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1
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EXPEDIENTE

CENTRO UNIVERSITÁRIO VALE DO IGUAÇU – UNIGUAÇU


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União da Vitória – Paraná
CEP. 84.600-000
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ISSN: 2359-3318.

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Folio: 25162
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3
4

SUMÁRIO

A SOCIEDADE CIVIL COMO ESTRUTURA E SUPERESTRUTURA: ANÁLISE DO CONCEITO EM KARL MARX E EM


ANTONIO GRAMSCI ......................................................................................................................................... 6
Gabriel Maravieski................................................................................................................................... 6
A TECNOLOGIA DOS DADOS PESSOAIS: O instrumento tecnológico da informação na efetivação do direito
social ..............................................................................................................................................................23
Dioclécio Salomão Carneiro ................................................................................................................... 23
AMPLIANDO A PARTICIPAÇÃO DAS MINORIAS NO ESPAÇO PÚBLICO DE IDEIAS COMO FORMA DE COMBATE
AO DISCURSO DE ÓDIO ...................................................................................................................................35
Jonathan Douglas dos Santos ................................................................................................................ 35
ASPECTOS GERAIS DA TEORIA ARGUMENTATIVA DE NEIL MACCORMICK - DIVERGÊNCIA DE JUSTIFICAÇÃO E A
PRESENÇA DE ARGUMENTOS CONSEQUENCIALISTAS EM DECISÕES JUDICIAIS DE DIREITO À MORADIA ........59
Elisângela Marli Zakszeski .................................................................................................................... 59
ATIVISMO JUDICIAL E DEMOCRACIA: ANÁLISE DO FENÔMENO DO ATIVISMO A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA
DEMOCRÁTICA................................................................................................................................................80
Élder Teodorovicz .................................................................................................................................. 80
AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS ÀS VÉSPERAS DA VIGÊNCIA DA LGPD: Uma visão sistêmica
de como o Brasil vem se preparando em relação à proteção dos dados pessoais ...........................................97
Sabrina Bittheyy Cavallari de Carvalho ................................................................................................. 97
COOPERAÇÃO FEDERATIVA ATRAVÉS DE CONSÓRCIOS PÚBLICOS INTERMUNICIPAIS: O CASO DO
CIMCATARINA - CONSÓRCIO INTERMUNICIPAL CATARINENSE ....................................................................123
Ricardo José Feiten .............................................................................................................................. 123
DA FALIBILIDADE HUMANA À INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: O FASCÍNIO (E RISCOS) DA DESUMANIZAÇÃO DO
PENSAMENTO ...............................................................................................................................................142
Nathan de Freitas Fernandes............................................................................................................... 142
EMENDA CONSTITUCIONAL N. 95/2016 E A PROGRESSIVIDADE DO FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA
COMO GARANTIA FUNDAMENTAL................................................................................................................159
André Luís Bortolini ............................................................................................................................. 159
NOVAS TECNOLOGIAS: INCLUSÃO E EXCLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA .........................................182
Aletya Dahana Rollwagen ................................................................................................................... 182
O CARÁTER ESSENCIAL DAS INSITUIÇÕES PARA A DEMOCRACIA ..................................................................199
Tairini Passarini ................................................................................................................................... 199
O DIREITO VIVO NAS PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES DO PODER JUDICIÁRIO NO PROCESSO CIVIL..................214
Elvis Jakson Melnisk ............................................................................................................................. 214
O EMPRESÁRIO E A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO .......................237
Nelinho Kukla....................................................................................................................................... 237

4
5

O USO DA INTERNET, REDES SOCIAIS E E-MAIL NO LOCAL DE TRABALHO E AS CONSEQUÊNCIAS PARA A


RELAÇÃO DE EMPREGO ................................................................................................................................255
Rodrigo Barzotto Pereira de Souza ...................................................................................................... 255
POPULISMO PENAL – UMA POLÍTICA PENAL INEFICIENTE HÁ TRÊS DÉCADAS. ..............................................279
Adriano Delfino Moreira ...................................................................................................................... 279
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA: UMA ANÁLISE SEGUNDO A INTEGRIDADE DO
DIREITO E A LEITURA MORAL DA CONSTITUIÇÃO DE DWORKIN ...................................................................297
Tatiane Wegrnen ................................................................................................................................. 297
PROSTITUIÇÃO: ESTAMOS A FALAR EM DIREITO À LIBERDADE? ...................................................................314
Juliana Bianchini .................................................................................................................................. 314
TRANSCONSTITUCIONALISMO E SOCIEADES INFORMACIONAIS: VIVÊNCIAS CONSTITUCIONAIS EM
(INTER)RELAÇÃO ...........................................................................................................................................334
Camila Salvatti ..................................................................................................................................... 334
André Luan Domingues ....................................................................................................................... 334

5
6

A SOCIEDADE CIVIL COMO ESTRUTURA E SUPERESTRUTURA: ANÁLISE


DO CONCEITO EM KARL MARX E EM ANTONIO GRAMSCI

Gabriel Maravieski1

RESUMO: O presente trabalho tem por escopo a análise do conceito de sociedade civil na visão
de dois autores que, pertencentes a uma mesma base teórica, se afastam sensivelmente no tema
proposto. Karl Marx e Antonio Gramsci se debruçaram sobre o estudo da sociedade civil e legaram
valiosos instrumentos para melhor compreensão do instituto, seja como base, seja como
superestrutura. O que se pretende, portanto, é demonstrar, através de um método dialético, a
diferença existente no pensamento de um e de outro autor, sem a pretensão acadêmica de esgotar
o tema, haja vista que muitos caminhos se abrem àquele que intenta absorver o espírito passado
pelos autores na compreensão da sociedade civil. Para tanto, se utilizou da revisão bibliográfica de
autores posteriores aos dois pensadores que procuraram promover uma elucidação sobre o tema
e um incremento das ideias iniciais de cada um, deixando ao pesquisador atual a tarefa de aprimorar
os conceitos e buscar uma maior compreensão do tema.

Palavras-Chave: sociedade civil; democracia; Marx; Gramsci.

ABSTRACT: The present work has as scope the analysis of the concept of civil society in the vision
of two authors who, belonging to the same theoretical base, deviate sensibly in the proposed theme.
Karl Marx and Antonio Gramsci focused on the study of civil society and provided valuable tools for
a better understanding of the institute, both as a base and as a superstructure. What is intended,
therefore, is to demonstrate, through a dialectical method, the difference existing in the thought of
one and another author, without the academic pretension of exhausting the subject, since many
paths open to the one who tries to absorb the spirit of the authors in the understanding of civil society.
To do so, we used the bibliographical review of authors after the two thinkers who sought to promote
an elucidation on the subject and an increase of the initial ideas of each one, leaving the current
researcher the task of improving concepts and seeking a greater understanding of the theme

Key-Words: civil society; democracy; Marx; Gramsci.

1 INTRODUÇÃO

Karl Marx, dentre tantos pensadores e filósofos que encenaram suas teorias
no mundo social, procurando promover um melhor entendimento sobre a
sociedade, é talvez o mais incompreendido e também um dos mais estudados
dentro das arcadas acadêmicas. Suas teorias, e fala-se no plural diante das
inúmeras interpretações que podem ser dadas ao conjunto de sua obra,
perpassaram os caminhos da economia, principalmente, mas também da política
(ainda que não de todo explícito), da filosofia e da sociologia, o que pode ser um
caminho profícuo, mas também com vieses perigosos aos aventureiros que por ele
caminham (FONSECA, 2012, p. 89).

1
Mestrando em Direito (UNIBRASIL). Especialista em Direito Ambiental (UNINTER) e Direitos Humanos e Realidades
Regionais (UNICESUMAR). Graduado em Direito (CESCAGE).
7

Este sentido interdisciplinar de sua obra permitiu, no decorrer dos tempos,


análises diversas de sua obra e de sua doutrina, incentivando uma gama de autores
a dissecar suas ideias para se chegar a um consenso acadêmico que permita uma
melhor compreensão do social, do econômico, do jurídico, e assim por diante.
Dentre tais autores se encontra Antonio Gramsci, que procurou na obra
marxiana inspiração para desenvolvimento de seus estudos teóricos pautados no
materialismo histórico. Gramsci se permitiu elaborar uma contraposição a Marx no
que se refere ao entendimento do conceito de sociedade civil e alterou a teoria até
então propagada, promovendo uma inversão do ponto de vista doutrinário.
O escrito que se pretende tem a intenção de apresentar os conceitos básicos
de cada um dos autores enquanto teóricos materialistas e explicadores da
sociedade civil e em que aspecto esta sociedade civil determina a forma de
dominação social.
Pautado em um método dialético de análise, o artigo se estrutura em três
momentos.
No primeiro, discorrer-se-á acerca da noção de base e superestrutura e
tangenciará a conceituação de Estado para Marx e as doutrinas hegelianas,
tentando entrever na ótica marxiana uma definição de Estado, ao passo que este
não foi efetivamente objeto de estudo do instituidor do materialismo histórico, mas
sim a economia, e é neste aspecto que se buscará demonstrar o que se entende,
na obra marxiana, por Estado, base e superestrutura.
No segundo momento a exposição se dará sobre a localização da sociedade
civil na obra de Marx, colocando-a enquanto elemento de base e demonstrando as
bases teóricas que demonstraram que este autor assim entendeu a sociedade civil,
como local de dialética materialista.
Em um terceiro momento, a análise se voltará ao pensamento de Antonio
Gramsci e demonstrará em que aspecto sua teoria se afasta da teoria de Marx
quando o tema é sociedade civil, posto que o local de enquadramento de tal
segmento se altera significativamente aqui, passando a tratar a sociedade civil
como superestrutura, local de embates ideológicos.

2ESTRUTURA (BASE) E SUPERESTRUTURA – UM


INTROITO NECESSÁRIO

A formulação do conceito de Estado, na doutrina teórica marxista e


marxiana, perpassa situações primárias de explicação do fenômeno “Estado”.
8

Dentre estas noções primordiais para compreensão da teoria marxista surgem os


conceitos de base (estrutura) e superestrutura.
Como ponto inicial de pesquisa, a fim de se chegar a uma interpretação dos
conceitos de base e superestrutura, é de se compreender que Marx, assim como
Engels e os demais filósofos marxianos posteriores aos nomes que inauguraram a
escola materialista, partiram de um ponto de vista materialista para o estudo da
história e das relações sociais. Esta visão materialista do curso da história e das
repercussões deste fato na organização social da humanidade é algo que fica claro
ao leitor quando se parte de uma análise inicial da obra de Marx e Engels, que
colocaram grande importância à teoria da práxis, ou seja, à teoria que trata da
ligação, ou mediação, dialética entre o ser humano e o que é conhecido
(FONSECA, 2012, p. 91).
Nas palavras do próprio Marx (1987, p. 12)

A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma


verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática. É na práxis
que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder,
o caráter terreno de seu pensamento. A disputa sobre realidade ou não
realidade do pensamento isolado da práxis é uma questão puramente
escolástica.

Esta noção de práxis envolve o próprio desenvolvimento das lutas de classe


enquanto cenário para o desenvolvimento do conceito de Estado, ao passo que
para o teórico materialista há no Estado um bom estamento para que ocorram as
diversas manifestações de mando e poder. Estas relações de mando e poder têm
íntima relação com as camadas de classe que formam o todo social, haja vista que
a história vem sempre guiada pela hegemonia aplicada das classes dominantes,
impositivas de sua visão de mundo e de desenvolvimento.
Tal constatação já vem sendo ratificada por nomes que se debruçaram sobre
as teorias de Karl Marx e Friedrich Engels, demonstrando que o Estado dito
moderno se erige em um emaranhado de relações mercantis que subsistem através
de uma classe de poder, que atua deliberadamente pautada no princípio da
conveniência de forma pura e no sentido mais literal da expressão (PACHUKANIS,
2017, p. 141).
Conforme ensina Sader (2014, p. 37-38), o Estado teve como forte mola
propulsora a questão de divisão de classes, inclusive como catalisadora dos
9

objetivos do próprio surgimento do capitalismo, que recodificou o Estado e o


apresentou como um funcional centralizador de dois aspectos: serviu como cenário
de adaptação da divisão do trabalho e de centralização da vida social, de forma
rigorosa. Isto serviu como base cristalizadora das relações de produção capitalistas.
Assim, Marx nos mostra, em seus estudos de economia política, que o
Estado está formado por algumas coisas econômicas, e que estas coisas
econômicas escondem em seu âmago relações de poder entre as pessoas, que
seria justamente o local onde se desenvolve a estrutura estatal, voltado assim a
um viés economicista (KOHAN, 2007, p. 31-32). Neste sentido podemos
demonstrar que “uma vez que ele chegou a sua formulação da sociedade
capitalista como uma sociedade de classes, dominada pela burguesia, seguiu- se
necessariamente a sua visão de que o Estado é a expressão política dessa
dominação” (CARNOY apud SIQUEIRA, 2018, p. 91).
Neste ínterim de lutas de classe que ocorrem rotineiramente dentro dos
muros conceituais de “Estado” foram sendo moldadas noções de estruturas que
dão sustento a todo o sistema. Neste teor se segue falando em estrutura e
superestrutura, ou como preferem alguns teóricos do assunto, fala-se em base e
superestrutura. A conceituação de tais noções teóricas perpassou diversos
momentos na historiografia sociológica e filosófica.
Em uma visão mais clássica dos conceitos de base e superestrutura, tem-
se que a base é o cenário onde ocorrem as relações de produção material, ou seja,
o plano da vida onde se dão as diversas interações produtivas, permitindo ao ser
humano ser o que é e desenvolver-se de acordo com este seu sentimento de ser.
Esta base reflete os objetivos do ser humano enquanto ser produtor da própria vida
e da própria realidade social em que está inserido. Trata- se de conceito primário
extraído da própria obra de Marx, conforme nos demonstra Raymond Williams
(ano, p. 214):

A “base” é a existência social real do homem. A “base” são as


relações de produção reais que correspondem a fases do
desenvolvimento das forças produtivas materiais. A “base” é um modo
de produção num estágio particular de seu desenvolvimento.

Portanto, conforme demonstrado, a base se encontra como ponto de partida


de análise da sociedade, nesta visão primária, sendo que todas as demais
imbricações da sociedade, suas relações e os resultados destas, termina por ser
reflexo desta base, como que uma imagem em um espelho. O que ocorre na base
10

influencia diretamente a decorrência nos outros planos, que não envolvem


especificamente estas relações materiais de produção e desenvolvimento da vida.
Nesta sequência, a superestrutura vem representar estes outros planos
sociais que fogem do conceito de base (estrutura), que são, de acordo com a
clássica doutrina, reflexos do plano de base e fazem girar a engrenagem social
repetindo aquilo que se dá na estrutura. Esta noção reflexiva da superestrutura
também foi delineada por Raymond Williams (ano, p. 213), ao passo que nos
mostra que:

No uso comum, depois de Marx, adquiriu o sentido principal de


uma “área” unitária na qual todas as atividades culturais e ideológicas
poderiam ser situadas. [...] A noção mais simples de superestrutura,
que ainda está em uso, é a do reflexo, da imitação ou reprodução, de
modo mais ou menos direto, da realidade da base na superestrutura.

No entanto, não se pode prender à noção um tanto simplista de que base é


tudo aquilo que reflete na produção real, material, do ser humano, objetivando seu
desenvolvimento e sua garantia de vida, e de que superestrutura é tudo aquilo que
simplesmente reflete a base nas demais relações humanas (tais quais a política, a
cultura, etc.).
Fugir da análise crítica de tais conceitos é escapar ao debate necessário
atualmente, ao passo que, se considerarmos a proposta de Marx quando da
elaboração de sua obra, é facilmente perceptível que a situação de mundo e de
Estado era outra. Fervilhava a industrialização e se criavam bases para a
propagação de capital e de uma divisão de classes que, desde então, confirmou
sua tendência de somente se expandir.
Isso nos coloca a ponto de demonstrar que as noções de base e
superestrutura atuais precisam permear um número de questões que se
constituem em um processo dinâmico. Tanto no aspecto da base, a atualidade
demonstrou que as relações de produção encetaram a um caminho abrangente
que não se solidifica e toma sempre a mesma forma de ser, mas que acopla
diversas maneiras de se compreender os modos de produção. No que tange à
superestrutura, esta também se desvia da concepção de ser somente um espelho
que reflete aquilo que a base lhe propicia, mas um imbricado de relações culturais
que dialogam entre si e que não necessariamente seguem o mesmo molde.
11

Williams (ano, p. 214) então nos mostra que “ao falarmos da “base” estamos
falando de um processo e não de um estado”, e que sendo um processo não há
propriedade fixas que cheguem ao ponto variável da superestrutura.
Toda a seara de discussão da base e da superestrutura permite a análise de
alguns elementos do Estado e do próprio Estado. Ora se colocam elementos como
componentes da base, como é o caso das relações materiais que, para Marx, é a
própria definição de estrutura, ou seja, as relações que permitem o desenvolver
humano e a criação de seus meios de subsistência; ora se colocam elementos
como componentes da superestrutura, espelhos refletindo a base, que seria o caso
da religião, da família, da sociedade civil, etc.
Este último elemento, a sociedade civil, é colocado na esfera da
superestrutura e dá azo a discussões a respeito de seu caráter estruturante do
Estado ou de seu caráter estruturado pelo Estado. É nesta discussão, entre feito ou
feitor, que se adentrará no tópico seguinte do presente trabalho.

3 A SOCIEDADE CIVIL COMO BASE EM KARL MARX

A discussão primordial acerca da sociedade civil se parece a algo trivial


entre obter a conclusão acerca da seguinte questão: é a sociedade civil elemento
estrutural ou superestrutural do Estado?
Sinteticamente e resumidamente, a tentação de responder à questão de
forma simplória e ausente de fundamento mais elaborado, indica a uma posição de
responder somente, a depender do viés teórico utilizado pelo pesquisador, que ora
se pode entender como elemento da estrutura, da base, ora como elemento da
superestrutura, se considerarmos os elementos econômicos como mais
acentuados ou os culturais mais acentuados.
No entanto, conforme se exporá, a discussão ultrapassa a mera questão de
resposta única, refletindo em uma posição que não expõe uma vertente como
errônea e outra como certa, apenas revelando matizes diferentes de um mesmo
tema.
Um dos nomes que se debruçaram sobre a tendência em distinguir o
conceito de sociedade civil foi o teórico italiano Norberto Bobbio, segundo o qual a
sociedade civil estava para Marx localizada na estrutura, enquanto para Gramsci a
mesma sociedade civil se encontra na superestrutura. Por conta desses
antagonismos, Bobbio chegou mesmo a ser criticado como se tentasse afastar
12

Gramsci das teorias marxistas, o que deixou claro na Introdução de sua obra “O
conceito de sociedade civil” (1982) que não é verdade, que apenas trouxe uma
diferenciação no modo de entender a visão de Marx e de Gramsci que considera o
local onde se desenvolveram as ideias de ambos os pensadores, seja por conta da
continuação leninista das ideias marxistas, que ocorreram no oriente menos
desenvolvido, seja pelo incremento de Gramsci no cenário do ocidente mais
desenvolvido (BOBBIO, 1982, p. 17).
Esta diferenciação proposta por Bobbio pode ser sintetizada na expressão
de Guido Liguori (2006, p. 6), quando refere que

Semanticamente, o raciocínio de Bobbio é o seguinte: seja


para Marx, seja para Gramsci, a sociedade civil é o “verdadeiro teatro
da história” (a célebre expressão de Marx usada na Ideologia alemã).
Mas, para o primeiro, essa faz parte do momento estrutural, e para o
segundo faz parte do superestrutural: para Marx o “teatro da história” é
a estrutura, a economia; para Gramsci, a superestrutura, a cultura, o
mundo das idéias. [sic]

Partindo da premissa exposta por Marx em seus escritos, de que a


sociedade é o verdadeiro pano de fundo de toda a história, chega-se ao ponto em
que se torna necessário determinar de que grau de estudo filosófico o autor retirou
sua formulação inicial.
Marx, como é amplamente conhecido no meio acadêmico, passou de
discípulo de Hegel a um de seus críticos fundamentais, ora se aproximando da
teoria do mestre, ora se afastando da mesma, elaborando seu próprio viés
estruturante. Nesse aspecto, é da obra de Hegel que Marx retira a base necessária
para traçar o seu entendimento sobre sociedade civil.
Hegel inovou ao tratar da sociedade civil, ao passo que em seus escritos ele
propôs uma alteração de terminologia, passando a se utilizar da expressão alemã
“bürgerliche” ao contrário de “zivilisierte”. Esta última denota realmente a questão
da civilidade, o sentido do civil em sua mais primária concepção, ou seja, como
algo que não bárbaro. A diferença surgiu demonstrando que Hegel quis se ausentar
da ambiguidade existente em outras línguas, como o italiano e o francês, onde o
que se tem é a palavra civil para designar tanto o que não é bárbaro quanto o que
é relativo ao social. No entanto, Hegel inaugurou outra ambiguidade, a de saber se
tal termo se refere a um fenômeno pré-estatal ou estatal (BOBBIO, 1982, p. 28-29).
13

Há mais na filosofia de Hegel que mostra que o autor coloca a sociedade civil
entremeio ao Estado, devidamente constituído, e à família, posto que está acima,
se assim considerarmos em uma escala, da família, como sociedade civil
organizada, e abaixo do Estado, posto que este mesmo Estado está para regular a
sociedade civil, limitando-a, ao passo que para Hegel a sociedade civil,
diferentemente do que entendiam os naturalistas, é um terreno fértil de corrupção,
miséria e dissolução (BOBBIO, 1982, p. 29).
Melhor delineando a questão da família e do Estado, que ladeiam, ou
melhor, comprimem a sociedade civil em seu meio, destaca-se que a família é
entidade que ainda aglutina seres dependentes que os prepara para a vivência em
conjunto, um modelo incompleto de Estado, e este Estado é a transformação do
particular em universal. Neste meio campo de saída da família para a formação do
Estado se encontra a sociedade civil, que revela o indivíduo como particular com
desejos arbitrários (SIQUEIRA, 2018, p. 89).
Portanto, nesta visão hegeliana de sociedade se pode constatar que esta
mesma sociedade civil é o resultado daquela preparação dispensada pela família ao
indivíduo, moldando-o a integrar a sociedade, e que representa o aspecto particular
do indivíduo, com suas opiniões e formulações de mundo, que muitas vezes pode
representar algo sem limites e não tão bonificado. Então surge o Estado para
regular e limitar estes membros da sociedade civil para evitar arbitrariedades e
abusos que possam advir da pessoa enquanto membro da sociedade.
É sobre esse aspecto da filosofia hegeliana que Marx passa a discorrer
sobre a sociedade civil como base, onde também se encontra o desenvolvimento de
relações econômicas, como informa Bobbio (1982), sendo que a fixação desta
sociedade civil como algo que abrange toda a vida social é feita pelo próprio Marx,
diferenciando aqui a leitura deste último com a de Hegel.
Marx (2013) vem tratar incisivamente sua crítica a esse entendimento de
Hegel no momento em que este coloca a sociedade civil como subordinada ao
Estado, às suas leis e determinações, devendo ceder em caso de colisão de
interesses e entendimentos.
É importante tratar da sociedade civil em Marx como algo que está na base,
na estrutura, ao passo que o filósofo a enquadra como base do Estado, como
condição necessária à existência deste. É neste sentido que o autor trabalha
quando relata (MARX, 2013, p. 36) que
14

[...] a divisão do Estado em família e sociedade civil é ideal, isto


é, necessária, pertence à essência do Estado; família e sociedade civil
são partes reais do Estado, existências espirituais reais da vontade;
elas são modos de existência do Estado; família e sociedade civil se
fazem, a si mesmas, Estado. Elas são a força motriz. [...] quer dizer, o
Estado político não pode ser sem a base natural da família e a base
artificial da sociedade civil; elas são, para ele, conditio sine qua non.

Deste simples passagem de sua Crítica da filosofia do direito de Hegel se


extrai a essência da diferença entre o mestre e o pupilo. Nota-se que para Marx a
sociedade civil, ao lado da família, formam a base estruturante do Estado, sendo que
este depende intrinsicamente dos dois elementos citados.
Ocorre que esta colocação da sociedade civil como base é resultado dos
estudos e análises de Marx enquanto estudioso principalmente da economia,
quando desenvolve suas teses em O capital, sendo que o filósofo coloca a
sociedade civil também como cenário da questão do desenvolvimento econômico
e das lutas de sobrevivência, dos locais de relações materiais, coloca-a como locus
do impulso ao próprio movimentar e desenvolver do Estado enquanto entidade
superior. Assim, “partindo da crítica de Hegel, Marx assinala que não é o Estado
que põe a sociedade civil, mas antes é a sociedade civil que põe o próprio Estado”
(SIQUEIRA, 2018, p. 90).
Neste ponto é salutar a demonstração, também, do modo que Marx
considera que a sociedade civil é colocada como base, mas que esta base referida
está enclausurada em um fosso de onde deve se transformar em Estado para
adquirir inclusive, legitimidade perante outras comunidades internacionais. Veja-se
que a sociedade civil se transforma em nação e se transforma em Estado muito
embora aparentemente transcenda estes dois institutos, por se tratar justamente
da base econômica que funda um determinado grupo de indivíduos. Assim, para
Marx (apud Bobbio, 1982, p. 31-32)

A sociedade civil compreende todo o conjunto das relações


materiais entre os indivíduos, no interior de um determinado grau de
desenvolvimento das forças produtivas. Ela compreende todo o
conjunto da vida comercial e industrial de um grau de desenvolvimento
e, portanto, transcende o Estado e a nação, embora, por outro lado,
tenha novamente de se afirmar em relação ao exterior como
nacionalidade e de se organizar em relação ao interior como Estado.
15

Este campo de interpretação de Marx acerca da sociedade civil também


ecoa nos trabalhos de Friedrich Engels, autor contemporâneo de Marx e que com
este teve íntima relação acadêmica, tendo escrito juntos várias obras. Engels segue
na esteira de Marx e demonstra que “o Estado, a ordem política, é o elemento
subordinado, enquanto a sociedade civil, o reino das relações econômicas, é o
elemento decisivo” (ENGELS apud Bobbio, 1982, p. 30-31).
Este reflexo da teoria marxiana para outros autores, ainda que
contemporâneos a ele, como Engels, mostra que houve um crescente no
entendimento de que a estrutura material, onde se insere a sociedade civil, vem
definir a superestrutura, ou seja, o aspecto onde podemos encontrar a cultura, a
religião, e as demais formas de relacionamento humano onde não haja
especificamente uma relação econômica, mas que invariavelmente se mostra
refletida nestas relações outras. Conforme demonstra Guido Liguori (2006, p. 8),
“para Marx a estrutura determina a superestrutura”.
Este aspecto de entendimento da sociedade civil como base da estrutura
social atrelado umbilicalmente às condições materiais de desenvolvimento é
fortemente defendido por Marx, sendo que o autor faz entender que não se pode
analisar as demais formas de interação cultural humana sem que se conclua que
a base de tudo está na condição material (CANOY apud Siqueira, 2018), local
onde está a sociedade civil, como já visto.
Ainda de acordo com Siqueira (2018, p. 90-91)

A sociedade civil é, pois, o conjunto de toda vida econômica e


social pré-estatal a partir da qual se eleva uma superestrutura jurídica
e política, responsável por estabelecer a dimensão do Estado. Isto é: a
sociedade civil é a esfera que está situada no lócus da estrutura
econômica e, a partir da qual, se constrói ou se desenvolve a
superestrutura.

Constata-se, portanto, que este teor de sociedade civil como base, como
entidade que faz refletir na superestrutura sua forma de condução perante a
historiografia humana, justamente pelo aspecto material e dialético de lutas de
classes econômicas antagônicas entre si, prevaleceu por um tempo considerável
entre os estudiosos marxianos e marxistas, até a entrada no cenário acadêmico
das discussões produzidas a partir da obra de Antonio Gramsci, que promoveu
uma virada na compreensão até então disseminada e apresentou uma nova forma
de se encarar a sociedade civil frente ao Estado.
16

4 A SOCIEDADE CIVIL COMO SUPERESTRUTURA EM ANTONIO GRAMSCI

Em continuidade ao desenvolvimento da visão marxiana da sociedade civil,


desponta no cenário acadêmico o italiano Antonio Gramsci, que apresenta aos
leitores uma nova forma de compreensão do fenômeno da sociedade civil e do
Estado.
Antes de adentrar no objetivo do presente tópico, importa citar,
superficialmente que seja, somente pelo fito de constatação, que há certa
discussão acadêmica acerca do fato ainda não esclarecido de se a teoria
desenvolvida posteriormente por Gramsci tem sua base sólida nas obras de Marx
e Engels, ou se encontra respaldo na própria filosofia hegeliana. Esta questão é
trazida por Bobbio (1982), que insiste na tentativa de demonstrar que Gramsci
extraiu sua conceituação de sociedade não da obra de Marx, mas da própria obra
de Hegel, ao passo que o autor italiano cita Hegel em seus Cadernos, haja vista
que “Gramsci fala da sociedade civil “como é entendida por Hegel e no sentido em
que é frequentemente empregada nestas notas”” (BOBBIO, 1982, p. 34).
A diferenciação, segundo Bobbio (1982), consta na situação de que Marx trata
especificamente da base como local de luta econômica, e Gramsci traz a sua
interpretação mais atrelada a Hegel, fugindo um tanto do materialismo e passando
a uma questão ideológica ao elaborar suas anotações. No entanto, tal questão é
complexa e merece um maior aprofundamento, o que não se poderia fazer no
momento.
Como visto no tópico anterior, Marx coloca a sociedade civil como elemento
da estrutura, da base, a partir do qual se levantam os estratos superestruturais,
como reflexos das relações dialéticas materiais que ocorrem na base, não
entendendo, portanto, o autor que a sociedade civil estaria posta pelo Estado, ou
que estivesse ao lado deste, como também elemento superestrutural. Esta
concepção se altera com Gramsci.
Em Gramsci e Marx, na teoria de ambos os autores, temos uma alteração
do local onde se desenvolve a história. Não mais esse desenvolvimento coloca
como plano central o Estado, mas a sociedade civil. Ocorre que, mesmo
concordando nesse aspecto, em retirar do Estado o protagonismo do
desenvolvimento histórico, Marx e Gramsci vêm a discordar no que tange ao
posicionamento da sociedade civil, que para eles é o verdadeiro local de
17

desenvolvimento. Marx coloca a sociedade civil como base, como estrutura que
servirá para as demais relações se refletirem, por entender justamente que é na
sociedade civil que se dão as relações materiais de produção. Gramsci, ao
contrário, coloca a sociedade civil como superestrutura, entendendo que ela está
atrelada a questões culturais e de costumes.
Serve de esteio a seguinte passagem dos Cadernos do cárcere (GRAMSCI
apud Bobbio, 1982, p. 32-33)
Podem ser fixados, por enquanto, dois grandes planos
superestruturais: o que pode ser chamado de ‘sociedade civil’, ou seja,
o conjunto de organismos habitualmente ditos privados, e o da
sociedade política ou Estado. E eles correspondem à função de
hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade; e à do
domínio direto ou de comando, que se expressa no Estado e no
governo jurídico.

Assim, de acordo com a teoria apresentada por Gramsci, havemos de


considerar que a sociedade civil já não compreende o conjunto de relações
materiais, mas se trata de um enfrentamento das relações ideológico-culturais,
espirituais e intelectuais em contraponto aos conjuntos comerciais e industriais
(BOBBIO, 1982, p. 33) apresentados por Marx como estruturantes.
É justamente este aspecto que gera uma inversão teórica da visão de Marx
na obra de Gramsci. O ideólogo do materialismo histórico demonstrou entender a
sociedade civil em um aspecto de desenvolvimento material, ao passo que Gramsci
a coloca no patamar das lutas ideológicas, não das lutas materiais, sendo que então
esta superestrutura denominada sociedade civil viria a delinear os contornos das
relações de produção, de acordo com o caminhar da hegemonia dos grupos
dominantes, e não o contrário, como aponta Marx.
Este sentido de inversão das questões fundantes de ambas as teorias vem
explicitado nas palavras de Bobbio (1982, p. 41), para o qual

O lugar verdadeiramente singular da sociedade civil no sistema


conceitual gramsciano opera, portanto, não apenas uma, mas duas
inversões com relação ao modo escolástico tradicional de entender o
pensamento de Marx e Engels: a primeira consiste no privilégio
concedido à superestrutura em relação à estrutura; a segunda, no
privilégio atribuído, no âmbito da superestrutura, ao momento
ideológico com relação ao institucional.
18

Portanto, está em cena na interpretação da sociedade civil gramsciana um


papel importante à ideologia. Como no excerto acima transcrito, em Gramsci há a
superposição da superestrutura sobre a estrutura, demonstrando que a sociedade
civil não faz parte da base, mas sim o fato de que ela molda esta base através de
sua atuação enquanto coercitivo da classe dominante. Também se depreende que
há uma valorização do elemento da ideologia enquanto vetor determinante da
dominação de classe, ao passo que é através desta ideologia que se dará a
perpetuação dos detentores do poder, seja através de artifícios como a religião ou
a família.
Ao retratar a sociedade civil como elemento superestrutural, Gramsci
inaugura a questão de tratar o Estado como sendo algo resultante da junção da
sociedade civil com a sociedade política, colocando esta sociedade política como
elemento de coerção a fim de garantir a hegemonia da classe dominante através da
repressão e da violência, e a sociedade civil como garantidora da hegemonia
ideológica desta mesma classe (SIQUEIRA, 2018, p. 92-93). Nota-se que de um
lado se coloca o político como garantidor de uma hegemonia através da força, e de
outro a hegemonia através da ideologia, demonstrando que em Gramsci há a
distinção entre sociedade política como Estado-coerção e sociedade civil como
Estado ético (VIOLIN, 2008, p. 354).
De acordo com Alvaro Bianchi (2007, p. 39)

De modo resumido, mas nem por isso menos significativo,


Gramsci apresenta sua concepção de maneira já clássica, “Estado =
sociedade política + sociedade civil, ou seja, hegemonia encouraçada
de coerção”, ou como dirá mais adiante, no mesmo Quaderno, “Estado
(no sentido integral: ditadura + hegemonia)”. É esta definição que
Christine Buci-Gluksmann sintetiza com a fórmula de “Estado
ampliado”.

Portanto, aqui está um centro da discussão acerca do tema na teoria


gramsciana. A busca dos indivíduos componentes da classe dominante pela
manutenção e perpetuação no poder sobre os demais é algo que se vale, em
Gramsci, dos dois aspectos em que este mesmo divide o Estado. De um lado, as
camadas sociais integrantes do poder buscam a sociedade política (o aparelho de
Estado) como forma de coerção dos demais pela força de seus instrumentos. De
outro lado, atentam para a manutenção do poder através da perpetuação de sua
hegemonia na sociedade civil (aparatos ideológicos de dominação), revelando um
19

duplo sentido de garantia da hegemonia da classe dominante (SIQUEIRA, 2018,


p. 93).
Neste sentido também no informa Guido Liguori (2006, p. 9) quando retrata
que “a história da sociedade civil para Gramsci é a história do domínio de alguns
grupos sociais sobre os outros, é a trama da hegemonia, da subordinação, da
corrupção e da exclusão do poder [...]”.
Desta maneira se pode concluir, então, sem esgotar a possibilidade teórica
sobre o tema, que Gramsci nos traz uma forma de Estado integrado em dois eixos,
pela sociedade política e pela sociedade civil, e que afasta estes elementos da
estrutura, colocando-os na hipótese da superestrutura, enquanto que moldam o
cenário de dominação de classe de cima para baixo, e não mais como em Marx,
de baixo para cima.

5 CONCLUSÃO

O cenário acadêmico atual apresenta, conforme tratado na presente


exposição, uma dicotomia entre entender a sociedade civil na vertente marxiana
enquanto elemento estrutural do Estado e entre a visão marxista de entendê-la
como elemento da superestrutura.
Em um primeiro momento se coloca a sociedade civil como cenário
corriqueiro da construção material do desenvolvimento humano, e, como tal, sendo
palco das diversas cadeias de produção da condição material humana. Neste
aspecto a sociedade civil entra como elemento de base que serve de espelho para
as demais relações sociais, estas sim no estrato da superestrutura, como é o caso
da religião, da política, da ideologia, etc. Esta constatação se extrai da leitura da
obra do próprio Marx, seguida por Engels, e permite a elaboração de um plano
onde a sociedade civil é local da história humana enquanto batalha dialética das
forças produtivas.
Com o incremento da teoria marxiana, principalmente através da obra de
Gramsci, a sociedade civil é colocada como superestrutura, afastando-se da base
do Estado, ao passo que para esta vertente a sociedade civil não é palco direto
das relações produtivas e de lutas de classe materiais, mas sim de local de embate
ideológico, de dominação de determinada classe sobre as demais através da
hegemonia de pensamento. A sociedade civil passa então a ter cariz de
ordenamento sobre o qual a base econômica se desenvolverá. Ela será o espelho
20

estrutural que refletirá na base da sociedade, determinando o correr das lutas


materialistas.
Tais visões aqui tratadas foram tomadas como introito e apresentação das
ideias de dois autores que desenvolveram suas teses calcadas no materialismo
histórico, e que as desenvolveram a partir das filosofias de Hegel.
Contudo, conforme se demonstrou, a base teórica de um e de outro partiu
de diferentes visões dos elementos hegelianos de compreensão do Estado e da
sociedade civil. Marx analisa a conjuntura do Estado como ente refletido da família
e da sociedade civil, portanto este mesmo Estado não está na estrutura, mas o que
de fato se encontra no momento estrutural é a família, como forma incompleta de
Estado, que prepara o ser para integrar a sociedade civil, e que esta sociedade civil
se desenvolve para seu ápice enquanto Estado, ente limitador das formas
reacionárias que a sociedade civil pode tomar, se considerarmos que esta
sociedade civil é representante da autonomia do indivíduo para desenvolver seu
particular.
Gramsci, pelo contrário, encampa a teoria de que a sociedade civil é o
momento em que a hegemonia se faz mais presente, superestrutura onde ocorrem
os embates ideológicos da classe dominante, que se utiliza de diversos artifícios
para se manter hegemônica, representados, por exemplo, pela influência
ideológica da religião. Ademais, Gramsci retrata que a sociedade civil está
formando o Estado ao lado da sociedade política, que para ele é a força do Estado,
seu aparato imediato de coerção pela força que detêm enquanto entidade superior
e hegemônica.
Contudo, a visão ora apresentada tem fundamento na visão primária de
ambos os autores, não escapando o fato de que ainda remanescem discussões
das mais diversas sobre o que cada um dos autores estudados quis fazer entender
por sociedade civil e em que momento esta sociedade civil se encontra na formação
do Estado.
A leitura que se fez pretendeu dar substratos iniciais de entendimento, posto
que as duas vertentes (marxiana e marxista) do entendimento da sociedade civil
merecem maior atenção, diante da dificuldade de conceituação teórica do tema, ao
passo que há posições das mais diversas apresentando nuances que merecem
especial atenção, por apresentarem questões que indicam outros caminhos para
se chegar a uma conclusão plausível de em que estrato do conhecimento
articulada por Marx e Gramsci está acostada a sociedade civil.
21

Em que pese tal dimensão de entendimentos, é certo que Marx e Gramsci


discordam no ponto em que situam a sociedade civil, ora na estrutura ora na
superestrutura, e que este tema é controvertido mas também é pacífica a questão
da divisão teórica dos dois autores neste sentido.
Expor esta diferença tem sido objeto de diversos estudos e divagações, e
que por hora não revela uma voz única que represente a unificação do marco
teórico dos autores em relação à sociedade civil.
Ainda, é importante concluir que o estudo da sociedade civil vem influenciar
diretamente a questão do desenvolvimento da democracia e o estudo desta, haja
vista que se colocada em um momento de base, a sociedade civil se revela como
mero pano de fundo de desenvolvimento das relações de produção; mas se
colocada em um momento superestrutural, pode ser palco de disputas
democráticas de alternação de poder entre uma camada hegemônica e outra,
invariavelmente de tempos em tempos, ao passo que se entendida como
superestrutura ela permanece como cenário do embate da luta dialética de ideias e
ideologias, permitindo um estudo da democracia através deste viés.
Sem embargo, o trabalho que ora se apresenta, repisa-se, não pretendeu
de forma alguma esgotar o tema e nem adentrar em detalhes que exigiriam maior
digressão e que, portanto, merecem outros escritos mais detalhados, o que não
caberia em apenas uma exposição.

REFERÊNCIAS

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09 mar 2019.

BOBBIO, Norberto. O conceito de sociedade civil. – Rio de Janeiro:


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22

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http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/novosrumos/article/view/2093
Acesso em 09 mar 2019.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. – São Paulo:


Hucitec, 1987.

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PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. – 1.


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Paulo: Boitempo, 2014.

SIQUEIRA, Mirele Hashimoto. O controle social em duas perspectivas:


de Hobbes a Locke, de Marx a Gramsci. – Ciências Sociais em Perspectiva, v.
17,
p. 81-101, 2018. Disponível em http://e-
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Acesso em 08 mar 2019.

VIOLIN, Tarso Cabral. A sociedade civil e o Estado ampliado, por


Antonio Gramsci. – Raízes Jurídicas, v. 4, n. 1, p. 353-361, 2008. Disponível
em http://ojs.up.com.br/index.php/raizesjuridicas/article/view/155 Acesso em 08
mar 2019.

WILLIANS, Raymond. Base e superestrutura na teoria cultural


marxista. – Revista USP, n. 65, p. 210-224, 2005. Disponível em
http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13448 Acesso em 09 mar 2019.
23

A TECNOLOGIA DOS DADOS PESSOAIS: O instrumento tecnológico da


informação na efetivação do direito social

Dioclécio Salomão Carneiro1

RESUMO: A tecnologia no uso da rede mundial de computadores, assim como os aplicativos


instalados nos celulares constituem uma era de dados que somados e minerados transformam-se
em informação cujos vários segmentos da sociedade se utilizam. Essa é a realidade do uso da
internet não só no Brasil, mas em todo o mundo. No entanto há que se ressaltar a importância dos
estudos aprofundados sobre os limites desses dados que somados produzem informações, no
tocante a não exposição irresponsável ou mesmo o ato de denegrir condições pessoais dos
indivíduos, haja visto esse cuidado estar cada vez mais percebido e identificado como de
responsabilidade total do detentor desses dados e informações armazenadas, nos servidores como
assim são conhecidos. Percebe-se, portanto, que é possível utilizar-se dos dados pessoais dos
cidadãos com intuito de buscar a melhor e eficaz atuação na efetivação de direitos sociais pelo
poder público, como exemplo a adequação do gasto público em condições de maior participação
da sociedade em busca da melhor prática democrática, utilizando-se de aplicativos tecnológicos
conectado a web.

Palavras-chave: Direito Constitucional. Democracia. Tecnologia. Justiça.

ABSTRACT: Technology in the use of the worldwide computer network, as well as the applications
installed on mobile phones, constitute an age of data that summed and mined into information whose
various segments of society are used. This is the reality of internet use not only in Brazil, but around
the world. However, it is important to emphasize the importance of in-depth studies on the limits of
these data, which together produce information regarding irresponsible non-exposure or even the
act of denigrating individuals' personal conditions, as this care has been increasingly perceived and
identified as It is the sole responsibility of the holder of such data and information stored on the
servers as known. Therefore, it is noticed that it is possible to use the personal data of citizens in
order to seek the best and effective performance in the realization of social rights by the public
power, as an example the adequacy of public spending in conditions of greater participation of
society in society, pursuit of best democratic practice using web-connected technology applications.

Keywords: Constitutional right. Democracy. Technology. Justice

1 INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira assim como todo o mundo está conectado de forma


intensa e marcada pela conexão digital junto a rede mundial de computadores, de
forma com que os dados que são alimentados pelos usuários são constantemente
gerenciados, armazenados e processados numa velocidade e volume de
proporções absurdamente abundantes, cuja noção estratosférica desses dados é
humanamente impossível de se imaginar. Todavia através de computadores cada
vez velozes, somados a capacidade de transformação de dados em informações
cada vez mais precisas, seja através de softwares ou da própria inteligência

1
Mestrando em Direito Constitucional – Direitos Fundamentais e Democracia, Bacharel em Direito e Ciências Contábeis.
24

artificial, tem-se então a passos largos a evolução digital num conceito muito amplo
de tecnologia de massa, disponível seja através de celulares, notebooks,
aplicativos (muitos deles gratuitos) e redes sociais. Na lógica de que nada é
produzido ou desenvolvido sem que haja um fim comercial, os dados fornecidos
pelos usuários dos mais diversos aplicativos e sites de internet, movimentam em si
milhões de perfis de usuários cujos dão como moeda de troca em prol do “bem de
consumo” seus dados pessoais valiosos ao comércio de massa digital, mas
também para grandes marcas, pequenos negócios, e tudo aquilo que for possível
barganhar no mundo virtual, que se espera concretizar, nem tanto assim, haja visto
o uso cada vez maior de moedas digitais nesse espaço da web.
Pensando nisso, a abordagem do tema tem como escopo identificar a
tecnologia da internet e aplicativos de celular por exemplo, como instrumentos de
ampliação da democracia participativa junto aos grupos sociais. Haja visto a
massificação dos celulares por exemplo, dos quais possuem uma capacidade
incrível de conexão entre indivíduos, cujos em sua grande maioria utilizam apenas
para o espaço do lazer, sendo desperdiçado esse poderoso equipamento
eletrônico para uso em consultas públicas, espaço de opiniões sérias, críticas
construtivas junto ao espaço público entre Estado e Cidadão. Além é claro da
poderosa ferramenta a ser melhor construída no intuito do próprio cidadão ter em
suas mãos o poder de fiscalização e transparência das práticas públicas,
valorizando e auxiliando nas decisões importantes da aplicação do dinheiro
público.

2 A TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO E OS DADOS PESSOAIS. DADOS


COMPARTILHADOS NA REDE MUNDIAL DE COMPUTADORES. OS DADOS
DISPONIBILIZADOS PARA FORMAÇÃO DE CONVICÇÃO

Para BOFF; FORTES, 2014 a evolução tecnológica dos recursos vinculados


à rede mundial de computadores, a World Wide Web, ou internet como ficou
popularizada, ficou conveniente a reflexão sobre os insumos contributivos à cultura,
ao acesso e à democratização da informação, da valorização da diversidade e do
processo de inclusão digital. Contudo, também é indispensável promover reflexões
voltadas aos problemas jurídicos advindos da evolução tecnológica, principalmente
os decorrentes da massificação do uso da internet.
Desta forma nenhum indivíduo que se interessa pela Informática Pública,
quer como cidadão ou profissional da área, deve perder esta oportunidade para
25

refletir, debater e contribuir para que as reformas, e em particular a Reforma do


Aparelho do Estado, sejam efetuadas de forma democrática, correta, eficaz, e
socialmente justa. Entretanto, SAUR, 1997, elenca como sendo uma oportunidade
excepcional, excepcionais são também as responsabilidades correlatas daqueles
que devem liderar estes processos de renovação e mudanças. Nesse sentido, é
importante chamar a atenção especial dos profissionais de Processamento de
Dados, de Computação, de Documentação, de Biblioteconomia, de Gestão da
Informação, de Informática ou de qualquer outro nome de quem trabalha numa das
atividades que compõem o que hoje se chama de Tecnologia da Informação, para
o papel de suma importância que podem e devem desempenhar nesse processo.
Diante dessa revolução tecnológica, o termo Big Data, refere-se então ao
tratamento em larga escala de informações coletadas, para se atingir determinados
objetivos. Esta grande quantidade e variabilidade de dados exige utilização de
métodos de mineração de dados, que relacionem dados comerciais e
governamentais. É o que diz HIRATA; DE LIMA, 2018, no que tange aos
relacionamentos de dados cujos alimentam hoje desde mecanismos de prevenção
à evasão fiscal até sugestões de produtos a preços e condições competitivas, que
podem ser adquiridos pelo comércio via web. É inegável que exemplos como estes
trazem benefícios à sociedade, no entanto, se não tiver um limite para tanto, pode
representar alguns malefícios, como a divulgação pública pelo Ministério da Saúde,
por meio do DataSUS, de dados de saúde, tais como internações hospitalares,
dados de mortalidade, entre outros e, também, dados processuais disponibilizados
via web por meio dos tribunais de justiça, federais e estaduais.
Conforme destaca LEME, 2019, a transferência da responsabilidade para o
titular dos dados traz consigo a terceira geração de proteção de dados, na qual
passa a ter papel central o consentimento do indivíduo para coleta e
processamento de seus dados, uma vez que diversos serviços como bancários e
afins coletam dados sensíveis de seus clientes, sem informar precisamente de qual
forma se daria seu processamento e utilização.
Nessa linha de ideias, constata-se uma versão meramente funcional ou
ergonômica da relação entre seres humanos e computadores. Para SZINVELSKI;
ARCENO; FRANCISCO, 2019, da mesma forma que as pessoas se apaixonam
por uma casa, um carro ou uma moto, também se apaixonam por um computador,
um programa ou uma linguagem de programação. A informática não intervém só
na “ecologia cognitiva”, mas também nos “processos de subjetivação individuais e
26

coletivos”. Essa dimensão implica numa nova técnica de produção e distribuição


da informação e, portanto, apresenta-se como uma neoforma de poder.
Diversas são as vantagens que podem ser obtidas pelos governos e pela
sociedade mediante a disponibilização e uso de dados em formato aberto. Para
ALBANO; REINHARD, 2015, a maior interação entre governos e sociedade facilita
a melhor e maior avaliação de políticas públicas. Entretanto, até mesmo pela
precocidade do tema – especialmente no contexto brasileiro – gestores públicos,
provavelmente, enfrentam desafios na implementação de projetos de dados
governamentais abertos.
Há, contudo, que se ter muito cuidado para a finalidade, a utilidade, e
sobretudo a efetividade do ferramental a adotar, bem como gerir com extremo
cuidado a sua adoção e o seu impacto, o qual deve ser preventivamente tratado,
antes de tudo, um trabalho de sensibilização é fator importante de sucesso! Em
que consiste para FREITAS; JANISSEK-MUNIZ, 2006, a boa gestão da informação
através de ferramental apropriado é fator crítico para a boa condução dos negócios
de uma organização, sendo um dos principais vetores de expansão dos negócios.
Sua importância aumenta de acordo com a complexidade do negócio na medida
em que quanto mais atores e processos estiverem envolvidos, mais crítica é a
manutenção das relações e da integração dos dados.

3 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A TECNOLOGIA. CAPACIDADE DO ENTE


PÚBLICO EM REUNIR DADOS PESSOAIS DOS CIDADÃOS E TRANSFORMAR
EM INFORMAÇÃO. APLICATIVOS DE CELULAR PARA A PRÁTICA DA
CIDADANIA

O processo de apreensão do discurso tecnológico não é diferente do modo


de produção da comunicação ou mesmo da organização popular, visto que
diretamente relacionado à capacidade de acesso, produção, controle e gestão dos
meios, programas recursos e serviços que se podem conceber a partir da
tecnologia digital. Dessa forma, a pergunta “para que incluir a tecnologia digital na
sociedade?” O pensamento de CABRAL FILHO, 2006, responde de modo mais
claro: mais do que correr atrás do tempo perdido, imagem relacionada aos novos
incluídos que têm mais chances de ser assimilados pelo mercado de trabalho, há
uma vinculação direta com a ideia de afirmação da cidadania, que precisa ser
buscada na relação com o meio.
27

Muitos autores destacam que a Internet, sem dúvida, tem se tornado uma
grande aliada na promoção e proteção dos direitos fundamentais, cuja violação
exige rápidas respostas. Por isso, LOPES, 2005, retrata o trabalho das
organizações defensoras de direitos fundamentais como sendo muitas vezes
prejudicado pela lentidão no conhecimento das violações.
Como destaca BENHOSSI; FACHIN, 2013, o mundo está a todo momento
em busca de novas descobertas, de soluções para problemas complexos e de
conforto para atender cada vez mais os anseios consumeristas. A questão se
resume basicamente no fato de que as sociedades estarão sempre em constante
evolução. É inútil pensar que as atuais e futuras gerações ficarão acomodadas
com o que herdarem do passado. É quase que uma necessidade básica e uma
consequência lógica o ser humano querer sempre fazer novas descobertas,
criando, ampliando, modificando e melhorando o que já existe.
A profunda transformação nas relações entre a administração pública e seus
usuários deve-se, em grande medida, à crise do atendimento ao cidadão. Usuários
de serviços públicos se mostravam, recorrentemente, insatisfeitos com a qualidade
do atendimento. Além disso, os cidadãos exigem, cada vez mais, a prestação de
serviços de qualidade que consigam dar resposta às suas demandas crescentes.
Para tanto COUTINHO, 2000, apresenta que para esses motivos, a prestação de
serviços tornou-se um fator bastante crítico para a administração pública no Brasil
e no mundo. As razões para a insatisfação com os serviços prestados passam,
entre outros problemas, pela ineficiência e ineficácia do atendimento. Por sua vez,
a falta de conhecimento e a resistência à adoção dos instrumentos necessários
para a melhoria do atendimento dificultam qualquer mudança significativa nessa
área.
Acrescenta ainda BATISTA, 2012, a exemplo do que acima foi retratado, o
Instituto Nacional do Câncer (Inca) trilhou o mesmo caminho ao implementar um
modelo de sistema de gestão com quatro passos, sendo criação, estruturação,
compartilhamento e aplicação do conhecimento, baseado no trabalho em que o
conhecimento é um processo que extrai, transforma e dissemina informação a ser
compartilhada e reutilizada em toda a organização. Além disso, o modelo adotado
pelo Instituto conta com quatro maiores objetivos do sistema de gestão, sendo o
de criar a substituição do conhecimento, aumentar o acesso ao conhecimento,
melhorar o ambiente do conhecimento e gerenciar o conhecimento como um ativo
intangível.
28

A interação entre as novas tecnologias, a sociedade e o Poder Público


emoldura um momento único do qual emergem, simultaneamente, desafios
enormes e vantagens sociais incríveis. Conforme descreve ROVER, 2009, o
aparecimento do Governo Eletrônico é uma decorrência das velhas e novas
demandas da sociedade. Administração Pública sempre foi vista como ineficiente
e um espaço de privilégios para alguns. Em termos de gerência significa dizer que
está repleta de procedimentos arcaicos e formalistas, sem qualquer vinculação
com a racionalização e necessária segurança dos serviços prestados. Essa
situação dantesca está por mudar com a implantação paulatina do chamado
governo eletrônico. Naturalmente, esta modernização dos poderes do Estado
abrange questões complexas, tanto de instrumentalização tecnológica,
capacitação dos seus agentes, bem como a mudança de cultura da sociedade
como um todo. Discutir sobre as potencialidades e os limites das tecnologias de
informação na radicalização da democracia, com o avanço do chamado governo
eletrônico é fator preponderante nas discussões de amplitude do processo
democrático.
Da mesma forma que a evolução tecnológica permitiu que a sociedade
identificasse em redes e dispositivos novas possibilidades para suas necessidades
de interação e execução de tarefas, a administração pública também tem buscado
nas tecnologias de informação e comunicação soluções para o relacionamento
entre governos e cidadãos e para a melhoria da atuação do Estado. LIMA, 2017,
relata que as tecnologias digitais trouxeram possibilidades para mudar a forma
como o setor público funciona e melhorara a performance institucional por meio
das tecnologias existentes, capazes de aumentar a transparência, a participação,
a colaboração e a capacidade de resposta. Nos moldes do que ocorre no setor
privado, é concebível que o Estado se reinvente e produza uma maior eficiência e
eficácia em seus processos de serviço público.
Nas palavras de JANUÁRIO, 2019, a crescente tendência do aparato público
converge para o meio eletrônico e digital, evidenciando o surgimento de novas
possibilidades para a cidadania e para a democracia, impulsionando a participação
da sociedade civil nos processos decisórios das gestões públicas e com isso, a
evolução de conceitos e teorias sobre o tema. O estudo acerca do governo
eletrônico congrega uma série de outros termos e conceitos quanto à cidadania,
democracia, participação social dos cidadãos, inclusão digital, direitos envolvidos,
entre outras questões, e tudo isso está em contínuo desenvolvimento conceitual e
social.
29

4 A MASSIFICAÇÃO DE CELULARES E APLICATIVOS PARA USO PÚBLICO


DE ASSISTÊNCIA E PROTEÇÃO AO CIDADÃO. MAPEAMENTO DAS
DEMANDAS SOCIAIS VIA TECNOLOGIA DE DADOS PESSOAIS. GESTÃO
REVERSA DO DINHEIRO PÚBLICO VIA DADOS SOCIAIS APONTADOS

A revolução tecnológica e a internet, com sua estrutura aberta,


facilitaram e disseminaram as possibilidades de formação de bancos de dados e
de fluxos de informações. Assim sendo, SILVA, 2018, reforça que todo indivíduo,
em suas mais diversas formas de atuação social seja como contribuinte, paciente,
empregado, beneficiário de programas sociais ou simples consumidor, tem seus
dados pessoais coletados e processados constantemente.
Ainda sobre a questão da importância dos celulares smartphones,
cujos são capazes de agregar diversas tecnologias em uma convergência de
mídias, tornou a internet e tudo o que ela traz e significa acessível às populações,
sua adesão em larga escala, nos mais diversos países, independentemente da
cultura, fazem dele o objeto central da pós-modernidade. Ressalta ainda
GODINHO, 2016, de que as novas tecnologias criam formas de agir e se relacionar,
e os celulares criaram uma série de novos fenômenos ainda em análise pela
academia. Apenas para citar temos o trabalhador onipresente, que por estar
sempre conectado altera a relação tempo/espaço podendo estar presente em
locais há quilômetros de distância e em qualquer tempo. Temos também a
comunicação paralela e simultânea, onde o usuário pode estar em contato com
diversas pessoas diferentes por meio das diferentes ferramentas, gerando espaços
alternativos possibilitando assim uma espécie de “contato perpétuo”, entre outros
fenômenos.
Para RODRIGUES, 2012, o mapa estatístico resultante da coleta de
dados eletrônicos proporciona apresentação de um panorama completo do recorte
proposto, seja ao detalhar os conjuntos de dados passíveis de recuperação, sobre
recursos financeiros destinados à área da saúde por exemplo. A viabilização do
acesso externo a esses conjuntos de dados, ou seja, ir além do uso de mecanismos
internos de armazenamento e recuperação de dados dos setores estatais, significa
que os dados precisam seguir os princípios de dado aberto, o que não vem
ocorrendo. Somente a partir do acesso a dados abertos, via Tecnologias de
Informação e Comunicação, é possível construir gráficos e visualizações de
informações sobre recursos financeiros utilizados em saúde pública, como exemplo
30

citado, para o acompanhamento da sociedade e o cruzamento dos dados com


outras fontes de informação.
Cada vez mais as políticas públicas contam com uma série de
tecnologias informacionais capazes de auxiliar o modo de operá-las e de distribuí-
las. O geoprocessamento, que faz parte dessas tecnologias, vem sendo utilizado
como importante instrumento de otimização para o alcance das ações dos
governos em todos os seus âmbitos: federal, estadual e municipal. Diante dessa
afirmação, MÁXIMO, 2004, orienta, como sendo outro exemplo em destaque, para
um conjunto de técnicas que conta com a máxima da localização espacial e do
processamento de dados. Diante disso, a redução do problema da criminalidade
é possível se houver uma formulação e implementação de políticas que permitam
prevenir e reduzir o crime e a violência. Para tanto, é de fundamental importância
o desenvolvimento de pesquisas que permitam avançar na compreensão das
causas desses fenômenos, assim como a geração de bases de dados que
permitam monitorar e melhorar o nosso entendimento das tendências espaciais e
temporais da criminalidade.
Atualmente, a maioria das sociedades encontra-se permeada de
artefatos tecnológicos em seu cotidiano que permitem uma intensa troca de
informações, gerando novas práticas em diferentes campos. Contudo, DE
ALMEIDA; BAUTISTA; ADDOR, 2017, falam do campo do sistema político, cujo
percebe-se um esforço cada vez maior e diversificado para o uso dessas novas
tecnologias na busca pela alteração do tradicional, fechado e apático sistema
político, tentando impulsionar o interesse participativo da população. Para se fazer
uma apresentação sistematizada das propostas nesse campo, é passivem de se
apresentar três conceitos presentes nos autores que pesquisam esse diálogo entre
sistema democrático e tecnologia da informação, quais sejam: governança
eletrônica (e-governança), democracia eletrônica (e-democracia) e governo
eletrônico (e-gov).
A identidade contemporânea, entre usuários de tecnologias
digitais de comunicação, também é composta pelos bits que são deixados como
rastros explícitos e implícitos de afirmação de identidade nos sites de redes sociais.
Para isso, SILVA, 2012, percebe, de certo modo, que o Compartilhamento é algo
ao qual o indivíduo se subscreve – conscientemente ou não – desde o primeiro
momento em que utiliza tecnologias como os sites de redes sociais. Através do
caráter digital das informações expressas online, estas, antes de serem imateriais,
ganham em suas capacidades de armazenamento, disseminação e maneja um
31

caráter de permanência material e mutabilidade simbólica particular. Dessa forma,


é possível concluir que a busca por informações sociais em ambientes online com
características de armazenamento e manejo facilitado dos dados não pode se
referir apenas às expressões realizadas no presente, tampouco de forma síncrona.
Com o aumento do uso, – e consequente consciência das possibilidades – de
aplicativos de análise de informações sociais, os usuários tornam atenção a suas
construções de identidade no ambiente online, levando em conta uma maior
quantidade de rastros informacionais disponíveis. Assim, podemos considerar que
o conceito, definição e variáveis pertinentes para entender os aplicativos de análise
de informações sociais são úteis para entender práticas intensificadas e
emergentes de busca de informações sociais nas mídias digitais.

5 CONCLUSÃO

É possível identificar a viabilidade da utilização dos dados dos


indivíduos na causa responsável, digna e com o foco no somatório de informações,
como que uma espécie de radiografia do status social e que condições realmente
vivem na efetivação da cidadania, através não apenas dos representantes do povo
(vereadores, deputados, além dos cargos do poder executivo) mas também do
inter-relacionamento e cruzamento de informações sociais livres e dos órgãos
oficiais, no viés de se estabelecer a atuação Estatal rápida, objetiva e
principalmente assertiva, evitando assim gastos desnecessários do dinheiro
público. De toda forma não se trata da democracia direta, mas sim da capacidade
de que cada cidadão tem através dessas tecnologias em fornecer dados
importantes que gerarão estatísticas de atuação do Estado, fiscalização e
transparência do gasto público, reduzir as desigualdades sociais (inserindo recurso
público aonde de fato mais necessita), dando pôr fim a oportunidade de todos
opinarem e cobrarem melhores condições da prática cidadão e democrática no
foco da efetivação contínua dos direitos sociais fundamentais junta a essa
sociedade brasileira tão desigual cujo problema perdura há décadas sem uma
aparente solução. Se o todo realizado até aqui não foi suficiente, que adentre a
tecnologia, seja de informação ou inteligência artificial no anseio de tornar essa
sociedade segura, pacífica e de oportunidades iguais a todos.
32

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35

AMPLIANDO A PARTICIPAÇÃO DAS MINORIAS NO ESPAÇO PÚBLICO DE


IDEIAS COMO FORMA DE COMBATE AO DISCURSO DE ÓDIO

Jonathan Douglas dos Santos1

RESUMO: Este artigo busca analisar o paradoxo do discurso de ódio enquanto elemento gerado
pela democracia, ao mesmo tempo que torna-se um dos fatores responsáveis por abalar este
próprio sistema democrático, na medida em que impede, silencia e até mesmo afasta os indivíduos
(em regra as minorias) do acesso a arena deliberativa. O artigo abrangerá, em um primeiro
momento, a relação entre o discurso de ódio e a democracia, discorrendo acerca da importância da
liberdade de expressão para a construção da cidadania, bem como procurando analisar até que
ponto o discurso de ódio acaba por exceder o próprio direito de liberdade de expressão. Em um
segundo momento, procuraremos estabelecer parâmetros acerca da possibilidade ou não da
limitação ao discurso de ódio, ou seja, é possível ou não restringir as manifestações caracterizadas
como sendo de ódio, tendo como baliza o direito à liberdade de expressão. Até que ponto a
liberdade de expressão é sacrificada quando o Estado vem a reprimir certos conteúdos? Afetaria
ou não a própria ideia de democracia enquanto livre circulação de ideias e participação de todos?
Por fim, procuraremos trazer à discussão a ideia fundada em John Stuart Mill, acerca do livre
mercado de ideias, no sentido da criação de um espaço público deliberativo, fomentando a
autotutela e reduzindo a intervenção estatal, no sentido em que quanto maior seja a participação
de todos no debate, contribuindo com as mais variadas opiniões, mais legitimado democraticamente
será o próprio discurso público.

Palavras-chave: Discurso de ódio. Liberdade de expressão. Democracia. Minorias. Espaço público


deliberativo.

RESUMEN: Este artículo busca analizar la paradoja del discurso de odio como elemento generado
por la democracia, al tiempo que se convierte en uno de los factores responsables de sacudir este
propio sistema democrático, en la medida en que impide, silencia e incluso aleja a los individuos
(por regla general a las minorías) del acceso a la arena deliberativa. El artículo abarcará, en un
primer momento, la relación entre el discurso de odio y la democracia, discurriendo sobre la
importancia de la libertad de expresión para la construcción de la ciudadanía, así como tratando de
analizar hasta qué punto el discurso de odio acaba por exceder el propio derecho de libertad de
expresión. En un segundo momento, trataremos de establecer parámetros acerca de la posibilidad
o no de la limitación al discurso de odio, es decir, es posible o no restringir las manifestaciones
caracterizadas como siendo de odio, teniendo en cuenta el derecho a la libertad de expresión. ¿En
qué medida se sacrifica la libertad de expresión cuando el Estado suprime determinados
contenidos? ¿afectaría o no a la idea misma de democracia como libre circulación de ideas y
participación de todos? Por último, trataremos de sacar a discusión la idea fundada en John Stuart
Mill, sobre el libre mercado de ideas, en el sentido de la creación de un espacio público deliberativo,
fomentando la Autotutela y reduciendo la intervención estatal, en el sentido de que cuanto mayor
sea la participación de todos en el debate, contribuyendo con las más variadas opiniones, más
legitimado democráticamente será el propio discurso público.

Palabras clave: Discurso de odio. Libertad de expresión. Democracia. Minorías. Espacio público
deliberativo.

1 INTRODUÇÃO

Discute-se, hodiernamente, a possibilidade de proibição dos chamados


“discursos de ódio” de circularem em determinados ambientes. A questão em jogo
seria tentar evitar alguns discursos que são constitutivamente antidemocráticos, a
exemplo de afirmarem que existe uma etnia, um gênero ou grupo de pessoas

1
Mestrando em Direitos Fundamentais e Democracia pela UniBrasil.
36

seriam superiores em detrimentos de outros, numa tentativa de negar os próprios


princípios democráticos, seus fundamentos, negando a igualdade para todas as
pessoas.
Dentro desta perspectiva, o discurso de ódio é visto como uma tentativa de
frear este movimento histórico, constitucionalmente assegurado, de busca da
igualdade, restaurando a supremacia de determinadas classes, a exemplo da
supremacia de gênero, étnica, entre outras. Ocorre que o discurso de ódio possui
diferentes limites de acordo com os mais variados Estados. Os Estados Unidos,
por exemplo, a tentativa de limitação do discurso de ódio tende a ser reduzida,
tendo em vista que sua própria Constituição preza pela garantia da liberdade de
expressão. Já, em outros Estados como o Brasil, a liberdade de expressão é mais
relativizada, inclusive criminalizando algumas manifestações, especialmente
aquelas relativas à questão racial.
O presente artigo, portanto, procura analisar o paradoxo do discurso de ódio
enquanto elemento gerado pela democracia, ao mesmo tempo que torna-se um
dos fatores responsáveis por abalar este próprio sistema democrático, na medida
em que impede, silencia e até mesmo afasta os indivíduos (em regra as minorias)
do acesso a arena deliberativa.
O artigo abrangerá, em um primeiro momento, a relação entre o discurso de
ódio e a democracia, discorrendo acerca da importância da liberdade de expressão
para a construção da cidadania, bem como procurando analisar até que ponto o
discurso de ódio acaba por exceder o próprio direito de liberdade de expressão.
Em um segundo momento, procuraremos estabelecer parâmetros acerca da
possibilidade ou não da limitação ao discurso de ódio, ou seja, é possível ou não
restringir as manifestações caracterizadas como sendo de ódio, tendo como baliza
o direito à liberdade de expressão. Até que ponto a liberdade de expressão é
sacrificada quando o Estado vem a reprimir certos conteúdos? Afetaria ou não a
própria ideia de democracia enquanto livre circulação de ideias e participação de
todos?
Por fim, procuraremos trazer à discussão a ideia fundada em John Stuart
Mill, acerca do livre mercado de ideias, no sentido da criação de um espaço público
deliberativo, fomentando a autotutela e reduzindo a intervenção estatal, no sentido
em que quanto maior seja a participação de todos no debate, contribuindo com as
mais variadas opiniões, mais legitimado democraticamente será o próprio discurso
público.
37

Se propiciadas e respeitadas as condições para a criação desse espaço


deliberativo de circulação de pensamento e opiniões, o livre mercado de ideias,
conforme os teóricos apresentados, propiciará uma dilapidação do discurso
público, no qual permanecerá apenas aquelas ideias que possuírem os melhores
argumentos e que possam sofrer o influxo dos mais diversos pontos de vista
(especialmente das minorias) em um espécie de evolucionismo de ideias.

2 O DISCURSO DE ÓDIO E A DEMOCRACIA.

Partindo de uma perspectiva com base em Roberto Gargarella2 tem-se que


para que haja democracia é necessária a efetiva liberdade de expressão. A
liberdade de expressão refere-se, em linhas gerais, como a atividade de
informação aos cidadãos de maneira livre, de se criticar os governos, bem como a
própria manifestação a respeito de determinados atos, grupos de pessoas, entre
outras possibilidades de expressar opiniões ou críticas.
A questão da liberdade de expressão, embora considerada como princípio
estruturante do sistema democrático, recebe tratamento diverso em diferentes
países. Tendo como base a ONU (Organização das Nações Unidas), percebe-se
a existência de um sistema global de proteção aos direitos humanos, onde o tema
da liberdade de expressão é tratado normativamente. Ressaltamos
especificamente a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH)3, o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP)4 e a Convenção Internacional
sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (CIETFDR) 5.
Tais diplomas internacionais dispõem que todo o indivíduo tem direito à
liberdade de opinião e de expressão; que é dever de todos os Estados-Parte em
condenar propaganda e organizações que se inspirem em ideias ou teorias
baseadas na superioridade de uma raça ou de um grupo de pessoas de uma certa
cor ou de determinada origem étnica ou que visem justificar qualquer forma de ódio
ou discriminação racial6.

2
GARGARELLA, Roberto. Constitucionalismo y libertad de expresión. In: ORDOÑEZ, María Paz Ávila; SANTAMARÍA,
Ramiro Ávila; GERMANO, Ramiro Gómez. Libertad de expresión: debates, alcances y nueva agenda. Quito, Ecuador:
Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura, 2011. p. 30.
3
Assembleia Geral da ONU. (1948). "Declaração Universal dos Direitos Humanos" (217 [III] A). Paris. Disponível em:
http://www.un.org/en/universal-declaration-human-rights, acesso em 17 de setembro de 2019.
4
BRASIL. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Decreto no 592, de 6 de julho de 1992. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm, acesso em 17 de setembro de 2019.
5
ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de
discriminação racial, 1965. Disponível em: www2. Ohchr.org/english/law/pdf/cerd. Pdf, acesso em 17 de setembro de 2019.
6
PAMPLONA, Danielle Anne. O conteúdo do direito à liberdade de expressão, o discurso de ódio e a resposta democrática.
Revista Brasileira de Direito, v. 14, n. 1, 2018.
38

Estes instrumentos normativos partem do pressuposto de que a liberdade


de expressão não é absoluta, essencialmente quando tal liberdade serve para
aumentar ainda mais o desequilíbrio existente entre os indivíduos na sociedade,
fomentando a discriminação e a violência. Em nível internacional, o sistema
interamericano é o que apresenta maior proteção à liberdade de expressão, porém,
é relativamente modesto quando se trata de prevenir excessos, a exemplo da
disseminação de discursos de ódio7.
Dentro deste cenário internacional, o Brasil integra o Sistema Interamericano
de proteção dos direitos humanos e, por esta razão, o país deve observância ao
chamado controle de convencionalidade internacional, analisando a
compatibilidade das normas internas às normas de tratados internacionais sobre
direitos humanos8.
A questão da liberdade de expressão encontra-se tratada em diversos
diplomas do direito interno brasileiro. A Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 regula a liberdade de expressão em suas mais variadas dimensões.
Do artigo 220 do diploma se extrai que a liberdade de expressão é a regra em
nosso Estado9. Todavia, o mesmo diploma prevê situações que tal direito pode
sofrer limites, a exemplo do artigo 5º, inciso IV10, com a vedação ao anonimato.
Existem algumas disposições implícitas acerca das limitações. Desde o seu
preâmbulo a Constituição brasileira tem a igualdade como um valor supremo,
sendo uns dos objetivos fundamentais da República a erradicação das
desigualdades sociais e religiosas, bem como a promoção do bem comum, sem
preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, ou quaisquer outras formas de
discriminação. Prevendo, de forma específica, a prática do crime de racismo
conforme extraído de seu artigo 5º, inciso XLII11.
É preciso ressaltar que, embora exista uma ampla proteção à liberdade de
expressão em nosso ordenamento pátrio, tem-se que tal proteção não é irrestrita,
podendo ser restringido em certas situações. Tais restrições, basicamente,

7
Ibid., p. 13.
8
SCHÄFER, Gilberto; LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; SANTOS, Rodrigo Hamilton dos. Discurso de ódio: da abordagem
conceitual ao discurso parlamentar. RIL Brasília, a.52, n. 207, jul./set. 2015, p. 146
9
O artigo 220 da Constituição expressa que a manifestação do pensamento, a criação,
a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qual-
quer restrição, observado o disposto nesta Constituição. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil
(1988). Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/constitui... Acesso em: 17 de
setembro de 2019.
10
Ibid., artigo 5º, inciso XLII.
11
MELLO, Cleyson de Moraes de; PEREIRA, Antônio Celso Alves. O discurso de ódio, o direito e a democracia. Quaestio
Iuris, vol. 10, n. 04, Rio de Janeiro, 2017, p. 2716.
39

encontram-se no plano da regulação de palavras provocadoras e, especialmente,


no discurso do ódio.12
Um dos exemplos marcantes na recente história do Brasil podemos
mencionar a questão da chamada “marcha da maconha”, onde a suprema corte
(Supremo Tribunal Federal) autorizou a realização de eventos que reunissem
simpatizantes da liberalização de tal substância entorpecente. Sobressaiu-se, no
entendimento dos ministros da corte, os direitos constitucionais de livre reunião e
de liberdade de expressão do pensamento e que, haveria a possibilidade de
restrição de tais manifestações somente em caso de tais movimentos incitarem ou
provocarem ações ilegais e iminentes por parte de seus participantes13.
Em que pese o Brasil ainda não tenha ratificado a Convenção
Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância, tal instrumento
normativo oferece elementos que podem ser assimilados para a construção de um
conceito jurídico (standart) daquilo que conhecemos como discurso de ódio14.
Com base na legislação internacional o discurso do ódio corresponde à
manifestação de ideias intolerantes, preconceituosas e discriminatórias contra
indivíduos ou grupos vulneráveis, visando, precipuamente, a ofensa a sua
dignidade e com isso provocando o ódio. Mas não basta a ofensa, mas sim que ela
seja qualificada pelo critério de idade, sexo, orientação sexual, identidade, gênero,
etnicidade, opinião pública, natureza social, econômica, educacional, origem
nacional, característica genética (física ou mental) entre outras condições
atribuídas aos destinatários15.
Com base no entendimento de Winfried Brugger16 o discurso de ódio pode
ser conceituado como aquele que, dentro de sua emissão, profere palavras que
visam insultar, intimidar ou assediar indivíduos, em virtude da sua raça, cor,
etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, somada a sua capacidade de instigar
a violência, o ódio ou a discriminação contra tais pessoas.
Dos conceitos apresentados, podemos extrair que há a somatória de dois
importantes elementos, o primeiro deles diz respeito ao próprio conteúdo da fala,
ou seja, que tenha por destinatários determinados indivíduos classificados por meio

12
SCHÄFER, Gilberto; LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; SANTOS, Rodrigo Hamilton dos, Op. Cit., p. 146.
13
Pela decisão, tomada no julgamento de ação (ADPF 187) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), o
Supremo Tribunal Federal (STF) liberou a realização dos eventos chamados “marcha da maconha”, que reúnem
manifestantes favoráveis à descriminalização da droga. Para os ministros, os direitos constitucionais de reunião e de livre
expressão do pensamento garantem a realização dessas marchas. MELLO, Cleyson de Moraes de; PEREIRA, Antônio
Celso Alves. Op. Cit., p. 2718.
14
SCHÄFER, Gilberto; LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; SANTOS, Rodrigo Hamilton dos. Op. Cit., p. 148.
15
Ibid., p. 140.
16
BRUGGER, Winfried. Proibição ou proteção do discurso do ódio?: algumas observações sobre o direito alemão e o
americano. Direito Público, Porto Alegre, ano 4, n.15, jan./mar. 2007, p. 151.
40

de suas características físicas, étnicas ou sociais. Já o segundo elemento seria a


potencialidade da fala, ou seja, que tenha capacidade de instigar uma ação, como
a violência, o ódio e a discriminação.
É possível ir além, afirmando, inclusive, que tais discursos se apresentam,
mais das vezes, disfarçados sob o manto de uma suposta proteção moral da
sociedade. Ocorre que, no caso brasileiro, onde ainda vivemos a reminiscência de
uma ditadura militar, discursos como estes podem acarretar, e efetivamente vem
ocorrendo, agressões à indivíduos e grupos minoritários, produzindo assim
violências de diversas ordens, seja moral, preconceituosa, discriminatória e de ódio
contra tais grupos vulneráveis17, ou seja, o discurso do ódio representa um
discurso que revela uma visão hierarquizada e hierarquizante da sociedade
brasileira18.
No entanto, temos que a democracia brasileira, como forma de organização
social, possui em seu cerne a construção de uma sociedade livre e igualitária.
Desta forma os discursos de ódio arraigados em nossa sociedade, são marcados
pela sua busca em cercear ao “outro” e com isso acabam por impedir à
determinados grupos de pessoas a sua própria participação no jogo democrático.

Diante disso, nossa discussão leva em conta os valores


essenciais ao regime democrático por considerar que o discurso de ódio,
em análise, produz efeitos de intolerância à diferença, restringindo o
alcance desses valores. Assim, ao afetar os eixos que estruturam o
regime democrático, os efeitos produzidos por esse discurso interferem
no próprio processo democrático19.

É possível afirmar que, ao longo da história, as agressões, sejam elas


verbais ou até mesmo físicas, foram o combustível para as ações humanas e as
mudanças históricas20. Ocorre que, da mesma forma, o ser humano cria seu
próprio medo e, após vencê-lo surge a necessidade de se criarem novos medos e
assim sucessivamente. Os medos constituem a base do discurso de ódio. O medo
do “outro”, daquele que é diferente, do que supostamente não se amolda àquilo
que tenho por normal em meu mundo, alimenta a desconfiança, a discriminação.
A dignidade humana surge, então, como uma das fronteiras em que se
encerra a liberdade de expressão e inicia o discurso de ódio, o excesso, a
ilegitimidade. Não pode, dentro desta ótica, a liberdade de expressão constituir-se

17
SCHÄFER, Gilberto; LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; SANTOS, Rodrigo Hamilton dos. Op. Cit., p. 147.
18
SOUZA, Mariana Jantsch de. Discurso de ódio e dignidade humana: uma análise da repercussão do resultado da
eleição presidencial de 2014. Trab. Ling. Aplic., Campinas, n. 57.2, mai.\ago. 2018, p. 922.
19
Ibid., p. 930.
20
MELLO, Cleyson de Moraes de; PEREIRA, Antônio Celso Alves. Op. Cit., p. 2712.
41

um escudo de proteção às mais diversas manifestações de violências que se


apresentam21.
Há exemplos na jurisprudência pátria acerca da atuação do Estado no
sentido de reprimir o discurso do ódio. Um dos casos emblemáticos foi o do
Inquérito 3.590, onde o Ministério Público Federal denunciou o então parlamentar
Marcos Feliciano por ter incitado o ódio a determinados grupos em decorrência de
declarações consideradas preconceituosas e discriminatórias22.
É possível que esse discurso de ódio apenas traga à luz um discurso que já
estava enraizado dentro da sociedade, como uma “presença-ausência”, ou seja,
um discurso que já se encontrava ali, apenas esperando o momento para vir à tona.
Discurso este de ódio ao “outro”, e não apenas ao outro, mas também à própria
democracia, visto que é o sistema democrático que permitiu que esse “outro”,
repugnantemente diferente, pudesse participar da tomada de decisão coletiva.
Percebe-se que não há um diálogo, ou seja, o “outro” não é tratado como
interlocutor do discurso, mas sim como alvo. No caso do Brasil, a sociedade vem
sendo marcada por discursos que apontam para relações antagônicas,
maniqueístas, tornando-se campo fértil para a propagação de discursos que
segregam, que excluem.
Nesta perspectiva de um Estado Democrático, é possível afirmar que o
discurso de ódio nasce de excessos, ou seja, excesso da própria liberdade que é
dada aos indivíduos expressarem suas opiniões. Na medida em que este direito,
legítimo, ultrapassa a fronteira da razoabilidade, adentrando no âmbito da
ofensividade e da violência, perde com isso sua legitimidade.
A violência simbólica é aquela a que mais está presente quando nos
deparamos com um discurso de ódio. Por ser invisível ela acaba, mais das vezes,
por manter o discurso dentro de um padrão de “normalidade”, se mantendo no
tempo. Um exemplo é o próprio discurso que emerge da estrutura capitalista
baseado em premissas de desigualdade-subordinação. Cria-se todo um discurso,
com aparência de normalidade, mas que objetiva manter-se no tempo, manter o
status quo do próprio sistema23.

21
SOUZA, Mariana Jantsch de. Op. Cit., p. 932.
22
Em sede de julgamento o STF entendeu que a conduta do parlamentar era atípica, todavia indicando a necessidade que
a legislação ordinária legislasse especificamente acerca de tais condutas, inclusive classificando o discurso do parlamentar
como sendo um discurso de ódio. No caso, o então ministro Luis Roberto Barroso caracterizou a fala do parlamentar como
sendo um típico caso de hate speech. SCHÄFER, Gilberto; LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; SANTOS, Rodrigo Hamilton dos.
Op. Cit., p. 150.
23
SOUZA, Mariana Jantsch de. Op. Cit., p. 933.
42

Este discurso é marcado pela repetibilidade, atuando em uma estabilização


das relações de dominação e quando este status quo é ameaçado, quando a
“normalidade” é interrompida, surge em resposta um outro discurso, desta vez mais
explícito, de uma pseudoproteção, caracterizado pela intolerância, pela
discriminação inseridas no discurso de ódio.
A Democracia reveste-se como fator de mediação entre dominadores e
dominados, e por isso ela mesma é atacada pelo discurso de ódio, pois a
democracia acaba por representar o respeito às diferenças, aos direitos das
minorias e as políticas afirmativas que a estes grupos são direcionadas. Mas não
há um consenso sobre este entendimento, ou seja, existem fortes argumentos que
apontam que o próprio discurso de ódio é inerente ao sistema democrático e que
qualquer atuação do Estado no sentido de reprimi-lo acaba por colocar em xeque
a própria democracia, é o que veremos a seguir.

3 DISCURSO DE ÓDIO E LIMITES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Como já discorremos anteriormente, a liberdade de expressão é essencial


em uma democracia, especialmente para garantir a pluralidade de ideias dentro do
Estado de Direito, garantindo tanto os discursos aceitos de forma majoritária dentro
da sociedade, quanto também aqueles que divergem deles sendo, inclusive,
contrário aos próprios valores adotados por aquela determinada sociedade 24.
Não é função do direito censurar toda manifestação que tenha o potencial
de causar dano, mas também o direito não pode ser indiferente à determinados
atos que causem danos e que não tenham justificativa razoável para tanto. Tal
entendimento acerca da reprimenda de tais excessos de liberdade de expressão
sofre influência de uma concepção conhecida como democracia militante cunhada
por Karl Loewenstein25, que surgiu como uma resposta às ideias totalitárias na
Europa. Tal entendimento compreende que posições políticas, ideologias que
sejam contrárias aos valores democráticos devem ser combatidas, mesmo que
para isso se tenha que reduzir em alguma medida a liberdade dos indivíduos26.
Para esta corrente de pensamento, o discurso de ódio acaba por gerar
maiores malefícios do que benefícios dentro de uma perspectiva de liberdade de

24
SACCHETTO, Thiago Coelho. O discurso de ódio na democracia brasileira: há direito à representação parlamentar? In:
PEREIRA, Rodolfo Viana (Org.) Direitos políticos, liberdade de expressão e discurso de ódio. Volume I. Belo Horizonte:
IDDE, 2018, p. 241.
25
LOEWENSTEIN, Karl. Militant democracy and fundamental rights, I. American Political Science Review, v. 31, n. 3, p.
417-432, 1937.
26
SACCHETTO, Thiago Coelho. Op. Cit., p. 251.
43

expressão, especialmente em razão dos efeitos silenciadores que tal discurso


acarreta em seus destinatários, geralmente grupos vulneráveis. Por não
reconhecerem o “outro” como seu igual, e direta ou indiretamente visar excluí-lo do
espaço público deliberativo, o discurso de ódio acaba por abalar os próprios
alicerces do regime democrático, especialmente em decorrência da violação da
igualdade e dignidade de determinados indivíduos integrantes da sociedade.
Em uma perspectiva similar à de Karl Lowenstein, o teórico Jeremy
Waldron27 defende a ideia de que é necessária uma certa restrição em alguma
medida contra o discurso de ódio, com vistas a assegurar que as consequências
decorrentes de manifestações como esta não acabem por solapar os princípios e
valores democráticos.
Todos os indivíduos, indistintamente, possuem o direito à dignidade humana
e como decorrência disto, devem ser protegidos contra todas as formas de
exclusão, de discriminação, de violência. A dignidade para Jeremy Woldrin é o
conceito central de legitimação do estabelecimento de limites à liberdade de
expressão. Limites estes que encontram na legislação repressiva um meio de
assegurar aos membros da comunidade o direito à dignidade, igual consideração
e respeito28.
Dentro desta perspectiva o agressor, aquele que expressa manifestação de
ódio, não está receptivo ao diálogo, ou seja, não há conversa, mas sim uma
agressão, uma violência, e como tal não é possível que o ofensor ouça e se
convença dos argumentos contrários, ou seja, para o autor o espaço público de
ideias não é um espaço compatível com manifestações de ódio, devendo ser
rechaçado. Pois se o discurso está pautado na intolerância, dificilmente haverá
mudança de posicionamento.

O desacordo razoável ou de boa fé acaba por se tornar a própria


condição de discussão no espaço público. Por essa razão, quando a
intolerância na sociedade passa a se expressar na forma de discursos ou
manifestações de ódio, o que se perde é justamente a possibilidade de
um desacordo razoável, comprometendo-se, desse modo, a própria
democracia29.

O estabelecimento de leis protetivas contra o discurso de ódio, tem caráter


preventivo no sentido de evitar danos que, inevitavelmente, serão causados em

27
WALDRON, Jeremy. Dignity and defamation: the visibility of hate. 2009 Oliver Wendell Holmes Lectures, Havard Law
Review, v. 123, p. 1597-1655, 2010.
28
CONSANI, Cristina Forani. Democracia e os discursos de ódio religioso: o debate entre Dworkin e Waldron sobre os
limites da tolerância. Ethic@, Florianópolis, v.14, n. 2, p. 181, Dez. 2015., p. 183.
29
Ibid., p. 191.
44

decorrência de sua externalização, a exemplo da violência simbólica e


silenciamento dos grupos vulneráveis.
Para melhor aprofundarmos as discussões teóricas acerca da possibilidade
de limitação da liberdade de expressão, importante mencionar, embora de maneira
sucinta, um entendimento diverso, baseado em Ronald Dworkin 30, que refuta a
ideia de que deve haver alguma espécie de limitação à livre expressão dos
indivíduos.
Tal entendimento repousa em duas premissas básicas. A primeira delas é a
de que existe um direito humano fundamental à liberdade de expressão e que este
direito constitui o próprio conceito de democracia. Ressaltamos que dentro desta
perspectiva dworkiana, até mesmo a própria dignidade humana, que para Jeremy
Waldron era violada quando do discurso de ódio, para Ronald Dworkin uma das
condições da dignidade humana é a própria liberdade de expressão que,
independente da manifestação exteriorizada, deve ser tratada com igual
consideração31. Uma segunda premissa para Dworkin corresponde a necessidade
que todos possam expressar suas convicções políticas, suas ideologias e seus
preconceitos para que possam contribuir, inclusive, com a própria decisão política.

Segundo Dworkin, a legitimidade democrática de uma decisão


política fica comprometida quando os indivíduos ou grupos dissidentes
são proibidos ou restringidos em seu direito de contribuir para a formação
da opinião e da vontade coletiva manifestando suas convicções políticas
ou morais, seus gostos e até mesmo seus preconceitos. Nesse sentido,
ao estabelecer restrições à liberdade de expressão, como vedações aos
discursos de ódio, o Estado deixaria de respeitar o status de cada
indivíduo como membro livre e igual da comunidade política 32.

A repressão à livre manifestação do pensamento, seja de qual conteúdo for,


pode ser utilizada para tentar calar as vozes contrárias aos ideais e interesses
daquele que detém o poder, ou seja, sob uma aparência de proteger determinadas
minorias vulneráveis, acaba por proteger a si mesmo e as ideologias que defende.
Ronald Dworkin não pretende que tal opinião (majoritária) acabe por triunfar
em detrimento de outra (minoritária), mas que ambas façam parte do espaço
público e que tenham possibilidade de influenciar na formação da opinião pública.
Propõe, portanto, que o Estado crie mecanismos, mediante ações afirmativas,

30
ROSA, Leonardo Gomes Penteado. O liberalismo igualitário de Ronald Dworking: o caso da liberdade de expressão,
254f, 2014. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
31
CONSANI, Cristina Forani. Op. Cit., p. 176.
32
Ibid., p. 177.
45

visando a inclusão das minorias oprimidas na tentativa de garantir a dignidade


destes grupos33.
Superado o esboço teórico acerca da possibilidade de limitação à liberdade
de expressão, temos que no plano fático podemos perceber que o direito
internacional, no que corresponde à proteção dos direitos humanos, estabelece
como dever aos legisladores nacionais a criação de legislação específica acerca
da proteção contra o discurso de ódio. A delegação para a legislação interna para
estabelecer a normatização com relação ao tema se justifica tendo em vista que
somente a partir de elementos sociológicos da própria sociedade envolvida é
possível criar mecanismos adequados no sentido de reprimir manifestações de
ódio contra determinados grupos dentro desta mesma sociedade.
A linha tênue entre liberdade de expressão e discurso de ódio passa por um
processo hermenêutico de ponderação. Analisando-se primeiro os elementos
materiais da manifestação para que, depois, seja realizada uma análise sobre se
tal discurso se adequa ou não com o sistema normativo em vigor naquela
determinada sociedade34.
Esta questão da ponderação parte do pressuposto de que a liberdade de
expressão deve ser compatibilizada com outros direitos e liberdades dentro de um
Estado Democrático. No caso do discurso de ódio (de acordo com o conceito já
apresentado), temos que há a incompatibilidade entre a liberdade de expressão e
o direito à dignidade humana dos grupos ou indivíduos que são afetados pelo
exercício do direito de expressão35.
Desta forma, podemos de antemão perceber que não é essencial para a
análise tão somente o conteúdo da manifestação, por mais repugnante que pareça,
mas sim os efeitos decorrentes de tal discurso nos destinatários, ou seja, que tenha
violado os direitos à honra, igualdade ou a dignidade de tais grupos de pessoas.
O direito constitucional dos Estados Unidos, por exemplo, é marcado por
entendimento voltado à permissividade com relação às manifestações
caracterizadas como discurso de ódio. Dentro da concepção de justiça nos Estados
Unidos no que se refere à liberdade de expressão, duas questões devem ser
analisadas. A primeira delas diz respeito ao valor da expressão, ou seja, as de

33
LIMA, Sávio Barreto Lacerda. Liberdade de expressão: a concepção integrada de Dworkin. 140f, 2015. Dissertação
(Mestrado em Direitos Humanos e Inclusão Social). Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará.
34
SACCHETTO, Thiago Coelho. Op. Cit., p. 245.
35
Ibid., p. 246.
46

“baixo valor” gozariam de menor proteção ao passo que as de “alto valor” teriam
uma proteção constitucional efetiva36.
Há o entendimento que manifestações que possuem um caráter político,
seja de que natureza for, são classificadas como sendo de alto valor e, portanto,
protegidas de qualquer espécie de restrição. O ponto de partida para uma não
intervenção estatal é no sentido de que o remédio contra manifestações de ódio
seria justamente a realização de mais discussões sobre, e não menos 37.
Independentemente de qualquer avaliação acerca do conteúdo do discurso,
a repressão acaba por impedir o acesso de determinadas concepções à esfera
pública deliberativa. Poderia se pensar que em um Estado onde, supostamente, o
discurso de ódio seria livre, certos grupos minoritários e vulneráveis poderiam se
sentir até mesmo excluídos, desamparados frente ao próprio Estado. Todavia, não
se trata propriamente de que a legislação americana seja conivente com o discurso
de ódio, mas sim uma coerência com o próprio sistema de ampla proteção à
liberdade de expressão que vige no país.
Os modernos meios de comunicação social existente no Mundo (mídia
televisiva, eletrônica, entre outros) são vistos como meios importantes para a
difusão de ideias, sejam elas de qual natureza for, ou seja, incluída a própria
disseminação do discurso de ódio.
Partindo de uma concepção baseada em Habermas38, temos que há, dentro
de um Estado entendido como sendo democrático, a possibilidade do indivíduo
dizer “não”, da resistência enquanto minoria. Minoria esta que deve ser respeitada
enquanto elemento integrante da própria noção de democracia, ou seja, voltada
para a construção de uma cultura política pluralista. Para tanto é necessário
erguerem-se fronteiras para garantir o próprio sistema democrático, sempre
atentando-se para que tais fronteiras não representem o nefasto instrumento da
censura.
Dentro desta perspectiva, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos
(ECHR) emerge após a Segunda Guerra Mundial, como uma espécie de resposta
aos horrores cometidos durante este conflito e com a convicção que embora a
guerra tivesse acabado, as manifestações de ódio e discriminação apenas

36
SILVA, Júlio César Casarin Barroso. Liberdade de expressão e expressões de ódio. Revista de Direito GV. São Paulo,
v. 11, p. 38, jan. – jun., 2015.
37
Ibid., p. 39.
38
HABERMAS, Jürgen. Era das Transições. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a.
47

estariam inertes, sendo ainda consideradas um risco sempre presente à paz e ao


desenvolvimento social das nações ao redor do mundo39.
Segundo os ditames da Convenção Europeia, determinadas manifestações
de ódio, por se caracterizarem pelo conteúdo discriminatório acabam por violar a
própria liberdade de expressão. A repulsa a tais manifestações decorre dos
objetivos fundamentais destes Estados em promover a igualdade de tratamento e
o respeito às diferenças, objetivos estes que legitimam a própria existência do
Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Para a análise dos casos concretos o Tribunal Europeu de Direitos Humanos
realiza uma diferenciação entre discursos tidos como políticos e discursos que
fomentam e incitam o ódio a determinados grupos40. Nestes últimos casos
predomina o abuso de direito, tendo em vista o excesso na utilização da liberdade
de expressão, conforme expressamente disposto no artigo 10º da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem41.
Um bom exemplo para ilustrar o entendimento do Tribunal Europeu acerca
do tema é que ocorreu no caso Ferét v. Bélgica42, onde o Tribunal Belga condenou
o presidente do partido da Frente Nacional, pela divulgação e publicação de
panfletos que convocava os cidadãos do país a se levantarem contra a proliferação
da religião islâmica na Bélgica, bem como para expulsarem aqueles estrangeiros
que não estivessem realizando atividades produtivas, dando a clara noção de que
tais estrangeiros eram criminosos e estavam a se aproveitar dos benefícios do país
em detrimento da população belga. No entendimento da Corte, era uma nítida
manifestação de ódio voltada contra grupos sociais específicos e, portanto,
ultrapassava o limite do uso legítimo da liberdade de expressão.

39
PRATES, Francisco de Castilho. Discursos de ódio e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos: enfrentando os
desafios à liberdade de expressão. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, vol. 63, n. 1, jan./abr. 2018, p. 101.
40
Ibid., p. 102.
41
Nos termos do disposto no artigo 10º: qualquer pessoa tem direito a liberdade de expressão, nele compreendida a
liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideais sem que possa haver ingerência de
quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os estados submetam
as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
Todavia, o exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas
formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providencias necessárias, numa
sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a
prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção de honra ou dos direitos de outrem, para impedir a
divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do Poder Judicial. In: Convenção
Europeia de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.echr. coe.int/Documents/Convention_POR.pdf> Acessado em
21/07/2014.
42
O caso acabou sendo levado à Corte Europeia dos Direitos Humanos, já que Féret entendeu que seu direito à livre
expressão de pensamentos e opiniões, garantido pelas disposições constantes no artigo 10º da Convenção Europeia dos
Direitos Humanos, havia sido violado, o que tornaria a sua condenação ilegítima, abusiva e ilegal. Não obstante a Corte
Europeia reconhecer que havia existido uma interferência no direito à liberdade de expressão, a mesma entendeu que esta
interferência, além de estar prevista na legislação belga contra discriminação, também tinha um objetivo legítimo, qual seja,
garantir a igualdade de direitos e o direito de não ser injustificadamente discriminado, fundamentos centrais, conjuntamente
com o direito de livre pensar, de uma sociedade pluralista e democrática. Nesta linha, a European Court afirmou que a
decisão belga se coadunava com a Convenção Europeia no que se referia ao combate aos discursos de ódio que visavam
a grupos sociais específicos e ao uso ilegítimo da liberdade de expressão. In: PRATES, Francisco de Castilho. Op. Cit., p.
103.
48

Desta forma percebe-se que, embora o Tribunal Europeu aceite certas


manifestações políticas revestidas de críticas sociais, tais críticas devem ser
fundamentadas e que visem trazer ao debate público opiniões divergentes e que
podem vir a contribuir para a própria formação da opinião pública. O que não ocorre
quando o discurso é tido como ilegítimo, em nítido excesso da liberdade de
expressão.
Todavia, um importante ponto que deve ser levantado com relação ao
entendimento do Tribunal Europeu é no sentido de que tal corte não permite um
controle prévio do conteúdo, a exemplo da censura, mas sim uma reprimenda
posterior à divulgação do discurso ofensivo, levando-se em consideração não
apenas seu conteúdo, mas também o contexto em que o mesmo foi expressado.
Qualquer tentativa de censura prévia configura um atentado à própria
democracia43.
É possível fazer uma correspondência com o cenário brasileiro, a exemplo
do debate acerca das ações afirmativas que visam propiciar melhores condições e
de acesso à população afrodescendente intensificada nos últimos anos. Dentro
desta esfera de discussão é perfeitamente possível o surgimento de argumentos
que prima facie podem caracterizar-se como expressões racistas, especialmente
por parte daqueles grupos que não aceitam as ações afirmativas. Ocorre que a
restrição à tais argumentos acabam por prejudicar a própria legitimação política em
um ambiente democrático, que deve estar receptiva aos diversos argumentos
postos em debate.
Mais especificamente no caso do Brasil, podemos perceber que,
hodiernamente, há uma tendência de priorização da dignidade humana em relação
à liberdade de expressão, aproximando-se do modelo adotado no Tribunal
Europeu. Quando há um conflito entre a liberdade de expressão do agressor e a
dignidade do ofendido, entende-se que o discurso de ódio acaba por se tornar um
inibidor da própria liberdade de expressão, entendida sob a perspectiva do
ofendido44.
No Brasil, os tribunais têm adotado as técnicas de ponderação de valores,
aplicado ao caso o princípio da proporcionalidade e assim, determinando qual o

43
Ibid. p. 109.
44
Um exemplo que podemos citar é o do Habeas Corpus 82.424 do Supremo Tribunal Federal, No caso, Siegfried Ellwanger
Casten, fundador da editora gaúcha Revisão, foi acusado por crime de racismo com base no art. 20 da Lei nº 7.716/1989,
por ter escrito e publicado livros que disseminam o ódio aos judeus. Em primeira instância o acusado foi absolvido sob o
argumento de que os textos não induziam ou incitavam à discriminação do povo judeu. Porém, em sede de apelação os
Desembargadores alegaram ter havido discriminação racial e o réu foi condenado. Foi impetrado, então, habeas corpus em
favor do paciente, o que foi negado pelo STF, que repudiou discursos de ódio. In: SILVA, Isabel Germano Rodriges; SILVA,
Josiane da Costa. Liberdade de expressão e seus limites: o discurso de ódio é tolerável? VirtuaJus, Belo Horizonte, v. 3,
n. 5, p. 266, 2º sem. 2018.
49

direito que será protegido em detrimento do que será sacrificado. O sistema


constitucional brasileiro não determina hierarquia entre os direitos fundamentais, o
que gera em consequência que não é possível determinar a priori qual direito
fundamental deve prevalecer, somente através do exame da questão posta a
solução pelas cortes nacionais45.
Não se trata de sustentar toda e qualquer limitação à manifestações
ideológicas e concepções políticas que afetem determinados indivíduos ou grupo
de pessoas, pois isso abriria um inaceitável precedente, ou seja, a possibilidade da
censura, além do que o preconceito é parte constitutiva das controvérsias públicas,
especialmente em sociedades como a brasileira, de ampla dimensão territorial e
marcada pela multiculturalidade.
Diante do quadro apresentado, esta pesquisa se coaduna com o
entendimento de que é necessário o estabelecimento de fronteiras à liberdade de
expressão. Fronteiras essas, no entanto, que se apresentem razoáveis sob o ponto
de vista democrático, que sejam previstas em lei e que não excedam ao necessário
para reprimir tal violência. Reprimenda essa, em caso de necessidade, que seja
realizada em momento posterior à manifestação sob pena de caracterizar-se como
instrumento de censura prévia.
A proposta ideal seria oferecer a proteção aos direitos constitucionais dos
indivíduos (aqui compreendida a liberdade de expressão e a dignidade humana),
mas ao mesmo tempo manter o espaço público de ideias receptivo às mais
diversas manifestações (majoritárias e minoritárias) possibilitando que a opinião
pública e as decisões políticas tornem-se legitimadas dentro de uma concepção
democrática46.

4 PARTICIPAÇÃO DAS MINORIAS NO ESPAÇO PÚBLICO DE IDEIAS

É possível, através de uma análise histórica47, percebermos que a formação


dos Estados latino-americanos, em especial o Brasil, foi marcada por uma ausência
de construção de identidade. Muito desta dificuldade foi devido à implementação
de um modelo europeu de Estado que foi imposto às colônias. De um lado, criou-
se um ambiente desfavorável ao reconhecimento de uma sociedade multicultural e
pluralista, e de outro fomentou a formação de estereótipos.

45
Ibid., p. 267.
46
SILVA, Júlio César Casarin Barroso. Op. Cit., p. 58.
47
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Discurso do ódio e democracia: participação das minorias na busca pela tolerância.
Revista Direitos Sociais e Políticas Públicas (UNIFAFIBE), v. 5, n.1, São Paulo, 2007, p. 489-530.
50

Estes estereótipos, historicamente criados, acabaram por sobreviver no


discurso da sociedade brasileira, muito pela ausência de um espaço livre de
barreiras no qual se pudessem debater ideias, mesmo que antagônicas.
Hodiernamente com a expansão dos meios de comunicação e mídias
(especialmente eletrônicas), vislumbramos que, ao invés de haver o
estabelecimento de um efetivo espaço público de ideias, tal estado de coisas acaba
por alimentar uma sociedade conformada com esses estereótipos.
Dentro deste contexto brasileiro, o discurso de ódio encontra campo fértil
para se desenvolver, tendo em vista a convivência entre diversos grupos e classes
dentro de uma mesma sociedade. Pode parecer paradoxal, mas é possível afirmar
que a própria democracia possibilita a criação de manifestações intolerantes, visto
propiciar a participação de todos na vida social e política.
No entanto, no estágio atual da democracia brasileira, vemos que a vontade
que domina é a da maioria, e o Estado não se posiciona de forma a proporcionar
uma abertura efetiva à participação das minorias no debate democrático. É
necessário, portanto, que a vontade política, a vontade estatal, sofra o influxo da
vontade de todos, não pela imposição de uma maioria, mas que todos possam
participar da formação dessa vontade.
Uma das alternativas é a própria mudança dessa estrutura de espaço de
discussões, buscando posicionar o indivíduo no centro de decisão, com
capacidade de influenciar a construção constitucional dos direitos e garantias
fundamentais, não somente como sendo objeto de direito, mas como participante
de sua própria concretização.
Esta mudança proporcionará um desenvolvimento de indivíduos capazes de
exercer seus direitos e suas liberdades, fomentando uma resolução pacífica de
conflitos, em especial dos conflitos de ódio, mediante um ambiente propício ao
diálogo e com reduzida atuação do Estado.
Este ambiente de diálogo, não é mais um espaço físico, como fora outrora,
como a rua ou a praça pública48. Hodiernamente vemos que os meios de
comunicação de massa atuam em espaços cada vez maiores, fomentando a
disseminação de ideias e atingindo um público cada vez maior. Estes meios podem
substanciar contribuições fundamentais para o reconhecimento da pluralidade,
bem como para a apresentação de outras perspectivas sobre um mesmo

48
CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Dimensões das liberdades de informação e de expressão:
elementos do discurso público. EJJL, Joaçaba, v. 17, n.1, p. 83-98, jan./abr. 2016
51

fenômeno, propiciando assim um campo fértil para o debate e, consequentemente


para o próprio exercício da cidadania.
John Stuart Mill foi um dos principais teóricos a defender essa ideia de
criação de um espaço público argumentativo, em seu livro Ensaio sobre a
liberdade49 o autor desenvolve uma tese que foi posteriormente denominada de
livre mercado de ideias50. Para o autor seria necessário a criação de um espaço
em que ao mesmo tempo propiciasse a circulação de opiniões e ideias de forma
livre, também fosse um espaço protegido de abusos cometidos tanto pelo Estado
quanto pelas maiorias.
Para o autor, a tirania das maiorias era ainda mais perigosa do que aquela
exercida pelo próprio Estado. Portanto, o espaço público de ideias deveria
corresponder a uma zona de proteção sobre a qual o Estado e as maiorias não
poderiam intervir no sentido de sua repressão. Espaço este em que predomina a
liberdade individual, onde os indivíduos são livres para manifestarem-se da forma
que quiserem e, por mais que ocorram conflitos de ideias, ao longo prazo
certamente triunfarão os melhores argumentos51.
Dentro de uma verdadeira democracia, sob a ótica do autor, é de extrema
importância que todos expressem suas opiniões e que, por mais detestável que ela
seja, a priori, ainda assim ela deve ser protegida. O fortalecimento desta
democracia ocorreria por essa esfera pública correspondente a um espaço
permanentemente aberto, onde todos, sem exceção, estariam convidados a
participar e opinar sobre qualquer assunto52.
A metáfora do mercado livre de ideias de Mill é uma criação teórica visando,
justamente, a defesa das liberdades individuais frente às arbitrariedades dos
detentores do poder, a exemplo dos Estados e das maiorias. Liberdades estas que
abrangeriam a liberdade de consciência e de opinião sobre todas as questões53.
Por mais que pareça que, com a possibilidade da coexistência de diversos
discursos, surgissem argumentos ofensivos e intolerantes, sua tese repousa na
crença de que, a longo prazo, este espaço acabaria por selecionar os argumentos

49
MILL, Stuart. Ensaio sobre a liberdade. São Paulo: Escala, 2006
50
É necessário ressaltar que, em seus escritos, Mill jamais indicou expressamente a existência de um “livre mercado de
ideias”, mas, nem por isso, a expressão deixa de ser uma excelente metáfora para elucidar e condensar boa parte da tese
desenvolvida em seu livro Sobre a liberdade. Na verdade, o grande responsável por incorporar essa expressão ao
pensamento de Stuart Mill, foi Oliver Wendell Holmes Jr. – um dos mais influentes juízes da história da Suprema Corte dos
Estados Unidos – especialmente quando utilizou os termos “free trade in ideias” e “the competition of the Market” em seu
famoso dissent em Abrams v. United States. ASSAF, Matheus. Liberdade de expressão e discurso de ódio: porque
devemos tolerar ideias odiosas? Dissertação (Mestrado em Direito), Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018, p. 42.
51
Ibid., p. 44.
52
MILL, Stuart. Op.cit., p.80.
53
ASSAF, Matheus. Op. cit., p. 35.
52

mais coerentes e fundamentados, ocorrendo assim uma espécie de “evolucionismo


das ideias”54.
Nesse sentido a restrição à liberdade de expressão não reduzirá o discurso
de ódio, mas ao contrário, quanto maior for a circulação e contato entre ideias
divergentes, maior será o grau de tolerância de uma sociedade e menor serão as
manifestações do discurso de ódio. É preciso que se vivencie a liberdade de
expressão, exercitando o debate e reconhecendo que em uma sociedade convivem
os mais variados pontos de vistas e opiniões55.
Por mais que um Estado se esforce para normatizar mais e mais a
sociedade, a simples normatização de condutas não aproxima os indivíduos.
Muitas vezes percebemos que a normatização acaba por até mesmo afastar um
ser humano do outro. Vemos aflorar, atualmente, um discurso de que os grupos
minoritários prejudicam os interesses das classes por terem um tratamento
diferenciado, através de medidas positivas do Estado, contribuindo ainda mais para
uma ideia de exclusão social por conta do seu tratamento privilegiado.
No discurso a respeito da liberdade de expressão, um dos fortes argumentos
é aquele de que o Estado não deve interferir nos conteúdos que circulam pelos
diversos meios de comunicação, pois justamente a proposta é a livre circulação de
diferentes conteúdos na arena deliberativa e que, portanto, necessitam de proteção
frente a qualquer espécie de intervenção arbitrária por parte do Estado, é o que os
autores como Clèmerson Merlin Clève e Bruno Meneses Lorenzetto vão chamar
de sentido negativo da liberdade56.
Todavia, esses mesmo autores, vão chamar a atenção para o aspecto de
que há a necessidade de as informações que circulam na arena deliberativa
possuírem um mínimo de respeito à dignidade da pessoa humana. Desta forma,
em que pese haver fortes resistências a este entendimento, não se descarta uma
eventual ação estatal no sentido de preservar a pluralidade dos espaços
deliberativos sem, no entanto, direcionar-se a uma censura57.

54
Por detrás do pensamento de Stuart Mill há uma crença subjacente na narrativa do progresso. Entretanto não se quer
dizer com isso que todas as ideias que se destacam na livre competição do ‘mercado’ são sempre as melhores, Mill sabe
da ingenuidade que seria afirmar tal coisa. A sua confiança é que, no longo prazo, a livre troca de ideias nos aproximaria da
‘verdade’, de modo que os argumentos mais fortes e mais bem fundamentados sobressairiam aos demais. ASSAF, Matheus.
Op. cit., p. 35.
55
SANKIEVICZ, Alexandre. Liberdade de expressão e pluralismo: perspectivas de regulação. São Paulo: Saraiva, 2011,
p. 42.
56
A proibição constitucional da censura visa a obstar o controle estatal sobre o conteúdo das produções comunicativas.
CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Op. cit., p. 85.
57
O que, como se sabe, não significa eximir de responsabilidade, penal ou cível, aqueles que produzem mensagens
residentes em lugar exterior ao âmbito de proteção jurídica dos direitos fundamentais em questão. No que se refere à esfera
pública, o conteúdo expresso pelos indivíduos pode encontrar argumentos (não unânimes) no sentido da sua vedação
quando o discurso veicular mensagens de ódio, intolerância ou insuportavelmente ofensivas. Ibid., p. 85.
53

Tanto é que a atuação do Estado não é vista apenas por seu aspecto
negativo, ou seja, do não fazer, mas também temos que ter em conta que a
efetivação dos direitos fundamentais, dentro da perspectiva da circulação de ideias
na arena deliberativa, também reclama uma atuação positiva do Estado, visando
justamente a criação de um âmbito de proteção à própria liberdade de expressão
e informação.
Este atuar do Estado não corresponderia à uma postura de modo a
censurar o discurso público, mas justamente o contrário, fomentar o debate público
promovendo as condições necessárias para que a própria comunidade envolvida
na arena, mediante o contato das mais diferentes opiniões, possa refletir e
selecionar os argumentos que irão ou não persistir no debate58.
Há que se atentar, no entanto, para o grau de intervenção do Estado, ou
seja, que tal intervenção não acarrete uma “indução” ao resultado das reflexões,
pois o que se está em jogo é o interesse dos indivíduos enquanto sociedade e não
os interesses estatais59. Por mais ofensivo que possa, inicialmente, parecer um
determinado discurso, ele deve ser considerado um elemento importante para a
própria formação argumentativa da arena.
Ocorre que, há determinadas situações em que o discurso propagado na
arena acaba por abalar a própria comunidade discursiva. É o exemplo, no presente
contexto, das manifestações de ódio, pois elas fomentam a supressão de direitos
e ferem direitos fundamentais, não podendo o Estado permanecer inerte em casos
como este. Dentro desta perspectiva, ou seja, nos casos de manifestações de
discursos de ódio, o Estado pode, em caráter excepcional, observada as
exigências constitucionais, deixar sua postura neutra para preservar a própria
arena deliberativa60.
Esta atuação, eventual, apenas em situações extremamente necessárias,
deve ser respaldada na legalidade e na legitimidade, visando à proteção da própria
arena deliberativa no sentido de possibilitar as melhores condições para a
disseminação dos discursos públicos para o maior numero de pessoas, bem como
a participação do maior número de pessoas na própria formação deste discurso.

A adequada tutela das liberdades de informação e de expressão


é indispensável para aqueles que produzem novos conteúdos e, também,
para os destinatários das mensagens, que possuem o direito de receber
as melhores informações disponíveis. Por isso, deve-se ter o cuidado de

58
Ibid., p. 87.
59
Ibid., p. 88.
60
Ibid., p. 87.
54

não realizar uma leitura simplista de tais liberdades. Nessa linha, importa
demandar adequadas e robustas justificações por parte da autoridade
para a adoção de eventuais políticas públicas envolvendo intervenção na
área em questão. A conjunção desses elementos tem como finalidade a
preservação da pluralidade, compreendida em sentido amplo,
manifestada nas críticas, opiniões e nas divergências. Ora, o silêncio dos
túmulos ou aquele decorrente da violência não é compatível com as
exigências de um verdadeiro Estado Democrático de Direito 61.

O primeiro passo para a mudança dessa situação, mediante a construção


de um espaço deliberativo, é admitir que o conflito de ideias existe. É constatar que
a sociedade é um plural composto das mais diversificadas particularidades e visões
de mundo e que para uma efetiva construção de um constitucionalismo
democrático é necessário reconhecer o pluralismo social e abrir espaço público
para o debate de ideias.
Para Samantha Ribeiro Meyer-Pflug62, o Estado deve fazer o papel de um
facilitador, propiciando o fortalecimento do próprio indivíduo em si, para que ele
possa reconhecer-se enquanto um ser político e com capacidade de manifestação
e opinião. Um dos exemplos para materializar a construção deste espaço seria um
aumento considerável de participação política. Por mais que estejamos sob um
cenário de democracia representativa, é possível que a participação política seja
estendida pela aproximação entre o indivíduo e o partido político. O partidarismo,
assim, seria um início de envolvimento social do indivíduo nas questões políticas,
oportunizando a ele um campo para a participação no debate.
Há que se ter em mente, no entanto, que há muita desigualdade de
condições entre os partidos existentes, muito fomentada pelos financiamentos
privados e pelas influências de grandes empresas na própria manutenção de tais
partidos63. Assim, é bem possível que a força do capital afete a igualdade no debate
de ideias, reduzindo a possibilidade de que os grupos minoritários possam ter uma
efetiva autonomia publica, haja vista o desnivelamento ocorrido pela força dos
partidos patrocinados por esses grupos econômicos.
Um outro instrumento de capacitação do indivíduo na circulação de ideias é
a cultura64. O financiamento público de atividades artísticas deve zelar pelo
pluralismo e contribuir para o conhecimento elevando o nível da informação. A
democratização da cultura possibilita a difusão de manifestações de todas as

61
Ibid., p. 96.
62
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Op. Cit., p. 515.
63
Ibid., p. 516.
64
Ibid., p. 516.
55

identidades, abrindo caminho para que grupos minoritários tenham acesso e


visibilidade e, portanto, manifestem-se na arena deliberativa.
De qualquer forma, temos que muito da construção deste espaço público de
ideias, perpassa pelo empoderamento dos próprios sujeitos que o integram, no
sentido de sentirem-se livres para exporem suas ideias e opiniões e que predomine
sobre este espaço somente o controle social, limitado a intervenção estatal
somente para propiciar a existência da própria arena deliberativa.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O discurso de ódio contribui para criar um clima geral de intolerância que


gera consequências muito concretas para os grupos afetados e para a sociedade
em geral. Um dos objetivos principais do discurso é difamar as pessoas que
formam parte de grupos vulneráveis, a exemplo da difusão de estereótipos e
“bodes expiatórios” como sendo responsáveis pelos problemas da sociedade. O
espaço público é uma via de mão dupla, pois ao mesmo tempo que oportuniza a
difusão do discurso de ódio, onde ele pode ser manifestado sob as suas mais
diversas formas e se produzir em diferentes contextos, também vislumbramos no
próprio espaço público, um cenário de fortalecimento da democracia e de
tolerância.
A liberdade de expressão é de extrema importância em sociedades que se
entendem por democráticas, portanto a luta contra o discurso do ódio não deve
confundir-se nunca com a supressão das liberdades fundamentais. O combate
contra o discurso do ódio não significa limitação ou proibição da liberdade de
opinião e expressão. Significa antes estabelecer parâmetros, balizas, evitando que
a liberdade de expressão se degenere para algo mais perigoso, especialmente, na
incitação à discriminação, a hostilidade e a violência.
As sociedades dispõem de inúmeras maneiras de resistir ao discurso de
ódio e suas repercussões. O mais importante é assegurar que os indivíduos sejam
capazes de resistir tanto ao discurso quanto às divisões sociais que ele tende a
provocar. Os Estados são responsáveis por velar para que as políticas públicas e
os programas de não discriminação, integração e direitos humanos sejam
aplicados, assim como outros atores sociais, a exemplo dos meios de
comunicações e, principalmente, os próprios indivíduos tenham a consciência de
que desempenham uma função e responsabilidade para contribuir na construção
de sociedades pacíficas e inclusivas.
56

É no espaço público que as ideias circulam, que as visões de mundo se


chocam e onde o diálogo se realiza. O dialogo, a troca, constroem a realidade,
influenciam na percepção que transmitimos às futuras gerações a respeito do
mundo que nos rodeia. Se queremos uma sociedade inclusiva, em que todas as
pessoas possam desfrutar de seus direitos a não serem discriminados e a viver
com dignidade, não podemos nos dar ao luxo de minimizar a carga que carregam
as manifestações e discursos que utilizamos em público. Para superarmos as
diferenças, devemos partir de um diálogo respeitoso e inclusivo e não duvidar
nunca que as palavras importam.

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SOUZA, Mariana Jantsch de. Discurso de ódio e dignidade humana: uma
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Oliver Wendell Holmes Lectures, Havard Law Review, v. 123, p. 1597-1655, 2010.
59

ASPECTOS GERAIS DA TEORIA ARGUMENTATIVA DE NEIL MACCORMICK


- DIVERGÊNCIA DE JUSTIFICAÇÃO E A PRESENÇA DE ARGUMENTOS
CONSEQUENCIALISTAS EM DECISÕES JUDICIAIS DE DIREITO À MORADIA

Elisângela Marli Zakszeski 1

RESUMO: O Presente trabalho adentra no campo da teoria da argumentação jurídica, tendo como
enfoque principal do estudos a Teoria Integradora da Argumentação Jurídica de Neil MacCormic
com relação aos seus argumentos pressupostos de justificação e aos argumentos
consequencialistas. Ao final, será apresentada uma análise de decisão judicial de Políticas pública
voltada a área da moradia, através da aplicação dos pressupostos da teoria aqui estudada.

Palavras-chave: Maccormick -Teoria Integradora- Justificação- Consequência

ABSTRACT: The present work enters the field of the theory of legal argumentation, having as main
focus of the studies the integrative theory of legal argumentation of Neil MacCormic and in relation
to its arguments assumptions of justification and arguments Consequentialists, at the end, an
analysis of the judicial decision of public policies focused on the area of housing will be presented,
through the application of the assumptions of the theory studied here.

Keywords: MacCormick-Integrative theory-justification-consequence

1 INTRODUÇÃO

Inicia-se através da apresentação dos aspectos gerais da teoria


argumentativa dos anos de 1950, abordando-se de forma resumida os que mais se
destacaram, assim como, os pontos negativos e positivos.
Passa-se após, a abordar uma das principais teorias que originaram
dessas primeiras concepções, sendo uma das mais importantes, segundo Manuel
Atienza2, obra está que se utiliza como principal referencial teórico da presente
pesquisa, principalmente com relação aos argumentos que devem compor a
justificação de uma decisão judicial, passa-se aos problemas de interpretação e ao
final, efetuaremos uma análise entre duas decisões judiciais proferidas
recentemente no âmbito de política públicas de moradia, abordando a questão da
interpretação e a presença ou não de argumentos consequencialíssimas no
sistema brasileiro.

1
Mestranda em Direito junto ao Programa Interinstitucional de Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia-MINTERI-
UNIBRASIL, Linha de Pesquisa: Jurisdição e Democracia. Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera-
Uniderp(2010). Procuradora efetiva do Poder Legislativo do Município de Cruz Machado-Estado do Paraná e conselheira e
relatora do Conselho Subseccional de Ética de União da Vitória-Estado do Paraná. ORCID id: 0000-0003-3247-3868

2
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teoria da argumentação jurídica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.p.133
60

Observa-se que a Constituição da República Federativa do Brasil e o Código


de Processo Civil Brasileiro de 2015, ressaltam a necessidade de fundamentação
nas decisões judiciais, sob pena de nulidade, ou seja, todas as decisões judiciais
deve, obrigatoriamente, justificar o porquê daquela tomada de decisão.
Neste ínterim, o presente estudo, objetiva através da apresentação de duas
decisões judiciais como o mesmo direito a ser discutido, qual seja, o direto a
moradia, se as mesmas o foram devidamente justificadas e senão há divergências
ou problemas de intepretações nestas decisões usando para tanto, os argumentos
da teoria de MacCormick, por fim, efetua-se as considerações finais, a partir do
aqui abordado e do resultado da comparação entre as decisões judicias
apresentadas.
A presente pesquisa baseou-se em um estudo descritivo analítico,
desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, mediante explicações embasadas
em trabalhos publicados em forma de livros e publicações.

2 O INÍCIO DE TUDO

Nos anos de 1950, surgiram segundo Atienza,3 diversas concepções, as


quais este destaca como possuidoras de problemas, o que obstaria estas a serem
aceitas como uma teoria satisfatória de argumentação jurídica. Destaca o Atienza,
a tópica de Viehweg ( técnica de interpretação do direito cuja finalidade é indicar
meios de como se agir diante de problemas e a busca de uma solução justa para
qualquer caso.); a nova retórica de Perelman(a lógica da argumentação, dos
valores, que não existe nada em absoluto, coisas mais ou menos corretas,etc) e a
lógica informal de Toulmin( o argumento apropriado e convincente variaria de
acordo com o contexto histórico, disciplinar ou social, não se pautando na tradição
tópica ou retórica).
Apesar de divergentes estas teorias teriam em comum a questão da
rejeição do modelo da lógica dedutiva, indicando limites e destacado o equívoco
em reconstruir a argumentação jurídica, neste ponto, Atienza cita como pontos
negativos destas o fato destas teorias não serem complexas suficientes e que
pecariam no desenvolvimento e por isso não são aceitas como uma teoria
argumentativa satisfatória. O ponto positivo, entre estas, seria a questão de que

3
Idem
61

todas procederam abertura de um novo campo de investigação, levando a serem


precursoras das atuais teorias da argumentação jurídica. 4
Duas teorias da argumentação jurídica tiveram grande relevância, sendo:
Neil MacCormick 5 e a de Robert Alexy, que apesar de tradições filosóficas e
jurídicas muito diferentes, MacCormick de : Hume, Hart e a tradição da common
law(não apenas a inglesa, mas a escocesa também); e, Alexy de: Kant, Habermas
e a ciência jurídica alemã, acabaram por formular concepções de argumentação
jurídica muito semelhantes.6

3 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

“Argumentar é uma atividade que, valendo-se de recursos lógico–formais e


de linguagem, tenta convencer outrem de que um determinado sentido ou tese é a
melhor alternativa para solução de um problema ou dificuldade”. Assim, durante o
exercício dessa “atividades são expostas razões para chegar a certas conclusões,
as quais podem ser aplicadas aos casos em análise.7
Inquestionável que “a prática do direito esteja ligada essencialmente em
argumentar [..]e que a qualidade que melhor define o que se entende por um “bom
jurista” talvez seja a sua capacidade de construir argumentos e manejá-los com
habilidade.8 Assim, ter-se-ia que a argumentação jurídica é um importantíssimo
instrumento da prática jurídica.
Acontece que a decisão judicial desde remotos tempos provoca certo temor
às pessoas e pensamentos pessimistas. Dworkin ao reporta-se sobre a decisão
judicial, no sentido de que esta seria importante como os juízes decidem os casos,
“para as pessoas sem sorte, litigiosas, más ou santas o bastante para ser verem
no tribunal.”9
O temor também é lembrado por Dworkin, ao citar um dos mais famosos
juízes do Estados Unidos, Learned Hand, o qual dizia “ter mais medo de um
processo judicial que da morte ou dos impostos”10 E por fim, finaliza Dworkin:

4
ATIENZA, 2006, p.133
5
Donald Neil MacCormick -Foi catedrático de Direito Público na Universidade de Edimburgo, Escócia, foi um atuante jurista
na área de raciocínio jurídico e sobre relações entre direito, moral e política. Publicou obras como “Argumentação Jurídica
e Teoria do Direito” (1978) e “Razão Prática no Direito e Moralidade; Retórica e o Estado de Direito(2005). Faleceu em 05
de abril 2009.
6
ATIENZA, 2006, p. 134
7
Idem.
8
ATIENZA ,2006, p.13
9
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução; Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.03
10
Idem
62

A diferença entre a dignidade e ruína pode depender de um simples


argumento que talvez não fosse tão poderoso aos olhos de outro juiz, ou
mesmo o mesmo juiz no dia seguinte. As pessoas frequentemente se
veem na eminência de ganhar ou perder muito mais em decorrência de
um aceno de cabeça do juiz do que de qualquer norma geral que
provenha do legislativo.11

Já Hans Kensen12, reporta que no Estado ideal de plantão, uma decisão


judicial é proferida através da apreciação inteiramente livre do juiz, conforme cita:

No Estado ideal de Platão, no qual o juiz pode decidir todos os casos


segundo a sua apreciação inteiramente livre, isto é, não limitada por
quaisquer normas gerais ditadas por um legislador, apesar disso cada
uma das suas decisões é aplicação da norma geral que fixa os
pressupostos sob os quais um indivíduo recebe autoridade ou
competência para fazer o papel de juiz. Somente com base nesta norma
pode ele ser considerado juiz do Estado ideal, pode a sua decisão ser tida
como operada dentro do Estado ideal, pode ser atribuída a esse Estado
ideal. (grifo nossos)

Para Kelsen13 “uma decisão judicial não tem, como por vezes se supõe, um
simples caráter declaratório. O juiz não tem simplesmente de descobrir e declarar
um direito já de antemão firme e acabado, cuja produção já foi concluída”14.
Nesse sentido Kelsen dispõe que a função do Tribunal ao proferir uma
decisão não seria apenas “ simples “descoberta” do Direito ou jurisdição”
(“declaração” do Direito) neste sentido declaratório”, pois a “ descoberta do Direito
consiste apenas na determinação da norma geral a aplicar ao caso concreto”, ou
seja, teria um caráter constitutivo.15
Alinhado a este pensamento, de ser a decisão judicial muito mais do que
declarar um direito, Neil MacCormick elaborou uma das mais arrojadas teorias da
argumentação jurídica, através da obra “Argumentação Jurídica e Teoria do Direito”
(Legal Reasoning and Legal Theory)(1978), tendo como objetivo principal
investigar a estrutura racional subjacente ao processo de aplicação de normas
jurídicas, tendo como pressuposto uma visão da argumentação jurídica como uma
ramificação da argumentação prática, que o autor define como o processo racional
de decisão. O positivismo jurídico de Hart e a tradição jusfilosófica inglesa e

11
Idem
12
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito / Hans Kelsen; [tradução João Baptista Machado]. 6ª ed. - São Paulo :Martins
Fontes, 1999.
13
Idem
14
Idem
15
Idem
63

escocesa do common law serviram como pano de fundo teórico para a primeira
fase da obra de MacCormick, objeto do presente estudo.16
Neil MacCormick, em sua primeira fase, constante do início de sua carreira
até 1981, se reconhecia como positivista e tinha como principal objetivo o
desenvolvimento das ideias de Hart e de seu o conceito de direito, onde o principal
foco de pesquisa era o estudo da argumentação jurídica, trazendo uma
contribuição particular e inovadora , pois adentou no árido tema da decisão judicial
até então, desprezada pela teoria do direito e pelo positivismo jurídico como um
todo.17
MacCormick em sua obra Argumentação Jurídica e Teoria do Direito(1978),
tentou harmonizar: a razão prática kantiana(a razão pura é prática por si mesma)
com o cetismo humano, onde a teoria prática deve ser comtemplada com a teoria
da paixões; a construção de uma teoria tanto descritiva quanto normativa; que de
conta dos aspectos dedutivos da argumentação quanto não dedutivos; dos
aspectos formais e dos materiais e que se situe , no meio do caminho entre uma
teoria da existência ultrarracionalista do Direito(Dworkin, com a sua tese da
existência de uma única resposta correta para cada caso) e uma
irracionalista(como de Ross: as decisões jurídicas são essencialmente arbitrárias,
sendo produtos da vontade e não da razão. 18
Para MacCormick, a teoria da argumentação prática em geral e
argumentação jurídica em particular cumpririam uma função justificadora (de
acordo com os fatos estabelecidos e com as normas vigentes). Já a argumentação
explícita pode ser encontrada nas sentenças judiciais, sua pretensão seria encobrir
as verdadeiras razões da decisão, pressupondo a ideia de justificação.
MacCormick portanto, parte da distinção entre o contexto de descoberta e o de
justificação e situa a sua teoria da justificação jurídica precisamente neste campo.19
Ter-se-ia, a teoria de MacCormick, como prescritiva e descritiva e além de
abordar as condições de uma decisão judicial para ser aceita como justificada,
pretende que elas se justifiquem precisamente de acordo com o seu modelo.
Assim, a teoria de MacCormick consistiria na formulação de uma série de hipóteses

16
BETTI, Gabriel Rubinger; ROESLER, Cláudia. AS LIMITAÇÕES E POSSIBILIDADES DOS CRITÉRIOS AVALIATIVOS
PROPOSTOS POR NEIL MACCORMICK PARA A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA. Disponível:
w.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_informativo/bibli
_inf_2006/Rev-Dir-Garant_v.18_n.1.07.pdf. Acesso em: 05 de julho de 2019.
17
KOZICKI, Katya; PUGLIESE, Willian. Direito, estado e razão prática: a teoria do direito de Neil Maccormick. p.2-3
18
ATIENZA, 2006, p. 135
19
Idem
64

falseáveis, utilizando este as decisões publicadas dos tribunais de justiça britânicos


(Inglaterra e Escócia).

4 UMA TEORIA INTEGRADORA

MacCormick parte da consideração, onde, ter-se-ia alguns casos, em que


as justificações que os juízes articulam seriam de caráter estritamente dedutivo
e como forma de provar esta cita, como exemplo, a sentença do Juiz Lewis J. no
caso Daniels versus Tarbard(1938-), onde segundo sua narrativa, Daniels teria
comprado no bar da Sra. Tarbard, uma limonada que estaria contaminada com
ácido carbólico o que causou danos a Daniels e sua esposa e, diante de que numa
venda deste tipo, entende-se que há uma condição implícita em que a mercadoria
deve ter uma qualidade comerciável e quem descumpre esta condição tem
obrigação de indenizar pelos danos e prejuízos. Portanto a senhora Tarbard deve
indenizar Daniels. Usando este exemplo, MacCormick, escreve a sentença em
questão na forma de colocar limites, nos seguintes termos: Se uma pessoa (Sra.
Tarbard) transfere a propriedade de suas mercadorias(limonada) para outra
pessoa (Daniels)por uma soma de dinheiro, então existe um contrato de compra e
venda entre ambas as partes[...]. Assim, se um vendedor descumpriu uma
condição do contrato, então o comprador teria o direito de ser indenizado, pelos
danos e prejuízos, equivalente à perda resultante direta e naturalmente do
descumprimento da condição por parte do vendedor).20
Assim, MacCormick, adverte que o que a lógica determinada é a obrigação
do juiz de sentenciar, mas não a sentença do juiz como tal; ou seja, a ordem do
juiz ou de um tribunal , condenando a outra parte a pagar certa quantia em dinheiro
já não é um produto lógico, embora o que justifique essa decisão seja precisamente
um raciocínio logico-dedutivo. 21. Clareando este entendimento: Significa que uma
decisão jurídica precisa, pelo menos, estar justificada internamente, e que a
justificação interna é independente da justificação externa, no sentido de que a
primeira é condição necessária, mas não suficiente para a segunda e a segunda
questão, se refere a questão se o juiz não condenar o fabricante e sim o absolve,
não é por considerar que este não é o responsável, mas por entender que o

20
ATIENZA, 2006, p.138
21
ATIENZA, 2006,p. 139
65

demandante não pode provar tal responsabilidade, ou seja, a existência de regras


de direito adjetivo que regulam a importância da prova deixa clara a relevância da
lógica dedutiva para a justificação das decisões jurídicas.22

5 A JUSTIFICAÇÃO DEDUTIVA E OS SEUS PROBLEMAS

Neste ponto, segundo Maccormick23 ter-se-ia a justificação dedutiva a qual


teria pressupostos e seus limites, sendo o primeiro ao fato de que juiz tem o dever
de aplicar as regras do Direito válido, sem entrar no mérito da natureza desse
dever, ou seja, a justificação dedutiva se produz no contexto de razões subjacentes
e, para tanto, obrigam os juízes em questão e que às vezes as razões pesam mais
do que o dever de fazer justiça. O segundo ponto, é que o juiz pode identificar as
regras válida, o que implica aceitar a existência de critérios de reconhecimentos
compartilhados pelos juízes. Portanto, em alguns casos, nos chamados fáceis, as
justificações dos juízes seriam a justificação dedutiva. 24
Com relação a justificação em casos difíceis25, MacCormick aponta os
problemas que podem envolver, sendo o primeiro, o problema de interpretação, ou
sejam a norma vir a admitir mais de uma leitura. O problema de pertinência, ou
seja, não é a questão de como se há de interpretar a norma, mas sim se existe tal
norma. O problema de prova, ou seja, estabelecer proposições verdadeiras sobre
o presente e a partir delas, inferir proposições sobre o passado. Não é a prova da
verdade, mas sim teste de coerência, o fato de que todas as peças da história
parecerem se ajustar bem. 26
MacCormick destaca que os problemas de prova são problemas de caráter
particular, já que se restrigem a uma determinada situação ou a um número
diminuto de situações semelhantes, ao contrário dos problemas de interpretação e
pertinência, que têm um caráter de universalidade27.
O problema de qualificação28, seriam em casos de não haver dúvidas sobre
a existência de determinados fatos primários (que se considerem aprovados), mas

22
ATIENZA, 2006, p.140
23
ATIENZA, 2006, p.141
24
Idem
25
Idem
26
Idem
27
MACCORMICK, 2006, p. 118
28
Idem
66

o que se discute é se eles integram ou não um caso que possa ser subsumido no
caso concreto da norma. Ex: Caso MacLennam propõe ação de divórcio fundada
no fato que sua esposa teria cometido adultério, deu a luz, 11 meses, após a última
relação do casal. A esposa admitiu que concebeu o filho por inseminação artificial.
Questiona-se pode se falar em adultério no caso de inseminação artificial?29
Destaca MacCormick, que “embora os problemas de interpretação e de
qualificação sejam logicamente equivalentes, há razões de tipo processual
(relacionadas com a distinção entre questões de fato e questões de direito) para
manter aquela distinção.”30 Ou seja, “ o recurso de apelação costuma se limitar às
questões de Direito, de modo que esse recurso só é possível caso se entenda que
o problema é questão de interpretação.”31 Agora, se ao contrário, se tratar-se de
uma questão de qualificação, “um problema fático(p.ex. quando se trata de aplicar
critérios como o de “razoabilidade”), isso quer dizer que, com vistas ao futuro, a
decisão tomada a respeito não em valor de precedente.”32

6 A UNIVERSALIDADE DE UMA DECISÃO JUDICIAL

Qual seria o caminho, ou melhor o que consistiria “argumentar juridicamente


quando a justificação dedutiva não basta?”33 MacCormick, afirma que justificar uma
decisão difícil significa em primeiro lugar, cumprir o requisito da universalidade e
em segundo lugar, que a decisão em questão tenha sentido em relação ao sistema
(cumpra os requisitos de consistência e de coerência) e em relação ao mundo
(argumento consequencialista). 34
O requisito da universalidade está implícito na justificação dedutiva, onde
para justificar uma decisão normativa, se conte pelos menos com uma premissa
que seja a expressão de uma norma geral ou de um princípio, onde, “a favor de
uma pretensão ou conclusão é preciso aprender não só razões concretas, mas
também a garantia que permite passar das razões à conclusão.35
MacCormick (seguindo Hare), esclarece que universalidade não é o mesmo
que generalidade e não é afastada na decisão por equidade, pois uma norma pode
ser mais específica do que outra, mas ser igualmente universal. 36

29
ATIENZA, 2006,p.142-143
30
ATIENZA, 2006,p.143
31
Idem
32
Idem
33
ATIENZA, 2006,p. 144
34
Idem
35
Idem
36
ATIENZA,2006, p.145
67

Com relação a decidir segundo critérios de equidade não significa ferir o


princípio da universalidade, pois uma decisão equitativa implica introduzir uma
exceção numa regra geral para evitar um resultado injusto, mas o critério utilizado
na decisão equitativa tem de valer também para qualquer outro caso com as
mesmas caraterísticas. Ou seja, ao usar o critério por equidade em um caso, o juiz
deverá também fazer uso deste em todos os demais casos análogos a estes.
Assim, a equidade dirige-se contra o caráter geral das regras, não contra o princípio
da universalidade.37

6 O PARÂMETRO DA ESCOLHA ENTRE AS NORMAS

Como justificar a escolha de uma ou outra norma geral? Pela justificação


externa. Ou seja, decisões semelhantes precisam ter sentindo tanto em relação ao
sistema jurídico de que trata quanto em relação ao mundo.38 E como uma decisão
jurídica terá sentido com relação ao sistema? Segundo MacCormick, ela terá que
satisfazer aos requisitos de consistência e quando fundar-se em premissa
normativas que não entram em contradição com normas estabelecidas de modo
válido. Atienza complementa, afirmando que essa exigência deve ser estendida
também as premissas fáticas, ou seja, quando há problemas de provas e que as
proposições sobre o passado não devem entrar em contradição com as afirmações
verdadeiras sobre o presente, assim, o requisito de consistência deriva, por um
lado da obrigação dos juízes de não infringir o direito vigente e por outro lado,
também, de se ajustar à realidade em termos de provas;39 É certo que:

tanto com relação às normas quanto com relação aos fatos, as decisões
devem , além disso, ser coerentes, embora, por outro lado , a consistência
não seja sempre uma condição necessária para a coerência: a coerência
é uma questão de grau, ao passo que a consciência é uma propriedade
que simplesmente se dá ou não se dá; por exemplo, uma história pode
ser coerente em seu conjunto, embora contenha alguma inconsistência
interna(cf. MacCormick, 1984,p.38.40

Maccormick, ensina que estaremos de uma coerência normativa quando


uma norma estiver em consonância com uma série de princípios gerais ou de
valores que, por sua vez, sejam aceitáveis, no sentido de que configurem uma

37
Idem
38
ATIENZA,2006, p.147
39
ATIENZA, 2006, p.147
40
ATIENZA, 2006, p.148
68

forma de vida satisfatória. Seria a coerência um mecanismo de justificação,


pressupõe a ideia de que o direito é uma empresa racional; porque está de acordo
com a noção de universalidade como componente da racionalidade na vida prática
ao permitir considerar as normas não isoladamente, mas como um conjunto
dotados de sentido, a certeza do direito, permitem orientar e conduzir a conduta
das pessoas.41
A coerência Narrativa, segundo MacCormick42, propõe um teste com relação
as questões de fato, quando não é possível uma prova direta, por observação
imediata, dessa questões. Assim, ter-se-ia com relação aos tipos de coerência que:

A coerência narrativa justifica crenças sobre um mundo que é


independente de nossas crenças sobre ele; ao passo que, no caso da
coerência normativa, não há por que pensar na existência de algum tipo
de verdade última, objetiva, independente dos homens. Resumindo, a
coerência é sempre uma questão de racionalidade, mas nem sempre uma
questão de verdade (MacCormick,1984b, p.53) 43 a coerência é sempre
uma questão de racionalidade, mas nem sempre uma questão de
verdade.

A respeito ainda da coerência normativa, esta viria de dois tipos de


argumentos que teriam uma grande papel na resolução dos casos difíceis, sendo
os argumentos a partir de princípios, onde os princípios caracterizam em primeiro
lugar , por serem normas gerais, o que faz que cumpram uma de função explicativa
e porque tem um valor positivo o que faz que cumpram uma função de justificação,
sendo que os princípios exprimem o fim a alcançar ou a desejabilidade do modelo
geral de conduta, são necessários para justificar uma decisão num caso difícil,
porém, um argumento baseado em princípios não tem caráter concluente, como
teria se o fosse em norma obrigatória.44
Por fim, ter-se-ia os argumentos por analogia os quais também possuiriam
caráter inconcludente, não sendo mais que uma hipótese de uso não ou tão
explícito de princípios e que pressupõe também coerência com o direito e implica
sempre um momento avaliativo, pois as semelhanças entre os casos não são
encontradas, mas construídas.45

7 O CONSEQUENCIALISMO

41
Idem
42
Idem
43
ATIENZA,2006, p.149
44
ATIENZA,2006, p.150
45
Idem
69

As decisões judiciais precisam ter sentido não apenas ao sistema, mas com
relação ao mundo. MacCormick, segundo Atienza, destaca que na justificação de
uma decisão em casos difíceis, o que se faz é uma interação entre argumentos a
partir de princípios(incluso o uso da analogia) e de argumentos
consequencialistas.46 “ A argumentação jurídica dentro dos limites marcados pelos
princípios de universalidade, consistência e coerência é essencialmente uma
argumentação consequencialistas”.47
Mas o que seria uma argumentação consequencialista?48 Cita como
exemplo de argumento consequencialista o caso MacLennan x MacLennam(a
hipóteses de adultério por utilização de técnicas de inseminação artificial). Ou seja,
significaria aceitar que se pode cometer adultério com um morto, o que não parece
ser razoável. Portanto, decisões judiciais geram consequências na sociedade de
modo geral e não apenas para as partes envolvidas. 49 Assim, o resultado da ação
do juiz ao decidir um caso consiste em produzir uma norma válida e as
consequências são definidas em “o estado das coisas, posterior ao resultado.50
Assevera-se que, “os argumentos consequencialistas são, em geral
hipotéticos, mas não probalistas”.51 As consequências jurídicas devem ser
avaliadas com relação a uma série de valores como a Justiça, o sendo comum, o
bem comum, a conveniência pública.52Assim, segundo MacCormick53:

A concepção consequencialista de MacCormick pode ser compatível com


a ideia de que, para justificar as decisões judiciais, utilizam-se dois tipos
de razões substantivas; as razões finalistas (uma decisão se justifica por
promover um determinado estado de coisas, considerado desejável) e as
razões de correção (uma decisão se justifica por ser considerada correta
ou boa em si mesma, sem levar em conta nenhum outro objetivo posterior.

MacCormick comunga com o pensamento de Hart, que nos casos difíceis


os juízes não gozam de poder discricionário no sentido forte, suas decisões são
limitadas pelos princípios de universalidade, consistência, coerência e
aceitabilidade das consequências. Os juízes tem autoridade para decidir casos de
modo definitivo, mas não quer dizer, que tenham poder de decidir sobre o que é
constitui uma boa razão a favor de uma decisão.54

46
ATIENZA,2006, p.152
47
Idem
48
Idem
49
ATIENZA,2006, p.153
50
Idem
51
Idem
52
Idem
53
ATIENZA, 2006, p.154
54
Idem
70

Em crítica a Dworkin, MacCormick aponta que não há no direito, apenas


discordâncias práticas reais (conflitos entre direitos), mas a obrigação de tomar
uma decisão, onde os limites destas decisões são chamados de racionalidades
práticas. 55 Segundo MarcCormick:

Para sermos agentes racionais, precisamos de outros virtudes além da


racionalidade, como a sensatez, a elevação de objetivos, o senso de
justiça, a humanidade e a compaixão. Não há razão para pensar que os
limites da racionalidade sejam permanentes, absolutos e demonstráveis
a priori, mas parece que, para descobrir estas razões últimas, teremos
sempre que recorrer a outras virtudes humanas além da racionalidade. 56

Assim, o raciocínio jurídico é, como o raciocínio moral, uma forma de


racionalidade prática, embora também como a moral, não seja governado apenas
por ela.57
MacCormick, em sua obra demonstra que a argumentação tem função de
persuasão e justificação. O que ele irá denominar “razão justificatória” são os
argumentos apresentados pelo juiz para explicar sua decisão.58

8 ARGUMENTOS DA TEORIA DE MACCORMICK- UMA ANÁLISE A DECISÃO


JUDICIAL DE DIREITO À MORADIA.

Vislumbra-se o grande poder que uma decisão judicial detém. Este poder
por vezes ocasiona medo e insegurança jurídica dentro de um ordenamento,
MacCormick com a sua teoria argumentativa buscou amenizar “este medo”.
Dworkin em O Império do Direito, argumenta o poder do juiz, comparado
este ao “não apenas como cidadãos da comunidade hipotética que analisa a
cortesia que decidem o que essa tradição exige, mas como um crítico literário que
destrinca as várias dimensões de valor em uma peça ou um poema complexo.59
Já MacCormick dispõe que “cada juiz tem, em razão de seu posto, o dever
de aplicar todas e cada uma daquelas normas que são ‘normas de direito’ sempre
que isso for pertinente e

55
ATIENZA,2006, p.156-157
56
ATIENZA, 2006, p. 158
57
Ibiden, p.159
58
MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Tradução Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes,
2006
59
DWORKIN, Ronald. O império do direito.Tradução; Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.275
71

aplicável a qualquer caso levado a ele.” 60


No sistema brasileiro, a Constituição Federal da República Federativa do
Brasil, trata sobre à legitimidade das decisões judiciais, nos termos do que dispõe
em seu inciso III, do artigo 93, abaixo transcrito: 61

[...] IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão


públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade,
podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias
partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a
preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não
prejudique o interesse público à informação.

Ter-se-ia que a Constituição prevê, portanto, que todas as decisões judiciais


devem ser fundamentadas. Da mesma forma, o Código de Processo Civil
Brasileiro62, em seu artigo 11, versa que, “todos os julgamentos dos órgãos do
Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de
nulidade”. Assim como, o artigo 489 do CPC63, traz os requisitos mínimos que
devem conter uma decisão judicial, entre eles, “os fundamentos, em que o juiz analisará
as questões de fato e de direito”
Alexandre de Moraes da Rosa, em Argumentar juridicamente para vencer64,
aduz que “não há suposto saber no silêncio e por isso os requisitos mínimos da
decisão indicados pelo NCPC (art. 489) são importantes para democratização da
decisão.”
Atienza aput Rosa65, dispõe que a argumentação judicial, possui:

características específicas, dado que não se trata de mera opinião do


sujeito julgador, mas da aplicação do Direito em sua autonomia, em face
das pretensões de validade apresentadas pelos jogadores, devendo, de
qualquer forma, estar justificadas motivadamente, ou seja, das razões que
podem apresentar em suas decisões

Indiscutível que as decisões judiciais devem ser devidamente justificadas, e


neste ponto, no sistema brasileiro, portanto, as decisões judicias, amparadas no

60
MACCORMICK, 2006, p.68
61
BRASIL- CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Disponível http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
62
BRASIL – LEI FEDERAL N.º13,105, DE 16 DE MARÇO DE 2015. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2015/Lei/L13105.htm
. Acesso em 01 de setembro de 2019
63
Idem
64
Argumentação jurídica e o direito contemporâneo [recurso eletrônico] / organizadores Alexandre Morais da Rosa, Natammy
Luana de Aguiar Bonissoni; coordenadores Luciene Dal Ri, Rafael Padilha dos Santos, Orlando Luiz Zanon Junior. - Dados
eletrônicos. - Itajaí: UNIVALI, 2016,p.10. Livro eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web:
http://www.univali.br/ppcj/ebook. Acesso em 03 de setembro de 2019
65
ROSA, 2016, p.15
72

que determina a Constituição Federal e as demais normas legais, devem ser


proferidas com base em fundamentos sob pena de nulidade, quanto a isso não
resta dúvidas. O problema é com relação a interpretação desta norma.
Pois bem, prosseguindo, verifica-se a questão aqui se a decisões judiciais,
até de ser devidamente fundamentadas e amparadas em norma legal, estas
deveriam também considerar a questão das consequências destas decisões ?Ou
seja, as decisões judiciais deveriam ser expedidas avaliando também as
consequências que estas podem gerar, ou seja, os seus reflexos?
Tal questionamento faz lembrar um fato marcante na história do Supremo
Tribunal Federal que tomou as mídias, na época, o destaque o foi o debate ente
dois Ministros o então Ministro Joaquim Barbosa e o Ministro Gilmar Mendes em
ação proposta pela Procuradoria Geral da República (PGR)66, a Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) 279167. O presidente à época, Gilmar Mendes
defendia que o Supremo deveria se pronunciar sobre os efeitos da decisão e o ministro
Barbosa, entretanto, foi contra à tese.68
Do trecho extraído da discussão69, cita-se a frase do Ministro Joaquim
Barbosa e do Ministro Gilmar mendes em resposta: “[...], eu sou atento às
consequências da minha decisão” e Gilmar Mendes:” Todos nós somos. [...]”.
Percebe-se que ambos os Ministros apontam que sim, quando julgam, as
consequências da decisão são também analisadas, assim sendo, poderia dizer que
o Poder Judiciário Brasileiro é consequencialista? O poder judiciário estaria
obrigatoriamente vinculado primeiramente a avaliar as consequências para após
proferir a sua decisão judicial? Destaca, Rezende70 que se deve esperar que:

O juiz tenha respeito pela técnica processual, mas que ele


também seja movido pela sensibilidade, compaixão e solidariedade
humana, pois um juiz que não estude além dos livros de Direito
dificilmente adquire a sensibilidade e o conhecimento de vida
necessário para um bom julgamento, adequado à lei e ao contexto
social. (grifo nossos)

66
COELHO, MARIO. Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa batem boca no STF. Disponível
em:.https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/gilmar-mendes-e-joaquim-barbosa-batem-boca-no-stf/ Acesso em 03 de
setembro de 2019
67
BRASIL- STF- ADI 2791. Disponível em: ww.w portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp? incidente=2081587. Acesso em
03/09/2019.
68
Idem
69
Idem
70
RUSSO, Andréa Rezende. O juiz do terceiro milênio. In: Caderno de Literatura, ano XI, n. 15, Porto Alegre, dez. 2007, p.
26
73

Continua Rezende:

[...], o juiz brasileiro vive e trabalha em um ambiente social


constante, ambíguo, marcado pelo preconceito, pela diferenciação de
classe e de poder, pela ausência de valores éticos, pela marginalização e
exclusão de muitos. É um juiz que se depara com as profundas
deficiências na prestação dos serviços públicos e que, em muitas
oportunidades, é obrigado a agir como um administrador do Poder
Executivo, já que provocado diante da inércia ou incompetência dos
responsáveis. Um juiz que é cada vez mais requisitado em razão da
incapacidade da sociedade de resolver os seus próprios conflitos.
Sociedade esta que vive uma grande transformação de seus valores, com
relações profissionais e pessoais cada vez mais complexas, com o
predomínio do individualismo, da alta competitividade, do poder
econômico e que convive com uma grande evolução tecnológica. 71

Afetado pela sociedade, pelo clamor popular, poderia o juiz adotar uma
postura personalista em suas decisões? Rodrigues72, expõe que nas decisões
judiciais exaradas pelo Poder Judiciário brasileiro, os juízes, teriam uma postura
personalista, o julgarem os casos concretos o que não aconteceria nas decisões
de questões abstratas.
Leal e Dias73, sobre decisões consequencialistas, abordam que decisões
não calcadas em dado empírico quer permita aferir a probabilidade, “pode deixar
os processos de tomada de decisões dependente excessivamente das
especulações dos juízes sobre os efeitos de suas possíveis decisões. Assim,
segundo os autores:

não seria desejável que os ministros justifiquem suas decisões com base
exclusivamente nas consequências que elas podem gerar, haja vista a
necessidade de que as razões apresentadas encontrem suporte no
direito, e não nas instituições ou valorações pessoais do tomador de
decisão, impedindo assim, decisões arbitrárias. 74

Denota-se assim, o grande dilema em aplicar ou não os argumentos


consequencialista, porém, que a presença dos argumentos postos por
MacCormick, serem altamente aplicáveis no sistema brasileiro, não restam
dúvidas. Diante do grande dilema acima apontado, obtemos a resposta também na
teoria argumentativa de MacCormick, pois, para este, aos juízes compete justificar
as suas decisões, ou seja:

71
Idem.
72
RODRIGUES, José Rodrigo. Como decidem as cortes?Para uma crítica do direito(brasileiro)Editora FGV,São Paulo,2013,
p. 7
73
LEAL, Fernando; DIAS, Daniela Gueiros. Consequencialismo judicial na modulação de efeito das decisões declaratórias
de inconstitucionalidade nos julgamentos de direito tributário. Rev. Bras. Políticas Públicas, Brasília, v.7, nº3,2017 p.821
74
Idem
74

Para dizer o mínimo, são, portanto, fortes as pressões – aparentemente


pressões muito eficazes – sobre os juízes para que pareçam ser o que
supostamente devem ser. Logo, as razões que divulgam ao público para
suas decisões devem ser razões que (desde que levadas a sério) façam
com que eles aparentem ser o que se espera que sejam: em suma, razões
que demonstrem que suas decisões garantem a “justiça de acordo com a
lei”, e que sejam pelo menos nesse sentido razões justificatórias. 75

A questão dos problemas de interpretação e o consequencialismo, serão


analisadas nos exemplos a seguir, os quais versam sobre duas decisões de
políticas públicas de moradia, onde houve entendimentos diversos e,
consequentemente, consequências diversas, ambas tiveram com base e
fundamento a mesma norma legal, o artigo 6º da Constituição Federal, o direito à
moradia.
O primeiro caso se refere ao julgamento proferido pelo Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro, Apelação Cível sob n.º 0024021-81-2013.8.19.00076, onde em
síntese, trata-se de uma ação de condenação em obrigação de fazer cumulada
com pedido de cobrança, onde a parte autora aponta ser moradora do Município
do Rio de Janeiro, que teve sua casa interditada aos 21.08.2011, após
desabamento parcial do imóvel; que conseguiu ser incluída no Programa Minha
Casa Minha Vida, mas que, não obstante, não logrou êxito. Requereu a
condenação dos réus a incluí-la em programas habitacionais existentes e enquanto
não efetivado seu direito à moradia, a pagar-lhe aluguel social. A decisão fora
publicada em 13 de agosto de 2019.
O Município do Rio de Janeiro, fora condenado a incluir a parte autora em
programas habitacionais, além do pagamento do “aluguel social por 12(doze
meses)77. Tendo assim justificado o relator a decisão78:

A Carta Magna não é uma carta de intenções, mas sim algo para
ser cumprido. É um consenso da nação, produto das forças políticas e
espelho dos interesses convergentes e/ou preponderantes dos diversos
grupos sociais que compõem o país. As normas constitucionais são
precipuamente de eficácia plena. Se a CF prevê a existência de um
direito social de moradia, cria, por outro lado, a obrigação do Poder
Público de atendê-lo, como, ademais, expressamente previsto no art.
23, IX, CF. Assim, assegurando a Carta Maior um direito social à moradia

75
Ibidem, p.21
76
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. Apelação Cível de reexame necessário sob n.º 0024021-81-
2013.8.19.000, publicado na data de 13 de agosto de
2019www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/consultaProc.do?v=2&FLAGNOME=&back=1&tipoConsulta=publica&numPr
ocesso=2013.001.019699-5
77
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. Apelação Cível de reexame necessário sob n.º 0024021-81-
2013.8.19.000, publicado na data de 13 de agosto de
2019www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/consultaProc.do?v=2&FLAGNOME=&back=1&tipoConsulta=publica&numPr
ocesso=2013.001.019699-5
78
Idem
75

e dispondo ainda ser da competência concorrente da União, dos Estados


e dos Municípios a edificação de moradias, há direito público subjetivo
da agravada de que, ante a interdição de sua residência, tenha
garantida uma alternativa, no caso, a inclusão em programa
habitacional ou o pagamento do aluguel social 79(GRIFO MEU)

Observa-se que neste julgamento ainda o Desembargador Relator da 15ª


Câmara Civil, Horácio dos Santos Ribeiro Neto assim se manifestou:

Descabe a alegação de violação aos princípios da


impessoalidade e da isonomia. Se há outras pessoas,
lamentavelmente, na mesma situação dá apelada, a outorga da
prestação jurisdicional a quem a reivindica não importa, obviamente,
em qualquer privilégio.80

O segundo o caso se refere ao julgamento proferido pelo Tribunal de


Justiça de São Paulo-SP, pela 2ª Câmara de Direito Público, onde a relatora Vera
Angrissani, negou os pedidos da parte autora em face a Companhia de Habitação
da Baixada Santista e Prefeitura de Santos-SP, em junto aos autos de Apelação
Cível sob n.º 0024021-81-2013.8.19.00081, o qual também buscava o direito à
moradia em condições muito parecidas do que a decisão proferida no Rio de
Janeiro-RJ, anteriormente narrada. A autora alega que possui um filho de 8 (oito)
anos, portador do transtorno do espectro autista; que é de baixa renda, que reside
em local insalubre, que está inscrita no programa de cadastro da COHAB desde
2006, e que passados mais de 11(onze) anos, não houve qualquer atitude dos
responsáveis com relação à remoção da família da área de risco, que o direito à
moradia digna encontra guarida na Constituição Federal, que, em seu art.
6°,caracteriza-a como um direito social básico do indivíduo, requereu
alternativamente o deferimento de uma moradia digna ou o pagamento de aluguel
social.82
Ocorre que os pedidos da autora, ao contrário da primeira decisão fora
negado, conforme fundamentos proferidos pela relatora Vera Angrissani, publicado
na data de 10/04/2019:

79
TJ-RJ,2019
80
TJ-RJ, p. 6
81
TJ-SÃO https://tj-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/698204519/apelacao-civel-ac-10338243720168260562-sp-1033824-
3720168260562/inteiro-teor-698204539?ref=juris-tabs
82
Idem
76

Ação de obrigação de fazer. Pretensão à disponibilização de


residência ou pagamento de aluguel de imóvel. Inadmissibilidade. Direito
à moradia digna que embora encontre guarida na Constituição
Federal (art. 6°), não se cuida de um direito subjetivo, de modo que o
Estado não está obrigado a disponibilizar casas ou apartamentos para
determinados cidadãos, ou ainda custear o aluguel de seus imóveis.
Norma insculpida no referido art. 6° da CF que possui natureza
programática, destituída de eficácia plena e imediata. Improcedência
da ação mantida. Recurso conhecido e não provido. (grifo nosso)

[...]
A norma insculpida no art. 6 da Carta Magna possui natureza
programática, destituída, portanto, de eficácia plena e imediata. Por
conseguinte, não sendo autoaplicável, serve "como um norte para o poder
público e o legislador infraconstitucional, mas não tendo
eficácia plena enquanto não regulamentado (".)" (EI nO587.652-
02/0, 4' Câm. ReI. Amaral Vieira, j. em 13.6.2001).
A citada norma constitucional, portanto, caminha na direção de
obrigar, apenas, os entes da federação a manter programas sociais
voltados à promoção de programas de construção de moradias e de
melhoria das condições habitacionais, bem como abrigo de
necessitados. (grifo nosso)

Prosseguindo, a relatora ainda sentenciou:

No caso em tela, conforme leitura da vestibular, a própria autora


admite que está inscrita no programa habitacional existente no Município
de Santos, mas ainda não foi contemplada com o mesmo. Ora, quantas
são as famílias hipossuficientes e com filhos menores que se
inscrevem em programas habitacionais. Ora, quantas não são as
mães desempregadas ou com baixos salários que não possuem
verbas suficientes para alimentar a si próprias e a suas proles,
quanto mais para adquirir um imóvel, embora seja difícil admitir-se, mas
infelizmente esta é a realidade de nosso país. Sendo assim, acolher a
pretensão da autora, implicaria ferir claramente o princípio da
isonomia, nos moldes do art. 5° da CF, visto que as demais pessoas
em semelhante situação estariam afastadas do benefício por força
de uma privilegiada ordem emanada do Poder Judiciário. (grifo nosso)

Assim, além da interpretação concedida ao artigo 6º da Constituição ser


totalmente o inverso da primeira decisão, o órgão julgador, ainda deixou claro que
não se trata de norma de eficácia plena, ou seja, verifica-se nesses dois exemplos
a contradição, a ambiguidade de interpretações dada a mesma norma, não
havendo coerência entre as decisões.
MacCormick, conforme anteriormente citado neste artigo, prega que
justificar uma decisão difícil significa em primeiro lugar, cumprir o requisito da
universalidade e em segundo lugar, que a decisão em questão tenha sentido em
relação ao sistema (cumpra os requisitos de consistência e de coerência) e em
relação ao mundo (argumento consequencialista), ocorre que comparando as duas
77

decisões ambas tratam do mesmo direito discutido, o direito à moradia, porém,


ambas tiveram a aplicação da interpretação totalmente de forma diversa, ou seja,
situação muito parecida, onde o direito à moradia em uma situação é visto como
norma de eficácia plena e imediata e em outro não.
Percebe-se claramente os argumentos consequencialistas na segunda
decisão, conforme grifos efetuados. Mas o que mais chama a atenção é o problema
de interpretação, a coerência de interpretação, onde sequer há uma unanimidade
com relação ao direito a moradia ser ou não uma norma de eficácia plena.
Conclui-se com o pensamento de Neil MacCormick, ou seja, que o nosso
sistema brasileiro deve buscar a concretização da justiça formal e para tanto:

exige que a justificação de decisões em casos individuais seja sempre


fundamentada em proposições universais que o juiz esteja disposto a
adotar como base para determinar outros casos semelhantes e decidi-los
de modo semelhante ao caso atual83.

Se a teoria de Neil MacCormick, é aplicável no sistema jurídico? Os


argumentos consequencialista ou são uma realidade no nosso sistema, quando a
isso não pairam dúvidas, assim como, que há erros graves de interpretação e de
aplicação da mesma norma, também não restam dúvidas que falta coerência na
aplicação da norma.

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na atual concepção de direito, o papel do juiz não se limita a reprodução


literal do que encontra em lei.84 A teoria de meio do estudo da Teoria da
Argumentação Jurídica de Neil MacCormick, ressalta a importância da
argumentação em uma decisão judicial onde a Justificação trará a esta a
segurança de não haver arbitrariedade no caminho trazendo justificação da
sentença85
Assim, “as decisões jurídicas devem fazer sentido no mundo e também
devem fazer sentido no contexto do sistema jurídico.86 Porém, há de ressaltar a
importância que estas decisões o sejam proferidas não de forma arbitrárias, mas
devidamente embasadas no ordenamento jurídico, a fim de não afastar a

83
Ibidem, p.126
84
Ibidem, p.155
85
idem
86
Ibidem, p.165
78

segurança jurídica, elemento este essencial dentro de um Estado democrático de


Direito.
A questão é que o consequencialismo é uma realidade no sistema
brasileiro, sendo que aos juízes também compete avaliar as consequências de
sua decisão, no sentido de que deve considerar os efeitos jurídicos que suas
decisões podem vir a provocar, ou seja, os reflexos desta situação, fazendo esta
análise também parte da decisão judicial, proferida de forma devidamente
justificada.
O que não pode ocorrer que este seja a principal elemento da
argumentação jurídica quando da prolação de uma decisão judicial, sob pena de
ficarmos submetidos não mais ao respeito a norma jurídica, e sim, a decisões
expedidas em decorrência de preferencias ou impressões pessoais dos
magistrados, clamor social ou ainda pior ainda, favorecimentos a determinadas
classes, desvirtuando totalmente o sistema jurídico, sendo que a razão e a
argumentação devem sim, estes sim, serem os instrumentos principais a nortear
as decisões judiciais .
Por fim, é preciso que haja uma uniformidade nas decisões, além de serem
justificadas estas devem ser proferidas como forma de que todos em situações
iguais obtenham o mesmo direito e não venham a ter “medo das decisões judiciais”,
para que os exemplos trabalhados neste artigo, possam futuramente serem apenas
meros exemplos hipotéticos e não uma realidade brasileira.

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79
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TOMAZETTE, Marlon. A teoria da argumentação jurídica e a justificação contra legem. Revista: Direito e Práxis,
vol.03,n.02,2011.
80

ATIVISMO JUDICIAL E DEMOCRACIA: ANÁLISE DO FENÔMENO DO


ATIVISMO A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA DEMOCRÁTICA

Élder Teodorovicz1

RESUMO: O presente artigo tem o objetivo de proceder uma análise do fenômeno do ativismo
judicial, e avaliar esta prática em contraposição ao princípio democrático. Busca em síntese,
verificar se decisões proferidas pelo Poder Judiciário sem espeque em lei materialmente constituída
sob as formalidades parlamentares possui consonância com com a soberania popular exercida pelo
povo através de seus representantes devidamente investidos em mandatos eletivos.

Palavras-chave: Ativismo Judicial. Democracia.

ABSTRACT:This article aims to analyze the phenomenon of judicial activism, and to evaluate this
practice against the democratic principle. In short, it seeks to verify whether decisions made by the
judiciary without any law materially constituted under parliamentary formalities are in line with the
popular sovereignty exercised by the people through parliament properly vested in elective terms.

Keywords: Judicial activism. Democracy.

1 LEI, ATIVIDADE NORMATIVA E DEMOCRACIA

É de conhecimento do mais leigo estudante do direito ou de qualquer


cidadão bem informado que conheça a mais básica divisão do poder estatal, que a
atividade típica de legislar é função primária do poder legislativo, órgão que tem a
atribuição constitucional primeira de elaborar normas de caráter geral (e em alguns
casos concretas) e imperativas, que são direcionadas a toda a sociedade e regem
o Estado Democrático de Direito estabelecido na República brasileira.
Tal atividade legiferante é exercida por representantes do povo, investidos
de mandatos eletivos, aos quais, a Constituição em seu art. 1º, Parágrafo Único,
atribui todo o Poder democrático. São os membros do Congresso Nacional estes
representantes do povo, aos quais é atribuído por força do poder constituinte
originário a prerrogativa de criar leis, como atividade própria e principal.
Assim o sendo, na forma acima descrita, a atividade legislativa é produto
inerente do exercício da democracia, através da qual, os representantes do povo
devidamente eleitos pela maioria que os delega um mandato, passam a
estabelecer as normas que vão reger a sociedade2.

1Mestrando em Direito Constitucional pelo programa de mestrado em Direitos


Fundamentais e Democracia pelas Faculdades Integradas do Brasil – Minter –
Uniguaçu.
2
“O processo legislativo não existe autonomamente, como valor em si, pois é técnica a serviço das concepções políticas,
realizando fins do poder. Dai sua mutabilidade no tempo e sua compreensão variada, refletindo a organização social, as
81

Nos dizeres de Raul Horta Machado:


“A apreciação global sobre o renovado processo legislativo concebido
pela Constituição de 1988, autoriza concluir que suas regras permitirão
assegurar o equilíbrio entre o Poder Legislativo e o Poder executivo. A
constituição substituiu o Congresso Homologador pelo Congresso ativo,
capaz de proporcionar ao país os benefícios da legislação adequada ao
seu desenvolvimento e progresso”3.

Em que pese ao poder legislativo incumba a função de criar leis, ela não é
exclusiva dele, havendo outras figuras jurídicas no sistema nacional, tal qual a
medida provisória, que também possuem características próprias de uma norma
legal, em que pese tenha origem em outros poderes, e tenham limitações não
impostas à lei ordinária ou complementar4.
Outros atos, tais como as normas de organização judiciária, as quais também
tem natureza de lei, tem origem no poder judiciário, e existem no ordenamento
jurídico brasileiro com expressa previsão constitucional, sem que haja qualquer
problemática em torno delas. A característica comum dessas outras figuras acima
mencionadas é que em que pese não sejam oriundas do poder legislativo,
possuem espeque no texto constitucional, portanto são atos com natureza e força
de lei com legitimidade constitucional.
De outra banda, há que se ter em mente que o poder Legislativo, em algumas
situações, quer seja por questões burocráticas que levam a morosidade de sua
atuação, quer por questão puramente políticas, deixa de regrar fatos da vida que
merecem atenção e regulação por parte do estado, havendo, portanto, omissão
estatal.
Em tais casos, há medidas expressamente previstas no corpo do texto
constitucional para o saneamento dessa situação de omissão, tais como o
mandado de injunção, previsto no artigo 5º, inciso LXX, da CF5 que tem por objeto

formas de Governo e de Estado, a Estrutura partidária e o sistema político”.In: HORTA, Raul Machado. O processo legislativo
nas Constituições federais brasileiras. id/496833, 1989.fl. 02.
3
HORTA, Raful Machado. Op. Cit. fl. 28.
4
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei,
devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de
2001)
§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
I - relativa a: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral; (Incluído pela Emenda
Constitucional nº 32, de 2001)
b) direito penal, processual penal e processual civil; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; (Incluído pela
Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no
art. 167, § 3º; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
II - que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro; (Incluído
pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
III - reservada a lei complementar; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
5
“LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos
direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”;
82

sanar omissão legislativa que torne inviável o exercício dos direitos e liberdades
constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, soberania e
cidadania, e também a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Figuras
já bem conhecidas no meio jurídico, as quais o presente artigo não tem a pretensão
de aprofundar seus conceitos.
Ocorre que para além dos institutos jurídicos acima mencionados, tem sido
cada vez mais comum a tomada de decisões por parte do Poder Judiciário, as
quais se tem atribuído características inerentes aos de atos normativos.
Exemplo primeiro disso, é a figura das Súmulas Vinculantes. Inicialmente
inseridas no âmbito da Emenda Constitucional n. 45 de 2004, a qual acresceu o
art. 103-A6 na Constituição Federal, as Súmulas Vinculantes passaram a ter efeito
vinculante e caráter geral, tal como as leis.
Característica própria das Súmulas Vinculantes, é que as mesmas podem ser
emitidas apenas após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, sendo este
um limite imposto pelo próprio constituinte reformador para a sua edição, após
aprovação de dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal.
Ainda que se questione a suposta usurpação da função legislativa por parte
do órgão máximo do poder judiciário7, tal instituto jurídico foi inserido através do
poder constituinte reformador, com condições bastante específicas para a sua
edição, não havendo, portanto, que se falar em uma apropriação por parte de um
poder da atividade primária dos representantes eleitos pelo povo, formadores do
Congresso Nacional.
De outra banda, o ativismo judicial, nos dizeres de Luís Roberto Barroso,
“está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na

6
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus
membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa
oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta,
nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em
lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Vide Lei nº 11.417, de 2006).
7
Podem ser extraídos do âmbito doutrinário os seguintes questionamentos a respeito de tais súmulas: o serem dotadas de
força vinculante, as súmulas deixariam de exercer uma função meramente persuasiva, passando a ter “força de lei”? Ao
serem equiparadas às normas legais, elas não representariam uma ofensa à formação democrática da lei a partir da vontade
geral representada pelo Congresso Nacional (princípio da legalidade, art. 5º, II da CF)? Por essa razão, não haveria um
ataque ao princípio da separação dos poderes (art. 60, § 4º, III da CF)? Ao criar uma súmula com efeito vinculante, o
Supremo Tribunal Federal deixaria de ser um “legislador negativo” para se transformar em um “legislador positivo”? As
súmulas vinculantes poderiam trazer como conseqüência o engessamento do direito, impedindo que ele acompanhe as
cambiantes transformações sociais? Por decorrência do efeito vinculante, restaria suprimida a garantia constitucional do
livre convencimento do juiz, supondo que ele ficaria impedido de analisar as especificidades de cada caso concreto? Elas
tolheriam a garantia do acesso à justiça dos cidadãos (art. 5º, XXXV da CF)? Elas promoveriam o “fechamento” da“sociedade
dos intérpretes da Constituição”? Quais seriam as conseqüências decorrentes da não aplicação de uma súmula por juízes
ou tribunais inferiores? A introdução de súmulas vinculantes representaria uma importação acrítica da doutrina do stare
decisis do direito norte-americano, sendo, por isso, de todo incompatível com os sistemas jurídicos filiados à família romano-
germânica, como é o caso do brasileiro, que tradicionalmente atribui à lei criada pelo órgão legislativo a centralidade no
esquema das fontes do direito? Por fim, as súmulas vinculantes seriam a versão brasileira do instituto dos assentos do direito
português?” In:LEITE, Glauco Salomão et al. Súmula vinculante e jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro:
Forense, p. 159, 2007.fl. 17.
83

concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço


de atuação dos outros dois Poderes”8.
Prossegue o citado Ministro da Suprema Corte brasileira:
“A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem:
(i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas
em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a
declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador,
com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da
Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público,
notadamente em matéria de políticas públicas”9.
De Igual Forma Gisele Cittadino pondera que o ativismo estaria sendo
inserido como forma de ampliação do controle normativo do Poder Judiciário,
favorecido pela Constituição de 1988 ante seu viés principiológico:
“De qualquer forma, mesmo nos países de sistema continental, os textos
constitucionais, ao incorporar princípios, viabilizam o espaço necessário para
interpretações construtivistas, especialmente por parte da jurisdição constitucional,
já sendo até mesmo possível falar em um "direito judicial". No Brasil, do mesmo
modo, também se observa uma ampliação do controle normativo do Poder
Judiciário, favorecido pela Constituição de 1988, que, ao incorporar direitos e
princípios fundamentais, configurar um Estado Democrático de Direito e
estabelecer princípios e fundamentos do Estado, viabiliza uma ação judicial que
recorre a procedimentos interpretativos de legitimação de aspirações sociais”10.
Esse fenômeno é uma tendência no Judiciário brasileiro, e tem sido aplicado
em inúmeros casos de repercussão, em especial os que são prolatados pelo
Supremo Tribunal Federal, como bem menciona Barroso:
“O Judiciário, no Brasil recente, tem exibido, em determinadas situações, uma
posição claramente ativista. Não é difícil ilustrar a tese. Veja-se, em primeiro lugar,
um caso de aplicação direta da Constituição a situações não expressamente
contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador
ordinário: o da fidelidade partidária. O STF, em nome do princípio democrático,
declarou que a vaga no Congresso pertence ao partido político. Criou, assim, uma
nova hipótese de perda de mandato parlamentar, além das que se encontram

8
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Anuario iberoamericano de justicia
constitucional, n. 13, p. 17-32, 2009.
9
Idem.
10
CITTADINO, Gisele. Poder Judiciário, ativismo judicial e democracia. Revista da Faculdade de Direito de Campos, v. 2,
n. 3, p. 135-144, 2002.fl. 01.
84

expressamente previstas no texto constitucional. Por igual, a extensão da vedação


do nepotismo aos Poderes Legislativo e Executivo, com a expedição de súmula
vinculante, após o julgamento de um único caso, também assumiu uma conotação
quase-normativa. O que a Corte fez foi, em nome dos princípios da moralidade e
da impessoalidade, extrair uma vedação que não estava explicitada em qualquer
regra constitucional ou infraconstitucional expressa”11.
Como se vê do conceito estabelecido acima, o ativismo seria uma tentativa,
por parte de integrantes do poder judiciário de concretizar valores e fins, em que
pese as ações para tanto não estejam previstas expressamente em leis ou
qualquer outro ato normativo. Estes fins nos dizeres de Luís Roberto Barroso,
seriam fins constitucionais.
Ocorre que tal conceito possui alta carga de subjetividade vez que as idéias
de concretização de fins constitucionais podem variar de acordo com o
entendimento de cada pessoa, bem como com a ideologia de cada membro do
poder judiciário.
A par disso, o problema posto é no tocante à legitimação de membros do
Poder Judiciário no estabelecimento de premissas, não previstas em lei ou texto
constitucional, com base em simples interpretação ou valoração dissociada de
norma, na maioria das vezes principiológica, que vão reger a sociedade, em
especial no tocante à separação de Poderes estabelecida na Constituição
Federal12.

2 O ATIVISMO JUDICIAL E A QUESTÃO DA SUBJETIVIDADE.

Sendo o ativismo judicial um conceito que, como já dito acima, instrumentaliza


a realização de determinados fins, em que pese possam ter como norte a
concretização de preceitos constitucionais, não há qualquer garantia ou limite que
se possa impor em tal atividade.
O próprio Ministro da Suprema Corte Brasileira Luís Roberto Barroso,
reconhece que o ativismo judicial inicialmente foi utilizado para a propagação de
ideais conservadores, em que pese a mudança do panorama a partir da década de

11
BARROZO, Luis Roberto. Op. Cit. fl. 23.
12
“ainda que o ativismo judicial transforme em questão problemática os princípios da separação dos poderes e da
neutralidade política do Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, inaugure um tipo inédito de espaço público, desvinculado das
clássicas instituições político-representativas, isso não significa que os processos deliberativos democráticos devam
conduzir as instituições judiciais, transformando os tribunais em regentes republicanos das liberdades positivas dos
cidadãos.CITTADINO, Gisele. Op. Cit. fl. 04.
85

50, quando então teria guinada para a busca de idéias ditas “progressistas”, senão
vejamos:

“Registre-se que o ativismo foi, em um primeiro momento, de natureza


conservadora. Foi na atuação proativa da Suprema Corte que os setores
mais reacionários encontraram amparo para a segregação racial (Dred
Scott v. Sanford, 1857) e para a invalidação das leis sociais em geral (Era
Lochner, 1905-1937), culminando no confronto entre o Presidente
Roosevelt e a Corte, com a mudança da orientação jurisprudencial
contrária ao intervencionismo estatal (West Coast v. Parrish, 1937). A
situação se inverteu completamente a partir da década de 50, quando a
Suprema Corte, sob a presidência de Warren (1953-1969) e nos primeiros
anos da Corte Burger (até 1973), produziu jurisprudência progressista em
matéria de direitos fundamentais, sobretudo envolvendo negros” 13.

Assim, inegável que há um alto grau de subjetividade na atividade que


consubstancia o ativismo judicial, pois, a depender da vertente ideológica do
magistrado, pode ter consequências diametralmente diversas.
Neste tocante, oportunas as indagações de Manuel Atienza, ao refletir sobre
a teoria de Perelman, no que diz respeito à questão ideológica:

“Os legisladores, os tribunais e a jurisprudência de um Estado pluralista


(a forma de Estado que Perelman considera justificada) são as
instituições encarregadas de estabelecer e manter um equilíbrio entre
pretensões contrapostas, porém legítimas. Isso significa que serão
necessárias tomadas de decisões razoáveis; não soluções perfeitas,
únicas e definitivas, mas soluções aceitáveis, modificáveis e
aperfeiçoáveis (cf. ibid., p. 17). Seguramente é desnecessário acrescentar
aqui que também a noção de razoabilidade é confusa. De qualquer modo,
com essa ideia38 Perelman pretende abrir uma via intermediária entre o
racional (quer dizer, as razões necessárias, constringentes) e o irracional
(o arbitrário); entre uma concepção unilateralmente racionalista e uma
concepção unilateralmente voluntarista do Direito (cf. Bobbio, 1986, p.
166). […] O razoável se define – e não poderia ser de outra forma – em
função de um auditório, mas esse auditório – por exemplo, no caso do
Direito – não é tanto o auditório universal (entendido como os membros
esclarecidos da sociedade) quanto um auditório particular, configurado
pelos especialistas em Direito, os tribunais superiores ou o legislador: “O
juiz [...] deverá julgar sem se inspirar em sua visão subjetiva, e sim
tentando refletir tanto a visão comum dos membros esclarecidos da
sociedade em que vive quanto as opções e tradições dominantes em seu
meio profissional. […] O problema, naturalmente, reside na questão de se
o equilíbrio entre opiniões contrapostas, que se associa à noção de
racionabilidade, pode sempre ser conseguido. Evidentemente, há muitas
razões para duvidar disso”14.

A par disso, importante mencionar o questionamento de Antoine Garapon


sobre o tema que retrata exatamente a problemática aqui abordada: “Governo de
juízes, ativismo jurídico, protagonismo judiciário, tentação de uma justiça

13
BARROSO, Luis Roberto. Op. Cit.
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teoria da argumentação jurídica; tradução Maria Cristina Guimarães Cupertino. –
14

2. ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.fl. 93-94.


86

redentora. . . Palavras não faltam para designar os novos perigos que a justiça
pode fazer a democracia correr: Como progredir nesse debate passional, por vezes
despropositado, entre justiça e democracia?15”;
Progredindo neste raciocínio, Garapon diferencia o ativismo judicial da
simples decisão “incompetente”, evidenciando o grau de subjetividade da primeira
em relação à segunda:
“O atual presidente do Supremo Tribunal israelense Aharon Barak,
observa com propriedade que não se pode falar em ativismo do juiz se a
sua escolha é feita entre uma solução juridicamente correta e uma outra
que não o é. Nesse caso, não se trata de ativismo, mas de incompetência.
O ativismo evidencia-se quando, entre muitas soluções possíveis, a
escolha do juiz é alimentada pela vontade de acelerar a transformação
social, ou ao contrário, de travá-la”16.
Feitas tais ponderações, o citado autor aponta alguns modelos de controle da
atividade jurisdicional, em primeiro lugar no tocante à forma de seleção dos
membros do poder judiciário, havendo dois modelos para tanto: 01) Modelo
Burocrático, onde os juízes são escolhidos por concurso após completar as
exigências de formação universitária; 2) Modelo Profissional - aristocrático, onde
os Juízes são selecionados no meio de carreira, dentro de um pequeno número
de advogados para ocupar postos elevados na magistratura.
Neste segundo modelo de controle, Garapon reconhece que o mesmo é feito
de maneira sociológica e se exerce de duas maneiras: 01) pela intermediação de
um corpo judiciário restrito e homogêneo: 02) pelo recrutamento de juízes dentro
de uma mesma classe social.
Há nesse ponto importante repercussão para o tema ora em análise. Uma vez
pontuado que pode haver critérios de seleção de magistrados que não são
exclusivamente meritórios, e que pode incluir uma seleção atém mesmo levando-
se em conta a classe social a que pertencem, isso refletirá sem sombra de dúvida
no viés ideológico que os membros do Judiciário podem adotar, o que, sob o ponto
de vista do ativismo judicial, pode representar grande perigo para a democracia.
Ademais, tem-se falado até mesmo em uma diferenciação da forma de
atuação de um juiz na seara processual na efetivação de direitos, considerando
uma atuação mais proativa do mesmo, diferencia-se a atuação como ativismo
judicial de outra dita garantista processual, em especial quanto à existência de
prévia observância do sistema legal posto:

GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução Maria Luísa
15

de Carvalho. Rio de Janeiro. .Revan. 1999.fl. 55.


16
GARAPON. Idem. fl. 56.
87

“Para uma primeira – e genérica – compreensão do que é defendido por


ambas as correntes, é possível adiantar que o ativismo judicial defende uma
postura mais contundente da atividade judicial para resolver problemas que às
vezes não contam com adequada solução legislativa. É dizer: outorga-se ao juiz
um poder criativo que, em última análise, valoriza o compromisso constitucional da
jurisdição, e isso ainda que não haja previsão legal que o autorize na respectiva
atuação. Já o garantismo processual defende uma maior valorização da categoria
fundamental processo e conseqüentemente da cláusula constitucional do due
process, de modo a valorizar a ampla defesa, o contraditório e a imparcialidade do
juiz, como os pilares de legitimação da decisão jurisdicional a ser decretada. Para
o ativismo, o juiz deve atuar de maneira a resolver problemas no curso do processo,
e isso independente da diligência da parte em postular pelas respectivas soluções,
haja ou não autorização legislativa para a sua atuação”17.
Assim uma atuação garantista seria aquela calcada na utilização proativa dos
instrumentos legais postos à disposição do magistrado na efetivação dos direitos e
garantias fundamentais, enquanto a ativista penderia para uma atuação criativa na
solução de problemas advindos, independentemente da existência de norma legal
De todo o acima exposto, verifica-se que a questão atinente ao ativismo
judicial apresenta inúmeros problemas, em especial no tocante à falta de
segurança jurídica, bem como, o grande caráter subjetivo que as tomadas de
decisões por magistrados, desapegados às normas legais pode tomar18.
É de se mencionar as ponderações feitas pela professora Katya Kocizki, ao
prefaciar a obra de Barboza19 acerca da segurança jurídica:
“Diversas preocupações movem a autora ao estabelecer os marcos
teóricos de seu trabalho e definir o horizonte de análise. Partindo do
pressuposto de que hoje o Poder Judiciário assume, cada vez mais o
papel de judge-made-law, é necessário verificar de que modo é possível
um direito jurisprudencial que, aberto à moralidade política da
comunidade, assuma um compromisso com o ideal de segurança jurídica
e possa gerar decisões com um grau mínimo de coerência e
previsibilidade”.

17
RAMOS, Glauco Gumerato. Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate. MPMG jurídico, 2009.
18
Para o ativismo judicial, o exercício do poder – da jurisdição, portanto – habilita o juiz a buscar, a qualquer custo, fazer
“justiça” nos casos que lhe são submetidos. E, por mais acaciano que possa soar a afirmação de que ao juiz toca fazer
“justiça”, para os ativistas,essa busca por “justiça” não encontra obstáculo nem mesmo na eventual falta de autorização do
legislador para que o juiz aja em determinadas situações. Para os ativistas, é normal que o sistema dote o juiz de maiores
poderes de atuação na relação processual e mesmo na condução do processo.53 E, mesmo quando a legislação – muitas
vezes porque ultrapassada – ainda não se tenha aperfeiçoado para permitir ao juiz o manejo mais contundente de seus
poderes54, mesmo assim teria o magistrado de atuar com coragem e fazer tudo que estivesse ao seu alcance para, com
criatividade, potencializar sua atuação no processo para fazer com que seu resultado seja “justo”. O ativismo judicial,
conforme afirma Jorge W. Peyrano, um de seus maiores defensores na Argentina, “(...) confia nos magistrados”.55 In:
RAMOS, Glauco Gumerato. Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate. MPMG jurídico, 2009.fl. 13.
19
BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes judiciais e segurança jurídica: fundamentos e possibilidades para a
jurisdição constitucional brasileira. Editora Saraiva, 2017.
88

Não há, por outro lado, e conforme bem aponta Gisele Cittadino, que se
confundir ativismo judicial com interpretação constitucional, elemento este
presente em qualquer processo hermenêutico:

“No entanto, a despeito do fato da dimensão inevitavelmente "criativa" da


interpretação constitucional-dimensão presente em qualquer processo
hermenêutico o que, por isso mesmo, não coloca em risco, a lógica da
separação dos poderes -, os tribunais constitucionais, ainda que recorram
a argumentos que ultrapassem o direito escrito, devem proferir "decisões
corretas" e não se envolver na tarefa de "criação do direito", a partir de
valores preferencialmente aceitos. As decisões de princípio proferidas
pelas cortes supremas não podem ser equiparadas a emissões de juízos
que ponderam objetivos, valores e bens coletivos, pois, dado que normas
e princípios constitucionais, em virtude do seu sentido deontológico de
validade, são vinculantes e não especialmente proferidos, a interpretação
constitucional deve decidir qual pretensão e qual conduta são corretas em
um dado conflito e não como equilibrar interesses ou relacionar valore20.

Pontuadas tais considerações acerca do ativismo judicial e a questão da


subjetividade que está presente em tal prática, há que se enfrentar a questão deste
fenômeno frente ao princípio democrático.

3 O ATIVISMO JUDICIAL E A VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO

Sobre a formação da vontade que guiará os rumos de determinado Estado,


importante as ponderações de Jurgen Habermas sobre a atividade normativa e seu
viés democrático, estabelecido através da comunicação:

“Conforme a concepção republicana a formação da opinião e da vontade


políticas no espaço público e no parlamento não obedece às estruturas
dos processos de mercado mas tem suas estruturas específicas. São elas
as estruturas de uma comunicação pública orientada para o
entendimento. o paradigma da política no sentido de uma
autodeterminação cidadão não é o mercado e sim o do diálogo:”Uma
concepção dialógica vê – ou talvez fosse o caso de dizer que idealiza – a
política como uma atividade normativa. Ela concebe a política como uma
contestação sobre questões de valores e não meramente questões de
preferências. Ela entende a política como um processo de argumentação
racional e não exclusivamente de vontade, de persuasão e não
exclusivamente de poder, orientado para a consecução de um acordo
acerca de uma forma boa e justa, ou pelo menos aceitável, de ordenar
aqueles aspectos da vida que se referem às relações sociais e à natureza
social das pessoas. […] Precisamente por isso o embate de opiniões
sustentado no terreno da política tem uma força legitimadora, não
somente no sentido de uma autorização para perseguir posições de
poder, mas também no sentido de que o exercício continuado do discurso
político tem força vinculatória sobre a forma de exercer o poder político.
O poder administrativo somente pode ser empregado com base nas
políticas e nos limites da lei que surgem do processo democrático 21.”

20
CITTADINO, Gisele. Op. Cit. fl. 08.
21
HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Lua nova, v. 36, p. 39-53, 1995. fl. 43.
89

Se extrai do conceito de Habermas, que a atividade política desenvolvida pelo


parlamento, na sua função criativa normativa, é desenvolvida sobretudo com base
em um processo comunicativo. Representantes eleitos do povo, através de
comunicação desenvolvida no processo legislativo, buscam e atingem uma espécie
de acordo que se consubstancia em ato normativo (lei) que vai reger as relações
sociais de determinado Estado22.
Tal processo é a consubstanciação prática do princípio democrático, através
da vontade da maioria – que no âmbito da política é feito através de representantes
do povo devidamente eleitos e investidos de mandatos – a qual através da
comunicação em debates parlamentares acaba produzindo os acordos de vontade
que assumem o caráter normativo.
Como bem explicitam Vera Karam de Chuery e Miguel Godoy:

“Aqui reside a importância da deliberação coletiva enquanto elemento


essencial para a tomada de decisões de índole coletivas, já que se parte
do pressuposto de igualdade e de que todos merecem igual respeito e
consideração. Se o alcance dos direitos em um determinado momento
passa a ser restringido, muitos problemas sociais deixam de ser
resolvidos pelo direito, mas poderiam/podem/devem ser resolvidos pelo
processo democrático à medida que o povo – os que são afetados por
essa restrição – toma parte no processo político, no debate, no processo
de decisão. Daí a defesa intransigente de Nino por uma democracia
deliberativa que inclua os cidadãos no processo de tomada de decisões.
Vale dizer, a democracia deliberativa rearticula soberania e poder
constituinte, constitucionalismo e democracia e acentua o caráter
produtivo das tensões experimentadas pelos cidadãos, na medida da
inexorável, porém paradoxal relação que estabelecem entre si 23”.

Essa estrutura supra mencionada, é ausente, de certa forma, quando se tem


em prática uma decisão prolatada com base em ativismo judicial pois a mesma,
muitas vezes, passa ao largo do sistema jurídico posto e, através de uma atividade

22
“O fato de as normas constitucionais serem constitutivas não remove a possibilidade de revisões democráticas, ou seja,
não garante a cooriginalidade que Habermas procura defender. Waldron afirma que as democracias normalmente revisam
as regras do jogo, e isso ocorre mediante debates, discordâncias, como pode ser observado em posições majoritárias que
não são unânimes, em votos parlamentares ou em decisões judiciais.607 As normas constituintes demandam que uma
democracia não mude as regras do jogo durante a partida, enquanto o jogo está sendo jogado. As normas das eleições não
poderiam ser mudadas no meio do processo eleitoral, apesar da decisão em Bush v. Gore.608 Mas as pessoas possuem
desacordos que passam pelo conteúdo e pela forma das regras, e isso se apresenta como um problema que pode ser
agravado, especialmente nos casos em que tais desacordos não parecem possuir meios para um entendimento no futuro”.
In: LORENZETTO, Bruno Meneses. Os caminhos do constitucionalismo para a democracia. Tese (Doutorado). Universidade
Federal do Paraná. Curitiba, Paraná, 2014.
23CHUEIRI, Vera Karam de; GODOY, Miguel. G. Constitucionalismo e

democracia, soberania e poder constituinte. Revista Direito GV, v. 6, p. 159-174,


2010. fl. 169.
90

de busca de ideais – em sua maioria principiológicos – acaba por criar um novo


regramento a dado fato da vida levado ao judiciário.
Esta situação na imensa maioria das vezes busca tutelar um direito, e não se
duvida das intenções de satisfazer os direitos e garantias fundamentais por parte
dos membros do poder judiciário, mas inevitavelmente nos leva ao problema da
unidade e integridade do sistema jurídico.
Não é raro situações semelhantes serem tratadas de maneiras diferenciadas
pelo poder judiciário. Uma das funções do sistema jurídico é justamente esta, a de
fornecimento de unidade e integridade, ao passo em que situações iguais tenham
regramento jurídico semelhante, diferenciado-se apenas nas suas desigualdades.
Nesse tocante, importantes as lições de Dworkin ao abordar o direito como
integridade:
“Os juízes devem impor apenas convicções políticas que acreditam, de
boa-fé, poder figurar numa interpretação geral da cultura jurídica e política
da comunidade. Naturalmente, os juristas podem, razoavelmente,
discordar sobre quando essa condição é satisfeita, e convicções muito
diferentes, até mesmo contraditórias podem passar pelo teste. Mas
algumas não. Um juiz que aceita esse limite e cujas convicções são
marxistas ou anarquistas, ou tiradas de alguma convicção religiosa
excêntrica, não pode impor essas convicções à comunidade com o título
de Direito, por mais nobres ou iluminadas que acredite que sejam, pois
elas não se podem prestar à interpretação geral coerente de que ele
necessita”24.

É precisamente neste ponto que reside a grande problemática do ativismo


judicial. Em que pese, como posto por Barroso, tenha-se como norte a
concretização, na maioria das situações, de preceitos que se consubstanciam em
direitos e garantias fundamentais, falta a atividade judicial a atividade comunicativa
presente no processo decisória de elaboração de uma norma legal.
A atividade comunicativa se faz presente quando das discussões pelo
parlamento, em suas comissões, e em todo o trâmite de um projeto de lei que
venha a ser aprovado, nos termos das normas regimentares parlamentares.
São em verdade, essas discussões feitas pelos representantes do povo, que
vão estabelecer normas que regem a sociedade como um todo, bem como vão
definir os rumos que determinada nação almeja alcançar25.

24
DWORKING, Ronald.Uma questão de Princípio (Tradução de Luís Carlos Borges). 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
fl. 9.
25
“É possível concluir, portanto, que a democracia só se realiza se determinadas condições jurídicas estiverem presentes. E
essas condições são justamente os princípios e as regras estabelecidos pela constituição. Ao mesmo tempo, a constituição
só adquire um sentido perene se está situada em um ambiente radicalmente democrático”. In. CHUEIRI, Vera Karam de;
GODOY, Miguel. G. Constitucionalismo e democracia, soberania e poder constituinte. Revista Direito GV, v. 6, p. 159-174,
2010. fl. 171.
91

Cita-se um exemplo para vislumbrar-se claramente a situação ora posta.


Imagine-se que o parlamento no exercício da sua competência legislativa aprove
lei orçamentária encaminhada pelo poder executivo, e após intensas discussões,
esta direcione determinado valor para a satisfação de serviços relacionados à
saúde pública. Não obstante, sendo idéia básica a finitude orçamentária, parte do
valor acrescido a esta rúbrica tenha sido remanejada de fundos que se destinariam
à preservação do meio ambiente.
Feito isso pelo parlamento, uma determinada associação de preservação do
meio ambiente ingressaria com ação visando incumbir ao Estado a obrigação de
fazer no sentido de investimento em determinado parque ambiental ou área de
preservação, argumentando e invocando para tanto, princípios constitucionais
destinados a preservação ambiental. O Estado se contrapõe ao fundamento de que
não possui verba disponível para esse fim, dado os valores apresentados na lei
orçamentária destinados para a preservação ambiental.
Uma vez dada procedência a tal pedido, essa decisão implicará em
remanejando orçamentário no tocante ao planejamento estabelecido na lei
orçamentária aprovada, vez que haverá uma obrigação subscrita por título
executivo judicial impondo ao estado esse dever de investimento.
Tal situação pode ser enquadrada como uma típica atividade de ativismo
judicial, no conceito já citado de Luis Roberto Barroso.
É nesse contexto que o ativismo judicial se transforma em uma figura jurídica
perigosa por justamente não respeitar a comunicatividade popular exercida e
desempenhada pelos membros do parlamento.
Oportunas as ponderações de Anderson Vichinkeski Teixeira neste tocante:
“A primeira aproximação teórica que se poderia fazer seria comparar o
ativismo judicial com a criação judicial do Direito. Todavia, a compreensão
acerca do poder criador (normativo) do juiz, atuando como instrumento
em condições de atribuir dinâmica a um direito estático produzido pelo
legislador, não apresenta grandes dificuldades quando comparado à
vasta gama de complicações postas pelo ativismo judicial. Tais
complicações vão muito além da Teoria do Direito e da Hermenêutica
Jurídica – âmbitos teóricos em condições de enfrentar plenamente o tema
da criação judicial do Direito: atingem a Política e a sua capacidade de
legitimamente atender aos clamores populares na busca do bem comum.
O ativismo judicial representa, em última instância, a deslegitimação da
Política em relação à sua tarefa essencial de buscar a realização dos
valores determinados pela sociedade no cotidiano dessa mesma
sociedade. Corrupção, política como sinônimo de defesa de interesses
meramente partidários, bem como burocratização estatal, são três
componentes sociológicos que corroboram para fortalecer o mito do juiz
Hércules no subconsciente coletivo e culminar na crescente
judicialização das relações sociais”26.
26
TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre racionalidade jurídica e decisão política. Revista
Direito GV, v. 8, n. 1, p. 037-057, 2012.
92

É de se observar que por mais que uma decisão neste sentido tenha as
melhores intenções e os melhores argumentos jurídicos e principiológicos, ela se
afasta, em regra, de uma necessária interação social que é necessária para a
definição dos rumos de uma sociedade.
Nesse contexto, o juiz passa a definir os rumos de investimentos
governamentais de acordo com seu ativismo, por melhores que sejam seus
fundamentos, estes não necessariamente correspondem aos da maioria da
sociedade, em que pese tenham reflexos em toda ela.
Nos dizeres de Garapon:

“A justiça não cabe resolver todos os problemas, dar a última palavra em


matéria de ciência ou de história, definir o bem político e responsabilizar-
se pelo em estar das pessoas. Ela não o pode e não o deve, sob pena de
mergulhar num inferno sofista frustrante, estéril e destruidor, que ninguém
deseja. A justiça jamais nos livrará do escrúpulo por ter que fazer política,
porém ela nos estimula a inventar uma nova cultura política. A velha
cultura republicana, que adorava editar leis mas não gostava de respeitá-
la e que resolvia a prática de suas instituições na hipótese de uma ordem
judiciária fraca e submissa já não vigora. Eis que os juízes levados por
um consenso poderoso, pretendem agora aplicar todas as leis e exercer
suas funções.27”

Há de se registrar que os magistrados em suas decisões não estão adstritos


a uma vontade popular ou direcional do Estado ou da nação, senão aos preceitos
jurídicos que fundamentam sua maneira de decidir.
Nesse diapasão, muitas vezes as decisões são tomadas com base até
mesmo em estratégias de ação, quer política quer jurídica no tocante aos seus
efeitos, nesse sentido:

“As instituições não servem apenas para limitar ou canalizar as ações de


indivíduos auto interessados; elas prescrevem condutas, definem motivos
e estabelecem critérios para legitimidade. Tais são algumas maneiras
pelas quais as instituições acabam por perpetuar,_ para além dos
indivíduos que as compõem, seus valores, objetivos e propostas definidas
em seu momento de fundação, e é esse um dos fatores primordiais para
a manutenção de seu poder. O modelo· da teoria dos jogos relacionado
com a separação de poderes constitui uma dentre várias possibilidades
de análise da interação entre os poderes. Permite, de maneira formal e
limitada, observar as composições e rupturas, os diálogos e os conflitos
entre as instituições estatais. Em tal cenário, as decisões formuladas por
juízes constitucionais não são edificadas apenas com fulcro em suas
preferências políticas, podendo incluir - ou não – estratégias considerando
as respostas da interação entre os outros poderes” 28.

27
GARAPON, Antoine. Op. Cit. fl 265.
28
CLÉVE, Emerson Merlin/ LORENZETTO, Bruno Meneses. A Atuação Política das Cortes: Coalizão, Estratégia e
Interpretação. In. A Constituição Entre o Direito e a Política: O futuro das Instituição. Estudos em homenagem a José
Afonso da Silva. G/Z. Rio de Janeiro. 2018. fl. 622.
93

Não é de se olvidar que na tomada de tais decisões, incluindo as estratégias


a serem tomadas, não raro há a interferência de pretensões pessoais e até mesmo
ideológicas. Nesse contexto, apresenta-se o ativismo judicial como uma clara
violação do princípio democrático.
Sobre os riscos que o ativismo judicial representa para a democracia, Luís
Roberto Barroso ao defender a intervenção judicial em situações sensíveis,
pondera que há duas justificativas para legitimar tal fato, uma de natureza
normativa e outra filosófica, senão vejamos:

“Os membros do Poder Judiciário — juízes, desembargadores e ministros — não são agentes públicos eleitos. Embora não
tenham o batismo da vontade popular, magistrados e tribunais desempenham, inegavelmente, um poder político, inclusive
o de invalidar atos dos outros dois Poderes. A possibilidade de um órgão não eletivo como o Supremo Tribunal Federal
sobrepor-se a uma decisão do Presidente da República — sufragado por mais de 40 milhões de votos — ou do Congresso
— cujos 513 membros foram escolhidos pela vontade popular — é identificada na teoria constitucional como dificuldade
contramajoritária5. Onde estaria, então, sua legitimidade para invalidar decisões daqueles que exercem mandato popular,
que foram escolhidos pelo povo? Há duas justificativas: uma de natureza normativa e outra filosófica”29.

Neste viés, a justificativa normativa para a justificação do ativismo judicial


seria a atribuição pela Constituição e pelas leis ao poder Judiciário a intervenção
em situações levadas ao seu conhecimento. A filosófica seria uma proteção
constitucional aos valores e direitos fundamentais mesmo que contra a vontade da
maioria.
Em que pese tais considerações, é de se ressaltar que tais argumentos
podem ser aplicáveis em exceções postas, porém, como regra não é justificável,
como se verifica inclusive no exemplo posto acima.
Casos de grande repercussão colocados à análise da Suprema Corte podem
se subsumir à tal justificativa, dado que até mesmo possui mecanismos de
participação popular, tais como a realização de audiências públicas e a admissão
de terceiros na qualidade de amicus curiae30. Porém, tais casos são exceção na
grande rotina de trabalho do Judiciário nacional, não podendo servir de
embasamento para a legitimação de um ativismo judicial de forma mais acentuada
e generalizada.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

29
BARROSO, Luis Roberto. Op. Cit. fl. 25.
A figura do amicus curiae, ou amigo da corte, foi inserida no direito brasileiro a partir da Lei 9.868/99, que dispõe sobre
30

a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade.


94

Apresentadas tais considerações e fundamentos, é de se notar que o


fenômeno do ativismo judicial pode ser visto sob duas perspectivas.
A primeira, sob uma perspectiva positiva, de onde se vê uma atividade
exercida por membros do poder Judiciário que almejam a efetivação de direitos e
garantias fundamentais, as quais, muitas vezes são relegados pelo poder
legislativo e que, por isso, tem como dificultosa a sua concretização com base no
sistema jurídico posto31.
A segunda, sob um viés não necessariamente negativo, mas que enseja
muito mais cautela na sua valoração, vez que se denota um certo grau de
subjetividade na tomada de decisões pelo Poder Judiciário, em especial na análise
de lides postas em juízo, o que pode, e certamente causa, violações à integridade
do sistema de justiça uma vez a depender de questões pessoais ou até mesmo
ideológicas do magistrado, haverá uma decisão dada ao jurisdicionado ou medida
impositiva ao Estado, que foge do sistema legal posto pelo Estado, prolatada
exclusivamente bom base em ativismo.
Como menciona Luis Roberto Barroso;
“O fenômeno tem uma face positiva: o Judiciário está atendendo a
demandas da sociedade que não puderam ser satisfeitas pelo
parlamento, em temas como greve no serviço público, eliminação do
nepotismo ou regras eleitorais. O aspecto negativo é que ele exibe as
dificuldades enfrentadas pelo Poder Legislativo — e isso não se passa
apenas no Brasil — na atual quadra histórica. A adiada reforma política é
uma necessidade dramática do país, para fomentar autenticidade
partidária, estimular vocações e reaproximar a classe política da
sociedade civil”32.

Tanto na primeira quanto na segunda análise, ainda, se impõe a problemática


da questão democrática, da formação do sistema jurídico através do meio
comunicativo feito no exercício da atividade parlamentar, com viés de regramento
e unificação de tal sistema.
Esse sistema é formado tendo como base concreta o princípio democrático,
segundo o qual toda o poder estatal advém do povo, o qual, através de
representantes investidos de mandatos, expressam a opinião que guiará o rumo
da nação e do Estado no tocante a concretização das leis e normas que regem o
sistema jurídico.

31
Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos
do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo — em cujo
âmbito se encontram o Presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral. Como intuitivo, a
judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na
argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma
tendência mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro. BARROSO, Luís Roberto. Op.
Cit. fl. 19.
32
BARROSO, Luis Roberto. Op. cit. fl. 24.
95

Como já dito anteriormente, a sistemática do ativismo judicial pode ser


encarada como uma violação do princípio democrático, já que se tem uma criação
advinda genuinamente no seio do Poder Judiciário, sem o crivo da vontade popular.
Assim o sendo, o ativismo judicial deve ser visto com prudência, não se
podendo perder de vista que o regramento legal deve ser sempre a primeira
alternativa na solução dos problemas que a vida em sociedade submete ao poder
Judiciário, bem como, respeitando a autonomia do poder Legislativo e a divisão de
poderes republicanos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teoria da argumentação jurídica; tradução


Maria Cristina Guimarães Cupertino. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2014.
BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes judiciais e segurança jurídica:
fundamentos e possibilidades para a jurisdição constitucional brasileira. Editora
Saraiva, 2017.
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade
democrática. Anuario iberoamericano de justicia constitucional, n. 13, p. 17-32,
2009.
CITTADINO, Gisele. Poder Judiciário, ativismo judicial e democracia. Revista da
Faculdade de Direito de Campos, v. 2, n. 3, p. 135-144, 2002.
CHUEIRI, Vera Karam de; GODOY, Miguel. G. Constitucionalismo e democracia,
soberania e poder constituinte. Revista Direito GV, v. 6, p. 159-174, 2010.
CLÉVE, Emerson Merlin/ LORENZETTO, Bruno Meneses. A Atuação Política das
Cortes: Coalizão, Estratégia e Interpretação. In. A Constituição Entre o Direito e a
Política: O futuro das Instituição. Estudos em homenagem a José
Afonso da Silva. G/Z. Rio de Janeiro. 2018.
DWORKING, Ronald.Uma questão de Princípio (Tradução de Luís Carlos Borges).
2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução
Maria Luísa de Carvalho. Rio de Janeiro. .Revan. 1999.
HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Lua nova, v. 36, p.
39-53, 1995.
HORTA, Raul Machado. O processo legislativo nas Constituições federais
brasileiras. id/496833, 1989.
96

LEITE, Glauco Salomão et al. Súmula vinculante e jurisdição constitucional


brasileira. Rio de Janeiro: Forense, p. 159, 2007.
LORENZETTO, Bruno Meneses. Os caminhos do constitucionalismo para a
democracia. Tese (Doutorado). Universidade Federal do Paraná. Curitiba, Paraná,
2014.
RAMOS, Glauco Gumerato. Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação
do debate. MPMG jurídico, 2009.
TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre racionalidade
jurídica e decisão política. Revista Direito GV, v. 8, n. 1, p. 037-057, 2012.
97

AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS ÀS VÉSPERAS DA


VIGÊNCIA DA LGPD: Uma visão sistêmica de como o Brasil vem se
preparando em relação à proteção dos dados pessoais

Sabrina Bittheyy Cavallari de Carvalho1

RESUMO: O cuidado com os dados pessoais, o que inclui a captação o armazenamento e o


tratamento de dados, é uma preocupação não só dos estudiosos do ramo, mas também da
sociedade em geral. Nesse sentido, buscando pela formação e estruturação de uma tutela jurídica
voltada à proteção dos dados pessoais, a União Europeia, após a edição do GDPR, estimulou e
disseminou em outras soberanias a necessidade delas incluírem na pauta legislativa a construção
de um sistema de proteção de dados pessoais, sob pena de sofrerem embargos econômicos e
sociais, justamente por não contemplarem uma temática atual e emergente. Sob tal influência, o
Brasil, aderindo ao exemplo europeu, opta por editar sua própria legislação em relação a tutela de
proteção dados pessoais, instituindo a persona da autoridade nacional de proteção de dados,
passando assim, a regulamentar a matéria aos seus moldes, de modo a incluir a proteção de
dados pessoais não apenas na legislação infraconstitucional, mas também no bojo da norma
constitucional.

Palavras-chave: direitos fundamentais, dados pessoais, privacidade, ANPD, LGPD.

ABSTRACT: The care with personal data, which includes the capture, storage and processing of
data, is a concern not only of scholars in the field, but also of society in general. In this sense, looking
for the formation and structuring of a legal protection geared to the protection of personal data, the
European Union, after the edition of the GDPR, encouraged and disseminated in other sovereignties
the need for them to include in the legislative agenda the construction of a system for the protection
of personal data, under pain of suffering economic and social embargoes, precisely because they
do not contemplate a current and emerging theme. Under such influence, Brazil, adhering to the
European example, chooses to edit its own legislation in relation to the protection of personal data
protection, establishing the persona of the national data protection authority, thus going on to
regulate the matter according to its molds, in order to include the protection of personal data not only
in the infraconstitutional legislation, but also within the constitutional norm.

Keywords: fundamental rights, personal data, privacy, ANPD, LGPD.

1 INTRODUÇÃO

Em tempos em que para comprar um simples remédio se exige do


consumidor o preenchimento de um cadastro, no qual ele disponibiliza para
terceiros, de forma gratuita, dados pessoais relevantes, tais como R.G, CPF,
endereço, gênero e número de telefone, em troca de eventuais descontos, a
sociedade, em todos os seus níveis, passa a ser protagonista de uma nova
modelagem socioeconômica.

1Mestranda em direitos fundamentais e democracia pelo Centro Universitário Autônomo Do Brasil


– Unibrasil e Faculdades Integradas Do Vale Do Iguaçu – Uniguaçu, programa interinstitucional de
pós-graduação em direitos fundamentais e democracia – Minter. Pós-graduada em Direito Civil e
Empresarial pela PUC/PR, pós-graduada em Processo Civil pelo Instituto Romeo Felipe Bacellar,
graduada em direito pela Universidade Dom Bosco, advogada inscrita na OAB/PR sob n. 76.395.
98

No âmbito deste novo paradigma social, ocorre à oferta de dados das mais
variadas formas, sejam eles pessoais ou não pessoais, sensíveis ou não sensíveis,
direta ou indiretamente, mas são constantemente ofertados. Isso se justifica na
medida e que a sociedade vive a era da alta tecnologia, marcada pelo advento da
internet, da computação móvel, da computação ubíqua, da computação pervasiva 2,
da internet das coisas e da transposição dos ambientes análogos para os
ambientes digitais.
Diante de tal cenário, a interação “humano-máquina” se intensificou ao ponto
de estar em todo lugar sem ser percebida, transformando o fenômeno da
tecnologia, em suas mais variadas formas, em algo onipresente.
Assim, com base em tais adventos, o tratamento de dados pessoais passa
a ser pauta de várias agendas, em vários Países, em várias economias e ramos
de negócios. A polarização e capilaridade do tema é de tamanha repercussão que
há quem diga que “dado é novo petróleo do Séc. XXI”.
Em prol do ajuste dos sistemas jurídicos existentes em cotejo com o novo
paradigma social, a União Europeia edita, em 2016, o Regulamento Europeu de
Proteção de Dados Pessoais, abreviado de GDPR, o qual serviu de inspiração e
modelo para que outras soberanias, assim como o Brasil, também se
despertassem ao tema e se propusessem a impor uma agenda legislativa
específica para o tratamento de dados pessoais.
Com essa influência, o legislativo brasileiro que já havia iniciado algumas
movimentações acerca do tema em 2010 - quando da consulta pública encabeçada
pelo Ministério da Justiça (média de 2.500 contribuições) que deu azo ao PL
4.060/12 de autoria de Milton Monti - após idas e vindas legislativas, promulgou
em 14 de agosto de 2018 a Lei 13.709/2018 também conhecida como LGPD, o
qual teve como origem o PLC n. 53/2018.
Notadamente que a promulgação da LGPD concede ao sistema normativo
brasileiro um novo status, posto que agora a sistemática jurídica nacional encontra-
se nos mesmos patamares formais que a União Europeia, no que tange a tutela
jurídica de proteção de dados pessoais.
No entanto, por ser uma legislação de grande impacto, posto que atinge
intuições públicas e privadas, pessoas físicas ou jurídicas, que tenham como
atividade direta ou indireta o tratamento, a captação, o armazenamento e a

2
A pervasiva é aquela que busca a simplificação aos comandos para a tecnologia, para que a mesma seja quase invisível,
e a computação ubíqua por sua vez, é a que se aproveita dos computadores e dispositivos móveis e da computação
pervasiva para tentar trazer ainda mais interações da tecnologia para o cotidiano. Disponível em:
https://computacaoubiquaepervasiva.wordpress.com/fontes/. Acessado em 14 de fev. 2020.
99

portabilidade de dados pessoais, a LGPD contempla no seu texto os princípios, os


direitos e obrigações inerente as tutela dos dados pessoais.
Deste modo, além do presente trabalho se propor a construir uma linha do
tempo da Lei Geral de Proteção de Dados, também serão tecidos os devidos
esclarecimentos acerca de outros institutos jurídicos que servem de fundamento
para a construção da linha jurídica adotada pela LGPD.
Ademais, como centro do presente estudo, o último tópico se propõe a
esclarecer a questão da Autoridade Nacional de Proteção de Dados - ANDP, que
açambarcada pelo projeto legislativo originário foi rechaçada da norma quando do
veto presidencial, ante a existência do vicio formal de iniciativa, e por tal razão
causou extrema insegurança jurídica aos estudiosos do tema.
Assim, passando a ser tema de Medida Provisória pelo então presidente da
época, mas que, em virtude da transição política ocasionada pelo processo eleitoral
de 2018, acabou sendo consolidada apenas com a aprovação da Lei 13.853/2019,
a qual de forma derradeira recolocou no bojo da LGPD a necessária instituição da
ANPD, hoje a lei geral de proteção de dados conta com a estrutura da autoridade
nacional de forma ampla, estabelecendo, inclusive, as suas competências, a sua
legitimidade e a sua capacidade administrativa de impor sanções aos sujeitos que
optarem pelo descumprimento da norma.
Com objetivo de aclarar as situações que permeiam a construção da tutela
jurídica brasileira acerca da proteção dos dados pessoais, o presente feito se
divide, metodologicamente, em duas grandes partes, sendo que a primeira se
propõem ao deslinde dos instrumentos que embasaram a formação da LGPD, e a
segunda se dedica exclusivamente aos principais pontos que estão eminentemente
atrelados a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, bem como, em caráter
sucessivo e complementar, abordará as capacidades, a forma organizacional da
ANPD e as suas respectivas competências funcionais.

2 TIMELINE: DA GPDR À LGPD BRASILEIRA

2.1 O REGULAMENTO EUROPEU SOBRE A PROTEÇÃO DE DADOS

A linha do tempo da Lei geral de Proteção de Dados – Lei


13.709/2018 – foi construída a partir de um conjunto descentralizado de previsões
jurídicas que poderiam ser encontradas em diferentes documentos jurídicos, ou
100

seja, a legislação destinada à proteção de dados tem como fundamento diversas


normas infraconstitucionais, tais como: o código de defesa do consumidor – Lei
8.078/1990, o código civil – Lei 10.406/2002, o marco civil da internet – Lei
12.965/2014, a lei de acesso à informação – Lei 12.527/2011, a lei do habeas datas
– Lei 9.507/1997, a lei dos registros públicos – Lei 6.015/1973, a lei Carolina
Dickmann – Lei 12.737/2012, todas notadamente filtradas pela Constituição
Federal do Brasil promulgada em 1988.
Inobstante as previsões esparsas, a Lei Geral de Proteção de Dados
surge ainda em reflexo ao cenário internacional, especialmente em resposta a
postura adotada pela União Europeia em relação à proteção de dados pessoais
dos seus cidadãos.
Com aplicação a partir de 25 de maio de 2018, cujo texto foi finalizado
em 27 de abril de 2016, o General Data Protectio Regulation 3 UE2016/679 – que
em português corresponde a Regulamento Geral de Proteção de Dados da União
Europeia - GDPR, despertou a nível mundial o olhar de diversas autoridades, em
especial aos chefes de estado, para a temática da proteção de dados pessoais.
Embasando-se nos resultados das novas tecnologias e na alteração dos
critérios de consumo, bens e serviços, a União Europeia revela à sociedade
internacional a necessidade dos chefes de estado e governos destinarem pauta
específica para a elaboração de leis e diretrizes que tutelem com exclusividade e
especialidade a proteção dos dados pessoais.
Em analise ao Regulamento Europeu - de agora em diante referenciada
como GDPR - tem-se que o instrumento jurídico internacional, estruturado em 99
artigos, se condimenta em XI capítulos que se estruturam em: I – Disposições
gerais, II - Princípios, III – Direitos do titular dos dados, IV – Controlador e
processador, V – Transferência de dados pessoais para países terceiros ou
organizações internacionais, VI – Autoridades de supervisão independentes, VII –
Cooperação e consistência, VIII – Recursos, responsabilidades e sanções, IX –
Disposições relativas a situações específicas de processamento, X – Atos
delegados e atos de execução, XI – Disposições Finais.
O GDPR, além de estabelecer as novas diretrizes para a proteção de dados
pessoais, teve como objetivo renovar a perspectiva jurídica da União Europeia em
relação à proteção dados, visto que revogou o conteúdo consolidado em 1995 no

3
General Data Protectio Regulation. Disponivel em: https://eur-lex.europa.eu/legal-
content/EN/TXT/HTML/?uri=CELEX:32016R0679&from=PT acessado em 08 de fev. 20.
101

bojo da Diretiva 95/46/EC. A substituição da Diretiva de 95 foi desencadeada pelo


célere desenvolvimento tecnológico dos últimos 20 anos, o que se justifica na
medida em que em 1995 ainda não se falava em big data, redes sociais,
armazenamento de dados, Market de dados e definição de perfil do usuário.
Além de atualizar o conteúdo da Diretiva anterior, o GDPR apresentou um
conteúdo com força cogente, na medida em que ao invés de possibilitar a
regulamentação de dados pelos estados-membros, unificou as previsões
singulares e pacificou o entendimento sobre a regulamentação e proteção dos
dados pessoais em todo o território da UE.
Deste modo, inaugurando uma proteção robusta sobre a proteção dos dados
pessoais, o GDPR estabelece em seu art. 2º, que o escopo material da
regulamentação concerne “no tratamento de dados pessoais total ou parcial por
meios automatizados e ao tratamento que não seja por meios automáticos de
dados pessoais que fazem parte de um sistema de arquivamento ou se destinam
a fazer parte de um sistema de arquivamento”4.
Em relação à territorialidade, vislumbrando a capacidade líquida da
internacionalidade das transações de dados, o GDPR5 estabelece em seu art. 3º
as seguintes questões:
1. O presente regulamento aplica-se ao tratamento de
dados pessoais no contexto das atividades de um estabelecimento
de um controlador ou de um processador na União,
independentemente de o tratamento ocorrer na União ou não.
2. O presente regulamento aplica-se ao tratamento de
dados pessoais de titulares de dados que estão na União por um
responsável pelo tratamento ou processador não estabelecido na
União, onde as atividades de tratamento estão relacionadas com:
a) oferta de bens ou serviços, independentemente de
ser exigido o pagamento do titular dos dados, a esses
titulares na União; ou
b) A monitorização do seu comportamento na medida
em que o seu comportamento seja realizado na União.
3. O presente regulamento aplica-se ao tratamento de
dados pessoais por um responsável pelo tratamento não
estabelecido na União, mas num local em que o direito dos
Estados-Membros se aplica por força do direito internacional
público.

4
Idem.
5
Idem.
102

De acordo com a redação acima, a abrangência dos termos do GDPR não


se limitam apenas aos dados coletados e armazenados no âmbito da União
Europeia, mas sim a todo e qualquer estabelecimento, ainda que com sede fora da
União da Europeia, que se coloque na função de coletar ou armazenar dados
pessoais de cidadãos da comunidade Europeia.
Além do escopo material e da abrangência territorial, o art. 5º da disposição
normativa estabelece qual a ordem principiológica a ser seguida pelos sujeitos
açambarcados pelas diretrizes contidas no Regulamento Europeu. Em tom de ação
verbal, o art. 5º do referido documento menciona em destaque que os dados
pessoais devem ser captados, tratados e armazenados com base no seguinte tripé
principiológico: legalidade, justiça, transparência.
Inobstante ao tripé contido nas primeiras linhas do art. 5º, as disposições
enfatizam, ainda com tom imperativo, o dever das relações de tratamento de dados
pessoais serem executadas em plena e estrita observância aos seguintes
mandamentos: limitação da finalidade, minimização de dados, precisão, limitação
do armazenamento e prestação de contas.
Em sequência, o art. 6º do Regulamento Europeu se propõe a descrever o
significado de legalidade do processo de captação, processamento,
armazenamento e transações de dados. No contexto do referido artigo, o legislador
Europeu elencou as hipóteses em que o processamento será considerado legal do
pondo de vista de execução, bem como posicionou o consentimento do titular dos
dados como fonte de legalidade da captação, transação ou processamento. Ou
seja, fora dos escopos elencados no artigo 6º a legalidade dos processos que
envolvam a utilização de dados pessoais ficará maculada.
Enaltecendo a vontade do titular dos dados, poder potestativo singular, o art.
7º do GDPR coloca de forma delineada o modo pelo qual o consentimento deve
ser concedido ao responsável ou encarregado pelo processamento de dados
pessoais.
Sendo de suma importância essa definição, em especial quando da
abordagem e competência da autoridade de proteção de dados, o consentimento
do titular dos dados pessoais deve ser, primeiramente, de fácil comprovação por
aquele que está processando ou armazenando os dados. Em respeito ao texto
literal, destaca-se o art. 7º6 em sua totalidade:

6
General Data Protectio Regulation. Disponivel em: https://eur-lex.europa.eu/legal-
content/EN/TXT/HTML/?uri=CELEX:32016R0679&from=PT acessado em 08 de fev. 20.
103

Condições para consentimento


1. Se o tratamento se basear no consentimento, o responsável pelo
tratamento deve poder demonstrar que o titular dos dados
consentiu no tratamento dos seus dados pessoais.
2. Se o consentimento do titular dos dados for concedido no
contexto de uma declaração escrita que também diga respeito a
outros assuntos, o pedido de consentimento deverá ser
apresentado de uma maneira claramente distinta dos outros
assuntos, de forma inteligível e facilmente acessível, usando
linguagem clara e clara. Qualquer parte dessa declaração que
constitua uma violação do presente regulamento não é vinculativa.
3. O titular dos dados tem o direito de retirar o seu consentimento
a qualquer momento. A retirada do consentimento não afetará a
legalidade do processamento com base no consentimento antes
de sua retirada. Antes de dar o consentimento, o titular dos dados
deve ser informado. Deve ser tão fácil retirar-se quanto dar
consentimento.
4. Ao avaliar se o consentimento é concedido livremente, deve-se
levar em consideração se, entre outros aspectos, a execução de
um contrato, incluindo a prestação de um serviço, depende do
consentimento para o tratamento de dados pessoais que não é
necessário para a execução desse contrato.

Além das disposições acima, a legislação estrangeira também regulamenta


a possibilidade de o consentimento ser realizado por crianças.
Nestes casos, se o titular tiver mais de 16 (dezesseis) anos, o consentimento
pode ser por ele realizado. Em sendo menor de 16 (dezesseis) anos, o
consentimento deve ser concedido pelo detentor da responsabilidade dos pais
sobre a criança ou, então, pelos próprios pais.
Outro ponto relevante é o contido no disposto do artigo 12º do regulamento.
Nesse tópico, o legislador concede ao titular do dado uma extensa lista de direitos
que devem ser respeitados pelos processadores de dados e exigidos pelos seus
respectivos titulares.
O rol dos direitos dos titulares7, de forma simplificada, contempla diretrizes
acerca dos seguintes temas: do direito a informação, direito de acesso, direito de

7
Nota: Direito de informação: o titular dos dados tem o direito de obter a identidade do responsável
pelo tratamento; o contato da autoridade responsável pela proteção de dados (DPO), quando aplicável; as
finalidades do tratamento; e qualquer informação necessária para garantir um tratamento justo e
transparente dos dados.
Direito de acesso: o titular tem o direto de obter a confirmação de que seus dados estão ou não
sendo objeto de tratamento e, em caso positivo, pode acessar os dados e receber informações sobre o
tratamento e suas finalidades, ser informado para quais terceiros os dados serão divulgados e se existem
decisões tomadas automaticamente a partir dos dados tratados.
104

retificação, direito de portabilidade dos dados, direito de retificação e o direito ao


apagamento – que na doutrina brasileira se reconhece como o direito ao
esquecimento.
Independentemente do conteúdo material da GPDR, tendo em vista a
proposta do presente trabalho, o capitulo XII, representado pelo artigo 51º, se
propõem a esmiuçar a competência e abrangência da Autoridade de supervisão
independente. No entanto, como esse tema será abordado no próximo tópico,
posto que será cotejado com as disposições contidas na legislação brasileira, não
serão tecidos esclarecimentos acerca do assunto neste momento da pesquisa.
Assim, compilando as disposições contidas na GDPR, é possível consignar
que a legislação promovida no bojo da União Europeia em 2016 se propôs a
desenhar de forma esmiuçada, abrangente e verticalizada toda a questão que
envolve a captação, armazenamento e processamento de dados.
Deste modo, ocupando um espaço de pioneirismo, a GPDR também vincula
outras nacionalidades a se despertarem pelo tema, posto que elenca como titular
do seu regimento o titular do dado, independentemente do lugar em que o dado,
pertencendo ao cidadão da União Europeia, se encontre.
Neste contexto, justamente por ser transnacional, a GPDR despertou no
legislador brasileiro a necessidade de compilar os demais dispositivos que de
alguma forma tratavam da captação e do processamento de dados, bem como
sinalizou a necessidade em estabelecer novos critérios em relação a essa
importante temática social.

Direito de retificação: o controlar tem a obrigação de retificar dados incorretos, sem demora injustiçada,
a pedido do titular dos dados.
Direito de portabilidade dos dados: o titular dos dados tem o direito de receber os dados a seu respeito
ou os dados tenha fornecido, num formado estruturado, de uso comum, fácil leitura e de uma forma legível
por máquinas/computadores, e o direito de transmitir esses dados a outro responsável pelo tratamento sem
oposição do responsável que recebeu os dados num primeiro momento.
Direito de restrição: o titular tem o direito de se opor ao tratamento de seus dados pessoais, a qualquer
momento, por quaisquer motivos particulares. O responsável pelo tratamento deve cessar o tratamento sem
demora injustificada, a não ser que prevaleçam outros interesses legais.
Direito ao esquecimento/apagamento: o titular dos dados tem o direito de reivindicar ao responsável
pelo tratamento de dados o apagamento/exclusão dos seus dados pessoais sem demora injustificada
quando não mais são necessários para a finalidade que motivaram sua coleta; e quando o titular
retira seu consentimento para o tratamento de dados e não existe outro fundamento jurídico que
justifique o tratamento. O direito ao esquecimento não se aplica obrigatoriamente quando entrar em
conflito com exercício da liberdade de expressão e informação, motivos de interesse público ou
cumprimento de obrigação legal prevista pelo direito da União Europeia ou de Estado -Membro a
que esteja sujeito.
Entra em vigor o Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/depeso/281042/entra-em-vigor-o-regulamento-geral-de-protecao-de-
dados-da-uniao-europeia. Acessado em 02 de fev. de 2020.
105

Por esse viés, mas também pela força comercial que a GDPR possui, uma
vez que as nacionalidades que adotarem uma legislação destinada a proteção de
dados passam a demostrar perante as relações internacionais uma postura de
conformidade e compliance, o legislador brasileiro em 2018 se propôs a redigir a
Lei Geral de Proteção de Dados.
Saindo do cenário internacional, mas justificando a sua extensa abordagem
na medida em que a legislação brasileira além de ser inspirada materialmente na
GPDR, replica algumas preposições internacionais com o intuito de manter-se em
consonância com o cenário internacional, bem como para demonstrar à sociedade
nacional a relevância do tema em termos práticos, a presente pesquisa agora
passa a abordar o conteúdo nacional a fim de estabelecer, de forma metodológica,
a timeline da LGPD.

2.2 INSTRUMENTOS JURÍDICOS PREPARATÓRIOS À LGPD

No âmbito do direito brasileiro, conforme já mencionado, até a promulgação


da Lei 13.709/2018 as previsões legislativas destinadas à proteção e dados eram
esparsas e não impunham aos sujeitos envolvidos o grau de coerção que a
legislação especial adotou.
Inobstante as normas infraconstitucionais serem esparsas e de pouco grau
de eficiência, posto que não previam em seu texto jurídico sanções específicas em
caso de descumprimento da norma, o legislador constituinte estabeleceu no
deslinde da Constituição Federal Brasileira de 88, no bojo do art. 5º, que se destina
a exemplificar o rol dos direitos fundamentais, as seguintes previsões8:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação;
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último

8
BRASIL. Constituição federal brasileira de 1988. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acessado em 08 fev. 2020.
106

caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer
para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo
da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de
seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão
prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas
aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do
Estado
XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de
taxas:
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de
direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;
LXXII - conceder-se-á habeas data:
a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do
impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades
governamentais ou de caráter público;
b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo
sigiloso, judicial ou administrativo;

Partindo das previsões constitucionais acima, de pronto algumas


constatações poder sem reveladas.
A primeira delas se refere a inviolabilidade da intimidade do indivíduo, o qual
recebe da doutrina constitucionalista a seguinte definição: “faculdade que tem cada
indivíduo de obstar a intromissão de estranhos em sua vida privada e familiar,
assim como de impedir-lhes o acesso a informações sobre a privacidade de cada
um, e também impedir que sejam divulgadas informações sobre esta área da
manifestação existencial do ser humano”9.
Em contrapartida, e de algum modo antagônico e complementar, o texto
constitucional também elenca como direito fundamental a liberdade de expressão.
Antes do conceito e da citação doutrinaria, importante esclarecer que a liberdade
de expressão se apresenta de forma antagônica à privacidade na medida em que
retira do sujeito a individualidade e a singularidade, mas, por outro lado, acaba
complementando-a na medida em que oportuniza a possibilidade da privacidade
ser, em certa medida, desvelada em prol da informação genuína.
De acordo com a literatura constitucionalista brasileira10, existe diferença
entre direito a informação e de expressão, na medida em que:

a primeira diz respeito ao direito individual de comunicar livremente fatos


e ao direito difuso de ser deles informado; a liberdade de expressão, por
seu turno, destina-se a tutelar o direito de externar ideias, opiniões, juízos

9
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. vol. 2, São Paulo: Saraiva,
1989.p.30
10
BARROS, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. critérios de ponderação.
interpretação constitucionalmente adequada do código civil e da lei de imprensa. Revista de Direito Administrativo. Jan/Mar.
2004.p.18-19. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/45123/45026. Acessado em 08 fev.
2010.
107

de valor, em suma, qualquer manifestação do pensamento humano. Sem


embargo, é de reconhecimento geral que a comunicação de fato nunca é
uma atividade completamente neutra: até mesmo na seleção dos fatos a
serem divulgados há uma interferência do componente pessoal. Da
mesma forma, a expressão artística muitas vezes tem por base
acontecimentos reais. Talvez por isso o direito norte-americano, o
Convênio Europeu de Direitos Humanos (art. 10.1) e a Declaração
Universal dos Direitos do Homem (art. 194\1) tratem as duas liberdades
de forma conjunta. É fora de dúvida que a liberdade de informação se
insere na liberdade de expressão em sentido amplo, mas a distinção
parece útil por conta de um inegável interesse prático, relacionado com
os diferentes requisitos exigíveis de cada uma das modalidades e suas
possíveis limitações. A informações não pode prescindir da verdade -
ainda que uma verdade subjetiva e apenas possível. pela circunstância
de que é isso que as pessoas legitimamente supõem estar conhecendo
ao buscá-la. Decerto, não se cogita desse requisito quando se cuida de
manifestações da liberdade de expressão. De qualquer forma, a distinção
deve pautar-se por um critério de prevalência: haverá exercício do direito
de informação quando a finalidade da manifestação for a comunicação de
fatos noticiáveis, cuja caracterização vai repousar sobretudo no critério da
sua veracidade.

Importante destacar a previsão doutrinária acerca da privacidade e da


liberdade de expressão, uma vez que estes dois princípios constitucionais, em
tempos de alta tecnologia e uso das redes sociais, passam por momentos de
coalisão, uma vez que a privacidade como posta e conhecida originariamente na
constituição não mais representa a significação de 1988. Isso porque, na
atualidade, verificado o modelo de sociedade informacional11, os critérios de
preservação da privacidade receberam dimensões distintas da privacidade e da
liberdade de expressão estimada pela sociedade dos anos 90, uma vez que a
exposição da vida pessoal nas redes sociais e a incessante busca por informações
cresceram demasiadamente com o uso exacerbado das redes sociais pelos
indivíduos.
Embora haja uma aparente coalisão de direitos fundamentais, quando
colocado em objeção o direito a privacidade e o direito a liberdade de expressão,
ambos são de extrema importância para o ramo do direito e tecnologia, em especial
quando o tema envolve captação de dados e redes sociais.
Mas além das previsões constitucionais mencionadas, o legislativo
brasileiro, com o objetivo de reposicionar o conteúdo constitucional com o
movimento social informacional, estabeleceu como projeto de Emenda

11
As redes de tecnologias digitais permitem a existência de redes que ultrapassem os seus limites históricos. E podem, ao
mesmo tempo, ser flexíveis e adaptáveis graças à sua capacidade de descentralizar a sua performance ao longo de uma
rede de componentes autónomos, enquanto se mantêm capazes de coordenar toda esta atividade descentralizada com a
possibilidade de partilhar a tomada de decisões. As redes de comunicação digital são a coluna vertebral da sociedade em
rede, tal como as redes de potência (ou redes energéticas) eram as infra-estruturas sobre as quais a sociedade industrial foi
construída. CASTELLS, Manuel; CARDOSO, Gustavo (Orgs.). A Sociedade em Rede: do conhecimento à ação política;
Conferência. Belém (Por): Imprensa Nacional, 2005. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/sociedade-em-
rede-do-conhecimento%C3%A0-ac%C3%A7%C3%A3o-pol%C3%ADtica Acessado em: 09 fev. 2020.
108

Constitucional o PEC 17/2019, que teve como motivação a Alteração da


“Constituição Federal para incluir a proteção de dados pessoais entre os direitos e
garantias fundamentais e para fixar a competência privativa da União para legislar
sobre proteção e tratamento de dados pessoais”12.
A proposta de emenda constitucional vislumbrou a inclusão da proteção de
dados no rol dos direitos fundamentais, de modo que a proposta original elencou
como extensão do inciso VII, do art.5º que: “XII - A - é assegurado, nos termos da
lei, o direito à proteção de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, bem como
adicionou no artigo referente a competência legislativa da União Federal a
capacidade de legislar sobre a proteção de dados pessoais.
Atualmente o Projeto de Emenda Constitucional encontra-se aprovado pelo
plenário, e foi remetido à câmara dos deputados no dia 03 de julho de 2019, tendo
como última movimentação legislativa a expedição do parecer exarado pela
comissão especial, que como resultado da avaliação aprovou o parecer de
justificativa do projeto de emenda13.
Ultrapassado as preposições constitucionais e colocando-as como
necessárias ao novo cenário jurídico, que construído sob os alicerces da tecnologia
exige do legislador uma postura contemporânea, somadas as explicações
realizadas em relação a GPDR, tem-se então a construção e definição dos
primeiros instrumentos jurídicos nacionais e internacionais que serviram de
fundamento e inspiração para a criação da legislação nacional, a qual se propõem
ao tratamento especifico e consolidado da proteção de dados pessoais.

2.3 A LGPD BRASILEIRA E SUAS ESPECIFICAÇÕES

Verticalizando o presente estudo para a análise do conteúdo legislativo


contido na Lei Geral de Proteção de Dados – Lei. 13.709/2019 importante destacar
que o conteúdo e as disposições contidas na referida norma se apresentam em
consonância à norma expedida pela União Europeia, GDPR.
Com uma redação mais enxuta e não tão incisiva, a Lei geral de proteção
de dados – LGPD14, se consolida em 65 artigos, distribuídos em X capítulos que

12
Proposta de Emenda Constitucional PEC 17/2019. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2210757. Acessado em: 09 de fev. 2020.
13
Idem.
14
LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em: 09 de fev. de 2020.
109

se estruturam da seguinte forma: I - Disposições Preliminares, II – Tratamento de


Dados, III – Dos Direitos dos Titulares, IV – Tratamento de Dados pelo Poder
Público, V – Da Transferência internacional de dados, VI – Dos Agentes de
Tratamento de Dados, VII – Da Segurança e das Boas Práticas, VIII – Da
Fiscalização, IX – Autoridade Nacional de Proteção de Danos - ANDP e X -
Disposições Finais e Transitórias.
Em comparação apenas aos títulos que subdividem a disposição legislativa
brasileira com a GDPR verifica-se de pronto a ausência de alguns pontos de suma
importância, como a dedicação específica de capitulo que estruture a razão do
consentimento, bem como a ausência de previsão de prazos específicos, visto que
na estruturação nacional a menção aos prazos está disposta de forma ampla e
discricionária e vem representada pela previsão de “prazo razoável”.
Ainda que o objetivo deste tópico da pesquisa seja analisar os principais
capítulos da LGPD de modo a consignar eventuais esclarecimentos, comparações
e até mesmo críticas, é oportuno esclarecer que a legislação brasileira não se
compõe apenas do vocabulário e da tecnicidade da ciência jurídica. Isto porque,
conforme a frente será trabalhado, a LGPD é uma legislação eminentemente
recheada de conteúdo e tecnicidade advinda da ciência da tecnologia da
informação, ou seja, a leitura do aparado legislativo exige alguns esclarecimentos
preliminares.
Neste sentido, com o objetivo de facilitar a interpretação dos dispositivos
legais, importante significar os seguintes conceitos terminológicos15:

Titular: Pessoa a quem se referem os dados pessoais que são objeto de


algum tratamento.
Tratamento de Dados: Toda a operação realizada com algum tipo de
manuseio de dados pessoais: coleta, produção, recepção, classificação,
utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento,
arquivamento, armazenamento, edição, eliminação, avaliação ou controle
de informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou
extração.
Dados Pessoais: Toda informação relacionada a uma pessoa
identificada ou identificável, não se limitando, portanto, a nome,
sobrenome, apelido, idade, endereço residencial ou eletrônico, podendo
incluir dados de localização, placas de automóvel, perfis de compras,
número do Internet Protocol (IP), dados acadêmicos, histórico de
compras, entre outros. Sempre relacionados a pessoa natural e viva.
Dados Pessoais Sensíveis: São dados que estejam relacionados a
características da personalidade do individuo e suas escolhas pessoais,
tais como origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política,
filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou

15
PINHEIRO, Patrícia Peck. Proteção de dados pessoais: comentários à lei 13.709/2018. São Paulo: Saraiva Educação,
2018. p. 25-27.
110

político, dado referente a saúde ou a vida sexual, dado genético ou


biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural.
Dados Anonimizados: São os dados relativos a um titular que não possa
ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e
disponíveis na ocasião do seu tratamento.
Anonimização: Utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis no
momento do tratamento, por meio dos quais um dado perde a
possibilidade de associação, direta ou indireta, a um indivíduo.
Consentimento: Manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o
titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma
finalidade determinada. Não é o único motivo que autoriza o tratamento
de dados, as apenas uma das hipóteses.
Agentes de Tratamento: O controlador que recepciona os dados
pessoais dos titulares de dados por meio do consentimento ou por
hipóteses de exceção, e o operador que realiza algum tratamento de
dados pessoais motivado por contrato ou obrigação.
Encarregado: Pessoa natural, indicada pelo controlado, que atua como
canal de comunicação entre o controlador e os titulares e a autoridade
nacional.
Transferência Internacional de Dados: Transferência de dados
pessoais para país estrangeiro ou organismo internacional do qual o país
seja membro.

Além da terminologia técnica acima referendada, a LGPD, no âmbito da sua


aplicação material e territorial, condiciona a sua aplicação a toda e qualquer pessoa
que se propõem a realizar, independentemente da forma, o tratamento de dados,
sem que haja distinção entre pessoas físicas, jurídicas, organizações públicas ou
privadas.
No tocante ao aspecto de aplicação territorial, a LGPD não restringe a sua
tutela a critérios de cidadania ou nacionalidade dos dados pessoais, nem mesmo
faz referencia ao local de domicilio do titular dos dados.
No entanto, condicionando a sua incidência às características do próprio
dado, exige-se, como critério territorial, a verificação de um dos seguintes
elementos: (i) ocorrência em território nacional, (ii) que tenha por objetivo a oferta
ou o fornecimento de bens, serviços o tratamento de dados de indivíduos
localizados em território nacional e (iii) aplica-se nos casos em que a coleta dos
dados tenha ocorrido em território nacional16.
Em termos de aplicabilidade, a LGPD não se impõe sobre os processos de
tratamento de dados que sejam realizados por pessoa física sem fins econômicos
e por razões meramente particulares.
No tocante ao aspecto principiológico da LGPD, ponto que merece destaque
e atenção, a legislação condiciona o seu texto de modo a consignar uma ordem
principiologia que abrange aspectos já conhecidos pelos juristas brasileiros, como

16
Idem, p. 29.
111

o consentimento, por exemplo, mas também revela princípios inéditos a esse novo
ramo do direito.
Nesse aspecto, o tratamento de dados pessoais no âmbito nacional deve
observar a seguinte ordem principiológica17:

(i) Finalidade do tratamento;


(ii) compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas
aos titulares;
(iii) Limitação do tratamento ao mínimo necessário para a
realização de suas finalidades;
(iv) Garantia, aos titulares, de consulta facilitada e gratuita sobre a
forma de tratamento;
(v) Garantia, aos titulares, de exatidão, clareza, relevância e
atualização dos dados, de acordo com a necessidade e para o
cumprimento da finalidade de seu tratamento;
(vi) Transparência aos titulares;
(vii) Utilização de medidas técnicas e administrativas aptas a
proteger os dados pessoais;
(viii) Prestação de contas, pelo agente, da adoção de
medidas capazes de comprovar a proteção de dados pessoais.

Consoante à ordem principiológica acima entende-se a priori, que a LGPD


não fez referência direta a necessidade do consentimento do titular do dado, o que
de forma robusta e expressa foi esmiuçado no GDPR. No entanto, ainda que não
haja prescrição como princípio, do deslinde hermenêutico da norma nacional fica
evidente que a linha mestra do novo diploma legislativo é o consentimento do
titular.
Por outro aspecto, e adotando uma visão macro e ampla acerca da
hermenêutica da LGPD, os comandos a serem cumpridos por aqueles que
capturam, armazenam ou processam dados pessoais, se revelam na finalidade, na
adequação, na necessidade, no livre acesso ao titular dos dados, na transparência,
na segurança da informação, na responsabilização e no dever de prestação de
contas.
Para concluir o estudo acerca da LGPD, na forma proposta neste trabalho,
dois pontos prescindem de apreciação: (i) as penalidades impostas pela nova
legislação e (ii) a conceituação e esquematização da Autoridade Nacional de
Proteção de Dados – ANPD. No entanto, como o próximo tópico destina-se
especificamente ao modo pelo qual o legislador brasileiro tratou esses dois pontos,
não serão tecidos esclarecimentos acerca deles neste momento.

17
Idem, p. 33.
112

Por outro lado, arrematando todos os pontos delineados neste tópico,


importante consignar a existência de sinergia entre a GDPR e a LGPD, uma vez
que o diploma internacional em vigor desde 2018 serviu de “ponta pé” inicial para
que o legislador brasileiro, frente aos novos modelos de negócios e a eventual
possibilidade de perder transações comerciais internacionais, em razão da
ausência de uma norma especifica à proteção dados, dispusesse de agenda
parlamentar justamente para, ao menos em termos jurídicos, se apresentar
adequado as novas tendências mundiais.

3 A ANPD BRASILEIRA

A Autoridade nacional de proteção de dados – ANPD, ainda enfrenta


um cenário de instabilidades, incertezas e, de certo modo, de inconsistência se
equiparada à autoridade nacional instituída no âmbito da União Europeia.
Quando do projeto inicial, a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPG
13.709/218, contemplava no bojo dos artigos 55 à 5918 a criação da autoridade

18
Art. 55. É criada a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), integrante da administração pública federal indireta,
submetida a regime autárquico especial e vinculada ao Ministério da Justiça.
§ 1º A ANPD deverá ser regida nos termos previstos na Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000.
§ 2º A ANPD será composta pelo Conselho Diretor, como órgão máximo, e pelo Conselho Nacional de Proteção de Dados
Pessoais e da Privacidade, além das unidades especializadas para a aplicação desta Lei.
§ 3º A natureza de autarquia especial conferida à ANPD é caracterizada por independência administrativa, ausência de
subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira.
§ 4º O regulamento e a estrutura organizacional da ANPD serão aprovados por decreto do Presidente da República.
§ 5º O Conselho Diretor será composto por 3 (três) conselheiros e decidirá por maioria.
§ 6º O mandato dos membros do Conselho Diretor será de 4 (quatro) anos.
§ 7º Os mandatos dos primeiros membros do Conselho Diretor serão de 3 (três), 4 (quatro) e 5 (cinco) anos, a serem
estabelecidos no decreto de nomeação.
§ 8º É vedado a ex-conselheiro utilizar informações privilegiadas obtidas em decorrência do cargo exercido, sob pena de
incorrer em improbidade administrativa.
Art. 56. A ANPD terá as seguintes atribuições:
I - zelar pela proteção dos dados pessoais, nos termos da legislação;
II - zelar pela observância dos segredos comercial e industrial em ponderação com a proteção de dados pessoais e do sigilo
das informações quando protegido por lei ou quando a quebra do sigilo violar os fundamentos do art. 2º desta Lei;
III - elaborar diretrizes para Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade;
IV - fiscalizar e aplicar sanções em caso de tratamento de dados realizado em descumprimento à legislação, mediante
processo administrativo que assegure o contraditório, a ampla defesa e o direito de recurso;
V - atender petições de titular contra controlador;
VI - promover na população o conhecimento das normas e das políticas públicas sobre proteção de dados pessoais e das
medidas de segurança;
VII - promover estudos sobre as práticas nacionais e internacionais de proteção de dados pessoais e privacidade;
VIII - estimular a adoção de padrões para serviços e produtos que facilitem o exercício de controle dos titulares sobre seus
dados pessoais, que deverão levar em consideração as especificidades das atividades e o porte dos responsáveis;
IX - promover ações de cooperação com autoridades de proteção de dados pessoais de outros países, de natureza
internacional ou transnacional;
X - dispor sobre as formas de publicidade das operações de tratamento de dados pessoais, observado o respeito aos
segredos comercial e industrial;
XI - solicitar, a qualquer momento, às entidades do Poder Público que realizem operações de tratamento de dados pessoais,
informe específico sobre o âmbito e a natureza dos dados e os demais detalhes do tratamento realizado, podendo emitir
parecer técnico complementar para garantir o cumprimento desta Lei;
XII - elaborar relatórios de gestão anuais acerca de suas atividades;
XIII - editar regulamentos e procedimentos sobre proteção de dados pessoais e privacidade, assim como sobre relatórios de
impacto à proteção de dados pessoais para os casos em que o tratamento representar alto risco para a garantia dos
princípios gerais de proteção de dados pessoais previstos nesta Lei;
XIV - ouvir os agentes de tratamento e a sociedade em matérias de interesse relevante, assim como prestar contas sobre
suas atividades e planejamento;
113

nacional de proteção de dados como integrante da administração pública federal


indireta, de modo que ela ficaria submetida ao regime autárquico especial e estaria
vinculada ao Ministério da Justiça.
Além das disposições sobre a ANPD, a previsão legislativa
também dispunha sobre a organização administrativa da autoridade,
de modo a instituir o conselho diretor, o conselho nacional de proteção
de dados pessoais e da privacidade, bem como as unidades
especializadas para a proteção de dados pessoais.
Em destaque, o texto original conferia à ANPD a natureza
de autarquia especial, consignando a ela as atribuições de
independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica,
mandado fixo, estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira.

XV - arrecadar e aplicar suas receitas e publicar, no relatório de gestão a que se refere o inciso XII do caput deste artigo, o
detalhamento de suas receitas e despesas; e
XVI - realizar ou determinar a realização de auditorias, no âmbito da atividade de fiscalização, sobre o tratamento de dados
pessoais efetuado pelos agentes de tratamento, incluindo o Poder Público.
§ 1º Ao impor condicionamentos administrativos ao tratamento de dados pessoais por agente de tratamento privado, sejam
eles limites, encargos ou sujeições, a ANPD deve observar a exigência de mínima intervenção, assegurados os
fundamentos, os princípios e os direitos dos titulares previstos no art. 170 da Constituição Federal e nesta Lei.
§ 2º Os regulamentos e normas editados pela ANPD devem necessariamente ser precedidos de consulta e audiência
públicas, bem como de análises de impacto regulatório.
Art. 57. Constituem receitas da ANPD:
I - o produto da execução da sua dívida ativa;
II - as dotações consignadas no orçamento geral da União, os créditos especiais, os créditos adicionais, as transferências e
os repasses que lhe forem conferidos;
III - as doações, os legados, as subvenções e outros recursos que lhe forem destinados;
IV - os valores apurados na venda ou aluguel de bens móveis e imóveis de sua propriedade;
V - os valores apurados em aplicações no mercado financeiro das receitas previstas neste artigo;
VI - o produto da cobrança de emolumentos por serviços prestados;
VII - os recursos provenientes de acordos, convênios ou contratos celebrados com entidades, organismos ou empresas,
públicos ou privados, nacionais ou internacionais;
VIII - o produto da venda de publicações, material técnico, dados e informações, inclusive para fins de licitação pública.”
“Art. 58. O Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade será composto por 23 (vinte e três)
representantes titulares, e seus suplentes, dos seguintes órgãos:
I - 6 (seis) representantes do Poder Executivo federal;
II - 1 (um) representante indicado pelo Senado Federal;
III - 1 (um) representante indicado pela Câmara dos Deputados;
IV - 1 (um) representante indicado pelo Conselho Nacional de Justiça;
V - 1 (um) representante indicado pelo Conselho Nacional do Ministério Público;
VI - 1 (um) representante indicado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil;
VII - 4 (quatro) representantes da sociedade civil com atuação comprovada em proteção de dados pessoais;
VIII - 4 (quatro) representantes de instituição científica, tecnológica e de inovação; e
IX - 4 (quatro) representantes de entidade representativa do setor empresarial afeto à área de tratamento de dados pessoais.
§ 1º Os representantes serão designados por ato do Presidente da República, permitida a delegação, e terão mandato de 2
(dois) anos, permitida 1 (uma) recondução.
§ 2º A participação no Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade será considerada atividade de
relevante interesse público, não remunerada.
§ 3º Os representantes referidos nos incisos I a VI do caput deste artigo e seus suplentes serão indicados pelos titulares dos
respectivos órgãos e entidades.
§ 4º Os representantes referidos nos incisos VII, VIII e IX do caput deste artigo e seus suplentes serão indicados na forma
de regulamento e não poderão ser membros da entidade mencionada no inciso VI do caput deste artigo.
Art. 59. Compete ao Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade:
I - propor diretrizes estratégicas e fornecer subsídios para a elaboração da Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais
e da Privacidade e para a atuação da ANPD;
II - elaborar relatórios anuais de avaliação da execução das ações da Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e
da Privacidade;
III - sugerir ações a serem realizadas pela ANPD;
IV - realizar estudos e debates sobre a proteção de dados pessoais e da privacidade; e
V - disseminar o conhecimento sobre proteção de dados pessoais e da privacidade à população em geral.
114

Essas determinações, anteriormente previstas nos termos do parágrafo 3 do


art. 55º, atribuíam à ANPD uma robustez necessária ao momento de
implementação de uma legislação de cunho material inédito e que tem como objeto
de tutela os dados pessoais, algo que até então, não apenas no cenário nacional
mas também em outros países, não era visto como um bem jurídico primário que
necessitava de tutela legislativa como nos tempos atuais.
Outro destaque importante em relação ao conteúdo vetado seriam as
disposições contidas no art.56º da LGPD, no qual se dispunham as atribuições da
ANPD.
Neste ponto da norma, o legislador procurou esmiuçar as atividades macros
que deveriam ser exercidas pela autoridade, de modo que a comunidade jurídica,
ao ler as respectivas prescrições, fomentou demasiada expectativa em relação a
capacidade de fiscalização e autonomia que foram atribuídas a autoridade, bem
como passaram a ver na LGPD o dever de cogência imediata ao tempo de sua
entrada em vigor.
Nos artigos seguintes, que também foram objeto de veto, o legislador
havia consolidado a forma pela qual haveria a formação de receita da ANPD, a
forma de composição do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e
Privacidade, bem como as suas respectivas competências.
No entanto, quando dos tramites legislativos de aprovação, os
Ministérios da Justiça, da Fazenda, da Transparência e Controladoria-Geral da
União, do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, da Segurança Pública, da
Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e o Banco Central do Brasil, se
manifestaram em desacordo ao conteúdo açambarcado pelos artigos 55 a 59, uma
vez que a proposta estava maculada pelo vicio formal de inciativa.
Como justificativa, aludiram os respectivos órgãos que Os
dispositivos incorriam em vicio de inconstitucionalidade do processo legislativo, por
afrontarem aos artigos 61, § 1º, II, ‘e’19, cumulado com o artigo 37, XIX20, ambos
da Constituição Federal.

19 Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos
Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos
Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
II - disponham sobre: e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art.
84, VI;
20
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao
seguinte: XIX – somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de
sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação
115

Em observância ao contido no texto constitucional, de fato as


previsões contidas nos artigos 55 a 59 não cumpriam com os ditames
constitucionais, na medida em que o projeto, para contemplar a instituição de uma
autoridade nacional, deveria ser de iniciativa do Presidente da República, o qual
dotado de tal prerrogativa se consolida como parte legitima a criação de
autoridades e instituições que necessitem de verba orçamentaria específica.
Ainda que na época das discussões sobre o vício de iniciativa houvesse
argumentos acerca da possibilidade do referido vício ser sanado, visto que o
projeto de lei 5.276/2015, de autoria do Presidente da República e apensado ao
projeto de Lei 4060/2012, o qual deu ensejo a LGPD, determinava a instituição de
uma autoridade nacional e esse fato jurídico poderia desmistificar o vício de
iniciativa.
No entanto, em prevenção a eventuais ajuizamentos de ações de
inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, o Presidente da
República, quando da sanção presidencial, se posicionou no sentido de vetar
completamente as previsões contidas nos artigos 55 a 59.
Com o veto em relação à instituição da Autoridade Nacional, os rumores de
que a LGPD estaria desestruturada ou até mesmo sem poder de eficácia, visto que
ao longo dos seus 65 artigos havia mais de 50 citações em referência a Autoridade.
Em decorrência de tal veto, a lacuna legislativa apenas
aumentava e gerava insegurança jurídica de todos os lados, quer seja
por parte dos estudiosos do ramo ou então por aqueles que ficariam
submetidos ao regime jurídico entabulado pela nova norma.
Em meio a uma transição política, eleições presidências de 2018,
os rumores de que havia texto legislativo sendo confeccionado pelo
ainda Presidente da Republica se consolidaram na medida em que no
dia 26 de dezembro foi publicada a Medida Provisória 869/2018.
A MP, por seu turno, além da instituição da autoridade de
proteção de dados, alterou a vacatio legis da LGPD para o período de
2 (dois) anos, assim como feito na União Europeia, bem como
regulamentou a questão do compartilhamento de dados pelos órgãos
públicos, e ainda fez algumas considerações em relação a Lei
13.787/208, que versa sobre a digitalização dos prontuários médicos.
116

Embora editada em 2018, em virtude do cumprimento dos


tramites legislativos inerentes ao seu rito, a medida foi finalmente
convertida em lei no dia 09 de julho de 2019, gerando o ato jurídico de
n. 13.853/2019, tendo como olhar presidencial as concepções do
Presidente Jair Messias Bolsonaro, o qual fez uma série de alterações
no texto originário da MP redigida sob a presidência do Presidente
Michael Temer.
Observando às alterações trazidas pela Lei 13.853/2019, que é
fruto da conversão da MP 856/2018 em ato jurídico perfeito, a Lei Geral
de Proteção de Dados, na forma atual, estabelece no bojo do artigo 55-
A a instituição da autoridade nacional de proteção de dados, com
natureza jurídica transitória, bem como estabelece uma nova
estruturação no tocante a formação do Conselho Nacional.
No tocante a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, a
Lei 13.853/2018 alterou a LGPD fazendo a substituição do artigo 55
para o artigo 55-A, fazendo uso da seguinte redação:

Art. 55-A. Fica criada, sem aumento de despesa, a Autoridade


Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão da administração
pública federal, integrante da Presidência da República.

§ 1º A natureza jurídica da ANPD é transitória e poderá ser


transformada pelo Poder Executivo em entidade da administração
pública federal indireta, submetida a regime autárquico especial e
vinculada à Presidência da República.

§ 2º A avaliação quanto à transformação de que dispõe o § 1º deste


artigo deverá ocorrer em até 2 (dois) anos da data da entrada em
vigor da estrutura regimental da ANPD.

§ 3º O provimento dos cargos e das funções necessários à criação


e à atuação da ANPD está condicionado à expressa autorização
física e financeira na lei orçamentária anual e à permissão na lei
de diretrizes orçamentárias.

Na modelagem acima transcrita, vê-se que a Autoridade Nacional criada


para regulamentar vários aspectos da LGPD, bem como para fiscalizar e impor
limitações aos negócios que têm como matéria prima a captação, o
117

armazenamento e a transferência de dados, se consolida como ente pertencente


a administração pública federal, integrante da presidência da república.
Nesse aspecto, em especial, pode ser verificado certo perdimento em
relação ao texto original, o qual colocava a autoridade nacional como pertencente
à administração pública indireta e dotada de orçamento próprio – como se fosse
uma espécie de agência reguladora, como há exemplo ANVISA e ANS.
Como refúgio de esperança, o legislador optou por consignar a possiblidade
da ANPD se transformar em autarquia em até 2 (dois) anos, a partir da entrada em
vigor da LGPD.
No tocante a atuação da ANPD, estabelece o artigo 55-J, composto por
XXIV incisos e alguns parágrafos, a classificação ampla dos deveres a serem
cumpridos pela autoridade nacional.
Assim, dentro das competências na ANPD podemos incluir o dever de zelar
pela proteção de dados pessoais, elaborar as diretrizes inerentes a implementação
da Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade, bem como
será dela a competência e legitimidade para a aplicar as sanções necessárias
àqueles que descumprirem com os critérios de captação, armazenamento e
transferência de dados pessoais que estão tutelados pela LGPD.
No tocante a estrutura organizacional da Autoridade Nacional de Proteção
de Dados, após tantas idas e vindas legislativas, a formação atual contempla: O
Conselho Diretor, como sendo o órgão máximo, o Conselho Nacional de Proteção
de Dado Pessoais e da Privacidade – podendo conter 23 representantes –
Corregedoria, Ouvidoria, órgão de Assessoramento Jurídico Próprio e Unidades
administrativas de Aplicação da norma. Ademais, a ANPD contemplará a
nomeação de diretores dotados de mandados fixos21.
Outro ponto importante que foi alterado pela Legislação 13.853/2018, e que
também proporciona grande impacto em relação à efetividade da LGPD se refere
às sanções punitivas que podem ser aplicadas pela ANPD em face daqueles que
violarem a tutela destinada a proteção dos dados pessoais.
Neste sentido, de acordo com o atual texto da Lei Geral de Proteção de
Dados, caberá a Autoridade Nacional de Proteção de Dados a aplicação das
seguintes sanções22:

21
Publicada, com vetos, lei que cria a Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Disponivel em:
https://www.conjur.com.br/2019-jul-09/publicada-lei-cria-autoridade-nacional-protecao-dados. Acessado em: 14 de fev. 2020.
22
LEGPS ART. 52. Disponivel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acessado em: 14
fev. de 2020.
118

Art. 52. Os agentes de tratamento de dados, em razão das infrações


cometidas às normas previstas nesta Lei, ficam sujeitos às seguintes
sanções administrativas aplicáveis pela autoridade nacional:
I - advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas
corretivas;
II - multa simples, de até 2% (dois por cento) do faturamento da pessoa
jurídica de direito privado, grupo ou conglomerado no Brasil no seu
último exercício, excluídos os tributos, limitada, no total, a R$
50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) por infração;
III - multa diária, observado o limite total a que se refere o inciso II;
IV - publicização da infração após devidamente apurada e confirmada a
sua ocorrência;
V - bloqueio dos dados pessoais a que se refere a infração até a sua
regularização;
VI - eliminação dos dados pessoais a que se refere a infração; (vetados)
X - suspensão parcial do funcionamento do banco de dados a que se
refere a infração pelo período máximo de 6 (seis) meses, prorrogável
por igual período, até a regularização da atividade de tratamento pelo
controlador;
XI - suspensão do exercício da atividade de tratamento dos dados
pessoais a que se refere a infração pelo período máximo de 6 (seis)
meses, prorrogável por igual período;
XII - proibição parcial ou total do exercício de atividades relacionadas a
tratamento de dados

É importante destacar o poder consignado à ANPD, em especial as


possíveis sanções que ela poderá aplicar em face das irregularidades a serem
constatadas, justamente para que a sociedade como um todo se desperte em
relação a importância do bem tutelado pela legislação brasileira que tem como
objetivo proteger e zelas pelos dados pessoais.
Neste sentido, caso as idas e vindas legislativas não oportunizassem a
Autoridade Nacional de Proteção de Dados a legitimidade de aplicações de
sanções administrativas pecuniárias de caráter coercitivo, o texto legislativo
padeceria de eficácia, cogência e perenidade, colocando em risco, inclusive, todo
o trabalho desenvolvido e construído pelo legislador.
Embora a temática relacionada à proteção de dados pessoais ainda seja
incipiente, se ao final do deslinde desse tópico houvessem questionamentos
acerca de qual ANPD a sociedade brasileira necessita, certamente várias
respostas poderiam ser construídas e classificadas como corretas.
Isso porque, o tema macro deste artigo, dados pessoais, passou a ser pauta
do jornalismo popular, de modo que a sociedade já passa a ter o mínimo de
perspicácia em relação aos direitos de proteção dos seus dados. Por óbvio que a
disseminação da tutela jurídica concedida aos dados pessoais prescinde de
119

diversos esclarecimentos à sociedade, mas cabe aos estudiosos do tema


procurarem meios viáveis à disseminação deste tão importante conteúdo.
Ao cotejarmos o presente estudo, colocando em paralelos a temática da
legislação Europeia com a Legislação Brasileira, foram verificadas algumas
situações em que a legislação estrangeira transcende algumas posições que a
priori transmitem maior eficiência, eficácia e robustez se comparada com a norma
nacional.
No entanto, isso não significa que não estejamos juridicamente preparados
para tutelar o petróleo do século XXI. Significa que, embora o sistema jurídico ainda
esteja em fase de adaptação no que tange a tutela jurídica destinada a proteção
de dados, o sistema normativo brasileiro possui mecanismos aptos a responderem
as dúvidas jurídicas inerentes à tutela de dados, de modo que tanto o texto
constitucional quanto a legislação infraconstitucional possam servir de
sustentáculo jurídico para a fundamentação das decisões judiciais que tenham
como objeto da lide a tutela de dados pessoais.
Por fim, a mensagem que pode ser extraída em virtude deste estudo se
revela na necessidade na comunidade jurídica, administrativa e política se unirem
para que juntas possam estabelecer um elo de sintonia em prol da disseminação
do conteúdo abordado na LGPD, de modo a evidenciar a necessidade existente
em relação à tutela dos dados pessoais.
Isso inclui, todavia, o dever de metodologicamente ensinar, educar e
posteriormente penalizar aqueles que estão abrangidos pelo dever de cumprimento
das disposições legais contidas na Lei Geral de Proteção de Dados, bem como
informar a comunidade, a sociedade, e especialmente o cidadão comum, acerca
dos direitos que a ele são inerentes quando o tema se refere à proteção de dados
pessoais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A contextualização da sociedade e dos modelos de negócios, ambos


alterados e influenciados pela inclusão demasiada de tecnologia, impõem aos
cientistas do ramo, que agora não se limitam a apenas juristas, mas sim
profissionais de tecnologia da informação e engenheiros de dados, o dever em
repensar sobre a gestão de dados pessoais como direito individual e fundamental
a todo e qualquer ser humano, equiparando, portanto, essa temática a todos os
120

outros direitos fundamentais contidos no artigo 5º da Constituição Federal


Brasileira.
Nesta medida, o presente trabalho abordou a forma pela qual a União
Europeia construiu a sua estrutura jurídica de proteção de dados, a GDPR, bem
como a estruturou em termos de princípios, direitos, deveres e penalidades. Sem,
prejuízo, abordou-se a robustez da autoridade nacional de proteção de dados no
âmbito europeu, notadamente a sua eficiência em relação à aplicação das
penalidades prescritas na legislação internacional.
Inobstante o cenário internacional, foram feitos os esclarecimentos
legislativos necessários no que tange a formulação da Lei Geral de Proteção de
Dados brasileira, especialmente no concernente aos outros diplomas legislativos
que também disciplinam a matéria e podem servir de fundamento jurídico à tutela
jurídica dos dados pessoais.
Frise-se, por oportuno, que antes da LGPD ser construída o ordenamento
jurídico pátrio já dispunha de previsões jurídicas protetivas ao tema, mas como se
apresentavam de forma esparsa e não tão específica, a LGPD se consolida no
ordenamento jurídico como sendo a legislação arrematadora no que tange a tutela
especifica de proteção de dados pessoais.
Já no tocante a Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANDP, viu-se
no escorço legislativo necessário a sua inclusão no bojo da LGPD, que a
formatação originária nasceu maculada pelo vício de iniciativa, de modo que a sua
manutenção na norma quando do veto presidencial ensejaria numa série de
discussões jurídicas perante as cortes de justiça.
Neste aspecto, a presente pesquisa apresentou as medidas legislativas
necessárias para que a ANPD alcançasse a posição atual, bem como teceu os
esclarecimentos necessários em relação a sua natureza jurídica, competência,
legitimidade e capacidade de aplicação de sanções administrativas.
Notadamente que a estruturação jurídica brasileira que se propõe a
tutelar a proteger os dados pessoais passou por uma série de considerações, o
que inclui as idas e vindas legislativas, os vetos, as sanções, a troca do presidente
da república, e ainda sobre esses aspectos soma-se o considerável fator de crise
financeira econômica que o país enfrenta.
No entanto, ainda assim a legislador brasileiro construiu o mínimo
necessário no que tange a proteção de dados pessoais, de modo que ainda
existem vários aspectos a serem esclarecidos, melhorados e construídos pela
própria atuação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, a qual deverá agir
121

com eximia competência no bojo de suas atribuições, priorizando, sobretudo, a


construção de uma politica nacional de proteção de dados que possa ser de
conhecimento e interpretação por toda a sociedade brasileira.

BIBLIOGRAFIA

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COOPERAÇÃO FEDERATIVA ATRAVÉS DE CONSÓRCIOS PÚBLICOS
INTERMUNICIPAIS: O CASO DO CIMCATARINA - CONSÓRCIO INTERMUNICIPAL
CATARINENSE

Ricardo José Feiten1

RESUMO: Esta pesquisa objetiva analisar a figura dos consórcios públicos como instrumento de
cooperação entre os entes da federação. Parte da problemática enfrentada pelos municípios acerca
das amplas competências previstas pelo texto constitucional, bem como da indisponibilidade de
recursos financeiros, humanos e materiais para a execução, de forma isolada, de serviços públicos
aos seus cidadãos. Assim, busca, através de um estudo de caso, apresentar um consórcio público
realizado entre municípios catarinenses que, em conjunto, buscam soluções de eficiência para a gestão
pública.

Palavras-chave: cooperação federativa; consórcio público; federalismo cooperativo;

ABSTRACT: This research aims to analyze the figure of public consortiums as an instrument of
cooperation among the federation entities. Part of the problem faced by municipalities regarding the
broad competences provided for by the constitutional text, as well as the unavailability of financial,
human and material resources for the execution, in isolation, of public services to their citizens. Thus, it
seeks, through a case study, to present a public consortium made between municipalities of Santa
Catarina that together seek efficiency solutions for the public management.

Keywords: federative cooperation; public consortium; cooperative federalism;

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A autonomia dada pela Constituição da República Federativa do Brasil aos


municípios, passando-os à categoria de ente federativo - reflexo do movimento
municipalista -, pode ser encarada como um paradoxo. Ao mesmo tempo em que
houve a descentralização política aos entes locais, foi, como consequência desse
upgrade, necessário que o sistema de partilha de competências estatais previsse
áreas de atuação aos municípios que, alinhada a uma expansão desenfreada, fez
surgir entes locais insustentáveis. A Constituição não tratou os municípios de maneira
diferenciada, pelo contrário, respeitou a inexistência de hierarquia entre os entes da
federação, prevendo diversas competências de interesse local. A descentralização
política não foi acompanhada pela descentralização financeira e orçamentária, ou
por um planejamento quanto à viabilidade de grande parte dos municípios criados.
Isolados, estes entes locais, apesar de autônomos, são cada vez mais dependentes de
seus estados-membros e da União.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito (PPGD) do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil
/ MINTER - Uniguaçu
Esta pesquisa objetiva analisar a figura dos consórcios públicos como
instrumento de cooperação entre os entes da federação. Parte da problemática
enfrentada pelos municípios acerca das amplas competências previstas pelo texto
constitucional, bem como da indisponibilidade de recursos financeiros, humanos e
materiais para a execução, de forma isolada, de serviços públicos aos seus cidadãos.
Assim, busca, através de um estudo de caso, apresentar um consórcio público
realizado entre municípios catarinenses que, em conjunto, buscam soluções de
eficiência para a gestão pública de seus entes.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa e exploratória, que busca melhor
compreender os temas cooperação federativa e consórcios públicos, utilizando-se da
metodologia do estudo de caso para apresentar a aplicabilidade dos temas. Os dados
foram coletados através de pesquisa bibliográfica e, no caso específico do caso em
análise, através das informações disponíveis no site do consórcio.

2 ESTRUTURA FEDERATIVA BRASILEIRA

O Brasil se organiza politicamente como uma federação, ou seja, o Estado


brasileiro distribui seu poder político entre entes federativos autônomos, que, juntos,
compõem o Estado chamado de República Federativa do Brasil. A Constituição
Federal surge como instrumento de união destes entes e, no caso brasileiro, aponta
essa característica em seu artigo inaugural: “A República Federativa do Brasil, formada
pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]” (BRASIL, 1998, não p.).
Federação é uma forma de Estado, ou seja, “o modo de exercício do poder político
em função do território [...] (SILVA, 2013, p. 100). Ao lado da federação outras duas
formas de Estado são citadas na doutrina: o Estado unitário e o Estado confederado.
“Se existe unidade de poder sobre o território, pessoas e bens, tem-se Estado unitário”,
mas se o “poder se reparte [...] gerando uma multiplicidade de organizações
governamentais, distribuídas regionalmente, encontramo-nos diante de uma forma de
Estado composto, denominado Estado federal [...]” (SILVA, 2013, p. 100). Quanto às
confederações, estas representam uma associação de Estados soberanos
(CARVALHO FILHO, 2013). A Teoria Geral do Estado pode, a depender do autor,
apresentar ainda a espécie Estado Regional. Essa espécie é apenas uma forma unitária
um pouco descentralizada, eis que não elimina a centralização política e jurídica de
um poder central, como na federação (DALLARI, 2013).
O termo federação, etimologicamente, significa aliança, pacto e união, advindo
da palavra latina foedus (DALLARI, 2013). “A federação consiste na união de
coletividades regionais autônomas que a doutrina chama de Estados federados [...],
Estados-membros ou simplesmente Estados” (SILVA, 2013). Elementar não
confundir as coletividades regionais autônomas, comumente chamados estados, com
o Estado, o todo. Chamar as unidades federadas de estados é apenas artifício político,
pois na verdade não são Estados (DALLARI, 2013).
A forma de Estado federado surge com a Constituição norte-americana de 1787
(DALLARI, 2013; SILVA, 2013). Apesar de ambos os Estados, Brasil e Estados
Unidos da América, se organizarem como federação, suas origens e características
são diversas. O federalismo Norte-Americano foi constituído a partir de Estados
soberanos, que cederam sua soberania e parte de sua autonomia ao ente central. Já o
Brasil era um Estado unitário que dividiu a competência do ente central, União, com
demais entes federados. “O processo centralizador americano denomina-se processo
centrípeto ou federalismo por agregação; já o processo descentralizador brasileiro é
também chamado de processo centrífugo ou federalismo por segregação”
(CARVALHO FILHO, 2009, p. 3). Importante particularidade da federação brasileira
está na divisão do poder político entre mais de dois níveis de entes federados, eis que,
“o cerne do conceito de Estado federal está na configuração de dois tipos de entidades,
a União e as coletividades regionais autônomas (Estados federados) (SILVA, 2013, p.
102).
As características fundamentais do Estado Federal são:

A união faz nascer um novo Estado e, concomitantemente, aqueles que


aderiram à federação perdem a condição de Estados; [...] A base jurídica do
Estado Federal é uma Constituição, não um tratado; [...] Na federação não existe
direito de secessão; [...] Só o Estado Federal tem soberania; [...] No Estado
Federal as atribuições da União e as das unidades federadas são fixadas na
Constituição, por meio de uma distribuição de competências; [...] A cada esfera
de competências se atribui renda própria; [...] O poder político é compartilhado
pela União e pelas unidades federadas; [...] Os cidadãos do Estado que adere
à federação adquirem a cidadania do Estado Federal e perdem a anterior
(DALLARI, 2013, p. 254-256).

Para os fins desta pesquisa convém destacar a característica da repartição de


competências entre os entes federativos.
No Estado Federado cada esfera de poder possui competências determinadas,
inexistindo, portanto, hierarquia (DALLARI, 2013). “Esta distribuição constitucional de
poderes é o ponto nuclear da noção de Estado federal” (SILVA, 2013, p. 479). A
regra de determinação das competências varia de Estado para Estado, havendo
alguns que a tornam expressa ao poder central, enquanto os entes descentralizados
exercem as residuais, ou de forma contrária, estipulando de forma expressa a
competência dos entes descentralizados e o poder central fica com a competência
residual. A repartição dependerá da natureza e do tipo histórico de federação, sendo
que esta se dará conforme o princípio da predominância do interesse, ou seja, cabe
à União questões de predominante interesse geral, sendo que aos estados tocarão as
questões de predominante interesse regional, restando aos municípios os assuntos de
interesse local (SILVA, 2013). “Acontece que, no Estado moderno, se torna cada vez
mais problemático discernir o que é interesse geral ou nacional do que seja interesse
regional ou local” (SILVA, 2013, p. 480). A Constituição de 1988 tenta resolver esse
problema através de um sistema complexo que busca realizar o equilíbrio federativo
através da técnica da enumeração dos poderes da União, poderes remanescentes
para os estados e poderes definidos indicativamente aos municípios, com reserva de
campos específicos para delegação de competências privativas, atuações paralelas de
todos os entes, de forma comum, e áreas de atuação concorrente entre a União e os
estados (SILVA, 2013).
Em síntese, existem competências materiais, que podem ser exclusivas, no caso
à União - sem possibilidade de delegação a outro ente federado -, ou comuns, em que
todos os entes estão autorizados, ou obrigados, a executarem; e competências
legislativas, podendo ser exclusivas de um ente, privativas - admitindo delegação -,
concorrentes - em que todos os entes atuam conforme uma sistemática traçada pelo
texto constitucional -, e, ainda, a competência legislativa suplementar (SILVA, 2013).

2.1 OS MUNICÍPIOS NA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tornou expressa a


previsão dos municípios como entes federados dotados de autonomia, ao lado das
demais figuras federativas. “A organização político-administrativa da República
Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 1988, não p.).
Dotar os entes locais de autonomia é uma particularidade de nosso sistema federativo,
caracterizada por ser uma federação de três graus, pois prevê a descentralização do
poder central para entes regionais (segundo grau) e destes para os entes locais. Sobre
a autonomia dos municípios José Afonso da Silva tece sua crítica:

Não existe federação de Municípios. Existe federação de Estados.


Estes é que são essenciais ao conceito de qualquer federação. [...] Não é uma
união de Municípios que forma a federação. Se houvesse uma federação de
Municípios, estes assumiriam a natureza de Estados-membros, mas
poderiam ser Estados-membros (de segunda classe?) dentro dos Estados
federados? Onde estaria a autonomia federativa de uns ou de outros, pois
esta pressupõe território próprio, não compartilhado? Dizer que a República
Federativa do Brasil é formada de união indissolúvel dos Municípios é algo
sem sentido, porque, se assim fora, ter-se-ia que admitir que a Constituição
está provendo contra uma hipotética secessão municipal (SILVA, 2013, p.
477).

O fato é que os municípios são entes federativos autônomos no Estado brasileiro,


com competências retiradas do próprio texto constitucional. É o artigo 30 da
Constituição que as prevê, e dentre elas, a de organizar e prestar os serviços públicos
de interesse local, competência ampla e que cada vez mais se acentua em função
das crescentes demandas da sociedade por serviços públicos.
Apesar de territorialmente bem definidos, nem sempre se consegue limitar a
atuação de uma atividade aos limites geográficos de um só municípios, ou, em outras
situações, um mesmo serviço poderia ser prestado de forma satisfatória a mais de uma
localidade, sendo, até mesmo, mais eficiente. A competência comum prevista a todos
os entes federados pelo sistema de partilha de competências do texto constitucional,
bem como a autonomia que cada um destes entes possui, por vezes causam conflitos
entre as esferas estatais. Além da integração entre União, estados-membros e
municípios, torna-se necessária uma cooperação federativa a fim de vencer os
interesses conflitantes e enfrentar as limitações orçamentárias, humanas, materiais e
técnicas que a realidade brasileira impõe.

2.2 COOPERAÇÃO FEDERATIVA

Autonomia pressupõe independência, mas apesar de inexistir hierarquia entre os


entes federados, claramente há uma dependência financeira dos municípios aos
estados-membros e à União. Dependência que gera a notória guerra fiscal, mais
nitidamente visualizada em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e
Serviços (ICMS), de competência dos estados- membros.

Em relação ao período 1977-88, caracterizado por progressiva


descentralização fiscal e política, o período inaugurado com a nova
Constituição possui profundas diferenças. Enquanto em toda aquela fase a
disputa por recursos tributários opôs estados e municípios ao Governo
federal, agora, sem que essa dimensão tenha desaparecido, ganham
importância os conflitos entre os estados e municípios. A expressão mais
eloquente desse fenômeno é a guerra fiscal. Premidos pela dificuldade de
manter a arrecadação tributária como consequência da recessão, da inflação
e da sonegação, os governos estaduais lançaram-se em uma guerra de
incentivos e benefícios fiscais por meio do ICMS para atrair indústrias para
suas regiões e fomentar a atividade econômica (AFFONSO, 1995, p. 60).

A federação, ao menos na experiência brasileira, parece ser um sistema de


competição e barganha. Assim entende Souza (2006), para quem a cooperação está
longe de ser alcançada em função das desigualdades financeiras, técnicas e de gestão
dos governos subnacionais e do caráter competitivo conferido ao sistema federativo
que carece de instrumentos regulatórios que disciplinem as relações
intergovernamentais e que estimulem a cooperação entre os entes da federação.
A Constituição de 1988 parece ter dado ao menos um mínimo de atenção à
questão. O artigo 23 do texto constitucional, que partilha a competência material
entre todos os entes federados, traz, em seu parágrafo único, que “leis
complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do
bem-estar em âmbito nacional” (BRASIL, 1988, não p.). A norma é prevista desde a
promulgação da Constituição, com redação alterada em 2006 pela Emenda
Constitucional nº 53 apenas para trocar a expressão “lei complementar”, originária,
para “leis complementares”, facilitando a edição de mais de um instrumento legal, que
pode tratar de matéria específica, diferentemente de uma única lei geral, que teria que
prever diversas situações.
Posteriormente, com a Emenda Constitucional nº 19, de 1998, a chamada
reforma administrativa, o texto constitucional alterou totalmente seu artigo 241, para
possibilitar a gestão associada de serviços públicos.
A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão
por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação
entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços
públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços,
pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos (BRASIL,
1998, não p.)

De forma específica, o Constituinte revisor pretendeu fomentar a cooperação entre


entes federativos, prevendo, inclusive, instrumentos para essa cooperação quanto aos
serviços públicos. Destes instrumentos, destacam-se os Consórcios Públicos.

3 CONSÓRCIOS PÚBLICOS

A doutrina administrativista mais antiga já vinha se preocupando com as


crescentes demandas da sociedade por serviços públicos e com a eficiência da
Administração Pública. “A ampliação das funções estatais, a complexidade e o custo
das obras públicas vêm abalando, dia a dia, os fundamentos da Administração clássica,
exigindo novas formas e meios de prestação de serviços afetos ao Estado”. Essa nova
forma de prestação de serviços estatais se basearia na mútua cooperação entre
entidades e organizações, tanto públicas, quanto privadas (MEIRELLES, 2001).

Evoluímos, cronologicamente, dos serviços públicos centralizados


para os serviços delegados a particulares, destes passamos aos serviços
outorgados a autarquias; daqui defletimos para os serviços transpassados a
fundações e empresas estatais e, finalmente, chegamos aos serviços de
interesse recíproco de entidades públicas e organizações particulares
realizados em mútua cooperação, sob as formas de convênios e consórcios
administrativos (MEIRELLES, 2001, p. 377).

É tradicional a separação que essa doutrina realizou entre a figura do convênio


administrativo e a figura do consórcio administrativo. Convênios administrativos seriam
“acordos firmados por entidades públicas de qualquer espécie, ou entre estas e
organizações particulares, para realização de objetivos de interesse comum dos
partícipes” (MEIRELLES, 2004, p. 387). Já os consórcios administrativos seriam os
acordos celebrados “entre entidades estatais, autárquicas, fundacionais ou
paraestatais, sempre da mesma espécie, para a realização de objetivos de interesse
comum dos partícipes” (MEIRELLES, 2004, p. 389).
Tanto os convênios, quanto os consórcios, diferem-se do contrato, eis que no
contrato surgem as partes, não partícipes, pois os interesses são diversos e opostos,
diferentemente da cooperação associativa que surge da instituição daquelas figuras
(MEIRELLES, 2004). De forma contrária Celso Antônio Bandeira de Mello (2010)
entende os convênios e os consórcios como espécies de contratos - este gênero se
divide em duas modalidades básicas, “a dos contratos em que as partes se compõem
para atender a interesses contrapostos [...] e os contratos em que, inversamente, as
partes se compõem pela comunidade de interesses, pela finalidade comum que as
impulsiona” (MELLO, 2010, p. 664). Ao segundo tipo de contrato correspondem os
convênios e os consórcios administrativos. De fato, concorda-se com o autor quanto
aos convênios e consórcios serem espécies de contratos, eis que ajustes de
vontade, conforme definição de contrato dada pela Lei nº 8.666, de 1993, que
institui normas de licitação e contratos administrativos, bem como ao seu artigo 116,
que prega que as disposições da referida lei se aplicam, no que couber, aos convênios,
acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades
da Administração (BRASIL, 1993). Sobre convênios, Celso Antônio Bandeira de Mello
(2010) entende só ser possível firmá-los com entidades privadas sem fins lucrativos,
eis que, se a contraparte tivesse fins lucrativos, a relação jurídica não teria a mesma
finalidade. Sem a mesma finalidade não se estaria falando do segundo tipo de contrato
apresentado, mas do primeiro, o dos contratos administrativos com interesses
diversos e opostos.
A doutrina mais antiga considerava os convênios administrativos e os
consórcios administrativos como, tão somente, cooperação associativa, em função
da não aquisição de personalidade jurídica destas, o que geraria instabilidade
institucional, precariedade administrativa e dificuldades operacionais
(MEIRELLES, 2004). É com base na despersonalização dessas figuras, na
confusão administrativa entre uma e outra, bem como no mesmo conteúdo e efeitos -
cooperação -, que José dos Santos Carvalho Filho (2013) entende que tanto os
convênios administrativos, quanto os consórcios administrativos são apenas
convênios, públicos ou privados, sendo desnecessária e inconveniente a distinção entre
os dois.

Com a vênia devida aos que assim pensam, parece-nos inócua a


demarcação distintiva, porquanto em ambos os ajustes são idênticos os
contornos jurídicos, o conteúdo e os efeitos. E a prática administrativa tem
demonstrado, não rara vezes, que pessoas da mesma espécie (por exemplo,
Municípios de determinada região) têm buscado objetivos comuns através da
celebração de convênios (CARVALHO FILHO, 2008, p. 227).
131

Se os entes federativos ajustarem esforços sem a formação de uma pessoa


jurídica, então estarão firmarão um convênio administrativo, independentemente
da esfera do ente ou da terminologia utilizada para o ajuste - diversidade que
reside no fato de inexistir uma legislação em âmbito nacional que regule a
questão -, e se, contrariamente, constituírem uma pessoa jurídica, então surgirá
um consórcio público (CARVALHO FILHO, 2013).
É com a Lei 11.107/2005 que surge a possibilidade de instituição de
consórcios com uma fisionomia diferente, agora chamados de consórcios
públicos e dotados de personalidade jurídica. Com a Emenda Constitucional nº
19, de 04 de junho de 1998 - emenda da reforma administrativa -, dando nova
redação ao artigo 241, que houve a previsão constitucional da gestão associada
de serviços públicos através de consórcios públicos e convênios de cooperação.

A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios


disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios
de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão
associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou
parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade
dos serviços transferidos (BRASIL, 1988, não p.)

Os consórcios públicos se diferem dos consórcios administrativos, em


primeira análise, levando-se em consideração o conceito doutrinário
apresentado, de que os consórcios administrativos são acordos celebrados entre
entidades estatais, sempre da mesma espécie. Com a Lei 11.107/2005 passou
a ser possível constituir consórcio público através de entidades federativas de
espécie distinta, como um consórcio entre um município e um estado-membro,
ou entre a União e um, ou mais, estado-membro (MEDAUAR, 2018).
O conceito de consórcio público aparece no Decreto 6.017/2007, que
regulamenta a Lei 11.107/2005.

Pessoa jurídica formada exclusivamente por entes da


Federação, na forma da Lei nº 11.107, de 2005, para estabelecer
relações de cooperação federativa, inclusive a realização de objetivos
de interesse comum, constituída como associação pública, com
personalidade jurídica de direito público e natureza autárquica, ou
como pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos (BRASIL,
2007, não p.).
132

Quando constituída como associação pública, com personalidade jurídica


de direito público, os consórcios públicos integrarão a estrutura administrativa
indireta dos entes consorciados, como espécie autárquica. A Lei 11.107/2005
inclusive alterou o Código Civil, acrescentando às autarquias a espécie
associações públicas dentro do rol de pessoas jurídicas de direito público interno.
Quanto à constituição de consórcios públicos como pessoa jurídica de direito
privado, Celso Antônio Bandeira de Mello os considera como “autêntica
aberração” (MELLO, 2010, p. 664). Mas mesmo como pessoa jurídica de direito
privado, estes consórcios públicos observarão normas de direito público em
relação à licitação, contratos, prestação de contas e admissão de pessoal,
fazendo parte, também, mesmo que a lei não diga, da estrutura da administração
indireta na espécie de empresa pública, mas apenas da entidade governamental
que detiver a maioria acionária (MELLO, 2010).
Em relação à questão acerca de os convênios e os consórcios serem
contratos ou não, a Lei 11.107/2005 reforça a ideia de que o consórcio público
é um contrato ao gravar o termo “contrato de consórcio”, ou expressamente,
como no artigo 3º, “O consórcio público será constituído por contrato cuja
celebração dependerá da prévia subscrição de protocolo de intenções”
(BRASIL, 2005, não p., grifo nosso).
O contrato de consórcio público permitirá a cooperação entre os entes
federados, trazendo as seguintes vantagens:

a racionalização do uso dos recursos existentes, quando esses são


destinados ao planejamento, programação e execução de objetivos de
interesses comuns; b) a criação ou fortalecimento dos vínculos
preexistentes, o que tende a favorecer a consolidação de uma identidade
regional; c) a instrumentalização da promoção do desenvolvimento local,
regional e nacional; e d) a conjugação de esforços para atender as
necessidades da população, as quais não poderiam ser atendidas de outro
modo diante de um quadro de escassez de recursos (MEDAUAR;
OLIVEIRA, 2006, p. 23)

Torna-se relevante apresentar uma observação feita por Celso Antônio


Bandeira de Mello (2010), de que essa cooperação só pode ser vista como
colaboração desinteressada. “Logo, ou estarão em causa interesses comuns dos
associados ou estará em pauta uma forma de colaboração desprendida entre eles
[...] (MELLO, 2010, p. 666). Quer dizer, os entes federados nada têm a ver com
133

os serviços públicos uns dos outros, cada um atuando conforme a distribuição


das competências públicas recebidas pelo texto constitucional (MELLO, 2010).
“Assim, jamais poderiam, elas ou suas entidades de Administração indireta,
buscar, mediante prestação de serviços públicos alheios, a satisfação de
interesses próprios de ordem puramente patrimonial [...] como um objeto
suscetível de proporcionar-lhe uma captação de lucro [...]” (MELLO, 2010, p.
666).
Em síntese, as inovações que a Lei 11.107/2005 trouxe são: a) a previsão
de uma nova figura administrativa, a dos consórcios públicos; b) afirmar que os
consórcios públicos são instrumentos contratuais; c) a previsão de aquisição de
personalidade jurídica pelos consórcios públicos, tanto de direito público, quanto
de direito privado; e d) quando constituído com personalidade de direito
público, na forma de associação pública, ter natureza autárquica e figurar como
entidade da Administração Indireta.

4 O CIMCATARINA - CONSÓRCIO INTERMUNICIPAL CATARINENSE

O Consórcio Intermunicipal Catarinense - CIMCATARINA é um consórcio


público constituído sob a égide da Lei 11.107/2005. Nasceu no ano de 2014
através da alteração do protocolo de intenções do Consórcio Integrado do
Contestado - CINCO, quando os municípios consorciados a este decidem pela
expansão do modelo, com ingresso de outros entes municipais e ampliação dos
objetivos e finalidades do consórcio (CIMCATARINA, 2019).
O CINCO, que posteriormente teria sua denominação alterada para
CIMCATARINA, surge das discussões entre prefeitos e lideranças da região
do meio oeste catarinense, que constataram a necessidade de união e
cooperação para o desenvolvimento da região, e da publicação da Lei
11.107/2005, marco regulatório dos consórcios públicos. Em outubro de 2009 os
municípios de Arroio Trinta, Caçador, Calmon, Fraiburgo, Ibiam, Iomerê, Lebon
Régis, Macieira, Matos Costa, Monte Carlo, Pinheiro Preto, Rio das Antas, Salto
Veloso, Tangará, Timbó Grande e Videira aprovaram o protocolo de intenções do
CINCO, que na sequência seria publicado e ratificado por leis municipais de cada
ente consorciado. A sede do consórcio ficaria estabelecida no município de
134

Fraiburgo.

Figura 1. Área de atuação do CINCO

Fonte: elaborado pelo autor com base em dados do CIMCATARINA

Em 26 de fevereiro de 2014 os representantes dos municípios consorciados


ao CINCO assinaram a alteração e consolidação do protocolo de intenções,
passando a denominação do consórcio para CIMCATARINA - Consórcio
Intermunicipal Catarinense. Soma-se à alteração o ingresso de novos
consorciados, os municípios de Curitibanos, Frei Rogério, Ponte Alta do Norte,
Santa Cecília e São Cristóvão do Sul.

Figura 2: área de atuação inicial do CIMCATARINA


135

Fonte: elaborado pelo autor com base em dados do CIMCATARINA

Para compreensão do consórcio se faz necessária uma breve


caracterização da região que abriga os primeiros municípios consorciados e da
importância da união e cooperação destes entes em prol de seu
desenvolvimento.
A região dos vinte e um primeiros municípios consorciados é conhecida
como a região do contestado, em função da guerra do contestado1. A região
localizada no meio oeste do Estado de Santa Catarina possui alguns dos
municípios com os menores Índices de Desenvolvimento Humano Municipal
(IDHM) de Santa Catarina - caso dos municípios de Calmon, Frei Rogério, Lebon
Régis, Macieira, Matos Costa, Monte Carlo, Ponte Alta do Norte, Rio das Antas,
Santa Cecília, São Cristóvão do Sul e Timbó Grande, que possuem índices
abaixo de 0,700, considerados médios (IBGE, 2010). Enquanto o IDH do Estado
está em 0,774, a média dos índices dos municípios consorciados fica em 0,707
(IBGE, 2010). O PIB per capita médio dos municípios do consórcio fica em R$
28.392,44, enquanto o índice do país está em R$ 30.548,40 (IBGE, 2016). Assim,
nota-se uma necessidade de atuação estatal para o desenvolvimento desta região
e a união e cooperação dos municípios se apresenta como uma saída eficiente
para vencer a questão financeira e orçamentária dos entes municipais, bem como
para a alteração do cenário social da região.
O CIMCATARINA foi constituído na forma de Associação Pública, tendo,
portanto, personalidade jurídica de direito público, com natureza autárquica
interfederativa, integrando a administração indireta de cada um dos entes
consorciados.
Em Assembleia Geral Extraordinária realizada no dia 08 de agosto de 2014
os municípios consorciados aprovaram a alteração do estatuto para possibilitar a
expansão da área consorciada pelo antigo CINCO e para a ampliação dos
objetivos e das finalidades do consórcio, que passa a ter natureza multifinalitária.

Art. 2º - O Consórcio Intermunicipal Catarinense -


CIMCATARINA tem por objetivos a união dos municípios do Estado de
Santa Catarina para o desenvolvimento regional, através da

1
Conflito armado que envolveu posseiros e pequenos proprietários de terras, de um lado, e representantes dos poderes
estadual e federal brasileiro, de outro, entre outubro de 1912 e agosto de 1916 (AURAS, 2015).
136

formulação de projetos estruturantes, buscando formas de


articulação intermunicipal com objetivo de integração, visando o
fortalecimento de ações compartilhadas nos municípios catarinenses,
captação de recursos financeiros para investimentos, ampliação de
redes sociais, otimização, racionalização e transparência na aplicação
dos recursos públicos, regionalização de políticas públicas e a criação
de parcerias institucionais sustentáveis (CIMCATARINA, 2014).

O consórcio deixa de ter uma atuação microrregional para buscar uma


integração estadual, de todos os municípios do Estado de Santa Catarina - seus
potenciais consorciados.
Atualmente o CIMCATARINA conta com oitenta e três consorciados, com
sua sede deslocada para a capital do Estado - para centralização e captação
de novos consorciados de outras regiões -, mantendo-se no município de
Fraiburgo um escritório, chamado de núcleo de desenvolvimento regional, em
função da maioria dos municípios ser da região do meio oeste catarinense
(CIMCATARINA, 2019). Os municípios consorciados representam 28,13% da
totalidade dos municípios catarinenses2.

Figura 3: atual área de

atuação do CIMCATARINA

Fonte: CIMCATARINA

O consórcio está administrativamente organizado, conforme seu estatuto,


através de uma Assembleia Geral, da Presidência, da Diretoria Executiva e do
Conselho Fiscal (CIMCATARINA, 2014).
A Assembleia Geral constitui-se na instância máxima do consórcio,
integrando-a os prefeitos dos municípios consorciados, que reunir-se-ão,

2
O Estado de Santa Catarina possui 295 municípios.
137

ordinariamente, duas vezes ao ano e extraordinariamente sempre que


convocada pelo Presidente do consórcio ou a pedido de cinquenta por cento
dos consorciados, no mínimo, sendo que cada um terá direito a um voto na
Assembleia Geral (CIMCATARINA, 2014).
A Presidência (Presidente e Vice-Presidente) será eleita em Assembleia
Geral especialmente convocada, considerando-se eleita a candidatura que
obtiver, ao menos, dois terços dos votos dos presentes, não podendo ocorrer a
eleição sem a presença de, pelo menos, dois terços dos consorciados
(CIMCATARINA, 2014). Caso nenhuma candidatura alcance dois terços dos votos
dos presentes, realizar-se-á segundo turno de eleição com as duas candidaturas
mais votadas, sendo eleita aquela que obtiver metade mais um dos votos
(CIMCATARINA, 2014).
A Presidência nomeará a Diretoria Executiva, que será composta por um
Diretor Executivo, um Diretor Administrativo, um Diretor Financeiro, um Diretor
Jurídico, cinco Diretores de Programa de Desenvolvimento Regional e dez
Diretores de Gestão de Desenvolvimento Regional (CIMCATARINA, 2014). A
Diretoria Executiva é dirigida pelo Diretor Executivo, a quem cabe cumprir as
determinações do protocolo de intenções, do contrato do consórcio e do estatuto
(CIMCATARINA, 2014). O Conselho Fiscal será composto por três conselheiros
titulares e três suplentes, sendo prefeitos eleitos pela Assembleia Geral para
mandato de dois anos (CIMCATARINA, 2014).
Por ter natureza multifinalitária, o CIMCATARINA não limita sua atuação à
execução de serviços públicos, tradicional finalidade dos consórcios públicos.
Além das atividades executórias, o consórcio atua com atividades de
planejamento e gestão. Assim, proporciona estudos e diagnósticos para subsidiar
as decisões dos gestores públicos quanto à implementação e avaliação de
políticas públicas - atuação que pode ser caracterizada como atividade-meio,
diferentemente da prestação finalística de um serviço público. Essa característica
do consórcio é sintetizada em seu slogan, “O coletivo inovando a gestão pública”
(CIMCATARINA, 2019). Atualmente as áreas de atuação do CIMCATARINA
são: planejamento urbano, licitações compartilhadas, iluminação pública,
estudos técnicos e diagnóstico socioambiental (CIMCATARINA, 2019). Destas
áreas desdobram-se os programas atualmente em operação: Programa
Intermunicipal de Gestão dos Recursos Hídricos - PROHIDRO; Programa
138

Integrado de Ações de Proteção e Gestão do Meio Ambiente - PROAMA; Programa


de Gestão do Sistema de Iluminação Pública – PROILUMINA; Programa de
Licitações Compartilhadas - PROLICITA (CIMCATARINA, 2019).
O PROHIDRO objetiva “desenvolver ações intermunicipais relacionadas
com a gestão dos recursos hídricos nos municípios do Consórcio Intermunicipal
Catarinense – CIMCATARINA” (CIMCATARINA, 2016, p. 10).
O programa surge da necessidade de organizar de forma técnica e
administrativa os municípios do consórcio para a formulação e a implementação
de políticas territoriais de impacto nos recursos hídricos, integrando-as com as
políticas nacional e estadual de recursos hídricos, que possibilitaram a gestão da
água baseada no planejamento e manejo desses recursos de forma integrada,
participativa e descentralizada (CIMCATARINA, 2019). O programa está dividido
em dois projetos: a) gerenciamento de recursos hídricos - que tem o objetivo
de contribuir no planejamento e no gerenciamento dos recursos hídricos nos
territórios dos municípios consorciados, nas ações repassadas através de
convênios de cooperação com o Estado ou com a União; e b) perfuração de
poços tubulares - com o objetivo de perfurar poços tubulares para captação de
água, visando ao bem-estar social de comunidades e amenizar, prevenir ou
cessar os efeitos da estiagem e das secas (CIMCATARINA, 2019).

O PROAMA objetiva a cooperação entre os municípios consorciados, nas


ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum
relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio
ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à
preservação das florestas, da fauna e da flora, a teor do que dispõe a Lei
Complementar Federal n. 140, de 8 de dezembro de 2011
(CIMCATARINA, 2016, p. 9).

A justificativa para o programa reside na necessidade de


desenvolvimento sustentável da sociedade, considerando seus aspectos
econômicos e socioambientais, possibilitando aos municípios um diagnóstico
completo de arranjo legal e institucional para plena proteção e gestão
ambiental municipal (CIMCATARINA, 2019). O PROAMA possui quatro projetos
em andamento, cada qual com suas ações estratégicas que possibilitem alcançar
o objetivo geral do programa: a) educação ambiental; b) licenciamento ambiental
municipal; c) resíduos sólidos; e
d) serviços ambientais (CIMCATARINA, 2019).
O objetivo do PROILUMINA é “realização da operação, manutenção,
139

expansão e inovação do sistema de Iluminação Pública dos municípios


consorciados” (CIMCATARINA, 2016, p. 10) - serviço público que “contribui para
a qualidade de vida da população” (CIMCATARINA, 2016, p. 10), possibilitando
“aos cidadãos usufruir com segurança do espaço urbano durante a noite,
especialmente quanto à mobilidade” (CIMCATARINA, 2016, p. 10).
Por fim, o PROLICITA é o programa que objetiva a realização de uma só
licitação envolvendo mais de um órgão ou entidade com o fim de atender
necessidade comum a ambos, gerando economia de escala e eficiência à gestão
pública (CIMCATARINA, 2019). A licitação compartilhada ocorre quando é feita a
contratação para um grupo de participantes previamente estabelecidos, na qual
a responsabilidade de condução do processo licitatório e gerenciamento serão
de um órgão gerenciador, no caso, o consórcio (CIMCATARINA, 2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa propôs explorar os temas de cooperação federativa e


consórcios públicos, através do estudo de caso do CIMCATARINA, consórcio
público entre municípios do Estado de Santa Catarina. A problemática
estabelecida se deu através do paradoxo da concessão de autonomia pelo texto
constitucional aos municípios e as amplas competências previstas pelo texto
constitucional, bem como da indisponibilidade de recursos financeiros, humanos
e materiais para a execução, de forma isolada, de serviços públicos aos seus
cidadãos.
A forma federativa de Estado pressupõe união, tanto é que a secessão é
proibida pelo pacto realizado entre os entes constituintes, mas a sistemática
federativa pode gerar conflitos e competição. A Constituição Federal de 1988 se
preocupou com esse aspecto, ao prever que dispositivos legais irão fixar normas
para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
em vista do equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
Estimula-se, portanto, a cooperação federativa. Como instrumentos desta
cooperação se destacou os consórcios públicos, pessoa jurídica formada
exclusivamente por entes da Federação, na forma da Lei nº 11.107, de 2005,
para estabelecer relações de cooperação federativa, inclusive a realização de
objetivos de interesse comum.
140

Aplicando os temas a um caso concreto, apresentou-se o Consórcio


Intermunicipal Catarinense, CIMCATARINA. A região original do consórcio, a
região do contestado, possui alguns dos municípios com os menores Índices de
Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) do estado, o que torna ainda mais
relevante a atuação cooperada dos entes locais.
O CIMCATARINA tem natureza multifinalitária, atuando nas áreas de
planejamento urbano, licitações compartilhadas, iluminação pública, estudos
técnicos e diagnóstico socioambiental, através de seus diversos programas.
Encontra-se nesta natureza o grande diferencial do consórcio público.
A esperança é que a cooperação federativa se aprimore e alcance todas
as regiões do país, como forma apropriada de garantir os direitos fundamentais
dos cidadãos através da prestação eficiente dos serviços públicos.

REFERÊNCIAS

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selecionados. In: SILVA, Pedro Luiz Barros (Org.). São Paulo: FUNDAP, 1995. p.
57-75.

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Cabocla. 5. ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2015.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do


Brasil de 1988.
Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em:
jun. 2019.

BRASIL. Decreto nº 6.017, de 17 de janeiro de 2007. Regulamenta a Lei no


11.107, de 6 de abril de 2005, que dispõe sobre normas gerais de contratação de
consórcios públicos. Brasília, DF: Presidência da República, 2007. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6017.htm.
Acesso em: jun. 2019.

BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37,


inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos
da Administração Pública e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da
República, 1993. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm. Acesso em: jun. 2019.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Consórcios Públicos: Lei nº 11.107,


de 06.04.2005, e Decreto nº 6.017, de 17.01.2007. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
141

CIMCATARINA, Consórcio Intermunicipal Catarinense. Estatuto. [S. l.], 2014.


Disponível em: www.cimcatarina.sc.gov.br/cms/upload-
images/documentos/794_1.pdf. Acesso em: 20 jun. 2019.

CIMCATARINA, Consórcio Intermunicipal Catarinense. Portal do CIMCATARINA.


[S. l.], [2019]. Disponível em: www.cimcatarina.sc.gov.br. Acesso em: 20 jun.
2019.

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atividades e prestação anual de contas de gestão consórcio intermunicipal
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https://www.cincatarina.sc.gov.br/cms/upload-
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Intergovernamentais no Brasil Pós-1988. In: FLEURY, Sonia (Org.).


Democracia, Descentralização e Desenvolvimento: Brasil & Espanha. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 187-211.
142

DA FALIBILIDADE HUMANA À INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: O FASCÍNIO (E


RISCOS) DA DESUMANIZAÇÃO DO PENSAMENTO1

Nathan de Freitas Fernandes2

RESUMO: Em decorrência do crescimento exponencial do interesse pela inteligência artificial e


seus algoritmos, faz-se necessário um momento de reflexão a fim de se possa objetivar
compreender o fascínio humano por suas aplicações, assim como quais as implicações da
“substituição” da cognição humana. Para desenvolvimento do presente trabalho foi empregado
procedimento fundado na análise documental e bibliográfica, por meio de pesquisa de material
doutrinário, mediante a utilização a elaboração de fichamentos e resumos estendidos. Ao final, foi
possível constatar que o principal argumento pelo emprego de inteligências artificias se funda na
eliminação da falibilidade que decorre dos defeitos da cognição humana, mas que, no entanto, a
tentativa seria mostraria vã ante o fato de que os algoritmo de processamento, desenvolvidos por
humanos, inevitavelmente se encontrarão eivados dos mesmos defeitos. Ainda, se verificou o risco
de que o Machine Learnig implique no assujeitamento do significado à máquina, ante seu
distanciamento da historicidade e faticidade das relações intersubjetivas que implicam na
construção de uma pré-compreensão, dada a impossibilidade de aferição do universo cognitivo
existencial humano, culminando em um regresso à superada fiilosofia da consicência.

Palavras-chave: falibilidade humana; inteligência artificial; filosofia da consciência.

ABSTRACT: Due to the exponential growth of interest in artificial intelligence and its algorithms, a
moment of reflection is necessary in order to understand human fascination with its applications, as
well as the implications of the “substitution” of human cognition. For the development of the present
work, was used a procedure based on documentary and bibliographical analysis through research
of doctrinal material, using the elaboration of extended files and abstracts. In the end, it was possible
to verify that the main argument for the use of artificial intelligences is based on the elimination of
the fallibility that results from the defects of human cognition, but the attempt would be vain before
the fact that the processing algorithms, inevitably found to be riddled with the same defects.
Furthermore, there was a risk that Machine Learnig would imply subjection of meaning to the
machine, given its detachment from the historicity and factuality of intersubjective relations that imply
the construction of a pre- understanding, given the impossibility of gauging the human existential
cognitive universe, culminating in a return to the outdated philosophy of consciousness.

Keywords: human fallibility; artificial intelligence; philosophy of consciousness.

1 INTRODUÇÃO

O campo dos estudos voltados à inteligência artificial tem mostra um


crescimento exponencial nos ultimos anos, o que, de toda a sorte demontra o
interesse cada vez maior em sua aplicação, dado seu potencial de resolução de
problemas que anteriormente somente a mente humana poderia fazê-lo3, mas

1
Trabalho apresentado em cumprimento às exigências da disciplina Direito e Tecnologia. Professor Dr. Marco Antonio Lima
Berberi. Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia. Mestrado Interinstitucional UNIBRASIL-UNIGUAÇU. Fevereiro
de 2020.
2
Graduado em Direito pela Unidade de Ensino Superior Vale do Iguaçu - UNIGUAÇU (2015). Pós-graduado em Gestão
Tributária pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUCPR (2016-2017). Mestrando em Direitos Fundamentais e
Democracia no programa de Mestrado Interinstitucional UNIBRASIL-UNIGUAÇU.
3
RICH, Elaine; KNIGHT, Kevin; Inteligência Artificial; 2. ed.; Rio de Janeiro: McGraw-Hill, 1994, p. 3.
143

escoimado dos vícios, defeitos e contingências de cognição atreladas à própria


condição humana.
Assim, levando-se em consideração o contexto, faz-se necessário um
momento de reflexão a fim de se possa objetivar compreender o fascínio humano
por suas aplicações, assim como quais as implicações da “substituição” da
cognição humana por algoritmos computacionais.
Isso posto, o presente artigo tem como escopo propor uma reflexão sobre
acerca dos motivos do fascínio pela “cognição artificial” e os algoritmos
computacionais, e, nesse passo, se aquilatar os riscos da desumanização do
pensamento nos julgamentos e busca por soluções de problemas humanos,
sociais, políticos, econômicos, jurídicos, dentre outros, em especial dado seu
distanciamento da realidade fática das relações intersubjetivas.
O procedimento empregado no presente trabalho funda-se na análise
documental e bibliográfica, por meio de pesquisa de material doutrinário, mediante
a utilização a elaboração de fichamentos e resumos estendidos.
Quanto ao desenvolvimento, este artigo será estruturado em três itens,
sendo que no primeiro será abordada a falibilidade humana como um dos
(principais) motivos do fascínio pela inteligência artificial; na sequência, no item
seguinte, o instituto serão verificadas algumas falhas intrínsecas da inteligência
artificial, partindo-se do inevitável aos vícios da cognição humana, que determinam
sua falibilidade, aos riscos do juízo de correlação; por fim, no último item será
promovido um breve estudo acerca do Machine Learning e da auto-reprogramação
das inteligências artificiais, consignando-se os riscos que o processo de
desumanização do pensamento como regresso ao superado paradigma da filosofia
da consciência.

2 DA FALIBILIDADE HUMANA AO FASCÍNIO PELA INTELIGÊNCIA


ARTIFICIAL

É notório que os dados, assim como as estatísticas, possuem uma relevante


importância há largo tempo, entretanto, o que se destaca hodiernamente é o fato
de tais elementos contarem com um novo instrumento de aplicação, os
denominados algoritmos, que consistem em sequências de instruções
144

computáveis para a solução de problemas4, e que consistem em um dos elementos


da inteligência artificial5.
Com efeito, o campo da inteligência artificial tem apresentado um grande
crescimento nos últimos anos, haja vista que, conforme relatório elaborado pela
Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), desde o início das
pesquisas nessa seara, em 1950, já foram requeridas mais de 340 mil patentes,
das quais aproximadamente a metade teve origem a partir de 20136.
Considerando que a inteligência artificial pode ser definida como sendo o
“ramo da ciência da computação que se ocupa do comportamento inteligente”7,
qualquer aplicação que tenha o potencial de resolver problemas que anteriormente
somente a mente humana poderia fazê-lo8 pode ser considerada como inteligência
artificial9.
Entretanto, cumpre investigar qual seria a maior motivação que poderiam
importar na “atual” busca por uma implementação cada vez maior de inteligências
artificiais no âmbito de nossas vidas, impendendo inicialmente traçarmos breve
escorço acerca das limitações cognitivas do pensamento humano.
No que concerne às limitações da racionalidade humana, mister trazermos
à baila as constatações de Daniel Kahneman, o qual assenta que as pessoas
possuem uma tendência aplicar o pensamento causal, estando suscetíveis a
ilusões de predição, enxergando padrões onde eles não existem, em decorrência
de uma falha “interpretação” passado10. Vejamos:

O cerne da ilusão é que acreditamos compreender o passado, o que


implica que o futuro também deva ser conhecível, mas na verdade
compreendemos o passado menos do que acreditamos compreender.
Saber não é a única palavra que fomenta essa ilusão. No uso comum, as
palavras intuição e premonição também estão reservadas para
pensamentos passados que se revelaram ser verdadeiros.

4 FRAZÃO, Ana; Dados, estatísticas e algoritmos: Perspectivas e riscos da sua crescente utilização. Disponível em:
<https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-
mercado/dados-estatisticas-e-algoritmos-28062017>. Acessado em: 26/10/2019.
5
GONÇALVES, Lukas Ruthes; Potenciais efeitos da LGPD no uso de aplicações de inteligência artificial; Disponível
em: <https://www.conjur.com.br/2019-fev-28/lukas-ruthes-potenciais-efeitos-lgpd-usoaplicacoes-ia>. Acessado em:
26/10/2019.
6
Idem.
7
LUGER, George; Inteligência Artificial. Estruturas e Estratégias para a Solução de Problemas Complexos; 4. ed.; Porto
Alegre: Bookman, 2004, p. 23.
8
RICH, Elaine; KNIGHT, Kevin; Inteligência Artificial; 2. ed.; Rio de Janeiro: McGraw-Hill, 1994, p. 3.
9
Assim como ocorre, por exemplo, com aplicações simples como do Spotfy, que ao tratarem os dados recebidos, por meio
de seus algorítimos é capaz de classificar músicas. In GONÇALVES, Lukas Ruthes; Potenciais efeitos da LGPD no uso
de aplicações de inteligência artificial; Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-fev-28/lukas-ruthes-potenciais-
efeitos-lgpd-usoaplicacoes-ia>. Acessado em: 26/10/2019.
10
KAHNEMAN, Daniel; Rápido e devagar: duas formas de pensar; tradução Cássio de Arantes Leite; Rio de Janeiro:
Objetiva, 2012, p. 143.
145

De outro vértice, ainda que pudéssemos enxergar com clareza os padrões,


questão associada à própria evolução humana, consoante destaca Lênio Streck,
com fulcro nas lições de Michael Blastland e Andrew Dilnot, esclarece o jurista que
uma coisa é identificar os padrões, e outra é compreendê-los, porquanto “é com
muita frequência que estamos errados sobre o que os padrões querem dizer”11.
Ainda, acerca das falhas (humanas) de julgamento, consigna Daniel
Kahnemann12 que, a confiança subjetiva em determinada predição não decorre da
probabilidade de certeza em si, mas sim da coerência da informação, que reflete
em uma maior facilidade de processamento, conforme se colhe das explanações:

Confiança subjetiva em um julgamento não é uma avaliação raciocinada


da probabilidade de que esse julgamento esteja correto. Confiança é um
sentimento que reflete a coerência da informação e o conforto cognitivo
de processá-la. É sábio levar a sério as admissões de incerteza, mas as
declarações de confiança elevada informam acima de tudo que um
indivíduo construiu uma história coerente em sua mente, não
necessariamente que essa história seja verdadeira.

Philip Tetlock demonstra por meio de seus estudos que a falibilidade do


pensamento humano decorre principalmente de seu próprio ego, ao verificar que
experts de determinado assunto tendem a adquirir uma ilusão acerca de sua
habilidade a ponto de se tornarem superconfiantes e terem dificuldade para admitir
seus erros, produzindo previsões menos exatas do que macacos jogando dardos13.
Na mesma senda, Tetlock e Gardner, ainda verificaram outro relevante fator
da falibilidade na predição do pensamento humano, a inclinação ideológica,
observando que experts em economia e política erram, em média, 85% das
previsões de longo prazo, apontando como um dos principais motivos a tendência
de organizar o raciocínio consoante pensamentos ideológicos, e a busca pelo
enquadramento de problemas em modelos predefinidos, considerando como
irrelevantes o restante dos dados14.
Em atenção às questões expostas colhe-se que o pensamento humano se
encontra marcada “estatisticamente” pela falibilidade de sua capacidade de

11
STRECK, Luiz Lênio; Tubarões, sorvetes e ovos: como advogar é difícil!Stoic Mujic!; Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/2019-set-12/senso-incomum-tubaroes-sorvetes-ovos-advogar-dificil-stoic-mujic>; Acessado
em: 10/11/2019.
12
KAHNEMAN, Daniel; Rápido e devagar: duas formas de pensar; tradução Cássio de Arantes Leite; Rio de Janeiro:
Objetiva, 2012, p. 150.
13 TETLOCK, Philip; Expert political judgement: How good is it? How can we know?; Princeton:
Princeton University Press, 2006, p. 20-ss.
14 TETLOCK, Philip; GARDNER, Dan; Superforecasting: The art and Science of prediction;

Nova Iorque: Crown: 2015, p. 37-ss.


146

predição, a qual decorre de questões inerentes à sua própria natureza como a


identificação de padrões inexistentes, ou sua leitura equivocada, seja em
decorrência do ego ou de inclinações ideológicas, desprezando-se os dados
estatísticos, falhas que, em tese, não estariam presentes nas predições
provenientes do tratamento de dados por meio de inteligências artificial, dado que
seus algoritmos não ostentariam (em tese) os traços que maculam a racionalidade
humana.
Essa é justamente a conclusão a que chega Ana Frasão, no que concerne
às razões que motivariam o interesse pela inteligência artificial, pois, como
constata, “verificada a falibilidade da racionalidade humana para fazer julgamentos
preditivos, tem-se um campo fértil para que julgamentos humanos sejam
progressivamente substituídos por estatísticas e algoritmos computacionais”15.
Assim, ao que tudo indica, colhe-se que o fascínio pela inteligência artificial
decorreria, não somente da facilitação da vida cotidiana, com o acometimento à
máquina de funções antes realizadas pela mente humana, mas, também (e, talvez
até com mais veemência) da tentativa de se evitar que os vícios aos quais a
cognição humana se encontraria sujeita prejudicassem o julgamento.
Entretanto, cabe se questionar se, de fato, a substituição do pensamento
humano pela inteligência artificial teria o condão promover melhor julgamento, a
despeito de sua mecanicidade.

3 DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, DO (INEVITÁVEL) RETORNO À


FALIBILIDADE (NÃO) HUMANA E DOS RISCOS DO JUÍZO DE CORRELAÇÃO

Como verificado alhures, a ideia de inteligência artificial como substituto do


intelecto humano no tratamento de dados e julgamento, parece ter como pano de
fundo as “deficiências” da cognição humana, que resultam no prejuízo de sua
capacidade de julgamento, principalmente preditivo, de modo que o tratamento de
dados, por meio de algoritimos, teria o escopo de eliminar tais contingências, no
entanto, ao que parece tal raciocínio apresenta certas “brechas”.
Se o pensamento humano é demarcado por deficiências e limitações – ego,
pensamento ideológico, etc. – decorrentes de sua própria humanadade, bem como

15FRAZÃO, Ana; Dados, estatísticas e algoritmos: Perspectivas e riscos da sua crescente utilização. Disponível em:
<https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-
mercado/dados-estatisticas-e-algoritmos-28062017>. Acessado em: 26/10/2019.
147

que os algorítimos são elaborados por humanos, como seria possível garantir que
tais deficiências nãos seriam transpostas à própria estrutura de processamento de
dados?
Nesse mesmo sentido, Ana Frazão16 ainda destaca a dificuldade de
identificação de tais deficiências cognitivas, dada a falta de transparência dos
algorítmos, o que inviabiliza a análise crítica de seus procedimentos e resultados,
vejamos:

Por outro lado, na medida em que são elaborados por homens, é


inequívoco que a racionalidade limitada dos programadores pode transpor
para as fórmulas dos algoritmos uma série de vieses e problemas
cognitivos, os quais, diante da falta de transparência, não terão como ser
objeto do devido escrutínio social, da crítica e do aprimoramento.

Assim, colhe-se que, ainda que os julgamentos da inteligência artificial não


sucumbam, prima facie, aos mesmos vícios que o julgamento da cognição humana,
certo que, de uma forma ou de outra, os algoritmos se encontrarão eivados de
certos traços de humanidade de seu “criador”, sobretudo dada a impossibilidade
de que, de acordo com o atual paradigma filosófico, proveniente do giro linguístico,
sua manifestação não se encontre imbuída de um juízo de valor inerente à
atribuição de sentido à linguagem (ainda que computacional), calcado na pré-
compreensão da realidade17.
Desse modo, torna-se inevitável que a análise de dados, ainda que possa
parecer precisa, ainda assim se encontrará eivada de reminiscências dos vícios
que se buscava eliminar, até porque, retornando-se, portanto, ao ponto de partida:
a falibilidade humana.

16
FRAZÃO, Ana; Dados, estatísticas e algoritmos: Perspectivas e riscos da sua crescente utilização. Disponível em:
<https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-
mercado/dados-estatisticas-e-algoritmos-28062017>. Acessado em: 26/10/2019.
17 Nesse sentido, consoante lecionam André Luan Domingues e Everton Luís da Silva: “A viragem
linguística substituiu a consciência subjetiva, pela linguagem, enquanto condição de possibilidade
de compreensão da realidade, ou seja,retirou esta do lugar de meroinstrumentode possibilitaçãoda
relação de compreensão entre sujeito e objeto, entre sujeito e mundo(existente independentemente
da própria linguagem), reafirmando-anaposição de condição de existência do pensar-viver,
pressuposto para compreensão do presente, buscando-se assim um caminhar em direção à relação
sujeito-sujeito de atribuição de sentido ao existente. Não se pode olvidar que o ato comunicativo, e
as condições de espaço-tempo de si próprio, portanto, a maneira de circulação da informação (e sua
compreensão) tornam-se elementos fundamentais para atribuição de sentido ao existente, especialmente para compreensão
do ser, destacando-se Martin Heidegger e a tratativa da compreensão como fenômeno formativo da existência humana”. In
DOMINGUES, André Luan; da SILVA, Everton Luís; TYBUSCH, Jerônimo Siqueira; O Judiciário à Brasileira e o Complexo
de Macgyver: Judicialização da Política e Efetivação Constitucional – Superando a Discricionariedade; In: Revista Eletrônica
Multidisciplinar da Faculdade do Centro do Paraná. Pitanga: UCP, v. 6, n. 1, jan./jun. 2019. p. 4-20. Disponível em:
<https://ucpparana.edu.br/content/uploads/2019/07/Trivium-2019.1.pdf>. Acessado em: 19/10/2019.
148

Não bastasse o exposto, ultrapassada a celeuma atinente ao


desenvolvimento do algoritmo, ainda há outra importante questão a ser trazida à
baila, qual seja, a forma de desenvolvimento de seu “raciocínio”, e, acerca de tal
aspecto, como bem pontua Ana Frazão18, com fulcro nas lições de Daniel
Kahnemann19, o apego às estatísticas e aos algoritmos apresenta-se com
ressalvas, dentre as quais se destaca a confusão entre correlação e causalidade,
alertando, portanto, que “as estatísticas produzem muitas observações que
parecem pedir por explicações causais, mas que não se prestam a tais
explicações, até porque muitos dos fatos do mundo devem-se ao acaso, incluindo
acidentes de amostragem”.
De igual forma, Darrell Huff20 destaca em sua obra Como Mentir com
Estatísticas os riscos que envolvem a manipulação com estatísticas, consignando
que:

A linguagem secreta da estatística, tão atraente em uma cultura


voltada para fatos, é empregada para apelar, inflar, confundir e levar a
simplificações exageradas. Métodos e termos estatísticos são
necessários para relatar dados de tendências sociais e econômicas,
condições de negócios, pesquisas de opinião e censos. No entanto, sem
redatores que usem as palavras com honestidade e conhecimento, e sem
leitores que saibam o que elas significam, o resultado só pode ser um
absurdo semântico.

Ao tecer comentários acerca da obra de Darrell Como Mentir com


Estatísticas, Lênio Streck21 explana, em tom crítico, a relação íntima entre
estatística, correlação e bizarrices, asseverando o seguinte:

Na verdade, o livro de Darrell não foi feito para mentir com


estatísticas; foi feito para desmistificar as correlações espúrias. Nem
serve para desmistificar estatísticas propriamente ditas, registre-se. Trata
do bizarro. Como o caso dos sorvetes e tubarões. O livro é de 1954. Hoje

18 FRAZÃO, Ana; Dados, estatísticas e algoritmos: Perspectivas e riscos da sua crescente utilização. Disponível em:
<https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-
mercado/dados-estatisticas-e-algoritmos-28062017>. Acessado em: 26/10/2019.
19 KAHNEMAN, Daniel; Rápido e devagar: duas formas de pensar; tradução Cássio de Arantes Leite; Rio de Janeiro:
Objetiva, 2012.
20 HUFF, Darrell; Como mentir com estatística; Rio de Janeiro: Edições Financeiras S.A., 1968. p. 7.
21 STRECK, Luiz Lênio; Tubarões, sorvetes e ovos: como advogar é difícil!Stoic Mujic!; Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/2019-set-12/senso-incomum-tubaroes-sorvetes-ovos-advogar-dificil-stoic-mujic>; Acessado
em: 10/11/2019.
149

há sites sobre o livro e sobre esse “uso de números”. Um deles é de Tyler


Vigen (tylervigen.com). A maior parte é bizarrice, mesmo, como quanto
mais as pessoas se divorciam no Estado americano do Maine, maior fica
o consumo de margarina naquele lugar ou quanto mais Nicolas Cage
lança filmes em um ano, menos pessoas morrem em acidentes de
helicóptero... Para quem gosta, é um prato cheio.

Na mesma senda, Ana Frasão22 esclarece acerca dos riscos da utilização


indiscriminada de informações relativas à correlação, bem como da necessidade
de se distinguir a correlação de causalidade, ao passo em que, “mesmo altas
correlações podem não ter nenhum significado do ponto de vista causal”, e, para
tanto, destaca o seguinte:

Tal situação é inequivocamente geradora de riscos e


perplexidades. Imagine-se um algoritmo desenvolvido para o
recrutamento de pessoal em que os perfis ideais dos candidatos foram
convertidos em fórmula a partir de uma grande base de dados. Não seria
nenhuma surpresa que o algoritmo desse maior peso a homens brancos
para altos cargos, pois são eles que, de fato, ainda ocupam a maior parte
das melhores posições. Não seria surpresa igualmente que, mantendo-se
os referidos padrões sociais, os mecanismos de inteligência artificial
atribuíssem uma crescente importância a tais aspectos no recrutamento.
O grande problema de tal correlação é que ela obviamente não indica que
homens brancos são melhores do que homens negros ou mulheres, mas
reflete na verdade o resultado de aspectos culturais muito mais
complexos, tais como a discriminação de raça e de gênero no mercado
de trabalho.

Consoante os apontamentos de Ana Frasão, depreende-se que a busca dos


algoritmos por correlações pode acabar refletindo preconceitos e discriminações,
porque já constantes nos dados inserido como input, como no caso da inteligência
artificial de recrutamento trazido, pela pesquisadora, no qual a escolha do algoritmo
por aquilo tido, por juízo de correlação, como melhor opção, acabaria por funcionar
como verdadeira ferramenta de consolidação do status quo, ao simplesmente
replicar as escolhas já feitas no âmbito cultural.

22
FRAZÃO, Ana; Dados, estatísticas e algoritmos: Perspectivas e riscos da sua crescente utilização. Disponível em:
<https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-
mercado/dados-estatisticas-e-algoritmos-28062017>. Acessado em: 26/10/2019.
150

A experiência com a inteligência artificial utilizadas no âmbito da Justiça


Criminal americana, denominada COMPAS23, se trata de outro exemplo que
demonstra a cautela que há de ser adotada em relação às análises (correlacionais)
provenientes de algoritmos.
Pois bem, a inteligência artificial em questão se propõe a fazer uma análise
acerca da probabilidade de que alguma pessoa volte a delinquir futuramente, e
para tanto, promove a avaliação de uma série de dados relativos à pessoa do Réu,
tais como "se alguém na família foi preso, se a pessoa vive numa área com alto
índice de criminalidade, se tem amigos que fazem parte de gangues, assim como
o seu histórico profissional e escolar", ao cabo do que o software avaliará questões
como a possibilidade de fiança, se a condenação deverá ser privativa de liberdade
ou restritiva de direitos, ou a concessão tem direito a liberdade condicional, como
esclarece a pesquisadora Julia Angwin24.
Ora, não há qualquer dúvida de que, caso características pessoais do Réu
sejam associadas (o correlacionadas) à probabilidade de reincidência, em uma vã
tentativa de estabelecimento de um neolombrosianismo, haverá cada vez mais
aprofundamento do abismo social, agravado pela total falta de transparência dos
algoritmos, e justamente essa é a crítica de Ana Frasão25 no tocante à manipulação
de dados e correlações, vejamos:

Daí o fundado receio de que dados e correlações manejados por


algoritmos possam estar sendo utilizados como veículos de manutenção
de discriminações e injustiças, preservando os padrões do passado –
ainda que equivocados – ao mesmo tempo em que comprometem as
possibilidades do futuro em termos de desenvolvimento e emancipação
social. E, o que é pior, na ausência de transparência quanto aos dados,
critérios e correlações utilizados, os resultados práticos da aplicação de
tais algoritmos computacionais podem ser insuscetíveis de um devido
controle por parte do direito.

Não bastasse o exposto, o problema ainda se potencializa com o fato de que


os algoritmos, dados e correlações, via de regra, são sigilosos e sem transparência,

23 Sigla em inglês para Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions.
24 MAYBIN, Simon; Sistema de algoritmo que determina pena de condenados cria polêmica nos EUA; Disponível em:
<http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37677421>; Acessado em 11/12/2019.
25 FRAZÃO, Ana; Dados, estatísticas e algoritmos: Perspectivas e riscos da sua crescente utilização. Disponível em:
<https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-
mercado/dados-estatisticas-e-algoritmos-28062017>. Acessado em: 26/10/2019.
151

fazendo com que a utilização de dados incorretos (ou até mesmo falsos), acabe
por produzir correlações que não possuem relação de causalidade com o dado
verificado, ou, ainda, e de forma mais grave, por reproduzir correlações
provenientes de discriminações e injustiças sociais26.
Ana Frasão27 ainda prossegue destacando que a preocupação é
“especialmente relevante nos atuais tempos de ‘pós-verdades’, em que tudo pode
ser aceito facilmente, ainda mais se estiver ancorado em um número, cuja
presença por si só já se mostra suficiente para aumentar a confiabilidade da
informação”, como já esclarecido por Darrell Huff28 anteriormente.
Assim, considerando os argumentos expostos colhe-se que, a ideia de
utilização de inteligência artificial como instrumento para se escoimar os vícios
ínsitos à cognição e (à falibilidade) humana, se mostra frustrada, dado que seus
algoritmos são “escritos” por humanos, carregando, portanto, suas deficiências e
limitações, retornando-se, portanto, ao ponto de partida, o que somente se agrava
em decorrência do fato de se submeterem a um juízo de correlação, o que, como
visto alhures, não necessariamente representam algo do ponto de vista causal.
Entretanto, esse não se trata do único risco inerente à desumanização do
pensamento, dado que a própria forma de “desenvolvimento” da inteligência
artificial parece guardar em si mais propriedades deletérias ao julgamento e
predição.

4 DO MACHINE LEARNING E DA DESUMANIZAÇÃO DO PENSAMENTO


COMO REGRESSO À FILOSOFIA DA CONSCIÊNCIA

As inteligênciais artificiais promovem a análise de dados estatísticos por


meio de seus algoritmos, que, como já referido alhures, consistem em sequências
de instruções computáveis29, que a fim de alcançar o objetivo programado,
trabalham os dados por meio de cálculos de probabilidade, e nessa esteira, mister
entendermos quais as implicâncias de tal funcionamento em atenção aos
paradigmas filosóficos “vigentes”, aos quais cumpre nos remetermos.

26
Idem.
27
Idem.
28
HUFF, Darrell; Como mentir com estatística; Rio de Janeiro: Edições Financeiras S.A., 1968.
29 FRAZÃO, Ana; Dados, estatísticas e algoritmos: Perspectivas e riscos da sua crescente
utilização. Disponível em: <https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-
analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/dados-estatisticas-e-algoritmos-28062017>.
Acessado em: 26/10/2019.
152

Pois bem, dada o limite espaço para discussão da questão paradigmática


da filosofia de forma pormenorizada, o que nos resta é enfatizar, a estruturação
efetivada pelo professor Celso Luiz Ludwig30, por meio da qual qualifica o momento
presente como aquele demarcado, desde a chamada viragem linguística, pelo
paradigma da linguagem.
Nessa esteira, como destacam André Luan Domingues e Everton Luís da
Silva31, a viragem linguística caracteriza-se pela (busca) de superação, até então
imperante, paradigma do sujeito ou da consciência, por meio da tentativa de
superação da formação compreensiva do pensar-viver por meio de uma
consciência subjetiva, consignando, ainda, que:

A viragem linguística substituiu a consciência subjetiva, pela


linguagem, enquanto condição de possibilidade de compreensão da
realidade, ou seja,retirou esta do lugar de mero instrumento de
possibilitação da relação de compreensão entre sujeito e objeto, entre
sujeito e mundo (existente independentemente da própria linguagem),
reafirmando-anaposição de condição de existência do pensar-viver,
pressuposto para compreensão do presente, buscando-se assim
umcaminhar em direção à relação sujeito-sujeito de atribuição de sentido
ao existente.

Com efeito, no mesmo sentido Marco Aurélio Marrafon32 assevera que o


advento da virada linguística resultou na substituição da razão iluminista em prol
da linguagem, em várias diferentes dimensões, dentre elas “notadamente a lógico-
formal, a pragmática e a hermenêutico-fenomenológica”, e, nessa esteira, impende
destacarmos suas considerações acerca da centralidade da linguagem no
paradigma filosófico imperante, vejamos:

Isso porque a linguagem passa a ser entendida como i)


fundamento, ii) meio de realização e iii) modo de manifestação do logos,
uma vez que ela se constitui, respectivamente, como: i) condição de
possibilidade para a compreensão de algo (dimensão ontológico-

30 LUDWIG, Celso Luiz; Para uma Filosofia jurídica da libertação: paradigmas da filosofia, filosofia da libertação e direito
alternativo; Florianópolis: Conceito Editoral, 2006, p. 93.
31 DOMINGUES, André Luan; da SILVA, Everton Luís; TYBUSCH, Jerônimo Siqueira; O Judiciário à Brasileira e o Complexo
de Macgyver: Judicialização da Política e Efetivação Constitucional – Superando a Discricionariedade; In: Revista Eletrônica
Multidisciplinar da Faculdade do Centro do Paraná. Pitanga: UCP, v. 6, n. 1, jan./jun. 2019. p. 4-20. Disponível em:
<https://ucpparana.edu.br/content/uploads/2019/07/Trivium-2019.1.pdf>. Acessado em: 19/10/2019.
32 MARRAFON, Marco Aurélio; Filosofia da linguagem e limites da Inteligência Artificial na interpretação jurídica. Disponível
em: <https://www.conjur.com.br/2019-jul-22/constituicao-poder-filosofia-linguagem-limites-ia-interpretacao-juridica>.
Acessado em: 26/10/2019.
153

metafísica), ii) meio pelo qual se pensa sobre o algo e iii) modo de
expressão dos pensamentos.

Mais ainda, é possível pensar os objetos a partir da linguagem,


embora seja impossível “saltar fora da linguagem” para pensar ela própria.
Isto é, mesmo enquanto objeto, a linguagem também é fundamento. Eis
o movimento de instauração do novo paradigma.

Desde um ponto de vista hermenêutico, a noção de compreensão


se sustenta na chamada duplicidade do logos: i) o logos apofântico,
dimensão ôntica, inerente à racionalidade lógico-formal das estruturas
dos enunciados e dos objetos no mundo e ii) o logos hermenêutico,
racionalidade existencial, do mundo prático que sustenta o conteúdo das
estruturas enunciativas dando-lhes significado, portanto inerente à
dimensão ontológica (o “ser” que dá sentido ao “ente”).

Dito isso, considerando a forma de “funcionamento” da inteligência artificial,


subsidiado por meio de suas “sequências de instruções computáveis”,
denominadas de algoritmos, Marrafon33 assevera que tais elementos acabam por
ocupar a função do logos apofântico, isto é, desempenhando o papel de sua
racionalidade lógico-formal, razão pela qual dependeria, portanto, do conteúdo
linguístico para executar suas ações, via de regra fornecido por um desenvolvedor
humano34.
Entretanto, ainda que o ponto de partida da inteligência artificial demande a
ação humana do desenvolvedor para sua programação inicial, há de se destacar
que seu conteúdo ainda pode ser adquirido por meio de técnicas de aprendizado,
a partir de experiências adquiridas por meio dos dados captados (inputs), de forma
externa às ações prévias do programador, o denominada Machine Learning35.
Ora, a despeito das inúmeras técnicas de Machine Learning36, o que ressalta
é justamente a capacidade que a inteligência artificial adquire de aprender com os
inputs, inclusive para criar novos algoritmos e se reprogramar, buscando o

33 MARRAFON, Marco Aurélio; Filosofia da linguagem e limites da Inteligência Artificial na interpretação jurídica.
Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-jul-22/constituicao-poder-filosofia-linguagem-limites-ia-interpretacao-
juridica>. Acessado em: 26/10/2019.
34
Sendo esse, inclusive, o motivo pelo qual asseveramos anteriormente que, inevitavelmente, a inteligência artifical se
encontraria, prima facie, sujeita aos mesmos vícios e defeitos que a racionalidade humana.
35
SIMON, Phil; Too Big to Ignore: The Business Case for Big Data; Hoboken: Wiley, 2013, p. 89.
36 De acordo com Stuart Russell e Peter Norvig, as tarefas de aprendizado podem ser classificadas em três categorias
amplas, a depender da natureza do feedback de aprendizado disponível para um sistema de aprendizado: i) aprendizado
supervisionado; ii) aprendizado não supervisionado; e iii) aprendizado por reforço. In RUSSELL, Stuart; NORVIG,
Peter; Artificial Intelligence: A Modern Approach; 2 ed.; Englewood Cliffs: Prentice Hall, 2003, p. 528.
154

aumento de eficiência em relação a determinada tarefa37, e, nessa senda, Yuval


Noah Harari38 bem explana que, o “algoritmo-semente pode de início ser
desenvolvido por humanos, mas ele cresce, segue o próprio caminho e vai aonde
humanos nunca foram antes – até onde nenhum humano pode segui-lo”.
Entretanto, como destaca Marrafon39, o desenvolvimento das inteligências
artificiais não é (ao menos ainda) capaz de formar o logos hermenêutico, ao passo
em que o funcionamento de seus algoritmos trabalham na conversão de dados,
oriundos da interação, em probabilidades (juízo de correlação), desenvolvendo seu
aprendizado no reforço dos acertos e bloqueio de erros, isto é, simplesmente
transformando os inputs em variáveis de cálculo, ficando, assim, restrita ao logos
apofântico, dado que, como destaca, “a formação do logos hermenêutico é muito
mais complexa, engloba o processo de construção de significantes durante toda
uma vida, com variáveis e interações biológicas e psicanalíticas que, em conjunto,
dão ensejo à pré-compreensão determinante para o resultado interpretativo [...]”,
de modo que, sem consciência hermenêutica não haverá compreensão.
Nessa esteira, do exposto, colhe-se que, ainda que a inteligência artificial
tenha a capacidade de aprendizado, por meio de sua auto-reprogramação
(Machine Learning), tal processo inevitavelmente implicará no distanciamento da
pré-compreensão compartilhado calcada nas relações intersubjetivas, ao passo
em que, diferentemente de seu programador (humano), a máquina se encontrará
alheia e impossibilitada de participar do “sentir” inerentes à historicidade,
facticidade e condições de tempo que lhes determinam, haja vista que, conforme
leciona Marrafon40, “[...] o universo cognitivo existencial humano que não se
resume à mera conversão de dados em cálculos e, por conseguinte, não é aferível
pelas IAs".
Assim, ao tomar por subjetivo o a priori outrora compartilhado, assujeitando
à máquina daquilo que seria fruto das relações intersubjetivas, a inteligência
artificial acabará por construir o “seu significando”, então, a partir de suas próprias

37 Conforme esclarece Tom M. Mitchell: “Diz-se que um programa de computador aprende pela experiência E, com respeito
a algum tipo de tarefa T e performance P, se sua performance P nas tarefas em T, na forma medida por P, melhoram com
a experiência E”. In MITCHELL, Tom Michael; Machine Learning; Nova Iorque: McGraw Hill, 1997; p.2.
38 HARARI, Yuval Noah; 21 lições para o século 21; Tradução: Paulo Geiger; São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p.
96-97.
39 MARRAFON, Marco Aurélio; Filosofia da linguagem e limites da Inteligência Artificial na interpretação jurídica. Disponível
em: <https://www.conjur.com.br/2019-jul-22/constituicao-poder-filosofia-linguagem-limites-ia-interpretacao-juridica>.
Acessado em: 26/10/2019.
40 MARRAFON, Marco Aurélio; Filosofia da linguagem e limites da Inteligência Artificial na interpretação jurídica. Disponível
em: <https://www.conjur.com.br/2019-jul-22/constituicao-poder-filosofia-linguagem-limites-ia-interpretacao-juridica>.
Acessado em: 26/10/2019.
155

concepções, provenientes do processamento dos inputs, ou seja, de sua relação


sujeito-objeto, e não sujeito-sujeito, e, em consequência, no afastamento do
paradigma filosófico da linguem, ao se (re)aproximar cada vez mais do já
ultrapassado paradigma da filosofia da consciência41.
Justamente aí é que se funda um dos maiores riscos e ressalvas quanto à
inteligência artificial, na possibilidade de regresso ao superado paradigma filosófico
da “consciência” (artificial), ante o assujeitamento do significado à máquina,
processo no qual o homem, em sua letárgica impotência, será mero espectador.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora a utilização de inteligências artificiais tenha crescido de forma


exponencial nos ultimos anos, ainda há receio quanto à sua aplicação, haja vista a
patente possibilidade de manipulação de dados e estatísticas, como bem pontuam
autores como Darrell Huff42 e Lênio Streck43, entretanto, a despeito de tais
ressalvas quanto à validade de seus julgamentos, fato é que os algoritmos ainda
despertam um fascíneo hipnotizante.
Nessa esteira, em análise quanto às motivações que poderiam determinar
tal interesse nos resultados algorítmicos, foi possível verificar que a falibilidade
humana, decorrente dos vícios, defeitos e contingências de sua cognição, tais
como ego, superconfiança, pensamento ideológico, etc., fatores que
inevitavelmente implicavam em erros de predição em seus julgamentos, e, desse
modo, ao que tudo indica, a utilização da inteligência artificial parece ser uma forma
de se escoimar de tais vícios a análise de dados para juízos de predição.
Entretanto, o que não se considera é o fato de que o algoritmo, que funciona
como “motor” da inteligência artificial, demandará ser desenvolvido por uma mente
humana, e, portanto, imbuída das mesmas falhas as que se objetivava evitar, e
que, inevitavelmente, acabarão por ser refletidas na escrita de suas fórmulas, dada
a impossibilidade de manifestação (e de construção) sem prévio juízo de valor,
retornando-se, desse modo, ao ponto de partida, a falibilidade humana.

41 Conforme leciona Lênio Streck, a filosofia da consciência importa na ideia de subjetividade assujeitadora, que “assujeita”
as coisas para si, bem como os sentidos e o saber, que acaba construindo o seu próprio objeto de conhecimento. In STRECK,
Lênio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?; 4. ed. rev.; Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2013. p. 17.
42 HUFF, Darrell; Como mentir com estatística; Rio de Janeiro: Edições Financeiras S.A., 1968. p. 7.
43 STRECK, Luiz Lênio; Tubarões, sorvetes e ovos: como advogar é difícil!Stoic Mujic!; Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/2019-set-12/senso-incomum-tubaroes-sorvetes-ovos-advogar-dificil-stoic-mujic>; Acessado
em: 10/11/2019.
156

Não bastasse isso, ainda se verificou que os resultados da cognição


desumanizada se restringem à definição de juízos de correlação, e não de
causalidade, razão pela qual os resultados obtidos, ainda que estatisticamente
elevados, não necessariamente importarão na “resposta correta”, celeuma que
ainda se potencializa ante o fato de que os algoritmos, os dados, bem como as
fórmulas que traçam as correlações, via de regra, são sigilosos, fazendo com que
a utilização de dados incorretos (ou até mesmo falsos), acabe por produzir
correlações que se distanciam da causalidade, ou, ainda mais grave que isso,
acabem por reproduzir correlações provenientes de discriminações e injustiças
sociais, como no caso do COMPAS, utilizado pela justiça norte-americana.
Ademais, ainda se verificou que, por meio das técnicas de Machine
Learning, a inteligências artificial poderia promover a auto-reprogramação de seu
algoritmo, a partir dos inputs e seus feedbacks, entretanto, não se diga que tal
sistemática possibilitaria tornar indene de vícios o algoritmo, pois, em que pese
pudesse afastar eventuais defeitos “escritos” pela cognição humana, dada
impossibilidade de aferição do “universo cognitivo existencial humano” pela
máquina, o processo acabaria por culminar no assujeitamento do “significado” à
“consciência” da máquina, afastando a pré-compreensão fruto das relações
intersubjetivas, e, em consequência, no afastamento do paradigma filosófico da
linguem, com a (re)aproximação do já ultrapassado paradigma da filosofia da
consciência, in casu, da “consciência mecânica”.
Com efeito, a despeito das possibilidades de utilização benéfica das
inteligências artificiais, fato é que seu emprego deverá ser feito com grande
cautela, a fim de se evitar o assujeitamento do significado à máquina, e que o
homem se torne mero espectador do retorno à relação sujeito-objeto.

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159

EMENDA CONSTITUCIONAL N. 95/2016 E A PROGRESSIVIDADE DO


FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA COMO GARANTIA
FUNDAMENTAL

André Luís Bortolini

RESUMO: Este artigo tem o propósito de examinar o núcleo essencial do direito à educação,
especialmente a garantia fundamental, estabelecida pelo poder constituinte originário, de custeio
público pautado pela progressividade, sob a forma de vinculação de financiamento mínimo
obrigatório à evolução de receitas. Pretende-se traçar algumas linhas acerca do quadro atual dos
serviços públicos de educação oferecidos pelo Estado brasileiro, ponderando os avanços das
últimas décadas e as demandas futuras. Nesse expectro, problematizar-se-á o advento da Emenda
Constitucional n. 95/2016, que impôs um “Novo Regime Fiscal”, examinando como ela promoveu
uma ruptura com o regime de custeio até então vigente, impondo retrocesso e interrupção do
processo de consecução de uma educação universal e de qualidade, que propicie condições para
a emancipação de seus cidadãos e para uma efetiva democracia.

Palavras-chave: Direito Fundamental à educação. Princípio da progressividade como garantia


fundamental ao financiamento adequado da educação. Emenda Constitucional n. 95/2016.
Proibição de retrocesso.

ABSTRACT: The purpose of this article is to examine the essential nucleus of the right to education,
especially the fundamental guarantee, established by the original constituent power, of public costing
based on progressivity, in the form of linking minimum obligatory financing to the evolution of
revenues. It is also intended to draw some lines about the current state of public education services
offered by the Brazilian State, considering the advances of recent decades and future demands. In
this spectrum, the advent of Constitutional Amendment n. 95/2016, which imposed a “New Fiscal
Regime”, examining how it promoted a break with the current costing regime, imposing backward
and interrupting the process of achieving a universal and quality education, which provides
conditions for emancipation citizens and for effective democracy.

Key-words: Fundamental right to education. Principle of progressivity as a fundamental guarantee


for the adequate financing of education. Constitutional Amendment no. 95/2016. Prohibition of
retrogression.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Constituição Federal de 1988 (CF/88), construída no bojo de um processo


de redemocratização do país, atribuiu ao Estado Social e Democrático de Direito
papel essencial na efetivação dos direitos fundamentais, individuais e sociais, nela
elencados.
Dentre estes, figura com relevância a educação, cuja fundamentalidade
demanda ao Estado, em vista da consecução de seus objetivos e fundamentos, a
responsabilidade pela formulação e implementação de políticas educacionais
universais e de qualidade, permitindo-se formar cidadãos e propiciar a todos
oportunidades de empenhar-se em realizar seus próprios projetos de vida em um
160

ambiente democrático.
Em vistas de dar concretude ao núcleo essencial do direito à educação, o
legislador constituinte alicerçou, como garantia fundamental, um regime de
financiamento pautado na progressividade, arquitetada sob a forma de vinculação
de custeio mínimo obrigatório à evolução de receitas apuradas no respectivo ano
fiscal (artigo 212, CF/88).
O presente artigo buscará demonstrar, no entanto, que o advento da
Emenda Constitucional n. 95/2016, ao impor um “Novo Regime Fiscal”, promoveu
ruptura no aludido sistema de custeio estabelecido pelo legislador constituinte
originário, atacando, em um cenário de baixo nível democrático, a garantia de
progressividade fiscal do financiamento do direito fundamental à educação e
lesando o seu núcleo essencial, impondo ao cabo, retrocesso e interrupção do
curso de desenvolvimento da qualidade do ensino público básico no país que se
viu durante as últimas décadas.
O artigo está capitulado da seguinte forma: (i) considerações iniciais; (ii) a
educação como direito fundamental social; (iii) princípio da progressividade:
garantia fundamental ao financiamento adequado da educação na CF/88; (iv)
breves linhas sobre o cenário atual das políticas de educação pública no Brasil; (v)
a Emenda Constitucional n. 95/2016: regressividade e retrocesso; e (vi)
considerações finais.

2 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL

A Constituição Federal de 1988 (CF/88), harmonizando elementos jurídico-


constitucionais para a arquitetura de um Estado Social e Democrático de Direito,
estabeleceu os seus objetivos fundamentais, dentre os quais construir uma
sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3o.).
Para a consecução de tais desideratos fundamentais, o legislador
constituinte firmou os fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1 o.),
nos quais todas as atividades do Estado sempre devem estar arrimadas,
assentando, ainda, direitos e garantias fundamentais, individuais e sociais, cujos
161

conceitos e compreensões lhes são necessariamente inerentes.


Para Marcos Augusto Maliska (2001):

A noção de Estado Social e Democrático de Direito, amplamente


difundida nas Constituições do segundo pós-guerra, está intimamente
vinculada aos direitos fundamentais. A compreensão do que seja,
portanto, esses direitos fundamentais é condição para se buscar um
Estado e, neste sentido, também uma sociedade, ambos baseados no
princípio democrático. Quando as Constituições elaboram em seus
primeiros artigos, os fundamentos do Estado e da sociedade, estes
somente alcançam efetividade social mediante a concretização dos
postulados normativos referentes aos direitos fundamentais. São
portanto, os direitos fundamentais o caminho para se consolidar esse
ideal a ser buscado (MALISKA, 2001, p. 46).

O entendimento da noção de Estado Democrático e Social de Direito passa


pela devida análise do cenário histórico dos últimos séculos, sobretudo pelo
surgimento de direitos fundamentais prestacionais no século passado. Em que
pese os limites do presente estudo, insta registrar que foi nesse período em que os
direitos fundamentais se afastaram da mera concepção de ação negativa do
Estado, de não violação da esfera individual, para a previsão de direitos que
demandavam atuação positiva do Estado, via oferecimento à sociedade de direitos
prestacionais que garantiam condições materiais básicas (CANOTILHO, 1993, p.
55).
Ao tratar do cenário histórico de surgimento dos direitos sociais, destacam
Leonardo Buissa Freitas e Débora Barcelos Vieira Gomides:

Por ter surgido no berço do Estado Social, os direitos


fundamentais de segunda geração estão ligados à ação intervencionista
do Estado, sendo realizados por intermédio da implementação de
políticas e serviços públicos, exigindo do Estado prestações sociais. [...]
Com a crise do Estado Liberal e o consequente surgimento do
Estado Social de Direito, não estava mais sendo suficiente – se é que um
dia foi – a proteção restrita aos direitos civis. A desigualdade assolava a
população e foi preciso que a economia sofresse na pele os efeitos do
Estado omisso para que houvesse uma mudança na postura dos
governantes. O Estado, então, chamou para si a responsabilidade sobre
os direitos sociais, dentre eles a educação (FREITAS e GOMIDES, 2018).

Essa é a nota característica da CF/88, produzida no bojo do processo de


redemocratização do país, após um longo período de ditadura militar, e que se
afigura com forte viés dirigente, atribuindo ao Estado papel essencial na efetivação
dos direitos fundamentais de natureza social nela elencados (DUARTE, 2007).
Neste contorno, Adriana da Costa Ricardo Schier (2016) salienta que o
162

Estado brasileiro existe para promover o desenvolvimento da pessoa, mediante a


garantia “a todos os indivíduos de um núcleo de direitos fundamentais, em uma
perspectiva material e, por vezes, pela ação interventiva do poder público, limitada
pelo Direito”. E prossegue:

Portanto, é na esfera, não só do princípio democrático, mas


também na do princípio do Estado Social que tal concepção se legitima,
na medida em que a consagração dos direitos sociais permite que as
esperanças da coletividade, na consecução de uma sociedade livre, justa
e solidária se dirijam ao Estado (SCHIER, 2016, pp. 157-158).

Leciona José Afonso da Silva (1999, pp. 289-290) que os direitos sociais
“[…] são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente,
enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de
vida aos mais fracos [...]”.
Tal figura de protagonismo dos direitos sociais em nosso sistema,
deslegitima qualquer tentativa de negar ou esvaziar a sua natureza jurídica, como
se estes não fossem direitos fundamentais, mas meros conselhos ou exortações
ao legislador, proposta que obstaria a concretização dos objetivos de justiça social
da CF/88 (DUARTE, 2007).
Ao reconhecer a fundamentalidade do direito à educação e sua
aplicabilidade imediata, escreve Marcos Augusto Maliska (2001):

O direito à educação é típico direito de prestação em sentido


estrito (prestação fática, direito fundamental social). Entre os direitos
sociais, o direito à educação e o direito à saúde assumem características
especiais, uma vez que a Constituição de 1988 definiu ambos como dever
do Estado. Quando trata das normas programáticas, José Afonso da
Silva, como já referido neste trabalho, na análise da aplicabilidade
imediata dos direitos fundamentais, exclui expressamente o direito à
educação e o direito à saúde, por não se tratarem, propriamente, de um
programa, mas de um dever que, em caso de não cumprimento, revela
um desrespeito ao direito, um descumprimento da norma (MALISKA,
2001, pp. 153-154).

O artigo 6o. da Constituição Federal de 1988 impõe ao Estado, direta ou


indiretamente, o dever de proporcionar aos cidadãos o direito fundamental à
educação, sendo veículo concretizador da cidadania e da dignidade da pessoa
humana (artigo 1o., CF/88).
Para Mônica Herman S. Caggiano (2009):

No contexto atual não nos parece subsistir dúvidas quanto à


163

inclusão do direito à educação no elenco dos direitos humanos


fundamentais, amparado portanto por um quadro jurídico-constitucional
que vem a lhe assegurar, também, um sistema de garantias. É direito
fundamental porque, de uma banda, consubstancia-se em prerrogativa
própria à qualidade humana, em razão da exigência de dignidade, e, de
outra, porque é reconhecido e consagrado por instrumentos
internacionais e pelas Constituições que o garantem (CAGGIANO, 2009,
pp. 19-38).

Nesta toada, a Constituição brasileira de 1988 enfatizou a relevância da


educação no contexto de Estado Social e Democrático de Direito, estabelecendo,
objetivamente, que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família,
e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho (art. 205, CF/88), garantindo-se o direito público
subjetivo (universal, obrigatório e gratuito) ao ensino básico (art. 208, CF/88).
Neste ponto, destaca-se uma dimensão democrática da educação, posto
que o seu reconhecimento como direito público subjetivo permite, por meio do
poder de ação que lhe é inerente, a defesa da educação como bem jurídico, tanto
no plano individual como no coletivo (RANIERI, 2000, pp. 76-77).
Ainda sob um ponto de vista da relação entre educação e democracia,
Maliska (2001) descerra que sem um Estado que propicie condições para a
emancipação de seus cidadãos, figurando as políticas educacionais com papel
elementar, não se pode nem pensar em democracia:

Observa-se que não é possível que seja pensada, de forma não


harmônica, a existência de uma democracia e de um Estado que
possibilitem ao cidadão condições mínimas para que seja educado,
alimentado, respeitado em sua integridade física e moral. Se o mundo,
hoje, fala em democracia como sendo o regime mais adequado à
sociedade moderna, deve, necessariamente, ter também presente que,
sem um Estado que propicie condições para a emancipação de seus
cidadãos, não se pode nem pensar em democracia (MALISKA, 2001, pp.
56-57).

Na mesma esteira, Paulo Ricardo Schier e Adriana da Costa Ricardo Schier


salientam que “é ponto pacífico que direitos fundamentais, individuais e políticos, e
inclusive os sociais, são pressupostos da democracia e da deliberação legítima”
(SCHIER e SCHIER, 2018).
Tal cenário ganha ênfase na obra de Jürgen Habermas, que revela a
equiprimordialidade entre os direitos humanos e a democracia, ou seja, a presença
do regime democrático pressupõe a garantia dos direitos humanos (Habermas,
164

1998).
O filósofo alemão, ainda, ao desenvolver os princípios do Estado de Direito,
na perspectiva da institucionalização jurídica da rede de discursos e negociações,
oferece destaque ao princípio da soberania popular, segundo o qual todo o poder
do Estado vem do povo, o direito subjetivo à participação, com igualdade de
chances, na formação democrática da vontade, vem ao encontro da possibilidade
jurídico-objetiva de uma prática institucionalizada de autodeterminação dos
cidadãos. (HABERMAS, 1997, pp.212-213).
Nessa ordem de ideias, infere-se que a fundamentalidade constitucional do
direito social à educação demanda ao Estado, em vista da consecução de seus
objetivos e fundamentos, a responsabilidade pela formulação e implementação de
políticas educacionais universais e de qualidade, permitindo-se formar cidadãos e
propiciar a todos oportunidades de empenhar-se em realizar seus próprios projetos
de vida (SEN, 2010, p. 18).

3 BREVES LINHAS SOBRE O CENÁRIO ATUAL DAS POLÍTICAS DE


EDUCAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL

A realidade dos serviços de educação oferecidos pelo Estado demonstra


que, apesar dos avanços nas duas últimas décadas, muito há ainda a se fazer,
sobretudo no tocante a qualidade do ensino básico público.
Um dos avanços mais relevantes da educação brasileira sob a vigência da
CF/88, conforme Relatório Educação para Todos no Brasil 2000-2015, foi a
expansão da cobertura da rede de ensino (universalização do ensino fundamental
e melhor acesso à educação infantil e ensino médio) e consequente progresso dos
níveis educacionais da população em geral, desafiando um grave quadro pré-
constitucional de analfabetismo e dificuldade no acesso às escolas de grande parte
da população brasileira (BRASIL, 2014).
De tal relatório do Ministério da Educação extrai-se que o incremento da
alocação orçamentária no período analisado (2000-2015) redundou, dentre outros
indicadores: em crescimento do atendimento escolar na educação infantil de 27,1%
para 43,5%; maior atendimento à população de 15 a 17 anos no ensino médio,
passando de 36,9% (2001) para 51,6% (2011); e decréscimo da taxa de
analfabetismo funcional, na faixa etária de jovens e adultos, de 27,3% (2001) para
165

18,3% (2012).
Esse momento histórico, de fato, foi marcado pelo aumento de investimento
público total em educação em relação ao PIB na ordem de 3,9 para 5,9%, conforme
relatórios Education at a Glance 2014 da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) (BRASIL, 2015, p. 1-10).
Nina Beatriz Stocco Ranieri, ao cotejar as evoluções recentes com o atraso
secular na educação brasileira, sustenta que:

[…] não há dúvida de que esse resultado advém do


enfrentamento público de questões recorrentes da educação brasileira,
tais como universalização, financiamento, garantias de acesso e
permanência na escola, qualidade do ensino, dentre outras. A atuação do
Poder Público nos últimos vinte anos assume especial relevância quando
consideramos o atraso secular da educação no Brasil, notadamente da
educação pública, em comparação a outros países da América Latina,
como a Argentina e o Uruguai, que já no início do século XX haviam
universalizado a educação fundamental (RANIERI, 2009, p. 184).

Destacam-se, no quadro pós-constituinte, o FUNDEF (Fundo de


Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do
Magistério) de 19961 e o FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica) em 20062, como políticas que buscaram qualidade e equidade
nos serviços públicos de educação.
No entanto, em que pese os progressos nas políticas públicas educacionais
decorrente do aumento considerável de investimentos públicos e implemento de
políticas estruturantes, o cenário atual da educação básica pública brasileira revela
a necessidade de premente atenção política.
Neste sentido, colhe-se dos dados do ranking PISA (Programme for
International Student Assessment), uma das principais avaliações da educação
básica no mundo, que o desempenho dos alunos brasileiros de escola pública de
ensino básico (sobretudo as municipais e estaduais) segue, ao menos desde 2006,
com resultados em níveis muito baixos, situando o Brasil nas piores colocações na
comparação com outros 78 países e territórios (BRASIL, 2019).
Percebe-se, a partir da pontuação dos estudantes brasileiros nas três áreas

1 Criado a partir da Emenda Constitucional n. 14/96 e da Lei n. 9.424/96, instituiu um sistema de arrecadação de fundos
para manutenção e desenvolvimento da educação, distribuídos pela União aos estados, municípios e Distrito Federal na
proporção do número de alunos matriculados anualmente nas escolas cadastradas, agindo de forma distributiva e supletiva
no investimento em educação.
2 Criado pela Emenda Constitucional n. 53/2006, com projeção de vigência de 14 anos, ampliando a destinação de recursos
públicos a toda educação básica pública (incluindo, portanto, a educação infantil e o ensino médio). A partir de então, a
União passou a redistribuir recursos apenas aos estados que, a cada ano, não atingissem uma cota mínima de investimento
por estudante.
166

do PISA, que houve estagnação do cenário brasileiro em relação às últimas quatro


edições da prova (2015, 2012, 2009 e 2006), apesar de figurar nas últimas
colocações no ranking.
Entretanto, é importante frisar que a média dos países da OCDE nas
matérias avaliadas (ciências, leitura e matemática), aproxima-se dos números
atingidos pelas instituições públicas federais brasileiras3, quadro que converge com
o último censo escolar da educação básica, ao indicar que as escolas públicas
federais, embora em menor número comparativamente às escolas públicas
estaduais e municipais, apresentam drasticamente melhores resultados em
relação a estas.4
Tal cenário evidencia, de um lado, a inferioridade da qualidade do ensino
básico público de estados e municípios, e, de outro, dados os índices apresentados
pelas escolas públicas federais, a plena capacidade do Estado de oferecer
educação de qualidade.
O somatório de gestão e receitas (financiamento devido) interfere na
qualidade do ensino oferecido, a indicar a necessidade da tomada de medidas no
que tange às escolas públicas municipais e estaduais, local em que se abriga a
maioria da população escolar brasileira, especialmente a mais pobre, com vistas
ao oferecimento de educação com qualidade a todos.
Nesse contexto, em 2014, ante a Emenda Constitucional n. 59/2009, que
alterou o artigo 214 da CF/88, o Congresso Nacional sancionou o Plano Nacional
de Educação (PNE) via Lei n. 13.005/2014, tendo por foco o direcionamento
de esforços e investimentos para a melhoria da qualidade da educação no
país, estabelecendo 20 metas a serem atingidas em 10 anos (2014-2024) e
enfatizando questões como capacitação e plano de carreira dos professores e
maior investimento público por aluno [parâmetro de custo aluno-qualidade (CAQ)
e custo aluno-qualidade inicial (CAQi)].
Enquanto o CAQi trata do padrão mínimo de qualidade, o CAQ visa ao gasto
próximo daquele realizado por países desenvolvidos, tendo em vista noções de
escola com boa infraestrutura e qualidade5, considerando que, conforme INEP e

3 Do total de 841 escolas avaliadas pelo PISA no país em 2015, 738 são públicas, sendo 13 federais, 569 estaduais e 156
municipais, ao passo que apenas 103 instituições são privadas.
4 Federais: ciências, leitura e matemática: respectivamente, 517, 528 e 488 pontos; Estaduais: respectivamente, 394, 402 e
311 pontos; Municipais: respectivamente, 329, 325 e 369 pontos. Escolas particulares: ciências 487, leitura 493 e matemática
463 pontos.
5 O objetivo do PNE era elevar a proporção do uso de recursos para educação pública para 7% do
PIB do país até 2019, e alcançar, no mínimo, o patamar de 10% do PIB ao final do plano, em 2024.
167

OCDE, o investimento público por aluno no Brasil do ensino básico é de menos da


metade que a média dos países da OCDE.6
A despeito de o PNE ter estabelecido arrojada política de Estado em matéria
educacional, bem como de a Lei de Diretrizes Orçamentárias (BRASIL, 2018) e o
Plano Plurianual (BRASIL, 2015) terem definido as metas inscritas no PNE como
prioridades, o contexto político instalado a partir de 2016, sob o discurso oficial de
ajuste de contas públicas, adotou um “Novo Regime Fiscal” via Emenda
Constitucional (EC) n. 95/2016 (Proposta de Emenda à Constituição 241/2016 que
alterou o art. 110 do ADCT), limitando, por 20 anos, a despesa primária total da
União à despesa realizada em 2016 (apenas corrigida pelo Índice Nacional de
Preços ao Consumidor Amplo - IPCA - ou outro índice que vier a substituí-lo).
Ao agir desta forma, conforme veremos a seguir, o legislador constituinte
derivado sobrestou, por largo período de tempo, garantia fundamental de
financiamento progressivo do direito à educação conforme a arrecadação estatal,
ensejando sérios riscos de inviabilizar a consecução das metas do PNE e, por
consequência, interromper o curso de desenvolvimento da qualidade do ensino
público básico no país.

4 PRINCÍPIO DA PROGRESSIVIDADE: GARANTIA FUNDAMENTAL AO


FINANCIAMENTO ADEQUADO DA EDUCAÇÃO NA CF/88

A Constituição de 1988, nos artigos 205 a 214, estabeleceu um conteúdo


mínimo do direito à educação, explicitando aspectos que envolvem a sua
concretização, dentre os quais os princípios e objetivos que o fundamentam, os
deveres de cada ente da federação para com a sua garantia, a sua estrutura,
dividida em níveis e modalidades de ensino, e a previsão de um sistema próprio de
financiamento, com vinculação constitucional de receitas.
Nesse contexto, figura em destaque, com vistas a dar suporte à garantia de
padrão de qualidade da educação (artigo 206) e à implementação do plano
nacional de educação (artigo 214), a previsão de dotação orçamentária vinculada
e progressiva em relação à receita da União (artigo 212).
Élida Graziane Pinto e Salomão Barros Ximenes ponderam que o legislador

6 Tal padrão de investimentos por aluno muito abaixo de outros países decorre, dentre outros fatores, de o país possuir
muitos alunos em idade escolar, bem como diante das deficiências históricas de infraestrutura em escolas públicas,
decorrente de investimentos abaixo do recomendado durante décadas.
168

constituinte pôs em vigor uma primazia fiscal do direito fundamental à educação,


voltado à realização dos objetivos constitucionais, destacando que o financiamento
seja proporcionalmente progressivo conforme tanto o nível de riqueza do país
quanto a arrecadação estatal (PINTO e XIMENES, 2018).
E prosseguem os autores:

Tais normas formam um conjunto integrado e sistêmico de tutela


do financiamento suficiente e progressivo dos direitos fundamentais que
opera como verdadeiro eixo dirigente e finalístico dos orçamentos
públicos no país, forte o bastante para […] estabelecer uma exceção à
regra geral de não vinculação de impostos (art. 167, IV), em favor do
direito à educação (art. 212).
A CF88, assim, protege juridicamente sociedade e cidadãos
detentores de direitos subjetivos públicos à saúde, à educação e a todas
as prerrogativas relativas à preservação da vida digna, por um
microssistema de tutela do custeio suficiente e progressivo dos direitos
fundamentais (PINTO, 2016b). É evidente, nesse sentido, a correlação de
proporcionalidade entre o fluxo da receita tributária e as despesas sociais
específicas como um verdadeiro pacto fundante que fixa a equação sobre
quais meios de que o Estado dispõe para atingir quais fins almejados pela
sociedade (PINTO e XIMENES, 2018).

O princípio da progressividade possui por escopo garantir a realização do


direito fundamental à educação em sua máxima efetividade, alinhando-se ao
objetivo de desenvolvimento nacional sustentável, ao princípio da justiça social (art.
170) e aos princípios que ilustram o direito à educação - a exemplo do padrão de
qualidade (artigo 206) e planejamento educacional (artigo 214) -, no contexto de
Estado Democrático e Social de Direito.
Regulado pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais7, o princípio da progressividade demanda aos Estados permanente
progresso social e econômico, mediante a máxima aplicação dos recursos
disponíveis.
Nessa linha, dispõe os artigos 2o., 1, e 13 do aludido Pacto:

Art. 2º. 1. Cada Estado-parte no presente Pacto compromete-se


a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e
cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e
técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem assegurar,
progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos
direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a
adoção de medidas legislativas.

Art. 13. 1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o


direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação

7 Adotado pela Resolução nº 2.200-A da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 16/12/1966, e integralizado à ordem
jurídica brasileira pelo Decreto nº 591, de 06/07/1992 em face ao parágrafo 2º do artigo 5 o. da CF/88.
169

deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do


sentido de sua dignidade e fortalecer o respeito pelos direitos humanos e
liberdades fundamentais. Concordam ainda em que a educação deverá
capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade
livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as
nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover
as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 2. Os
Estados Partes no presente Pacto reconhecem que, com o objetivo de
assegurar o pleno exercício desse direito: a) a educação primária deverá
ser obrigatória e acessível gratuitamente a todos; b) a educação
secundária em suas diferentes formas, inclusive a educação secundária
técnica e profissional, deverá ser generalizada e tornar-se acessível a
todos, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela
implementação progressiva do ensino gratuito; c) a educação de nível
superior deverá igualmente tornar-se acessível a todos, com base na
capacidade de cada um, por todos os meios apropriados e,
principalmente, pela implementação progressiva do ensino gratuito; d)
dever-se-á fomentar e intensificar, na medida do possível, a educação de
base para aquelas pessoas que não receberam educação primária ou não
concluíram o ciclo completo de educação primária; e) será preciso
prosseguir ativamente o desenvolvimento de uma rede escolar em todos
os níveis de ensino, implementar-se um sistema adequado de bolsas de
estudo e melhorar continuamente as condições materiais do corpo
docente […] (BRASIL, 1992)

No destaque de Clarice Seixas Duarte:

Ainda de acordo com o Comitê, enquanto o objetivo geral de


plena realização dos direitos enunciados no Pacto só pode ser
implementado em longo prazo, a progressividade impõe ao Estado o
dever de tomar medidas concretas e delimitadas da forma mais clara
possível em direção às obrigações assumidas (obrigações de conduta e
não de resultado, propriamente ditas), o que deve ser demonstrado em
curto espaço de tempo, a partir da entrada do Pacto em vigor.
Esse seria um exemplo de obrigação de implementação imediata
estabelecida pelo Pacto. Se o limite dos recursos disponíveis pode
impedir a realização integral dos direitos, não é possível deixar de
persegui-los, desde já, de acordo com os recursos disponíveis. É uma
questão de estabelecer prioridades.[…] Se os Estados não podem, de um
dia para o outro, efetivar de forma integral e para todos os direitos
previstos no Pacto, isso não significa que não devam agir de imediato,
utilizando o máximo dos recursos disponíveis, e sempre em direção aos
parâmetros internacionalmente estabelecidos, em evolução ascendente
contínua. Não é possível retroagir. Esse é o sentido da progressividade
(DUARTE, 2007).

Neste cenário, a conquista de uma educação universal e de qualidade, como


almejado pela CF/88, não prescinde, para além de boa gestão e participação
social, de recursos financeiros suficientes a custeá-la, na perspectiva de aplicação
do máximo de recursos disponíveis e a não-retroatividade.
Tal quadro ganha cores na realidade brasileira, cujos índices de qualidade
da educação pública básica, como visto, apesar dos avanços das últimas décadas,
demandam priorização alocativa orçamentária para o seu aperfeiçoamento.
170

Heleno Torres, nesta esteira, assinala o papel do orçamento público como


“meio privilegiado para que se evidencie o controle sobre a realização daqueles
fins constitucionais do Estado e sua capacidade de funcionar como instrumento
essencial para promover a aplicabilidade dos direitos e liberdades” (TORRES,
2014, p. 359).
A progressividade fiscal do financiamento dos direitos fundamentais, assim,
com destaque o direito à educação e a finalidade de sua máxima eficácia, deve ser
compreendida, no desenho constitucional, como verdadeira estrutura de contenção
do retrocesso e de proteção da estabilidade jurídica (PINTO e XIMENES, 2018).
Nesse panorama, ganha relevo a norma do artigo 212 da CF/88, cujo
conteúdo garante a efetividade do direito fundamental à educação, integrando o
seu núcleo essencial, razão por que não pode ser relativizado.
Para Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero:

Será possível, por exemplo, sustentar que nem mesmo uma


reforma constitucional não poderá pura e simplesmente suprimir o
dispositivo que assegura à iniciativa privada a participação na educação
(art. 209) ou a previsão de um percentual mínimo da receita em matéria
de impostos a ser aplicada em educação pela União, Distrito Federal,
Estados e Municípios (art. 212), seja por força da proibição de
regressividade (retrocesso) em matéria de proteção e promoção de
direitos fundamentais, seja por força, dentre outros aspectos, das
exigências da proporcionalidade, mas em especial se estiverem sendo
afetados, de modo indireto (não pela supressão direta de dispositivo
constitucional), aspectos relativos ao núcleo essencial do direito à
educação considerado como um direito em sentido amplo (SARLET,
MARINONI e MITIDIERO, 2013. p. 605-606).

Trata-se de comando que estabelece uma relação de proporcionalidade


entre arrecadação e destinação obrigatória dos recursos públicos ao direito social
à educação, vinculando financiamento mínimo obrigatório à evolução de receitas
apuradas no respectivo ano fiscal, a exemplo da União, conforme caput do art. 212
da CF/88, em 18% da receita líquida de impostos.
Tal regime de garantia fundamental ao financiamento do direito à educação
possui tamanha importância que o constituinte implicou sanções e
responsabilidades em face de sua violação, a exemplo de:

1. intervenção federal nos estados e no Distrito Federal e de


intervenção estadual nos municípios por descumprimento do gasto
mínimo em saúde e educação, o que inclui essa regra entre os princípios
sensíveis da CF88 (art. 34, VII, “e”; art. 35, III); […] 3. vedação de
transferências federativas voluntárias em caso de déficit de aplicação
171

quanto aos pisos de custeio em saúde e educação, garantindo-se,


entretanto, a manutenção da parte dessas transferências voltadas à
saúde, à educação e à assistência social (LRF, art. 25, §1º, IV, “b”, e §3º);
4. rejeição das contas anuais dos chefes do Poder Executivo (CF88, art.
49, IX; art. 71, I); 5. responsabilidade pessoal do gestor em caso de déficit
de aplicação, desvio, fluxo irregular ou falta de condicionamento dos
repasses, entre outras formas de mitigar ou fraudar os recursos
destinados à saúde e à educação (CF88, art. 208, §2º; ADCT, art. 60, XI;
e legislação infraconstitucional) (PINTO e XIMENES, 2018).

Ao promover clara ruptura com o sistema de financiamento estabelecido


pelo legislador constituinte originário, a Emenda Constitucional n. 95/2016 atacou
o núcleo essencial do direito fundamental à educação, impondo retrocesso ao
relegar o princípio da progressividade fiscal.

5 A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 95/2016: REGRESSIVIDADE E


RETROCESSO

A EC n. 95/2016 ao estabelecer um “Novo Regime Fiscal”, inseriu no artigo


110 do ADCT da CF/88 um regime de custeio da educação que afastou, por 20
anos, a relação de proporcionalidade, informada no princípio da progressividade,
até então existente entre arrecadação e destinação obrigatória (BRASIL, 2016).
Ao assim agir, o legislador constituinte derivado sobrestou, até 2036, a
garantia fundamental de vinculação de gasto mínimo obrigatório à evolução de
receitas apuradas no respectivo ano fiscal prevista no art. 212 da CF/88,
estabelecendo um critério de paralisação do estágio mínimo calculado para o
exercício de 2017, com mera atualização inflacionária (despesa efetivamente paga
em 2016 corrigida pelo Índice de Preços ao Consumidor amplo — IPCA).
No registro de Fabio Konder Comparato e outros:

O grande problema da PEC 241/2016, particularmente no artigo


104 que ela pretende introduzir ao ADCT, é desconhecer a
proporcionalidade entre receita e despesa como metodologia instituída no
texto da Constituição de 1988, como proteção formal e material (garantia
equiparável ao habeas corpus e ao mandado de segurança, por exemplo)
dos direitos à saúde e à educação (COMPARATO, TORRES, PINTO e
SARLET, 2016).

Élida Graziane Pinto e Salomão Barros Ximenes criticam os possíveis


impactos reais de tal medida fiscal:
172

Com isso, ao longo do tempo, a tendência é de que a falta de


crescimento real em tais pisos de custeio implique percentuais de
aplicação anuais, proporcionalmente, muito inferiores aos definidos no
texto da CF88. A estagnação em valores reais, portanto, da despesa
primária global da União e, sobretudo, dos deveres de gasto mínimo em
saúde e educação contida nesse teto será tão mais destacada quanto
maior for a expansão da arrecadação, em cenário de retomada da
atividade econômica do país, ao longo dos 20 anos nos quais a Emenda
vigorará.

Infere-se de estudo elaborado pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização


Financeira da Câmara dos Deputados estimativa de redução de valores em
políticas de educação na ordem de R$ 32.000.000.000,00 (trinta e dois bilhões de
reais) ao longo dos próximos 10 anos (valores reais, deflacionados), destacando-
se, ainda, que as diferenças “podem se ampliar com a retomada do crescimento
econômico, cenário no qual não se justificaria redução nos mínimos de aplicação
em detrimento dos retornos sociais e econômicos advindos de maiores
investimentos em educação” (BRASIL. 2016).
Na mesma toada, Pedro Rossi e Ester Dweck concluem que, mantidos os
efeitos da medida, o mínimo para educação seria de 14,4% da RLI [Receita Líquida
de Impostos] em 2026 e 11,3% em 2036:

Comparando as regras atuais com o mínimo estipulado pela PEC,


percebe-se que o piso previsto por ela é, na verdade, um piso deslizante
(Figura 1). Isto é, ao longo do tempo o valor mínimo destinado à educação
e saúde cai em proporção das receitas e do PIB. Na simulação
apresentada na Figura 1, com a PEC, o mínimo para educação seria de
14,4% da RLI em 2026 e 11,3% em 2036 […] (ROSSI e DWECK, 2016).

Nelson Cardoso aponta os prováveis reflexos da EC n. 95/2016 sobre o


Plano Nacional de Educação de 2014, concluindo que aquela decretou a morte
deste:

É inadmissível supor que os poderes Executivo e Legislativo, ao


aprovarem a EC 95, estejam supondo que não existirão anos em que a
arrecadação de impostos crescerá superando a inflação do ano, o que
permitiria reajustar o orçamento do Poder Executivo em percentuais
acima da inflação, como aconteceu na maioria dos anos […] A pergunta
que se coloca nesse ponto é se até o ano de 2024 a área de educação
será novamente priorizada no contexto do Poder Executivo, como ocorreu
de 2006 a 2012, pois somente dessa forma as metas do PNE (2014-2024)
mais diretamente associadas à União poderão ser cumpridas, além de se
elevar a participação da União nos recursos que precisam ser aplicados
na EB. […]
O PNE (2014-2024) iniciou-se em 2014, e em 2015 e 2016, pelo
mostrado na Tabela 3, os recursos do MEC foram menores em valores
correntes que o de 2014. […] o orçamento de 2017 na LOA e, se
173

examinarmos a Tabela 7 e o Gráfico 10, que comparam os valores


presentes na LOA de 2016 com aqueles da LOA de 2017, pode-se
verificar que o valor aprovado para o MEC decresceu 9,87 pontos
percentuais descontando-se a inflação. […] Pode-se afirmar, portanto,
que, analisando a evolução dos recursos financeiros associados ao MEC
nos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017 — quatro anos dos dez anos do
PNE (2014-2024) —, a possibilidade do cumprimento do conjunto de suas
metas é muito remota, uma vez que os valores financeiros não foram
reajustados por percentuais nem iguais à inflação medida pelo IPCA nos
anos de 2015 e 2016 e, no ano de 2017, a LOA 2017 também não previu
recursos financeiros que propiciassem o desenvolvimento de ações que
objetivassem a execução das metas do PNE (2014-2024). […] Portanto,
a análise da execução orçamentária do Poder Executivo no período 1995-
2016 e do orçamento aprovado na LOA de 2017 nos permite afirmar que
o cumprimento das metas contidas no PNE (2014-2024) no contexto da
EC 95, que perdurará até o ano de 2036, abarcando também o próximo
PNE decenal, é uma tarefa praticamente impossível, e pode-se afirmar
que a EC 95 determinou a “morte” do PNE (AMARAL, 2017).

A indicar a correção de tal análise, percebe-se que o Governo Federal vetou


trechos das leis orçamentárias de 2018 e 2019 que orientavam a alocação de
recursos para o cumprimento do PNE, mantendo os gastos com educação
realizados ano anterior, reajustados pela inflação (BRASIL, 2019) sem olvidar que
até o presente momento não promoveu da devida regulamentação do CAQ e do
CAQi.
Ainda que viável juridicamente o investimento em educação superior ao piso
estabelecido no art. 110 do ADCT, posto que não vedado pela EC n. 95/2016, tal
hipótese não encontra fundamento no plano da realidade a lhe proporcionar carga
de verossimilhança.
Neste ponto, destacam Pedro Rossi e Ester Dwech ausência de condições
para uma progressividade real a partir da EC n. 95/2016:

Existe a possibilidade de aumentos nos gastos para saúde e


educação acima do mínimo, a partir da redução de outros gastos. Mas
essa possibilidade é limitada pela redução dos gastos totais e pelo
crescimento de alguns outros gastos. Ou seja, ao estabelecer um teto que
reduz o gasto público em proporção ao PIB, há uma compressão dos
gastos sociais. O documento Austeridade e Retrocesso: Finanças
Públicas e Política Fiscal no Brasil apresenta uma projeção dos gastos
públicos do Governo Federal sobre a vigência da PEC 55 [...]. O gasto
primário total do Governo Federal passaria de 19,6% do PIB em 2015,
para 15,8% em 2026 e 12% em 2036. Adicionalmente, os gastos com
previdência, hoje em torno de 8% do PIB, devem aumentar por uma
questão demográfica, mesmo com uma eventual reforma. Nesse
contexto, não há espaço para a manutenção dos gastos de saúde e
educação em proporção ao PIB, que tenderão a cair com a nova regra.
[…] Em síntese, a reforma fiscal proposta pelo governo não é um plano
de estabilização fiscal, mas um projeto de redução drástica do tamanho
do Estado. […] Dessa forma, a PEC 55 torna impossível qualquer melhora
174

na saúde e educação públicas no Brasil, pelo contrário, abre-se espaço


para o sucateamento dessas áreas e para a eliminação de seu caráter
universal (ROSSI e DWECK, 2016).

De tal perspectiva é possível inferir que o critério de mera correção


monetária adotado pela EC n. 95/2016, afastando a eficácia por largos anos do
artigo 212 da CF/88, atentou contra o princípio da progressividade, lido a partir da
relação de proporcionalidade entre receitas federais e o dever de gasto mínimo em
educação (garantia fundamental ao financiamento adequado do direito à
educação), e, por consequência, contra o princípio da proibição do retrocesso.
Observa Flávia Piovesan que do princípio da progressividade dos direitos
sociais decorre o princípio da proibição do retrocesso:

[...] da obrigação da progressividade na implementação dos


direitos econômicos, sociais e culturais decorre a chamada cláusula de
proibição do retrocesso social, na medida em que é vedado aos Estados
retrocederem no campo de implementação desses direitos. Vale dizer, a
progressividade dos direitos econômicos, sociais e culturais proíbe o
retrocesso ou a redução de políticas públicas voltadas à garantia desses
direitos (PIOVESAN, 2000, p. 177).

A progressividade cria um empecilho ao retrocesso da política social do


Estado que, tendo alcançado um certo nível de proteção dos respectivos direitos,
não pode retroceder e baixar o padrão de vida da comunidade, já que a cláusula
de proibição do retrocesso social protege o núcleo essencial dos direitos sociais
(DUARTE, 2007).
Não se pode olvidar, em vias de remate, que a construção ideológica do
princípio da proibição do retrocesso social, na Alemanha, deu-se em um período
em que o país passava por uma instabilidade econômica e social por conta do pós-
guerra, em meio ao calor de discussões a respeito da legitimidade do Estado de
diminuir a oferta de benefícios sociais garantidos até então por ele (FREITAS e
GOMIDES, 2018).
O princípio da proibição do retrocesso social, nessa perspectiva, ao tempo
em que oferece segurança jurídica à sociedade, visa assegurar certa garantia aos
direitos já consolidados, vedando eventual mitigação de atividades do Estado em
objetos atinentes a direitos constitucionalmente assegurados.
Nessa linha, fortes em Canotilho, Leonardo Buissa Freitas e Débora
Barcelos Vieira Gomides ressaltam que o princípio da proibição do retrocesso
social funciona como uma arma contra a “evolução reacionária”, podendo ser
175

deduzido a partir de outros princípios constitucionais como o da segurança jurídica,


da dignidade da pessoa humana e da máxima eficácia dos direitos fundamentais,
consectários do Estado Democrático e Social de Direito (FREITAS e GOMIDES,
2018).
Discute-se, assim, qual seria o limite para vedação ao retrocesso,
considerando que não se pode sustentar que todo e qualquer direito previsto na
Constituição possa ter seu fornecimento assegurado pelo Estado, face as
limitações dos recursos públicos em contraste com as enormes necessidades de
uma sociedade altamente desigual como a brasileira.
Daí decorre a teoria do mínimo existencial, identificada como as condições
básicas exigidas para que os homens, mulheres e crianças possam usufruir do
catálogo de direitos fundamentais, que indicam os valores que norteiam cada
nação social politicamente organizada (DOTTA e MARQUES, 2017).
Ricardo Lobo Torres leciona que:

O mínimo existencial não tem dicção constitucional própria. Deve-


se procurá-lo na ideia de liberdade, nos princípios constitucionais da
dignidade humana, da igualdade, do devido processo legal e da livre
iniciativa, na Declaração dos Direitos Humanos e nas imunidades e
privilégios do cidadão. Só os direitos da pessoa humana, referidos a sua
existência em condições dignas, compõem o mínimo existencial. [...]
Se o mínimo existencial não tem conteúdo específico, segue-se
que abrange qualquer direito em seu núcleo essencial. Assim, há mínimo
existencial no direito tributário, financeiro, previdenciário, civil, penal,
internacional, cosmopolita, etc. [...]
Os direitos fundamentais sociais, que também compõem o quadro
do mínimo existencial, são os direitos sociais tocados pelos interesses
fundamentais e pela dignidade humana, e que se transformam em
condições da liberdade. […]
No Estado Democrático de Direito impõe-se a garantia do mínimo
existencial em sua dimensão máxima. A maximização do mínimo
existencial acarreta logicamente a minimização dos direitos sociais em
sua extensão, mas não em sua profundidade […] (TORRES, 2012).

O direito fundamental social à educação trata-se de uma parcela integrante


do mínimo existencial, dada a sua importância para a concreção da cidadania e da
vida digna, razão por que o legislador constituinte desenhou seu núcleo essencial
dando cores vivas ao dever do Estado para com a garantia da educação básica,
obrigatória e gratuita (artigo 208, CF/88), e com o ensino com padrão de qualidade
(artigo 206, CF/88).
Em vistas de dar concretude a esse núcleo essencial do direito à educação,
propositadamente o legislador constituinte alicerçou, como garantia fundamental,
um regime de financiamento da educação pautado pela vinculação de
176

financiamento mínimo obrigatório à evolução de receitas apuradas no respectivo


ano fiscal (artigo 212, CF/88).
Mesmo diante de recursos escassos, na linha do firmado no Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que dá vida ao princípio
da progressividade dos direitos sociais, o Estado deve evidenciar que despendeu
todos os esforços para utilizar os recursos disponíveis, prioritariamente, à
consecução das suas obrigações mínimas essenciais.
A toda evidência, tal cautela não foi adotada pelo legislador da EC n.
95/2016, conforme registram Élida Graziane Pinto e Salomão Barros Ximenes:

Ora, precisamente porque existem outras rotas de ajuste fiscal


menos gravosas à efetividade dos direitos fundamentais é que se pode
refutar a alegada inevitabilidade da EC95 e controlá-la como
inconstitucional, sobretudo no que se refere ao congelamento dos pisos
de custeio da saúde e da educação. [...]
As normas jurídicas brasileiras já ofereciam, ao tempo da
promulgação da EC95, instrumentos preciosos de promoção do
reequilíbrio das contas públicas, sem que estes implicassem — de
qualquer modo — constrangimento para o custeio mínimo dos direitos
fundamentais. […]
Tão controversa é a rota de ajuste fiscal seletivamente focada
apenas no controle das despesas primárias federais que, ao longo de
2017 e de 2018, a sociedade viu inúmeras iniciativas francamente
contrárias ao seu propalado horizonte de austeridade. A realidade vivida
pela população brasileira comprovou se tratar de mera falácia
argumentativa contra a aventada necessidade de um ajuste fiscal amplo,
mas nada isonômico e impessoal. Para que ninguém duvide do mau uso
da discricionariedade alocativa advinda da EC95, vale lembrar, por
exemplo, a majoração de renúncias fiscais federais, que somaram R$
354,7 bilhões em 2017, muito acima de todo o gasto da União em saúde,
educação e assistência social naquele ano (R$ 305,8 bilhões).
Além disso, destaque-se a reiteração de programas de
refinanciamento de débitos tributários para sonegadores contumazes, a
alocação superior a R$ 2,6 bilhões para os fundos eleitoral e partidário, o
abrandamento das exigências legais para adesão à repactuação de
dívidas dos entes subnacionais, entre outras medidas de explícito
fisiologismo fiscal, danosas ao financiamento do Estado (PINTO e
XIMENES, 2018).

Na mesma toada Fabio Konder Comparato e outros:

Não obstante a PEC 241/2016 incida apenas sobre as despesas


primárias e, dentre estas, abra espaços controvertidos de exceções
escolhidas aleatoriamente (eleições planejáveis, emendas impositivas e
capitalização de empresas estatais), seguem excluídas de quaisquer
restrições as despesas financeiras, as quais aguardam, até o presente
momento, a fixação dos limites de dívida consolidada e mobiliária da
União (COMPARATO, TORRES, PINTO e SARLET, 2016).
177

Registre, por fim, que a progressividade dos direitos sociais, para além de
garantia fundamental, bem demonstra o nível democrático vivido em determinados
momentos históricos pela sociedade brasileira.
É sabido que o regime de financiamento mínimo à educação, desde a
Constituição de 1934, apenas foi ressalvado, como em 2016, em períodos de
exceção, a exemplo das Constituições de 1937 (Estado Novo) e de 1967 (Ditadura
Civil-Militar) (PINTO e XIMENES, 2018).
Para Francisco Mata Machado Tavares e Pedro Vitor Garcia Ramos,
fazendo alusão à EC n. 95/2016, é incongruente um corte de gastos associado à
garantia da melhora do nível democrático, tendo em vista que tal política fiscal
contracionista irá reduzir níveis de educação e saúde, entre outros, e arrematam:

A aprovação da medida e sua simples entrada em vigor


comprometem o custeio dos direitos humanos e reduzem a margem de
influência dos cidadãos sobre as decisões dos governos, de modo que a
medida se enquadra na definição formulada por Colin Crouch (2004) para
pós-democracia: preserva-se uma institucionalidade formalmente
democrática, mas, à míngua de direitos e de meios para o exercício da
soberania popular, o regime perece em favor do primado de formas
mercantis, em particular das grandes corporações (TAVARES e RAMOS,
2018).

É neste cenário de baixo nível democrático, regressividade e retrocesso,


projetado até 2036, que figura a EC n. 95/2016, indo na contramão do fundamento
republicano de construção da cidadania e dos objetivos fundamentais de
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, de modo a reduzir as
desigualdades e promover o bem de todos.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A conquista de uma educação universal e de qualidade, como almejado pela


CF/88, demanda financiamento adequado, na perspectiva de aplicação do máximo
de recursos disponíveis (progressividade).
Tal quadro ganha cores na realidade brasileira, cujos índices de qualidade
da educação pública básica, como visto, apesar dos avanços das últimas décadas,
demandam atenção política, a qual passa, necessariamente, pela priorização
alocativa orçamentária.
178

Neste contexto, o princípio da progressividade possui por escopo garantir a


realização do direito fundamental à educação em sua máxima efetividade,
alinhando-se aos objetivos constitucionais do art. 3o. da CF/88, ao princípio da
justiça social (art. 170) e aos princípios que ilustram o direito à educação na CF/88
- a exemplo do padrão de qualidade (artigo 206) e planejamento educacional (artigo
214).
Todavia, com o advento do intitulado “Novo Regime Fiscal”, que suspendeu
a eficácia do art. 212 da CF/88, assegurando meramente a correção monetária a
partir do ano-base de 2017 até 2036, promoveu-se lesão à progressividade do
financiamento da educação, ofuscando parte elementar de seu núcleo essencial e
interrompendo o curso de desenvolvimento da qualidade do ensino público básico
no país.
A garantia fundamental de financiamento progressivo da educação,
conforme destacado, é requisito democrático essencial, posto que a educação de
qualidade possibilita a emancipação das pessoas e a concreção da cidadania.
Em outras palavras, “com ela, o indivíduo compreende o alcance de suas
liberdades, a forma de exercício de seus direitos e a importância de seus deveres,
permitindo a sua integração em uma democracia efetivamente participativa. Em
essência, educação é o passaporte para a cidadania” (GARCIA, 2004).
Neste quadro, espera-se que haja, com a maior brevidade possível, mesmo
que mediante a intervenção do Poder Judiciário em sede de controle de
constitucionalidade8, o resgate da garantia fundamental de financiamento
adequado (progressividade) do direito à educação, permitindo-se a sua máxima
efetividade, em vista da consecução de políticas públicas educacionais universais
e de qualidade, essenciais à formação de cidadãos emancipados em um ambiente
democrático.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Nelson Cardoso. Com a PEC 241/55 (EC 95) haverá prioridade para
cumprir as metas do PNE (2014-2024)? Revista Brasileira de Educação, Rio de
Janeiro, v. 22, n. 71, p. 1-25, 2017.

8 Ação direta de inconstitucionalidade n. 5658.


179

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:
12/08/2019.
BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Relatório Educação para Todos no
Brasil 2000-2015, junho de 2014, p. 1-126.
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http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/33571. Acesso em 10/01/2020.
BRASIL, Lei 13.249/15. Institui o Plano Plurianual da União para o período de
2016/2019, Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
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BRASIL, Lei 13.707/18. Dispõe sobre as diretrizes para a elaboração e execução
da Lei Orçamentária de 2019 e dá outras providências, Disponível em
http://www.planejamento.gov.br/assuntos/orcamento-1/orcamentos-
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BRASIL, Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm. Acesso em:
15/08/2019.
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182

NOVAS TECNOLOGIAS: INCLUSÃO E EXCLUSÃO DAS PESSOAS COM


DEFICIÊNCIA

Aletya Dahana Rollwagen1

RESUMO: O modelo social de deficiência, adotado pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência e pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, apresenta uma concepção de que a
deficiência ocorre quando há a obstrução da participação da pessoa na sociedade, em razão da
interação entre o impedimento que ela possui e as barreiras existentes. Nesse contexto, o objetivo
do presente artigo é analisar a relação entre as pessoas com deficiência e as novas tecnologias.
Por meio do método dedutivo e do procedimento monográfico, utilizando-se da pesquisa
documental bibliográfica constatou-se que a tecnologia pode contribuir para a superação das
barreiras, promovendo medidas de acessibilidade. Contudo, se o desenvolvimento tecnológico não
contar com a participação democrática das pessoas com deficiência, a tecnologia também pode
representar uma barreira, por não permitir a utilização por pessoas com deficiência, assim como
por reforçar concepções relacionados aos modelos médico e de prescidência, como a busca pela
normalização e práticas eugênicas.

Palavras-chave: tecnologia; pessoa com deficiência; modelo social; participação democrática.

ABSTRACT: The social model of disability, adopted by the Convention on the Rights of Persons
with Disabilities and the Statute of Persons with Disabilities, presents a concept that disability occurs
when there is an obstruction of the person's participation in society, due to the interaction between
the impediment that it has and the existing barriers. In this context, the objective of this article is to
analyze the relationship between persons with disabilities and the new technologies. Through the
deductive method and the monographic procedure, using bibliographic documentary research it was
found that technology can contribute to overcoming barriers, promoting accessibility measures.
However, if technological development does not count on the democratic participation of persons
with disabilities, technology can also represent a barrier, by not allowing the use by persons with
disabilities, as well as by reinforcing conceptions related to the medical and prescindential models,
like search for normalization and eugenic practices.

Keywords: technology; persons with disability; social model; democratic participation.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O avanço no desenvolvimento tecnológico nos últimos anos tem ocorrido


em uma velocidade surpreendente, modificando a forma como as pessoas vivem
e interagem com o ambiente social. A relações interpessoais e entre pessoas e
coisas tem sido redesenhada pelos avanços da tecnologia e o direito muitas vezes
não consegue regulamentar as novas situações que surgem nesse contexto.
Por outro lado, a legislação não apenas acompanha a sociedade, como
também busca promover mudanças sociais, como ocorre com a adoção do modelo
social de deficiência, em superação ao tradicional modelo médico e reabilitador.

1
Mestranda em Direitos Fundamentais e Democracia no programa de Mestrado Interinstitucional UNIBRASIL-UNIGUAÇU.
Graduada em Direito pelas Faculdades Integradas do Vale do Iguaçu - UNIGUAÇU (2018).
183

Diante desse cenário, o presente artigo tem o propósito de problematizar


a influência das novas tecnologias, como um todo, na inclusão das pessoas com
deficiência em igualdade de condições com as demais.
Para tanto, na primeira parte do artigo analisou-se as mudanças que
ocorreram no tocante ao tratamento social das pessoas com deficiência,
estabelecendo uma divisão em três modelos: prescidência, médico e social.
Na segunda parte, partindo do modelo social, demonstrou-se de que forma
o desenvolvimento tecnológico pode contribuir para a inclusão das pessoas com
deficiência, assim como pode promover e instigar a manutenção da exclusão
social, inclusive com retrocessos ao modelo médico e de prescindência.

2 O MODELO SOCIAL DE DEFINIÇÃO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Antes de analisar os potenciais efeitos que o desenvolvimento tecnológico


pode provocar em relação à inclusão da pessoa com deficiência, é preciso
compreender o atual conceito de pessoa com deficiência e, especialmente, a forma
como esse conceito foi historicamente construído.
As pessoas com deficiência nem sempre foram tratadas pela sociedade da
mesma maneira. Esse tratamento poderia ser tanto de aceitação, como de
extermínio ou abandono2. Contudo, em geral, a deficiência era valorada
negativamente, como uma perda de utilidade da pessoa para a sociedade3.
Apesar das variações existentes em diferentes sociedades, num primeiro
momento é possível identificar um modelo de tratamento caracterizado como
prescindência. O indivíduo que apresentasse qualquer tipo de limitação funcional
era considerado desnecessário para a sociedade, tornando-se comum a utilização

2 DICHER, Marilu; TREVISAM, Elisaide. A Jornada Histórica da Pessoa com Deficiência: Inclusão
como Exercício do Direito à Dignidade da Pessoa Humana. In: Direitos Fundamentais e
Democracia III: XXIII Congresso Nacional do CONPEDI, 2014, João Pessoa-PB. Florianópolis:
CONPEDI, 2014, p. 2. Disponível em:
<http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=572f88dee7e2502b>. Acesso em: 31 out. 2017.
3 FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão. A presunção de capacidade civil da pessoa

com deficiência na lei brasileira de inclusão. Rev. Direito e Desenvolvimento, v. 7, n. 1, p. 99 -


117, jun. 2017. Disponível em:
<https://periodicos.unipe.br/index.php/direitoedesenvolvimento/article/view/303>. Acesso em: 13
nov. 2017.
184

de práticas eugênicas e de isolamento social4 (submodelos eugênico e de


marginalização)5.
Nesse sentido, pode-se constatar que, nos primeiros grupos humanos, as
condições de vida não eram favoráveis à sobrevivência das pessoas com
deficiência. Nesse cenário, a sobrevivência do grupo era mais relevante que a vida
de seus membros, de forma que o abandono ou a morte não eram consideradas
imorais6.
Mesmo com o desenvolvimento da civilização, eram comuns as práticas de
eliminação das pessoas com deficiência. Em Esparta, se um recém-nascido fosse
considerado feio, disforme ou franzino seria levado ao Apothetai, um abismo, para
ser lançada para a morte. Além disso, as crianças com deficiência também eram
deixadas em locais em que pudessem ser encontradas, podendo sobreviver ou
não7. Entre os romanos, era permitida a prática de afogamento das crianças com
deformidades, pois a decisão sobre a vida ou a morte dos filhos cabia àquele que
exercia o patria potestas8.
Com o surgimento do Cristianismo, ainda durante o Império Romano, a
eliminação dos filhos nascidos com deficiência passou a ser combatida, com base
na ideia de caridade e amor entre a humanidade. A partir do século IV surgem os
primeiros hospitais de caridade para indigentes e deficientes9.
Na Idade Média o nascimento de um filho deficiente era visto como castigo
divino. Algumas pessoas com deficiência, como anões e corcundas, eram
ridicularizadas e serviam como diversão para a elite10.

4 Idem.
5 PALACIOS, Agustina; ROMAÑACH, Javier. El modelo de la diversidade: La Bioética y los
Derechos Humanos como herramientas para alcanzar la plena dignidad em la diversidad
funcional. Madrid : Ediciones Diversitas-AIES, 2006, p. 41.
6 DICHER, Marilu; TREVISAM, Elisaide. A Jornada Histórica da Pessoa com Deficiência: Inclusão

como Exercício do Direito à Dignidade da Pessoa Humana. In: Direitos Fundamentais e


Democracia III: XXIII Congresso Nacional do CONPEDI, 2014, João Pessoa-PB. Florianópolis:
CONPEDI, 2014, p. 3-4. Disponível em:
<http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=572f88dee7e2502b>. Acesso em: 31 out. 2017.
7 SILVA, Otto Marques da. A Epopéia Ignorada: A Pessoa Deficiente na História do Mundo de

Ontem e de Hoje. São Paulo: CEDAS, 1987, p. 86-87. Disponível em:


<https://issuu.com/amaurinolascosanchesjr/docs/-a-epopeia-ignorada-oto-marques-da->. Acesso
em: 13 nov. 2017.
8 DICHER, Marilu; TREVISAM, Elisaide. Op. cit., p. 7.
9 GUGEL, Maria Aparecida. A pessoa com deficiência e sua relação com a história da

humanidade. Disponível em <http://www.ampid.org.br/ampid/Artigos/PD_Historia.php#autor>.


Acesso em 31 out. 2017.
10 Idem.
185

Já na Idade Moderna, marcada pelo humanismo, desenvolveram-se


métodos de comunicação e ensino para pessoas surdas11.O Renascimento, que
marcou a época e durou até o século XVI, trouxe transformações artísticas e
científicas, dentre as quais a descoberta de tratamentos para algumas
deficiências12.
No entanto, até o século XVIII a deficiência ainda era associada ao
misticismo e ocultismo. De acordo com a concepção religiosa, o homem fora feito
à imagem e semelhança de Deus, o que contribuiu para a exclusão das pessoas
com deficiência, já que estas não representavam a perfeição. A condição da pessoa
com deficiência era considerada imutável13.
Ao contrário do modelo de prescindência, que atribuía a deficiência a
causas divinas, religiosas, o modelo médico passou a tratar as causas da
deficiência como científicas14.
No século XIX, diante da necessidade de reabilitação dos soldados que
haviam sido mutilados em guerras, para que exercessem, ao menos, atividades
administrativas, percebeu-se que a pessoa com deficiência não precisava somente
de hospital e abrigo. Desenvolveu-se práticas de atenção especializada, a partir do
estudo de cada tipo de deficiência15.
No século XX se assenta a constatação da necessidade de participação
ativa das pessoas com deficiência na sociedade, o que fomentou a realização de
congressos, censos em prol da resolução de problemas, e o aperfeiçoamento de
instrumentos utilizados pelas pessoas com deficiência (cadeiras de rodas,
bengalas, sistemas de ensino)16.

11 Idem.
12 DICHER, Marilu; TREVISAM, Elisaide. A Jornada Histórica da Pessoa com Deficiência: Inclusão
como Exercício do Direito à Dignidade da Pessoa Humana. In: Direitos Fundamentais e
Democracia III: XXIII Congresso Nacional do CONPEDI, 2014, João Pessoa-PB. Florianópolis:
CONPEDI, 2014, p. 10. Disponível em:
<http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=572f88dee7e2502b>. Acesso em: 31 out. 2017.
13 Ibidem, p.16.
14 PALACIOS, Agustina; ROMAÑACH, Javier. El modelo de la diversidade: La Bioética y los
Derechos Humanos como herramientas para alcanzar la plena dignidad em la diversidad
funcional. Madrid : Ediciones Diversitas-AIES, 2006, p. 44.
15 GUGEL, Maria Aparecida. Op. cit.
16 GUGEL, Maria Aparecida. A pessoa com deficiência e sua relação com a história da

humanidade. Disponível em: <http://www.ampid.org.br/ampid/Artigos/PD_Historia.php#autor>.


Acesso em: 31 out. 2017.
186

No modelo médico, a pessoa com deficiência somente teria valor para a


sociedade por meio da reabilitação, da normalização17. Contudo, a simples solução
médica situa o problema como algo individual, retirando do Estado e da sociedade
a obrigação de eliminar as barreiras que promovem a exclusão. Nessa perspectiva,
a pessoa com deficiência é objeto de práticas assistencialistas e de caridade, não
sendo considerada verdadeiramente como sujeito de direitos e deveres 18.
A Segunda Guerra Mundial representou um retrocesso no que se refere
aos direitos das pessoas com deficiência. No Holocausto, além dos judeus e
ciganos, as pessoas com deficiência e doenças incuráveis também eram
eliminadas, por serem consideradas indignas para sobreviver19. Até mesmo os que
pudessem ter carga hereditária para a deficiência sofriam intervenção através da
esterilização, em prol da pureza da raça. O desfecho da guerra foi igualmente
devastador, pois as bombas nucleares lançadas deixaram sequelas também na
população civil20.
Luiz Alberto David Araujo afirma que a ocorrência de duas guerras
mundiais foi um divisor de águas, por aumentar o número de pessoas com
deficiência, colocando em evidência a necessidade de proteção estatal. Contudo,
o autor ressalta que o efeito dessas guerras no Brasil não foi o mesmo que no velho
continente, pois as causas da deficiência em terras brasileiras são outras, como
acidentes de trânsito, precariedade de higiene e carência alimentar21.
O modelo social de deficiência teve origem a partir de estudos
desenvolvidos a partir da década de 1970, em especial nos Estados Unidos22, com
o movimento de vida independente. Esse movimento teve origem com o ingresso

17 PALACIOS, Agustina; ROMAÑACH, Javier. El modelo de la diversidade: La Bioética y los


Derechos Humanos como herramientas para alcanzar la plena dignidad em la diversidad
funcional. Madrid : Ediciones Diversitas-AIES, 2006, p. 44
18 FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão. A presunção de capacidade civil da pessoa

com deficiência na lei brasileira de inclusão. Rev. Direito e Desenvolvimento, v. 7, n. 1, p. 99 -


117, jun. 2017. Disponível em:
<https://periodicos.unipe.br/index.php/direitoedesenvolvimento/article/view/303>. Acesso em: 13
nov. 2017.
19 DICHER, Marilu; TREVISAM, Elisaide. A Jornada Histórica da Pessoa com Deficiência: Inclusão

como Exercício do Direito à Dignidade da Pessoa Humana. In: Direitos Fundamentais e


Democracia III: XXIII Congresso Nacional do CONPEDI, 2014, João Pessoa-PB. Florianópolis:
CONPEDI, 2014, p. 14-15. Disponível em:
<http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=572f88dee7e2502b>. Acesso em 31 out. 2017.
20 GUGEL, Maria Aparecida. Op. cit.
21 ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas com deficiência. 4. ed.

rev. ampl. e atual. Brasília: CORDE, 2011, p. 7. Disponível em:


<http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/a-protecao-
constitucional-das-pessoas-com-deficiencia_0.pdf>. Acesso em: 09 nov. 2017.
22
FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão. Op. cit.
187

de Ed Roberts na Universidade da Califórnia. Ele e outros alunos com deficiência


se basearam em suas experiências para estabelecer o que necessitavam para viver
de forma independente. A concepção de vida independente saiu do ambiente
acadêmico para a comunidade, seguindo os mesmos princípios: direção por
pessoas com deficiência, tratamento dos problemas como questões sociais,
visando a integração com a comunidade23.
Assim, o modelo social seguiu a filosofia de vida independente, e passou a
considerar a deficiência como uma forma específica de opressão social 24. Esse
modelo distingue a limitação do corpo ou da mente, que é um atributo intrínseco à
pessoa, do conceito de deficiência, que envolve as barreiras que excluem a pessoa
que esteja fora dos padrões de normalidade socialmente estabelecidos. A mudança
de perspectiva acarreta o reconhecimento da responsabilidade da sociedade e do
Estado na superação das restrições presentes no meio, como barreiras
econômicas, culturais, arquitetônicas e atitudinais, pois a inclusão não acontece
somente por meio da cura da deficiência25.
No Brasil, as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas por conquistas
expressivas de direitos humanos e civis, incluindo também a temática da pessoa
com deficiência. Porém, somente no final do ano 2000 a criação de um Estatuto da
Pessoa com Deficiência passou a ser discutida pelo Congresso Nacional26.
O ordenamento jurídico brasileiro historicamente categorizava a pessoa
com deficiência por meio de critérios médicos, com uma classificação por
tipos27.Com a aprovação da Convenção Sobre os Direitos da Pessoa com
Deficiência, adotada pela 61ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas em
2006, com status de emenda constitucional (art. 5º, §3º, da Constituição Federal),
foi estabelecido um novo conceito de pessoa com deficiência, cujo núcleo envolve

23 PALACIOS, Agustina; ROMAÑACH, Javier. El modelo de la diversidade: La Bioética y los


Derechos Humanos como herramientas para alcanzar la plena dignidad em la diversidad
funcional. Madrid : Ediciones Diversitas-AIES, 2006, p. 52-55.
24 Ibidem, p. 59.
25 FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão. A presunção de capacidade civil da pessoa

com deficiência na lei brasileira de inclusão. Rev. Direito e Desenvolvimento, v. 7, n. 1, p. 99 -


117, jun. 2017. Disponível em:
<https://periodicos.unipe.br/index.php/direitoedesenvolvimento/article/view/303>. Acesso em: 13
nov. 2017.
26 FAYAN, Regiane Alves Costa; SETUBAL, Joyce Marquezin (Orgs.). Lei Brasileira de Inclusão

da Pessoa com Deficiência – Comentada. Campinas: Fundação FEAC, 2016, p. 7.


27 FEMINELLA, Anna Paula; LOPES, Laís de Figueirêdo. Disposições Gerais/ Da igualdade

e da não Discriminação e Cadastro-inclusão. In: FAYAN, Regiane Alves Costa; SETUBAL, Joyce
Marquezin (Orgs.). Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Comentada.
Campinas: Fundação FEAC, 2016, p. 16.
188

a interação entre impedimentos pessoais e diversas barreiras sociais, resultando


na obstrução de sua participação plena na sociedade28. Deficiência, portanto, não
é algo intrínseco à pessoa, mas sim está presente na sociedade que impõe
obstáculos à plena participação dessa pessoa em igualdade de condições com as
demais29.
Com isso, o projeto que estava em tramitação no Senado Federal ficou em
desacordo com a previsão da Convenção, tornando necessária a renovação dos
debates, reuniões, audiência públicas e seminários que culminaram na aprovação
da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/15)30.
O modelo social foi incorporado na ordem infraconstitucional pela previsão
do artigo 2º da Lei Brasileira de Inclusão:

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem


impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir
sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições
com as demais pessoas31.

Diante da alteração do conceito de pessoa com deficiência, nem todas as


pessoas anteriormente incluídas nele permaneceram abarcadas pela legislação.
Contudo, essa possibilidade não representa retrocesso na proteção dos direitos
das pessoas com deficiência32.
Para melhor compreensão a respeito das diferenças entre o modelo
médico e o modelo social de deficiência, deve-se ressaltar que o modelo
médico/reabilitador trata a deficiência como um problema individual: a pessoa que
tem limitações deve se normalizar para poder ser integrada na sociedade e
exercer seus direitos em igualdade de condições. São reconhecidas a
personalidade jurídica e a dimensão estática da capacidade jurídica das pessoas

28 MAIA, Maurício. Novo Conceito de Pessoa com Deficiência e Proibição do Retrocesso. Revista
da AGU, ano XII, n. 37, p. 289-306, Brasília-DF, jul./set. 2013. Disponível em:
<www.agu.gov.br/page/download/index/id/17265873>. Acesso em: 13 set. 2017.
29 DICHER, Marilu; TREVISAM, Elisaide. A Jornada Histórica da Pessoa com Deficiência: Inclusão

como Exercício do Direito à Dignidade da Pessoa Humana. In: Direitos Fundamentais e


Democracia III: XXIII Congresso Nacional do CONPEDI, 2014, João Pessoa-PB. Florianópolis:
CONPEDI, 2014, p. 20. Disponível em:
<http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=572f88dee7e2502b>. Acesso em 31 out. 2017.
30 FAYAN, Regiane Alves Costa; SETUBAL, Joyce Marquezin (Orgs.). Lei Brasileira de Inclusão

da Pessoa com Deficiência – Comentada. Campinas: Fundação FEAC, 2016, p. 7.


31 BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da

Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm>. Acesso em: 16 jan.
2020.
32 MAIA, Maurício. Op. cit.
189

com deficiência, bem como é possível justificar as restrições à dimensão dinâmica


(capacidade de exercício de direitos) para algumas pessoas (em especial aquelas
que possuem deficiências psíquicas, mentais e sensoriais), conferindo a um
terceiro o direito de substituir a pessoa com deficiência nas decisões e no
exercício de direitos. Para esse modelo, a limitação da capacidade jurídica das
pessoas com deficiência é algo natural, inevitável, destinada à proteção dessas
pessoas, e mesmo pessoas com discernimento preservado encontrarão
dificuldades para exercer seus direitos, pois precisam se adaptar ao mundo
desenhado por e para cidadãos “normais”33.
Já o modelo social transfere o problema da deficiência do indivíduo para a
sociedade: são as condições sociais que causam a deficiência. Desse modo, as
limitações sofridas pelas pessoas com deficiência não são naturais, nem
inevitáveis ou toleráveis, pois são fruto de construção social, de relações de poder
que violam a dignidade, e por isso cabe ao Estado e à sociedade acabar com a
exclusão34.
A partir da compreensão desse conceito de pessoa com deficiência, passa-
se à análise da influência que a tecnologia exerce em relação a caracterização e a
inclusão da pessoa com deficiência.

3 TECNOLOGIA: INCLUSÃO OU EXCLUSÃO DAS PESSOAS COM


DEFICIÊNCIA?

A forma como as pessoas interagem com o mundo à sua volta muda,


rapidamente, em razão dos avanços da tecnologia. A internet das coisas, por
exemplo, tem o condão de facilitar o cotidiano, por meio de soluções funcionais
para os processos diários35.
No contexto da globalização e avanço das comunicações, especialmente
em razão da tecnologia da informação, a propagação de conhecimentos por meio
da internet promoveu uma evolução que tanto beneficia indústrias e a população

33 GÓMEZ, Patricia Cueca. La capacidad jurídica de las personas con discapacidad: el art. 12 de
la Convención de la ONU y su impacto en el ordenamento jurídico español. Derechos y
Liberdades, n 24, época II, enero 2011, p. 221-257.
34 Idem.
35
MAGRANI, Eduardo. A internet das coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018, p. 19-20.
190

em geral como cria um cenário de incertezas sobre suas consequências36.


A proteção dos dados íntimos da vida do indivíduo que utiliza os
dispositivos interconectados, em razão da possibilidade de armazenamento,
análise e compartilhamento desses dados37 é uma das preocupações no atual
cenário jurídico.
Embora tecnologia e inovação sejam termos atualmente associados ao
ambiente digital, a tecnologia também deve ser compreendida como “o conjunto
dos instrumentos, métodos e técnicas que permitem o aproveitamento prático do
conhecimento, voltado para as necessidades humanas”38. É nesse sentido, mais
amplo que aquele estritamente associado ao ambiente digital, que a tecnologia
possui relação com o atual conceito de deficiência, na medida em que permite a
superação de barreiras que dificultam a inclusão social.
Com o desenvolvimento e a ampliação da implementação de tecnologias
de inteligência artificial, os efeitos do desenvolvimento tecnológico deixaram de
poder ser compreendidos por um vetor meramente quantitativo. As novas
tecnologias passaram a realizar tarefas que antes eram consideradas como
prerrogativas humanas39.
Sob a perspectiva do modelo social de deficiência, no qual não é apenas a
condição física ou mental da pessoa que determina sua deficiência, mas sim os
obstáculos impostos pela sociedade a sua plena participação em igualdade de
condições40, a acessibilidade ganha especial relevância.
As novas tecnologias, como a inteligência artificial podem contribuir para
novos avanços em acessibilidade, por exemplo, por meio da identificação de
palavras, sinais de rua e mesmo expressões faciais41.
Dispositivos digitais permitem uma vida independente para algumas
pessoas com deficiência, como, por exemplo, a utilização de Headmouse e
Teclado Virtual, que permite a utilização por pessoas com deficiência física ao

36
REZER, Morgana Mezalira; FORTES, Vinícius Borges. A internet das coisas na sociedade de risco: uma análise a partir
do direito à privacidade. In: XXVII Congresso Nacional do CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Direito, 2018, Porto Alegre-RS. Anais do XXVII Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: CONPEDI, 2018.
37
Idem.
38
MAGRANI, Eduardo. A internet das coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018, p. 28-30.
39
DONEDA, Danilo Cesar Maganhoto. et. al. Considerações iniciais sobre inteligência artificial, ética e autonomia pessoal.
Revista Pensar, Fortaleza, v. 23, n. 4, p. 1-17, out/dez. 2018.
40DICHER, Marilu; TREVISAM, Elisaide. A Jornada Histórica da Pessoa com Deficiência: Inclusão
como Exercício do Direito à Dignidade da Pessoa Humana. In: Direitos Fundamentais e
Democracia III: XXIII Congresso Nacional do CONPEDI, 2014, João Pessoa-PB. Florianópolis:
CONPEDI, 2014, p. 20. Disponível em:
<http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=572f88dee7e2502b>. Acesso em 31 out. 2017.
41
DONEDA, Danilo Cesar Maganhoto. et. al. Op. cit.
191

interpretar gestos faciais para realizar funções do mouse e digitação, e o software


“Ribená”, que traduz textos em português para LIBRAS42.
Ainda, merecem destaque o software “Magic”, que permite ampliar e
configurar a exibição do conteúdo na tela do computador, inclusive com a
vocalização dos textos, o “Virtual Vision”, que possibilita a utilização de recursos
do Windows por pessoas com deficiência visual e o software “Easy Voice”, voltado
às pessoas com dificuldade de comunicação43.
Nesse aspecto, o Estatuto da Pessoa com Deficiência conceitua:

Art. 3º Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se: [...] III -


tecnologia assistiva ou ajuda técnica: produtos, equipamentos,
dispositivos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que
objetivem promover a funcionalidade, relacionada à atividade e à
participação da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida,
visando à sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão
social;

A preocupação com a promoção da acessibilidade não surgiu apenas com


a adoção do modelo social de deficiência. A Lei nº 10.098/2000, em seu art. 21,
já estabelecia o fomento à investigação científica com a finalidade de tratamento
e prevenção de deficiências, ao desenvolvimento tecnológico para a produção de
ajudas técnicas e à qualificação de profissionais em acessibilidade44.
Contudo, não é apenas a maneira não habitual como funcionam os órgãos
e os corpos das pessoas, que determina quem é pessoa com deficiência, mas a
discriminação:

Así, por ejemplo, una persona miope tiene ojos que funcionan de otra
manera y por lo tanto tiene una diversidad funcional, pero al existir
soluciones socialmente extendidas como las gafas, no sufre ninguna
discriminación por su diferencia y por lo tanto no formará parte del
colectivo definido como el de mujeres y hombres con diversidad
funcional45.

A sociedade se constrói a partir daquilo que é ensinada a considerar

42
MOURA, Ricardo Damasceno Moura; CONRADO, Mônica Prates. Diálogos Interculturais: variações do conceito de
diversidade à inclusão da pessoa com deficiência através de dispositivos digitais. Revista Direitos Fundamentais &
Democracia, v. 22, n. 3, p. 253-271, set./dez. 2017, p. 262-263. Disponível em:
<https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/984>. Acesso em 16 jan. 2020.
43
MOURA, Ricardo Damasceno Moura; CONRADO, Mônica Prates. Diálogos Interculturais: variações do conceito de
diversidade à inclusão da pessoa com deficiência através de dispositivos digitais. Revista Direitos Fundamentais &
Democracia, v. 22, n. 3, p. 253-271, set./dez. 2017, p. 263. Disponível em: <
https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/984>. Acesso em 16 jan. 2020.
44
KAPITANGO-A-SAMBA, Kilwangy Kya. Tecnologia Assistiva como Direito na Convenção da ONU e no Estatuto Brasileiro
da Pessoa com Deficiência. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.). Direito das Pessoas com Deficiência Psíquica e
Intelectual nas Relações Privadas: Convenção Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e Lei Brasileira de Inclusão.
2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2020, p. 986.
45
PALACIOS, Agustina; ROMAÑACH, Javier. El modelo de la diversidade: La Bioética y los Derechos Humanos como
herramientas para alcanzar la plena dignidad em la diversidad funcional. Madrid : Ediciones Diversitas-AIES, 2006, p. 35.
192

normal, e o conceito de normalidade pode variar com o tempo46. Dessa forma, as


novas tecnologias podem auxiliar na superação das barreiras socialmente
impostas (discriminação) à inclusão daqueles que possuem impedimentos de
longo prazo, na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas,
influindo no conjunto de pessoas que atualmente são consideradas pessoas com
deficiência.
Por outro lado, a implementação da tecnologia em atividades cotidianas
enseja questionamentos a respeito da possibilidade de utilização pelas pessoas
com deficiência. Diante do disposto no Estatuto da Pessoa com Deficiência, em
relação à acessibilidade, às pessoas com deficiência deve ser garantia a
possibilidade de utilizar, com segurança e autonomia, serviços e sistemas, ainda
que informatizados47.
O acesso primário, quando se refere ao uso das novas tecnologias, pode
ser entendido como o uso do equipamento (ex: computador) que dá acesso à
internet. Nesse aspecto, para cada tipo de deficiência poderá haver uma
tecnologia assistiva para adaptação física, de hardware ou software de
acessibilidade. Já o acesso secundário é o acesso à rede propriamente dita, a
acessibilidade para a navegação, que pode ocorrer com meio de adaptações das
páginas da internet, por configurações e layouts, exercendo o papel de tecnologia
assistiva48.
Em consonância com o Estatuto, a Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da
Internet) elenca o acesso à internet como essencial ao exercício da cidadania e
garante ao usuário o direito à acessibilidade (art. 7º, XII)49.
Nesse sentido, na seara jurídica, percebe-se a ocorrência de uma
informatização dos processos, de acordo com a Lei de Informatização do
Processo Judicial (Lei nº 11.419/2006)50.
A virtualização do processo judicial teve início com a aceitação de
radiogramas e telegramas para impetração de mandado de segurança (art. 4º da
Lei nº 1.522/1951), e como meio de prova (art. 374 do Código de Processo Civil

46
Ibidem, p. 109.
47
ARAÚJO, Luiz Alberto David; SALDANHA, Paloma Mendes. Processo Judicial Eletrônico e o Estatuto da Pessoa com
Deficiência: novidades, ilegalidades e inconstitucionalidades. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, v. 22, n. 1,
p. 80-101, jan./abr. 2017, p. 82. Disponível em:
<https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/850>. Acesso em 16 jan. 2020.
48
Ibidem, p. 88-89.
49
BRASIL. Lei nº 12.965/2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em 06 fev. 2020.
50
ARAÚJO, Luiz Alberto David; SALDANHA, Paloma Mendes. Op. cit., p. 81.
193

de 1973). O sistema de assinatura eletrônica trazido para o Brasil pela Medida


Provisória (2.200/2001) permitiu a informatização do Poder Judiciário. Diversos
sistemas foram criados e aperfeiçoados, porém demonstrando pouca
preocupação em relação à utilização desses sistemas pelas pessoas com
deficiência51.
A Resolução nº 185/2013, do Conselho Nacional de Justiça, adotou o PJe
(Processo Judicial eletrônico) como o sistema a ser utilizado pelos órgãos do
Poder Judiciário. A referida resolução, ao tratar da acessibilidade do sistema às
pessoas com deficiência, apenas determinou aos órgãos providenciar auxílio
técnico. Tal medida não é inclusiva, pois mantém a dependência do usuário com
deficiência de um auxiliar técnico presencial. Além disso, o sistema “não permite
e nem possui compatibilidade com softwares que permitem criar textos em Braille,
conversores de voz em texto e conversores de texto em áudio”52.
Apenas este exemplo é suficiente para demonstrar que, apesar do
potencial inclusivo das novas tecnologias, elas também podem provocar a
exclusão das pessoas com deficiência, quando são pensadas e desenvolvidas
sem considerar todos os potenciais usuários.
A ausência de inclusão no espaço virtual prejudica a possibilidade de as
pessoas com deficiência contribuírem, democraticamente, para a identificação de
das barreiras digitais53.
Agustina Palacios e Javier Romañach apontam que, na Espanha, em razão
do apego ao modelo médico/reabilitar, o modelo da vida independente e o modelo
social estão distantes de alcançar uma implantação social satisfatória 54.
No Brasil, a situação não é diferente. O modelo médico foi adotado pela
Organização Mundial de Saúde (OMS), a qual publicou, em 1980, a Classificação
Internacional de Impedimentos, Deficiências e Incapacidades (CIDD) sendo que
esta classificação inspirou o Decreto nº 3.298/1999 e o Decreto nº 5.296/2004, que

51
Ibidem, p. 85-86.
52
ARAÚJO, Luiz Alberto David; SALDANHA, Paloma Mendes. Processo Judicial Eletrônico e o Estatuto da Pessoa com
Deficiência: novidades, ilegalidades e inconstitucionalidades. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, v. 22, n. 1,
p. 80-101, jan./abr. 2017, p. 90-91. Disponível em:
<https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/850>. Acesso em 16 jan. 2020.
53
MOURA, Ricardo Damasceno Moura; CONRADO, Mônica Prates. Diálogos Interculturais: variações do conceito de
diversidade à inclusão da pessoa com deficiência através de dispositivos digitais. Revista Direitos Fundamentais &
Democracia, v. 22, n. 3, p. 253-271, set./dez. 2017, p. 255. Disponível em: <
https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/984>. Acesso em 16 jan. 2020.
54
PALACIOS, Agustina; ROMAÑACH, Javier. El modelo de la diversidade: La Bioética y los Derechos Humanos como
herramientas para alcanzar la plena dignidad em la diversidad funcional. Madrid : Ediciones Diversitas-AIES, 2006, p. 65.
194

tratam da deficiência em âmbito nacional55, com critérios utilizados até o presente


momento para a concessão de isenções tributárias, por exemplo56.
Nesse contexto, a construção de uma cidadania digital para pessoas com
deficiência encontra óbice da incompatibilidade entre o discurso teórico e o discurso
prático57.
A sociedade, de maneira gradual, tem aceitado que a diversidade é
inerente ao ser humano, em especial porque, com o envelhecimento da população,
a necessidade de enfrentar limitações de longo prazo pode afetar um grande
número de pessoas58.
Apesar disso, ainda existe uma concepção de normalidade ideologizada,
que promove um “engessamento da natureza, da mente e do corpo humano” em
um modelo único. A crença no poder da ciência faz com que essa concepção se
mantenha, sob uma promessa de desenvolvimento da biotecnologia voltada ao
incremento das “possibilidades de cura, de reparo, de adestramento” 59

Mesmo com a superação da concepção biomédica de deficiência, ocorrida


nos anos 70, persiste uma perspectiva típica da modernidade, consistente na busca
pela reabilitação, em razão da “supremacia da ditadura do ideal de normalidade” 60
A classificação médica de patologias e diferenças funcionais é útil e tem
sentido no âmbito médico, por permitir um melhor conhecimento do tratamento. O
problema é o uso indevido dessa concepção médica no desenho de políticas e
ações sociais, que passam a buscar soluções pontuais. A sociedade acaba
adotando uma atitude passiva em relação à discriminação, aguardando uma cura,
que não chega, em vez de lutar pela igualdade de direitos e oportunidades para as
pessoas com deficiência61.
Nesse aspecto, o desenvolvimento de tecnologias genéticas levanta
discussões sobre a possibilidade do retorno da eugenia na sociedade atual, pela
escolha e manipulação de fetos que possuem características não desejáveis. O

55
FEMINELLA, Anna Paula; LOPES, Laís de Figueirêdo. Disposições Gerais/ Da igualdade e da não Discriminação e
Cadastro-inclusão. In: FAYAN, Regiane Alves Costa; SETUBAL, Joyce Marquezin (Orgs.). Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência – Comentada. Campinas: Fundação FEAC, 2016, p. 16-17.
56
Vide art. 1º da Lei nº 8.989/1995 (IPI), art. 72 da Lei nº 8.383/1991 (IOF) e art. 6º da Lei nº 7.713/1988 (IRPF).
57
MOURA, Ricardo Damasceno Moura; CONRADO, Mônica Prates. Op. cit., p. 259.
58
PALACIOS, Agustina; ROMAÑACH, Javier. El modelo de la diversidade: La Bioética y los Derechos Humanos como
herramientas para alcanzar la plena dignidad em la diversidad funcional. Madrid : Ediciones Diversitas-AIES, 2006, p. 29.
59
SALES, Gabrielle Bezerra; SARLET, Ingo Wolfgang. A igualdade na Constituição Federal de 1988: um ensaio acerca do
sistema normativo brasileiro face à Convenção Internacional e à Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei
13.146/2015). In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.). Direito das Pessoas com Deficiência Psíquica e Intelectual
nas Relações Privadas: Convenção Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. 2. ed. rev. e
ampl. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2020, p. 197.
60
Ibidem, p. 215.
61
PALACIOS, Agustina; ROMAÑACH, Javier. Op. cit., p. 118.
195

temor é ressaltado pelos discursos de pesquisadores da medicina, da genética e


da bioética, assim como pela legislação de alguns países que, apesar de proibirem
o aborto, o permitem quando se trata de filho com deficiência62.
Nesse cenário, embora o modelo social seja adotado nas leis, tanto o
modelo médico/reabilitar, como o modelo da prescindência permanecem
presentes. O modelo médico prevalece no tratamento judicial e político-social das
pessoas com deficiência. No âmbito da bioética, os modelos médico e de
prescindência se misturam (busca da cura e eugenia)63.
Diante do contexto de inclusão e exclusão provocado pelo
desenvolvimento tecnológico, as pessoas consideradas diferentes, que não
dominam e não tem acesso à nova dimensão social (o ambiente virtual), acabam
tendo suas identidades silenciadas, correndo o risco de ter seus direitos
fundamentais negados64.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo demonstrou que as pessoas com deficiência já foram


socialmente tratadas de diferentes formas: num primeiro momento eram
consideradas desnecessárias, eliminadas e abandonadas; depois percebeu-se a
necessidade de inclusão dessas pessoas na sociedade por meio da reabilitação e
tratamento médico; por fim, compreendeu-se que a deficiência decorre não apenas
da condição física ou psíquica da pessoa, mas de como a sociedade, ao
desconsiderar as diferenças, impõe barreiras àqueles que não se enquadram num
padrão de normalidade.
A tecnologia, em um conceito amplo, compreende métodos e técnicas
desenvolvidos a partir de necessidades humanas. Já o atual conceito de pessoa
com deficiência, é composto por (1) um impedimento de longo prazo, (2) barreiras
socialmente estabelecidas, e (3) a obstrução à participação plena e efetiva na
sociedade como resultado da interação entre o impedimento e as barreiras. Ao
relacionar esses conceitos, percebe-se que o desenvolvimento tecnológico pode

62
Ibidem, p. 89-90.
63
PALACIOS, Agustina; ROMAÑACH, Javier. El modelo de la diversidade: La Bioética y los Derechos Humanos como
herramientas para alcanzar la plena dignidad em la diversidad funcional. Madrid : Ediciones Diversitas-AIES, 2006, p. 96.
64
MOURA, Ricardo Damasceno Moura; CONRADO, Mônica Prates. Diálogos Interculturais: variações do conceito de
diversidade à inclusão da pessoa com deficiência através de dispositivos digitais. Revista Direitos Fundamentais &
Democracia, v. 22, n. 3, p. 253-271, set./dez. 2017, p. 259. Disponível em: <
https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/984>. Acesso em 16 jan. 2020.
196

auxiliar na superação dessas barreiras, promovendo a acessibilidade, tanto em


ambiente físico como no meio virtual.
Com o tempo e a ampliação do acesso à tecnologia necessária, algumas
pessoas que atualmente são consideradas pessoas com deficiência podem
inclusive deixar de ser assim categorizadas, em razão de tornar-se possível sua
participação em sociedade de forma independente, em condições de igualdade
com as demais.
O desenvolvimento tecnológico, conforme demonstrado, acaba
reformulando e modernizando o processo de comunicação como um todo,
permitindo às pessoas com deficiência o acesso a informações que
tradicionalmente não seriam acessíveis, como, por exemplo, a identificação de
palavras, sinais de ruas e conteúdos digitais para pessoas com deficiência visual.
No entanto, em um mundo cada vez mais tecnológico e digital, nem todos
os dispositivos, softwares, sites e sistemas são desenvolvidos pensando na
utilização por pessoas com deficiência, de forma que se mantém a dependência
dessas pessoas do auxílio de terceiros.
Além do problema de ausência de acessibilidade, o potencial de
desenvolvimento tecnológico pode fazer com que a pessoa com deficiência, e a
sociedade em geral, perca o interesse em combater a discriminação e promover a
igualdade de oportunidade, acreditando que a ciência desenvolverá uma cura em
breve. Ainda, verifica-se existir um risco concreto de retorno de um pensamento
eugênico, de eliminação das características consideradas indesejáveis, o que
representaria um retorno ao modelo da prescindência.
Assim, percebe-se que o desenvolvimento tecnológico tanto pode
contribuir como pode representar uma barreira à inclusão das pessoas com
deficiência, o que reforça a importância da garantia de acessibilidade, inclusive no
ambiente virtual, a fim de que essas pessoas possam participar, de forma
independente e democrática, dos debates sobre assuntos que afetam suas vidas,
a exemplo daqueles relacionados à bioética.

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do Mundo de Ontem e de Hoje. São Paulo: CEDAS, 1987. Disponível em:
<https://issuu.com/amaurinolascosanchesjr/docs/-a-epopeia-ignorada-oto-
marques-da>. Acesso em: 13 nov. 2017.
199

O CARÁTER ESSENCIAL DAS INSITUIÇÕES PARA A DEMOCRACIA1

Tairini Passarini2

RESUMO: A democracia pode ser definida como um sistema político onde existe igualdade política
entre todos os cidadãos, de maneira que seja um mecanismo de tomada de decisão obrigatória de
todos os indivíduos. Para que as garantias da democracia sejam efetivadas, são necessárias as
instituições, garantindo o caráter transitório do poder político e a realização de princípios adotados
pela sociedade como meios para que seja atingido o estado de bem-estar social. O enfraquecimento
e desmoralização das instituições, assim como o conflito constitucional, são extremamente danosos
para a sociedade e a própria democracia, pelo o que deve ser garantida a solidez das instituições
para que seja extirpada essa visão deturpada muitas vezes criada pela sociedade onde as
instituições são colocadas como vilãs, quando em verdade garantem a democracia e a efetivação
dos direitos e bem-estar social.

Palavras-chave: instituições, direitos fundamentais, democracia, garantias, bem-estar social.

ABSTRACT: Democracy can be defined as a political system where there is political equality among
all citizens, so that it is a compulsory decision-making mechanism for all individuals. For the
guarantees of democracy to be fulfilled, institutions are necessary, guaranteeing the transitory
character of political power and the realization of principles adopted by society as means to achieve
the welfare state. The weakening and demoralization of institutions, as well as constitutional conflict,
are extremely damaging to society and democracy itself, so the soundness of institutions must be
guaranteed to eradicate this often distorted view of society where institutions are posed as evil, when
in fact they guarantee democracy and the realization of rights and the welfare state.

Keywords: institutions, fundamental rights, democracy, guarantees, welfare state.

1 INTRODUÇÃO

Aventa-se que o caráter essencial da democracia não é questionado de


maneira tão veemente quanto a essencialidade das instituições, sendo aceito pela
maior parte da população que a democracia é o melhor regime a ser adotado,
porém ignorando-se que as garantias e direitos estabelecidos em uma Constituição
democrática necessitam de instituições para que sejam garantidos.
As instituições são construídas com base nos objetivos buscados pela
sociedade, visando garantir e efetivar os direitos da melhor maneira possível a fim
de que os cidadãos, dotados de capacidade plena, possam buscar seus objetivos
pessoais e coletivos como sociedade. Devem portanto serem formadas de maneira
adequada já no início do processo de democratização, e então solidificadas de

1
Trabalho apresentado em cumprimento às exigências da disciplina Jurisdição Constitucional e Processo. Professor Dr.
William Pugliese. Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia. Mestrado Interinstitucional UNIBRASIL-UNIGUAÇU.
Novembro de 2019.
2
Graduada em Direito pela Unidade de Ensino Superior Vale do Iguaçu - UNIGUAÇU (2013). Mestranda em Direitos
Fundamentais e Democracia no programa de Mestrado Interinstitucional UNIBRASIL-UNIGUAÇU.
200

maneira que não seja questionada sua importância na manutenção e


aprimoramento do regime democrático.
Tomando-se a época atual onde a população e mesmo os líderes políticos
estão evidenciando um processo de solapamento das instituições, verifica-se a
necessidade de que estas sejam fortalecidas para que seja gantido o exercício de
uma democracia plena, além do crescimento social, econômico e cultural de
maneira sustentável.
É abordado no presente a democratização e a democracia, perpassando
breve histórico do regime e conceituação antes de tratar das instituições e do
processo de “desintitucionalização”, extremamente maléfico para a manutenção e
desenvolvimento pleno das democracias. Por derradeiro, trata-se do caráter
essencial das instituições para a efetivação dos direitos positivados na
Constituição, garantindo a democracia.
Desta feita, o presente artigo visa sistematizar elementos e contribuir para o
debate dessa temática, apontando as instituições como elementos dotados de
solidez e essenciais ao exercício da democracia.

2 DEMOCRATIZAÇÃO E DEMOCRACIA

A democracia é o sistema político que reconhece no homem seu valor


máximo, sua finalidade máxima, sendo que o cidadão jamais pode ser usado como
instrumento para atingir qualquer objetivo que não seus próprios, entendendo-se
que “todo cidadão e cada homem é um objetivo em si mesmo: reconhecer isto é
demonstrar respeito à personalidade e à dignidade humanas”3.
Robert Dahl conceitua democracia como “um sistema político cujos
membros se consideram iguais uns aos outros, são coletivamente soberanos e
possuem todas as capacidades, recursos e instituições necessários para
autogovernar-se”4. Desta feita, entende-se o sistema como um mecanismo de
tomada de decisões obrigatórias a todos os envolvidos, pois existe igualdade
política entre todos os cidadãos.

3
RODRIGUES, João Gaspar. Estado e democracia: a necessidade de um Estado controlável e de uma nova moral
democrática. Disponível em https://jgaspar2013.jusbrasil.com.br/artigos/265040885/estado-e-democracia-a-necessidade-
de-um-estado-controlavel-e-de-uma-nova-moral-democratica Acesso em 11 nov. 2019
4
DAHL. Robert A. Sobre a democracia / Robert A. Dahl: tradução de Beatriz Sidou. - Brasília : Editora Universidade de
Brasília. 2001
201

A evolução histórica da democracia perpassa a Grécia antiga, tendo saído


de cena temporariamente na Idade Média, devido ao ideário absolutista e governos
despóticos, e ressurgindo no panorama político dois mil anos depois, com o
constitucionalismo moderno e a democracia representativa, apresentada como a
única forma de governo popular viável. Acerca desta, pode ser definida como “a
forma de governo em que o povo não participava diretamente da tomada de
decisão sobre os temas de seu interesse, mas escolhia os seus representantes
que deveriam tomar por ele tais decisões.”5. Posteriormente, na Europa, as
revoluções ocorridas nos séculos XVII e XVIII se fundamentaram no ideário liberal,
avesso aos direitos democráticos mais abrangentes, formando a democracia
liberal6. Nesse sentido:

Segundo Bobbio (1993), a democracia pode ser considerada como um


prolongamento natural do Estado liberal, não pelo lado do seu ideário
igualitário, mas pela sua fórmula política, que é a soberania popular. Esta
tornar-se-ia possível, na medida em que um maior número de cidadãos
tivesse o direito de participar direta e indiretamente da tomada das
decisões coletivas, significando a extensão dos direitos políticos até o
limite último do sufrágio universal masculino e feminino. Bobbio assevera,
ainda, que:
Idéias liberais e método democrático vieram gradualmente se
combinando num modo tal que, se é verdade que os direitos de liberdade
foram desde o início a condição necessária para a direta aplicação das
regras do jogo democrático, é igualmente verdadeiro que, em seguida, o
desenvolvimento da democracia se tornou o principal instrumento para a
defesa dos direitos de liberdade (p. 44). 7

Passa-se então a tratar de democracia representativa, a qual tem como


característica principal a representação política visando atender aos interesses da
nação, ignorando seus próprios quando estes forem dissonantes do que promova
o bem-estar da maioria. Pode ocorrer que esse sistema não seja representativo o
suficiente, assim, devem ser criadas condições favoráveis para que o cidadão
possa efetivamente interferir nas decisões sociais e econômicas por meio dos
órgãos de decisão política8.

5
CABRAL NETO, Antônio. Democracia: velhas e novas controvérsias. Estud. psicol. (Natal), Natal , v. 2, n. 2, p. 287-
312, dez. 1997 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
294X1997000200005&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 11 nov. 2019.
6
CABRAL NETO, Antônio. Democracia: velhas e novas controvérsias. Estud. psicol. (Natal), Natal , v. 2, n. 2, p. 287-
312, dez. 1997 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
294X1997000200005&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 11 nov. 2019.
7
CABRAL NETO, Antônio. Democracia: velhas e novas controvérsias. Estud. psicol. (Natal), Natal , v. 2, n. 2, p. 287-
312, dez. 1997 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
294X1997000200005&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 11 nov. 2019.
8
CABRAL NETO, Antônio. Democracia: velhas e novas controvérsias. Estud. psicol. (Natal), Natal , v. 2, n. 2, p. 287-
312, dez. 1997 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
294X1997000200005&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 11 nov. 2019.
202

Impende mencionar que a democracia direta não deve ser colocada como
uma alternativa à democracia representativa, mas sim como algo complementar,
sendo a articulação uma necessidade histórica, mas insuficiente se não sintonizada
com níveis razoáveis de democracia econômica e cultural9. Ainda, os mecanismos
de participação popular são reconstruídos com vistas a se adequarem à evolução
da sociedade em questão, visando reduzir as desigualdades sociais e atingir o
estado de bem-estar social.
Destaca-se:
Até o século XX, a maior parte do mundo proclamava a superioridade dos
sistemas não-democráticos, na teoria e na prática. Até bem pouco tempo,
uma preponderante maioria dos seres humanos - às vezes, todos - estava
sujeita a governantes não-democráticos. Os chefes dos regimes não-
democráticos em geral tentaram justificar seu domínio recorrendo à velha
exigência persistente de que, em geral, as pessoas simplesmente não
têm competência para participar do governo de um estado. Segundo esse
argumento, a maioria estaria bem melhor se deixasse o complicado
problema do governo nas mãos dos mais sábios - no máximo, a minoria,
às vezes apenas uma pessoa... Na prática, esse tipo de racionalização
nunca era suficiente, e, assim, onde a argumentação era deixada de lado,
a coerção assumia o controle. A maioria jamais consentia em ser
governada pelos auto nomeados superiores, era obrigada a aceitá-Ias.
Esse tipo de visão (e prática) ainda não terminou. Mesmo nos dias de
hoje. De uma forma ou de outra, a discussão sobre o governo "de um, de
poucos ou de muitos" ainda existe entre nós 10

Ainda, a democracia possui aspecto formal, o qual constitui-se no conjunto


das instituições características, tais quais as eleições livres, o voto secreto e
universal, a autonomia dos poderes de Estado, existência de mais de um partido
político, liberdade de pensamento, expressão e associação, dentre outros, e
aspecto substancial, referente aos resultados do processo, os fins a serem
alcançados. Aponta-se como conseqüências desejáveis desta:

1. Evita a tirania 2. Direitos essenciais 3. Liberdade geral 4.


Autodeterminação 5. Autonomia moral 6. Desenvolvimento humano 7.
Proteção dos interesses pessoais essenciais 8. Igualdade política Além
disso, as democracias modernas apresentam: 9. A busca pela paz 10. A
prosperidade11

9
CABRAL NETO, Antônio. Democracia: velhas e novas controvérsias. Estud. psicol. (Natal), Natal , v. 2, n. 2, p. 287-
312, dez. 1997 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
294X1997000200005&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 11 nov. 2019.
10
Dahl. Robert A. Sobre a democracia / Robert A. Dahl: tradução de Beatriz Sidou. - Brasília : Editora Universidade de
Brasília. 2001
11
Dahl. Robert A. Sobre a democracia / Robert A. Dahl: tradução de Beatriz Sidou. - Brasília : Editora Universidade de
Brasília. 2001
203

Verifica-se então que este sistema ajuda as pessoas a defenderem seus


próprios direitos fundamentais, por colocar o cidadão no centro e a busca pelo bem-
estar social como finalidade principal, junto às garantias definidas pela
população12.
A democracia encontra limitações em extremas desigualdades sociais,
econômicas e política, portanto, a condição sócio-econômica dos atores sociais
envolvidos no jogo democrático deve ser levada em consideração ao se analisar a
qualidade de uma democracia13. Confia-se que esta assegurará aos cidadãos e
suas associações ampla liberdade e igualdade política para que possam alcançar
suas aspirações e interesses, além de que suas instituições permitirão que estes
avaliem e julguem o desempenho de governos e dos representantes escolhidos,
por meio de eleições e do sistema de freios e contrapesos14. Nesse sentido:

Nessa linha de análise, de acordo com Morlino (2007, p.4), embora o


regime democrático seja aceito globalmente, o problema mais sério e
importante diz respeito ao tipo de democracia, à qualidade democrática
vigente nos países. Para esse autor, esta reside em três fatores: nos
procedimentos, no conteúdo e no resultado. Para Molino, uma
democracia com qualidade é uma boa democracia, a qual é, antes de
mais nada, um regime amplamente legitimado e, portanto, estável, e com
o qual os cidadãos estão plenamente satisfeitos. Nesse tipo de
democracia, os cidadãos mostram respeito e obediência às regras
vigentes (the rule of law). Outro elemento fundamental da qualidade da
democracia é o grau de envolvimento dos cidadãos na política. A
democracia contemporânea requer uma cidadania ativa que se envolva
na arena política via discussões, deliberações, referendos e plebiscitos,
ou seja, por meio de mecanismos formais e informais, sem que isso
comprometa as instituições convencionais de mediação política. Há um
consenso de que sem o envolvimento popular no processo de construção
democrática ela perde em legitimidade, mantendo simplesmente sua
dimensão formal.15

Da análise da evolução histórica supramencionada depreende-se que não


existe uma única via para a institucionalização da democracia, sendo os regimes
derivados do processo de democratização recente bastante diferentes entre si16. A
transformação de regimes é um fenômeno complexo, e deve-se manter claro que

12
Dahl. Robert A. Sobre a democracia / Robert A. Dahl: tradução de Beatriz Sidou. - Brasília : Editora Universidade de
Brasília. 2001
13
CABRAL NETO, Antônio. Democracia: velhas e novas controvérsias. Estud. psicol. (Natal), Natal , v. 2, n. 2, p. 287-
312, dez. 1997 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
294X1997000200005&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 11 nov. 2019.
14
MOISÉS, José Alvaro. Cultura, Política, Instituições e Democracia. Lições da experiência brasileira. Revista Brasileira de
Ciências Sociais – Vol. 23, nº 66. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v23n66/02.pdf. Acesso em 11 nov. 2019.
15
BAQUERO, Marcello. Democracia formal, cultura política informal e capital social no Brasil. Opin. Publica, Campinas , v.
14, n. 2, p. 380-413, Nov. 2008 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
62762008000200005&lng=en&nrm=iso>. access on 11 Nov. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-62762008000200005.
16
MOISÉS, José Alvaro. Cultura, Política, Instituições e Democracia. Lições da experiência brasileira. Revista Brasileira de
Ciências Sociais – Vol. 23, nº 66. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v23n66/02.pdf. Acesso em 11 nov. 2019.
204

a democratização diz respeito também ao processo de transformação de uma


democracia limitada, incompleta ou híbrida em um regime democrático pleno.
A democratização é um fenômeno de natureza multidimensional, sendo a
democracia definida em vários termos de competição, participação e contestação
pacífica do poder17. Para tanto, são estabelecidas condições para que um regime
seja considerado democrático, quais sejam:

1) direito dos cidadãos escolherem governos por meio de eleições com a


participação de todos os membros adultos da comunidade política; 2)
eleições regulares, livres, competitivas e abertas; 3) liberdade de
expressão, reunião e organização, em especial, de partidos políticos para
competir pelo poder; e 4) acesso a fontes alternativas de informação
sobre a açãode governos e a política em geral. 18

As democracias podem variar sua qualidade com base em regras e práticas


de procedimento, relativos a seus conteúdos, e também com base no respeito por
liberdades civis e direitos políticos, além da igualdade política, social e econômica.
Deve-se também analisar a responsividade dos governos e representantes, como
o funcionamento prático do regime, suas leis, instituições, procedimentos, gastos
públicos, e outros fatores relevantes19.
Ainda sobre a evolução histórica do conceito e aplicação da democracia,
impende mencionar:

De um lado, está o modelo representativo clássico de autores como Dahl


(1971), Schumpeter (1961) e Bobbio (2002), baseado na distribuição do
poder soberano da população entre os representantes democraticamente
eleitos que representarão seus interesses. Esse modelo ganhou destaque
pelo conceito de Poliarquia (DAHL, 1971), que nada mais é que um
sistema no qual a tomada de decisão está baseada na livre concorrência
e na participação da população em geral na eleição dos representantes
eleitos, ou seja, na seleção da “elite política” qualificada. Do outro lado,
está o modelo 232 Volume 2 – Estado, Instituições e Democracia:
democracia participativo que prevê que, além dos instrumentos
representativos, as democracias devem contar com mecanismos
alternativos de inclusão cidadã que ampliem a participação (BARBER,
1984; PATEMAN, 1992; MACPHERSON, 1978). Existe ainda uma
terceira corrente forte, que defende um modelo de democracia
deliberativa, e que, assim como a participativa, prevê formas alternativas

17
MOISÉS, José Alvaro. Cultura, Política, Instituições e Democracia. Lições da experiência brasileira. Revista Brasileira de
Ciências Sociais – Vol. 23, nº 66. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v23n66/02.pdf. Acesso em 11 nov. 2019.
18
MOISÉS, José Alvaro. Cultura, Política, Instituições e Democracia. Lições da experiência brasileira. Revista Brasileira de
Ciências Sociais – Vol. 23, nº 66. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v23n66/02.pdf. Acesso em 11 nov. 2019.
19
MOISES, José Álvaro. Cultura política, instituições e democracia: lições da experiência brasileira. Rev. bras. Ci. Soc., São
Paulo , v. 23, n. 66, p. 11-43, Feb. 2008 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
69092008000100002&lng=en&nrm=iso>. access on 11 Nov. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69092008000100002.
205

de aproximação da popula- ção com o governo, no entanto, está focada


no processo de deliberação sobre a política (HABERMAS, 1998) 20

Uma das maneiras de preservar a democracia durante o processo de


democratização é a constatação de que estas “têm regras escritas (constituições)
e árbitros (os tribunais). Porém, regras escritas e árbitros funcionam melhor, e
sobrevivem mais tempo, em países em que as constituições escritas são
fortalecidas por suas próprias regras não escritas do jogo. Essas regras ou normas
servem como grades flexíveis de proteção da democracia, impedindo que o dia a
dia da competição política se transforme em luta livre”21.
A existência de uma democracia implica que todos os valores incidentes e
justificadores não devem ser simplesmente abstratos, devendo ser concretos e
positivos, encarnados em instituições e corpos sociais a fim de que possa ser
efetivado o direito postulado no código22.

3 INSTITUIÇÕES E O PROCESSO DE “DESINSTITUCIONALIZAÇÃO”

Depreende-se que para que uma democracia seja legítima, um dos


principais valores a serem observados é a perspectiva da organização do Estado
em função do ser humano, e não do econômico ou político. Dá-se valor de
destaque ao indivíduo e à sociedade, sendo estes o maior objetivo para a formação
de instituições que venham a efetivar os direitos estabelecidos como essenciais
pela população. O controle é exercido dos atores sociais para o Estado, havendo
objetivos delineados nos âmbitos democráticos23.
Tem-se portanto que “o indivíduo e seus direitos precedem e condicionam o
andamento e funcionamento das instituições. Assim, evidencia-se de forma nítida
que é o homem e não as instituições, o centro da Constituição Política”24. As
instituições devem ser vistas como o instrumental necessário para a efetivação dos

20
Estado, instituições e democracia : democracia / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. – Brasília : Ipea, 2010. v.2
(556 p.) : gráfs., mapas, tabs. (Série Eixos Estratégicos do Desenvolvimento Brasileiro ; Fortalecimento do Estado, das
Instituições e da Democracia ; Livro 9)
21
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel (2018). Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar.
22
RODRIGUES, João Gaspar. Estado e democracia: a necessidade de um Estado controlável e de uma nova moral
democrática. Disponível em https://jgaspar2013.jusbrasil.com.br/artigos/265040885/estado-e-democracia-a-necessidade-
de-um-estado-controlavel-e-de-uma-nova-moral-democratica Acesso em 11 nov. 2019
23
RODRIGUES, João Gaspar. Estado e democracia: a necessidade de um Estado controlável e de uma nova moral
democrática. Disponível em https://jgaspar2013.jusbrasil.com.br/artigos/265040885/estado-e-democracia-a-necessidade-
de-um-estado-controlavel-e-de-uma-nova-moral-democratica Acesso em 11 nov. 2019
24
RODRIGUES, João Gaspar. Estado e democracia: a necessidade de um Estado controlável e de uma nova moral
democrática. Disponível em https://jgaspar2013.jusbrasil.com.br/artigos/265040885/estado-e-democracia-a-necessidade-
de-um-estado-controlavel-e-de-uma-nova-moral-democratica Acesso em 11 nov. 2019
206

direitos, jamais buscando fim diverso do almejado bem-estar social, ou agindo


além dos ditames jurídicos.
O regime democrático não funciona por si só enquanto um simples conceito,
sendo necessárias as instituições para que seja concretizado. Portanto:

Instituições e procedimentos são vistos, portanto, como meios de


realização de princípios e valores adotados pela sociedade como parte
do processo político. Sem elidir que a disputa por interesses e
preferências envolve conflitos, a ideia é que as instituições se constituem
– com base nos objetivos normativos que lhes são atribuídos – na
mediação mediante a qual os conflitos podem ser resolvidos
pacificamente.25

Destaca-se que a res pública não pode se sujeitar a interesses privados,


justificando que o poder político seja exercido de maneira institucional e não
pessoal, sendo transitório. O Estado, por sua vez, é visto como um conjunto de
insituições, respondendo a anseios de organização das comunidades humanas e
solucionando conflitos26.
Do ponto de vista histórico, o momento da chegada e a sequência onde as
instituições foram introduzidas nas diversas democracias variam, inexistindo um
padrão que permita ser demonstrado27. Portanto, resta reiterado o caráter de
mutação a que estão sujeitas, de acordo com a evolução social, cultural e política
do grupo.

Nem mesmo constituições bem-projetadas são capazes, por si mesmas,


de garantir a democracia. Primeiro, porque constituições são sempre
incompletas. Como qualquer conjunto de regras, elas têm inúmeras
lacunas e ambiguidades. Nenhum manual de operação, não importa quão
detalhado, é capaz de antecipar todas as contingências possíveis ou
prescrever como se comportar sob todas as circunstâncias.28

As instituições devem se formar adequadamente nas etapas iniciais do


processo de democratização, ou corre-se o risco de que estas operem de maneira
distorcida, buscando objetivos diversos de sua finalidade, não respeitando de modo
completo os princípios constitucionais29. A ausência de representação e

25
MOISÉS, José Alvaro. Cultura, Política, Instituições e Democracia. Lições da experiência brasileira. Revista Brasileira de
Ciências Sociais – Vol. 23, nº 66. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v23n66/02.pdf. Acesso em 11 nov. 2019
26
RODRIGUES, João Gaspar. Estado e democracia: a necessidade de um Estado controlável e de uma nova moral
democrática. Disponível em https://jgaspar2013.jusbrasil.com.br/artigos/265040885/estado-e-democracia-a-necessidade-
de-um-estado-controlavel-e-de-uma-nova-moral-democratica Acesso em 11 nov. 2019
27
Dahl. Robert A. Sobre a democracia / Robert A. Dahl: tradução de Beatriz Sidou. - Brasília : Editora Universidade de
Brasília. 2001
28
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel (2018). Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar.
29
MOISÉS, José Alvaro. Cultura, Política, Instituições e Democracia. Lições da experiência brasileira. Revista Brasileira de
Ciências Sociais – Vol. 23, nº 66. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v23n66/02.pdf. Acesso em 11 nov. 2019
207

participação da sociedade civil na avaliação das decisões proferidas e não garantia


da independência entre Executivo, Legislativo e Judiciário levanta insatisfação
política e fomenta a desconfiança nas instituições, pois afeta além do seu
desempenho formal, frustrando a realização dos valores que orientaram a escolha
do desenho institucional da sociedade30.

Ou seja, o funcionamento adequado das instituições democráticas requer


a presença de elementos de justificação de sua função, os quais estão
relacionados com convicções dos cidadãos a respeito da sua missão e do
seu funcionamento. A idéia é que instituições não são instrumentos
neutros de realização de interesses e de preferências, mas correspondem
a escolhas normativas da sociedade sobre como processar seus conflitos
constitutivos (Moisés, 2005a).
[...]
Em um balanço crítico das experiências internacionais de
democratização, Shin (2005) resumiu o argumento segundo o qual, para
que o regime democrático funcione a contento, o sistema político e as
suas instituições fundamentais devem ser adotados de forma
incondicional, não apenas pelas elites políticas, mas pela maioria dos
cidadãos como parte integrante do seu pertencimento à comunidade
política. O que os cidadãos pensam e sentem sobre as instituições
democráticas, assim como suas atitudes a respeito delas, são
componentes indispensáveis do software sem o qual o hardware
democrático funciona mal. Por isso, a relação entre atitudes,
comportamentos e o regime é uma dimensão indispensável do estudo da
democratização e do grau de democraticidade alcançado em cada caso
(O’Donnell, 2004; Cullell, 2004).31

Deve-se pensar então no fortalecimento das instituições para que seja


possibilitada a existência de uma democracia plena. Isso não significa dispensar
especialistas de formação, pois é de grande ajuda que atuem com vista a
solucionar os conflitos que surgem – e muitas vezes são até benéficos – nas
democracias, proporcionando sua evolução32. A solidificação das instituições é
defendida por Dahl:

Portanto, se as instituições destinadas à educação pública são fracas,


resta apenas uma solução satisfatória: elas devem ser reforçadas. Todos
os que acreditam em metas democráticas são obrigados a buscar
maneiras pelas quais os cidadãos possam adquirir a competência de que
precisam. Talvez as instituições para educação cívica criadas nos países
democráticos durante os séculos XIX e XX já não sejam adequadas. Se
assim for, os países democráticos terão de criar novas instituições para
complementar as antigas.33

30
MOISÉS, José Alvaro. Cultura, Política, Instituições e Democracia. Lições da experiência brasileira. Revista Brasileira de
Ciências Sociais – Vol. 23, nº 66. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v23n66/02.pdf. Acesso em 11 nov. 2019
31
MOISÉS, José Alvaro. Cultura, Política, Instituições e Democracia. Lições da experiência brasileira. Revista Brasileira de
Ciências Sociais – Vol. 23, nº 66. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v23n66/02.pdf. Acesso em 11 nov. 2019
32
Dahl. Robert A. Sobre a democracia / Robert A. Dahl: tradução de Beatriz Sidou. - Brasília : Editora Universidade de
Brasília. 2001
33
Dahl. Robert A. Sobre a democracia / Robert A. Dahl: tradução de Beatriz Sidou. - Brasília : Editora Universidade de
Brasília. 2001
208

Impõe-se como necessário ao funcionamento de uma democracia as regras


de tolerância mútua e reserva institucional, já que, se os rivais políticos forem
tratados como ilegítimos, foge-se das regras institucionais, despreza-se a
continuidade da democracia, causando instabilidade no regime34. Nesse sentido:

O oposto de reserva é explorar prerrogativas institucionais de maneira


incontida, o que o estudioso de direito Mark Tushnet chama de “jogo duro
constitucional”: jogar segundo as regras, mas levando-as aos seus limites,
e “jogando para valer”. Trata-se de uma forma de combate institucional
cujo objetivo é derrotar permanentemente os rivais partidários – e não se
preocupar em saber se o jogo democrático vai continuar35.

Causa-se então o solapamento das instituições, colocando em risco a


democracia. Esse processo de “desinstitucionalização” se dá pelo enfraquecimento
e desmoralização das instituições, bem como pelo conflito constitucional36. A
desmoralização é ampliada quando as instituições, por pressão midiática, tomam
decisões não institucionais, vulnerando a lei em prol do ativismo judicial, além da
ausência de reflexão acerca do papel das instituições por parte da sociedade, que
cria uma visão deturpada onde estas são colocadas como vilãs37. A desconstrução
desse processo é essencial para a manutenção de um regime democrático
saudável.

4 A INDISPENSABILIDADE DAS INSITUIÇÕES PARA A EFETIVIDADE DA


DEMOCRACIA

Não se pode ignorar o papel do ser humano na representação política do


cidadão, sob o risco de obterem-se práticas e políticas deletérias para a
democracia. Ainda, deve-se equiparar este fator de maneira consciente com
regras, instituições e procedimentos, história, cultura e política38.
Nesse cenário, leva-se em consideração o lecionado por Dahl, de que são
necessárias condições específicas que assegurem a participação dos cidadãos na

34
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel (2018). Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar.
35
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel (2018). Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar.
36
ARAGÃO. Murillo de. Democracia e instituições no Brasil. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI278464,91041-Democracia+e+instituicoes+no+Brasil Acesso em 11 nov. 2019
37
ARAGÃO. Murillo de. Democracia e instituições no Brasil. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI278464,91041-Democracia+e+instituicoes+no+Brasil Acesso em 11 nov. 2019
38
BAQUERO, Marcello. Democracia formal, cultura política informal e capital social no Brasil. Opin. Publica, Campinas , v.
14, n. 2, p. 380-413, Nov. 2008 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
62762008000200005&lng=en&nrm=iso>. access on 11 Nov. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-62762008000200005.
209

escolha dos governos, inclusive que eles próprios possam ser escolhidos, bem
como a exigência de responsividade contínua dos governos à preferência apontada
pelos indivíduos39. Nesse sentido:

[...] a necessidade de que princípios internalizados em instituições – como


mecanismos de pesos e contrapesos – sejam garantidos por uma
constituição aceita como legítima pela sociedade, isto é, pela dimensão
legal que envolve valores compartilhados pela maioria dos membros da
comunidade política. Assim, em suas etapas iniciais, a democratização
consolida instituições cujos objetivos asseguram a igualdade dos
cidadãos perante a lei e seus direitos de participação e representação.
Mas alcançadas tais condições, a adoção de princípios de boa
governança como a legalidade, a universalidade, a transparência e a
responsabilização dos governantes emerge como objetivos
complementares da agenda da democratização. 40

Não se pode visualizar as instituições democráticas como um agente


exógeno ao processo de tomada de decisão coletiva, pois verifica-se por meio do
institucionalismo que “atores relevantes fazem escolhas em resposta a um
ambiente de incentivos institucionais que, sendo indeterminados, tornam os cursos
de ação não estritamente decorrentes de instituições específicas”41.
Verifica-se então que a ampliação da dimensão política da democracia não
garante, necessariamente, a democratização dos bens materiais e culturais
socialmente produzidos, mas favorece a organização da sociedade civil de modo
que esta possa reivindicar o que seja necessário de maneira ordenada, motivo
suficiente para que a democracia seja buscada. Frisa-se que “a democracia,
contemporaneamente, não pode se consolidar, senão quando encerre em seus
limites as dimensões que traduzem o social, o político e o cultural”42.
Acerca da consolidação das instituições, impende destacar que é
necessária para o aprimoramento da democracia, garantindo o desenvolvimento
com apoio da comunidade e no sentido da busca pelo interesse público e estado
de bem-estar social.
A relação complexa estabelecida entre as instituições políticas e
democráticas e suas práticas e o sentido e interpretação dado a estas pelos

39
Dahl. Robert A. Sobre a democracia / Robert A. Dahl: tradução de Beatriz Sidou. - Brasília : Editora Universidade de
Brasília. 2001
40
MOISÉS, José Alvaro. Cultura, Política, Instituições e Democracia. Lições da experiência brasileira. Revista Brasileira de
Ciências Sociais – Vol. 23, nº 66. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v23n66/02.pdf. Acesso em 11 nov. 2019.
41
MOISÉS, José Alvaro. Cultura, Política, Instituições e Democracia. Lições da experiência brasileira. Revista Brasileira de
Ciências Sociais – Vol. 23, nº 66. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v23n66/02.pdf. Acesso em 11 nov. 2019.
42
CABRAL NETO, Antônio. Democracia: velhas e novas controvérsias. Estud. psicol. (Natal), Natal , v. 2, n. 2, p. 287-
312, dez. 1997 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
294X1997000200005&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 11 nov. 2019.
210

cidadãos demonstra elevados índices de ceticismo político sobre a política


democrática. Destaca-se:

Nesse contexto, na política contemporânea, são mantidos velhos vícios


de fazer política com instituições "modernas" produzindo uma
ambigüidade do significado do "fazer política", pois, em muitos casos, não
se sabe se a crise de mediação política é fruto da prática política ou das
instituições democráticas. De fato, tendo em vista a história do Brasil,
essas duas dimensões estão interligadas.
Desse modo, a presença de crises políticas, e sua não solução definitiva,
alimenta a longo prazo uma crise da democracia que se manifesta no
desapego dos cidadãos aos princípios democráticos e na desconfiança
em relação às instituições democráticas. As instituições formais seguem
e aplicam procedimentos democráticos, porém suas práticas lhes dão
outro sentido, indo de encontro às exigências normativas explicitadas na
teoria. Nessas circunstâncias, se produz um paradoxo onde a
institucionalidade democrática adquire estabilidade, mas geralmente
carece de legitimidade. No caso brasileiro, as instituições políticas geram
incentivos que encorajam os políticos a maximizar seus ganhos pessoais
e a se concentrar em troca de favores, manchando sua imagem e,
conseqüentemente, o regime, aos olhos dos cidadãos (AMES, 2001,
p.4).43

Colocando-se em risco a credibilidade e a legitimidade do regime, ocorre a


perda dos elementos de coesão social nucleares da democracia, levando à disputa
desleal pelo poder. As instituições são então colocadas à margem, fragilizadas, e
o Estado, mesmo que democrático, não se submete a regras eficientes de
fiscalização, razão pela qual muitas vezes os investimentos sociais não
correspondem de maneira adequada às necessidades da população, sofrendo
portanto as instituições com a hostilidade da população44.

A partir dessa perspectiva, é possível conjeturar que o tipo de cultura


política que tem se estabelecido no Brasil ao longo de sua história se
caracteriza pela internalização e naturalização, por parte dos cidadãos,
da ineficiência e da pouca importância atribuída às instituições da
democracia representativa. Se por cultura política se entende a existência
de valores e crenças que predominam em uma sociedade (ALMOND e
VERBA, 1965), então os dados, divulgados por pesquisas de opinião
política (ESEB, 2002; 2006; Latinobarômetro, 2004 - 2006), revelam uma
dimensão estrutural de negação da política na sua forma convencional e
poliárquica.
Nesse sentido, é possível argumentar que existe uma relação causal
recíproca permanente entre instituições deficientes que não produzem
cidadãos com predisposições democráticas e estes, por sua vez,

43
BAQUERO, Marcello. Democracia formal, cultura política informal e capital social no Brasil. Opin. Publica, Campinas , v.
14, n. 2, p. 380-413, Nov. 2008 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
62762008000200005&lng=en&nrm=iso>. access on 11 Nov. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-62762008000200005.
44
BAQUERO, Marcello. Democracia formal, cultura política informal e capital social no Brasil. Opin. Publica, Campinas , v.
14, n. 2, p. 380-413, Nov. 2008 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
62762008000200005&lng=en&nrm=iso>. access on 11 Nov. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-62762008000200005.
211

distanciam-se e mostram desapego por essas instituições por não


acreditarem nos seus objetivos e desconfiarem de suas intenções.45

As crises referentes a corrupção resultam no desprezo às instituições, sendo


ignorado pela população o caráter essencial destas na manutenção e
aprimoramento da democracia, com sua desvalorização e solapamento em um
ambiente de desconfiança, distanciamento e indiferença, além da falta de
solidariedade social com a visão maniqueísta de que os opositores são inimigos a
serem eliminados.

Da análise feita até aqui, fica evidenciado que uma sociedade de massas
que preserva condicionantes histórico-estruturais deletérios para a
construção democrática pode, no máximo, aspirar e sustentar uma
democracia instável, na qual inexistem instituições sólidas, a maioria dos
cidadãos não está qualificada para agir num sentido protagônico na
política, o comportamento político se caracteriza por sua dimensão
emocional e subjetiva, os partidos não são vistos como entidades
realmente representativas das aspirações da população e os
representantes eleitos não são fiscalizados, portanto, geralmente não
prestam contas dos seus atos, caracterizando o que Burke (1942)
denominava de "mandato livre". Em democracias instáveis, predominam
traços clientelísticos, personalistas e patrimonialistas 46.

O fortalecimento das instituições deve ser visto como o caminho para se


evitar retrocesso social e democrático, já que a polarização pode destruir as
normas democráticas quando ocorre de maneira extrema, no que é chamado
“política sem grades de proteção”, não sendo possível sustentar a tolerância,
rejeitando-se totalmente as regras democráticas e colocando o regime em risco 47.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depreende-se que restou evidenciado o caráter essencial das instituições


para que os direitos dispostos na Constituição de uma democracia sejam
efetivados plenamente, atingindo-se de maneira satisfatória os fins de cada
indivíduo dentro de uma sociedade e seu estado de bem-estar.

45
BAQUERO, Marcello. Democracia formal, cultura política informal e capital social no Brasil. Opin. Publica, Campinas , v.
14, n. 2, p. 380-413, Nov. 2008 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
62762008000200005&lng=en&nrm=iso>. access on 11 Nov. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-62762008000200005.
46
BAQUERO, Marcello. Democracia formal, cultura política informal e capital social no Brasil. Opin. Publica, Campinas , v.
14, n. 2, p. 380-413, Nov. 2008 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
62762008000200005&lng=en&nrm=iso>. access on 11 Nov. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-62762008000200005.
47
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel (2018). Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar
212

Após considerações acerca de democracia e democratização, foram


abordadas as instituições e o fenômeno conhecido como “desinstituicionalização”,
extremamente danoso na busca pela garantia da democracia e sua evolução para
um regime pleno. A corrupção e ineficácia das instituições em fornecer à população
aquilo que esta almeja são fatores que levam ao desacreditamento destas e incitam
revolta e a dificuldade de se estabelecer instituições fortes e sólidas.
Ante o exposto verifica-se a necessidade de solidificar as instituições e
reconhecer seu papel essencial na manutenção e aprimoramento do regime
democrático, evitando-se retrocesso inclusive de cunho social e no sentido da
busca pelo estado de bem-estar social.
O solapamento das instituições por meio da sua desmoralização e crescente
rejeição de maneira hostil pela população coloca o processo de democratização e
a democracia em si em risco, pois a visão maniqueísta de que o outro é um inimigo
indigno a ser extirpado o coloca como ilegítimo, e portanto ilegitima todo o processo
democrático.

REFERÊNCIAS

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https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI278464,91041-
Democracia+e+instituicoes+no+Brasil Acesso em 11 nov. 2019

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RODRIGUES, João Gaspar. Estado e democracia: a necessidade de um


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SÊCO, Thaís. Resenha a “Justiça para os ouriços”, de Ronald Dworkin.


Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 2, n. 3, jul.-set./2013. Disponível em: <
http://civilistica.com/o-ourico/>. Acesso em 11 nov. 2019.
214

O DIREITO VIVO NAS PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES DO PODER


JUDICIÁRIO NO PROCESSO CIVIL
Elvis Jakson Melnisk1

RESUMO: A análise do direito a partir das leis emitidas pelo Estado é diferente da análise do direito
expressado no cotidiano das pessoas. Este hiato entre os dois direitos gera efeitos no processo
civil, que pode ser analisado nas principais manifestações do julgador, sendo elas a decisão liminar,
a sentença de mérito e o julgamento em grau de recurso. Nestes casos, quanto mais o julgador
tiver conhecimento acerca do direito vivo das ruas, mais justa tende a ser sua decisão. Na decisão
liminar, o juiz está diante de uma situação com cognição superficial, momento em que há grande
influência do direito vivo na manifestação do magistrado. Já na sentença, a cognição é exauriente,
mas a valoração das provas demanda que o julgador tenha conhecimento acerca do direito vivo.
Em grau recursal, diante de um julgamento tecnicamente mais objetivo e geograficamente distante
do local da instrução probatória, o direito vivo encontra-se bastante minguado. No entanto, é o
âmbito dos tribunais que o direito vivo se apresenta com outro objetivo, apresentando-se como
instrumento eficaz de colmatação das lacunas da lei e na interpretação da obscuridade da lei. O
estudo do aspecto fático-normativo do direito dentro da obra Fundamentos de Sociologia de Erhlich
são essenciais para a compreensão do direito vivo e sua aplicabilidade no processo civil como
instrumento efetivo de obtenção da pacificação social.

Palavras-Chave: Eugen Erhlich. Direito Vivo. Processo Civil. Democracia. Constituição.

ABSTRACT: The analysis of the law from the laws issued by the State is different from the analysis
of the law expressed in people's daily lives. This gap between the two rights generates effects in the
civil process, which can be analyzed in the principal manifestations of the judge, being they the
preliminary decision, the judgment of merit and the judgment in degree of appeal. In these cases,
the more the judge has knowledge about the living law of the streets, the fairer his decision tends to
be. In the preliminary decision, the judge is faced with a situation with superficial cognition, at which
time there is great influence of living law in the manifestation of the magistrate. Already in the
sentence, cognition is full, but the evaluation of evidence demands that the judge have knowledge
about living law. At a appeal degree, before a judgment that is technically more objective and
geographically distant from the place of probationary instruction, the living law is very diminished.
However, it is in the ambient of the courts that the living law presents itself with another objective,
presenting itself as an effective instrument to fill the gaps of the law and in the interpretation of the
obscurity of the law. The study of the phatic-normative aspect of law within Erhlich's Fundamentals
of Sociology is essential for the understanding of living law and its applicability in the civil process
as an effective instrument for obtaining social peace.

Keywords: Eugen Erhlich. Living Law. Civil Procedure. Democracy. Constitution.

INTRODUÇÃO

A busca por um julgamento justo precisa levar em consideração a realidade


que permeia o litígio apresentado ao julgador. Quanto maior a proximidade do juiz

1
Mestrando no Programa Interinstitucional De Mestrado Em Direitos Fundamentais e Democracia – Minter 2018.
215

com a realidade fática, com a prática e a observação direta do dia-a-dia do


comércio, dos costumes e usos locais, mais justa tende a ser a decisão.
Com efeito, o conhecimento desta realidade pelo julgador facilita a colheita
de provas durante a instrução do processo, além de determinar uma melhor
valoração de todo conjunto probatório no momento da sentença, conduzindo a uma
decisão mais justa nas diversas etapas do processo civil.
O conhecimento do direito real, verdadeiro e vivo, praticado no dia a dia das
pessoas, foi objeto de estudo do jurista austríaco Eugen Ehrlich, que em sua obra
Fundamentos da Sociologia do Direito propõe uma investigação do direito a partir
da realidade das ruas.
Ehrlich encontra eco na atualidade em todos os locais em que o Estado tem
se afastado, seja em relação a determinadas regiões, grupos étnicos ou
agrupamentos populacionais, nos quais o chamado direito vivo surge regulando o
cotidiano de comunidades que não pode ser legitimamente afastado pelo Poder
Judiciário.
Em todas as situações em que se verifica um hiato entre a realidade da prática
cotidiana do direito e aquele imposto pelo Estado, é possível perceber que, mesmo
diante de um ordenamento jurídico positivista, há espaço não só para atuação do
direito vivo, mas principalmente reconhecer a validade e legitimidade desta prática.
Esta realidade, no entanto, não escapa aos inevitáveis litígios e demandas
que desembocam no Judiciário, que somente encontrarão um resultado prático e
um julgamento justo quando o julgador estiver inserido na comunidade e tiver
conhecimento acerca do direito praticado nas relações jurídicas estabelecidas
pelos jurisdicionados.
Diante deste quadro, o presente estudo tratará da influência do direito vivo
nos principais momentos do processo civil: decisão inicial, sentença e grau
recursal. Para isto, torna-se necessário o estudo da cognição do processo civil e
da investigação do direito vivo dentro da sociologia ehrlichiana.
216

1 COGNIÇÃO PROCESSUAL

Não há estudo mais adequado e reconhecido acerca da cognição no processo


civil do que aquele realizado por Kazuo Watanabe em sua obra Cognição no
Processo Civil.
O estudo realizado por Watanabe leva em consideração a amplitude das
matérias que podem ser alegadas dentro do processo em que se discute
determinada questão, considerando-se esta amplitude o aspecto horizontal. No
entanto, dentro de cada matéria alegada, a cognição pode ser mais superficial ou
mais profunda, o que constitui o segundo aspecto, chamado de vertical. A
estruturação da cognição dentro de um plano cartesiano é mérito de Watanabe,
que constitui elemento essencial de qualquer estudo do processo civil não só no
que se refere às provas, mas também à formação da coisa julgada.
Para o referido autor, a formação da coisa julgada está relacionada à
profundidade da cognição do julgador (aspecto vertical), dentro das alegações e
fundamentações das partes (aspecto horizontal). A cognição é inerente e essencial
ao exercício da jurisdição:
A cognição torna-se necessária no momento em que o Estado avoca para
si o monopólio da justiça, interpondo-se entre os homens em conflito de
interesses. A interposição do Estado atende à razão política de evitar o
prevalecimento do mais forte e de substituir a força pela justiça, num
esforço de solucionar os conflitos pelos meios mais civilizados, e isso
somente se consegue conhecendo-se as razões de ambas as partes. 2

Muito mais que uma mera operação mental, a cognição é uma atividade de
internalização das questões colocadas no processo, a fim de que o Estado, na
figura do juiz, possa definir uma solução buscando a pacificação social.

Mas a importância da cognição não decorre somente desse fato. Resulta


ela muito mais da própria natureza da atividade do juiz, que para conceder
a prestação jurisdicional precisa, na condição de terceiro que se interpõe
entre as partes, conhecer primeiro das razões (em profundidade, ou
apenas superficialmente, ou parcialmente, ou definitivamente, ou em
caráter provisório, tudo isso se põe no plano da técnica de utilização da
cognição) para depois adotar as providências voltadas à realização
prática do direito da parte. E decorre também da intensa utilização que o
legislador dela faz para conceber procedimentos diferenciados para a
melhor e efetiva tutela de direito.3

2
WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo, p. 44.
3
WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo, p. 47.
217

Em uma visão mais pragmática, Antônio Claudio da Costa Machado leciona


que:

“Na verdade, a cognição funciona como um ponto de contato, ou uma


‘ponte’, que permite a ligação entre a realidade do direito material e a de
um processo que proponha a realizá-lo o mais plenamente possível.
Talvez, melhor do que ‘ponte’ seja a ideia culinária de ‘ingrediente’ para
identificar a cognição como elemento integrante do modus faciendi dos
procedimentos judiciais, uma vez que o fenômeno cognitivo, ao se
expressar ritualmente desta ou daquela maneira por meio da
regulamentação dos atos do juiz, dará este ou aquele colorido ao
procedimento como um todo, tornando-o mais ou menos habilitado para
a realização satisfatória da vontade do direito material, numa ótica sócio
jurídica.”4

Importante ressaltar que na lição de Watanabe, a cognição tem por objeto um


trinômio de questões, sendo elas as questões processuais, as condições da ação
e o mérito da causa. Dentro das questões processuais, necessário a análise do
pedido, da capacidade de quem o formula e a investidura do destinatário do pedido,
ou seja, a qualidade de juiz5. No que se refere às condições da ação, estas devem
ser aferidas no plano lógico e da mera asserção do direito, e a cognição a que o
juiz procede consiste em simplesmente confrontar a afirmativa do autor com o
esquema abstrato da lei. Não se procede, ainda, ao acertamento do direito
afirmado6.
Após a apresentação da cognição, Watanabe passa a analisar os modos de
cognição, sistematizando-os de modo horizontal (extensão, amplitude) e vertical
(profundidade), esclarecendo que, no plano horizontal, a cognição tem por limite
os elementos objetivos do processo (questões processuais, condições da ação e
mérito), enquanto no plano vertical a cognição pode ser exauriente (completa) e
sumária (incompleta).7
Arrematando este pensamento, André Osório Gondinho assinala que
A Justiça precisa ser rente à realidade social para que possa servir de
instrumento eficaz de proteção da sociedade. Essa aderência à sociedade
somente se consegue se os juízes possuírem a sensibilidade necessária
para a completa compreensão do fenômeno social. Quanto mais
estiverem os juízes inseridos na realidade social dos jurisdicionados, mais
será possível o aprimoramento humanístico necessário para o bom e fiel
cumprimento da missão que lhes foi confiada. 8

4
MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Tutela Antecipada, p. 74.
5
WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo, p. 75.
6
Ibidem, p. 94.
7
Ibidem, p. 111-112.
8
GONDINHO, André Osório. Técnicas de cognição e efetividade do processo, p. 103.
218

Através da combinação dos modos de cognição, formam-se os


procedimentos. No caso da cognição completa e exauriente forma-se o
procedimento comum. Nestes, as partes possuem liberdade para explorar a gama
máxima de alegações e fundamentações, trazendo aos autos toda a prova
permitida em direito. Ao final da instrução, o juiz profere sentença com capacidade
de gerar a coisa julgada material.
Em razão de política processual, pode haver limitação das matérias a serem
deduzidas perante o magistrado. No âmbito destas matérias, no entanto, toda a
prova pode ser produzida durante a instrução do feito. Neste caso, a cognição é
parcial e exauriente, formando a coisa julgada. É o caso dos embargos de terceiro
(art. 674 do Código de Processo Civil9).
A título de exemplo, também, necessário observar o art. 20 do Decreto-Lei
3.365/41, que trata da desapropriação:
Art. 20. A contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial
ou impugnação do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por
ação direta.

Com efeito, a defesa do réu desapropriado encontra limitação quase que


extrema quanto à matéria de defesa, demonstrando a incompletude da cognição
dentro do aspecto horizontal.
Há casos, ainda, em que a cognição pode ser plena ou limitada, a depender
da manifestação do réu após a citação (secundum eventum defensionis). No
entanto, em qualquer caso, é exauriente, ou seja, sem qualquer limitação de
produção de prova. É o caso da ação monitória, em que a possibilidade do
magistrado decidir acerca da maior amplitude possível de matérias de defesa
depende da manifestação do réu quando da citação. Neste sentido, o artigo 702,
caput e parágrafo 1.º, do Código de Processo Civil:
Art. 702. Independentemente de prévia segurança do juízo, o réu poderá
opor, nos próprios autos, no prazo previsto no art. 701, embargos à ação
monitória.
§ 1.º Os embargos podem se fundar em matéria passível de alegação
como defesa no procedimento comum.

No caso da ação monitória, não havendo oposição de embargos monitórios,


a ação se converte automaticamente em cumprimento de sentença10.

9 Art. 674. Quem, não sendo parte no processo, sofrer constrição ou ameaça de constrição sobre bens que possua ou sobre os quais tenha direito incompatível com o ato constritivo, poderá requerer
seu desfazimento ou sua inibição por meio de embargos de terceiro.
10 Código de Processo Civil, art. 701, parágrafo 2.º: “Constituir-se-á de pleno direito o título executivo judicial, independentemente de qualquer formalidade, se não realizado o pagamento e não
apresentados os embargos previstos no art. 702, observando-se, no que couber, o Título II do Livro I da Parte Especial.”
219

A cognição sumária, consistente na análise perfunctória ou superficial da


prova produzida em regra por apenas uma das partes é excepcionalmente
permitida por lei em razão da urgência e do perigo de dano ou o risco ao resultado
útil do processo.
É o caso da liminar concedida na forma prevista no art. 562, referente às
ações possessórias:
Art. 562. Estando a petição inicial devidamente instruída, o juiz deferirá, sem ouvir o réu,
a expedição do mandado liminar de manutenção ou de reintegração, caso contrário,
determinará que o autor justifique previamente o alegado, citando-se o réu para
comparecer à audiência que for designada.

Neste caso, o juiz deve analisar o preenchimento dos requisitos legais, a


vista do que deverá deferir a liminar, independentemente da cognição exauriente
que deverá se formar durante a instrução do feito.

1.1 Momento de produção da prova

Dada a possibilidade de cognição exauriente, é necessário ponderar acerca


do momento adequado para a produção da prova perante o magistrado a fim de
que, ao tomar conhecimento das alegações, possa cotejá-las com elementos
capazes de demonstrar a realidade dos fatos narrados pelas partes.
Aqui se está diante do ponto crucial na temática processual que, quando
negligenciado, pode ocasionar um resultado desfavorável, ainda que, dentro do
plano fático e teórico, a parte fizesse jus ao direito pleiteado. É, talvez, o maior
fundamento para uma decisão aparentemente injusta aos olhos do cidadão alheio
ao conhecimento hermético jurídico, motivo de calorosas ofensas ao julgador. A
vinculação do magistrado à prova produzida nos autos impede que o julgador
possa decidir de forma contrária aos elementos colhidos durante a instrução
processual, ainda que parte sucumbente tenha efetivamente direito ao bem da vida
pleiteado, quando ela deixou de apresentar prova capaz de convencer o
magistrado ou de obstar os efeitos das provas produzidas pela parte contrária.
Com efeito, não basta a mera alegação dos fatos pelo autor na petição inicial
ou pelo réu na contestação, sendo necessário, em regra, a demonstração efetiva
220

por meio de prova admitida no direito, gerando ao julgador a certeza necessária ao


seu convencimento.
Dito isto, a prova não pode ser considerada uma mera etapa processual, mas
principalmente um dever e um direito da parte, garantindo-se a participação no
processo com possibilidade efetiva de convencer o julgador na formação de uma
decisão favorável.
Neste sentido, lecionam Marinoni e Arenhart:
Tamanha é a importância da verdade (e da prova) no processo, que
Chiovenda ensina que o processo de conhecimento trava-se entre dois
termos (a demanda e a sentença), por uma série de atos, sendo que
‘esses atos têm, todos, mais ou menos diretamente, por objeto, colocar o
juiz em condições de se pronunciar sobre a demanda e enquadram-se
particularmente no domínio da execução das provas’. Na mesma linha de
pensamento, Liebman, ao conceituar o termo ‘julgar’, assevera que tal
consiste em valorar determinado fato ocorrido no passado, valoração esta
feita com base no direito vigente, determinando, como consequência, a
norma concreta que regerá o caso.”11

Na lição de Misael Montenegro Filho, “a prova deve ser inicialmente proposta


(ato da parte, através do qual afirma que tem interesse na produção da prova), para
que seja admitida (ato do juiz, permitindo a produção da prova) e, posteriormente,
produzida (momento em que a prova ‘entra’ no processo)”.12
Importante ressaltar que o referido autor aponta um quarto momento,
consistente na apreciação ou valoração da prova produzida, que ocorre quando é
utilizada pelo magistrado na formação do seu convencimento e na motivação da
sua decisão, o que resulta na sorte do processo.
Para o referido autor,
Não faz sentido se prever os três primeiros momentos da prova sem
pensar no resultado do percurso natural da investigação dos fatos, desde
a formação do processo, quando a petição inicial é apresentada ao juiz,
passando pela fase de instrução até culminar com a prolação da
sentença, com o aproveitamento ou não da prova na formação do
convencimento do
julgador.
Por essa razão, entendemos que os momentos da prova incluem a sua
propositura, a sua admissão, a sua produção e a sua valoração, o último
coincidindo com a sentença, estabelecendo uma relação de causa e efeito
entre os momentos da propositura e da valoração. 13
No que se refere à prova documental, embora a regra seja bastante
flexibilizada pela jurisprudência, o art. 434 do Código de Processo Civil14 determina

11
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; Curso de Processo Civil: processo de conhecimento, p.
250/252.
12
Montenegro Filho, Misael. Direito processual civil.
13
Montenegro Filho, Misael. Direito processual civil.
14
CPC, art. 434. Incumbe à parte instruir a petição inicial ou a contestação com os documentos destinados a provar suas
alegações.
221

que a esta modalidade de prova, quando requerida pelo autor, deve acompanhar
a petição inicial, enquanto a prova documental do réu deve acompanhar a
contestação.
A seu turno, a prova oral (depoimento das partes e oitiva de testemunhas) é
produzida em momento posterior, na presença do julgador, em uma audiência de
instrução de julgamento.
Estando a prova produzida, o juiz estará apto a julgar de acordo com os
elementos colhidos na instrução do feito, podendo complementar ou integrar as
provas com fatos notórios e máximas de experiência.

1.2 Máximas de Experiência

A percepção e valoração da prova produzida nos autos passa por um


exercício mental realizado pelo magistrado. Além disto, a colmatação das lacunas
probatórias exige o emprego de experiências do magistrado.
Convém ressaltar já de início que o Juiz foi escolhido pelo Estado para o
exercício da função judiciária em razão não só do seu conhecimento jurídico, vez
que aprovado em concurso público de provas e títulos, com a participação da
Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, mas também em razão de sua
experiência, vez que se exige do candidato, no mínimo, três anos de atividade
jurídica, conforme art. 93, inciso I, da Constituição Federal, com redação dada pela
Emenda Constitucional 45/0415.
A exigência do tempo de atividade jurídica não pode ser utilizada como mero
requisito simbólico ou textual. Pelo contrário, se há necessidade de que o candidato
tenha experiência jurídica, é necessário que o ordenamento jurídico se aproveite
desta experiência, conferindo autoridade a este conhecimento prático.
Analisando o art. 335 do Código de Processo Civil de 1973 (equivalente ao
art. 375 do Código de Processo Civil vigente), Napoleão Nunes Maia Filho relata
que

15
A Emenda Constitucional 45/04 foi chamada de Reforma do Judiciário, sendo a maior alteração no texto constitucional no
que se refere à estruturação do Poder Judiciário, criando o Conselho Nacional de Justiça e estabelecendo as bases da
súmula vinculante.
222

“este dispositivo processual, explicitador da função judicial no tocante ao


sopesamento das provas, harmoniza-se com a maximização do valor que
modernamente se atribuiu ao Juiz na condução do processo judicial,
superando-se aquela famosa fase anterior, em que se afirmava (e com
inteira razão) que o desenvolvimento da instrução processual se
assemelhava em tudo e por tudo a um autêntico duelo entre as partes
litigantes, do que o julgador era um observador privilegiado, sem dúvida,
mas essencialmente e quase sempre passivo. 16

Neste sentido, em que pese a grande quantidade de críticas, vez que confere
ao magistrado o poder de julgar com base na experiência comum e na experiência
técnica, sem limitar ou indicar a forma como esta experiência pode ser
demonstrada, o art. 375 do Código de Processo Civil determina que “o juiz aplicará
as regras de experiência comum subministradas pela observação do que
ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado,
quanto a estas, o exame pericial”.
Analisando a questão, Moacyr Amaral Santos ressalta que
“A prova prima facie terá, assim, a estrutura de uma presunção fundada
numa experiência da vida, vale dizer, de uma presunção calcada numa
norma da experiência. Mas, conquanto consista numa presunção, dela se
distingue, como se verá mais adiante. Será a prova extraída da
experiência da vida, à vista de um fato e do que comumente ocorre
segundo a ordem natural das coisas, e da qual lícito é o juiz utilizar-se
quando difícil se tornar o emprego dos meios probatórios normais.” 17

Em uma visão mais moderna, o professor Daniel Amorim Assumpção Neves


leciona que
“Importante notar que os fatos notórios não se confundem com as
máximas de experiência, que são diferentes espécies do gênero ‘saber
privado do juiz’. Enquanto os fatos notórios se referem a fatos
determinados que ocorrem, a cuja existência têm acesso, de maneira
geral, as pessoas que vivem em determinado ambiente sociocultural, as
máximas de experiência são juízos generalizados e abstratos, fundados
naquilo que costuma ocorrer, que autorizam o juiz a concluir, por meio de
um raciocínio intuitivo, que em identidade de circunstâncias, também
assim ocorra no futuro.”18

Embora aparente desalinhado ou alheio ao tema, a obrigação do magistrado


em residir na comarca, prevista no art. 93, inciso VII, da Constituição Federal vem
justamente impor uma obrigação do juiz conviver na comunidade onde exerce seu
mister, tomando conhecimento da realidade local, dos costumes regionais e do
cotidiano dos jurisdicionados, favorecendo a formação da experiência e
conhecimento das práticas comumente adotadas na sua comarca.

16
MAIA FILHO, Napoleão Nunes. As regras da experiência comum na formação da convicção do juiz, p. 59-75.
17
SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial, vol. V, p. 451.
18
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil, p. 731.
223

Neste sentido, a alocação das máximas de experiência como patrimônio


cultural da esfera social, na lição de Moacyr Amaral Santos:
“São as máximas de experiência noções pertencentes ao patrimônio
cultural de uma determinada esfera social – assim a do juiz e das partes,
consideradas estas representadas no processo por seus advogados – e,
portanto, são noções conhecidas, indiscutíveis, não podendo ser havidas
como informes levados ao conhecido privado do juiz. Constituem elas
noções assentes, fruto de verificação do que acontece de ordinário em
numerosíssimos casos, e que, no dizer de Calamandrei, não dependem
mais de comprovação e crítica mesmo, ‘porque a conferência e a crítica
já se completaram fora do processo’, tendo já a seu favor a autoridade de
verdades indiscutíveis.”19

Inegável, portanto, que o acompanhamento dos costumes locais e o


conhecimento das especificidades regionais deve servir à valoração, pelo
magistrado, da prova produzida nos autos, tornando vivo o direito de acordo com
as práticas reiteradas na comunidade.
Deste modo, a convivência do magistrado entre os jurisdicionados e a
observância das práticas costumeiras na comunidade confere maior autoridade à
decisão do juiz de primeiro grau – que mantém contato direito com as partes,
colhendo inclusive as provas especialmente produzidas em audiência – que as
decisões proferidas por tribunais, as quais tendem à objetividade e a padronização
por vezes incompatível com a realidade local das partes.
Na lição de Cosechen e Maliska, estas relações estabelecidas entre as
pessoas do mundo real, de acordo com as necessidades que surgem no dia a dia
e com os costumes aceitos pela sociedade em que se vive, independentemente de
estarem ou não positivados, de serem ou não autorizados por lei, constitui o
conceito de direito vivo estabelecido por Eugen Ehrlich, cujo pensamento será
analisado adiante.20

2 O DIREITO VIVO DE ERHLICH

Em primoroso estudo, o professor Maliska relata que Eugen Ehrlich (1862-


1922) foi um jurista e sociólogo austríaco, formado pela Universidade de Direito de

19
SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial, vol. V, p. 457.
20
COSECHEN, Daniele Michalowski; MALISKA, Marcos Augusto. O direito vivo das famílias contemporâneas na perspectiva
de Eugen Ehrlich, p. 239.
224

Czernowitz, sua cidade natal, onde também foi professor e reitor. No período que
viveu em Viena, durante a guerra, Ehrlich trabalhou para a publicação de uma
grande obra, que foi publicada em duas partes: A Investigação Judicial do Direito
com base em Preceitos Jurídicos e a Lógica Jurídica, contendo uma crítica à teoria
metodológica tradicional. Sua maior obra, Fundamentos da Sociologia do Direito,
foi publicada em 1913, na qual estabelece a investigação do direito vivo.21
A importância do trabalho de Maliska é notável, vez que resgata o
pensamento de Eugen Ehrlich, traçando desde as características pessoais do
jurista até a análise da sua obra, explicando a importância da Escola do Direito
Vivo e a sua aplicabilidade nas decisões do Supremo Tribunal Federal, tal como o
julgamento da ADI 4277 e ADPF 132, nas quais reconheceu-se a necessidade de
ampliação do conceito de entidade familiar, incluindo a união de pessoas do
mesmo sexo22, e a APDF 186, que tratou da constitucionalidade do sistema de
cotas para o ingresso de negros em universidades públicas23.
Conforme análise percuciente de Cosechen e Maliska acerca de famoso
debate entre Kelsen e Ehrlich, a distinção no pensamento dos juristas reside no
fato de que Kelsen, positivista, reduz o direito à norma jurídica estatal, ao direito
positivado na lei, enquanto Ehrlich entende que o direito não provém
necessariamente do Estado. Aliás, para Ehrlich, apenas uma pequena parte do
direito decorre do Estado. Para Ehrlich, o direito é um fenômeno social que tem
origem na comunidade já que a maior parte da vida jurídica se desenvolve longe o
Estado.24
Neste sentido, o pensamento de Ehrlich se aproxima do conceito de direito
social de Georges Gurvitch, para quem o direito tem o seu nascimento na
Sociedade e não no Estado, não necessitando sequer deste para a sua existência,
sendo possível inclusive a existência do direito sem qualquer ato do Estado.25
Ainda, de acordo com Maliska,
O direito vivo, em contraposição ao apenas direito vigente diante dos
tribunais e órgãos estatais, encontra-se na dinâmica da vida, nos desafios
que traz o desenvolvimento tecnológico, nas novas práticas que abrem
novos campos de trabalho ao jurista. Respondendo à indagação se o
direito vivo de um povo pode constar de um código, Ehrlich responde que

21
MALISKA, Marcos Augusto. Introdução à sociologia do direito de Eugen Ehrlich.
22
Ibidem, p. 142.
23
Ibidem, p. 148.
24
COSECHEN, Daniele Michalowski; MALISKA, Marcos Augusto. O direito vivo das famílias contemporâneas na perspectiva
de Eugen Ehrlich, p. 239.
25
VIEIRA, Reginal do de Souza. Pluralismo jurídico clássico, p. 116.
225

tal medida equivaleria a representar uma corrente de água em um tanque.


Não se teria mais uma corrente viva, apenas água morta.26

Nas palavras do próprio Ehrlich,

Este, portanto, é o direito vivo em contraposição ao apenas vigente diante


de tribunais e órgãos estatais. O direito vivo é aquele que, apesar de não
fixado em prescrições jurídicas, domina a vida. As fontes para conhece-
lo são sobretudo os documentos modernos, mas também a observação
direta do dia-a-dia do comércio, dos costumes e usos e também das
associações, tanto as legalmente reconhecidas quanto as ignoradas e até
ilegais.
A principal fonte para o conhecimento do direito vivo em nossa época sem
dúvida é o moderno documento legal. Entre os documentos, porém,
destaca-se hoje em dia um: a sentença judiciária. Isto, porém, dificilmente
se dá no sentido como ele aqui é empregado: não se a trata como
testemunho do direito vivo, mas como parte da bibliografia jurídica que
não é examinada quanto à verdade das relações jurídicas ali descritas e
ao direito vivo daí decorrente, mas quanto à correção da interpretação das
leis e construções jurídicas nela contidas.27

Para Maliska, o conceito ehrlichiano de “direito vivo” propicia uma ponte com
o Direito Constitucional. No entanto, esse conceito que, em algum sentido, estaria
onde a lei não está, pois retrata a dinamicidade da vida em contraposição ao
caráter estático do direito legislado, necessita ser compreendido no quadro da
normatividade constitucional28.
Mais adiante, Maliska ressalta que o direito vivo ehrlichiano retrata as forças
da sociedade, demonstra a existência de uma estrutura democrática de poder
assentada sobre o princípio da liberdade29.
Para Cosechen e Maliska, o professor de Czernowitz sugere que a tarefa do
operador do Direito é o estudo dos hábitos das relações jurídicas, dos contratos,
dos estatutos, das declarações de última vontade, para extrair as regras do agir
que orientam as pessoas, o direito vivo, que é a base da ordem legal da sociedade
humana.30
Explicando o direito vivo, Ehrlich ressalta que o jurista forma as prescrições
jurídicas tendo em vista as necessidades práticas do momento, preocupando-se
apenas com o que lhe interessa por motivos práticos. Por uma questão de lógica,
o jurista não perderá tempo formulando prescrições jurídicas referentes a objetos

26
MALISKA, Marcos Augusto. Introdução à sociologia do direito de Eugen Ehrlich, p. 121.
27
EHRLICH, Eugen. Fundamentos da Sociologia do Direito, p. 378.
28
MALISKA, Marcos Augusto. Introdução à sociologia do direito de Eugen Ehrlich, p. 138.
29
Ibidem, p. 141.
30
COSECHEN, Daniele Michalowski; MALISKA, Marcos Augusto. O direito vivo das famílias contemporâneas na perspectiva
de Eugen Ehrlich, p. 239.
226

que estão fora de seu campo de interesses, possivelmente porque não competem
ao julgamento ou porque não interessam à sua clientela.31
Maliska ressalta na obra de Ehrlich que a investigação do direito vivo não
pode ficar restrita ao estudo das decisões judiciais, porque elas fornecem um
quadro completo da vida jurídica. Apenas uma parte mínima do que acontece na
realidade é levada aos tribunais32. De acordo com o autor:
Ainda que o documento jurídico seja uma fonte importante para a
investigação do direito vivo, não se pode supervaloriza-lo imaginando que
todo o seu conteúdo seja portador e um testemunho do direito vivo. Direito
vivo no conteúdo de um documento é aquilo que as partes, na vida real,
de fato, observam e não o que os tribunais declaram como obrigatório
para o caso.33

Ehrlich não afasta ou rejeita a importância do direito legislado e positivado,


especialmente em decorrência do papel do próprio Estado atual nas sociedades
modernas:

Evidentemente seria uma ideia infantil querer desistir totalmente da


legalização do direito dos juristas. O direito científico e o dos juízes
superam o direito legal em riqueza, maleabilidade; mas, numa fase
superior de evolução, a humanidade é confrontada com uma série de
tarefas na vida jurídica que, ao menos na atual constituição social, só
podem ser resolvidas pelo Estado.34

No entanto, é necessário que se dê a importância ao direito vivo como fonte


inclusive do direito legislado, não só nas relações interpessoais, mas também seu
reconhecimento no trâmite de um processo judicial, nas principais manifestações
do juiz, na forma prescrita por Ehrlich, especialmente para correção da
interpretação das leis e construções jurídicas nelas contidas.

3 DIREITO VIVO NAS DECISÕES JUDICIAIS

Após a análise da cognição e das provas processuais, essenciais à


compreensão do objetivo deste trabalho, bem como da parte da Sociologia do
Direito de Ehrlich especificamente no que se refere ao direito vivo, é possível traçar

31
EHRLICH, Eugen. Fundamentos da Sociologia do Direito, p. 374.
32
MALISKA, Marcos Augusto. Introdução à sociologia do direito de Eugen Ehrlich, p. 122.
33
Ibidem, p. 123.
34
COSECHEN, Daniele Michalowski; MALISKA, Marcos Augusto. O direito vivo das famílias contemporâneas na perspectiva
de Eugen Ehrlich, p. 239-240.
227

um padrão comportamental do juiz diante das principais manifestações no


processo civil.
Não se objetiva aqui realizar um estudo de jurimetria capaz de prever a sorte
de um processo. Longe disto, o objetivo maior é o estudo da possibilidade do
julgador, diante de uma decisão importante, possa se utilizar em maior ou menor
grau do conceito de direito vivo.
Para o escopo deste estudo, tomar-se-ão como decisões importantes o
pedido liminar, a sentença de mérito, o julgamento de recurso e a impugnação do
cumprimento do julgado.
Antes, no entanto, da análise pontual de cada uma destas decisões, é
importante ter em mente que, quanto maior a prova produzida nos autos, maior a
vinculação do magistrado com estes elementos, estreitando os limites da
valoração, sob pena de violação das regras de imparcialidade do julgador e do
ônus probatório das partes.
Embora a obra Fundamentos de Sociologia do Direito de Eugen Ehrlich
determine a tomada de decisão com base na efetiva observação direta do dia-a-
dia do comércio, dos costumes e usos e associações, tanto as legalmente
reconhecidas quanto as ignoradas e até ilegais, é necessário observar que seus
fundamentos foram traçados antes da Teoria Pura do Direito que lançou bases do
positivismo de Hans Kelsen.
O debate entre Ehrlich e Kelsen demonstra que o direito pode ser visto sob
ângulos diversos, devendo-se atentar que o positivismo não pode ser base para
uma estrutura jurídica alheia à realidade. O debacle do positivismo no pensamento
de Carl Schimitt demonstra que, embora o direito sirva para a regulação das
relações jurídicas, não pode se afastar da realidade, sob pena de criar um hiato
jurídico incapaz de resolver os problemas sociais.
Esta advertência de Ehrlich é atual, embora escrita há mais de 100 anos:
Por isso de forma alguma a ciência e o ensino podem restringir-se a
explicar o que está escrito na lei; eles deveriam investigar as
configurações reais, que são diferentes em cada classe social e em cada
região, mas que possuem uma essência uniforme e típica. Não se discute
aqui se a lei perdeu o domínio sobre a vida ou talvez nunca o tenha
possuído, se a vida evoluiu para além da lei ou nunca tenha
correspondido a ela. Também aqui a ciência como doutrina do direito
cumpre mal a sua tarefa se ela se limita a descrever o que a lei prescreve
e não o de fato acontece.35

35
EHRLICH, Eugen. Fundamentos da Sociologia do Direito, p. 377.
228

Diante deste quadro, passamos a analisar a possibilidade de aplicação em


maior ou menor grau do direito vivo nas manifestações judiciais mais importantes
dentro do processo civil.

3.1 Decisão liminar

Embora exista discussão na doutrina acerca dos reais limites do conceito de


liminar, para os objetivos deste estudo será tomada como a decisão concedida no
início do processo, portanto, antes de se dar conhecimento ao réu acerca da
existência de uma demanda contra si. Não há adequação da utilização do termo
quando, por exemplo, o juiz concede a antecipação da tutela em sentença. Embora
seja possível esta concessão, e por vezes útil ao beneficiado, não se está diante
de uma liminar.
Não há dúvida de quanto mais exauriente for o conhecimento do magistrado,
maior segurança haverá no julgamento da questão, tendendo a sentença a ser
mais justa. Maior segurança representa também maior tempo e maior quantidade
de instrumentos colocados à disposição das partes para o convencimento do
magistrado. Dito isto, é natural que a maior quantidade de instrumentos resulta em
maior tempo para a solução definitiva da demanda.
A maior segurança das partes encontrou eco na elaboração do Código de
Processo Civil vigente, especialmente no passo em que determinou, no art. 21936,
a contagem dos prazos em dias úteis.
De se observar que, pari passu, na mesma medida em que aumenta a
segurança, o tempo provoca um efeito nefasto consistente na demora da prestação
da tutela jurisdicional.
Neste sentido, a lição de Humberto Theodoro Junior:
Mas, há situações concretas em que a duração do processo e a espera
da composição do conflito geram prejuízos ou risco de prejuízos para uma
das partes, os quais podem assumir proporções sérias, comprometendo
a efetividade da tutela a cargo da Justiça. O ônus do tempo, às vezes,
recai precisamente sobre aquele que se apresenta, perante o juízo, como
quem se acha na condição de vantagem que afinal virá a merecer a tutela
jurisdicional. Estabelece-se, em quadras como esta, uma situação injusta,
em que a demora do processo reverte-se em vantagem para o litigante

36
CPC, art. 219. Na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis.
Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se somente aos prazos processuais.
229

que, no enfoque atual, não é merecedor da tutela jurisdicional. Criam-se,


então, técnicas de sumarização, para que o custo da duração do processo
seja melhor distribuído, e não mais continue a recair sobre quem
aparenta, no momento, ser o merecedor da tutela da Justiça. Fala-se,
então, em tutelas diferenciadas, comparativamente às tutelas comuns.
Enquanto estas, em seus diferentes feitios, caracterizam-se sempre pela
definitividade da solução dada ao conflito jurídico, as diferenciadas
apresentam-se, invariavelmente, como meios de regulação provisória da
crise de direito em que se acham envolvidos os litigantes. 37
Assim, nos termos do art. 300 do Código de Processo Civil, para a concessão
de uma liminar, deve-se demostrar a probabilidade do direito alegado e o perigo de
dano ou o risco ao resultado útil do processo.
Neste ponto, observa-se que a cognição é sumária, suficiente apenas a
demonstrar a probabilidade (e não a existência efetiva) do direito alegado.
Na vigência do código anterior dizia-se que esta cognição sumária não
poderia gerar os efeitos da coisa julgada. Na vigência do atual Código de Processo
Civil, no entanto, há a possibilidade desta decisão concedida com base na
cognição superficial se tornar definitiva (ou estável) no caso da parte requerida não
interpor recurso, conforme preceitua o art. 304 do diploma legal:
Art. 304. A tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se
estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo
recurso.
§ 1.º No caso previsto no caput, o processo será extinto.
Neste momento processual, as provas apresentadas ao juiz se limitam às
provas do autor, cuja exigência legal é mínima, vez que deve ser demonstrada a
probabilidade do direito e o perito de dano ou risco ao resultado útil do processo.
Diante deste conjunto probatório mínimo proposto pela lei, a exigência das
máximas de experiência do julgador e o conhecimento das práticas usuais da
comunidade é essencial para uma decisão mais ponderada.
A máxima justiça nesta fase inicial do processo somente será alcançada se o
juiz possuir, além de uma boa experiência, conhecimento acerca da prática
comercial, dos costumes e usos dos jurisdicionados, ou seja, do direito vivo
relacionado àquela comunidade.
Analisando casos em que o pedido de liminar se relaciona com tutela de
urgência extremada pura, assim considerados os casos em que o perigo de dano
é premente e irreparável chegando ao ponto de desviar o foco de atenção do juiz,
Eduardo José da Fonseca Costa, em sua tese de mestrado, cita como exemplos
duas situações extremadas: a) do perigo de que um candidato eliminado não
participe da próxima etapa do concurso público, ou de que uma empresa

37
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, vol. I.
230

desabilitada não faça parte da próxima fase da licitação (uma vez que, denegada
a liminar, será de impossível implantação prática a eventual futura sentença de
procedência); b) do perigo de dano à vida ou à integridade física (que são os dois
bens mais relevantes para a ordem constitucional)38.
Mais adiante, o referido autor relata que:
“Decerto, as mais corriqueiras formas de tutela de urgência extremada
pura no dia-a-dia forense dizem respeito à saúde. Exemplos desse tipo
se encontram em grande quantidade nos repertórios de jurisprudência.
Comumente, nas ações ajuizadas em face das empresas de plano de
saúde, são proferidas decisões liminares ordenando a internação do
autor, o tratamento das enfermidades descritas na petição inicial ou a
realização de consultas e exames, não obstante haja cláusulas
contratuais de exclusão expressa da cobertura requerida. Não é difícil
imaginar que, em casos como esses, os juízes se sintam bastante
pressionados pelo drama que acomete o demandante e pelo tempo
restrito de que dispõem para decidir. Por conseguinte, não é raro que em
primeira instância essas medidas liminares sejam concedidas inaudita
altera parte, já que geralmente as petições iniciais narram situações de
tensão em que a vida do autor está por um fio. Ora, o bem jurídico aqui
ameaçado é a vida e lesões à vida não são reversíveis. Logo, o grau de
periculum in mora é máximo. Assim sendo, basta que o advogado –
minimamente versado em linguagem emotiva – coloque sobre o colo do
juiz a vida do seu cliente e curve o magistrado a um único raciocínio:
‘salve-se a vida; só após se discuta o direito’.” 39
O maior conhecimento acerca das práticas comuns com as empresas de
plano de saúde confere maior segurança ao magistrado – conhecedor do direito
vivo comum naquele âmbito – para a concessão da liminar.
Notório, portanto, que o direito vivo de Erhlich se manifesta em sua amplitude
máxima diante do pedido liminar do autor, especialmente quando a questão
demanda uma tutela de urgência extremada, em que o juiz precisa ter
conhecimento acerca das práticas efetivas que ocorrem nas relações da natureza
que se lhe apresenta o processo.
Esta experiência do magistrado, conhecedor das práticas efetivas, aplica-se
ainda que não se esteja diante de uma tutela de urgência extremada, visto que a
valoração da prova pré-constituída necessária para análise da probabilidade do
direito alegado pelo autor passa pelo filtro do direito vivo na forma proposta pela
Sociologia do Direito de Ehrlich.

38
FONSECA, Eduardo José da. O direito vivo das liminares, p. 66.
39
FONSECA, Eduardo José da. O direito vivo das liminares, p. 68-69.
231

3.2 Sentença de Mérito

Em que pese o escopo deste trabalho se limite às decisões de maior


importância no processo civil, antes de adentrar na sentença de mérito é importante
ressaltar que a própria colheita da prova perpassa pelo direito vivo, do qual o
julgador deve ter conhecimento, sob pena de empobrecer toda a instrução
processual, comprometendo inclusive o julgamento de eventual recurso. O juiz que
não tem conhecimento do direito vivo deixa de obter as informações essenciais
acerca do caso, comprometendo a justiça do julgamento, instruindo o feito de forma
pouco cuidadosa e sem zelo.
No que se refere à sentença de mérito, é necessário o que ao juiz tenha sido
apresentada toda prova referente à questão que pretende julgar.
Na fase de sentença, o juiz já tomou conhecimento da prova documental
apresentada com a inicial e com a contestação, colheu a prova pericial
eventualmente requerida e deferida, bem como manteve contato com as partes e
testemunhas em uma audiência de instrução.
Após a ponderação das partes, realizada nas alegações finais, o processo
segue para o magistrado, que tem à sua disposição toda a prova necessária para
fundamentar sua decisão.
Neste ponto, não se pode falar que não há espaço para o direito vivo.
Em primeiro lugar, o direito vivo também tem por objetivo a valoração do
magistrado em relação às provas colhidas durante a instrução do feito. Esta análise
é feita na sentença, momento em que o juiz pode descartar determinadas provas,
incluindo eventual laudo pericial, desde que fundamente sua decisão. Assim, uma
prova colacionada aos autos que, a par de demonstrar a efetiva ocorrência de um
fato que se queria provar, pode ser afastada se não estiver de acordo com o direito
vivo que se realizou entre as partes.
É o caso dos contratos vaca-papel40, bastante comuns para encobrir
contratos de mútuo com cobrança de juros usurários. A prova produzida com a

40
Neste sentido umas das mais interessantes decisões do Superior Tribunal de Justiça, que analisou o contrato de vaca-
papel como instrumento de usura, em situação bastante comum na prática habitual: AGRAVO REGIMENTAL EM
RECURSO ESPECIAL. ARRENDAMENTO RURAL. "VACA-PAPEL". USURA. PRECEDENTES. DANOS MORAIS.
AFASTADOS PELO TRIBUNAL DE ORIGEM À LUZ DOS ELEMENTOS FÁTICOS DA CAUSA. SÚMULA N.º 7/STJ.
COISA JULGADA E PRESCRIÇÃO. SÚMULA Nº 283/STF. 1. Segundo a jurisprudência desta Corte Superior, é
possível a um dos contratantes buscar a anulação de contrato de parceria pecuária que, na verdade, representa, na
dicção do Tribunal de origem, um mútuo com cláusulas usurárias, comumente denominado "vaca-papel". 2. Para
prevalecer a pretensão em sentido contrário à conclusão do tribunal de origem quanto à inexistência de danos morais, mister
232

juntada de eventual contrato firmado pelas partes pode ser afastada na valoração
realizada pelo magistrado na sentença quando verificada a prática comum em
determinada região de simulação de negócio jurídico consistente em empréstimo
com juros usurários, necessitando que o juiz tenha conhecimento do direito vivo
consistente na prática do comércio, dos costumes e usos locais.

3.3 Grau recursal

Após a prolação da decisão, a parte prejudicada poderá, desde que


cumpridos os requisitos legais, apresentar recurso para que a questão seja
submetida a um novo julgamento.
Este novo julgamento é realizado, em regra, por um tribunal, cujo maior
objetivo é a pacificação da jurisprudência. Aqui, talvez, a maior diferença no
julgamento realizado em primeiro grau e o julgamento realizado em segundo grau:
na sentença, o juiz resolve uma demanda que contrapõe autor e réu, buscando a
solução mais adequada para o caso concreto, enquanto na apelação, o tribunal
busca a unificação da jurisprudência, julgando de forma mais objetiva, vez que não
há, em regra, contato direto entre os julgadores e as partes.
O direito vivo, neste caso, encontra expressão em grau mínimo, vez que o
julgamento é bastante objetivo, não se atento às especificidades do local do início
do litígio. Aliás, no mais das vezes, os novos julgadores sequer conhecem a cidade
de onde se originou a lide.
Diante deste quadro, o direito vivo que fundamenta a realidade das relações
pessoais cede lugar ao positivismo kelseniano e, via de consequência, ao direito
estatal, o qual preza pela impessoalidade do direito.
No entanto, não se pode olvidar que surge a partir de então um novo campo
de atuação do direito vivo, consistente principalmente em decisões reiteradas
acerca de temas de máxima importância que não são tratados especificamente por
lei, ou o sendo necessitam de uma complementação.
O direito vivo, neste caso, fundamenta a formulação de súmulas e enunciados
pelos tribunais, os quais não são leis, mas servem de parâmetro para julgamento

se faz a revisão do conjunto fático-probatório dos autos, o que, como já decidido, é inviabilizado, nesta instância superior,
pela Súmula nº 7 desta Corte. 3. A ausência de impugnação dos fundamentos do acórdão recorrido, mormente quanto à
prescrição e à coisa julgada, os quais são suficientes para mantê-lo, enseja o não conhecimento do recurso, incidindo o
enunciado da Súmula nº 283 do STF 4. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1326099/MS, Rel. Ministro RICARDO
VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/09/2013, DJe 26/09/2013)
233

de processos em tratam da mesma matéria, mesmo pedido e mesma causa de


pedir.
Neste sentido, Alfredo Buzaid reporta que a jurisprudência é o direito vivo,
proclamando “a norma jurídica concreta que atuou quando surgiu o conflito de
interesses.”41
Aliás, a partir deste pensamento de Alfredo Buzaid, não somente as súmulas,
mas também o julgamento por tribunal pela sistemática recursos especiais e
extraordinários repetitivos buscam o reconhecimento de um entendimento que
deve refletir uma realidade, ainda que incompatível com a legislação vigente, ou
quando esta sequer há uma normatização específica para o caso concreto.
Considerando a impossibilidade do Poder Judiciário legislar para as relações
interpessoais, e dada a necessidade de se proferir uma decisão, ainda que haja
lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico, a necessidade de formulação de
uma súmula ou da sedimentação de um entendimento, o direito vivo surge como
elemento essencial para validação destes atos judiciais, vez que não pode ser
realizado julgamento, à mingua de lei, que não leve em consideração a realidade
das relações e da prática costumeira das partes envolvidas no processo.
Art. 140. O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou
obscuridade do ordenamento jurídico.
Parágrafo único. O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em
lei.
Portanto, ainda que visto sob outro enfoque, o direito vivo permanece
aplicável em grau recursal, pelos tribunais, dada a necessidade de integração do
ordenamento jurídico.
Neste ponto, a reforma do Judiciário, promovido pela Emenda Constitucional
45/04, autorizou a emissão de súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal
Federal42, com efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário
e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e
municipal.

41
BUZAID, Alfredo. Uniformização da Jurisprudência, p. 190.
42
CF, art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos
seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na
imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e
indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma
estabelecida em lei.
234

CONCLUSÃO

A investigação do direito vivo dentro das relações pessoais proposta por


Eugen Erhlich nos Fundamentos de Sociologia do Direito resulta no
reconhecimento da necessidade de o Direito não se distanciar da prática cotidiana
do comércio, da família, dos usos e costumes.
Em que pese a advertência de Ehrlich há mais de 100 anos, é possível
observar ainda nos dias atuais um distanciamento que gera a necessidade de
intervenção do Estado na figura do Juiz, chamado a resolver o litígio entre as partes
que podem e devem produzir as provas necessárias para o convencimento do
julgador ao final da instrução do feito.
Do ponto de vista do julgador, no entanto, há momentos típicos no processo
civil que demandam uma decisão, por vezes calcada em uma prova superficial não
submetida ainda ao contraditório, e em outras vezes já se permitiu o esgotamento
de todas as provas admitidas na legislação aplicável.
Dentro do escopo deste estudo, observou-se que quanto menos instruído se
encontra o processo, exige-se maior conhecimento do julgador acerca do direito
vivo aplicável ao caso em litígio. Por outro lado, quanto mais instruído estiver o
processo, o direito vivo ganha uma nova roupagem, passando a determinar a
integração das lacunas legislativas e a interpretação de obscuridades da lei.
Em razão disto, a necessidade que a Constituição da República Federativa
do Brasil impõe ao magistrado que resida efetivamente na comarca onde exerce
sua função demonstra a importância que se dá à relação do juiz com a comunidade
onde judica, forçando-o de forma legítima a conhecer a realidade local, os usos e
costumes da região.
Neste sentido, é premente a necessidade de que o julgador tenha convivência
com a comunidade, e dela participe, a fim tomar maior conhecimento do direito vivo
praticado na comarca, formando um cabedal de conhecimento prático-jurídico que
tornem suas decisões mais compatíveis com a realidade, com os costumes e
práticas dos jurisdicionados.
235

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2000.
237

O EMPRESÁRIO E A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA


DE DIREITO PRIVADO

1
Nelinho Kukla
RESUMO: Trata-se o presente artigo de realizar uma pesquisa bibliográfica em torno da pessoa
jurídica e verificar até onde podemos responsabiliza-la, em quais momentos essa responsabilidade
é dada, e as polêmicas existentes entre a pessoa jurídica e a doutrina penal. Apesar de a muito
tempo existir a legislação que realiza a punição a pessoa jurídica, a pouco tempo se fala nas
responsabilidades penais por ela aplicada como meio de intervenção nos casos recentes vividos
em nosso país, levando em consideração os riscos e acidentes caracterizados por atividades
econômicas que temos em diversas áreas do setor, mostrando que ocorre a culpa do indivíduo a
frente de uma empresa, órgão ou instituição.

Palavras-chave: responsabilidade jurídica, penal, econômica.

ABSTRACT: It is the present article to carry out a bibliographical research around the juridical
person and to verify to what extent we can hold it responsible, in what moments this responsibility is
given, and the controversies existing between the legal person and the criminal doctrine. Although
there is a long period of legislation that punishes a legal entity, it is only a short time that the criminal
responsibilities applied by it as a means of intervention in the recent cases in our country are taken
into account, taking into account the risks and accidents characterized by economic activities that
we have in several areas of the sector, showing that the individual is guilty in front of a company,
organ or institution.
Keywords: legal, penal, economic responsibility.

1 INTRODUÇÃO

A questão que norteia o presente trabalho está no desenvolvimento de uma


pesquisa que permita esclarecer e demonstrar como ocorre a responsabilidade
penal para pessoas jurídicas e como isso pode afetar uma pessoa jurídica e
também se estes fatos irão recair sobre pessoas físicas.
Desta forma passaremos a discutir como a pessoa jurídica será constituída,
quais são os elementos que interferem a mesma e como são formados os
processos de tomadas de decisões sendo lícitas ou ilícitas dentro da empresa que
pode responder pelo dolo por ela ocasionada. Neste tocante podemos nos
perguntar o quanto uma pessoa jurídica é responsável pelos crimes ou danos a
terceiros já que ela não tem nenhuma forma ou interesse na tomada de uma
decisão, ora, por traz de uma pessoa jurídica sempre há uma ou mais pessoas
físicas para indicar o caminho que a empresa irá seguir, sendo o ato de um humano

1
Mestrando em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário Autônomo Do Brasil – Unibrasil e Faculdades
Integradas Do Vale Do Iguaçu – Uniguaçu, programa interinstitucional de Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia
– Minter. Pós Graduado em Gestão de Recursos Humanos pela Uniguaçu, graduado em Ciências Contábeis pela Faculdade
de União da Vitoria – FACE/UNIUV, inscrito com CRCPR 050194-O/6.
238

responsável pelo sucesso, ou fracasso, pela ação de boa fé ou pelo crime cometido
seja ele contra a ordem econômica ou tributária do país.
O presente artigo fará uma separação entre o que uma pessoa jurídica pode
responder em algumas esferas como a proposta do mesmo é trabalhar a esfera
criminal ou penal, porém muitos dos assuntos tratados dentro do nosso país no
ramo societário ou empresarial, não são direcionado ao direito penal, mas sim ao
administrativo. Assim buscaremos na história fatores que contribuíram para o
avanço do direito fazendo com que dentro da nossa Constituição Brasileira haja
fundamentos que em sua última alteração pudessem trazer benefícios e fazer com
que essas mudanças assegurassem o povo e o governo de ações de pessoas
físicas que por opção tornaram-se civilmente pessoas jurídicas e como a nova
constituição e o código penal auxiliaram na penalização de atos ilícitos,
principalmente quando escrevo sobre direito tributário e também direito ambiental,
o qual trouxe um exemplo de ações que ocorrem em nosso país e que o direito
penal pode intervir, quando tratamos do meio ambiente e de fatos acontecidos
recentemente, cito o exemplo do rompimento das barragens de Brumadinho o qual
afetou diretamente centenas de famílias, os quais perderam vidas, casas,
familiares, houve a poluição do meio ambiente e também atentou-se contra a vida,
desrespeitou o ser humano, tirou a igualdade das pessoas e que atingiu aspectos
culturais, econômicos, geográficos e que como o exemplo de Mariana a anos atrás
pouca coisa foi feita para reaver os danos perdidos.
Pouca informação ainda foi passada, poucas pessoas respondem pelos
diversos crimes cometidos e aqui uma provocação é feita. A culpa é da pessoa
jurídica? De uma pessoa física? Ou das duas já que uma responde pela outra após
ser civilmente concretizada a pessoa jurídica.
Assim usando autores e referências o objetivo final do trabalho é fazer com
que haja um pensamento e que se encaixe a informação por meio de expansão de
capacidade para realização de um trabalho rico em conhecimento.

2 O EMPRESÁRIO E A RESPONSABILIADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA

Partindo da ideia de pessoa jurídica, levamos em consideração suas


responsabilidades, civis e criminais mediante aos serviços prestados a população
239

e entes governamentais, aos quais devemos observar os fatos geradores de


problemas que afetam a sociedade de forma direta ou indireta, nos setores públicos
e privados, onde uma das partes é prejudicada por uma ato ilícito culposo ou doloso
realizado por parte do empresário.
A pessoa jurídica de direito privado se constitui quando um ou mais
integrantes denominados pessoa física juntam-se para compor uma empresa, a
qual será denominada pessoa jurídica em uma sociedade de pessoas, realizado
assim o empréstimo de seu nome perante a lei para obter uma personalidade
jurídica. Ainda segundo Silvio Rodrigues o conceito de pessoa jurídica acontece
usando este empréstimo de personalidade perante a lei.

Pessoas jurídicas, portanto, são entidades a que a lei empresta


personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica, com
personalidade diversa da dos indivíduos que os compõem, capazes de
serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil. (RODRIGUES,
p.64)

Apesar de todo este contexto civilista que existe, o período


moderno após o século XX trouxe mudanças ocorrendo a inserção do direito
penal, ou a maior atuação do mesmo nas diversas áreas, entre elas as pessoas
jurídicas, assim vários países utilizaram se deste ramo do direito para moldar
dentro do sistema penal os crimes cometidos por pessoas jurídicas, entre estes
países cito a Alemanha, França e Inglaterra, criando a possibilidade de fazer com
que ocorresse a reponsabilidade de uma pessoa jurídica acerca de infrações a qual
fossem responsabilizadas.
Com a Lei 9.605/98, ocorreu a mudança onde houve um complemento a
constituição prevendo a responsabilidade penal a pessoa jurídica que
transgredisse as leis em infrações cometidas ao seu favor ou benefício a qual seu
representante legal fosse interessado ou beneficiado. Mesmo com toda esta
mudança ainda há discussões sobre pessoas jurídicas serem penalizadas na
esfera penal, pois catedráticos colocam-se contrários a criminalização alegando
que as pessoas jurídicas não se manifestam de forma própria, mas sim por
influencia ou decisão de outras, as quais são pessoas físicas capazes de deliberar
a favor das empresas, inexistindo a culpa nestes casos.
Autores como Dotti, colocam seu ponto de vista em situações desta forma,
sendo contrários a criminalização das pessoas jurídicas.
240

Violação ao princípio da humanização das sanções, já que a violação ao


princípio da personalização da pena que visa punir uma conduta humana;
dificuldade de investigar e individualizar as condutas nos crimes de
autoria coletiva, tornando difícil a caracterização da culpa e a
consequente aplicação de uma pena; violação ao princípio da isonomia
porque, a partir da identificação da pessoa jurídica como autora e
responsável, os demais participes poderiam ser beneficiados com o
relaxamento dos trabalhos de investigação; dificuldade em se verificar o
tempo do crime, pois quando o legislador definiu o momento do crime com
base em uma ação humana, ou seja, uma atividade final peculiar as
pessoas naturais, não previu a possibilidade de pessoas jurídicas
cometerem crimes; ofensa a princípios relativos à teoria do crime, em
especial na caracterização da culpabilidade; imputabilidade ; tipicidade;
dificuldade em se verificar o lugar do crime, pois não é possível
estabelecer o local da atividade em relação às pessoas Jurídicas que tem
a diretoria e administração em várias partes do território pátrio e, mesmo
adotando a teoria da ubiquidade, haveria dificuldade em definir onde
foram praticados os atos de execução (DOTTI, 1995, p.185- 207).

Ainda, Aguiar Dias diz:

Do ponto de vista da ordem social, consideramos infundada qualquer


distinção a propósito da repercussão social ou individual do dano. O
prejuízo imposto ao particular afeta o equilíbrio social. É, a nosso ver,
precisamente nesta preocupação, neste imperativo, que se deve situar o
fundamento da responsabilidade civil. Não encontramos razão suficiente
para concordar em que à sociedade o ato só atinge em seu aspecto de
violação da norma penal, enquanto que a repercussão no patrimônio do
indivíduo só a este diz respeito. Não pode ser exata a distinção, se
atentarmos em que o indivíduo é parte da sociedade; que ele é cada vez
mais considerado em função da coletividade; que todas as leis
estabelecem a igualdade perante a lei, fórmula de mostrar que o equilíbrio
é interesse capital da sociedade (DIAS, apud GAGLIANO; PAMPLONA
FILHO, 2009, p.38).

Com esta ótica ao passo em que se observarmos de uma forma


social, o autor coloca como infundada a distinção que pode levar ao
dano, sendo que podemos ter um desiquilíbrio social que afetaria o particular, o
que ocorre por exemplo em dívidas tributárias onde é comum na atualidade a
execução de uma dívida levando o empresário e a empresa em um mesmo nível,
sendo que caso a empresa não possa arcar com a dívida e não tenha capital ou
bens como garantia, a mesma é repassada ao empresário que será responsável
pela mesma, inclusive podendo ser penhorado seus bens como pessoa física, e
mesmo em caso de baixa ou dissolução da empresa é responsável por toda a
dívida da empresa, sendo ela na esfera Municipal, estadual ou Federal.
Quando entramos no tocante da responsabilidade penal, fazemos algumas
considerações acerca da pessoa jurídica a qual não podemos deixar de fora
algumas teorias como a da ficção e realidade.
241

Savigny, diz que uma pessoa jurídica sendo uma ficção, não tem vontade
própria e também é incapaz de realizar por si própria uma atividade ilícita, sendo
seus representantes capazes de tomar essas decisões e seus representantes
capazes de responder por ela, já que a mesma não tem existência real, sendo
assim a pessoa jurídica é incapaz de responder pelos atos da empresa, ora pois
suas decisões como acima mencionadas são tomadas pelos seus sócios. Assim
chegamos com esta teoria ao ponto que as infrações realizadas dentro de uma
empresa não são de vontade própria, logo ocasionadas por decisões de sócios e
diretores da empresa que tiveram motivos particulares para tomada de uma
decisão imprópria causando a pessoa jurídica danos que logo seriam de seu
comandado.
Comenta Sirvinskas a sobre teoria da ficção (2004, p.59):
Para a teoria da ficção, a pessoa jurídica não pode cometer delito, pois é
destituída de consciência e de vontade. Os delitos praticados pela pessoa
jurídica são de responsabilidade de seus dirigentes. São esses os
responsáveis pelos crimes praticados pelas pessoas jurídicas.

Dentro da Teoria da Realidade ocorre diferenças tratadas adiante


onde diz que a pessoa jurídica é um ente real, tem suas vontades reais e também
responde pelos atos da sua entidade, inclusive capaz de transgredir as leis e
responder de forma cível e penal pelos atos e fatos administrativos ocorridos em
qualquer período dentro da empresa, como cita a Constituição Brasileira de 1988,
baseada na Lei 9.605 de 1998.
Neste sentido diz:
Podemos dizer que, anteriormente à nova ordem jurídica constitucional,
no direito pátrio, nunca foi admitida a responsabilidade penal da pessoa
jurídica. Contudo, a Constituição Federal de 1988 contém dispositivos que
levaram parte da doutrina a aceitar tal possibilidade nos atos praticados
contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular (art.
173, § 5.o), bem como nas condutas e atividades lesivas ao meio
ambiente (art. 225, § 3.o)[1]. A questão, porém, é polêmica, pois parte da
doutrina não admite essa possibilidade, mesmo fundada diante dos
referidos dispositivos constitucionais[2].
Parte da doutrina afirma que a Constituição Federal admitiu
expressamente a possibilidade da pessoa jurídica receber sanção penal,
além de responder nas esferas administrativa e civil, por conduta ou
atividade lesiva ao meio ambiente (art. 225, § 3.o).
Também afirmam que o § 5.o do art. 173 da Lei Maior admitiu,
implicitamente, a responsabilidade penal de pessoa jurídica nos atos
praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia
popular, por prever que a lei poderá sujeitá-las "às punições compatíveis
com sua natureza".
Segundo esse entendimento, a expressão "punições compatíveis com
sua natureza" (CF, art. 173, § 5.o) deve ser interpretada sistematicamente
242

com o § 3.o do art. 225 da Lei Maior, que admite expressamente a sanção
penal da pessoa jurídica[3].
Reforçando essa idéia, LÚCIO RONALDO P. RIBEIRO menciona que o
"projeto da Constituição, já na Comissão de Sistematização, em
dezembro de 1987, não deixava dúvidas acerca da introdução da
responsabilidade criminal da pessoa jurídica no Brasil. 'In verbis': 'Art. 202
(correspondente do art. 173 parágrafo 5.o. da atual Constituição Federal)
5.o. A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos integrantes da
pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade criminal desta,
sujeitando-a às penas compatíveis com sua natureza, nos crimes
praticados contra a ordem econômica e financeira e a economia
popular.'"[4].
Para essa corrente doutrinária, é perfeitamente possível responsabilizar
criminalmente a pessoa jurídica por ela ser uma realidade, que tem
vontade própria, nascida do encontro das vontades de seus membros.
Assim, para essa corrente, a vontade da pessoa jurídica é independente
da vontade dos integrantes que a compõem.
Conforme leciona, JOÃO MARCELLO DE ARAÚJO JÚNIOR: "as pessoas
jurídicas têm vontade e capacidade de agir. O argumento em contrário
não nos parece exato, pois, como afirma Tiedemann, a pessoa jurídica
age e reage por seus órgãos, cujas ações e omissões são consideradas
como da própria pessoa jurídica. As grandes corporações possuem, no
mundo dos negócios, uma vontade própria, que independe, muitas vezes,
da vontade de seus dirigentes"[5].

Como acima citado parte da doutrina aceita que com base na


constituição de 1988 foi admitida a pessoa jurídica uma punição além de cível
também penal por crimes cometidos independentemente pelos sócios que vem a
refletir dentro da empresa como imagem, danos ao patrimônio público ou mesmo
ao meio ambiente, tratando de situações do nosso cotidiano, como os crimes
contra a ordem econômica e tributária, sendo a pessoa jurídica responsável por ter
vontade de agir.
Para João Marcello de Araújo Junior, as pessoas jurídicas tem vontade de
agir em face que por elas ocorre esse desejo, assim dotada dessa vontade própria
que por muitas vezes não são a vontade de seus dirigentes, a pessoa jurídica age
de acordo com a ocasião ou situação por agentes externos para ela impostos.
Dentro de um panorama histórico, o Brasil tinha dentro do seu código penal
no artigo 25 de 1890, que a responsabilidade penal é exclusivamente pessoal, não
podendo assim uma pessoa jurídica ser responsabilizada de forma penal por um
crime por ela estabelecido. /desta forma todo crime cometido dentro de uma
empresa ou qualquer tipo de órgãos associações, a responsabilidade deste crime
era dada a pessoa física que tinha por meio de instrumentos a direção e
organização daquela empresa a qual seria a gestora.
Com a Constituição da República de 1988, houve a mudança do que se
refere ao código penal brasileiro, onde ocorreram alterações profundadas no que
243

se diz respeito a responsabilidade penal de uma pessoa jurídica dando assim a


empresa a responsabilidade pelos atos cometidos em um determinado tempo ou
por razões a ela cometida.
Desta forma o art. 173 da Constituição Federal diz:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a
exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida
quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante
interesse coletivo, conforme definidos em lei.
§ 5º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes
da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a
às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a
ordem econômica e financeira e contra a economia popular.

Com a nova constituição que estabelece o crime realizado por uma


sociedade privada, muitas vezes em situações onde participam atividades de
cunho público, o Estado colocou normas vigentes até hoje para que houvesse a
resolução de problemas acarretados por atos de pessoas que através de uma
empresa obtinham resultados financeiros ou de ganhos de influência para seu
benefício próprio, coibindo assim as práticas de crimes contra a ordem econômica
ou tributária e contra a economia popular.
Já em seu artigo 225 a Constituição Federal criou normas para crimes
ambientais ocorridos em relação a pessoas jurídicas que venham por ela a praticar,
como em algumas atividades de extração mineral, desmatamento para plantio
rural, desmatamento para realização do carvão vegetal, entre as atividades
poluidoras ou que possam causar danos ao meio ambiente em geral, sendo
aplicadas sanções para elas.
Assim a Constituição diz:
Art. 225. (...)
§ 3.º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente
sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e
administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos
causados”.

Como citado as atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores


denominados pessoas físicas a responder pelos crimes praticados pela pessoa
jurídica, dando a elas sansões penais e administrativas mesmo que as mesmas
estejam dispostas a reparar os danos causados pela sua entidade.
Desta forma o Legislador não deixou claro assuntos como de crimes contra
a ordem financeira e tributária, pois ficou vago o tema e a matéria por ele escrito
244

ao escrever a palavra “sujeitando-se”, os crimes ocorridos sobre qualquer pessoa


ou entidade não levam a uma responsabilidade penal, mas sim civil, pois a
ausência da previsão legal não considera estes atos como atos que podem ser
discutidos pela legislação penal.
Esta legislação só foi colocada corretamente e de forma mais clara e
transparente ao citar os crimes ambientais que foram claramente discutidos e
descritos a forma de haver um entendimento jurídico para que dentro do código
penal houvesse a possibilidade de avaliar e penalizar a pessoa jurídica e a pessoa
física pelos crimes ambientais por eles cometidos, aplicando as sanções
administrativas e penais.
Somete em 1998 com a Lei 9.605/98, estabeleceu-se a responsabilidade
penal a pessoa jurídica, quando transgredisse uma regra ou norma estabelecida
pela constituição e cometesse um crime, fazendo com que as pessoas jurídicas
não fossem separadas das pessoas físicas pelos atos cometidos. Desta forma em
seu artigo 21 foram colocadas as penalidades pelas infrações cometidas, que são:
I – Multa.
II – Restritivas de direitos.

III – Prestação de serviços a comunidade.

3 O DIREITO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO

Tratando-se em direito tributário dentro do nosso país temos uma série de


fatores que implicam na aplicações e sansões dentro do meio empresarial
tributário, que podem nos afetar de forma direta ou indireta e que podem ser
ocasionadas pela falta de atenção ou mesmo pelo ato de infração do gestor pessoa
física ou jurídica.

3.1 INFRAÇÕES TRIBUTÁRIAS E SANÇÕES.

Nossas obrigações tributárias se dá como qualquer ato de conduta que


temos em outros campos, sendo responsável a pessoa física ou jurídica pelo
pagamento dos tributos realizados ou gerados de uma determinada data para que
245

haja o recolhimento aos cofres públicos dos mesmos, havendo assim a receita dos
entes públicos para a manutenção de seu poder.
Ocorrem sanções pelo descumprimento legal de uma regra dentro do direito
público ou privado, isso dependendo da ilegalidade do ato ou fato ocorrido dentro
da empresa e da ilicitude do ato que pode ser dependente da relevância ou
condição do infrator, sendo considerado os motivos que levaram ele a cometer a
infração, sendo aqui de grande relevância a pena adequada para a infração
levando em consideração o conceito de justiça.
Ao passo que a justiça leva em consideração os motivos que levaram a
pessoa a cometer a infração, o que pode ser de forma involuntária e decorrente
disso adequar essa pena pela gravidade da infração, citamos Amartya Senn que
“A ideia de Justiça” diz em sua obra:
A necessidade de uma teoria da justiça está relacionada com a disciplina
de argumentar racionalmente sobre um assunto do qual, como observou
Burke, é muito difícil falar.
Afirma-se às vezes que a justiça não diz respeito à argumentação
racional; que se trata de ser adequadamente sensível e ter o faro certo
para a injustiça. É fácil ficar tentado a pensar nessa linha. Quando
deparamos, por exemplo, com uma alastrada fome coletiva, parece
natural protestar em vez de raciocinar de forma elaborada sobre a justiça
e a injustiça. Contudo, uma calamidade seria um caso de injustiça apenas
se pudesse ter sido evitada, em especial se aqueles que poderiam ter
agido para tentar evitá-la deixaram de fazê-lo. Qualquer que seja o
raciocínio argumentativo, ele só pode intervir partindo da observação de
uma tragédia e chegando ao diagnóstico da injustiça. Além disso, casos
de injustiça podem ser muito mais complexos e sutis que a estimação de
uma calamidade observável. Poderia haver diferentes argumentos
sugerindo diversas conclusões, e as avaliações sobre injustiças podem
não ser nada óbvias.

O que Senn diz, ocorre em muitos países ou até mesmo no Brasil,


onde podemos ter uma infinidade de fatores que possam levar uma pessoa a uma
conduta inadequada fugindo dos padrões éticos e morais de seu trabalho, mas
vindo de encontro com o que diz a aplicação da sanção descrita acima onde coloco
que a pena seja adequada de acordo com a infração realizada por uma pessoa no
exercício de sua função exercendo o papel de funcionário ou proprietário que
represente a pessoa jurídica.
A gravidade dessa infração de acordo com que cita Luciano Amaro coloca
em sua obra diz:
A qualificação da gravidade da infração é jurídico-positiva, vale dizer, é o
legislador que avalia a maior ou menor gravidade de certa conduta ilícita
para cominar ao agente uma sansão de maior ou menor severidade.
246

Desta forma começa a diferenciar as condições em que o legislador fará a


avaliação, considerando o nível de gravidade para a aplicação da penalidade,
quando de elevado nível de gravidade maior será a sansão penal ou criminal.
Quando o fator a ser considerado demonstra um desrespeito ao direito da vida,
propriedade e a honra, maior e mais severa serão as penalidades.
Assim não podemos diferenciar os crimes de pessoa jurídica entre o
administrativo e tributário, todos serão crimes, um mesmo acontecimento dentro
de uma empresa pode ser determinado de acordo com situações sociais,
geográficas, e desta forma considerado como lícito, ilícito, ilícito não criminal, ilícito
criminal, assim o que foi crime um dia hoje pode ser considerado um crime e o que
é considerado crime em um futuro pode não ser mais um crime pois questões
culturais envolvidas darão amparo para isso, um exemplo fora da questão tributária
é o adultério e aborto. Hoje seguimos nossa linha de atuação respeitando nossos
princípios éticos e morais, porém com o passar dos tempos a liberdade e igualdade
pode permitir que tenhamos outras fontes para uma tomada de decisão, sendo que
somos responsáveis por nossas ações.
Quando Sen inicia a diferenciação entre “liberdade da condição de agente”
e “liberdade de bem-estar”, quer ele dizer:
A realização a condição de agente de uma pessoa refere-se á realização
de objetivos e valores que ela tem razão para buscar, estejam eles
conectados ou não ao seu próprio bem-estar. Uma pessoa como agente
não necessita ser guiada somente por seu próprio bem-estar, e a
realização da condição de agente refere-se ao seu êxito na busca da
totalidade de seus objetivos e finalidades ponderadas. Se uma pessoa
almeja, digamos, a independência de seu país, ou a prosperidade da sua
comunidade, ou algum outro objetivo geral, sua realização da condição
de agente envolveria a avaliação de estado de coisas a luz desses
objetivos, e não meramente à luz da extensão na qual essas realizações
contribuiriam para seu próprio bem-estar.
Deste modo, a condição de agente corresponde à capacidade de realização
individual dos indivíduos frente aos seus objetivos, que levam a ter uma tomada de
decisões de acordo com suas vontades e diferindo da situação de concordância ou
não de uma pessoa jurídica, porém uma das afetadas pelo fato da decisão e pela
vontade própria de um indivíduo recai sobre a pessoa jurídica a qual sem vontade
própria carrega como penalidade, não podendo por vontade própria ter uma
decisão de liberdade ou não, de aceitação ou não.
O mesmo fato ocorre em uma sociedade de várias pessoas físicas que por
força de um contrato fazem a nascer uma pessoa jurídica e logo uma das pessoas
da sociedade realiza um ato ilícito, e a partir deste momento compromete a pessoa
247

jurídica e muito além disso, compromete e penaliza todos os outros sócios de uma
empresa.
Assim se uma pessoa em meio a adversidade acaba cometendo uma
irregularidade não só a pessoa jurídica é afetada, mas sim o infrator e todos os
outros membros desta sociedade podem responder civil e criminalmente por um
ato falho do que o praticou.

4 O DIREITO TRIBUTARIO E O DIREITO PENAL

O direito penal tutela um conjunto de valores e tem seu código próprio, desta
forma podemos considerar que dentro do vocábulo pena, é foi apropriado a um
conjuntos de irregularidades cometidas por pessoas com ligação criminal ou ilícita
e também as contravenções penais.
Por muitas vezes é descrito como Direito Tributário Penal, mas em situações
acadêmicas, pois as infrações ocorridas dentro de uma empresa para com outrem
são consideradas e tratadas pelo direito Administrativo, que classifica como ilícito
administrativo as infrações cometidas, onde são castigados com a aplicação de
sansões ou multas fazendo mediante a procedimentos administrativos realizados
em decorrência da infração. Segundo Maliska em sua citação, diz:
(...) é o problema fundamental a que o Contrato Social dá a solução”.60
Rousseau distingue a liberdade natural da liberdade civil.61 Com o
Contrato Social o homem perde a liberdade natural, mas ganha a
liberdade civil. A primeira é a “que tem por limites as forças do indivíduo”,
a liberdade civil é a “que é limitada pela vontade geral”.62 O Contrato
Social de Rousseau não é um contrato, senão uma tentativa, com o auxílio
de antigas palavras, de esclarecer uma nova descoberta da ideia de
Estado, na qual o sentido, que significa vontade livre, é por si próprio
definido e próprio realizado nos Estados, isto é a volonté générale.63

Desta forma ao passo em que tomamos a liberdade de formalizar um


contrato social, acabamos por responder civilmente por ele, perdendo nossa
liberdade natural e ganhando uma liberdade civil que ao momento que realizo este
contrato minha vontade não passa de ser somente como indivíduo mas sim como
organização limitada pela vontade geral, como diz na citação, Rousseau no
momento em que trata do contrato social mostra que o indivíduo faz uma tentativa
de uma nova ideia de descobrir o Estado com sua própria vontade de realizar um
contrato para celebrar a sua participação em uma empresa.
248

Nesta linha de pensamento de ter um indivíduo o qual queira celebrar um


contrato transformando-se em uma pessoa jurídica as infrações e sansões
administrativas por ela recebida fariam parte de uma situação mais ampla que é o
direito administrativo penal. É claramente identificável que temos dois sistemas
legais sancionatórios os quais são atuáveis pelo Estado.
O primeiro é o criminal, que foi implementado segundo o Direito Penal,
mediante processo penal dentro de um juízo criminal e do outro lado o
Administrativo aplicados e regido pelas regras do direito administrativo, em um
procedimento administrativo, pelas autoridades administrativas. Desta forma o que
impede determinado interesse jurídico pode estar relacionado a ambos pois pode
ocorrer dentro do setor tributário a arrecadação dos tributos, protegida por um
sistema de sanções administrativas por outro lado pode ser assegurada por
sanções penais.
Exemplifico este caso acima descrito por uma situação de recolhimento de
INSS por parte de uma pessoa jurídica a qual empregado e empregador
contribuem. Sendo assim o empregador é obrigado a pagar a parte referente a
pessoa jurídica que é regulamentado administrativamente por uma tabela onde sua
parte seria de 3% dependendo a tributação de sua empresa. Por outro lado é
descontado do empregado a quantia de 8% referente ao INSS empregado. Assim
se o empregador deixar de pagar a guia da previdência social GPS ele que
descontou a parte do empregado em folha de pagamento e também não recolheu
a sua parte passa a ter duas sanções a administrativa e a penal, já que
administrativamente ele não pagou a parte em que a pessoa jurídica por força de
Lei deve recolher mensalmente.
Por outro lado no tocante em que ele descontou do funcionário um valor e
não repassou aos cofres do INSS, ele acaba por ter uma sanção penal que é a
apropriação indébita de valores, que é a intenção de não recolher aos cofres
públicos o valor descontado do funcionário e por direito do mesmo, recaindo ao
responsável pela pessoa jurídica as sanções do art. 168-A.
O crime de apropriação indébita previdenciária é um dos mais corriqueiros
no meio empresarial. Está previsto no art. 168-A do Código Penal, com a
seguinte redação:
Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições
recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem deixar de:
249

I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à


previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a
segurados, a terceiros ou arrecadada do público;
II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham
integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou
à prestação de serviços;
III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou
valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.
[...]

Desta forma demonstra como a atividade do direito administrativo


e direito penal podem trabalhar em um acordo harmônico, sendo que
em alguns casos um ramo do direito necessita do outro para que haja a solução
para problemas que ocorrem em função de uma sociedade onde pessoa física e
pessoa jurídica trabalham em conjunto, pois a responsabilidade de uma é afetada
pela decisão de outra.
A mesma norma acima descrita pode ser evidenciada no direito ambiental,
que em casos como ocorreu em Brumadinho as pessoas físicas respondem
juntamente com as pessoas jurídicas por tragédias ambientais, culturais, sociais,
humanas e psicológicas entre outras variáveis que ocorreram, fazendo assim
regras criadas para proteção das pessoas e do meio ambiente.
Em alguns fatos acontecidos dentro das pessoas jurídicas podem em um
primeiro momento afetar diretamente a empresa eximindo em um início o sócio por
infrações tributárias como atraso de impostos e multas por declarações não
prestadas ao fisco, porém em um determinado período de tempo ocorre a
notificação e a execução de uma dívida, porém nem nenhum momento está

ligada a área penal.

5 A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA NO BRASIL

No Brasil com o advento da Lei 9.605/98, colocamos que o autor


deve estar ligado a pessoa jurídica e que a mesma tenha que ter benefícios
próprios para ser considerado um crime na esfera penal. Ainda dentro do direito
penal brasileiro, com esta Lei podem ser considerados crimes e correr na área
penal os quais são crimes ambientais e assim responsabilizando criminalmente
uma pessoa jurídica, porém a muitas atividades onde é impossível de culpar uma
pessoa jurídica por existir uma zona de penumbra neste aspecto. As pessoas
250

jurídicas somente serão culpadas quando ocorrer o fato de ter alguém que pode
ser um sócio ou administrador que realize o ato criminal em seu interesse ou da
sua entidade. Independente se a pessoa física seja sócio ou empregado da pessoa
jurídica, somente poderá recair a culpa quando inexistir provas a aquele que

executou ou transgrediu as regras. Como diz a revista dos tribunais:


A necessidade de dupla imputação foi uma regra criada pelo STJ.
Sinteticamente, ela diz que a sanção penal somente pode ser aplicada à
pessoa jurídica se for, igualmente, punida uma pessoa física. Essa
interpretação jurisprudencial, majoritária no tribunal da cidadania, não
possui respaldo na Lei 9.605/1998, mas ampara-se na ideia de obstar a
impunidade em relação às pessoas físicas. Portanto, já na denúncia, o
Ministério Público deve imputar o fato típico tanto a uma pessoa física
como à pessoa jurídica, sob pena de rejeição da peça acusatória:

Com este entendimento do STJ verificamos que só podemos


punir uma pessoa jurídica caso haja uma pessoa física punida da mesma forma
ou com igualdade. Uma pessoa física pode esconder-se ou usar da civilidade para
obstar-se da impunidade, assim foi punido ambos para que houvesse a igualdade
nas penas por atos acarretados dentro da empresa.
Ainda temos dentro do código penal características de uma pessoa jurídica
privada para com crimes contra a administração pública, contra sua ordem
econômica e crimes contra a ordem financeira, como os destacados pelo MPSP.
“Art. 41. As pessoas jurídicas de direito privado serão responsabilizadas
penalmente pelos atos praticados contra a Administração Pública, a
ordem econômica, o sistema financeiro e o meio ambiente, nos casos em
que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou
contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua
entidade.
§ 1.º A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas
físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato, nem é
dependente da responsabilização destas.
§ 2.º A dissolução da pessoa jurídica ou a sua absolvição não exclui a
responsabilidade da pessoa física.
§ 3.º Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes
referidos neste artigo, incide nas penas a estes cominadas, na medida da
sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de
conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou
mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de
outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la”.
Decerto, o preceito incrementa a responsabilidade penal da pessoa
jurídica, explicitando que esta se aplica a crimes contra Administração
Pública, a ordem econômica, o sistema financeiro, além das infrações ao
meio ambiente. Contudo, incorre no mesmo problema da Lei 9.605/1998:
não faz uma explícita vinculação a cada tipo penal.

Mais uma vez nota-se que mesmo contra a ordem pública a pessoa jurídica
é a afetada por atos acontecidos contra o setor público no qual uma pessoa física
251

está por traz das ações tomadas em benefícios próprios ou de outrem, porém não
exime do seu proprietário a culpa pelo dolo, mas sim o responsabiliza pelos atos e
fatos acontecidos. As penas vem de acordo com a culpabilidade e também pela
responsabilidade de coibir os crimes contra a administração pública. Porém o
mesmo problema ocorre com a Lei 9.605/1998 onde não se faz uma vinculação
para cada tipo penal.
Segundo Kelsen, definir o Estado como Estado de Direito é um
pleonasmo. No entanto, sob a ótica da questão da democracia e da
segurança jurídica, o Estado de Direito é uma relativa ordem jurídica
centralizada, da qual a administração e a jurisprudência seguem por meio
de leis, isto é, um conjunto de normais gerais, a qual se forma por um
parlamento eleito pelo voto popular e encontra na cúpula do governo o
Chefe de Estado, os membros do governo são responsáveis pelos seus
atos, os tribunais são independentes e são garantidos os direitos de
liberdade dos cidadãos, em especial o de pensamento e consciência e da
liberdade de expressão.207

Para Kelsen o que ocorre nos dias de hoje já era preocupação desde a sua
escrita em Estado e Direito que fala sobre o Estado e várias formas de o ver, como
sociedade, onde ele diz que o estado se revela a partir do momento em que ele
pode ser discutido sobre um ponto de vista jurídico e não político, complementa
Kelsen em seu texto citado por Maliska que:
O Estado, então, é tomado em consideração apenas como um fenômeno
jurídico, como uma pessoa jurídica, ou seja, como uma corporação”
Para Kelsen definido o Estado como uma corporação, surge a questão de
como diferenciá-lo de outras corporações. Segundo ele, a diferença deve
ser encontrada na ordem normativa que constitui a corporação do Estado.
O Estado é a comunidade criada por uma ordem jurídica nacional (em
contraposição a uma internacional).

No primeiro parágrafo escrito na citação acima fica frisado a ideia de direito


para as pessoas jurídicas onde hoje podemos comparar com a época de estado e
definir nossas ideias sobre considerando os fenômenos jurídicos da sua época,
tendo uma ordem normativa para as coisas, ter padrões para tomadas de decisão
e fazer com que não haja interferência de poderes que estão intimamente ligados.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seguindo a proposta inicialmente expressada na introdução, o


deslinde da presente pesquisa possibilitou observações que até então não eram
vistas.
252

Ao estudar a legislação vigente percebe-se que dentro de uma ótica jurídica


podemos dividir os crimes praticados por uma pessoa jurídica em várias situações
conforme ciado durante o trabalho, nas quais cito o crime ambiental como principal
forma de ser julgado pela justiça penal, o qual foi citado brevemente neste artigo
que objetivou-se a pesquisa dos crimes tributários federais.
Assim verificamos que a justiça apesar de ter previsões constitucionais em
certas situações ainda não uma Lei específica para caracterizar e punir certos tipos
de ações praticadas por uma pessoa jurídica, onde pode se responsabilizar o
empresário pelos atos cometidos e a relação entre os sócios terem suas vontades
e agirem em favor próprio, e a pessoa jurídica que por vezes não tem vontade
própria. Somente com a Lei 9.605/98, ocorreram mudanças e veio a ter um
complemento a constituição prevendo a responsabilidade penal a pessoa jurídica
que transgredisse as Leis e cometessem infrações ao seu favor, a qual seu
representante legal e que os sócios fossem os maiores interessados, podendo
ainda ser praticados por funcionários. Porém ainda há discussões sobre pessoas
jurídicas responderem na esfera penal, pois os estudiosos mostram-se contrários
a criminalização pois defendem que as pessoas jurídicas não se manifestam de
forma própria, mas sim pela ou decisão de outras, as quais são pessoas físicas
capazes de fazer com que aconteçam atos ou fatos administrativos capazes de
influenciar diretamente em uma ação em benefício próprio.
Com a Teoria da Realidade são tratadas as diferenças de uma pessoa
jurídica, onde mostra-se como um ente real, tem suas vontades próprias e
responde pelos atos dentro da entidade, podendo assim transgredir as leis e
responder de forma cível e penal pelos acontecimentos realizados dentro de sua
empresa ocorridos em qualquer período de tempo, como cita a Constituição
Brasileira de 1988, baseada na Lei 9.605 de 1998.
Até então nossa Constituição em seu art. 225 não deixava claro os crimes
econômicos e contra a ordem tributária, pois não deixou clara em sua matéria os
crimes praticados e desta forma eram considerados crimes civis e não penais, pois
havia a ausência de uma base legal para discussão em um âmbito penal, trazendo
só em 1998 uma base para que houvesse uma condição de levar alguns tipos de
crimes como a apropriação indébita de valores não recolhidos pela pessoa jurídica
ao descontar de uma pessoa física seu valor de INSS para ser repassado junto a
previdência social.
253

As penas aplicadas para as pessoas jurídicas variam de notificações, multas


ou penalidades mais severas, sendo que cabe a penalidade as pessoas físicas
como concordante ou que execute uma infração de forma leiga ou premeditada a
pena, é julgado conforme a gravidade ou mesmo levando em consideração o
motivo que levou a pessoa física a transgredir as regras aplicadas, conforme
decisões do Supremo Tribunal de Justiça.
Ainda temos muito a esclarecer e melhorar dentro dos aspectos penais
referentes a crimes realizados por pessoas jurídicas em âmbito tributário, já que
sonegar um valor de imposto não é um crime, mas sim informar um valor contrário
ao que foi realizado ou aconteceu é caracterizado como ato penal. Ainda muitas
situações mesmo que previstas dentro da constituição e respaldadas pelo código
penal não são aplicados dentro do setor tributário, mas sim dado maior força ao
setor ambiental pela falta de uma maior clareza tributária, matéria que há muita
discussão, levando a punição a pessoa a uma pessoa jurídica, caso eu aplique a
mesma punição a pessoa física, demonstrado assim a equidade para ambas as
partes em uma constituição chamada pessoa física e pessoa jurídica.
Assim autores divergem defendendo ou culpando as ações praticadas por
pessoas jurídicas, alguns dizendo que a punição deve ser aplicada apenas as
pessoas jurídicas, e outros defendendo o fato de a pessoa física responder com
igualdade de culpa.
Nota-se que precisamos ampliar nossa visão de desconstrução e construção
de um novo sistema o qual seja redefinido os papéis políticos e criminais e que
desta forma se faça um novo modelo de ação para as atividades empresariais
brasileiras.

REFERENCIAS

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2017.

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https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_18.02.2016/art_173
_.asp, acessado em 06/03/2019.
254

DOTTI, René Ariel. Bases Alternativas para o Sistema de Penas. 2.º edição São
Paulo, 1998.

GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil:
responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva. 2009, v.3.

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constitucional-da-responsabilidade-penal-da-pessoa-juridica. Acesso em
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Doutorado em Direito da Universidade Federal do Paraná (estágio de
doutoramento na Ludwig Maximilian Universität).

RODRIGUES, Silvio, Direito Civil, Editora Saraiva, 2000.

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SENN, Amartya. A ideia de Justiça. Editora Le Livros, traduzido por Bottmann
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_______. SINFAC –SP, https://www.sinfacsp.com.br/conteudo/crime-de-


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06/03/2019.

SIRVINSKAS, Luís Paulo.Tutela Penal do Meio Ambiente: breves


Considerações Atinentes à Lei 9.605, de fevereiro de 1998. 3ª Ed. Rev.Atual. e
AMPL – São Paulo: Saraiva, 2004.
255

O USO DA INTERNET, REDES SOCIAIS E E-MAIL NO LOCAL DE TRABALHO


E AS CONSEQUÊNCIAS PARA A RELAÇÃO DE EMPREGO1

Rodrigo Barzotto Pereira de Souza2

RESUMO: Os recursos da informática embora facilitem as atividades do dia-a-dia, trouxe


controvérsias ao ambiente laboral, pois alguns empregados utilizam a internet, redes sociais e o e-
mail não só para fins profissionais, mas, também, particulares. Para proteger-se do uso desvirtuado,
o empregador estabelece, no contrato de trabalho ou no regulamento interno, normas que definam
e limitem o uso, a possibilidade de monitoramento e até mesmo as sanções no caso de
descumprimento das normas. A atuação, neste sentido, pode ferir direitos, inclusive fundamentais,
dos empregados. A tendência verificada na doutrina e na jurisprudência é de permitir restrições e
até mesmo o monitoramento do uso dos recursos da informática disponibilizados, o acesso à redes
sociais, desde que realizado com regras e respeitando o princípio da proporcionalidade e
razoabilidade, a fim de que tais recursos sejam utilizados, no local de trabalho, para fins
exclusivamente profissionais.

Palavras-chave: Contrato de Trabalho – Internet – Monitoramento – E-mail

RESUMEN: Los recursos informáticos, aunque facilitan las actividades cotidianas, han generado
controversias en el entorno laboral, ya que algunos empleados utilizan Internet, las redes sociales
y el correo electrónico no solo con fines profesionales, sino también con fines privados. Para
protegerse del mal uso, el empleador establece, en el contrato de trabajo o en las regulaciones
internas, reglas que definen y limitan el uso, la posibilidad de monitoreo e incluso sanciones en caso
de incumplimiento de las reglas. El desempeño en este sentido puede dañar los derechos de los
empleados, incluidos los fundamentales. La tendencia verificada en la doctrina y en la jurisprudencia
es permitir restricciones e incluso el monitoreo del uso de los recursos informáticos disponibles, el
acceso a las redes sociales, siempre que se realice con reglas y respetando el principio de
proporcionalidad y razonabilidad, para que tal Los recursos se utilizan en el lugar de trabajo con
fines exclusivamente profesionales.

Palabras Clave: Contrato de trabajo - Internet - Monitoreo - Correo electrónico

1 INTRODUÇÃO

As inovações trazidas pela revolução tecnológica, que se deu no último


século, entre elas a internet3 e o e-mail4 surgiram para facilitar o dia-a-dia dos
usuários particulares e profissionais ou corporativos, mas, além das facilidades,
trouxeram controvérsias. Especialmente o uso dos recursos da informática 5 para
fins particulares no local de trabalho sob a perspectiva da limitação e controle do
uso por parte do empregador, em confronto com o direito à liberdade de expressão

1
Artigo apresentado para obtenção de nota parcial na disciplina Direito e Tecnologia, ministrada pelo professor Dr. Marco
Antonio Lima Berberi.
2
Mestrando no Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário Vale do Iguaçu –
Uniguaçu e Centro Universitário Autônomo do Brasil – Unibrasil.
3
Rede remota internacional de ampla área geográfica que proporciona transferência de arquivos e dados, juntamente com
funções de correio eletrônico para milhões de usuários ao redor do mundo; net, rede, web. In: HOUAISS, Antonio; VILLAR,
Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em http://michaelis.uol.com.br/ acesso em 15 fev.
2020.
4
1 Sistema de intercâmbio de mensagens entre computadores ligados em rede. 2 por ext Mensagem enviada e recebida na
forma digital. [...]. In: HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível
em http://michaelis.uol.com.br/ acesso em 15 fev. 2020.
5
Para efeito deste trabalho considerar-se-ão recursos da informática: a internet, especialmente redes sociais, o e-mail
pessoal ou particular e o e-mail profissional ou corporativo.
256

– art. 5º, IV e IX, à inviolabilidade da intimidade e da privacidade – art. 5º, X e do


sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e das
comunicações telefônicas – art. 5º, XII, todos da Constituição da República
Federativa do Brasil (CRFB), constituindo tema importante de estudo acerca da
possibilidade de restrição de direitos fundamentais, além do que importa verificar
as consequências do uso, do mau uso e das interferências do empregador na
relação de emprego.
Especificamente importa verificar a possibilidade de controle do uso dos
recursos da informática pelo empregador, analisando o que dispõe o art. 5º, incisos
IV, IX, X e XII da CRFB e também verificar a legalidade do controle de uso dos
recursos da informática, além das consequências desse controle para a relação de
emprego.
O uso desses recursos para fins particulares no local de trabalho poderia ser
limitado pelo empregador? É possível ou não a limitação dos direitos humanos,
fundamentais e outros decorrentes da relação de emprego através da
interceptação dos e-mails e o controle sobre o conteúdo da internet, especialmente
redes sociais, acessado no local de trabalho?
A discussão deverá passar pela verificação da proteção ao indivíduo nas
suas garantias constitucionais que podem não ser absolutas e se é possível a
intervenção do empregador, definindo regulamento ou cláusulas contratuais a
respeito, como também como resolver conflitos decorrentes de interesses diversos.
Destaque-se que antes mesmo do surgimento do contrato de trabalho
existem direitos inerentes à condição humana, muitos deles pertencentes ao
catálogo de direitos constitucionalmente protegidos ao cidadão brasileiro, que se
somam aos direitos decorrentes do pacto laboral e que importam análise deste
texto, verificando os direitos disponíveis ao empregado e as suas restrições,
estabelecendo a ligação desses direitos com o uso e a limitação do uso dos
recursos da informática no local de trabalho.
Verificar-se-á como a informatização atua no local de trabalho, como ocorre
a relação empregado/empregador no uso da internet, especialmente das redes
sociais, no monitoramento dos recursos da informática e quais os mecanismos
úteis ao controle do uso desses recursos diante da possibilidade ou não do
monitoramento e da limitação do uso a partir da análise da doutrina e da
jurisprudência nacional.
257

O artigo se desenvolve em três capítulos, utilizando-se a produção


descritiva e o método indutivo6 associado ao investigatório da pesquisa
bibliográfica7, do mapeamento das categorias8 e do fichamento, observando-se a
normalização dos trabalhos acadêmicos do Centro Universitário Autônomo do
Brasil (UNIBRASIL) e as regras da Associação Brasileira de Normas Técnicas
(ABNT), não tendo o escopo de esgotar o tema em questão, e sim, abrir
oportunidade para novas pesquisas.

2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUAS RESTRIÇÕES

2.1 ASPECTOS GERAIS

A relação de emprego é formalizada pelo contrato de trabalho que estabelece


direitos e deveres para as partes envolvidas e importa verificar os direitos
disponíveis aos empregados e as suas restrições, estabelecendo a ligação desses
direitos e dos direitos advindos da condição humana que positivados consideram-
se direitos fundamentais, com o uso e sua limitação dos recursos da informática no
local de trabalho.
Importa verificar as restrições aos direitos decorrentes da relação de
emprego, passando pela possibilidade de disponibilidade e flexibilização de direitos
trabalhistas, os limites à autonomia individual no contrato de trabalho, o poder de
direção do empregador e o regulamento de empresa, todos mecanismos capazes
de regrar o uso e a limitação do uso dos recursos da informática no local de
trabalho, além da análise, no mesmo sentido, da implicação do uso dos recursos
da informática no local de trabalho e a possibilidade de monitoramento e restrição
por parte do empregador em consideração aos direitos fundamentais da liberdade
de expressão – art. 5º, IV e IX, privacidade – art. 5º, X e sigilo das comunicações
– art. 5º, XII, todos da CRFB.

6
Pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de forma a ter uma percepção ou conclusão geral.
7
Refere-se a investigar, estudar os conceitos, interpretar para concluir. Induz a pessoa a aprender no desenvolver da
apresentação tema.
8
Retiram-se as categorias do texto e montam-se novamente as categorias.
258

2.2 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Com base na doutrina de Ingo Wolfgang Sarlet, pode-se traçar um paralelo


que mostra a principal característica diferenciadora entre o que são “direitos
humanos” e o que são “direitos fundamentais”.
Para o autor9, a primeira expressão surge de um lugar teórico mais amplo, ou
seja, aparece como direitos vinculados ao ser humano enquanto tal, e que
ganharam ou ganham destaque na seara internacional, positivados nas mais
diversas declarações e tratados internacionais de direitos humanos. São estes,
portanto, normas de caráter universal que recebem a designação de inspiradoras
para as mais diversas normatizações internas de cada Estado em particular, no
que tange à proteção de direitos caros ao ser humano e que possam garantir uma
existência pautada na dignidade inerente a qualquer pessoa.
Neste aspecto, quando um direito dito ‘humano’ adentra no organismo
normativo de um Estado, ganhando status constitucional ou legal, se está a falar
então de “direitos fundamentais”, que são a expressão positivada no direito interno
daquelas normas de direitos humanos provenientes de documentos internacionais,
portanto supranacionais10. Esta positivação de direitos humanos revela o grau de
compromisso do Estado com a promoção e manutenção do bem-estar e da
dignidade da pessoa humana enquanto efetivo sujeito de direitos perante o
organismo estatal.
Assim, enquanto os direitos humanos se encontram previstos nas mais
diversas normativas internacionais, os direitos fundamentais são irradiação desses
direitos humanos para dentro do ordenamento jurídico de determinado Estado-
país, erigidos a normas constitucionais, que norteiam a atuação e direcionam o
caminho a ser trilhado rumo às garantias individuais e coletivas. Para o presente
trabalho alguns merecem destaque.

9
SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional. 12. Ed. rev. Atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 29-30
10
SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional. 12. Ed. rev. Atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 29-30.
259

2.2.1 LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Tarcisio Teixeira prevê que “a liberdade de expressão está relacionada tanto


à liberdade de manifestação quanto à atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independente de censura ou licença”11.
A definição contempla o inciso IV do art. 5º, que “é livre a manifestação do
pensamento, sendo vedado o anonimato”12 e o inciso IX do art. 5º da CRFB prevê
que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independente de censura ou licença”13 e, ainda, a previsão do art.
13 do Pacto de São José da Costa Rica, que dá ênfase ao preceito constitucional
em análise.
O direito à liberdade de expressão é considerado fundamento e princípio da
Lei nº 12.965/14 denominado Marco Civil da Internet, conforme artigo 2º, caput, art.
3º, I, da Lei, o que denota a importância que lhe foi conferida pelo legislador. Do
mesmo modo, a proteção aos direitos de personalidade encontra respaldo no art.
2º, II, art. 3º, II, e outros da supracitada lei.
Tratando do conteúdo da liberdade de expressão, em sua obra, assim se
manifesta Gilmar Ferreira Mendes:
A garantia da liberdade de expressão tutela, ao menos enquanto não
houver colisão com outros direitos fundamentais e com outros valores
constitucionalmente estabelecidos, toda opinião, convicção, comentário,
avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer
pessoa, envolvendo tema de interesse público, ou não, de importância e
de valor, ou não – até porque “diferenciar entre opiniões valiosas ou sem
valor é uma contradição num Estado baseado na concepção de uma
democracia livre e pluralista.14
Para André Ramos Tavares15 a liberdade de expressão diz respeito à
possibilidade de refletir e raciocinar intimamente, ler, assistir, ouvir e exteriorizar o
pensamento, se comunicar, pôr em discussão seus pensamentos, pela forma e
veículo que lhe convier.
O uso da internet, notadamente das redes sociais, e do e-mail são formas de
expressão que se apresentam intensamente no local de trabalho e a liberdade tem

11
TEIXEIRA, Tarcisio. Direito Eletrônico. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2007. p. 65
12
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB/88. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível
em <http://www.planalto.gov.br> acesso em 15 fev. 2020. p. 2
13
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB/88. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível
em <http://www.planalto.gov.br> acesso em 15 fev. 2020. p. 2
14 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito

Constitucional. 13. ed. rev. e atual. São Paulo : Saraiva Educação, 2018. p. 391
15
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 425
260

papel importante, pois o grande fluxo de informações emitidas e recebidas acaba


por permitir a excelência no desenvolvimento das atividades profissionais.

2.2.2 PRIVACIDADE

A CRFB, no inciso X do art. 5º, determina taxativamente: “são invioláveis a


intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas [...]”16.
De acordo com André Ramos Tavares17, o direito à privacidade comporta toda
e qualquer forma de manifestação da intimidade (inviolabilidade de domicílio, sigilo
das comunicações e segredo profissional); honra e imagem das pessoas, está
ligada à proteção dos direitos da personalidade humana.
O direito à privacidade desdobra-se em outros direitos como a inviolabilidade
do domicílio e das comunicações, sigilo profissional, etc. Entretanto, cabe estudo
do direito ao sigilo das comunicações que eventualmente pode ser violado no
controle de acesso e uso da internet pelo empregador.

2.2.3 SIGILO DAS COMUNICAÇÕES

Determina a CRFB, no inciso XII do art. 5º, que “é inviolável o sigilo da


correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações
telefônicas [...]”18.
André Ramos Tavares engloba o sigilo da correspondência, das
comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, todos no
grupo do sigilo das comunicações para facilitar o estudo. Importa a este trabalho o
sigilo da correspondência e o sigilo dos dados assim definidos pelo autor:
O sigilo da correspondência relaciona-se também com a liberdade de
expressão e de comunicação de pensamento (inc. IV do art. 5º). Mas é só
por meio do sigilo da correspondência que se assegura a proteção de
informações pessoais, da intimidade das pessoas, e que diz respeito
apenas àqueles que se correspondem.
[...]

16
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB/88. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível
em <http://www.planalto.gov.br> acesso em 15 fev. 2020. p. 3
17
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 453
18
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB/88. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível
em <http://www.planalto.gov.br> acesso em 15 fev. 2020. p. 3
261

Ao lado da comunicação telefônica, a Constituição coloca a comunicação


de dados, objeto de sua tutela específica, decorrente do direito à
privacidade.19

Para Tarcisio Teixeira20, a inviolabilidade da correspondência está ligada ao


direito à privacidade, pois este abrange a proteção dos dados e fatos privados de uma pessoa.
Isso quer dizer que ninguém pode ter acesso ao conteúdo da correspondência, das
comunicações telefônicas e dos dados telegráficos, sob a consequência do rompimento do
sigilo garantido.

2.3 RESTRIÇÕES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

É incontroverso o fato de que os direitos fundamentais não são ilimitados.


Já a declaração Francesa de 1789 estabelecia que os direitos têm, como limites,
os direitos de outros membros da sociedade e que estes limites apenas poderiam
ser determinados por lei. In verbis: “A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo
que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem
não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o
gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados por lei”.21
De acordo com Ingo Sarlet “todo direito fundamental possui um âmbito de
proteção (um campo de incidência normativa ou suporte fático, como preferem
outros) e todo direito fundamental, ao menos em princípio, está sujeito a
intervenções neste âmbito de proteção”.22
Considerando que os direitos fundamentais são passíveis de limitação ou
restrição, isso infere que eles não possuem caráter absoluto, e essa premissa foi
descrita de forma categórica por João Trindade Cavalcante Filho, ao afirmar que:
“Nenhum direito fundamental é absoluto. Com efeito, direito absoluto é uma
contradição em termos. Mesmo os direitos fundamentais sendo básicos, não são
absolutos, na medida em que podem ser relativizados”.23

19
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 458
20
TEIXEIRA, Tarcisio. Direito Eletrônico. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2007. p. 65
21
BRASIL. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 – DUDH. Disponível em
http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_homem.pdf acesso em 15
fev. 2020. p. 2
22
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na
Perspectiva Constitucional. 12. Ed. rev. Atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 362
23
CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalTvJustica/portalTvJusticaNoticia/anexo/Joao_Trindadade__Teoria_Geral_dos_di
reitos_fundamentais.pdf. Acesso em: 15 fev. 2020. p. 6
262

Assentada a possibilidade teórica das restrições aos direitos fundamentais,


bem como tendo presente o caráter principiológico destes direitos, pode-se
conceber uma estrutura restritiva que abarque a existência de dois fenômenos
diversos: a) restrições ou limites imanentes, que decorrem da convivência dos
direitos e que, portanto, não se encontram expressos na Constituição, mas
decorrem de uma interpretação sistêmica do Ordenamento Jurídico; b) restrições
ou limites expressos na Constituição, englobando as restrições diretamente
constitucionais (restrições previstas pela própria Constituição) e as restrições
efetuadas pela legislação ordinária, com expressa autorização da Constituição
(restrições indiretamente constitucionais), o que não importa desenvolvimento no
presente trabalho.24
Para o presente trabalho cabe verificar a limitação dos direitos fundamentais
isoladamente, pois estes podem sofrer restrições quando implementado controle
de acesso e uso da internet e redes sociais no local de trabalho. O uso desses
recursos está relacionado com o direito à liberdade de expressão, privacidade e ao
sigilo da correspondência previstos na CRFB, art. 5º incisos IV, IX, X e XII,
respectivamente, os quais toda pessoa possui, inclusive o trabalhador.
Confrontam-se esses direitos com os direitos do empregador, notadamente com o
poder de direção, tornando-se mister saber qual a extensão e a limitação dos
direitos de um e de outro.

2.3.1 LIMITAÇÃO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Refere-se a doutrina a que a liberdade de expressão pode trazer prejuízo para


a privacidade. O contrário também pode ocorrer: a preservação da privacidade
pode trazer perdas à liberdade de expressão, uma vez que pode haver censura.25
Gilmar Ferreira Mendes assim se manifesta sobre a limitação da liberdade de
expressão:
[...] não são apenas aqueles bens jurídicos mencionados expressamente
pelo constituinte (como a vida privada, a intimidade, a honra e a imagem)
que operam como limites à liberdade de expressão. Qualquer outro valor
abrigado pela Constituição pode entrar em conflito com essa liberdade,
reclamando sopesamento, para que, atendendo ao critério da

24
SCHAFER, Jairo Gilberto. Restrições a Direitos Fundamentais. Florianópolis. 2000. Disponível em
https://core.ac.uk/download/pdf/30360194.pdf acesso em 15 fev. 2020. p. 84.
25
TEIXEIRA, Tarcisio. Direito Eletrônico. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2007. p. 65
263

proporcionalidade, descubra-se, em cada grupo de casos, qual princípio


deve sobrelevar.26
Entende Gilmar Ferreira Mendes27 que se aplica o princípio da razoabilidade
e este deve atender aos critérios informadores da proporcionalidade (adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito).
O monitoramento do acesso à internet, redes sociais, e do envio e
recebimento de e-mails no local de trabalho pode representar violação ao direito
de liberdade de expressão e, de acordo com o princípio da razoabilidade, pode
sofrer restrições.

2.3.2 VIOLAÇÃO DA PRIVACIDADE

A doutrina prevê a relativização dos direitos individuais, inclusive do direito à


privacidade. Assim se manifesta Tarcisio Teixeira sobre essa relativização:

[...] torna-se evidente a necessidade de se buscar um equilíbrio para o


exercício dos direitos previstos na Constituição, tendo em vista as
relações estabelecidas na internet, notadamente quanto aos direitos da
liberdade de expressão, da privacidade e do sigilo das correspondências,
das comunicações e de dados. Um caminho para isso é deixar claro que
eles são relativos a fim de assegurar o interesse coletivo sobre o interesse
individual.28

Existem também, limites aos direitos individuais quando estes se contrapõem


a outros direitos previstos no ordenamento jurídico e que sofrem restrições
decorrentes da ação dos primeiros.
Gilmar Ferreira Mendes ao comentar sobre a possibilidade de divulgação de
informações ou imagens de interesse público expressa:
Em se tratando de conflitos de pretensões à privacidade e à liberdade de
informação concorda-se que se analise a qualidade da notícia a ser
divulgada, a fim de estabelecer se a notícia constitui assunto do legítimo
interesse do público. Deve ser aferido, ainda, em cada caso, se o
interesse público sobreleva a dor íntima que o informe provocará. 29
Seguindo o entendimento de Gilmar Ferreira Mendes, a inviolabilidade da
privacidade não é absoluta e, portanto, pode sofrer restrições como no caso do
interesse público.

26
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. rev. e atual. São
Paulo : Saraiva Educação, 2018. p. 400
27
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. rev. e atual. São
Paulo : Saraiva Educação, 2018. p. 402
28
TEIXEIRA, Tarcisio. Direito Eletrônico. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2007. p. 76
29
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. rev. e atual. São
Paulo : Saraiva Educação, 2018. p. 419
264

Cabe, portanto, verificar se o consentimento antecedente ao monitoramento


pode dar oportunidade ao empregador para a violação da correspondência ou das
comunicações via e-mail, confirmando ou não os entendimentos descritos.

2.3.3 VIOLAÇÃO DO SIGILO DAS COMUNICAÇÕES

Para André Ramos Tavares, o sigilo da correspondência é considerado uma


liberdade pública e, assim sendo, não é absoluta: “admite-se que haja também a
interceptação de correspondências e das comunicações telegráficas e de dados,
sempre que a proteção constitucional seja invocada para acobertar a prática de
ilícitos”30.
Algumas legislações preveem a quebra do sigilo, como no caso da Lei n.
9.296/96 que regulamenta o inciso XII, parte final, do art. 5º da CRFB, a qual, em
seu art. 1º parágrafo único, permite a quebra do sigilo de qualquer das modalidades
contempladas no citado inciso da CRFB. Também o Estatuto do Ministério Público
da União no seu art. 6, XVIII prevê a competência daquele órgão para representar:
a) ao órgão judicial competente para quebra do sigilo da correspondência e das
comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, para fins de
investigação criminal ou instrução processual penal, bem como manifestar-se
sobre representação a ele dirigida para os mesmos fins.31
No que tange às relações trabalhistas, importante também o seguinte debate:
se a empresa tem o direito de monitorar o computador do empregado e se esse
direito é mais relevante do que os direitos à privacidade e à intimidade, ou se a
privacidade e a intimidade inexistem no uso, no trabalho, dos equipamentos da
empresa, dos quais surgem e transitam correspondências e mensagens através
do e-mail. As restrições aos direitos decorrentes da relação de emprego serão
trabalhadas no próximo capítulo.

30
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 459
31
BRASIL. Lei Complementar nº 75 de 20 de maio de 1993 que dispõe sobre o organização, as atribuições e o estatuto do
Ministério Público da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br> Acesso em 15 fev. 2020. p. 2
265

3 RESTRIÇÕES AOS DIREITOS DECORRENTES DA RELAÇÃO DE EMPREGO

3.1 ASPECTOS GERAIS

O protecionismo interventivo do Estado nas relações de emprego reflete o


autoritarismo da época em que foi criado. Entretanto, alguns doutrinadores, entre
eles José Alberto Couto Maciel32, indicam a necessidade de adaptação ao novo
contexto da globalização e preveem condições de trabalho menos favoráveis e a
retirada de conquistas ao longo do tempo implementadas. Outros, como Rogério
Magnus Varela Gonçalves33 e Arnaldo Süssekind34, referem que o abrandamento
das normas trabalhistas, que ocorreria pelo processo de flexibilização, afetaria a
essência da proteção do trabalhador. Para o presente trabalho importa verificar se
a retirada dessas conquistas e as restrições aos direitos podem afetar a relação
contratual.

3.1.1 INDISPONIBILIDADE E FLEXIBILIZAÇÃO DE DIREITOS TRABALHISTAS

A globalização da economia trouxe mudanças para as relações de emprego.


Existe discussão doutrinária acerca da distinção entre desregulamentação e
flexibilização. Alguns entendem que são sinônimos; outros entendem que existe
diferenciação de conceitos. Faz-se a opção pela segunda corrente, seguindo
entendimento de Rogério Magnus Varela Gonçalves:
[...] desregulamentar mais se amolda à retirada da normatização estatal
no que toca ao disciplinamento do contrato de trabalho, ou seja, seria a
abstenção do Estado no que tange ao regramento das relações jurídico-
laborais.
[...] flexibilizar, seria quebrar a rigidez da norma trabalhista. Seria um
abrandamento do princípio protetivo do Direito do Trabalho, que é posto
em favor dos hipossuficientes da relação de emprego, tudo com vistas a
permitir que a legislação trabalhista não venha a impedir uma adequação
do trato empregatício às vicissitudes sociais e econômicas. 35

Para Marcelo Oliveira Rocha36, a questão da flexibilização tem ganhado


destaque a partir da mudança na Legislação Trabalhista Brasileira, onde o

32
MACIEL, José Alberto Couto. Desemprego ou Supérfluo? Globalização. São Paulo: LTr, 1998. p. 74
33
GONÇALVES, Rogério Magnus Varela. Direito Constitucional do Trabalho – Aspectos controversos da
automatização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 171
34
SÜSSEKIND; Arnaldo; TEIXEIRA FILHO, João de Lima. Instituições de Direito do Trabalho. 19. ed. São Paulo: LTr,
2000. p. 211
35
GONÇALVES, Rogério Magnus Varela. Direito Constitucional do Trabalho – Aspectos controversos da
automatização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 167
36
ROCHA, Marcelo Oliveira. Direito do Trabalho e Internet. São Paulo: Liv. e Ed. Universitária de Direito, 2005. p. 61
266

pactuado entre empregados e empregadores tem primazia em detrimento dos


dispositivos legais, em vários aspectos. As normas trabalhistas passam a ter
função mais dispositiva e menos imperativa como até então ocorria, podendo ser
alteradas pela vontade das partes.

3.2.2 LIMITES À AUTONOMIA INDIVIDUAL NO CONTRATO DE TRABALHO

A lei estabelece a mínima parcela de possibilidades que pode decorrer da


vontade das partes no contrato laboral. Existe a liberdade, prevista inclusive na
CLT para a estipulação de garantias maiores ao empregado:
Art. 444 as relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação em tudo
quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos e às
decisões das autoridades competentes.37

De acordo com o esclarecimento dado por De La Cueva:

[...] tem o direito do trabalho como finalidade primeira proteger a saúde e


a vida do trabalhador e garantir-lhe um nível de vida compatível com a
dignidade humana. E, se este é seu propósito, é natural que, estando
condicionada à realização desse objetivo pelo conteúdo da relação de
trabalho, tivesse a lei o cuidado de fixá-lo de modo imperativo.38

Na mesma esteira, Arnaldo Süssekind39 referia que a autonomia da vontade


individual, deve ser limitada pela lei, pelo contrato coletivo ou sentença normativa;
entretanto, deve estar presente o contrato de trabalho como forma de estabelecer
condições que vão além do mínimo legal.

3.2.3 PODER DO EMPREGADOR

Ensina Maurício Godinho Delgado que os direitos da personalidade têm tutela


jurídica significativa de inegável potência e efetividade, especialmente porque
derivam diretamente da Constituição da República, mas também por serem
instrumento imprescindível de realização do sentido mais notável dos princípios
constitucionais da centralidade da pessoa humana na ordem jurídica e da

37
BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. Decreto-Lei nº 5.452 de 01 de maio de 1943. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br> acesso em 16 fev. 2020. p. 66
38
CUEVA, De La. Derecho Mexicano Del Trabajo. 1949. vol. 1. p. 945. Apud: SÜSSEKIND; TEIXEIRA FILHO, 2000, p.
253
39
SÜSSEKIND; Arnaldo; TEIXEIRA FILHO, João de Lima. Instituições de Direito do Trabalho. 19. ed. São Paulo: LTr,
2000. p. 253
267

dignidade da pessoa humana, além do próprio sentido lógico e teleológico do


conceito de Estado Democrático de Direito.40
De acordo com o autor:

Nessa medida estabelecem claro contraponto ao poder empregatício, em


qualquer de suas dimensões — poder normativo, diretivo, fiscalizatório e
poder disciplinar.

[...]

O poder empregatício é o conjunto de prerrogativas com respeito à


direção, regulamentação, fiscalização e disciplinamento da economia
interna à empresa e correspondente prestação de serviços.

É típico do contrato de trabalho, por meio do qual o Direito confere ao


empregador o poder diretivo sobre a prestação de serviços, auferindo a
vantagem inerente à situação jurídica de subordinação de seus
empregados. Embora a mesma ordem jurídica imponha ao empregador
os riscos da atividade empresarial, confere-lhe a impressionante
prerrogativa de poder organizar, reger, normatizar, controlar e até punir
no âmbito de seu empreendimento.41

Considerando que o empregador assume os riscos da atividade econômica,


e sendo o empregado um trabalhador subordinado, o art. 2º da CLT confere àquele
o poder de direção, também chamado de poder de comando ou poder hierárquico,
que consiste, nas palavras de Guilherme A. Canedo Magalhães:
Na faculdade que tem o empresário de exercer todas as atividades
referentes à administração da empresa, planejando a ação da
organização, estabelecendo normas para o seu funcionamento,
comandando e fiscalizando a execução do trabalho, prescrevendo as
regras de conduta dos empregados, adotando as medidas cabíveis para
a realização plena dos objetivos da empresa. 42

Da doutrina de Amauri Mascaro Nascimento colhe-se que o poder de direção


do empregador é a faculdade a ele atribuída de determinar como a atividade do
empregado deve ser exercida. Tal poder decorre de fundamento legal (CLT, art.
2º) e doutrinário (através de quatro teorias: a da propriedade privada; a
contratualista; a institucionalista; a do interesse) e manifesta-se de três formas
distintas:

- O poder de organização, que se constitui na faculdade de o empregador


definir os fins econômicos – comerciais, industriais, agrícolas etc. –
visados pelo empreendimento e a sua estrutura jurídica, bem como a
instituição de regulamentos e normas no âmbito da empresa;

40
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18. ed. São Paulo : LTr, 2019. p. 762-763
41
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18. ed. São Paulo : LTr, 2019. p. 763
42 GONÇALVES, Emílio. Contrato de trabalho e o poder disciplinar do empregador. In:
Revista da Academia Nacional de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, a. II, n. 2, 1994. p. 21-30
268

- O poder de controle, que consiste no direito de o empregador fiscalizar


as atividades profissionais de seus empregados, aí incluídas a revista dos
obreiros na portaria ao final do expediente, a colocação de câmaras de
circuito interno de televisão e a exigência de marcação do cartão de ponto;

- O poder disciplinar, que é a faculdade de o empregador impor sanções


a seus empregados.43

Octavio Bueno Magano explica que o poder hierárquico, ou poder diretivo lato
sensu, subdivide-se em poder diretivo stricto sensu, poder regulamentar e poder
disciplinar. O poder diretivo stricto sensu consiste na faculdade de ditar ordens e
instruções; o poder regulamentar corresponde à faculdade de legislar no âmbito da
empresa, consubstanciando-se na expedição de ordens genéricas, notadamente o
regulamento de empresa; o poder disciplinar traduz-se na faculdade de impor
sanções aos trabalhadores.44

3.2.4 REGULAMENTO DE EMPRESA

Da obra de Arnaldo Süssekind45, depreende-se que o regulamento da


empresa contém normas relativas a problemas técnicos que afetam as
organizações produtivas, onde o empregador constrói um ordenamento relativo à
atividade econômica que organiza e cujos riscos assume. Ainda contém
disposições sobre o objeto do contrato de trabalho e as condições gerais do
contrato, a que adere o empregado.
De acordo com Maurício Godinho Delgado:

Os dispositivos do regulamento empresário ingressam nos contratos


individuais empregatícios como se fossem cláusulas desses contratos —
que não podem, desse modo, ser suprimidas ainda que alterado o
regulamento. Noutras palavras, aplica-se a tais diplomas o mesmo tipo de
regra incidente sobre qualquer cláusula contratual (art. 468, CLT). Esse é
o entendimento sedimentado, ilustrativamente, na Súmula n. 51, I, TST. 46

Verificados os conceitos de direitos humanos e direitos fundamentais e


destacados aqueles que têm ligação com o uso e a limitação dos recursos da
internet no local de trabalho, além da possibilidade de restrições a esses direitos,

43
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 21. ed. São Paulo: LTr, 1994, p. 184
44
MAGANO, Octávio Bueno. Manual de direito individual do trabalho. 1992. 3. ed., v. II, p. 207
45
SÜSSEKIND; Arnaldo; TEIXEIRA FILHO, João de Lima. Instituições de Direito do Trabalho. 19. ed. São Paulo: LTr,
2000. p. 170
46
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18. ed. São Paulo : LTr, 2019. p. 201
269

que não são absolutos, passando pelos limites da autonomia individual no contrato
de trabalho, do poder de direção do empregado e do regulamento de empresa,
chega-se no capítulo final para melhor entendimento da possibilidade de uso e da
limitação de uso dos recursos da informática no local de trabalho.

4 O USO DOS RECURSOS DA INFORMÁTICA NO LOCAL DE TRABALHO

O avanço tecnológico que se deu no último século apresentou, entre outras


inovações, a internet com as redes sociais e o correio eletrônico, que possibilitam
a comunicação instantânea entre pessoas localizadas em qualquer parte do
mundo, o que acabou revolucionando os meios de comunicação.
O uso da internet, das redes socais e do e-mail já está presente na maioria
dos postos de trabalho e muitas vezes é desvirtuado pelo empregado que se utiliza
desses recursos para fins particulares, imorais ou ilícitos, além do que consomem
o tempo que deveria ser à disposição do empregador, em atividades pessoais.
Com isso, empregadores, na defesa de seus direitos, cada vez mais, buscam
alternativas para restringir o uso, exclusivamente para fins do trabalho e o fazem
através do monitoramento do uso e em alguns casos chega a proibir a utilização.
Diante do monitoramento, os empregados se veem limitados em alguns
direitos constitucionalmente consagrados e o conflito de interesses resolve-se
através da doutrina e da jurisprudência, uma vez que ainda não existe
regulamentação para o uso e o monitoramento dos recursos da informática e da
internet no local de trabalho.

4.1 A INFORMATIZAÇÃO DO AMBIENTE DE TRABALHO

As facilidades da internet, das redes sociais e do e-mail, decorrentes da


revolução tecnológica, chegaram para ficar no local de trabalho e, conforme
vislumbra o Advogado carioca Bruno Herrlein Correia de Mello, a informatização
do local de trabalho e a grande difusão das comunicações por meio do correio
eletrônico e das redes sociais trouxeram controvérsias:

[...] as comunicações por meio do correio eletrônico vêm aguçando a


controvérsia acerca da abrangência do poder diretivo do empregador,
pois, embora tal discussão esteja presente no âmago da doutrina
trabalhista desde sua origem, a utilização de novas tecnologias
270

proporciona ao empregador o exercício de seu poder diretivo de maneira


muito mais ampla e irrestrita.47

De acordo com Marli Stenger Bertoldi:

O uso inadequado da internet no ambiente de trabalho tem gerado


intranquilidade de muitos gestores nas organizações em decorrência da
perda de produtividade, concentração, segurança, qualidade dos
trabalhos desenvolvidos e ainda os riscos legais que esta atitude implica.

Outra consequência trazida pelo inadequado uso da internet é o


comprometimento da rede da corporação com conteúdos e acessos pessoais a
sistemas já um tanto carregados, comprometendo o bom funcionamento da rede
de comunicação.48
A restrição de uso e controle de acessos e de conteúdo envolve direitos
positivados, tais como, a liberdade de expressão, privacidade, sigilo das
comunicações e o poder de direção do empregador, como também importantes
princípios constitucionais. Esses direitos e princípios aparentemente conflitam
entre si, sendo necessária a análise desse conflito a fim de harmonizá-los, uma vez
que, inexistem na atualidade, diretrizes específicas para a regulamentação dos
procedimentos de fiscalização do uso dos recursos de informática, internet, rede
social, sendo necessária a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da
razoabilidade.

4.2 RELAÇÃO EMPREGADOR E EMPREGADO E O USO DA INTERNET

O uso da internet para acessar páginas da Web49, redes sociais ou enviar e-


mails dá origem a problemas de ordem trabalhista. Marcelo Oliveira Rocha, em sua
obra, destaca:
Extrai-se das informações obtidas pelos meios de comunicação, inclusive
da própria internet, revelações de usos mais absurdos, que vão desde a
pornografia, até os negócios pessoais, passando pelos bate-papos,
piadinhas, notícias de sindicatos, convites para reuniões, dentre outros. 50
De acordo com Maria Magdalena Fernandes de Medeiros51, não é incomum
que, tanto a rede da empresa, quanto o próprio e-mail corporativo sejam utilizados

47 MELO, Bruno Herrlein Correia de. Aspectos jurídicos da fiscalização do correio eletrônico no ambiente de trabalho.
Teresina, ano 10, n. 973, 1 mar. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br>. Acesso em: 16 fev. 2020. p. 1
48
BERTOLDI, Marlí Stenger. Consequências pelo uso inadequado da internet no ambiente de trabalho. Disponível em
<https://phmp.com.br/artigos/consequencias-pelo-uso-inadequado-da-internet-no-ambiente-de-trabalho/>. Acesso em: 17
fev. 2020. p.1
49
Local de postagem das páginas da internet
50
ROCHA, Marcelo Oliveira. Direito do Trabalho e Internet. São Paulo: Liv. e Ed. Universitária de Direito, 2005. p. 169
51 MEDEIROS, Maria Magdalena Fernandes de. Direito à privacidade e informática na relação de emprego. 22 nov.
2007. Disponível em: <http://www.oabpb.org.br>. p. 1
271

de maneira indevida pelo empregado, para atender a propósitos pessoais ou


ilícitos, prejudicando a empresa.
Marcelo Oliveira Rocha apresenta alguns problemas gerados pelo uso
indevido dos computadores:
O primeiro deles é a sobrecarga da memória e da rede. Em segundo lugar,
há o tempo subtraído do trabalho que é usado para preparar e enviar
mensagens ou ‘surfar’ na internet. Em terceiro lugar, o tempo gasto por
todos os empregados que têm de ler enormes quantidades de
mensagens. Tudo isso reduz a produtividade no local de trabalho. 52
Diante disso, cada vez mais, os empregadores se sentem no direito de
defender seus interesses, pois os computadores são de sua propriedade e estão
ali para serem usados no trabalho e, ainda, o trabalhador é remunerado para
desenvolver seu trabalho, e o tempo não pode ser desperdiçado.53
De acordo com Tarcísio Teixeira54, uma forma de melhor equacionar o conflito
de interesses é estabelecendo uma política de utilização dos recursos da
informática e a internet como reflexo do poder diretivo do empregador, sem,
todavia, perder de vista os direitos do trabalhador.

4.3 MONITORAMENTO DOS RECURSOS DA INFORMÁTICA

No entendimento de Mário Antonio Lobato de Paiva55, os bens em análise,


dos empregados, empregadores e terceiros, podem sofrer vulneração, o que
permite dizer que nenhum direito é absoluto. Desta forma, nem o empregador
possui o poder de acessar de maneira irrestrita o correio eletrônico do empregado,
nem este tem o direito de acesso e utilização dos recursos da informática para
quaisquer fins alheios ao serviço.
Faz-se necessária a aplicação do equilíbrio, do princípio da proporcionalidade
em cada direito, pois a falta de legislação, tanto disciplinando o uso e o
monitoramento, quanto prevendo sanções em caso de abusos, transfere a matéria
para a interpretação responsável e coerente das partes e dos operadores do direito
a fim de que o poder de um não implique em lesão ao direito do outro.56
Sobre a restrição de uso de ferramentas virtuais, refere Giovani Mendonça:

52
ROCHA, Marcelo Oliveira. Direito do Trabalho e Internet. São Paulo: Liv. e Ed. Universitária de Direito, 2005. p. 170
53
ROCHA, Marcelo Oliveira. Direito do Trabalho e Internet. São Paulo: Liv. e Ed. Universitária de Direito, 2005. p. 170
54
TEIXEIRA, Tarcisio. Direito Eletrônico. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2007. p. 92
55
PAIVA, Mário Antônio Lobato de. O monitoramento do correio eletrônico no ambiente de trabalho. Teresina, ano 7,
n. 60, nov. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br>. p. 11-12
56
PAIVA, Mário Antônio Lobato de. O monitoramento do correio eletrônico no ambiente de trabalho. Teresina, ano 7,
n. 60, nov. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br>. p. 12
272

Cumpre esclarecer, que a navegação em sites e a utilização de


ferramentas virtuais para fins particulares podem ser restringidas ou
mesmo proibidas pelo empregador, através de seu poder diretivo e
regulamentar. O empregador pode fazer constar no regulamento interno
da empresa e no Contrato Individual de Trabalho que a utilização da
internet para fins particulares em horário de trabalho é expressamente
vedada na empresa. Essa restrição ou proibição pode ser efetivada
através de determinações do empregador ou mesmo através de
ferramentas de controle que impossibilitem a utilização para esses fins. A
utilização pelo empregado da internet para fins particulares contrariando
as determinações do empregador pode configurar desídia ou ato de
indisciplina, que pode levar a aplicação de penalidades disciplinares pelo
empregador, como a dispensa por justa causa.57

Na doutrina existem posicionamentos contrários à fiscalização, como no


entendimento de Mário Antonio Lobato de Paiva: “no que diz respeito ao correio
eletrônico particular do trabalhador, é evidente que qualquer intromissão do mesmo
poderá ser considerada uma violação a direitos constitucionais de cidadão”58.
Entretanto, o mesmo doutrinador ressalta que não há impedimento para a
imposição da empresa, proibindo ou restringindo a utilização do correio eletrônico
particular durante a jornada de trabalho, agindo licitamente através do seu poder
diretivo.

4.4 ENTENDIMENTO DOS TRIBUNAIS TRABALHISTAS

O Tribunal Superior do Trabalho – TST tem se posicionado no sentido de uma


decisão proferida há alguns anos:

PROVA ILÍCITA. -E-MAIL- CORPORATIVO. JUSTA CAUSA.


DIVULGAÇÃO DE MATERIAL PORNOGRÁFICO. 1. Os sacrossantos
direitos do cidadão à privacidade e ao sigilo de correspondência,
constitucionalmente assegurados, concernem à comunicação
estritamente pessoal, ainda que virtual (email- particular). Assim, apenas
o e-mail pessoal ou particular do empregado, socorrendo-se de provedor
próprio, desfruta da proteção constitucional e legal de inviolabilidade. 2.
Solução diversa impõe-se em se tratando do chamado email- corporativo,
instrumento de comunicação virtual mediante o qual o empregado louva-
se de terminal de computador e de provedor da empresa, bem assim do
próprio endereço eletrônico que lhe é disponibilizado igualmente pela
empresa. Destina-se este a que nele trafeguem mensagens de cunho
estritamente profissional. Em princípio, é de uso corporativo, salvo
consentimento do empregador. Ostenta, pois, natureza jurídica

57
MENDONÇA, Giovane. Internet no local de trabalho. Pode o empregador fiscalizar e aplicar penalidades pelo uso
indevido? Disponível em <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10221>. Acesso em: 17 fev. 2020. p.1
58
PAIVA, Mário Antônio Lobato de. O monitoramento do correio eletrônico no ambiente de trabalho. Teresina, ano 7,
n. 60, nov. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br>. p. 9
273

equivalente à de uma ferramenta de trabalho proporcionada pelo


empregador ao empregado para a consecução do serviço. 3. A estreita e
cada vez mais intensa vinculação que passou a existir, de uns tempos a
esta parte, entre Internet e/ou correspondência eletrônica e justa causa
e/ou crime exige muita parcimônia dos órgãos jurisdicionais na
qualificação da ilicitude da prova referente ao desvio de finalidade na
utilização dessa tecnologia, tomando-se em conta, inclusive, o princípio
da proporcionalidade e, pois, os diversos valores jurídicos tutelados pela
lei e pela Constituição Federal. A experiência subministrada ao
magistrado pela observação do que ordinariamente acontece revela que,
notadamente o email- corporativo, não raro sofre acentuado desvio de
finalidade, mediante a utilização abusiva ou ilegal, de que é exemplo o
envio de fotos pornográficas. Constitui, assim, em última análise,
expediente pelo qual o empregado pode provocar expressivo prejuízo ao
empregador. 4. Se se cuida de email- corporativo, declaradamente
destinado somente para assuntos e matérias afetas ao serviço, o que está
em jogo, antes de tudo, é o exercício do direito de propriedade do
empregador sobre o computador capaz de acessar à INTERNET e sobre
o próprio provedor. Insta ter presente também a responsabilidade do
empregador, perante terceiros, pelos atos de seus empregados em
serviço (Código Civil, art. 932, inc. III), bem como que está em xeque o
direito à imagem do empregador, igualmente merecedor de tutela
constitucional. Sobretudo, imperativo considerar que o empregado, ao
receber uma caixa de email- de seu empregador para uso corporativo,
mediante ciência prévia de que nele somente podem transitar mensagens
profissionais, não tem razoável expectativa de privacidade quanto a esta,
como se vem entendendo no Direito Comparado (EUA e Reino Unido). 5.
Pode o empregador monitorar e rastrear a atividade do empregado no
ambiente de trabalho, em email- corporativo, isto é, checar suas
mensagens, tanto do ponto de vista formal quanto sob o ângulo material
ou de conteúdo. Não é ilícita a prova assim obtida, visando a demonstrar
justa causa para a despedida decorrente do envio de material
pornográfico a colega de trabalho. Inexistência de afronta ao art. 5º,
incisos X, XII e LVI, da Constituição Federal.6. Agravo de Instrumento do
Reclamante a que se nega provimento.59

É o entendimento recorrente que, em se tratando de email coorporativo, existe


a possibilidade de controle, pois teria natureza jurídica de ferramenta de trabalho.
Embora o TST entenda ser possível o monitoramento do email corporativo,
não necessariamente a utilização para fins pessoais gerará a dispensa por justa
causa:
A utilização de equipamentos patronais para a administração de
interesses privados não é, por si só, causa para a ruptura do vínculo
trabalhista por justa causa, sobretudo ante a constatação de que não
houve qualquer reprimenda intermediária e gradual por parte do
empregador, configurando-se a dispensa por justa causa, nesse caso, um
exercício abusivo do poder disciplinar (aplicação de penalidade
desproporcional per saltum). Registre-se que o fato de o empregador ter
investigado a empregada no curso do gozo de afastamento previdenciário
e ter descoberto que ela mantinha a administração de seus interesses
privados durante o período de convalescência em nada modifica o
entendimento aqui delineado. Incólume, pois, o art. 482, "d", da CLT, ante

59
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. RR: 613002320005100013 61300-23.2000.5.10.0013, Relator: João Oreste
Dalazen, Data de Julgamento: 18/05/2005, 1ª Turma,, Data de Publicação: DJ 10/06/2005. Disponível em www.tst.jus.br
acesso em 16 fev. 2020. p.1
274

a não configuração da hipótese de justa causa sob comento. Incidência


da Súmula nº 296, I, do TST.60

A possibilidade de monitoramento das atividades do empregado no


computador da empresa, nas redes sociais ainda que em equipamentos próprios,
é deveras controversa, pois os vários direitos envolvidos aparentemente conflitam
entre si.
Importante se faz a regulamentação e a política do uso adequado da internet
e das redes sociais em relação às empresas em que se trabalha. Essa
regulamentação, feita de maneira correta não desrespeita o empregado e, ainda
deixa as regras claras e auxilia no bom andamento da relação laboral. Sobre a
restrição de uso do celular no ambiente de trabalho se pronunciou o Tribunal
Regional do Trabalho de Santa Catarina:

RESTRIÇÃO AO USO DE TELEFONES CELULARES NO HORÁRIO DE


LABOR. PODER DIRETIVO DO EMPREGADOR. A proibição do uso de
aparelho celular pelo empregado, no período em que está laborando, está
inserida no poder diretivo do empregador, porquanto tais equipamentos
permitem que a qualquer momento o trabalhador interrompa suas
atividades profissionais para dedicar-se a questões particulares, nem
sempre de caráter urgente, desviando sua atenção. A interferência na
concentração gera não apenas uma interrupção dos serviços, mas
também pode provocar acidente de trabalho, pondo em risco a integridade
física dos trabalhadores envolvidos na tarefa. 61

Assim, tem-se que a doutrina e a jurisprudência tendem a aceitar o


monitoramento do acesso à internet, a limitação do uso de redes sociais, o
monitoramento do uso do e-mail corporativo e a limitação do uso de e-mail
particular. Não obstante, o monitoramento deve ser realizado quando existir
menção no contrato de trabalho, nas normas internas ou no regulamento da
empresa, evitando, assim, ofensa a direitos fundamentais do trabalhador.
Portanto, recomenda-se que a empresa elabore regras claras e objetivas a
respeito da utilização da internet, redes sociais, ainda que através de equipamento
particular e do e-mail particular e corporativo, explicitando sobre o eventual
monitoramento.

60
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. RR - 447-94.2011.5.04.00245ª Turma, Relator: Ministro Emmanoel Pereira,
28.08.15. Disponível em www.tst.jus.br acesso em 16 fev. 2020. p.1
61
SANTA CATARINA. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Ac. 3ª T. Proc. RO 0000852-84.2011.5.12.0032.
Maioria, 20.03.12. Rel.: Juíza Maria de Lourdes Leiria. Disp. TRT-SC/DOE 30.03.12. Data de Publ. 02.04.12. disponível em
www.trt12.jus.br. Acesso em 17 fev. 2020. p. 1
275

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O uso da internet e do e-mail revolucionaram os meios de informação e


comunicação de modo a considerar que seus efeitos são irreversíveis pela
facilidade e rapidez com que disponibilizam e transmitem os mais variados
conteúdos. Com as facilidades surgiram também problemas, especialmente no
local de trabalho, pois alguns empregados não utilizam os recursos somente para
seus fins específicos, ou seja, a prestação de serviço e a produção visando o
sucesso do empreendimento, mas também fazem uso para fins pessoais, alguns
imorais e até ilícitos.
Diante do desvirtuamento do uso dos recursos disponibilizados pelo
empregador e das redes sociais, ainda que em equipamentos particulares, tornou-
se necessária a regulamentação, a limitação e o monitoramento do trabalho
desenvolvido pelo empregado com os recursos da informática e com isso surgiram
conflitos de interesses.
O empregador passou a fazer uso de diversas ferramentas para limitar e
monitorar o uso dos recursos da informática e o empregado, por sua vez, viu
direitos fundamentais serem violados, devendo nesse aspecto, haver aplicação do
razoabilidade e proporcionalidade, considerando que tais direitos não são
absolutos, mas devem ser respeitados.
No que tange à possibilidade de limitação do uso dos recursos da informática,
acesso à internet e redes sociais para fins particulares no local de trabalho, tanto a
doutrina como a jurisprudência é tendente no sentido de que é necessário
estabelecer uma política de uso desses recursos, refletindo o poder diretivo do
empregador, a que possa consentir formalmente o empregado, deixando claro que
a proteção da esfera privada pode ser restringida, quais são as regras aplicáveis,
enumerando-se da forma mais completa possível o que o empregado não deve
fazer diante dos recursos da informática, no acesso à redes sociais, ainda que em
equipamento particular e, ainda, em que circunstâncias o uso será controlado.

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276

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_____. Tribunal Superior do Trabalho. RR: 613002320005100013 61300-


23.2000.5.10.0013, Relator: João Oreste Dalazen, Data de Julgamento:
18/05/2005, 1ª Turma,, Data de Publicação: DJ 10/06/2005. Disponível em
www.tst.jus.br. Acesso em 16 fev. 2020.

_____. Tribunal Superior do Trabalho. RR - 447-94.2011.5.04.00245ª Turma,


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279

POPULISMO PENAL – UMA POLÍTICA PENAL INEFICIENTE HÁ TRÊS


DÉCADAS.

Adriano Delfino Moreira1

RESUMO: Com a finalidade de conhecer o fenômeno do populismo penal, este artigo utilizou-se da
pesquisa bibliográfica como procedimento técnico, valendo-se do método dedutivo e indutivo.
Assim, apresentou-se, em linhas gerais, o conceito do populismo penal, a sua origem, a sua
ineficácia com forma de reduzir a criminalidade e às suas consequências nefasta no Estado
Democrático de Direito. Portanto, diante da crescente criminalidade surge o discurso populista, o
qual remonta da política caracterizado por um discurso sedutor e manipulador de massas,
perpetrado por um líder carismático, que apresenta propostas rápida e “milagrosas” para combater
o crime, sem qualquer cientificidade e reflexão. É uma política penal alicerçada, no hiperpunitivismo
penal e redução das garantias e dos direitos fundamentais, bem como o exagerado encarceramento
seletivo.Contudo, nas últimas três décadas a ineficácia dessa política criminal política penal restou
demonstrada, pois não surtiu o efeito desejado, pelo contrário, houve o aumento considerável de
delitos. A comoção social e a sensação do pânico generalizado, provocado pela imprensa, que
diariamente promove a divulgação sensacionalista dos casos penais, tornam-se o elemento
propulsor do populismo penal. Os órgãos de persecução penal, com a finalidade de dar uma
resposta rápida e eficiente para a sociedade na redução e combate à criminalidade, passam a
promover a “justiça penal” dentro de um processo penal sumário a margem da lei, ou seja, uma
justiça a qualquer preço sem os direitos e as garantias fundamentais.

INTRODUÇÃO

O presente artigo surge da necessidade de discutir a atual política penal


adotada no Brasil, a sua finalidade, a sua eficácia e as suas consequencias. O
legislador pátrio tem tratado a matéria do direito penal sob a ótica do populismo
penal. Essa política penal não possui base científica e é adotada por pressão da
opinião pública e do clamor público como uma solução “eficiente” ao combate à
criminalidade.
Nas últimas décadas constatamos uma inflação legislativa penal, como
resposta do Estado em face do aumento da criminalidade. A crença de que a lei
penal com penas duríssimas irá conter o avanço da criminalidade habita o
imaginário popular.
A mídia aparece como um importante agente neste cenário, visando atingir
os altos índices de audiência promove reportagens sensacionalistas, explorando
os fatos delituosos, por vezes de forma irresponsável, gerando a sensação do
medo e da insegurança pública. Por conta disso, surge na sociedade o clamor e a
súplica por mais e mais leis penais,

1
Mestrado do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito (PPGD) do Centro Universitário Autônomo do Brasil -
UniBrasil/MINTER - Uniguaçu/PR.
280

O legislador visando atender essa necessidade social produz leis penais


graves, toda vez que um novo delito cause repercussão nacional ao ocupar as
principais paginas dos noticiários.
No entanto, essa lógica hiperpunitivista, adotada nas últimas décadas pelo
legislador brasileiro, não tem gerado os efeitos almejados, que é a redução de
praticas criminosas.

1 POPULISMO PENAL

O populismo penal se revela um discurso, um tanto simplista, pautado


principalmente, na repressão e expansão do Direito Penal como a única solução
para estabelecer a ordem pública. Neste sentido, explora o senso comum, o saber
popular, as emoções e as demandas geradas pelo delito, assim como pelo medo
do delito, buscando o consenso ou o apoio popular para exigir mais rigor penal,
como suposta “solução” para o problema da criminalidade.2
Como bem observa Julian V. Roberts, et al3, o discurso ideológico populista,
não decorre de concepções políticas, e sim das vontades e desejos do grupo
eleitoral que se pretende convencer.
A natureza de soluções populistas para o crime fez com
que o populismo penal fosse associado na maioria das vezes com
a direita política. No entanto, também observamos em todo o
mundo que os atores políticos de centro-esquerda também
adotaram posições populistas sobre o crime e a forma de punir,
sem que prejudicassem o conteúdo de suas campanhas eleitorais.
Por exemplo, os democratas nos Estados Unidos e os membros
dos Partidos Trabalhistas britânico e australiano compreenderam a
importância da adoção de políticas rigorosas sobre crime como
forma de retomar suas posições sobre essa questão. O fato de que
é possível adotar uma posição rígida nessa seara sem
necessariamente ameaçar o restante de determinada plataforma
política, significa que os atores políticos de todas as ideologias têm
se mostrado aberto às seduções do populismo penal.

Quanto a origem do populismo penal, Luiz Flávio Gomes4 assevera que o


instituto advém da política, pois é no plano político que "o populismo se caracteriza
pela manobra da vontade da massa, do povo, guiada por um líder carismático, que

2
GOMES, Luiz Flávio; ALMEIDA, Débora de Souza. Populismo Penal Midiático – Caso Mensalão, mídia disruptiva e direito
penal crítico. São Paulo/SP: Saraiva, 2014. p 16.
3
ROBERTS, J. V. et al. Penal PopulismandPublicOpinion: LessonsForm Five Countries. New York: Oxford University Press,
2003 p.65).
4
GOMES, Luiz Flávio; ALMEIDA, Débora de Souza. Populismo Penal Midiático – Caso Mensalão, mídia disruptiva e direito
penal crítico. São Paulo/SP: Saraiva, 2014. p28.
281

procura atender suas demandas e promover (tendencialmente) o exercício tirânico


do poder".
Ainda neste mesmo sentido, Gebin5 alude que o populismo é um projeto
político, que considera a opinião pública latente e concreta, fundamentalmente com
bases emocionais, desconsiderando as ponderações e as reais evidências,
buscando sempre a popularidade e indiferente à eficácia do que se propõe.
Essa lógica perversa da política alcançou o direito penal, sendo denominada
de populismo penal, o qual é utilizado como forma de exercício do poder punitivo
do Estado, caracteriza-se pela instrumentalização ou exploração do senso comum,
da vulgaridade e da vontade popular, para implementar um sistema de
hiperpunitivismo Estatal, como solução de um problema complexo.6
Ademais, o populismo penal consiste em um conjunto de ações políticas
penais engendradas com a finalidade única de arregimentar apoio eleitoral, sem
preocupação em reduzir as reais taxas de criminalidade ou promoção da justiça.7
Verifica-se que o Direito Penal e o Direito Processual Penal se tornaram um
produto, uma mercadoria, a ser vendida e explorada por governos populistas, como
uma crença sincera de conter o aumento da criminalidade. Para tanto, o discurso
falacioso, se baseia fundamentalmente, no endurecimento de penas e redução das
garantias processuais penais.
O adepto desta ideologia vale-se do mesmo modus operandi sempre que o
clamor público se manifesta no sentido de uma resposta rápida do Estado frente a
ocorrência de delitos graves, e com supedâneo nisso, procede da seguinte forma8:
se as pesquisas demonstram que a população é punitiva e
que a mídia explora sensacionalisticamente os casos-crime,
passando a sensação de que o índice de criminalidade [corrupção]
está em constante crescimento, logo, em
termos de direito penal, atender à opinião pública significa maior
rigor penal; assim, promete-se a prevenção de delitos, a ser obtida
com uma rígidasanção penal; passados alguns anos, os problemas
persistem; o clamor público incandesce; promete-se a prevenção
de delitos, a ser obtida com pena maior. Enfim, como o
funcionalismo penal ignora os princípios da racionalidade e
proporcionalidade das penas, joga-nos numa espiral punitiva sem
fim.

5
GEBIN, Marcus Paulo. CORRUPÇÃO, PÂNICO MORAL E POPULISMO PENAL, estudo qualitativo dos Projetos de Lei
propostos no Senado Federal e na Câmara dos Deputados entre os anos de 2002 e 2012. Dissertação de mestrado
apresentada à Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, como requisito para a obtenção do
título de Mestre em Direito e Desenvolvimento. 2014. p.71.
6
GOMES, Luiz Flávio; ALMEIDA, Débora de Souza. Populismo Penal Midiático – Caso Mensalão, mídia disruptiva e direito
penal crítico. São Paulo/SP: Saraiva, 2014. p29.
7
Roberts et al, 2003, p. 20
8
GAZOTO, L. W. Justificativas do Congresso Nacional Brasileiro ao rigor penal
legislativo. 2010. Tese de Doutorado – Departamento de Sociologia/ UnB, Brasília/DF, 2010. p. 285
282

Neste ciclo vicioso caminha a sociedade, diante do aumento da criminalidade,


alvoroça o clamor público por mais leis penais. Assim, neste cenário caótico
agiganta-se o populista penal, o qual adota a tese hiperpunitivista como forma de
atender a vontade da maioria, gerando uma sensação de eficiência, como se a
nova lei penal fosse solucionar a crescente criminalidade.
Caso perguntássemos para a população qual seria o melhor tratamento para
um aneurisma, a reposta, normalmente, seria de que “não tenho a mínima ideia”,
e, jamais, diria que um curandeiro seria a melhor opção. Portanto, diante do
complexo mundo da medicina as pessoas não se arriscam a opinar por falta de
conhecimento técnico. Por outro lado, a conclusão é diversa, quando se questiona
sobre o tema criminalidade, em que pese sua complexidade, nesta seara, todos
opinam e apresentam soluções mágicas, tais como: prisão, castigo duro,
humilhação, degradação do preso, abolição das garantias fundamentais, tortura,
extermínio etc.9
Assim, neste ambiente emotivo, desprovido de racionalidade, adverte
Bauman10, surgem novas prisões, novos tipos penais, aumento de penas, redução
de garantias processuais. Todas medidas emergenciais que aumentam a
popularidade dos governos, refletindo a imagem de severos e decididos a resolver
de forma dramática e convincente. A eficácia dessas medidas nunca é verificada,
pois são substituídas pela resposta rápida e pela versatilidade das operações
punitivistas.

2 O AMBIENTE PROPÍCIO PARA O DESENVOLVIMENTO DO POPULISMO


PENAL

Atualmente é nítido a preocupação da sociedade brasileira com o aumento


considerável da criminalidade, principalmente, no que tange aos delitos de
homicídios, os dados do Ministério da Saúde, que fazem parte do Atlas da Violência
2019, divulgados no dia 05 de junho de 2019, pelo IPEA11 (Instituto de Pesquisa

9
GOMES, Luiz Flávio; ALMEIDA, Débora de Souza. Populismo Penal Midiático – Caso Mensalão, mídia disruptiva e direito
penal crítico. São Paulo/SP: Saraiva, 2014. p104.
10BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Rio De Janeiro: Zahar, 1999.

11
IPEA. Instituto de pesquisa e econômica aplicada. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34784&Itemid=432. Acesso em 10-10-2019.
283

Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os quais


revelam que no ano de 2017, o Brasil registrou 62.602 mortes violentas
intencionais, o que equivale a uma taxa de aproximadamente 31,6 mortes para
cada cem mil habitantes. Trata-se do maior nível histórico de letalidade violenta
intencional no país.
Esse cenário de extrema violência tornou-se um campo fértil para a
continuidade do populismo penal, discurso político, encampado no seio da
sociedade e disseminado pela mídia, como forma de resolução do aumento da
violência.
O crime exerce uma fascinação na sociedade, desperta nas pessoas o
interesse em descobrir os motivos do delito, as suas circunstâncias e as suas
consequências. Os processos criminais são os mais temidos de todos, e também
os mais fascinantes para o público12.
Segundo Sergio Salomão Shecaira13, um dos fatores que reforça este fascínio
das pessoas em relação à criminalidade é justamente porque “é diferenciando-se
do criminoso que não se deixa dúvidas quanto a condição de pessoas honestas
que cada um atribui a si próprio”.
Portanto, a punição de alguém, a sua derrocada, a possibilidade de apontar
o dedo na face alheiapara indicar-lhe a culpa, sempre foi e continua sendo uma
forma de extravasar as própriasinsatisfações e frustrações14.
Diante do nítido interesse e fascínio pelo crime que aguça a sociedade, a
mídia, sempre atenta, dedica-se exageradamente, em informar e publicizar os fatos
delituosos, principalmente, os considerados graves.
Nesta seara, a mídia, visando atingir altíssimos índices de audiência, pois
isso significa lucro, atuando sob pressão do poder econômico15,veicula
massivamente às notícias sobre os delitos graves perpetrados na sociedade. Por
isso, tais notícias ocupam grande parte das páginas de jornais e dos programas
televisivos, em detrimento de outros assuntos menos fascinantes.
A mídia expõe os fatos criminosos de forma sensacionalistas e espetacular,
dando demasiadamente ênfase ao fato criminoso como forma de capturar à

12
DWORKIN, Ronald. O Império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2017, p. 03.
13
SHECAIRA, Sérgio Salomão. A criminalidade e os meios de comunicação de massa. Revista Brasileira de
Ciências Criminais nº 10, São Paulo: RT, abr/jun.1995. p. 135
14
RAHAL, Flávia. Mídia e Direito Penal. 13º Seminário Internacional de
Ciências Criminais. São Paulo: DVD, 2007.
15
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 77.
284

atenção da população, visando unicamente o crescimento da audiência. No


entanto, esse “show business”, gera na sociedade o desejo de vingança e a
sensação de insegurança, tais sentimentos “reduzem os níveis de tolerância social
e promove indivíduos obcecados por vigilância e controle, fortalece o desejo de
isolamento e vingança, amplia a demanda por mais penas, aumenta o clamor
social”16.
Nesta perspectiva adverte Zaffaroni17 que a mídia quando explora a
criminalidade gera na sociedade a súplica por punições cada vez mais graves.
O direito penal e processo penal se tornaram uma mercadoria a ser
explorada e vendida pela mídia, principalmente, as investigações espetaculares e
os processos criminais.
Neste ambiente, em que o direito penal e processual penal, são
midiatizados, o sentimento de insegurança social cresce, o medo de se tornar a
próxima vítima aparece como uma sobra escura orbital. Tudo isso, faz surgir na
sociedade a demanda por leis penais mais graves, essa é a resposta rasa e
imediata da sociedade amedrontada em face da criminalidade crescente.
Surge assim “o novo credo criminológico da mídia que tem seu núcleo
irradiador na própria ideia de pena: antes de mais nada, creem na pena como rito
sagrado de solução de conflitos”18.

3 MANIFESTAÇÕES DO POPULISMO PENAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO E A SUA INEFICÁCIA.

Será que o endurecimento das penas é capaz de reduzir a criminalidade? A


norma penal é capaz de impor (prevenção geral) um temor aos integrantes da
sociedade, desestimulando a pratica de delitos? Pois bem, vejamos, brevemente,
a evolução histórica da norma penal brasileira e seus reflexos sob a influência do
populismo penal.
Inicialmente, cumpre trazer à baila a evolução das penas do delito de tráfico
de drogas, o qual no Código Penal de 1.940, no seu art. 281, previa a pena de 1 a

16OLIVEIRA, TâniaMaria de, A AudiênciaPúblicacomoInstrumento de participação social no


processolegislativo, p. 28. https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/510147/TCC%20-
%20Tania%20Maria%20de%20Oliveira.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 set. 2019.
17
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: Conferência de criminologia cautelar, São Paulo: Saraiva, 2012.
BATISTA, Nilo Batista. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos sediciosos: crime,direito e sociedade, Rio
18

de Janeiro, ano 7, n. 12, p. 271-288, 2º sem. de 2002. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/batista-nilo-midia-sistema-


penal.pdf.Acessoem: 08 out. 2019.
285

5 anos de reclusão. No entanto, posteriormente, por meio da Lei 5.276/71, sua


pena foi majorada para 6 anos de reclusão, e, na sequência, no ano de 1.976, o
legislador editou a lei 6.368/76, sendo no seu art. 12, novamente, majorando a
pena do delito de tráfico de drogas ilícita para os patamares de 3 a 15 anos de
reclusão. Por fim, nessa lógica hiperpunitivista, o legislador no ano de 2006, por
intermédio da lei 11.343/06, estabeleceu a pena mínima de 5 anos de reclusão e a
pena máxima de 15 anos de reclusão.
Todavia, em que pese, a sanha do legislador pátrio no combate ao delito de
tráfico de drogas, adotando como política penal apenas o endurecimento da pena,
verificou-se que não obteve o fim desejado, que é a redução do delito de tráfico de
drogas.
Os dados estatísticos revelam o aumento considerável da traficância e do
consumo de drogas no Brasil, uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz 19,
realizada no ano de 2.015, indicou que 3,563 milhões de brasileiros consumiram
drogas ilícitas em período recente. Neste sentido, ainda tem-se que 208 mil
afirmaram ter usado crack nos 30 dias anteriores ao levantamento. A pesquisa
também, concluiu que 9,9% dos brasileiros relatam ter usado drogas ilícitas uma
vez, 7,7% da população consumiu maconha, haxixe ou skank, 3,1%, cocaína,
2,8%, solventes e 0,9%, crack.
Outra pesquisa realizada pelo G1notícias20, com base nos dados fornecidos
pelos Estados, Distrito Federal e tribunais de justiças, revelaram que um em cada
três presos no país responde por tráfico de drogas. Ainda segundo o levantamento,
divulgado em 2015, conclui pelo aumento do número de presos por tráfico de
drogas foi de 339%, de 2005 a 2013.
Nesta esteira, necessário lembrar que no final da década de 80 e início da
década de 90, motivada pela sequência de sequestros de pessoas “famosas”, tais
como o empresário Abílio Diniz e Roberto Medina, adveio a lei 8.072/90, lei dos
crimes hediondos, aumentando as penas e criando um sistema penal mais
rígidospara autores dos delitos considerados hediondos.
No ano de 1.992, o assassinato da atriz e modelo Daniela Perez perpetrado
por Guilherme de Pádua e Paula Thomaz tomou conta dos noticiários do país,

19
FIOCRUZ. Fundação Osvaldo Cruz. https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-revela-dados-sobre-o-consumo-de-drogas-
no-brasil. Acesso em 08 de out. 2019.
20
CLARA VELASCO, R. D. (03 de 02 de 2017). Globo.com. Fonte: G1 política: Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/um-em-cada-tres-presos-do-pais-responde-por-trafico-de-drogas.ghtml. Acesso em 10
de out. 2019.
286

gerando uma grande comoção social. A escrita Gloria Perez, mãe da vítima,
desencadeou uma campanha nacional visando uma mudança na lei de crimes
hediondos, buscando endurecimento da lei. O legislador atendendo o clamor
público aprovou a lei 8.930/90 para incluir o homicídio qualificado como crime
hediondo.
Seguindo neste raciocínio, tem-se no ano de 1.998, o caso amplamente
divulgado na mídia do medicamento anticoncepcional Microvlar 21, o qual continha
farinha em sua composição, gerando a gravidez indesejadas de diversas mulheres.
Assim, mais uma vez veio a rápida resposta do legislador, que motivado pela
pressão da mídia, imediatamente editou a lei 9.677/98, para tratar delito de
falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins
terapêuticos ou medicinais, sancionado tal conduta com pena mínima de dez anos
de reclusão, ou seja, a pena é quase o dobro da pena do homicídio simples.
Portanto, neste afã do Poder Estatal (legislativo) em dar uma resposta célere à
população, sem a devida reflexão e analise, ao editar a norma penal fulminou com
o princípio da proporcionalidade da pena.
No ano de 2.003, foi aprovada a lei 10.792 que alterou a Lei de Execuções
Penais e o Código de Processo Penal no país criando o RDD (Regime diferenciado
disciplinar), para presos que integram facções criminosas atuantes em presídios,
visando impedir que de dentro dos presídios líderes das organizações criminosas
possam comandar ações externas.
A edição da lei 13.142/15, que trouxe alterações no Código Penal, prevendo
uma nova forma de qualificação do delito de homicídio, bem como uma causa de
aumento de pena do crime de lesão corporal quando estes crimes forem
praticados contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição
Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança
Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge,
companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa
condição, foi mais uma resposta simplória para a crescente violência sofrida pelos
agentes de segurança pública no Brasil.

21Em 22 de junho de 1998, o Ministério da Saúde determinou a retirada do mercado do anticoncepcional Microvlar,
do laboratório Schering do Brasil. Também ordenou a paralisação da produção e, posteriormente, interditou a fábrica. A
medida foi tomada após ter sido revelado que chegaram ao mercado pílulas feitas com farinha e serem registrados
casos de gravidez indesejada de consumidoras.
287

De igual forma se posicionou o legislador ao tratar do tema “porte de arma


de fogo”, inicialmente, o porte ilegal de arma de fogo era tratado no DL 3.688/41,
no seu art. 19, que previa a pena de prisão simples de 15 (quinze) dias a 6 (seis)
meses, ou multa, ou ambas cumulativamente, ou seja, era uma contravenção
penal. Adiante, no ano de 1.997, o então Presidente da República, Fernando Collor
de Mello, sancionou Lei 9.437, de 20 de fevereiro de 1997, e a partir de então portar
ilegalmente arma de fogo passou a ser crime, punido, no mínimo, com detenção
de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa, conforme decorre do disposto no art. 10 da
referida lei. Por derradeiro, a imprudência e a voracidade do legislador por penas
mais duras fizeram nascer o então famigerado Estatuto do Desarmamento, Lei
10.826/03, o qual tratou o porte ilegal de arma de fogo em seu art. 14, prevendo
penas de 1 a 4 anos de reclusão.
Seguindo nesta política criminal no ano de 2.017, o legislador inova mais
uma vez a ordem jurídica ao editar a lei 13.497, que alterou o art. 1º da lei 8.072/90,
para inserir no rol de crimes hediondos o delito de posse ou porte ilegal de arma
de fogo de uso restrito, previsto no art. 16 da lei 10.826/03, denominada Estatuto
do desarmamento. Constata-se mais uma vez que o legislador agiu motivado pela
crescente criminalidade, amplamente noticiada pela mídia. A justificativa para a
nova lei foi “a avassaladora onda de criminalidade que vitima a sociedade
brasileira, atingindo patamares nunca antes experimentados no país.”22
Quanto a tal alteração legislativa, Rogério Sanches23, afirmou ser mais uma
manifestação do Direito Penal Simbólico, movimento legislativo hiperpunitivista,
que aumenta penas e cria novos tipos penais, visando criar a doce ilusão na
população da sensação de segurança e contenção da criminalidade pelas
autoridades.
No entanto, em que pese, o endurecimento da pena para aqueles que
praticam o delito de porte de arma de fogo, verificou-se que no primeiro ano do
Estatuto do desarmamento foram registrados, no país, 48.374 homicídios, sendo
que 34.187 com o uso de arma de fogo. Posteriormente, mais precisamente, nove

22
BRASIL. Câmara dos Deputados. Justificativa ao Projeto de Lei 230/14, que deu origem à Lei
13.497/17.https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1474092&filename=PRL+1+CSPCCO
+%3D%3E+PL+3376/2015. Acesso em 03 de out. 2019.
23
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Geral. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 37.
288

anos depois do incremento da norma, no ano de 2.012, o país registrou 56.337


assassinatos, dos quais 40.077 com o uso de arma de fogo24.
Infere-se, portanto, que a edição de leis penais mais graves sobre o porte e
posse ilegal de arma de fogo não foi capaz de conter o crescimento da
criminalidade.
Como observado todas as alterações legislativas aqui expostas, vale dizer,
referidas apenas algumas dentro do universo legislativo penal, foram no sentido de
endurecimento da pena e surgimento de novos tipos penais, como forma de conter
o avanço do crime. No entanto, a eficácia desejada de tais normas penais não foi
atingida, pelo contrário, houve um incremento nos índices de criminalidade.
Cesare Beccaria25 já alertava que não é a extensão e a gravidade da pena
que exerce o efeito intimidativo, mas a certeza de sua efetividade.

3.1 CONSEQUÊNCIA DA POLÍTICA POPULISTA PENAL

Certamente, pode-se afirmar que a política populista penal não consegue


conter o avanço da criminalidade, bem como a sua redução. Assim, afasta-se ab
initio a falácia de que leis penais mais graves previnem a pratica de delitos.
Diversas são as consequências do discurso populista penal, no entanto,
convém destacar as principais e mais importantes, dentre elas, talvez a principal é
o aumento de leis penais, nas últimas décadas tivemos mais de 136 leis penais
aprovadas26. Essa inflação legislativa penal em reposta a crescente criminalidade
tem-se revelado uma política ineficaz, pois não gerou o efeito desejado, que é a
redução da criminalidade.
É nesse contexto que surge o direito penal simbólico, em uma “sociedade
amedrontada, acuada pela insegurança, pela criminalidade e pela violência
urbana”27.
José de Ribamar Sanches Prazeres28, define o direito penal simbólico como:

24
Rebelo, Fabrício. Após o Estatuto do Desarmamento, homicídios com uso de arma de fogo são os que mais
crescem. https://jus.com.br/artigos/45124/apos-o-estatuto-do-desarmamento-homicidios-com-uso-de-arma-de-
fogo-sao-os-que-mais-crescem. Acesso em 11 de out. 2019.
25
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo. Edipro, 2015.
26
GOMES, Luiz Flávio. JusBraisl.Populismo penal e inflação legislativa. Disponível em:
https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121930381/populismo-penal-e-inflacao-legislativa. Acesso em 10∕11∕2019.
27
SICA, Leonardo. Direito Penal de emergência e alternativas à prisão, 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.
77.
28PRAZERES, José de Ribamar Sanches. O Direito Penal Simbólico Brasileiro. Disponível em: <
http://persephone.mp.ma.gov.br/site/ArquivoServlet?nome=Noticia86A56.doc>. Acesso em:
11∕11∕2019.
289

a expressão "direito penal simbólico", como sendo o


conjunto de normas penais elaboradas no clamor da opinião
pública, suscitadas geralmente na ocorrência de crimes violentos
ou não, envolvendo pessoas famosas no Brasil, com grande
repercussão na mídia, dada a atenção para casos determinados,
específicos e escolhidos sob o critério exclusivo dos operadores da
comunicação, objetivando escamotear as causas históricas, sociais
e políticas da criminalidade, apresentando como única resposta
para a segurança da sociedade a criação de novos e mais rigorosos
comandos normativos penais.

Não há uma preocupação com a efetividade da criminalização, isso se torna


secundário, pois a preocupação primordial é a resposta imediata, ou seja, inovar a
ordem jurídica com leis penais mais graves, criando a ilusão de segurança
eficiente.29
Essa expansão do direito penal, para Silva Sanchez30 é um resultado:
Desalentador. Por um lado, porque a visão do Direito Penal
como único instrumento eficaz de pedagogia político-social, como
mecanismo de socialização, de civilização, supõe uma expansão
ad absurdum da outrora ultima ratio. Mas principalmente porque tal
expansão é em boa parte inútil, na medida em que transfere ao
Direito Penal um fardo que ele não pode carregar.

O açodamento em produzir leis penais leva a tipificação desnecessária de


certas condutas, as quais quando praticadas poderiam ser solucionada na esfera
administrativa ou civil, como exemplo, tem-se a legislação penal ambiental, prevista
na Lei 9.605/98. Ainda neste sentido, tem-se a lei 8.137/90, que define os crimes
contra a ordem tributária, econômica e contra a relação de consumo, cujo principal
objetivo é força a arrecadação de tributos por meio da norma penal 31.
Desvirtua assim, o caráter fragmentário do direito penal, ou seja, tutelar
somente os bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens32.
Essa avidez pela elaboração de leis penais mais duras, como única reposta
estatal para conter o crescimento da criminalidade, tem gerado outro problema
para o sistema penal, que é o aumento considerável da população carcerária. O
Brasil é o país campeão mundial na taxa de encarceramento (1990 a 2011, 472%
de aumento), mas, ao mesmo tempo, houve um incremento nos índices de

29
SOARES. Fernanda Trajano de Cristo. O mito da segurança através do direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2.019,
p. 71.
30
SÁNCHES, Jesus Maria Silva. A expansão do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 61.
31
SOARES. Fernanda Trajano de Cristo. O mito da segurança através do direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2.019,
p. 68-69.
32
BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 28-
29.
290

homicídios (9,6 mortes para cada 100 mil habitantes em 1979, contra 27,3, em
2011).33
Ainda nesta esteira, estatísticas recentes revelaram que os nossos presídios
possuem 812.564 presos, segundo o Banco de Monitoramento de Prisões, do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ). Os dados mostram que, do total da população carcerária,
41,5% (337.126) são presos provisórios – pessoas ainda não condenadas. E que há em
todo o país 366,5 mil mandados de prisão pendentes de cumprimento, dos quais a grande
maioria (94%) de procurados pela Justiça34.
O sistema carcerário, infelizmente, não reeduca e não recupera o condenando,
reflete uma dura realidade, conforme observa-se nas palavras do ministro Marco Aurélio
de Mello, STF35:
Segundo relatórios do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, os presídios
não possuem instalações adequadas à existência humana. Estruturas
hidráulicas, sanitárias e elétricas precárias e celas imundas, sem
iluminação e ventilação representam perigo constante e risco à saúde,
ante a exposição a agentes causadores de infecções diversas. As áreas
de banho de sol dividem o espaço com esgotos abertos, nos quais
escorrem urina e fezes. Os presos não têm acesso a água, para banho e
hidratação, ou a alimentação de mínima qualidade, que, muitas vezes,
chega a eles azeda ou estragada. Em alguns casos, comem com as mãos
ou em sacos plásticos. Também não recebem material de higiene básica,
como papel higiênico ou escova de dentes […] Além da falta de acesso
ao trabalho, educação ou qualquer outra forma de ocupação do tempo,
os presos convivem com as barbáries promovidas entre si. São
constantes os massacres, homicídios, violências sexuais, decapitação,
estripação e esquartejamento.

Diante desta realidade perniciosa o condenado se revolta contra todo o


aparato estatal, impedindo a ressocialização e a reinserção na sociedade, o
sentimento de injustiça experimentado pelo prisioneiro é uma causa que torna seu
carater indomável, pois foi exposto ao sofrimento que a lei e a constituição não

33
GOMES, Luiz Flávio; ALMEIDA, Débora de Souza. Populismo Penal Midiático – Caso Mensalão, mídia disruptiva e direito
penal crítico. São Paulo/SP: Saraiva, 2014.p.105.
34
Barbiéri. Luiz Felipe. (17 de 07 de 2019). Fonte: G1 política: Disponível
em:https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/17/cnj-registra-pelo-menos-812-mil-presos-no-pais-415percent-nao-tem-
condenacao.ghtml. Acesso em 11 de out. 2019.
35
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental 347. Relator Ministro Marco Aurélio. Plenário. Decisão em 09 set. 2015. DJe 09 set. 2015.
Brasília, 2015. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665>. Acesso em: 27out.
2019.
291

ordenou, o sentimento de cólera contra tudo é latente, não pensa mais no delito
que cometeu e sim contra as injustiças em que foi submetido36.
Outra consequência que se pode atribuir ao discurso do populismo penal é
o aumento de policiais no legislativo brasileiro. No Congresso Nacional o número
de policiais e militares eleitos pulou de 18 para 73 na comparação dos resultados das
eleições de 2014 e 2018, segundo levantamento do G1notícias37, com base nos dados
do TSE, reforçando assim, a chamada “bancada da bala” no Congresso Nacional.
No Paraná não foi diferente do resto do país. Nove das 54 vagas do
legislativo paranaense serão preenchidas por integrantes das forças de segurança,
a chamada “bancada da bala”, o que representa 17% do legislativo estadual. O
PSL, partido do presidente eleito Jair Bolsonaro, elegeu o maior número, mas há
eleitos do PV, PR, PROS, PPL e PSD.38
No cenário nacional, destaca-se o senador Major Olímpio, representante do
Estado de São Paulo, o qual encabeça o movimento pela redução da maioridade
penal, pugna pelo fim da saída temporária de presos condenados, e por fim, pode-
se dizer que foi um dos parlamentares mais atuantes para aprovação do PL 846-
2015, o qual foi convertido na lei 13.142/15, que aumentou a pena dos crimes
homicídios contra agentes de segurança.
Outro corolário do populismo penal é o surgimento da figura do jornalista
“justiceiro”, personagem que avoca para si às funções de investigar, acusar e julgar
os fatos delituosos, funcionando com um verdadeiro “poder paralelo” ao Estado,
notadamente, quanto as funções da persecução penal. Nesta processo midiático e
populista, o jornalista não age com “um terceiro imparcial (como um juiz clássico),
mas toma parte no debate, expõe seu ponto de vista, assume sua posição”.39
Esse comportamento da mídia foi denominado de Trialby media, consistindo
em última análise como o julgamento antecipado da causa, realizado pela

36FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p. 62.


37
Lucas Gelape, A. C. (08 de 10 de 2018). G1 notícias. Disponível em Globo.com:
https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em- numeros/noticia/2018/10/08/numero-de-
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39

penal crítico. São Paulo/SP: Saraiva, 2014. p. 106


292

imprensa, em regra com veredicto condenatório, seguido da tentativa de impingir


ao judiciário40”.
Desse modo, o Poder Judiciário, muitas vezes, apenas ratifica o cerimonial
preestabelecido no julgamento midiático e pela opinião pública. Tal julgamento
midiático deve ser afastado em nome do princípio da presunção de inocência, que
funciona com verdadeiro limite democrático em face da abusiva exploração da
imagem e privacidade do acusado41.
Por derradeiro, pode citar como consequência do populismo penal o
afastamento, ou melhor, a exclusão da ciência no processo de desenvolvimento
das políticas criminais42, incluindo, a elaboração das normas penais, as quais, são
via de regra elaboradas sem a menor técnica jurídica, realizada no afogadilho como
uma resposta rápida ao anseio popular.
Em suma, Luiz Wanderley Gazoto43 aduz que “ao final, tudo o que
concretamente o populismo penal gera é um rigor irracional e desproporcional, que
acaba por recair sobre os ombros dos acusados”.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A guisa de considerações finais, tem-se que o populismo é considerado um


movimento político que atingiu o direito penal e processo penal, revelou-se uma
política irresponsável e ineficiente em face do avanço da criminalidade.
Verificou-se que nas últimas décadas houve um considerado aumento de
leis penais, essa inflação legislativa se apresentou com a solução para conter o
aumento dos delitos.
No entanto, os dados estatísticos mostraram o contrário, em que pese o
excesso de produção de leis penais, houve considerável e alarmante aumento de
crimes no país.

40Apud PALMA, Marcio Gestteira. Os tribunais da mídia. São Paulo: Boletim do IBCCRIM,
jan. 2006.

41
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo/SP. Editora Saraiva. 10ª edição, p. 230
42
GAZOTO, L. W. Justificativas do Congresso Nacional Brasileiro ao rigor penal
legislativo. 2010. Tese de Doutorado – Departamento de Sociologia/ UnB, Brasília/DF, 2010. p. 296.
43
GAZOTO, L. W. Justificativas do Congresso Nacional Brasileiro ao rigor penal
legislativo. 2010. Tese de Doutorado – Departamento de Sociologia/ UnB, Brasília/DF, 2010. p. 297.
293

Portanto, deve-se ser rechaçada essa política penal populista, que é


baseada no clamor público e na opinião pública, sem a devida reflexão e análise
que o caso requer.
É necessário que novas políticas públicas penais sejam debatidas e
implementadas com cientificidade, principalmente, no ambiente técnico jurídico, no
qual, após profundas investigações e estudos, chegue-se as políticas penais
eficientes, beneficiando toda a sociedade com a redução da criminalidade.

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297

PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA: UMA


ANÁLISE SEGUNDO A INTEGRIDADE DO DIREITO E A LEITURA MORAL DA
CONSTITUIÇÃO DE DWORKIN
Tatiane Wegrnen1

RESUMO: As decisões proferidas no âmbito do Supremo Tribunal Federal têm revelado a


complexidade que cerca a interpretação do princípio da presunção de inocência no nosso
ordenamento jurídico, sendo que em determinados períodos o tribunal se posiciona favorável à sua
mitigação, para permitir a execução provisória da pena, e, em outros entende impossível a
imputação de culpa antes do trânsito em julgado. O recente julgamento das Ações Diretas de
Constitucionalidade de números 43, 44 e 54, firmou o entendimento, em apertado quórum, de que
o artigo 283 do Código de Processo Penal, que autoriza a prisão apenas após o trânsito em julgado,
é constitucional, e, em decorrência, incompatível a execução provisória da pena. Durante o
pronunciamento do voto de desempate, o presidente do Supremo Tribunal Federal sugeriu que o
Congresso Nacional pode alterar referido dispositivo legal para estabelecer a execução provisória
como hipótese de prisão antes do trânsito em julgado. Com fundamento em tal justificativa, foram
propostas na Câmara dos Deputados diversos projetos tendentes a alterar o Código de Processo
Penal para estabelecer, em sua maioria, como marco do início de cumprimento de pena, a
confirmação de sentença penal condenatória por órgão judicial colegiado. Contudo, uma nova
redação do artigo 283 nesse sentido pode prolongar o impasse quanto à constitucionalidade da
execução provisória, haja vista os argumentos por ora lançados pelos ministros desfavoráveis a
esta tese. Assim, considerando a teoria do direito como integridade e o método da leitura moral da
Constituição de Dworkin, o presente artigo tem como objetivo propor reflexões acerca da construção
de uma decisão correta para o mencionado problema de interpretação relativo à presunção de
inocência.

Palavras-chave: Presunção de Inocência. Execução provisória da pena. Integridade do Direito.

ABSTRACT:Decisions given in the Supremo Tribunal Federal have revealed the complexity
surrounding the interpretation of the principle of presumption of innocence in our legal system, and
in certain periods the court is in favor of its mitigation, to allow the provisional execution of the
sentence, and in others it is impossible to impute guilt before res judicata. The recent judgment of
the Ações Diretas de Constitucionalidade of numbers 43, 44 and 54 has established a tight quorum
that Article 283 of the Code of Criminal Procedure, which authorizes arrest only after res judicata, is
constitutional, and Consequently, the provisional execution of the sentence is incompatible. During
the casting vote, the president of the Supremo Tribunal Federal suggested that Parliament may
amend the legal provision to provide for provisional execution in the event of arrest before the final
judgment. Based on this justification, several bills have been proposed in the Câmara dos Deputados
to amend the Code of Criminal Procedure to establish, mostly, as a framework for the
commencement of the sentence, the confirmation of a conviction by a collegiate court. However, a
new wording of Article 283 in this sense may prolong the impasse over the constitutionality of
provisional enforcement, given the arguments currently tabled by ministers unfavorable to this thesis.
Thus, considering the theory of law as integrity and the method of moral reading of Dworkin's
Constitution, this article aims to propose reflections on the construction of a correct decision for the
aforementioned problem of interpretation concerning the presumption of innocence.

Keywords: Presumption of Innocence. Provisional execution of the sentence. Integrity of law.

1 Mestranda em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário Autônomo do


Brasil – Unibrasil e Faculdades Integradas Do Vale Do Iguaçu – Uniguaçu, programa
interinstitucional de pós-graduação strictu sensu em direitos fundamentais e democracia – Minter.
Especialista em Direito Civil e Empresarial para Pontifícia Universidade Católica do Paraná em
2017. Graduada em Direito pelas Faculdades Integradas do Vale do Iguaçu - UNIGUAÇU em 2013.
Advogada e professora de Direito na UNIGUAÇU.
298

1 INTRODUÇÃO

A interpretação do princípio da inocência e a possiblidade de execução provisória da


pena, antes do trânsito em julgado, têm sido instável no cenário nacional nos últimos anos,
passando por momentos e circunstâncias em que o Supremo Tribunal Federal admite a
execução provisória, e outros que veda tal medida em virtude de sua inconstitucionalidade.
Certo que o Poder Judiciário não pode utilizar interpretação restritiva de direitos
fundamentais como estratégia de combate à imoralidade e à delinquência, nos termos do
senso comum e em prejuízo do Direito, sendo preciso estabelecer seu papel no regime
democrático com clareza, notamente num contexto de clamor por justiça.
Nesse sentido, questiona-se se é possível interpretar de forma a suprimir ou reduzir
o alcance do princípio da presunção da inocência, na esfera individual, em prol de um bem
maior coletivo vinculado à ideia de segurança e moralidade pública, e, se esse ideário
corresponde a um novo conjunto de valores também constitucional que justifique tal
mitigação do direito individual.
Em outras palavras, a interpretação de direitos fundamentais não pode se conformar
com o momento e contexto político e social, em atenção ao anseio social e clamor por
justiça, sob pena de retrocesso no campo de conquista de direitos e de colocar em risco a
própria Democracia, ou, ao contrário, o direito como integridade admite nova interpretação
com fundamento em outros valores?
Para desenolver o tema o artigo foi dividido em dois capitulos. No primeiro será
contextualiazada a declaração de constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo
Penal, bem como, algumas propostas de reforma deste dispositivo, de modo a permitir a
execução provisória de pena.
No segundo capítulo são abordadas a teoria do direito como integridade e o método
de leitura moral da constituição de Dworkin, com o objetivo de propor reflexões acerca de
uma interpretação possível para a problemática da aplicação do princípio da presunção de
inocência.
Importa salientar que o presente estudo não tem como objetivo oferecer a resposta
correta de interpretação da presunção de inocência segundo Dworkin, mas, considerando
seus postulados, estabelecer reflexões necessárias para uma solução que garanta a
integridade do direito.
299

2 A DECLARAÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 283 DO CÓDIGO


DE PROCESSO PENAL E AS PROPOSTAS DE REFORMA DA LEI PARA
PERMITIR A EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA

A presunção de inocência está consagrada no artigo 5º, inciso LVII da


Constituição Federal de 1988, o qual dispõe que “ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;” trata-se,
portanto, de direito fundamental, protegido por cláusula pétrea.
Segundo Aury Lopes Junior (2017), a qualidade do sistema processual
penal depende do nível de observância e eficácia do princípio da presunção de
inocência.
Essa afirmativa pode conduzir a conclusão de que um sistema que mitiga
a presunção de inocência não reflete a qualidade que se espera do processo penal,
devendo ser aplicado em sua concepção mais ampla. Segundo a literalidade da
Constituição, apenas o trânsito em julgado da sentença penal condenatória é capaz
de afastar a presunção de inocência. Nesse contexto, é possível a execução
provisória da pena, antes do trânsito em julgado, sem violação da presunção da
inocência?
Para o referido autor, a presunção de inocência impõe um dever de
tratamento que atua em duas dimensões, uma interna ao processo e outra externa.
(LOPES JUNIOR, 2017, p. 96):

Na dimensão interna, é um dever de tratamento imposto –


inicialmente - ao juiz, determinando que a carga da prova seja
inteiramente do acusador (pois, se o réu é inocente, não precisa provar
nada) e que a dúvida conduza inexoravelmente à absolvição (in dubio pro
reo); ainda na dimensão interna, implica severas restrições ao (ab) uso
das prisões cautelares (como prender alguém que não foi definitivamente
condenado?). Enfim, na dimensão interna, a presunção de inocência
impõe regras de tratamento e regras de julgamento para o juiz.
Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma
proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do
réu. Significa dizer que a presunção de inocência (e também as garantias
constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada
como verdadeiros limites democráticos à abusiva exploração midiática em
torno do fato criminoso e do próprio processo judicial. O bizarro
espetáculo montado pelo julgamento midiático deve ser coibido pela
eficácia da presunção da inocência.

Nesse sentido, mitigar a presunção de inocência para permitir condenações


sem suficiência de provas, para aplicar de forma displicente prisões cautelares ou
300

ainda, permitir a estigmatização pela exposição pública de acusados, expressam


graves violações a direito fundamental do indivíduo. A questão atual consiste em
definir se a execução provisória da pena também pode ser considerada como
violação, e, portanto, inconstitucional.
A presunção de inocência consta entre os direitos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, proclamada em 1948 por sua Assembleia Geral, conforme
artigo XI, item 1:

Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser


presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de
acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido
asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

A observância dos direitos declarados foram assumidos pelos Estados


através do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, incorporado no
ordenamento jurídico através do Decreto nº 592/1992, sendo que a presunção de
inocência foi disciplinada nos seguintes artigos do Pacto:

Artigo 14. 2. Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que


se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua
culpa.
[...]
Artigo 14. 5. Toda pessoa declarada culpada por um delito terá
direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância
superior, em conformidade com a lei.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é


signatário, incorporada ao direito interno através do Decreto nº 678/1992, também
reproduz tal garantia em sua artigo 8. 2: “Toda pessoa acusada de um delito tem
direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada
sua culpa.”
Retomando o texto do artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal de 1988,
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória;” a questão interpretativa que se coloca é em que momento ocorre o
trânsito em julgado, bem como, se o cumprimento provisório de pena, antes do
esgotamento de recursos, viola a presunção de inocência.
Uma interpretação possível sustenta que para que alguém seja considerado
culpado e fique autorizado o cumprimento de pena, deve ocorrer o esgotamento
das possibilidades de recurso, ou seja, apenas com o trânsito em julgado da
sentença penal condenatória. Antes disso não há que se falar em culpa, imperando
301

a presunção de inocência. Todavia, o julgamento de diversos caso no âmbito do


Supremo Tribunal Federal revelou outras interpretações, notadamente no sentido
de que o início de cumprimento de pena, antes do esgotamento das vias recursais,
não viola a presunção da inocência.
Interpretar o princípio da presunção da inocência e identificar o momento
que a Constituição autoriza o início de cumprimento de pena têm sido uma questão
divergente no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
Em fevereiro de 2016, a Suprema Corte brasileira, após período durante o
qual não admitiu o início de cumprimento de pena antes do trânsito em julgado,
revisitou o tema e voltou a adotar antigo posicionamento, ficando assentada a
constitucionalidade da execução da sentença condenatória confirmada em
segundo grau de jurisdição, mesmo que na pendência de recursos sem efeito
suspensivo. Tal posicionamento resultou da análise das medidas cautelares nas
Ações Declaratórias de Constitucionalidade de números 43 e 44.
Não obstante, em novembro de 2019, quando do julgamento destas ações
e da Ação Declaratória de Constitucionalidade de número 54, o Supremo Tribunal
Federal decidiu pela constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo
Penal, com redação dada pela Lei nº 12.403 de 2011, o qual dispõe:

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou


por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente,
em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no
curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou
prisão preventiva.

Com a declaração de constitucionalidade do artigo 283 do Código de


Processo Penal, não é possível a execução provisória da pena, após condenação
em segundo grau de jurisdição, devendo ser aguardado o trânsito em julgado, com
o esgotamento dos recursos, sob pena de restar violado o artigo 5º, inciso LVII da
Constituição Federal de 1988.
Durante a exposição dos votos, cinco ministros defenderam a
compatibilidade da execução provisória da pena com o constituição, enquanto
outros cinco ministros se posicionaram no sentido de que a presunção de inocência
garante que o cumprimento de pena apenas se torna possível com o trânsito em
julgado, que ocorre com o esgotamento dos recursos, de modo que se fez
necessário o voto do presidente, que declarou a constitucionalidade do artigo 283
302

do Código de Processo Penal, no entanto, afirmou que não via problema nenhum
em o Congresso Nacional alterar o dispositivo, de maneira que a lei processual
passe a disciplinar a execução provisória de pena.
Indubitalmente, propositadas omissões, insconstâncias, interpretações não
semânticas do texto constitucional, o fundamento na necessidade de controle
social, a invocação descontextualizada do direito comparado, a justificativa pela
eliminação da sensação de impunidade decorrente da demora do julgamento, o
atendimento aos anseios sociais, notadamente a repressão à corrupção, entre
outros argumentos sensíveis nas decisões que reescrevem os conceitos de
presunção de inocência e trânsito em julgado, geram instabilidade e insegurança
jurídica, comprometendo a integridade do direito.
O argumento utilizado pelos ministros que entendem constitucional a
execução provisória da pena, é que não ocorre a violação da presunção da
inocência com o início de cumprimento antes do trânsito em julgado, uma vez que
os recursos aos Tribunais Superiores não têm como objeto a reanálise de fatos e
provas. Defendem que a presunção de inocência pode e deve ser mitigada, no
sentido de que basta a condenação e sua confirmação pelo Tribunal, independente
do cabimento de outros recursos, para justificar o início de cumprimento de pena,
sugerindo a probabilidade de culpa após condenação em segundo grau de
jurisdição.
Contudo, certo que a matéria de direito em julgamento pelos tribunais
superiores pode conduzir à absolvição, e é impossível devolver o tempo de prisão
injusta, de modo que aguardar o trânsito em julgado é a providência que se revela
mais compatível com o princípio da presunção de inocência, que sé resta afastado
com a análise de todos os recursos, com o fim do processo. Esse é o entendimento
dos ministros que se posicionam contrários à execução provisória, destacando,
ainda, o argumento de que o constituinte fixou o trânsito em julgado como termo
final da presunção de inocência.
Dos votos proferidos durante o julgamento das Ações Direitas de
Constitucionalidade de números 43, 44 e 54, destaca-se o do presidente do
Supremo Tribunal Federal, o qual frisou que estava em análise se o texto do artigo
283 do Código de Processo Penal é compatível com a constituição, concluindo que
sim, o que determinou a procedência das ações, haja vista o desempate, no
entanto, salientou que, embora o Tribunal tenha entendido pela necessidade do
303

trânsito em julgado para a prisão, no seu entendimento, não há problema nenhum


em o Congresso Nacional alterar referido dispositivo.
Em resposta ao julgamento do caso pelo Supremo Tribunal Federal,
realizado no dia 07 de novembro de 2019, e, citando a fala do ministro presidente
como justificativa, assim como outros argumentos dos demais ministros, nos dias
que se seguiram, diversos projetos de lei foram apresentados na Câmara dos
Deputados para alteração do artigo 283 do Código de Processo Penal.
O projeto de lei nº 5932/2019 sugere a seguinte alteração:

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em:


I - flagrante delito, por ordem escrita e fundamentada da autoridade
judiciária competente;
II - em decorrência de sentença condenatória transitada em
julgado;
III - no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão
temporária ou prisão preventiva; ou
IV - para execução provisória da pena, após confirmação da
condenação do réu em julgamento por órgão judicial colegiado"(NR).

Nos termos do projeto ficaria institucionalizada a execução provisória, que


dependeria da existência de uma sentença condenatória confirmada por órgão
judicial colegiado. Contudo, a execução provisória, ou seja, a imputação de culpa
pelo início de cumprimento da pena, é compatível com o artigo 5º, inciso LVII da
Constituição Federal de 1988, o qual impõe a necessidade de trânsito em julgado?
Certamente a eventual alteração nesse sentido pode motivar ações diretas de
inconstitucionalidade.
Também o projeto de lei nº 5940/2019 propõe o seguinte:

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou


por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente,
em decorrência de sentença condenatória ou, no curso da investigação
ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.
§ 3º A prisão após confirmação da sentença condenatória pelo
órgão colegiado em segunda instância deverá ser efetuada
imediatamente” (NR)

Note-se que o novo texto do caput suprimiria a expressão “transitada em


julgado”, se referindo apenas à “sentença condenatória”, além do texto do §3º
prever expressamente a execução provisória.
O projeto de lei nº 5951 inova em prever a possibilidade de execução
provisória desde a sentença condenatória, quando se tratar de réu confesso, além
da possibilidade de prisão a contar da decisão exarada por órgão colegiado. Nesse
304

caso, note-se que não necessita que sentença condenatória seja confirmada,
bastando a condenação por órgão colegiado.

Art. 283. Ninguém poderá ser preso, salvo:


I - em flagrante delito;
II - em decorrência de prisão cautelar, preventiva ou temporária
proferida por escrito e de forma fundamentada por autoridade judiciária
competente;
III - em virtude de condenação criminal exarada por órgão colegiado
para execução provisória da pena;
IV - em virtude de condenação criminal transitada em julgado.
Parágrafo único. Em se tratando de réu confesso, admite-se a
hipótese de prisão para fins de execução provisória da pena após a
decisão criminal condenatória proferida por órgão de primeiro grau de
jurisdição.

O projeto de lei 5965/2019 sugere alteração do artigo 283 do Código de


Processo Penal, de modo que o início de cumprimento da pena ocorra após
condenação em julgamento colegiado nos Tribunais, seja em sede de apelação,
ou de processo originário, e ainda, acrescenta dois artigos ao Código:

Art. 580-A. É vedado o reexame probatório em sede de recurso


extraordinário ou especial.
Art. 669-A. A condenação criminal considera-se transitada em
julgado quanto não for mais suscetível de recurso ordinário.

Da análise da redação do proposto artigo 669-A, possível que o parlamentar


esteja se referindo a qualquer outro recuso, exceto recurso extraordinário e
especial. Sugere, pois, que a lei processual determine o momento que se opera o
trânsito em julgado, contudo, importa salientar que o texto constitucional garante o
acesso, pela via recursal, aos tribunais superiores, em virtude do que referida
alteração também poderia ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade.
Do projeto de lei nº 5973/2019, com proposta similar aos demais, importa
colacionar os seguintes trechos da justificativa da propositura:

A população brasileira clama por mudanças. O atual cenário


brasileiro, que envolve a corrupção e a impunidade, é crítico. Por isso,
como representantes do povo, não podemos conceber que sejam
ignoradas - mesmo diante de todo o clamor popular e do sentimento
intrínseco de impunidade e injustiça que tomou conta de todo o País -
situações como a ocorrida no Supremo Tribunal Federal (STF), na última
quinta-feira (7/11), no julgamento das Ações Declaratórias de
Constitucionalidade (ADC) 43,44 e 54, que pôs fim à prisão após
condenação em segunda instância.
[...]
Não obstante, o STF, durante esse recente julgamento das ADC
43, 44 e 54, deixou claro que a questão da possibilidade de prisão antes
do trânsito em julgado é matéria passível de regulamentação por lei
ordinária, tal como ocorre nos casos de prisão preventiva e de prisão
305

temporária. Outrossim, ao final de tal sessão, o ministro Dias Toffoli -


conforme destacado pelo site da Folha de São Paulo – “afirmou a
jornalistas que o Congresso pode alterar o dispositivo do Código de
Processo Penal (art. 283) que acabara de ser declarado constitucional.
‘Essa é a posição, então: o Parlamento tem autonomia para dizer esse
momento de eventual prisão em razão de condenação’ ".

Os demais projetos referidos também utilizam o argumento de que o


Supremo Tribunal Federal entende que o Congresso Nacional pode conceber a
execução provisória da pena pela modificação da lei, notadamente do artigo 283
do Código de Processo Penal. Importa salientar que em busca no site da Câmara
de Deputados foram encontrados vários outros projetos com o mesmo objetivo.
Nesse sentido, considerando que alterações como as comentadas, de fato
sejam implementadas, seria a execução provisória da pena constitucional? Tendo
em vista a divergência entre os ministros do Supremo Tribunal Federal, e, ajuizada
ação direta de inconstitucionalidade, qual seria o julgamento? E, como situar para
esta questão interpretativa a teoria da integridade do direito e da interpretação pelo
leitura moral da Constituição na concepção de Dworkin?

3 PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E TRÂNSITO EM JULGADO: INTEGRIDADE


DO DIREITO E LEITURA MORAL DA CONSTITUIÇÃO

A teoria de direito de Dworkin tem nos princípios seu pressuposto para uma
decisão coerente, revelando-se de suma importância no contexto do
constitucionalismo contemporâneo, pois, ao enfrentar a aproximação entre o direito
e a moral, pode apresentar respostas a questões interpretativas como a que
enfrentamos em relação ao princípio da presunção de inocência. Importa salientar
que o objetivo do presente artigo não é identificar a decisão correta segundo a
teoria de Dworkin, mas quais elementos da sua teoria podem ser observados no
julgamento das ações diretas de constitucionalidade em análise.
Primeiramente, importa salientar a diferença entre regra e princípio na
concepção de Dworkin. As regras funcionam, no raciocínio daqueles que as
aplicam, de uma “maneira de tudo-ou-nada”, no sentido de que se uma regra for
válida e absolutamente aplicável a um caso dado, então ela “obriga”, isto é,
determina de forma conclusiva o resultado jurídico ou consequência. Os princípios
jurídicos diferem de tais regras de “tudo-ou-nada” porque, quando são aplicáveis,
não “obrigam” a uma decisão, mas apontam para, ou contam a favor de urna
306

decisão, ou afirmam uma razão que pode ser afastada, mas que os tribunais levam
em conta, enquanto fator de inclinação num ou outro sentido. (HART, 2007)
No tocante ao direito e à moral, Dworkin se opõe à ideia de que o direito e
as decisões jurídicas devem ser separados das decisões morais e políticas,
reconhecendo que os sistemas jurídicos são compostos de regras e princípios, e
estes possuem valor moral, de modo que o direito não pode ser separado da
política e da moral. Assim, seu conceito de direito abrange regras e princípios,
organizados em um sistema de obrigações e direitos que regulam a atuação do
Estado. (FREITAS; COLOMBO, 2017).
As decisões precisam ser motivadas e justificadas num exercício
interpretativo que demonstre e proteja seu valor, ou seja, a teoria de Dworkin está
fundamentada em julgamentos morais éticos. O autor faz a análise do direito do
ponto de vista do juiz. Sobre essa opção de Dworkin, Macedo Junior (2013 apud
Freitas; Colombo, 2017), destaca dois motivos, o argumento jurídico dos processos
judiciais é o ponto de partida para analisar a prática jurídica, e os argumentos
jurídicos dos juízes influenciam outras formas de discurso legal que não é
totalmente recíproca.
Sobre essa afirmativa, note-se que o argumento utilizado no voto do
presidente do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o Parlamento pode
definir o momento de início de cumprimento de pena, transmite a mensagem ao
Congresso de que a execução provisória é compatível com o texto constitucional,
fato que motivou diversos parlamentares a apresentarem projetos tendentes a
mitigar o princípio da presunção da inocência e permitir a prisão antes do trânsito
em julgado.
Da análise das justificativas apresentadas aos projetos de lei, o combate à
corrupção e o fim da impunidade são constantes, além dos argumentos do
julgamento no sentido de que recursos são protelatórios, bem como que tribunais
superiores não analisam questões de mérito, relativas à fatos e provas. O
argumento de política constante nos projetos de lei, portanto, está voltado muito
mais ao objetivo de fazer justiça do que proteger direitos fundamentais.
Dworkin (1977 apud Freitas; Colombo, 2017) distingue argumentos de
princípios e de política:

Argumentos de política justificam uma decisão política


demonstrando que esta decisão promove ou protege algum objetivo da
comunidade como um todo. O argumento em favor do subsídio para
307

produtores de aviões, com o argumento de que o subsídio servirá para a


segurança nacional, é um argumento de política. Argumentos de
princípios justificam uma decisão política demonstrando que esta decisão
respeita ou assegura algum direito individual ou de grupo. O argumento
em favor de estatutos antidiscriminatórios, de que uma minoria tem o
direito a igual respeito e tratamento, é um argumento de princípio.

Segundo Dworkin, a integridade do direito corresponde a uma coerente


visão de justiça, equidade e devido processo legal, o que conduz o juiz à uma
decisão correta em relação ao ordenamento jurídico todo considerado, não
necessariamente a única decisão correta.
Nesse sentido,

O princípio judiciário de integridade é instituidor de um caminho que


instrui os juízes para a identificação dos direito e deveres legais até o
ponto possível de busca, guiado pelos pressupostos que foram criados
por um único autor, a sociedade, como fundamentos do direito, a fim de
construir a resposta correta em coerência de justiça e equidade.
(DWORKIN, 2007, p. 272 apud SALVATTI, 2019, no prelo).

Assim, “o direito como integridade pede-lhes [aos juízes]2 que continuem


interpretando o mesmo material que ele próprio afirma ter interpretado com
sucesso. Oferece-se como a continuidade – e como origem – das interpretações
mais detalhadas que recomenda.” (DWORKIN, 2007, p. 273 apud SALVATTI,
2019, no prelo)
Explicando a concepção de Dworkin sobre integridade, Freitas e Colombo
(2017) asseveram que,

O direito como integridade apresenta um pressuposto formal, a


ideia de adequação, e um pressuposto substancial, a ideia de justificação.
A primeira refere-se como a interpretação produzida pelo juiz se adequa
à história institucional da prática jurídica, enquanto a segunda requer que
o juiz escolha a interpretação que melhor reflita a intenção do texto ou
aquela que pode fazer da prática a melhor possível.

A integridade se contrapõe a discricionariedade, exigindo do julgador em


sua argumentação uma resposta conectada a todo o conjunto do direito e à
comunidade de princípios, aparece, pois, como um ideal político complementar à
justiça e à equidade e também à concepção de igualdade e liberdade de uma
determinada comunidade. Conforme Freitas e Colombo, 2017:

A integridade é um ideal político, porque a comunidade política é


vista como uma comunidade de princípios, além disso, os cidadãos desta

2
A explicação entre colchetes foi incluída pela autora em referência.
308

comunidade têm por objetivo não apenas princípios comuns, mas sim os
melhores princípios comuns que possam ser extraídos da política.
[...]
O Estado que aceita a integridade deve ter uma única voz ao se
manifestar acerca da natureza dos direitos fundamentais.
[...]
Para o autor, o processo de interpretação seria como um romance,
escrito por vários autores, onde cada um é responsável pela redação do
capítulo separado, devendo continuar a elaboração do romance a partir
de onde seu antecessor parou, com a finalidade de criar da melhor forma
possível o romance em elaboração, como se fosse a obra de um único
autor.

Assim, a interpretação jurídica se apresenta como a extensão da história


institucional do direito. Ao decidir um novo caso, cada juiz deve considerar-se como
“parceiro de um complexo empreendimento em cadeia do qual as decisões,
estruturas, convenções e práticas do passado são a história da comunidade”. Em
suma, “o juiz deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a
responsabilidade de continuar esta história com coerência, e não simplesmente
partir em alguma nova direção.” (DWORKIN, 2005, apud FREITAS; COLOMBO,
2017).
Os juízes devem tomar suas decisões com base em princípios, e,
argumentar principiologicamente significa escolher a melhor decisão para o caso
concreto. Importa salientar que o direito como integridade não se confunde com o
convencionalismo (visão voltada para o passado), nem como o pragmatismo (visão
voltada para o futuro), mas pretende a construção da decisão correta com base na
unidade do sistema jurídico, de modo a refletir os princípios e os valores em vigor
na comunidade.
Deste modo,

o direito deve ser compreendido enquanto um conceito


interpretativo, uma vez que não existem interpretações definitivas, razão
pela qual as construções dos relatos estão voltadas tanto para o passado,
quanto para o presente, posto que interpretar é interpretar “a prática
jurídica contemporânea como uma política em processo de
desenvolvimento” (DWORKIN, 2007, p. 271, apud SALVATTI, 2019, no
prelo).

Analisando como o Supremo Tribunal Federal tratou a questão relativa a


execução provisória da pena e a presunção de inocência, resta claro que não há
estabilidade e consenso na interpretação. A corte se mostra absolutamente dividida
em relação a decisão correta. Fazendo uma leitura do contexto, a partir da teoria
do direito de Dworkin enquanto integridade, é difícil sustentar que ambos os
309

posicionamentos estariam corretos conforme a constituição e o ordenamento


jurídico, pois extremamente divergentes. Se um dos posicionamentos se revela a
melhor decisão para o caso concreto, qual seria com base na unidade do nosso
sistema jurídico? Qual reflete nossa comunidade de princípios? Qual entendimento
se ajusta à história institucional do direito?
O maior alcance do princípio da presunção de inocência já atingido, ou seja,
de que se deve aguardar o trânsito em julgado com o esgotamento dos recursos
para iniciar o cumprimento da pena, deve ser preservado em atenção à
integridade? A integridade do direito veda o retrocesso em termos de direitos e
garantias conquistados? Ou, possível, também com fundamento na teoria do direito
como integridade, admitir que a comunidade de princípios converge para uma
mitigação da presunção de inocência em atenção à realidade processual brasileira,
em que a admissão de recursos aos tribunais superiores, retardando o início da
execução, estabelece sensação de impunidade que desestabiliza a sociedade?
Note-se que o argumento de que os tribunais superiores analisam apenas
questões de direito não se revela suficiente para autorizar a mitigação do princípio
da presunção de inocência, uma vez que a decisão nesse sentido também pode
conduzir à absolvição, sendo impossível a devolução do tempo de prisão injusta.
Também não é suficiente o argumento de que recursos são protelatórios e
manejados no intuito de atingir a prescrição. Além de genérico, o argumento
certamente não é de princípio.
Nesse sentido, certo que a defesa da constitucionalidade da execução
provisória dependente de uma nova argumentação.
Quanto as alterações que estão sendo propostas, no sentido de que lei
ordinária crie hipótese de execução provisória da pena, antes do trânsito em
julgado, continuam a violar a literalidade do artigo 5º da Constituição Federal de
1988, e, portanto, não resolvem o problema da interpretação do princípio da
presunção de inocência. A lei que viola um princípio, um direito fundamental, não
compõe o ordenamento jurídico.
Qual argumento, qual interpretação seria capaz de reconhecer integrado ao
direito norma que estabeleça a execução provisória da pena? Este estudo não
pretende desenvolver a resposta segundo a teoria do direito de Dworkin, mas
propor reflexões nesse sentido.
310

Dworkin estabeleceu um método próprio para interpretar a Constituição, a


leitura moral da Constituição, em que tenta demonstrar que não há um
procedimento técnico de interpretação da Constituição, e que, muitas vezes, a
decisão corresponderá a um juízo moral puro, que não deve ser disfarçado. Os
direitos fundamentais nela estabelecidos devem ser interpretados como princípios
morais que decorrem da justiça e da equidade e que levam à fixação de limites ao
poder governante. (MENDES, 2008 apud FREITAS; COLOMBO, 2017)
Analisando o método da leitura moral da Constituição de Dworkin, Freitas e
Colombo (2017) esclarecem que a leitura moral da Constituição não concede poder
demasiado ao Poder Judiciário, porque há restrições que limitam a liberdade de
agir a saber, a restrição da história e o direito como integridade.

A primeira delas é a restrição da história traduzida na ideia de que


a leitura moral Constituição deve “tomar como ponto de partida os
conceitos que seus autores expressaram” (DWORKIN, 2005b, p. 15). A
história deve ser consultada para saber o que os legisladores disseram
por meio dos princípios que declararam e não quais as intenções que os
constituintes tinham.
A declaração de direitos por meio de conceito vagos foi uma opção
deliberada dos constituintes, que obrigaria cada geração, a partir dos
mesmos conceitos, atualizar suas próprias convicções. Isto pode ser
demonstrado pelo fato de que os autores optaram por usar uma
linguagem abstrata, além disso, “aqueles que viessem interpretar o texto
constitucional deveriam desconsiderar suas próprias opiniões sobre os
efeitos que ela teria em casos específicos” (DWORKIN, 2005b, p. 15).
[...]
Neste contexto, aparece a segunda restrição ao Poder Judiciário
indicada por Dworkin, o direito como integridade. A possibilidade de o juiz
julgar de acordo com suas convicções pessoais, moral subjetiva, é
afastada pelo respeito “ao desenho estrutural da Constituição como um
todo e também com a linha de interpretação constitucional
predominantemente seguida por outros juízes no passado” (MENDES,
2008, p. 85).
Dito de outra forma, a decisão judicial passaria no teste de
adequação se estivesse compatibilizada com a história, com a
Constituição e a prática constitucional de uma determinada comunidade.
Neste ponto, o autor faz uma ressalva de que nem mesmo a atenção
cuidadosa à integridade, por parte de todos os juízes, irá produzir
sentenças judicias uniformes (DWORKIN, 1997).

Do ponto de vista destas limitações, eventual argumento no sentido de que


a concepção de presunção de inocência ganha novos contornos e que a execução
provisória se ajusta à atual comunidade de princípios, poderia produzir uma
decisão correta?
É defensável que eventual decisão que considere constitucional a execução
provisória da pena é íntegra e coerente com o ordenamento jurídico porque no
311

nosso sistema os valores morais da sociedade foram levados a categoria de


preceitos constitucionais?
Importa destacar que para Dworkin os princípios teriam como função servir
de substrato para encontrar a resposta correta e de ferramenta contra a
discricionariedade. Para o autor, os argumentos de política justificariam uma
decisão política pelo fato de estabelecerem um objetivo coletivo de uma determina
comunidade. Os argumentos de princípios, por sua vez, justificam uma decisão
política quando demonstram que respeitam direito individual ou coletivo da
comunidade.
Portanto, a atuação do Judiciário legítima se dá com base em argumentos
de princípios, estando legitimado a preencher hiatos regulatórios nos casos difíceis,
porém sem recorrer à discricionariedade, ou seja, o juiz não pode criar direito novo,
uma vez que sempre haveria regras morais e princípios que poderiam servir de
parâmetro para a resolução do conflito. (FREITAS; COLOMBO, 2017).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme exposto, o objetivo do estudo não era definir a resposta correta


ao problema da interpretação do princípio da presunção de inocência, mas sugerir
reflexões, com fundamento na teoria do direito como integridade, e, a partir da
leitura moral da constituição de Dworkin, que relacionem os argumentos da decisão
às premissas teóricas da doutrina.
A interpretação do princípio da presunção da inocência se assenta em dois
argumentos. O primeiro no sentido de que não há possibilidade de mitigação, e,
portanto, apenas o trânsito em julgado tem o condão de afastar a absoluta
presunção. Nesse cenário, inconstitucional a execução provisória da pena, pois a
mitigação importaria em retrocesso. E o segundo argumento no sentido de que a
comunidade de princípios, na sociedade atual, converge para uma mitigação da
presunção de inocência em atenção à realidade processual brasileira, em que a
admissão de recursos aos tribunais superiores, retardando o início da execução,
gera sensação de impunidade que desestabiliza a sociedade, no sentido contrário
de seus valores.
A possibilidade de instituição da execução provisória da pena, antes do
trânsito em julgado, por lei, ainda que a constituição em sua literalidade
312

pressuponha trânsito em julgado para a imputação de culpa, exige do interprete


um esforço argumentativo que vai muito além da natureza dos recursos manejados
nos tribunais superiores. Depende do reconhecimento expresso de que os valores
da sociedade mudaram para abarcar outros diversos, ou seja, que a estrutura do
Poder Judiciário atual não comporta que a presunção de inocência seja estendida
até o julgamento de todos os recursos em tribunais superiores, seja pela demora
na tramitação dos processos, ou ainda na falta de recursos para as demandas.
Qualquer outro argumento, que não admita referido argumento político,
pode ser meramente retórico.
Talvez a alteração legislativa que representa maior integridade do direito não
seja a simples instituição da execução provisória da pena, mas toda uma
reestruturação do Poder Judiciário, e, principalmente da competência dos tribunais
superiores, com a criação de mecanismos que, embora não impeçam o
jurisdicionado de buscar solução nos tribunais superiores, deixem de tratá-los
como ordinárias esferas recursais, de modo que o trânsito em julgado não dependa
de pronunciamento das cortes superiores em cada caso concreto.
Assim, certo é que a solução como se propõe nos projetos de lei em análise,
perpetua o empasse quanto a constitucionalidade da execução provisória, se
revelando necessário um estudo muito mais aprofundado para a solução do
problema, o qual, conforme salientaram vários ministros é de alta complexidade,
tanto que, apesar dos diversos debates e julgamento, ao longo dos últimos anos,
ainda não se estabeleceu um consenso sobre a matéria.

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inocência: do conceito de trânsito em julgado da sentença penal condenatória
(parecer). Consulente: Maria Cláudia de Seixas. 2016.

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de novembro de 2019.
313

________. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de


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FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 6. ed. Trad: Ana
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G1 POLÍTICA. Por 6 votos a 5, STF muda de posição e decide contra


prisão após condenação em 2ª instância. 07/11/2019. Disponível em:
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HART, H. L. A. O conceito de Direito. Fundação Calouste Gulbenkian:


Lisboa, 2007.

LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9.


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MORAES, Maurício Zanóide de. Presunção de inocência no processo penal


brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a
decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

SALVATTI, Camila. Resenha do capítulo VII – Integridade no Direito, da obra


“O Império do Direito” de Ronald Dworkin. Disciplina de Teorias do Direito e da
Argumentação - Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais
e Democracia do Centro Universitário Autônomo do Brasil – UNIBRASIL
(MINTER): União da Vitória, 2019, no prelo. (DWORKIN, Ronald. O Império do
Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007).

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e


teorias discursivas da possibilidade à necessidade de respostas corretas em
direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2009.
314

PROSTITUIÇÃO: ESTAMOS A FALAR EM DIREITO À LIBERDADE?

Juliana Bianchini1

RESUMO: O presente artigo aborda diferentes vertentes da teoria feminista sobre a escolha das
mulheres ao se prostituírem. Partindo do prisma da análise do direito à liberdade de escolha e da
autonomia da vontade a partir da teoria liberal, busca-se discutir se a comercialização de corpos
femininos é liberdade e emancipação da mulher do sistema patriarcal, bandeira levantada por
movimentos feministas liberais, como o radicalismo sexual, ou apenas chancela a objetificação da
mulher ao sistema de limitação do feminino à sexualidade que satisfaz desejos masculinos. A partir
de estudos sobre a prostituição no Brasil, e de elementos de teorias da Justiça, navegar-se-á pela
compreensão se há escolha, fundamentalmente livre da mulher brasileira por se prostituir,
considerando a análise no país no século XXI.

Palavras-chave: Prostituição. Liberalismo. Feminismo. Autonomia da vontade. Patriarcado.

RESUMEN: El presente artículo aborda la discusión que permea diferentes vertientes de la teoría
feminista sobre la elección de las mujeres por prostituirse. A partir del prisma del análisis del derecho
a la libertad de elección y de la autonomía de la voluntad a partir de las teorías liberales, se busca
discutir si la comercialización de cuerpos femeninos es libertad y emancipación de la mujer del
sistema patriarcal, bandera levantada por movimientos feministas liberales, como el radicalismo
sexual, o apenas coloca la mujer a sumisión a lo sistema de limitación del femenino a la sexualidad
que satisface apenas deseos masculinos. A partir de lecturas de grandes nombres en el estudio de
la prostitución en Brasil, así como de elementos de teorías de la Justicia, se caminará por la
comprensión si hay elección, fundamentalmente libre de la mujer brasileña por la prostitución,
considerando el análisis en el país en el siglo XXI.

Palavras clave: Prostitucíon. Liberalismo. Feminismo. Autonomía de la voluntad. Patriarcado.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As discussões sobre a prostituição se dão em palcos distintos de


argumentações. Dentre as diversas óticas da teoria feminista, sobressaem os
debates travados quanto a se tratar de uma escolha livre da mulher, razão pela
qual deve haver regulamentação como profissão, inclusive com normatizações
específicas como em qualquer outro setor do mercado. De outro lado, encontram-
se movimentos e teorias que consideram o peso do sistema patriarcal sobre o
corpo feminino como fator determinante para se afirmar que não se trata de uma
escolha livre, mas de um caminho imposto às mulheres terrivelmente
marginalizadas na estratificação social.
Assim, na primeira parte deste estudo, abordar-se-á a concepção do direito
fundamental à liberdade, especificamente sob o prisma da teoria de John Rawls,
por que não podemos falar em livre escolha da mulher por se prostituir no Brasil do

1
Mestranda em Direito Constitucional, na área de Direitos Fundamentais e Democracia, junto à UNIBRASIL (Minter –
UNIGUAÇU). Professora do Centro Universitário Vale do Iguaçu – UNIGUAÇU.
315

século XXI, eis que, na maioria gritante dos casos, não está presente fator
determinante nesta equação: a possibilidade de escolha.
Prosseguindo, serão abordados estudos feministas acerca da concepção da
prostituição na sociedade, bem como a compreensão da emancipação do corpo
feminino, considerando diferentes espectros no debate.
Inserir-se-ão levantamento de dados da prostituição no palco brasileiro, a
fim de subsidiar as argumentações que procurarão ser defendidas no final do
estudo.
Objetiva-se associar a compreensão da citada teoria da Justiça – o
liberalismo rawlsiano – no debate sobre algo sensível quando se fala de
prostituição. Quando se coloca em tela discussões sobre a liberdade da mulher, é
necessário realizar uma abordagem histórica, sistêmica, lógica, que compreenda
todas as imposições colocadas sobre o feminino durante anos.
Portanto, o artigo busca indagar: é possível falar em liberdade de escolha
da mulher que se prostitui no Brasil, no século XXI? Tal debate se mostra
pertinente, considerando as temáticas atuais quanto à regularização da prostituição
como profissão no país, ou na criminalização dos “consumidores”.
Para tanto, o estudo abordará apontamentos da teoria liberal, das teorias
feministas do radicalismo sexual e feministas abolicionistas, bem como análises
acerca de levantamento de dados, além de reportagens sobre o tema.

2 DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE: FAZER O QUE QUISER COM


AQUILO QUE NOS PERTENCE

De acordo com Sandel2, ao adentrarmos o debate sobre as teorias liberais


deve-se considerar as concepções que embasam o Estado Mínimo, quais sejam,
ausência de paternalismo, ausência de legislação sobre a moral e nenhuma
redistribuição de renda ou riqueza.
No entanto, dentro da própria teoria libertária, existem conservadores
favoráveis à política econômica do livre mercado que não concordam com ideias
libertárias no campo cultural, como pornografia e prostituição.

2
SANDEL, Michael J. Justiça. O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máxim. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 2015, p. 149-175.
316

Sandel pontua que na obra Capitalism and Freedom (1962), o economista


americano Milton Friedman argumenta que muitas atividades estatais amplamente
aceitas são infrações ilegítimas da liberdade individual, citando como exemplo o
fato de o governo violar a liberdade individual quando cria leis contra a
discriminação no mercado de trabalho. No mesmo sentido, pode-se considerar que
ao não haver regulamentação no tocante à prostituição, ou em havendo uma
intervenção protecionista, viola-se o direito à liberdade, eis que o Estado não pode
impedir que se ganhe dinheiro, por exemplo, com a cobrança de atos sexuais.
Sandel também pondera que na obra Anarchy, State, and Utopia (1974),
Robert Nozick defende filosoficamente os princípios libertários e um desafio ao
conceito do que seja justiça distributiva. Para o autor, somente um Estado Mínimo
é justificável, porque caso possua poderes mais abrangentes, certamente violaria
direitos individuais, obrigando, por exemplo, que as pessoas ajudem ao próximo, o
que destaca ser uma das coisas que ninguém deve ser forçado a fazer.
O autor leciona que se deve ater à origem lítica da riqueza e se as
negociações foram feitas através do livre mercado ou por doações, para então se
determinar se a riqueza pertence à pessoa. Sob este vértice, não há que travar
discussões quanto à moral na venda do corpo ou do ato sexual, somente se o ato
foi consentido e feito em entre pessoas plenamente capazes.
A noção de pertencer a si mesmo, e não ao Estado ou à comunidade política,
é uma forma de abordar porque não é correto que direitos sejam deixados de lado
em prol do bem-estar alheio. O fato de a mulher ser “dona de seu corpo”, sustenta,
portanto, a possibilidade de fazer o que compreende como melhor para si,
atingindo assim a moral sexual e a possibilidade de vender seu corpo pelo valor
que considerar justo.
Para os ideais libertários, o que importa não é o fim, e sim o direito de dispor
do que pertence a cada um. Ao se condenar que a mulher não possa se prostituir,
ou que tal ação não é moralmente aceitável, admitir-se-ia que possuem direito
limitado sobre seus corpos, pois, se realmente são completamente livres, devem
ter o poder de decidir se o venderão, independente de propósitos e quaisquer riscos
advindos de sua escolha. Assim, o Estado mínimo deveria somente possibilitar à
mulher que faça o que deseja com seu corpo, regulamentando a profissão como
meras trocas mercantis.
317

John Rawls em A Theory of Justice (1975), explica os princípios da justiça,


afirmando que, a um, cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente
sistema de liberdades básicas que seja compatível com um sistema de liberdade
para as outras, e a dois, que as desigualdades sociais e econômicas devem ser
ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo consideradas como vantajosas
para todos dentro dos limites razoáveis, e vinculadas às posições e cargos
acessíveis para todos3.
Ao explicar os dois princípios basilares, assevera que eles aplicam, num
primeiro momento, à estrutura básica da sociedade, governam a atribuição de
direitos e deveres e regulam as vantagens econômicas e sociais.
Para o autor, é possível identificar diversas liberdades a serem
consideradas, mas lista como primordiais as liberdades política, de expressão e
reunião, de pensamento, e da pessoa, a qual inclui proteção contra a opressão
psicológica e a violência física.
Em relação ao segundo princípio, afeto às desigualdades sociais e
econômicas, assevera Rawls que embora a distribuição de renda e de riqueza não
necessite ser necessariamente igual, deve ser vantajosa para todos, assim como
as posições de autoridade devem ser acessíveis a todos. Assim, aplica-se o
segundo princípio (desigualdades sociais) de forma aberta, e depois, estabelecidos
os limites de vantagem para todos, organizam-se as desigualdades econômicas e
sociais para que todos se beneficiem.4
Aliando os conceitos, Rawls pontua que todos os valores sociais, como
liberdade, oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais de autoestima devem
ser distribuídos igualitariamente. O contrário só pode ser permitido, segundo o
autor, caso distribuições desiguais tragam vantagens para todos.5
Rawls leciona, quanto a aplicação do segundo princípio, que devemos
compreendê-lo como liberdade liberal da igualdade equitativa de oportunidades 6.
Neste sentido, explica que o papel do referido princípio é assegurar que o sistema
de cooperação social seja um sistema de justiça procedimentalmente pura, pela
qual a correção da distribuição é fundada na justiça do esquema de cooperação da
qual ela surge, ou seja, uma distribuição não pode ser julgada separadamente do

3
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M R. Esteves. Editora Martins Fontes. São
Paulo: 2000, p. 64.
4
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M R. Esteves. Editora Martins Fontes. São
Paulo: 2000, p. 65.
5
Idem, p. 66.
6
Idem, p. 89.
318

sistema do qual ela é o resultado. Mais que isso, o autor explica que por essa
concepção, a justiça como equidade não investiga o uso que as pessoas dão aos
seus direitos e oportunidades para medir a satisfação que atingem, muito menos a
sua maximização, apenas busca assegurar a todos liberdade para que persigam
qualquer plano de vida que lhes agrade, contanto que isso não viole as exigências
da justiça.7
A teoria esboçada por John Rawls compreende a necessidade de que a
todos sejam asseguradas condições mínimas de existência para que possam ter a
possibilidade de escolhas. É dizer: para se formular uma concepção completa do
justo, a todos deve ser assegurado, efetivamente, liberdades básicas e igualdades
econômicas e sociais. Somente partindo dessa posição de igualdade é possível
aos sujeitos fazerem o que desejam para se realizarem.
Diante da teoria rawlsiana, indaga-se: é possível que a mulher brasileira que
opta pela prostituição, no início do século XXI, realiza uma escolha livre?

3 A COMPREENSÃO DA PROSTITUIÇÃO SOB OS REFLEXOS DO


PATRIARCADO

Para situar as balizas das discussões acerca da sexualidade e da


prostituição, é necessário entender criticamente a realidade. Compreender o
sistema como uma rede de poderes, do qual se destacam predadores sociais, é
alcançar maturidade acerca das relações sociais de dominação que supera a
ingenuidade, inexperiência e imprudência.
Como leciona Joaquín Herrera Flores8, os predadores sociais implantam um
sistema de valores que ditam a forma como a sociedade vive e compreende suas
relações. Para superar o poder que o predador possui, é necessário desvendar e
desestruturar a base material da influência no grupo social.
Os diversos grupos sociais ao formarem seus pactos de valores, constroem,
e consequentemente se beneficiam, de valores que instituem como sendo
universais, os quais não refletem a dignidade humana, e na realidade outorgam
legitimidade de ser a uma tradição construída.

7
Idem, p. 100.
8
HERRERA, Joaquín Herrera. De habitaciones propias y otros espacios negados (una teoría crítica de las opresiones
patriarcales). Bilbao: Universidade de Deusto, 2005, p. 17.
319

É inarredável no estudo sobre a prostituição feminina compreender o corpo


feminino nas sociedades patriarcas, as quais rompem com a concepção do corpo
da mulher enquanto respeitável, gerador de vida e transcendental, para
compreensão da mulher como objeto manipulável pelo homem tanto para a
reprodução, quanto para o prazer, sendo posteriormente colocado como maculado
e culpado pelos algozes da humanidade.
No início da sociabilidade, as comunidades eram organizadas de forma
matrilinear. A mulher, por ser a geradora da vida humana, era considerada figura
central, sobretudo em razão do desconhecimento da função do homem na
reprodução. Tais sociedades possuíam compreensão de coletividade aguçada,
exercendo a mulher posição central no seio comunitário.9
Neste contexto, a prostituição já era vista de forma negativa em razão da
concepção transcendental das relações sexuais. Perdura tal compreensão, mas de
forma diferenciada, nas civilizações Egípcia e Mesopotâmica, nas quais há a
compreensão da prostituição como exercício sagrado, ganhando destaque com as
sacerdotisas, tidas como instrumentos para se alcançar o inalcançável – as
relações entre vida e morte, compreensão e desconhecido.10
Ou seja, nos primórdios da organização social, antes mesmo do
enraizamento de valores patriarcais, há uma consideração positiva em relação à
mulher, seu corpo e sua sexualidade, associando-o intimamente ao divino, ao
transcendental.
Para Sousa11, da análise de textos datados por volta de 1.200 a. C.,
verificam-se registros das primeiras normatizações de segregação de mulheres
esposas e prostitutas, separando-as e categorizando-as, sendo as primeiras boas,
obedientes e reclusas ao lar, e as segundas más e pervertidas, em razão de serem
sexualmente autônomas.
Com o avançar da percepção do papel do homem para a perpetuação da
espécie, ocorre uma ruptura com o sistema matrilinear e assunção do patriarcado.
A ira masculina sobre a mulher eclode fortemente, efervescendo uma postura
autoritária e de dominação do masculino sobre o feminino, objetificando e
mercantilizando a mulher12. A partir de então, a prostituição é renegada e colocada

9
SOUSA, Pedro César J. S. Prostituição: possibilidade de reconhecimento de direitos das (os) profissionais do sexo
no Brasil. Recife, 2016, 200 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Católica de Pernambuco.
10
SOUSA, Pedro César J. S. Prostituição: possibilidade de reconhecimento de direitos das (os) profissionais do sexo
no Brasil. Recife, 2016, 200 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Católica de Pernambuco.
11
Idem.
12
Idem.
320

à margem dos valores sociais dominantes. Mais tarde, agregando-se valores do


cristianismo, coloca-se a prostituta como pecadora, sobretudo porque a luxúria,
associada intimamente à mulher, é considerada um atentado contra o divino.
A colocação da prostituta na escuridão social, cabendo a ela apenas servir
aos desejos do homem, desencadeia diferenças sociais que são projetadas nestas
mulheres, gerando exclusão social, desigualdades de gênero em âmbito público,
científico, do trabalho, e, não menos importante, no âmbito privado de relações
interpessoais13. Todo o espectro do conceito de desigualdade de gênero é
aprofundado à medida que se atravessa a diversidade social que engloba a
prostituição.14
Ao se voltar para a história, vê-se que o corpo feminino é dominado por
valores patriarcais enraizados tão severamente na cultura ocidental que são
considerados como naturais e originais, associando à sexualidade feminina
aspectos repugnantes quando eivados de prazer, mesmo que direcionado ao
homem. É dizer: o corpo feminino serve ao homem na medida de seus prazeres,
mas no confinamento das margens sociais.
Neste sentido, são elementares as lições de Piscitelli15 acerca dos aspectos
históricos da prostituição, bem como acerca do cenário atual, pontuando que
compreender a prostituição

[...] requer estar atento aos vários discursos que permeiam esta
atividade. Sendo uma prática profissional recente no contexto ocidental,
a partir da segunda metade do século XIX, surge uma divisão social
formada por uma nova classe de mulheres públicas, categorizadas como
prostitutas e segregadas em espaços sociais, delimitando as práticas do
sexo comercial de suas vidas privadas. Já a cidade pós-industrial
ocidental vem marcada por mudanças na maneira como o sexo é
comercializado enquanto atividade recreativa e confinado aos ambientes
fechados. O serviço sexual, mediado por novos meios de comunicação
(celulares e internet), vincula a emoção ao contexto comercial e pouco
distingue os “domínios eróticos públicos e privados”. Estes diferentes
modelos de prostituição permanecem misturados no contexto atual,
principalmente quando o intercâmbio de sexo por dinheiro acontece no
Brasil ou envolvendo pessoas brasileiras no mercado exterior.

No mesmo sentido Olivar16 assevera que a prostituição pode ser


compreendida como exploração, quase escravidão, e um exótico absoluto nessa

13
HERRERA, Joaquín Herrera. De habitaciones propias y otros espacios negados (una teoría crítica de las opresiones
patriarcales). Bilbao: Universidade de Deusto, 2005, p. 15.
14
Idem, p. 19.
15
PISCITELLI, Adriana. Trânsitos: brasileiras nos mercados de trabalhos transnacionais. Rio de Janeiro: Editora EduERJ,
2013.
16
OLIVAR, José M. N. Trabalho sexual: entre direitos trabalhistas e condenação morais... ou o liberalismo em
conserva. Núcleo de Estudos de Gênero – PAGU, da Universidade de Campinas (UNICAMP), Brasil, 2010.
321

visão. Isso porque não se mencionam mulheres de classes abastadas que se


prostituem, nem dos homens não oprimidos que realizam essa atividade, muito
menos conexão entre prostituição e outras formas de transações sexuais e afetivas
que envolvam dinheiro ou bens materiais.
Especificamente quanto à compreensão da prostituição no Brasil, há
que se destacar a existência de diversas camadas que precisam ser exploradas,
considerando os aspectos histórico-sociais da cultura brasileira. Neste sentido, as
práticas sexuais brasileiras,

[...] inseridas em um contexto social pautado pelo patriarcalismo


dominado pelos dogmas da Igreja Católica, são aparentemente
tradicionais e severamente limitadas. Entretanto, esta é apenas uma das
muitas perspectivas possíveis do comportamento sexual no Brasil
contemporâneo. Dentro do universo privado brasileiro existem múltiplas
possibilidades inseridas no que chama de “domínio erótico”. Conceitos de
gênero, prazeres da carne e os desejos proibidos e permitidos fazem
parte desse domínio erótico que é visto “publicamente” como um campo
eminentemente “privado”.17

Portanto, deve-se considerar a estratificação da sociedade brasileira


como fator determinante para se compreender a posição da maioria das prostitutas
neste cenário.

4 A LIBERDADE DO CORPO FEMININO

O feminismo18 se revela como ferramenta de emancipação e luta pela


dignidade humana. Compreender o feminismo é inserir no campo de debate a
compreensão da luta pela ruptura do pensamento dominante, que mitiga direitos e
se constitui de uma dinâmica social condicionante, que determina a posição da
mulher inferior ao homem.
Foi com a tomada de consciência da opressão específica existente sob as
mulheres que o feminismo ganhou força e evidenciou coletivamente a
desvalorização da mulher, o espaço reservado a elas em função de interesses que

17
PARKER, Richard (1991) apud BUENO, Heitor Campos. Corpos, prazeres e paixões. São Paulo, 2014. Revista Hist.
UEG.
18
Neste estudo, filia-se às ideais de Patricia Hill Collins, bem pontuadas por Djamila Ribeiro, de que não há uma separação
entre a teoria feminista e o movimento feminista, sendo o segundo a execução dos ideais do primeiro: “Corroboro com a
visão de Patricia Hill Collins, de que a teoria é a prática pessoal. Uma deve existir para interagir dialeticamente com a outra,
em vez de serem dicotomias estéreis, A teoria ajuda na prática, e vice-versa”. RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do
feminismo negro?. Companhia das Letras. Edição do Kindle.
322

não eram necessariamente seus, ante a naturalização de funções determinadas


em razão do gênero.19
Assim, a teoria feminista possui como escopo a compreensão da mitigação
da mulher em relação ao homem. Com o desenvolvimento da teoria e do
movimento social, ocorreram diversos desmembramentos, cada qual
recepcionando diferentes teorias e se mesclando a estas.
Notadamente em relação à prostituição, pode-se indicar que há uma
coalisão central entre duas vertentes feministas, o radicalismo sexual e o
feminismo abolicionistas. Segundo Ribeiro20, a perspectiva abolicionista, com
raízes no feminismo radical, considera a venda do corpo da mulher como opressão
masculina sobre o feminino, canalizando a objetificação e hipersexualização do
corpo da mulher, não havendo possibilidade se falar em consentimento da mulher
que se se prostituir.
De outro vértice, encontra-se o radicalismo sexual, o qual compreende que
a prostituição é uma ação da mulher à imposição do poder sexual ser atribuído
somente do homem, considerando que o uso e a mercantilização do corpo são
ferramentas de empoderamento da mulher.
Segundo Piscitelli, genericamente existem duas visões antagônicas do
feminismo vinculadas à relação das mulheres com o sexo. Por um lado, a
prostituição é vista como um uso abusivo do sexo e a prostituta seria um objeto
sexual, vítima da violência desta transação comercial. Do outro lado, o sexo é visto
como fonte de poder, enquanto a prostituta detém sua autonomia sexual, que
desestabiliza o controle patriarcal sobre suas sexualidades.21
Para possibilitar um diálogo entre as diferentes vertentes, pode-se traçar
uma ponte com as ideias e John Rawls22. O liberal explica a ideia de acordo
hipotético em uma posição original de igualdade, e explora os princípios que
poderiam surgir a partir de tal ideia: princípios atinentes às liberdades básicas, e
princípios de igualdade social e econômica.
De acordo com a teoria rawlsiana, ao verificar se um contrato é justo, é
preciso se calcar em um referencial de justiça, na concepção de consentimento

19
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, v.
37, n. 132, p. 595-609, set./dez. 2007, p. 597.
20
RIBEIRO, Fernanda M. V. É possível consentir no mercado do sexo? O difícil diálogo entre feministas e
trabalhadoras do sexo. Revista de Estudos e Investigações Antropológicas. Recife: 2015, ano 2, volume 2.
21
PISCITELLI, Adriana. Trânsitos: brasileiras nos mercados de trabalhos transnacionais. Rio de Janeiro: Editora EduERJ,
2013
22
SANDEL, Michael J. Justiça. O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máxim. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 2015, p. 149-175.
323

respeitado, questionando se o consentimento, por si só, gera uma obrigação, ou


se é necessário um elemento de benefício ou justificativa.
Segundo as lições de Rawls, um contrato perfeito seria baseado em uma
posição original e celebrado sob o véu da ignorância. As pessoas que celebram o
contrato não teriam nenhum conhecimento acerca de suas características,
tampouco sobre sua posição social, e com isso, buscariam resguardar liberdades
básicas e a distribuição equânime de riquezas.
Sob esta tônica, pode-se dizer que ao se encontrar em uma posição original,
não havendo elementos que contribuam para a formação de sua escolha, a
prostituta realizaria uma escolha livre, sem amarras e determinações, ao escolher
vender seu corpo e considerar o sexo o seu meio de sobrevivência.
Mais que isso, Rawls leciona que as desigualdades somente podem ser
permitidas se beneficiarem os menos favorecidos. Neste sentido, há um encontro
entre as ideias rawlsianas e os argumentos do radicalismo sexual. Para ambos os
pensamentos, as mulheres, enquanto menos favorecidas na concepção social, ao
utilizarem seus corpos como ferramentas de trabalho estão se beneficiando da
hipersexualização do corpo feminino. Ou seja, a concepção desigual entre o corpo
feminino e o masculino geraria um benefício às mulheres, as quais possuem
possibilidade de obter lucro com a prostituição.
Indo além, adentra-se a discussão da possibilidade de a prostituta decidir
por arriscar a sorte, vendendo seu corpo para obter uma posição privilegiada na
sociedade. Neste cenário, a mulher possui opção de angariar recursos para viver
de outra forma que não através da mercantilização do sexo, mas arrisca se
prostituir em razão da possibilidade de obter grandiosa vantagem financeira. Para
Rawls, não seria uma alternativa que buscariam, pois em razão da possibilidade
de serem prejudicadas pelos diversos reflexos que a prostituição gera, não
arriscariam.
Percebe-se que a própria lógica liberal rawlsiana desmonta a possibilidade
da mulher se prostituir quando possui outras possibilidades de sobrevivência, bem
como compreende todos os reflexos que a prostituição gerará. De acordo com
Ribeiro23, ao afirmar que a prostituição

[...] não é mais que um exemplo de livre contrato entre indivíduos


iguais no mercado é outra ilustração da apresentação de submissão como

23
RIBEIRO, Fernanda M. V. É possível consentir no mercado do sexo? O difícil diálogo entre feministas e
trabalhadoras do sexo. Revista de Estudos e Investigações Antropológicas. Recife: 2015, ano 2, volume 2.
324

liberdade. As feministas têm frequentemente argumentado que o que está


fundamentalmente em causa nas relações entre homens e mulheres não
é o sexo, mas o poder. Mas, nas atuais circunstâncias de nossas vidas
sexuais não é possível separar o poder do sexo. A expressão da
sexualidade e do que significa ser feminina e uma mulher, ou masculino
e um homem, é desenvolvido dentro, e complexamente ligada, as
relações de dominação e subordinação.

A autora ainda pontua que o consentimento, pedra basilar da teoria liberal,


desenvolve-se quando o terreno de decisão é fertilizado pela autonomia e
racionalidade. Neste sentido, historicamente a mulher, e notadamente as mulheres
pobres, não se inserem no grupo de pessoas que legitimamente possuem livre
possibilidade de escolhas.

5 A FALÁCIA DA ESCOLHA LIVRE

Afora os apontamentos teóricos, ao voltar os olhos para a realidade,


encontram-se fontes atuais para o debate, as quais enquadram a falta de escolha
da considerável maioria das mulheres que se prostituem no Brasil hoje, em razão
da estratificação social das prostitutas e das diversas camadas de marginalização
a elas imposto.
Inicialmente, cumpre destacar que de acordo com levantamento feito pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento24, o Brasil atualmente
mantém tendência de avanço no desenvolvimento humano, mas persiste nas
desigualdades sociais. O levantamento feito no terceiro trimestre de 2018 indica
que o índice de desenvolvimento humano ajustado à desigualdade (IDG),
demonstra que o Brasil é o terceiro país da América do Sul que mais perde em IDH
em razão da profunda desigualdade, ficando atrás do Paraguai e da Bolívia. Em
relação ao coeficiente de Gini – que mede o grau de concentração de renda em
determinado grupo e aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e
dos mais ricos –, o Brasil possui o 9º (nono) pior valor do mundo.
Perpassando aos projetos legislativos, atualmente se encontra em
tramitação o Projeto de Lei nº 6.127, de 2016 25, de autoria do deputado Flavinho,

24
Organização das Nações Unidas. Brasil mantém tendência de avanço no desenvolvimento humano, mas
desigualdades persistem. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento: 14 de setembro de 2018. Disponível
em: http://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/presscenter/articles/2018/brasil-mantem-tendencia-de-avanco-no-
desenvolvimento-humano--mas.html. Acesso em 24 de fevereiro de 2019.
25
O Projeto de Lei foi recentemente desarquivado (em 20/02/2019), mediante requerimento, nos termos do art. 105, do
Regimento Interno da Câmara dos Deputados, conforme consulta efetuada no site da Casa Legislativa. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/buscaProposicoesWeb/resultadoPesquisa?numero=6127&ano=2016&autor=&inteiroTeor=&emt
ramitacao=Todas&tipoproposicao=%5B%5D&data=24/02/2019&page=false. Consulta em 24/02/2019.
325

do PSB/SP, o qual busca criminalizar a contratação, por qualquer meio, de pessoa


a fim de comercializar o próprio corpo para a prática de atos sexuais. A justificativa
do Projeto de Lei é de punir o cliente da prostituição, no afã de desestimular a
prática sem punir aqueles que se mantêm suas vidas em razão da falta de escolhas
e oportunidades para sua mantença.
Na justificativa do Projeto de Lei, o Deputado Federal pontua que a grande
maioria das pessoas que se prostituem apenas o fazem em razão da inexistência
de outras alternativas capazes de garantir sua sobrevivência e de suas famílias.
Para espelhar a realidade, cita levantamento realizado pela Fundação Mineira de
Educação e Cultura (FUMEC), a qual afirma que cerca de 28% das prostitutas
estão em situação de desemprego, 55% são responsáveis pela manutenção da
família, e 45% têm somente o primeiro grau de estudo. A pesquisa ainda revela
que 76% das prostitutas entrevistadas apresentavam sintomas de depressão, 59%
de estresse crônico e 36% disseram já ter pensado em suicídio.
Deste recorte da realidade, grife-se o número alarmante de mulheres que
recorrem à prostituição para sua sobrevivência e de seus familiares, bem como o
número gritante de mulheres prostitutas acometidas por depressão, estresse
crônico, e indicativos de suicídio. Tais dados refletem a infelicidade, não realização
e, pode-se afirmar, a ausência de escolha das mulheres que se prostituem.
De outra baila, tramitou na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº
4211/2012, de autoria do Deputado Federal Jean Willys, do PSOL/RJ, que tinha
como objetivo a regulamentação da atividade dos profissionais do sexo, intitulada
“Lei Gabriela Leite”. O Projeto de Lei foi arquivado em 31/01/2019, nos termos do
art. 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, eis que o Parlamentar
autor do Projeto desistiu do mandato para o qual foi eleito em 201826.
Na justificativa do Projeto de Lei, o Parlamentar assevera que ao se
regulamentar a prostituição como atividade laborativa, está-se dando vozes aos
movimentos sociais que lutam por direitos, reconhecimento e regulamentação de
suas atividades, sem o escopo de estimular o crescimento de profissionais do sexo,
mas reduzir os riscos danosos de tal atividade. No entanto, o Projeto não traz dados
acerca atualizados de profissionais, especialmente mulheres, que se prostituem no
Brasil.

26
BARROS, Carlos Juliano. Com medo de ameaças, Jean Wyllys, do PSOL, desiste de mandato e deixa o Brasil. Folha de
São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/com-medo-de-ameacas-jean-wyllys-do-psol-
desiste-de-mandato-e-deixa-o-brasil.shtml. Acesso em 24/10/2019, às 18h01min.
326

Corroborando os dados, não são raras as matérias jornalísticas e


documentários, nos quais são realizadas entrevistas com prostitutas,
questionando-as motivo de se prostituírem. De acordo com matéria publica no sítio
eletrônico da BBC News em 13 de agosto de 201827, a qual enuncia que apontar
uma resposta única para prostituição seria um exagero, mas as razões
normalmente convergem para a pobreza, desemprego, formação precária e falta
de oportunidades. Extrai-se da entrevista que as prostitutas afirmam que “quando
arrumam empregos, param de se prostituir”, “perdi meu emprego, não achava mais
trabalho, a prostituição foi o que eu encontrei”, “você acha que eu ia deixar meus
filhos passarem fome?”, ou mesmo “vi que ganhava cinco vezes mais do que no
meu trabalho. Foi a transição de uma militante sindical para uma prostituta", e
“espero que, quando meu bebê nascer, eu arrume um emprego e saia dessa vida”.
No mesmo sentido, o documentário do canal GNT em parceria com o canal
Quebrando o Tabu28 ilustra de forma rica o que leva às mulheres a se prostituírem.
Do documentário, extrai-se que a pergunta central é “afinal, alguém escolhe se
prostituir?”, da qual são inúmeras as respostas dadas por prostitutas, mas há
linearidade quanto a comercialização do corpo em razão da necessidade de
dinheiro. Importante salientar que as entrevistadas falam que não é um trabalho
fácil, mas é um ganho de dinheiro fácil. Além disso, a falta de opções é sempre
colocada em pauta como fator determinante para a colocação da mulher em
situação de prostituição.
Insta salientar que há dificuldade no encontro de dados na esfera nacional,
e até mesmo regional e local, de instituições governamentais e oficiais, acerca de
dados e estimativas sobre a prostituição no Brasil. Tem-se que além da
marginalização da prostituição, não há estudos específicos sobre quantitativos da
prostituição, sendo que a maioria do material localizado e disponível decorre de
pesquisas acadêmicas, as quais realizam entrevistas com grupos locais e
específicos de prostitutas, limitando o aprofundamento de estudos e adoção de
políticas públicas.
Há que se ponderar, ainda, que não se adentrou neste recorte questões
sensíveis como a prostituição infantil e de adolescentes, o tráfico de mulheres, a

27
MACHADO, Leandro. A vida secreta das prostitutas veteranas que trabalham em parque histórico de São Paulo. BBC
News Brasil: 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45133657. Acesso em 24/02/2019.
28
Legalização da Prostituição. Canal GNT e Quebrando o Tabu. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=gidTpEolMBs. Acesso em 24 de agosto de 2018.
327

prostituição de mulheres idosas, tampouco de refugiadas, como as mulheres


venezuelanas, que atualmente veem na prostituição no território brasileiro uma
fuga da realidade que as acomete29, além de situações de Saúde Pública, como a
alcoolismo e a drogadição.
No entanto, é plenamente possível realizar uma ponte com os dados citados
com os indicadores sobre a distribuição de riquezas, racismo, machismo e
segregação como fatores inerentes a grande parte da prostituição. De acordo com
o levantamento nacional e contexto internacional da prostituição em relação a
direitos humanos, trabalho, cultura e saúde no Brasil, promovido pela Associação
Brasileira Interdisciplinar de AIDS, realizada em 201330, para se realizar uma
análise da prostituição na segunda década do século XXI, é fundamental para a
compreensão da prostituição nos contextos nacionais compreender a circulação
transnacional de discursos, imagens, posições políticas e normas internacionais
sobre a questão, colocando a globalização como pano de fundo das discussões.
Assim, é fundamental sublinhar que os fluxos e circuitos não se iniciaram
nas últimas décadas do século XX, como análises imediatistas e superficiais levam
a crer, razão pela qual devem ser identificadas em todos os campos da vida
econômica, social e cultural as trajetórias históricas de transnacionalização
decorrentes do colonialismo e consolidação do capitalismo, o que se aplica às
realidades práticas, aos debates e medidas de regulação moral, biomédica e legal
da prostituição.
A segunda parte do Levantamento da Prostituição afirma que o caso
brasileiro, neste sentido, é exemplar, eis que as discussões sobre a prostituição
aqui, nos anos 1900, estiveram intimamente ligadas às lutas pela abolição da
escravatura, indicando que nos anos de 1840, médicos europeus vinham para o
Brasil para estudar o “problema” da prostituição, constatando que a maioria
acentuada das prostitutas eram escravas negras.
Quanto à intervenção estatal, destacam-se os apontamentos de Pereira, no
Levantamento Nacional sobre a Prostituição:

Pode-se identificar que nenhuma lei ou intervenção estatal


sistemática foi feita em relação ao trabalho sexual, nem na direção da

29
CAMBRICOLI, Fabiana. Prostituição vira opção para imigrantes venezuelanas em Roraima. Jornal Estadão: 22 de
abril de 2018. Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,prostituicao-vira-opcao-para-imigrantes-
venezuelanas-em-roraima,70002278447. Acesso em 24/02/2019.
30
CORREA, Sônia. Prostituição, normas e contextos: a dimensão transnacional. Análise do contexto da prostituição
em relação a direitos humanos, trabalho, cultura e saúde no Brasil: levantamento nacional e contexto internacional.
Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS: 2013.
328

criminalização e eliminação radical da prostituição, seja no sentido do


modelo francês de regulação, seja com vistas à criminalização e abolição
da prática. Tudo sugere que a relutância das elites imperiais brasileiras
para aceitar o modelo francês estava relacionada ao temor de que essas
medidas poderiam projetar a imagem do estado como um “senhor” das
prostitutas, exatamente quando a luta pela abolição da escravidão
ganhava corpo. Mas, o repúdio liberal clássico de regulação estatal da
vida privada – ou seja, uma restrição à liberdade sexual masculina –
parece ter também contribuído para essa relutância. E não devemos
perder de vista a concepção utilitarista então dominante de que a
prostituição protegia a família dos males venéreos.

Porquanto, até a abolição da escravidão em 1888, as escravas negras forras


eram a maioria das mulheres que se prostituíam nas grandes cidades brasileiras.
Com a abolição da escravatura e o crescimento dos movimentos migratórios para
o Brasil, grande número mulheres francesas, italianas, espanholas e judias
chegaram no país para ganharem a vida como trabalhadoras sexuais, fugindo das
difíceis condições econômicas europeias, guerras e antissemitismo.
O Levantamento de Dados sobre Contexto da Prostituição ainda cita que
diversas pesquisadoras refletem criticamente sobre o tema, chamando atenção
para do debate sobre tráfico e prostituição reproduzem, em linhas gerais, os
discursos e morais do século XIX31.
De mesmo vértice, no contexto atual, são indispensáveis os apontamentos
feitos por Ribeiro quanto à impossibilidade de ignorar a ultrassexualização das
mulheres negras, o que aliado com a estratificação social histórica, inserem
número estrondoso dessas mulheres na prostituição:

É importante ressaltar que a miscigenação muitas vezes louvada


no país também foi fruto de estupros cometidos contra elas. Essa tentativa
de romantização da miscigenação procura escamotear a violência.
Atualmente, esse ainda é o grupo de mulheres mais violentado e que mais
sofre violência doméstica. Segundo dados da pesquisa sobre violência
sexual da Unicef, o perfil das mulheres e meninas exploradas
sexualmente aponta para a exclusão social desse grupo. Por mais que
todas as mulheres estejam sujeitas a esse tipo de violência, é importante
observar o grupo que está mais suscetível a ela, já que seus corpos vêm
sendo desumanizados e ultrassexualizados historicamente. Esses
estereótipos racistas contribuem para a cultura de violência contra essas
mulheres, que são vistas como lascivas, “fáceis”, indignas de respeito. 32

31
O Levantamento cita as pesquisadoras Carol Vance, Laura Augustín, Elizabeth Bernstein, Kamla Kempadoo e Joe
Doezema.
32
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro?. Companhia das Letras. Edição do Kindle: 2018, posição
1404.
329

No contexto contemporâneo, são ricos os apontamentos de Ribeiro e Sá


sobre as causas de entrada e permanência da mulher na prostituição33:

Procuremos, pois, as causas da entrada e permanência na


prostituição onde elas se encontram: nas estruturas econômicas
existentes nos países periféricos de que são oriundas e nos países
europeus onde vivem e trabalham. A pobreza, o desemprego e os baixos
salários praticados, nomeadamente na América Latina, de onde provêm
a maioria das nossas inquiridas, constituem “incentivos” muito fortes para
a emigração em direção à Europa. No Velho Continente, melhor dito, nos
países da União Europeia onde o “estado-providência” garante ainda às
suas cidadãs, se bem que muitas vezes de forma insuficiente, condições
e perspectivas de vida que não as obriga a mergulhar em atividades
marginalizadas e estigmatizadas, o crescimento do salariado precário e
mal remunerado não deixa às mulheres imigradas, sobretudo àquelas que
são ilegais, outra alternativa que não seja a prostituição para constituir,
em relativamente curto tempo, um “pé-de-meia” suficiente para melhorar
a sua condição social e auxiliar aqueles que estão na sua dependência,
nomeadamente os filhos.

Os autores34 lecionam que a prostituição é inseparável das formas mais


extremas de exclusão social, sendo a escolha pela prostituição imposta por
determinantes econômicos, refletindo as estruturas do sistema capitalista:

A relação entre os patrões – quase sempre pequenos capitalistas


reacionários equipados de uma dupla moral que os impede de
objetivarem os papéis sociais desempenhados –, e as trabalhadoras
sexuais é atravessada pelas relações de poder que se estabelecem nos
mais diversos espaços de produção, sobretudo naqueles em que a
relação salarial está, por vezes, disfarçada por um falso trabalho
autónomo. Como acontece neste regime salarial, elevado pelo
neoliberalismo à condição de projeto universal, as remunerações estão
dependentes da prestação efetiva de trabalho. Extremamente flexível,
implicando um elevado nível de incerteza em termos de rendimento, ele
é agravado pela dificuldade, por vezes intransponível, de acesso a
mecanismos públicos de saúde e segurança social

Os pesquisadores portugueses Ribeiro e Sá reafirmam a necessidade de


construção de uma nova política para o sexo, de base material assente na
articulação da sua legalização com combate à pobreza, causa que empurra
mulheres em direção à venda de seus corpos, as quais são marginalizadas e
submetidas a um efeito de poder inscrito duradouramente no corpo dos dominados.
Na mesma esteira, o relatório do desenvolvimento humano de 2014,
realizado pela Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento35, afirma que

33
RIBEIRO, Fernando Bessa; SÁ, José Manuel Oliveira. Interrogando a prostituição: uma crítica radial aos discursos
hegemônicos. Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia: 2004, p. 15.
34
Idem, p. 15.
35
Relatório do desenvolvimento humano 2014. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Disponível em:
http://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/search.html?q=prostitui%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 23 de fevereiro de
2019.
330

prover e reforçar as escolhas a nível nacional através da prestação universal de


serviços básicos, como a educação, a saúde, água potável e eletricidade, bem
como por meio de proteção social universal, dota os indivíduos para resistirem
melhor a choques externos.
Abordando um conceito de “contrato social global”, o Relatório pontua que o
acesso a bens públicos básicos e universais reduzem a pressão que recai sobre
os indivíduos que tomam decisões difíceis: as pessoas não deveriam ter de
escolher qual dos seus filhos deve abandonar os estudos quando perdem o
emprego e as propinas são demasiado elevadas, ou ter de optar por atividades
humilhantes e perigosas, como a prostituição ou a catação de lixo, para conseguir
pagar alimentos e abrigo.
Portanto, é falacioso afirmar que todas as mulheres optam por se
prostituírem, e que o fazem de forma consciente e medindo todos os reflexos que
a ação gerará. O que se vê, de forma inteiramente diferente, é que a estridente
maioria das mulheres que se prostitui no Brasil hoje, vende seu corpo por
necessidade, muito mais perpetuando uma cultura de objetificação da mulher, do
que se tornando dona de si, empoderando-se e se emancipando de valores
Patriarcais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem a pretensão de esgotar os debates aqui suscitados, o presente estudo


buscou um outro olhar acerca da prostituição, calcada em interpretações liberais
tanto para refutar o simplismo do discurso da bandeira da prostituição como
simples escolha e empoderamento da mulher, quanto para reafirmar a
impossibilidade de flexibilização e estagnação do debate sobre a prostituição no
Brasil e no mundo, ante a interseccionalidade da celeuma.
Aprumando-se em nomes renomados no estudo da prostituição no Brasil,
este artigo teve como enfoque a discussão da liberdade da prostituta ao realizar a
escolha por vender seu corpo e as relações sexuais, entendendo, para tanto, não
ser razoável um olhar superficial do feminismo e de seus argumentos, tampouco
dos motivos pelos quais uma mulher se prostitui.
Considera-se que ao realizar um recorte realista da prostituição no Brasil,
não se pode falar, através dos enfoques rawlsianos, que a maioria das mulheres
331

que se prostituem o fazem de forma livre, expressando intimamente sua autonomia


da vontade. Para Rawls, somente podemos falar em escolhas livres quando há, de
fato, possibilidades de escolhas, subsidiadas por condições mínimas de vida e
dignidade humana. Assim, os elementos corroborados demonstram que a maioria
das mulheres que se prostituem o fazem por extrema necessidade de
sobrevivência ou manutenção de sua família.
Inseriu-se no debate a necessidade de repensar o corpo da mulher enquanto
mercadoria. Não se ignora que há mulheres que optam, verdadeiramente, pela
prostituição como forma de trabalho e lutam para que haja regulamentação legal
como trabalhadoras sexuais. No entanto, é salutar que ao retratar fato tão
marginalizado como a prostituição, descortine-se o que a maioria das mulheres
sente e vive ao venderem seus corpos.
Sob os argumentos aqui esposados, considera-se que não é possível
afirmar que a prostituição hoje, no cenário brasileiro, seja considerada como forma
de emancipação e libertação da mulher, ante a imanente objetificação e
hipersexualização do corpo feminino, o peso que é colocado sobre eles pelo
patriarcado, bem como a exclusão e estratificação social das mulheres,
principalmente negras, pobres, e com baixo nível de escolaridade.
Embora deva-se considerar que cada um é responsável por aquilo que faz
e produz, não é digno colocar o peso de uma inverídica escolha sobre milhares de
mulheres que vendem seus corpos, e por vezes, uma parte de si, para se manterem
vivas, ou ao menos serem sobreviventes no caos brutal da realidade brasileira.
É necessário debater acerca dos motivos, efeitos e reflexos da prostituição
da mulher, trazendo ao cenário de discussões pesquisadores, mas principalmente
prostitutas, a fim de serem adotadas medidas legislativas e políticas públicas que
abracem e considerem a complexidade de suas realidades.
Por fim, tem-se que o presente estudo reforça que as desigualdades ceifam
a possibilidade de escolha das mulheres, sendo que a luta por erradicação da
pobreza e por melhores condições de vida são, irrefutavelmente, a saída para que
todas possam verdadeiramente exercer a autonomia da vontade, sendo livres para
viverem plenamente.

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332

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Acesso em 24 de fevereiro de 2019.
334

TRANSCONSTITUCIONALISMO E SOCIEADES INFORMACIONAIS: vivências


constitucionais em (inter)relação

Camila Salvatti1
André Luan Domingues2

Resumo: O escrito aborda a compreensão do transconstitucionalismo segundo Marcelo Neves,


especificamente quanto as “pontes de transição” entre racionalidades transversais. Assim,
transconstitucionalismo representa o caminho para compreender as inter-relações entre múltiplas
ordens jurídicas pertencentes ao sistema do direito. Ademais, “pontes de transição” representam
intercâmbios construtivos da inter-relação para aprendizados e influências recíprocas entre ordens
jurídicas diversas. Ainda, estabelece-se conexão com a denominada “era da informação” enquanto
realidade mundial hodierna de fluxos informacionais múltiplos, como perspectiva de redes
comunicacionais promotoras dos diálogos entre Constituições. O artigo possui como objetivo
desenvolver e relacionar os conceitos anteriormente referidos para compreender os momentos de
intercâmbio de informações e aprendizados constitucionais. Nesse cenário, visa-se o fortalecimento
por reconhecimento e respeito de cada realidade constitucional para promoção de aprendizados. O
método de pesquisa utilizado é o método bibliográfico com análise bibliográfica e documental de
materiais doutrinários, com compreensão crítica das configurações dos diálogos constitucionais. Ao
desenvolver o presente escrito, concluiu-se que a hodierna sociedade comunicacional em rede
vincula os diálogos constitucionais, notadamente em razão das multiplicidades de racionalidades
transversais e possibilidades de interação.

Palavras-chave: Diálogo constitucional. (Inter)relações. Sociedades informacionais.


Transconstitucionalismo.

Abstract: The paper addresses the understanding of transconstitutionalism according to Marcelo


Neves, specifically regarding the “transition bridges” between transversal rationalities. Thus,
transconstitutionalism represents the way to understand the interrelationships between multiple legal
orders belonging to the system of law. Furthermore, “transition bridges” represent constructive
exchanges of the interrelationship for learning and reciprocal influences between different legal
orders. Still, a connection is established with the so-called “information age” as a modern world
reality of multiple information flows, as a perspective of communication networks that promote the
dialogues between Constitutions. The article aims to develop and relate the concepts previously
mentioned to understand the moments of information exchange and constitutional learning. In this
scenario, the aim is to strengthen by recognizing and respecting each constitutional reality to
promote learning. The research method used is the bibliographic method with bibliographic and
documentary analysis of doctrinal materials, with a critical understanding of the configurations of the
constitutional dialogues. In developing this writing, it was concluded that today's networked
communication society links constitutional dialogues, notably due to the multiplicity of transversal
rationalities and possibilities for interaction.

Key-words: Constitucional dialog. Interrelationships. Informational societies.


Transconstitucionalism.

1 INTRODUÇÃO

As relações comunicacionais são marca histórica da sociedade e


possibilitam que as interações entre sistemas ocorram. Assim, na realidade
vivencial da sociedade mundial hodierna é possível observar a denominada “era

1 Mestranda em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil – UNIBRASIL, na
categoria de Minter (UNIGUAÇU). Email: camilasalvatti@hotmail.com.
2
Doutorando em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Mestre em Direito pela
Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Email: andre_oluan@yahoo.com.br.
335

da informação”, caracterizada pela presença de processos comunicativos com


fluxos informacionais múltiplos e velozes. Desta forma, as redes comunicacionais
existentes frente ao desenvolvimento tecnológico permitem a circulação de
informações de forma constante, o que influencia as realidades experimentadas
pelas diversas sociedades e suas ordens jurídicas.
Essa conjuntura vincula a dinâmica dos diálogos constitucionais, estes
enquanto inter-relações contributivas de vínculos construtivos de intercâmbios de
experiência e aprendizados recíprocos entre Constituições - racionalidades
diversas. (NEVES, 2009).
Nesse sentido, cabe estudar a teoria do transconstitucionalismo
desenvolvida por Marcelo Neves diante desta conjuntura, uma vez que o
transconstitucionalismo representa a busca por caminhos de inter-relação entre
ordens jurídicas múltiplas por meio das chamadas “pontes de transição” –
intercâmbios construtivos de compartilhamento de experiências entre
racionalidades diversas para aprendizados e influências recíprocas – processo
promotor de diálogos entre Constituições distintas e diversas. (NEVES, 2009)
Assim, através das interligações entre as Constituições há o
estabelecimento de processos comunicacionais que possibilitam o
estabelecimento do fluxo informacional como contribuição para potencializar
vínculos de aprendizado, uma vez que cada Constituição é autônoma e desenvolve
suas próprias racionalidades, as quais, no momento de presença de inter-relações
podem ser distribuídas enquanto experiências a serem aprendidas, e vice-versa,
em um processo de relação contributiva.
Desta forma, as interações entre Constituições diversas nas sociedades
mundiais hodiernas devem estar marcadas pela presença necessária de diálogos
simultâneos – redes comunicativas - entre criações, difusões e recebimentos de
elementos informacionais, o que provoca a constante relação de formulação e
reformulação de experiências desenvolvidas entre Constituições e por cada
Constituição.
Portanto, em relação ao problema de pesquisa, este aparece como questão:
na atual conjuntura informacional, qual a maneira para vivência das chamadas
“pontes de transição” enquanto aprendizado constitucional pautado em inter-
relações construtivas e não enquanto sobreposição de sistemas?
336

Desta forma, surge como objetivo para a presente pesquisa, como base, a
apreensão da teoria do transconstitucionalismo e das “pontes de transição” entre
racionalidades diversas, a partir do desenvolvido por Marcelo Neves, bem como a
compreensão da sociedade mundial hodierna como sociedade em rede
(interligações) em razão da “era da informação”. Outrossim, objetiva-se estabelecer
aportes de base na expansão das possibilidades e influências comunicacionais, a
fim de compreender as inter-relações entre Constituições enquanto promoção de
diálogos que sejam construtivos para um efetivo intercâmbio de experiências e
informações como processo de influência e aprendizado entre as diversas
Constituições.
Ademais, para alcançar os caminhos vislumbrados pela pesquisa, como
teoria de base e abordagem, filiou-se a perspectiva crítica, efetuando para isso
conjecturas e teorias a respeito da temática. O método de pesquisa utilizado é o
método bibliográfico com análise bibliográfica e documental de materiais
doutrinários, referentes à compreensão crítica das configurações dos diálogos
constitucionais.
O presente escrito estará estruturado em dois grandes títulos, sendo que o
primeiro título é “Transconstitucionalismo: Constituição transversal - “pontes de
transição””, e possui como abordagem a compreensão da teoria referida –
transconstitucionalismo – relacionada às “pontes de transição” enquanto aportes
para o estudo da vivência da “era da informação” nos diálogos entre Constituições.
Na sequência, o segundo título “A era da informação – conexões de
aprendizagem nos diálogos constitucionais” possui como abordagem as relações
informacionais nos processos comunicacionais promotores de construção, difusão
e recepção de experiências e informações entre Constituições distintas e múltiplas,
posto que representam um mecanismo de inter-relação possibilitadora de
alternativas experienciais nos momentos de intercâmbio de informações e
aprendizados.

2 TRANSCONSTITUCIONALISMO: CONSTITUIÇÃO TRANSVERSAL


“PONTES DE TRANSIÇÃO”

A abordagem realizada no presente título possui como base o pensamento


desenvolvido por Marcelo Neves em sua obra “Transconstitucionalismo”, escrita
337

em 2009, frente às possibilidades de relações entre sistemas constitucionais


diversos.
Assim, de acordo com Neves (2009, p. XIX), há crescente preocupação
entre constitucionalismos de tradições teóricas diversas no tocante a desafios
vislumbrados em um constitucionalismo que vai além das delimitações fronteiriças
dos Estados com suas Constituições estatais, sendo a problemática de relevância
também para ordens jurídicas não estatais.
Ademais, é importante observar o uso do termo “Constituição”, para que não
perca sua importância, isto é, a utilização inflacionária torna vaga sua
expressividade, o que não pode ocorrer, uma vez que esse cenário faz com que
importantes diferenças não sejam reconhecidas, como, por exemplo, o uso do
termo “Constituição” para denominação composta de diversas ordens jurídicas.
(NEVES, 2009, p. XX)
Desta forma, a noção sólida de Constituição está estritamente vinculada ao
sentido moderno resultante das revoluções na França e nos Estados Unidos,
ocorridas no final do século XVIII, uma vez que na relação entre problemas e
soluções está a viabilização da compreensão do termo “Constituição”. (NEVES,
2009, p. XX-XXI).
O conceito de Constituição não pode estar desvinculado de sua história
enquanto base estrutural, uma vez que abandonada esta ligação, o conceito se
torna mero instrumento discursivo sem referenciação comprometida com a
localização histórica e estrutura social no qual se determinou seu contorno
semântico. (NEVES, 2009, p. 6) Assim, deve-se primar pela compreensão de que

O constitucionalismo como uma construção da sociedade


moderna envolve certos contornos de sentido que impedem uma absoluta
desconexão entre semântica constitucional e transformações estruturais,
e possibilitam relacionar as crises na semântica com problemas
emergentes no pano das estruturas. (NEVES, 2009, p. 2)

Em sentido moderno, o conceito de Constituição está relacionado, portanto,


as transformações sociais estruturais decorrentes de processos de revolução, cujo
elemento da comunicação sempre permeou e teve relevante influência nas
formações estruturais, razão pela qual a clareza semântica é imprescindível a fim
de evitar compreensões equivocadas, uma vez que possibilitam tanto a
emancipação – vivência informacional reflexiva e com paridade entre os agentes
sociais, quanto a alienação – vivência informacional autoritária e impositiva
338

desprovida de reflexão. Assim, deve-se compreender a Constituição enquanto


força motriz de caminhos para tentativa de soluções de questões presentes nas
sociedades mundiais. (NEVES, 2009, p.4)
Segundo Marcelo Neves (2009, p. XXI),

dois problemas foram fundamentais para o surgimento da


Constituição em sentido moderno: de um lado a emergência, em uma
sociedade com crescente complexidade sistêmica e heterogeneidade
social, das exigências de direitos fundamentais ou humanos; de outro,
associado a isso, a questão organizacional da limitação e do controle
interno e externo do poder (...), que também se relacionava com a questão
da crescente especialização das funções, condição de maior eficiência do
poder estatal.

A partir dessa visão é possível perceber que a multiplicidade de questões


relativas a ordens constitucionais estatais e a ordens jurídicas não estatais estão
sempre presentes e exigem caminhos para construção de uma tentativa de
solução. Para tanto, a percepção da necessidade da existência de relação
transversal entre ordens jurídicas é mister para compreensão e tentativa de
solução de questões constitucionais. (NEVES, 2009, p. XXI)
Desta forma, diante de tal quadro constitucional, Marcelo Neves (2009, p.
XXII) apresenta o conceito de transconstitucionalismo, segundo o qual, frente a
relevância das discussões e interações possíveis de interesses comuns, o conceito
não trata de “constitucionalismo internacional, transnacional, supranacional, estatal
ou local. O conceito aponta exatamente para o desenvolvimento de problemas
jurídicos que perpassam os diversos tipos de ordens jurídicas” (NEVES, 2009, p.
XXI-XXII) Isto é, a amplitude de relações não está limitada a fronteiras de ordens
pré-estabelecidas, vai além, perpassa as fronteiras a fim de permitir compreensão
conjunta com reconhecimento de pontos de convergência e pontos de divergência.
Marcelo Neves (2009, p. XXII) utiliza como aporte de partida o conceito de
“razão transversal” desenvolvido por Wolfgang Welsch - a fim de desenvolver sua
teoria do transconstitucionalismo - para

analisar os limites e possibilidades de existência de


racionalidades transversais parciais (“pontes de transição”) tanto entre o
sistema jurídico e outros sistemas sociais (Constituições transversais)
quanto entre ordens jurídicas no interior do direito como sistema funcional
da sociedade mundial. (NEVES, 2009, p. XXII)

O transconstitucionalismo, enquanto gênero aborda considerações de


relação entre ordens constitucionais e ordens anticonstitucionais, e enquanto
espécie aborda relações, unicamente, entre ordens jurídicas que estão em
339

consonância com o constitucionalismo (NEVES, 2009, p. XXII), delimitação em


espécie utilizada para o desenvolvimento do presente escrito.
Deste modo, o transconstitucionalismo não visa estabelecer como ponto de
partida uma concepção determinada e finalista, ao contrário,

aponta, antes, para a necessidade de construção de “pontes de


transição”, da promoção de “convenções constitucionais”, do
fortalecimento de entrelaçamentos constitucionais entre as diversas
ordens jurídicas: estatais, internacionais, transnacionais, supranacionais
e locais (NEVES, 2009, p. XXV)

A compreensão do transconstitucionalismo pauta-se, assim, em sua


centralidade, na existência de ordens jurídicas múltiplas com a necessidade de
reconhecimento identitário de cada ordem, enquanto força de articulação
potencializadora das experiências constitucionais, o que é desenvolvido como
tentativa de cumprimento do objeto do presente escrito.
Adiante, o constitucionalismo está sempre relacionado com as
transformações estruturais referentes às bases de surgimento da sociedade
moderna, processo que tornou “multicêntrica” a sociedade, o que permite dizer que
o desenvolvimento das relações nestas sociedades decorre de comunicações de
ambitos múltiplos, o que ocasiona convergências e divergências frente as
pretensões e autonomias em comunicação (NEVES, 2009, p. 23), bem como “uma
pluralidade de códigos-diferença orientadores da comunicação nos diversos
campos sociais.” (NEVES, 2009, p. 24)
Essa pluralidade de códigos-diferença não deve representar a determinação
de isolamento e fechamento para comunicações externas, ao contrário, representa
a necessidade de posicionamento com o que está à volta, posicionamento este
pautado em capacidade cognitiva ativa e reflexiva. (NEVES, 2009, p. 25)
Diante da configuração da sociedade mundial moderna, isto é, com
estruturas relacionais que se desvinculam de amarras por limites territoriais, os
horizontes comunicacionais ultrapassam fronteiras territoriais estatais (NEVEZ,
2009, p. 26). Isto é “a sociedade mundial constitui-se como uma conexão unitária
de uma pluralidade de ambitos de comunicação em relações de concorrência e
simultaneamente de complementaridade.” (NEVES, 2009, p. 26)
Segundo Marcelo Neves, o resultado da intensificação da sociedade em
âmbito mundial é a globalização, bem como evidencia que o desenvolvimento
desta se inicia
340

a partir do século XVI e consolida-se estruturamente com o


surgimento de “um único tempo mundial” na segunda metade de século
XIX, em um processo de transformações paulatinas, que se torna
finalmente irreversível, alcança um grau de desenvolvimento tão
marcante, no final do século XX, que aquilo já assentado no plano das
estruturas sociais passou a ser dominante no plano da semântica:
sociedade passa a (auto) observar-se e (auto) descrever-se como
mundial ou global. Essa situação relaciona-se com a intensificação
crescente das “relações sociais” e das comunicações suprarregionais
mundializadas com reflexos profundos na reprodução dos sistemas
político-jurídicos territorialmente segmentados em forma de Estado.
(NEVES, 2009, p. 27)

Neste cenário, os meios de comunicação representam a base da sociedade


mundial, isto é, o desenvolvimento está vinculado a expectativas cognitivas (os
saberes). Torna-se relevante observar que os saberes (jurídico, político, científico,
entre outros) inevitavelmente perpassam pelas redes comunicacionais e ganham
expressão a depender da forma como são recebidos e transmitidos. (NEVES,
2009, p. 29)
Assim, Marcelo Neves afirma que

A sociedade moderna multicêntrica, formada de uma pluralidade de


esferas de comunicação com pretensão de autonomia e conflitantes entre
si, estaria condenada à própria destruição, caso não desenvolvesse
mecanismos que possibilitassem vínculos construtivos de aprendizado e
influência recíproca entre as diversas esferas sociais. (NEVES, 2009, p. 34-
35)

Com essa visão, tem-se que a pluralidade não deve ser observada como
uma condição negativa que gerará conflitos infindáveis e provocará a quebra pela
ausência de entendimento na estrutura social global, mas sim como busca de um
caminho que gere possibilidade de incremento das relações comunicacionais para
respeito e aprendizados simultâneos.
Nesse sentido, Marcelo Neves (2009, p. 35) parte do conceito sociológico
de acoplamento estrutural desenvolvido por Niklas Luhmann (este influenciado
pela teoria biológica de Humberto Maturana e Francisco Varela), conceito segundo
o qual o

acoplamento serviria à promoção e filtragem de influências e


instigações recíprocas entre sistemas autônomos diversos, de maneira
duradoura, estável e concentrada, vinculando-os no plano de suas
respectivas estruturas, sem que nenhum desses sistemas perca a sua
respectiva autonomia” (NEVES, 2009, p. 35)

Isto é, os acoplamentos estruturais, considerando a linguagem como um


acoplamento, enquanto filtros, servem para realizar a comunição entre os sistemas
341

na medida em que barram determinadas influências e possibilitam outras. Assim,


no acoplamento entre sistemas, há uma relação, ao mesmo tempo, de
independência e de dependência dos sistemas. (NEVES, 2009, p. 35). Em mesmo
sentido, a Constituição é apontada como acoplamento entre direito e política
(saberes). (NEVES, 2009).
Contudo, segundo Neves (2009), deve-se superar a consideração da
Constituição como mero acoplamento estrutural, partindo-se para relações de
“pontes de transição”, por meio de uma compreensão transversal da Constituição,
ou seja, não deve haver uma estrutura da linguagem de organização
estabelecedora de ordens superiores, uma vez que a imposição de um saber sobre
o outro provocaria a morte da pluralidade de possibilidades presentes nos sistemas
de comunicação expansivos. (NEVES, 2009, p. 38) Assim, as “pontes de transição”
representam o caminho para a não imposição entre os sistemas, mas sim a
presença de entrelaçamentos fortalecedores pelo aprendizado. (NEVES, 2009, p.
39).
Dito de outra maneira são os “pontos de transição” que permitem

a construção de uma racionalidade transversal entre esferas


autônomas de comunicação da sociedade mundial [...], mecanismos
estruturais que possibilitam o intercâmbio construtivo de experiências
entre racionalidades parciais diversas [...]. Portanto, no sentido ora
empregado, os conceitos de racionalidade transversal e acoplamento
estrutural são afins, pois a afirmação da primeira supõe a existência do
segundo. No entanto, a noção de racionalidade transversal importa um
plus em relação à de acoplamento estrutural. (NEVES, 2009, p. 38)

Portanto, Neves apresenta os “pontos de transição” como busca de quebra


do que compreende como negativo nos acoplamentos estruturais de Luhmann – a
corrupção dos sistemas mediante bloqueios das autonomias destes sistemas, ou
seja, a garantia de autonomia entre os sistemas ocorre por meio da construção de
intercâmbios construtivos não corruptores (os entrelaçamentos ocorrem com a
finalidade de aprendizado a partir de informações compartilhadas necessárias, não
havendo espaço para bloqueio do outro sistema por meio de imposição de
informações). (NEVES, 2009, p. 42)
Marcelo Neves reconhece a dificuldade das relações pautadas nas
racionalidades transversais frente ao histórico da sociedade mundial atrelado ao
crescimento por meio de imposições dominantes e excludentes, mas enfatiza que
a dificuldade não pode ser vista como impossibilidade para a exigência de
342

alteração desse processo alienante e desejo como pretensão de relações


estruturadas no aprendizado construtivo recíproco. (NEVES, 2009, p. 48-49)
O que não pode ocorrer é a negação da alteridade, pois se negada, um
sistema perderá a capacidade de aprender com o outro sistema, ou ainda, haverá
influência negativa no desenvolvimento de um dos sistemas. (NEVES, 2009, p. 45)
Nas palavras de Marcelo Neves (2009, p. 49-50),

Os entrelaçamentos promotores da racionalidade transversal


servem sobre tudo ao intercâmbio e aprendizado recíprocos entre
experiências com racionalidades diversas, importando a partilha mútua de
complexidade preordenada pelos sistemas envolvidos e, portanto,
compreensível para o receptor (interferência estável e concentrada no
plano das estruturas).

Assim, as “pontes de transição” são a base possibilitadora da racionalidade


transversal para que haja o efetivo intercâmbio de aprendizados entre as
racionalidades (complexidades preordenadas). Ademais, a racionalidade
transversal somente ocorrerá quando as racionalidades estiverem estruturalmente
estabelecidas para contribuírem de forma positiva nos sistemas em relação.
(NEVES, 2009, p. 50) Conforme escrito anteriormente, portanto, a
Constituição está relacionada as experiências sociais históricas, em especial as
revoluções ocorridas no final do século XVIII, o que vincula o desejo de distinção
do direito com a política frente as sociedades modernas. (NEVES, 2009, p. 53)
Assim, a Constituição permite a realização de distinção entre direito e
política e ao mesmo tempo representa o acoplamento estrutural entre esses
sistemas, uma vez que implica em uma “circulação e contracirculação” entre
diversas conjecturas, isto é, “do ponto de vista do direito, a Constituição é a
instância reflexiva mais abrangente do sistema jurídico, permeando-lhe todos os
âmbitos de validade, o material, o temporal, o pessoal e o territorial”, ademais, do
ponto de vista estrutural amplo, apesar das limitações, “nos Estados
constitucionais: “a Constituição fecha o sistema jurídico” e o povo fecha o sistema
político, autolegitimando-os.” (NEVES, 2009, p. 59 e 62).
Contudo, de acordo com Marcelo Neves (2009, p. 62) a Constituição não é
apenas um acoplamento estrutural (filtro de irritações e influências), a Constituição
do Estado constitucional representa para os sistemas de comunicação uma relação
de intercâmbio de experiência para aprendizados recíprocos, isto é, cada sistema
autônomo processa suas racionalidades particulares e divide as experiências em
relação de contribuição. (NEVES, 2009, p. 62)
343

Assim, na Constituição transversal


o vínculo ocorre entre dois mecanismos reflexivos estruturais: por
um lado, a Constituição jurídica como conjunto de normas de normas, ou
melhor, processo ou estrutura de normatização; por outro, a Constituição
política como decisão de decisão, ou melhor, processo e estrutura
decisórios sobre processo de tomada de decisão coletivamente
vinculante. Essa transversalidade reflexiva possibilita uma intensificação
do aprendizado, mas pode, eventualmente, atuar parasitariamente para
um ou ambos os sistemas. (NEVES, 2009, p. 63)

Nesse sentido, a Constituição transversal está relacionada em dois aspectos


nas relações entre os sistemas, uma vez que permeia as reciprocidades positivas
entre os sistemas, mas também representa a manutenção de um paradoxo (política
e direito) vinculado a sua própria existência, uma vez que o equilíbrio é necessário
para que continue presente. (NEVES, 2009, p. 76-77).
A centralidade na compreensão do conceito de Constituições transversais
reside na

na relação entre sistemas funcionais, concentrando-se nos limites


e possibilidades de construção de uma racionalidade transversal
mediante o aprendizado recíproco e intercâmbio criativo. Isso implica
externalização e internalização de informações entre esferas sociais que
desempenham funções diversas e se reproduzem primariamente com
base em códigos binários de comunicações diferentes. (NEVES, 2009, p.
115)

O transconstitucionalismo, por sua vez, representa a busca pela


compreensão das formas relacionais entre as diversas ordens jurídicas,
considerando a base binária lícito/ilícito comum entre todas. Ordens jurídicas estas
que estão dentro, portanto, de um mesmo sistema funcional – o sistema do direito
- possuindo suas próprias ordens internas distintas. (NEVES, 2009, p. 115)
A partir desse desenvolvimento teórico, o transconstitucionalismo entre
ordens jurídicas é caracterizado enquanto “um constitucionalismo relativo a
(soluções de) problemas jurídico-constitucionais que se apresentam
simultaneamente a diversas ordens,” por meio de “conversações” constitucionais.”
(NEVES, 2009, p. 129)
Desta forma, o sistema jurídico se mostra multicêntrico assim como a
sociedade moderna, sendo que neste sistema jurídico existem diversas ordens
jurídicas com pretensão de autonomia, razão pela qual esse cenário “importa
relações de observação mútua, no contexto da qual se desenvolvem formas de
aprendizado e intercâmbio, sem que se possa definir o primado definitivo de uma
das ordens, uma última ratio jurídica.” (NEVES, 2009, p. 117)
344

Considerando a abordagem com perspectiva de relações amplas e múltiplas


entre diversificadas ordens dentro do sistema jurídico, deve-se compreender que
tais relações não significam a construção de uma ordem constitucional “mundial”
(uma estrutura superior que contém e rege todas das demais), ao revés, o
transconstitucionalismo surge como método para demonstrar um caminho de
composição de problemas constitucionais fragmentados na sociedade mundial por
meio de diálogos de aprendizado. (NEVES, 2009, p. 122), uma vez que “o método
do transconstitucionalismo não pode ser reduzido ao modelo de identidade de uma
ordem jurídica determinada.” (NEVES, 2009, p. 270)
Desta forma, no transconstitucionalismo “as ordens se inter-relacionam no
plano reflexivo de suas estruturas normativas que são autovinculantes e dispõem
de primazia [...].” (NEVES, 2009, p. 118) Isto é, não corresponde jamais a
hierarquização estrutural entre ordens, uma vez que o caminho é de reciprocidade
e aprendizagem de conteúdos, o que ocasiona necessária auto-observação dos
sistemas enquanto receptores de conteúdos que irão lhe beneficiar. (NEVES, 2009,
p. 118).
Ademais, os processos de aprendizado recíproco mediante abertura
normativa não representam quebra da autonomia e da consistência interna da
ordem receptora, uma vez que se trata de concretização jurídica de
reconhecimento de pluralidades em consonância dentro do reconhecimento das
particularidades e dos pontos permeantes. (NEVES, 2009, 127)
Portanto, diante da pluralidade de ordens jurídicas com construções
normativas diversas, mas todas pautadas no mesmo código binário (lícito/ilícito) a
busca por “pontes de transição” é fundamental, compreendendo que o
entrelaçamento decorrente da racionalidade transversal não é permanente, é, por
outro lado, dinâmico a fim de acompanhar a dinamicidade da sociedade mundial.
(NEVES, 2009, p. 128)
Assim, diante do desenvolvimento da teoria do Transconstitucionalismo por
Marcelo Neves, visa-se, no próximo título, estabelecer relação com a denominada
“era da informação”, enquanto construção de aportes que correspondem aos
processos dos fluxos informacionais relativos à promoção das “pontes de
transição” – diálogos constitucionais.
345

3 SOCIEDADES INFORMACIONAIS – CONEXÕES DE APRENDIZAGEM NOS


DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS

O presente escrito aborda neste título a compreensão relativa às conexões


estabelecidas pelas “pontes de transição” – enquanto parte da teoria do
transconstitucionalismo – especificamente frente à sociedade hodierna
estabelecida em processos informacionais múltiplos – era da informação – com a
presença de expansão dos diálogos constitucionais contributivos para a promoção
de vínculos construtivos de aprendizados recíprocos entre Constituições
(racionalidades diversas).
Assim, de acordo com Scott Lash (2005, p. 13), a respeito do que caracteriza
a sociedade mundial como estabelecida em rede, tem-se que “las formas de vida
se desprenden de sus cualidades orgánicas y se conforman como redes. Esto es:
en la sociedad red, las formas de vida están de algun modo en el aire,
desarraigadas,"3 razão pela qual os fluxos comunicativos e informativos, diante do
desenvolvimento tecnológico (base de compreensão das alterações relacionais
sociais), podem ocorrer, e ocorrem, para além dos limites territoriais de um Estado,
ou seja, as inter-relações informacionais representam influência com capacidade
transformadora nas realidades vivenciais entre os sistemas em diálogo.
Destarte, é importante considerar que "la expresión sociedad de la
información es preferible a posmodernismo por que dice cuál es el principio de la
sociedad en vez de limitarse a indicar después de qué viene” (LASH, 2005, p. 22)4,
sendo que, de acordo com Marcelo Neves, como explicitado no título anterior, o
desenvolvimento ocorre de forma paulatina a partir do século XVI, até alcançar
grau acentuado de desenvolvimento no final do século XX. Isto porque, as
estruturas sociais estão marcadas pela intensificação de pluralidades de
experiências relacionais globais, e ocorrendo, em seguida a passagem dessas
experiências para o campo comunicacional, houve a intensificação do
reconhecimento e descrição da própria sociedade e pela própria sociedade como
global. (NEVES, 2009, p. 27)

3
Tradução livre: “as formas de vida são separadas de suas qualidades orgânicas e se conformam como redes. Isto é: na
sociedade em rede, as formas de vida estão de alguma forma no ar, desenraizadas”
4
Tradução livre: “a expressão sociedade da informação é preferível ao pós-modernismo porque diz qual é o princípio da
sociedade em vez de simplesmente indicar depois do que vem.”
346

Deste modo, a sociedade mundial hodierna, de acordo com a realidade


social observável, vive na era da informação, na qual a circulação de informações
é constante, bem como os caminhos comunicacionais são velozes. Assim,
havendo interligações entre sistemas, o fluxo informativo poderá ser estabelecido
a fim de possibilitar a troca de conteúdos para potencialização desses sistemas,
uma vez que as relações estabelecidas representam mecanismos de diálogo
constitucional – inter-relações com simultaneidade de compreensão, entrega e
aprendizado de racionalidades transversais (NEVES, 2009).
As relações sociais mundiais hodiernas estão, portanto, marcadas pelo
desenvolvimento tecnológico, enquanto força de influência direta nas construções
das realidades vivenciais em sociedades diversas, o que faz com que as práticas
e diálogos dentro dos sistemas estejam em constante formulação e reformulação
por meio da produção, da difusão e do recebimento de informações, justamente
em razão da tecnologia presente que permite ultrapassar barreiras de adstrição
territorial.
Ademais, os sistemas e especificamente, em relação ao recorte deste
escrito, as ordens jurídicas estão vinculados aos processos comunicacionais, uma
vez que as informações são produzidas e transmitidas em nível global e marcam a
vivência constitucional destas ordens. Desta forma, as inter-relações
comunicacionais possuem uma faceta possibilitadora de diálogos entre as
Constituições, isto é, em razão das constantes busca por novas respostas sociais
e por aprimoramento jurídico, os diálogos para além das fronteiras estatais se
tornam relevantes. (NEVES, 2009)
Nesse sentido, uma visão agregadora está na compreensão dos fluxos
comunicacionais enquanto processos de cooperação.
Nas palavras de Häberle (2007, p. 4), um Estado Constitucional Cooperativo

é o Estado que justamente encontra a sua identidade também no Direito


internacional, no entrelaçamento da relações internacionais e
supranacionais, na percepção da cooperação e responsabilidade
internacional, assim como no campo da solidariedade.

Assim, a partir dos processos de cooperação é possível observar que


hodiernamente, os planos internos (Constituições Nacionais) e os planos externos
(Constituições Nacionais outras) estão em constante relação, isto é, “os Estados
cooperam nesse novo ambiente, abertamente” (MALISKA, 2006, p. 154).
347

Nesta conjuntura social, na qual é possível a presença, muito já presente,


de conexões entre Constituições, cabe compreender estas, a partir da teoria do
transconstitucionalismo de Marcelo Neves. A apreensão da realidade
constitucional cujas relações podem ser marcadas pelas chamadas “pontes de
transição” - ultrapassando os meros acoplamentos estruturais – para uma conexão
dialógica entre Constituições (influência entre ordens jurídicas) que compartilham
racionalidades e experimentam aprendizados. Isto é, Constituições nacionais,
frente à realidade comunicacional global, em inter-relação construtiva com outras
Constituições nacionais a fim de estabelecer aprendizados e influências recíprocas
em razão das racionalidades já desenvolvidas por cada Constituição e que podem
contribuir com outras enquanto construção de novos caminhos para soluções de
questões sociais. (NEVES, 2009)
Nesse sentido, pode-se compreender que a Constituição Brasileira de 1988
é “um documento acentuadamente compromissário, plural e comprometido com a
transformação da realidade [...]”. (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2018, p. 257),
uma vez que, o Estado Brasileiro adotou em sua Constituição de 1988 o modelo
que se pode denominar de Estado Democrático Social de Direito5.
Deste modo, a Constituição Brasileira de 1998 possui, portanto, disposições
de visão interna (estrutura e realidade social própria), mas também possui
disposições de visão externa (interações com outras realidades constitucionais)
que visam o desenvolvimento de relações construtivas, uma vez que, por exemplo,
prevê no parágrafo único do artigo 4º que

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas


relações internacionais pelos seguintes princípios:
[...]
Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a
integração econômica, política, social e cultural dos povos da América
Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de
nações. (BRASIL, 1998)

Esta previsão está marcada pelo fluxo de interação construtivo,


especificamente da realidade social latino-americana, enquanto “pontes de
transição” para aprendizados e crescimentos recíprocos, considerando a

5
Disposições constitucionais, como, por exemplo, as previsões dos artigos 1º, 3º, 6º, 7º, 170 e 225, que buscam assegurar
a legitimidade no momento de aquisição e exercício do poder, bem como assegurar a legalidade constitucional e a segurança
jurídica, ainda, a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2018, p. 273-
274).
348

observância e respeito às Constituições nacionais em inter-relação a fim de


compreender a temporalidade da realidade de cada uma.
Ademais,

As constituições (e, portanto, também sempre determinada


constituição) cumprem determinados papéis (funções) no contexto de
cada ordem estatal, mas também e cada vez mais no plano das relações
dos Estados constitucionais entre si. (SARLET; MARINONI; MITIDIERO,
2017, p. 82).

Em mesmo sentido,

A constituição (e suas normas) situa-se num contexto mais amplo,


estando em contato com outras fontes de produção do direito, portanto,
com outros sistemas normativos. Assim, embora a constituição seja a
fonte primária e referencial do direito na órbita interna dos Estados, a
própria constituição não representa uma ordem hermética e necessita
dialogar (direta ou indiretamente) com outras ordens jurídicas. (SARLET;
MARINONI; MITIDIERO, 2017, p. 219)

Desta forma, cada Constituição nacional pode dialogar com outras


Constituições Nacionais, o que demonstra a possibilidade de presença das
relações de intercâmbios construtivos entre Estados Constitucionais. Deste modo,
o contido no artigo 5º, §2º da Constituição de 19886, pode ser compreendido como
aporte para a expansividade das previsões constitucionais de direitos para além do
inicialmente previsto, considerando as variações histórico-sociais constitucionais
internas e relacionais no transcorrer do tempo (SARLET; MARINONI; MITIDIERO,
2018, p. 326-327), assim como o acima mencionado parágrafo único do artigo 4º
da Constituição de 1988.
Nesse sentido, é importante reconhecer que o texto constitucional pode ser
considerado um texto com olhar expansivo, aberto a aprendizados e garantidor de
respeito aos direitos nele estabelecidos, que reconhece a impossibilidade de
fechamento hermético e de visão de segurança jurídica imutável.
Assim, as inter-relações são desejáveis diante da potencialização de
aprendizado que possibilitam as estruturas das Constituições frente às realidades
sociais que cada uma comporta. Para tanto, deve-se, contudo, compreender ainda
que o respeito presente no fluxo de informações está pautado na atribuição de

6
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes: (...) § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. (BRASIL,
1988)
349

sentido enquanto ato hermenêutico baseado em compreensão do texto


constitucional para adequar a informação apreendia à constitucionalidade.
Nesse sentido, pode-se valer do escrito por Streck em relação à resposta
constitucionalmente adequada, uma vez que

A decisão (resposta) estará adequada na medida em que for


respeitada, em maior grau, a autonomia do direito (que se pressupõe
produzido democraticamente), evitada a discricionariedade (além da
abolição de qualquer atitude arbitrária) e respeitada a coerência e a
integridade do direito, a partir de uma detalhada fundamentação.
(STRECK, 2011, p. 620)

Isto é, a inter-relação enquanto momento de presença de “pontes de


transição” possibilitará o fluxo informacional para o intercâmbio de aprendizados
entre as racionalidades, aprendizados que devem estar em conformidade com a
constitucionalidade do receptor, isto é, uma relação democrático-constitucional,
uma vez que cada Constituição Nacional é a base originária e o aporte final que
exige consonância com resultado último do aprendizado, para que não haja a
sobreposição constitucional, mas sim a interação.
Deste modo, a perspectiva transconstitucional que proporciona inter-
relações entre Constituições, enquanto promoção de “pontes de transição” de
fluxos de racionalidades transversais representa a possibilidade dialógica de
informações construtivas para o aprendizado recíproco constante, como forma de
potencializar as realidades constitucionais, com respeito, sempre, as
particularidades de cada Constituição em interação, enquanto caminho de
fortalecimento das inter-relações constitucionais para um concreto entrelaçar de
fontes.
Nesse sentido, cumpre observar que “o que se exige na sociedade
mundial do presente é a promoção da inclusão: a redução do crescimento e do
setor de exclusão” (NEVES, 2009, p. 292), isto é, visa-se extinguir qualquer
presença de processos alienantes entre as Constituições em diálogo a fim de
promover o intercâmbio de experiências construtivas, razão pela qual esta
conjuntura importa olhar e perceber o outro (Constituição outra) como central na
sua estrutura existente.
Portanto, as inter-relações devem ser expressão de reciprocidade e não de
sobreposição entre Constituições, uma vez que o caminho é a interação reflexiva,
com acesso as informações construtivas e reciprocidade no aprendizado dos
conteúdos aliado ao respeito à primazia da outra Constituição na estrutura da sua
350

realidade, processo que compreende a auto-observação e a observação da


Constituição com a qual está em relação para efetivo diálogo constitucional
(NEVES, 2009).
Nesse sentido,

Há reconstrução de sentido, que envolve uma certa


desconstrução: tanto conteúdos de sentido do “outro” são desarticulados
(falsificados!) e reticulados internamente, quanto conteúdos de sentido
originários da própria ordem são desarticulados (falsificados!) e
articulados em face da introdução do “outro”. (NEVES, 2009, p. 118)

Desta forma, importante não olvidar a necessária presença de respeito nas


inter-relações para garantia de segurança dos elementos distintos de cada
Constituição que representam seu caráter identitário – suas características únicas
que as tornam relevantes por assim serem – elementos que poderão representar,
justamente, o ponto de contribuição e aprendizado, uma vez que se trata de
intercâmbio comunicacional e não do estabelecimento de uma ordem jurídica
superior (NEVES, 2009).
As inter-relações não devem provocar sobreposição de uma Constituição
sobre outra, ao revés, as conexões visam interações construtivas, que
proporcionem elementos para o desenvolvimento, pautadas em respeito mútuo,
em compreensão da cada realidade constitucional enquanto vivência para
evolução jurídica pautada na alteridade (NEVES, 2009).
Deste modo, as Constituições podem ser compreendidas como resultado de
experiências relacionais e aprimoradas que continuam em processo de relação de
aprendizado para a constante construção/evolução dos paradigmas que a
fundamentam em cada época.
Assim, as interações entre Constituições devem representar meio de
fortalecimento para possibilitar nas interações entre as Constituições a visão
destas como sentido e enquanto centro de seu sistema jurídico próprio que deve
ser reconhecido e respeitado, razão pela qual por meio do olhar ampliativo nas
inter-relações entre Constituições e dos processos comunicacionais é possível a
construção das “pontes de transição” para o compartilhamento informacional das
experiências a serem aprendidas.
Portanto, a perspectiva é que toda Constituição interaja com outra
Constituição para o trilhar da pontencialização enquanto relação de aceitação
mútua para aprendizados e trocas de experiências construtivas - cada Constituição
351

autônoma processa suas racionalidades particulares e divide as experiências em


relação de construção para expandir as interações enquanto processos
participativos da formação da comunicação informacional para a vivência do
aprendizado entre as experiências das Constituições diversas (racionalidades
diversas).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente escrito buscou compreender o transconstitucionalismo e as


“pontes de transição” entre racionalidades transversais de acordo com o
desenvolvido por Marcelo Neves. Assim, este ao representar o estabelecimento do
estudo das possibilidades de relações entre ordens distintas, dá início à promoção
de um caminho de olhares para interações construtivas nas inter-relações entre
Constituições.
As interligações (sociedade em rede) produzidas na sociedade mundial
hodierna em razão do desenvolvimento tecnológico e dos processos
comunicacionais amplos e que possibilitam ultrapassar limites territoriais são
necessárias e contribuem para a efetividade da ocorrência das “pontes de
transição” enquanto intercâmbios experienciais de aprendizado. Isto é, os
processos informacionais servem como ferramenta de construção e compreensão
mútua entre as Constituições em inter-relação e podem promover diálogos
Constitucionais construtivos.
Deste modo, conforme abordagem realizada compreende-se que no
momento das interações deve haver atenção para que não ocorra a sobreposição
de uma Constituição sobre outra Constituição, ou seja, nas inter-relações é
necessária a presença de elementos como compreensão e respeito frente às
especificidades de cada Constituição, para que, até mesmo como liberdade as
Constituições em relação, possam se influenciar e aprender uma com as outras a
partir dos pontos de interesse que cada qual vislumbra na outra, o que só é possível
se houver atenção e comprometimento na relação para que seja construtiva
enquanto potencialização recíproca do desenvolvimento das racionalidades de
cada Constituição.
Assim, partindo-se desta perspectiva é possível verificar que nas interações
entre Constituições em relação surgem novos caminhos de potencialização das
352

“pontes de transição” para compartilhamento das racionalidades que cada uma já


desenvolveu e para que a partir disso possam expandir suas racionalidades,
gerando aprendizado pela autoafirmação dos processos constitucionais
respectivos.
Com isto, visa-se o olhar ampliativo nos processos comunicativos
informacionais de formação e desenvolvimento das potencialidades de cada
Constituição. Enquanto não houver o reconhecimento da outra Constituição em
relação, haverá a sobreposição constitucional que mitigará a condição participativa
na relação para a construção de aprendizados.
Portanto, o desejado é ultrapassar as amarras imaginárias das barreiras
territoriais por meio dos processos comunicacionais e atingir a vivência das inter-
relações entre Constituições pautadas no respeito e reconhecimento de cada
ordem constitucional, como aporte de realização e fortalecimento de caminhos,
experiências e de aprendizado entre as racionalidades transversais de cada
Constituição em interação.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Acesso em 26 de fevereiro de 2019.
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar,
2007.
LASH, Scott. Crítica de la información. Buenos Aires: Amorrortu, 2005.
MALISKA, Marcos Augusto. Estado e Século XXI: a integração supranacional
sob a ótica do Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martin
Fontes, 2009.
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso
de Direito Constitucional. 7. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso
de Direito Constitucional. 7. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2017. (E-BOOK)

STRECK. Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, hermenêutica e teorias


discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva. 2011

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