absolutamente fundamentais. E qual
é a melhor profissão para você? Aquela na qual você conseguir dominar estes detalhes, mas tem
uma dica. Eu acho que uma vocação profissional é marcada por uma resistência especial que a
pessoa tem a um certo gênero de incomodidades. Por exemplo, se você não gosta de enfrentar a
burocracia você não pode ser advogado, porque oitenta por cento dos problemas que você vai ter
são com a burocracia. Mesmo que você adore o negócio das leis, sempre vai esbarrar no cartório. Se
você tem resistência para isto, se isto não a incomoda, não a destrói, então você talvez possa ser
uma boa advogada. Do mesmo modo, se você vai ser um engenheiro, todo engenheiro tem que
saber que todos os cálculos tem uma enorme margem de erro e que o controle que ele obtém sobre
as coisas materiais é altamente precário. Então ele sempre vai estar correndo este risco de ser
derrotado por um pedaço de madeira, por uma pedra, por um metal. Você fez os melhores cálculos
possíveis e tudo deu errado. Por que? A matéria não obedece você. Se você não tiver uma
resistência para este risco, você não vai poder ser um engenheiro. Se você acredita em planejamento
perfeito, em controle total sobre o mundo material, não vai dar. Do mesmo modo, por que é que um
sujeito vai ser médico? Por que ele pode conviver com gente doente o tempo todo sem que isto o
deixe deprimido, ou desencorajado. Eu, por exemplo, via o meu amigo Dr. Müller o dia inteiro
conversando com maluco e eu pensava que não iria agüentar aquilo três dias da minha vida. O
primeiro cliente que chegasse eu o jogava pela janela e ia embora. Como é que se tem aquele
tremendo interesse nos delírios mais subjetivos e despropositados de uma pessoa a ficar ali horas
contando aquela coisa. Para mim isto é coisa de maluco. Mas ele se sentia perfeitamente bem no
meio disso. Quer dizer, tinha aquela resistência específica. O problema não é o que você gosta de
fazer, o problema é o que você tem força para fazer. Esta dica da resistência específica eu acho que
é um excelente critério de escolha de atividade profissional.

Um aluno pergunta-me se eu conheço o Gustave Le Bonn. Bom, o Gustave Le Bonn escreveu dois
livros importantes: A psicologia das massas e sobretudo A psicologia do socialismo, que eu acho
livros absolutamente indispensáveis. Claro que depois disso se descobriu muita coisa.

Outra pergunta do mesmo aluno: Quanto ao acidente metafísico, parece-me ser um elemento que se
aproxima das categorias de Aristóteles.

Muito bem, claro. Tudo isto eu tirei do Aristóteles, mas o conceito do acidentalmente necessário
parece contradizer a terminologia aristotélica. Mas no entanto existe e não há como escapar disso.
Isto não está dito em Aristóteles, mas é coerente com Aristóteles. Quando ele diz que não é
verossímil que tudo sempre aconteça de maneira verossímil, ele está falando de uma margem de
incerteza acidental, que é absolutamente necessária para que as coisas aconteçam.

Aluno: Ele está falando que existem outros acidentes que escapem das categorias...

Eu não sei, parece que não. Eu acho que todos os acidentes podem ser catalogados dentro das
categorias. Nunca testei isto. Na verdade nem me interessei por isto, posso pensar nisso, mas não
me pareceu importante. O importante é, perante a análise de uma situação real, conseguir fazer pelo
menos uma parte do repertório dos acidentes sem os quais aquilo não poderia ter acontecido. É a
presença do elemento acidental que vai marcar a diferença entre o fato concreto e a sua mera
definição abstrata. E é justamente aí que muitas análises que pretensamente abrangem a realidade
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acabam por falhar. Por exemplo, estas análises do Merchior que nós vimos. Ele está raciocinando a
partir da ideia de democracia liberal. Mas muito bem, o que é necessário para que esta entidade
assim definida, exista? É necessário isto e isto. E a simples somatória destes acidentes pode levar a
coisa na direção totalmente oposta daquilo que está definido. Um bom caminho é ter primeiro a
definição abstrata da coisa, então tem-se, por assim dizer, a sua essência. Em seguida faça a lista
das condições de existência, ou seja, quais são as condições necessárias para que uma coisa assim
definida possa existir genericamente. Em terceiro lugar, identificar quais são as condições para que
isto possa existir dentro de um quadro concreto definido. E dentro destas condições, quais são
aquelas que derivam da definição, ou seja, são propriedades, e quais são aquelas que não tem nada a
ver com a definição, que são acidentais, mas que tem de estar lá para que a coisa exista
concretamente.

Aluna: Gostaria que você esclarecesse a relação entre as doze camadas da personalidade e as
casas astrológicas.

Muito bem! Essa teoria das camadas ocorreu-me justamente numa época em que eu estava tentando
ver qual é a possibilidade de se conferir cientificamente certos dados astrológicos e saber se isto é
possível ou não. A primeira condição para que isto fosse possível seria decidir do que um
horóscopo está falando. Quais são os domínios da existência sobre as quais o horóscopo fornece
alguma informação, e quais são aqueles que escapam dele? Em princípio, o horóscopo tal como os
astrólogos trabalham é um elemento fixo, quer dizer, os planetas estão colocados em certos pontos
de uma vez para sempre, ao ponto que se diz que este é o horóscopo deste indivíduo, e como os
trânsitos astrológicos, que são as mudanças das posições dos planetas, que teoricamente ou
hipoteticamente afetam aquilo, já estão dados por um algoritmo que está pronto no horóscopo. Os
planetas estão colocados em certos pontos e sabe-se que os trânsitos futuros podem teoricamente
afetar aquilo de algum modo, mas dentro de um algoritmo previamente calculável. Também é um
elemento fixo, embora se desenrole no tempo. Então o horóscopo é um elemento sempre fixo.
Qualquer coisa imprevista não pode estar referida no horóscopo. Dado o horóscopo do indivíduo,
não se pode saber, a partir dali, em que estágio do seu desenvolvimento psicológico ele está, porque
o horóscopo é sempre o mesmo. O desenvolvimento, a psicologia evolutiva está totalmente fora da
consideração astrológica. Então o horóscopo não trata disto. Se ele não trata disto, nós temos que
obter esta informação de alguma outra fonte que não seja o horóscopo. E todo o problema da
verificação científica das teorias astrológicas baseia-se nisso. Uma informação que é dada pelo
horóscopo que não é conferível por uma outra informação tirada por outro lado completamente
diferente não é passível de averiguação. Se o único método de acesso àquelas informações é o
método astrológico, então a verificação científica é impossível. Então há o que os astrólogos
seguem, por um lado, e o que outros seguem, do outro lado. Um desses métodos é o que eu
chamava de psicologia evolutiva, do qual se desconta o problema evolutivo para saber do que o
horóscopo está falando. [2:10] Foi onde eu cheguei à elaboração da noção de caráter como sendo
aqueles elementos absolutamente estruturais e imutáveis. Isso hipoteticamente. Não sei se isso
existe. Mas a existência de um negócio chamado horóscopo pressupõe a existência de um elemento
fixo. Se esse elemento fixo não existe, então o horóscopo não pode funcionar. Eu criei esta teoria
das camadas justamente para isolar os elementos evolutivos. Existe uma relação, mas é uma relação
negativa.

Aluno: Como diferenciar uma decisão positiva, por exemplo, de um governante, das iniciativas
revolucionárias que pretendem revolucionar arbitrariamente o curso da história?

Há um critério imediato. Qual é o prazo da ação e em que tempo a ação deve mostrar os seus
resultados? Se os resultados da ação do indivíduo estão dentro de um prazo relativamente
controlável por ele, então é claro que esta ação está limitada à esfera daquilo que ele pode realmente
determinar, até certo ponto. Por exemplo, eu estou empreendendo este curso, imagino que, se houve
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uma nova camada intelectual capacitada no Brasil em x tempo, talvez o curso das coisas venham a
melhorar. Mas eu não tenho o controle sobre o curso das coisas. Também não tenho o controle
sobre a formação da intelectualidade. O máximo que eu posso fazer é dar os elementos para que ela
se forme. Isto está sob o meu controle. Dali para adiante, depende do freguês, da vontade de Deus,
de uma série de fatores que estão completamente além do meu controle. Quando Ronald Reagan
convida Gorbatschev a derrubar o muro de Berlim, é claro que as conseqüências imediatas da
derrubada do Muro de Berlim são perfeitamente controláveis. Com a derrubada do muro, milhares
vão fugir da Alemanha Oriental para a Alemanha Ocidental, e procurar novas oportunidades de
vida. Derrubar o muro é destruir a Alemanha Oriental, é reintegrá-la. Isto é controlável e isto foi
feito. E quais serão as consequências disto em escala mundial? No que isso vai determinar o curso
da história? Não sabemos. Não há como saber. Esta é uma ação que pode ser empreendida por um
governante dentro do seu prazo de vida, dentro do seu tempo de ação, e que não implica nenhum
controle revolucionário do curso da história. Na verdade, a limitação das ações políticas a esta
esfera de acontecimentos controláveis é a base da democracia mesma. A troca de governo de quatro
em quatro anos, ou de cinco em cinco anos, supõe que o governo deve fazer algo dentro do seu
prazo de gestão, e que ele não vai fazer coisas cujas consequências não possam ser controladas de
algum modo. Por isso um governo democrático não pode mudar a estrutura ou a ordem política do
seu país. Ele tem que agir dentro de uma ordem que permanece fixa para que o próximo governo
possa eventualmente corrigir os seus erros. Mas se ele destruir o próprio sistema, então acabou, o
governo seguinte não tem mais controle sobre o que está acontecendo. A abdicação do projeto
revolucionário é a condição número um para que qualquer proposta governamental possa ser aceita
dentro de um regime tido como democrático, liberal-democrático, um Estado de direito. Qualquer
Estado de direito é baseado na possibilidade de controlar as ações do governo para que ele não
passe de um certo limite. E o primeiro desses limites é o limite temporal. Você não pode fazer
coisas hoje, prometendo que elas vão desencadear um efeito dentro de duzentos anos, porque
ninguém vai estar lá para ver. Nem o autor da ação, nem os seus supostos beneficiários estarão
vivos para poder controlar e ver se a coisa deu certo ou não. Esta limitação da esfera de ação
humana é uma exigência moral absolutamente incontornável. O indivíduo só tem o direito de
envolver as pessoas em ações cujos efeitos elas possam controlar de alguma maneira. Senão está se
passando por cima delas, sobretudo se, vamos dizer, parte do plano permanece secreto.

Aluno: A palavra “relação” foi soberana na aula de hoje. Realmente ela é básica na aquisição do
conhecimento dos diversos níveis de certeza. Na verdade a história humana se configura num
conjunto de relações que não conseguimos abarcar, apenas perceber alguma coisa. Acredito que
estas relações e os seus fins só Deus conhece, mas quanto mais nossa relação com Deus for sincera
e verdadeira, podemos ter algum simulacro do processo histórico, pelo menos quanto ao fim.
Seremos julgados, por pensamentos, atos e omissões. Afinal nossa história não se fundamenta na
relação entre Deus, eu e o mundo, pois como diz o Apóstolo, “de que adianta o homem ganhar o
mundo inteiro, se vier a perder a sua alma”.

Muito bem! É claro que o problema central da vida cristã é a alma e não o mundo. E muito menos a
sociedade. Por isso que eu sou contra a ideia da sociedade cristã. Você pretende salvar a alma da
sociedade? Tem alguma sociedade que está no céu ou no inferno? Acho que não tem nenhuma. O
que tem são pessoas. Mais ainda, nós vimos em aulas anteriores que, na perspectiva da
imortalidade, uma única alma é mais vasta que o processo histórico inteiro. Na verdade, o que nós
chamamos de processo histórico, não é senão uma representação subjetiva que certas almas, certos
indivíduos fizeram. O que é a filosofia da história de Santo Agostinho, de Karl Marx, etc.? É algo
que Santo Agostinho pensou, que Karl Marx pensou. Não é o processo histórico na sua
materialidade, o qual é inabarcável por nós. A ideia de que existe um Deus transcendente e que ele
atua sobre a história, e que ele conduz o processo, é a origem mesmo de todas as teorias que
tentaram descrever o processo histórico, só que elas tiram Deus sob o seguinte argumento: se há um
Deus controlando, existe uma racionalidade por trás de tudo, que é uma racionalidade divina. Tendo
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acesso a esta racionalidade, é possível de se saber o que está acontecendo. O ser humano pode
captar a racionalidade da ação divina ex post facto, ou seja, absorver a linha de coerência que existe
por trás daquilo, o significado simbólico, etc. depois que os fatos aconteceram, mas só consegue
fazê-lo mediante certos processos parcelares, e não com o conjunto. Deus é a garantia última da
nossa racionalidade, o que significa que a nossa racionalidade é sempre incompleta e parcial. Para
que precisaríamos de mais do que isso? Se a nossa vida é temporária, se a nossa capacidade de ação
é limitada, para que precisaríamos de uma razão ilimitada capaz de saber tudo? Para que serviria o
conhecimento infinito num ser finito? Não faz sentido. A verdadeira racionalidade está na
adequação entre a alma e a situação real, só a adequação. Não no domínio que ela exerce, não no
controle. É mais ou menos como dançar. É preciso adequar aos gestos que o seu parceiro está
fazendo. Não precisa dominar, não são os gestos que farão a pessoa responder com outros gestos.
Existe uma harmonia. Do mesmo modo também existe uma harmonia, uma adequação entre nós e a
realidade, entre nós e o mundo, e entre nós e Deus. É apenas uma adequação, e note bem, Deus
jamais exigiu que esta adequação fosse perfeita. Essa é uma coisa que sempre me chamou a
atenção. Na Bíblia, Deus considerou perfeitos os vários homens que nós, lendo a vida deles,
consideramos muito imperfeitos. Abraão de oferecer a mulher dele para o outro para escapar de um
problema. Quem vai dizer que isso é decente? Abraão fez isto, e no entanto Deus o considerou
perfeito. O Rei Davi. O conceito divino da perfeição humana é muito relativo e muito modesto. E
eu acho, embora não seja autoridade nesta matéria nem seja a pessoa adequada para comentar isto,
mas eu acho que Deus exige de nós é muito pouco. É só um o elemento constante: que busquemos o
desejo e que queiramos o que Ele diz para nós fazermos. [2:20] Eu acho que é só isso. Eu não acho
que podemos ter mais nada além isso. A nossa posição é sempre a de alguém que conhece a sua
natureza corrompida, conhece o seu erro estrutural por assim dizer, sabe que a perfeição está fora da
sua perspectiva e espera o perdão divino. Isto é o máximo que nós podemos esperar. Mais do que
isto, não. Vivendo aqui nos Estados Unidos, vejo que o pessoal tem muita expectativa da perfeição
quantitativa. Eles esperam que todo mundo esteja vivendo na graça e, de vez em quando, quando
aluém cai no pecado, todo mundo o condena. Eu acho que é o contrário. Está todo mundo vivendo
no pecado, na bagunça, na confusão, na perdição, e estamos tentando levantar uns aos outros porque
todos estão caindo, mas felizmente não caímos todos ao mesmo tempo, então um ajuda levantar o
outro. Minha perspectiva é muito mais modesta do que isto.

Aluno: Você poderia traçar alguma relação entre as experiências vividas pelas personalidades
descritas nas doze camadas e os pecados capitais? Pois o sofrimento em cada uma destas etapas
parece-me implicar tentações que podem levar a um retrocesso ou a uma fixação em uma camada.

Nem sempre. Quando eu digo que para identificar a camada em que a pessoa está há de se perguntar
onde dói, é preciso ver que é esta a dor que a pessoa está querendo experimentar naquele momento,
porque ela sabe que é aquilo que vai fortalecê-la. Por exemplo, a experiência para a abertura das
emoções humanas na passagem da terceira para a quarta camada. Durante a adolescência, tudo é
experiência, tudo é aventura, vale tudo e nada é sério. Mas de repente pode acontecer alguma coisa
séria. A pessoa pode, por exemplo, se apaixonar por alguém e começar a sofrer porque ela não sabe
como abordá-la, ou ele não manifesta interesse algum pela pessoa. Aí a pessoa não tem mais
controle da situação. E no entanto nós podemos perguntar para esta pessoa se ela quer continuar na
adolescência fazendo tudo como brincadeira. Eu acho que não. Eu acho que a pessoa quer passar
para esta nova esfera da experiência. Ela percebe que ali existe algo que está guardado e que vai ser
bom para ela. Do mesmo modo quando se enfrenta um desafio e quer-se afirmar a personalidade,
provar o valor, etc. Isto implica riscos, implica medo, implica esforço, etc. Mas o que se prefere?
Continuar sonhando ou fazer alguma coisa? Normalmente esta dor, este sofrimento é desejado pela
pessoa. Isto não deve ser visto como tentação. Eu não vejo a possibilidade de um significado moral
das camadas. As camadas são apenas a evolução normal do ser humano. Os elementos éticos,
morais, o bem e o mal, entram ali igualmente. Entra tudo misturado. Evoluir humanamente não quer
dizer que se está indo para o caminho do bem.
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Aluno: Os grandes líderes, por exemplo...

Sim grandes líderes maus, como Stalin, passaram por esta evolução também. O sujeito que decide
servir a Satanás passou por esta evolução. As camadas não tem um sentido moral, o elemento moral
tem que ser acrescentado a elas. As considerações morais entram como um dos componentes. É na
parte moral que atuam as tentações e não propriamente no puro sofrimento inerente à camada na
qual se está entrando. Ao contrário, este sofrimento é aceito. Um indivíduo que tem uma habilidade,
um domínio técnico, sabe se virar, sabe o que fazer, e a partir dali começa a aceitar a ideia de
direitos e deveres, da confrontação, da justiça. É claro que isso vai dar trabalho, vai dar sofrimento
para ele. Porque agora já não basta só a habilidade dele, a camada seis, ele vai precisar contar com
outro elemento, mas ele vai desistir disto dizendo que quer voltar só para os direitos e deveres,
voltar para o exercício das minhas atividades que tanto o favoreciam? Acho que se a pessoa chegou
até aí, ela não quer voltar atrás. Na verdade, eu não acredito que exista a volta atrás. O que existe é
a fixação numa camada, sobretudo quando esta fixação é forçada pela própria sociedade. Quando
existe uma cobrança neste sentido. Por exemplo, eu acho que a conquista pela habilidade na luta
pela vida não é um elemento que está muito presente na vida brasileira. Ao contrário, o que as
pessoas buscam é uma posição na qual elas não precisem inteiramente de ter habilidade. O que é
uma sinecura? É um emprego no qual não se precisa fazer nada, e não requer a prova de capacidade.
A pessoa quer se libertar daquele desafio da camada seguinte, dizendo que quer mais pensar nisso.

Então de certo modo é uma sociedade feita para que as pessoas permaneçam numa espécie de pós-
adolescência, não passando disso. Aqui nos Estados Unidos, a camada sétima está presente o tempo
todo. Existe uma pressão para que se raciocine em termos de direitos e deveres. É até um negócio
exagerado. Para puxar um cigarro e acendê-lo há de se ter preocupações morais enormes e pensar se
irá incomodar alguém. Cada palavra é ponderada para não ferir este ou aquele. A consciência de
direitos e deveres é muito aguda, e as pessoas não estão fugindo disso. Ninguém está fugindo disso.
Elas querem isso. Claro, cada um vai ter a sua própria concepção de direitos e deveres, e muitas
coisas que a um parecem muito importantes, a outro parecem uma bobagem. O fato de a média da
sociedade alcançar uma determinada camada é muito bom para a evolução pessoal dela, mas quais
são as consequências que isto tem para a sociedade em geral? Eu acho que essa consciência
exasperada de direitos e deveres que o americano tem cria às vezes uma paralisia, e ele não
consegue agir. A escrupulosidade moral é tanta que contra um ladrão dentro da minha casa a querer
me matar, estuprar minha mulher e minhas filhas, etc. tenho de ter uma reação proporcional, eu não
posso usar a força além de um certo limite. Por exemplo, por um tiro dado a um ladrão que entrou
na casa, o atirador é processado porque usou força demais. Quanto é o demais? Onde começa e
termina o excesso da força? Isso é um problema. Há pessoas que preferem se deixar assaltar para
não usar força demais. O sujeito está batendo em uma pessoa e ela pensa se devia bater de volta,
mas fica em dúvida quando deveria bater. Como é que se pode saber, se ele pode processar a pessoa
porque usou força demais, ou se ele deu quinze porradas, e a pessoa quer dar uma nele, mas de
repente esta porrada é mais forte e ele vai se queixar?
Eu acho que aqui na sociedade americana há uma paralisia na esfera das decisões por ser um país de
camada sete. A presença de tantas pessoas na camada sete impede que algumas cheguem à camada
oito e à camada nove. Prevalesce a inibição de personalizar um pouco mais a compreensão das
coisas, porque pode ocorrer de violar direitos e deveres, e ela corre o risco de causar um
inconveniente. O senso da gafe aqui é absolutamente obsessivo. Um sujeito fala uma palavra a
mais, e no dia seguinte todos os jornais perguntam se ele cruzou a linha.

Aluno: Estou lendo o livro Johnny, a vida do espião que delatou a rebelião comunista em 1935. E
vi o quando importante ler os relatos dos agentes secretos, de maneira que, quem quiser entender
os fatos do século passado, tem de lê-los.
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Isto é absolutamente certo. Livros de memórias escritos quando os autores já estão velhos e já não
têm muito a esconder são uma fonte imprescindível. Aprende-se muito mais lendo livros destes do
que lendo jornal durante cinqüenta anos. [02:30]

Aluno: Em determinado momento o ex-agente faz um relato muito interessante sobre a sua
formação no exército vermelho. Lá ele estudou, história, política, economia, além das disciplinas
militares. Naquele treinamento, toda faculdade humana era usada para o crescimento do Estado
soviético, para um fim bem abrangente e determinado, e o relato chega a ser bem sedutor. Então
comecei a comparar o relato com a vida fragmentada que levamos, usando determinadas crenças
para o trabalho, outras para o lazer, outras para o estudo, etc., de modo que não enxergamos um
fim unificante para todos os momentos da nossa vida.

Umas vantagens de se viver em uma sociedade totalitária é que tudo serve a um único fim e há uma
única explicação para tudo, e um único critério de julgamento para tudo. Só que esta finalidade
única não tem a universalidade que pretende e frequentemente vai contra a estrutura da realidade e
só serve para destruir as pessoas.

Aluno: Aquele relato também me ajudou a reafirmar a importância do necrológio, quando


estabelecemos um fim para a nossa vida.

Perfeitamente. Se você está numa sociedade totalitária, eles te dão o sentido da vida pronto. Qual é
o sentido da vida? Trabalhar pela glória do comunismo, pela glória do Estado Soviético, pela glória
do Estado Chinês, pela glória do Estado Cubano, e ponto. Ninguém tem de buscar o sentido da vida,
eles calçam o sentido da vida em você como se calçasse um sapato de número 39 em todo mundo.
Seu pé é 44, ou pode ser 32, mas vai ser esse aqui, 39. É claro que isto é um falseamento do sentido
da vida. É um falso sentido da vida. Muitos movimentos políticos e culturais estão fazendo isto,
estão forjando um falso sentido da vida.

Hoje ficamos por aqui. Até a semana que vem. Obrigado.

Transcrição: Pe. Emilson

Primeira Revisão: Cristina Saori Asazu

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