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LARA - Freud, Frangas e Marias

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Faculdade de Psicologia

Otávio Augusto de Oliveira Lara

FREUD, FRANGAS E MARIAS:


atravessamentos das relações de gênero e sexualidade nas manifestações de torcedores
de futebol

Belo Horizonte
2023
Otávio Augusto de Oliveira Lara

FREUD, FRANGA E MARIAS:


atravessamentos das relações de gênero e sexualidade nas manifestações de torcedores
de futebol

Monografia apresentada ao curso de Psicologia


da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Unidade Educacional Praça da Liberdade,
como requisito parcial para a obtenção do título
de bacharel em Psicologia.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Cristina Campolina Vilas
Boas
Leitor: Prof. Dr. Hélio Cardoso de Miranda
Júnior

Belo Horizonte
2023
Otávio Augusto de Oliveira Lara

FREUD, FRANGA E MARIAS:


atravessamentos das relações de gênero e sexualidade nas manifestações de torcedores
de futebol

Monografia apresentada ao curso de


Psicologia da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Unidade
Educacional Praça da Liberdade, como
requisito parcial para a obtenção do título
de bacharel em Psicologia.

___________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Cristina Campolina Vilas Boas - PUC Minas (Orientadora)

___________________________________________________________________
Prof. Dr. Hélio Cardoso de Miranda Júnior - PUC Minas (Banca Examinadora)

Belo Horizonte, 04 de novembro de 2023


Dedico este trabalho a todos os torcedores e torcedoras que se posicionam criticamente com
relação ao futebol e não toleram que através dele se reproduzam opressões de gênero,
sexualidade e raça, opressões que impedem que muitos e muitas vivam o sentimento
inexplicável que só o futebol é capaz de proporcionar.
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Neiva e José Márcio, atleticanos, por todo o amor, suporte e estímulo
ao longo de toda minha vida. A meu irmão e melhor amigo José, meu maior companheiro de
estádios, minha maior referência. Por toda inspiração na construção do meu pensamento social
e político, ao seu papel protagonista na minha inserção na vivência do sentimento de amor
sincero ao querido Clube Atlético Mineiro. À minha cunhada Beatriz, pelo apoio, pelas risadas
e pela profunda admiração e influência como musicista, progressista, feminista, atleticana. Ao
Belmiro, Belchior e Lolita. À toda família Lara e Oliveira pelo amor de sempre.
À Luísa Brunialti, pelo amor, inspiração, estímulo e apoio; por ser para mim uma
enorme referência como futura psicóloga, por proporcionar e compartilhar comigo momentos
de mais pura felicidade e leveza. Ao Antônio Neto, Daniela Brunialti, Betina e Amora pelo
carinho.
Pela contribuição de material para este trabalho: meu querido primo Fábio Vilela,
Bernardo Mourão, Brunelle Fonseca, Leonardo Ferreira, Guilherme Lessa.
Ao meu irmão de coração, João Eduardo, pela amizade e companhia sincera, pela
afinidade e pelos grandes momentos compartilhados banhados a Galo, cerveja e punk rock.
Aos queridos Victor Eduardo, Rafael Campolina, Ricardo Viana, Scheherazade Paes,
Guilherme e Renato Oliveira, Henrique Santiago, Arthur Morato, Germana Grassi, Pedro
Campos, Adriano Diniz, Rafael Lima, Leonardo Castro, Armando de Oliveira, Gabriel Correia,
Victor Sanders, Francisco Cardoso, Laura Braga, Luiz Henrique, Diego Faria, Henrique
Rezende, Luíz Moreira, Patrícia Ferreira, Luciana Parisi, Jean Brunialti e Caio Resende. Ao
Gabriel Silveira, pela amizade, presença, estímulo, pelos devaneios e seu ouvido sincero. À
Maria Clara Teodoro, pela amizade, apoio e exemplo de força. À Júlia Sayuri pelo
companheirismo nessa trajetória e pela amizade; à Sabrina Marques pela amizade e parceria.
À todas as amigas, amigos e colegas que fizeram destes cinco anos de graduação um lugar mais
afetuoso: Ítalo Rodrigo, Júlia Caixeta, Bruna Silveira, Erick Mayrink, Cristine Mattos, Rômulo
Mascarenhas, Lucas Alvim, Samuel Santana, Marcella Moscovitch, Luísa Morais, Isabela
Araújo, Bruna Borba, Laura Demétrio, Samuel Gonçalves, Christiana Sadok, Marcelly Crabi,
Raqueline Machado, Patrícia Beling, Adriana Strambi, Rafaela Rezende, Luíza Mol, Taísa
Pinheiro, Isabela Guimarães, Marcelo Rezende, Sophia Faleiro, Luíz Lara, Sofia Marotta, Ana
Bárbara Freitas, Júlia Rodrigues, Sandy Maria e José Neto. À minha professora e orientadora
Cristina Campolina, minha mais sincera admiração. Agradeço pelo estímulo, paciência, por
acreditar no meu potencial e apoiar minhas ideias. Ao professor Hélio Miranda, leitor deste
trabalho, pela referência, admiração e identificação ao longo do curso. A todas as professoras
do curso de Psicologia, em especial: Jaqueline Moreira, Cláudia Moreira, Luciana Kind,
Valéria Freire, Thaís Limp, Nathália Colen, Aline Mendes, Betânia Diniz, Mirelle França,
Érica Espírito Santo, Maria Luísa Cardoso, Edward Guimarães e Flávio Durães.
In memoriam do atleticano Vô Zé Lara.
Ao Movimento 105 Minutos, por ter me ensinado a apoiar o Atlético Mineiro
incondicionalmente.
Ao Galo, por ter me inspirado a ter força e raça em momentos insuportáveis.
Uma vez por semana, o torcedor foge de casa e vai ao estádio.
Ondulam bandeiras, soam as matracas, os foguetes, os tambores, chovem serpentinas,
e papel picado: a cidade desaparece, a rotina se esquece, só existe o templo. Neste
espaço sagrado, a única religião que não tem ateus exibe suas divindades. Embora o
torcedor possa contemplar o milagre, mais comodamente, na tela de sua televisão,
prefere cumprir a peregrinação até o lugar onde possa ver em carne e osso seus anjos
lutando em duelo contra os demônios da rodada.
Aqui o torcedor agita o lenço, engole saliva, engole veneno, come o boné, sussurra
preces e maldições, e de repente arrebenta a garganta numa ovação e salta feito pulga
abraçando o desconhecido que grita gol ao seu lado. Enquanto dura a missa pagã, o
torcedor é muitos. Compartilha com milhares de devotos a certeza de que somos os
melhores, todos os juízes estão vendidos, todos os rivais são trapaceiros.
É raro o torcedor que diz: “Meu time joga hoje”. Sempre diz: “Nós jogamos hoje”.
Este jogador número doze sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos de fervor
que empurram a bola quando ela dorme, do mesmo jeito que os outros onze jogadores
sabem que jogar sem torcida é como dançar sem música.
Quando termina a partida, o torcedor, que não saiu da arquibancada, celebra sua
vitória, que goleada fizemos, que surra a gente deu neles, ou chora a sua derrota, nos
roubaram outra vez, juiz ladrão. E então o sol vai embora, e o torcedor se vai. Caem
as sombras sobre o estádio e se esvazia. Nos degraus de cimento ardem, aqui e ali,
algumas fogueiras de fogo fugaz, enquanto vão se apagando as luzes e as vozes. O
estádio fica sozinho e o torcedor também volta à sua solidão, um eu que foi nós; o
torcedor se afasta, se dispersa, se perde, e o domingo é melancólico feito uma quarta-
feira de cinzas depois da morte do carnaval (GALEANO, 2022, p. 14-15).
RESUMO

O presente estudo tem como objetivo compreender através da psicanálise o papel das relações
de gênero e sexualidade nas manifestações orais e imagéticas de torcedores do Clube Atlético
Mineiro e Cruzeiro Esporte Clube, os dois principais clubes de Belo Horizonte, Minas Gerais.
Aborda-se um pouco da história do futebol, seus sentidos e contradições na construção do
imaginário social brasileiro, passando também por uma aproximação mais aprofundada sobre
torcidas e torcedores de futebol de modo geral, suas características e peculiaridades. Após a
abordagem de conceitos da psicanálise como castração, complexo de Édipo, identificação e
psicologia de grupos, analisa-se, a partir da metodologia da análise de conteúdo elaborada por
Bardin, amostras de gritos, cantos, expressões corriqueiras, memes e imagens que se constituem
de elementos que atribuem ao rival características femininas, homossexuais e também
manifestações que representam o balanço de poder entre as equipes e torcidas através de uma
metáfora que evoca uma cena de relação sexual. Por fim, chega-se à conclusão de que o
ambiente grupal da torcida permite um afrouxamento de barreiras que restringem pulsões
(Trieb) homoafetivas naturais e constitutivas da identificação masculina de sua livre circulação,
ao passo que tais manifestações em questão objetivam projetar ao adversário o que se pretende
excluir de si para a manutenção de uma ficção sobre a masculinidade heteronormativa.

Palavras-chave: Psicanálise, torcidas, futebol, identificação, masculinidade.


ABSTRACT

The present study aims to understand, through psychoanalysis, the role of gender relations and
sexuality in the oral and visual manifestations of fans of Clube Atlético Mineiro and Cruzeiro
Esporte Clube, the two main clubs in Belo Horizonte, Minas Gerais. It approaches a little of
the history of football, its meanings and contradictions in the construction of the Brazilian
social imaginary, also going through a more in-depth approach to football fans and group of
fans in general, their characteristics and peculiarities. After approaching psychoanalytic
concepts such as castration, Oedipus complex, identification and group psychology, we
analyze, using the content analysis methodology developed by Bardin, samples of cries, chants,
common expressions, memes and images that constitute of elements that attribute feminine,
homosexual characteristics to rivals and also manifestations that represent the balance of
dispute between the teams and fans through a metaphor that evokes a scene of sexual
intercourse. Finally, we come to the conclusion that the group environment of the fans allows
a loosening of barriers that restrict homoaffective drives (Trieb) that are natural and constitutive
of the male identification from their free circulation, while such manifestations in question aim
to project to the opponent what they intend to exclude from themselves for the sake of
maintenance of a fiction about heteronormative masculinity.

Keywords: Psychoanalysis, fans, football, identification, masculinity.


RESUMEN

El presente estudio tiene como objetivo comprender, a través del psicoanálisis, el papel de las
relaciones de género y la sexualidad en las manifestaciones orales y visuales de los aficionados
del Clube Atlético Mineiro y del Cruzeiro Esporte Clube, los dos principales clubes de Belo
Horizonte, Minas Gerais. Abarca un poco de la historia del fútbol, sus significados y
contradicciones en la construcción del imaginario social brasileño, pasando también por un
acercamiento más profundo a los aficionados y grupos de aficionados al fútbol en general, sus
características y peculiaridades. Luego de abordar conceptos psicoanalíticos como castración,
complejo de Edipo, identificación y psicología de grupo, analizamos, utilizando la metodología
de análisis de contenido desarrollada por Bardin, muestras de gritos, canciones, expresiones
comunes, memes e imágenes que se componen de elementos que atribuyen lo femenino,
características homosexuales al rival y también manifestaciones que representan el equilibrio
de poder entre los equipos y los aficionados a través de una metáfora que evoca una escena de
relación sexual. Finalmente, llegamos a la conclusión de que el entorno grupal de los fans
permite un aflojamiento de las barreras que restringen las pulsiones homoafectivas (Trieb) que
son naturales y constitutivas de la identificación masculina de su libre circulación, mientras
que dichas manifestaciones en cuestión pretenden proyectar al adversario lo que uno pretende
excluir de sí mismo para mantener una ficción sobre la masculinidad heteronormativa.

Palabras clave: Psicoanálisis, afición, fútbol, identificación, masculinidad.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Cruzeirense chupando um secador….................................................................34


Figura 2 - Goleada metaforizada por relação sexual violenta”..........................................35
Figura 3 - Jogador Thiago Neves exibe faixa “pau no cu das frangas”.............................37
Figura 4 - Suposta saia utilizada pela equipe do Cruzeiro em 1974……………………..38
Figura 5 - “Antes morto que Maria”....................................................................................39
Figura 6 - Chico Bento cruzeirense, Rosinha atleticana………………………………….40
Figura 7 - Representação de Diego Tardelli (Atlético-MG) de maquiagem………….....41
Figura 8 - Casal homossexual assistindo ao jogo do Cruzeiro…………………………...43
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................10

2 FUTEBOL, TORCIDAS E SUAS CONTRADIÇÕES.....................................................13


2.1 O futebol e seus sentidos na cultura brasileira................................................................13
2.2 Torcidas, torcedores e suas peculiaridades.....................................................................15

3 PSICANÁLISE, IDENTIFICAÇÃO MASCULINA E FUTEBOL.................................22


3.1 Por que psicanálise?..........................................................................................................22
3.2 Sexualidade infantil, complexo de castração e complexo de Édipo...............................23
3.3 Gênero, identificação masculina, futebol e grupos.........................................................28

4 METODOLOGIA E ANÁLISE.........................................................................................31
4.1 Metodologia.......................................................................................................................31
4.2 Análise e discussão de dados.............................................................................................33
4.2.1 A metáfora da relação sexual como atualização do balanço de poder entre as
torcidas....................................................................................................................................33
4.2.2 A atribuição do feminino ao rival..................................................................................37

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................44

REFERÊNCIA........................................................................................................................46
10

1 Introdução

Este trabalho toma como inspiração um estranhamento pessoal de algo que acontece,
por exemplo, em um domingo de campeonato de futebol, um grande clássico1 estadual como
Atlético Mineiro contra Cruzeiro, ao se deparar com cantos, gritos e outras expressões de
torcedores que se utilizam do artifício de feminizar o adversário – como o uso do termo “franga”
dos cruzeirenses para os atleticanos, e do termo “maria” dos atleticanos para se referirem aos
cruzeirenses. Mais estranho ainda é a tendência de aludir ao sexo anal em forma de metáfora
para compor um cenário simbólico de dominância do vencedor sobre o perdedor, através da
expressão de “comer o cu” do adversário para aludir à vitória na partida – onde os vencedores
ocupam uma posição “ativa” e os perdedores uma posição “passiva” nessa metáfora sexual.

Este estudo pretende analisar, com base na teoria psicanalítica, o papel de manifestações
de cunho homofóbico e sexista, e sua relação com o fenômeno grupal das torcidas. É essencial
a ressalva de que não se pretende restringir este fenômeno somente às torcidas organizadas.
Cada torcida, de forma geral, dispõe de cantos, gritos e manifestações que se generalizam para
além dos membros de uma torcida organizada e muitas vezes são cantadas por um estádio
inteiro. As principais torcidas organizadas dos clubes têm um papel fundamental na imagem e
na performance da torcida nas partidas de futebol, sendo bastante influentes na composição do
imaginário dos torcedores para com seus “clubes do coração”. A relevância deste estudo se
baseia no pressuposto de que o machismo, a LGBTQIAP+fobia e o racismo são temas de
importância incomensurável para pensarmos os problemas de nossa sociedade e propostas para
transformar essas relações de opressão historicamente estruturantes da sociedade ocidental e
sua moralidade.

O foco da análise pretende se concentrar nos elementos que remetem aos conteúdos
sexuais e de gênero encontrados em expressões orais e imagéticas das torcidas do Clube
Atlético Mineiro e do Cruzeiro Esporte Clube. Não será tratado especificamente sobre o
racismo, por compreender que este tema pertencente ao espectro de opressões que fundam de
forma sangrenta a sociedade brasileira, já não é tão presente nos cantos, gritos e manifestações
de torcidas brasileiras como a temática de gênero e sexualidade, embora se veja diversas
ocorrências de discriminação racial em estádios. O racismo como marca imponente da estrutura

1
Um clássico se refere à partida entre dois grandes rivais. No Brasil, rivalidades se constroem normalmente entre
equipes de uma mesma cidade. Em países como Inglaterra e Alemanha, muitas rivalidades se dão entre clubes de
cidades ou regiões vizinhas.
11

do Brasil e sua história reflete-se nas origens do futebol no país e inclusive atravessa a história
de formação de diversos clubes no Brasil, tanto por clubes que rejeitavam negros e clubes
formados por negros (LUCCAS, 1998; MASCARENHAS, 1993). Existem inúmeros episódios
de racismo envolvendo torcidas, dirigentes e outros profissionais ligados ao futebol e seus
eventos, que não devem ser considerados casos isolados2. Contudo, talvez pelo caráter bastante
popular da Galoucura e da Máfia Azul, principais torcidas organizadas do Atlético Mineiro e
Cruzeiro, respectivamente, expressões racistas se mostram raras em seus cantos e demais
manifestações. Estudar o racismo no futebol é estudar as raízes da popularização do esporte no
Brasil (LUCCAS, 1998), e renderia importantes estudos para compreender o atravessamento
de elementos culturais e estruturais em âmbitos mais específicos como dentro dos estádios de
futebol – assim como se pretende aqui, no que tange ao gênero e à sexualidade em sua dimensão
própria e compartilhada.

Vale ressaltar que não há uma vasta quantidade de produções acadêmicas voltadas para
esse tema, e, dada sua interseção com aspectos que envolvem a emergente necessidade de se
investigar e combater práticas discriminatórias e opressivas, acreditamos se tratar de uma
produção necessária. O conhecimento que se produzirá nesta pesquisa fortalecerá a
compreensão dos desdobramentos do machismo e da homofobia em um setor de enorme apelo
popular – que além de palco da discriminação, também pode e deve ser palco de uma
transformação de dentro (dos estádios) para fora. Este trabalho poderá contribuir para o campo
acadêmico da Psicologia por utilizar-se de um conteúdo considerado vulgar e que passa
despercebido como apenas mais uma forma de violência simbólica, tais como as expressões
sexistas, homofóbicas e referentes às representações genitais e anais, mas que operam em forma
de metáforas a disputa subjetiva dos grupos que entoam as canções e provocam seus adversários
utilizando-se de tal conteúdo.

Também toma parte como motivação deste estudo um dos princípios fundamentais do
Código de Ética Profissional do Psicólogo (2005, p. 7), a saber: “O psicólogo atuará com
responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica,
social e cultural”. Compreende-se que a produção de conhecimento aqui desenvolvida pretende
a transformação da realidade das opressões de gênero e sexualidade, e que uma possível
intervenção no fenômeno do futebol e da cultura de estádios depende da compreensão de suas

2
Ver o trabalho do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, disponível em:
https://observatorioracialfutebol.com.br/.
12

minuciosidades, características e dinâmicas próprias. Propõe-se analisar criticamente a


realidade do futebol e suas torcidas, contribuindo com a produção de um conhecimento que se
motiva a compor, assim como várias das referências a serem abordadas ao longo do estudo, os
esforços intelectuais para se compreender uma realidade de opressão e discriminação que urge
por um fim. Diante do desafio de compreender tais atravessamentos, planejou-se,
primeiramente, discorrer sobre o fenômeno do futebol e suas características que nos permitem
compreender como um esporte consegue ultrapassar quatro linhas e os noventa minutos para se
tornar um elemento constituidor da identidade nacional (MASCARENHAS, 1993),
movimentando massas de torcedores no Brasil e no mundo para viverem momentos de beleza
sublime até as experiências de mais atroz violência. O segundo capítulo apresenta alguns
conceitos da psicanálise que permitirão orientar uma proposta analítica e interpretativa do que
se refere à organização das torcidas quanto nas suas produções gráficas (imagens em bandeiras
e memes) e produções de cantos entoados nos estádios em dias de jogos e expressões cotidianas
jocosas (ou não) da síntese diária do futebol na vida de seus adeptos. Perpassa-se uma breve
apresentação do complexo de Édipo e do complexo de castração, para compreender os
antecedentes do movimento de investimento libidinal da criança aos elementos culturais, sob o
filtro daquilo que é permitido e estimulado no universo masculino. Em seguida, serão
apresentadas e descritas na quarta seção amostras desses materiais em que foram identificados
em seu conteúdo elementos relacionados a gênero (machismo, misoginia), sexualidade
(metáforas sexuais) e orientação sexual (LGBTQIAP+fobia). Por fim, aponta-se uma possível
conclusão do papel da torcida de viabilizar a vazão das pulsões homoafetivas naturais do
processo de identificação3 masculina tanto através da homossociabilidade entre torcedores de
um mesmo time quanto pela projeção dos estereótipos de tais pulsões aos rivais, compondo
para o grupo vencedor da partida um cenário de supremacia e dominação sobre o rival dotado
daquilo que se rejeita para si.

3
“A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra
pessoa” (FREUD, 1996b, p. 115).
13

2 Futebol, torcidas e suas contradições

2.1 O futebol e seus sentidos na cultura brasileira

O esporte utilizando a bola e os pés aparece na história de chineses a romanos, de


gravuras astecas a britânicas medievais (GALEANO, 2022). Mas é mesmo na Inglaterra que os
homens se reuniram para definir as regras do esporte que se desenvolveria até o que conhecemos
hoje. De um modo ou de outro, a prática desse esporte sempre permitiu várias funções ou
sentidos: lazer, saúde, educação, ritual. Assim, segundo Luccas (1998, p. 27), pode-se postular
que o futebol “apresenta-se como uma tradição inventada possuindo as características de um
momento de pura expressão de violência interna e externa aos grupos sociais e também
características educacionais e recreativas”.

Populariza-se tão intensamente no Brasil que, nacional e internacionalmente, passa a ser


percebido como um dos elementos centrais na nossa cultura e um dos principais meios de
representar nossa nacionalidade (MASCARENHAS, 2012). No entanto, nos primórdios do
esporte no Brasil e a formação dos primeiros clubes constituídos por membros da elite paulista,
negros e pobres eram proibidos de participar, e somente à medida que a prática se espalha
geográfica e socialmente, clubes de origem popular começam a surgir e firmar seu espaço no
cenário do esporte nos meados da primeira metade do século XX (LUCCAS, 1998). No Brasil
não é difícil perceber que, popularmente,

a filiação futebolística constitui-se num dado tão importante quanto a família e a


comunidade de origem ou religiosa. Somos “livres”, desde crianças, para escolher
nosso time, mas, paradoxalmente, essa escolha geralmente depende tanto da família,
quanto do grupo de amigos da criança. Desta forma, o futebol transmite valores como
a lealdade absoluta a um time, segmentando a sociedade em “coletividades
individualizadas e compactas”4 (SOUZA, 1996, p. 2-3).

O futebol, sendo um esporte relativamente simples em termos de regras, viu-se


popularizado em um país de dimensões continentais como o Brasil em questão de poucas
décadas desde o retorno de Charles Miller (1874-1953), em 1894. Brasileiro, filho de britânicos,
foi enviado para cumprir seu percurso educativo na Inglaterra ainda jovem, e voltou de lá
portando bolas, uniformes e as regras vigentes instituídas do jogo daquele momento. Por isso é
creditado como o responsável por introduzir o esporte no Brasil, embora este debate seja
passível de discussões pela existência e influência de esportes e práticas indígenas com bolas

4
DA MOTTA, Roberto. Esporte na Sociedade: Um Ensaio sobre o Futebol Brasileiro. In: DA MATTA, Roberto
et alii. Universo do Futebol: esporte e sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982, p. 29.
14

de borracha (LUCCAS, 1998). As primeiras ligas e campeonatos surgem nas grandes cidades,
de modo que a partir da década de 20, diversas das unidades federativas já possuíam seus
campeonatos, criando grande impacto na formação de identidades nos grandes centros urbanos
(MASCARENHAS, 2012).

Não se pode permitir uma abordagem da história do futebol no Brasil sem que suas
contradições sejam evidenciadas, para que não se corra o risco de alimentar nem um mítico e
saudosista “futebol raiz” que muitos se utilizam na atualidade para objetar uma aproximação
crítica do futebol, nem alimentar o negacionismo do racismo constituidor da história do Brasil.
Tal como alerta Luccas (1998, p. 31),

o futebol apresenta-se como elemento independente das relações nas sociedades onde
se desenvolveu, a ponto de ser considerado, simplesmente, um esporte. Esta
independência estrutural esconde a história de seu próprio desenvolvimento e procura,
de certa forma, retomar a ancestralidade e presença do jogo em todas as culturas,
apelando para um saudosismo e romantismo. Mas, procedendo desta forma, oculta e
aliena as relações sociais, políticas e econômicas que determinam o fenômeno. [...] Na
medida em que o futebol impõe aos seus praticantes a ilusão de igualdade, ele ultrapassa
as fronteiras do esporte e ganha as massas populares, perpetuando-se definitivamente
entre elas como grande fenômeno do século.

José Miguel Wisnik (2008, p. 404) aborda tais contradições com uma analogia de
Machado de Assis, para a literatura, e Pelé para o futebol:

Se Machado de Assis tornou-se quase inseparável [...] do equacionamento das “ideias


fora do lugar”, isto é, dos desnivelamentos e disparates entre a escravidão cotidiana e a
pretensão universalizante do liberalismo burguês que pautou as nações modernas, o
futebol brasileiro de Pelé são inseparáveis do “lugar fora das ideias”, o vetor
inconsciente por meio do qual o substrato histórico e atávico da escravidão se
reinventou de forma elíptica, artística e lúdica.

Wisnik (2008) aponta para uma “dupla cena” do início no futebol no Brasil: sua
dimensão “visível”, do futebol como uma fina importação cosmopolita britânica, praticada pela
elite em clubes bem gramados, isolados do povo. A cena visível se mostrou pretensiosamente
(pseudo)helenista, com ares eugenistas e orgulhosamente classistas, que seria frustrada por uma
disseminação implacável nas ruelas e “campos pelados”, uma abrupta, porém “invisível” e “[...]
insuspeitada tomada simbólica do campo futebolístico brasileiro por negros e mulatos”
(WISNIK, 2008, p. 204). Uma “radiografia” do futebol no Brasil permite - a partir da
comparação de Machado e Pelé por Wisnik (2008, p. 406) - fazer “[...] o país saltar aos nossos
olhos como melhor do que ele mesmo”, por conter nele todas as contradições e ao mesmo tempo
as potencialidades, por representar estética e logicamente modos de pensar (e de jogar) no
terceiro mundo, diante do imprevisível ou da necessidade do improviso:
15

o futebol é [...] o saldo ambivalente desse déficit, seu veneno e seu remédio prodigioso.
Seria mais um mecanismo de fuga entre outros se não fosse, ao mesmo tempo, o campo
em que a experiência brasileira encontrou uma das vias privilegiadas para atravessar o
seu avesso e a tocas as fraturas traumáticas que nos constituem e permanecem em nós
como um atoleiro. Ele é a confirmação do paradoxo da escravidão brasileira como um
mal nunca superado e, ao mesmo tempo, como um bem valioso em nossa existência,
não pela escravidão enquanto tal - o que é óbvio e gritante aos céus -, mas pela
amplitude de humanidade que desvelou. Por isso mesmo, ele figura como redenção e
como falha irresolvida, como o remédio irremediável em que pendular, a incapacidade
de estender os seus dons vitoriosos e potentes às outras áreas da vida nacional - em
especial à educação e à política, com implicações para todo o resto. E a mesma cegueira
faz com que se queira gozar os seus efeitos como se fossem dados de presente e desde
sempre e que se recuse a reconhecer o custo permanente de sua construção (WISNIK,
2008, p. 407-408).

2.2 Torcidas, torcedores e suas peculiaridades

Uma torcida de futebol pode ser definida como o público, de forma geral, que vai ao
estádio para assistir a uma partida, seja por identificação a um determinado clube, seja para
apoiar o time ou simplesmente apreciar a disputa entre as equipes. Já uma torcida organizada
(TO) pode ser definida como um grupo estruturado, muitas vezes com distintos níveis
hierárquicos e/ou diferentes funções distribuídas entre seus membros, que possui como
principal objetivo mostrar-se como referência na torcida, sempre presente nos estádios em apoio
ao seu clube. Torcidas organizadas de um mesmo clube podem ser bastante diferentes entre si,
em termos de coesão ou da origem de seus membros. Há torcidas que levam para os estádios
pautas sociais, como o combate ao racismo, ao machismo, ao elitismo e à homofobia, enquanto
outras abominam sua associação a qualquer pauta politizadora. Mesmo assim, é relativamente
comum ver torcidas organizadas envolvidas em campanhas sociais de arrecadação de recursos
para apoiar comunidades ou determinadas causas – o que por si só revela uma dimensão do
fator “extracampo”, ou para além do esporte, que muitas torcidas acabam por enredar-se.

A fim de cumprir o objetivo de fazer-se presente nos estádios e demais eventos


relacionados a determinado clube de futebol, cada torcida organizada possui uma identidade
visual própria, compartilhando suas cores com a de seus clubes e possuindo nomes, símbolos e
às vezes até mascotes que se destacam em suas faixas, bandeiras e camisas ostentadas nos
estádios e demais eventos, como confraternizações e campanhas. Não parece se tratar de algo
de caráter compulsório, mas é notável a preferência que muitos membros de torcidas
organizadas têm de vestir o uniforme da torcida em detrimento do uniforme do clube, sendo
esse último mais comum entre torcedores que não são membros de torcidas organizadas.
16

Dentre as principais formas de manifestação das torcidas organizadas estão suas


manifestações iconográficas, com bandeiras, bandeirões, faixas, trapos e vestimentas de todos
os tipos (camisas, calças, bonés, meias e chapéus); além das “falas musicadas”, “gritos de
guerra”, em coro, que expressam sentimentos, insultos, vontades e opiniões de uma torcida
(TOLEDO, 1993), e canções entoadas durante as partidas. As principais torcidas organizadas
de cada clube têm maior influência no canto que o resto do estádio entoará, por serem os
maiores e mais tradicionais grupos. Normalmente, são essas torcidas as compositoras das
canções que praticamente qualquer torcedor de um clube conhece e canta, mesmo não sendo
parte da TO.

Toledo (1993) classifica quatro categorias de cantos “gritos de guerra” de torcida: os de


incentivo, com o objetivo de proporcionar à equipe maior estímulo, para que jogadores joguem
com mais intensidade; protesto, com relação a uma gama de possibilidades, tais como o baixo
rendimento da equipe ou contra uma decisão (o a falta dela) do árbitro; de intimidação, para
com jogadores ou torcedores adversários, contra a equipe de arbitragem da partida e até mesmo
para a polícia; e os de auto-afirmação, para afirmar a presença ou a hegemonia de determinada
torcida. Alguns cantos também servem a recordação de momentos de triunfo do clube ou da
torcida sobre os rivais, até mesmo do fracasso dos mesmos; para comemorar uma conquista do
clube ou até para reafirmar a paixão que os torcedores têm por seu clube – muitas vezes,
tentando mostrar que determinada torcida é mais apaixonada do que as de outros clubes. Alguns
cantos e representações gráficas (seja em bandeiras, camisas, nos muros e inclusive nas redes
sociais) visam provocar a desestabilização e a ira ao time ou à torcida adversária. Provocações
podem tomar como inspiração, por exemplo, justamente este caráter bélico entre TOs, onde se
menciona um cenário em que uma TO derrota a rival em um confronto violento, ou se reforça
o caráter de “freguesia” – adjetivo pejorativo atribuído àquele constantemente derrotado – de
uma equipe sobre a outra. A dedicação das torcidas aos atos de provocação aos adversários é
notória de tal forma que é possível perceber que “no decorrer dos jogos, muitas vezes, as
torcidas adversárias parecem dirigir sua atenção mais para o grupo inimigo - cantando refrães
obscenos, direcionando-lhe gestos agressivo-sexuais e enviando-lhe mensagens ofensivas - do
que propriamente para a partida (FREITAS, 2007, p. 9). Apesar disso, Toledo (1993) lembra
da necessidade de que tais manifestações sejam analisadas, para além de seu caráter explícito
no que tange ao chiste, à sátira, à agressividade, etc, dentro de seu universo simbólico,
ritualístico, da sociedade à qual os grupos de torcedores estão inseridos. Cabe aqui ater-se ao
aspecto competitivo, que escapa ao jogo de futebol em si, mas que toma o esporte como base
17

para representar e atualizar estes conflitos – físicos ou simbólicos – entre as torcidas


(LUCCAS, 1998). Dessa forma, a vivência do futebol por parte dos aficionados pode tornar
essa experiência tão catártica a ponto de torcidas organizadas de clubes rivais se considerarem
verdadeiros inimigos, levando à ocorrência de inúmeros episódios de violência.

Apesar de sua relevância, muito do que se encontra sobre o campo de investigação


científica tangente ao tema de torcedores de futebol se concentra justamente no tema da
violência entre grupos de torcedores organizados5. Além disso, este tema possui um enorme
apelo midiático, por sua abundância e diversidade de ocorrências. Segundo Luccas (1998), o
campo de investigação tendo torcidas de futebol como objeto de estudo passa a chamar a
atenção de pesquisadores com a emergência do hooliganismo inglês e a atenção da mídia aos
confrontos entre torcedores ocorridos na Copa do Mundo de 1966, no Reino Unido. O
fenômeno dos hooligans é analisado como o resultado de mudanças sociais e econômicas, que
implicam na resposta de jovens da classe trabalhadora ao

desenvolvimento de uma maior elaboração de refinamentos de padrões sociais; o


aumento da pressão social para o exercício do autocontrole dos sentimentos,
comportamentos e funções corporais; e a ampliação do controle da violência e das
agressões. Ampliação que [...] produziu a diminuição da capacidade de sentir prazer
em causar sofrimento e testemunhar violência e pelo aumento da identificação mútua
(ELIAS, DUNNING apud REIS, LOPES, MARTINS, 2005, p. 620) 6.

Apesar de todo o apelo midiático sobre os violentos confrontos que compõem a


representação social das torcidas organizadas, há também um confronto mais generalizado, que
não se restringe aos membros de uma TO, sendo praticado não só dentro dos estádios, mas
também nos bares e locais de confraternização que têm como pretexto o ato de assistir
conjuntamente a uma partida de futebol, e atualmente, em grande escala, também nas redes
sociais. Este confronto se dá no campo simbólico, e

podemos vê-lo como uma prática humana onde o conflito, instalado entre dois lados
em oposição, sempre se fez atualizável e representável através do jogo. Esta espécie de
conflito admite uma terceira posição: a dos espectadores, diretos ou indiretos. De
qualquer forma, portanto, é possível admitirmos a presença de expectativas e de algum
meio de expressão, em relação ao resultado do conflito (LUCCAS, 1998, p. 46).

Conforme aponta Toledo (1993, p. 20), “a fruição do futebol consiste também em uma
experiência da ordem do vivido e do falado; fenômeno recorrente do imaginário popular
acionado verbalmente no discurso cotidiano e que é recriado e reinventado diariamente através

5
A título de exemplo, ver: Pimenta, 2000; Moraes, Moraes, 2021; Santos, 2010, Silva, Barbosa, 2017.
6
ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa, DIFEL, 1992.
18

de uma linguagem que transcende o tempo e o espaço ritualístico do momento de cada partida”.
Nas palavras de Barison (2010, p. 89), no ritual do conflito futebolístico “[...] o mais fantástico
é que depois de apurado o vencedor e o derrotado, o próximo jogo recomeça no zero a zero,
dando a chance de um eterno recomeço.”

No que tange à dimensão de gênero no futebol e suas torcidas, ainda que se constate
uma abundante presença feminina nos estádios na atualidade, a topografia da cultura
futebolística ainda delimita distinções de gênero7, de forma que suas normas e representações
indicam que os ambientes que respiram o futebol são eminentemente masculinos. Conforme
aponta Júnior (2019), a situação de discrepância e desigualdade que coloca a mulher abaixo no
mercado de trabalho também ataca as jogadoras de futebol, tanto no quesito financeiro quanto
no que tange à representatividade feminina. Este autor realiza um levantamento de capas de
revistas que revela a baixa representatividade das mulheres com relação ao esporte por elas
praticado, e a predominância de sua representação sexualizada e como acompanhantes de
atletas famosos (JÚNIOR, 2019). Martins (2017) aponta, a partir de relatos coletados de
torcedoras paulistas, que torcedoras têm de seguir “códigos de conduta” específicos e ditados
pela cúpula masculina da TO da qual faziam parte, e deveriam segui-lo no intuito de ter
reconhecida sua presença e adesão à torcida. Para reforçar os pressupostos já explicitados sobre
masculinidade e feminilidade, uma devida consideração da categoria gênero, segundo Santos
(2012, p. 2), deve-se ter em mente que

as diferenças entre os sexos, compreendidas como construções sociais e não como


“destinos biológicos” indicam que a sociedade instaura patamares de poder e
dominação. Assim, estabelece segregações que acabam por determinar um valor para
as responsabilidades do masculino diferente das responsabilidades do feminino, não
só no que concerne à remuneração, e direitos iguais, mas também quanto ao
reconhecimento social, além da “naturalização” da responsabilidade e manutenção da
reprodução da lógica constituída. Portanto, reafirma as relações de opressão e
reproduz os valores da sociedade patriarcal em que o masculino se sobrepõe ao
feminino.

Para além da hierarquia com base nas relações de gênero, as torcedoras devem também
submeter-se à prática de cantos machistas direcionados ao adversário. Essa recorrente
modalidade de provocação se dá através da “feminização” do jogador ou torcedor rival, com o
objetivo de irritá-lo e diminuí-lo, atribuindo-lhes substantivos, pronomes e adjetivos que se
associam ao feminino dentro desse mosaico representacional da disputa de gênero. O caráter de

7
Ver o trabalho de Leda Maria da Costa (2006): “O que é uma torcedora? Notas sobre a representação e auto-
representação do público feminino de futebol”, e Mariana Zuanetti Martins (2017): “Mulheres torcedoras de
futebol: questionando as masculinidades circulantes nas arquibancadas”.
19

exclusão, através de expressões machistas e homofóbicas se torna mais evidente quando se


percebe que mulheres e pessoas LGBTQIAP+ são convocadas ao discurso que compõe o
universo compartilhado do futebol quando torcedores se utilizam de representações sociais
vexatórias e pejorativas para atacar os adversários, em concomitância com a deslegitimação e
a percepção de incongruência da presença dessas pessoas no estádio (PINTO, 2017). As
manifestações que se utilizam desse artifício visam compor um cenário simbólico em que o
lado vitorioso, masculino, tem poder e controle sobre o lado derrotado, feminino, que, “na
maioria das vezes, é associado à fragilidade, a passividade, a meiguice e ao cuidado. Qualidades
que não são associadas ao masculino, pois nossa sociedade reforça que a agressividade, o
espírito empreendedor, a força e a coragem são sinônimo de masculinidade” (AUAD apud
SANTOS, 2012, p. 4)8. Conforme aponta Souza (1996),

é comum os torcedores enaltecerem a sua imagem de masculinidade, em detrimento de


uma suposta falta de virilidade, passividade e feminilização dos adversários,
principalmente nas suas manifestações coletivas, como nos xingamentos. Além disso,
no Brasil, o senso comum estabeleceu que “futebol é coisa pra homem” [...], mas a
mulher também é representada como algo que deve ficar fora do futebol, apesar de fazer
parte da cultura do futebol, nem que seja por negação (“mulher como não-futebol”).

Tal composição de um cenário de controle e dominação, atualizável através do resultado


do jogo ou do resultado de um confronto entre TOs, utiliza-se também de metáforas sexuais.
Tais metáforas, evocadas através de cantos, expressões e imagens, constituem-se de uma cena
de relação sexual, comumente anal ou oral, em que o lado vitorioso assume uma posição ativa
com relação ao perdedor, que é quem é penetrado pelo vencedor. Sobre as categorias de gritos
e cantos de torcida elaboradas por Toledo (1993, p. 23) descritas aqui anteriormente, o autor
aponta para a presença do tema da sexualidade em todas elas, em diferentes funções:

Geralmente, nos cantos que se referem aos incentivos e auto-afirmação, os palavrões


utilizados exaltam atributos masculinos de potência e virilidade, remetendo ao domínio
da força ante os opositores. [...] Nos cantos de protesto e intimidação, os palavrões são
opostos e exprimem a passividade sexual, subordinação, inferioridade e fraqueza, tanto
dos jogadores quanto dos torcedores adversários.

Pode-se apontar um caráter paradoxal, dado que muitas torcidas apresentam


comportamentos altamente homofóbicos em suas canções ou expressões. Porém, não parecem
censurar-se quando estão diante da possibilidade de dizer que irão “comer o cu” do adversário
perdedor, ou ao solicitar que o perdedor lhes “chupe”. Ainda, a torcida que comemora um gol,
uma vitória ou a conquista de um campeonato admite abraços e demais demonstrações de afeto

8
AUAD, Daniela. Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola. São Paulo: Ed. Contexto, 2006.
20

que, segundo Júnior (apud WISNIK, 2019)9, normalmente não se reproduzem em outras
situações do cotidiano.

Este caráter de exceção que o ambiente da torcida promove é compreendido como um


espaço em que o indivíduo coloca seus valores e características outrora reprimidas socialmente
em detrimento da provisória identidade do coletivo (PIMENTA apud MORAES, MORAES,
2012)10. Da mesma forma como os episódios de violência e vandalismo – majoritariamente
praticados em grupo – possam ser explicados pelo que Freud (apud MORAES, MORAES,
2012) chama de instinto social, o aspecto da sexualidade que muitas vezes se manifesta
excepcionalmente nestes contextos e permite que o exercício da masculinidade vigilante para
com a demonstração dos próprios afetos entre em relativa dissolução, também possa ser
compreendida na lógica desse conceito. Conforme aponta Toledo (1993, p. 27), “Quando
torcedores se encontram sozinhos a caminho dos estádios, é raro configurar-se este estado de
ânimo alterado observado quando estão em grupo. Sozinhos, rompem o sentimento de pertença
e retornam ao anonimato da individualidade. Cessam os xingamentos e as provocações”.

Apesar de existirem hoje iniciativas que visam maior representatividade feminina, pelo
respeito à diversidade sexual e o combate de opressões no futebol11, a maior parte do conteúdo
sobre essa questão são notícias que relatam episódios de violência contra pessoas LGBTQIAP+,
como por exemplo, uma matéria publicada pelo portal do Observatório da Discriminação Racial
no Futebol (2017), onde torcedoras do Clube Atlético Mineiro e do Cruzeiro Esporte Clube
relatam suas experiências de discriminação dentro dos estádios. Este tema poderia render um
novo capítulo para este trabalho, ou, por si, inúmeros outros trabalhos. No entanto, não integra
o objetivo dessa pesquisa. Mas há de se ressaltar, felizmente, que “a invisibilização ou
depreciação do feminino em diversos espaços, sejam acadêmicos ou esportivo, têm sofrido com
os impactos de movimentos sociais que, tal como o feminismo (nas suas mais diversas
correntes), ora reivindicam igualdade ora diferenciação” (PISANI; KESSLER, 2022).
Conforme aponta Ceccarelli (2015, p. 2),

pai, mãe, paternidade e maternidade são funções sociais, cujos conteúdos se redefinem
ao longo do tempo e da história. A contemporaneidade tem, sem dúvida, nos levado a
uma profunda revisão desses conceitos. Um dos principais promotores dessas

9
WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
10
PIMENTA, Carlos Alberto Máximo. Torcidas organizadas e futebol: violência e auto-afirmação - aspectos
teóricos da construção das novas relações sociais. Taubaté: Vogal, 1997.
11
Dentre as iniciativas de atleticanxs, cito: Galo Queer, Grupa, Universo Feminino Alvinegro (UFA), Resistência
Alvinegra, Força Atleticana Revolucionária. De cruzeirenses, cito: Marias de Minas, Resistência Azul Popular
(RAP).
21

transformações foram os movimentos feministas. A partir do momento no qual


mudanças socioeconômicas levam a um reposicionamento do papel social das mulheres
nas relações sociais e de produção, o patriarcado passou a perder terreno, o que afetou
as representações culturais do masculino e da paternidade.
22

3 Psicanálise, identificação masculina e futebol

3.1 Por que psicanálise?

À medida que este trabalho se inclina sobre um material com características específicas
(presença de aspectos referentes ao gênero e sexualidade) que, a princípio, pouco ou nada tem
a ver com a prática do futebol em si, pode-se apostar que a presença dessa temática nos materiais
a serem analisados se explica a partir de elementos subjacentes à enunciação ou exibição dos
mesmos. Qual a relação entre o futebol, ou seja, a competição esportiva e a representação da
mesma através de um conteúdo sexual, ou que coloca em questão uma diferença entre o
masculino e o feminino, ou o heterossexual e o homossexual? Por que esta forma e não outra
de representar o conflito?

A ideia de conflito, dentre seus possíveis significados, diz respeito a um confronto, um


choque, uma oposição entre duas ou mais instâncias, ocasionado pela falta de entendimento, de
coesão, de alguma forma de unidade ou de harmonia (MICHAELIS, 1998). A Psicanálise em
seu vasto corpo teórico, foi selecionada como lente para a investigação do objeto deste estudo
justamente por se tratar de uma ciência que surge a partir do reconhecimento de uma cisão no
próprio sujeito, sujeito este que era concebido pela Psicologia Clássica como identificado à
consciência (GARCIA-ROZA, 1985). O neurologista austríaco Sigmund Freud (1856-1939)
funda a psicanálise a partir da descoberta de um regime inconsciente na psique humana,
provocando na Psicologia de sua época uma mudança na concepção do termo inconsciente de
um termo adjetivo àquilo que não é consciente para um “[...] sistema psíquico distinto dos
demais e dotado de atividade própria” (GARCIA-ROZA, 1985, p. 178).

Tal reviravolta conceitual foi de tamanho impacto para a ciência que viria a se
desenvolver no século XX que o trabalho de Freud foi colocado juntamente com os de Nicolau
Copérnico (1473-1543) e Charles Darwin (1809-1882) como o terceiro golpe narcísico da
humanidade, por sedimentar o lugar protagonista da racionalidade no conhecimento do ser
humano sobre si mesmo e por “[...] fazer da consciência um mero efeito de superfície do
inconsciente” (GARCIA-ROZA, 1985, p. 21). Luccas (1998, p. 87), citando o psicólogo Luís
Cláudio Figueiredo12, afirma que “[...] é provável que nenhum dos outros saberes
contemporâneos tenha expressado melhor e mais fundamentalmente a falência do sujeito da

12
FIGUEIREDO, Luís Cláudio Mendonça. Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética das práticas e
discursos psicológicos. São Paulo: EDUC; Petrópolis/RJ: Vozes, 1995, p. 21.
23

modernidade com suas pretensões de autonomia, reflexividade e autocentramento”.


Essencialmente, a psicanálise parte da cisão pressuposta na constituição psíquica conflituosa
do sujeito. Nesse sentido, “o conflito é por excelência o modus operandi de uma psique cindida
em instâncias diferenciadas, que traz consigo a fantasiosa memória de uma unidade originária,
para sempre perdida” (PAIVA, 2009, p. 263).

3.2 Sexualidade infantil, complexo de castração e complexo de Édipo

Para compreender adequadamente as origens deste conflito, primeiro, optou-se por uma
explanação mais geral acerca da sexualidade infantil e os processos de constituição psíquica do
sujeito. Sem dúvida, um dos principais feitos de Freud foi o de combater através de sua ciência
toda crença ou o tabu da sexualidade infantil, através do reconhecimento da naturalidade e
normatividade da pulsão13 sexual14 na infância. Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
(FREUD, 1905/1996a), publicado em 1905, Freud causa um verdadeiro reboliço dentro do
paradigma científico de sua época, por, no primeiro capítulo, discorrer sobre a frágil ligação
entre a pulsão sexual (libido15) e o objeto sexual (a proveniência da atração sexual),
contribuindo para a despatologização da homossexualidade, ou, no vocabulário arcaico do
autor, a retirada da “inversão” do espectro da “degeneração” (FREUD, 1905/1996a). O segundo
capítulo dessa obra já explora a sexualidade infantil propriamente dita, rompendo com a
concepção popular de que a sexualidade estaria ausente na infância. O pai da psicanálise aponta
para as formas de manifestação da sexualidade infantil, através do “chuchar” (sugar com

13
Segundo Garcia-Roza (1985), a pulsão se refere a um construto teórico que não diz respeito a uma realidade
observável, mas um conceito que serve para a psicanálise para delimitar a intermitência do inconsciente. Para o
autor, “são puras construções teóricas ou, se preferimos, ficções teóricas que permitem e produzem uma
inteligibilidade distinta daquela fornecida pela descrição empírica. Esses conceitos não descrevem o real, eles
produzem o real; ou, se quisermos, eles permitem uma descrição do real segundo um tipo de articulação que não
pode ser retirado desse próprio real enquanto “dado” (GARCIA-ROZA, 1985, p. 115). Segundo Freud (apud
GARCIA-ROZA, 1985, p. 116), “é “um conceito situado na fronteira do mental e o somático”; ou ainda, “é o
representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente”.”.
14
“O fato da existência de necessidades sexuais no homem e no animal expressa-se na biologia pelo pressuposto
de uma “pulsão sexual”. Segue-se nisso a analogia com a pulsão de nutrição: a fome. Falta à linguagem vulgar [no
caso da pulsão sexual] uma designação equivalente à palavra “fome”; a ciência vale-se, para isso, de “libido”
(FREUD, 1905/1996a, p. 128).
15
“Estabelecemos o conceito de libido como uma força quantitativamente variável que poderia medir os processos
e transformações ocorrentes no âmbito da excitação sexual. Diferenciamos essa libido, no tocante a sua origem
particular, de energia que se supõe subjacente aos processos anímicos em geral, e assim lhe conferimos também
um caráter qualitativo. Ao separar a energia libidinosa de outras formas de energia psíquica, damos expressão à
premissa de que os processos sexuais do organismo diferenciam-se dos processos de nutrição por uma química
especial. [...] Vemo-la então concentra-se nos objetos, fixar-se neles ou abandoná-los, passar de uns para outros e,
partindo dessas posições, nortear no indivíduo a atividade sexual que leva à satisfação, ou seja, à extinção parcial
e temporária da libido” (FREUD, 1905/1996a, p. 205-206).
24

deleite)16 e do auto-erotismo17, interpretando tais atividades como uma tentativa de


rememoração de uma primeira e inédita experiência de prazer: “a princípio, a satisfação da zona
erógena deve ter-se associado com a necessidade de alimento. A atividade sexual apoia-se
primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e só depois torna-se
independente delas” (FREUD, 1905/1996a, p. 171). Essa associação da satisfação sexual
atrelada à saciação de uma necessidade fisiológica, das urgências vitais e o atravessamento de
um outro é descrita brilhantemente por Jacqueline Moreira (2004, p. 110): “As urgências de
vida só desaparecem mediante uma ação específica. Todavia, o recém-nascido não tem
condições motoras, nem de linguagem, para realizar a ação específica, anunciando, assim, a
dependência de um outro”. Prossegue a autora:

O recém-nascido possui uma sensação vaga e indefinida do mal-estar, faltam-lhe os


recursos simbólicos necessários para traduzir e identificar o mal-estar. [...] o grito e o
choro que a princípio representam respostas internas, que objetivam a eliminação do
quantum energético, transformam-se em meios de comunicação. [...] O que o bebê pode
fazer enquanto a ação específica não for encontrada é chorar e agitar-se. Mas essa via
de descarga transforma-se, acidentalmente, em um elemento crucial no processo da
vivência de satisfação. O choro chama a atenção da pessoa experiente, iniciando, assim,
o processo de realização da ação específica (MOREIRA, 2004, p. 113-114).

A sexualidade infantil manifesta-se também através das possibilidades masturbatórias


anais e genitais. No caso da atividade da zona anal, Freud (1905/1996a) postula a criança tira
proveito da sensação provocada pela passagem das fezes, de estimulação da mucosa anal, e,
posteriormente, consegue empregar a habilidade de retenção das fezes em sua relação com seus
cuidadores, de modo que em dadas situações passa a ser desejo do cuidador que a criança
evacue. Já a zona genital, é facilmente estimulada através do próprio cuidado do corpo, pela
lavagem, fricções acidentais, de modo que já na infância se estabelece a primazia da genitália
nas atividades sexuais que se desenvolvem no futuro (FREUD, 1905/1996a).

Um dos grandes pontos acerca da teorização freudiana acerca da sexualidade infantil é


a de sua disposição perversa polimorfa: “isso mostra que traz em sua disposição a aptidão para
elas [todas as transgressões possíveis]18; por isso sua execução encontra pouca resistência, já

16
“O chuchar [Ludeln ou Lutschen], que já aparece no lactente e pode continuar até a maturidade ou persistir por
toda a vida, consiste na repetição rítmica de um contato de sucção com a boca (os lábios), do qual está excluído
qualquer propósito de nutrição. Uma parte dos próprios lábios, a língua ou qualquer outro ponto da pele que esteja
ao alcance - até mesmo o dedão do pé - são tomados como objeto sobre o qual se exerce essa sucção” (FREUD,
1905/1996a, p. 169).
17
“Como traço mais destacado dessa prática sexual, salientamos que a pulsão não está dirigida para outra pessoa;
satisfaz-se no próprio corpo, é auto-erótica” (FREUD,1905/1996a, p. 170).
18
Transgressões, aqui, referem-se ao alastramento da possibilidade de extração de prazer para todas as partes do
corpo: “somente em raríssimos casas a valorização psíquica com que é aquinhoado o objeto sexual, enquanto alvo
desejado da pulsão sexual, restringe-se a sua genitália; ele se propaga, antes, por todo o seu corpo, e tende a
25

que, conforme a idade da criança, os diques anímicos contra os excessos sexuais - a vergonha,
o asco e a moral - ainda não foram erigidos ou estão em processo de construção” (FREUD,
1905/1996a, p. 180). Os “diques anímicos” referem-se ao Freud (1905/1996a) atribui em grande
parte à educação em um sentido moralizante, recriminatório e tolhedor das manifestações
sexuais da infância, responsáveis por produzir os referidos “excessos”.

Um outro conceito substancial para psicanálise para se compreender processos de


constituição do sujeito na infância é o da castração. Segundo Juan-David Nasio (1997, p. 13),
“em psicanálise, o conceito de “castração” não corresponde à acepção habitual de mutilação
dos órgãos sexuais masculinos, mas designa uma experiência psíquica completa,
inconscientemente vivida pela criança [...] e decisiva para a assunção de sua futura identidade
sexual”. Este dramático período da infância corresponde ao momento em que a criança,
inicialmente, formando uma unidade experiencial ontológica com a figura materna, é
atravessada pela intercessão de um outro, a figura paterna. É sempre útil lembrar que figuras
materna e paterna não se atribuem necessariamente à mãe e ao pai, mas sim, respectivamente,
aquele que ocupa a posição de suprir as urgências vitais (o afeto incluso) da criança e aquele
que representa um outro interesse ou um outro olhar da figura materna que não a criança
(NASIO, 1997). Neste momento de unidade ainda não existe um Eu, e a criança é regida pelo
denominado princípio do prazer, onde toda a energia psíquica é livre de qualquer amarra e se
concentra dentro do próprio psiquismo, sem ser capaz de distinguir a realidade das alucinações
que a onipotência deste estágio confere à criança (PAIVA, 2009). Essa indistinção
fenomenológica também recai sobre não distinção entre a fonte de desejo e o objeto do desejo,
criando um cenário em que a criança

Vive mergulhada na própria onipotência e controla magicamente tudo aquilo de que


precisa para alimentar o seu poder. Tudo o que precisa fazer é chorar para receber
comida e calor, apontar para pedir a lua e receber, em vez desta, um maravilhoso
chocalho. [...] controlando a mãe, a criança controla, triunfante, o seu mundo
(BECKER, 2021, p. 60).

O complexo de castração é o que dá início ao período edípico da criança, e, apesar de


se desdobrar diferentemente no menino e na menina, inicia-se com a constatação da diferença
anatômica entre ambos os sexos, onde tal diferença é percebida como a posse do pênis por parte

abranger todas as sensações provenientes do objeto sexual. A mesma supervalorização irradia-se pelo campo
psíquico e se manifesta como uma cegueira lógica (enfraquecimento do juízo) perante as realizações anímicas e
as perfeições do objeto sexual, e também como uma submissão crédula aos juízos dele provenientes. Assim é que
a credulidade do amor passa a ser uma fonte importante, se não a fonte originária da autoridade” (FREUD,
1905/1996, p. 142).
26

de uns e a não posse por parte de outros (NASIO, 1997). Representa a clivagem deste estado
psíquico originário, e constitui um dos tempos do chamado complexo de Édipo. Este, por sua
vez, consiste na teorização de Freud, baseado na tragédia sofocliana do Édipo Rei 19, sobre o
momento da infância em que a criança já não se percebe como sendo essa unidade acabada e
perfeita com a figura materna (NASIO, 2007). Findo o primeiro momento do Édipo, o período
imaginário da relação especular com a figura materna, passa-se ao segundo momento em que
há a interdição da figura paterna à relação - que tanto pode ser de fato o pai quando qualquer
outro foco do olhar da mãe (GARCIA-ROZA, 1985). A entrada deste terceiro marca o fim de
um movimento libidinal voltado para a própria psique para o investimento em um Outro
alienado do corpo da criança. Somado à crescente descoberta das zonas erógenas, a criança se
vê diante um desejo incestuoso para com a figura materna e uma dramática e ambígua
hostilidade para com a figura paterna:

O menino nota que o pai se coloca em seu caminho, em relação à mãe. Sua identificação
com ele assume então um colorido hostil e se identifica com o desejo de substituí-lo
também em relação à mãe. A identificação, na verdade, é ambivalente desde o início;
pode tornar-se expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo do
afastamento de alguém (FREUD, 1921/1996b, p. 115).

Para Nasio (2007, p. 26),

o único valor desse desejo insensato de ir para a cama com a mãe e matar o pai é ser a
alegoria do louco desejo de retorno ao estado original de beatitude intrauterina. Para a
psicanálise, cada um de nossos desejos cotidianos – o prazer sensual de contemplar um
quadro ou acariciar o corpo do amado, por exemplo -, cada um desses desejos tenderia,
de um ponto de vista teórico, insisto, para a felicidade perfeita de que gozariam dois
seres conjugados em Um.

A criança deseja reunir-se à figura materna, no entanto, padece do pavor das


consequências da reação da figura paterna, tanto quanto do retorno dos sentimentos hostis
direcionados ao pai enquanto rival nessa disputa pela mãe. Neste contexto, somado à
constatação da diferença dos corpos masculino e feminino, a pobre criatura, neste caso,
considerando um menino20, é induzida ao pavor da possibilidade da perda de seu pênis, que

19
““Édipo Rei” é a tragédia emblemática do teatro grego e, em conjunto com Romeu e Julieta e Hamlet, de
Shakespeare, constitui a peça mais conhecida da literatura ocidental. Sua reputação cresceu ainda mais depois que
Freud tirou o herói do palco e o deitou no divã, nomeando a partir dele o complexo que descreve a atração que
todo filho sente em algum momento por sua mãe. É preciso, no entanto, distinguir o Édipo freudiano do sofocliano.
À ignorância, e não ao inconsciente, devem-se creditar as ações do herói, que consuma o casamento com Jocasta,
sua mãe, desconhecendo o vínculo de parentesco que os une. É isso justamente que torna a história de Édipo
paradigmática, pois, em vista de seu conhecimento limitado e limitante, os homens estão condenados a tatear na
escuridão” (DUARTE, 2018, p. 10).
20
Nasio (2017) expõe com clareza nesta obra o processo edípico do menino e da menina. Reforço que neste
momento e para os fins deste trabalho, o processo do complexo de Édipo vivido pelo menino parece mais pertinente
para se compreender um ambiente dominado pela masculinidade e suas produções opressoras.
27

ocupa a posição de falo, primeiro objeto que suplanta a “falta” constatada no corpo feminino
(NASIO, 2007). Ei-lo, o complexo de castração: o processo que coloca a criança diante da
necessidade de se posicionar diante do gozo impossível. “Ao renunciar à mãe, dessexualiza
globalmente os dois pais e recalca desejos, fantasias e angústia. Aliviado, pode agora abrir-se a
outros objetos desejáveis, mas dessa vez legítimos e adaptados às suas possibilidades reais”
(NASIO, 2007, p. 37).

No menino, o complexo de Édipo chega à sua resolução quando a criança sucumbe ante
a angústia de castração, a experiência inconsciente que anuncia sua desistência do desejo
primordial de possuir a mãe (NASIO, 2007). Insta à criança, a partir deste momento, a
necessidade de direcionar seu desejo para os objetos dispostos no mundo externo à verdade
parental, para os objetos dispostos pela cultura a qual se insere:

uma vez consumada a ruptura, o eu deve seguir seu caminho com a marca indelével
que este processo inscreverá nele: a precariedade, a falta. Certamente, a irredutível
necessidade de abdicar de suas fantasias primárias de fusão [...] impõe à consciência a
sujeição às interdições culturais. Assim, a psique abre-se para o mundo, aceitando seu
convite no sentido de investir afetiva e incessantemente os objetos e horizontes que ele
desvela: as significações socialmente constituídas, os outros, os valores, os ideais que
constituirão formas tardias de identificação (PAIVA, 2009, p. 266).

Ernest Becker (2021) em sua obra “A negação da morte”, propõe uma releitura da
psicanálise visando compreender a constituição psíquica do sujeito não a partir das “fórmulas
sexuais” de Freud e sim através repressão da morte. Em seu esforço reflexivo sobre o período
da diferenciação sexual, postula acerca do caráter frágil e limitador que tal diferenciação
infringe sobre a criança que, neste período, carece dos recursos culturais para se proteger de um
mundo assombrado pela finitude inescapável:

O problema não está tanto no fato de a criança perceber que nenhum dos dois sexos é
“completo” em si mesmo ou de ela compreender que a particularidade de cada sexo é
uma limitação de potencial, uma derrota para a fantasia de viver a plenitude sob certas
formas - ela não pode mesmo saber dessas coisas ou senti-las plenamente. O que
acontece é que não se trata de um problema sexual; ele é mais global, sentido como a
maldição da arbitrariedade que o corpo representa. [...] Trata-se de uma queda da ilusão
para a dura realidade. É um horror de assumir um imenso fardo novo, o fardo do
significado da vida e do corpo, da fatalidade da imperfeição do indivíduo, de sua
impotência, de sua finitude (BECKER, 2021, p. 64).

Em seguida, prossegue:

A pessoa é tanto um eu como um corpo, e desde o começo há uma confusão sobre onde
“ela” realmente “está” - no simbólico eu interior ou no corpo físico. Cada um destes
reinos fenomenológicos é diferente. O eu interior representa a liberdade de pensamento,
a imaginação, e a esfera infinita do simbolismo. O corpo representa determinismo e
confinamento. A criança vai aprendendo aos poucos que a sua liberdade é entravada
pelo corpo e seus apêndices, que ditam “o que” ela é (BECKER, 2021, p. 65).
28

Apesar da divergência anunciada ante a psicanálise freudiana, o autor concorda com as


consequências da implacável angústia de castração. O que está em jogo, de fato, é a ameaça
para a criança da perda da própria vitalidade, uma vez que ela se vê diante da imperiosidade da
renúncia do objeto de desejo primordial, movimento este que vem a se confundir com a própria
morte - simbólica? - do eu, a fonte íntima do desejo (NASIO, 2007; PAIVA, 2009). Doravante,
dentre as diversas possibilidades de investimento libidinal nos atributos culturais para suplantar
a falta da plenitude originária, o menino poderá se utilizar da estratégia de identificar-se ao pai.
Se na visão da criança esse foi o responsável por romper a primeira estrutura imaginária para
com a figura materna e atualizar as posições de poder sobre a mesma, dele se deve poder
absorver algo que fará com que o menino venha a conquistar alguém que possa suplantar sua
falta.

3.3 Gênero, identificação masculina, futebol e grupos

Ceccarelli (1998) aponta para o caráter não natural, não objetivo tanto da masculinidade
quanto da feminilidade, e que as prescrições de gênero são construídas a partir do arcabouço
simbólico que cada sociedade porta ao longo do tempo e espaço, sendo constantemente alvos
de crises e revisões. A masculinidade, portanto, se dá através de um processo de “aquisição”
mediante uma relação bilateral: tanto no movimento de investimento que o filho pode fazer em
direção ao pai para de alguma forma “ser como ele” quanto na esfera qualitativa e quantitativa
do investimento paterno ao filho, que, por sua vez, se dá pela reatualização - mais ou menos
elaborada - dos conflitos desse pai com seu próprio pai (CECCARELLI, 1998). O pai, ou a
figura paterna, torna-se um portador de um arsenal de símbolos para o menino, fazendo com
que, do ponto de vista deste, o pai se torne “[...] objeto de investimento erótico e representante
do mundo masculino, oferecendo este mundo para o menino se identificar. Isto é gerador de
conflito, pois, ao mesmo tempo em que o menino tem que ser homem e, portanto, desejar
mulheres, tem que amar os homens para se identificar com eles” (BARISON, 2010, p. 87).
Entretanto, é sempre válido a elucidar “[...] o quanto a noção de família, paternidade e
masculinidade são dependentes do momento sócio-histórico e da cultura analisada”
(CECCARELLI, 2015).

Evidentemente, como produto das relações humanas ao longo do tempo e de diferentes


espaços, o futebol não escapa à possibilidade de ser utilizado como meio para reprodução de
29

tais valores patriarcais. Por se tratar de um esporte cujos eventos são frequentados
majoritariamente pelo público masculino, há de se constatar que muito de sua produção de
símbolos, cantos, gritos, imagens, memes, etc, irão se constituir através de valores e ideais
heteronormativos. Esse termo, por sua vez, pode ser compreendido “como um arsenal de
normas, regras, posicionamentos e controle que impõe padrões no que diz respeito ao controle
da sexualidade, tendo a heterossexualidade como norma” (JÚNIOR, 2019, p. 8).

Prosseguindo a apresentação do processo de redirecionamento de catexias libidinais da


criança para a cultura e seus símbolos, após inscrita a diferenciação sexual, uma das
possibilidades de o menino identificar-se ao pai é através da assunção de seu time de futebol
(BARISON, 2010). Em sua obra de 1921, Psicologia de grupo e análise do Ego, Freud
(1921/1996b, p. 115) aponta para o papel da identificação no complexo de Édipo: “Um menino
mostrará interesse especial pelo pai; gostaria de crescer como ele, ser como ele e tomar seu
lugar em tudo. Podemos simplesmente dizer que toma o pai como seu ideal”. Neste sentido, o
jogador de futebol - o ídolo - introduzido ao mundo da criança pelo pai (como normalmente
acontece) assume um papel de alternativa para o menino à identificação com o universo
masculino paterna: um homem idealizado que veste a mesma camisa que aquele que o idolatra
nele busca para simbolizar o ideal de vigor masculino demandado pela cultura: “A
masculinidade se dá na incorporação da potência de outro homem, no caso o adulto, geralmente
o pai, mas também, no caso do futebol, o ídolo” (BARISON, 2010, p. 87). Freud (1921/1996b)
postula que a psicologia individual é também psicologia social pelo fato de que na maioria das
vezes, a investigação de um indivíduo que busca pela satisfação não pode ignorar a interseção
dos outros no seu percurso - principalmente quando o pensamos no interior do grupo familiar.
Suponha-se, porventura, que tal como é uma possibilidade de desenvolvimento dos sintomas
neuróticos quando “[...] a identificação apareceu no lugar da escolha do objeto e a escolha do
objeto regrediu para a identificação” (FREUD, 1921/1996b, p. 116), pela mesma lógica possa
se explicar a adesão ou o investimento de um indivíduo para com o futebol, por identificação à
figura que introduz o universo à criança.

Mas é no “[...] fato fundamental de que o indivíduo num grupo está sujeito, através da
influência deste, ao que com frequência constitui profunda alteração mental” (FREUD,
1921/1996b, p. 99) que se poderá explicar a emergência de certos comportamentos e
manifestações de torcedores. Dessa forma, pode-se muito bem apreender um ponto de partida
para a compreensão de diversos fenômenos, da violência física à verbal, mas também das
30

matrizes do comportamento intragrupal em uma torcida de futebol. Tem-se aqui uma


interessante aproximação para explicar certos comportamentos que seriam estapafúrdios se
retirados de seu contexto e transpostos para muitos outros ambientes do convívio social
(DAOLIO apud MORAES; MORAES, 2021)21. Ao considerar-se um estádio lotado, eufórico
e o indivíduo,

sua submissão à emoção torna-se extraordinariamente intensificada, enquanto que sua


capacidade intelectual é acentuadamente reduzida, com ambos os processos
evidentemente dirigindo-se para uma aproximação com os outros indivíduos do grupo;
e esse resultado só pode ser alcançado pela remoção daquelas inibições aos instintos
que são peculiares a cada indivíduo, e pela resignação deste àquelas expressões de
inclinações que são especialmente suas” (FREUD, 1921/1996b, p. 99)

Dessa forma, o grupo pode ser um meio eficiente por provocar o afrouxamento de certas
barreiras impostas pelas normas de sociabilidade, de modo a viabilizar a circulação de afetos
com maior liberdade: “como a nação é representada no futebol como uma irmandade passional,
ela é obrigada a distinguir sua própria homossociabilidade da mais explicitamente sexualizada
relação entre homens, o que requer a identificação, o isolamento e a contensão do
homossexualismo masculino” (SOUZA, 1996, p. 115).

21
DAOLIO, Jocimar. O drama do futebol brasileiro - uma análise sócio-antropológica. Revista Paulista de
Educação Física, 1997.
31

4 Metodologia, análise e discussão

4.1 Metodologia

Compreende-se que o tema deste trabalho consiste no processo sintético da


manifestação de marcadores sociais (gênero, sexualidade) por grupos em contextos social,
temporal e culturalmente localizados (torcedores de futebol). Dessa forma, demandou-se um
método capaz de proporcionar a construção do conhecimento através da aproximação do
significado do material coletado, a fim de se possibilitar uma interpretação adequada da relação
do objeto com o comportamento humano em sua complexa gama de aspectos psicossociais,
justificando, portanto, um enfoque qualitativo do tema (MARCONI; LAKATOS, 2022).

De acordo com as classificações de pesquisas abordadas por Gil (2002, p. 41), a


modalidade de pesquisa de caráter exploratório foi compreendida como uma escolha adequada
por ter como “[...] objetivo proporcionar maior familiaridade com o tema, com vistas a torná-
lo mais explícito ou a construir hipóteses”. Este estudo também pode ser considerado uma
pesquisa documental, tendo em vista que esta modalidade “[...] vale-se de materiais que não
recebem ainda um tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os
objetos da pesquisa” (GIL, 2002, p. 45).

Os cantos de torcida e materiais iconográficos (frases e desenhos dispostos em


bandeiras, charges, “figurinhas” de WhatsApp memes nas redes sociais) foram selecionados
segundo o critério de constituírem-se fundamentalmente de aspectos referentes ao gênero e
sexualidade para configurar uma disputa entre as torcidas. Os materiais foram encontrados
através de diversas fontes: os cantos de torcidas aqui expostos foram encontrados na internet,
através de relatos de torcedores e através das idas ao estádio por parte do autor desta pesquisa,
frequentados dos jogos do Atlético Mineiro; os memes são provenientes de perfis não oficiais
de Instagram feitos por torcedores tanto do Atlético quanto do Cruzeiro, perfis que em sua
maioria visam produzir conteúdo humorístico acerca dos meandros da rivalidade entre as
equipes e compartilhar notícias - muitas vezes utilizando-se do chiste que se compõe pelos
artifícios da feminização, sexualização e homossexualização do outro. Muito do que se refere
aos padrões da manifestação do objeto desta pesquisa também se apreende ao experienciar a
interação entre torcedores, seja entre grupos de amigos compostos por torcedores de ambas as
equipes, e intensamente nas publicações de perfis oficiais e não oficiais sobre futebol nas redes
sociais como Whatsapp, Instagram, Pinterest, X (antigo Twitter) e Facebook. Sendo o autor um
32

torcedor atleticano, foi solicitado ao círculo de amigos cruzeirenses mais próximo que
auxiliassem no processo de coleta de materiais de análise produzidos por torcedores do
Cruzeiro, compatíveis com a ideia da pesquisa. Em seguida, a psicanálise serviu-se de lente
teórica para a finalidade de se desenvolver um esforço interpretativo dos elementos coletados.

A análise da coletânea dos materiais supracitados foi tratada a partir da concepção de


Laurence Bardin (2011) de análise da enunciação. Essa ferramenta permitiu a organização
categórica do material coletado com base na identificação de figuras de retórica, ou seja, os
“operadores” do conteúdo subjacente ao discurso, que se referenciam nas metáforas de gênero
e sexualidade a fim de compreender a forma como estes elementos se inscrevem no discurso
das torcidas. Tais figuras de retórica possuem uma função na dinâmica da comunicação,
tornando o discurso um meio de trabalhar um conteúdo inconsciente à medida que se tem a
linguagem e um outro por intermediários (D’UNRUG apud BARDIN, 2011)22.

Foram elaboradas duas categorias de análise dentre diversas possibilidades que para este
trabalho podem ser suficientes para uma primeira abordagem dos atravessamentos das relações
de gênero e sexualidade nas manifestações de torcedores de futebol. Partindo do estranhamento
que motiva a seleção do tema de pesquisa, planejou-se que as duas categorias se constituam
através da identificação de modalidades de manifestação discursivas e representativas da
estrutura de poder cis-heteronormativa. A primeira categoria compreende os fenômenos que
têm em comum o operador alegórico da relação sexual como forma de simbolizar a disputa
entre torcidas. A segunda categoria de análise compreende as manifestações de torcidas que se
utilizam de substantivos, pronomes e adjetivos do gênero feminino para se referirem aos rivais.

Categoria 1 Categoria 2

A metáfora da relação sexual A feminização do rival

22
D’UNRUG, Marie Christine. Analyse de contenu et acte de parole. Ed. Universitaires, 1974.
33

4.2 Análise e discussão de dados

4.2.1 A metáfora da relação sexual como atualização do balanço de poder entre as torcidas

A primeira categoria de análise para que seja possibilitada a construção de uma análise
é aquela se que constitui por metáforas de relações sexuais. Parte-se do pressuposto, conforme
apontado anteriormente, de que a vivência das torcidas e seus papéis na constituição do
fenômeno do futebol constitui-se de uma dimensão ritualística (JÚNIOR, 2019), como “[...]
prática humana onde o conflito, instalado entre dois lados em oposição, sempre se faz
atualizável e representável através do jogo” (LUCCAS, 1998, p. 46).

Um grande número de indivíduos que compõem torcidas de futebol reproduz nos


estádios as relações de opressão de gênero e sexualidade, dado o cunho sexista e homofóbico
constatado na tentativa de representar a superioridade de um grupo com relação ao outro. Tal
movimento se dá através da atribuição ao adversário de características socialmente
compartilhadas percebidas como incompatíveis com um ideal masculino e heterossexual,
considerando o parâmetro intersubjetivo cis-heteronormativo (JÚNIOR, 2019).

Este tipo de manifestação se utiliza de possibilidades sexuais penetrativas e orais. A


primeira e possivelmente mais comum expressão no meio do futebol, facilmente encontrado
em comentários de redes sociais como forma de provocação é a de dizer “chupa!” ao adversário
derrotado. Trata-se de uma expressão bastante corriqueira, exclusiva para aquele que se
encontra em vantagem ou vitória e, portanto, utilizada em diversos contextos para além das
disputas no universo do esporte. Esta expressão sinaliza através da modalidade do sexo oral os
primeiros indícios da forma como o resultado de uma partida de futebol servirá de base para a
definição das posições em que cada parte ocupará neste cenário simbólico de uma relação
sexual oral - o vencedor é quem conquista por seu mérito a posição de receber dentro da alegoria
a estimulação da genitália por parte do derrotado, aquele que será incumbido da ação de
proporcionar o prazer ao outro. Ainda que na relação sexual, em tese, pode haver reciprocidade
no ato de proporcionar prazer a cada uma das partes, é preciso ressaltar que existe uma
apropriação socialmente compartilhada no mundo masculino de que existem polos de
privilégio/desprivilegio entre as possíveis posições que um indivíduo ocupa numa relação
sexual.
34

Figura 1 - Cruzeirense chupando um secador23

Fonte: WhatsApp

Pode-se constatar que há na metáfora da relação sexual oral uma inversão das posições
de privilégio tal como concebidas socialmente pela cultura machista: na relação sexual
penetrativa, a posição privilegiada é a de quem penetra (posição ativa) e a desprivilegiada é a
de quem é penetrado (posição passiva). Já na concepção da relação sexual oral, quem ocupa a
posição de sucção é desprivilegiado (posição ativa), e quem recebe a sucção ocupa uma posição
de privilégio (posição passiva), atestando o aspecto altamente falocêntrico das formas como a
metáfora sexual serve de matriz para a simbolização da disputa entre as torcidas. Pode-se
afirmar, portanto, que nestes cenários simbólicos o personagem que representa posição do
vencedor passa a ser reconhecido como o detentor do falo, neste caso, diretamente associado
ao reconhecimento pela posse do pênis. Segundo Lima (2022, p. 99), “[...] na constituição da
masculinidade, o pênis é tomado como um centro de controle corporal, permitindo uma ilusão
de mestria do portador sobre o seu órgão, ilusão que se encontra na base da construção da
virilidade”. O perdedor, por sua vez, tem revogada sua possibilidade de possuir o falo, e assume
a posição de proporcionar o gozo do vencedor, e fica identificado com características e posições
socialmente atribuídas ao feminino, como a submissão, fragilidade, passividade, cuidado, etc
(AUAD apud SANTOS, 2012, p. 4)24.

23
A alusão ao sexo oral aqui faz menção a uma expressão típica do meio do futebol que é a do ato de “secar”, que
se trata do ato de torcer contra um rival em outro jogo. Aqui o secador alude a esta expressão e representa um
pênis. Trata-se de uma “figurinha” de WhatsApp e pode ser utilizada em uma situação em que se pretende provocar
um cruzeirense que torceu para um outro time que estava jogando contra o Atlético, mas não obteve sucesso.
24
AUAD, Daniela. Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola. São Paulo: Ed. Contexto, 2006.
35

Cachorrada filha da puta!


Chupa a rôla e dá o cu!
Ei, Galo, vai tomar no cu!25

Assim estabelecido, passa-se a pensar as manifestações que evocam um cenário de


relação sexual penetrativa como forma de simbolização do balanço de poder entre as torcidas.
Conforme descrito, o critério para a composição das posições desse cenário simbólico é o de
que o vencedor ocupe a posição ativa, colocando de forma análoga o vigor sexual como
característica comumente associada ao ideal do masculino e o vigor físico que também se
idealiza de um jogador de futebol para que seu time seja vencedor: “[...] a íntima identificação
que o torcedor tem com o esportista é derivada de um sentimento de também poder ser: forte,
audaz, másculo, em suma, um sentimento inconsciente de wannabe” (FREITAS, 2007, p. 9).

Figura 2 - Goleada metaforizada por relação sexual violenta

Fonte: WhatsApp

“Memorial 6x1” refere-se ao maior placar de uma vitória do Cruzeiro sobre o Atlético.
A expansividade do placar parece refletir na produção da representação sexual, em forma de
uma cena de uma relação sexual violenta, invasiva, como um estupro. Metaforizar a partida de
futebol, seus ápices - o gol, a definição do lado vencedor -, tem como possibilidade de ser
explicada, considerando os moldes patriarcais e o compartilhamento das normas estruturantes

25
Canto da Máfia Azul para a torcida do Atlético.
36

das relações sociais que visam a própria manutenção do androcentrismo, a seguinte


contribuição:

no caso do futebol, a associação com guerra além de salientar a construção da nação,


reforça o apelo sexual masculino, [...] no decorrer das partidas, quando uma equipe e,
por contigüidade, seus torcedores defendem o seu campo e o seu gol (suas posses,
ambas imaginadas como figuras femininas). O momento de maior envolvimento
emocional de jogadores e torcedores, durante uma partida, é o momento do gol, que
contém uma forte carga de conotação com a conquista sexual e com o orgasmo, como
alguns locutores esportivos fazem questão de assinalar. De fato, a bola pode ser
considerada um símbolo de virilidade (e de fertilidade), na medida em que ela precisa
atravessar um arco, formado pelas traves, que constantemente é descrito e associado
aos órgãos reprodutores femininos, cuja violação por forasteiros deve ser evitada pelos
jogadores, e por torcedores, via identificação. Ou seja, trata-se de um arranjo entre
homens que deve defender a honra de “suas posses”, que são imaginadas como um
corpo feminino familiar, e afirmar a sua própria potência “violando” as posses das
outras alianças masculinas (SOUZA, 1996, p. 147).

Becker (2021) aponta para os meios pelos quais o ser humano constitui seu sentimento
de valor próprio mediante a formulação compartilhada de símbolos, sendo muitos desses
símbolos oriundos do próprio estranhamento diante do mistério do corpo humano. O autor
indica no conceito de “analidade” - compreendendo o ânus como um locus simbólico do asco,
da finitude, da natureza em oposição à fantasia infinita e ilimitada - a possibilidade de se
compreender o anseio do ser humano de se libertar dos grilhões da natureza e o terror da morte.
Dessa forma, poder-se-ia interpretar que a evocação de um cenário simbólico em que um
vencedor ocupa a posição ativa, penetrando o ânus do perdedor como um movimento de
celebração do valor próprio, da imortalidade, ou da vitória contra o finito ou daquele que
representa a oposição à fantasia - dessa forma, jubilosamente gozando de sua imortalidade
garantida na alteridade do perdedor.

Pau no cu do Cruzeiro!
Bicharada do Brasil!
Dão o cu aonde for
Só pra ver meu pau entrar
No seu cuzão!26

26
Canto da torcida do Atlético para o Cruzeiro, evocando uma cena de sexo anal bastante explícita.
37

Figura 3 - Jogador Thiago Neves exibe faixa “pau no cu das frangas”

Fonte: Instagram (@antifrangas61)

4.2.2 A atribuição do feminino ao rival

Conforme se constata nas amostras a seguir, uma técnica não só de provocação, mas de
simbolização do balanço de poder entre torcidas é a de representar o rival através de pronomes
e características femininas. A utilização do termo “Maria” por parte dos atleticanos para se
referirem aos cruzeirenses, e o termo “Franga” ou galinha na relação inversa é o exemplo mais
representativo deste processo de feminização no dia a dia da vivência dessas torcidas. Acredita-
se que a utilização do termo “Maria” para cruzeirenses decorre de uma intervenção de
atleticanos a pichações de membros da Máfia Azul, onde bastava uma pequena alteração na
letra F para transformá-la em uma letra R, formando a expressão “MARIA AZUL” (SIMÕES,
2019). Há uma crença de que o termo “Maria” seria decorrente de um clássico no ano de 1974
em que a equipe celeste teria jogado utilizando saias ao invés do tradicional calção,
popularizada pela foto em que o jogador atleticano caçoa do rival pela vestimenta. A versão da
saia, no entanto, não é verdadeira, e o calção do jogador do Cruzeiro apenas teria se rasgado
durante a partida. Mesmo amplamente que se saiba da não veracidade dessa versão, o mito da
saia cai como uma luva no universo de provocações entre as torcidas.
38

Figura 4 - Suposta saia utilizada pela equipe do Cruzeiro em 1974

Fonte: X (Twitter - @jussiemendesr)

Já o uso do termo “Franga” ou galinha se deve ao fato de que desde o ano de 1945 o
cartunista Mangabeira criou para o Atlético Mineiro, Cruzeiro e América mascotes que
representavam características popularmente atribuídas aos estilos de jogo de cada equipe. O
mascote atleticano se tornou um Galo sob inspiração de um galo preto e branco que dominava
as rinhas de Belo Horizonte na década de 30 (CLUBE ATLÉTICO MINEIRO, 2023). Dessa
forma, bastou inverter a representação de um Galo imbatível para seu suposto contrário, como
galinha, fêmea, animal também popularmente utilizado para representar um indivíduo covarde.
Em momento algum se cogita um nome masculino para os cruzeirenses ou o termo “frango”
para os atleticanos. Um outro apelido provocativo usado por cruzeirenses para se referir aos
atleticanos é o de “Lourdinha”, decorrente do fato de que a sede do Atlético Mineiro se encontra
no bairro de Lourdes, em Belo Horizonte. “Maria, eu sei que você treme sempre que o Galo vai
jogar”, bradam os atleticanos em uma de suas canções mais populares, em que se sugere que os
cruzeirenses, feminizados, se apavoram ao jogar contra o Atlético.
39

Figura 5 - “Antes morto que Maria”

Fonte: Pinterest

A torcida do Atlético, quando finalizada uma partida em que a rodada seguinte é uma
partida contra o Cruzeiro, costuma cantar a seguinte canção na saída do estádio:

Ô mariposa, ô mariposa
Tô com saudade da buceta da raposa!

Além de retornar à categoria de análise anterior, onde é sugerido que se busca o órgão
sexual feminino para se obter prazer, constata-se o jogo de palavras em que a palavra
“mariposa” pode ser dissecada em “Maria” + raposa (mascote do Cruzeiro). Seguindo a lógica
do artifício da feminização, este jogo de palavras vem a calhar por formar o nome de um outro
animal denominado por um substantivo feminino.

Ceccarelli (2013) aponta para a histórica primazia masculina nos ditames discursivos
sobre a sexualidade, encontrando na tradição bíblica a mitologia que culmina com a
representação da mulher (Eva) como agente do declínio da humanidade em direção ao pecado.
O ponto central de Ceccarelli (2013) ao tangenciar esta abordagem bíblica é referenciar a
fundamentação cristã da cultura ocidental, sob a influência de Agostinho de Hipona. Esse autor
medieval concebe o pecado inicial como um pecado sexual, e assim funda-se de um modelo
androcêntrico onde a mulher passa a representar uma sexualidade que precisa ser controlada
para que o homem, espiritualmente inocente, como Adão perante Eva, não seja por ela
40

corrompido. O modelo androcêntrico não só é produzido e reproduzido pelo homem como


também o desresponsabiliza pela “queda do paraíso”.

Pode-se compreender que atribuir o feminino ao rival é atribuir a ele a ausência do falo.
Em uma cultura onde o discurso sobre o poder se inscreve em referência à posse do falo,
naturalmente aquele desprovido do mesmo, aquele que é castrado no real do corpo é quem deve
ocupar a posição de submissão, que deve ser detido pelo bem do próprio androcentrismo.

Figura 6 - Chico Bento cruzeirense, Rosinha atleticana

Fonte: WhatsApp

Na imagem acima, seu sentido só se permite servir como forma de provocação pela
presença dos escudos do Cruzeiro no personagem masculino Chico Bento e do Atlético na
personagem feminina Rosinha. Do contrário, não haveria na imagem senão uma cartilha lúdica
ideológica acerca das prescrições culturais a cada sexo, contextualizados no universo do Chico
Bento. Não obstante, referindo-se a um clássico, a presença do escudo celeste no homem e do
escudo alvinegro na mulher induz a uma designação social e culturalmente inequívoca da
proposição das posições de poder. Tratando-se de um meme feito por torcedores do Cruzeiro,
os mesmos representam a si mesmos na figura masculina, indicando uma relação de poder sobre
a mulher que representa torcedores do Atlético Mineiro. É essencial também para o sentido da
41

imagem o fato de que a personagem Rosinha é a “namoradinha” de Chico Bento. Dificilmente


a mesma imagem poderia ser representada por outros personagens da Turma da Mônica que
não tivessem uma relação explícita dessa forma, reproduzindo-se assim um setting alusivo ao
poder patriarcal, aludindo ao domínio e à opressão masculina sobre mulheres. Cabe notar que
o uso da cor-de-rosa para feminizar o outro não é exclusividade de nenhuma torcida. A torcida
do Cruzeiro, em especial, utiliza-se deste artifício contra os torcedores do Atlético muito em
decorrência de um uniforme de treino lançado pela Topper em 2010, na cor rosa salmão
(SIMÕES, 2019). Daí outra fonte de alusão à personagem Rosinha.

Figura 7 - Representação de Diego Tardelli (Atlético-MG) de maquiagem

Fonte: YouTube

Na imagem acima tem-se o ídolo atleticano Diego Tardelli representado com


maquiagem, como uma resposta a uma provocação do próprio atleta ao rival. Nesta ocasião,
Tardelli comemorou um gol contra o Cruzeiro simulando o ato de passar maquiagem no rosto,
ao que se interpretou como uma alusão a um trecho do hino do Cruzeiro:

Eu vivo cheio de vaidade


Mas na realidade é um grande campeão

Denunciado ao Supremo Tribunal Judiciário Desportivo (STJD) por infringir o artigo


258-A que tipifica provocações ao público durante a partida (BRASIL, 2010), o jogador negou
que a comemoração tenha a ver com tal interpretação, alegando ser uma homenagem à filha e
a prática de maquiá-la (MINEIRO, 2011).
42

Na tentativa de traçar os antecedentes do fenômeno de feminizar o torcedor rival, pode-


se recorrer ao período de latência do desenvolvimento psicossexual do menino. Barison (2010)
aponta que neste estágio se iniciam as produções da criança para manifestar a constatada
diferença sexual com relação ao sexo oposto, cindindo o mundo da criança entre meninos e
meninas. A vivência edípica faz com que o menino padeça da árdua necessidade de se
posicionar diante da impossibilidade de retornar à unidade primordial com a figura materna.
Institui-se assim a paradoxal identificação com a figura paterna (NASIO, 2007).
Concomitantemente à identificação com o masculino e suas prescrições, a repulsa pelas
características “do outro lado” também é despertada - a repressão dos desejos sexuais, com o
intuito de facilitar a identificação da criança com seu respectivo grupo - implicando, inclusive,
no rechaço daqueles que transgridem ao grupo (BARISON, 2010).

Aponta-se para a contradição que se produz na construção heterossexual, onde os


recursos necessários para que o menino obtenha uma substituta para o amor materno descendem
da necessidade de identificação e investimento libidinal em indivíduos do mesmo sexo do
menino:

grande parte da carga de afeto é dirigida ao time do coração e aos ídolos do time. Estes
são personagens que são oferecidos ao menino como objetos para identificação. São
homens adultos exteriores ao ambiente familiar e que se pode acompanhar a vida
privada, desejar coisas boas para eles, enfim, amar. É assim que muito das cargas
homossexuais ganham contorno de naturalidade, não só sendo permitida como também
estimulada (BARISON, 2010, p. 88)

Tais cargas homossexuais também se revelam no momento do ápice do jogo de futebol:


o gol. Também nas comemorações de títulos, vitórias ou derrotas dramáticas, o fenômeno
grupal permite que certas inibições entrem e suspensão e demonstrações de afeto sejam
propiciadas - de tal maneira que possam vir a ser inconcebíveis em outros contextos -, como
intensos abraços trocados por torcedores (PINTO apud JÚNIOR, 2019)27, sem que haja
necessariamente um vínculo entre tais indivíduos senão um time em comum.

27
PINTO, Maurício Rodrigues. Torcidas livres e queer em campo: Sexualidade e novas práticas discursivas no
futebol. Disponível em: https://www.fespsp.org.br/seminario2014/anais/GT1/5_Torcidas_Livres.pdf, Acesso em:
24 mar 2018
43

Figura 8 - Casal homossexual assistindo ao jogo do Cruzeiro

Fonte: WhatsApp

Tal momento de suspensão de valores é compreendido por Júnior (2019) como um


momento de liminaridade, sendo este termo utilizado para definir a suspensão de hierarquias e
a dissolução simbólica do sujeito em detrimento do coletivo, como um momento ritualístico. O
que ocorre, portanto, é que no estágio liminar do ritual do futebol,

privilégios são mantidos a homens cis, brancos e heterossexuais, mesmo que esses
homens em momentos liminares impostos pela realização dos jogos, rompem fronteiras
colocando seus corpos em contato direto com outros corpos masculinos, mesmo que o
outro corpo seja de um desconhecido que durante a comemoração de um gol tornam-
se uma comunidade (JÚNIOR, 2019, p. 10).

Tendo em vista a apresentação, análise e as primeiras tentativas ou propostas


interpretativas do material exposto neste trabalho, o que se percebe é que, em um primeiro
momento, a atribuição do feminino ou do caráter homossexual ao rival não demanda nenhum
tipo de explicação por parte do enunciante. A comunicação, neste caso, parte de uma
representação intersubjetiva acerca da distinção de gênero, tornando a atribuição das posições
de poder inequívoca para os atores envolvidos na disputa entre torcidas. Aquele representado
como homem, viril, potente, versus aquele que mal pode ser reconhecido como homem tal como
se idealiza, sendo a ele atribuída a representação por uma figura feminina, ou um homem
homossexual.
44

5 Considerações finais

Optou-se por percorrer neste trabalho um caminho que passasse por uma breve
aproximação pelo futebol no Brasil e suas contradições, sua incompatibilidade com um discurso
saudosista e negacionista. Trilhou-se um caminho mais detalhado sobre as peculiaridades e
contradições que se presentificam em uma torcida e toda sua complexidade. A psicanálise então
permeia a discussão através de construções teóricas como o complexo de castração e o
complexo de Édipo, para contextualizar o papel da identificação masculina no processo de
constituição subjetiva. Este processo, tal como apresentado, culmina com a emergência de um
sujeito que se vê divido, em conflito, cindido pelo desejo e sob a instancia de buscar na cultura
e no Outro os recursos para suplantar a falta do objeto de desejo primordial (PAIVA, 2009).
Mas a própria identificação é contraditória, pois a cultura prescreve que o menino tem de
aprender a ser homem – amando aos homens – para desejar as mulheres (BARISON, 2010). E
uma possibilidade de encontrar na cultura os modelos e os ambientes para lidar com a
contradição entre a pulsão e a norma é o futebol: “[...] é mais fácil investir a paixão numa
equipe, e, deste modo num clube, [...] do que num indivíduo” (ROSENFELD apud FREITAS,
2007, p. 9)28.

As análises dos matérias selecionados revelam como as representações do masculino e


do feminino são posicionadas em polos de poder com base na desigualdade de gênero, na
supervalorização de características atribuídas ao ideal masculino e seu oposto atribuído ao
feminino. A atribuição da homossexualidade ao outro visa expurgar os restos da identificação
masculina. Pode-se hipotetizar que o caráter ritualístico no fenômeno de massa de uma torcida
é uma saída engenhosa, um furor inspirado na intensidade física e libidinizada do futebol e seus
atores para possibilitar a vazão da pulsão homossexual latente que constitui a própria
sexualidade masculina desde a infância - período em que um time de futebol é oferecido ou
imposto como destino identitário normalmente aos meninos, normalmente pelos pais ou outros
homens (BARISON, 2010). E uma vez sob o ambívio grupal, torcedores propiciam a distinção
de “[...] sua própria homossociabilidade da mais explicitamente sexualizada relação entre
homens, o que requer a identificação, o isolamento e a contensão do homossexualismo
masculino” (SOUZA, 1996, p. 34). Assim, homens protegem seu ideal masculino
heteronormativo criando condições de homossociabilidade permitida enquanto projetam, por
outro lado, os estereótipos culturais do produto das mesmas pulsões (em estado de liberdade)

28
ROSENFELD, Anatol. Negro, macumba e futebol. São Paulo: Perspectiva, 1993.
45

ao rival. A vitória no jogo implica ao vencedor a posição ativa na metáfora sexual por seu
heroísmo, por sua supressão da carga pulsional atribuída como feminina, carga essa que precisa
ser domada para o mesmo fim de construção do ideal masculino e sua inserção nas normativas
sociais.
46

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