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De Quanta Terra Um Homem Precisa

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DE QUANTA TERRA UM

HOMEM PRECISA?
Uma mulher veio visitar sua irmã
mais nova que vivia no campo; a
primeira estava casada com um
mercador da cidade, a outra com
um camponês da aldeia; quando
estavam a tomar o chá, começou a
mais velha a gabar a vida da
cidade, dizendo que se vivia por lá
com todo o conforto, que toda a
gente andava bem arranjada, que
as filhas tinham vestidos
lindíssimos, que se bebiam e
comiam coisas magníficas e que se
ia ao teatro, a passeios e a festas. A
irmã mais nova, um pouco
despeitada, mostrou todos os
inconvenientes da vida do
comércio e exaltou as vantagens da
existência dos camponeses.
“Não trocaria a minha vida pela
vossa; é certo que vivemos com
alguma rudeza, mas, pelo menos,
não estamos sempre ansiosos;
vocês vivem com mais conforto e
mais elegância, mas ganham
muitas vezes mais do que precisam
e estão sempre em riscos de perder
tudo; lá diz o ditado: ‘Estão juntos
na merca o ganho e a perca’; quem
está rico num dia pode, no dia
seguinte, andar a pedir pão pelas
portas; a nossa vida é mais segura;
se não é farta é, pelo menos,
comprida; nunca seremos ricos,
mas sempre teremos bastante que
comer”.
A irmã mais velha replicou com
zombaria:
“Bastante? Sim, bastante, se
vocês se contentarem com a vida
dos porcos e das vitelas. Que
sabem vocês de elegância e de
boas maneiras? Por mais que o teu
marido trabalhe como um escravo,
vocês hão de morrer como têm
vivido — num monte de estrume; e
os vossos filhos na mesma”.
“Bem, e depois?” — retorquiu-
lhe a outra — “Não nego que o
nosso trabalho seja rude e
grosseiro; mas em compensação é
seguro e não precisamos de nos
curvar diante de ninguém; vocês,
na cidade, vivem rodeados de
tentações; hoje tudo corre bem,
mas amanhã o Diabo pode tentar o
teu marido com a bebida, o jogo ou
as mulheres — e lá se vai tudo.
Bem sabes que é o que sucede
muitas vezes”.
Pahóm, o dono da casa, estava
deitado à lareira e escutava a
conversa das mulheres.
“É realmente assim — pensava
ele —, os lavradores ocupados
desde meninos no amanho da terra
não têm tempo para pensar em
tolices; só o que nos consome é
não termos terra bastante; se
tivesse toda a terra que quero, nem
o Diabo seria capaz de meter-me
medo”.
As mulheres acabaram o chá,
palraram ainda um bocado sobre
vestidos, depois arrumaram a louça
e deitaram-se a dormir. Mas o
Diabo tinha estado sentado num
desvão da lareira e tinha ouvido
tudo o que se dissera; ficara
contentíssimo quando vira que a
mulher do camponês arrastara o
marido para a gabarolice e quando
percebera que o homem pensava
que, se tivesse terra à vontade, não
temeria o Diabo.
“Muito bem!” — pensou o
Diabo — “vamos lutar um com o
outro; dou-te toda a terra que
quiseres e há de ser por essa terra
que te hei de apanhar”.

II

Perto da aldeia vivia uma


senhora, pequena proprietária, que
possuía um terreno de cerca de
cento e vinte hectares. Tinha
mantido sempre com os
camponeses excelentes relações,
até o dia em que tomou como
feitor um antigo soldado que se
pôs a multar toda a gente. Por mais
cuidado que Pahóm tivesse, ora um
cavalo lhe fugia para os campos de
aveia da senhora, ora uma vaca ia
para os jardins, ora as vitelas
andavam pelos prados; e a multa lá
vinha.
Pahóm pagava, resmungava e,
irritado, tratava mal a família; todo
o Verão, o camponês teve conflitos
com o feitor e só o alegrou a
chegada do Inverno em que o gado
tinha de ir para o estábulo; dava-
lhe a ração de má vontade, mas ao
menos estava livre de sustos.
Durante o Inverno, correu que a
senhora ia vender as terras e que o
estalajadeiro se preparava para lhas
comprar; toda a aldeia ficou
alarmada.
“Bem” — pensavam os
camponeses — “se o estalajadeiro
comprar as terras, as multas serão
mais fortes ainda; o caso é sério”.
Foram então, em nome da
Comuna, pedir à senhora que não
vendesse as terras ao estalajadeiro,
porque estavam dispostos a pagar-
lhe melhor; a senhora concordou e
os camponeses reuniram-se para
que o campo fosse comprado por
todos e cultivado por todos; houve
duas assembleias, mas o Diabo
semeava a discórdia e não
chegaram a nenhuma combinação;
cada um compraria a terra que
pudesse; a senhora acedeu de
novo.
Pahóm ouviu dizer que um seu
vizinho ia comprar vinte hectares e
que a proprietária receberia metade
em dinheiro e esperaria um ano
pela outra metade; sentiu inveja e
pensou:
“Ora, vejam isto; vão comprar
toda a terra e eu não apanho
nenhuma.” Falou depois à mulher:
“Toda a gente está a comprar
terras; vamos nós comprar também
uns dez hectares; a vida assim é
impossível; o feitor mata-nos com
multas”.
A mulher concordou e
consideraram sobre a maneira de
realizar o seu desejo; tinham uns
cem rublos de parte; venderam um
potro e metade das abelhas,
meteram um filho a jornaleiro,
recebendo a soldada adiantada, e
pediram emprestado a um cunhado
o que faltava para perfazer metade
da quantia necessária.
Feito isto, escolheu Pahóm um
campo de uns quinze hectares, com
um pouco de bosque, e foi ter com
a senhora para tratarem do
negócio; chegaram a acordo e o
camponês pagou adiantada uma
certa quantia; depois foram à
cidade e assinaram a escritura em
que ficava estabelecido pagar ele
logo metade da quantia e entregar
o resto dentro de dois anos.
Agora tinha Pahóm terra sua;
pediu sementes emprestadas,
semeou-as na terra que comprara;
como a colheita foi boa, pôde,
dentro de um ano, pagar ao
cunhado e à senhora; tornou-se
assim proprietário, lavrando e
semeando a sua terra, fazendo feno
na sua terra, abatendo as suas
árvores, alimentando o seu gado
nos seus pastos. Sentia-se cheio de
contentamento quando ia lavrar ou
olhava para os trigais ou para os
prados; a erva que ali crescia e as
flores que ali desabrochavam
pareciam-lhe diferentes de todas as
outras; a princípio parecera-lhe que
a sua terra era igual a qualquer
outra; agora, porém, via-a
totalmente diversa.

III

O contentamento de Pahóm teria


sido completo se os vizinhos não
lhe atravessassem as searas e os
prados; falou-lhes muito
delicadamente, mas os homens
continuaram; umas vezes eram os
pastores da comuna que deixavam
ir as vacas para as suas pastagens,
outras vezes os cavalos que se
soltavam à noite e lhe iam para as
searas. Pahóm enxotava-os,
perdoava aos donos e, durante
muito tempo, não fez queixa de
ninguém; por fim, perdeu a
paciência e queixou-se ao tribunal;
bem sabia que era a falta de terra
dos camponeses e não qualquer má
intenção que os fazia proceder
daquele modo, mas pensava: “Se
não tomo cuidado, dão-me cabo de
tudo; tenho que lhes dar uma
lição”.
Foi o que fez: deu-lhes uma
lição, depois segunda, e dois ou
três camponeses foram multados;
ao fim de certo tempo, os vizinhos
tinham-lhe raiva e era de propósito
que lhe metiam o gado pelas
terras; houve mesmo um que, uma
noite, lhe cortou cinco limoeiros
para lhes tirar a casca; Pahóm
passou pelo bosque e viu umas
coisas brancas: aproximou-se e
deu com os troncos sem casca
estendidos no chão; quase ao lado
estavam os cepos; Pahóm, furioso,
pensou: “Já bastaria para mal que
este patife tivesse cortado uma
árvore aqui e além; mas foi logo
uma fila inteira; ah! se o
apanho!...”
Pôs-se a ver quem poderia ter
sido; finalmente, disse consigo:
“Deve ter sido o Simão; ninguém
mais ia fazer uma coisa destas.”
Deu uma volta pelas propriedades
de Simão, mas nada viu e só
arranjou a zangar-se com o
vizinho; tinha, no entanto, a
certeza que era ele e apresentou
queixa; Simão foi chamado,
julgado e absolvido porque não
havia provas; Pahóm ficou ainda
mais furioso e voltou-se contra os
juízes:
“A gatunagem unta-vos as
mãos; se aqui houvesse vergonha,
não iam os ladrões em paz.” As
zangas com os juízes e com os
vizinhos trouxeram como resultado
ameaças de lhe queimarem a casa;
Pahóm tinha mais terra do que
dantes, mas vivia muito pior. E foi
por esta altura que se levantou o
rumor de que muita gente ia sair da
terra. “Por mim, não tenho que me
mexer” — pensou Pahóm —, “mas
se os outros se fossem embora,
haveria mais terra para nós; havia
de comprá-la e de arredondar a
minha pequena propriedade; então
é que era viver à farta; assim,
ainda estou muito apertado”.
Estava um dia Pahóm sentado
em casa quando calhou de entrar
um camponês que ia de viagem;
deu-lhe licença para passar ali a
noite e, à ceia, puseram-se de
conversa; Pahóm perguntou- lhe
donde vinha e o forasteiro
respondeu que de além do Volga,
onde tinha estado a trabalhar;
depois disse o homem que havia
muita gente que se estava a fixar
por aqueles lados, mesmo
lavradores da sua aldeia; tinham
entrado na comuna e obtinham
setenta e cinco hectares; a terra era
tão boa que o centeio crescia à
altura de um cavalo e era tão basto
que com meia dúzia de foiçadas se
fazia um feixe; havia um
camponês que tinha chegado de
mãos a abanar e possuía agora seis
cavalos e duas vacas.
O peito de Pahóm inflamava-se
de cobiça: “Para que hei-de eu
continuar neste buraco se noutra
parte se pode viver tão bem? Vou
vender tudo e, com o dinheiro, vou
começar a vida de novo; aqui há
muita gente e sempre estou a
brigar; mas, primeiro, vou eu
mesmo saber as coisas ao certo.”
Pelos princípios do Verão,
preparou-se e partiu; desceu o
Volga de vapor até Samara, depois
andou a pé noventa léguas; por fim
chegou; era exatamente o que o
forasteiro tinha dito; os
camponeses tinham imensa terra:
cada homem possuía os setenta e
cinco hectares que a comuna lhe
dera e, se tivesse dinheiro, podia
comprar as terras que quisesse, a
três rublos o hectare. Informado de
tudo o que queria saber, voltou
Pahóm a casa no Outono e
começou a vender o que lhe
pertencia; vendeu a terra com
lucro, vendeu a casa e o gado, saiu
da comuna; esperou pela
Primavera e largou com a família
para os novos campos.
IV

Logo que chegaram à nova


residência, pediu Pahóm que o
admitissem na comuna de uma
grande aldeia; tratou com os
dirigentes e deram-lhe os
documentos necessários; depois,
concederam-lhe cinco talhões de
terra para ele e para o filho, isto é,
trezentos e setenta e cinco hectares
em campos diferentes, além do
direito aos pastos comuns. Pahóm
construiu as casas precisas e
comprou gado; só de terra da
comuna tinha ele três vezes mais
do que dantes e toda ela era
excelente para trigo; estava
incomparavelmente melhor, com
terra de cultivo e de pastagem, e
podia ter as cabeças de gado que
quisesse.
A princípio, enquanto durou o
trabalho de se estabelecer, tudo
satisfazia Pahóm, mas, quando se
habituou, começou a pensar que
ainda não tinha bastante terra; no
primeiro ano, semeou trigo na terra
da comuna e obteve boa colheita;
queria continuar a semear trigo,
mas a terra não chegava e a que já
tinha não servia porque, naquela
região, era costume semear o trigo
em terra virgem, durante um ou
dois anos, depois deixar o campo
de pouso, até se cobrir de novo de
ervas de prado. Havia muitos que
desejavam estas terras e não havia
bastantes para todos, o que
provocava conflitos; os mais ricos
queriam-nas para semear trigo e os
que eram pobres para as alugar a
negociantes, de modo a terem
dinheiro para pagar os impostos.
Pahóm queria semear mais trigo e
tomou uma terra de renda por um
ano; semeou muito, teve boa
colheita, mas a terra era longe da
aldeia e o trigo tinha de ir de carro
umas três léguas. Certo tempo
depois, notou Pahóm que alguns
camponeses viviam em herdades
não comunais e enriqueciam;
pensou consigo: “Se eu pudesse
comprar terra livre e arranjar casa,
então é que as coisas me haviam
de correr bem”.
A questão de comprar terra livre
preocupava-o sempre; mas
continuou durante três anos a
arrendar campos e a cultivar trigo;
os anos foram bons, as colheitas
excelentes, ele começou a pôr
dinheiro de lado. Podia ter
continuado a viver assim, mas
sentia-se cansado de ter que
arrendar terras de outros todos os
anos e ainda por cima disputando-
as; mal aparecia uma terra boa
todos os camponeses se
precipitavam para a tomarem, de
modo que, ou se andava ligeiro, ou
se ficava sem nada. Ao terceiro
ano, aconteceu que ele e um
negociante arrendaram juntos a uns
camponeses uma pastagem: já a
tinham amanhado quando se
levantou qualquer disputa, os
camponeses foram para o tribunal
e todo o trabalho se perdeu. “Se
fosse terra minha — pensou
Pahóm — já eu era independente e
não me via metido nestas
maçadas”.
E começou a procurar terra de
compra; encontrou um camponês
que tinha adquirido uns quinhentos
hectares, mas que, por causa de
dificuldades, os queria vender
barato; Pahóm regateou com o
homem e assentaram por fim num
preço de 1 500 rublos, metade a
pronto, a outra metade a pagar
depois. Tinham arrumado o
negócio, quando se deteve em casa
de Pahóm um comerciante que
queria forragem para os cavalos;
tomou chá com Pahóm e travou-se
conversa; o comerciante disse que
voltava da terra dos Baquires, que
era muito longe, e onde tinha
comprado cinco mil hectares de
terra por cem rublos. Pahóm fez-
lhe mais perguntas e o negociante
respondeu:
“Basta fazer-nos amigos dos
chefes. Dei-lhes coisa de cem
rublos de vestidos de seda e de
tapetes, além duma caixa de chá, e
mandei distribuir vinho por quem
o quisesse; e arranjei a terra a
cinco kopeks (a centésima parte da
rublo) o hectares”.
E, mostrando a Pahóm as
escrituras, acrescentou:
“A terra é perto dum rio e toda
ela virgem.” Pahóm continuou a
interrogá-lo e o homem respondeu:
“Há por lá mais terra do que
aquela que se poderia percorrer
num ano de marcha; e toda ela
pertence aos Baquires. São como
cordeirinhos e arranja-se a terra
que se quer, quase de graça”.
“Bem — pensou Pahóm — para
que hei-de eu, com os meus mil
rublos, arranjar para os quinhentos
hectares e aguentar ainda por cima
com uma dívida? Na outra terra
compro dez vezes mais, e pelo
mesmo dinheiro”.
V

Perguntou Pahóm como poderia


ir até estas outras terras e, logo que
o negociante o deixou, preparou-se
para empreender a viagem; ficou a
mulher a tomar conta da casa e ele
partiu com o criado; pararam numa
cidade e compraram uma caixa de
chá, vinho e outros presentes,
conforme o conselho do
negociante. Foram andando
sempre até que, já percorridas mais
de noventa léguas, chegaram ao
lugar em que os Baquires tinham
levantado as suas tendas; era
exatamente como o homem tinha
dito: viviam nas estepes, junto dum
rio, em tendas de feltro; não
lavravam a terra, nem comiam pão:
o gado e os cavalos andavam em
rebanhos pelos pastos da estepe; os
potros estavam peados atrás das
tendas e duas vezes por dia lhes
levavam as éguas; ordenhavam-nas
e do leite faziam kumiss (Leite
fermentado); eram as mulheres
quem preparavam o kumiss e
faziam queijo; quanto aos homens,
passavam o seu tempo a beber
kumiss e chá, a comer carneiro e a
tocar gaitas de foles; eram
gorduchos e prazenteiros, e,
durante todo o Verão, nem
pensavam em trabalhar; eram
ignorantes de todo, não sabiam
falar russo, mas eram de boa
qualidade.
Mal viram Pahóm, saíram das
tendas e juntaram-se à volta do
visitante; apareceu um intérprete e
Pahóm disse-lhes que tinha vindo à
procura de terra; os Baquires,
segundo parecia, ficaram muito
contentes; levaram Pahóm para
uma das melhores tendas onde o
fizeram sentar numas almofadas de
pernas postas num tapete,
sentando-se eles também à volta;
deram-lhe chá e kumiss, mataram
um carneiro para a refeição;
Pahóm tirou os presentes do carro,
distribuiu-os pelos Baquires e
dividiu também o chá; os Baquires
ficaram encantados; conversaram
muito uns com os outros e depois
disseram ao intérprete que
traduzisse:
“O que eles estão a dizer é que
gostaram de ti e que é nosso
costume fazermos tudo o que
podemos para agradar aos
hóspedes e lhes pagar os presentes;
tu deste presentes: tens que dizer
agora que te agrada mais de tudo o
que possuímos, para que te
entreguemos o que desejas”.
“O que me agrada mais —
respondeu Pahóm — é a vossa
terra. A nossa está cheia de gente e
os campos já não dão; vocês têm
muita e boa; nunca vi coisa assim”.
O intérprete traduziu. Os
Baquires falaram um bocado, sem
que Pahóm compreendesse o que
diziam; mas percebeu que estavam
muito divertidos e viu que
gritavam e se riam; depois se
calaram e olharam para Pahóm,
enquanto o intérprete dizia:
“O que eles me mandam dizer é
que, em troca dos teus presentes, te
darão a terra que quiseres; é só
apontá-la a dedo”.
Os Baquires puseram-se outra
vez a falar e discutiram; Pahóm
perguntou o motivo da discussão e
o intérprete respondeu que uns
eram de opinião de que não
deviam resolver nada na ausência
do chefe e outros que não havia
necessidade de esperarem que
voltasse.

VI

Enquanto os Baquires discutiam,


entrou um homem com um barrete
de pele de raposa; todos se
levantaram em silêncio e o
intérprete disse:
“É o chefe!”
Pahóm foi logo buscar o melhor
vestuário e cinco libras de chá e
ofereceu tudo ao chefe; o chefe
aceitou, sentou-se no lugar de
honra e os Baquires começaram a
contar-lhe qualquer coisa; o chefe
escutou, depois fez um sinal com a
cabeça para que se calassem e,
dirigindo-se a Pahóm, disse-lhe em
russo:
“Está bem. Escolhe a terra que
queres; há bastante por aí.”
“A que eu quiser? — pensou
Pahóm — Como é isso possível?
Tenho que fazer uma escritura para
que não voltem com a palavra
atrás.” Depois disse alto:
“Muito obrigado pelas suas boas
palavras: os senhores têm muita
terra, e eu só quero uma parte; mas
que seja bem minha; podiam talvez
medi-la e entregá-la. Há morrer e
viver... Os senhores, que são bons,
dão-me, mas os vossos filhos
poderiam querer tirar-me”.
“Tens razão” — disse o chefe —
“vamos doar-te a terra”.
“Soube que esteve cá um
negociante” — continuou Pahóm
— “e que os senhores lhe deram
umas terras, com uns papéis
assinados... Era assim que eu
gostava”.
O chefe compreendeu:
“Bem, isso é fácil; temos aí um
escrivão e podemos ir à cidade
para ficar tudo em ordem”.
“E o preço?” — perguntou
Pahóm.
“O nosso preço é sempre o
mesmo: mil rublos por dia”.
“Por dia? Que medida é essa?
Quantos hectares?”
“Não sabemos; vendemos terra a
dia; fica a pertencer-te toda a terra
a que puderes dar volta, a pé, num
dia; e são mil rublos por dia.
Pahóm ficou surpreendido”.
“Mas num dia pode-se andar
muito!...”
O chefe riu-se:
“Pois será toda tua! Com uma
condição: se não voltares no
mesmo dia ao ponto donde
partiste, perdes o dinheiro”.
“Mas como hei de eu marcar o
caminho?”
“Vamos ao sítio que te agradar e
ali ficamos. Tu começas a andar
com uma pá; onde achares
necessário fazes um sinal; a cada
volta cavas um buraco e empilhas
os torrões; depois nós vamos com
um arado de buraco a buraco.
Podes dar a volta que quiseres,
mas antes do sol-posto tens que
voltar; toda a terra que rodeares
será tua.”
Pahóm ficou contentíssimo e
decidiu-se partir na manhã
seguinte; falaram ainda um
bocado, depois beberam mais
kumiss, comeram mais carneiro,
tomaram mais chá; em seguida,
caiu a noite; deram a Pahóm uma
cama de penas e os Baquires
dispersaram-se, depois de terem
combinado reunir-se ao romper da
madrugada e cavalgar antes que o
Sol nascesse.

VII

Pahóm estava deitado, mas não


podia dormir, a pensar na terra.
“Que bom bocado vou marcar!” —
pensava ele. “Faço bem dez
léguas por dia; os dias são
compridos e, dentro de dez léguas,
quanta terra! Vendo a pior ou
arrendo-a a camponeses e faço
uma herdade na melhor; compro
duas juntas e arranjo dois
jornaleiros; ponho aí sessenta
hectares a campo, o resto a
pastagens”.
Ficou acordado toda a noite e só
dormitou pela madrugada; mal
fechava os olhos, teve um sonho;
sonhou que estava deitado na tenda
e que ouvia fora uma espécie de
cacarejo; pôs-se a pensar o que
seria e resolveu sair: viu então o
chefe dos Baquires a rir-se como
um doido, de mãos na barriga;
Pahóm aproximou-se e perguntou:
“De que se está a rir?” Mas viu que
já não era o chefe: era o negociante
que tinha ido a sua casa e lhe falara
da terra. Ia Pahóm a perguntar-lhe:
“Está aqui há muito?” quando viu
que já não era o negociante: era o
camponês que regressava do
Volga; nem era o camponês, era o
próprio Diabo, com cascos e
cornos, sentado, a cacarejar: diante
dele estava um homem descalço,
deitado no chão, só com umas
calças e uma camisa; e Pahóm
sonhou que olhava mais
atentamente, para ver que homem
era aquele ali deitado e via que
estava morto e que era ele próprio;
acordou cheio de horror. “Que
sonho mais estranho!” — pensou
ele. Olhou em volta e viu, pela
abertura da tenda, que a manhã
rompia. “É tempo de os ir acordar;
já devíamos estar de abalada”.
Levantou-se, acordou o criado, que
estava a dormir no carro, e
mandou-o aparelhar; depois foi
chamar os Baquires:
“Vamos para a estepe medir a
terra”.
Os Baquires levantaram-se,
juntaram-se e o chefe apareceu
também; depois, beberam kumiss e
ofereceram chá a Pahóm, mas ele
não quis esperar mais:
“Se querem ir, vamos; já é
tempo”.
VIII

Os Baquires aprontaram-se e
partiram; uns iam a cavalo, outros
de carro; Pahóm ia no seu
carrinho, com o criado e uma pá;
quando chegaram à estepe, já se
via no céu o rosado da aurora;
subiram a um cabeço, a que os
Baquires chamavam shikhan, e,
apeando-se dos carros e dos
cavalos, juntaram-se num sítio. O
chefe veio ter com Pahóm e,
estendendo o braço para a planície:
“Olha para isto” — disse ele —,
“tudo o que vês é nosso; poderás
ficar com o que quiseres”.
Os olhos de Pahóm rebrilharam:
era tudo terra virgem, plana como
a palma da mão, negra como
semente de papoila; e as diferentes
espécies de erva cresciam à altura
do peito.
O chefe tirou o barrete de pele
de raposa, colocou-o no chão e
disse:
“O sinal é este; partes daqui e
voltas aqui; é tua toda a terra a que
deres volta”.
Pahóm puxou do dinheiro e pô-
lo no barrete; depois tirou o casaco
e ficou em colete; desapertou o
cinto e ajustou-o logo por baixo do
estômago, pôs um saquinho de pão
ao peito, atou um cantil de água ao
cinto, puxou os canos das botas,
pediu a pá ao criado e ficou pronto
a largar; considerou por alguns
momentos sobre o caminho que
havia de tomar, mas era uma
tentação por toda a parte.
“Não faz mal” — concluiu —
“vou para o nascente”.
Voltou-se para leste,
espreguiçou-se e esperou que o Sol
aparecesse acima do horizonte.
“Não há tempo a perder” —
disse ele — “e é melhor ir já pela
fresquinha”.
Mal apareceu o primeiro raio de
sol, desceu Pahóm a colina, de pá
ao ombro; nem ia devagar, nem
depressa; ao fim de um
quilômetro, parou, fez um buraco e
pôs os torrões uns sobre os outros;
depois continuou e, como ia
aquecendo, apressou o passo; ao
fim de um certo tempo, fez outra
cova. Pahóm olhou para trás: a
colina estava distintamente
iluminada pelo Sol e viam-se os
Baquires e os aros cintilantes das
rodas; Pahóm calculou que teria
andado uma légua; como o calor
apertava, tirou o colete, pô-lo ao
ombro e continuou a caminhar;
estava quente a valer: olhou para o
Sol e viu que eram horas de pensar
no almoço.
“A primeira tirada está feita;
mas posso ainda fazer mais três,
porque é cedo para voltar; o que
tenho é de tirar as botas”.
Sentou-se, descalçou as botas,
pendurou-as ao cinto e continuou;
agora, andava à vontade. “Mais
uma leguazita” — pensou ele —
“depois volto para a esquerda; este
bocado é tão bom que era uma
pena perdê-lo; quanto mais se
anda, melhor a terra parece.”
Avançou a direito durante algum
tempo e, quando olhou à volta, viu
que a colina mal se enxergava e
que os Baquires pareciam
formiguinhas; e havia qualquer
coisa que brilhava.
“Já andei bastante para este
lado” — pensou Pahóm —, “é
tempo de voltar; e já estou a suar e
com sede”.
Parou, cavou um grande buraco
e amontoou os torrões; depois,
desatou o cantil, sorveu um gole e
voltou à esquerda; foi andando,
andando sempre; a erva era alta, o
sol quentíssimo. Começou a sentir-
se cansado: olhou para o Sol e viu
que era meio-dia.
“Bem, vou descansar um
bocado”.
Sentou-se, comeu um naco de
pão, bebeu uma pinga de água;
mas não se deitou, com medo de
adormecer; depois de ficar sentado
uns momentos, levantou-se e
continuou. A princípio, andava
bem: a comida tinha-lhe dado
forças; mas o calor aumentava,
sentia sono; apesar de tudo,
continuava, e repetia consigo:
“Um dia de dor, uma vida de
amor”.
Andou muito tempo na mesma
direção e estava para rodar à
esquerda, quando viu um sítio
úmido: “Era uma pena deixar isto;
o linho deve dar-se bem aqui.”
Deu uma volta, cavou um buraco e
olhou para a colina; com o calor, o
ar tremia e a colina tremia
também, mal se vendo os
Baquires.
“Os outros lados ficaram muito
grandes; tenho que fazer este mais
curto.” E pôs-se a andar mais
depressa. Olhou para o Sol: estava
quase a meio caminho do
horizonte e não tinha ainda andado
três quilômetros do lado novo; e
ainda lhe faltavam três léguas para
a colina.
“Bem” — pensou ele — “não
me fica a terra quadrada, mas
agora tenho que ir a direito; podia
ir longe demais e assim já tenho
terra bastante”.
Abriu um buraco a toda a pressa
e partiu em direção à colina.
IX

Ia sempre a direito, mas


caminhava com dificuldade.
Estava tonto de calor, tinha os pés
cortados e moídos e as pernas a
fraquejarem; estava ansioso por
descansar, mas era impossível
fazê-lo se queria chegar antes do
sol-posto; o Sol não espera por
ninguém e cada vez ia mais baixo.
“Justos céus! Oxalá não tenha
querido demais! E se chego
tarde?”
Olhou para a colina e para o Sol;
Pahóm estava ainda longe do seu
objetivo e o Sol perto do horizonte.
Continuou a andar; era custoso a
valer, mas cada vez andava mais
depressa; estugou o passo, mas
estava longe ainda; começou a
correr, atirou fora o casaco, as
botas, o cantil e o barrete e ficou
só com a pá, a que se apoiava, de
quando em quando.
“Santo Deus! Abarquei de mais
e perdi tudo; já não chego antes de
o Sol se pôr”.
O medo cortava a sua
respiração; Pahóm continuava a
correr, mas a transpiração colava-
lhe ao corpo as calças e a camisa;
tinha a boca seca e o peito
arquejava como um fole de
ferreiro; o coração batia que nem
um martelo e as pernas quase nem
pareciam dele; Pahóm sentia-se
aterrorizado com a ideia de morrer
de fadiga. Apesar do medo da
morte, não podia parar. “Se depois
de ter corrido tudo isto, parasse
agora, chamavam-me doido”. E
corria mais e mais e já estava mais
próximo e já ouvia os Baquires a
gritar; os gritos mais lhe faziam
pulsar o coração; reuniu as últimas
forças e deu mais uma carreira. O
Sol estava já perto do horizonte e,
envolvido na névoa, parecia
enorme e vermelho como sangue.
Ia-se a pôr, o Sol! Estava já muito
baixo, mas ele também estava
perto da meta; podia ver os
Baquires na colina, a agitarem os
braços, para que se apressasse;
podia ver o barrete no chão com o
dinheiro em cima e o chefe,
sentado, e de mãos nas ilhargas.
Pahóm lembrou-se do sonho.
“Tenho terra bastante, mas
permitirá Deus que eu viva nela?
Perdi a vida, perdi a vida! Já não
chego àquele lugar”.
Pahóm olhou para o Sol que já
tinha atingido o horizonte: um lado
já tinha desaparecido; com a força
que lhe restava atirou-se para a
frente, com o corpo tão inclinado
que as pernas mal podiam
conservar o equilíbrio; ao chegar à
colina, tudo escureceu: o Sol
pusera-se; deu um grito: “Tudo em
vão!” e ia parar, quando ouviu os
brados dos Baquires e se lembrou
de que eles ainda viam o Sol, lá de
cima do outeiro; tomou um hausto
de ar e trepou pela colina; ainda
havia luz: no cimo lá estava o
barrete e o chefe a rir-se, de mãos
na barriga; outra vez Pahóm
lembrou o sonho; soltou um grito,
as pernas falharam-lhe e foi com
as mãos que agarrou o barrete.
“Grande homem, grande
homem!” — gritou o chefe — “A
terra que ele ganhou!”
O criado de Pahóm veio a correr
e tentou levantá-lo, mas viu que o
sangue lhe corria da boca. Pahóm
morrera!
Os Baquires davam estalos com
a língua, para mostrar a pena que
sentiam. O criado pegou na pá, fez
uma cova em que coubesse Pahóm
e meteu-o dentro; sete palmos de
terra: não precisava de mais.

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