De Quanta Terra Um Homem Precisa
De Quanta Terra Um Homem Precisa
De Quanta Terra Um Homem Precisa
HOMEM PRECISA?
Uma mulher veio visitar sua irmã
mais nova que vivia no campo; a
primeira estava casada com um
mercador da cidade, a outra com
um camponês da aldeia; quando
estavam a tomar o chá, começou a
mais velha a gabar a vida da
cidade, dizendo que se vivia por lá
com todo o conforto, que toda a
gente andava bem arranjada, que
as filhas tinham vestidos
lindíssimos, que se bebiam e
comiam coisas magníficas e que se
ia ao teatro, a passeios e a festas. A
irmã mais nova, um pouco
despeitada, mostrou todos os
inconvenientes da vida do
comércio e exaltou as vantagens da
existência dos camponeses.
“Não trocaria a minha vida pela
vossa; é certo que vivemos com
alguma rudeza, mas, pelo menos,
não estamos sempre ansiosos;
vocês vivem com mais conforto e
mais elegância, mas ganham
muitas vezes mais do que precisam
e estão sempre em riscos de perder
tudo; lá diz o ditado: ‘Estão juntos
na merca o ganho e a perca’; quem
está rico num dia pode, no dia
seguinte, andar a pedir pão pelas
portas; a nossa vida é mais segura;
se não é farta é, pelo menos,
comprida; nunca seremos ricos,
mas sempre teremos bastante que
comer”.
A irmã mais velha replicou com
zombaria:
“Bastante? Sim, bastante, se
vocês se contentarem com a vida
dos porcos e das vitelas. Que
sabem vocês de elegância e de
boas maneiras? Por mais que o teu
marido trabalhe como um escravo,
vocês hão de morrer como têm
vivido — num monte de estrume; e
os vossos filhos na mesma”.
“Bem, e depois?” — retorquiu-
lhe a outra — “Não nego que o
nosso trabalho seja rude e
grosseiro; mas em compensação é
seguro e não precisamos de nos
curvar diante de ninguém; vocês,
na cidade, vivem rodeados de
tentações; hoje tudo corre bem,
mas amanhã o Diabo pode tentar o
teu marido com a bebida, o jogo ou
as mulheres — e lá se vai tudo.
Bem sabes que é o que sucede
muitas vezes”.
Pahóm, o dono da casa, estava
deitado à lareira e escutava a
conversa das mulheres.
“É realmente assim — pensava
ele —, os lavradores ocupados
desde meninos no amanho da terra
não têm tempo para pensar em
tolices; só o que nos consome é
não termos terra bastante; se
tivesse toda a terra que quero, nem
o Diabo seria capaz de meter-me
medo”.
As mulheres acabaram o chá,
palraram ainda um bocado sobre
vestidos, depois arrumaram a louça
e deitaram-se a dormir. Mas o
Diabo tinha estado sentado num
desvão da lareira e tinha ouvido
tudo o que se dissera; ficara
contentíssimo quando vira que a
mulher do camponês arrastara o
marido para a gabarolice e quando
percebera que o homem pensava
que, se tivesse terra à vontade, não
temeria o Diabo.
“Muito bem!” — pensou o
Diabo — “vamos lutar um com o
outro; dou-te toda a terra que
quiseres e há de ser por essa terra
que te hei de apanhar”.
II
III
VI
VII
Os Baquires aprontaram-se e
partiram; uns iam a cavalo, outros
de carro; Pahóm ia no seu
carrinho, com o criado e uma pá;
quando chegaram à estepe, já se
via no céu o rosado da aurora;
subiram a um cabeço, a que os
Baquires chamavam shikhan, e,
apeando-se dos carros e dos
cavalos, juntaram-se num sítio. O
chefe veio ter com Pahóm e,
estendendo o braço para a planície:
“Olha para isto” — disse ele —,
“tudo o que vês é nosso; poderás
ficar com o que quiseres”.
Os olhos de Pahóm rebrilharam:
era tudo terra virgem, plana como
a palma da mão, negra como
semente de papoila; e as diferentes
espécies de erva cresciam à altura
do peito.
O chefe tirou o barrete de pele
de raposa, colocou-o no chão e
disse:
“O sinal é este; partes daqui e
voltas aqui; é tua toda a terra a que
deres volta”.
Pahóm puxou do dinheiro e pô-
lo no barrete; depois tirou o casaco
e ficou em colete; desapertou o
cinto e ajustou-o logo por baixo do
estômago, pôs um saquinho de pão
ao peito, atou um cantil de água ao
cinto, puxou os canos das botas,
pediu a pá ao criado e ficou pronto
a largar; considerou por alguns
momentos sobre o caminho que
havia de tomar, mas era uma
tentação por toda a parte.
“Não faz mal” — concluiu —
“vou para o nascente”.
Voltou-se para leste,
espreguiçou-se e esperou que o Sol
aparecesse acima do horizonte.
“Não há tempo a perder” —
disse ele — “e é melhor ir já pela
fresquinha”.
Mal apareceu o primeiro raio de
sol, desceu Pahóm a colina, de pá
ao ombro; nem ia devagar, nem
depressa; ao fim de um
quilômetro, parou, fez um buraco e
pôs os torrões uns sobre os outros;
depois continuou e, como ia
aquecendo, apressou o passo; ao
fim de um certo tempo, fez outra
cova. Pahóm olhou para trás: a
colina estava distintamente
iluminada pelo Sol e viam-se os
Baquires e os aros cintilantes das
rodas; Pahóm calculou que teria
andado uma légua; como o calor
apertava, tirou o colete, pô-lo ao
ombro e continuou a caminhar;
estava quente a valer: olhou para o
Sol e viu que eram horas de pensar
no almoço.
“A primeira tirada está feita;
mas posso ainda fazer mais três,
porque é cedo para voltar; o que
tenho é de tirar as botas”.
Sentou-se, descalçou as botas,
pendurou-as ao cinto e continuou;
agora, andava à vontade. “Mais
uma leguazita” — pensou ele —
“depois volto para a esquerda; este
bocado é tão bom que era uma
pena perdê-lo; quanto mais se
anda, melhor a terra parece.”
Avançou a direito durante algum
tempo e, quando olhou à volta, viu
que a colina mal se enxergava e
que os Baquires pareciam
formiguinhas; e havia qualquer
coisa que brilhava.
“Já andei bastante para este
lado” — pensou Pahóm —, “é
tempo de voltar; e já estou a suar e
com sede”.
Parou, cavou um grande buraco
e amontoou os torrões; depois,
desatou o cantil, sorveu um gole e
voltou à esquerda; foi andando,
andando sempre; a erva era alta, o
sol quentíssimo. Começou a sentir-
se cansado: olhou para o Sol e viu
que era meio-dia.
“Bem, vou descansar um
bocado”.
Sentou-se, comeu um naco de
pão, bebeu uma pinga de água;
mas não se deitou, com medo de
adormecer; depois de ficar sentado
uns momentos, levantou-se e
continuou. A princípio, andava
bem: a comida tinha-lhe dado
forças; mas o calor aumentava,
sentia sono; apesar de tudo,
continuava, e repetia consigo:
“Um dia de dor, uma vida de
amor”.
Andou muito tempo na mesma
direção e estava para rodar à
esquerda, quando viu um sítio
úmido: “Era uma pena deixar isto;
o linho deve dar-se bem aqui.”
Deu uma volta, cavou um buraco e
olhou para a colina; com o calor, o
ar tremia e a colina tremia
também, mal se vendo os
Baquires.
“Os outros lados ficaram muito
grandes; tenho que fazer este mais
curto.” E pôs-se a andar mais
depressa. Olhou para o Sol: estava
quase a meio caminho do
horizonte e não tinha ainda andado
três quilômetros do lado novo; e
ainda lhe faltavam três léguas para
a colina.
“Bem” — pensou ele — “não
me fica a terra quadrada, mas
agora tenho que ir a direito; podia
ir longe demais e assim já tenho
terra bastante”.
Abriu um buraco a toda a pressa
e partiu em direção à colina.
IX