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Jogos de Conquista - Lovely Loser - Nodrm

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Copyright © 2024 Lovely Loser

JOGOS DE CONQUISTA
1ª Edição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser


reproduzida ou transmitida por qualquer forma, meios eletrônicos ou
mecânicos sem consentimento e autorização por escrito do autor/editor.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos


descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
a realidade é mera coincidência. Nenhuma parte deste livro pode ser
utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes – tangíveis ou
intangíveis – sem prévia autorização da autora. A violação dos direitos
autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98, punido pelo artigo 184 do
Código Penal.

TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA


LÍNGUA PORTUGUESA.
sumário
sumário
nota da autora
dedicatória
epígrafe
prólogo
01
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epílogo
agradecimentos
nota da autora
Este livro contém palavrões, cenas explícitas de sexo, menção de
bebidas alcoólicas e agressão física e verbal. Caso resolva seguir em frente,
desejo uma ótima leitura.
dedicatória
para todos que estão passando por um coração partido e acreditam que
é o fim do mundo
epígrafe

“É loucura odiar todas as rosas porque uma te espetou.”

— O pequeno príncipe.
prólogo

ESTOU SENDO TRAÍDA. É tudo o que penso enquanto dirijo até uma
das fraternidades do campus. Recebi uma foto de um número desconhecido
há cerca de vinte minutos, de um casal se beijando em uma jacuzzi.
Demorou para que eu percebesse que o cara de costas na imagem tremida
era, na verdade, meu namorado.

O reconheci pelo cordão que dei para ele no verão passado, no nosso
aniversário de namoro. Isso só aumenta minha raiva — como se fosse
possível. Meu queixo treme e meus dentes rangem quando travo o maxilar,
os deslizando uns contra os outros. Eu poderia jogar o carro em cima de
uma das latas de lixo na rua, imaginando o rosto de Logan nelas. Como
aquele babaca teve coragem?

Estou em Crystalville há apenas três semanas. Não sou daqui, nem ele.
Logan veio primeiro na promessa que deixaria tudo pronto para nós. Eu só
não imaginei que esse nós envolvia uma outra mulher e um belo par de
chifres enfeitando minha testa. Planejamos esse momento por anos. Ele iria
conseguir a bolsa por conta do futebol americano, enquanto eu teria ajuda
dos meus pais para pagar o resto da mensalidade que não foi abatido no
desconto que consegui para estudar na CVU. Tudo uma grande ilusão.

— Scar, você tá indo muito depressa — Cam, minha amiga, resmunga.


Só tive tempo de ligar para ela antes que eu resolvesse fazer algo estúpido,
como quebrar o carro de Logan.

Cameron e eu nos tornamos amigas em uma das eletivas que tínhamos


em comum. Gostei dela logo de cara, graças ao seu jeito engraçado. Além
disso, o fato de morarmos no mesmo alojamento feminino tornou tudo
ainda mais fácil. Então, unimos o útil ao agradável; eu precisava me
enturmar e ela adorava utilizar seus dons sociáveis para criar novas
conexões.

— Scar! — Cam repreende quando eu invado o quintal com a lata


velha do meu ex. As pessoas espalhadas pela grama saem da frente antes
que eu passe por cima delas como um strike. — Ai, meu Deus. Você tá
maluca!

Paro o carro de forma abrupta, fazendo os pneus guincharem.

No momento, não sou uma pessoa racional.

Sou uma mulher traída.

Desço do carro e ignoro Cam, batendo a porta com força, o que atrai
alguns olhares em minha direção. A música continua a todo vapor lá dentro,
mas alguns estudantes já saíram para o deck de madeira para ver o que está
acontecendo. Começo a marchar em direção aos fundos.

Já estava pronta para dormir quando recebi a foto e só tive tempo de


calçar os chinelos forrados de lã. Estou usando uma camisola de seda
branca e o cardigan rosa claro, que arranquei depressa de um dos cabides do
meu armário, antes de pegar as chaves do carro e dirigir até aqui.

Atravesso o quintal cheio de universitários e copos de plástico


espalhados pelo gramado. A música está tão alta que meus ouvidos doem
assim que alcanço à área de lazer. Estive aqui apenas uma vez, quando
Logan me convidou para conhecer a casa após sua mudança. Não esqueci
de onde a jacuzzi fica. Ele até fez uma piadinha no dia dizendo que, um dia,
poderíamos nadar pelados ali.

Que engraçado.

A piscina está cheia de gente. A jacuzzi, a alguns metros de distância,


é ocupada por cinco pessoas. Identifico Logan pelos cabelos loiros. Ao seu
redor, há três garotas e outro cara que não reconheço.

— Cheguei. — A voz ofegante de Cameron alcança meus ouvidos


sobre o burburinho e a música alta. — Você podia ter esperado. Saiu do
carro feito um furacão e tive que lidar com alguns idiotas que estavam
reclamando por você quase tê-los atropelado.

— Ele tá na jacuzzi — resmungo, os olhos fixos na nuca do babaca.

— Que canalha. O que você vai fazer?

— Fazê-lo se arrepender.

Ignoro os murmúrios de Cam me alertando para não fazer nenhuma


burrada. Tiro um dos meus chinelos e me aproximo para jogá-lo na cabeça
de Logan. Ele se vira imediatamente e seus olhos se arregalam quando me
vê.

— Scar. — Logan se levanta, em choque. — Eu posso explicar…

— Enfia sua explicação no rabo!

Agora, estamos atraindo atenção. Todos param o que estão fazendo


para nos observar.

— Vamos para outro lugar. Não é hora de uma cena.

Logan odeia esse tipo de coisa. Sempre foi alguém muito reservado e
contido, exceto para beijar mulheres em jacuzzi, pelo visto.

— Estou bem aqui. Não vou a lugar nenhum.

— Por favor — implora. — Me dá uma chance de explicar.

— Não quero ouvir suas desculpas esfarrapadas. Continue se


divertindo. Você está morto para mim.

Com isso, começo a andar para longe. Logan tenta segurar meu
cotovelo, mas, num impulso, me viro e acerto seu maxilar com um soco.
Uma dor lancinante me atinge, e eu mordo o lábio inferior com força. Acho
que torci o pulso.

— Vem, vamos procurar gelo. — Cameron coloca a mão em meus


ombros.
Deixo Logan para trás e ignoro os olhares enquanto eu e Cam
atravessamos o lugar.

— Cuidem da vida de vocês! — minha amiga repreende, alto o


suficiente para que um grupo de universitários mude a direção do olhar de
forma sincronizada. Um cara murmura um “loucas” atrás de nós, mas
ignoramos. — Onde fica a droga da cozinha?

Sinalizo o caminho, e ela empurra os corpos à nossa frente para abrir


espaço. Eu poderia rir com a cena se meus olhos não estivessem
lacrimejando tamanha dor que sinto. Cameron, de um metro e meio e
inofensiva, me guiando pela selva de universitários bêbados.

A cozinha está parcialmente vazia, para nossa surpresa.

No entanto, a geladeira está bloqueada por um corpo imenso. Observo


a figura esguia apoiada nas portas duplas de aço inoxidável. Seus olhos
escuros me analisam quando paro à sua frente, e sinto meu corpo
estremecer. Acho que é um dos caras mais bonitos que já vi em toda minha
vida. O cabelo preto feito nanquim se contrasta com a pele branca. O
maxilar quadrado e bem delineado casa com os lábios em formato de arco.
Todo resto é nada menos que injusto; um porte físico impressionante.
Ombros largos e braços musculosos, cruzados em frente ao peito.

— Dá licença. Preciso de um pouco de gelo — falo, vez que Cameron


fica estática.

Parece que não sou a única a perceber a atmosfera mudar ao redor


desse cara. É quase como se o mundo precisasse se ajustar à presença dele.

— O que aconteceu? — Ele indica meu pulso direito com o queixo.


— Soquei o rosto do meu namorado depois de descobrir que ele estava
me traindo. Bom, agora ex-namorado — me corrijo.

Não há a menor chance de eu e Logan continuarmos tendo um


relacionamento após sua traição. Posso até ser benevolente em muitos
aspectos da minha vida e acreditar no perdão, mas ser apunhalada pelas
costas não faz parte da lista de coisas que merecem segundas chances.
O estranho me lança um olhar indecifrável e então abre a geladeira.
Com um saco de ervilhas congeladas nas mãos, ele faz menção de segurar
meu braço. Por algum motivo, fico parada, permitindo-o que me toque.

Delicadamente, ele segura meu pulso entre as mãos grandes e


pressiona o pacote de ervilhas contra o local. Um gemido involuntário
escapa dos meus lábios.

— Isso tá muito gelado.

— Achei que fosse o intuito — responde.

Ele sinaliza para uma cadeira atrás de mim, que eu não havia
percebido, e me sento. Cameron limpa a garganta e aponta com o polegar
sobre o ombro.

— Acho que vou ao banheiro.

Antes que eu possa impedi-la, ela some cômodo afora, deixando-nos


“a sós”.

O estranho se inclina contra a bancada, muito próximo de mim.

— Quer me contar a história?

— De como fui traída? — Franzo o cenho. — Não, obrigada. A noite


de hoje já está sendo traumatizante o suficiente.

— Você se livrou de um traidor. Tenta pensar pelo lado bom.

O tom de voz dele é tão calmo quanto sua expressão. Os olhos, sérios,
revelam uma mistura de cores nas íris. O cinza ônix tem nuances de um
azul pálido, como um prelúdio de uma tempestade.

— Se quiser, posso dar uma surra nele. Outra — acrescenta, diante do


silêncio. — Sou um pouco forte.

O estranho flexiona os bíceps, demonstrando o volume do seu braço.


Sem sombra de dúvidas ele poderia acabar com Logan. E, com um pouco
forte, ele foi modesto. Seu corpo é gigante. Quando percebo que estou
encarando por tempo demais, limpo a garganta.

— Acho que preciso de uma bebida.

— Vinho ou cerveja?

— Tequila.

Posso jurar que uma sombra de sorriso atravessa seu rosto, mas talvez
seja só minha imaginação fértil. Há uma garrafa de tequila em cima do
balcão, junto a outras inúmeras bebidas. Depois de despejar um pouco em
um copo plástico, ele a estende em minha direção. Não hesito em beber
como se fosse água. Um filete escorre pelo meu queixo e o seco com a
manga do cardigan, deixando de lado os bons modos.

— Então, o que tá fazendo aqui isolado num canto? — Mantenho o


braço direito em repouso sobre o colo. Agora, a dor está mais suportável.

— Não gosto de festas — admite. Talvez tenha percebido a confusão


no meu olhar, porque acrescenta: — Não participo por vontade própria, só
quando necessário.

— E quando é necessário?

— Estou de olho em alguns amigos. Quando eles começam a sair do


controle, sou o responsável por puxar as rédeas. Além do mais, fui
escolhido como o motorista da noite. Nada de álcool para mim.

— Então está de babá — contemplo, em voz alta.

— É. Estou acostumado.

Olho para baixo, quebrando o contato visual. Meus olhos se fixam na


pulseira que Logan me deu há muito tempo. É uma tira de couro, com uma
pequena pedra repartida em seu centro. Sinto um nó se formar em minha
garganta e, de repente, como uma avalanche, o peso dos últimos
acontecimentos recai sobre mim.
Acho que eu estava concentrada demais na raiva para sentir qualquer
outra coisa. Agora, no entanto, a mágoa me abate. Meu lábio inferior
começa a tremer e, antes que eu possa conter, lágrimas estão rolando por
minhas bochechas.

— Que merda. — Me odeio por chorar na frente de um estranho, no


meio de uma festa que, a propósito, meu ex-namorado traidor ainda deve
estar aproveitando. — Preciso sair daqui.

— Minha picape está lá fora. Pode se sentar na caçamba se quiser.


Sempre deixo alguns cobertores guardados nela.

Pisco, tentando enxergá-lo através dos olhos embaçados. Desesperada,


assinto. Preciso sair daqui o mais rápido possível. Percebo que estou sem
um dos meus chinelos quando me levanto da cadeira. Então, sem dignidade,
começo a seguir o cara que sequer sei o nome para fora, um dos pés
pinicando contra a grama e o saco de ervilhas apoiado no braço.

Não sei como essa noite poderia terminar pior.


01

OBSERVO ELA HESITAR antes de subir na caçamba. Estendo a mão e,


devagar, seus dedos deslizam contra os meus. A pele macia é como uma
massagem sobre os meus calos. Eu a puxo, e a ruiva solta um suspiro alto,
talvez surpresa. Agora, estamos os dois em pé, com uma pilha de
travesseiros e cobertores estendidos sobre nós.

Quando quero pensar, dirijo para alguma colina da cidade e fico


deitado, sozinho e em silêncio nesta parte da picape. Me certifiquei de que
fosse aconchegante o suficiente para isso. O carro está estacionado no fim
da rua, em uma fileira de automóveis. Daqui, o som da fraternidade soa
distante e abafado, o que é um alívio para mim.

Me surpreendo quando ela tira o único chinelo que usa — um fato


curioso — e deita sobre os cobertores, olhando para cima. A garota não está
mais chorando, mas, ainda assim, o rosto está manchado pelas lágrimas.
Fungando, gesticula para mim.

— Vai ficar parado aí?

Me deito ao seu lado, apoiando a cabeça nos travesseiros. Agora, meus


olhos também estão fixos ao céu estrelado. Crystalville é conhecida pela
baixa taxa de poluição, o que facilita observar os astros. A escuridão está
incrustada de pontos de luz.

— No que está pensando?

Me viro para encará-la. Acho que nunca vi um olhar tão expressivo


antes. Os olhos, grandes como dois rubis, são de um tom de verde diferente
de qualquer outro, combinando com o cabelo ruivo avermelhado. Continuo
minha análise. Seu rosto é cheio de sardas e elas correm abaixo de seus
olhos, ao longo da ponte do nariz e em uma parte das bochechas. Não são
muitas, mas uma quantidade considerável, que faz você perder algum
tempo tentando contá-las.

Linda, do tipo que faz homens quererem escrever poesia ruim e cantar
serenatas sob peitoris de janelas.

Cruzo os braços atrás da cabeça, mudando a direção do olhar.

— Um pensamento em troca de outro.

— Justo. — Há uma pausa. Ela suspira baixinho. — Estou pensando


que talvez eu deva me alistar no exército e raspar a cabeça, assim como a
Katy Perry naquele videoclipe.

Isso me faz voltar a olhá-la, intrigado. Seu corpo está virado em minha
direção, e ela ainda segura o pulso machucado e o saco de ervilhas que, a
esta altura, já descongelou. Seus olhos verdes piscam inocentemente, os
cílios claros e longos roçando no topo das bochechas no processo.

— Que foi? Meu relacionamento de três anos terminou da pior forma


possível. Tenho o direito de querer cometer uma loucura ou duas.

Arqueio as sobrancelhas, surpreso pelo relacionamento com o idiota


ter ido tão longe e pelo que sua última frase faz com minha imaginação. Se
as circunstâncias fossem diferentes, eu poderia propor a ela algumas
loucuras interessantes.

— Estou pensando que eu gostaria de ter te conhecido em outro


momento.

Isso faz seu cenho franzir.

— Sem pijamas e o rosto inchado de choro?

— Sem as circunstâncias atuais. Não que sua aparência importe.

— Me sinto melhor agora. — Identifico o sarcasmo no tom de voz. —


Sei que estou uma bagunça, mas não é minha culpa. A primeira coisa que
fiz quando recebi a foto foi saltar da cama e procurar as chaves do carro.
— Foto?

— Sim. Me mandaram uma foto dele beijando alguém. E adivinha só:


não era eu.

— Que jeito prático de descobrir uma traição.

— Viva a tecnologia! — diz, sem ânimo.

Acho que ela nem percebe que falou sobre algo que disse que não
queria conversar. Espero em silêncio que se sinta confortável o suficiente
para continuar o assunto.

— Sabe, às vezes ele era um péssimo namorado — admite, com os


olhos presos no céu. Do ângulo que estou, consigo ver a careta deformando
os traços bonitos de seu rosto e melancolia singela nos olhos verdes. —
Acho que ele não gostava de quem eu sou.

— Por que acha isso?

— Ele pedia para eu rir mais baixo e, quando íamos jantar com sua
família, fazia eu cobrir as sardas com maquiagem. — Um riso fraco escapa
de seus lábios. — Meu Deus. Como eu sou burra! Os sinais estavam todos
lá.

— Não é culpa sua. Acho que pessoas apaixonadas, muitas vezes, não
querem ver o óbvio.

Ela bufa, virando para mim. Agora, pelo menos, há um pouco de


diversão em seu rosto.

— É, você tem razão. Já pensou em se tornar psicólogo? Eu teria


sessões com você. — Gesticula com a mão ao nosso redor. — Bem aqui,
nessa picape, sob as estrelas.

— Não é minha praia.

— E o que é sua praia? — A ruiva semicerra os olhos. — Espera. Já


sei. — Um sorriso se repuxa em sua boca em formato de coração. — Você é
um daqueles caras obcecados em bater a meta de proteínas e carboidratos
durante o dia. Provavelmente, está no curso de Educação Física e escuta
bastante Eminem.

— Nossa, que análise mais estereotipada.

Sinto o canto esquerdo da minha boca se erguer em um sorriso.

— Não posso ter errado tudo.

— Bom, você acertou sobre a meta de proteínas e carboidratos. Mas o


restante está completamente equivocado.

Percebo que ela está pronta para me dar outra de suas respostas
espertas, mas o toque de um celular atravessa o ambiente. Ela tira o
aparelho do bolso do cardigan e apoia o telefone contra a orelha.

— Ainda estou aqui. — Uma longa pausa e alguns ruídos de uma voz
incompreensível. — Ok. Te encontro do lado de fora. Tchau.

Quando desliga, ela me encara.

— Bom, essa é minha deixa.

Me coloco de pé assim que ela faz o mesmo. Agora, estamos um de


frente para o outro. A ruiva parece meio sem graça, olhando para um dos
pés descalços.

— Obrigada por… isso. Adeus. — A ruiva começa a fazer menção de


pular para fora da caçamba, mas para, olhando sobre o ombro. — Você é
um cara legal — acrescenta, inesperadamente.

— De nada. E obrigado. Você também é legal.

Ela sorri sem mostrar os dentes e hesita antes de descer do automóvel,


mas acaba saltando segundos depois. Depois de um último olhar para trás,
fecha o cardigan ao redor de si e começa a andar para longe.

Percebo duas coisas quando ela some do meu campo de visão: não
perguntei seu nome e, provavelmente, nunca mais vamos nos ver.
O barulho do vômito preenche toda a sala enquanto assisto ao jogo dos
Lakers na televisão. Meu prato cheio de torradas, bacon e ovos parece
menos atrativo com a trilha sonora de Lionel vomitando no fundo. Aumento
o volume da TV, tentando não pensar sobre isso.

— Que nojo — Hunter, ao meu lado, diz.

A fraternidade está surpreendentemente silenciosa esta manhã, graças


ao fato de que meus amigos estão de ressaca. Moro com dois caras, que
também são meus colegas de equipe, e Hunter às vezes passa a noite aqui, o
que significa que tenho que assumir o papel de líder dentro e fora da arena
de gelo. Ser o capitão da equipe de hóquei da CVU é como ser mãe de
todos eles em tempo integral.

— Vocês não deviam ter bebido tanto — falo, quando termino de


mastigar uma torrada.

— Estou bem — Ferrari resmunga.

Basta olhar para Hunter para saber que é mentira. Seu rosto está
pálido, e ele parece estar se esforçando muito para manter o café da manhã
no estômago. Outro arquejo de Lionel nos atinge, e Ferrari murmura um
"droga" antes de correr em direção ao banheiro do segundo andar.

Isso me irrita para caralho, porque avisei que não extrapolassem na


noite passada. Quase toda sexta-feira há festas pelo campus. Ontem, a
equipe de futebol americano se reuniu na própria fraternidade e fizeram
uma grande comemoração regada de bebidas e mulheres, a composição
perfeita para o caos. Como meus amigos estavam lá, não pude deixar de
monitorá-los, já que o juízo é inexistente entre eles. Além disso, depois de
mim, esses caras são os melhores jogadores que temos na equipe.

Acho que o treinador Wilson teria um derrame se escutasse Hunter e


Lionel vomitando. Dan está dormindo na ilha da cozinha. Cutuco suas
costelas quando passo por ele, a fim de colocar o prato na lava-louça. No
entanto, ele mal se move.

— A porra do barulho do vômito do Lionel me fez vomitar. — A


reclamação de Hunter atinge meus ouvidos, enquanto limpo a bancada da
cozinha.

— Vocês dois são patéticos.

— Eu só estava aproveitando a vida. É isso que pessoas de vinte e


poucos anos fazem. Aproveitam a vida. Às vezes você parece minha vó,
Evan.

— Não preciso aproveitar a vida ficando bêbado ao ponto de passar


mal na manhã seguinte.

— Tá vendo? — Ferrari balança a cabeça. — Exatamente o que minha


avó diria.

O ignoro, terminando de limpar a bagunça do café da manhã. Hunter


começa a chacoalhar Dan pelo ombro, que acorda em um sobressalto,
disparando os olhos ao redor como se não soubesse onde está. Ontem,
quando chegamos de madrugada, ele desabou na ilha e dormiu feito pedra.

Minha gentileza se limita a dirigir para meus amigos bêbados. Não


carregaria ninguém até o quarto.

— Parece que tem algo martelando dentro da minha cabeça. — Dan se


levanta. — Vou dormir pelo restante do dia. Por favor, não me incomodem
ou façam muito barulho.

E, com isso, ele sobe as escadas, deixando Hunter e eu sozinhos. Meu


melhor amigo me olha despretensiosamente.

— Você sumiu na festa. Tava com alguém?

— Acho que esse tipo de coisa não é da sua conta.

— Qual é, cara. A gente se conhece desde que éramos pirralhos,


crescemos juntos e tal. Não mereço saber algo banal como isso?
— Não, considerando que não tinha ninguém. — Uma meia verdade.

Não costumo falar sobre minha vida íntima, nem compartilho detalhes
de sexo, algo comum entre a maioria dos caras do time. Hunter sempre quer
me dar detalhes de suas noites de diversão, mas dispenso. Não tenho
interesse em saber sobre esse tipo de coisa.

— Hum. Então tá. — Dá para ver que ele não está nada convencido,
porém, não me importo. — Vai aparecer no evento beneficente da CVU
amanhã?

Amanhã, algumas alunas da CVU se organizaram para arrecadar


dinheiro para uma causa nobre, lavando carros por dez dólares. Tenho
ciência de que a maioria dos caras só estão interessados em ir para flertar e
ganhar pontos com o público feminino. Talvez Hunter se encaixe nesse
primeiro grupo.

— Não, obrigado.

— A Emery não vai estar lá? Achei que você apoiava sua irmãzinha.

No mesmo momento em que ele a cita, meu celular começa a tocar no


bolso da calça, e sei que é Emery, vez que é a única ligação que deixo fora
do silencioso. Vou para a sala, após atender, apoiando o telefone contra a
orelha.

— Você vai amanhã? — é a primeira coisa que questiona, em forma de


saudações.

— É necessário?

— Seria um favor. Eu e as meninas vamos arrecadar dinheiro para


comprar materiais novos para crianças carentes. Por favor, seria bom que
você fosse. E convencesse o time a ir também…

Solto um suspiro. Minha irmã é o que gosto de chamar de um espírito


rebelde e altruísta. Por trás da fachada de aço, há um enorme coração mole.
Como aluna de Direito, Emy sempre está envolvida nessas questões sociais.
Nunca deixo ela na mão e vice-versa.
— Tudo bem, mas não use roupas transparentes. Os caras podem ser
nojentos.

— Sei disso, agora pode desligar o lado de irmão superprotetor.


Preciso ir, beijos.

Antes que eu possa dizer algo, minha irmã encerra a chamada. Hunter
está debruçado na ilha, observando cada movimento meu. Quando olho
para ele, desvia o olhar e finge que não estava xeretando minha conversa.

— Nós vamos, e vê se convence o máximo de pessoas a aparecer por


lá.

É o que digo antes de subir para meu próprio quarto.


02

ESTOU TERMINANDO DE assoar o nariz, quando Viper entra em nosso


dormitório. Ela para por um momento e me olha como se eu fosse uma
anomalia, antes de franzir o cenho e ir para o seu lado do quarto. Ignoro o
rock que explode dos seus fones de ouvidos, e foco em terminar de recolher
meus próprios pedaços.

Desde que acordei, estou chorando compulsivamente. O que é


patético, eu sei. Mas não dá para evitar, e é tudo culpa do Logan. Pelo
menos, meu pulso parece melhor depois de alguns analgésicos.

Olho ao redor, fungando. O quarto é uma grande dualidade. O lado de


Viper está pintado de preto, a cama é forrada com um lençol da mesma cor,
e há pôsteres do Elvis Presley e Metallica grudados na parede, próximo de
um suporte que sustenta a guitarra vermelha. Uma estante de discos de vinil
ocupa quase todo espaço do seu território.

O meu lado, no entanto, têm as paredes verde musgo. Há plantas


espalhadas na cômoda, assim como velas e difusores onde coloco óleos
essenciais. Viper sempre reclama dos cheiros, então tento fazer
aromaterapia quando ela está fora.

Não pensei muito quando decidi me mudar para o campus da CVU e


dividir o dormitório com alguém, menos ainda que as personalidades seriam
completamente diferentes. Nossa convivência se resume a Viper tirando
minhas pedras da lua da bancada do banheiro, e eu tropeçando nos fios de
sua guitarra elétrica.

— Você tá nojenta. — O comentário me faz encará-la.

Viper retira os fones e me olha com a antipatia de sempre.


— É o que acontece quando se descobre que seu namorado te traiu
após vocês fazerem mil planos para o futuro.

Isso parece calá-la. O silêncio se arrasta enquanto eu assoo o nariz


outra vez, tirando mais um lenço da caixa. É a terceira que abro apenas
hoje.

— E você acha que ele merece tudo isso?

Nunca tivemos uma conversa normal desde que cheguei. Essa foi a
maior quantidade de palavras que já trocamos sem que ela demonstrasse o
desprezo habitual.

— O que eu deveria fazer? — questiono rispidamente, mas isso não


parece abalá-la.

— Sei lá. Ocupar a mente com outras coisas. O idiota apenas revelou a
verdadeira natureza e te poupou de continuar convivendo com as intenções
traiçoeiras dele. Agora, o resto é com você. Vai permitir que ele te atinja e
faça com que perca mais tempo do que já perdeu se envolvendo com ele, ou
vai recomeçar deste ponto e ganhar tempo para você mesma? São as únicas
opções.

Me calo e minha colega de quarto coloca os fones outra vez, como se a


pequena conversa nunca tivesse acontecido. Não percebi, mas parei de
chorar nos últimos momentos. Olho para a cama, há lenços espalhados por
toda parte e pacotes de biscoitos vazios.

Sentindo constrangimento, me levanto e recolho toda a sujeira,


jogando-a no lixo. Depois, vou para o banheiro e me assusto com o reflexo.
Meu cabelo está bagunçado, as madeixas todas emaranhadas numa
confusão laranja avermelhada. Os olhos inchados e os lábios ressecados.

Em resumo, estou um caco.

Pego a toalha e me arrasto para debaixo do chuveiro. Ao sair, me sinto


melhor. Escolho um suéter azul-cobalto no armário e visto uma calça de
moletom. Para ser honesta, não estou com vontade de sair de casa, mas
preciso.
Me obrigo a fazer uma hora de esteira na academia do campus antes de
retornar para o alojamento. É um começo.

Batidas altas na porta interrompem a voz do Ryan Gosling em O


Diário de Uma Paixão. Soltando um suspiro irritado, pauso o filme no
notebook e saio debaixo das cobertas. Assim que giro a maçaneta, congelo.

Logan está em pé diante de mim. O hematoma em seu rosto me faz


encolher. Na verdade, sua presença inteira faz com que eu me retraia. Ele
costumava ser charmoso para mim. Mas, observando-o agora, sem a
barreira da paixão, percebo o quanto é apenas um cara comum.

Não é tão alto, os olhos são castanhos e profundos, e o cabelo loiro


combina com a pele bronzeada. Logan é um cara normal. No entanto, além
da parte física, meu ex-namorado nunca me fez sentir especial, e percebo o
quanto fui tola em aceitar as migalhas que ele me oferecia. Saio do transe
quando a mão dele segura a minha. Por instinto, me desvencilho do toque.

Parece errado agora. É errado.

O olhar magoado não me convence nem um pouco.

— Scar, sei que pisei na bola, mas…

— Não quero escutar o que você tem a dizer — o interrompo, cansada.


— Por favor, apenas me deixe em paz. Não venha até aqui, não me procure,
apenas… não faça nada.

Um músculo em seu maxilar se contrai quando ele ouve as palavras


que despejo. Logan parece ainda mais irritado.

— Isso não acabou, Scarlet.

É tudo o que diz antes que eu feche a porta e a tranque. Espero que ele
a esmurre, mas os passos se afastam do outro lado. Finalmente solto o ar,
percebendo que havia prendido a respiração nos últimos segundos.

Fico com um nó na garganta enquanto me arrasto de volta para a cama.


Não esperava que Logan aparecesse aqui hoje. Na verdade, esperava que
ele não aparecesse nunca mais. Faz uma semana desde que a festa
aconteceu, e tenho me ocupado com outras coisas para não pensar muito no
fim do nosso relacionamento. Ele só havia mandado uma mensagem
durante a semana, que ignorei.

Agora, não consigo mais me concentrar no rosto lindo do Ryan


Gosling na tela.

Suspirando, desligo o notebook e giro na cama. Os domingos são


solitários aqui no alojamento. A maioria das pessoas vai para casa dos pais,
e até mesmo Viper desaparece, por mais que eu não saiba o seu paradeiro.

Meus pais moram em outra cidade, o que é uma droga. Para voltar para
casa, são necessárias sete longas horas de estrada, e para piorar, eu nem
tenho carro.

Então, decido quebrar parcialmente a distância entre nós. Pego o


celular e ligo para minha mãe.

Ela atende no mesmo instante.

— Estava esperando você ligar a semana inteira. Está tudo bem?

O tom de voz apreensivo faz com que eu me sinta culpada.


Geralmente, meus pais e eu fazemos uma chamada de vídeo por semana,
mas acabei me esquivando dessa vez. Falei que estava atolada com as
matérias, porque eles perceberiam em meu rosto que algo está fora do lugar.
E eu não queria admitir em voz alta que havia sido traída. A palavra me dá
ânsia.

— Mais ou menos…

— Logan?
O radar de Lily nunca falha. Na verdade, ela nunca gostou de Logan
ou de sua família. Os pais dele administram um pequeno negócio local, e
minha mãe sempre dizia que eles agiam como se tivessem inventado algo
revolucionário. Apesar disso, eu nunca tive a mesma percepção que ela,
ainda que meu ex-namorado sempre me exibisse como seu troféu. Exceto, é
claro, quando o assunto era minhas sardas.

— É, a gente terminou. — Puxo um fio solto da calça de moletom que


estou usando.

— Sinto muito, querida. O que houve?

— Ele me traiu.

O silêncio que se estende do outro lado da linha me faz encolher.


Quase posso imaginá-la se contendo para não…

— Que desgraçado.

Xingar.

Não consigo segurar a risada quando ouço a voz de meu pai ao fundo,
dizendo:

— Lily, não fale palavrão perto das crianças! Meu Deus.

— Por que eu não posso falar desgraçado que nem a mamãe? Da


última vez, vocês me colocaram de castigo — Josh, meu irmão de treze
anos, grita, se juntando à discussão.

— Está vendo? — Meu pai parece prestes a arrancar os próprios


cabelos. Só pelo tom consigo imaginar a cena.

— Desculpa — mamãe recua. — E, Josh, nunca mais repita essa


palavra se quiser continuar ganhando mesada! — Ouço seus passos e alguns
protestos ao fundo. É caótico. Finalmente, parece que ela se distanciou o
suficiente, pois agora não ouço nenhum ruído além de sua própria
respiração. — Me conta o que aconteceu.
Começo a falar, explicando desde a foto anônima até a parte que dei
um soco no rosto de Logan. Depois, menciono o estranho que me ajudou a
colocar gelo no pulso.

— Nunca gostei dele — admite. — Você vai conseguir algo bem


melhor. Logan atrapalhava seu potencial, sempre foi muito inseguro e
controlador.

Não sei como ela sabe de tudo isso, talvez eu tenha subestimado seus
dons de percepção.

— Não preciso encontrar nada melhor. Não quero conhecer ninguém


nunca mais.

Sua risada divertida me surpreende, e eu franzo o cenho diante das


próximas palavras antes de encerrarmos a chamada.

— Quando você encontrar alguém que te trate da maneira certa, nem


vai lembrar disso. Você vai agradecer ao Logan.
03

FICO PARADA OBSERVANDO a vitrine da lanchonete do campus, e só


percebo que bloqueei a fila quando a funcionária atrás do balcão estala os
dedos na frente do meu rosto. Murmuro um pedido de desculpas e peço um
café preto sem açúcar.

Ultimamente, tenho andado dispersa. Talvez pelo fato de que tudo me


faz lembrar de Logan, como o rocambole de morango na vitrine que
observei por longos minutos. Era o preferido dele. Costumava presenteá-lo
com frequência, numa tentativa de agradá-lo.

Me pergunto se ele se arrependeu de verdade, ou apenas finge.

Bom, não importa mais. Foi o fim. Retiro algumas notas da carteira e
as jogo sobre o balcão antes de pegar meu café. O calor do copo de isopor
aquece minhas palmas.

Olho ao redor, observando as cores do outono. As folhagens das


árvores se tingem em tons amarronzados, espalhando-se pelo chão ao longo
dos paralelepípedos, enquanto os estudantes transitam, a maioria apressados
para a próxima aula.

Solto um suspiro quando me lembro para onde tenho que ir agora.

Logan e eu terminamos uma semana antes das provas. Isso significa


que minhas notas foram vergonhosas e a faculdade me designou um
monitor. Agora, estou a caminho da biblioteca, carregando a lista de
matérias que preciso recuperar.

Estou tão mal-humorada que paro a alguns passos de distância do


prédio antigo para respirar fundo. Não foi isso que imaginei quando me
mudei para Crystalville. Sonhava com tardes românticas. Que eu iria levar
os malditos rocamboles de morango para Logan depois dos treinos de
futebol americano, e ele me acharia a namorada mais incrível do mundo.

Mas, bem, aqui estou eu.

Chuto uma pedra no gramado e suspiro, observando a fachada da


biblioteca. Não quero fazer isso. Não quero um monitor. Olho para a ficha
em minha mão livre e travo o maxilar. Me recusei a lê-la. Enfio o papel de
volta no bolso.

Quando percebo que estou quinze minutos atrasada, forço-me a entrar


na biblioteca. O vento gelado do ar-condicionado me faz agradecer por ter
vestido um moletom da CVU e calça legging preta térmica. Olho ao redor,
mas não faço ideia de quem estou procurando.

Quase todas as mesas estão ocupadas. No entanto, não há ninguém


sozinho. Meu monitor deveria estar esperando por mim. Irritada, saio pelas
portas duplas de vidro. O cheiro horroroso de tabaco me atinge e eu esboço
uma careta, olhando sobre o ombro.

Há alguém encostado na lateral do prédio, fumando. A chama pálida é


visível sob o capuz da figura esguia que cobre todo seu rosto. Do ângulo em
que está, encoberto pelas sombras do telhado, é difícil ver suas feições.
Mas, tenho certeza de que o olhar dele está preso em mim.

— O que foi? — pergunto rispidamente. Sei que o estranho não tem


nada a ver com isso, mas estou tendo um péssimo dia.

— Nada. Só me lembrei de você.

Então, ele tira o capuz, revelando os traços bonitos do rosto e o olhar


sarcástico. É ele. O cara que me ajudou na festa e colocou gelo na minha
mão. Por duas semanas, fiquei pensando sobre aquela noite. Na terceira, me
conformei que nunca mais nos veríamos. Agora, depois de quase um mês,
está bem aqui, parado à minha frente.

Ele traga o cigarro antes de apagá-lo e jogar a guimba numa lixeira.

— Desculpa se fui um pouco… rude.


Ele dá de ombros, não parecendo se importar.

— Dia ruim? — Cruza os braços sobre o peitoral largo.

Seguro o copo de café com firmeza. Seus olhos, daquela cor linda de
ônix, estão fixos em mim.

— É, pode-se dizer que sim. Tô esperando meu monitor, mas parece


que ele não vem.

Um breve silêncio se estende entre nós. As íris me avaliam de cima a


baixo, e não faço ideia do que se passa em sua cabeça neste momento, mas
me sinto exposta.

— Na verdade, sou eu quem estou te esperando há vinte minutos.


Pensei que não vinha mais.

Eu o encaro. Observo seu porte físico, o cabelo preto que cai sobre a
testa e os olhos cinzentos indecifráveis. Monitores são inteligentes. Tento
encontrar o papel no bolso, me atrapalhando um pouco, e leio o nome em
voz alta.

— Evan Sutton.

Sua sobrancelha esquerda se arqueia.

— Vai acreditar se disser que sou eu ou quer conferir minha


identidade? — A pergunta é clara e direta, o tom de voz seco.

Arregalo os olhos, percebendo que acabei de julgá-lo com base em


estereótipos. O fato dele ter uma quantidade considerável de músculos não
significa que não possa ser inteligente. Sinto o rosto corar. Pelo menos
tenho a decência de ficar envergonhada.

— Me desculpa. Foi idiota da minha parte.

Evan não diz nada, apenas semicerra os olhos e adentra na biblioteca.


Pisco e começo a segui-lo para dentro. Ele escolhe uma das mesas de
estudo vazias próxima às janelas e se senta. Só então percebo a mochila em
suas costas. Após tirar alguns livros de dentro dela, os empilha sobre o
tampo de madeira. É uma quantidade considerável de exemplares.

Afundo em uma das cadeiras, encolhendo-me diante da visão à minha


frente. Só consigo pensar que sou um fracasso. Minhas primeiras notas
foram horríveis o suficiente para me trazerem até aqui. E o pior de tudo: me
julgo inteligente para presumir que caras como Evan são apenas rostinhos
bonitos, quando no fim é ele quem irá salvar minha pele.

Pelo menos espero que sim.

— Por onde quer começar?

— Não faço a mínima ideia. — Enterro o rosto nas palmas das minhas
mãos, não me importando se pareço patética.

Alguns momentos se passam e ele não diz nada, apenas espera que eu
reúna ânimo o suficiente para me endireitar na cadeira. Tiro a tampa de
isopor do café — que, nesta altura, está morno — e dou um gole, olhando
para Evan sobre a borda.

Seu olhar não revela nada, nenhuma emoção ou o que ele possa pensar
de mim.

— Ok, então acho que pode ser cálculo. Não sou uma pessoa de
números.

— Tudo bem, mas se é onde você tem mais dificuldade, podemos


deixar para depois, já que não parece concentrada o suficiente hoje.

Endireito os ombros, na defensiva.

— Eu tô super focada.

— Você se atrasou e depois ficou aqui, com o rosto enterrado nas


mãos. Não acho que isso seja um sinal de disposição.

Evan dá de ombros e, embora as palavras pareçam duras, o tom de voz


é inofensivo. Ele não está dizendo isso para me atacar, mas ainda assim me
sinto ofendida.
Provavelmente ele nota a tensão no meu corpo, porque diz:

— Do que você gosta?

Relaxo um pouco.

— Ciências. Coisas biológicas. Nada que envolva estatísticas e


números.

— Legal, então vamos fugir dos cálculos até que seja inevitável —
fala, a voz e o rosto sérios.

Me pergunto se ele é sempre assim. Alguém silencioso, de poucas


palavras e inabalável diante de tudo, inclusive calouras atrasadas. Quando
falaram sobre um monitor, confesso que imaginei um veterano com suéter
cashmere, óculos empoleirados na ponta do nariz e ar de sabe-tudo. No
entanto, Sutton não se encaixa em nenhuma das categorias.

Ele empurra um livro de biologia molecular em minha direção. Ok,


acho que posso lidar com isso. Nunca fui uma aluna ruim, mas também
longe de estar entre as melhores da turma. Nem preguiçosa, nem boa o
suficiente para me destacar.

Evan me ajuda a revisar a matéria pelos próximos trinta minutos, que


passam voando enquanto escuto seu tom de voz suave e ele esclarece
algumas questões. É uma boa introdução, mas sei que apenas começamos.
Ainda temos uma lista de tópicos para abordar. Quando Sutton termina de
falar sobre RNA não codificante, acrescenta:

— Tenta listar os assuntos em que você tem mais dificuldades, e


vamos trabalhar juntos para revisá-los.

Assinto em concordância e Sutton começa a guardar os livros, um a


um, dentro da mochila. Observo-o se levantar, e seus olhos encontram os
meus.

— Eu ficaria um pouco mais, mas tenho um compromisso. Até a


próxima, Scarlet.
— Sem problemas. Te vejo por aí.

Evan some do meu campo de visão, dirigindo-se à saída. Fico sentada


por um tempo, até que me levanto e pego o copo de café vazio, jogando-o
no
lixo ao sair pelas portas da biblioteca.

Ao chegar no dormitório, Viper está absorta em uma série de


vampiros. Ela não me olha uma vez sequer enquanto me sento na cama e
pego meu notebook.

Não falo com meus pais por chamada de vídeo há alguns dias, então
não posso adiar mais esse momento, mesmo que não esteja sozinha no
quarto. Sei que minha mãe pode lidar com isso, diferentemente do meu pai.
Dos dois, ele é o mais sensível. O que é engraçado, às vezes. Mamãe
sempre conta como ele chorou no meu nascimento, enquanto ela
resmungava palavrões fazendo força para que eu viesse ao mundo.

— Oi! — Lily cantarola, ao lado de meu pai, quando o rosto deles


surgem na tela.

A conexão do FaceTime é boa, mas há pequenas oscilações na


imagem. Talvez seja o sinal do dormitório. Às vezes, é ruim.

— Como estão? — Me acomodo na pilha de travesseiros atrás de


mim.

— Bem, mas queremos saber sobre você — meu pai fala, com o tom
de voz relaxado, mas a preocupação velada em seus olhos não passa
despercebida por mim.

Desde que terminei com Logan, eles têm me tratado como se eu fosse
beber uma garrafa de desinfetante a qualquer momento.

— Estou bem, diferentemente das minhas notas.

Não costumo esconder deles quando algo não vai bem na minha vida.
Meu pai parece preocupado, enquanto minha mãe, se está, não demonstra.
— Quão ruim?

— Thomas! — Mamãe dá uma cotovelada em suas costelas.

— Que foi? Só estou perguntando, Lily. Nossa filha não liga. Não é,
Scar?

Seguro o riso, observando-os na tela. Eles são considerados jovens por


serem mais novos do que os pais supostamente deveriam ser. Minha mãe
tem trinta e oito anos, e meu pai, quarenta. Thomas Primrose é metódico,
um cara dos números. Ele trabalha na parte logística de uma empresa,
enquanto minha mãe administra um pequeno hortifruti chamado Evergarden
— meu nome do meio. Meu nome inteiro é um pouco ridículo. Scarlet
Evergarden Primrose.

— Não, não me importo. Eu e Logan… A gente… Na semana de


prova — é tudo o que consigo reunir para dizer, como se tivesse esquecido
de como formular frases simples.

— Você vai conseguir recuperar as notas, querida. Não se preocupe. —


A fala de Lily sucede um acenar convicto de cabeça do meu pai.

— Sem sombra de dúvidas. Há um cérebro inteligente embaixo de


todo esse cabelo ruivo — ele acrescenta.

Minha mãe rola os olhos.

— Você sempre foi péssimo no departamento de elogios.

— E aqui estamos nós, com três filhos. — Papai ajeita os óculos no


rosto, fazendo minha mãe resmungar.

Acho graça e, como não quero preocupá-los, digo:

— Já tenho um novo monitor. A CVU é bem severa quanto às notas.


Vai ficar tudo bem. Prometo.

Meus pais se esforçam para pagar minha faculdade e o alojamento. O


mínimo que posso fazer é retribuir mantendo as notas boas.
— Que ótimo! — Meu pai parece entusiasmado e satisfeito. — Bom,
vou levar Josh para o treino de beisebol. Até mais, querida.

Me despeço e então ele sai do foco da câmera, depois ouço o som da


porta batendo no fundo. Minha mãe se ajeita, parecendo animada agora que
estamos sozinha. Bom, quase sozinhas já que Viper também está no
dormitório. Mas ela usa fones e me trata como se eu fosse parte do cenário.

— Onde está a Daisy? — Sinto falta da minha irmã caçula.

— Na escola. — Há uma pausa. — O monitor é gato?

— Meu Deus. Não vamos ter essa conversa.

Ela solta uma risadinha sarcástica.

— Se está fugindo dessa forma, deve ser porque ele é super gato.

Aí está uma desvantagem de se ter pais jovens. Eles acham que são
descolados. Cubro o rosto com as mãos, numa tentativa de esconder o
quanto fiquei vermelha pelo comentário.

— Mãe, vou desligar, tá? Depois a gente conversa.

— Você não vai fugir de mim para sempre! — é o que ela diz antes
que eu encerre a chamada.

Solto um suspiro, aliviada. Como acontece na maior parte das vezes,


minha mãe tem razão. Evan é lindo. Lindo do tipo que, instintivamente,
você para alguns minutos para observá-lo, questionando-se o tempo todo se
ele é real.

Tento não pensar nisso enquanto começo a fazer a lista que ele pediu.
04

NÃO HÁ NADA na minha mente enquanto seguro os halteres e faço


elevação lateral. É quinta à noite, então a academia do campus está meio
cheia. Inclusive, já esbarrei em pelo menos três dos meus colegas de equipe.
Minha respiração é entrecortada quando me forço a fazer três repetições a
mais que o habitual, sentindo os músculos arderem no processo.

Desde que comecei a ter interesse no hóquei, fiz o possível para me


manter em forma. Comecei a jogar quando tinha catorze anos e, desde
então, nunca mais parei. Foi por isso que consegui entrar na CVU. Jogar
pelo time da faculdade te dá alguns privilégios, principalmente porque
Crystalville é considerada a cidade do hóquei. Não há uma alma aqui que
não seja entusiasta do esporte. Por isso, quando estou andando pela cidade,
sou cumprimentado com frequência com dois tapinhas nas costas pelos
moradores.

Largo os pesos no piso emborrachado e pego minha garrafa de água.

Alguém toca meu braço, o que me faz olhar para o lado. Encontro
Ginger, com os olhos castanhos fixos em mim e um sorriso estampado no
rosto. Desde o verão passado, eu e ela temos nos envolvido casualmente. Só
que, no último mês, ela começou a agir como se tivéssemos algo, então eu
me distanciei. Relacionamentos não são o meu foco.

— Oi, Ginger. — Tiro os fones de ouvido.

— Quer revezar? — questiona.

Acho que ninguém reveza halteres, e duvido que ela aguente o mesmo
peso que eu. Não sendo babaca, apenas realista. Levei dois anos para
alcançar a carga em que estou. Ginger, com os braços finos e sem
experiência, não vai conseguir tirar os pesos do chão.
— Acho melhor não. Você pode acabar se lesionando. — Aponto para
os pesos coloridos e leves do outro lado da academia. — Aqueles devem ser
ideais.

A boca de Ginger se contrai quando ela olha na direção indicada,


provavelmente calculando a distância entre mim e os pesos. Ela me oferece
outro sorriso, mas sem exibir os dentes desta vez.

— Tem razão. A gente se vê por aí.

Coloco os fones de volta nas orelhas, não me importando se isso


pareceu uma dispensa. Ginger sempre soube que seríamos apenas sexo.
Nunca menti para ela, ou dei esperanças de que nossa relação poderia
evoluir. E, para não machucá-la, me distanciei. Não faz meu tipo brincar
com sentimentos. Ela é uma garota legal, acho que merece encontrar o que
procura. Amor ou o que quer que seja.

Quando termino a série, vou até a única esteira livre, mas alguém
chega primeiro.

Paro a alguns passos da esteira, observando a parte de trás da cabeleira


ruiva. Scarlet mal se dá conta da minha presença. Um cara desocupa o
aparelho à esquerda e eu preencho sua ausência.

Agora, as íris verdes encontram as minhas.

Ela quase tropeça, mesmo que esteja numa velocidade lenta.

— Você tá me seguindo? — indaga, o tom de voz divertido. — É a


segunda vez que te vejo em menos de três dias.

Meus olhos vagueiam por seu rosto bonito, porém, dessa vez, não vejo
as sardas. Acho que ela está usando corretivo, o que me deixa irritado por
algum motivo inexplicável. Não acho que deveria escondê-las, mas fico em
silêncio. Scarlet usa um top que expõe bastante da pele branca e uma calça
legging. Não observo o suficiente para deixá-la desconfortável. No entanto,
noto que as bochechas estão rubras quando desvio o olhar de volta para o
seu.
— Você que está me seguindo, já que nunca te vi aqui antes de hoje.

— Ah. Como sou caloura, só vim aqui uma vez para explorar. Agora
decidi que vou me exercitar mais, sabe? Estou muito sedentária.

— Você não parece nada mal — respondo, fazendo-a olhar para os


próprios pés.

Isso me deixa intrigado. Com uma aparência como a dela, duvido que
não esteja acostumada a receber elogios. Inclusive, no último treino de
hóquei, escutei a conversa de dois caras falando sobre a ruiva gostosa —
como a apelidaram — que tinha chegado no campus. Não dá para ignorar
um rosto desses.

É uma ironia do universo que ela tenha sido jogada no meu caminho,
considerando que eu achei que não a veria nunca mais depois daquela festa.
Comecei a monitoria pois estou focado em ganhar alguns pontos, vez que
me inscrever em uma matéria extra demandaria muito esforço. Acho melhor
ajudar alguém a revisar conteúdo do que fazer provas e entregar artigos.

Li sua ficha. Ela está com notas muito baixas. Lembro de ter achado
seu nome engraçado. E, depois que sua aparência se encaixou nele, acho
genial.

Scarlet Evergarden Primrose. Uma ruiva que estuda botânica. É ótimo.

— Fiz a lista. — Ela muda de assunto, enquanto caminhamos lado a


lado. Mantenho o ritmo mais baixo que o comum para acompanhá-la. —
Nosso próximo encontro é amanhã, certo?

— Sim, te mandei um e-mail, mas acho que você não viu.

Scarlet ri, os dentes brancos e perfeitamente alinhados à mostra.

— Quem manda e-mails hoje em dia? Fala sério.

— Era um e-mail profissional, de monitor para subordinada.

Um brilho de desafio atravessa seu olhar.


— Então agora sou sua subordinada? Essa é nova.

Cometo o erro de olhar sobre o ombro de Scarlet. Parada a alguns


metros de distância, está Ginger, com os olhos fixos em nós dois. Ela mal
consegue esconder o olhar magoado. Quebro o contato visual. Não é como
se eu lhe devesse explicações.

— É só um termo técnico, relaxa.

— Não tô brava com isso, só achei engraçado. Devo começar a te


chamar de senhor?

Isso faz com que os cantos de minha boca queiram se mover para
cima.

— Só se você quiser.

— Rá. Nem morta.

Agora, um sorriso tímido toma conta de seus lábios. São lábios


bonitos. Parecem beijáveis e outras coisas a mais também. Me forço a parar
de pensar sobre isso, porque sei que os níveis altos de testosterona estão me
afetando no momento. Pretendo manter minha relação com Scarlet na zona
segura. Não quero mais dramas, por isso estou dando um tempo de sexo, no
geral.

Ficamos em um silêncio confortável pelos próximos momentos, até


que Scarlet complete trinta minutos na esteira e me olhe, com o peito
subindo e descendo em um ritmo pesado.

— Chega. Esse é meu limite hoje.

— É um tempo bom.

— Aposto que você faz o dobro.

Verdade, mas apenas dou de ombros. A ruiva desliga a esteira e me


encara, ofegante, com as mãos na cintura.

— Bom, vou indo nessa. Te vejo amanhã na biblioteca?


— Sim, nos vemos amanhã — concordo, observando-a se distanciar
até que suma do meu campo de visão.

— A Ginger estava arrasada no treino — é a primeira coisa que Emery


diz quando abro a porta, batendo a bolsa no meu ombro com uma força
considerável. — O que você fez?

Abro espaço para que minha irmã entre na fraternidade. Só Hunter e eu


estamos aqui hoje. Lionel e Dan desapareceram.

— Por que eu tenho que ter feito algo? — Não consigo conter a
irritação.

Ver Emery é como olhar para minha versão feminina. Ela tem os
mesmos fios negros, olhos cinzentos e a pele branca pálida que eu. No
entanto, apesar de sermos gêmeos, nossas semelhanças se limitam ao físico
e, é claro, ao amor incondicional que nutrimos um pelo outro.

— Porque ela tava chorando! — Emy gesticula, irritada. — Sabe o


quanto isso interferiu na coreografia do cheer? Ela é uma dançarina
importante e ficou lá, se lamentando o tempo todo, atrapalhando o
desempenho das meninas, já que é impossível ignorar alguém naquele
estado.

Volto a me sentar no sofá, dando play no videogame. Estava numa fase


importante de God of War antes dela chegar aqui inesperadamente.

— Não vai dizer nada? — questiona, indignada.

— Acho que vocês estão sendo injustas.

— Por quê?

— Desde que começamos a nos envolver, deixei claro que não queria
encontros ou um relacionamento sério. Ela disse que não era um problema e
que também não estava procurando isso. O que posso fazer se Ginger
ignorou os fatos?

Minha irmã fica em silêncio e solta um suspiro alto, e sei que é o jeito
dela de concordar comigo. Não posso fingir ter sentimentos por alguém só
para não magoar essa pessoa. Sou honesto.

— Tá legal, mas nunca mais se envolva com ninguém da minha


equipe. Não precisamos de mais drama.

Emery é capitã das líderes de torcida, então nos encontramos com


frequência na arena. Tanto nos dias em que ela precisa treinar como nos
jogos dos Frozen Fury, o time de hóquei do qual faço parte e também sou o
capitão. Ela e o restante das garotas são responsáveis pela coreografia de
abertura.

No momento em que termino de matar um dos chefões, Hunter faz sua


entrada dramática. Mesmo não morando aqui, ele ainda usa um dos quartos,
o que está desocupado desde a sua saída. Descendo as escadas, sem
camiseta, ele se aproxima.

— Oi, Emery.

— Cala a boca — minha irmã retruca.

— É assim que você me recebe? Me dá um abraço de boas-vindas.

— Sai.

— Tudo bem.

Ferrari ergue os braços em rendição, mas o sorriso torto evidencia que


está se divertindo muito. Ele e Emy implicam um com o outro desde que
nos conhecemos, quando éramos apenas crianças e Hunter se mudou para a
casa ao lado da nossa.

Quando largo o controle do videogame, Hunter o pega, despausando o


jogo e assumindo de onde parei. Me levanto e sinalizo para Emery em
direção à cozinha. Vou na frente, ouvindo seus passos ecoarem atrás de
mim.

— Veio aqui só para me falar sobre a Ginger? — questiono, quando


estamos sozinhos.

Me encosto contra a bancada e Emery solta um suspiro, segurando a


alça da bolsa.

— O papai quer que eu estagie em um escritório de um de seus sócios


para adquirir experiência. Não sei como dizer para ele que não posso fazer
isso.

Emery e nosso pai têm uma relação conturbada devido às escolhas dela
em relação à carreira e ao futuro. Minha irmã deseja ser uma cheerleader,
enquanto Phillip Sutton impõe que ela deveria focar no curso de Direito e
arranjar um emprego no ramo, assim como ele e nossa mãe.

O simples fato de Emy estar na equipe e se dedicar aos treinos é


motivo de desavenças e discussões quase que diárias entre os dois.

— Bom, acho que você não deve fugir desse assunto.

— É, mas você o conhece. Ele nunca vai estar contente.

É verdade. Meu pai é meio antiquado quanto a isso. Ele se fecha em


suas opiniões, não considerando que Emery tem direito de fazer as próprias
escolhas.

— Talvez não. — Dou de ombros. — Mas você precisa fazer as


escolhas que te deixam feliz. É o que importa. Uma hora ou outra ele vai ter
que aceitar esse fato.

Minha irmã não diz mais nada, contudo, consigo ver a apreensão
tomando conta de cada traço de seu rosto. Começo a preparar um chá de
camomila, um dos seus favoritos. Quando está pronto, o sirvo em uma
caneca e entrego em suas mãos. Emery bebe enquanto comenta sobre um
dos professores de seu curso ter pego no seu pé pelos atrasos. Conversamos
mais algumas amenidades até que ela se despede e vai embora.
Hunter ainda está jogando na sala quando começo a subir as escadas
até o andar de cima. No meu quarto, ligo o computador e checo os meus e-
mails. A grade de horários que enviei para Scarlet está com uma nova
atualização. Eu o abro.

Prezado sr. Sutton,


Visualizei a grade de horários e gostaria de saber se podemos fazer
alguns reajustes. Gostei da ideia do projeto para substituir as notas das
provas, mas não sei se teremos tempo. Parece complexo. Anexei a lista com
as matérias, como o solicitado. Obrigada por me relembrar dos tempos
pré-históricos ao me fazer digitar por aqui. Foi divertido.

Atenciosamente,
Scarlet.

Comecei a digitar uma resposta, adotando o mesmo tom irônico que


ela usou no e-mail ridiculamente cordial.

Prezada srta. Evergarden Primrose,


Podemos discutir os reajustes necessários. Me diga suas preferências
e verei se está de acordo com minha disponibilidade. Quanto ao projeto, ele
só parece complexo porque tem bastante detalhes, mas você vai se sair
bem. Só precisa checar com os professores se será possível. Vou dar uma
olhada na sua lista, obrigado. Embora me sinta tocado por você ter
utilizado o e-mail por minha causa, não será mais necessário. Te enviei
meu número de telefone junto com o PDF de um livro que acho interessante
para o seu repertório.
Fico feliz que tenha gostado de viajar através do tempo. Quem sabe da
próxima vez que nos virmos, eu não te ensine a criar fogo com ignição
através de fricção de madeira?

Evan.

Aperto no botão de enviar, então fecho a aba do navegador, mal me


dando conta da sombra de sorriso no meu rosto.
05

ASSIM QUE A última aula termina, guardo o livro na bolsa e me levanto,


alisando o suéter com as mãos. A professora de ecologia vegetal sinaliza
para mim, em um claro pedido que eu aguarde. Droga. Espero que não seja
nada relacionado às notas medíocres que tirei. Enquanto arrumo a postura,
me aproximo de sua mesa, notando que a maioria dos alunos já saíram da
sala. Quando ficamos apenas nós duas, ela começa:

— Li a proposta do seu projeto e pensei em algo diferente. Em vez de


folhetos informativos, por que não um seminário? — A sra. Russel ajeita os
óculos no rosto, me olhando com expectativa. — Vou dar uma palestra na
faculdade no fim de outubro. Posso ceder alguns minutos para você.

Pisco algumas vezes.

— Não sei o que dizer. Isso parece… grande.

— É uma oportunidade, sra. Evergarden. Li o rascunho que enviou por


e-mail sobre horticultura sustentável, e há mais formas de impactar as
pessoas. Comece com a palestra e depois pense em uma proposta de
intervenção interessante o suficiente para chamar a atenção. Estive
conversando com outros professores, e eles concordaram em apoiar o
projeto, contanto que demonstre que realmente quer compensar as notas.
Somos exigentes. A CVU é considerada uma das melhores universidades do
país. Estamos tentando ajudá-la a se recuperar das provas. Não desperdice
isso.

— Tudo bem — concordo. — Acho que posso fazer isso.

— Vejo potencial em você, Scarlet. — Ela sorri de forma gentil. — Às


vezes, alunos bons tiram notas ruins. Todo mundo tem uma vida fora da
faculdade. Bom… Até mais!
Concordo com um menear de cabeça, surpresa por sua compreensão.
Com um nó na garganta, viro-me e saio pela porta, pensando em tudo o que
ela disse e em maneiras de fazer isso dar certo.

Quando Cam bate na porta do meu dormitório, estou com três velas
acesas. Abro para ela, e seus olhos vão das chamas alaranjadas para o meu
rosto. Sem a presença de Viper, aproveitei para relaxar e organizar a mente,
enquanto todas as questões da faculdade me sufocam. Cameron acha isso
esquisito, mas sei que ela não tem coragem de admitir em voz alta.

— Nossa, o que você tá fazendo? — Minha amiga segura um saco


pardo em sua mão e passa por mim, adentrando no espaço.

Fecho a porta e me viro para Cam. Ela começa a farejar o ar, passando
os dedos nos potes de vidro onde estão as ceras das velas.

— Que cheiro gostoso. O que é?

— Estou fazendo aromaterapia. Essas velas são de alecrim, mel e


bergamota. — Aponto para os recipientes. — Você gostou mesmo ou só
está tentando não ser rude? — Semicerro os olhos em sua direção,
avaliando a expressão no seu rosto.

— Claro que gostei! Inclusive, não tem nenhuma sobrando para mim?

Tenho uma caixa de velas guardadas em minha parte do armário, então


posso dar uma delas para Cameron.

— Antes de você ir embora, pego uma e te dou.

— Ok. Trouxe burritos, você gosta? — Cam começa a abrir o saco de


papel, sem me dar tempo para responder. — Tem dois de frango e um de
carne com pimenta jalapeño.

— Pode ser de frango.


Volto a me sentar sobre o tapete de ginástica que estendi no carpete de
madeira. Cam fica sentada na borda da cama, me observando enquanto
retomo a posição de yoga. Geralmente, combino as duas técnicas para
relaxar: aromaterapia e yoga.

— Você vai ficar aí? — Cameron abre a embalagem do próprio burrito


e dá uma mordida. — Isso funciona mesmo? — questiona, de boca cheia.
— Tô precisando de algo que me deixe mais… zen. É esse o termo?

— Acho que sim. — Arqueio as sobrancelhas. — Você quer mesmo


fazer yoga?

— Por que não? Quero tentar coisas novas. — Dá de ombros,


terminando de engolir. — Que horas você vai sair?

— Só depois das seis.

Foi o único horário que consegui conciliar com Evan para os estudos.
Agora não são nem três da tarde, então tenho um tempo livre até lá. Talvez
dê para ensinar algumas técnicas de yoga para Cameron. Contei a ela sobre
o monitor, excluindo a parte de sua identidade.

— Legal, vou praticar com você…

A porta do quarto se abre num rompante, interrompendo a frase de


Cam. Viper tropeça para dentro e corre até o banheiro, soluçando. A porta
se fecha, então ouvimos a tranca e o choro abafado. Olho para Cameron,
tentando entender o que acabou de acontecer.

— Minha nossa. — Minha amiga parece em choque.

Nunca vi Viper demonstrar qualquer tipo de emoção, quase como se


tivesse uma espécie de armadura emocional. Inclusive, algumas garotas do
alojamento a apelidaram de bruxa, já que diziam que ela não se importava
com nada e nem ninguém.

— Acho que vou embora. Nos falamos depois, ok? Vou deixar seu
burrito aqui.
— Espera.

De pé, pego uma vela no armário e entrego para Cameron. Assim que
minha amiga fecha a porta, indo embora, Viper sai do banheiro. O rímel e o
lápis preto estão borrados, criando rastros assustadores em volta dos olhos.
Quando percebe que estou a inspecionando, o rosto se contorce em uma
expressão de ódio.

— Não diga nada — murmura, entredentes.

— Eu não ia dizer! — Ergo as palmas das mãos, desviando o olhar.

Volto a olhá-la um momento depois, não conseguindo me conter. Os


lábios de Viper ainda estão trêmulos e ela senta na cama, abraçando os
joelhos junto ao peito. Não sei o que aconteceu e duvido que ela vá me
contar, então fico em silêncio, segurando o burrito nas mãos. Estou com
fome, mas…

— Quer? — ofereço.

Ela olha para o embrulho e franze o cenho.

— O que é isso?

— É um burrito de frango.

Viper surpreendentemente o aceita, balançando a cabeça em


concordância. Entrego-o em suas mãos. Ela começa a comer, sem me olhar.
Acho que já é um grande avanço. Em meio a uma mastigada ou outra, a
garota me fita e questiona:

— Por que tá sendo legal comigo? Eu não acho que eu mereça.

— Porque você foi legal comigo quando eu mais precisava.

Minha resposta parece calá-la. Viper termina de comer o resto do


burrito e arremessa o papel pardo no lixo. Em seguida, resmunga um
agradecimento e pega a toalha antes de se dirigir para o banheiro. O som do
chuveiro preenche o quarto instantes depois.
O céu já escureceu quando saio com a alça da bolsa atravessada em
frente ao peito. Está bastante frio aqui fora e, por um momento, considero
voltar e pegar um casaco. Mas já avancei um longo trecho, e, caso volte,
vou me atrasar como da primeira vez. Por algum motivo, não é a impressão
que quero passar a Evan.

O campus está quase vazio a esse horário. O caminho para a biblioteca


é silencioso, apenas o farfalhar do vento e das árvores ao meu redor me
acompanham até o prédio antigo do campus. Antes, essa biblioteca era
pública, até que a Universidade foi construída ao seu redor. Li em algum
panfleto da CVU sobre isso.

Assim que atravesso as portas, avisto Sutton no fundo do recinto. O ar-


condicionado me faz estremecer e eu abraço meu próprio corpo enquanto
caminho até a mesa que ele escolheu. A mesma da última vez. Puxo uma
cadeira ao seu lado e me arrependo da escolha. Estamos muito próximos,
meu joelho roçando roça no dele.

Como sempre, seu rosto bonito parece sério. Os cabelos pretos estão
bagunçados de um jeito charmoso, e ele veste uma jaqueta de couro preta,
com uma camiseta branca por baixo. O cara cheira à limpeza; alguma
colônia masculina, prestobarba e o característico aroma de lavanda daquele
sabonete genérico de supermercado que todo mundo compra.

— Então, vai me ensinar como criar fogo com fricção?

Só percebo o quão estranha a frase soa quando deixa meus lábios.


Evan solta uma risada grave, me surpreendendo. O constrangimento me
atinge, mas acompanho a gargalhada na tentativa de amenizar o clima.
Alguns olhares hostis são direcionados a nós, e percebo que chamamos
atenção. Paro de rir, assim como Sutton.

— Te mostro o que quiser com fricção — responde, a voz baixa. Isso


me faz ficar inquieta no assento.
Limpo a garganta, colocando minha bolsa em cima da mesa. Evan
entende a deixa e pega os livros que trouxe. De repente, não sinto mais frio.
Faço uma nota mental para não dizer nada comprometedor da próxima vez.

— Os professores autorizaram o projeto. — Corto o silêncio e atraio a


atenção de Sutton.

— Perfeito. Então, são vários coelhos numa cajadada só.

— É, mas tem um porém… — Começo a morder a tampa da caneta


nervosamente. — A professora vai ceder espaço em uma palestra. Para mim
e o projeto. — Engulo em seco e Evan arqueia as sobrancelhas. É a
primeira vez que vejo algo próximo de surpresa em seu rosto. — É péssimo,
não é?

— Claro que não. É uma oportunidade e tanta, Scarlet. Me conta o que


ela disse.

Detalho o consenso dos professores e compartilho a ideia que tive esta


tarde, enquanto meditava. Quero fazer alguma parceria com um hortifruti
local e, ao final da palestra, montar uma tenda com resultados da agricultura
sustentável para que as pessoas possam avaliar com os próprios olhos.

— É uma ótima ideia. Acho que os professores vão te pedir em


casamento depois disso.

Solto uma risadinha, aliviada que ele não considerou tudo uma grande
estupidez.

— Mas como irei fazer dar certo? Quem vai querer se juntar a mim?

— Bom, pode ser uma forma de promover algum comércio local para
os universitários. Tenho certeza de que alguém irá aceitar a oferta. Há várias
lojas sustentáveis no centro de Crystalville. Só precisa ir lá em algum final
de semana e divulgar sua proposta.

— Verdade, irei fazer isso. Bom, obrigada. Foi você quem sugeriu o
projeto. Não sei o que eu faria sem… tudo isso. — Me refiro à parte da
monitoria no geral, não apenas a ideia isolada de Evan.
— Sem problemas. É o seu cérebro que está formulando todo o resto.
Aceite os créditos, Scarlet.

Agora, nossos braços também se tocam. Não sei em qual momento


chegamos tão perto um do outro, mas, feito uma covarde, me afasto e
começo a grifar algumas partes importantes do livro que Sutton trouxe. Ele
fica do meu lado, respondendo quando tenho perguntas.

— Você tá tremendo. — A voz dele constata. Olho para o lado,


encontrando seus olhos cinzentos.

— Esqueci de pegar um casaco.

Então, inesperadamente, Evan começa a tirar sua jaqueta. Estou


prestes a abrir minha boca para dizer que não é necessário, mas isso não o
convenceria. Fico parada enquanto ele cobre meus ombros com o tecido
quente e pesado. Passo os braços pelos buracos e preciso puxar as mangas
para conseguir ver minhas mãos. Tenho certeza de que estou ridícula
vestindo-a, vez que é o dobro do meu tamanho. Prendo meus cabelos com
um lápis, sentindo o olhar de Sutton sobre mim a cada movimento que faço.

— O que foi? — indago, sem graça. — Fiquei ridícula, não é?

— Não. — É a única palavra que solta, acompanhada de um olhar que


não sei decifrar.

Me volto para o livro, apoiando a cabeça em uma das mãos. O tempo


passa rápido. Quando me dou conta, só estamos eu, Evan e mais outro
acadêmico na biblioteca. Então, começamos a guardar nossas coisas para
irmos embora. Está bem tarde e as temperaturas caíram. Hesito quando
saímos pelas portas duplas, olhando para o campus vazio.

— Melhor eu ir logo. Está bem tarde.

— Vou te deixar no alojamento. — Evan tira o maço de cigarros do


bolso e acende um nos lábios.

Assinto e caminhamos até a picape estacionada em uma das vagas em


frente ao prédio. Evan dirige apenas com uma das mãos, mantendo a outra
ocupada com o cigarro. As janelas estão abaixadas e, mesmo assim, o
cheiro do tabaco me atinge, se mesclando ao odor de couro e hortelã.

— Por que você fuma? — Quebro o silêncio, não conseguindo conter


o questionamento.

Sutton demora alguns momentos para me responder. Ele mantém os


olhos no painel e coloca o braço para fora da janela, para bater as cinzas.

— Para ser honesto, não há nenhum motivo específico. Só gosto da


sensação, mas sei que não é um hábito saudável, por mais que fume uns
dois cigarros por semana. Pretendo parar.

— É uma boa. Digo, parar — acrescento rápido a última parte. —


Desculpa se tô sendo um pouco intrometida. É apenas meu lado de
estudante de botânica com ideias de um mundo sustentável falando mais
alto.

— Gosto desse seu lado — admite, me deixando surpresa.

Foco meus olhos na janela do veículo, observando a paisagem ao


redor. Alguns minutos se passam até que o alojamento surja no meu campo
de visão. Desafivelo o cinto de segurança quando o carro estaciona no
meio-fio, a mão pronta na maçaneta. Olho para Evan apenas uma vez,
vendo as íris fixas em mim. Ele traga profundamente e solta a fumaça, que
espirala entre nós.

— Boa noite — falo, o tom de voz mais baixo do que eu gostaria.

— Boa noite, Scarlet.

Então, eu salto da picape, entrando no prédio à minha frente. Na


recepção, olho sobre o ombro. Sutton ainda está estacionado lá fora.
Demora uns três minutos para que ele vá embora. Quando entro no
dormitório, me dou conta de que ainda estou usando sua jaqueta.
06

ACHO QUE FOI uma péssima ideia ter aceitado o convite de Cameron
para sair na sexta-feira. O Blizzard, pub universitário para onde viemos,
ironicamente, está cheio de universitários. Fico num canto, com uma
garrafa de cerveja que já está esquentando contra a palma de minha mão,
enquanto Cam e seu pessoal estão entretidos na pista de dança.

Não conheço ninguém aqui, exceto ela. Por mais que Cameron tenha
tentado me convencer de dançar, não estou no clima. Na verdade, tenho
estado muito estressada ultimamente por conta das aulas e todo o restante.
Ela havia se dado conta, vez que me persuadiu a vir para cá dizendo que eu
precisava relaxar, embora tivéssemos conceitos diferentes dessa palavra.

Pisco, na tentativa de afastar a sonolência enquanto dou alguns goles


na cerveja. Legalmente, não posso beber, já que tenho apenas dezenove
anos. Mas ninguém aqui parece se importar com esse fato. Inspeciono ao
redor. O Blizzard é um pub muito legal. A decoração tem um estilo nórdico
rústico, com vigas de madeira e uma iluminação parcial, deixando o resto
para a imaginação. A jukebox antiga toca alguma música genérica e a pista
está lotada.

— Scar! Vem dançar um pouco — Cam grita sobre a barulheira,


surgindo repentinamente.

O rosto dela está corado e, pelo novo brilho no olhar, sei que ela deve
estar meio bêbada.

— Não, obrigada. Vá se divertir sem mim.

Não quero ser uma estraga-prazeres, por mais que, tecnicamente, já


esteja sendo uma.
— Por favor. Só uma música. — Cameron faz um biquinho.

— Depois, ok? Se eu estiver bêbada o suficiente para isso.

Cameron ri como se eu tivesse contado a piada mais engraçada do


mundo. Em seguida, ela volta para a pista, sumindo em meio ao mar de
corpos. Afundo mais no assento, mal-humorada. Dou outro gole na cerveja,
fazendo careta. Está quente. Deixo a garrafa em cima da mesa e me levanto
para pegar algo gelado.

Atravesso em direção ao bar, me espremendo entre as pessoas


aglomeradas. Assim que alcanço a borda do balcão, espero até que o
barman esteja desocupado. Então, peço um martini. Alguns momentos
depois a bebida está diante de mim. Dou um gole, observando ao redor
sobre a borda da taça.

Há uma pequena comoção do outro lado do pub. Gritos de “vai Frozen


Fury!” ecoam sobre a música que retumba das caixas de som, levando as
pessoas a loucura. Tenho que dar um passo para trás quando corpos se
agitam à minha frente. Inspeciono ao redor, avistando em um ângulo meio
oculto do bar uma sinuca. Resolvo abrir caminho até lá, já que estou
entediada.

Essa parte do Blizzard está mais calma. Não há tanta gente aqui atrás,
apenas dois jogadores. Demoro para perceber que um deles é Evan. Ele está
curvado sobre o feltro verde, segurando um taco. Quando faz sua jogada, as
bolas tilintam umas contra as outras e uma delas é encaçapada. Assim que
se ergue, percebo o cigarro preso entre os dentes. Com a mão livre, ele dá
uma tragada, solta a fumaça e bate as cinzas no chão.

Como um ímã, seu olhar encontra o meu. Fico parada, a apenas alguns
passos de distância. Evan usa uma jaqueta de couro marrom, já que a outra
está comigo. Não tive oportunidade de devolvê-la. Já faz sete dias desde a
última vez que nos vimos, por conta de sua agenda apertada.

Pelo jeito, sua agenda atarefada envolve… isso. Me aproximo, dando


um gole no martini.

— Tem espaço para mais uma jogadora?


Sutton dá uma tragada antes de responder, as palavras saindo envoltas
de fumaça.

— Deixa ela jogar, Dan.

O seu oponente, Dan, olha para mim e para Evan com os olhos
semicerrados, mas não diz nada. Em seguida, entrega seu taco em minhas
mãos e some pelo espaço. Outra onda de gritos atravessa o ambiente,
fazendo meus tímpanos doerem. Esboço uma careta.

— Por que as pessoas estão comemorando?

— Vitória do time de hóquei da faculdade essa tarde. — Evan arruma


a mesa de sinuca para uma nova partida.

Faz sentido. Parece que o hóquei é muito popular em Crystalville. Não


entendo a razão das pessoas gostarem tanto desse esporte.

— Então, quer começar? — Ele apaga o cigarro na borda da mesa e


joga a guimba em uma lixeira.

— Vai em frente. — Dou de ombros, sem me importar.

— Vou pegar leve com você — fala, com um sorriso zombeteiro no


rosto.

Ok. Eu tenho o fator surpresa, vez que desde pirralha jogo com meu
pai e meus tios. Aguardo enquanto Sutton prepara a jogada, lançando as
bolas brancas sobre as outras, que se dispersam em uma dança frenética
pelo feltro.

Três das bolas são encaçapadas. Evan escolhe as pares, me deixando


com os números ímpares. Não sou fã de números ímpares, mas fico em
silêncio. Não posso deixar meu ceticismo quanto aos sinais do universo
atrapalharem. Quando ele erra propositalmente uma jogada, aplicando força
demais, não lhe dou chances.

Começo a encaçapar bola atrás de bola, limpando a mesa. Seu olhar


permanece indecifrável sobre mim durante todas as minhas jogadas. Sou
uma jogadora competitiva, então imagine só minha indignação quando miro
na última bola ímpar e a atinjo com a ponta do taco, calculando
perfeitamente o ângulo adjacente para que caia em um dos buracos, mas
esqueço da rota da bola branca. Com um efeito rebote, ela bate numa das
extremidades da mesa e vai em direção a bola preta, que está a centímetros
de ser encaçapada. Olho para Evan, desacreditada. Malditos números
ímpares que dão má sorte!

Ele começa a rir. A risada grave e rouca reverbera pelo espaço.


Encaçapar a bola preta significa perder o jogo. Bebo o resto do martini
esquecido na borda da mesa de sinuca, tentando ignorar a raiva infantil.

— Que péssima perdedora. — Evan ainda segura o taco.

Deixo a taça vazia em cima do feltro e cruzo os braços em frente ao


peito.

— Não gosto de perder.

— Nem eu.

— Chega de piadinhas, Evan Sutton. — Tiro uma mecha de cabelo que


cai sobre meu rosto com a ponta dos dedos. — Acho que preciso de outra
bebida. — Olho para um dos pôsters na parede, com um drink estranho
destacado. — O que é?

— O Valhalla.

Arqueio as sobrancelhas.

— Isso não é tipo um paraíso da mitologia nórdica?

— Não exatamente. Valhalla quer dizer “sala dos mortos”. É para onde
as Valquírias levavam os melhores guerreiros que morriam em campos de
batalha, escolhidos por Odin. Tem uma bebida com esse nome aqui no
Blizzard. Se conseguir bebê-la até o fim, você ganha um elmo viking.

— Nossa, você parece meio nerd agora — falo, em meio à uma risada.

— Coisas de veteranos de História.


Fico surpresa, percebendo que não sei quase nada sobre Evan. Até
agora, não tinha ideia que ele cursava História. Me aproximo dele, talvez
sendo mais movida pelo álcool do que meus instintos naturais de
autopreservação.

— Ok, preciso saber de algumas coisas.

— O quê? — Os olhos de Sutton passeiam pelo meu rosto.

Posso jurar que ele demora um pouco mais nos meus lábios, mas
provavelmente estou imaginando coisas.

— Sobre você. É injusto que tenha recebido uma ficha sobre mim e eu
só saiba seu nome.

— Ok. Estou no último ano de História, faço parte da equipe de hóquei


e tenho uma irmã gêmea.

As coisas se clareiam na minha mente. Evan é atleta. Isso explica toda


sua dedicação para se manter em forma. No entanto, a última informação é
a que me deixa mais intrigada.

— Irmã gêmea? Nossa. Eu jamais imaginaria isso.

— E você? Tem irmãos?

— Dois. Sou a mais velha.

Sutton se aproxima um pouco mais. Agora, resta apenas um braço de


distância entre nós. Sinto o cheiro do cigarro e hortelã. Tenho que erguer o
rosto para encará-lo, já que é mais alto do que eu.

— Às vezes você tem sotaque. — Evan não se afasta. — De onde é?

— Green Lake, duvido que conheça. Aquele lugar é do tamanho de um


ovo.

— Então você é caipira — diz, referindo-se ao fato de eu ter nascido


em uma cidade do interior. Green Lake está cheia de fazendeiros, pessoas
tentando desesperadamente sair da cidade e casais de idosos que passam o
dia todo na praça municipal.

— Nunca mais diga essa palavra.

O jogador parece achar graça.

— Não se preocupe, cenourinha. Seu segredo está seguro comigo.

— Cenourinha? — questiono, aos risos. — Essa é nova. Já me


chamaram de muitas coisas por conta do cabelo ruivo. Nunca disso.

— Eu sou original.

— Ha-ha. Aposto que sim. Deve colocar apelido em todas as outras


garotas.

— Isso é mentira.

Por alguma razão, sua feição denota sinceridade.

— Bom, quero beber o Valhalla — digo, curiosa para descobrir o


motivo que o drink se tornou um desafio. — Não pode ser tão ruim.

Evan apenas solta um risinho grave e faz um sinal com a mão para um
dos bartenders que circulam pelo bar. O rapaz se apressa, como se já o
conhecesse. Depois de fazer o pedido, demora alguns minutos para que o
Valhalla chegue.

Com uma taça longa de cristal nas mãos, o bartender atrai a atenção
das pessoas ao nosso redor ao colocá-la na mesa de sinuca. Outro
funcionário do pub se aproxima com os ingredientes. Uma garrafa de
absinto, vodka e tequila. Em seguida, uma gota controlada do que Evan
sussurra para mim ser pimenta habanero é adicionada.

O momento do deslumbre acontece quando o barman, com as mãos


ágeis, incorpora o drink com um toque de xarope de jalapeño. Observo,
fascinada, a fatia de limão que é mergulhada em rum, depois acesa com um
isqueiro e colocada sobre a bebida, criando uma chama temporária. E, por
fim, a bebida está pronta.
Valhalla.

— Dá tempo de desistir — murmura, ao notar minha hesitação.

Agora, temos uma pequena plateia nos observando. Dou alguns passos
para frente, colocando as mãos ao redor da taça. Então, sem hesitar, começo
a entorná-la. Meus olhos lacrimejam e a garganta arde. Consigo beber
metade antes que meu estômago dê uma volta violenta, fazendo-me parar e
abrir caminho pela multidão.

Pelo menos consigo chegar ao banheiro antes de vomitar. Algumas


pessoas esbravejam por eu ter furado a fila, mas não me importo. Regurgito
todo o conteúdo do estômago na privada. Alguém segura meus cabelos e,
pelo cheiro da colônia, sei que é Evan.

— Ai, meu Deus. — Sinto o estômago estremecer, completamente


embrulhado. — Nunca mais me deixe chegar perto do Valhalla.

— Você precisava da experiência. Eu também fiquei mal depois de


tentar.

Jamais imaginei que a noite terminaria assim. Eu, vomitando na


privada em meio a um cheiro horrível, os joelhos apoiados no chão imundo
do bar, enquanto Sutton segura meus cabelos. Agradeço mentalmente por
ser metódica e sempre carregar pasta e escova de dentes na bolsa. Depois de
escová-los na pia, Evan me lança um sorriso torto e juntos retornamos à
barulheira e confusão do Blizzard.

— Não diga uma palavra sobre isso. — Lanço um olhar ameaçador em


sua direção.

— Sem problemas.

— Aí está você! — Cameron surge de algum lugar, empolgada. —


Pedimos alguns shots de tequila. Você tem que… — A voz dela morre
quando avista Evan. Seus olhos se arregalam. — Nossa, você é rápida.

— Cam! — repreendo, envergonhada, me sentindo mais sóbria agora


que vomitei tudo.
Ela ri e dá alguns passos para trás, cambaleando.

— Tudo bem. Se divirtam. Eu já tenho carona para casa, então não se


preocupe comigo. Vou nessa, Scar.

Antes que eu possa chamá-la de volta, olho para o jogador, que está
com as sobrancelhas ligeiramente levantadas.

— Ela está bêbada — digo, na defensiva. Solto um suspiro. Preciso


encerrar essa noite. — Vou embora. Estou me sentindo meio… tonta.

— É uma boa ideia. Quer uma carona?

— Posso ir de táxi.

— Sozinha? Meio arriscado.

— Estou bem agora.

Bom, considerando que eu acabei de vomitar as tripas, até que me


sinto bem. Pelo menos estou lúcida e não quero acabar com a noite de
Evan. Ele já foi gentil demais comigo.

— Então vou no táxi com você. Não posso deixá-la sozinha.

— E como vai voltar depois?

— Vou para casa em seguida. Vim de carona e planejava pedir o carro


de um amigo emprestado para te deixar no dormitório. Mas, já que você vai
de táxi, posso pedir para o motorista me levar embora também.

— Tudo bem então.

Não há como escapar do argumento de Evan. Não consigo parar de


pensar que estou sendo uma pedra em seu sapato e isso me incomoda.
Logan ficava com bastante raiva quando as coisas saíam fora de seu
planejamento. Uma vez, tive que sair mais cedo de um jantar por conta de
uma emergência familiar e ele voltou o caminho todo resmungando. Era
chato.
Ao sairmos para a calçada, algumas pessoas que se aglomeram em
frente ao Blizzard exclamam quando veem Evan. Ele recebe alguns
tapinhas nas costas e acenos calorosos. Franzo o cenho. Seu rosto
permanece relaxado, como se isso fosse comum para ele.

— O que foi isso?

— Marquei os pontos da vitória do jogo de hoje. — Dá de ombros. —


O pessoal sabe apreciar uma boa partida de hóquei.

Sutton sinaliza para um táxi que passa pela rua. Meus pensamentos se
dissipam quando ele coloca a mão na base de minha coluna, me guiando
para entrar no veículo. Estou usando uma camiseta de mangas longas com
as costas abertas, o que significa que os dedos ásperos e quentes estão em
contato com minha pele. Sinto arrepios e tento me convencer de que é por
conta do vento gélido que chicoteia meu rosto e cabelos, mas, no fundo, sei
que não.

Dentro do automóvel, Evan diz, quebrando o silêncio:

— Ficou calada de repente.

Tiro os olhos da janela, parando de prestar atenção na paisagem.

— Só estou com sono.

Mentira e verdade. Estou sonolenta, mas alguns pensamentos me


assombram. O meu futuro, as notas e a sensação de ter jogado três anos
inteiros no lixo. Acho que a bebida me deixou emotiva. Com as questões da
faculdade, não tive tempo para pensar em Logan. Mas, em alguns
momentos, é meio inevitável. Quanto tempo leva para um coração partido
se curar?

Sutton não diz nada até que cheguemos em frente ao alojamento. Olho
para ele e, surpreendendo nós dois, dou um beijo em sua bochecha. Com o
rosto enrubescido, saio do carro antes de esperar sua reação e fecho a porta
depressa, sem olhar para trás.
07

ENQUANTO ESPERO PACIENTEMENTE na biblioteca, aproveito


para checar meu celular. Há notificações da previsão do tempo, do cartão de
crédito avisando sobre os cinco dólares do café que comprei antes de vir
para cá, e novas mensagens do meu irmão mais novo, que ganhou um
celular na semana passada.

Josh: Você sabia que um polvo tem três corações? Sério. TRÊS. O que
será que acontece se um deles parar? Os outros param também?

Josh: A mamãe e o papai disseram que você vai vir na Ação de


Graças, só que está tão longe. Não dá para voltar antes?

Josh: Daisy decidiu parar de comer carne de porco. Ela ficou


ressentida depois que começou a assistir Peppa Pig. Eu devoraria a Peppa
e toda a família dela e não derramaria nenhuma lágrima. Vou continuar
comendo por nós dois.

Começo a digitar uma resposta.

Scarlet: Os outros corações provavelmente continuam funcionando. E


não sei se vai dar para ir antes, mas dou notícias, ok?

Scarlet: Ah, e não fale sobre a Peppa na frente da Daisy. Ela pode
ficar magoada. Seja bonzinho.

Deixo o celular de lado e volto a prestar atenção nas anotações. Graças


a maldita Valhalla, não dormi bem na noite passada. Meu corpo dói em
alguns lugares e preciso usar meus óculos de leitura para evitar que a dor de
cabeça piore. Tomei um analgésico, mas, para ser honesta, não acho que
tenha feito tanta diferença. A sensação ainda é de alguém martelando meu
cérebro.
Estou tão imersa que nem noto Evan chegar.

— Bom dia, Scarlet.

— Bom dia.

Percebo que o olhar dele está fixo nos meus óculos, e me pergunto o
que pode estar passando pela sua mente. Meu rosto está sem maquiagem,
deixando em evidência as sardas e as bolsas escuras abaixo dos olhos. Os
fios alaranjados presos em um coque desleixado, com duas mechas caídas
nas laterais. Um moletom verde gigante completa o visual improvisado.

Meus pés estão apoiados na cadeira adjacente. Quando faço menção de


retirá-los para que Sutton possa se sentar, ele segura uma de minhas botas e
a coloca sobre seu colo. E, simples assim, passo a usá-lo como apoio. Pisco
algumas vezes, confusa, mas Evan não diz nada, apenas coloca duas latas
de refrigerante de limão na mesa, alguns livros e uma rosquinha numa
embalagem transparente.

— A recompensa se conseguir repassar os tópicos de hoje.

— Refrigerante e rosquinha. Parece perfeito para diminuir a


expectativa de vida.

— Depois do Valhalla, isso não é nada.

Em partes, Evan tem razão. Mordo a tampa da caneta, evitando reparar


demais nele. Sutton usa a habitual camiseta branca sem graça e jeans. Nada
de extraordinário, mas ainda assim ele atrai bastante atenção. Acho que
sempre estive alheia demais para perceber que todo mundo para ao menos
dois segundos para observá-lo quando entra em um espaço. Tipo agora. Há
muita gente espiando em nossa direção. Começo a rabiscar a margem do
livro com algumas flores.

— Não entendo como desenhar algumas flores tortas possa te fazer


recuperar a média.

— Cala a boca — murmuro. — Não está torto, e é uma Orchidaceae.


— Você podia não usar nomes científicos…

— Orquídea — esclareço, suspirando. — Será que…

O telefone de Evan começa a tocar sobre a mesa e me calo. Não tenho


tempo de olhar o nome no visor antes que ele desligue, ignorando a
chamada. Então, um segundo depois, a melodia volta a soar e ele pede um
momento antes de se levantar e caminhar para um local mais reservado,
onde possa atender.

Sutton retorna um momento depois.

— Me desculpa, Scar. Vou precisar ir agora. É uma emergência.

Fico sem reação. Observo sua expressão se transformar em seriedade,


quebrando qualquer clima descontraído anterior. Então, quando percebo que
estou só o encarando feito uma idiota, o respondo:

— Ok, mas… tá tudo bem?

— Sim.

Uma resposta sem detalhes e direta. Pela forma que ele sai, é óbvio
que não está tudo bem. Contudo, não digo nada quando o jogador pega as
chaves do carro na mesa e murmura um “até mais” antes de sair da
biblioteca.

Abro o refrigerante, o que me rende alguns olhares raivosos. Bebo o


líquido e mordo um pedaço da rosquinha enquanto digito uma mensagem
para Cam, com os dedos sujos de açúcar.

Scarlet: O monitor cancelou hoje. Quer ir comigo até o centro?

A resposta chega quase no mesmo segundo.

Cameron: Perfeito. Estava precisando ir até lá.


Olho para a última fachada da rua, lutando para não deixar meus
ombros se curvarem em derrota. Este é o último hortifruti do centro de
Crystalville e, depois de receber tantos “não estamos interessados, mas
obrigado” dos comerciantes locais, fico
sem esper
ança.

— Desistiu? — Cameron parece um cabideiro humano, com sacolas


pendendo de seus braços, cheias de quinquilharias e cachecóis que ela
comprou aqui no centro, com o pretexto de que o inverno está próximo. —
Você nem tentou.

— Tentei exatas onze vezes.

— E agora serão doze. Não dizem que doze é o número da sorte?

Franzo o cenho. Na verdade, treze é o número da sorte, mas não


retruco.

— Espere aqui fora. Tenho certeza de que não vai demorar muito.

Ao atravessar as portas duplas, observo ao redor. Diferente dos outros


hortifrutis que eram bem iluminados e decorados com cores orgânicas, este
tem uma paleta escura e iluminação discreta. Pelo menos os alimentos
parecem frescos. Caminho em direção ao balcão de madeira, onde uma
mulher alta está posicionada. Ela me observa com os olhos escuros.

— Posso ajudar?

Explico a ela sobre o projeto da CVU e o que será necessário,


aguardando sua reação. “Gilia”, como se lê em seu crachá, apenas joga um
cartãozinho de papel em minha direção.

— Meu número de telefone. Podemos conversar melhor outra hora.

Pisco.

— Sério? — questiono, em choque. — Obrigada pela oportunidade,


eu…
— Ei, ei — interrompe, com um olhar severo em seu rosto de quarenta
e poucos anos. — Nada de agradecer, menina. Eu ainda não me decidi.
Preciso ver se é favorável para os negócios.

Solto um suspiro. Bom, pelo menos não foi uma completa rejeição.
Posso fazê-la mudar de ideia.

— Ok. Vou te enviar mais detalhes do planejamento para que possa se


decidir…

— Ótimo. — Em seguida, ela me ignora, lixando as unhas compridas.

Entendo como minha deixa para ir embora, antes que ela mude de
ideia e me expulse com um severo “não”. Cam ainda está na calçada
quando saio. Minha amiga parece um pouco cautelosa ao me analisar.

— Ok, isso foi mesmo rápido. Más notícias?

— Mais ou menos. Há uma possibilidade. — Dou de ombros, na


tentativa de não demonstrar o quão tensa estou.

Cam e eu caminhamos até seu carro. É um Corolla antigo e desbotado,


que ela trata com todo amor, sempre mantendo-o limpo. Ao entrarmos no
veículo, Cameron joga todas as sacolas no banco de trás. Em seguida,
começa a dirigir de volta ao campus.

Leva cerca de trinta minutos para chegarmos. Quando ela estaciona,


nos despedimos e cada uma vai para seus respectivos dormitórios. Como
Viper não está, acendo duas velas e começo a revisar uma parte da matéria
em que Evan supostamente deveria estar me ajudando. Mas, como teve uma
emergência misteriosa, não me resta outra opção. Quando o céu escurece e
minha cabeça volta a doer, faço uma pausa, alongando o corpo.

Viper entra no dormitório um segundo depois, com o nariz e os olhos


vermelhos. Ok, estou começando a ficar preocupada. Nunca a vi demonstrar
qualquer sinal de fraqueza antes. Agora, é a segunda vez que a vejo
chorando.

— Tá tudo bem?
Ela olha para mim com raiva.

— Por que você não cuida da própria vida?

— Só estava tentando ser legal — murmuro.

Qual é a porra do problema das pessoas hoje em dia? Ignorando Viper,


guardo minhas velas e recolho as pedras da lua sobre a cômoda, enfiando-as
na primeira gaveta. Ouço a porta do banheiro abrir e fechar, e prendo o
apanhador de sonhos num gancho sobre a cabeceira aveludada. Olho sobre
o ombro, conferindo se a área está limpa. Aproveito que Viper se trancou no
banheiro e jogo um cristal energético embaixo de sua cama. Espero que isso
afaste as auras negativas.

— Foi mal — minha colega de quarto diz assim que abre a porta, me
surpreendendo.

Me afasto de sua cama, na tentativa de não levantar suspeita.

— Todo mundo tem dias ruins. Você podia tentar só… não projetar
isso em outras pessoas. Que tal yoga para desestressar? — Não fico nem
um pouco surpresa quando ela esboça uma careta.

— Não, obrigada. Isso não me parece atrativo.

— Tudo bem, nada de yoga então. Mas o que você costuma fazer para
relaxar?

— Bom, escuto rock. — Viper se joga em sua própria cama, olhando


para o teto do quarto. — Ou toco guitarra.

Não sei como alguém consegue relaxar escutando rock, mas não
retruco.

— E que tal filmes dos anos dois mil?

— Tipo A Última Música? — Ela vira o rosto em minha direção.

— É, tipo isso. Quer assistir comigo?


— Agora? — murmura, parecendo surpresa pelo convite.

— Sim.

— Pode ser. Eu não ia fazer nada mesmo.

Ignoro sua frase e pego o notebook. Sento na cama de Viper, fingindo


que não vi seu olhar de você-tá–invadindo–meu-espaço e o de por-favor-se-
afasta quando eu me aproximo um pouco mais, a ponto de nossos ombros
se tocarem.

— Isso é necessário? — pergunta, se referindo ao fato de estarmos


próximas.

— Pronto. — Evito propositalmente a pergunta. O filme começa a


rodar na tela. — Agora é só relaxar.

Surpreendentemente, ela fica em silêncio e nós começamos a assistir


ao filme.
08

CONGELO NO MEIO do campus, segurando meu habitual copo de café.


A cena que se desenrola à minha frente me faz prender a respiração. Logan
está com uma garota, próximo da cafeteria. Não sei que droga ele está
fazendo deste lado da CVU. Contenho o estremecer quando ele,
suavemente, retira uma mecha de cabelo do rosto dela, prendendo-o atrás de
sua orelha.

Me sinto enjoada.

Dou alguns passos para trás, a fim de sair do seu campo de visão.
Porém, tropeço nos meus próprios pés e, de repente, sinto mãos grandes e
quentes segurando meus ombros, evitando que eu me estatele no chão.

— Sã e salva. — A voz grave e familiar envia arrepios pelo meu


tronco.

Evan se distancia. Sutton veste sua jaqueta de couro habitual,


mantendo uma expressão séria e relaxada. A última vez que tive notícias
dele foi no sábado, na biblioteca. Desde então, se passaram três dias. Ele
não mandou nenhuma mensagem. Sem dizer nada, concentro-me em ajustar
a alça torta da minha bolsa.

— Desculpa por ter saído daquela forma.

Apesar dele não ter nada a ver com isso, estou muito irritada, então
dou de ombros.

— Sem problemas — respondo, mal o olhando nos olhos.

— Então, podemos nos encontrar amanhã à noite?

— Vou estar ocupada.


Olhando para ele de soslaio, percebo o que parece ser um franzir de
cenho. Provavelmente estou sendo babaca, mas não ligo muito para este
fato. A questão é: preciso de notas boas. Evan, como meu monitor, poderia
ao menos definir a porcaria dos horários. Estamos falando sobre o meu
futuro.

— Tudo bem. Então me avisa quando estiver livre.

Solto um suspiro conforme ele começa a se distanciar e sigo para a


aula, tentando ignorar a sensação esquisita no estômago e o fato de Logan
estar com aquela garota. Tento direcionar meus pensamentos para outro
lugar.

Não é mais da minha conta.

Ele não é mais meu problema.

— Você tá um saco. — Cam coloca as mãos na cintura.

Ela estava me contando sobre uma situação engraçada que aconteceu


no último encontro com um veterano e reclamando de como o beijo dele era
muito molhado. Apenas dei de ombros. Então, segundo Cameron, sou um
saco.

Estou sentada na cama dela, em seu dormitório, terminando de tomar


meu Bubble Tea. Esboço uma careta enquanto sugo o canudo e explodo
uma das bolhas de cereja na minha boca.

— Você sabe o que aconteceu.

— Logan estava com uma garota e daí? Não é o fim do mundo. Foi
por isso que vocês terminaram, a propósito.

— Não é isso que está me incomodando. É o fato de que ele,


simplesmente, seguiu a vida. Depois de me trair. Tudo parece bem no
mundo de Logan, enquanto eu estou lutando para me manter na CVU e
recuperar as notas. Não é justo.

— Acho que você tá muito tensa com os estudos. Por que não sai com
alguém? Sem compromisso, sabe. Apenas diversão.

— Você tá falando de sexo casual?

— Por que você falou como se fosse um monstro de sete cabeças?

— Porque é.

— Para de ser esquisita, Scar. É só achar um cara legal e se permitir.

Não estou interessada em encontrar um cara legal ou me “permitir”. A


única pessoa com quem transei foi Logan. Não gosto da ideia de fazer sexo
com alguém que não dê a mínima para mim, sem qualquer tipo de
intimidade. Isso está fora de cogitação.

— As velas e o yoga já me ajudam a relaxar o suficiente.

— Sabe o que te faria relaxar? Orgasmos.


Eu seguro o gemido de frustração no fundo da garganta e me ocupo em
terminar de beber o chá para não ter que rebater Cameron. Acho que ela
percebe que esta é uma batalha perdida, porque rola os olhos e volta a
cachear as pontas do cabelo com babyliss. Ela tem outro encontro esta
noite, acho que é o terceiro essa semana. Diferente de mim, Cam é muito
bem resolvida e não liga muito para conexão antes de parar na cama de
alguns caras.

Meu celular vibra e eu jogo o copo de plástico vazio na lixeira do


dormitório antes de pegá-lo. Há uma nova mensagem.

Evan: Livre hj à noite.

Scarlet: Agora você manda mensagens…

Os três pontinhos aparecem na tela imediatamente.

Evan: Tive uma emergência familiar.


Afundo na cama, me sentindo uma completa idiota. Não sei nada sobre
a vida pessoal de Evan, então não posso condená-lo pelo sumiço. Além do
mais, Sutton não tem culpa de eu ter tirado notas horríveis. Talvez eu
devesse parar de depositar a expectativa de ter minha pele salva nos
momentos que passamos juntos na monitoria.

Preciso fazer isso sozinha.

Verifico se há retorno de Gilia, mas tudo o que encontro é o nada. Ela


apenas visualizou a proposta que enviei hoje pela manhã. Que ótimo! Volto
até o chat do jogador e começo a digitar uma resposta.

Scarlet: Desculpa. Fui meio babaca hoje. Não tinha nada a ver com
você.

Evan: Não tem problema. Tenho um fraco por mulheres bonitas


extremamente grosseiras.

Scarlet: Eu não fui extremamente grosseira!

Começo a rir, mas então me dou conta de que… Merda, isso foi um
flerte? Cameron me encara através do espelho, com uma das sobrancelhas
arqueadas. Paro de sorrir e olho para a tela do celular, refletindo se devo
acrescentar algo. Quando ele também não diz mais nada, pergunto para
Cam, quebrando o silêncio:

— Você já está de saída?

— Sim. — Minha amiga termina de passar uma camada de rímel nos


cílios. — Sabe no que eu estava pensando? Que você devia sair com aquele
capitão do time de hóquei.

Franzo o cenho.

— Eu nem sei quem é o capitão do time de hóquei.

Ela solta uma gargalhada e me olha como se eu fosse louca.

— Como não? Foi ele quem colocou gelo na sua mão aquele dia,
depois vocês dois estavam juntos no bar…
Congelo. Evan é capitão do time de hóquei? Ok, isso definitivamente é
uma informação inesperada. Achei que ele só fizesse parte do time, não que
fosse uma peça fundamental dele. Agora está explicado por que todo
mundo parece respeitá-lo dentro e fora da CVU.

— Você não achou importante me contar que Evan é capitão da equipe


de hóquei? — questiono, ultrajada.

— Qual é, Scarlet. Todo mundo no campus conhece o cara. A cidade


inteira, na verdade. Crystalville é obcecada pelo esporte. Por ser tão bom no
gelo, ele é quase tratado como o presidente desse lugar.

— Você já viu ele jogando?

— Duas vezes. Não gosto do esporte, mas o hóquei dos Frozen Fury
vale a pena. — Cameron interrompe a fala para passar o batom vermelho
nos lábios. Ao terminar, prossegue: — Enfim, você devia transar com ele.

— Meu Deus! Será que dá para parar de falar nisso? — Enterro o rosto
em um travesseiro, sentindo minhas bochechas pegarem fogo. — Não tô a
fim, tá legal? — As palavras soam abafadas.

— Ok, mas acho que uma hora você vai mudar de ideia. — Há uma
pequena pausa. — Tô pronta.

Finalmente ergo o rosto do travesseiro e inspeciono Cameron. Ela está


usando uma blusa preta com um decote profundo, os fios castanhos estão
com as pontas afuniladas, repartidos ao meio e parando na altura dos seios.

— Uau, você arrasou. Bom, vou nessa. — Me levanto da cama,


desamassando o suéter. — Use camisinha, ok?

Cam esboça uma careta, ofendida.

— É claro! Eu sou responsável.

Dou uma risadinha e, antes de sair pela porta, murmuro:

— Bom encontro.
Não estou conseguindo relaxar. Nem mesmo as velas e o yoga limpam
minha mente como o esperado. Largo a caneta de maneira brusca,
ignorando os cálculos que precisam ser revisados. Eu devia ter combinado
um novo horário com Evan, mas deixei que meu orgulho interferisse até
nisso.

Preciso sair dessa sozinha.

É o que estou tentando me convencer há três dias. Deixo que minha


cabeça caia sobre o livro aberto na mesa da biblioteca. Inspiro e expiro
profundamente algumas vezes. Técnicas de respiração ajudam minha mente
a se manter organizada. Quando me endireito na cadeira, volto aos estudos.

— Se não queria mais ajuda, era só ter dito.

Ergo o olhar e vejo Evan parado diante de mim. Ele joga alguns livros
na mesa e puxa a cadeira à minha frente. Fico sem reação. Deveria existir
um manual com instruções de como agir quando alguém que você está
evitando aparece de repente.

— Eu não estava te evitando — é a primeira coisa que minha boca


anuncia.

Que droga foi essa? Olho para o jogador, que parece tão surpreso
quanto eu.

— Eu não disse que você estava me evitando. — Seu corpo grande


recosta contra a cadeira. — Mas é isso que você está fazendo, não é? Agora
faz sentido.

— Mais ou menos. Mas não é nada pessoal. Só estou tentando me


sentir mais competente e fazer as coisas sozinha.

— Não tem problema em pedir ajuda quando se precisa.


O jeito como ele me encara é tão intenso que tenho que desviar os
olhos para qualquer outro ponto que não seja suas íris cinzentas. Observo a
capa dos livros que ele colocou sobre a mesa, lendo os títulos.

— Guerra Civil, O Declínio e Queda do Império Romano, Sapiens…


vai ler tudo isso? — Mudo de assunto.

— Já li, mas quero reler. — Volto a observá-lo, um pouco intrigada.


Ele dá de ombros. — História é muito interessante.

— Você quer ser um jogador profissional? — Não consigo conter a


curiosidade.

— Sinceramente, ainda não sei. Hóquei é quase como respirar para


mim, mas não sei se conseguiria lidar bem com a falta de privacidade.

— Você diz sobre a imprensa?

— Sim. Se eu for para a NHL, é de se esperar estar sob holofotes.

Eu sei que NHL significa National Hockey League, mas não faço ideia
de como funciona os bastidores, nem o processo de seleção. Começo a
riscar a margem do livro, alternando o olhar entre as nuvens que estou
desenhando e o escrutínio de Evan.

— Você devia ir lá em casa.

A frase dele faz com que a caneta escape dos meus dedos.

— Para estudar — completa, diante do silêncio constrangedor.

É claro que ele não estaria sugerindo outras coisas. Pego a caneta outra
vez e falo:

— Gosto da biblioteca.

— Eu não moro sozinho, então se essa for sua preocupação…

— Não era. — Não consigo encará-lo.


Começo a desenhar formas geométricas na página, na tentativa de me
manter ocupada. Meu Deus, o que há de errado comigo? Pelo visto, três
anos em um relacionamento te deixa enferrujada. Parece que não sei mais
como lidar com homens. Quando conheci Logan, tínhamos quinze anos. Ele
era desajeitado e apenas um garoto. Evan, por outro lado, é a definição de
masculinidade, além de ser mais velho do que eu. É difícil não agir feito
uma idiota na frente dele.

— Só vim buscar os livros, se precisar de ajuda é só falar. — O


jogador quebra o silêncio, levantando-se e fazendo com que eu o encare. —
A gente se vê por aí, Scarlet.

— Claro, até mais.

Observo ele se distanciar sem olhar para trás.


09

MEUS DEDOS ESBARRAM na caixa empoeirada embaixo da cama,


enquanto estou de joelhos no carpete. Esta é a única que ainda não abri
desde que me mudei para o dormitório. Minha mãe me disse para pegá-la
apenas quando eu sentisse saudades de casa, e é a primeira vez que me sinto
perdida e sozinha aqui.

Depois de colocá-la sobre a cama, respiro fundo, observando as


camadas de durex que a mantém fechada. Com uma tesoura, abro a caixa.
Lá dentro, encontro o diário que escrevi na adolescência, dois porta-retratos
de minha família e… Prendo a respiração. Com cuidado, toco os cadarços
velhos, como se fossem me morder. Em seguida, corro o dedo indicador
sobre a pintura azul-celeste dos patins, evitando as lâminas.

Faz tempo desde que não os coloco. Desde o acidente, prometi a mim
mesma que não me arriscaria no mundo da patinação artística.

Então, no fundo da caixa, avisto uma outra fotografia, com um post-it


grudado nela. Hesitante, seguro-a. É uma foto minha, no dia da competição
que mudou tudo. Antes de entrar no gelo, meu sorriso era enorme, os olhos
brilhando para a câmera. No pedaço de papel colorido, reconheço a letra de
minha mãe.

É meu sonho te ver sorrir assim outra vez.


Com amor, Lily.

Fico sem fôlego. De repente, parece difícil até respirar. Fecho a caixa
depressa e a empurro para debaixo da cama, na tentativa de afastar todas as
memórias que querem me inundar. Essa é uma parte do meu passado que
prefiro manter nas sombras. Quando me recomponho, pego o celular e
digito uma mensagem para Evan.

Scarlet: Ainda está de pé os estudos na sua casa?

A resposta não demora para chegar.

Evan: Sim, vou te mandar o endereço.

Evan: Pode vir neste momento, se quiser.

Observo a tela do celular por longos momentos, ponderando se estou


indo até lá pelos motivos certos. Quero fugir do torpor e melancolia que a
visão dos patins trouxe à tona. Pensei que fosse forte o suficiente, mas
percebi que, na verdade, só estava fugindo esse tempo todo. Ignorar não é o
mesmo que superar. Respirando fundo, começo a calçar meus sapatos.

Está frio no campus, então visto um casaco antes de sair. O táxi que
pedi me espera na frente do alojamento. São poucos minutos daqui até o
casarão onde Evan mora. Assim que o carro para no meio-fio, agradeço ao
motorista e desço, atravessando o gramado até a porta da frente.

Toco a campainha e espero. A porta se abre instantes depois, e estou


pronta para cumprimentar Evan, mas minha boca se fecha assim que
encontro um par de olhos verdes. Não sei quem é esse cara, mas é quase
impossível não reparar na sua beleza. Ele é alto, talvez um pouco mais do
que Sutton, tem o cabelo loiro e está sem camiseta, exibindo um tanquinho
de dar inveja. Uma de suas sobrancelhas se arqueia em minha direção ao
mesmo tempo em que um sorriso malicioso desliza pela boca dele.

— Agora entendi o motivo de Evan estar tão obcecado com a ideia de


ser monitor.

Antes que eu possa dizer qualquer coisa, Evan aparece atrás dele. Com
o rosto sério, diz:

— Cai fora, Ferrari.


Com um risinho zombeteiro, Ferrari se afasta. Agora, diante de Sutton,
fico em silêncio, sem saber como reagir. Ele veste apenas uma calça
moletom e me esforço para manter os olhos em seu rosto. Meu Deus. Será
que é proibido andar de roupas nesta casa? Ajeito uma mecha do meu
cabelo, prendendo-o atrás da orelha, e engulo em seco quando o cheiro de
sabonete e creme de barbear me atinge.

— Os quartos ficam lá em cima.

É a primeira frase que ele direciona a mim, me fitando com os olhos


cinzentos sérios. Franzo o cenho e Evan ri baixo, provavelmente
percebendo o quanto suas palavras soaram inapropriadas. Bato o livro que
estou segurando em seu ombro.

— Sem piadinhas maliciosas — aviso.

— Como quiser, cenourinha.

Suas costas entram no meu campo de visão quando ele se vira e


começa a subir as escadas, me deixando surpresa ao notar as tatuagens
espalhadas por ali. Há uma espada no meio de sua coluna, com as palavras
memento mori e, mais abaixo, veni, vidi e vici. Preciso perguntar sobre elas
depois.

Sigo Sutton até entrarmos em uma das portas do corredor. Não consigo
evitar meu escrutínio. Examino desde as paredes brancas até a prateleira de
livros metodicamente organizada por cores e tamanhos. O quarto não diz
nada sobre Evan, apenas deixa claro seu pragmatismo e disciplina. Os
lençóis na cama estão impecáveis, sem uma única dobra.

O jogador se acomoda na ponta da cama, enquanto eu pego a cadeira


da mesa de estudos. Coloco os livros que trouxe sobre o tampo de madeira e
me posiciono de forma que consiga encará-lo.

— Quer começar por onde? — O tom de voz soa descontraído como


sempre.

— Primeiro… — Limpo a garganta. — Acho que você pode vestir


uma blusa.
— Ou você pode tirar a sua — sugere, arqueando as sobrancelhas em
minha direção.

Antes que eu possa dizer qualquer coisa, Evan se levanta e vai até o
armário. Seu corpo está coberto em questão de segundos. Ignoro o
comentário e o impacto que teve em mim, focada em começar a revisão.
Depois de alguns momentos, estou fazendo um resumo com sua supervisão.

Não sei quanto tempo passa, mas começo a sentir fome e minhas
costas doem. Estico o corpo na cadeira, estendendo os braços acima da
cabeça. Demoro a perceber que minha blusa subiu com o movimento e
expôs minhas costelas, e sinto o olhar dele queimar neste ponto.
Envergonhada, deixo as mãos caírem sobre o colo.

— Está com fome? — questiona, como se pudesse ler meus


pensamentos. — Dá para fazer uma pausa. Tem alguns pedaços de pizza lá
na cozinha.

Antes que eu possa responder, complementa:

— A não ser que você seja uma daquelas pessoas que não comem
carne.

Eu rio, franzindo o cenho.

— Você quis dizer vegetariana? E a resposta é não. Eu já tentei uma


vez, mas não me adaptei. Acho que é uma ideia a se considerar a longo
prazo.

— Você é muito certinha, Scarlet.

A frase me faz encarar Evan de verdade, sem o ar descontraído. Agora,


fico apreensiva. É esta a imagem que ele tem de mim? De alguém muito
certinha? Ele se apoia no batente da porta quando nota que não fiz menção
de segui-lo até o andar de baixo.

— Há algum problema em ser certinha?

— Não. Eu te acho fofa — responde, sério.


Fofa? Acho que não é a melhor coisa para se ouvir de um cara bonito.
Lembro-me, então, de uma das conversas que tive com Logan. Aconteceu
na última vez que fizemos sexo, e ele me chamou de frígida por não querer
transar no tapete sujo da sala. Me remexo na cadeira. Será que o problema,
na verdade, é que Evan também ache que não sou atraente? E por que
Diabos estou pensando nisso?

— Scar.

A voz séria e grave me tira do transe. Antes que eu possa me conter,


pergunto:

— Você me acha… sem graça?

Por um momento, a pergunta parece pegá-lo de surpresa. As íris


cinzentas percorrem cada centímetro do meu corpo, analisando
minuciosamente cada parte dele. De repente, me sinto em chamas. Acho
que nunca senti nada do tipo antes. É como se correntes elétricas me
arrepiassem por inteiro.

— Não, eu não te acho nem um pouco sem graça.

— Mas me acha fofa — reitero, ainda insatisfeita com a resposta. —


Seja honesto, você transaria comigo?

Ai, meu Deus. O que foi que eu acabei de dizer? Minhas bochechas
esquentam.

— Você realmente quer saber a resposta? — o capitão questiona. Noto


um brilho diferente em seus olhos.

Engulo em seco.

— Sim.

— A resposta é sim, eu transaria com você. Todos os dias. — Há uma


pausa prolongada enquanto as palavras pairam no ar, e eu preciso lembrar a
mim mesma de como é que se respira. — Alguma outra pergunta?
Balanço a cabeça negativamente. Sutton me observa por alguns
segundos antes de me dar as costas. Com o coração disparado, me levanto e
o sigo até o andar debaixo, em direção à cozinha. Quando entramos no
cômodo, noto que não estamos sozinhos. Pegando leite na geladeira, há um
cara de pele negra, cabelos raspados e tatuagens espiraladas pelas costas
desnudas. Quando se vira, me concentro em seu rosto, não no fato de que
ele também segue a regra de não usar camiseta.

— Vocês terminaram rápido. — O estranho bebe a garrafa direto do


gargalo.

Abro a boca, sem saber o que dizer.

— Ela é do programa da monitoria, Dan. É a Scarlet — Evan rebate,


com o tom de voz seco.

— Ah. — Ele parece surpreso, como se isso explicasse tudo. —


Desculpa, cara, não sabia. É que você não traz ninguém para cá, então achei
que…

— Deixa para lá. — Evan volta a cortá-lo. — Ainda tem pizza?

— Sim. Tá na geladeira. — Dan me lança um olhar curioso. —


Desculpa, Scarlet. Tô indo nessa.

Antes que eu possa dizer “tchau”, Dan se afasta, saindo da cozinha.


Evan pega duas fatias de pizza e as coloca em um prato, levando-as até o
microondas.

— Quer beber alguma coisa? — Ele volta a abrir a geladeira e observa


o interior. — Tem água, cerveja, vinho…

— Pode ser o vinho.

— Boa escolha.

Evan me enche uma taça no mesmo momento em que a pizza fica


pronta. Então, ele deixa o prato sobre a ilha da cozinha no estilo americano.
Com cuidado, seguro a massa quente com os dedos, então dou uma mordida
e bebo um gole, observando sobre a borda transparente enquanto Sutton tira
o isqueiro do bolso, depois olha na minha direção.

— Se importa?

— Não — respondo, já que estamos na sua casa. Não cabe a mim ditar
para ele se fumar ou não é apropriado.

Evan acende um cigarro nos lábios, abre as janelas da cozinha e dá


uma tragada profunda, soltando a fumaça que espirala no ar. Termino de
comer a primeira fatia, então ataco a segunda. Quando acabo, volto a
bebericar o vinho.

— Por que quis ser monitor? — A pergunta escapa de repente, fazendo


com que ele pare de observar a noite através da janela e volte toda sua
atenção para mim.

— Pontos extras.

Sinto que há mais por trás dessa resposta monótona, então insisto:

— Só isso?

— Não. Eu gosto de ensinar. Acho que eu seria professor de História,


como um plano B. — Dá de ombros. — Queria ver como eu me sairia como
monitor.

— Achei que você amasse o hóquei. — Não consigo conter a surpresa


no meu tom de voz.

Reparo que existem diversas nuances de Evan que ele não permite que
as pessoas vejam. Olhando de forma supérflua, qualquer um presume que
ele é apenas um cara bonito e fútil. Eu fui uma dessas pessoas. Agora, noto
que me equivoquei. Esse outro lado de Sutton me hipnotiza, como se
houvesse um campo magnético que me atrai em sua direção. Passo a ponta
da língua entre os lábios, umedecendo-os, e solto uma respiração pesada
perto da taça de vinho. Então, tenho a constatação de algo: quero conhecê-
lo melhor, entendê-lo…
— Eu amo o hóquei. — Sutton continua tragando o cigarro, vez ou
outra suas palavras saem envoltas de fumaça. — Mas, às vezes, não parece
o suficiente.

— Acho que entendo.

— Entende mesmo?

De repente, desejo contar a ele sobre a patinação, mas me calo.

— Talvez. — Deixo o resto do vinho na taça, apoiando-a sobre a


bancada.

— Um dia, acho que você vai descobrir o que deve escolher.

— Espero que sim. — Evan amassa a ponta do cigarro na borda da pia


e o arremessa na lixeira. — Quer voltar lá para cima?

— Na verdade, acho que já tá meio tarde. Vou embora.

— Vou te levar para casa.

— Não precisa. Vou chamar um táxi.

— Isso é inegociável, Scarlet.

— Não é sua obrigação. Você já está ajudando o suficiente com o


projeto. Não quero me aproveitar além disso.

Evan finge não ouvir. Ele apanha um casaco pendurado no mancebo de


madeira no hall e pega um molho de chaves. Fico em silêncio enquanto
caminho em direção a porta, porque sei que essa é uma batalha perdida.
Sutton destrava a picape, que apita algumas vezes e acende os faróis.

O som do rádio preenche o interior do veículo assim que Evan gira a


chave na ignição. Fico surpresa quando uma das faixas mais famosas do
Backstreet Boys começa a tocar. Everybody explode das caixas de som
enquanto Sutton manobra o carro. Lanço um olhar incrédulo em sua
direção.
— Você escuta Backstreet Boys?

Me esforço para impedir que o riso escape.

— Só quando estou sozinho.

Sua resposta final faz com que eu ria. O jogador ergue as sobrancelhas
em minha direção e mantém um breve contato visual. Logo em seguida,
volta sua atenção para o painel. Fico observando-o de perfil, o cabelo
bagunçado, os músculos de seu braço contraindo conforme ele se mexe e as
mãos firmes ao redor do volante. Reparo em seus dedos longos e, quando
pensamentos inapropriados começam a me bombardear, viro o rosto para a
janela, envergonhada.

Que merda tem de errado comigo hoje? Acho que Cam tem razão.
Estou muito pilhada ultimamente, louca para liberar essa tensão de alguma
forma. Para a minha sorte, não demora muito até que o dormitório surja no
campo de visão. Quando Evan estaciona, praticamente me jogo para fora do
carro, tropeçando no gramado.

— Obrigada! — grito sobre o ombro antes de começar a correr até a


porta de entrada, sem dar a ele a chance de responder.
10

ESSA NOVA TEMPORADA regular me deixa apreensivo. O time está


cometendo diversas faltas. Depois que alguns dos nossos melhores
jogadores se formaram no último ano, tivemos que reajustar a formação da
equipe. Foi um risco que escolhi correr antes de aceitar um draft. Eu sabia
que seria o jeito mais complicado, mas quero meu diploma em História e
não importa o quão as pessoas me achem um completo imbecil por isso.
Neguei ofertas para ir para a liga profissional por três anos consecutivos, o
que pode parecer loucura para alguns, é coerente para mim.

No meu primeiro ano na CVU, conquistamos o Frozen Four. No


segundo, me tornei o capitão da equipe pelo meu desempenho. No terceiro,
chegamos à final. Esse ano, pretendo fazer o meu melhor. Quero que os
Frozen Fury possam chegar, ao menos, às semifinais, porém não depende só
de mim. Preciso desse time.

— Ferrari, é bom que você esteja sóbrio — sr. Wilson, nosso treinador,
fala alto o suficiente para que sua voz alcance todos nós no gelo.

Hunter é meu ala-esquerdo, enquanto Lionel, nosso companheiro de


time, é o ala-direito. Eu jogo no centro, então nossa comunicação deve ser o
mais sincronizada possível. Hunter resmunga e o treinador apita, dando
início a próxima jogada. Faço uma nota mental de cada erro que
cometemos, que repasso para o treinador ao final do treino. Às vezes, ele
me envia slides, eu analiso e retorno com meu feedback. É assim que
construímos as estratégias.

— Vou passar no Frozen Bites — Hunter diz, enquanto tiramos os


patins. — Tá a fim de ir comigo?

Frozen Bites é a melhor lanchonete de Crystalville e fica a apenas dez


minutos do campus. Depois dos treinos, sempre tento manter a alimentação
o mais reforçada possível.

— Acho que não vai dar. Estou aguardando resposta para uma
monitoria hoje.

Hunter me olha com curiosidade, mas não diz nada. Sei que para ele,
ser monitor é uma burrice, mas não me importo. É algo que faz sentido para
mim. Ele se despede e vai até os chuveiros. Antes de segui-lo, checo as
notificações do meu celular. Scarlet ainda não respondeu, então apenas vou
até o vestiário.

Acho que, na verdade, ela está me evitando, o que não me incomodaria


se fosse outra pessoa. Não sei o porquê, mas sinto a necessidade de
entendê-la. Lembro da pergunta estranha que ela fez da última vez que
estivemos juntos, semana passada. Não deveria me importar, mas estou
preocupado. A palestra é daqui a cinco dias e não faço a mínima ideia de
como estão os preparativos do seu projeto.

Quando saio do chuveiro, envio outra mensagem.

Evan: Está tudo bem? O prazo se encerra daqui alguns dias.

A resposta chega imediatamente.

Scarlet: Tudo ótimo, não se preocupe.

Fico olhando para a tela enquanto os três pontinhos que indicam que
ela está digitando continuam a aparecer. Então, o celular vibra contra a
minha palma.

Scarlet: :)

A Frozen Bites está parcialmente cheia quando eu atravesso a porta,


fazendo o sino tilintar. É a melhor lanchonete de Crystalville e fica situada a
apenas dez minutos do campus, então está sempre cheia de universitários.
Não leva muito tempo para que eu aviste o topo da cabeça de Hunter, já que
os fios loiros se destacam.

Caminho até ele, que está sentado sozinho perto das janelas com
óculos escuros. Arqueio as sobrancelhas em sua direção e tomo um assento
à sua frente.

— O que te fez mudar de ideia e vir para cá? — Um sorriso debochado


toma conta do seu rosto.

— Nada — é tudo o que digo para não admitir em voz alta que estou
tomando um gelo de uma garota. — Por que está usando óculos aqui
dentro?

Hunter solta um suspiro dramático.

— Fui atacado depois que saí do vestiário.

Provavelmente, ao notar o olhar sério no meu rosto, Ferrari continua:

— Fiquei com alguém sexta, mas não sabia que a garota tinha
namorado. Ele me pegou desprevenido, foi um gancho esquerdo e tanto.

Semicerro os olhos, pronto para dizer o mais grosseiro palavrão que


conheço quando Cindy, a garçonete, se aproxima. É ela quem sempre nos
atende quando a gente vem para cá. Parece ter pouco mais de quarenta anos
e sempre puxa nossas orelhas quando julga preciso. Ela tem três filhos
homens, todos na nossa faixa etária. Por isso, parece nos ler como a palma
da mão.

— O mesmo de sempre? — Alterna o olhar entre nós dois,


especificamente focando em Hunter. — Por que está usando óculos de sol
aqui dentro?

— É uma nova tendência de moda — responde com zombaria, mas


nós dois sabemos que é mentira.

Ferrari está com hematomas. Ainda temos que dar um jeito de


esconder isso do treinador, o que me dá uma pontada de dor de cabeça.
— Tá ridículo. — A garçonete é franca, e me arranca uma risada
baixa. Hunter lhe dá um de seus sorrisos cafajestes, o que costuma deixar
uma trilha de calcinhas no chão, mas Cindy, definitivamente, é imune a esse
tipo de coisa.

— Vamos querer o mesmo de sempre — concordo. Ela assente e se


distancia. Pego o celular do bolso e começo a digitar uma mensagem para
minha irmã.

Evan: Está perto do campus?

Emery: Sim, pq?

Evan: Vem para Frozen Bites Urgente.

Ela responde apenas com um emoji de polegar para cima e eu guardo o


aparelho no bolso. Hunter parece me encarar enquanto sustenta um palito
de dentes no canto da boca, mas não sei dizer ao certo, porque os óculos
escondem sua expressão. Mantenho o rosto sério quando digo:

— É bom que ela saiba como ajudar, se não estaremos mortos. O


treinador vai ficar puto.

— Ela?

— Emery — esclareço.

Hunter entra em um silêncio que não sei decifrar. Ele amassa um


guardanapo até que vire uma pequena bolinha, então começa a atirá-la para
cima. Não demora muito para que os quatro sanduíches de peito de peru
cheguem com vitaminas de abacate e uma pilha de panquecas. Nossa dieta é
rigorosa por conta do hóquei. Concílio o esporte com academia e
alimentação, assim como a maioria do time. É importante que estejamos em
forma dentro e fora da arena.

Cindy mal termina de ajeitar a mesa e já estou atacando o primeiro


sanduíche, vez que ainda não comi nada hoje. Quando termino o segundo,
Emery aparece e joga sua bolsa em cima da mesa, anunciando sua chegada
de um jeito dramático. O tampo estremece, além do baque alto que paira no
ar.

— O que ele tá fazendo aqui? — Emy torce o nariz ao medir Hunter de


cima a baixo.

— Bom te ver também — Ferrari murmura com ironia, enquanto


mastiga.

Ignoro a rixa infantil que eles têm um com o outro e termino de engolir
uma garfada das panquecas com bastante xarope de bordo antes de dizer:

— Precisamos de ajuda para disfarçar o olho roxo de Hunter. Sabe,


com aquelas coisas que você passa na cara.

— Maquiagem — esclarece, com o cenho franzido.

Olhar para a Emy é, literalmente, como ver minha versão feminina.


Nós somos gêmeos, sendo eu o mais velho por conta de cinco minutos.
Sempre uso isso para me gabar e conseguir privilégios. Suas íris cinzentas
se movem feito um tornado até Hunter e ela arranca os óculos de seu rosto,
o que faz com que um som de protesto deixe a boca dele.

Agora, o círculo roxo está visível no olho direito. É um hematoma


feio.

— Bom, posso dar um jeito nisso, mas vocês dois ficam me devendo
uma. — Minha irmã devolve os óculos para o rosto dele depois de analisar
o estrago feito.

— Temos um acordo — falo, porque, de qualquer forma, eu não seria


capaz de deixá-la na mão quando precisasse.

— Bom, preciso ir agora. Tenho treino do cheer daqui a pouco. —


Emy pega sua bolsa na mesa.

No meio tempo em que ela faz o movimento, a manga longa de sua


jaqueta sobe e vejo a coloração roxa-esverdeada em sua pele pálida ao redor
do pulso. Continuo mastigando e engulo um pedaço de panqueca à seco,
com a visão turva. Minha irmã me dá um beijo de despedida no rosto e
ignora Hunter, saindo depressa. Controlo minha respiração, mas os nós dos
meus dedos ficam esbranquiçados enquanto seguro os talheres com força.

— Tudo bem, cara? — Ferrari questiona, a testa franzida.

— Vou dar uma passada em Cold Lake.

Ele ri e cruza os braços em frente ao peito.

— O que é que você vai fazer nesse fim de mundo?

— Dar uma volta.

Sem dá-lo tempo para me contrariar, apenas deixo o suficiente para


pagar minha parte em cima da mesa e saio da Frozen Bites. Quando entro
na picape, me surpreendo assim que Hunter puxa a maçaneta da porta do
passageiro. Seguro o palavrão no fundo da garganta e destravo o automóvel
para que ele entre.

— Sei que o namorado da Emery mora lá. Você sabe de algo.

Às vezes, me esqueço do quão persuasivo e perceptivo Hunter pode


ser por trás da imagem de engraçadinho que construiu. Fico em silêncio
enquanto ele coloca o cinto de segurança e então começo a dirigir.

— Vou ter uma conversa com ele, mas não se intromete. A Emy vai
ficar furiosa se souber que visitei o babaca e ainda levei você comigo.

— Tudo bem, vou ficar na minha — diz, cauteloso.

Leva cerca de vinte minutos para que cheguemos no subúrbio de


Crystalville. Estaciono em frente ao prédio com fachada gasta pelo tempo e
cercado por arbustos irregulares. Não há nenhum porteiro do lado de fora,
então Hunter e eu passamos sem interrupção pela recepção. Sei que Jones
mora no segundo andar porque já busquei Emery uma vez aqui. Fiz questão
de subir para me certificar de qual era o número de seu apartamento, caso
precisasse. Algo sempre me disse que aquela informação seria útil em
alguma situação. Como agora.
Bato na porta três vezes. Ferrari fica atrás de mim, em uma distância
que julguei ser segura. Não acho que ele deva se meter neste tipo de assunto
que envolva a vida particular de Emery. Alguns momentos se passam, então
a maçaneta gira e a imagem desleixada do namorado de minha irmã aparece
no meu campo de visão.

Jones parece surpreso enquanto seu olhar alterna entre mim e Hunter.
O choque logo é substituído por desconfiança. Ele passa uma das mãos pelo
cabelo bagunçado e trava o maxilar coberto por uma sombra de barba. Não
sou alguém que cria estereótipos, mas não entendo como Emery se
apaixonou por esse cara.

— O que você está fazendo aqui? — indaga, os olhos soturnos presos


no meu rosto.

Então, pulando todas as aulas de etiqueta, espalmo seu peitoral com as


duas mãos e o empurro contra a porta de madeira. Kaua tem tempo apenas
para arregalar os olhos e engasgar enquanto o prenso entre mim e a
madeira. Por mais que queira deixar marcas nele, mantenho minha raiva sob
controle.

— Preste atenção, eu vi as marcas no pulso da minha irmã. Da


próxima vez que tocar nela, eu te mato. — Faço uma pausa. — E mantenha
essa conversa entre nós.

Então, eu o largo, porque é o suficiente. Seu peito sobe e desce


rapidamente e ele adota uma postura defensiva, como se fosse para cima de
mim. Mas, então, parece calcular as chances de um corpo-a-corpo comigo e
se recompõe. Com o rosto vermelho, ele apenas fecha a porta com força,
sem dizer uma palavra. Quando me viro para Hunter, seu rosto inteiro está
sério.

Não digo nada enquanto voltamos para o carro, e nem ele.


11

— ESSE ATÉ QUE é bonitinho.

É o que Cameron diz enquanto analisamos a foto de um cara no


aplicativo de relacionamentos. Amanhã, depois da palestra, estarei livre de
toda a pressão da recuperação das notas, então decidi que irei me permitir
conhecer pessoas novas. Acho que já está na hora de começar a seguir em
frente depois de todo o drama com Logan. Mereço um cara legal, drinks em
algum pub, beijos eloquentes e, quem sabe, sexo sem compromisso. Por que
não? Sou uma mulher livre agora. Quero explorar essa nova fase da minha
vida em todos os sentidos.

— O corte de cabelo dele é meio esquisito. — Dou outra mordida no


muffin.

Cam e eu estamos encolhidas lado a lado em um assento longo e


acolchoado da cafeteria do campus. Nossos copos de café estão esfriando
sobre o tampo da mesa. Ela me olha com as sobrancelhas arqueadas.

— Desde quando você liga para corte de cabelo?

— Sei lá. Não gostei.

Passamos para o próximo.

— Estudante de Química, veterano e estagiário em um laboratório


renomado. — Cam lê em voz alta o que está escrito em seu perfil,
impressionada. — Esse parece interessante e é bonito.

— Ele parece ser muito baixo — acrescento, observando as fotos.


— Ok, desisto! — Ela puxa meu celular para baixo, e eu solto um
protesto com a boca cheia de muffin de chocolate. — Você colocou defeito
em todos os caras que vimos até agora. Acho melhor você continuar
sozinha no quarto com a companhia das suas plantas.

— As minhas plantas são companhias melhores que as de muitos caras


— falo, quando termino de engolir.

Cam revira os olhos.

— Aposto que sim, mas acho que você vem se auto sabotando e
colocando defeitos superficiais em todo potencial cara só porque está com
medo.

— Eu não estou com medo!

Ou estou? Não sei dizer ao certo. Eu, definitivamente, quero conhecer


pessoas novas, mas me sinto receosa depois de Logan. Não quero cometer o
mesmo erro de me envolver com alguém que possa quebrar o meu coração
em milhares de pedaços no futuro. Quero fazer a coisa certa desta vez, por
isso tenho que ser cautelosa.

— E qual seria o cara perfeito? — Cam questiona, com tom de voz


sarcástico.

— Hum… — Penso por alguns momentos, então meus olhos são


atraídos para o balcão e congelo.

Evan está em pé em frente à garçonete, que parece sem graça enquanto


anota seu pedido em um bloquinho. Ele usa um boné de beisebol que cobre
o cabelo escuro e sedoso. Está vestindo uma jaqueta preta com o zíper
fechado até seu queixo e as mãos enfiadas nos bolsos de calça. Acho que
prendo a respiração por alguns momentos. Estou evitando ele há alguns
dias, por algum motivo que não sei explicar. Não gosto de como Sutton faz
com que eu me sinta uma garota inexperiente e tola, de como ele me faz
imaginar coisas que eu não deveria…

— Entendi. Esse é o seu tipo ideal — Cam murmura, tirando-me dos


meus devaneios.
— O quê? — Me obrigo a desviar o olhar de Evan e focar no rosto de
Cameron e seu sorrisinho estúpido. — Eu não estava… Não era o que
parecia… Deixa para lá! — completo, irritada comigo mesma por não
conseguir formar frases coerentes.

Sinto um olhar queimar sobre mim e tenho vontade de afundar no


assento, me fundir a ele e sumir em sua composição, tornando-me parte do
cenário. Meu rosto começa a enrubescer e Cam volta seu olhar em direção
ao balcão.

— Ele tá olhando para cá — murmura, entre uma risadinha e outra. —


Meu Deus. Ele tá secando sua alma.

Chuto o pé de Cameron por baixo da mesa e finjo estar concentrada


em empilhar os sachês de açúcar mascavo.

— Para de encarar de volta. Meu Deus.

— Acho que ele está vindo até aqui… Bom, preciso encontrar alguns
amigos para revisar um tópico chato. Depois te mando mensagem, ok?

Antes que eu possa segurar seu braço e implorar para que não vá, ela já
está de pé ajeitando a bolsa no ombro. Solto um suspiro quando Cameron
pisca em minha direção e se distancia. Afundo no assento e mantenho o
olhar preso em meus tênis. Vou matá-la por isso!

— Parece que consegui te encurralar.

Solto uma risadinha sem graça antes de reunir coragem e olhar para
cima. Ele está certo, estou encurralada e não adianta mais tentar fugir. Evan
se senta à minha frente, sem qualquer hesitação em seus movimentos. Ele
cruza os braços fortes em frente ao peitoral largo e me olha, sério. Ai, meu
Deus. Por que acho isso sexy? Tento colocar a culpa nos hormônios, mas
nem estou perto do meu período fértil. É mais fácil admitir para mim
mesma que Evan é muito atraente, principalmente quando não tem
nenhuma pretensão de ser.

— E aí, como as coisas estão indo? — questiono com um pequeno


sorriso, fingindo que não passei os últimos dias ignorando todas suas
mensagens.

— Eu quem te pergunto isso, Scarlet — a forma como ele diz meu


nome faz com que um arrepio suba por minha espinha. — Tudo certo para
amanhã?

A tenda do hortifruti será estruturada hoje ao fim da tarde quando o


campus estiver menos agitado. A professora também já aprovou o texto que
elaborei para minha pequena participação em sua palestra. Na teoria, está
tudo ocorrendo bem. Apenas tenho lidado com meu próprio nervosismo.
Essa semana encomendei três aromas novos de vela para experimentar.
Internamente, estou meio que surtando.

— Tudo certo. Agora é só esperar pelo dia de amanhã.

Há uma pausa enquanto Evan e eu trocamos olhares, até que, por


algum motivo, eu acrescente:

— Você vai?

— Você quer que eu vá?

— Você quer ir? — rebato, voltando a colocá-lo contra a parede e não


o contrário.

— Quero ir, mas não sei se irei conseguir. Então, prometo tentar.

— Tudo bem. Não se preocupe com isso.

Evan me ignora e diz:

— Se precisar de algo, me avisa. Estou atrasado para minha aula. Até


mais, Scar.

— Até mais, Evan — respondo, observando-o se distanciar.

Enquanto fixo meus olhos em suas costas largas, meu celular vibra em
cima da mesa. Baixo o olhar e vejo que são notificações de Josh, um dos
meus irmãos caçula.
Josh: Espero que você tenha uma desculpa boa para estar ignorando
minhas mensagens.

Josh: Você está com seus colegas mauricinhos?

Franzo o cenho para a tela do celular e começo a digitar uma resposta.

Scarlet: Não achei que fosse importante responder sua mensagem


sobre a morte de um dos seus personagens favoritos de uma HQ. E não
tenho nenhum amigo mauricinho, de onde você tirou isso?

Meu irmão responde de imediato.

Josh: O papai disse que na época que fazia faculdade, estava cheio de
mauricinhos tentando roubar a nossa mãe dele. É isso que estão fazendo?
Tentando roubar minha irmã de mim?

Scarlet: Meu Deus! Quando você ficou tão dramático? Você


costumava rejeitar meus abraços e esconder o seu cereal para comer tudo
sozinho e não ter que dividir comigo. Achei que fosse gostar que eu ficasse
no campus.

Josh: Eu prometo dividir o cereal se você voltar para casa.

O humor se esvai, sendo substituído por um aperto no coração. Sinto


falta de casa todos os dias. Sei que deve estar sendo difícil para Josh.
Apesar das desavenças, sempre fomos muito próximos.

Scarlet: Vou nos feriados, prometo. Por enquanto, cuide da casa e


coma bastante cereal. Vou precisar parar de responder para ir até a aula,
tudo bem? Beijo.

Josh me manda diversos emojis que não sei decifrar o que significam e
enfio o celular no bolso. Me levanto da mesa da cafeteria e suspiro antes de
começar outro dia de estudos na CVU.
— Você podia não ter feito isso.

É a voz de Viper que me atinge atrás da porta do banheiro, mesmo que


esteja abafada e ela fale baixo, consigo entender. Estou concentrada em uma
posição de yoga com meu tapete no meio do quarto, mas é inevitável não
xeretar a conversa dela, até porque dividimos o quarto. Respiro
profundamente e mantenho os olhos fechados, me concentrando em limpar
a mente e…

— Isso é sério. Precisamos conversar depois. — Há uma pausa. —


Agora não. Não estou sozinha. Preciso desligar, ok? Tchau.

Ouço a porta abrir, então ela diz:

— Você e essa baboseira de yoga.

O comentário me faz abrir as pálpebras para fitar minha colega de


quarto. A expressão de Viper é neutra, mas seu nariz está um pouco
vermelho, como se tivesse chorado. Gostaria de saber quais conflitos a
deixam tão aflita. Viper tem barreiras de aço erguidas ao redor de si.
Duvido que ela deixe com que as pessoas tenham qualquer vislumbre de
suas emoções ou vida pessoal. Tudo o que sei sobre ela é que gosta de
rock, tocar guitarra, roupas pretas e que some durante os finais de semana.

— É ótimo — murmuro, contemplativa e, então, limpo a garganta. —


Viper, posso te perguntar algo?

Ela rola os olhos e se senta na sua cama, parecendo impaciente.

— Você acabou de perguntar e desperdiçar sua chance — fala, irônica,


ligando seu notebook.

Do ângulo que estou, vejo o conteúdo na tela e pisco, em choque.

— O que é isso que você tá assistindo? Isso é um cadáver? Meu Deus,


que nojo!

— Sim. É um vídeo que tenho que estou vendo para a faculdade.


Ela rola os olhos e, para minha surpresa — ou não, já que estamos
falando da Viper — começa a comer um pacote de alcaçuz sem emoções
em seu rosto enquanto há tripas expostas em sua frente. Sinto o estômago
revirar e desvio o olhar.

— O que é que você cursa? — Franzo o cenho, me dando conta de que


também não sei dessa informação.

— Medicina. Vou ser médica legista.

Por que é que não fico surpresa? Consigo imaginar Viper abrindo
corpos com naturalidade enquanto escuta Elvis Presley ou algo do tipo.

— Agora sobre a minha pergunta… Por que você se isola tanto?

Observo sua reação quando escuta minhas palavras. Seus ombros


enrijecem e Viper me olha com um olhar mortal.

— Não me isolo. Só não gosto de compartilhar sobre minha vida


pessoal.

Me ignorando, ela volta a assistir ao vídeo, desta vez com fones no


ouvido. Entendendo a deixa, me levanto e recolho o meu tapete. Preciso me
preparar para a palestra de amanhã e ensaiar meu discurso mais algumas
vezes. Espero que dê tudo certo, apesar da sensação esquisita no estômago
quando coloco a cabeça no travesseiro para dormir.
12

A CASA DOS meus pais fica situada em um dos bairros mais nobres de
Crystalville. Evito fazer muitas visitas, já que elas sempre vêm carregadas
com uma dose extra de tensão. Além do peso que Phillip e Abigail
carregam por serem considerados os melhores advogados da cidade, há
também as expectativas criadas em relação ao meu futuro e o de Emery.

Não sei o motivo de meu pai ter me ligado durante a semana, exigindo
que eu estivesse aqui na manhã de um sábado. Deveria estar no campus da
CVU. A palestra da Scarlet deve ter começado neste momento, então me
apresso para ao menos ter tempo de encontrá-la durante a feira orgânica.
Desço do carro e enfio as mãos dentro do bolso de minha jaqueta, uma
tentativa inútil de conter a ansiedade.

A fachada imaculada de pedra calcária permanece intacta, assim como


o telhado de ardósia. Tenho certeza de que isso tudo é resultado do cuidado
obsessivo de minha mãe. Pelo menos uma vez por mês, ela contrata
paisagistas para manter o ar de opulência. Passo pelo portão de entrada,
cumprimentando o jardineiro. Antes que eu possa bater, a porta se abre
bruscamente. Minha mãe surge em minha frente, vestindo um robe de seda,
com os cabelos pretos presos por uma presilha de prata no topo da cabeça.

Abigail é uma mulher que gosta de cuidar de sua aparência. Às vezes,


me surpreendo com o quanto ela e Emery se parecem. Minha mãe me dá
um abraço e retribuo. Depois, aponta para o novo tapete que ocupa o hall.

— Trouxe da última visita que fiz na Índia, seu pai surtou pelo valor,
então tire os sapatos.

— Ele está no escritório? — Ignoro a informação nova e tiro os


sapatos. Minha mãe tem problemas com consumismo, cresci vendo meus
pais brigarem pelos itens excêntricos que ela trazia de viagens para o
exterior.

— E onde mais ele estaria? Seu pai respira processos judiciais e


conhaque.

A alfinetada não passa despercebida por mim, mas decido ignorá-la. O


casamento dos meus pais sempre foi conturbado. Não sei se posso dizer que
eles são felizes, sinto que apenas suportam um ao outro.

Apenas de meias, entro em casa. Como sempre, tudo parece frio e


impessoal. Os móveis, polidos ao extremo, os lustres de cristal brilhando,
até as fotos de nossa família nas paredes. Todas são de momentos falsos.
Cenários armados, roupas escolhidas metodicamente, poses perfeitas e o
fotógrafo ideal.

Desvio o olhar, tentando ignorar a nova tensão que sinto no corpo.

— Vou falar com ele — respondo, porque quero ir embora o mais


rápido possível.

Quando entro no escritório, meu pai está sentado atrás de uma grande
mesa de madeira. Ele termina a conversa no telefone e me analisa. Não sei
o que Phillip está pensando, mas movo a cabeça respeitosamente ao
cumprimentá-lo.

— Pai.

— Senta-se, Evan. Precisamos ter uma conversa séria.

Me sento na cadeira à sua frente, esperando pelo sermão. Afinal,


reconheço o olhar de reprovação no rosto dele. Phillip Sutton está tenso. Ele
passa uma das mãos pelo maxilar coberto pela barba e gira o seu notebook
em minha direção. Na tela, há Emery, ensaiando uma coreografia com sua
equipe de dança. Não entendo o motivo de tanto alarde, então pergunto com
cautela:

— O que tem de errado?


— Não tenho controle sobre o que acontece na faculdade, Evan.
Contava com você para impedir que sua irmã envergonhasse nossa família.
Essas roupas curtas, esse tipo de dança… O futuro dela será jogado no lixo
por conta disso? Precisamos conversar sobre o que você e sua irmã estão
fazendo com suas vidas. Recusar drafts para cursar História e Emery
chegando atrasada nas aulas para ser líder de torcida… Que droga, Evan! O
que há de errado com vocês?

O tom de desgosto em cada uma de suas palavras me faz travar a


mandíbula. Meu pai parece à beira de um colapso. Sei que, no fundo, ele só
quer o melhor para nós. No entanto, somos adultos e nossas escolhas não o
envolvem mais.

— Não é algo vergonhoso — falo, o tom de voz sério. — E Emery está


feliz. Você não pode tirar isso dela. Quanto ao draft, ainda não tenho
certeza.

— Está me dizendo que o valor absurdo da mensalidade que pago


para que ela se forme em Direito é em vão? E os melhores treinadores que
paguei para que você aprendesse hóquei? O dinheiro gasto com as aulas, as
noites mal dormidas para levar você aos campeonatos em outros estados,
tudo em vão?

— Estou dizendo que o senhor devia deixar que nós façamos nossas
próprias escolhas. Sou grato por tudo o que você me permitiu e me permite
até hoje, mas não vou me tornar um jogador de hóquei profissional se não
tiver certeza de que é o que quero fazer.

Meu pai bufa.

— Ótimo, vão em frente! Tomem as próprias decisões de vocês.


Depois que a faculdade acabar, arranjem os próprios empregos para
sustentar tudo o que há na vida de vocês. É até onde meu apoio vai.

Sinto raiva por meu pai usar isso contra mim. O apoio financeiro dele
e de minha mãe não deveria ser como um balde de água fria. Não espero
que ele continue me fornecendo dinheiro para sempre. Depois que me
estabelecer em alguma carreira, farei questão de devolver cada centavo que
Phillip investiu na minha educação.
— Isso é tudo? — questiono, depois de alguns momentos de silêncio.

Phillip não responde, apenas enche um copo de conhaque, me


ignorando completamente. Com o corpo tensionado, saio do escritório e
respiro fundo ao sentir o ar frio do corredor. Minha mãe está na sala, com
almofadas empilhadas atrás de si e uma taça de espumante nas mãos. Pela
expressão em seu rosto, sei que ela ouviu toda a nossa conversa atrás da
porta. Ela finge tirar um fio do robe e murmura:

— Ele é tão exagerado. Tentem o que quiserem. Se der errado, vendam


sua arte na praia.

Franzo o cenho, surpreso pelo palavrão e o apoio inesperado.

— Acho que não dá para vender performances de hóquei na praia, nem


aulas de História, mas obrigado pela dica, mãe.

Abigail me lança um olhar significativo por cima da borda da taça de


vinho.

— Como estão as coisas na faculdade?

— O mesmo de sempre — respondo, meio lacônico. — Treinos de


hóquei, aulas, provas e mais hóquei. — Dou de ombros. — Ando ocupado.

— Isso é de se esperar, já que você nunca vem para casa.

A forma como Abigail diz isso me surpreende. Mantenho os olhos nos


dela enquanto tento decifrar a emoção que banha suas palavras.
Ressentimento, talvez? Minha mãe e meu pai sempre estiveram muito
ocupados. Eles nunca foram exatamente pais presentes. Não me recordo da
última vez em que eles me viram jogar. Após pensar um pouco, questiono:

— Por que não vai a um dos jogos da CVU? A Emery abre as partidas
com a equipe.

Minha mãe arregala os olhos, talvez surpresa demais pelo convite


inesperado. Me sinto culpado por nunca ter pensado nisso antes.

— Claro — concorda, rápido demais. — Seria ótimo.


— Vou te informar o dia e mandar os ingressos. Talvez, Phillip queira
ir.

Mamãe não diz nada. Nós dois sabemos que meu pai nunca iria à CVU
para um simples jogo, já que sua agenda lotada de compromissos
importantes não o permitiria. Me despeço de Abigail com outro abraço
longo. Desta vez, reparo no quanto ela parece frágil. Ou talvez, eu tenha
crescido mais do que o esperado.

Quando entro na picape, recebo uma ligação de Hunter. Suspirando,


atendo antes que vá para a caixa postal.

— Preciso de um favor. É a Bella. Eu preciso buscá-la na casa dos


meus pais antes que Hanna apareça por lá. Nós tivemos um
desentendimento e estou muito longe.

Dá para sentir a tensão na voz dele. Hunter não é de pedir favores,


muito menos em relação à sua filha.

— Envia o endereço.

Hunter e eu fomos vizinhos durante a infância, até que meus pais


decidiram se mudar para outra área do bairro. Se eles ainda morarem na
mesma casa, posso chegar lá em poucos minutos.

— Valeu, cara. Você sabe como Hanna pode exagerar… Só quero


evitar uma confusão.

Hunter tem uma relação conturbada com Hanna. Ela é uma mãe
ausente, que só aparece para tornar a vida dele mais difícil. Desde sempre,
Ferrari e seus pais cuidaram de Bella. As únicas vezes que ouvi falar de
Hanna foram em conversas desagradáveis, como essa.

Com o endereço no GPS, começo a dirigir até a casa dos pais de


Hunter. Algumas memórias do passado me preenchem quando paro em
frente à casa deles. Minha infância toda foi dividida entre a propriedade dos
Ferrari e a dos Sutton. É a mãe de Hunter quem me recebe assim que toco a
campainha. Ela parece tensa inicialmente, mas relaxa assim que me vê.
— Evan! Que bom te ver.

— É um prazer ver a senhora também — falo, espiando sobre seu


ombro. O corredor está vazio. — Cadê a Bella e o sr. Giovanni?

— Está colocando os sapatos, e Giovanni foi ao supermercado. Quer


entrar? Assei alguns Cannolis. Você e Hunter adoravam comer quando eram
pirralhos.

Solto uma risada baixa ao lembrar das vezes em que imploramos para
ela preparar os Cannolis. É tentador entrar, mas estou ficando sem tempo.
Prometi a Scarlet que faria o possível para estar lá.

— Estou um pouco enrolado hoje, mas obrigado.

Antes que possamos continuar a conversa, uma Bella saltitante surge


no corredor. Ela quase tropeça nos próprios pés ao correr até onde estamos.
Sua avó a adverte, mas ela não escuta. Bella gosta muito de mim, para o
desgosto de Hunter. Ele é do tipo super ciumento quando se trata de sua
filha.

— Titio Evan! — Ela vem para meu lado e ignora completamente a


sra. Ferrari. — Estou pronta.

É impossível não se derreter por Bella. Ela segura a mochila de


unicórnio, os cabelos loiros estão presos com elástico colorido e os olhos
verdes têm aquele brilho infantil. Quando a seguro pela mão para
atravessarmos a rua, após se despedir da avó, sua mãozinha praticamente
desaparece dentro da minha.

Bella fala durante todo o trajeto até a casa de Hunter, contando o que
fez durante a semana. Alterno minha atenção entre o trânsito e sua voz
infantil até que ela canse e adormeça. Quando chegamos, Hunter já está em
pé na entrada. Ele mal espera eu parar o carro para abrir a porta e
desafivelar o cinto de Bella no banco de trás.

— Obrigado. Fico te devendo uma. — Ferrari segura Bella em seu


colo, que parece uma boneca enquanto dorme tranquilamente.
— Relaxa.

— Vai para a CVU agora? — questiona, tomando cuidado para não


acordar Bella em seus braços.

— Sim.

— Há um boato novo no campus. Daquela sua amiga, a ruiva. Qual é


mesmo o nome dela?

— Scarlet — respondo. — O que estão falando sobre ela?

Hunter suspira e dá de ombros, parecendo meio sem graça.

— Olhe o celular. Acho que ela vai precisar de apoio depois dessa.

Hunter e eu nos despedimos. Antes que eu comece a dirigir para a


Universidade, faço o que ele instruiu. Com a mandíbula travada, continuo o
trajeto, esperando que Scarlet tenha conseguido realizar a palestra.
13

— SCAR, VOCÊ PRECISA que acordar.

Ouço antes do meu braço ser chacoalhado violentamente. O primeiro


pensamento que me acomete é que devo estar atrasada para a palestra. Me
levanto em um solavanco, arrancando a coberta do corpo. Olho para o
despertador sobre minha cômoda e suspiro em alívio ao notar que ainda são
sete horas da manhã. Em seguida, lanço um olhar confuso para Viper.

— Que merda é essa?

O silêncio da minha colega de quarto é comum, mas o olhar em seu


rosto me assusta mais do que tudo, porque é uma expressão de compaixão.
Não consigo imaginar que Viper possa sentir compaixão por ninguém. Ela
está sentada na borda da cama e começa a tirar lascas de esmalte preto das
unhas, evitando me encarar.

— Droga. Isso é difícil de contar. — Ela entorta a boca.

— O que é difícil? Pelo amor de Deus, Viper. Fala logo!

— Tá legal! Tem uma foto sua circulando pelo campus… Achei que
você fosse querer saber da forma menos agressiva possível.

De repente, sinto meu coração afundar. Estendo os dedos na direção do


celular de Viper, que está na palma de sua mão. Relutante, ela desbloqueia o
aparelho para que eu possa ver a tela. Há uma foto minha, que enviei para
Logan no ano passado, usando uma lingerie sexy. Não dá para ver meu
rosto, porque a tirei na frente do espelho, mas o cabelo ruivo inconfundível
me denuncia. Estou tremendo quando largo o telefone.
— Quem enviou isso? — Limpo a garganta, na tentativa de disfarçar a
rouquidão matinal.

— Não sei. Estava num grupo da faculdade.

Um grupo? Meu Deus. O quão rápido esse tipo de coisa se espalha?


Abraço meu próprio corpo, na tentativa de conter o tremor que me acomete.
De repente, imagino todas as pessoas me julgando, inclusive a professora,
durante a palestra. Isso só pode ser um pesadelo. O nó que se forma em
minha garganta me impossibilita de respirar adequadamente.

— Ei, sei que é uma situação péssima, mas não permita que ele faça
isso com você…

— Você não entende! — Engasgo em meio a um soluço. As lágrimas


idiotas começam a rolar pelo meu rosto. — Hoje seria um dia importante,
mas agora está tudo arruinado. Vou ligar para meus pais e pedir para voltar
para Green Lake.

— Você não pode fazer isso! Não pode deixar ele vencer!

— Isso não é um jogo, é minha vida. Não se trata de vencer ou


perder…

Estou uma bagunça de lágrimas e soluços. Viper me entrega uma caixa


de lenços e começo a assoar o nariz. Ela não diz nada quando me levanto e
caminho até o banheiro. Evito me olhar no espelho, porque sei que verei
uma versão detestável de mim mesma. Entro no chuveiro e tento organizar
os pensamentos enquanto a água quente desliza pelos meus fios e rola pelo
meu corpo. Quero me encolher em posição fetal e desaparecer, mas talvez o
que Viper disse esteja certo. Fazer isso é deixar com que Logan vença.

Com o último resquício de dignidade que me resta, visto o vestido


verde que escolhi para hoje. Minha colega de quarto me ajuda a escovar e
enrolar as pontas do meu cabelo. Em silêncio, ela coloca um disco do Elvis
Presley para tocar enquanto passo uma cada de rímel nos cílios. A palestra
deve acontecer daqui uma hora. Tenho alguns minutos para repassar o
discurso.
— Vou à cafeteria. Quer alguma coisa?

— Chá de hibisco — resmungo, concentrada no texto que passei os


últimos dias decorando.

Viper sai, e eu fico sozinha. De repente, a sensação de desânimo volta


a me assolar. Hesitante, resolvo tocar no meu celular pela primeira vez no
dia, mas logo percebo que cometi um erro. Há várias mensagens de
Cameron perguntando se estou bem e de algumas colegas do curso de
botânica. Também há dois números desconhecidos que me enviaram emojis
de berinjelas, além de terem me colocado em grupos estranhos. Sinto meu
estômago revirar e jogo o celular para longe.

Faço técnicas de respiração para não perder a cabeça e bebo o chá.


Depois, quando está na hora, me arrasto até o local da palestra, com os
incentivos de Viper. Ignoro os olhares e vou em direção à sra. Russel,
minha professora. Ela sorri ao me ver. Ao nosso redor, as cadeiras já estão
todas ocupadas e um coro de vozes ecoa pelo ambiente.

— Está nervosa? — pergunta, animada.

Gostaria de compartilhar da mesma sensação, mas meu dia começou


da pior maneira possível. Enterro os pensamentos ruins no fundo da mente.
Irei lidar com toda essa merda depois, por enquanto, posso fingir. Devolvo
um sorriso ensaiado, esperando que seja o suficiente.

— Um pouco.

— Relaxe, Scar. Seu projeto é ótimo. Tenho certeza de que o feedback


será positivo.

A sra. Russel estava certa. Meu projeto foi um sucesso. Travei um


pouco na hora da palestra, mas consegui finalizar com uma salva de palmas.
As pessoas aqui dentro parecem alheias ao fato de que uma foto minha está
circulando pela internet, o que faz sentido pelo público composto por
acadêmicos e professores de outras instituições. Do lado de fora da
universidade, o hortifruti funciona a todo vapor. Muitos alunos param para
experimentar os produtos naturais de Gilia, que também parece satisfeita
com o resultado. No entanto, não permaneço até o fim e fujo feito uma
covarde de volta aos dormitórios. Viper avisou que precisava sair, então não
me surpreendo com o quarto vazio. Assim que desabo na cama depois de
tirar o vestido, cubro até a cabeça com a coberta. A nova onda de choro que
me atinge me deixa tão exausta que acabo pegando no sono.

Quando acordo, não sei que horas são e minha cabeça dói. Tento
alongar as pernas, mas acabo chutando algo. Confusa, abro os olhos. Tenho
que piscar algumas vezes para assimilar a imagem à minha frente: Evan
Sutton sentado na ponta da minha cama com um livro aberto nas mãos.
Assim que nota minha agitação, olha para mim. Me sento com uma rapidez
que faz minha mente girar.

Antes que eu possa questionar o que ele está fazendo no meu quarto,
Evan esclarece:

— Sua colega de quarto me deixou entrar. Ela teve que sair outra vez.

O tom de voz é muito calmo, assim como sua expressão. Parece até
que fazemos isso o tempo todo. Eu nem sabia que ele conhecia o número do
meu dormitório, mas lembro de quem ele é: capitão do time de hóquei,
bonito, popular... Conseguir esse tipo de informação deve ser fácil para
Sutton. Meu rosto cora ao imaginar se Evan viu a foto. No entanto, um
balde de água fria recai sobre mim. As chances dele não ter visto são
praticamente nulas.

Agora que meu sono passa, absorvo a imagem de Evan. Ele está
usando uma jaqueta esportiva e um boné de beisebol, segurando um livro na
palma. Percebo que é um dos meus romances.

— Você pegou um dos meus livros?

— Tive que me manter ocupado. Você dorme muito.

— Por que está aqui?

A frase sai mais rude do que eu gostaria, mas o jogador é a última


pessoa que eu gostaria de ver depois da foto.
— Eu não consegui assistir a palestra. Queria ter chegado a tempo,
mas tive que ir até a casa dos meus pais. Eles moram meio longe do
campus.

Fico em silêncio. De repente, me dou conta de que devo estar ridícula.


Meu cabelo provavelmente está bagunçado, meu hálito esquisito e o
moletom de ursinhos não ajuda em nada. Desvio o olhar para baixo,
envergonhada.

— Você não respondeu a pergunta — falo.

— Só queria passar mais tempo com você.

Sua resposta quase me faz rir, porque é uma grande mentira. Sutton
está aqui porque acha que eu preciso de ajuda depois da foto que está
circulando. Talvez um ombro para chorar seja realmente uma boa ideia.
Peço um minuto e vou até o banheiro. Me olho no espelho e contenho um
gemido de frustração. Desembaraço o cabelo, escovo os dentes e passo um
pouco de desodorante. Quando volto para lá, Evan me fita.

— Então, quais sabores de pizza você gosta? — pergunta, os braços


cruzados na frente do peito. — Não diz abacaxi, por favor.

Dou uma risada, franzindo o cenho enquanto me encosto no batente da


porta.

— O que você tem contra abacaxi?

— Não tenho nada contra, só um leve preconceito com ele na pizza.

— Hum, gosto de pizza de queijo e qualquer coisa que envolva


cogumelos.

— Boa escolha. — O capitão pega o telefone.

Me sento na cama de Viper, receosa de voltar para perto de Evan. Ficar


numa cama com ele parece muito íntimo. Puxo os joelhos contra o peito e
os abraço. Quando o jogador termina de pedir as pizzas, ele me olha com as
sobrancelhas arqueadas.
— Vai ficar aí?

— Sim, é mais seguro.

Evan solta uma risadinha grave.

— Não vou te morder, Scarlet.

Ele está certo. Estou sendo ridícula, e Viper provavelmente vai me


matar por estar bagunçando os lençóis de sua cama. Me levanto e vou para
o meu lado do quarto. Sento-me contra a cabeceira, a uma distância
considerável de Evan, mas não tanta. Ele ocupa boa parte do meu colchão
de solteiro com seu corpo grande.

— Eu gostei do seu lado do quarto. Não sabia que tinha tantas pedras
da lua.

— É, eu curto esse tipo de coisa. Também faço aromaterapia e yoga.

— Me mostra a aromaterapia.

Esse pedido me surpreende tanto que paro um momento para encará-lo


de verdade, como se pudesse ver através de sua alma. Ninguém nunca me
pediu para mostrar isso antes. Disperso os pensamentos e começo a
preparar os difusores e acender as velas. Quando o quarto todo está
exalando o perfume de óleos naturais, flores e ervas, Evan diz:

— Isso é muito interessante, cenourinha. O que mais tenho que saber


sobre você?

A pergunta de Sutton, carregada de uma dose singela de honestidade e


combinada com o olhar sério, é suficiente para mudar o ritmo dos meus
batimentos. Meu coração acelera e eu limpo a garganta, tentando ignorar a
sensação estranha.

— Minha cor favorita é verde, gosto de ler, adoro sorvete de baunilha e


passei a infância obcecada em descobrir o nome de todas as plantas que
existem. Agora, sua vez, capitão.
— Capitão? — Evan parece achar graça. — A cor é preto, sorvete de
chocolate e minha infância foi resumida a bastante Backstreet Boys e aquele
cereal Froot Loops.

Solto uma risadinha, incapaz de me conter. Evan arqueia uma


sobrancelha, e eu afundo nos travesseiros empilhados atrás de mim. Estou
tão relaxada tendo essa conversa com ele que até me esqueço de tudo o que
aconteceu. Mas quando penso que terei que encarar o campus inteiro me
julgando nos próximos dias, desanimo. De repente, minha boca fica seca e
meus músculos ficam rígidos.

Evan nota a mudança de atmosfera.

— Tudo bem?

— Não. Não está tudo bem.

O silêncio paira no ar, e desvio o olhar para longe. Evan sabe do que
estou falando, é por isso que ele está aqui, tentando me fazer sentir melhor.
Esse seria o papel que Cameron desempenharia, se não estivesse longe, na
casa de seus pais.

— Quer assistir alguma coisa? — questiona, fazendo-me encará-lo


outra vez.

— O quê?

— Algo legal, para distrair.

— Hum, tipo Titanic?

— Eu iria sugerir O Poderoso Chefão, mas tudo bem. Vamos manter a


linha de filmes de menininha.

— Não é filme de menininha, é uma história sensível que envolve


amor e sacrifícios. Você devia ser menos antiquado, capitão.

— Se me chamar assim de novo, vou ter que te beijar.


A frase sai tão natural da boca de Evan que me assusta. Ele não desvia
os olhos dos meus, e eu também não faço nenhum esforço para quebrar o
contato. Seu olhar implacável me deixa paralisada.

— Por quê?

— Porque parece que você está flertando comigo, cenourinha.

— Não estou. — Cruzo os braços sobre o peito, como se erguesse uma


armadura para me proteger do turbilhão de sensações que florescem em
meu corpo.

— Que pena — fala, antes que o telefone toque, interrompendo o


momento.

Evan se levanta e sai do dormitório para buscar as pizzas.


Aproveitando que estou sozinha, tiro o moletom e visto uma blusa
confortável de seda. Depois, pego o notebook para assistirmos ao filme.
Não acredito que estou prestes a dividir um momento do tipo melhores
amigas com Evan, o jogador de hóquei mais popular da CVU.

Quando ele volta, com as caixas empilhadas nos braços, o cheiro faz
minha barriga roncar. Teoricamente, Sutton sequer poderia estar aqui, no
alojamento feminino. Mas é sábado e o movimento é quase deserto, o que
deve ter facilitado a entrada dele.

Ele fecha a porta e senta ao meu lado na cama. Enrijeço assim que seu
ombro toca o meu.

— Sabe, você podia ir um pouco mais para lá — digo, só para não


admitir para mim mesma que a sensação de calor que emana do mero
contato é reconfortante.

— Acho que não. Estou confortável aqui.

Não digo mais nada, apenas dou play na longa-metragem. Me sinto um


pouco deslocada, então mastigo uma fatia de pizza silenciosamente. Em
algum momento, metade da pizza de queijo já acabou. Evan comeu cinco
pedaços e estamos apenas nos primeiros vinte minutos do filme. Paro na
terceira fatia e limpo as mãos em um guardanapo.

De repente, meus olhos pesam, graças ao cansaço do dia, e quando


percebo minha cabeça cai contra o ombro do jogador. Sei que tenho que me
mover, mas, droga, é tão bom. O cheiro das velas ainda domina o ambiente,
mesmo que tenham sido apagadas há um tempo. Sutton exala um cheiro
amadeirado diferente de todos os outro, o que contribui para que seja difícil
me afastar. A última cena que me lembro antes de adormecer é a de Jack e
Rose com os braços abertos no navio.

Quando acordo, estou sozinha na cama. Evan se foi e Viper está


ajeitando os seus lençóis. Assim que ela percebe que acordei, esclarece:

— Ele foi embora assim que eu voltei. Você estava dormindo feito
uma pedra.

— Ele disse algo? — Limpo a garganta.

Não sei o porquê, mas sinto como se tivesse perdido algo importante.

— Só que achava que era melhor deixar você descansar.

— Entendi…

Começo a me levantar para ir até o banheiro, mas paro no batente da


porta, prestes a fechá-la. Olho sobre o ombro. Viper e eu fazemos um breve
contato antes que eu diga:

— Obrigada por hoje. Não vou me esquecer.

Ela não fala nada, então me tranco no banheiro, ainda pensando na


forma como o cheiro de Evan está impregnado em mim.

14
EU ME LEMBRO da primeira vez que pedi aos meus pais que me
levassem para patinar. De início, eles acharam que seria apenas mais um
programa de domingo em família. Fomos até o centro de Green Lake,
alugamos os patins e entramos na pista comunitária. Era Natal, então uma
boa parte da população estava lá, tentando se equilibrar no gelo sobre duas
lâminas. Mas, em meio àquela confusão de gente desajeitada, havia uma
mulher que patinava graciosamente.

Na minha cabeça, para ela, parecia tão fácil quanto respirar. Quando a
mulher deu um salto que desafiava as leis da física para a mini eu de apenas
dez anos, decidi que seria tão boa quanto ela. Foi então que comecei a
trabalhar com minha mãe no negócio da família. Eu ficava no hortifruti
durante a semana inteira, depois da escola, ajudando os clientes a empacotar
as compras. Recebia três dólares por dia e algumas gorjetas. Em poucas
semanas, consegui comprar meus próprios patins.

Depois de perceberem que eu estava realmente interessada, eles me


colocaram em aulas particulares. Então, me tornei uma patinadora artística
e venci alguns campeonatos nas cidades ao redor de Green Lake, que era o
máximo que podíamos viajar, já que meus pais não tinham dinheiro
suficiente, além de dois outros filhos para sustentarem. Josh e Daisy
exigiam toda a atenção dos meus pais por serem bebês. Acho que eles se
sentiam mal por isso, vez que sempre se esforçaram para fazer coisas que
me deixassem feliz. Isso aconteceu com a faculdade também. Estou na
CVU porque eles pagam parte da mensalidade e acomodação no campus. É
por isso que me sinto uma péssima filha agora.

Estou há cinco minutos trancada no banheiro da Universidade, com


medo de sair e virar alvo de piadas. Minhas aulas já começaram, e foi
Cameron quem me convenceu a sair do dormitório. Mas, quando senti os
olhares sobre mim, parecia que eu tinha voltado no tempo, para Green
Lake. A acusação no rosto das pessoas, o nojo, a decepção. Enterro as
unhas nas palmas, deixando marcas na pele.

Fecho os olhos com força, desejando que todo esse pesadelo


desapareça.

Respirando fundo, saio da cabine do banheiro e decido matar aula. Em


vez de voltar para os dormitórios, sigo o caminho familiar até o complexo
de fraternidades. Sei que estou agindo por impulso, mas tudo o que sinto
agora é raiva e ressentimento. Assim que paro no deck, bato na porta com
tanta força que minha mão arde. Um dos amigos de Logan me recebe,
parecendo surpreso.

— Ah, oi, Scarlet. Tá tudo bem?

— Preciso falar com Logan.

Ignoro o olhar de pena em seu rosto e a tentativa idiota de puxar


conversa. Ele pede um momento e some no corredor. Espero
impacientemente do lado de fora até que Logan apareça na soleira. O olhar
presunçoso me faz querer matá-lo. No entanto, apenas cruzo os braços em
frente ao peito para disfarçar as mãos trêmulas.

— Espero que esteja feliz com tudo isso.

Logan se apoia contra a porta em um movimento casual.

— Não sei do que você está falando.

— Sério? Você achou maduro espalhar uma foto minha de lingerie e


agora está fingindo que não foi o responsável por isso?

Ele dá de ombros.

— Você pode ter enviado para outros caras.

— Eu só mandei para você, porra! Sabe disso.

— Não tenho certeza, Scar.


Não sei o que me irrita mais, o fato dele insinuar que fui infiel durante
nosso relacionamento, o que é uma grande ironia, ou me chamar de Scar.

— Eu te odeio — falo, impotente, a voz saindo fraca.

Logan dá um passo para frente, se aproximando de mim. Sua presença


me dá repulsa.

— Você me odeia, Scarlet? — pergunta, num tom de voz baixo. — Eu


fui a única pessoa que te quis em Green Lake. Me arrisquei a namorar com
você depois de tudo o que aconteceu. O que houve com a Lila sempre vai te
perseguir, porque no fundo você sabe que é culpada.

A menção do nome de Lila é o suficiente para me fazer recuar. Deixo


Logan para trás e começo a andar de volta ao alojamento. Não sei em que
momento começo a correr, mas meus pulmões protestam a cada passo que
dou. Quando entro no dormitório, arfando, começo a revirar a caixa debaixo
da minha cama. Tiro o diário de lá dentro e o abro. A última foto que Lila e
eu tiramos juntas está grudada na contracapa com fita adesiva. Estamos as
duas sorrindo no baile de inverno do colégio.

Começo a chorar. Talvez Logan esteja certo.

Ouço algumas batidas na porta e fecho o diário. Antes que eu possa


perguntar quem é, Cameron entra no quarto, pois não tranquei a porta
depois que entrei. Ela solta um suspiro assim que me vê no estado
deplorável em que estou.

— Sabia que você voltaria para cá.

Cam fecha a porta e se senta ao meu lado na cama.

— No que está pensando? — pergunta, cautelosa.

— Quero voltar para casa.

— Fala sério, Scar! Não pode deixar a faculdade para trás por causa do
seu ex-namorado babaca.
Antes que eu possa respondê-la, Cam e eu recebemos mensagens ao
mesmo tempo. Nossos telefones bipam em sincronia diversas vezes e até
paro de chorar. Trocamos um olhar significativo, em silêncio. Sinto meu
coração disparar. Quando isso acontece, é porque algum boato está se
espalhando pelo campus.

— Vou olhar primeiro — Cam diz e concordo, assentindo com a


cabeça.

Ela pega o celular, nervosa. Cameron desbloqueia a tela e congela por


alguns momentos, piscando diversas vezes. Então, um riso irrompe de
dentro dela. Franzo o cenho e me curvo para espiar o que Cam está vendo.
Há uma foto de Evan com uma sunga ridícula de patinhos que nem serve
nele direito. Seu corpo musculoso está exposto na foto, assim como o rosto
sério.

Pego meu telefone e vejo que só estão falando sobre Evan agora, em
todos os grupos da universidade. É como um vírus se espalhando
rapidamente. Meu celular vibra contra a palma e uma notificação nova
chega.

Evan: Agora ninguém mais vai falar sobre a sua foto.

Então, algo estranho acontece. Cameron e eu olhamos a foto outra vez,


gargalhando. Em meio às risadas, ela comenta:

— Meu Deus, você viu o volume na sunga dele? É tipo…

— Impressionante? — sugiro, quando consigo controlar a crise de riso.

— É mais que impressionante. Com certeza isso vai sair no jornal da


CVU, o que é incrível! Vai desviar toda atenção da sua foto.

É estranho o que sinto nos próximos momentos. Tenho que dar um


jeito de falar com Evan pessoalmente. Digito uma mensagem, pedindo para
que ele me encontre em frente ao jardim botânico da CVU. Cam tenta ver a
tela do meu celular, mas o bloqueio antes que ela possa se intrometer.
— O que você tá escondendo? — questiona, com os olhos
semicerrados em minha direção.

— Nada. — Me levanto, apressada. — Preciso ir até um lugar. Quando


sair, tranca a porta e deixa a chave debaixo do tapete.

Não espero Cameron dizer nada e saio do alojamento às pressas.


Quando chego no jardim, estou ofegante. Olho ao redor, não há ninguém
por perto. Confiro as mensagens e vejo que Sutton não respondeu. Como
sou idiota! Devia ter esperado ele confirmar. Mordo os lábios, tirando uma
mecha de cabelo que gruda em meu rosto. Como uma piada de mau gosto
do destino, uma gota de água cai no meu nariz.

A chuva começa de repente. Fico parada enquanto as gotas começam a


me atingir. Fecho os olhos por um momento, sentindo o vento gélido bater
contra minhas bochechas. Solto uma respiração audível e abro as pálpebras.
Prendo a respiração quando vejo Evan parado à minha frente, a apenas
alguns metros de distância.

Assim como eu, ele não parece se importar com o fato de que a chuva
está o encharcando. Sua beleza é avassaladora.

Sem conseguir controlar meu corpo, avanço em sua direção. Evan


mantém os olhos nos meus. Não consigo decifrar o que há por trás do cinza
ônix de suas íris. Com o coração disparado, paro a apenas alguns
centímetros de distância. Então, meu olhar é direcionado para os lábios
dele.

— Sobre o que quer falar, Scarlet? — questiona, o tom de voz baixo e


grave reverberando em meu interior.

Alterno meu olhar entre seus olhos e boca.

Quero beijá-lo.

Então, é o que faço no próximo segundo. Colo minha boca na sua sem
dá-lo a chance de reagir. De súbito, nossas respirações quentes se misturam.
Evan enlaça o braço ao redor da minha cintura, esmagando meu corpo
contra o seu. Me levanto na ponta dos pés para alcançá-lo melhor quando o
beijo se aprofunda.

Nossas línguas se tocam e é como fogo e pólvora. Esqueço da chuva


ao nosso redor, do frio e dos acontecimentos de hoje. Tudo o que importa
no momento é Evan, nossas bocas se movendo uma contra a outra e o calor
que emana de seu corpo. Uma de suas mãos segura o meu pescoço, o
polegar e o indicador pressionando contra minha pulsação. O aperto dele se
torna firme à medida que nos beijamos.

Precisamos quebrar o contato para nos lembrarmos de como respirar.


Abro os olhos e encontro as íris de Sutton fixas em mim. Ele arqueia as
sobrancelhas como se me esperasse dizer algo. Porém, nem eu saberia
explicar o que aconteceu nos últimos instantes.

Me lembro, então, de algo importante, e me afasto. Evan Sutton é o


tipo de cara que quebraria meu coração facilmente. Esse é o problema.

A este ponto, estamos os dois molhados da cabeça aos pés.

— O que foi isso?

— Nada.

A palavra escapa da minha boca antes que eu possa pensar em uma


resposta melhor. Diante do seu silêncio, murmuro um “tchau”. Olho para
seu rosto uma última vez por cima do ombro antes de deixá-lo para trás,
parado, sem entender nada.

Com o coração retumbando no peito, me viro e começo a andar de


volta até o dormitório sob a chuva, contendo o sorriso idiota que quer cobrir
minha boca.

15
NÃO CONSIGO PARAR de pensar em Scarlet e no beijo que ela me deu.
Tenho que admitir que é a primeira vez que sou pego de surpresa dessa
forma por uma garota. Enquanto ergo os halteres e começo uma nova série
de exercícios para os ombros, tento me concentrar, mas toda vez que lembro
da maciez de seus lábios e do jeito como seu corpo se pressionou contra o
meu, sinto o fluxo de sangue ser direcionado para uma parte muito
específica do meu corpo.

Travo a mandíbula. Não posso ter a droga de uma ereção no meio da


academia.

Faz quanto tempo que não tenho relações sexuais? Desde que me
tornei monitor não transei com ninguém. Ao contrário dos meus amigos,
não acho interessante ter várias mulheres ao mesmo tempo. Ao longo dos
anos, sempre me envolvi com garotas que me atraíam além do físico. O
sexo casual se estendia por meses, até que elas finalmente desistiam de
tentar mudar minha opinião sobre relacionamentos.

Sempre deixei claro que, para mim, o romance está fora de cogitação.
Não tenho tempo para lidar com uma namorada e nunca senti que gostava
de nenhuma delas o suficiente para isso. Largo os pesos no chão, com a
respiração pesada, e aumento o volume da música nos fones. Paradise City
do Guns N' Roses explode nos meus ouvidos enquanto tento acalmar o
ritmo dos batimentos cardíacos.

Depois que finalizo o treino, vou para a arena de hóquei.

O amistoso acaba assim que o treinador apita, sinalizando que estamos


livres. Quero ir para casa, mas antes que eu possa começar a me mover em
direção ao vestiário, o sr. Wilson aponta o dedo em riste para mim.

— Você fica.

Alguns dos meus colegas de equipe passam por mim, dando tapinhas
nos meus ombros, como se me desejassem boa sorte. Espero até que o gelo
esteja livre e pergunto:

— O que houve?

— Que merda de foto foi aquela, Evan? E aquela sunga… — Balança


a cabeça em negação, como se quisesse apagar a imagem da mente. — Irei
poupá-lo das minhas palavras, mas espero que incidentes como esse não se
repitam.

Ah, se trata disso. Desde que espalhei aquela foto ridícula há quatro
dias, virei alvo de piadas no campus inteiro. Hunter riu por mais de cinco
minutos quando me viu pela primeira vez. Lionel e Dan fizeram um quadro
e penduraram no hall da nossa casa. Para completar, teve um episódio novo
no podcast dos alunos de jornalismo da CVU sobre a minha sunga.

Mantenho o rosto sério.

— Não vai mais acontecer, treinador. Acho que fui hackeado.

— Ótimo, está dispensado.

A verdadeira razão de eu ter feito a foto circular foi para que as


pessoas saíssem do pé de Scarlet. E, pelo visto, valeu a pena, já que até
ganhei um beijo seu. Porra, eu postaria quantas fotos de sunga fossem
necessárias apenas para sentir a boca daquela garota contra a minha outra
vez. Não sei por que não consigo tirá-la da cabeça. De repente, quero saber
tudo sobre ela.

No vestiário, a piada da sunga já se tornou antiga, então tomo meu


banho sem interrupções. A não ser de Ferrari, que escolhe o chuveiro bem
ao lado do meu.
— Para mim ficou bem claro que você vazou a foto só para proteger a
ruiva — meu amigo fala.

Ignoro-o. Talvez assim ele cale a boca. No entanto, não poderia estar
mais errado. Isso parece diverti-lo e motivá-lo ainda mais.

— O que tá rolando entre vocês? É sério?

— Não tem nada rolando entre a gente, Hunter.

Finalmente, ele desiste. Não sou de falar sobre sentimentos, muito


menos da minha vida amorosa, se é que posso chamar assim. Não sei o que
está acontecendo entre mim e Scarlet ainda, mas, preciso saber. Assim que
termino de tomar banho, pego o celular e envio uma mensagem para ela.

Evan: Quer sair comigo qualquer dia desses?

Depois que envio, olho fixamente para a tela. Não costumo ter
encontros. Na verdade, acho que a última vez que levei alguém para sair
ainda estava no colégio. Quando entrei na faculdade, a ordem das coisas
pareceu ficar estreita: estudar, praticar hóquei e sexo, sendo o último item
da lista opcional.

Termino de me vestir e me despeço dos caras do time enquanto saio da


arena, indo até a picape. Se eu tiver sorte, Emery já vai estar me esperando
do lado de fora. E, como previsto, minha irmã está encostada contra a
lateral do meu carro, com os braços cruzados em frente ao peito. Emy não
gosta de esperar, e nem a culpo. Talvez o pragmatismo seja algo dos Sutton.

— Ainda não te perdoei por aquela foto. — Não deixo de reparar em


seus olhos vermelhos assim que me aproximo o suficiente, mas não digo
nada.

— Vai ter que superar uma hora — retruco, fazendo ela soltar um
grunhido.

— Você não sabe o quanto as meninas do cheer estão enchendo o meu


saco sobre você. Está atrapalhando os meus treinos.
Ignoro o comentário e destravo o carro. Combinamos de ir até o
Frozen Bites depois de terminarmos nossas obrigações. Faz tempo que Emy
e eu não passamos um tempo juntos e, por mais que eu não diga isso em
voz alta, sinto falta da minha irmã. Às vezes, lembro do quão ela é frágil
por trás da fachada impenetrável que construiu ao redor de si. É por isso
que tento protegê-la.

No interior do automóvel, Emery coloca o cinto de segurança e liga o


rádio, aumentando o volume. Sei que ela não está bem por motivos óbvios.
A forma como evita contato visual, fecha as mãos em punhos e os
resquícios de choro que ela tentou esconder ao máximo com a maquiagem
são um claro sinal disso.

— Não vai dirigir? — questiona secamente, quando continuo parado


com o carro na vaga, apesar do motor já estar ligado.

— Emery — falo, com cuidado. — O que tá acontecendo?

— Não tem nada acontecendo — mente, ainda olhando através da


janela. Alguns momentos se passam quando ela questiona, mais uma vez:
— Será que dá para dirigir?! — Aumenta o tom de voz, enfim me
encarando com os olhos lacrimejados. — Que droga, Evan!

Giro a chave na ignição, desligando o carro.

— Merda, me conta o que aconteceu. — Não consigo disfarçar a


preocupação. — Não podemos ir até a Frozen Bites com você nesse estado.

De repente, é como se o muro que ela ergueu se quebrasse bem diante


de mim. Emy começa a chorar compulsivamente. Não consigo me lembrar
da última vez que a vi nesse estado, então fico sem saber como reagir. Após
alguns segundos, coloco uma das minhas mãos em seu ombro e a puxo até
que ela enterre o rosto no meu peito. Espero que ela se acalme e pare de
soluçar.

— Isso tem a ver com o seu namorado? — questiono.

Ela engasga antes de responder.


— Ele não é mais meu namorado. Kaua terminou comigo.

Por um momento, desejo destruí-lo por fazê-la chorar, contudo, depois


relaxo. Sei que posso parecer egoísta, porém não consigo deixar de sentir
alívio ao pensar que Emery está livre de alguém como Kaua. Ela não
entende agora, mas irá no futuro.

— Sinto muito.

Emery enfim se afasta, secando o rosto com as mangas da blusa. Ela


solta um riso quebrado.

— Não sente nada, Evan. Corta essa.

— Sinto muito que você esteja sofrendo por alguém que não vale
nenhuma das suas lágrimas. Isso me deixa triste para caralho.

Emy cruza os braços em frente ao peito e volta a olhar para a janela,


me evitando.

— Será que dá para você começar a dirigir até a maldita lanchonete?


Sem retrucar, faço o que ela pede.

São quase oito horas quando Scarlet enfim responde à minha


mensagem. Depois da lanchonete, levei Emery embora e perguntei se ela
não queria passar a noite comigo na fraternidade. Ela apenas negou,
dizendo que preferia ficar sozinha do que na presença de três jogadores de
hóquei. Então, comecei a revisar algumas matérias do curso e depois tomei
um banho. Agora, estou no meu quarto, assistindo um filme. Minha
atenção, no entanto, se volta para a nova notificação na tela do meu
aparelho.

Scarlet: Está me convidando para um encontro, capitão?

Começo a respondê-la.
Evan: Sim. É um encontro.

Não faço questão de dizer a ela que será algo diferente disso. Não
gosto de jogos. Estou interessado em Scarlet. Espero pela resposta, mas,
aparentemente, Scar já largou o celular. Como perdi o interesse no filme,
resolvo buscar algo para beber.

Assim que chego na sala, vejo Dan e Lionel no hall, brigando em


frente ao quadro.

— A gente precisa mover um pouco mais para a esquerda.

— Não, seu idiota. Vai ficar torto.

Resolvo ignorar a cena incomum. Quando chego à cozinha, abro a


geladeira. Observo as opções e pego uma garrafa de cerveja. Tiro a tampa
da long neck com os dentes e olho a nova mensagem.

Scarlet: Estou livre na sexta. Gosto de cinema, pipoca cheia de


manteiga, refrigerante de limão sem gelo e aquela bala gelatinosa que
gruda nos dentes.

Sinto o canto da minha boca se erguer. Gosto de como Scarlet parece


decidida sobre o que quer.

Evan: Anotado. Te busco às sete no alojamento.

E, de repente, estou ansioso para um encontro.


16

— O QUE VOCÊ acha disso, cara? — O comentário vem de Lionel.


Estamos no Blizzard, numa tarde chuvosa de sexta-feira. Bato as cinzas do
cigarro na borda da mesa, perto da velha jukebox que toca uma música do
Scorpions que não tenho certeza do nome. Acho que eles estão falando
sobre as três calouras à esquerda, que lançam olhares para cá. Também
somos um trio: Lion, eu e Dan. Dou de ombros, enquanto confiro o horário
no relógio.

— Tenho um compromisso daqui vinte minutos.

— Você ao menos escutou o que eu disse? — Lionel franze o cenho,


parecendo confuso com minha resposta.

— Para ser honesto, não.

Dan ri, dando um gole na cerveja antes de dizer:

— Ele perguntou se você curtiu alguma das calouras.

— Não reparei — admito. — Mas, se vocês estão interessados, deviam


ir até lá em vez de ficarem esperando que elas tomem uma atitude.

— Não dá. Elas estão em três. — Lion bufa. — Quebra essa, Evan.
Você sabe como funciona. Dan e eu pegamos as morenas e você fica com a
loira.

— Não quero ficar com ninguém.

— Nem eu. — Dan esboça uma careta. — Meu humor tá péssimo


depois da derrota de hoje. Quero só encher a cara e fingir que nada
aconteceu.
A derrota me frustra, mas não posso dizer que não esperava. O time da
Yale é forte, com uma defesa quase impenetrável. Tivemos sorte de perder
por uma pequena diferença no placar. Além disso, senti que todo o time
estava aéreo hoje. O treinador Wilson nos deu um sermão daqueles, já que
temos o objetivo de chegarmos às finais.

— Faz parte — é tudo que digo. Como capitão, preciso exigir o melhor
desempenho da equipe, mas, acima de tudo, apoiá-los na derrota e ser o
líder que eles esperam. — Vamos conversar melhor na segunda-feira, agora
preciso ir.

Jogo a guimba do cigarro fora e saio antes que comecem as perguntas.


Ainda está chovendo, então me molho enquanto atravesso a rua em direção
a picape. Coloco uma bala de hortelã na boca, só para não ficar com hálito
de carvão, e começo a dirigir até o alojamento. Quase não falei com Scarlet
durante a semana por conta do hóquei, mas hoje trocamos algumas
mensagens. Gotículas de água se acumulam na minha jaqueta de couro,
então a tiro e a deixo no banco de trás quando paro na frente dos
dormitórios. Aviso a ela que cheguei e espero.

Scarlet aparece alguns minutos depois. Ela corre até meu carro, que já
está com as portas destravadas, e entra apressadamente por conta da chuva.
Inspeciono-a da cabeça aos pés. Scar usa um pouco de maquiagem, com um
esfumado marrom que destaca as íris verdes, tornando-as ainda maiores e
mais vibrantes. O rosto está corado, e os lábios brilham com uma camada
de gloss. O cabelo ruivo está solto, e quando ela se move para colocar o
cinto, o cheiro de frutas vermelhas que exala das madeixas me atinge. O
decote em sua blusa não passa despercebido por mim, mas mantenho o
olhar fixo em seu rosto.

— Oi.

A voz sai baixa e rouca, e eu me esforço para não beijá-la com tanta
força que ela me acharia um filho da puta louco.

— Oi, Scar. — Faço uma pausa, ainda assimilando sua imagem. —


Você está linda.
— Obrigada, Evan. — Ela me analisa por um instante. — Você
também não está nada mal.

Contenho o sorriso torto e me volto para o painel. Já recebi muitos


elogios, mas nunca ouvi isso antes sobre minha aparência. Acelero em
direção ao cinema, que não fica muito longe do campus.

— Então… como está indo?

— Muito entretido com o hóquei e você?

— Imagino que sim. Estou mais tranquila agora que consegui


recuperar as notas. Acho que eu não te agradeci ainda. Obrigada, Evan.

— Não há de que, cenourinha. — Pisco em sua direção e, em seguida,


mudo o assunto. — Faz muito tempo que não vou ao cinema. — Desejo
poder ver a expressão de Scarlet, mas estou dirigindo.

— Sério? Você não gosta?

— Não tenho tempo. — Dou de ombros. — Para falar a verdade, não


sei se gosto ou não.

— Não é a mesma coisa! Você é antiquado, capitão.

Scarlet solta uma gargalhada, e ficamos em um silêncio reconfortante


pelo resto do trajeto, que não leva mais que dez minutos. O estacionamento
é descoberto, mas, para nossa sorte, já parou de chover. Assim que
alcançamos a bilheteria, a ruiva aponta para o cartaz de um filme de
romance sobre um garoto zumbi e uma humana. Desta vez, não consigo
conter o riso.

— Você vai mesmo me fazer assistir isso?

— Ah, é. Lembrei que você é popular demais e tem uma reputação a


zelar — fala, com zombaria. — Fica tranquilo. Seu segredo está protegido,
prometo.

— Ok. Estou contando com isso.


Trocamos um olhar cúmplice antes que chegue nossa vez na fila, e eu
peça duas entradas para o filme que Scarlet escolheu. Depois, compro a
pipoca, o refrigerante e a bala que ela especificou na mensagem. Para mim,
fico apenas na água com gás.

Na sala do cinema, ocupamos duas cadeiras do fundo. Durante o filme,


Scarlet sequer olha em minha direção. Está concentrada demais no amor
proibido entre o zumbi e a garota humana. Ela acaba com a pipoca, o
refrigerante e agora está mordendo as minhocas em formato de gelatina.
Quando termina, enfim olha em minha direção. Parece sem graça ao notar
que eu já estava encarando-a.

— O que você achou?

Péssimo, mas sei que o comentário irá ofendê-la, então digo:

— É legal.

Scar avalia minha expressão, como se estivesse procurando por


resquícios que denunciam a mentira. Mas ela apenas desiste e se levanta,
bocejando.

— Podemos ir?

— Claro — respondo.

Fico confuso. Isso quer dizer que Scarlet odiou o nosso encontro? Não
sei o que pensar enquanto andamos em direção ao carro. Não quero que ela
lembre desta noite como qualquer outra. Então, deslizo uma de minhas
mãos em sua cintura quando nos aproximamos da picape, prensando-a
contra a lateral do carro no estacionamento deserto e escuro.

Seus lábios se entreabrem quando ela arfa, o olhar surpreso procurando


o meu. Quando a ruiva fita minha boca, perco o controle. Avanço sobre
Scarlet, segurando seu rosto nas minhas mãos e, em seguida, começo a
beijá-la. Ela se ergue na ponta dos pés para retribuir o beijo, enquanto
segura minha camiseta.
Sinto meu corpo incendiar com o mero toque de Scarlet. Porra. Quero
beijá-la para sempre. Quero beijá-la até que nos tornemos uma coisa só.
Acho que nunca senti tanto desejo antes quanto agora. Meu pau está tão
duro que empurra a braguilha da calça.

Scarlet geme quando um dos meus joelhos pressiona o meio de suas


pernas. Fico louco ao escutar o som. Beijo ela mais rápido, nossas línguas
se movendo em um ritmo quase frenético.

Scar enfia a mão embaixo da minha camiseta, os dedos exploratórios


na parte do meu abdômen contraído. Então, ela desce até que faça uma
carícia em minha ereção. Ao sentir meu membro rijo, a ruiva se afasta.
Nossos olhos se conectam no mesmo momento em que o beijo é quebrado.

— Vamos para o banco de trás — diz, com os lábios inchados.

Escondo a surpresa e destravo o carro. Scarlet se acomoda e já estou


sobre ela, voltando a beijá-la. A ruiva precisa dobrar os joelhos para caber
aqui, e eu me acomodo no meio das pernas dela do jeito que consigo,
considerando o espaço limitado. Suas unhas arranham minhas costas e ela
puxa a barra da minha camiseta. Entendendo o recado, descarto a peça de
roupa, jogando-a no assoalho da picape.

Me afasto, fazendo-a murmurar. No entanto, para compensar a falta


dos meus lábios contra os seus, começo uma trilha de beijos pelo seu
pescoço, descendo até a clavícula. Depois, puxo sua blusa para baixo,
expondo os seios. A visão dos mamilos rijos me deixa salivando, então
abocanho um deles, chupando com força. Scarlet geme baixinho,
contorcendo-se sob mim. Com um estalo molhado de sucção, abandono o
mamilo esquerdo e vou para o direito, circulando a língua sobre ele.

— Evan — implora, com a voz ofegante. — Por favor, me diz que


você tem uma maldita camisinha.

Me afasto para procurar a carteira no bolso da calça, e encontro o


preservativo em um dos compartimentos. Antes que eu possa reagir, Scar
inverte nossas posições, empurrando meu peito para trás até que eu esteja
sentado e ela monte no meu colo. Ela toma o preservativo das minhas mãos,
rasga a embalagem com os dentes e me entrega de volta. Abro o zíper da
calça e a empurro para baixo junto com a cueca. Minha ereção salta livre,
fazendo com que Scarlet olhe para baixo. Seu rosto cora e ela observa
enquanto deslizo o látex pelo comprimento.

Como está usando uma saia, tudo o que precisa fazer é tirar a calcinha.
Quando ela faz isso, volta a me beijar. É urgente. Acho que vou morrer se
não entrar dentro dela o mais rápido possível.

Scarlet roça a entrada na cabeça do meu pau, num contato breve e


exploratório. Não me contendo, enrolo o cabelo ruivo no punho e o puxo
com força, ao mesmo tempo em que ergo o quadril, a penetrando de
maneira rude. Um gemido alto escapa de sua boca e repito o movimento.
Antes que ela possa gemer outra vez, volto a beijá-la.

A ruiva começa a se movimentar sobre mim, sincronizando no ritmo


desesperado que estabeleci. Scarlet desce com tanta força no meu
comprimento que quero perguntá-la se não está doendo, mas, se for o caso,
percebo que isso a excita ainda mais, o que me deixa no limite. Porra, não
posso gozar feito um virgem de quinze anos. Seguro com força a cintura
dela, quase implorando para que vá um pouco mais devagar.

Meu abdômen arde por inteiro quando o orgasmo começa a querer me


atingir.

— Merda — murmuro contra sua boca, travando a mandíbula com


tanta força que acho que meus dentes vão se partir. Afundo os dedos em sua
bunda, numa tentativa desesperada de me conter.

— Eu vou… — ela começa a dizer, mas não consegue terminar a frase,


por conta do clímax que a atinge.

Scarlet enterra a cabeça no meu pescoço e estremece sobre mim


quando goza, o corpo derretendo como se os membros fossem gelatinosos.
O peso dela é como uma pluma, por isso continuo me movendo,
levantando-a toda vez que a penetro com força.

Seus gemidos se tornam pausados e sincronizados com os movimentos


do meu quadril. Empurro contra ela mais uma, duas, três vezes, e sinto as
paredes se contraírem ao redor do meu pau. Então, sou eu quem desmorono.
O orgasmo é tão forte que quase me faz rolar os olhos. Solto um
gemido baixo, sentindo-me esvaziar dentro de Scar. Olho para seu rosto, o
cabelo laranja está grudado na testa e seu peito sobe e desce profundamente,
assim como o meu.

As janelas do carro estão todas embaçadas, denunciando o ato. O


contato visual se mantém até que ela sai de cima de mim e começa a
arrumar as próprias roupas para colocá-las de volta no lugar.

Tiro a camisinha, dou um nó e jogo no lixo do carro. Quando termino,


Scarlet fala sem fazer contato visual:

— Você ainda vai me levar até o dormitório?

— Claro — respondo, como se fosse óbvio. — Vamos.

Abro a porta do banco de trás e espero que Scarlet desça para fechar a
porta e abrir a do passageiro. Outra vez, não consigo decifrar o olhar em seu
rosto. Durante o trajeto até o alojamento, ficamos em silêncio, mas é
estranho. Assim que estaciono, ela tira o cinto e começa a abrir a porta.
Contudo, seguro seu braço.

— Scarlet, eu…

— Não precisa dizer — me interrompe, depressa. Ela sorri de forma


amigável. — Sei como funciona. Apenas sexo casual e tal. Não se
preocupe. Nós dois estávamos a fim, foi legal e acabou, certo? Boa noite,
capitão.

Então, simples assim, ela me dá um tapinha no ombro e desce do


carro.
17

NÃO ACREDITO QUE transei com Evan na sexta-feira. Toda vez que me
lembro disso, me sinto estranha, como uma impostora. Tá legal, talvez seja
um exagero, mas Logan é o único com quem fiz sexo. Correção: Logan e
Evan, a partir de agora. Acho que estou estranhando porque foi algo casual
e, para mim, o sexo só rola dentro de um relacionamento. Meu Deus, onde
eu estava com a cabeça?

Em contrapartida, vou ser uma mentirosa se disser que não gostei. Foi
incrível. O físico de Evan é… nossa. Toda vez que lembro dele embaixo de
mim, o corpo forte e cheio de músculos vibrando em um orgasmo, me sinto
uma pervertida, vez que automaticamente tenho vontade de repetir a dose.

É loucura, certo? Caras como Evan Sutton nem devem repetir a mesma
garota. Estremeço só de pensar que fui apenas mais uma com quem ele
transou, mas deixo o pensamento de lado. Preciso da minha mente limpa
enquanto pratico yoga, caso contrário, não vou conseguir relaxar o
suficiente.

Me lembro de que o passado não existe, nem o futuro, e me concentro


no agora.

Minha concentração dura por um minuto, até que meu celular comece
a tocar e eu abra os olhos, bufando. Apanho o aparelho e vejo que é uma
chamada de minha mãe. Desde que minha foto vazou, tenho medo de que,
de alguma forma, meus pais tenham ficado sabendo, o que me levou a
evitá-los. No entanto, é impossível fugir do radar das mães, especialmente
de Lily. É como uma espécie de superpoder.

Atendo no quinto toque, colocando o telefone contra a orelha

— Oi, querida. Está tudo bem? Faz tempo que você não liga.
— Desculpa, estava concentrada com o prazo final do projeto.
Consegui recuperar as notas.

— Que ótimo! Seu pai e eu estávamos pensando em comprar as


passagens de ônibus para você vir para Green Lake no dia Ação de Graças.

— Ainda falta um mês, não acha precipitado comprar agora?

— Só queremos garantir que você consiga os bilhetes. Josh não para


de falar sobre isso. Engraçado, pensei que Daisy sentiria mais a sua falta,
mas ela começou as aulas particulares de violino e mal conversa com a
gente, só quer saber de praticar. Ontem, tivemos que lembrá-la de tomar
banho. Sério, acho que pari a reencarnação do Mozart.

Daisy sempre mostrou interesse por música. No entanto, ainda assim


fico surpresa que tenha levado isso adiante.

Estou muito ansiosa para ir para casa e ver meus irmãos caçulas.
Tenho medo de que eles me esqueçam.

— Sério? Que incrível. Me manda os bilhetes por e-mail depois.

— Claro. Irei fazer isso. Preciso ir agora, estou atendendo no hortifruti.


Não esquece de ligar! Beijos.

Desligo a chamada, após me despedir, e coloco-o de lado. Viper entra


no dormitório segundos depois. Minha colega de quarto usa um vestido
longo preto de decote profundo, com asas negras grudadas nas costas. Além
disso, ela segura um tridente de plástico e chifres em sua cabeça. Pela
composição, diria que está fantasiada de diabinha.

— Sério que você está fazendo yoga na primeira noite de festa do


Halloween?

— E daí?

— E daí que você tem que parar com isso. Tenho uma fantasia
sobrando, vamos para uma festa na maior fraternidade do campus.

Viper começa a revirar o próprio armário.


— Não estou a fim de ir à festa hoje. Cameron também tentou me
convencer, mas não achei uma boa ideia.

Ela me ignora e joga a fantasia em minha direção. É um corset


dourado bonito, costurado a uma mini saia de couro. Depois, empurra com
os pés um par de botas marrons, que parecem ser do meu número.

— Isso é uma espécie de fantasia de gladiadora sexy?

— Experimenta. Seus peitos vão ficar bonitos, vai por mim.

Dando o braço a torcer, visto a fantasia, e Viper tem razão. O decote


deixa meus seios incríveis, e a roupa se ajusta perfeitamente, grudando no
meu corpo como uma segunda pele. Observo meu reflexo no espelho,
mordendo o lábio inferior enquanto pondero se devo ir à festa ou não. Quer
saber? Que se dane. Preciso aproveitar mais a vida universitária.

— Ok, você me convenceu. Vamos à maldita festa — digo, antes que


mude de ideia.

— Quer cerveja? — Viper questiona quando nos aproximamos do


barril, aumentando o tom de voz para que eu escute sobre a música e a
barulheira.

A fraternidade está repleta de universitários, todos fantasiados e


dançando pelo quintal. Aceno com a cabeça, resmungando quando alguém
esbarra em mim com força e nem pede desculpas. De repente, lembro a
razão de odiar festas e preferir ficar em casa. Viper estende um copo de
plástico em minha direção. Dou um gole na cerveja e faço careta.

— Isso aqui tá péssimo. — Arranco uma risada debochada dela.

— É cerveja barata, típica de festas universitárias.


— Devia ser crime servir algo assim. — Inspeciono ao redor no
momento em que um homem com aura misteriosa atravessa o gramado.

Sua presença é impactante o suficiente para que eu olhe para ele por
alguns segundos. Volto-me para Viper e percebo que seu rosto está branco
feito papel, como se ela tivesse visto um fantasma. Abro a boca para
perguntá-la o que aconteceu, mas uma voz grave atrás de nós me
interrompe:

— Achei você.

Olho por cima do ombro, arregalando os olhos quando encontro dois


abismos negros nas íris do desconhecido. Acho que nunca vi olhos tão
profundos antes, nem tão sombrios.

— O que está fazendo aqui? — questiona com a voz baixa. O estranho


apenas cruza os braços tatuados em frente ao peitoral largo. Reparo que as
pessoas estão prestando atenção em nós.

Ele ri.

— Você está na porra da minha fraternidade. Eu quem devia te


perguntar isso.

— Você se formou ano passado. Não é mais daqui. — Ela ergue o


queixo, desafiando-o.

— No entanto, tudo isso ainda me pertence — fala, com escárnio, e


não deixo de notar o duplo sentido na frase. Será que são ex-namorados?
Finalmente, o cara repara em mim. Congelo. Algo me diz que ele é o tipo
de pessoa que devo me manter a muitos metros de distância. — Sua amiga?
Adoro corromper coisas bonitas…

— Cai fora, Hawthorne. — Sutton aparece de repente, colocando-se


entre mim e o estranho. — Elas estão comigo.

Ok, estou surpresa e confusa.


— Na verdade, preciso conversar com ele. — Viper interrompe,
limpando a garganta. — Depois te encontro, Scar.

E, simples assim, os dois se distanciam, atraindo olhares e cochichos.


Olho para Evan, que parece menos tenso agora que estamos sozinhos. Bom,
o máximo a sós que uma festa poderia permitir. Ao contrário de todo
mundo, ele não está fantasiado. Usa uma jaqueta de couro preta e calça
jeans. O capitão arqueia uma sobrancelha em minha direção. Estou evitando
as mensagens dele há dois dias.

— Gladiadora? — Os olhos correm pelo meu corpo.

— Sim. Você achou brega?

— Achei sexy para caralho.

O elogio me surpreende, mas mudo de assunto:

— Você sabe com quem a Viper estava?

— É o Hawthorne. A família dele é uma das fundadoras de


Crystallvile e da Universidade em que estudamos, mas o cara é um otário.
Sempre esteve envolvido em confusões quando estudava na CVU e o pai
dele foi preso recentemente por um esquema de corrupção. Se quer uma
dica, fica longe dessa gente. Parece que a sua amiga tem um passado com
ele.

— Isso está parecendo uma novela mexicana — murmuro,


incomodada. — Espero que Viper saiba onde se meteu.

Há uma pausa antes que Evan aponte sobre o ombro.

— Quer ir lá para dentro? Vamos jogar beer pong.

— Não estou no clima, mas você pode ir se quiser.

— Scarlet, fala a verdade. Você tá me evitando desde que…

— Não fala essa palavra aqui. — O interrompo, como se ele estivesse


prestes a anunciar num megafone que transamos. Ok, talvez eu esteja sendo
um pouco ridícula.

Sutton solta uma risadinha grave, se aproximando. Sinto que devo me


afastar, mas meu corpo se recusa. Ai, que droga. Odeio o efeito que ele tem
sobre mim. Parece que me transformo em uma completa idiota perto do
jogador. A proximidade dele me agrada mais do que eu gostaria.

— Não quero que as coisas fiquem estranhas entre nós — diz, com
sinceridade nos olhos cinzentos. — Não pretendo te tratar diferente, Scar.
— Ah, é? — indago. — Então você não vai dar um chute na minha
bunda e nem falar que não repete a transa?

— Eu nunca faria isso. — Evan franze o cenho, ofendido. — É o que


achou?

— Não, desculpa. Estava brincando.

Talvez com um pouco de julgamento no meio da brincadeira. Ergo um


dos ombros, sem jeito.

— Não sei como funciona. Nunca fiz desta forma antes… me assustou
um pouco — admito, me sentindo patética. Dou um gole na cerveja ruim,
numa tentativa de que o álcool amenize um pouco do meu embaraço.

— Relaxa, cenourinha. Eu entendo.

— Entende mesmo? — pergunto, desconfiada.

— Claro que entendo. A maioria das pessoas também acha que sou um
otário, e nem culpo ninguém por isso. É como os caras do time se
comportam, tenho que admitir. — Dá de ombros. — Mas, já que estamos
nesse assunto… Quero que você seja minha amiga colorida.

Arregalo os olhos, surpresa. Uma parte minha quer aceitar, mas a outra
está receosa demais, temendo que tudo isso não passe de um jogo e que
Evan seja um idiota. Limpo a garganta e, com calma, respondo:

— Não.
Sutton mal esboça reação. Ele se aproxima, tirando uma mecha de
cabelo ruivo que cai sobre meu olhar. O simples toque de seus dedos contra
minha pele desencadeia uma onda de arrepios pelo meu corpo. Que merda é
essa?

— Não? — repete, achando graça. — Seu corpo parece querer dizer


sim.

— Meu corpo é idiota. Meu cérebro inteligente está dizendo não.

— Seu medo está dizendo não.

Droga, talvez ele esteja certo, mas não irei dar o braço a torcer.

— Vai ter que desistir, capitão. Essa é minha resposta final. Inclusive,
fiquei sabendo que o time da CVU não vai bem. — Desvio o foco do
assunto. — Não devia estar concentrado em nos trazer orgulho ao invés
disso?

Minha pergunta parece calá-lo completamente. Evan pensa por alguns


momentos.

— Cinco — diz, de repente.

— O quê?

— Vou vencer cinco jogos seguidos, então você será toda minha.

— “Se” você vencer, quer dizer. — O corrijo, achando a proposta


engraçada.

— Eu vou vencer, e você vai aceitar a amizade colorida.

Merda.

Penso por alguns momentos.

Quero fazer isso, já que o sexo foi incrível e, além do mais, não
precisarei estar presa a um relacionamento. No entanto, não quero parecer
desesperada, então respondo:
— Com regras.

— Sem regras.

— Vai ser só até o Natal.

— Depois disso, você vai querer mais.

— Presunçoso. — Cruzo os braços sobre o peito.

— Apenas sincero.

— Cinco jogos de conquista, então. E vamos ver se você é tudo isso.

Na verdade, já tive uma amostra no carro, mas não quero dá-lo pontos.
Sutton sorri ladino, como se estivesse pensando a mesma coisa que eu.

— Cinco jogos e você vai ser a nova extensão da minha cama, porque
nunca mais vai querer sair dela.

— É o que veremos, capitão.

Tenho receio de que, no fim, ele esteja certo.

Sinto um formigamento se espalhar pelo meu corpo só de pensar em


transar com Evan outra vez. Preciso voltar a ser alguém racional.

— Vou me encontrar com Viper.

Como se pressentisse que estou falando sobre ela, a garota surge ao


meu lado. Viper não esboça nenhuma reação do que aconteceu enquanto
esteve ausente. Ela alterna o olhar entre mim e Evan e, antes que eu possa
dizer algo, dá de ombros.

— Já entendi o recado. Vou procurar alguma coisa forte para beber.


Não vou voltar para o dormitório hoje, então não se preocupe comigo.

Como Viper parece bem, respeito o espaço que ela impõe. Não quero
me intrometer e afastá-la agora que estamos ficando próximas. Se um dia
ela quiser compartilhar algo comigo, serei todo ouvidos. Mas, por enquanto,
tenho que respeitar seus limites.

— Acho vou voltar para o dormitório — digo, sentindo-me deslocada


em meio ao mar de corpos.

— Quer ir para a minha casa? — o capitão questiona e rio, balançando


a cabeça.

— Você é impressionante.

— Não vou atacar você, relaxa. Não tem ninguém lá, mas prometo me
comportar. É claro que, se você quiser, eu não irei ser contra.

Sutton parece honesto. Por um momento, pondero sobre ir para lá,


mas, pensando melhor, não podemos pular etapas. Não quero confundir as
coisas. Imagino que haja uma linha tênue entre o sexo casual e sentimentos.
Então, opto por me manter do lado seguro.

— Sinto muito, mas vou ter que negar. Boa noite. Até mais.

Sem lhe dar tempo para contrariar, começo a me enfiar entre os corpos,
indo até a frente da casa para chamar um táxi. Deixo Sutton para trás, assim
como fiz no dia do cinema.
18

— AINDA NÃO SEI como você convenceu nossa mãe a vir no jogo de
hoje.

Emery parece impressionada com este fato, mas a verdade é que nunca
convidamos Abigail antes. Minha irmã gêmea e sua equipe de cheerleaders
já estão prontas para a abertura da conferência. Jogamos em casa, o que é
uma vantagem sobre o time adversário. No entanto, isso não significa que
podemos vacilar. Já avisei todo mundo para manter a cabeça na porra do
gelo, até porque preciso que todas as próximas cinco partidas sejam dos
Frozen Fury. Estou muito perto de colocar as mãos em Scarlet outra vez,
que é a única coisa que consegui pensar durante a semana inteira.

— Temos que convidá-la mais vezes — falo, enquanto Emy termina de


retocar a purpurina que passou no rosto.

Estamos sentados lado a lado nos bancos dos reservas. Termino de


calçar meus patins no mesmo momento em que minha irmã anuncia que
está pronta. Emery me deseja boa sorte antes de entrar no gelo com sua
equipe, atraindo toda a atenção para si. As luzes da arena diminuem,
deixando o foco nas cheerleaders, que são ovacionadas. Dou uma olhada
rápida sobre o ombro, procurando por Scarlet nas cadeiras que reservei para
ela e uma amiga. No entanto, ao ver os assentos vazios, mudo meu foco
para o treinador, que se aproxima de mim pela esquerda.
— Essa partida vai ser difícil. Tente estabelecer o primeiro placar.
Concentre-se nas transições de defesa para ataque.

Assinto, repassando todos os treinamentos dos últimos dias, enquanto


a apresentação das cheer chega ao fim. Nosso time já está posicionado no
gelo junto com os adversários. O momento de tensão antes que o árbitro
apite é eletrizante, e me concentro na respiração quando a partida tem
início.
O som metálico das lâminas dos patins arranhando o gelo domina o
ambiente enquanto os times lutam pela posse do disco. Entramos com
vantagem, mas ela dura pouco. Os Red Sharks cortam todos os nossos
passes, com uma marcação forte. Merda, estamos sendo pressionados.
Preciso arriscar um movimento, então começo a correr pelo espaço.

Daqui, mesmo sobre a agitação da plateia, consigo ouvir os gritos do


treinador Wilson. Provavelmente, ele está amaldiçoando até a minha quinta
geração, mas me concentro em mergulhar na brecha da defesa que vejo na
equipe adversária. Com um passe rápido, me coloco na posição de
arremesso.

— Me dá espaço aqui, estou livre! — Espero que meus colegas de


time escutem.

Recebo o puck e, com um movimento rápido e brusco, o disparo em


direção ao gol, acertando o ângulo superior esquerdo da rede. A arena
explode em comemoração assim que os Frozen Fury abrem o placar.

O capacete esconde a sombra do sorriso em meus lábios.

Assim que saio do vestiário, avisto minha mãe sentada perto da


barreira que divide o gelo das arquibancadas. O lugar já esvaziou e há
apenas vestígios de confetes por todo lado, por conta da vitória dos Frozen
Fury. O treinador Wilson parecia orgulhoso, e agora vejo a mesma
admiração no olhar de Abigail. Ela levanta quando me aproximo.

— Nossa, isso foi intenso. Não entendi nada do que houve no jogo,
mas estou orgulhosa de você, Evan.

As palavras significam muito para mim. Acho que faz mais de sete
anos desde que minha mãe me viu jogar. Agora, posso dizer que estou no
nível profissional.

— Obrigado, mãe.
— Onde está a Emery?

— Acho que ela não saiu do vestiário feminino ainda. Vai esperar?

Nesta hora, Abigail parece envergonhada. Minha mãe desvia o olhar


para longe e ajeita a gola de sua blusa de cashmere.

— Não vai dar, preciso ir para uma reunião urgente.

— Entendi.

Os próximos momentos são desconfortáveis. Minha mãe e meu pai


sempre foram muito ocupados. Com o tempo, aprendi a me acostumar com
a ausência. Acho que seja diferente para Emy. Talvez ela ainda espere que
algum dia as coisas mudem. Não tenho mais essa esperança infantil desde
que fiz quinze anos. Acompanho Abigail até o carro. Nos despedimos com
um abraço desajeitado, depois ela parte com a Mercedes pela estrada.

Evan: Você não foi.

Olho para a mensagem que acabei de enviar para Scarlet. Estou


deitado no meu quarto, enquanto todo mundo está comemorando no
Blizzard. Admito que me sinto um idiota. É a primeira vez que uma garota
me deixa na mão e não sei bem como processar isso. Desde a festa de
Halloween, Scar tem me evitado como uma praga. Acho que ela está com
medo de se envolver com alguém, ainda que de maneira casual, e no fundo
sabe que vou vencer esse desafio idiota. O celular vibra instantes depois.

Scarlet: Ei, capitão. Desculpa, não consegui aparecer, mas fiquei


sabendo sobre a vitória.

Scarlet: Parabéns :)

Evan: Não acha que mereço um prêmio melhor?


Scarlet: Você disse que eram cinco jogos. Só venceu um por enquanto.

Evan: Por que adiar o inevitável, cenourinha? Você só quer me


torturar.

Scarlet: Ha ha. Quase me convenceu. Boa noite, Evan.

E, outra vez, ela acaba com meus avanços.


19

— VOCÊ ESTÁ TORTURANDO ele.

É o que Cameron diz depois que desabafo sobre meu encontro. Claro,
distorci algumas coisas. Não contei para ela que “Alfredo” é, na verdade, o
Evan. Em minha defesa, foi o primeiro nome que me veio à mente depois
que ela me jogou contra a parede e viu a caixa de preservativos que comprei
na noite passada em cima da cômoda. Por que diabos comprei
preservativos? Nem comecei a transar oficialmente com o jogador e já estou
fazendo um estoque.

— Não estou. Você acha que eu devia simplesmente… pular nele?

Óbvio, também não falei que já transei com o Evan-Alfredo para Cam.
Ela acha que fomos ao cinema e demos alguns amassos no carro.

— Claro que está. Se quer saber o que eu acho, dá logo para o cara.
Não tem nada de errado nisso. Você tá a fim e ele também. Nossa, que
crime praticar sexo casual! — Rola os olhos, impaciente.

Puxo minhas pernas contra o peito, abraçando os joelhos. No fundo,


sinto uma pontinha de inveja de Cameron. Ela vive a vida fazendo o que
quer. Eu, por outro lado, baseio minhas atitudes no medo.

— É, talvez. Mas e se as coisas fugirem do controle?

— Está falando sobre se apaixonar?

— Na verdade, não tô pronta pra entrar em outro relacionamento. Mas,


sei lá, ainda fico com receio de perder minha identidade. Sem querer
ofender, mas eu não consigo entender como sexo e relacionamento não
andam juntos. Me sinto estranha.
— Hum, entendi. Então é o seu lado puritano que acredita que sexo só
deve acontecer com o namorado que está te prendendo. Mata essa parte sua
e pronto!

Franzo o cenho.

— Como assim matar essa parte minha? Não é assim que as coisas
funcionam, Cam.

— Cria um alter ego, sei lá. Uma Scarlet que não ligue para isso, que
seja livre e queira apenas se divertir e ter orgasmos. Ative o alter ego toda
vez que for transar e separe sua versão de acadêmica romântica da versão
que tá pronta para explorar novos territórios.

Por mais loucura que pareça, acho que Cam está certa, e o Evan
também. Como foi que ele disse? Adiar o inevitável. Sei que provavelmente
ele dará tudo de si para vencer os cinco jogos. Droga, quem eu tô querendo
enganar? Quero tanto o Evan quanto ele me quer. Só sou medrosa demais
para admitir ou aceitar isso.

E por falar nisso, recebo uma mensagem. Espio o celular


discretamente, para que Cameron não veja com quem estou conversando.

Evan: Oi, cenourinha. Vou ficar sozinho em casa hoje. Se quiser vir
para cá, você é bem-vinda.

Evan: E relaxa, não vamos fazer nada que você não queira.

Acho fofo como Evan sempre deixa claro que as coisas só vão
acontecer quando eu quiser e nunca me trata como se eu fosse apenas o
disque-foda dele. Rapidamente, digito uma resposta e envio, antes que
mude de ideia.

Scarlet: Ok. Vou depois das seis.

Quando Cam vai embora do meu dormitório, já são quase cinco horas,
então começo a me arrumar. Tomo banho, lavo o cabelo e o seco com o
secador. Depois, visto uma blusa floral que realça meus seios e uma calça
jeans apertada. Quando estou pronta, passo um perfume suave com cheiro
de morango. Me olho no espelho, constatando que está bom. Talvez só falte
um pouco de rímel. Depois, aviso para Evan que estou a caminho e peço o
táxi.

Enquanto espero do lado de fora do alojamento, noto que o tempo está


ficando feio. Parece que vai chover. Pondero se devo pegar um casaco e mal
percebo a movimentação repentina. Levo um susto quando vejo Logan me
encarando na base da escadaria. Meu coração começa a bater forte quando
ele corta a distância entre nós.

— O que você tá fazendo aqui? — questiono, nervosa.

— Eu só vim pedir desculpas. Estive pensando e percebi que fui um


idiota. Eu não devia ter vazado aquela foto sua.

Meu corpo ferve de raiva. Agora que as pessoas esqueceram


completamente da foto, a última coisa que preciso é que alguém me lembre
disso.

— Tá bom, já pediu desculpas, agora cai fora. — Olho para os lados


para ver se o táxi está se aproximando.

— Não sei por que você tem que agir como se nós fôssemos inimigos.

Eu rio.

— Acho que você se colocou nessa posição quando me traiu.

— Eu errei, tá legal? Errei feio, Scarlet. A questão é que eu me


arrependo. Eu só não contei o que estava acontecendo na festa porque
queria te proteger.

Rolo os olhos tão forte que me surpreende que eles não tenham dado
uma volta completa no meu crânio. Ignoro Logan, agradecendo ao universo
assim que o táxi estaciona em frente ao alojamento. Caminho em direção ao
carro, deixando meu ex babaca parado em frente aos dormitórios. Assim
que entro no automóvel, bato a porta e dou o endereço para o motorista.
No trajeto até a casa de Evan, começo a sentir cólica e conto nos dedos
quando foi a última vez que menstruei.

Já faz quase trinta dias, o que significa que posso estar prestes a
começar a sangrar. Entro em pânico e quase peço para que o taxista dê meia
volta, mas já estamos parados em frente ao casarão, e Evan se encontra de
pé na calçada. Ele abre a porta para mim e paga o motorista.

— Oi, cenourinha. Vamos lá para dentro?

— Na verdade, estou no meio de uma emergência. — Esboço uma


careta, sentindo meu rosto corar.

— O que foi? — questiona, parecendo meio confuso.

— Acho que voumenstruaraqualquersegundo — digo as palavras


rapidamente.

— Então a gente pode….

Antes que ele termine a frase, eu me adianto.

— Já sei que é melhor eu voltar para o dormitório. Não precisa se


preocupar comigo, vou chamar o táxi outra vez e…

— Scarlet. — Sutton me interrompe com o tom de voz sério e grave,


fazendo-me encará-lo. — Você achou que eu ia te mandar embora só por
que está menstruada? Eu te disse que não faríamos nada que você não
quisesse.

Me calo, já que simplesmente presumi que Evan me mandaria embora.


Percebo que Logan me fez acreditar que coisas assim são normais. Sempre
que eu estava menstruada, não podia ir para a casa dele, pois Logan ficaria
com vontade de transar e se frustraria. Balanço a cabeça, envergonhada
demais para falar qualquer coisa, e agradeço quando Sutton não insiste em
arrancar uma resposta de mim.

— Vou dar uma passada na loja de conveniência. Quer esperar aqui?

— Onde fica o banheiro?


— No segundo andar, terceira porta à esquerda. Já volto, Scar.

Entro antes que Evan possa dizer qualquer coisa. Me sinto meio
constrangida por ele ter ido comprar absorvente para mim, mas esse tipo de
coisa acontece, certo? Seguro o riso quando vejo a foto de Sutton pendurada
no hall. Fico no banheiro por cerca de quinze minutos, até que ouça o carro
do capitão estacionar do lado de fora. O motor da picape é inconfundível.
Duas batidas ressoam na porta.

— A sacola está aqui no chão. Vou esperar lá embaixo.

Ouço seus passos se distanciando antes que eu possa agradecê-lo.


Depois de colocar o absorvente, desço para o andar debaixo. Evan está
sentado no sofá, assistindo a um jogo de hóquei na TV. Sua atenção muda
para mim assim que me aproximo.

— Olha só, cenourinha, comprei outras coisas para você. — Ele joga
outra sacola em cima do estofado.

Me sento, confusa, e começo a revirá-la. Encontro remédio para cólica,


uma garrafa de água, um saco gigante de M&M’s e uma bolsa de gel para
dores. Olho para Sutton, incrédula.

— Nossa, obrigada mesmo. Isso é muito gentil.

Ele dá de ombros.

— Quer assistir alguma coisa? — Muda de assunto. — Vou deixar


você escolher, mesmo que seja alguma dessas suas séries de menininha.

Eu rio.

— Então vamos assistir Gossip Girl.

Evan não retruca. Ele acha o seriado na televisão e o coloca. Enquanto


a abertura passa, tomo um remédio e dou um gole na garrafa de água. Há
quase um metro de distância entre nós, e tento me concentrar no que está
acontecendo na série. Quando acaba, Sutton me lança um olhar que não sei
decifrar o que significa.
— Pelo que entendi, é uma série de melodrama sobre adolescentes
ricos e superficiais.

É exatamente isso, mas não quero dar o braço a torcer. Jogo uma
almofada em sua direção, fazendo-o rir.

— Para de reclamar, você nem assistiu ainda.

— Tenho uma ideia de quem seja a garota do blog — fala, referindo-se


à personagem secreta da série. — Na verdade, achei meio óbvio. Mas tudo
bem, vou fingir que ainda não sei para que você não fique brava comigo.

— Ah, fala sério! Como é que você descobriu? Eu não desconfiei nem
um pouco.

O jogador dá uma piscadela em minha direção. Não sei como, mas nos
aproximamos um pouco nos últimos momentos. Agora, há dois palmos de
distância entre nossos corpos. Por uma fração de segundos, meus olhos
caem para seus lábios e minha boca fica seca. Ai, que merda. Preciso parar
de encará-lo, então alcanço a sacola e pego o pacote de M&M’s. Enfio um
punhado na boca e começo a mastigar.

Ofereço a Evan, mas ele nega.

— Então, vai continuar me torturando com essa série? — questiona.

— Sugere algo melhor para fazer?

Percebo que foi uma péssima pergunta só depois que ela deixa minha
boca. Evan se aproxima um pouco mais, até que nossos braços estejam se
tocando. Não vire o maldito rosto, Scarlet. No entanto, contrariando o lado
racional, eu me viro, encarando-o fixamente. Agora, nossas respirações se
misturam e meu olhar encontra o seu. As íris cinzentas parecem prata
líquida.

— A gente pode se beijar. — O tom de voz ressoa mais grave que o


habitual.
— Você estava só esperando a oportunidade, não é? — pergunto,
baixinho.

— Vou mentir se disser que não, mas não foi por isso que te chamei
para cá. Gosto da sua companhia.

— Me mostra, então — peço, sem saber exatamente o porquê. Talvez


eu queira uma garantia de que isso seja real, por mais que Evan já tenha
passado no teste de homem íntegro.

Sutton se afasta.

— Ok. Me conta como foi o seu dia — fala.

— Hum… — Penso um pouco. — Tive uma aula interessante de


morfologia vegetal, almocei macarrão com queijo, pratiquei um pouco de
yoga pela tarde e tive uma visita desagradável do meu ex-namorado antes
de vir para cá. E o seu?

Evan mantém o olhar sério no rosto. Não sei a razão de ter citado
Logan, para falar a verdade. Foi meio automático.

— Tive algumas aulas, depois pratiquei hóquei, dei uma passada na


academia e agora estou aqui com você. Nada incomum no meu dia, como
ex-namoradas. — O capitão arqueia uma das sobrancelhas em minha
direção. — O que é que ele queria?

— Pedir desculpas. — Limpo a garganta. — Mas mandei ele ir


embora… Não entendo o porquê de Logan estar fazendo isso depois de
tudo.

Volto a comer os M&M’s. Tocar nesse assunto me deixou


desconfortável.

— Eu entendo — Evan diz, surpreendendo-me. — Você é uma garota


incrível, Scarlet. Não é surpresa que ele tenha se dado conta da idiotice que
fez. Presenciei o mesmo acontecer com a minha irmã.

Fico surpresa com o elogio, mas disfarço.


— E você, já namorou? — Mudo o foco.

— Conta quando eu estava na oitava série e dei um anel de plástico


para uma garota?

Rio, mas fico um pouco surpresa. Pensei que Evan nunca tivesse
namorado antes. Talvez ele seja um cara que prefere relações casuais do que
estar “preso” a alguém. Deve ser bom viver assim.

— Então, qual a próxima etapa da nossa noite do pijama? Vamos


pintar as unhas ou coisas do tipo?

— Na verdade, acho que tem esmalte aqui. A Bella deixou alguns da


última vez que veio para cá.

Antes que eu possa perguntar quem é Bella, Evan se levanta e some.


Quando volta, está segurando três esmaltes. Um cor-de-rosa, um azul e
outro verde. Arqueio as sobrancelhas. Não quero usar coisas de outra
mulher. Provavelmente, notando a dúvida no meu rosto, o jogador
esclarece.

— É da filha do meu amigo, o Hunter. Você conheceu ele outro dia.

— Ele tem uma filha? — Tento não parecer chocada, mas falho
miseravelmente. Minha boca está escancarada neste momento. Evan solta
uma risada baixa.

— É, a Bella. Acho que ela não vai se importar. Qual dessas cores
você acha melhor?

— Pode ser o verde. — Estendo minha mão esquerda para Evan, meio
desconfiada. — Você sabe o que tá fazendo, pelo menos? — Estou me
esforçando muito para não rir quando ele começa a abrir o vidro do esmalte.

A cena toda é cômica, um jogador de hóquei de quase um metro e


noventa prestes a pintar as minhas unhas. Peço para Sutton esperar um
momento e coloco as músicas da Britney Spears na TV. Evan se concentra
em pintar o primeiro dedo. Para minha surpresa, ele é cauteloso e não borra
os cantos. Preciso admitir que estou impressionada.
Antes que eu possa fazer um comentário engraçadinho, a porta da
frente se abre e eu congelo. Um cara alto e com ombros largos atravessa o
hall e para na sala assim que se depara com a cena. Neste momento,
estamos ouvindo Toxic. Ele franze o cenho, o olhar disparando entre Evan e
eu.

— Foi por isso que você não topou sair com o resto dos caras? Sem
querer ofender — acrescenta, me fitando.

— Não enche o saco, Lionel — o capitão murmura, não desviando o


foco das minhas unhas. — O que veio fazer aqui? Achei que vocês fossem
virar a noite.
— Ah, é. Mas esqueci minha carteira. Sabe, tem muita coisa
importante lá. Dinheiro, preservativo e os cartões que mandei imprimir.

— Não acredito que você fez mesmo essa merda.

— Claro que fiz! — Lionel protesta, ofendido. — Espera aí.

Ele sobe as escadas e retorna um momento depois com a carteira em


mãos. Tirando um cartãozinho de um dos compartimentos, ele o entrega
para mim.

— Me diz, não é genial? O Evan não sabe de nada. Vou dar isso para
as garotas que eu achar interessante. Otimiza o tempo.

Gravado no pedaço de papel, há um número de telefone e o nome


Lionel Hopper. Abaixo, em letras pequenas, está escrito que ele retorna
ligações no máximo em quarenta e oito horas. Contenho o riso no fundo da
garganta e me esforço para manter o rosto sério.

— É ótimo.

— Tá vendo? Até a ruiva gostou — fala, olhando para Evan. Depois,


se volta para mim outra vez. — Inclusive, se quiser ficar com esse aí…

— Pega essa merda de volta e some, Hopper. — Sutton o corta antes


que eu possa dizer qualquer coisa.
Lionel ri, pega seu cartão e me dá uma piscadela antes de enfiar a
carteira no bolso e se despedir, desejando uma boa noite de garotas para nós
dois. Evan parece não ligar para a provocação. Ele acaba de passar a
primeira camada de esmalte nas minhas unhas. Tenho que admitir, Sutton é
bom nisso.

— Por que é que você parece impressionada? Eu tenho uma ótima


coordenação motora, cenourinha.

— É o que a gente vai ver. Finaliza todo o trabalho primeiro. — Não


dou o braço a torcer.

Aos risos, tudo o que Evan responde é:

— Sim, senhora.
20

VIPER ABRE A porta do dormitório no momento em que subo o zíper da


calça jeans. Estou terminando de me vestir para ir até a biblioteca pegar
alguns livros. Minha colega de quarto parece dispersa, até que, enfim, me
nota.

— Ah, oi. — Ela retira os fones de ouvido.

Observo-a em silêncio. Ultimamente, ela tem estado diferente. Não se


importa mais com minhas pedras da lua espalhadas pelo cômodo, ou com as
sessões de yoga. Não tenho ideia do que causou sua mudança, mas isso me
deixa preocupada. Limpando a garganta, pergunto:

— Você está namorando?

— O quê? Não. — Franze o cenho. — Por que essa pergunta?

— Ah, sei lá, você tem passado menos tempo no dormitório e teve
aquele cara estranho na festa…

— Não esquenta com isso — ela me corta abruptamente, com o tom de


voz seco. — Só estou ocupada. Você vai sair? — Muda de assunto.

Sei que Viper provavelmente só fez essa pergunta para não falar sobre
si mesma, vez que ela nunca demonstrou interesse sobre a minha vida. Ok,
recado captado. Vou parar de xeretar.

— Vou à biblioteca.

— Parece chato. Vou tomar banho.


Com isso, a garota pega sua toalha e vai até o banheiro. Enfio meu
cartão de estudante no bolso traseiro da calça. No caminho, ainda vejo
alguns resquícios da decoração do Halloween pelo campus. Estou usando
um suéter grosso, pois está frio, afinal estamos no fim da primeira semana
de novembro.

Quando entro na biblioteca, que está cheia de acadêmicos, começo a


descascar o esmalte enquanto analiso as estantes em busca dos livros que
preciso. As lascas da tinta verde me lembram que Evan foi o responsável
por pintar minhas unhas. Depois disso, ele me deixou no dormitório, já que
não queria dormir lá estando menstruada. Desde então, quatro dias se
passaram e apenas trocamos mensagens. Coisas aleatórias como links de
músicas que gostamos, alguns PDFs interessantes e até mesmo fotografias
aleatórias. Esta manhã, Sutton me enviou uma foto de sua nova coleção de
livros clássicos, organizados metodicamente em seu quarto.

Paro de cutucar as unhas e me estico na ponta dos pés para alcançar


um dos exemplares na fileira superior. Meu braço não é longo o suficiente,
então tateio na tentativa de alcançar a droga do livro. Não sou tão baixa,
tenho quase um e setenta, mas a estante supera minha altura.

Dou um pulo quando dedos entram no meu campo de visão e puxam o


livro lá de cima. Ao me virar, esbarro no corpo forte de Sutton. Uma de
suas mãos para na base da minha coluna, me mantendo no lugar quando me
desequilibro por conta do susto.

— De nada — fala, quando permaneço em silêncio, entregando o livro


para mim.

Meus olhos percorrem seu rosto bonito e depois se fixam no moletom


preto que ele veste. Preciso de um tempo para processar sua presença
inesperada. Quando me dou conta de que provavelmente pareço uma
maníaca encarando-o desta forma, digo:

— Obrigada.

— Então, vai fazer o que neste final de semana?

— Ainda não tenho planos.


— O que acha de irmos para algum lugar?

— Hum, vai depender. Estou ocupada procurando um emprego de


meio período. Talvez não dê para ir.

— Manda uma mensagem quando souber, estou louco para te ver


pelada outra vez.

Mesmo que tenha dito as palavras num tom de voz baixo, arregalo os
olhos e o repreendo, batendo o livro contra o seu peito. Evan ri baixo, e o
som grave é sensual para caramba.

— Vai ter que esperar um pouco, capitão. E para de falar sobre isso em
público.

— Por quê? — Sutton se aproxima, tirando uma mecha de cabelo do


meu rosto e prendendo-o atrás da minha orelha. Estremeço com o contato
breve. — Tem medo de que as pessoas descubram sobre o nosso caso?

É a minha vez de rir. Olho ao redor, não há ninguém perto desta seção.

— A gente não tem um caso. É uma amizade colorida.

— Mas que você quer manter em segredo — afirma, com ironia no


tom de voz e um sorriso travesso nos lábios.

— Acho que é melhor dessa forma. Eu não quero que você me entenda
mal, mas…

— Não precisa explicar, Scarlet. Eu não ligo de ser o seu segredinho


sujo. — Evan arqueia as sobrancelhas, o ar lúdico ainda dançando em seus
olhos. — A propósito, quanto você pesa mesmo?

A mudança brusca de assunto me faz piscar.

— Cinquenta e seis.

Evan ri de escárnio.
— Vou colocar na elevação pélvica. Consigo ter um controle melhor
do movimento com esse peso. Faço mais cadenciado. Seria bem legal…

— O quê?

— Você. Por cima. Movimentos cadenciados. — Há uma pausa


enquanto seus olhos escurecem e Evan limpa a garganta. — Preciso ir
agora, Scar. A gente se vê por aí.

Então, afastando-se, Sutton vai embora tão repentinamente quanto


chegou. Solto o ar que nem sabia que estava prendendo, ignorando o calor
nas minhas bochechas. Depois de passar no balcão para registrar o
empréstimo do livro, vou em direção à porta, mas alguém esbarra no meu
ombro com força.

Atordoada, olho para o lado e congelo ao reconhecer o rosto de Piper.


Assim como na época do colégio, ela ainda tem olhos azuis bonitos, como
duas pedras de safiras. A garota parece tão surpresa quanto eu.

— Scarlet… faz tempo que não te vejo — fala, incerta. — Não sabia
que você estava estudando na CVU.

Começo a sentir as palmas das mãos suarem e tento sorrir.

— É, eu estou aqui há apenas alguns meses. Sempre achei que você ia


para a Yale.

— É o plano. — Dá de ombros. — Vou pedir transferência depois do


inverno. — Há uma pausa. — Sobre o memorial em homenagem a Lila
amanhã, você vai?

Pisco, em choque.

— Eu… não sabia.

— Entendo.

Agora, a feição dela evidencia pena. Odeio esse olhar. Invento uma
desculpa qualquer sobre um compromisso e me despeço, apertando o livro
com tanta força que os nós ficam esbranquiçados. É a primeira vez que
encontro alguém de Green Lake aqui em Crystalville, com exceção, é claro,
de Logan. Piper também era próxima de Lila e ficou tão arrasada quanto eu
quando ela se foi.

Quando volto ao alojamento, encontro Cameron no corredor. Ainda


estou meio mexida com o encontro com Piper, então deixo que ela me
arraste para o seu dormitório. Tento não pensar que meus pais não me
disseram nada sobre o memorial e no quanto isso está me incomodando.

— E aí, transou com o Alfredo?

Quase pergunto a Cam quem é Alfredo, mas me lembro da mentira que


criei.

— Ainda não. Acho que vou passar o final de semana com ele. — Me
sento na sua cama. — Tô procurando um emprego. Mandei meu currículo
para alguns lugares ontem à noite.

— Decidiu isso do nada? — questiona, surpresa. — Minha tia é


professora em um ginásio que fica a poucos minutos daqui. Parece que
estão contratando ajudantes, sei disso porque ela sugeriu que eu me
inscrevesse. Mas, para ser honesta, não me dou bem com crianças. Se você
quiser, repasso seu currículo para ela.

— Seria ótimo.

Cam me analisa por alguns momentos.

— Você está bem? Parece meio cansada.

— Na verdade, preciso ter uma conversa chata com os meus pais.


Acho que vou ligar para eles agora.

— Tudo bem, a gente se fala depois.

Me despeço de Cameron com um abraço antes de ir para o meu


dormitório. Aproveito que estou sozinha e disco o número de casa. Eu faria
uma videochamada se não estivesse me sentindo tão traída. Um nó se forma
em minha garganta quando minha mãe atende.
— Oi, querida! Tudo bem? — Sua voz soa alegre.

— Quando você ia me contar sobre o memorial? — é a primeira coisa


que digo.

O silêncio que se segue na linha é constrangedor. Posso até imaginar a


expressão de Lily ficando séria. Seu suspiro pesaroso é alto.

— Desculpa. Eu e seu pai achamos que era melhor que você não
soubesse.

— Por quê? — questiono, como se não soubesse da resposta.

Sempre que o assunto em Green Lake é sobre Lila, as pessoas


associam o acidente de sua morte a mim. No seu enterro, fui chamada de
assassina. Desde então, meus pais fizeram de tudo para que eu não fosse
ainda mais hostilizada. Quando comecei a namorar Logan, o peso do
julgamento amenizou. Talvez porque os pais dele eram um pouco influentes
na cidade.

— Não queríamos que você se magoasse — mamãe responde, com


cuidado. — As pessoas são cruéis, Scar.

— Não queriam que eu me magoasse escondendo isso de mim? Vocês


sabem que eu teria me organizado para conseguir ir. Não cabe a vocês
decidirem o que eu deveria fazer ou não. Obrigada mesmo, mãe!

Antes que ela tenha a chance de dizer algo, encerro a chamada.


Respiro fundo algumas vezes, tentando acalmar meu interior. Quando tenho
certeza de que não vou surtar, acendo duas velas e pego meu notebook para
terminar de me atualizar com as matérias da faculdade e enviar o currículo
para Cameron. Ao checar meu celular, vejo que há várias chamadas
perdidas de minha mãe. Como não estou com cabeça para lidar com isso no
momento, abro o chat de mensagens com o Evan. Meus dedos pairam sobre
o teclado por vários minutos, enquanto penso no que irei dizer.

Scarlet: Onde vc tá?

A resposta chega em poucos minutos.


Evan: Saindo do rinque. O treinador me fez ficar um pouco mais que
o restante do time. Pq?

Scarlet: Você tá sozinho?

Evan: Acho que sim

Scarlet: Estou indo para aí.

Não sei o que estou fazendo quando visto um casaco grosso e botas,
mas sei que preciso de uma distração. Pego minhas chaves e começo a
caminhada pelo campus em direção à arena, para me encontrar com Evan.
21

ESTOU TODO SUADO quando Scarlet anuncia que está vindo para cá
inesperadamente. Em vez de ir para o vestiário, decido esperá-la dentro do
rinque. Ainda uso os patins, já que estava reforçando o meu preparo junto
com o treinador Wilson. Algumas pessoas podem classificar isso como
loucura, mas para um atleta, o esporte é levado a sério mesmo fora dos
treinos e jogos oficiais. Todo o meu tempo gira em torno do hóquei
atualmente. Por isso, sempre estou me esforçando para aprimorar minha
força com treinos na academia e uma alimentação regrada.

Scarlet chega mais rápido do que imaginei. Ela parece deslocada ao


entrar na arena. Suas bochechas estão coradas, provavelmente por conta do
frio lá fora, e as mãos estão enfiadas dentro de um casaco marrom. A
propósito, essa cor ficou ótima nela. Quando me vê, acena timidamente. Me
aproximo, derrapando sobre as lâminas.

— Quer vir para cá? — pergunto.

Scarlet arregala os olhos.

— O quê? Ir para dentro do rinque?

— Sim. — Quase gargalho da expressão de choque. É quase como se


eu tivesse convidado ela para assaltar o banco central.

— Não, obrigada. Estou bem aqui.

— Por que não? Está com medo, Scarlet?

Ela cruza os braços em frente ao peito, adotando uma pose defensiva.

— Não tô com medo coisa nenhuma, só não gosto de patinar.


— Você já tentou patinar antes? Como sabe que não gosta?

Ela respira fundo e começa a falar, porém, se cala no último instante.


Provavelmente, Scar só está com vergonha, então peço um segundo e vou
até o armário de equipamentos procurar por um número que sirva nela.
Quando encontro, jogo-os em sua direção, fazendo com que a ruiva torça o
nariz.

— Não vou usar isso aí — diz, se referindo ao par velho e gasto,


olhando para eles como se fosse mordê-la a qualquer segundo.

Solto um riso baixo.

— Do que é que você tem medo? Não vou te deixar cair, se essa é sua
preocupação.

Scarlet permanece em silêncio, e algo como medo se passa por seu


olhar. Dá para ver que a ruiva está em um debate interno sobre calçar os
patins. Será que ela tem alguma fobia?

— Eu não vou deixar você cair. É uma promessa.

Scar morde o lábio inferior e dá o braço a torcer, sentando-se no banco


para colocar os patins. Ao terminar, estendo a mão para ajudá-la a entrar no
rinque. Deslizando a palma contra a minha, ficamos de mãos dadas.
Hesitante, ela coloca uma perna para dentro do gelo, depois a outra. Então,
estamos frente a frente. Seu rosto se ergue em minha direção e ela solta uma
respiração audível pela boca.

Em silêncio, começo a guiá-la.

Inicialmente, Scar fica parada, apertando as mãos com força em meus


braços enquanto eu patino suavemente, guiando-a. O corpo inteiro está
tenso e ela não tira os olhos dos meus.

Depois de alguns momentos, ela começa a mover os pés e, para minha


surpresa, a garota tem uma estabilidade e coordenação incríveis. Quando
começa a soltar as mãos dos meus braços, faço menção de segurá-la, mas
ela me impede.
— Não precisa.

Hesito.

— Tem certeza?

— Tenho.

Então, a ruiva se desvencilha de mim e ganha velocidade conforme


patina. Inicialmente, ela apenas dá voltas no rinque. Fico parado, incapaz de
me mexer, observando-a se mover com confiança e determinação,
deslizando no gelo como um pássaro livre. É uma pessoa completamente
diferente da que hesitou antes de entrar aqui. Scarlet é graciosa, ao contrário
da brutalidade dos jogadores de hóquei.

Quando ela ergue uma das pernas e estende os braços, se equilibrando


em uma perna só, sinto que fui enganado. Definitivamente, Scar tem uma
longa história com a patinação.

De repente, eu quero saber tudo sobre ela. É minha nova obsessão.

Quando a ruiva para em minha frente, o peito sobe e desce, e há um


brilho no seu rosto que me faz querer arrancar sua roupa e transar com ela
aqui no meio do gelo. Scar sorri para mim.

— Tinha me esquecido dessa sensação.

— Você me enganou. Eu achando que você mal sabia se equilibrar no


gelo. — Cruzo os braços em frente ao peito. — Quer me contar algo?

— O quê?

— Que você é uma patinadora.

Seu rosto inteiro cora.

— Eu não patino mais. Era só algo bobo que ficou na adolescência.

— Algo bobo? Scarlet, eu vi o olhar no seu rosto.


— Não sei do que você está falando.

— Não sei se você se esqueceu, mas sou capitão de uma equipe de


hóquei e jogo desde que me lembro por gente. Conheci muitas pessoas,
jogadores e entusiastas. Quer saber a diferença? O olhar como o seu quando
começou a patinar para valer. O olhar de alguém que respira a patinação,
que se sente vivo quando está dentro do rinque. Você pode tentar enganar a
si mesma, mas não vai me convencer de que não ama isso. Você é uma
entusiasta.

Há um enorme momento de silêncio enquanto ela parece digerir todas


as minhas palavras. Scarlet engole em seco e desvia o olhar para longe.

— Talvez você esteja certo, mas mais do que ninguém, sei que nem
tudo o que amamos nos faz bem. Posso amar a patinação, porém, não é
para mim. E eu não quero falar sobre isso.

Agora, ela parece realmente incomodada com o rumo da conversa. Por


mais que eu queira saber o que aconteceu para que Scarlet evite a patinação,
mudo de assunto.

— Vou para o vestiário. Volto no máximo em dez minutos.

— Ok. Vou esperar.

A arena está vazia. O treinador Wilson foi embora assim que


terminamos o meu reforço. Tiro a blusa suada e começo a descer o zíper da
calça quando ouço passos atrás de mim. De início, penso que algum dos
caras voltou aqui para buscar algo, mas assim que meu olhar recai sobre
Scarlet, me surpreendo.

— Desculpa, tava meio sinistro ficar lá sozinha e… — Ela para assim


que me vê.

Seus olhos são direcionados para minha calça com a braguilha aberta.
Mesmo com a iluminação baixa, noto que o rosto de Scar adquire um tom
rosado.

— Vem cá. — Não consigo conter o desejo crescente dentro de mim.


A ruiva não hesita em se aproximar. Apenas sua presença é o bastante
para que eu fique duro feito pedra. Scarlet encosta a mão gelada contra a
pele quente do meu abdômen. O toque é tímido, exploratório.

— Quero chupar você. — O timbre ecoa tão baixo que por um


momento acho que estou imaginando coisas.

As três palavras são o suficiente para meu pau pulsar. Agarro a parte
da frente do seu pescoço e a puxo contra mim, devorando-a em um beijo
faminto. Estou com tanto tesão que acho que irei explodir a qualquer
momento. Scarlet enfia a mão dentro da minha cueca, e estremeço quando
ela toca a glande.

Se afastando, a ruiva começa a distribuir beijos pelo meu pescoço,


depois no peitoral e, enfim, chega na linha do umbigo. Cada vez que seus
lábios tocam minha pele, é como se ela gravasse as impressões de sua boca
com fogo em mim, porque queima para caralho.

Quando a ruiva está sobre os joelhos, me olhando com os grandes


olhos verdes feito duas esmeraldas, me esforço ao máximo para decorar a
imagem à minha frente. A boca rosada entreaberta, o desejo que nubla sua
vista e a constelação de sardas. Então, meu pensamento é interrompido
assim que ela lambe a cabeça do meu pau. Quase rolo os olhos.

Enterro a mão nos seus cabelos quando Scarlet começa a me chupar


com força. Ela não me coloca inteiro na boca. Acho que não aguenta. Com
a mão, começa a me masturbar para compensar. Solto um ruído rouco,
desejando me mover. Mexo os quadris levemente, para testar os seus
limites. Scar quase engasga e eu recuo.

Contorno a costura de sua boca com o dedo indicador. Com um


barulho molhado, a ruiva se afasta. Sinto uma fisgada no corpo inteiro
quando paro de sentir a sucção.

— Meu Deus, faz isso de novo — pede, como se tivesse descoberto


algo incrível.

— O quê?
— Isso que você fez agora há pouco. De movimentar o quadril.

Scarlet vai me matar a qualquer momento.

— Não machucou?

— Foi bom — admite, envergonhada.

Porra. Tenho medo de estar sonhando.

Então, Scarlet volta a me chupar e, desta vez, não preciso me conter.


Começo a movimentar os quadris no ritmo que quero, entrando e saindo de
sua boca depressa. O suor se acumula na base de minhas costas, e o
formigamento familiar do orgasmo se espalha por meu abdômen. Empurro
com força e, no momento em que a garganta de Scarlet se fecha em torno
do meu comprimento, chego no limite. Ela engasga, mas quando faço
menção de me afastar porque estou prestes a gozar, me suga com mais
força. Solto todo meu sêmen na sua boca.

Gozo tão violentamente que meu corpo inteiro estremece, e tenho que
apoiar uma das mãos na parede ao meu lado. A ruiva engole cada gota,
depois lambe os lábios inchados. Ela se levanta e eu a beijo outra vez,
puxando-a em direção aos chuveiros. Scarlet ri e se afasta.

— Vou voltar para o alojamento agora. Nada de banho para mim.

Porra. Ela só pode estar brincando comigo. Não gosto da ideia de não
fazê-la gozar também.

— Espera que eu te levo até lá.

— Não precisa. Estou a fim de caminhar. — Ela limpa o canto da boca


com a manga do casaco. — Aliás, você tem um ótimo gosto.

— Scarlet… — aviso.

— Até mais, Evan!

Então, com um meio sorriso, Scarlet ajeita o cabelo e se vira,


deixando-me para trás com a calça enroscada nos tornozelos e o coração
acelerado pelo melhor orgasmo que já tive nos últimos tempos.
22

— FIZ UM BOQUETE no Alfredo — admito em voz alta, e Cameron


quase cospe o café.

Lanço um olhar mortal enquanto ela tosse, atraindo atenção


desnecessária das pessoas ao nosso redor. Estamos na cafeteria do campus e
agora parecemos uma espécie de aberração. Quando se recompõe, minha
amiga diz:

— Me desculpa. Você me pegou de surpresa. — Então, ela abaixa o


tom de voz e se curva sobre a mesa. — O negócio dele é grande?

Rio, e um lampejo de excitação me invade quando me recordo de Evan


preenchendo minha boca. Ele é maior do que Logan, e como não tenho
outros parâmetros de comparação, aceno em concordância.

— Sim. Mas por que isso é relevante?

— Eu sou curiosa, tá legal? Isso foi tudo o que rolou?

— Saí correndo antes que o Ev… Alfredo pudesse fazer mais alguma
coisa. — Dou de ombros, disfarçando por quase ter dito o nome do jogador
de hóquei em voz alta.

— Por quê?

Para ser honesta, nem mesmo eu sei explicar o motivo. Acho que
fiquei com medo de alguém nos encontrar lá. Não quero ser expulsa da
faculdade por atentado ao pudor.

— Sei lá. Acho que eu não tava muito no clima…


— Hum, então tá. — Cam faz uma pausa para beber outro gole do
café. Já terminei o meu há algum tempo. — O que você vai fazer depois
que as aulas acabarem?

— Ah, vou assistir um dos jogos dos Frozen Fury.

Cameron parece desconfiada.

— Desde quando você gosta de hóquei?

— O Alfredo me convidou.

Evan me enviou outra mensagem me convidando para assisti-lo jogar


hóquei. Eu não entendo muito do esporte, mas estou curiosa para saber qual
é a magia que todos falam que ele faz no rinque. Uma vez tentei assistir
uma partida com meu pai, mas dormi no meio da transmissão.

— Entendi. Bom, espero que vocês se divirtam!

Eu e Cam conversamos mais um pouco antes de seguirmos para nossas


respectivas aulas. Tenho uma matéria interessante agora, sobre políticas e
práticas de preservação da biodiversidade.

Enquanto caminho pelo corredor, meu pensamento volta a Sutton.


Desde que fui encontrá-lo ontem à noite, não consigo parar de pensar no
fato de que o chupei no meio do vestiário. Meu Deus! A Scarlet do passado
jamais faria isso. Talvez me envolver sexualmente com ele esteja
despertando um lado meu que eu não conhecia. Por outro lado, por mais
que me assuste, gosto de quem sou agora. Uma pessoa que está se
permitindo ter novas experiências.

Até agora, o capitão do time de hóquei tem se mostrado alguém


decente. Confesso que fiquei com um pouquinho de medo dele ter me
achado atirada demais no rinque e me levasse como um jogo ganho. Acho
que tenho que parar de julgar, principalmente porque se ele fizesse isso,
seria um otário. Evan me surpreendeu ao me convidar para assisti-lo e estou
ansiosa para vê-lo hoje.
Enquanto o professor fala sobre preservar ecossistemas e espécies, dou
uma espiadinha no meu celular. Há mensagens dos meus pais que estou
ignorando e o chat do Sutton. Confirmo o horário do jogo e tento não
pensar no memorial de Lila. Um nó se forma na minha garganta toda vez
que me lembro de que não vou estar lá.

O que me tranquiliza é que Lila era o tipo de pessoa que não


acreditava em arrependimentos e não gostaria que eu ficasse me lamuriando
a noite inteira no dormitório. Aposto que ela está no céu neste momento,
olhando para mim com um olhar de aprovação e me incentivando a sair
com Evan depois de toda a merda que aconteceu com o Logan.

Quando volto ao dormitório para me trocar, encontro Viper em sua


cama. Ela está com os fones de ouvido na cabeça e o laptop aberto em seu
colo. Quando me vê, para o que está fazendo.

— Oi, Scarlet — diz, surpreendendo-me.

Acho que essa é a primeira vez que ela tenta puxar assunto comigo.

— Oi, Viper. Tudo bem? — Tiro os sapatos e os enfio embaixo da


cama.

Abro uma das minhas gavetas de meia e começo a procurar as polainas


que quero usar no jogo esta noite. Ouço Viper suspirar atrás de mim.

— Na verdade, tô meio entediada. A faculdade de Medicina está


sugando toda a minha energia. Ainda tenho que lidar com a porra do drama
da Margaret, ninguém merece.

Acho que ela nem percebe, mas acaba de jogar aleatoriamente uma
informação no meio de nossa conversa. Como não faço ideia de quem é
Margaret, pergunto de maneira descontraída:

— O que ela fez?

Há alguns momentos de silêncio antes que ela responda.


— Ela não está cuidando bem do meu irmão mais novo, e o novo
namorado bêbado é insuportável. Quase espancou ela da última vez.

Congelo por um instante enquanto estou revirando minhas coisas.


Então, seguro o suspiro no fundo da garganta e finjo que não estou
horrorizada pela família de Viper ser uma droga. Não esperava que ela
carregasse esse tipo de bagagem.

— Que droga. Você tá a fim de conversar sobre isso?

Arrisco olhar para ela, que tirou os fones, mas ainda está com as íris
presas na tela do notebook.

— Não — responde, mal esboçando uma reação.

Ok, não posso forçá-la a falar, isso é algo que aprendi há muito tempo.
Quando encontro as polainas, pego uma calça legging preta e uma camiseta
de um time que eu nem sei qual é. Era do meu pai, e peguei para mim
quando me mudei para o campus. Acho que ele nunca percebeu isso.

— Vou pro jogo de hóquei. Se quiser, posso tentar arranjar um


ingresso pra você.

— Não, Barbie. Obrigada, mas tenho que fazer outras coisas.

Arqueio as sobrancelhas.

— Barbie?

— É, você seria uma Barbie botânica, algo assim. Você é tipo uma
daquelas garotas populares do ensino médio que tem interesse em ginástica
ou aquela merda de líder de torcida.

Fico em silêncio. Antes do acidente de Lila, eu costumava ter vários


amigos. Até fui coroada a rainha do baile uma vez. A questão é: as coisas
mudaram. Quando o acidente aconteceu, nem mesmo os nerds do clube do
livro queriam sentar do meu lado no almoço. Dispensando as memórias
para longe, dou de ombros, na tentativa de ignorar o desconforto repentino.

— Bom, vou tomar um banho — murmuro.


No chuveiro, uso meu shampoo de frutas vermelhas para lavar o
cabelo. Passo esfoliante na pele e aparo alguns pelos que cresceram. O boxe
de vidro está todo embaçado quando saio, assim como o espelho.

Começo a secar o cabelo e, quando o vapor some, passo o hidratante


labial e faço um delineado. Não me lembro da última vez que prestei tanta
atenção aos detalhes. Por mais que tente me convencer de que o motivo não
é Evan, no fundo, sei que estou tentando impressioná-lo.

Quando estou pronta, me despeço de Viper e saio segurando uma


jaqueta. A caminhada aquece meu corpo e me protege das temperaturas
baixas. Mostro minha carteira estudantil para entrar na arena e vou até o
assento que Evan guardou para mim, sentindo um frio esquisito na barriga.

Não sei por que fico surpresa ao ver a quantidade de pessoas que tem
aqui. É muita gente. O som ao meu redor fica ensurdecedor conforme as
líderes de torcida entram no gelo e derrapam sobre as lâminas. A morena
que lidera a equipe é deslumbrante. Cabelo preto e sedoso, pele pálida e um
olhar que me parece familiar. Fico com a sensação de que já a vi em algum
lugar.

E, enfim, os Frozen Fury entram no gelo.

Entro na onda e coloco os dois dedos na boca para assobiar alto. Como
se estivesse procurando por algo ou alguém, Evan, o número nove, como
me informou outro dia, dispara os olhos na multidão. Prendo a respiração
quando ele foca o olhar em minha direção.

O contato visual é breve, porque logo a partida começa.


O estádio explode em gritos e aplausos quando o juiz dá o apito inicial.
As luzes refletem no gelo, criando um espetáculo hipnotizante de brilhos e
movimentos rápidos. Evan patina com graça e determinação, liderando os
Frozen Fury com uma habilidade que faz parecer tudo fácil.
Meu coração acelera a cada jogada. Eu não entendo muito de hóquei,
mas consigo perceber quando alguém tem talento de sobra. Evan desliza
pelo gelo como se fosse uma extensão natural de seu corpo, sua agilidade e
precisão são impressionantes. Não consigo tirar os olhos dele.
A partida avança, os minutos se transformam em uma mistura de
tensão e excitação. O placar oscila e mantém todos na ponta dos assentos.
Gritos de incentivo e frustração ecoam pelo estádio, enquanto os jogadores
dão tudo de si.
A cada vez que Evan toca no disco, sinto um arrepio percorrer meu
corpo. Ele parece estar em todos os lugares ao mesmo tempo, sempre um
passo à frente dos adversários.
Durante o intervalo, aproveito para observar as pessoas ao meu redor.
A energia é contagiante e há uma sensação de camaradagem entre os
torcedores.
Acho que estou começando a entender a magia do hóquei em
Crystalville. Não é apenas um esporte. É algo que pode unir pessoas
diferentes.
Quando o jogo recomeça, meus olhos encontram Evan novamente. Ele
está concentrado, o rosto sério. Em um movimento rápido e quase
coreografado, ele passa pelo último adversário e dispara o disco em direção
ao gol. Tudo parece acontecer em câmera lenta. O goleiro se estica, as
pontas dos seus dedos resvalando no puck, mas não consegue alcançá-lo. A
rede balança, e o estádio entra em erupção.
Levanto-me com um pulo e grito junto com todo mundo. Evan ergue o
capacete em celebração, e seus companheiros de equipe correm para bajulá-
lo. Ele sorri torto e, por um breve momento, parece olhar diretamente para
mim. Sinto uma conexão estranha e inexplicável.
Com o apito final, os Frozen Fury são declarados vencedores. A
comemoração é frenética. Assisto a tudo, sentindo-me parte de algo maior.
Quando a multidão começa a se dispersar, desço as escadas em direção à
saída, ainda contagiada pela adrenalina do jogo.
De repente, sinto uma mão tocar meu ombro. Viro-me e vejo Evan,
ofegante e suado, mas com uma satisfação brilhando em seu olhar.
— Você veio — ele diz, como se fosse uma constatação importante.
— Claro. — Tento manter a calma diante de seu olhar intenso. Meu
pulso dispara. Ainda bem que ele não tem ouvidos biônicos. — Você jogou
incrivelmente bem.
— Obrigado. — Evan olha sobre o ombro quando o treinador grita por
ele, sinalizando para que se aproxime. Ele suspira. — A gente pode
conversar depois, sem toda essa loucura?
Assinto, e um calor sobe pelo meu rosto.
— Claro, eu adoraria.
— Me espera aqui, já volto. Só vou ver o que o treinador quer e depois
tomar um banho rápido. Não foge dessa vez, cenourinha. — Sutton me fita
uma última vez antes de se distanciar.

Evan demora cerca de quinze minutos para voltar. O uniforme azul do


time de hóquei foi substituído por um suéter preto e jeans. Assim que ele se
aproxima, não deixo de reparar no cheiro de sabonete e os cabelos ainda
úmidos do banho recente.

— Vou dar uma passada na Frozen Bites com um pessoal. Quer ir


junto?

— Claro. — Dou de ombros. Por que não? Estou morrendo de fome


mesmo. — Vocês vão de táxi?

— Não. Vamos pegar carona com o Dan, um dos meus colegas de


equipe. Estou sem carro hoje. Eles já estão lá fora.

— Ok.

Evan e eu andamos lado a lado até estarmos do lado de fora. O céu


está escuro, e as temperaturas caíram ainda mais. O vento gélido chicoteia
meu rosto, arranhando minhas bochechas, então visto o casaco que trouxe.
O carro com o motor ligado no estacionamento não é tão espaçoso quanto a
picape de Sutton, então me surpreendo quando ele abre a porta do
passageiro e vejo que já tem quatro pessoas lá dentro.
No banco de trás, há apenas um espaço vago, enquanto os outros dois
bancos estão ocupados por Hunter e Lionel, que já estão fazendo o possível
para se encolherem lá dentro.

— Chega pro lado. — Evan entra primeiro.

Então, o espaço acaba.

— Senta no meu colo, Scar — o capitão pede.

Posso sentir as minhas bochechas queimarem, e tento ignorar o


constrangimento enquanto me aconchego nas pernas compridas de Evan.
Tenho que me curvar um pouco para que minha cabeça não bata no teto.
Agora que estou dentro, vejo todo mundo: Dan como o motorista da noite e,
para minha surpresa, a líder de torcida deslumbrante em quem reparei mais
cedo. Não deixo de notar o escrutínio sobre mim.

— Oi, pessoal. — Desvio do seu olhar penetrante e tento não pensar


em como eu e Evan estamos amassados um contra o outro. Quase dou um
pulo quando sua mão, discretamente, faz um movimento na lateral de minha
coxa.

— Oi, Scarlet. Você podia ter sentado em mim também. Não me


importaria — Lionel diz, arrancando uma risadinha debochada de Hunter.

— Você acha que o Evan permitiria isso? Sabe como ele é


territorialista com tudo que tá ao redor dele. A irmãzinha é uma prova.

Neste momento, o loiro estica o braço e puxa uma mecha do cabelo da


líder de torcida entre o vão do banco. Ela bufa e dá um tapa na mão dele.
Não sei por que estou surpresa. É claro que a achei familiar antes. Ela é a
irmã gêmea de Evan.

— Não toca em mim, babaca.

— Ei, crianças, sem brigas no meu carro! — Dan aumenta o volume


do rádio.
— Deixa a Emery em paz, cara — Lionel acrescenta, e descubro o
nome da garota.

Hunter e Lionel entram em uma discussão calorosa enquanto Dan


resmunga, tentando fazê-los parar. Evan está muito relaxado comigo em seu
colo e não diz uma única palavra. Inapropriadamente, começo a sentir um
calor entre as pernas conforme ele arrasta o dedo longo pela costura da
minha calça. É um movimento imperceptível, que só nós dois
compartilhamos. Prendo a respiração quando ele aperta a parte interna da
minha coxa e me remexo.

Percebo que é um erro assim que sinto sua ereção roçar no final das
minhas costas. Ai, meu Deus. Evan e eu estamos excitados no meio de seus
três amigos e sua irmã. Fico quieta durante o trajeto, que parece uma
eternidade, até a lanchonete. Quando Dan estaciona, praticamente salto do
carro, apressada.

Evan vem logo atrás de mim, aos risos.

— Tudo bem, cenourinha?

— Tudo ótimo. E você?

— Estou ótimo também. — Evan olha sobre o ombro e sigo a linha de


seu olhar, dando-me conta de que todo mundo já entrou na lanchonete e só
ficamos nós dois para trás. — Vamos?

— Vamos — concordo, acelerando o passo em sua frente. Engulo em


seco quando sinto seu olhar grudado em minhas costas.

Estou quase me arrependendo de ter topado vir para cá.


23

ESTOU MUITO ARREPENDIDA de ter vindo. Emery, a irmã gêmea de


Evan, está me evitando desde que coloquei os pés no carro. Por algum
motivo, a garota ignorou todas as minhas tentativas de aproximação.
Quando perguntei o que ela cursava, respondeu “Direito” em um tom de
voz seco e impassível.

Por outro lado, dá para notar que ela se dá muito bem com Evan e o
restante dos garotos, exceto Hunter. Sinto que estamos no mesmo barco.
Não sei qual é o problema, mas fico na minha.

— O Ragnar só tava sendo ambicioso. A verdade é que ele queria


alcançar novos patamares. — Lionel dá de ombros, comentando sobre uma
série que não conheço, chamada Vikings.

— O Ragnar foi burro. Ele já tinha tudo o que precisava. A mulher


dele era a Lagertha, porra — Dan retruca, impaciente.

— Você tá pensando pequeno. Depois que ele largou a Lagertha, o Ivar


nasceu. Esse é o ponto. Ivar precisava vir ao mundo e o mundo precisava
conhecer Ivar.

Não estou entendendo nada, então paro de prestar atenção na conversa.


Me surpreendo ao notar que Evan já está com as íris presas em mim. Ainda
estou meio mexida com o que aconteceu no carro. Na ponta da mesa,
Emery manda mensagens em seu celular, e Hunter também parece estar
trocando mensagens com alguém. Os únicos conversando agora são Lionel
e Dan.

Evan resolve quebrar o silêncio entre a gente.

— Já sabe o que vai fazer no final de semana?


— Acho que vou ficar pelo alojamento mesmo. E você?

— A fraternidade vai estar vazia. — Evan é direto ao ponto. Mesmo


que tenhamos dado alguns indícios para seus amigos de que tem algo
acontecendo, acho que nenhum deles precisa saber que estamos transando.
No máximo dá para presumir que demos uns amassos, vez que eles sabem
que Sutton é meu monitor.

Como ninguém parece prestar atenção na nossa conversa, respondo:

— Tudo bem.

Tento parecer normal pelos próximos momentos e não um poço de


ansiedade. A verdade é que já estou pensando até mesmo no que irei vestir.
Meus pensamentos evaporam assim que as duas garçonetes se aproximam,
trazendo bandejas com uma quantidade de comida que poderia facilmente
estar sendo direcionada para um batalhão. Na verdade, acho que dá no
mesmo já que tem quatro jogadores de hóquei aqui.

Pedi um hambúrguer com bastante batata frita. Evan está com uma
pilha de panquecas, dois pedaços de cheesecakes e três sanduíches, além de
uma vitamina. Não sei para onde vai tanta comida, mas, na verdade, é só
dar uma olhada para ele para entender que tudo isso é transformado em
puro músculo.

Ouço alguém puxar uma cadeira ao meu lado e me surpreendo quando


olho para o lado e vejo Emery sentando perto de mim.

Ela me oferece um sorriso meio hesitante e dá uma garfada na salada


caesar que pediu.

— Então, o lance com o meu irmão é sério? — questiona, me


surpreendendo.

— Só somos bons amigos. — Olho para a latinha de refrigerante. Será


que Evan consegue ouvir a nossa conversa? O barulho na mesa é alto, e ele
parece focado demais em comer tudo o que está disposto à sua frente.
— Hum, entendi — Emery diz, incerteza banha seu tom de voz. —
Bom, vai ter uma festa amanhã à noite organizada pelas líderes de torcida.
Se quiser aparecer por lá…

— Obrigada pelo convite, mas já tenho um compromisso.

Eu sorrio para Emery, tentando amenizar a minha dispensa. Ela apenas


analisa o meu rosto antes de dar de ombros e voltar a comer. Quase suspiro
em alívio e dou um pulo quando alguém cutuca o meu joelho por baixo da
mesa. Olhando para à direita, vejo os ombros de Evan tremerem enquanto
ele dá alguns goles na vitamina, com a mão livre pousada na minha perna.

Ele começa a fazer círculos em minha pele por cima da calça jeans, de
um jeito ainda mais enervante do que fez no carro. Acho que vou
enlouquecer a qualquer segundo se ele continuar brincando comigo desta
forma.

Me concentro em dar outra mordida no hambúrguer, fingindo que nada


está acontecendo. Então, discretamente, afasto a mão de Evan. Ele se
mantém longe por uns cinco segundos e depois volta a me tocar. Solto um
suspiro brusco pelo nariz.

— Tudo bem, Scarlet? — Dan pergunta. Ele está sentado bem à minha
frente.

Sinto o rosto pegar fogo.

— Sim. O cardápio daqui é ótimo.

Evan corre os dedos para o centro, perto da minha…

Levanto depressa e murmuro que preciso ir ao banheiro, antes que as


coisas se tornem mais constrangedoras. Me tranco em uma das cabines e
pego o meu celular, começando a digitar uma mensagem para Evan.

Scarlet: Dá para parar de agir como se estivéssemos sozinhos?

Evan: Me desculpa. É quase impossível ficar perto de você e não


querer te devorar.
Scarlet: Tenho certeza de que se você fizer um esforço, consegue se
controlar. É só esperar até amanhã.

Evan: Ou seja, uma tortura. Mas tudo bem, prometo que vou me
comportar. Agora volta para cá, cenourinha.

Quando volto para a mesa, todo mundo já terminou de comer. Para ser
honesta, perdi o apetite com Evan me tocando. Agora não consigo mais
pensar na comida e, sim, na forma como minha pele ainda arde, o que é
ridículo por diversos motivos, mas principalmente porque estou vestindo
calça! Nem foi um contato pele contra pele e já estou em chamas.

Emery se levanta para ir até a jukebox da lanchonete, Hunter vai atrás


e restam apenas Lionel, Dan, Evan e eu na mesa. Acho que é hora de eu ir
embora. Me despeço de todo mundo, e Evan se oferece para me levar até o
lado de fora. Sei que tentar convence-lo do contrário é inútil, então apenas
permito que ele me acompanhe. Me despeço dos garotos e saio do
estabelecimento com ele no meu encalço.

— Vou pedir o táxi para você — o capitão fala, já com o telefone em


mãos, antes que eu possa protestar.

Ficamos parados perto do meio-fio, um de frente para o outro.


Algumas pessoas passam pela calçada e cumprimentam Evan, que acena
com a cabeça em reconhecimento. Quando voltamos a ficar sozinhos, ele
empurra uma mecha do meu cabelo para trás da orelha, algo que tem feito
com certa frequência. Tenho que admitir para mim mesma, é bem fofo.

— Que horas você vai para a fraternidade amanhã? — Sutton quebra


o silêncio.

— Você está um pouco ansioso, não acha? — questiono, zombando.

— Você não sabe o que você faz comigo, Scarlet. — O tom de voz
ressoa mais grave que o habitual. — Se soubesse tudo o que penso em fazer
com você…

— Então me mostre uma aventura nova amanhã. Algo… divertido. —


Suspiro quando a sua palma molda o lado esquerdo do meu rosto, o polegar
acariciando meu lábio inferior em um movimento que espalha alguns
arrepios pelo meu corpo.

— Ok — Evan responde, com os olhos mais sérios que o habitual,


envoltos no mesmo desejo avassalador que sinto neste momento.

No instante seguinte, o táxi estaciona em frente à lanchonete. Evan se


afasta e abre a porta para mim. Enquanto ele a segura, deslizo para dentro
do automóvel. Trocamos um último olhar antes de nos despedirmos, e o
carro começa a avançar pelas ruas noturnas de Crystalville. Enquanto olho
sobre o ombro, percebo através da janela o jogador ainda parado na calçada,
observando o táxi se distanciar.

Já revirei o meu armário inteiro em busca do que vestir, mas nada


parece adequado, o que é meio ridículo levando em consideração que
provavelmente eu e Evan iremos atacar um ao outro no primeiro instante
em que nos virmos. Mordo o lábio inferior e hesito antes de vestir a blusa
rosa clara de seda. Enfio uma calça jeans branca pelas pernas e calço os
tênis depressa, já que ele já pediu o táxi para mim e o motorista deve chegar
a qualquer momento.

Não tenho tempo de fazer maquiagem, então só penteio os cabelos e


tranco o dormitório antes de sair. Não demora para chegar no casarão, como
o habitual. Evan está esperando na porta, sem camiseta e sinto um misto de
ansiedade e nervosismo quando me aproximo. Ele me olha de cima abaixo,
mas não faz nenhum movimento quando passo por ele no hall.

Ao invés disso, Evan aponta para o sofá e diz:

— Vamos assistir Gossip Girl.

Ok, agora estou surpresa. Não foi isso que imaginei quando falamos
sobre eu vir para cá. Na verdade, acho um pouco gentil da parte de Evan
por não vir para cima de mim sem ao menos dizer oi, mas, neste caso, eu
não me importaria nem um pouco. Na minha imaginação fértil, iríamos
começar a nos beijar no hall, derrubando os quadros das paredes enquanto
deixávamos o rastro de nossas roupas pelo carpete até o andar de cima,
onde transaríamos que nem coelhos.

— Achei que você tivesse detestado Gossip Girl — murmuro, olhando


ao redor.

A casa está vazia e há dois copos que parecem limonada em cima da


mesa de centro e um balde de pipoca com manteiga.

— Mas você gosta. — Evan dá de ombros, como se esse argumento


explicasse tudo.

Nós nos sentamos no sofá lado a lado e nego quando ele me oferece a
pipoca, porque não quero ficar com gosto de sal e manteiga quando formos
nos beijar. Evan despausa o seriado no episódio em que paramos e não
deixo de notar a distância que ele deixa entre nós dois. Franzo o cenho, mas
não digo nada. Será que estou cheirando mal ou algo do tipo? Não, isso é
improvável. Tomei banho antes de vir para cá, passei desodorante e o
perfume caro que meus pais me deram no ano passado que eu só usava para
circunstâncias especiais.

Qual é a merda do problema, então? Discretamente, sopro contra a


minha mão, conferindo meu hálito. Estou cheirando pasta de dente de
hortelã. Olho para Evan, que está focado na tevê, um dos braços apoiados
na parte de trás do sofá e o abdômen definido exposto.

— Ele traiu mesmo a namorada dele com a melhor amiga dela? Parece
uma novela mexicana teen — Evan resmunga, fazendo-me pegar o controle
e pausar a série.

Ele olha para mim, parecendo confuso, mas consigo identificar o


brilho de diversão nas suas íris.

— Algo de errado? — questiona, se fazendo de desentendido.

— Você tá brincando comigo — aponto, semicerrando os olhos na sua


direção. — Achei que a gente ia…
— O que, cenourinha? — estimula, quando me calo.

Quer saber? Que se dane. Corto a distância entre nós e subo no seu
colo, apoiando-me nos joelhos. Evan relaxa contra o sofá e coloca as mãos
na minha cintura, começando a fazer carícias em minha pele por baixo do
tecido da blusa. Sem conseguir conter a excitação, eu me esfrego contra ele
que nem um gato de rua no cio. O período fértil está me deixando maluca.

— Estava esperando você mostrar o quanto me queria — admite, um


sorriso torto começando a se espalhar por sua boca. — Demorou o quê?
Cinco minutos?

— Cala a boca — falo, antes de beijá-lo.

Nossa, tinha me esquecido do quão bom é beijar Evan. Acho que eu


poderia beijá-lo por horas. Solto um gemido quando sinto sua ereção
crescer abaixo de mim e ele aperta a minha bunda com força. No próximo
momento, Evan se levanta e passa as pernas ao redor de sua cintura
enquanto ele nos leva para o andar de cima como se eu não pesasse nada.

Espero que ele me leve para o seu quarto, mas me surpreendo assim
que chegamos no banheiro. Ao invés de ligar o interruptor, Evan pega o
isqueiro no bolso traseiro e acende uma vela em cima da pia de mármore.
Depois, ele volta a me beijar, segurando os dois lados no meu rosto entre as
mãos.

No próximo momento, estamos nos despindo freneticamente. Minha


blusa vai parar no chão com a calça de Evan e ele abre o zíper da minha
jeans de maneira lenta. Quando estamos os dois apenas de roupas íntimas, o
jogador de hóquei segura o meu quadril e me gira. Agora, minhas costas
estão contra seu peitoral quente e despido e podemos nos observar no
espelho. A chama pálida da vela projeta sombras ao nosso redor, criando
uma atmosfera ainda mais sexy.

— Trouxe um brinquedo para você mas tem que prometer que vai ficar
quietinha, Scar.

— O quê? Algemas? — questiono, quando ele tira elas de algum lugar


do armário da pia e observo o brilho prateado cintilar sob a luz da vela.
— Você disse que queria aventuras novas. Então vamos ver qual de
nós dois desmaia primeiro nesse banheiro.

Com isso, Evan pressiona a ereção contra mim e coloca as algemas no


meu pulso. Estou tão excitada que é embaraçoso quando ele coloca os dois
dedos sobre a minha calcinha, fazendo-me arfar e pressionar uma coxa
contra a outra.

— Porra, você tá super molhada — diz, beijando num ponto abaixo da


minha orelha que quase me faz rolar os olhos. — Quero te comer por trás.

Ai, merda, Acho que se ele continuar falando coisas assim, vou gozar
antes da penetração. Evan não tira minha calcinha, apenas a puxa para o
lado e eu gemo alto quando ele coloca o dedo indicador dentro de mim.
Meu corpo inteiro começa a arder quando ele começa a fazer o movimento
de vaivém. Começo a mexer os quadris, me contorcendo quando ele esfrega
o polegar no meu clítoris, que a este ponto já está úmido e inchado.

Quero tocá-lo, mas estou presa às algemas, então fecho as minhas


mãos em punho enquanto Evan exploda os dedos na minha intimidade, me
provocando e me deixando cada vez mais perto do limite. Quando estou
prestes a gozar, com as pernas trêmulas, ele se afasta e eu solto um
murmúrio ininteligível em protesto.

— Calma. Vou colocar a camisinha.

Então, ouço o barulho da embalagem rasgar, o que faz meu pulso


disparar em expectativa. Meu coração está batendo de forma tão violenta e
meu corpo pulsa com tanta expectativa que acho que vou ter um orgasmo
assim que Evan estiver dentro de mim. Assim que ele está pronto, começa a
me penetrar lentamente e observo seus reflexo no espelho em nossa frente.
Evan trava as mandíbulas e fecha os olhos por um momento.

— Meu Deus, Scarlet — resmunga, enterrando o rosto no meu pescoço


quando começa a me comer por trás, os quadris batendo em minha bunda a
cada vez que ele recua e se enterra em mim. — Você é gostosa para caralho.

Então, ele puxa o meu cabelo com força e eu gemo quando minha
cabeça é jogada para trás enquanto ele começa a aumentar o ritmo de suas
estocadas. Tenho que enterrar as unhas nas palmas de minhas mãos, já que
não consigo fazer muita coisa com elas. Evan me empurra contra a bancada
do banheiro. Agora estou debruçada sobre a pia fria e ele dá um tapa tão
forte em minha bunda que sinto meus olhos arderem.

— Evan — gemo, engasgando com minha própria respiração.

— Porra, Scarlet. Fala o meu nome de novo, por favor — implora e ele
nem precisa pedir isso, porque começa a esfregar o meu clítoris com força e
é o suficiente para que eu comece a repetir o nome dele diversas vezes.

Evan, Evan, Evan. É tudo o que consigo pensar e falar enquanto ele
está me preenchendo, cada vez mais forte, rápido e desesperado. Quando
não estou aguentando mais, estremeço em um orgasmo, sentindo minhas
pernas vacilarem. Evan me segura e, num movimento ágil, me vira e me
coloca sentada em cima da pia antes de voltar a me penetrar. Uma trilha de
suor escorre entre nós enquanto nossos corpos se encontram. Ele dá mais
três estocadas antes de se desfazer.

Evan goza, tremendo e gemendo. Um segundo depois, ele choca a


boca contra a minha e me dá outro beijo feroz, que me tira o fôlego. Se eu
tinha achado que nada poderia superar o sexo no carro, estava muito
enganada. Isso aqui foi incrível.

Acho que estou começando a entender porque as pessoas ficam


viciadas em sexo.

— Scarlet. — Evan quebra o silêncio enquanto recupera o ritmo de sua


respiração.

Murmuro contra seu corpo, ainda não tivemos força para nos
desvencilhar um do outro. Somos um emaranhado de pernas, braços e suor.

— Acho que estou viciado em você.

Suas palavras carregam uma dose tão singela de honestidade que eu


não consigo conter o riso que escapa do meu corpo.
— Então acho melhor começarmos o segundo round antes que você
entre em abstinência — digo, arrastando o dedo preguiçosamente pelo seu
peitoral.

É a vez dele rir.

— Tem razão.
24

ACHO QUE NEM todas as horas do mundo seriam suficientes para me


cansar de Scarlet Evergarden. Só de pensar na garota, já fico excitado. Não
faz nem quarenta e oito horas desde a última vez que transamos, e meu
corpo já sente a sua falta. O pior é que meu quarto inteiro ainda cheira a
ela. Esta manhã, acordei com aquela fragrância de frutas vermelhas, que
sempre está impregnada em seu cabelo, nos meus lençóis.

Depois do banheiro, transamos mais três vezes. Uma dentro do box,


outra no corredor e, por mim, finalizamos com ela esparramada na minha
cama, gemendo meu nome com o rosto enterrado no meu travesseiro. Algo
atinge o meu flanco direito e eu tropeço nos patins, perdendo o equilíbrio
quando caio no rinque. O treinador apita, e meus colegas de equipe me
lançam olhares surpresos.

Porra, até eu estou surpreso. Não é comum eu estar com a cabeça em


outro lugar durante os treinos. Na verdade, isso nunca aconteceu antes.

— Que merda foi essa, Sutton? — Wilson grita, enquanto todo mundo
me olha abismado.

Cometi um erro de um principiante. Não vi o passe de Lionel e dei de


cara com outro jogador, como se ainda estivesse aprendendo a patinar.
Respiro fundo quando o treinador me manda tirar um tempo no banco de
reserva. Porra, estou furioso comigo mesmo. O que sinto é um misto de
frustração e vergonha. Sou o capitão desta equipe, o que significa que devo
servir de exemplo.

— Relaxa, cara. Não é o fim do mundo — Hunter diz, surgindo do


meu lado e se sentando.
Tiro o capacete e o ignoro. Não preciso de tapinhas nas costas neste
momento.

— O temperamento orgulhoso da família Sutton — debocha, aos risos.


— Você e a Emery são mesmo iguais. Não é à toa que nasceram juntos.

— Não sei o que aconteceu comigo. — Apoio os cotovelos nos joelhos


enquanto observo o treino se desenrolar à nossa frente. O som das lâminas
dos patins raspando contra o gelo preenche o ambiente. — Foi como se eu
tivesse me desligado de repente. Como se minha cabeça tivesse ido para
outro momento e lugar…

Paro de falar, estranhando o silêncio de Hunter.

— Você está saindo com alguém?

Sua pergunta me surpreende, mas é como um balde de água fria. Antes


de cometer o erro no rinque, estava pensando no rosto de Scarlet. Franzo o
cenho. Será que esse é o problema, então?

— O que tem a ver?

— Cara, você nunca cometeu um erro escroto desses. O que só me faz


acreditar que você está pensando com a cabeça de baixo. Acontece bastante
comigo — admite, dando de ombros. — Mas, você tá fodido se estiver
deslocado por conta de boceta. Acho que é que nem ficar viciado em pó.
Você não relaxa ou se concentra enquanto não der outra cheirada.

Por mais idiota que seja a analogia de Hunter, tenho que admitir que
essa merda faz sentido, o que dá razão a ele outra vez: estou fodido.

As líderes de torcida chegam para começar o ensaio. Na maioria das


vezes compartilhamos o ringue, então sou obrigado a aturar um monte de
otário babando em cima da minha irmã. Ainda bem que até agora ninguém
desrespeitou o código que criei na equipe. Emery é território proibido e
pronto, nenhum deles está à altura dela e, provavelmente, quebraria ainda
mais o seu coração. Conheço esses caras, eles não são do tipo para namorar.
— Como faço para desintoxicar, então?

Hunter ri, e algo brilha nos seus olhos, como se soubesse exatamente
o que estou passando.

— Cara, tem certos tipos de drogas que nunca saem do nosso sistema.
O que você faz é aprender a lidar com a abstinência. Tipo, contemplar o que
não se pode ter, algo coisa assim.

— Que conselho de merda.

— Eu sei, mas é de mim que estamos falando. — Dá de ombros. —


Você é o capitão aqui, Sutton.

Ele está certo, eu sou o capitão. Preciso adotar um raciocínio lógico


em momentos decisivos num período curto de tempo. É que nem quando se
comete uma falta no hóquei. Não há tempo para lidar com a ausência de um
dos membros do time, você apenas substitui com um dos reservas e torce
para que as coisas deem certo.

No fim do treino, em vez de ir direto para o vestiário, decido falar


com Emery. Ela está meio estranha comigo ultimamente e nem sei o
motivo. Quando me aproximo, percebo que ela finge que não me ver.

— Emy — digo alto o suficiente para que escute. — Tem um


momento?

Suspirando, ela instrui as meninas a continuarem treinando e dá um


giro, patinando até mim.

— O que foi?

— O que tem de errado com você?

Ela franze o cenho.

— Estou normal.

— Não, não está. Você nem respondeu minha mensagem no sábado.


Eu estava com Scarlet quando deveria ter ido à festa que ela organizou
com as líderes de torcida, então inventei uma desculpa, mas perguntei se
poderíamos fazer algo juntos no domingo para compensar. Até agora não
tive nenhuma resposta, e é segunda.

— Acho que você tem outras prioridades agora — Emery murmura,


um misto de raiva e ressentimento no seu olhar. — Não quero atrapalhar.

Desde que minha irmã terminou o relacionamento, ela tem estado


estranha. Ainda não entendi qual é a dela. Talvez esteja com ciúmes e se
sentindo sozinha.

— Você não tá sendo justa, Emy.

— Desde que você começou a ser monitor, nunca mais fizemos algo
juntos. Acho que você nem se deu conta disso.

Não posso deixar de notar a ironia que escorre da palavra monitor,


como se ela soubesse que, no fundo, minha falta de atenção tem a ver com
uma certa ruiva.

— Emery, a gente se vê quase todo santo dia. — Tento não perder a


paciência, mas, porra, está difícil. — Você nunca pareceu se importar com
isso antes.

— É, tem razão — responde, toda seca. — Deixa para lá, preciso


voltar a ensaiar. Tchau, Evan.

Minha irmã se distancia sem olhar para trás, e eu vou para o vestiário,
mais irritado do que eu gostaria.

Meu descontentamento continua pelo restante do dia, o que me faz


aumentar o peso na academia e treinar até meus músculos implorarem por
uma trégua. Talvez, se eu ficar muito cansado, não vou pensar em Scarlet e
em nada que me tire do eixo. A próxima conferência será em outra cidade e
não posso me dar ao luxo de vacilar. Esse ano preciso que o Frozen Four
seja nosso.

Além do mais, ainda não sei o que vou fazer depois do possível draft.
Sou um dos jogadores universitários de hóquei mais cotados do país e ainda
não tenho um plano definido. É claro, eu amo jogar, mas não sei se é o que
eu quero fazer para sempre. Fama. Dinheiro. Holofotes. Mulheres. Parece
superficial.

Assim que chego na fraternidade, Dan pausa o filme na tevê e me


lança um olhar sobre o ombro. Minha camiseta está ensopada de suor, mas
ele parece ignorar esse fato.

— Vamos para o Blizzard às sete, não esquece — fala, fazendo-me


franzir o cenho.

— Não vou sair hoje.

— Qual é, cara. É aniversário do Lionel, esqueceu? Vamos só tomar


uma cerveja, comemorar e depois ir embora. Sem exageros, prometo.

— Sem exageros mesmo, ou vou matar todos vocês — aviso, num tom
de voz sério. — E vai ser só por uma hora. No máximo.

Dan ri, provavelmente achando que estou exagerando. Em partes, é


verdade, mas, porra, hoje é segunda-feira. Preciso desses caras inteiros para
a conferência no fim da semana. Eu preciso estar inteiro.

— Tá bom, mãe. Agora, você devia tomar um banho. — Ele me olha


de cima abaixo, com uma careta no rosto. — Tá nojento, cara.

Ignorando seu comentário, apenas subo para o segundo andar, quase


arrependido de ter topado a ideia de comemorar o aniversário do Lionel em
uma segunda-feira. Afinal, o que poderia dar errado? Ao chegar no
banheiro, o celular começa a vibrar no bolso da calça. Mal toquei no
telefone hoje, então não é uma surpresa ver três notificações de Scarlet na
tela.
Scarlet: Sabe, acho que preciso repetir o que a gente fez o mais rápido
possível.

Scarlet: Meu professor tá um saco hoje.

Scarlet: A propósito, como está o time?

Começo a digitar uma resposta.

Evan: Desculpa, Scarlet. Estou ocupado hoje.

É o que respondo antes de ligar o chuveiro.


25

PRECISO ADMITIR QUE a mensagem de Evan me deixa mais pensativa


do que eu gostaria. Tento, em vão, me concentrar na aromaterapia, mas
minha cabeça cria cenários onde ele já conseguiu tudo o que queria e está
caindo fora.

Merda, eu sabia que era uma péssima ideia essa coisa de sexo casual.
Acho que não sirvo para isso. Meu celular vibra, e é patético a velocidade
com que eu murcho ao ver que a nova mensagem não é de Evan.

Cameron: Blizzard hoje depois que eu voltar do centro? Tô a fim de


tomar algo.

Scarlet: É segunda-feira, Cam.

Cameron: Você se surpreenderia com a quantidade de universitários


que tomam um porre justamente por ser segunda. Fique pronta antes das
oito, beijo!

Solto um suspiro e largo o celular. Talvez eu deva mesmo sair com


minha amiga para não ficar me lamentando sozinha no dormitório. Termino
a aromaterapia, faço um pouco de esteira na academia do campus e depois
como um lanche com peito de peru. Quando o horário chega, estou pronta.
Passei prancha nos fios e coloquei um vestido preto que molda o meu
corpo. Talvez eu tenha exagerado um pouquinho e aplicado algumas
camadas de rímel, mas dane-se. Quero estar bonita esta noite, não parecer
patética.

Cameron assobia assim que me vê.

— Uau, você tá vestida para matar.

— É esse o objetivo.
Entro no carro assim que ela destrava a porta. Cam liga o carro e dá
partida.

— Sério? Isso quer dizer que as coisas com o Alfredo estão ruins? —
indaga.

— O Alfredo tá meio esquisito. Acho que ele se cansou do nosso


lance.

— Que droga, amiga. Mas não fica assim! Você consegue coisa melhor
esta noite.

Não sei se quero me entregar dessa forma à outra pessoa, mas estou
aberta para uma distração hoje. Assim que chegamos no Blizzard, me
surpreendo com a quantidade de pessoas no pub. Cam estava certa, parece
que todo mundo já quer descontar o início da semana no álcool.

Nós nos esquivamos até o bar entre o mar de corpos, e eu não posso
deixar de notar os olhares lançados em nossa direção. Meu cabelo está mais
longo que o habitual por conta da prancha e as pontas roçam na base de
minhas costas a cada vez que dou um passo, me fazendo cócegas. Jogo ele
sobre o ombro, dando uma olhada ao redor quando uma vaia de gritos cruza
o ar.

No fundo do Blizzard, há três caras comemorando. Um deles é Lionel,


reconheço Dan e, com os braços cruzados em frente ao peito e um boné
enfiado na cabeça, está Evan. Meu coração erra uma batida. Ele está usando
uma jaqueta esportiva preta com o zíper fechado quase até o queixo, e eu
não consigo disfarçar a decepção ao ver uma mulher se aproximar dele.

Sério? É isso que ele quis dizer com ocupado?

Sei que posso estar precipitando as coisas. Evan não me deve nada,
afinal. Não é como se ele fosse obrigado a ser fiel a mim ou qualquer merda
do tipo, mas, caramba, achei que seríamos exclusivos. Eu devia ter deixado
isso claro desde o primeiro momento em que topamos fazer sexo.

Com uma sensação esquisita no estômago, me viro para frente.


Cameron pede uma marguerita e eu, duas doses de tequila com limão e sal.
— Isso aí, divirta-se! — Cam grita sobre a música. — Tem alguns
caras olhando para cá. Acho que podemos ir para a pista depois.

Murmuro algo em concordância, ainda tentando entender o que sinto.


Será que estou com ciúmes do Evan? Essa possibilidade é como um balde
de água fria, porque é óbvio que fiquei morrendo de ciúmes dele por vê-lo
aqui com outra mulher enquanto ignorou minhas mensagens o dia inteiro.

Assim que o barman volta com nossas bebidas, não hesito antes de
espalhar o sal pelo dorso da mão, lambê-lo, virar a dose de tequila e sugar o
pedaço de limão. Sinto a garganta arder e os olhos umedecerem.

A segunda dose é melhor na hora de virar.

Cam puxa meu braço assim que bato o copo vazio no tampo do balcão.
Antes que eu possa protestar, ela nos leva até a pista de dança. Dou o braço
a torcer e começo a me mover junto com ela ao som da música sensual.

Agora, definitivamente, tem muita gente olhando para cá. Não sei se é
o álcool começando a fazer efeito, mas me sinto como se estivesse livre.
Meus quadris se movem no ritmo da música e eu desço lentamente até o
chão. Quando subo, um olhar em específico queimar sobre mim.

Sou surpreendida ao ver Evan parado contra a parede com os braços


cruzados em frente ao peito. Ele acena para mim com a cabeça em
reconhecimento, e não sei decifrar o que passa em seu rosto neste momento,
mas o olhar sério e focado envia arrepios por meu tronco.

Um cara estranho se aproxima para dançar comigo, e eu penso que


devia afastá-lo, mas não faço isso. Deixo que ele coloque as mãos na minha
cintura e se mova no mesmo ritmo. Quando a música acaba, estou ofegante,
e aviso a Cameron que vou buscar água. Ela não se opõe, já que está muito
entretida dançando com um cara que conheceu há cinco minutos.

Antes que eu possa alcançar, sinto uma mão se fechar ao redor do meu
braço e me puxar bruscamente. Congelo assim que vejo o rosto de Logan.
Ele parece meio bêbado, eu diria, pela sua voz arrastada quando diz as
palavras que são como um tapa na minha cara:
— Você tá vestida que nem uma vagabunda.

— Larga o meu braço — aviso, sentindo o aperto se tornar ainda mais


forte. — Tá me machucando.

— Eu tentando consertar as coisas entre nós, enquanto você enche a


cara em um bar e dança com estranhos. — Logan parece tão magoado que
tenho vontade de socá-lo para ver se os parafusos da sua cabeça voltam para
o lugar. — Quer saber, Scarlet? Você não vale a pena.

— Vai se foder. Agora larga o meu braço.

Me desvencilho do seu aperto e puxo o cotovelo com força para trás,


mas acabo tropeçando em uma mesa e caio no chão. As pessoas olham
quando as garrafas de cervejam quebram ao meu redor, e o constrangimento
me devora. Ótimo, agora meu vestido está todo molhado e, para piorar,
sinto uma dor aguda no joelho.

Logan parece em choque, assim como o restante dos universitários.


Ele faz menção de se aproximar para me ajudar a levantar, mas é empurrado
para trás com tanta força que quase cai.

— Fica longe, porra — Evan esbraveja. — Ou eu quebro a sua cara na


frente de todo mundo.

Logan não se move enquanto Evan me ajuda a ficar de pé. O nó que se


forma em minha garganta é sufocante, e preciso me esforçar muito para não
começar a chorar. Já fui humilhada o suficiente esta noite. Sutton abre
caminho entre as pessoas curiosas, me ajudando a andar conforme meu
joelho esquerdo falha. Saímos pelas portas dos fundos, que dá para uma rua
sem saída.

Meu corpo começa a tremer, mas não sei se é por conta do frio ou dos
últimos acontecimentos.

— Droga, Scarlet. Você está sangrando.


Ele parece genuinamente preocupado enquanto olha para o machucado
no meu joelho.

— Por que não volta para o seu encontro e me deixa em paz? —


pergunto com tanta grosseria que quase não reconheço minha voz.

Evan parece confuso.

— Não estou em um encontro. Fui obrigado a vir hoje porque é


aniversário do Lionel, mas eu já ia embora de qualquer forma. — Há uma
pausa. — Desculpa por não ter conversado mais cedo. Tive um dia ruim e
não queria que respingasse em você.

Ótimo, sou mais patética do que eu esperava. Imaginei algo que não
estava acontecendo e agora estou aqui, com um corte no joelho, fedendo a
cerveja e sendo chamada de vagabunda pelo meu ex-namorado que, a
propósito, é um traidor. As lágrimas começam a cair, e meu corpo
estremece com o primeiro soluço enquanto tento me esconder atrás das
minhas mãos.

— Se for chorar, vem para cá pelo menos.

Evan não espera por uma reação minha antes de me abraçar, puxando-
me contra seu peitoral largo, o que me faz chorar ainda mais. Só quero ir
para o alojamento o mais rápido possível e esquecer o dia de hoje, junto
com tudo o que vem me pressionando ultimamente. Meus pais. A
faculdade. O memorial de Lila que tive que assistir pela internet já que
ninguém achou que seria uma boa ideia me contar…

Não foi isso que idealizei da vida universitária.

— Você estava a coisa mais linda do mundo hoje. — Sutton quebra o


silêncio. — Você quase me enlouqueceu. Quando te vi, primeiro eu quis te
beijar até que um de nós morresse sem ar. Depois, tive vontade de matar
todos aqueles idiotas que ficaram te olhando, principalmente aquele otário
com quem você dançou. Acho que nunca senti tanto ciúmes na minha vida.

Suas palavras me pegam de surpresa, fazendo-me parar de chorar e


olhar para cima. Preciso saber se ele está falando a verdade. Mesmo através
do véu de lágrimas que embaçam minha vista, consigo ver o rosto bonito de
Evan e as feições sérias. Não parece que ele está mentindo para me agradar.

— Então você não está saindo com outras pessoas?

— Claro que não, Scarlet. Eu só consigo pensar em você. O tempo


todo, até quando eu não quero.

O capitão ajeita o meu cabelo, que deve estar uma bagunça a esta
altura do campeonato.

— Quero ir embora — digo, em um muxoxo, ainda me sentindo


derrotada. — Acho que preciso de um milkshake de baunilha também.

Isso arranca uma risada rouca de Evan.

— Claro, cenourinha. Vou te levar embora e dar um jeito de conseguir


o milkshake para você.
26

ESTACIONO O CARRO no drive-thru de uma lanchonete, esperando


que tenham milkshake de baunilha no cardápio.

Scarlet está encolhida no banco do passageiro. Vê-la tão frágil mexe


comigo mais do que eu poderia imaginar. Não sei o que que aquele cara
disse para ela, mas não sou nenhum tapado para não perceber o olhar
sentimental em seu rosto. Ligando os pontos, sei que ele é o ex-babaca. O
que me deixa irritado para caralho.

— O que ele disse para você? — Não consigo ficar em silêncio. — Foi
ele quem te empurrou?

Aperto minhas mãos ao redor do volante, sentindo raiva. É a mesma


sensação do dia em que vi aquelas marcas no pulso da minha irmã.

— Ele falou que eu estava vestida como uma vagabunda — Scarlet


murmura, fazendo-me ficar tenso. — Mas não, não foi ele que me
empurrou. Só fui me livrar do aperto no meu braço e me desequilibrei.

— Você não é uma vagabunda. — Olho para seu rosto. No entanto, as


íris que tanto gosto fogem das minhas. Scar prefere olhar para a janela do
carro como se fosse a coisa mais interessante do mundo. — Você não
acreditou nisso, né?

— Não. Eu acho que o Logan só tá lidando mal com o fato de eu estar


seguindo em frente. — Solta um riso fraco, fitando as próprias mãos. — O
que é uma merda, porque foi ele quem me traiu. Por muito tempo, achei que
nós iríamos nos casar, ter filhos e o futuro perfeito…
— Eu já vi meu pai traindo a minha mãe uma vez — admito em voz
alta, sem saber exatamente o motivo. — Foi há muito tempo. Eu tinha uns
quatorze anos e estava voltando mais cedo da escola. Minha irmã e minha
mãe estavam fora, então, quando cheguei em casa, vi ele e a secretária se
atracando no sofá, e eu não fiz nada.
— Você era só uma criança. Não dá para assumir esse tipo de
responsabilidade.
Talvez Scarlet tenha razão. Isso é mais do que uma criança de quatorze
anos deveria lidar. Ainda assim, sinto que falhei com minha família.
Acredito que seja por isso que tento dar o meu melhor em todos os aspectos
da minha vida. Na faculdade, no time, em casa. Estou sempre tentando
segurar as pontas e não deixar ninguém para trás.
— Eles ainda estão casados. — A ruiva me fita. — Quando fiz
dezesseis anos, contei para minha mãe. Achei que seria o fim de tudo. Da
nossa família, do casamento... Mas eu precisava tirar o peso dos meus
ombros. Ela só me olhou por alguns momentos e disse que já sabia. Ela
sabia, e me senti pior por esse fato do que pela situação toda em si. Eu
perguntei se ela não sentia raiva e ela disse que não. Que muitas vezes, as
outras pessoas só irão nos mostrar o que têm a oferecer. E, no caso do meu
pai, era isso. E o casamento deles se tornou algo... arrastado. No fim das
contas, o amor não pode sustentar tudo.

— Isso é loucura, certo? Se entregar para alguém e depois descobrir


que aquela pessoa por quem você se apaixonou não existe. Acho que esse
se tornou um dos meus maiores medos. Amar alguém que me odeie.

Fico surpreso com a escolha de palavras.

— Você acha que seu ex-namorado te odeia?

— Acho que sim. Por qual outro motivo ele teria me traído e feito tudo
o que fez? Tem pessoas que têm uma natureza ruim. Só nos resta aprender a
lidar com isso.

— É, você pode ter razão. — Faço uma pausa. — Eu não acho que
meu pai seja um homem ruim, apesar disso. Ele só…

— Tomou uma péssima decisão? É, eu também acho.


Finalmente chega nossa vez na fila. Peço o milkshake, que fica pronto
em alguns minutos. Depois que o entrego para Scarlet, começo a manobrar
o carro em direção ao campus para deixá-la no alojamento feminino. O
rádio toca baixo uma música ambiente.

— Obrigada, Evan. — Corta o silêncio assim que chegamos. — Você é


mesmo um cara legal.

— De nada, cenourinha. Vai precisar de ajuda com o joelho?

— Não, acho que estou bem. Vou fazer um curativo lá dentro.

Agora, olhamos um para o outro de uma forma intensa. Scar se


aproxima e dá um beijo rápido no meu rosto antes de desejar boa noite e
descer do automóvel. Me certifico de que ela entre antes de dar meia-volta e
seguir para a fraternidade. Não sei como as coisas ficaram no pub depois
que fomos embora, mas espero que Lionel e Dan já estejam em casa.

Ao abrir a porta, vejo os dois no sofá, ambos me encarando assim que


atravesso a porta.

— Você sumiu — Dan é o primeiro a falar.

— Tive uma emergência.

— Ainda bem que você desapareceu, porque deu a maior confusão lá


no Blizzard. Parece que um cara empurrou uma garota em cima da mesa.
Foi a maior loucura. O gerente expulsou todo mundo depois disso — Lionel
complementa e, juro, não sei como ele consegue as informações tão rápido.

Tiro a jaqueta e a penduro no hall.

— Você sabe quem é o cara? — questiono, fingindo que não me


importo.

— Parece que é um otário que está no primeiro ano chamado Logan


Hall. Se não me engano, ele mora na fraternidade do time de futebol
americano, algo do tipo. Por quê?
— Queria saber se é alguém conhecido. Boa noite, vou dormir. —
Faço uma pausa antes de subir as escadas, olhando para a bagunça
espalhada pela sala. — E limpem essa merda — aviso, com o tom de voz
sério, finalmente indo para o meu quarto.

Descobri que a fraternidade de Logan fica apenas a dois quarteirões de


onde moro.

Estou com a picape estacionada em frente ao quintal, observando a


movimentação da rua. São oito horas da manhã agora. Bato as cinzas do
cigarro para fora da janela e meu celular vibra no meu bolso. Confiro as
novas mensagens de Scarlet em resposta às que enviei para ela quando
acordei. Admito que fiquei preocupado, já que a ruiva não deu notícias
depois que a deixei no alojamento.

Scarlet: Bom dia! Joelho está ótimo hoje, obrigada por perguntar.

Scarlet: Quer dormir aqui à noite? Minha colega de quarto vai estar
fora.

Digito a resposta sem hesitar.

Evan: Claro, cenourinha.

Evan: Nos vemos mais tarde.

Presto atenção no momento em que a porta da fraternidade é aberta e


Logan sai para o quintal. Bingo. Desço da caminhonete, e o movimento
chama atenção do babaca. Ele hesita assim que me vê. A mesma relutância
de ontem à noite se passa por seu rosto patético. Ando até que estejamos um
de frente para o outro, satisfeito quando ele não se move. Logan apenas
ergue o rosto, numa espécie de reconhecimento.

— Você tá fodendo a Scarlet? — A pergunta é direta ao ponto. — É


por isso que ela te mandou aqui?
— Nós somos amigos, e ela não me mandou vir até aqui. Na verdade,
Scarlet nem sabe que estou aqui neste momento.

— Amigos? — Ele ri, na tentativa de mascarar o nervosismo com


sarcasmo. — Conta outra, porra. Olha, se você quer transar com Scarlet, vai
em frente. Ela é apenas o resto que eu descartei e…

Antes que ele possa terminar de insultá-la, meu punho já foi de


encontro ao seu rosto. Logan cambaleia com o impacto do soco, caindo
para trás na grama. Então, ele se levanta e vem para cima de mim, mas me
esquivo e acerto outro golpe na boca de seu estômago, fazendo-o
estremecer. Estou com raiva, então é quase um sacrifício não descontar tudo
nele, por mais que mereça.

— Você vai deixar a Scarlet em paz, entendeu? — Me distancio


enquanto Logan tenta recuperar o fôlego.

Estou pronto para retaliar qualquer coisa que Logan faça, mas, feito
um covarde, ele não avança outra vez. Pelo menos o idiota reconhece que
não tem a menor chance contra mim. Logan fica em silêncio, o rosto
vermelho e o olhar cheio de ódio.

— Entendeu? Qualquer coisa que você tiver que resolver com ela a
partir de agora, vai tratar comigo. Não vai olhar errado para ela, muito
menos abrir a sua boca para insultá-la outra vez. Se não, juro para você,
Hall, acabo com a sua vida na CVU.

Ele engole em seco, tentando disfarçar a careta de dor. Então, assente


em concordância.

— Ah, e se perguntarem, você deu de cara com um poste.

Como ele não diz nada, volto para o meu carro e saio dali, indo para a
primeira aula do dia como se nada tivesse acontecido.
Quando entro no vestiário depois de um treino intenso, sinto alguns
olhares em minha direção. Hoje treinamos para valer e sei que as palavras
de incentivo que falei inspiraram os caras, porque depois disso todo mundo
está esperançoso em relação ao Frozen Four. Hunter dá um tapinha nas
minhas costas quando me aproximo dos armários para guardar o
equipamento.

— Tá inspirado hoje, capitão.

Dou de ombros.

— Só estou tentando garantir que vocês não estraguem tudo.

Ele ri.

— Acho que está dando certo.

Pela esquerda, noto Lion se aproximar. Ele para e cruza os braços em


frente ao peito, me analisando de um jeito esquisito para caralho. Franzo o
cenho em sua direção.

— Vai ficar me olhando desse jeito bizarro? — pergunto, começando a


me irritar.

— Logan Hall apareceu todo machucado no campus hoje. Achei que


você ia querer saber.

Lionel, como sempre, enfiando o nariz em assuntos que não são da sua
conta. Aparentemente, as notícias se espalhavam rápido pelo campus. Sei
que ele ligou os pontos e presumiu que fui eu quem fiz o estrago todo e,
para ser honesto, não dou a mínima.

Hunter semicerra os olhos em minha direção. Que ótimo. Agora tem


dois idiotas me inspecionando de perto. Meu melhor amigo ri, incrédulo, e
dá dois tapas no meu ombro. Acho que ele devia parar de me tocar antes
que eu decida arrancar suas mãos. Ferrari se diverte ainda mais ao ver a
seriedade no meu olhar.
— Porra! Você quem deu a surra no merdinha. — Agora, Hunter ri
como se acabasse de ouvir a piada mais engraçada do mundo. — Confesso
que não estou mais te reconhecendo, Evan. Pelo visto, a ruiva te pegou de
jeito.

— A ruiva da monitoria? — Lion pergunta, curioso. — O que tem a


ver?

— Ela é ex do Logan — Hunter informa. Estou a um passo de dar um


soco nele só para fechar a matraca. Notando meu olhar, Ferrari limpa a
garganta. — Mas enfim, o cara é um idiota…

No próximo momento, o treinador irrompe no vestiário e abre as


portas com tanta força que elas batem contra a parede, silenciando todo o
burburinho de conversa. Não preciso nem olhar sobre o ombro para saber
que toda a sua ira está direcionada a mim. Ele semicerra os olhos e bate
palmas de forma deliberadamente lenta, dando a informação que deixa todo
mundo incrédulo, inclusive eu.

— Devido à má conduta de Evan no campus, a diretoria da CVU


decidiu que vocês jogarão a próxima conferência sem um capitão.

— Devido à má conduta de Evan, a diretoria decidiu que vocês jogarão


a próxima conferência sem um capitão.
27

DEPOIS QUE FUI vetado do jogo de sexta-feira, nem tentei discutir com
o treinador. Não pensei nas consequências antes de socar o ex-namorado
babaca da Scarlet e ameaçá-lo. Eu devia saber que ele não deixaria isso para
lá. Agora, além de não participar da conferência, vou ser obrigado a limpar
o vestiário durante uma semana junto com os faxineiros da CVU.

Sempre fui uma pessoa lógica, entendendo que as atitudes têm


consequências. Por isso, desenvolvi uma mentalidade onde a razão se
sobrepõe à emoção e nenhuma recompensa fácil estaria acima de colher o
fruto de um trabalho árduo.

Não discuti e nem tentei barganhar. Aceitei a reação de uma ação


minha e ponto. Sei que decepcionei meus companheiros de equipe e esta é a
única coisa que me frustra no momento. A decepção no olhar do treinador
Wilson também foi como um soco na boca do estômago.

Agora, dirijo para o dormitório de Scarlet. Considerei cancelar e ir


espairecer. Mas, quando pensei no significado desta palavra, tudo o que me
veio à mente foi passar um tempo com ela. Estaciono o carro em um local
discreto e entro pelos fundos, por onde os funcionários costumam tirar o
lixo. Foi Hunter quem me ensinou esse truque, sem nenhuma surpresa.

Assim que bato na porta do dormitório, Scarlet a abre imediatamente.

Entro antes que alguém me veja no corredor e a analiso. A ruiva usa


um pijama curto de algodão, que me faz reparar no curativo em seu joelho,
e os cabelos ruivos estão em um coque desleixado. Vê-la desta forma, sem
maquiagem, é sexy para caramba. Então tenho que me conter para não
agarrá-la.

Na verdade, é exatamente o que faço.


A puxo contra mim, fazendo arfar com surpresa, e caímos em sua
cama com lençóis verdes e cheiros. Scarlet ri enquanto a pressiono no
colchão com meus noventa quilos.

— Você tá me sufocando — diz, com a voz ofegante. — Sério, você é


pesado para caramba, Evan.

Saio de cima dela.


— Você tá me sufocando — diz, com a voz ofegante. — Sério, você é
pesado para caramba, Evan.

Saio de cima dela, mas só porque ela tem que respirar.

— Meu dia foi uma droga, cenourinha. — Me recosto contra a pilha de


travesseiros e chuto os sapatos para longe. — Acho que preciso ser
compensado de alguma forma.

Os olhos verdes correm pelo meu corpo estirado em sua cama até
pararem em meu rosto.

— O que houve?

— Fui expulso de um dos jogos mais importantes da temporada.

— Sério, por quê?

— Me meti em uma briga, mas não importa muito. O que me


incomoda é que deixei o time inteiro na mão. Agora, só me resta confiar
que eles vão conseguir passar por esse jogo sem mim.

— Que droga, Evan. Sinto muito. Sei o quanto o hóquei significa para
você. — Há uma pausa. — Tem algo que eu possa fazer para que se sinta
melhor?

— Consigo pensar em uma coisa ou duas.

— Por que a gente não faz sem camisinha hoje? Comecei a tomar o
contraceptivo. — A frase de Scarlet quase faz o meu coração sair pela
boca. Ela se aproxima, arrastando as unhas compridas pelo meu peitoral e
batendo os cílios inocentemente. — Sabe, acho que você precisa ser
consolado do jeito correto…

— Também acho. Você confia em mim para transar sem camisinha? —


questiono, observando-a sentar sobre os joelhos e começar a tirar a
camiseta.

Quando seus mamilos entram no meu campo de visão, meu pau


endurece ainda mais, se é que é possível. Scarlet sempre me surpreende
quando se trata do termômetro de desejo sexual. Sempre que acho que ela
alcançou a métrica máxima, a garota dá um jeito de quebrar o recorde e
quase me faz explodir de tesão.

— Confio. Eu estou limpa, mas se você não quiser, tudo bem.

— Também faço exames com regularidade e nunca transei sem


camisinha.

— Perfeito então, nem eu. Acho que estamos prontos para dar esse
passo…

Eu avanço. A puxo para mim e capturo seus lábios em um beijo


brusco. Scar geme e monta no meu colo. Ela começa a se esfregar em cima
da minha ereção e eu solto algo ininteligível, enfiando a mão nos seus
cabelos e enrolando as mechas no punho. Adoro fazer isso, adoro mais
ainda o quanto ela parece ficar excitada quando isso acontece.

Estou impaciente para estar dentro dela, mas não quero apressar as
coisas. Beijo seu pescoço, descendo até a linha de seu umbigo, e então a
ajudo a tirar o resto das roupas. Quando Scar está completamente nua na
minha frente, paro um momento para contemplá-la antes de posicionar meu
rosto entre suas pernas.

Começo a chupá-la, beijando levemente seu clítoris. Depois, passo a


língua entre as dobras úmidas, ficando excitado com cada som doce que
deixa a sua boca. Por favor, Evan. Meu Deus, Evan. Isso aí, Evan. Me
chupa mais forte. É como uma orquestra para meus ouvidos.
Insiro um dedo dentro dela, alternando as lambidas com penetração.
Porra, acho que eu poderia gozar só fazendo oral em Scarlet. Ela é tão
gostosa que ainda não consigo lidar com esse fato. Quando percebo que as
pernas estão tremendo, me afasto, fazendo-a choramingar.

— Agora é a vez do meu pau. — Chuto minhas calças para longe. —


Fica de bruços.

Obedecendo, Scar se vira com a barriga para baixo, me dando uma


visão perfeita de sua bunda redonda. Me posiciono em cima dela, e começo
a penetrá-la devagar, estremecendo com o calor e a umidade que me
envolve.

— Puta merda. Você é perfeita — murmuro, gemendo, enquanto recuo


com os quadris e a penetro outra vez, sem barreiras entre nós dois. — Não
vou durar nada dentro de você assim.

Então, começo a comê-la com força. Me apoio nos meus braços a cada
investida, ouvindo seus gemidos. Scar morde o travesseiro, e eu enrolo um
braço ao redor de sua cintura, sentando-me e a puxando contra mim. Agora,
ela assume os movimentos, cavalgando no meu pau no ritmo em que
estabeleceu. Seguro um de seus seios com firmeza, sentindo a pressão do
orgasmo crescer.

— Evan — geme. — Eu acho que… — Geme de novo. — Vou gozar.

— Goza pra mim — digo em seu ouvido, com a voz rouca e baixa. —
Deixa todo mundo no alojamento ouvir o quanto você é uma safada.

Ela grita meu nome e se desfaz. A respiração fica irregular e ela


começa a pulsar ao meu redor, ordenando o meu pau. Consigo penetrá-la
mais duas vezes antes de ter minha própria liberação. Gozo violentamente
dentro da ruiva e ela desaba na cama, com o meu sêmen escorrendo entre
suas pernas. Sexo com ela sempre é bom para caralho.

Scarlet rola na cama e se senta, me lançando um olhar malicioso.

— Vou me limpar no banheiro. Quer ir comigo?


Eu rio.

— Você é meio insaciável, não é mesmo, linda?

— Então, você vem ou não? — Arqueia as sobrancelhas.

— É claro que eu vou.

Scarlet está deitada em cima do meu peito enquanto assistimos Gossip


Girl depois do banho. Tenho que dar o braço a torcer, acho que estou
começando a ficar meio viciado, o que é um problema. Isso aqui não tem
nada a ver comigo, sem querer ofender. Sou Evan Sutton, capitão da equipe
de hóquei e fã de carteirinha de Slipknot. O que as pessoas diriam se me
vissem enroscado com Scarlet neste momento?

Acabaria com toda a minha reputação. Não acredito que estou fazendo
esse tipo de coisa, mas, de repente, quero me envolver com tudo que esteja
dentro do mundo de Scar. Quero entender suas manias, a aromaterapia, a
porra do yoga e até as séries de menininha que ela gosta. Quero fazer parte
de tudo.

O pensamento me assusta um pouco, mas paro de pensar assim que


Scarlet suspira e diz:

— Quem você escolheria? A Serena ou a Blair?

— Para ser honesto, nenhuma delas me chamam atenção. Parecem


duas mimadas que se odeiam e sentem inveja uma da outra e, de alguma
forma, conseguem chamar isso de amizade.

— Que análise crua, não gostei. Quem faria o seu tipo, então?

— Você.

Scarlet ri.
— Da série.

— Nenhuma delas, cenourinha. Estou sendo sincero.

— Você é tão sem graça!

Nossa conversa termina porque realmente estou interessado no que vai


acontecer nos próximos episódios. Depois de algum tempo, Scarlet pega no
sono e dorme com o corpo macio e quente em cima de mim. É engraçado o
quanto ela parece pequena assim, mas sei que eu é que sou grande demais.

Arrasto meus dedos pelas suas costas, curtindo a sensação de tocá-la,


mas meu celular começa a vibrar e me tira do estado contemplativo. Pego o
aparelho antes que acorde Scar e o coloco no silencioso. Há três ligações
perdidas de Emery. Abro as mensagens para conferir se está tudo bem.

Emery: Cadê você? Tô aqui na frente da fraternidade.

Emery: Preciso conversar.

Emery: Será que dá pra atender a droga do telefone?????

Mudanças de planos. Não vou passar a noite com Scarlet.

Evan: Chego em alguns minutos.

Evan: Vou pedir para alguém abrir a porta para você.

Não vejo a resposta de Emery, porque sei que ela deve estar irritada.
Me desvencilho de Scarlet suavemente para não acordá-la e desligo o
notebook. Então, começo a me vestir. Coloco a calça e a camiseta antes que
a porta seja aberta.

A colega de quarto de Scarlet congela assim que me vê, alternando o


olhar entre mim, parado no meio do dormitório, e a ruiva dormindo
serenamente. Parece que a noite iria acabar comigo indo embora de uma
forma ou de outra.

— Eu já estava de saída. — Pego as chaves do carro. — Ela pegou no


sono há algum tempo.
— Ok, tchau — é o que a garota com lápis preto nos olhos e cara de
poucos amigos responde, segurando a porta para que eu passe.

Antes que eu possa desejar boa noite, ela fecha a porta na minha cara.

Emery está no sofá balançando a perna impacientemente assim que


atravesso a porta da frente. Para ser sincero, ainda não entendo o motivo de
sua visita, até porque já é quase dez horas da noite. Jogo o molho de chaves
dentro do pote que fica no hall e me sento ao seu lado, esticando o corpo.
Estou meio quebrado depois de gozar diversas vezes e do treino pesado de
manhã.

Emy arqueia uma das sobrancelhas em minha direção, como se


pudesse ver através da minha alma e soubesse exatamente onde estive e o
quê estive fazendo enquanto sumi.

— Você está fedendo a sexo — fala, me surpreendendo.

— Bom te ver também, irmãzinha. O que você tá fazendo aqui?

Ignoro a alfinetada, vez que já percebi que seu humor está azedo.
Talvez seja porque não conversamos desde o treino. Estou dando espaço
para minha irmã entender suas próprias emoções. Se eu ficar em cima dela
nos momentos críticos de chatice, vamos acabar brigando como
costumávamos fazer quando éramos crianças. Temos vinte e três anos
agora, as coisas são diferentes.

— Só vim passar um tempo. — Eu a observo, desconfiado. — Mas me


arrependi. Está na cara que você nem ia passar a noite aqui.

Emery tem razão, mas apenas dou de ombros.

— O que você quer fazer? Assistir algum filme?


— Fiquei sabendo que você foi expulso do próximo jogo dos Frozen
Fury. Os boatos são de que você se meteu em uma briga.

Minha irmã analisa meu rosto com calma. Sei que mentir para ela é
impossível, talvez seja o sensor dos gêmeos. Solto um suspiro, porque não
quero falar sobre essa merda. Até agora, estava evitando pensar nisso, mas
Emery resolveu que vai se meter na minha vida hoje, e também não posso
ser grosseiro com ela.

— É, briguei com um babaca, mas acontece. Vou encarar as


consequências.

— Isso nunca aconteceu antes, Evan. — Emery me olha como se eu


fosse alguém completamente diferente. — O que tá acontecendo com você?

Neste momento, é meu amor por ela que me impede de ser um


completo babaca. Olho para Emery com o rosto sério.
— Não vou falar sobre isso, Emy. Me desculpa, mas a minha cabeça já
está cheia de coisas. Não quero discutir com você. Será que podemos voltar
ao normal?

Emy morde os lábios, parecendo hesitar. Minha irmã pode ser muito
orgulhosa, até mais do que eu. É difícil fazê-la dar o braço a torcer e admitir
quando está errada. Só eu e poucas pessoas sabemos que ela não é nem um
pouco durona como aparenta ser. Por trás disso, há um coração feito de
gelatina.

— Você vai deixar eu escolher o filme, então.

— Claro, escolha o que quiser. Vou pedir pizza, o que acha?

— Ok, só não esquece de acrescentar queijo extra.

Eu rio.

— Você nunca me deixa esquecer.


28

RECEBO A LIGAÇÃO sobre a entrevista de emprego e começo a revirar


o armário em busca de algo que seja apresentável o suficiente. Visto a
camiseta branca de linho com mangas longas que minha mãe me deu no
Natal passado, mesmo tendo a achado brega, e penteio o cabelo, conferindo
as horas no relógio.

Preciso estar lá daqui a vinte minutos. Com pressa, tranco o dormitório


e saio do alojamento, contemplando o dia frio de uma tarde de novembro
enquanto espero pelo táxi. Quando chego na escola primária de Crystalville,
uma das professoras que se apresenta como srta. Rigel me acompanha e me
mostra a estrutura da instituição até que cheguemos no ginásio, que é
dividido em três partes: natação, futebol americano e patinação artística.

Quando atravessamos as portas do salão de patinação, solto um


suspiro, encantada ao observar a superfície lisa e sólida do gelo. Algumas
crianças estão praticando, guiadas por uma mulher mais velha e experiente.
Mordo os lábios e sinto a nostalgia me abater. Há quanto tempo não visitava
um ambiente como esse?

— Precisamos de ajuda com a organização. — A voz da srta. Rigel me


tira do meu estado pensativo. — Depois que as aulas acabam, fica tudo uma
bagunça. As crianças deixam os patins jogados por todo canto. — Ela ri. —
Acho que é uma tarefa simples.

— Claro. — Limpo a garganta, sorrindo. — Posso fazer isso.

É mais simples do que pensei e começo oficialmente no novo


emprego. A srta. Rigel me mostra onde ficam os armários e me leva para
conhecer as crianças. A treinadora se apresenta como Amy e me avalia dos
pés à cabeça. No final da aula, recolho as bagunças e ignoro a sensação
estranha de ver o rinque tão de perto.
Quando chego no dormitório, recebo uma ligação de minha mãe. Estou
ignorando meus pais há algum tempo, mas com o feriado se aproximando,
não posso mais fingir que eles não existem. Com um suspiro, atendo o
telefone.

— Você ainda está com raiva? — pergunta, do outro lado da linha.

— Não é raiva, mãe. — Me sento na cama. — É decepção.

— Eu e seu pai estamos muito arrependidos. Esperamos que você não


tenha mudado de ideia sobre o dia de Ação de Graças.

— Eu vou voltar para casa. Estou com saudades.

— Que ótimo. E como estão as coisas aí?

Cedendo à trégua, me deito de costas no colchão e encaro o teto do


quarto.

— Consegui um emprego — admito.

— Sério? Me conta tudo!

Faço um breve resumo sobre as responsabilidades na escola, omitindo


a parte da patinação artística. Meus pais ficam tão felizes que decidem me
presentear com duzentos dólares para gastar como eu quiser, deixando-me
envergonhada. Embora saiba que agiram para me proteger, me sinto
culpada por tê-los ignorado. Mamãe também me atualiza sobre Josh e
Daisy, que estão ansiosos para me ver. No entanto, após alguns minutos de
conversa, ela menciona um tópico que me deixa em alerta.

— Você conheceu alguém, não foi?

— Por que acha isso?


— Mesmo por ligação, consigo sentir que você está… diferente.
Então, por favor, não mente para mim. Quero saber tudo sobre o seu novo
namorado.

— Ele não é meu namorado, mãe!

Droga, acabo de me entregar. Lily ri, percebendo a mesma coisa.

— Então tem um ele. Me conta, por favor!

Mamãe se empolga muito quando o assunto é minha vida amorosa.


Penso por alguns momentos. Como posso definir minha relação com Evan?
Na última vez que nos vimos, ele foi embora depois que peguei no sono.
Acordei com Viper me lançando um olhar irônico, como se soubesse de
tudo o que tínhamos feito. Desde então, tem sido difícil encará-la.

— Bom, a gente tá se conhecendo ainda. — Tento parecer indiferente.


— Não tem nada demais.

Com nada demais quero dizer que estou fazendo muito sexo e o vendo
quase toda semana.

Minha mãe não parece convencida com a resposta, mas não insiste.
Nós nos despedimos e desligamos. Mal posso acreditar que faltam apenas
alguns dias para eu ir para Green Lake. Checo as mensagens no meu celular
e me surpreendo ao ver que Sutton me mandou algumas enquanto eu estava
na ligação. Abro nosso chat para dar uma espiada.

Evan: Acho que preciso começar a fazer yoga.

Evan: Que tal você me ensinar?

A surpresa logo é substituída pela diversão que sinto ao imaginar Evan


praticando yoga. Rio enquanto digito uma resposta.

Scarlet: Tudo bem. Vai ser engraçado.

Evan: Vou reunir alguns amigos do time daqui a pouco.

Evan: Noite do pôquer e nachos. Se quiser vir, é bem-vinda.


Scarlet: Ok. Vou tomar um banho.

Na mesma hora, me levanto da cama, sentindo um bom humor que não


existia há algum tempo.

— Cansei dessa porcaria. Tô fora!

Lionel se levanta abruptamente da mesa, fazendo as pernas da cadeira


arrastarem pelo chão e produzirem um som esganiçado. Dan e Hunter
gargalham, enquanto Evan apenas balança a cabeça em reprovação, com a
sombra de um sorriso nos lábios após ter levado outra rodada no pôquer.
Tentei aprender, mas achei complicado demais e preferi ficar observando.
Mordo um nacho, segurando o riso. Parece que os jogadores de hóquei são
competitivos.

— Foi chorar escondido no quarto que nem um bebê. — Dan sorri.

— Acho que ele vai colocar Adele para tocar — Hunter acrescenta.

Mais risadas explodem na mesa e, surpreendentemente, me sinto


confortável no meio desses caras. Não me importo que os amigos de Evan
pensem que temos algo, vez que não parecem ser do tipo que espalham
fofoca ou alguma merda do tipo. Até agora, nenhum deles me deixou
constrangida.

— Bom, a gente devia jogar MTG para a Scar poder participar. — Dan
olha em minha direção.

— Ela não entendeu nem o pôquer, imagina essa droga. — Hunter me


lança um olhar ameno. — Sem querer ofender.

Richard, o integrante da equipe de hóquei que só conheci esta tarde,


acrescenta:

— É, esquece isso, cara. Vamos pensar em outra coisa.


— O que é MTG? — questiono, curiosa.

— Magic The Gathering — Evan esclarece, sentado ao meu lado. — É


um jogo de cartas competitivo. Mas, acho que o Lionel tem razão. Estou
cansado de bater em vocês. Vou lá para a sala.

Evan é vaiado pelos seus amigos enquanto se levanta da mesa e deixa


as cartas para trás. Como não estou jogando, resolvo segui-lo. Sentamos no
sofá lado a lado, e ele começa a acariciar meu braço, espalhando arrepios
pelo meu corpo.

Acho que Evan nem percebe que, toda vez que estamos próximos, ele
começa a me tocar de forma natural. Acho isso um tanto fofo quanto
curioso. As íris cinzentas estão fixas nas minhas quando ele pergunta:

— Você trouxe o lance do yoga?

— Que lance do yoga?

— O tapete.

— Ah, não. Dá para usar um tapete normal por enquanto. Esse da sala
serve. — Faço uma pausa. — Por que você decidiu que quer fazer yoga?

— Tô me sentindo tenso ultimamente. Quero expandir meu horizonte


também. Além do mais, isso vai me aproximar de você.

Antes que eu possa esboçar qualquer reação, Hunter surge atrás de nós.
Não sei como ele se aproximou tão silenciosamente, então levo um susto
quando ele pula por cima do sofá e força espaço para se sentar entre mim e
Evan. Chego mais para o lado.

— Desculpa interromper os pombinhos, mas também quero participar


da conversa. Sobre o que estavam falando?

— Não fode, Hunter — Evan ralha, puto. Seu amigo dá risada.

— Yoga — respondo, meio sem graça.

— Evan quer praticar yoga? Essa é nova.


O capitão se levanta do sofá e me puxa pelo braço. O aperto é gentil,
mas firme. Hunter murmura algo sobre territorialismo, aos risos, enquanto
subimos as escadas até o andar de cima. Quando entramos no quarto de
Evan, ele fecha a porta. A mudança abrupta de atmosfera me deixa confusa.

— Qual o problema? — questiono.

— Ele estava muito perto de você.

— Não pode estar falando sério…

— Não estou, mas queria você só para mim por um tempo. Sou
egoísta. — Evan me empurra em direção à cama. Caio no colchão e ele
invade meu espaço, posicionando-se entre minhas pernas. — Quero te
devorar — admite, a voz baixa e rouca.
— Acho que você devia tentar controlar um pouco esse desejo —
sugiro, aos risos. — Ou vai se transformar em um ninfomaníaco.
Ele sorri, provocativo.
— Me mostra o yoga, então.

— Ok.

Evan se distancia e pega um tapete. Tiro os sapatos e me sento junto


com ele no chão.

— O yoga é muito mais do que apenas movimentos — começo a


explicar, com a voz calma. — É uma jornada de conexão e equilíbrio entre
o corpo e a mente. A respiração é muito importante…

Respiro profundamente, incentivando Evan a me acompanhar.

— Durante o yoga, a respiração se torna a nossa âncora, mantendo a


mente no presente. Sempre repito para mim mesma que o passado e o
futuro não existem. Só o agora.

O jogador assente, parecendo absorver o que eu digo com interesse.


Respiramos juntos e, conforme a tranquilidade se instala, mostro para
Sutton alguns alongamentos simples que ele pode utilizar durante os
treinos. Como imaginei, sua flexibilidade é boa. Fazemos alguns
movimentos até que eu comece a suar e decida pararmos por hoje. Não
quero ficar nojenta perto de Evan.

— Eu estava pegando o jeito — protesta, enquanto eu espero que meu


corpo resfrie.

—- Sim, e acho que já está de bom tamanho. Outro dia a gente se


aprofunda mais.

Evan se levanta e vai até o frigobar no canto do quarto, retornando


com uma garrafa de água. Noto as tatuagens exibidas em suas costas. Seu
corpo sem camisa é um quadro de expressão pessoal, cada uma contando
uma história. Observo atentamente, lembrando da primeira vez em que as
vi, intrigada pela narrativa por trás delas.

— Uma espada, memento mori e veni, vidi, vici — recito as palavras,


com o interesse aguçado. — São escolhas bastante significativas. O que elas
representam para você?

Evan se senta ao meu lado novamente, com a garrafa de água entre


nós, enquanto ele parece considerar as tatuagens com um olhar pensativo.

— A espada representa força e coragem para enfrentar desafios —


começa, a voz calma e os olhos cinzentos sérios. — Memento mori é um
lembrete da imprevisibilidade da vida, da importância de viver cada dia ao
máximo. E veni, vidi, vici... bem, é uma declaração de conquista.

Vim, vi, venci.

— Isso é muito interessante. Mostra o seu lado nerd que cursa


História.

— Você acha atraente?

— Claro. É impossível não achar um cara inteligente atraente. E já que


estamos falando sobre objetivos, quero começar a frequentar a academia
com regularidade, mas confesso que sempre desanimo e volto à estaca
zero…

— Você pode treinar comigo — sugere, antes que eu possa concluir a


frase.

Eu sorrio, porque é como se Evan tivesse acabado de ler a minha


mente. Acho que com alguém me incentivando, posso começar a ter
constância.

— É, seria legal.

— Amanhã, vou pela tarde.

— Hum, pela tarde eu não consigo. Esqueci de comentar que arranjei


um emprego.

— Sério? Onde?

— Na escola primária. Fica a poucos minutos daqui. Fui conhecer o


lugar esta manhã e já me contrataram para o primeiro dia. É bem tranquilo,
só preciso ajudar com a bagunça das crianças.

— Que legal, cenourinha. A propósito, você vai para casa no dia de


Ação de Graças?

— Sim, vou ficar com a minha família. E você?

— Ainda não sei, ninguém fez planos.

— Bom, acho que está na hora de eu ir. —Me levanto e o capitão imita
o meu movimento, ficando de frente para mim. Observo seu rosto calmo. —
Vou pedir um táxi.

— Tem certeza de que não quer que eu te leve até o dormitório?

— Tenho. Acho que você devia ficar e dar apoio para seus amigos,
especialmente pelo jogo de amanhã. — Fico na ponta dos pés e dou um
beijo no seu rosto. Evan parece meio atordoado, como se tivesse lembrado
desse fato apenas agora. Solto um riso baixo. — Boa noite, capitão.
— Boa noite, Scar — é tudo o que ele diz antes de eu me virar e sair
pela porta.
29

ESTOU MAIS NERVOSO do que eu gostaria de admitir enquanto me


sento no fundo do Blizzard. Dou um gole na cerveja para tentar acalmar os
nervos, mas não funciona. O jogo da conferência está prestes a ser
transmitido ao vivo na televisão antiga do pub.

Emery solta uma bufada alta e cutuca o meu ombro. Decidimos assistir
ao jogo juntos esta tarde, já que como a partida será fora de Crystalville, as
cheerleaders não vão se apresentar. Mas, acima de tudo, minha irmã sabe
que eu estou uma pilha de nervos, por isso veio me apoiar.

— Para de se preocupar. Dá um voto de confiança para eles.

Ela está certa, tenho que confiar na minha equipe, mas, porra, é quase
impossível conter a ansiedade. Estou aqui, sentado neste bar, enquanto eles
estão em outra cidade, prestes a enfrentar um time com um desempenho
incrível, sem o capitão titular. Escalamos um jogador adicional e temos os
capitães alternativos. Contudo, não é a mesma coisa.

— Emery, a gente está atrás no Frozen Four. Desculpa se não consigo


me acalmar.

— Então você devia pensar melhor antes de sair socando quem te irrita
por aí. — Ela rola os olhos. — Não pensou em como sua atitude egoísta
poderia afetar você e as pessoas ao seu redor? Lembre-se que esse não é
apenas o seu sonho. Há vários outros caras na equipe que desejam o mesmo
que você.

Franzo o cenho. Quando é que minha irmã ficou tão sábia e aprendeu a
usar palavras tão duras? Solto uma respiração brusca e viro a caneca de
cerveja. Acho que preciso de algo mais forte, na verdade.
Ergo o braço para chamar o barman que está circulando entre as mesas
do pub, mas Emery segura minha mão e a puxa com força para baixo.

— O que eu te disse sobre confiar na equipe? Vê se relaxa, droga!

Estou prestes a rebater quando o jogo começa a ser transmitido. Os


jogadores entram em campo. Reconheço os Frozen Fury imediatamente,
com o uniforme azul e branco destacado sob as luzes intensas.
O jogo começa. Hunter e Dan estão jogando com uma energia
contagiante. Logo, a hesitação dos Frozen Fury diminui à medida que a
disputa pelo controle se intensifica. Sinto cada parte do meu corpo ficar
tensa com a expectativa e tento respirar profundamente para relaxar.

Há um passe perfeito para Hunter, que o recebe e dispara o disco em


direção ao gol. O goleiro adversário tenta, em vão, defender. Bato a mão no
tampo da madeira enquanto o resto das pessoas também vão à loucura com
a primeira pontuação. Até mesmo Emery parece estar orgulhosa. Isso aí,
porra. Acho que vou ter que beijar os pés do Ferrari quando ele voltar da
conferência.

Com dificuldade, os Frozen Fury continuam a dominar o jogo e manter


o placar favorável. É uma partida tensa, que se arrasta, mas, no final,
saímos com a vitória. Meu peito se enche de orgulho.

Estou mais determinado do que nunca a ser o líder que eles merecem.
Não posso mais pensar só em mim a partir de agora. Todas as decisões fora
do rinque também afetam meus companheiros.

Ergo minha caneca de cerveja no ar, mesmo que esteja vazia.

— Aos Frozen Fury! — O grito ecoa pelo pub, sobrepondo os sons do


ambiente. Alguns rostos se viram em minha direção, surpresos ao me
reconhecerem, e recebo alguns assobios.

Emy ri, balançando a cabeça com um olhar que fala eu te avisei.

— Aos Frozen Fury — repete, mas seu semblante endurece


subitamente. — Agora a parte chata: precisamos ir para casa dos nossos
pais.

Sempre que nossos pais nos reúnem, tudo é monótono ou cheio de


comentários sarcásticos sobre nossas escolhas. Enquanto me sirvo de
bastante purê e frango, já me preparo para o momento em que meu pai vai
abrir a boca para falar.

— Por que você não foi para a conferência? — Phillip Sutton quebra o
silêncio.

Noto que Emery fica um pouco tensa ao meu lado, e minha mãe me
lança um olhar indecifrável por cima da borda da taça de vinho. Eu, no
entanto, continuo relaxado. Não há nada que possa estragar o meu humor
depois da vitória de hoje.

— Fui proibido por má conduta.

Mentir não é para mim. Sou honesto em tudo o que faço. Vejo os nós
dos dedos do meu pai ficarem esbranquiçados conforme ele segura os
talheres. Philip não consegue disfarçar o temperamento quando algo o
desagrada.
— Que ótimo! Fico surpreso que você tenha virado um delinquente.
— Cometi um erro e aprendi com ele — respondo, na tentativa de
evitar que essa noite se transforme em uma grande confusão. — O
importante é que o time conseguiu vencer mesmo sem mim.

Minha mãe coloca a taça na mesa.

— Sermão nenhum vai adiantar. Evan já está consciente de suas ações


— Abigail diz.

Meu pai bufa, mas se contém. Acho que o comentário da minha mãe é
o que o impede de explodir por completo. Ao meu lado, ouço Emery soltar
a respiração.
— Vamos fazer algo no dia de Ação de Graças? — minha irmã
pergunta.

— Tenho uma viagem de negócios. — Phillip se adianta, limpando a


boca em um guardanapo. — Vou passar alguns dias fora com a sua mãe.
Precisamos resolver coisas importantes.

— No Natal vamos planejar algo melhor — Abigail acrescenta, como


que para se retratar. Antes, isso até poderia me deixar um pouco triste, mas
agora não sinto nada. Já se tornou algo padrão dos Sutton.

O resto do jantar é uma tortura. Assim que termino de comer, levanto-


me da mesa e Emery faz o mesmo. Logo, a funcionária vem recolher a
louça. Minha irmã me segue até a sala de TV e, quando estamos sozinhos,
quebra o silêncio.

— Já vai voltar para o campus?

— Acho que sim e você? — Me sento na poltrona confortável que meu


pai usa para ler o jornal.

— Claro. Prefiro ficar na faculdade do que lidar com esse clima.

Nisso, nós dois concordamos. Meu celular vibra com uma mensagem
de Scarlet, mas eu enfio o aparelho no bolso antes que Emery possa dar
uma espiada na tela. Minha irmã semicerra os olhos, cruzando os braços em
frente ao peito.

— Nunca te vi assim antes — comenta, deixando-me confuso.


Provavelmente, ao notar o questionamento no meu rosto, ela continua: —
Parece que você está mais envolvido desta vez do que das outras.

— Do que você está falando?

— Não se faz de idiota. Sei que você se envolve com garotas


específicas por bastante tempo ao invés de sair pulando de cama em cama.
Só que desta vez é diferente. Você sabe que é diferente.

— O que está sugerindo? Que estou apaixonado?


— É exatamente isso. Evan, quantas vezes você levou garotas para
conhecer o seu círculo íntimo? A fraternidade? — Minha mente fica em
branco, não consigo me lembrar de nenhuma vez, até porque não aconteceu.
— Pois é — conclui, diante do meu silêncio.

— Isso não quer dizer nada.

— Quer dizer, sim. Eu te conheço e sei que agora tem alguma coisa
diferente. — Há uma pausa. — E aposto que a briga que você se meteu tem
a ver com aquela garota.

Ela está certa. No entanto, dou de ombros.

— E se eu estiver apaixonado? Isso é um problema?

Minha irmã franze o cenho, adotando uma postura defensiva.

— Não, mas acho que devia tomar cuidado para não se meter em mais
problemas. Foi por causa disso que você deixou a equipe na mão. Só espero
que seja racional daqui para frente.
São as últimas palavras que ela diz antes de sair da sala e me deixar
sozinho para trás.
30

FINALMENTE ESTOU ARRUMANDO a mala para voltar para casa.


Coloquei meus itens pessoais, poucas roupas — já que só irei passar o final
de semana —, e minhas botas de camurça, porque está fazendo bastante
frio. Quando termino a organização, checo o horário no celular. Vou para a
rodoviária daqui uma hora, por enquanto posso ficar meio à toa.

Confiro as mensagens. Josh está me pedindo para não esquecer de


levar o boné com o logo da CVU que comprei para ele na loja do campus e
custou uma fortuna. Também há uma dos meus pais perguntando se tudo
está certo. Respondo, e depois entro no chat de Evan. Faz alguns dias que
não nos vemos porque tudo está uma loucura.

Com o emprego novo, meu tempo ficou limitado, e eu soube que ele
estava ajudando com a limpeza dos vestiários depois dos treinos de hóquei
para compensar, além de treinar o dobro. Apesar disso, trocamos algumas
mensagens ontem à noite, mas não foi nada demais.

Estou tão perdida nos meus próprios pensamentos que mal percebo
quando os três pontos que indicam que ele está digitando aparecem na tela.
Me assusto quando o celular bipa contra a palma da minha mão.

Evan: Quer carona para a rodoviária?

Scarlet: Não precisa. Não quero atrapalhar. Você tem que aproveitar o
feriado com a sua família.

Evan: Meus pais foram viajar, minha irmã está com as amigas e meus
colegas de equipe foram para casa. Estou sozinho na fraternidade,
cenourinha.

Evan: Não é um problema.


Imaginar Evan sozinho no dia de Ação de Graças me deixa triste.
Mordo o lábio inferior quando a ideia de convidá-lo para ir até Green Lake
atravessa minha cabeça. Será que seria esquisito? Acho que não, nós somos
amigos e amigos fazem esse tipo de coisa.

Tá legal, quem estou querendo enganar? Nossa amizade não é


convencional, isso é um fato, mas mesmo assim não é do meu estilo ignorar
esse tipo de coisa. Eu faria isso por qualquer outra pessoa. Acho que meus
pais ficariam decepcionados se soubessem que deixei alguém para trás
nessas circunstâncias. Então, sem pensar muito, digito uma nova
mensagem.

Scarlet: Quer ir comigo para Green Lake?

Evan: Para a casa dos seus pais?

Droga. Será que ele está achando que quero precipitar as coisas?

Scarlet: Não leva a mal, vou te apresentar como um amigo.

Scarlet: Se quiser ir, será bem-vindo.

Evan: Ok. Passo aí daqui a pouco. Esquece o ônibus.

Solto um suspiro. Como é que vou explicar tudo isso para meus pais?
Na verdade, o único problema é que eles vão achar que estou namorando de
novo. Principalmente a minha mãe. Afundo a cabeça no travesseiro e solto
um gemido abafado, depois ligo para o telefone de casa.

Alguém atende no terceiro toque.

— Propriedade dos Evergarden, como posso ajudar? — A voz de Josh


alcança meus ouvidos.

— Por que você atendeu o telefone como se fosse um funcionário de


telemarketing?

— Espera. — Meu irmão ignora minha pergunta. — É você, Scarlet?


— Sim. Onde estão os nossos pais? Você pode passar o telefone para
eles?

— Hum, tá bom. Você já vai chegar?

—- Daqui algumas horas.

Ele murmura algo em concordância e então a linha fica muda. Um


momento depois, há um ruído e a voz da minha mãe perguntando o que
houve em um tom alarmado. Explico para ela que não aconteceu nada,
apenas que quero levar um amigo para o dia de Ação de Graças.

— É o cara com quem você está saindo?

— Não — minto por algum motivo. — Enfim, avisei para vocês não
serem pegos de surpresa. Até depois, mãe.

Antes que ela possa dizer algo, desligo a chamada. O dormitório está
silencioso, como o habitual. Viper vai passar o feriado fora, assim como
Cameron e a maioria dos universitários. Mais um motivo para Evan não
ficar para trás. Amanhã, no dia de Ação de Graças, isso aqui vai estar
parecendo uma cidade fantasma.

O jogador é pontual. Ele chega na hora combinada e me ajuda a


carregar minha mala, que está mais pesada do que eu imaginei. Sem
surpresa, ele a ergue com uma mão só.

— Você vai para uma colônia de férias?

— Engraçadinho. — Rolo os olhos. — Não quis esquecer nada.

Olho sobre o ombro quando ele abre o porta-malas do carro, e só agora


me dou conta de que não é a picape, mas sim uma BMW preta, que deve
custar o equivalente à hipoteca da casa dos meus pais. Pisco, tomando um
choque de realidade.

— Você é rico? — Quebro o silêncio.

Ele dá de ombros, parecendo meio sem jeito.


— Meus pais são.

Faz sentido. Evan não trabalha, só se dedica ao hóquei e anda em


carros caros. Por que não liguei os pontos antes? Nós entramos no
automóvel depois que Sutton fecha o porta-malas. Coloco o cinto de
segurança e começo a mexer no rádio. Algum metal começa a explodir dos
alto-falantes.

— Não imaginei que você ouvia esse tipo de coisa. — Esboço uma
careta.

— Preconceitos, cenourinha?

— De forma alguma.

Deixo a música tocar e coloco o endereço no GPS do carro. Acho que


nunca entrei em um automóvel tão confortável quanto esse antes.

— O que houve com a picape?

— Tive que mandar para o conserto. Deu algum problema no motor


ontem.

— Que droga.

Bocejo inesperadamente e só então me dou conta do quanto estou


cansada. Acordei cedo para as aulas antes do recesso, depois fui para a
escola primária e arrumei a mala. Agora, no final da tarde, sinto o peso do
cansaço começar a abater os meus ombros.

— Acho que vou tirar um cochilo. — Me ajeito no banco e cruzo os


braços em frente ao corpo, na tentativa de encontrar uma posição mais
confortável.

— Tudo bem.

— Vai ser só por alguns minutos, prometo…

Minha voz vai morrendo conforme eu fecho os olhos. Droga, já falei


que esse carro é muito confortável? Pego no sono mais rápido do que eu
esperava e durmo durante as três horas que levam para chegar até Green
Lake.

Quando desperto, me sinto desorientada. Esfrego os olhos e me


endireito no banco. O crepúsculo no céu já passou, agora tudo é uma
escuridão sem fim incrustada de estrelas. Olho para a janela. A paisagem
avança rapidamente e passamos pela placa que diz "bem-vindos a Green
Lake", que poderia muito bem ser a imagem de um cartão postal.

— Achei que você nunca fosse acordar.

Viro o rosto em sua direção. Suas mãos estão ao redor do volante e os


olhos fixos no painel, com atenção no caminho.

— Eu estava mais cansada do que pensei.

— Percebi, não quis te acordar nem mesmo quando quase errei o


caminho.

Sopro um riso fraco. À medida que nos aproximamos do coração de


Green Lake, sinto uma sensação inquietante. Estou ansiosa para ver a minha
família e, sobretudo, saber o que meus pais vão achar de Evan.

A casa dos meus pais entra no meu campo de vista alguns momentos
mais tarde. Evan diminui a velocidade do carro conforme nos
aproximamos. Ele estaciona onde indico, perto da cerca branca que ladeia a
propriedade. Aqui, os vizinhos mais próximos ficam a uns trezentos metros
de distância, então tudo está silencioso quando descemos na estrada de
terra.

— Se você fizer alguma piada sobre eu ser caipira, te deixo dormir do


lado de fora — aviso, e ele esboça um sorriso torto.

— Seu segredo está a salvo comigo, cenourinha.

— Vai se ferrar.

Ele ri, então abre o porta-malas e tira as bagagens de lá de dentro. Só


agora percebo que Evan trouxe apenas a mochila que usa para os treinos de
hóquei. Não sei como os homens conseguem ser tão práticos.

Começamos a andar até a varanda, que range suavemente quando


pisamos nos degraus. Há cadeiras de balanço aqui fora e muitos vasos de
plantas que minha mãe cultiva. Bato na porta, sentindo um pouco de
nervosismo. Ela é aberta um momento depois e Lily surge no campo de
visão. Está usando um macacão jeans, os cabelos ruivos presos em tranças.
Mamãe me abraça com força, arrancando o ar dos meus pulmões.

— Querida! Que bom te ver. Achei que te buscaríamos na rodoviária.

— O Evan trouxe o carro — digo e ela me solta, como se tivesse se


lembrado que não estou sozinha.

Minha mãe vira o rosto para Evan, o analisando de um jeito que me


deixa envergonhada. Sei que ela o aprovou pelo brilho que atravessa o seu
olhar.

— Oi, Evan! Seja bem-vindo. Aposto que estão cansados, então


entrem logo.

— É um prazer conhecê-la, sra. Evergarden. Obrigado por me receber


— responde, calmo e educado como o habitual.

Então, entramos. Mamãe pendura nossos casacos e faz Evan largar as


bagagens no hall. A sala está como me lembrava: com a lareira acesa em
dias frios, o aroma das flores flutuando pelo ambiente e a iluminação baixa
e alaranjada trazendo o ar reconfortante de casa. Meus pais não são muito
chegados à tecnologia, então não temos uma TV. Há apenas uma vitrola no
centro do cômodo que deve valer uma nota hoje em dia.

— Scar, leva ele para o quarto de hóspedes.

— A gente não tem quarto de hóspedes — eu lembro, confusa.

— O seu quarto antigo. Você dorme com o Josh hoje.

— Aliás, onde está todo mundo? — pergunto, quando noto a ausência


do restante da minha família.
— Seu pai foi levar seus irmãos para assistir a um filme novo no
cinema. Eles saíram há algum tempo, então já devem estar chegando.
Enquanto isso, se acomodem. Estou terminando o jantar.

Dito isso, ela sorri para nós e vai para a cozinha. Agora, somos só eu e
Evan na sala. Me viro para ele, que parece deslocado.

— Sua mãe é muito bonita. Vocês parecem irmãs.

— Não fala isso na frente dela ou ela vai se gabar para sempre.

Sinalizo em direção à escada. Quando chegamos ao segundo andar,


abro a porta do meu antigo quarto, que está exatamente do jeito que deixei
antes de me mudar. As paredes estão repletas de fotografias de paisagens e
flores raras, a penteadeira de madeira branca que meu pai mandou fazer
para mim quando completei quinze anos ainda tem manchas de batom, e os
primeiros patins que comprei quando era criança estão pendurados na
moldura do espelho contra a parede.

Além disso, as plantas que eu cultivava parecem bem e saudáveis,


graças aos meus pais.

Espero que Evan faça algum comentário espertinho, mas me


surpreendo quando ele fica em silêncio, absorvendo todas as informações. É
como um santuário de lembranças.

Ele para na frente do espelho, tocando os patins arranhados, que


indicavam todo o esforço que tive para dominar a arte da patinação artística.
Desvio o olhar quando ele alcança a fotografia em cima da cômoda, onde
eu estava vestida para um campeonato. Não me lembro de ter deixado isso
aí. Minha mãe deve ter posto de volta depois que me mudei.

— Você é patinadora artística.

Não é uma pergunta, mas sim uma afirmação. Solto um suspiro, caindo
sentada na minha cama. Em seguida, o colchão se afunda ao meu lado. O
calor corporal de Evan me envolve antes mesmo que eu processe a sua
aproximação repentina.
— Eu era — corrijo, erguendo os olhos em sua direção.

As íris cinzentas se conectam às minhas e um lampejo de dúvida passa


por elas. Sei que ele deve estar esperando que eu diga o que aconteceu e o
que mudou para que eu parasse de patinar, mas continuo em silêncio.

— Por que você parou?

— É complicado.

Com a resposta breve, Evan entende o recado. Ele ajeita uma mecha
do meu cabelo de forma tão natural que nem reajo mais. É quase como se
tivesse se tornado o nosso normal.

— Nós devíamos oferecer ajuda para a sua mãe na cozinha.

Sou grata pela mudança de assunto e relaxo, sentindo uma espécie de


pressão sair dos meus ombros. No entanto, não deixo de me surpreender.
Logan nunca ofereceu ajuda para minha mãe. Na verdade, sempre tive que
até mesmo tirar o prato sujo dele da mesa.

— Ok, vamos lá, espero que você tenha boas mãos.

Evan dá um tapa na minha bunda quando me levanto. O som ecoa pelo


ambiente e eu tomo um susto, sentindo o músculo arder.

— Você sabe que eu tenho, cenourinha. — Ele se curva para dizer


perto do meu ouvido, antes de sair pela porta do quarto, deixando-me com
arrepios espalhados pelo corpo inteiro.
31

SE ALGUÉM ME dissesse que eu passaria a véspera do dia de Ação de


Graças com o capitão da equipe de hóquei na minha casa, enquanto ajuda
minha mãe a colocar uma torta de abóbora no forno, eu teria rido na cara
dessa pessoa e dito que ela é completamente louca.

Agora, vendo a cena se desenrolar bem diante dos meus olhos, chego a
conclusão de que a vida é imprevisível.

Fazemos planos, anotamos em cadernos, grudamos post-its nas


paredes como lembrete, criando toda uma linha do tempo do que esperamos
que aconteça, quando, na verdade, é o destino quem dita tudo. Por exemplo,
achei que eu viria para cá com Logan e sequer cogitei conhecer alguém
como Evan. Só que o universo embaralhou tudo e agora estamos aqui.

Não que eu esteja reclamando, longe disso. Sou grata por ter
conhecido Sutton, por ele ter me ajudado com a monitoria e tantas outras
coisas. Aprendi com ele mais do que eu achei possível. Sei que fui uma
idiota por acreditar em estereótipos, porém, o importante é que aprendi a
moral da história.

— Obrigada, querido — minha mãe agradece a Evan, tirando as luvas


anti queimaduras após fechar o forno com a torta lá dentro. — Agora, me
conta mais sobre você! Como conheceu a Scarls?

É claro que ela tinha que usar o meu apelido de infância. Josh me
chamava de Scarls quando era pequeno demais para conseguir pronunciar
Scarlet. Acabou pegando entre a gente.

O jogador parece achar graça, mas ao invés de fazer uma piada,


responde:
— A gente se conheceu no programa de monitoria da CVU.

Percebo que Sutton acaba de conquistar o coração da minha mãe. Ela


olha para ele como se fosse o novo presidente dos Estados Unidos. O pior é
que nem posso culpá-la. Se Lily soubesse das outras qualidades de Evan…

— Você foi o monitor dela, então? — Mamãe me lança um olhar que


evidencia: por que não me contou que ele era um gato? Em seguida, se
volta para Evan, que está casualmente apoiado contra a bancada da cozinha.
— Fico feliz que Scarlet esteja em boas mãos.

— Ai, meu Deus. Mãe, já chega do interrogatório — ralho, cortando-a.


— Evan vai se assustar se continuar fazendo muitas perguntas.

— Que nada — o jogador responde, com calma. — Estou gostando de


conversar com a sra. Evergarden.

— Pode me chamar de Lily, não tem problema nenhum.

Ótimo, já viraram melhores amigos. Antes que mamãe possa continuar


a me constranger, ouço a porta da frente abrir. Josh é o primeiro a entrar na
cozinha. Eu o puxo para um abraço, ignorando os resmungos sobre estar
sendo asfixiado. Solto o aperto, mas mantenho minhas mãos em seu ombro
enquanto inspeciono o rosto dele. Diferente de mim, Josh não tem sardas, e
seu cabelo ganha um tom acobreado desde o último verão. A pele continua
pálida e ele parece alguns centímetros mais alto.

— Meu Deus, estamos do mesmo tamanho? — Pisco, em choque. —


O que você está tomando?

— Comecei a fazer academia semana passada. — Dá de ombros, como


se isso explicasse tudo.

Mamãe ri e dá dois tapinhas no ombro de Josh.

— Achamos que ele vai ficar mais alto que seu pai.

Por falar nisso, meu pai entra na cozinha no próximo momento, com
Daisy em seu encalço. Minha irmã caçula de seis anos está com um ar de
acadêmica, como se ela estivesse voltando de férias da faculdade e não eu.
O cabelo ruivo está preso em um rabo de cavalo, e ela empurra as armações
dos óculos para cima. Daisy parece feliz quando me vê e me dá um abraço
curto, mas logo sai correndo antes que eu possa dizer qualquer outra coisa
para praticar violino.

Thomas Primrose me dá um beijo na testa.


— É muito bom te ver, querida. Comprei rocambole de morango, está
na geladeira.

— Obrigada. — Lanço um olhar de soslaio para Evan, que está quieto


respeitando o meu momento de interação com minha família. Aposto que
papai sequer percebeu a presença dele, diferente de Josh, que o fita como se
ele fosse um mutante de três cabeças. — Pai, esse é o meu amigo da
faculdade, o Evan…

Sinalizo para o lado e meu pai arregala os olhos, como se só tivesse se


dado conta de sua existência agora. Ele se apressa para cumprimentá-lo,
dando aquele típico tapinha nas costas que os homens costumam fazer.

— Sinta-se em casa — Thomas diz, sorrindo.

— Obrigado por me receber, senhor. Gosto muito da sua filha.

Minhas bochechas ficam rubras, e mamãe me cutuca discretamente.

— Eu também gosto muito da minha filha. Ela é uma ótima pessoa. —


Papai esboça um sorriso amigável, contudo, percebo que ele ainda está em
dúvida se Sutton representa uma possível ameaça. — Agora se me dão
licença, vou assistir ao jogo dos Bruins.

Meu pai sai da cozinha, deixando apenas eu, mamãe, Josh e Evan.
Meu irmão resolve tomar uma atitude. Ele dá um passo para a frente e
estende a mão em direção ao jogador, sem esconder a desconfiança.

— E aí — diz, com a voz mais grossa.

— E aí, cara — Evan o cumprimenta.


— Você usa anabolizantes?

Antes que eu possa repreender Josh, Sutton gargalha e balança a


cabeça.

— Não. Isso é péssimo para o nosso corpo.

— E como tem todos esses músculos? Você é tipo aquele cara do clã
Zenin superforte que deixa todos os feiticeiros impressionados por não
fazer uso de energia amaldiçoada?

Não entendo nenhuma das palavras que acabam de deixar a boca do


meu irmão, mas provavelmente ele está divagando sobre um dos desenhos
que assiste. Coloco a mão em meu ombro e o puxo para perto.

— Por que você não leva as nossas bagagens lá para cima? Estão no
hall. Aproveita e testa sua força. Quem sabe um dia você não fique que nem
o Evan?

Contrariado, meu irmão sai da cozinha para fazer o que pedi. Lanço
para Sutton um olhar de fala sério. Ele dá de ombros, como se respondesse,
esse é o efeito que eu causo nas pessoas, não me culpe.

É verdade, não posso culpá-lo.

— Vocês querem algo para beber? — Lily abre a geladeira, mas nós
dois negamos.

— Vamos ficar um pouco lá fora — informo, já abrindo a porta da


cozinha que dá para o quintal.

Evan passa por mim e minha mãe murmura em concordância,


começando a lavar a louça acumulada na pia. Fecho a porta e enfio a mão
nos bolsos. Está tranquilo aqui, dá para ouvir o som das cigarras e o
farfalhar do vento. Noto que o olhar de Sutton está perdido no pneu
amarrado na árvore a poucos metros de distância.

— Você costumava se balançar nessa coisa?


— Sim. — Rio do olhar no seu rosto. — Desculpa se vocês, playboys
da cidade, não tiveram infância.

Evan solta um riso baixo e grave que sempre causa o mesmo efeito em
mim: arrepios e coração disparado.

— E o que mais você costumava fazer?

— Hum… — Penso por alguns momentos. — Ir até o centro de


patinação, pisar em poças de lama quando chovia e andar de trenó quando
tinha muita neve.

— Parece bom. Durante minha infância, meus pais me colocaram em


atividades extracurriculares. Tipo autodefesa, aula de violão e hóquei.
Olhando por esse lado, parece meio mecânico.

— Não se preocupe, quando nevar eu vou te empurrar em um trenó.

Evan gargalha mais uma vez. Meu Deus, gosto tanto desse som que me
assusta. Quero continuar fazendo-o rir.

— Tem um festival de inverno em Crystalville com uma competição


chamada corrida dos trenós. Acontece perto do Natal. A gente pode ir.

— Claro, seria incrível — respondo, gostando da ideia.

No próximo momento, o som distante de música nos alcança. Demoro


para me dar conta de que é Daisy, com o violino. Caramba, como foi que
ela ficou boa nisso tão rápido? Estou sem palavras enquanto ouço a
melodia. Sutton parece tão intrigado quanto eu.

— É a sua irmã caçula? — pergunta, surpreso.

— Pelo visto, sim.

— Quer dançar comigo?

A pergunta me pega de surpresa. Evan estende a palma em minha


direção e me sinto uma adolescente de quinze anos quando aceito. Me
puxando para si com gentileza, ele coloca a mão livre na minha cintura.
Então, começamos uma valsa.

As células do meu corpo parecem vibrar com o toque quente. É


engraçado como certas pessoas têm um tipo de efeito em nós. Nunca me
senti desse jeito antes, o que me assusta. As pontas dos dedos do jogador
pressionam com mais força o fim da minha coluna, e ele gruda o tronco no
meu.

A ponta de seu nariz se arrasta pela curva do meu pescoço, e a


respiração faz cócegas ao bater contra minha pele.

Estremeço.

— Você e esse seu cheiro que me deixa maluco.

Agora, estamos nos encarando. As íris cinzentas parecem mais escuras


que o habitual em meio a noite; as pupilas estão dilatadas e as narinas
inflam quando ele respira profundamente. Entendo o desejo crescente
refletido em seu rosto. Meu Deus, parece que tem anos desde que fizemos
sexo.

O luar reflete em nós dois, projetando sombras ao nosso redor


conforme Evan e eu nos movemos minimamente ao som do violino que
corta a noite. Paramos de dançar quando sua boca roça em minha têmpora.
Ergo o queixo, desesperada por qualquer tipo de contato mais profundo.

Sutton respira fundo.

— Você me apresentou como seu amigo.

Limpo a garganta.

— Eu sei.

— Amigos não fazem o que estamos fazendo agora.

— Também sei disso.


— Então, você quer arriscar? — Evan arqueia as sobrancelhas em
minha direção. — Vai ficar confuso para sua família se eles nos virem aqui.

Uma parte minha quer dizer que não se importa, que não estou nem aí
para o que meus pais irão pensar disso tudo, mas não quero me precipitar e
ter que rotular o que temos. Meus pais nunca vão entender o que é uma
amizade com benefícios e, para ser sincera, nem sei se essa merda existe
mesmo. Talvez seja só uma forma de se entregar sem peso na consciência.

Então, tomo a decisão certa. Me esquivo dos braços de Evan no


momento em que a porta da cozinha é aberta. Josh enfia a cabeça na frecha,
avaliando o espaço entre mim e o jogador. Meio desconfiado, ele diz:

— É melhor vocês dois entrarem, vamos comer torta agora.


32

ESTOU SENTADO NA ponta do sofá, a um Josh de distância de Scarlet.

Sei que ele fez questão de se sentar entre nós dois propositalmente, e
nem posso culpá-lo. Na verdade, admiro o esforço que ele está fazendo para
protegê-la. Sou o estranho aqui, no meio de sua família. Não dá para culpá-
lo por essa reação, já agi da mesma forma com a minha irmã gêmea.

A questão é que, nós, irmãos, reconhecemos as garotas especiais que


elas são e fazemos de tudo para que babacas não as destruam. Por mais que
não seja a minha intenção machucar Scarlet, Josh tem todo o meu respeito.

Seguro a garrafa de cerveja sobre o joelho esquerdo. Após


devorarmos a incrível torta de abóbora da sra. Evergarden, nos reunimos na
sala. O pai de Scarlet está do outro lado do cômodo, sentado em sua
poltrona, enquanto parece prestes a ter um ataque, o que acho engraçado.
Toda vez que a equipe dos Bruins erra um passe ou comete uma falta, ele
começa a murmurar e seu rosto fica vermelho.

— Pelo amor de Deus, que coisa horrorosa — ele diz, no momento em


que o time adversário marca mais um ponto.

Não posso deixar de soltar uma risada baixa, que disfarço dando um
gole na minha cerveja. Scarlet lança um olhar repreensivo para o pai.

— Pai, calma. É só um jogo. — Sei que as palavras da ruiva são


inúteis.

Ele ignora o comentário e mantém os olhos fixos na tela de um jeito


quase perturbador. Penso em como as pessoas podem ser tão diferentes em
suas paixões. Para mim e o sr. Evergarden, um jogo de hóquei é quase uma
questão de vida ou morte; para Scarlet, é apenas uma distração comum e
não necessariamente agradável.

E Josh? Não sei o que ele acha de hóquei, mas pelo foco em jogar
Mario Bros em seu videogame portátil, concluo que ele também não se
importa.

Depois que o jogo acaba e os Bruins perdem feio, Thomas solta um


suspiro alto.

— Eu devia ter focado na minha carreira no hóquei quando era apenas


um universitário.

— O senhor jogava? — Não consigo conter a surpresa.

— Sim, fui draftado, mas advinha só o que aconteceu… Scarlet!

A ruiva solta uma bufada alta. O sr. Evergarden olha para ela com um
tipo de carinho que não consigo compreender. Meu pai nunca olhou assim
para nenhum de nós. Era como se ele esperasse que os filhos tivessem sido
fabricados para seguir uma ordem cronológica para o sucesso e um futuro
perfeito, assim como provavelmente o meu avô o ensinou. De repente,
começo a entender o conceito de uma família verdadeira. O que Scarlet tem
aqui é inestimável.

— Como se fosse culpa minha. Vocês que cometeram o deslize. — A


garota cruza os braços em frente ao peito e, apesar da postura defensiva e o
tom de voz seco, os cantos de sua boca tremem enquanto ela tenta não rir.

— Não foi um deslize, foi uma benção!

Nesta hora, a mãe de Scarlet entra na sala, juntando-se à conversa. Ela


se senta no braço da poltrona onde está o marido.

— A Scarlet não foi planejada, ficamos apavorados quando


descobrimos a gravidez. Thomas desmaiou. — Lily dá uma risadinha. —
Mas, depois que ela nasceu, entendemos que era para ser. Me apaixonei por
Scar assim que a vi pela primeira vez. Minha filha é encantadora, não é
mesmo, Evan?
Olho para Scarlet, que está tão vermelha que poderia muito bem-estar
camuflada em seu cabelo.

— Ela é muito encantadora mesmo.

— Mãe! Por que você tem que ser assim?

— Estou sendo normal.

Thomas ri.

— Pegue leve com sua mãe, querida. Ninguém aqui mentiu. Você é,
sim, linda. Temos que reconhecer os fatos. — Ele se levanta, ajeitando o
suéter gasto. — Agora, se me dão licença, vou dormir. Acho que já está
tarde. — Aponta para o filho caçula, tão quieto que por um momento me
esqueci que ele estava aqui o tempo todo. — Josh, larga esse videogame e
vai tomar banho.

— Mas ainda não é Ação de Graças. — Josh murmura, sem tirar os


olhos da tela enquanto esmaga os dedos nos botões.

— O quê? — Scar questiona, confusa. — O que tem a ver não ser dia
de Ação de Graças?

— Não tem uma ocasião especial para eu tomar banho. Posso tomar
amanhã cedo, aí vai fazer sentido porque será dia de Ação de Graças — diz
com tanta convicção que quase compro o seu argumento.

— Josh, estou falando sério — Thomas volta a dizer, com tom de voz
mais firme. — Suba e tome um banho. E não esqueça de escovar os dentes.

Contrariado, Josh desliga o videogame portátil e sobe as escadas


resmungando. Os pais de Scarlet nos desejam boa noite e vão em seguida.
Agora, há apenas nós dois aqui.

Scar se põe de pé, parecendo meio sem jeito diante do meu escrutínio.

— Se quiser tomar banho, tem toalhas limpas na cama. Os lençóis


estão no armário superior e vou estar dormindo no quarto ao lado, com
minha irmã caçula, caso precise de algo.
— Você. — Deixo escapar.

— Eu?

— E se o que eu precisar for você? — pergunto, atento a cada uma de


suas reações.

Scarlet pisca e fica estática no lugar, como se não esperasse que eu


fosse dizer algo do tipo. Para ser honesto, nem mesmo eu sei o que estou
falando. Contudo, sinto que vou morrer se passar mais uma noite sem ela.

— Isso não. Boa noite, jogador.

Ela parece se divertir com a resposta, conforme sobe as escadas.


Depois de alguns momentos, vou para o antigo quarto de Scarlet. Isso aqui
é como uma droga para um viciado. O cheiro dela está por todo canto, o que
é engraçado, já que Scar não mora mais aqui.

Olho outra vez para a fotografia dela, com um collant verde de


lantejoulas. O seu sorriso me tira o fôlego. Não sei o que aconteceu para
que ela passasse a evitar a patinação, mas é uma pena, já que dá para
perceber que Scarlet amava isso.

Meu celular vibra no meu bolso e eu o pego.

Scarlet: Não tranca a porta.

O texto enigmático me faz arquear as sobrancelhas.

Evan: Por quê?

Scarlet: Apenas não tranque. E sem mais perguntas.

Scarlet: Boa noite, Evan :)

Então, as luzes da casa se apagam definitivamente e eu também


desligo o interruptor do quarto, mergulhando no breu e silêncio sepulcral.
33

O ROSTO DE Evan é impagável quando me esgueiro para dentro do meu


antigo quarto no meio da noite.

A verdade é que não sei ainda o que estou fazendo, mas quero passar a
noite com ele, ainda que seja arriscado fazer isso na casa dos meus pais.

Demorei mais que o previsto já que precisei esperar que Daisy pegasse
no sono. Para completar, tive que sair na ponta dos pés para evitar que ela
acordasse no meio do percurso.

A penumbra preenche o quarto, mas as janelas estão abertas, então o


luar e as lamparinas do lado de fora iluminam o suficiente para que eu
possa enxergar o rosto de Evan. A surpresa em seus olhos é substituída
lentamente por aquela fagulha de desejo que já é familiar para mim.

Sem camiseta e sentado na ponta da cama, Sutton não protesta quando


eu monto em seu colo, roçando a boca na dele e sussurrando um “oi”. Ele
me segura e acaricia uma das minhas pernas desnudas.

— Scar… O que é isso? — pergunta, baixo o suficiente para que


apenas eu escute.

— Só queria te ver. Vou ficar um pouco e depois sair, tudo bem?

— Scar…

— Só vamos nos deitar, ok?

O impasse nos olhos dele é nítido. Nem mesmo eu sei se acredito no


que acabei de dizer. Evan é alguém responsável, e isso me instiga. Quero
ver até onde ele consegue resistir a isso aqui. Cedendo, ele deita e me puxa
para si. A cama é grande o bastante para nos acomodarmos. Sutton
descansa a mão nas minhas costas, e é o suficiente para que eu comece a
sentir o sangue correr feito lava nas veias.

Mudo de posição, e giro de forma que minhas costas fiquem


pressionadas contra o peitoral de Evan. Quem estamos tentando enganar?
Nós dois sabemos que não vamos resistir. A ereção roçando em mim é uma
prova disso. Quase derreto quando os dedos de Evan sobem a bainha da
minha camisola e vagueiam pelo interior da minha coxa. Ele nem precisa
colocar a calcinha de lado para sentir toda a umidade escorrendo.

Acho que nunca senti tanto desejo quanto agora e mal nos tocamos
ainda. Evan respira pesadamente contra a curva do meu pescoço e então
diz, num tom de voz quase inaudível:

— Levanta a perna.

— Evan… — Engasgo com meu próprio ar quando ele segura o meu


joelho e puxa para cima.

— Fica quietinha.

A calça dele despenca no chão, e a ponta do seu pau roça na minha


entrada. Ai, meu Deus. Acho que nunca estive tão molhada antes. Evan
arrasta a glande úmida por minhas dobras, indo e voltando antes de me
penetrar. Ele recua e planta um beijo no meu ombro que me arrepia por
inteiro, em seguida, volta a repetir. Ficamos alguns segundos assim, até que
enfim a tortura cesse, e ele me preencha completamente, bem devagar. Sua
mão tampa minha boca quando quero gemer. Choramingo, meus olhos
lacrimejarem.

— Não queremos acordar sua família, hum? — Engulo o som e fico


calada. — Boa garota.

Como algo pode ser tão bom? Evan mexe os quadris, me penetrando
por trás. Não há nenhuma barreira entre nós, o que percebo tardiamente ser
um erro, já que estou cada vez mais viciada no seu toque. Nunca mais quero
transar com ele de camisinha. Isso aqui ultrapassa todos os níveis. Achei
que eu sabia o que era sentir prazer antes de transar com Evan, mas percebo
que estava completamente enganada.
O som da pele batendo contra a pele é abafado. Sutton mete lento e
preguiçoso, segurando meu joelho com força naquele ângulo em que
permite que ele me penetre mais fundo. Segurando meu queixo, ele vira
meu rosto em sua direção e me beija.

No entanto, percebo que Evan está se contendo. Seus músculos


tremem por não poder ir rápido demais, já que a cama com certeza vai fazer
algum tipo de barulho e estamos sendo cuidadosos, porém, não parece o
suficiente. Como se lesse os meus pensamentos, Sutton se afasta e se
posiciona entre minhas pernas, permanecendo de joelhos enquanto volta a
me penetrar.

Agora, estou esparramada pela cama e Evan segura os meus quadris.


Sua mandíbula está travada quando ele dá a primeira investida no novo
ângulo. Agarro com força o lençól abaixo de mim, porém, ainda não é o
suficiente. Sutton se deita sobre mim, e enrolo as pernas ao redor de sua
cintura, mudando para a pose tradicional.

Segurando minhas mãos sobre minha cabeça, Evan entrelaça os nossos


dedos conforme volta a me penetrar. O suor já começou a acumular entre
nossos corpos há algum tempo. Com a iluminação quase inexistente, seus
olhos estão tão escuros e as pupilas tão ampliadas que parecem dois
abismos.

Abro a boca para gemer seu nome, mas tudo o que sai é algo
ininteligível. A sensação começa a se arrastar pelo meu corpo. O
formigamento invade meu ventre, minhas pernas começam a tremer e sinto
o estremecer familiar antes do orgasmo. Meus lábios se abrem em um grito
mudo e eu espasmo violentamente sob Evan, pulsando ao redor do seu
membro enquanto mordo o ombro dele com força.

Sutton chega lá um momento depois.

Evan respira fundo, os músculos endurecidos de seu corpo forte se


contraem. Ficamos imóveis, os olhares conectados enquanto tentamos
recuperar o fôlego. Ele captura a lágrima solitária que escorre por minha
bochecha, e um vinco se forma entre seu cenho.

— Por que está chorando? — pergunta, o tom de voz rouco e baixo.


— Não estou. Foi só… muito bom — respondo, envergonhada.

Então, ele fica em silêncio e me puxa para junto do seu peitoral.


Escuto o compasso de seu coração voltar ao normal e solto um suspiro feliz
quando Evan começa a fazer movimentos circulares nas minhas costas. É
tão relaxante que minhas pálpebras cedem.

Evan me acorda pouco antes dos meus pais despertarem, já que acabei
adormecendo nos braços dele. Enquanto os jatos de água do chuveiro
escorrem pelo meu corpo, sou invadida pelas memórias da noite passada.

Percebo que enlouqueci. Em hipótese nenhuma eu teria feito o que fiz.


E, no fundo, me dou conta de algo: posso estar começando a gostar de
Evan. Sério, que péssima ideia trazê-lo para conhecer minha família, e que
ideia ainda mais estúpida transar com ele do jeito que transamos ontem à
noite.

Fecho os olhos com força, na tentativa de não pensar nisso pelo


restante do dia. Na hora do café da manhã, todo mundo se encontra reunido
na mesa. Percebo que minha mãe está se esforçando. Há uma cesta de pães
artesanais, queijo que ela mesma produz, geleias, bolo e torradas. Começo a
me servir, evitando olhar para Evan. Segundos se passam quando papai
corta o silêncio:

— Então, Evan, o que você está cursando?

A pergunta parece inofensiva, mas sei que Thomas entrou no seu modo
de análise. Ele fez a mesma coisa com o Logan quando começamos a
namorar oficialmente, questionando a ele sobre para o futuro e seu
desempenho acadêmico. Tenho vontade de rolar os olhos.

— Estou prestes a me formar em História — revela, e nesta hora ergo


o olhar. Meu pai parece impressionado. O jogador lança um breve olhar em
minha direção antes de continuar: — Pretendo jogar hóquei
profissionalmente. Lidero a equipe da universidade no momento.

— Sério? Que fantástico! Você devia ter dito ontem. Teria te mostrado
o disco exclusivo de 1999 dos Bruins que comprei no eBay.

— O que é eBay? — Josh pergunta, com a boca cheia de comida.

Minha mãe começa a repreendê-lo, enquanto meu pai e Evan seguem a


conversa sobre hóquei. Lanço um olhar para Daisy, que está girando a
colher dentro da tigela com cereal e leite há algum tempo. Quando Josh
termina de comer e anuncia que vai jogar bola na casa do Hampton, nossos
vizinhos, minha irmã também se levanta, aproveitando a confusão para sair
da mesa.

Enfio o último pedaço de torrada na boca e a sigo para o andar de


cima. Daisy está no seu quarto, sentada na cama ao lado do violino, mas, ao
invés de sua aura alegre de musicista, há ombros caídos e uma expressão
triste.

— Ei. — Me aproximo. — O que houve?

— Acho que não sou boa o suficiente. Não estou conseguindo tocar a
música nova que a professora passou na semana passada.

Eu rio, aliviada que não seja um problema tão sério.

— Faz só uma semana, Daisy. No acha que pode estar se cobrando


demais? Sei que você gosta de tocar violino e está empenhada em ser boa,
mas tem que aprender a respeitar o processo. Sua evolução já é
surpreendente, e tenho certeza de que um dia você será mais reconhecida
que o Mozart!

Os olhos dela brilham em minha resposta.

— Acha mesmo?

— Claro que sim. Temos muito orgulhoso do seu talento. Ontem te


ouvi praticando. Não se preocupe, ok? Daqui alguns dias você vai estar
dominando a música nova.

— Tudo bem, vou praticar mais.

Dou um beijo em seu rosto antes de levantar e voltar lá para baixo.


Tenho medo do que meus pais possam estar conversando com Evan. No
entanto, fico ainda mais aterrorizada quando vejo os três rindo na mesa com
o álbum de fotos da família aberto. Roubo o livro e me afasto depressa,
indo para a sala. Meu pai corre atrás de mim, ficando rodopiando pelo sofá
enquanto tento impedi-lo de mostrar minhas fotos de adolescente rebelde
para o jogador.

— São só fotos! — Meu pai diz, em meio aos risos.

— Isso é constrangedor!

Estou envergonhada, é verdade, mas não posso deixar de dar risada.


Fico ofegante e desisto, largando o álbum sobre o sofá. Evan permanece
encostado no batente, enquanto me observa com diversão. Há quanto tempo
ele está ali?

— Bom, podem continuar com a sessão de humilhação. Vou tomar um


ar fresco. — Saio pela porta da frente.

Não fico surpresa quando, um segundo depois, ouço a porta se abrir e


passos soam atrás de mim na varanda. Evan se aproxima e para do meu
lado.

— Você tá estranha.

Sem mais delongas.

— Ok, eu me assustei um pouco ontem à noite — admito, em meio a


um suspiro.

— Por quê?

Arrisco olhar para Sutton. O rosto dele está mais sério e intimidador do
que nunca. Limpo a garganta, me sentindo patética.
— Não sei. Pareceu…. que estávamos cruzando algo. Alguma barreira
invisível.

— Scarlet, nós fizemos sexo como sempre. Não precisa ficar com
medo. É normal sentir receio porque nós não temos uma relação. Se quiser
parar, vou entender.

— Você quer parar? — Devolvo a questão, na defensiva.

Evan não hesita um segundo.

— Não.

— Tudo bem. — Solto o ar que nem sabia que estava prendendo nos
pulmões. — Não vamos parar.

Ficamos em silêncio pelos próximos segundos. Observo as nuvens


agrupadas no céu azul, a grama verde e o vento frio que circula entre nós.
Até que uma ideia ilumina a minha mente e me viro para Sutton,
determinada.

— Vou te mostrar um lugar.


34

O LUGAR QUE Scarlet me mostra fica longe de sua casa, então saímos
com a BMW.

Fico com a sensação de que ela está tentando me mostrar algo, então
apenas sigo para o endereço que ela passou sem nem pestanejar. Quero
conhecê-la de verdade, não apenas o seu corpo.

Paro o carro em uma rua pouco movimentada assim que o GPS indica
que chegamos. Olho para Scarlet, que está mordendo o lábio inferior
nervosamente. Estamos em frente a um prédio velho e gasto. Na fachada, dá
para ler os dizeres “rinque e centro de patinação”. Surpreso, espero que a
ruiva diga algo.

Ela tomba a cabeça contra a janela e respira fundo.

— Quer ir embora? — Corto o silêncio.

— Agora que já estamos aqui? De jeito nenhum. Bom, vamos fazer


isso.

Então, saímos do carro e atravessamos a rua. É engraçado que a cidade


pareça parada mesmo no dia de Ação de Graças. Na verdade, me
surpreende que um lugar abandonado como esse esteja funcionando hoje.
Passamos pela porta, que está meio emperrada, e entramos na recepção
vazia. Há um senhor cochilando numa cadeira que desperta com o chiado
do metal enferrujado.

— Sabia que um dia você voltaria para cá. — Semicerra os olhos para
Scarlet, que cora. — Por algum motivo, você é a única que sempre
acreditou nesse lugar. — Ele desliza uma chave pelo balcão. — Podem
abrir o armário.
— Obrigada.

Pegando a chave, Scar e eu passamos pelo arco que dá para o rinque. É


grande, mas dá para perceber que o lugar não passa por reformas há algum
tempo. A ruiva abre uma porta à nossa esquerda, onde estão alguns pares de
patins empoeirados. Por sorte, acho um que me sirva.

Depois que os calçamos, sou o primeiro a entrar na pista, equilibrando-


me sob as lâminas. Scarlet precisa de um incentivo, então estendo a mão
para ela. Seus olhos faíscam com um déjà-vu; “eu prometo não deixar você
cair”.

Com os dedos entrelaçados, eu a puxo e nós começamos a patinar.

— Eu passei quase a minha adolescência inteira neste lugar. — A ruiva


esboça um sorriso nostálgico no rosto. — Era tão bom.

— Só tinha você aqui?

— Na maioria das vezes, sim. Carl, o senhor da recepção, me deixava


praticar mesmo quando estava fechado. Ele é um homem muito legal.

— E o que aconteceu? Por que você parou?

Sei que estou entrando em um território proibido, mas quero entender


qual o medo que a bloqueou. Como imaginei, minhas palavras fazem ela
murchar.

— Esquece. Não precisamos falar sobre isso.

— Não. — A ruiva interrompe, enquanto continuamos patinando em


círculos lentos. — Eu te trouxe aqui porque queria que você soubesse.
Cansei de me esconder.

— Não quero que se sinta pressionada.

Scarlet dá uma risadinha.

— Não estou me sentindo pressionada, Evan. É justamente ao


contrário. Me sinto tão confortável com você que quero te contar coisas que
nunca disse para ninguém antes. — Ela suspira. — Mas agora, não. Quero
tentar algo.

— O quê? — pergunto, embora esteja um pouco confuso com a


mudança de assunto.

— Quero ver se ainda consigo fazer alguns movimentos.

Scarlet faz uma série de alongamentos e depois se distancia de mim,


pegando impulso para executar um daqueles giros super complexos no ar,
cujo nome desconheço. Ao aterrissar, vacila brevemente, mas logo recupera
o equilíbrio antes de cair.

Em seguida, ela retoma seus movimentos. Fico parado no meio do gelo


como um idiota, observando-a patinar. Seus movimentos são graciosos,
algo que nunca vi antes, nem mesmo com a equipe de cheer.

A ruiva é uma força da natureza. Ela se lança em uma sequência de


saltos e piruetas, como se houvesse uma música que só ela ouve, guiando
cada um de seus passos e movimentos. Quando ela para, respirando
pesadamente, me lança o sorriso mais lindo de todos.

— O que achou? — questiona, sem fôlego.

Quero beijá-la.

Quero muito beijá-la.

Que se foda!

Corto a distância entre nós conforme patino até ela e seguro seu rosto
com as mãos. Ela mal tem tempo de reagir antes que eu comece a beijá-la.
Minha boca se move contra a sua em um desejo sem fim.

Inclino mais o meu corpo em sua direção, sentindo seu corpo pequeno
se derreter com meu toque. Nossas línguas se chocam, assim como nossos
torsos. Quero beijá-la para sempre.

Começo a ficar sem ar. No entanto, só paro quando é Scarlet que


precisa respirar.
Ela ri, me olhando com as íris verdes confusas.

— O que foi isso?

— Isso sou eu não respondendo por minhas atitudes depois de te ver


patinando linda para caralho.

Scarlet ri de novo. Meu novo som preferido. Mas, de repente, ela fica
séria e solta um dos seus suspiros longos.

— Obrigada, Evan. Agora, preciso te contar o que aconteceu. — Ela


respira profundamente e dá um sorriso triste. — Com quinze anos, eu tinha
uma melhor amiga chamada Lila, que veio a falecer. Por muito tempo me
culpei pela morte dela…

Ela fecha os olhos com força, parando de falar. Coloco a mecha


rebelde de cabelo ruivo para trás da orelha de Scarlet, que estremece com o
contato.

— Não é culpa sua.

Ela me ignora.

— Vamos nos sentar.

Em silêncio, me sento com ela na arquibancada. Então, Scarlet começa


a contar a narrativa que me deixa reflexivo pelos próximos momentos.

— Foi na noite do baile de inverno, três anos atrás…


35

passado

— NÃO ACREDITO QUE você ainda não beijou ele! — A voz indignada
de Lila me faz desviar o olhar para longe.

Já temos quase dezesseis anos e ainda não dei o meu primeiro beijo,
mas planejo mudar isso esta noite, no baile de inverno. Por isso, aceitei o
convite de Logan, um cara fofo da nossa turma. Para Lila, essas coisas
sempre foram mais fáceis. Ela já namorou antes e vai para o baile com o
Anthony, que é quase dois anos mais velho e o cara mais popular do
colégio.

— Não tive a oportunidade ainda — murmuro, enquanto coloco os


bobs no cabelo.

— Fala sério, você já rejeitou praticamente todos os caras da escola,


Scar. — Olho para Lila no momento em que ela revira os olhos. — Conta
outra.

Lila é linda, o tipo de beleza que para o trânsito. Seu cabelo castanho
longo, cortado na altura dos ombros, e os olhos azuis escuros lhe dão um ar
de mistério, como uma atriz de Hollywood. Além disso, os seios dela são
três vezes maiores que os de qualquer garota do primeiro ano. Nos
conhecemos desde os dez anos, quando começamos na escola de patinação
artística.

Tenho medo de beijar, é verdade. Talvez por causa do aparelho.


Sempre fiquei com a ideia de que, se alguém tentasse me dar um beijo,
ficaria preso a mim, como uma matéria que li uma vez num site teen sobre
uma menina que foi beijar o namorado e ele perdeu uma parte da boca. Lila
não entende isso, porque os dentes dela são perfeitos. Às vezes, quero ser
mais como ela, confiante e sem medo de nada. Noite passada, ela até fugiu
de casa pela janela para se encontrar com Anthony.

— O que acha? — minha amiga pergunta, diante do meu silêncio,


mostrando-me o par de brincos que planeja usar. O alívio por não termos
que falar sobre beijos que me inunda.

— Combinam com seus olhos.

— Você já vai colocar o vestido? — Ela se joga na cama e apoia a


cabeça em um dos braços. — Pensei que poderíamos nos atrasar um pouco.
Sabe, para ser charmoso.

Eu rio e largo os grampos que restaram em cima da cômoda.

— Não acho que seja charmoso. A gente vai deixar o Logan e o


Anthony esperando lá.

— E daí? Vai ser só por alguns minutos. Aliás, a espera vai valer a
pena.

Ela tem razão. Lila e eu compramos vestidos lindos em uma boutique


no centro de Green Lake. Economizamos o verão inteiro trabalhando em
uma loja de sapatos para conseguirmos comprá-los, já que nossos pais
nunca nos dariam roupas de duzentos dólares. Conseguimos até mesmo
comprar saltos novos. Esta noite foi planejada por nós duas por muito
tempo, para que tudo fosse perfeito. Ainda assim, estou com uma sensação
esquisita desde que acordei pela manhã.

Quando falei sobre isso com minha mãe, ela disse que eu
provavelmente estava nervosa com a noite do baile. E é verdade. No
entanto, o tipo de incômodo que sinto não tem nada a ver com isso.

Assim que ficamos prontas, descemos as escadas, arrancando gritinhos


de animação da minha mãe, que parece emocionada.

— Meu Deus, vocês estão lindas! Deixa eu tirar uma foto, façam poses
legais e sorriam.
No próximo momento, ela já está com a câmera em cima da gente, e
Lila entra na onda. Ela me puxa para perto de forma que nossos ombros se
tocam e coloca a mão na cintura com a maior naturalidade. Sorrio e tento
não parecer sem jeito ao seu lado. Os flashes disparam diversas vezes antes
que eu murmure para que mamãe se controle.

Meu pai já está no carro com o motor ligado. Minha mãe vai ficar para
não deixar meus irmãos mais novos sozinhos, e por isso nos deseja um
ótimo baile antes de sairmos. Nós nos agasalhamos porque faz bastante frio,
mas vamos tirar os casacos assim que chegarmos à escola. Papai liga o
rádio, e Hey Jude do The Beatles explode no automóvel enquanto observo
as ruas desertas. O céu de Green Lake aparenta mais escuro que o normal e
a temperatura mais baixa que o comum.

Chegamos vinte minutos atrasados, como Lila queria. Meu pai


estaciona no meio-fio lotado de carros e nós saímos às pressas para não
congestionar ainda mais o fluxo do trânsito. Mal olhamos para trás
conforme avançamos, o vento frio contra nossos rostos agitando os cabelos.
Talvez meus cachos estejam desmanchando, mas paro de me importar com
isso assim que avisto Logan me esperando na porta.

Deixo o casaco em um dos armários na entrada e vou na direção dele,


que congela assim que me vê. Ele começa a analisar meu rosto maquiado de
forma que faz meus olhos parecerem incríveis, e, depois, o vestido verde.
Ele solta um suspiro alto e arranca uma risadinha de Lila. Ela avisa para nos
encontrarmos no fim da noite ao se dirigir para seu próprio par, Anthony.

Agora, somos apenas Logan e eu, frente a frente.

— Você está linda — diz, o tom de voz tão baixo que quase não
escuto. Então, ele limpa a garganta e cora, ajeitando o cabelo loiro que já
está cheio de gel para mantê-lo no lugar. — Vamos?

Quando ele estende o braço para mim, aceito. Nós andamos por um
extenso corredor até entrarmos na quadra, que foi decorada especialmente
para o baile de inverno. A iluminação está baixa, com projetores que
lançam feixes de luz que dançam pelo espaço.
Meus olhos se deslocam para a banda da escola, que toca em cima do
palco montado. A pista de dança está um pouco cheia, mas não me importo
com isso. A hora da valsa ainda deve estar longe de acontecer. Logan me
fita para mim, parecendo nervoso.

— Quer um pouco de ponche?

— Seria bom.

Então, ele me pede para esperar um pouco e vai atrás da bebida. Fico
parada no meio do salão e começo a procurar por Lila e Anthony. Não
demoro muito até achá-los. Os dois estão no meio da pista, aos risos, muito
próximos um do outro. Acho que ela nem percebe o efeito que surte nas
outras pessoas. A maioria dos estudantes os observam, vidrados. Tenho
certeza de que Lila será coroada a rainha do baile, e tenho muito orgulho
dela por conta disso.
Alguns minutos se passam e Logan retorna, me entregando um copo.
Eu agradeço e, em seguida, dou um gole no ponche de frutas.

Nós ficamos um pouco sem jeito um do lado do outro. O conheço


desde o primário, e Logan sempre foi tímido. Seus pais têm uma quantidade
considerável de dinheiro, o suficiente para que ele tenha um carro aos
dezesseis anos. Fiquei surpresa quando, na semana passada, Logan me
chamou para o baile. Para falar a verdade, eu não estava a fim de vir.
Inclusive, neguei uma quantidade de convites de outros garotos. Meus
planos eram passar o dia inteiro praticando e fortalecendo meu equilíbrio
para a patinação artística.

Lila e meus pais disseram que eu precisava dar um tempo e ser


adolescente. O problema é que patinar é como respirar para mim. Não dá
para viver sem.

— Admito que fiquei surpreso quando você aceitou vir comigo ao


baile — Logan começa a dizer, me pegando de surpresa.

— Por quê?
— Você é a garota mais linda da escola, Scarlet. Pelo menos para mim.
E sei que outros caras te convidaram e você recusou… Fiquei tomando
coragem o mês inteiro.

Sinto um sorriso se formar em minha boca.

— Estou contente por ter vindo com você — digo, sendo honesta.

— Quer dançar?

Estou pronta para responder que não sei dançar esse tipo de música
quando a faixa é substituída por uma batida lenta e romântica. Sem fugir,
deixo com que ele me guie até a pista, uma das mãos apoiada na base de
minha coluna. Logan e eu começamos a dançar e, em um determinado
momento, ele se curva e sela nossos lábios. Segundos se passam até que o
garoto volte a me beijar, pedindo passagem para sua língua.

Tudo dá certo, para minha surpresa. A boca de Logan não fica presa no
meu aparelho e não paramos no hospital. Ao invés disso, deixo o medo de
lado e me entrego enquanto continuamos a dançar, vez ou outra nos
beijando.

Não sei explicar exatamente o que sinto, mas é novo. Agora entendo
aquela coisa que as pessoas dizem sobre borboletas no estômago.

Ao fim da noite, encontro Lila. Ela parece diferente. Está com as


bochechas coradas e um brilho novo no olhar. Peço um momento para
Logan e me aproximo dela.

— Vamos para outro lugar agora. Anthony vai levar a gente.

— Não acho uma boa ideia, Lila. Já liguei para meu pai vir buscar a
gente daqui meia hora. O que vou dizer para ele? E você nem esperou a
coroação…

— Não ligo para a besteira da coroação — minha amiga interrompe.


— Você vai com a gente ou não?
Mordo os lábios, em um impasse. Posso ficar aqui com Logan e
esperar meu pai vir me buscar, mas que tipo de amiga eu seria se deixasse
Lila sozinha esta noite? Conheço ela o suficiente para saber que é
impossível tirar algo de sua cabeça quando está convicta disso.

Outra vez, sinto aquela sensação esquisita.

— Ok, vou com você, mas espera eu me despedir do Logan.

Logan parece decepcionado quando digo que tenho uma emergência e


vou precisar ir embora. Dou um beijo rápido nele e então Lila me puxa pelo
braço, rindo enquanto andamos rapidamente pelo corredor. Acho que ela
bebeu um pouco de álcool. Faço uma careta para Anthony quando paramos
na frente dele e vejo o cantil de aço brilhar no bolso do seu terno.

— O carro do Dylan já tá lá fora. — Anthony sorri torto. — Vamos.

Dylan é um dos melhores amigos de Anthony, também muito popular


no colégio. A BMW parada no meio-fio está com o motor ligado e nós três
entramos no automóvel no mesmo momento em que o rádio anuncia a
iminente chegada de uma tempestade de neve. Dylan muda de estação e
ninguém comenta nada sobre isso.

— Vai devagar — murmuro, quando ele começa a pisar fundo, fazendo


os pneus derraparem.

Dylan finge que não escuta e aumenta a velocidade. Anthony e Lila


começam a rir, enquanto eu agarro o cinto de segurança, sentindo vontade
de mandá-lo parar o carro e me deixar descer.

— Lila. — Olho para ela. — Vamos voltar.

— Relaxa, Scar. Só vamos ver o céu estrelado no bosque, depois


voltamos, ok?
Fecho os olhos com força, desejando estar segura em casa. Quando
Dylan enfim para o carro, eu arfo, aliviada. Apesar de estarmos no fim do
inverno, esta parte de Green Lake permanece congelada. Assim que
descemos, começo a tremer, já que meu casaco ficou na escola.
Lila, Anthony e Dylan disparam pelas árvores, em direção ao lago.
Vou atrás, tomando cuidado para não pisar em falso em meio aos galhos e
folhagem.
Todos eles riem quando alcançam a margem do lago, com a superfície
lisa e cristalina. Antes que eu possa alcançar Lila, ela começa a andar sobre
ele. Meu coração quase para quando a vejo se sustentando nos saltos,
derrapando e lutando para ficar em pé.
— Lila, volta para cá! — Começo a ficar desesperada.

Não é confiável andar no lago quando o inverno está chegando ao fim.

— Deixa ela, Scarlet — Anthony resmunga, rindo junto com Dylan.


— Faz aquele lance do balé!

— Não é balé, é patinação artística — Lila retruca, fazendo uma


pirueta desleixada.

Então, ela perde o equilíbrio e cai. Os três gargalham, mas eu não vejo
graça na situação. Preciso tirar Lila de lá, então decido me aventurar,
tentando me equilibrar nos saltos, mas é quase impossível. Lila está um
pouco longe de mim, no meio do lago congelado. Ela tenta se levantar
novamente, e uma rachadura se espalha ao nosso redor. O estalo do gelo é
tão alto que faz com que todos fiquem em silêncio.

— Ok, acho que já chega. — Anthony intervém, o sorriso vacilando.


— Voltem para cá.

— Devagar — falo para Lila, que não parece mais tão feliz assim.

O gelo vacila outra vez e Lila cai de joelhos quando seu salto fica
preso. Sinto tudo estremecer abaixo de mim e ignoro Dylan e Anthony
falando ao fundo, porque só consigo ouvir meu coração retumbando. Então,
tudo acontece rápido demais. Um buraco se abre debaixo de minha amiga e
seu corpo some na água.

O grito que sai da minha garganta é estrangulado quando uma mão me


puxa para trás no momento que tento avançar. Caio para trás e percebo que
é Anthony quem está me segurando, impedindo-me de ir atrás de Lila. Me
debato em seus braços, mas desisto ao notar que a parte do lago onde eu
estava em pé já não existe mais. A superfície toda está repartida em
enormes pedaços de gelo.

E Lila? Não a vejo em lugar nenhum.

Começo a chorar enquanto os garotos ligam para a emergência. Não


sei quantos minutos se passaram, mas, de repente, há carros de polícia,
bombeiros e paramédicos por toda parte. Um oficial me arrasta pelo bosque
quando me recuso a sair de perto do lago.

Preciso encontrar Lila. Preciso encontrar Lila. Preciso encontrar Lila.

É a única coisa que se repete em minha mente, diversas e diversas


vezes.

À meia-noite em ponto, os bombeiros encontram o corpo de Lila.

Mas ela já estava morta há algum tempo.


36

— DEPOIS DA MORTE de Lila, parei de patinar. Toda vez que eu pisava


em algum rinque, lembrava dela. Passei a evitar a patinação porque meu
coração estava partido. Mas naquele dia, quando você disse que não me
deixaria cair… Você não faz ideia do peso das suas palavras…

Eu estava caindo esse tempo todo, quero dizer a Evan, e você foi a
primeira pessoa que se ofereceu para me segurar.

Meus olhos ardem e evito olhar para o rosto do jogador, com medo do
que ele deve estar pensando.

— Muita gente me culpou depois do acidente. Os pais de Lila me


disseram que eu nunca devia ter deixado ela entrar naquele carro. Eles
estavam certos. Eu devia ter ligado para meu pai, devia ter traído a
confiança da minha melhor amiga. Talvez ela me odiasse depois disso, mas
ainda estaria viva. Os pais de Anthony e Dylan deram um jeito de fazer com
que eles sumissem do mapa com o dinheiro. Eles se mudaram depois disso.
A imprensa não divulgou que os dois estavam no lago naquele dia, apenas
eu. É por isso que… tem gente em Green Lake que acha que eu tenho culpa
pela morte de Lila.

Agora, parece que um enorme peso está saindo dos meus ombros.
Nunca falei tão abertamente sobre a morte de Lila antes, nem me senti
segura o suficiente para isso. Mesmo com meus pais, eles só sabiam que eu
estava sofrendo, mas nunca souberam como poderiam tirar um pouco desse
sentimento.

Com o tempo, aprendi a lidar com as coisas.

Aceitei que Lila não voltaria e que ficaria triste se eu não tentasse
seguir em frente. Não precisava esquecê-la, e nunca poderia. Apenas
precisava encontrar um caminho.

— Scar, todos nós cometemos erros. Todos carregamos


arrependimentos. — Evan respira fundo, escolhendo cuidadosamente as
próximas palavras. — Mas o que você fez ou deixou de fazer não te define.
O que te define é a maneira como escolhe seguir em frente, como decide
viver a partir de agora.

As palavras penetram meu coração como raios de sol rompendo


através de nuvens escuras. Finalmente, ouso erguer o olhar e encarar seus
olhos. Vejo ali uma compreensão profunda e uma aceitação que eu nunca
esperei encontrar.

— Eu não sei se estou pronta para voltar a patinar — confesso, a voz


trêmula. — Ainda é muito doloroso.

— Você não precisa voltar se não estiver pronta. — Ele sorri, um


sorriso que é ao mesmo tempo encorajador e compreensivo. — Mas saiba
que, quando estiver, eu estarei aqui. Não para segurar você, mas para
patinar ao seu lado.

Pela primeira vez em muito tempo, sinto uma centelha de esperança.


Talvez, um dia, eu possa voltar a patinar. Não por obrigação, mas sim por
realmente querer isso. E, quando esse dia chegar, sei que não vou estar
sozinha.

— Obrigada, Evan. — Sinto as lágrimas escorrerem pelo meu rosto.


No entanto, desta vez são lágrimas de alívio.

Sutton apenas acena, um gesto simples, mas cheio de significado. Não


precisamos de mais palavras. Naquele momento, algo muda dentro de mim.
Sinto-me um pouco mais leve, um pouco mais forte, e talvez um pouco
mais pronta para enfrentar o futuro.

De repente, o rinque de patinação não parece mais um campo minado


de memórias dolorosas, mas um lugar onde novas lembranças podem ser
criadas.

Um passo de cada vez.


O resto do dia de Ação de Graças é melhor do que eu achei que fosse
ser. Depois que Evan e eu deixamos o rinque, voltamos para casa e
ajudamos meus pais com os preparativos. Para contribuir, fiz uma torta de
amora que, a propósito, não sobrou nenhum pedaço.

Ao fim do dia, ajudo minha mãe com a bagunça que resta na cozinha
enquanto os homens estão na sala e Daisy toca violino em seu quarto.

— Os pais de Logan ligaram hoje. — Lily quebra o silêncio.

— Por quê?

— Parece que o Logan não contou que vocês terminaram. Eles só


ficaram sabendo ontem, quando ele veio para passar o recesso. — Mamãe
solta um suspiro e esboça uma careta. — Acho que ele está arrependido. Os
Hall queriam que juntássemos as famílias para o feriado.

Sinto o estômago embrulhar só de imaginar me sentar ao lado de


Logan em um jantar de família.

— O que você disse?

— Contei o que Logan fez. Disseram que vão dar um jeito dele te
deixar em paz

Uau, que situação. Não imaginei que seria necessário até mesmo a
intervenção dos pais do meu ex-namorado para que ele parasse de ser uma
pedra no meu sapato. Mas, de qualquer forma, estou começando a me
acostumar com a imprevisibilidade da vida.

Antes que eu possa responder alguma coisa, o semblante assustado de


Sutton aparece no meu campo de visão. Ele sussurra as palavras “acidente”
e “mãe” e eu corro para pegar minhas coisas e acompanhá-lo.

Pelo visto, vamos retornar para Crystalville mais cedo que o esperado.
37

SAÍ IMEDIATAMENTE DE Green Lake depois de saber que minha mãe


está no hospital.

Os pais de Scarlet foram compreensivos e não se importaram que


tivemos que ir embora. Por mais que eu tenha tentado convencê-la a ficar e
aproveitar mais com sua família, a ruiva se negou a me deixar voltar
sozinho.

Agora, quase quatro horas depois dirigindo, estou estacionando em


frente ao hospital. Ainda não sei o que aconteceu, só que ela pediu um táxi
para casa após voltar da viagem e algum idiota bateu na lateral em que
minha mãe estava sentada. Essas foram as informações que Emery me deu
pelo celular, já que ela estava na cidade e eu não.

Scar aguarda na recepção, já que não é da família. Depois de conferir


se está tudo bem com Abigail, vou levá-la para o campus.

Assim que entro no quarto do hospital, vejo minha mãe deitada na


cama. Apesar da perna enfaixada e alguns arranhões nos braços, ela parece
bem, o que me faz respirar aliviado. Mas, mesmo assim, estou puto da vida.
Meu pai ainda não está na cidade, ficou em Chicago por conta do trabalho.
Como ele deixou minha mãe sozinha?

Emery está sentada do outro lado do quarto, numa poltrona perto de


Abigail. Elas param de conversar assim que me aproximo.

— Eu disse para você não contar para ele — Abigail murmura para
minha irmã. — Não precisava sair de onde estava para vir para cá, Evan.

— É claro que eu precisava. Como você está?


— Ótima. Só precisei fazer uma cirurgia no joelho. Fora isso, estou me
sentindo bem.

Semicerro os olhos para Emery.

— Desde quando você sabia disso?

— Hum, desde, tipo, sete da manhã. Mas a mamãe não queria


atrapalhar sua viagem e me fez prometer que só te contaria depois da
cirurgia. Foi bem rápido.

Solto um suspiro, me sentando na outra poltrona livre.

— Evan sempre foi um cavalheiro superprotetor, por isso eu não


queria preocupar ele com isso. Estou bem agora e irei me recuperar em
breve — Abigail diz, os olhos alternando entre nós dois. — Vocês deviam
voltar para o que estavam fazendo antes de vir para cá.

Eu e Emery negamos ao mesmo tempo.

— Mãe, fala sério, eu não vou te deixar sozinha no hospital, ainda


mais no dia de Ação de Graças! — Emery parece a um passo de explodir.
— Já chega dessa indiferença. Somos uma família e é isso o que a família
faz.

Minha mãe se cala. As palavras de Emery a pegaram de jeito e até


mesmo eu estou surpreso. Abigail olha para as próprias mãos descansando
em seu colo, parecendo envergonhada. Acho que é a primeira vez que vejo
minha mãe desta forma, como se alguém tivesse conseguido constrangê-la.

— Às vezes, não compreendo como Philip e eu tivemos filhos tão


maravilhosos. Sei que não suprimos as expectativas como pais. Na verdade,
entendo agora o porquê de vocês conseguirem enfrentar tudo… Vocês têm
um ao outro. — Há uma pausa longa. — Fiquei muito surpresa quando
soube que estava grávida de vocês dois. Gêmeos! Quem diria? Isso só prova
que vocês sempre estavam destinados a ser o braço direito um do outro.
Isso fortaleceu vocês. Tornaram quem são hoje em dia. É por isso que não
mereço que fiquem aqui, comigo. Muitas vezes eu não estive com vocês…
O silêncio que se segue é pesado, carregado de emoções. Estendo
minha mão e a coloco sobre a de minha mãe, que está gelada.

— Você fez o melhor que podia. Estamos aqui porque queremos estar.

— E não vamos a lugar algum — Emy acrescenta, fazendo os olhos de


minha mãe lacrimejarem.

— Tenho sorte de ter vocês dois.

Antes que possamos responder, a enfermeira entra no quarto para


conferir os sinais vitais de Abigail.

— Preciso deixar uma amiga no alojamento, ela ficou na recepção.


Depois volto para cá.

Me levanto, ignorando os olhares curiosos. Antes que as duas possam


me bombardear com perguntas, saio do cômodo. Depois de conferir que
minha mãe está bem, me sinto melhor.

Scarlet está sentada em uma das cadeiras na recepção e se levanta


quando me aproximo.

— Tudo bem com a sua mãe? — Há uma preocupação genuína no tom


de voz.

— Ela teve que fazer uma cirurgia no joelho, mas já está bem. Vou te
levar para o campus.

— Você não precisa me levar. Fica com a sua mãe e irei chamar um
táxi.

— Sem chances, cenourinha.

Ela suspira e eu passo meu braço ao redor de seus ombros, guiando-a


até o lado de fora. Depois que Scarlet me contou sobre seu passado, entendi
uma parte de seus medos e desconfianças. Me sinto estranhamente bem por
ela ter conseguido compartilhar comigo uma parte secreta de si.
Quando chegamos no campus, Scar solta um bocejo e desafivela o
cinto de segurança. Desço do carro para ajudá-la a pegar a mala. Depois,
ficamos parados frente a frente na calçada, o vento gélido chicoteando
nossos rostos e o cabelo. Scarlet respira fundo e abre um sorriso pequeno.

— Aqui estamos — diz, contemplativa.

— Aqui estamos. Obrigado por ter me deixado ir com você para Green
Lake. Sua família é incrível.

— Gostei que você foi — admite. — Obrigada por ter me ouvido.

— Obrigado por ter falado comigo.

Nós trocamos um último olhar significativo antes que Scarlet entre no


dormitório e eu volte para o hospital para ficar com minha família.
38

A VOLTA À rotina é brutal.

Estou enferrujado depois de passar os três dias do recesso mal-


acostumado com a comida da mãe de Scarlet e passar a noite em claro
jogando xadrez com minha mãe e Emery no hospital. Por mais que as
circunstâncias não fossem boas, consigo contar nos dedos quantas vezes ao
longo da vida compartilhamos um simples momento como aquele. No final
das contas, acho que todos nós estávamos onde deveríamos estar.

Agora, estou de volta ao treino com os Frozen Fury. Vamos para outras
conferências em breve, e mal posso esperar para dividir o rinque outra vez
com meus amigos. Porra, senti falta desses idiotas. Ficar fora por um jogo
me ensinou para caralho. Acho que aquela coisa que dizem que há males
que vêm para o bem é verdade.

O treinador Wilson apita. O som estridente ecoa pelo rinque de gelo,


me trazendo de volta para o presente.

— Vamos! Quero ver intensidade! — grita, com a voz firme.

Volto a focar na pista, ajustando a posição dos meus pés nos patins.
Meus músculos protestam, mas ignoro a dor. O suor começa a se misturar
ao ar gelado, e a adrenalina é lançada nas minhas veias. Estamos fazendo
um exercício de passes rápidos, com o disco sendo lançado de taco em taco,
ganhando velocidade na hora da troca.

— Mantenham o ritmo! Guardem a moleza para quando o Frozen Four


for nosso! — Wilson grita mais uma vez, deslizando ao longo da linha
lateral com os olhos vidrados em nossos movimentos, pronto para corrigir
qualquer deslize.
O treino segue intenso até que o treinador apita, encerrando-o. Wilson
dá dois tapas no meu ombro, sem medir a força.

— Quero ver energia na próxima conferência. — Ele olha no fundo


dos meus olhos.

— Sim, treinador.

Acho que o mínimo que posso fazer para me redimir é voltar com
tudo. Não posso me manter fora de forma. Caminho até o vestiário, o corpo
doendo de uma forma satisfatória. Começo a tirar a roupa encharcada de
suor em um dos bancos. Hunter logo desaba ao meu lado, com os cabelos
úmidos e o rosto corado do esforço.

— Que merda, meu corpo inteiro está doendo.

— Deixa eu adivinhar, você passou a noite farreando. — A ironia no


meu tom de voz é perceptível enquanto tiro os patins.

— Claro que não. Passei o dia todo com a Bella. Ela mal me deixou
dormir, cara. Ficamos ensaiando a coreografia daquele desenho de pôneis
coloridos. Juro, vou ter pesadelo com essa droga.

Não consigo conter o riso baixo que escapa pela minha boca. Hunter
pode ser um babaca irresponsável às vezes, mas é um exemplo quando se
trata da sua filha. Isso é uma das principais coisas que me faz respeitá-lo.

— Ela é persuasiva quando quer — acrescento, porque sei bem que


aquela mini coisa de cabelos loiros e olhos verdes gigantes consegue
arrancar tudo o que quer em um piscar de olhos. Outra vez, Bella me fez
comprar um estoque inteiro de sorvete de morango no mercado. Não me
pergunte como eu topei e achei que seria uma boa ideia; não sei o que
aconteceu.

— Tá com pressa? — Hunter indaga, quando me levanto, enfiando


tudo no armário de forma desleixada.

— Não — minto, indo até um dos chuveiros e ligando a água.


O banho não dura nem cinco minutos. Me visto, deixando o cabelo
úmido e gotículas de água espalhadas pelo corpo. Me esquivo de todo
mundo que tenta puxar conversa. Quero sair daqui o mais rápido possível.
Estou fechando a jaqueta enquanto Hunter ainda está no banco. Meu melhor
amigo me encara como se a porra de uma segunda cabeça tivesse nascido
no meu pescoço, mas não estou nem aí. Passo o desodorante e coloco o
cilindro de volta no armário, fechando-o. Em seguida, jogo a bolsa por cima
do ombro.

— Caramba, a coisa é mais séria do que pensei. — Hunter arregala os


olhos e começa a gargalhar. Encaro ele sem entender onde quer chegar. —
Você está mesmo apaixonado — acrescenta, surpreendendo-me com a
escolha de palavras.

— Apaixonado?

— Não se faz de desentendido, todo mundo já percebeu. Outro dia,


um cara da minha eletiva me perguntou sobre a Scarlet, e sabe quais as
palavras ele usou? A garota do Evan.

Dou de ombros.

— Somos amigos.

— Você não é só amigo dela. Amigos não fazem o que vocês fazem,
cara. É mais fácil aceitar que você está completamente dominado pela
garota.

Ignoro Hunter.

— Tchau — respondo, sem tempo para discutir.

O ar frio do inverno me recebe assim que saio da arena. Fecho o zíper


da jaqueta até o queixo, ainda com as palavras do maldito Hunter Ferrari
flutuando na minha cabeça como uma espiral sem fim. Você está mesmo
apaixonado. O que é que ele sabe sobre paixão? Não é como se Hunter
fosse a porra de um guru do amor.
Quando chego no alojamento de Scarlet, entro pelo mesmo lugar de
sempre e me certifico de que não há movimentação no corredor antes de
bater em sua porta. Na noite anterior, combinamos que eu daria uma
passada aqui porque ela estaria sozinha hoje. Ela abre para mim um
momento depois e me puxa para dentro.

Scarlet está usando um moletom que bate até os seus joelhos, e meias
longas cobrem suas pernas. O cabelo ruivo está solto, as mechas sedosas
parecendo mais macias que o habitual. Os olhos verdes-floresta com pingos
dourados me devolvem o escrutínio, e eu fixo meu olhar nas sardas que
salpicam o seu nariz. Eu a observo corar lentamente e é lindo para caralho.

— Nossa, por que você tá me olhando assim? — pergunta, incerta. —


Tem alguma coisa no meu rosto?

— Não. — Saio do meu estado de contemplação. — O que você está


fazendo? — Ignoro o novo ritmo dos meus batimentos cardíacos e mudo o
foco do meu olhar para os livros espalhados na cama.

Scarlet coloca o cabelo atrás da orelha, meio sem graça.

— Ah, essa bagunça toda é da faculdade. Estou tentando começar a


produzir um artigo.

— Sobre o quê? — indago, enquanto tento esconder o interesse, e me


aproximo da cama para analisar as capas dos livros.

— Plantas medicinais e seus compostos bioativos. — Percebo a


hesitação no seu tom de voz.

Scarlet mexe distraidamente no seu colar e me oferece uma explicação


completa:

— Estou focando nas plantas nativas da nossa região. Sabia que aqui
em Crystalville tem uma enorme concentração de arnica? Além de ser
usada para tratar contusões e dores musculares, ela possui compostos com
propriedades anti-inflamatórias.
— Não sabia disso. — Me sento na cama. — Você já encontrou algo
que se destaque?

Ela balança a cabeça rapidamente e ergue o braço para pegar um


caderno cheio de anotações. Ela o folheia até parar em uma página.

— Algumas plantas têm compostos que interagem com os sistemas


biológicos de maneiras incríveis. Por exemplo, a unha-de-gato tem
alcaloides que podem ajudar no tratamento de doenças autoimunes. Ah! E o
gengibre, além de ser usado na culinária, tem gingerol, que é um potente
anti-inflamatório… — Scarlet se cala de repente e me olha com um sorriso
hesitante. — Me desculpa, acho que me empolguei. Vou parar de falar sobre
essas coisas.

— Você fica linda quando está sendo inteligente. Não me importo de


ouvir sobre tudo o que você está estudando — respondo, com sinceridade.
— Como planeja estruturar o artigo?

Scarlet parece deslocada com o elogio, mas continua falando.

— Ainda estou tentando descobrir isso. Acho que vou começar com
uma introdução sobre a importância das plantas medicinais e passar para
uma revisão da literatura sobre os compostos e, enfim, apresentar estudos
de casos específicos.

— Ótimo plano — digo, admirado com sua dedicação. — Não entendo


muito sobre plantas, mas se precisar de ajuda para revisar os textos, estou
aqui.

Scarlet sorri, e sinto algo se contorcer no meu peito. Nunca senti isso
antes, o que me deixa alarmado por um momento. O que há de errado
comigo hoje?

— Obrigada. Vou me lembrar disso.

Scarlet começa a recolher a bagunça, e eu a ajudo. Estamos muito


próximos, então consigo sentir o cheiro característico que emana de seu
cabelo. Porra, eu amo esse cheiro. Tenho vontade de agarrá-la, mas acho
que seria um pouco estranho, então contenho minhas mãos.
Quando a cama está livre, Scarlet se senta no meu colo, me
surpreendendo. Adoro quando ela faz esse tipo de coisa. Em resposta,
coloco as mãos em seus quadris.

— Te mostrei meu lado nerd, agora é a sua vez.

Um sorriso torto toma conta de meus lábios. Acho que posso


compartilhar uma curiosidade ou duas do meu conhecimento em História.

— Justo. Tem algo que pode te interessar. Você sabia que na Idade
Média as plantas medicinais eram associadas a superstições e magia?

— Sério? — Scarlet parece surpresa, arqueando as sobrancelhas.

— Sim. Por exemplo, a mandrágora era considerada uma planta


mágica com poderes, e dizem que ela até gritava quando era arrancada do
solo. Imagina, uma planta que grita quando você a colhe…

Scarlet começa a rir, e o som me faz sentir como se tivesse


conquistado um prêmio.

— Inclusive, sabe o que tudo isso significaria? — Ela balança a cabeça


negativamente. Coloco minha mão ao redor do seu pescoço, que estremece
com o contato. — Que você se daria muito mal se tivesse nascido na época
errada. Uma ruiva que estuda sobre plantas…

— Eu seria enforcada — conclui em um tom de voz baixo, enquanto


aumento a pressão dos meus dedos ao redor do seu pescoço.

Meus olhos caem para seus lábios. Sinto a visão ficar turva.

— Sim. Você seria enforcada, porque pensariam que você é uma


bruxa.

— Hum… Não me parece uma ideia ruim agora.

Suas palavras são o suficiente para que eu fique duro feito pedra.
Scarlet solta uma risadinha, provavelmente se dando conta disso.
— É mesmo? — Solto o pescoço dela e seguro seu rosto entre as
mãos. Scarlet respira fundo, a diversão sendo substituída por desejo. O
mesmo desejo que sei que deve estar refletido no meu olhar.

— Sim… — A palavra não passa de um sopro. Perco o controle


quando ela me olha com as pálpebras baixas e a boca entreaberta, a
submissão explícita em cada um dos seus traços.

Corto a distância e começo a beijá-la. Quero tanto Scarlet que chega a


ser esquisito e desproporcional. Enquanto começamos a arrancar as nossas
roupas, só consigo pensar nas palavras de Hunter. Enquanto deito sobre
Scarlet no colchão e me enterro dentro dela, pele contra pele, e tudo é tão
cru, real e intenso, só consigo pensar nisso.

Mesmo quando entro e deslizo para fora dela e ela se agarra a mim
como se dependesse disso, como se nós dois fossemos algo certo,
predestinado, só consigo pensar nisso. Suas unhas arranham minha pele e
ela morde o meu ombro, gemendo o meu nome enquanto enterro o meu
rosto na curva de seu pescoço e inspiro o seu cheiro enquanto. Obcecado,
eu estou completamente obcecado.

Scarlet arfa quando entrelaça as pernas ao redor da minha cintura e


consigo alcançar mais fundo. Beijo o seu pescoço, seu rosto e observo suas
sardas. Você está mesmo apaixonado. Continuo me movendo, sentindo ela
se apertar em torno de mim. Scarlet estremece e alcança o orgasmo
primeiro, fechando os olhos e cravando as unhas na minha pele a ponto de
arder. Como naquele outro dia, uma lágrima escorre por seu rosto e, porra, é
o meu fim.

Você está mesmo apaixonado.

Tremo em cima de Scarlet e olho para ela. Seus dedos finos passeiam
ao longo da linha do meu maxilar e eu me abaixo para beijá-la outra vez.
Sinto meu coração bater tão forte que parece que vai explodir. Desabo ao
lado dela, puxando o seu corpo para se alinhar ao meu. Como algo que se
completa. Como duas metades. Como o encaixe perfeito.

Então, eu apenas aceito.


Eu não tenho chances contra isso, não tenho chances contra nada disso.
Não posso mais me enganar.

Eu estou mesmo apaixonado.


39

AS ÚLTIMAS SEMANAS com Scarlet foram incríveis.

Eu a ajudo com os exercícios na academia, praticamos yoga e até


mesmo finalizamos aquela porcaria de série chamada Gossip Girl. Minha
rotina tem se alternado entre hóquei, academia, faculdade e o tempo que
passo com Scarlet. Sempre que estou livre e ela está fora do trabalho de
meio período, passamos um tempo juntos.

Apesar de eu ter reconhecido meus sentimentos por ela, ainda não


confessei nada. Não quero assustar Scarlet e, para ser honesto, não sei como
ou se devo fazer isso. Posso me abrir e não ser correspondido, o que me
deixa apreensivo. Não sei como ela vai lidar com o fato de eu estar
apaixonado, até porque nós dois concordamos que seria um lance casual
com prazo de validade e tudo.

Inclusive, o Natal é daqui a três semanas.

Até lá, preciso de um plano que faça sentido. É por isso que estou aqui
pedindo ajuda para as pessoas mais improváveis de todas.

Hunter Ferrari, conhecido como um dos maiores mulherengos do


campus e também meu melhor amigo. Ao seu lado, sentada na mesa da
cafeteria, está Emery, minha irmã gêmea coração de gelo.

Os dois me olham como se eu fosse um idiota. Acho que é a única


coisa que eles devem concordar, já que são inimigos mortais desde que
éramos apenas crianças.

— Então, deixa eu ver se eu entendi, você tá com medo de levar um pé


na bunda… — Ferrari corta o silêncio.
— Ela saiu de um relacionamento horrível — explico. — Não posso
simplesmente jogar o fato de que estou apaixonado na cara dela.

Emery cruza os braços em frente ao peito, parecendo resignada.

— Você tem certeza de que quer se declarar para ela? Já pensou no que
vai vir depois?

— Como assim?

— Você vai dizer que está apaixonado e ponto? — Hunter questiona,


confuso. — Precisa desenvolver isso, cara. Você tem que pedir a garota em
namoro.

— Como vou pedir ela em namoro?

— Isso é com você. — Emery dá um gole no café. — Tenta ser um


pouco romântico. Sei que você vai conseguir pensar em uma ou duas
coisas.

— E se ela não aceitar?

Hunter ri, incrédulo.

— Esperei muito tempo para ver o dia em que o grande Evan Sutton se
acovardaria por causa de uma garota.

— Cala a boca, porra. — Começo a ficar irritado. — Nunca precisei


fazer isso antes, e eu gosto mesmo de Scarlet. Não quero estragar tudo.

— Bom, boa sorte. — Emery se levanta e ajeita a jaqueta para se


proteger da leve geada que cai. — Preciso ir para o treino agora.

Então, minha irmã se vira e sai antes que eu possa dizer qualquer
coisa. Hunter bufa.

— Ignore a Sutton mal-humorada. Mas, estou falando sério agora.


Apenas deixe claro para ela tudo o que você sente e quais são suas
intenções. Se for honesto, não tem como dar errado. Sei que por trás desse
seu comportamento certinho e parede de aço impenetrável, há um lindo
coração que vai conquistar a ruiva.

Solto um suspiro, me encostando na cadeira atrás de mim e cruzando


os braços em frente ao peitoral.

— Espero que você esteja certo.

O dia do festival de inverno chega mais rápido do que o esperado.

Geralmente, o festival acontece uma semana antes do Natal. Mas este


ano, a neve densa resolveu dar as caras mais cedo em Crystalville. O evento
atrai muitos turistas, o que é ótimo para a economia da cidade.O prefeito
distribui uma bebida simbólica durante a festividade, chamada de Elixir do
Inverno Encantado, que tem gosto de maçã e canela e é servida tão quente
que tem que ter cuidado na hora de bebê-la.

A praça central está cheia de luzes e guirlandas douradas, já lotada


antes mesmo do início da tarde. Barracas de madeira, decoradas com
pinheiros e laços, exalam o aroma tentador de chocolate quente e biscoitos
recém-assados. Duas crianças passam correndo por mim, jogando bolas de
neve umas nas outras enquanto riem. Enfio as mãos nos bolsos da minha
jaqueta, inspecionando ao redor.

Vim sozinho para cá, já que meus amigos se recusaram a acordar antes
do meio-dia de um sábado, mas estou esperando por Scarlet. Combinamos
de nos encontrarmos no festival. Inclusive, confiro as horas.

Ela está atrasada.

Scarlet atravessa no meio de um grupo de pessoas, usando cachecol,


touca de lã, uma jaqueta grossa e calça legging. Seus pés também estão
dentro de botas, para combinar com o visual de inverno. Ela acena em
minha direção, como se o cabelo vermelho já não destacasse ela no meio do
cenário glacial.
Ainda estou me acostumando com a reação do meu corpo toda vez que
a vejo. Um arrepio se arrasta por minha coluna e eu olho para a sacola
pendurada em seu braço.

— Desculpa. Vi um globo de neve incrível em uma das tendas e tive


que parar para comprar. A fila estava uma loucura e…

Por algum motivo, meu primeiro instinto é beijá-la. Quando nos


separamos, ofegantes, o rosto de Scarlet está corado, e sua respiração sai em
formato de nuvens brancas no ar.

— Nossa, uau, oi para você também.

— Desculpa, não resisti. Você está muito fofa com essa coisa na
cabeça.

Scarlet puxa o gorro para baixo, cobrindo ainda mais as orelhas. Em


seguida, cruza os braços em frente ao peito e me lança um escrutínio
avaliador.

— Não sei como você não está morrendo de frio usando só essa
camada leve de roupas.

— São roupas térmicas. É o suficiente para mim.

Começamos a andar pelo festival, e então passamos pela barraca do


Elixir. Scarlet me faz ficar vinte minutos na fila enquanto ela espera
sentada ao lado em um dos bancos. Outra curiosidade sobre o Evan
apaixonado: não sei dizer não. Acho que se Scar quisesse que eu saltasse
agora de uma montanha, eu faria.

Entrego para Scarlet a caneca quente. Ela solta um suspiro feliz.

— Isso tem um cheiro muito bom. — A ruiva sopra a bebida


fumegante. O aroma de maçã e canela flutua pelo ar. Ela arrisca dar uma
bebericada. Seus olhos se arregalam um pouco, surpresa. — É delicioso,
quer um pouco?
— Não, obrigado. Eu já experimentei antes e não gostei. — Resolvo
mudar de assunto. — A gente vai fazer a corrida do trenó?

— Claro! Estou muito ansiosa pra essa parte.

— Vou colocar nossos nomes na ficha, já volto.

Na fila, encontro alguns dos meus companheiros de time. Nós nos


cumprimentamos, e eu escrevo meu nome e o de Scarlet no topo da folha.
Quando volto para encontrá-la, ela já terminou de tomar a bebida e está
comendo alguns biscoitos.

— As coisas daqui são incríveis — diz, de boca cheia. Alguns farelos


grudam em suas bochechas, e eu dou risada.

Scarlet e eu continuamos andando pelo festival de inverno enquanto


não chega a hora da corrida do trenó. A ruiva ocasionalmente para em
algumas tendas para admirar o trabalho dos artesãos locais, parecendo
impressionada a cada nova descoberta. No início da tarde, ela se torna um
cabideiro humano, segurando diversas sacolas.

Então, alguém anuncia no megafone que a corrida irá começar.

— É a nossa deixa — digo, puxando-a pelo braço.

Andamos até a área em que a corrida irá acontecer, que é uma colina
íngreme na base de uma montanha. Diversas duplas já estão posicionadas
ao nosso redor, incluindo crianças. A energia é contagiante, e meu espírito
competitivo está mais aflorado do que nunca. Geralmente, alterno os anos
entre fazer dupla com Hunter e Emery. Contudo, desta vez, vou competir ao
lado de Scarlet.

Recebemos um trenó e nos posicionamos na linha de partida. Scar fica


na frente, vez que é menor do que eu.

— Pronta? — Esboço um sorriso ao vê-la empolgada.

— Nasci pronta, capitão.


O sinal é dado e partimos, sentindo o vento frio no rosto enquanto o
trenó desliza rapidamente pelo gelo. Nos movemos com sincronia. Scarlet ri
e grita de emoção. A pista é um misto de subidas e descidas, mas
conseguimos manter um bom ritmo.

Durante a corrida, dou uma olhada para a ruiva e noto seu rosto
iluminado de alegria. É um daqueles momentos que quero guardar para
sempre. Nos aproximamos da linha de chegada, e com um último esforço,
cruzamos, cheios de adrenalina.

Embora não tenhamos ganhado, a experiência foi muito boa.

— Isso foi incrível! — exclama Scarlet.

— Foi mesmo — concordo. — E isso é só o começo do nosso dia,


cenourinha.
40

NA ESCOLA PRIMÁRIA, sempre tento não me intrometer e ficar na


minha. Faço o que é esperado de mim: recolho os equipamentos de
patinação depois das aulas das crianças e fico sentada nas arquibancadas,
observando o trabalho da treinadora Amy.

Ela não é muito velha, deve ter uns trinta e poucos anos, mas é tão
rígida que suas íris impenetráveis me fazem desviar o olhar na maior parte
das vezes. Sério, tenho um pouco de medo dela. Amy solta um suspiro alto
quando Megan, uma garota adorável de nove anos, erra a primeira etapa de
um axel.

Um axel consiste em um salto que requer uma rotação e meia no ar,


sendo um dos movimentos mais difíceis na patinação artística. Lembro que
levei meses para completá-lo perfeitamente. Vejo a frustração no rosto de
Megan e sinto empatia.

A frieza de Amy também parece se derreter um pouco com a


expressão da garotinha. Em seguida, a treinadora se aproxima de Megan,
dando algumas instruções com o tom de voz suave. Apesar de ser uma
exigente, dá para ver que, lá no fundo, Amy se preocupa com suas alunas.

— Você consegue. Tente mais uma vez — diz, com encorajamento.

Enquanto observo, recolho um patins caído e ajeito o cadarço. Megan


tenta outra vez e consegue ter um pouco mais de firmeza nos seus
movimentos. Um sorriso tímido se abre no seu rosto e me vejo sorrindo
também.

O olhar de Amy se conecta ao meu neste momento e eu fico séria,


voltando a arrumar o patins. Ouço quando ela pede um momento e então
capturo sua silhueta se aproximar de onde estou. Droga, será que ela vai me
dar uma bronca por estar observando ao invés de trabalhar?

— Você sabe patinar? — questiona, me pegando de surpresa.

— Eu? — Olho para trás e para os lados para ter certeza de que ela
está mesmo falando comigo.

— É, você. Sabe ou não sabe?

— Sim — respondo, hesitante. — Por quê?

— Ótimo, preciso que você auxilie a Aubrey e a Nora com o arnês. É


bem simples.

O pedido inusitado me faz piscar os olhos algumas vezes, mas não


retruco. Acho um par de patins do meu tamanho e os calço. Então, entro no
rinque, sentindo o estômago vibrar por conta do nervosismo. Amy sinaliza
para as duas garotas paradas no centro da pista e me entrega o arnês, que é
um suporte para auxiliar no equilíbrio dos saltos. A garota de tranças se
identifica como Nora e a mais baixa de cabelo loiro se apresenta como
Aubrey.

Ajudo-as a vestirem o arnês e Amy me demonstra como devo instruí-


las. Não digo que já sei como funciona, apenas presto atenção e replico
exatamente o que ela pede. Seguro a barra do suporte com firmeza e levanto
os braços quando Nora salta, seguindo-a como se estivesse controlando uma
marionete. Noto que ela ganha mais confiança com a ajuda, o que é ótimo.

Alternamos entre Aubrey e Nora, fazendo pequenas pausas para


descansarem.

Não sei quanto tempo se passa. Contudo, quando me dou conta, a


treinadora Amy apita e as dispensa para o vestiário. Faço menção de sair do
rinque também, mas sua voz me faz congelar:

— Você, garota da manutenção, qual o seu nome mesmo?


— Scarlet — respondo, surpresa por ela estar falando comigo. Nunca
aconteceu antes.

— Reconheço a postura de uma patinadora quando vejo uma… —


Analisa, cruzando os braços em frente ao peito. — Me mostre algo.

Congelo no lugar.

— Te mostrar algo?

— Me mostre tudo o que você sabe fazer no gelo. Agora.

O comando me deixa tão intimidada que não sei o que fazer, mas
acabo cedendo vez que não quero perder o emprego. Respirando fundo,
começo a patinar, permitindo que os movimentos fluam de forma natural.

Faço uma série de passos complexos, saltos e giros que demonstram


todos os anos de experiência que tive. Dou uma volta rápida, aumentando a
velocidade, e então executo um triple axel com precisão. A sensação de
liberdade é indescritível. Por um momento, esqueço da presença de Amy.
Estou aqui porque quero, não patinando porque ela pediu, mas por mim
mesma.

Quando paro, o peito subindo e descendo profundamente, olho para


Amy, em busca de alguma reação. Seu rosto permanece impassível, mas há
um brilho no seu olhar que não estava lá antes.

— Impressionante — diz, por fim. — Você claramente já foi uma


patinadora de competição. Por que está escondida aqui, recolhendo
equipamentos?

— Não patino mais — informo, num muxoxo, meio sem graça.

— Bem, Scarlet, seria um desperdício deixar o seu talento inativo. Se


você estiver disposta, gostaria que me ajudasse a auxiliar as garotas. Elas
precisam de outro exemplo além de mim.

Fico em silêncio, pensando na proposta. Depois que me abri com


Evan, me sinto diferente em relação a patinação. Entendi que preciso
encontrar uma forma de ressignificar o sentimento, e não posso desperdiçar
uma oportunidade como essa. De repente, vejo como um recomeço. A
excitação que sinto me surpreende tanto que minha voz fica um pouco
embargada quando respondo que sim.

— Ótimo. Então, a partir de amanhã, você é uma auxiliar de patinação.


Seja bem-vinda, Scarlet.

Quando chego no dormitório, estou mais feliz do que nunca. Viper está
sentada em sua cama e até tira os fones dos ouvidos quando me aproximo,
fazendo uma espécie de dança da vitória. Ela arqueia as sobrancelhas.

— Parece que você ficou maluca de vez. Sabia que essa coisa de
pedras da lua era furada.

Ignoro a alfinetada.

— Consegui uma promoção no emprego. — Dou de ombros, sorrindo.


— Estou feliz.

— Hum, parabéns. — Minha colega de quarto parece honesta, por


mais que seja tão expressiva quanto uma pedra.

Ignorando-a, pego meu celular e envio uma mensagem para meus pais,
informando sobre a novidade. Depois, abro o chat de Evan.

Scarlet: Advinha quem foi promovida para ajudar com a aula de


patinação das crianças?

A resposta chega um minuto depois.

Evan: Sério? Fico muito feliz por você, cenourinha

Evan: A propósito, queria te mostrar um lugar hoje à noite.

Evan: Te busco às sete, se agasalha bem.


Como prometido, avisto Evan na frente do alojamento exatamente às
sete horas. Como estamos no inverno e falta uma semana para o Natal,
Crystalville já está coberta por um manto espesso de neve. Ultimamente,
não sei como posso definir minha relação com Sutton. Nos vemos com
frequência, conversamos sobre tudo e sinto meu coração disparar toda vez
que ele está por perto.

É bom e leve, o que me deixa assustada. Não estou habituada com


isso. É um sentimento que te traz mais tranquilidade do que qualquer outra
coisa, que acolhe ao invés de machucar. Um lugar onde você pode ser você
mesma sem se sentir julgada.

Preciso admitir para mim mesma, me assusta porque estamos perto do


fim. Logo, o Natal vai chegar e a regra idiota que criamos vai chegar ao
fim. Evan vai seguir a vida dele e eu a minha, em caminhos opostos. Meu
coração murcha dentro do peito só de pensar nisso.

Por algum motivo, fico com a sensação inquietante de que é sobre isso
que ele vai falar. A verdade é que não estou pronta para me despedir, nem
dizer adeus. Quando entro na picape, usando roupas de frio como o jogador
instruiu, o aquecedor ligado me atinge, começando a descongelar minhas
bochechas que ficaram rígidas enquanto eu esperava do lado de fora do
alojamento.

— Oi. — Estendo as mãos em direção a saída de ar quente para


esquentá-las. — Para onde vamos?

— É surpresa, cenourinha.

A resposta evasiva me faz suspirar, mas não insisto. Enquanto Evan


dirige, o silêncio é reconfortante. Contudo, fico inquieta. Será que ele vai
me levar até algum lugar só para anunciar o fim do que temos? Para tentar
conter o nervosismo, mexo em uma das minhas pulseiras enquanto observo
a paisagem correr através da janela.
Dou uma espiada em Evan. Ele parece mais silencioso que o normal, o
que é outro sinal alarmante. Dá para ver pelo jeito que ele segura o volante
com mais firmeza e balança a perna em um ritmo inquietante que tem algo
acontecendo. Meu Deus, é oficial. Vou levar um pé na bunda. Começo a
sentir um nó na garganta e respiro fundo, na tentativa de lidar com a tristeza
inesperada que me atinge.

Qual é, Scarlet. É só um cara, é o que tento me convencer. Você sabia


que isso aconteceria uma hora ou outra. Foi você quem topou essa estupidez
e estipulou um prazo. Não posso culpar Evan, ele foi honesto comigo desde
o ínicio. Sempre deixou claro que queria algo que não implicasse o peso de
um relacionamento real, era para ser divertido e conveniente para nós dois e
foi, agora é hora do fim.

Muito bom mesmo para ser verdade.

Assim que o carro é estacionado próximo a uma colina coberta de


neve, Sutton anuncia que chegamos. Ele desliga o motor da picape e o frio
se instala.

Evan olha para mim, e há algo estranho na maneira como ele se move.
Mesmo por baixo da jaqueta de inverno, noto como os ombros estão
rígidos.

— Scarlet, eu preciso admitir algo para você.

Ainda que as temperaturas estejam negativas, minhas mãos começam a


suar. Engulo em seco e espero.

— Semana que vem já é Natal, e eu estava pensando nas regras que


criamos antes de começarmos a nos relacionar…

Ai, meu Deus. Não acredito que vou mesmo levar um fora. Antes que
eu possa me controlar, meus lábios começam a tremer. Ele arregala os olhos
assim que as lágrimas embaçam minha visão. Que droga está acontecendo
comigo? Desvio o olhar, tamanho constrangimento.

— Eu sei, não precisa terminar de falar — digo, em meio a um soluço.


— Entendo que você não quer continuar com isso, e tudo bem. E não sei
porque estou chorando, talvez eu goste mais de você do que pensava.

Sinto a mão de Evan tocar o meu rosto e, então, com gentileza, ele vira
o meu queixo em sua direção. O jogador seca minhas lágrimas com a
manga de sua jaqueta.

— Na verdade, eu quero dizer o contrário. Eu não posso ficar sem


você.

Pisco, surpresa.

— Você está falando sério?

— Claro que sim. Eu estava reunindo coragem para te dizer isso há


algum tempo. Eu quero que você seja minha namorada. Porra, eu não
consigo me imaginar longe de você, cenourinha. É nisso no que você me
transformou. Sinto sua falta todos os dias, quero te tocar o tempo todo
quando estamos próximos, fico feliz quando você está feliz. Não posso
deixar que você se afaste. É por isso que te trouxe aqui, porque quero que
você seja a minha namorada.

Paro de chorar com a declaração inusitada. Vejo a verdade no seu rosto


e tom de voz. Então, solto o cinto de segurança e me jogo sobre Evan. Ele
tem que afastar o banco para trás para nos acomodar. O abraço com força,
sentindo o meu coração bater tão forte que parece que vai explodir a
qualquer momento.

— Sim! Eu aceito ser a sua namorada.

Então, Evan me beija. O beijo é suave e intenso ao mesmo tempo,


como se ele estivesse tentando transmitir todos os sentimentos que havia
guardado dentro de si. Seus lábios são quentes e firmes contra os meus, e
por um momento, o mundo ao nosso redor desaparece. Sinto suas mãos se
moverem gentilmente para segurar meu rosto, aprofundando o beijo,
enquanto meus braços se apertam em torno de seu pescoço.

Quando finalmente nos separamos, ambos estamos sem fôlego, mas há


um sorriso em seus lábios e uma luz nos seus olhos que eu nunca tinha visto
antes.
— Agora, os patins — anuncia, de repente.

Fico confusa.

— Os patins?

Evan aponta para o banco de trás, onde há uma bolsa que eu não havia
me dado conta antes.

— Vamos descer. Quero te mostrar algo.

Confiando em Evan, desço do carro e tento ignorar o frio tenebroso


enquanto ele pega a bolsa e segura a minha mão. Caminhamos por um
longo trecho da colina e paramos quando avistamos um lago congelado. A
composição do cenário toda é surreal e eu tenho que piscar algumas vezes
para ter certeza de que não estou sonhando.

O gelo reluz sob a luz do luar acrescentada às cores da aurora boreal. É


a primeira vez que vejo uma. O céu noturno está salpicado por estrelas, mas
são as diversidades de cores que me tiram o fôlego. Ondas bruxuleantes
feito fantasmas verdes, rosas e roxas se movendo de maneira hipnotizante,
refletidas na superfície lisa e firme do lago.

Calçamos os patins depressa. Nem hesito quando Evan estende a mão


em minha direção e a aceito com uma confiança que surpreende até a mim
mesma. Não estou com medo porque ele está me segurando. Tudo vai ficar
bem desde que Evan esteja me segurando.

O gelo abaixo de nós brilha com as tonalidades da aurora e a cada


movimento patinando parece amplificar a beleza ao nosso redor. O frio é
cortante, mas o esqueço com a sensação de calor e a emoção de estar aqui,
agora.

Olho para Evan e vejo todo o brilho refletido em seu rosto. Ele segura
minha mão para me girar, e meu riso corta o silêncio da noite enquanto me
derreto em seus braços. Eu estava caindo esse tempo todo, mas agora estou
flutuando. O jogador me acompanha, guiando meus movimentos conforme
dançamos sob o lago junto com a aurora.
— É a coisa mais bonita que já vi. — Olho para o céu.

— Não posso dizer o mesmo, porque a coisa mais bonita que já vi é


você. — Coro diante do elogio de Evan. — Mas sabia que você ia gostar.

— Eu amei… é perfeito.

Continuamos a patinar, deslizando pelo gelo como se estivéssemos em


uma dança que apenas nós dois conhecemos. Me questiono como vivi esse
tempo todo sem conhecer Evan, sem sentir o seu corpo contra o meu,
receber os seus beijos e compartilhar momentos como esse.

Por onde você esteve todo esse tempo?

Isso me leva a concluir que o amor verdadeiro torna nossas antigas


dores insignificantes. As coisas ruins precisavam acontecer para que
estivéssemos aqui agora. As pessoas ruins nos magoam para que haja
espaço para conhecer as boas.

Sutton suspira contra a minha boca.

— Sabe, acho que eu te amo.

Sinto o coração disparar e sorrio.

— Eu também acho que te amo, Evan Sutton.


epílogo

AS PALMAS DAS minhas mãos estão suadas enquanto meu coração bate
acelerado.

É o último momento, os últimos segundos da final do Frozen Four para


decidir se iremos vencer ou não. Com o suor escorrendo pela testa e a
respiração densa, a adrenalina corre pelas minhas veias no momento em
que um dos meus companheiros está prestes a me dar um passe.

É agora ou nunca. Estamos empatados.

O puck desliza em minha direção como se estivesse em câmera lenta,


cada segundo parecendo se arrastar por toda uma eternidade. Meus olhos
estão fixos, minha mente focada em apenas um objetivo: reverter o placar.
Quando o disco chega no meu taco, sinto uma estranha calma, como se o
solo estivesse se ajustando sob meus pés e o mundo se adequasse a mim,
não o contrário.

Com um movimento rápido e preciso, disparo o puck com toda a força


que consigo reunir, os músculos protestando de dor. O estalo da batida ecoa
pelo ar e tudo parece suspenso enquanto o disco voa em direção à rede.

O goleiro se estica, desesperado, e a torcida fica em silêncio. O puck


atinge a rede com um baque surdo e, em seguida, meus companheiros de
equipe pulam sobre mim quando o fim da partida é anunciado.

Vencemos, porra. É isso. Vencemos. Se antes eu tinha alguma dúvida


em relação ao hóquei, ela foi descartada neste momento. Isso aqui é o que
eu amo fazer, é o que respiro. Depois de hoje, sei que vou receber diversas
propostas de draft. Vou seguir para a liga profissional e me tornar um
jogador oficialmente.
Quando a euforia diminui um pouco, olho ao redor, buscando na
plateia Emery e Scarlet, que vibram por mim. No entanto, é na ruiva que me
concentro. Desde que a pedi em namoro há alguns meses, a vida tem sido
mais que incrível.

Eu amo tanto essa mulher que dói quando estamos longe.

Pode parecer exagero, mas não é. Meu corpo entra em abstinência


quando preciso ficar longe dela para as conferências. No entanto, sempre
damos um jeito de compensar toda a saudade quando eu volto para casa.

Preciso fazer uma última coisa

Coloco a mão no bolso da calça, tateando para ter certeza de que o anel
ainda está aqui e não voou durante o jogo. Me desvencilho de toda a
confusão do rinque e patino até as extremidades, parando em frente à
Scarlet. Ela me olha com surpresa através do vidro, as íris verde-florestas
que eu tanto amo, estão com um brilho diferente.

É um olhar de reconhecimento e orgulho e, porra, isso só me faz ter


mais certeza do que estou prestes a fazer. É um grande passo, para falar a
verdade. Somos jovens e temos uma vida toda pela frente, planos e
promessas de um futuro. Mas, para mim, nada disso fará sentido se eu não
tê-la do meu lado.

Tiro o anel do bolso no momento em que sinalizo para que meus


companheiros de equipe ergam a faixa. Planejei isso há algum tempo e foi
arriscado porque escolhi o dia do Frozen Four. Caso perdessemos, eu não
teria certeza se faria isso. Mas ganhamos, então a oportunidade é mais que
perfeita agora.

“Casa comigo, cenourinha?” é exibido em letras garrafais em uma


enorme faixa branca que os jogadores de hóquei seguram, arrancando um
suspiro em uníssono da multidão nas arquibancadas. Vejo o choque no olhar
da minha irmã, porém, foco em Scarlet.

Ela arregala os olhos e cobre a boca com as mãos.

Começo a suar mais ainda.


Scarlet se levanta e vai até a entrada do rinque. Os seguranças dão
passagem para ela e, mesmo de tênis, Scarlet não hesita em entrar no gelo.
Ela escorrega e segura na lateral da pista. Patino até ela, erguendo o anel em
frente aos nossos rostos.

— Sim! Mil vezes sim! Eu quero me casar com você, Evan Sutton.

A ruiva se joga contra mim e nós tombamos para trás, arrancando


gargalhadas e comemorações de todos ao nosso redor. Percebo que toda a
cena se desenrola no telão. Quando conseguimos levantar, coloco o anel em
seu dedo anelar e seguro seu rosto entre minhas mãos.

Então, eu beijo com força a boca da minha futura esposa.

FIM.
agradecimentos
Em primeiro lugar, agradeço a Deus por me dar inspiração sempre. Em
segundo, a todas minhas amigas e leitoras maravilhosas que me apoiaram e
incentivaram durante essa nova jornada de escrever Jogos de Conquista.

Evan e Scarlet resgataram uma parte muito importante minha. Me


lembraram que o processo de escrever não deve ser sempre duro, mas
também leve. E que há livros com mensagens e finalidades diferentes. A
finalidade de JDC é entreter, acolher e terminar a última página com o
coração quentinho.

Espero que eu tenha cumprido essa missão!

No mais, Jogos de Conquista faz parte de uma duologia chamada


Irmãos Sutton e vocês podem ler o livro da irmã do Evan, chamado
“Estratégias do Amor”, escrito pela autora Liz Ferrer. Criamos esse
universo unicamente para os gêmeos. O livro está disponível aqui na
Amazon.

Eu adoraria receber mensagens no Instagram sobre a obra. Se vocês


quiserem conversar comigo, sintam-se à vontade! @lov3lyloser (meu user).

Com amor,
Lovely.

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