Antonio - Tese
Antonio - Tese
Antonio - Tese
Belo Horizonte
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
Maio de 2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Tese defendida pelo Aluno Antonio Carlos Figueiredo Costa em _____de __________
_______________________________________
Prof. Dr. João Pinto Furtado – Orientador
Universidade Federal de Minas Gerais
_______________________________________
Profª. Drª. Adriane Aparecida Vidal Costa
Universidade Federal de Minas Gerais
_______________________________________
Prof. Dr. Tarcísio Rodrigues Botelho
Universidade Federal de Minas Gerais
_______________________________________
Prof. Dr. Angelo Alves Carrara
Universidade Federal de Juiz de Fora
_________________________________________
Profª. Drª. Ângela Maria de Castro Gomes
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Agradecimentos
Reservei para o final o espaço daqueles possivelmente mais afetados pela minha
ausência forçada. Não deve ser fácil a convivência familiar com um Doutorando. Ainda
mais quando este após mais de trinta anos de extenuante trabalho no serviço público
federal, aposenta-se para se tornar por meio de concurso, Professor em uma
Universidade pública. Portanto uma nova carreira em meio à execução de um
Doutorado. E quando esse Doutorando é casado e pai, aí a coisa se complica e à vezes
parece que desandará ou fugirá ao controle. Fica portanto aqui não apenas meus
agradecimentos mas também meus pedidos de desculpas a Nilza, Beatriz e Guilherme,
pelas ausências constantes e não poucas vezes, minhas mudanças repentinas de humor.
O que fiz, venho fazendo e espero farei, faço em grande parte por vocês. Resta então o
agradecimento aos meus pais, Everaldo e Maria Laura – in memoriam. Meu querido pai
segue a sua velhice digna em Niterói, e diz que costuma ler os textos que já publiquei.
Ele me disse que um dia formulará seus comentários críticos por escrito. Aguardo com
ansiedade. Aos meus pais fica o agradecimento muito especial, pois sei que a eles devo,
com meus defeitos e qualidades, o que sou.
RESUMO
Résumé
La thèse " Les feux d'Ithaca : de l'imaginaire historique dans la première république au
Brésil (Nation, de territoire et de civilisation)", c'est l'effort déployé au cours de la
Première République, à équiper la "patrie" de l'histoire de nouvelles références que
mieux si leur remplacement au pacte de domination avait surgi après 1894 . Dans le
contexte de la plus engagée ‘Maisons de mémoire', les historiens de l'Institut
géographique et historique brésilien, de concert avec ses instituts historiques consócios
Paulista et Mineiros axées sur le brésilien passé et ont mis en oeuvre les initiatives
visant à produire une écriture de l'histoire qui est le fruit d'un renouvellement
thématique et méthodologique, mais qui a également creolesâ l'intérêt des oligarchies
des contributions des deux principaux États de la Fédération brésilienne . Avec ce, ont
produit de nouvelles références historiques, qui étaient ancrés dans le passé colonial,
mais compatible avec les intérêts de l'établissement d'un nouveau panthéon civique
républicain qui pourrait servir de marque pour l'identitaire des oligarchies Paulista et
Mineira.
Sumário:
Introdução ................................................................................ 9
Introdução
Homero. Odisseia.
Ithaca é uma pequena ilha situada no mar Jônico. Seria mais uma entre as
numerosas ilhas gregas não fosse por uma história registrada há milhares de anos
atribuída ao velho Homero. Ithaca é a pátria de Ulisses, e são as tentativas do herói em
voltar ao lar após o vitorioso desfecho da Guerra de Tróia, todas marcadas por
pungentes resultados, que aproximam o leitor de Ulisses, humanizado em seus revezes e
angústias, do início ao fim da Odisséia. As espalhadas luzes que brilhavam na ilha
chegaram a ser divisadas certa noite por Ulisses a bordo de seu navio. Porém fatores
alheios à sua vontade, entre eles o sono que o abateu após nove dias e nove noites de
vigília e a cobiça dos seus próprios companheiros à procura de um possível tesouro que
o herói teria recebido do rei dos Ventos colocou tudo a perder.
O saco de couro de boi que fora entregue a Ulisses pelo benemérito monarca da
ilha Eólia, presente do qual ele não se desprendera desde então, ao ser aberto pela
maruja fez libertar todos os ventos que poderiam impedir aqueles exaustos viajantes de
alcançarem sua terra, causando o desvio da rota e os afastando irremediavelmente do
destino que colimavam.
10
Nesse sentido, as luzes de Ithaca servem a esse trabalho como uma metáfora. Ela
nos oferece uma referência para algo que é fugidio, almejado porém distante, sendo
acenado como possível para ao final, ser declarado como um objetivo quase
intransponível. Seria porém, passível de ser alcançado. Na sociedade brasileira tais luzes
se constituem em um objetivo constantemente perseguido, e possuíram ao longo do
tempo, século XX afora, nomes que denotam essa mesma fugacidade:
desenvolvimentismo, primeiro mundo, globalização ou ainda, modernidade, conceito
esse que se apresenta dotado de extensa semântica. No Brasil dos anos iniciais do século
XX, a idéia de modernidade, noção que entre nós, historicamente parece assumir um
caráter caleidoscópico, respondia pelo nome mágico de Civilização.
Mas o que seria uma nação civilizada sob a ótica das elites brasileiras durante a
Primeira República? Caso procurássemos uma resposta fácil para uma inquirição dessa
natureza, poderíamos dizer sem sérias dúvidas e temores de reproche, que o sentimento
de pertencimento à civilização embalava os sonhos de uma parcela influente da
sociedade brasileira. Essa idéia aparece nos relatos históricos e nas crônicas, tendo sido
inúmeras vezes representada pelos analistas dos últimos anos do século XIX e primeiras
décadas do século XX sob um conteúdo que priorizava os avanços da ciência e da
técnica, o que necessariamente deveria incluir os confortos e comodidades existentes
nos países do capitalismo central.
em ganho real de tempo e visava uma utilização massiva, tanto doméstica quanto
comercial, tornada possível face ao seu preço relativamente muito baixo. Por tudo isso,
tais novidades apareciam nos reclames dos jornais como invenções doravante
apreciadas como indispensáveis à vida moderna e por isso, associadas ao mundo
civilizado.
Ora, sem dúvida que esses aspectos importavam àquela sociedade, pois as
encontramos pontuadas em numerosas publicações e imagens da época. Mas a idéia de
civilização também gravitava pelo respeito às leis e costumes consagrados na chamada
‘boa sociedade’, o que por sua vez conduzia ao caminho da tradição e portanto aos
princípios de constância e de perenidade das normas sociais. Por sua vez guardava-se
face a tudo isso um certo tom reverencial com o qual certas instituições dos chamados
países centrais eram mencionadas. Aí reside certo interesse desse trabalho, o que nos
obriga a um recorte de testemunhos deixados pelo passado que iremos adentrar. Assim,
nos interessará aqui principalmente os registros que nos chegaram pela lavra de uma
12
O conceito de nação passou a ser associado de forma cada vez mais progressiva
à uma comunidade de pessoas unidas por vínculos profundos sintetizados na idéia de
pertencimento, entre as quais a língua, as tradições e as memórias coletivas sobressaem,
mas também pelo apego à terra natal, solo ao qual estavam vinculadas as estruturas
temporais do passado e do presente, articulando um campo de experiência constituído
por laços afetivos – a terra dos antepassados – mas que representava também em cada
presente, a garantia – por força do labor em meio a atmosfera fluída das lides diárias –
das condições de subsistência dos descendentes. Dessa forma, ao final do século
dezenove a nacionalidade é condição sine qua non para qualquer indivíduo e articulado
a essa, o pertencimento a uma classe social e a uma origem racial.
Ora, podemos perceber por esse discurso que o caminho para integrar o
almejado universo das nações em marcha no concerto das civilizações não poderia
prescindir do concurso dos historiadores. Porém o discurso ‘científico’ de uma história
construída ao longo do século XIX mantinha certas exigências de realismo e de
verossimilhança, reservando contudo ao historiador uma espécie de ‘palavra final’,
13
A ordem até marcara certa aparente presença, mas após uma década de
incertezas institucionais, revoltas militares e crises econômicas. A estabilização do
regime republicano fora firmada graças a um pacto de dominação baseado em uma
estrutura de cunho oligárquico, onde os estados da federação desempenhavam papéis
em conformidade com a sua produção econômica e contingente populacional. A
estrutura institucional republicana fora legalmente implantada em 1891 e modificara a
traços visíveis o formato vigente à época do Império. Contrastando com a antiga
centralização monárquica, a República oferecia em seu ordenamento jurídico uma
radical descentralização. Podiam agora os Estados subvencionar a imigração
estrangeira, contrair empréstimos internacionais, fazer a garantia de juros para a
construção das estradas de ferro e constituir forças militares próprias, as chamadas
forças públicas, que em alguns casos se assemelhavam a verdadeiros exércitos, com
armamentos pesados, artilharia, aviação e até – como foi o caso de São Paulo –
instrução proveniente de uma missão militar francesa. As antigas Províncias do Império
14
No caso que vai nos interessar mais de perto encontramos Minas Gerais e São
Paulo no famoso arranjo político da Primeira República, conhecido como o ‘café com
leite’. Apresentava Minas Gerais um modesto índice de crescimento econômico. Era
porém o Estado mais populoso da Federação, e tinha portanto o maior eleitorado, o que
consequentemente lhe dava a maior bancada no Congresso Nacional. Trava-se de uma
política oligárquica, unipartidária e organizada sob o Partido Republicano Mineiro
(PRM), que contava nos seus quadros com elites das velhas regiões mineradoras e das
novas regiões agrícolas, ou seja, as regiões do café e eram essas que detinham o
predomínio, pois controlavam a máquina estadual. Contava-se no seio dessa elite com
grupos identificados como o ‘silvianismo’, a ‘mata’ e o ‘grupo do Tarasca’ o qual
compunha a comissão executiva do PRM. Ao setor das elites das regiões de formação
urbana, ou seja, as antigas áreas mineradoras, restava a atuação no plano federal. A
esses representantes das velhas regiões mineradoras passava a caber então o Congresso
Nacional ou os ministérios, apartados que estavam do cenário político estadual, pois era
nos Estados, de acordo com o ‘modelo Campos Salles’ que a ‘verdadeira república’
acontecia, ou seja, onde as grandes decisões eram tomadas.
Por sua vez São Paulo havia se tornado o centro dinâmico da economia
brasileira, contando com a maioria dos ramais do sistema ferroviário e uma tão
constante quanto numerosa leva de imigrantes estrangeiros a procurar entrada pelo porto
de Santos, impulsionando a oferta de mão-de-obra que se poderia projetar sob cálculos
otimistas, seria mantida ainda por muitos anos. A política partidária paulista era mantida
sob o controle do Partido Republicano Paulista (PRP), partido único integrado pelas
classes dominantes e que permaneceu hegemônico durante toda a Primeira República,
mesmo após o ano de 1926, quando surgiu o Partido Democrático (PD).
Sob a ótica dos homens do PRP a política poderia ser traduzida sob uma fórmula
de troca de favores e cargos, sob os auspícios da corrupção, da violência e da fraude
eleitoral. A elite paulista na Primeira República era composta por uns poucos membros
das chamadas famílias quatrocentonas aos quais se somavam uma outra parcela chegada
em data relativamente recente – como a primeira metade do século XIX – o que
15
ressaltava aquilo que um historiador brasilianista chamou por ‘caráter nóvel dos donos
do poder’. Apesar disso, os imigrantes mais recentes e mesmo seus descendentes
levaram algum tempo para serem absorvidos pela elite governante. O recrutamento
político ocorria em um círculo bastante restrito e a homogeneidade do grupo era dada
pelo denominador comum do diploma universitário, uma espécie de condição sine qua
non para ingresso no restrito universo oligárquico. Para exemplificar, esse documento
comprobatório do curso superior adornava as paredes de cerca de 92% dessa elite.
Colocadas essas palavras iniciais, cabe esclarecer que iniciamos nosso estudo
procurando o entendimento de alguns conceitos que entendemos de capital importância
para pensarmos a produção do discurso histórico nos anos iniciais do século XX. Dessa
forma elegemos, não de forma aleatória ou totalmente arbitrária, três conceitos, a saber:
nação, território e civilização. O conceito de nação aparecia com uma potencial carga de
redefinição face à incorporação ao universo dos cidadãos livres, dos negros que antes
estavam submetidos à servidão. Entendia-se que o ingresso no seleto universo dos
povos civilizados dependia de certos pressupostos de enquadramento do país em
patamares aproximados das nações européias, e esperava-se com certa dose de
ansiedade que as levas de imigrantes brancos, a anunciada projeção de decréscimo da
população negra e o desaparecimento final dos indígenas conduzisse a um futuro
branqueamento da população. Essa não era afinal nenhuma novidade, pois desde
Francisco Adolfo de Varnhagen a civilização européia aparecia como superior por
trazer consigo a lei, a ordem, a religião e a autoridade, elementos então considerados
básicos para que se constituísse uma nação.
Capistrano imigrara do Ceará para ‘provar sorte’ no Rio de Janeiro. Diz-se que
costumava dedicar-se à leitura por longos períodos – alguns falam em seis horas no
salão da Biblioteca Nacional – e isso durante as férias! Sua curiosidade intelectual o
fazia estudar desmesuradamente, o que de maneira indubitável muito o ajudou. Era
então Capistrano um historiador de ofício, mas sem uma formação bancária e
sistemática, em suma, sem diploma universitário, o que na sua época não o impediu de
conquistar cargos cobiçados e sobressair-se em seus trabalhos acadêmicos. Capistrano
estudava os documentos de maneira rigorosa, em suas minúcias, o que juntamente com
a sua erudição, aliada à capacidade que tinha em condensar e sistematizar, acabou por
levá-lo a caminhos ainda não desbravados. Fazia isso com uma coerência extraordinária
impondo-se contra idéias há tanto difundidas, para refutá-las e apontar novas hipóteses
que passaram a dar corpo às representações sobre o Brasil. O método de trabalho por ele
adotado possibilitou com que contribuísse para renovar em termos temáticos os estudos
historiográficos e ficasse estabelecido definitivamente o método rankeano no Brasil. Ao
tratar de aspectos referentes à teoria e metodologia, conviria esclarecer que as
referências que utilizamos em nosso frontispício, continuadas em nossas primeiras
linhas, não foram gratuitas, e talvez sirvam para colocar algumas questões caras a esse
estudo. Uma obra clássica como a Odisséia, assim como outras de sua estirpe, são
referenciais lapidares e relevantes para a cultura Ocidental, e ocupam por isso um papel
paradigmático na tradição da narrativa histórica.
Assim para a primeira das nossas vertentes teóricas podemos dizer que a
História intelectual de Koselleck tem por objetivo central examinar o processo de
constituição do tempo histórico, entendendo-o como um produto da modernidade
ocidental. Sob tais pressupostos Koselleck então defendeu a tese na qual o tempo
histórico é engendrado em um processo de determinação que distinguido entre passado
e futuro se utiliza de uma terminologia de viés antropológico que toma por base os
conceitos meta-históricos de campo de experiência e horizonte de expectativa.
17
Por seu turno, trata Hayden White do modus operandi pelo qual entende o
discurso histórico. Nesse sentido ele propõe que a escrita histórica seja analisada como
um tipo de discurso em prosa, antes que possam ser testadas as suas pretensões à
objetividade e à veracidade, o que significa submeter qualquer discurso histórico a uma
análise retórica, de molde a revelar a subestrutura poética do que pretende passar por
uma modesta representação em prosa da realidade. A proposta desvelada por esse autor
é tributária da teoria das ficções de Northrop Frie, e pretende resgatar para o
entendimento contemporâneo o discurso dos historiadores do século XIX, mediante a
identificação nos textos históricos da “estrutura profunda” neles contida, expressão
utilizada por H. White para designar os tópicos teóricos que segundo ele defende em sua
magistral Meta-História, servem como espécies de arcanos da composição
historiográfica.
eram ainda apoiadas em termos logísticos, nos casos de São Paulo e de Minas Gerais,
por instituições estatais tais como o Museu Paulista ou o Arquivo Público Mineiro, com
as quais mantinham íntimo contato.
Alguns dos homens que encontraremos labutando nas letras históricas são
bastante conhecidos, tais como Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Capistrano de
Abreu, Manuel de Oliveira Lima, Francisco Adolfo de Varnhagen, Diogo de
Vasconcellos, Manuel Bonfim, Francisco José de Oliveira Vianna, Alberto Torres,
Edgard Roquette-Pinto e talvez, Afonso d’Escragnolle Taunay e Joaquim Norberto de
Souza e Silva. Outros, hoje um pouco ainda encobertos pelas brumas do tempo têm sido
revisitados tais os casos de Lúcio José dos Santos, João Baptista de Lacerda, Max
Fleiuss, Alberto Rangel, Rodrigo Octávio Langaard de Menezes, Pedro Lessa,
Theodoro Sampaio, Toledo Piza e Basílio de Magalhães. Mas há personagens ainda, tais
como Gentil de Assis Cardoso, Aurélio Pires, Victor Vianna, Elísio de Carvalho,
Antonio Teixeira Duarte e Annibal Velloso Rebello que tivemos que resgatar da quase
total escuridão, pois se tornaram praticamente desconhecidos com o passar do tempo.
Contudo, em momentos diversos, eles assumiram o papel de desenvolver as ideologias
de construção da nacionalidade, entendida essa expressão não como uma ‘falsa
consciência’, mas sim em sentido Geertziano , ou seja, como um sistema simbólico no
qual os homens passam a tomar consciência dos seus conflitos e do seu lugar na
sociedade.
cientificista para cumprir o papel de fundamental importância que foi afirmar no meio
acadêmico brasileiro os aspectos basilares daquilo que se costuma considerar em seus
requisitos ‘mínimos’, uma moderna concepção de história: realista, factual e narrativa,
roteiro percorrido pelo historiador para acessar de forma mais objetiva a realidade.
Sem tentarmos estabelecer uma data muito precisa, podemos dizer que de certa
forma as mudanças passaram a vir com uma velocidade maior a partir do último quartel
22
do século XIX e foram impactando as áreas que naquele momento não guardavam
compartimento estanques, como o campo político e o intelectual. Os Institutos
Históricos na sua qualidade de receptáculos dos homens de ciência, firmes na sua
vocação oficialista e mantidos como lócus do conhecimento histórico embeberaram-se
em tais teorias. Avaliava-se as dificuldades olhando para o rosto do contingente
populacional e esbarrava-se no problema da constituição étnica, de uma mestiçagem que
parecia obstruir o acesso do Brasil ao banquete das nações evoluídas. Estaria assim
fechado ao país, o futuro. Daí, o problema da raça, e das teorias raciais, com as quais
muniram-se homens como Nina Rodrigues, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, João
Baptista de Lacerda, e, naturalmente, Oliveira Vianna.
O Jeca serviu como uma imagem serena, embora preocupante que parecia
acender para a memória os episódios que grassavam pelos sertões, e que já se haviam
revelado aos brasileiros em Canudos, no Contestado, e até na Capital Federal, como no
bairro da Saúde, em revolta contra a vacina obrigatória. O Jeca na verdade era um
pequeno sitiante de um lugarejo como tantos outros, ao qual somente imaginamos
vagamente a localização em vista da vaga geografia lobatiana.Talvez nosso personagem
fosse encontrado mais facilmente no Vale do Paraíba, com suas antigas e decadentes
cidades que vegetaram a partir da passagem do café, em direção ao noroeste paulista.
Possivelmente fosse um caboclo e não tivesse uma gota sequer de sangue negro. Assim,
havia quase uma unanimidade em torno da idéia de que o sertão, conforme indicava
certo escritor, começava aonde terminava a Avenida Central, ou seja, em plena Capital
da República.
23
Porém pensar o Brasil nos anos iniciais do século XX e reavaliar as suas reais
possibilidades de acesso à modernidade podia também significar encontrar um caminho
no qual as condições materiais de subsistência pudessem ser trazidas à baila no papel de
deslegitimar, ou ao menos, reduzir as injunções desanimadoras que a antropogeografia
lançava sobre um país mestiço. Essa parece ter sido a tarefa à qual se devotaram em
vários de seus trabalhos, homens como Manuel Bonfim, Alberto Torres e Edgard
Roquette-Pinto.
A imagem propagada à época remetia a São Paulo como o Estado que puxava
rampa acima os dezenove vagões irmãos. O papel da locomotiva do progresso,
alimentado pelos paulistas, logo combinaria muito bem com o mito do bandeirante,
então em franca construção. A este teria restado a difícil tarefa de desbravar o território,
na ausência do Estado, mas perseguindo interesses que não eram dissociados da coroa
portuguesa, o que fazia dos paulistas súditos leais ao Rei de Portugal, afastando a
imagem de rochela que lhes fora imputada pela crônica colonial e homologada por
historiadores como Varnhagen. Assim, foram realizados investimentos no Museu
Paulista e procurou-se transferir – o que acabou ocorrendo com relativo sucesso – parte
das comemorações do Centenário da Independência para São Paulo.
1 – O Território de Clio
1
Apresenta-se aqui uma diferenciação entre nação e pátria. Essa última aparece nos textos dos escritores
da época como carregada com as cores sentimentais das lembranças afetivas dos anos pueris e das
primeiras palavras balbuciadas no idioma natal. Seria a pátria ainda o solo que serve de sepulcro aos
antepassados, onde a terra adquire em conseqüência um caráter sagrado. Descanso eterno para a
ascendência e promessa de vida para os nascituros, a pátria dilata-se no tempo fazendo sentir aos homens
de cada presente a idéia heideggeriana da finitude e consequentemente o pertencimento ao transitório.
Conforme veremos no próximo capítulo os positivistas suscitaram a idéia das pequenas pátrias, à qual foi
sendo desvanecida a partir do irrompimento da Primeira Guerra Mundial. Quanto à idéia de nação poder-
se-ia dizer que à época considerada por nosso recorte temporal – a primeira República – não se acreditava
mais que essa tivesse surgido espontaneamente conforme pretenderam anteriormente os românticos, mas
como uma construção histórica em sua essência. Daí o investimento em instituições de pesquisa e o status
conferido à História pelo Estado, que no Brasil representou em sua ação e omissão o papel de agente
tutelar de construção da nação. Assim, a nação era então percebida pelos homens que dirigiam os destinos
da jovem República como algo que surgiria dos escombros do período colonial amalgamando a massa
28
heterogênea das três etnias em um povo e localizando com lentes de aumento seus pretensos laços de
união intempestiva para que se pudesse escrever no tempo aquilo que seria uma nova nação.
2
VENTURA, Roberto. Um Brasil mestiço: raça e cultura na passagem da Monarquia à República. In:
MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem incompleta. Formação: histórias. 2.ed. São Paulo: Senac, 2000.
3
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Espetáculo da miscigenação. Estudos Avançados. São Paulo,
v.8,n.20,1994,pp.137-150.
4
NISBET, Robert. O conservadorismo.Lisboa: Estampa, 1987.
5
História da História do Brasil. v.II,t.1 (A Historiografia Conservadora). São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1988.
29
defini-la seria posicioná-la como uma forma de História que não se funda no tempo –
como a moderna – mas que estabelece um ‘espaço de experiências’, no qual passam a
ser reunidos exemplos e histórias excepcionais e extraordinárias; ‘exemplares’ em
suma, e por isso mesmo, capazes de fornecer orientação e sabedoria a todos que venham
acessar a esse repositório.
Diante dessas circunstâncias temos para o autor, uma
“...formulação[que] supõe uma crença na unidade essencial do gênero
humano, único argumento capaz de validar a organização da história como
se ela fosse um palco no qual um conjunto aberto, mas altamente
selecionado de cenas, sem uma articulação necessária entre si, seria
continuamente representado em prol do aperfeiçoamento político e moral
dos seus expectadores. Um procedimento como este vai envolver
indubitavelmente a história com a tradição e com a memória coletiva, numa
associação que praticamente desconhece o passado e o presente e mantém o
futuro sob o mais estrito controle.”6
6
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Ronda Noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.1, 1988, p. 29.
7
De acordo com Reinhart Koselleck, apesar de tratar-se de metáforas temporais – segundo esse autor, a
única forma possível de expressar-se o tempo – o campo de experiência e o horizonte de expectativa
distinguem-se sobretudo pela presença do passado ser diverso da presença do futuro, sendo a experiência
procedente do passado espacial, por estar reunida, formando uma totalidade na qual estão presentes
muitos estratos de tempos anteriores, sem referência nestes do seu antes ou do seu depois. Já o ‘horizonte’
seria a linha atrás da qual se abre no futuro um novo espaço de experiência, que ainda não pode ser
contemplado. In: Futuro pasado: para una semántica de los tiempos históricos e Uma história dos
conceitos: problemas teóricos e práticos.
30
procurado “promover suas perspectivas por meio das experiências acumuladas pela
história, pois, pela variedade de conteúdos, e longe de definir-se matéria de
especialistas, constitui-se o conteúdo e o gênero freqüente da intelectualidade
clássica.”8
A concepção clássica de história, cabe registrar, conheceu rivais durante o
período no qual foi hegemônica, bem como não desapareceu – ao menos de forma
abrupta, conforme explica Diehl – quando ao início do século XIX, veio a se apresentar
a irrupção de uma moderna concepção de história.
No caso do Brasil, não contando com universidades, o discurso histórico veio a
se desenvolver em outro espaço de produção acadêmica, ou seja, o ambiente das
associações de eleitos, congregados a partir de relações sociais aos moldes das
academias ilustradas, conforme ocorrera na Europa, onde conheceram seu auge nos fins
do século XVII e ao longo do século XVIII. No caso brasileiro, esse local foi
inicialmente o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838 na
capital do Império.
Conforme explica Diehl, no Brasil, o lugar privilegiado para a produção
historiográfica permaneceu, até certo período do século XX, vinculado a uma marca
elitista e iluminista, onde a história ainda era representada como mestra da vida, tendo
esse espaço – no qual se produziu o discurso historiográfico – desempenhado papel
decisivo na construção, tanto da historiografia, quanto das interpretações sobre o Brasil
que fossem afetas à questão nacional.
Então, partindo dessas considerações, podemos dizer que para os homens
dedicados à escrita da História do Brasil nas décadas iniciais do século XX, havia uma
tarefa: redescobrir no campo de experiências brasileiro, e sob os aportes de um modelo
de história ainda considerada como clássica, temas que envolvessem os então novos
fundamentos da nacionalidade9, em consonância aos interesses dos grupos políticos que
haviam chegado ao poder com a República. Para esses novos donos do poder, o regime
republicano de governo representava uma espécie de regeneração, devendo ser
entendido como restauração da soberania nacional, o ‘governo de todos por todos’, ou
8
DIEHL, Astor Antonio. A cultura historiográfica brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo: UPF,
1998, p. 62.
9
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. As festas que a República manda guardar. Estudos históricos, Rio de Janeiro,
v.2, n.4, 1989, p.172-189.
31
10
Do Império à República. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v.2, n.4, 1989, p. 163-171. Observa ainda
Mattos que para alguns publicistas republicanos, a República deveria ser a “...expressão do progresso
material, do triunfo da liberdade, do advento da democracia e da instauração de uma ordem mais
racional. A República, enfim, como progresso e como ordem; como ponto de chegada inevitável e como
ponto de partida de um novo processo que se procura ter sob controle.” P. 165.
11
Conciliação e Reforma no Brasil: um desafio histórico-cultural.2.ed.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1982.
12
Conceitos históricos seriam para Reinhart Koselleck, palavras providas de um sentido relevante do
ponto de vista da História dos conceitos, e portadoras de um conteúdo indicador de sua formulação sob
um certo nível de teorização. Porém, cada conceitualização abarca mais que a singularidade passada, a
qual ajuda a conceber. In: Futuro pasado: para una semántica de los tiempos históricos e Uma história
dos conceitos: problemas teóricos e práticos.
13
SILVA, Kalina Vanderlei, SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. 3.ed. São
Paulo: Contexto, 2014.
32
senhores feudais que se propunham a competir pelo poder14. Antes, por força da
compulsão, esses nobres eram levados para situações competitivas, e suas vidas eram
contínua e diretamente ameaçadas por atos de violência. Esse processo competitivo
acabou por levar ao monopólio do poder um desses filhos da nobreza. A essa
centralização do poder político associaram-se então outros mecanismos de integração,
para os quais concorreram processos de formação de capital e diferenciação funcional.
O ápice de tudo isso acabou culminando na formação do Estado Absolutista.
O que se costuma chamar por civilização teria sido então um processo posto em
movimento cegamente, sendo mantido em marcha pela dinâmica autônoma de uma rede
de relacionamentos. De acordo com Elias, a reorganização dos relacionamentos
humanos foi acompanhada de correspondentes mudanças nas maneiras. A nobreza
guerreira teve que abrir mão da sua alegria ‘selvagem’, da satisfação sem limites de
prazer, fosse à custa das mulheres que desejassem ou do exercício do ódio sobre aqueles
que lhes fossem hostis. Mas a mudança ‘civilizadora’ do comportamento passava a
atingir também aqueles indivíduos que desejavam resguardar as vantagens, privilégios e
o valor distintivo que passaram a usufruir, localizadas tais distinções na sua formação,
educação, costumes e cultura. De uma maneira geral, todos estavam doravante
submetidos às coerções civilizadoras15.
Assim a estrutura da personalidade dos homens viria a alcançar no futuro um
resultado provisório, que o autor identifica na forma contemporânea de conduta e de
sentimentos ditos ‘civilizados’. Em síntese, Norbert Elias procurou explicar a
transformação da nobreza, de uma classe de cavaleiros em um círculo de cortesãos,
onde a corte serviu como um instrumento para domar e preservar a nobreza. Cabe
observar que uma nobreza preservada interessava ao rei, como contrapeso à burguesia.
Por outro lado, também o rei precisava da burguesia, como forma de sobressair-se à
nobreza. Devemos ainda lembrar – observa o autor – que a nobreza ocidental vivia
principalmente dos impostos e tributos pagos pelo terceiro estado, sendo a cobrança
desses determinada sob um território sob o qual se exercia a soberania e executada pela
burocracia real, porém legitimada por uma posição a priori incontestada do soberano. E
14
ELIAS, Norbert. O Processo civilizador: formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Zahar,
1993.
15
ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de
corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
33
somente poderia a nobreza ter acesso a tais recursos legitimando o rei e as instituições
que o representavam16. Em suma, segundo Norbert Elias teria ocorrido,
“A moderação das emoções espontâneas, o controle dos sentimentos, a
ampliação do espaço mental além do momento presente, levando em conta o
passado e o futuro, o hábito de ligar os fatos em cadeias de causa e efeito –
todos estes são distintos aspectos da mesma transformação de conduta, que
necessariamente ocorre com a monopolização da violência física e a
extensão das cadeias da ação e interdependência social. Ocorre uma
mudança ‘civilizadora’ do comportamento.”17
16
Conclusões em parte semelhantes às de Norbert Elias seriam expressadas na década de 1970 (a 1ª
edição inglesa é de 1974) por Perry Anderson, que identificou nas chamadas inovações institucionais do
Estado Moderno Absolutista Renascentista – a saber, exército, burocracia, tributação, comércio e
diplomacia – o que seria “a nova carapaça política de uma nobreza atemorizada”. No bojo da burocracia
do Estado Absolutista estava um estrato qualificado de juristas com a tarefa de operar suas máquinas
administrativas: letrados na Espanha, maîtres de requêtes em França, doctores na Alemanha, todos
estavam “imbuídos das doutrinas romanas da autoridade decretal do príncipe e das concepções romanas
de normas jurídicas unitárias, estes juristas-burocratas foram os zelosos instrumentos do centralismo
régio no primeiro século crítico de construção do Estado Absolutista.” Ver: ANDERSON, Perry.
Linhagens do Estado Absolutista. Porto: Afrontamento, 1984. As citações encontram-se respectivamente
nas páginas 17e 28-29.
17
O Processo civilizador: formação do Estado e Civilização. V.2.Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p.198.
18
SILVA, Kalina Vanderlei, SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos. 3.ed. São
Paulo: Contexto, 2014, p.59.
19
A noção de cultura nas ciências sociais.2.ed. Bauru: Edusc, 2002. Lembra Denis Cuche que a palavra
cultura começa a se impor no século XVIII, quando na França aparece no Dicionário da Academia
Francesa – edição de 1718 – sendo quase sempre empregado no singular, de onde refletiria, segundo esse
autor, o universalismo e o humanismo dos filósofos, além de marcar toda a ideologia do Iluminismo.
Nesse sentido, a palavra passou a ser associada ao progresso, à educação, à razão e à evolução.
20
Ibidem, p. 22.
34
21
Utilizo a concepção de Karl Mannheim, que entende por intelligentsia ao “grupo social cuja tarefa
específica consiste em dotar uma dada sociedade de uma interpretação do mundo”. MANNHEIM, Karl.
Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p.38.
35
22
A Questão Nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990, pp. 40-41.
23
BANTON. Michael. A idéia de raça, p. 9 – 19.
24
Em A integração do negro na sociedade de classes, obra clássica de Florestan Fernandes, encontramos
um bom detalhamento acerca da sociedade estamental e do seu esfacelamento pelo duplo choque exercido
pelos eventos históricos que foram a emancipação dos escravos em 1888 e a instauração do regime
republicano, logo no ano seguinte. Trata-se de uma análise lapidar que associou a emancipação dos
escravos com a mudança de regime político. Para esse autor, essa dupla ruptura incluindo regimes de
trabalho e de governo criaram uma sociedade de classes emergente, onde o negro foi marginalizado por
inação da classe dominante. Essa havia tratado de articular a formação de um mercado de trabalho livre
alimentado por força de trabalho européia. A integração do negro na sociedade de classes,v.1. São Paulo:
Ática, 1978.
36
entendimento das relações sociais. Para Lilia Moritz Schwarcz, os discursos raciais
estariam, naquele momento, vinculados a projetos que argüiam sobre o caráter da
nacionalidade25.
Temia-se a degeneração, pois face aos modelos evolucionistas, haveria um
verdadeiro abismo entre o progresso e a civilização, e a mistura de raças consideradas
muito heterogêneas eram entendidas como um erro que condenaria não somente o
indivíduo, mas toda a coletividade. Quanto a isso, o historiador José D’Assunção Barros
ressaltou que havia uma parcela da nossa elite imperial que guardava tamanha aversão
ao negro que – em um Império agrícola e escravocrata – chegava a se colocar contra a
continuidade do fluxo de escravos africanos. De acordo com esse autor,
“para esta elite, os africanos seriam portadores de uma ‘doença moral’ que
os inclinava a contaminar a sociedade brasileira e promover a ‘corrupção
dos costumes’, de modo que quanto mais africanizada se apresentasse a
população do Império, tanto maior seria a sua distância em relação à
civilização e ao progresso”.26
Em seu elucidativo estudo de história social das idéias, Lilia Moritz Schwarcz 27
após haver pesquisado os parâmetros que envolviam os museus etnográficos brasileiros,
os institutos históricos e geográficos e as faculdades de direito e de medicina concluiu
que em tais instituições ficara resolvido adotar o ideário científico das teorias que
chegavam do exterior, vale dizer, a idéia da diferenciação ontológica entre as raças, mas
sem a condenação ao hibridismo, pois como se sabia, o Brasil estava miscigenado de
forma irremediável.
O tema da raça remetia ao pessimismo por não haver lugar no mundo civilizado
para a nação brasileira. O mundo considerado civilizado correspondia então ao universo
das nações reconhecidas como homogêneas em termos biológicos, devendo ser estas
naturalmente brancas. Assim, a face pessimista da adoção desse ideário científico
somente poderia ser mitigada pela idéia de que uma futura homogeneização fenotípica
viesse a ocorrer, o que nos coloca diante da teoria do branqueamento racial.
Teses dessa natureza eram defendidas, entre outros, pelo etnógrafo João Batista
Lacerda, então diretor do Museu Nacional, em viagem a Londres para o I Congresso
25
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Espetáculo da miscigenação. Estudos Avançados. São Paulo,
v.8,n.20,1994,p.139.
26
BARROS, José D’Assunção. A construção social da cor: diferença e desigualdade na formação da
sociedade brasileira. Petrópolis: Vozes, 2009, pp.100-101.
27
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
(1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
37
28
A tese de João Baptista de Lacerda será tratada com mais detalhamento em nosso capítulo 5.
29
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
(1870-1930). São Paulo: Companhia das Letra, 1993.
30
O conceito de “povos novos” é da lavra de Darcy Ribeiro, com sua obra Teoria do Brasil, cuja primeira
edição é de 1968. A esta noção Darcy Ribeiro contrapôs, na perspectiva americana, as noções de ‘povos
testemunhos’ (que constroem sua identidade na recuperação da História pré-colombiana, como nos casos
andino e meso-americano). Formulou ainda Darcy Ribeiro a categoria de povos transplantados (
nomeadamente os casos argentino e dos E.U.A, que primam por manter os valores dos países de origem),
conceito que, entendemos, teria tomado de empréstimo de Herder. Os povos novos teriam uma identidade
problemática, por força da mesclagem de etnias e culturas. Caberiam acrescer aqui alguns
esclarecimentos, a título de síntese, os quais acredito, podem ser entendidos à luz de dois grandes blocos
temáticos. O primeiro procura dar conta das teorias de racialização vigentes na segunda metade do século
XIX, alcançando ainda os anos 1920. Teríamos então, a tipologia racial, seguida pelo darwinismo social,
o qual por sua vez, verá sair de suas entranhas, a teoria proto-sociológica. No Brasil, o darwinismo social
contou com uma trajetória de apropriação que incluiu nomes como Nina Rodrigues, Sílvio Romero e
Euclides da Cunha. O segundo dos grandes blocos analisa especificamente o Brasil, sendo encabeçado
por Gilberto Freyre, com a polêmica tese da democracia racial. Em seguida, encontramos a segunda onda
teórica, representada pela escola sociológica paulista pontificada por Florestan Fernandes; e, na
sequência, a terceira onda teórica com Carlos Hasenbalg e Nélson do Valle Silva, com a teoria das
desvantagens cumulativas ao longo da vida. Ver: FREYRE, Gilberto. Casa-Grande&Senzala: formação
38
da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. 35.ed. Rio de Janeiro: Record, 1999;
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3.ed.SãoPaulo:Ática, 1978;
HASENBALG, Carlos, SILVA, Nelson do Valle, LIMA, Márcia. Cor e estratificação social. Rio de
Janeiro: Contra capa, 1999; e, HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil.
2.ed. Belo Horizonte: UFMG, 2005. Outras leituras de interesse ao tema podem ser encontradas em
MAIO, Marcos Chor, SANTOS, Ricardo Ventura (orgs.). Raça como questão: História, ciência e
identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.
31
GELLNER, Ernest. Naciones y nacionalismo. Madrid: Alianza Editorial, 1997. P. 13 – 20.
32
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989, p. 12.
33
Ibidem, p. 12-13.
39
34
Ibidem, p. 13. Nesse sentido considera o autor que existem três paradoxos no caminho de uma
definição sumária para o conceito de nação, a saber: 1. A modernidade objetiva das nações aos olhos do
historiador versus sua antiguidade subjetiva aos olhos dos nacionalistas; 2. A universalidade formal da
nacionalidade como conceito sócio-cultural versus a particularidade irremediável de suas manifestações
concretas; e, 3. O poder ‘político’ dos nacionalismos versus sua pobreza e até mesmo sua ‘incoerência
filosófica’. (grifos do autor).
35
Ibidem, p. 14. Conforme Anderson, a nação é imaginada como soberana em virtude do conceito ter
nascido em uma época na qual o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino
dinástico hierárquico e divinamente instituída e limitada porque na concepção moderna a soberania do
Estado tornava-se plena, categórica e uniformemente atuante sobre um território legalmente demarcado,
em contraste portanto com os antigos Estados nos quais as fronteiras se definiam por centros, sendo estas
então porosas e indistintas. As soberanias então fundiam-se imperceptivelmente umas nas outras. Cabe
observar, em conformidade com o autor, que a antiga legitimidade automática da monarquia sagrada
sofreu decadência no Ocidente, não obstante ter sido bastante lenta. Bastaria lembrar o imaginário e
costumes do tempo dos monarcas taumaturgos que “curavam” doentes pela superposição de mãos reais.
Dessa forma, Luís XIV e Luís XVI ainda realizavam tais práticas mais de 150 anos depois dos ingleses
haverem decapitado seu rei.
36
Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989, p. 14-15.
40
para Benedict Anderson, “as comunidades não devem ser distinguidas por sua
falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas.”37
Na opinião de Anderson, a nação é imaginada como comunidade, e sem que se
leve em consideração a desigualdade e a exploração que nelas existem e prevalecem,
principalmente por: 1. Sua concepção de companheirismo profundo e horizontal; 2.
Tornar possível a que milhões de pessoas matem e morram, de forma voluntária, por
imaginações que seriam tão limitadas. Para o autor, as origens devem ser procuradas
naqueles fatores que ele denomina por raízes culturais do nacionalismo 38. Parafraseando
o autor, os Estados-Nações até poderiam ser novos e históricos, porém as nações das
quais eles seriam expressão política assomariam de um passado imemorial, deslizando
outrossim, para um futuro ilimitado.
Poderíamos então passar às considerações de um texto clássico, e talvez ainda
incontornável da historiadora Maria Odila Silva Dias39. Ela avaliou as perspectivas que
a Colônia oferecia para transformar-se em nação. Para a autora, durante as duas
primeiras décadas do século XIX, caberia confrontar as inquietações dos homens da
época, quando em postura realista, expressavam seu pessimismo, lançando olhares
sobre a população escrava e mestiça, as quais, vistos de qual ângulo fosse – tensões
internas, sociais, raciais, fragmentárias, regionalistas, em suma – da falta de uma
unidade que viesse a expressar o aparecimento de uma consciência nacional.
E por não expressarem o amálgama esperado para tal “união nacional”, não
havia de onde retirar as forças para um movimento revolucionário que se apresentasse
como cumpridor da tarefa de reconstrução da sociedade. Reconstrução está claro, mas
sob o signo dos ideais constitucionalistas e via-de-regra, liberais, traçados por homens
que viram – ao menos até a separação política de Portugal – a possibilidade de
37
Ibidem, p. 15.
38
O século XVIII é apontado pelo autor como o crepúsculo das modalidades religiosas do pensamento e
refluxo da fé religiosa. É nesse século que a secularidade racionalista é inaugurada. Os novos tempos
teriam demandado então uma transformação secular da fatalidade em continuidade, da contingência em
significado. Para o autor, “poucas coisas se adaptam melhor a essa finalidade do que uma idéia de
nação.” O desvanecimento dos quadros de referência situados na comunidade religiosa e no reino
dinástico combinaram-se com a perda de domínio axiomático sobre o pensamento dos homens que antes
era mantido pela língua, pela organização da sociedade de maneira ‘natural’ em torno e sob ‘centros
elevados’e a antiga concepção de temporalidade, onde cosmologia e história não se distinguiam. As novas
comunidades tornaram-se imagináveis por meio de “uma interação semifortuita, mas explosiva, entre um
sistema de produção e de relações produtivas (capitalismo), uma tecnologia de comunicações (a
imprensa) e a fatalidade da diversidade de lingüística do homem.” Ibidem. As citações encontram-se às
páginas 19 e 52, respectivamente.
39
A Interiorização da metrópole. In: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole e
outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005. Originalmente o ensaio viera a lume na coletânea 1822 –
Dimensões, organizada por Carlos Guilherme Motta, publicada pela editora Perspectiva em 1972.
41
existência de uma monarquia dual que julgavam a mantenedora responsável pelos seus
laços à civilização européia, a que apontavam como a fonte de seus valores
cosmopolitas de renovação e progresso.
Ainda de acordo com a autora, aquilo que se tenta chamar por consciência
nacional veio pela integração de diversas províncias, e sob a imposição do que ela
denomina por “nova Corte”, ou seja, da resultante do processo histórico pós
independência política, ocorrido sob a tutela do Rio de Janeiro entre os anos de 1840 a
1850, em uma dura luta pela centralização do poder. Sobre esse aspecto, convém dar
atenção ao que foi observado por Marco Antonio Pamplona. A consolidação do projeto
nacional se deu sob muita contestação sob a chamada direção Saquarema, cujos
interesses eram tecidos a partir da Corte, passando pela província fluminense40. Para
esse autor, nesses anos marcados por drásticas mudanças se deu a discussão sobre a
formação da nação, enquanto efetiva comunidade de cidadãos, e mesmo de quem
deveria ser cidadão naquela nova ordem.
Nesse sentido, em conformidade com Maria Odila Silva Dias, a vinda e
instalação da Corte no Rio de Janeiro, surge como ponto crucial que essa transmigração
começou a enraizar-se através do estreitamento dos seus laços de integração no Centro-
Sul brasileiro. Daí a complexidade, de acordo com a autora, do nosso processo de
transição de Colônia para Império, por fato da separação política da Colônia com a sua
metrópole (1822) não ter coincidido com o período reconhecido como de consolidação
da unidade nacional (1840-1850). Dessa forma, muito mais que as imagens de uma
Colônia em luta contra a sua metrópole, foi o enraizamento de interesses portugueses e
a sistemática de interiorização da metrópole no centro-sul da colônia que cedeu água ao
moinho da emancipação política.
No futuro, e pelo concurso da história, capitanias dispersas e quando muito
articuladas precariamente à lógica de um império marítimo português por cerca de três
séculos, deram lugar à narrativa territorial que passava a descortinar um território
nacional que assim aparece já prefigurado no “Brasil-Colônia”, sob a imaginação
40
PAMPLONA, Marco Antonio. Nação. In: FERES JÚNIOR, João. (org.). Léxico da história dos
conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p. 161-175. Na realidade ocorrera uma
acirrada disputa entre a centralização e o federalismo na década de 1830. Assim, ao projeto de unidade
acalentado por grupos políticos articulados ao aparato político instalado a partir de 1808 “opunha-se a
resistência de algumas elites provinciais mais ciosas de sua autonomia”. Quanto à direção Saquarema,
cabe lembrar que essa ficou simbolizada nas pessoas de Eusébio de Queiroz, Joaquim José Rodrigues
Torres – o futuro visconde de Itaboraí – e Paulino Soares de Souza, o futuro visconde de Uruguai. A
citação encontra-se na página 172.
42
geográfica de uma nação cercada por fronteiras naturais estendidas entre a bacia do Rio
da Prata e a bacia do Rio Amazonas.
Com a instauração da república, face a uma conjuntura internacional que deveria
contemplar e manter vigília sobre os arroubos das potências imperialistas, além é claro,
do próprio ethos republicano, a temática da união nacional passava então a encontrar
lugar de destaque no discurso de elites atemorizadas pela emergência de condições que
lhes pareciam adversas, no que estas passavam a considerar, a partir de certo momento,
uma variação na sua ‘lei de ferro’ de extração do consenso pela força. Situações dessa
natureza costumam contar, conforme sabemos, com o recurso que brota entre a história
reificada e a história incorporada41. Daí o investimento nas comemorações de eventos
centenários, dos quais os de maior destaque em nosso período teriam sido as
comemorações da passagem do século (1900), da chegada da Corte portuguesa ao Brasil
(1908), da Revolução Pernambucana de (1917), e principalmente o Centenário da
Independência (1922). Tais comemorações foram dedicadas a um público mais amplo, e
destinadas conforme nos sugere Bordieu, a forjar com civismo o espírito dos cidadãos
da República.
Naquele contexto, tomadas de posição sobre o passado radicavam
frequentemente em tomadas de posição latentes sobre o presente. Isso ocorreu
especialmente onde o uso da ilusão teleológica pelos historiadores veio a permitir que
sobre agentes históricos individuais ou coletivos, fossem expedidos juízos conclusivos,
os quais foram baseados no conhecimento obtido pelo historiador, do resultado
imputado às ações e premeditações de atores históricos selecionados. Tais operações
estariam a priori, autorizando a transformar o fim da História, em fim da ação histórica
destes atores. Neste sentido, avultava para os intelectuais, e para os historiadores em
particular, a assunção do papel de protagonistas no cenário histórico que esboçamos, e
ganhava evidência a atuação dos Institutos Históricos e Geográficos de alguns Estados,
sobretudo os de Minas Gerais e São Paulo, pois tarefa que aparecia de forma inadiável,
seria a da redefinição da identidade brasileira.
41
A História reificada, ou no seu estado objetivo, significa para Pierre Bordieu, a História que se
acumulou ao longo do tempo em coisas, como edifícios, monumentos, teorias, lugares. Em relação à
noção de História no seu Estado incorporado, que se tornou habitus, Bordieu afirma ser uma aquisição
histórica que permite a apropriação do adquirido histórico. Toda a ação histórica põe em presença -
anotou Bordieu – esses dois Estados da História, onde, inferimos, a efeméride histórica metamorfoseada
em festa cívica das ruas ou do espaço standardizado dos Institutos e Congressos Históricos encontra seu
momento de sublimação, conforme veremos em nossos dois últimos capítulos.
43
42
MATTOS, Ilmar Rohlof de. O Tempo Saquarema: a formação do estado imperial.2.ed. São Paulo:
Hucitec, 1990.
43
Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro:
Museu da República, 2006, p.67. Quanto à História pragmática, podemos aproximar seu significado a
partir de observações extraídas de certo texto de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. No início do século
XIX, Hegel produziu algumas reflexões cuja temática era a filosofia da História, tendo se voltado para
aquilo que denominou por ‘a natureza da história em si’. Listou então três métodos para tratar a História,
os quais seriam a História original, a História reflexiva (que subdividiu em universal, pragmática, crítica e
fragmentária), e a História filosófica. A História pragmática seria portanto um tipo de História reflexiva
que tornaria presente o acontecimento. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich.Os três métodos de escrever a
História. In: A razão na História: uma introdução geral à Filosofia da História. 2.ed. São Paulo: Centauro,
2001.
44
44
Para Pierre Bordieu, a compreensão dos sistemas simbólicos se dá com estes vistos como estruturas em
si mesmas estruturadas, portadoras da chave da sua interpretação. Aponta Bordieu para a condição dos
sistemas simbólicos serem a um só tempo, estruturas estruturadas e estruturantes de conhecimento e
comunicação, de onde fica salientada a função política do símbolo, que possui nesse autor a prerrogativa
de instrumentos políticos de imposição e legitimação da dominação. Desta forma, o poder simbólico não
reside nos sistemas simbólicos, mas numa relação determinada, sendo definido entre aqueles que exercem
o poder e os que lhe estão sujeitos. A força da representação encontra-se então expressa em Bordieu
através da sua eficácia na constituição dos grupos sociais e nas suas estratégias de interesse material e
simbólico. Impondo, legitimando ou transformando uma visão de mundo, o trabalho político das
representações na teoria de Bordieu consiste em fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer
reconhecer, de impor as definições legítimas das divisões do mundo social. A representação é adjetivada
como um discurso performativo cujo ato de enunciação garante, pela autoridade de quem enuncia, a
sobrevivência do que é enunciado, constituindo nisso o poder simbólico. As alegorias – que podem se
apresentar sob a forma de discursos, mensagens e representações - por sua vez, simulariam a estrutura
real das relações sociais, onde Bordieu procura evidenciar sua função política e ideológica, cujo papel é o
de legitimar uma ordem arbitrária em que se funda o sistema de dominação vigente. Cfe. BORDIEU,
Pierre. A economia das trocas simbólicas.5.ed.São Paulo: Perspectiva, 2001 e O Poder simbólico.
3.ed.Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.
45
Estaria claro que esta forma de representação, proporcionada pelos historiadores seria o conhecimento
científico e sobretudo documentado do passado humano, onde se procurava realizar um diálogo entre os
homens vivos do passado e os homens vivos do presente.
46
Conforme Ivan Domingues o momento axial não se trata de um instante qualquer no curso do tempo,
mas de um momento privilegiado relativo a um acontecimento fundador, capaz de dar ao curso das coisas
um sentido novo, inaugurando talvez uma nova era. O Fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a História.
Belo Horizonte: UFMG, 1996, p. 72.
47
Nas obras do alemão Friedrich Ratzel, publicadas no último quartel do século XIX, o estudo da
influência do meio, ou das condições naturais, sobre a humanidade ocupava lugar de destaque.
45
Distinguindo povos naturais como aqueles em que viviam sob a constrição da natureza, dos povos
civilizados que seriam os que viviam em união mais multíplice e mais ampla com a natureza, onde
considerava o território dos povos civilizados como a expressão de uma ligação completa e íntima entre
sociedade e natureza. Para Ratzel a decadência ou o progresso de uma sociedade estariam ligados
respectivamente à perda ou à conquista de territórios, servindo o tamanho de um Estado como um
indicador do grau de civilização de seu povo; um aspecto importante da geografia política de Friedrich
Ratzel seria a expansão por força do progresso de uma dada civilização por fronteiras e espaços vazios,
expansão que seria justificada pela energia desenvolvida através da cultura. In: Povos naturais e povos
civilizados; As leis do crescimento espacial dos Estados. MORAES, Antônio Carlos Robert (Org.).
Ratzel. São Paulo: Ática, 1990, p. 122 e 176 – 178.
48
O Corpo da Pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: Unesp,
1997.
49
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987, p. 61.
50
Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993.
46
53
Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Vértice, 1988, p. 11.
54
Ibidem, p. 11-13. Conforme explica o autor, o processo de enraizamento social da monarquia foi difícil
e complexo, e se a Coroa estava legitimada por volta de 1850, permaneceu tensa a relação entre o
Imperador e as forças dominantes do país até o final do Império. O autor ilustra em quadro à pag. 13,
quinze rebeliões (envolvendo atores como tropa, povo, proprietários e pequenos proprietários,
camponeses, índios, escravos, estancieiros e charqueadores), além de sete motins cujos participantes
principais foram a tropa e o ‘povo’. Entre o Ceará e o Rio Grande do Sul, da Corte ao Pará e Maranhão o
status quo foi frontalmente desafiado entre os anos de 1831 a 1848, sendo avaliado pelo autor que a
população urbana livre e o campesinato se constituíram no maior perigo à ordem vigente. Havia contudo
um grande cuidado para não envolver escravos em revoltas, o que não foi possível evitar no caso dos
Cabanos (PE e AL, 1832-1835); Cabanagem (PA, 1835-1840); Balaiada (MA, 1838-1841); e,
evidentemente a Revolta dos Malês (Salvador, 1835).
55
Notas sobre a identidade nacional e institucionalização da Geografia no Brasil. Estudos Históricos: Rio
de Janeiro, v.4, n.8, 1991, pp. 166-176.
48
56
Lembramos que a escrita de A América Latina: males de origem, da lavra de Manoel Bomfim ganhou
estampa em 1905 em boa medida para rebater críticas na imprensa francesa a respeito dos grandes
espaços que existiriam na América Latina, os quais estariam disponibilizados, pela ótica dos europeus, a
uma população inepta à exploração de todo aquele potencial. BOMFIM, Manoel. A América Latina:
males de origem.Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.
57
O Evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira. São Paulo: Unesp, 2012, p. 101. Lembra o
autor que ainda recente no panorama internacional seriam a abertura forçada do Japão ao comércio
internacional, a conquista da Indochina, a imposição de tratados desiguais à China e, na África do Sul, o
esmagamento dos boers.
58
VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro:
Revan, 1997. p.16.
49
59
Aldo Janotti explica que a teoria da fronteira natural teve sua origem na Europa, embora ela nunca tenha
sido levada em conta pelos próprios europeus, relevando-se que Lucien Febvre distinguiu-se como dos
mais esforçados no sentido de desacreditá-la. Para Febvre, quem dissesse limite natural estaria a dizer
‘limite predestinado – ideal a conquistar e a realizar’. Citado em Janotti, Aldo. Historiografia brasileira e
teoria da fronteira natural. Revista de História. n. 101, v. LI, jan-mar 1975, p. 239 – 263.
60
A linha historiográfica reacionária constitui para José Honório Rodrigues, uma exacerbação
conservadora, o que equivaleria dizer que os princípios seriam os mesmos, “agravados excessivamente
pela visão deturpada e extremista”, onde ocupam lugar de destaque a defesa do direito natural, da
prudência, da imperfectibilidade humana e o da prescrição. É a legitimação exaltada do status quo que
torna reacionária a posição conservadora. A corrente reacionária na historiografia brasileira é tributária de
autores como Edmund Burke, Bonald e De Maistre, corrente que encontrou sua inspiração inicial na
reação à Revolução Francesa. História da História do Brasil.v.II,t.1 ( A Historiografia Conservadora). São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1988. Ver especialmente os Cap. I e III.
61
“os países, visando maior segurança, devem, preferentemente aos políticos, levar seus limites até
fronteiras naturais, como por exemplo, o mar, o rio, a montanha. Envolve portanto, tal teoria,
preocupação nitidamente defensiva, estreitamente vinculada aos acidentes da natureza, justificando
inclusive o caso de um esforço ofensivo que, com a mesma finalidade defensiva, procure levar os limites
de um determinado país até os referidos acidentes naturais”.Idem, Ibidem, p. 246-7.
50
Em 1922, a questão do território aparece mais uma vez como parte da tarefa do
IHGB de expansão dos seus horizontes de atuação. Nesse sentido, nos parece
emblemático o Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil, uma
contribuição do Instituto iniciada ainda em 1917, a qual foi destinada ao público leigo.
Em tal empreendimento, que Lucia Maria Paschoal Guimarães insere como
inscrito na onda do culto à nacionalidade, o território aparece como delimitação da
soberania nacional. Ou seja, se a idéia central era “desvendar o Brasil aos brasileiros
pelo caminho das letras”62, nesse grande repertório deveriam estar reunidos “os
conhecimentos básicos que os bons brasileiros deveriam dominar sobre a Pátria
...(...)...[assim], do meio físico, passava-se para a formação étnica e cultural, chegando-
se até os principais fastos da História Nacional e seus vultos ilustres”63.
Colocadas as considerações iniciais acerca das noções de nação, território e
civilização, julgamos caber dar vazão a algumas linhas no sentido de contextualizar a
época que estudamos. Ressalvamos que nosso trabalho não tem por intuito aprofundar
em demasia as questões que envolvam as estruturas política, social e econômica
vigentes na Primeira República. Manteremos nossa atalaia postada sob o celeiro que
para nós representa a historiografia brotada no seio dos Institutos Históricos e
Geográficos, ou mais precisamente, de alguns dos seus mais ilustres historiadores.
Nessa postura, cabe esclarecer, devemos nos colocar sob as imposições da
chamada “metáfora do fotógrafo”, expressão utilizada por Reinhart Koselleck para
exprimir aquelas escolhas que o pesquisador passa a utilizar quanto ao escopo do seu
estudo, e que se tornam determinantes quanto às escolhas das fontes utilizadas64.
A Primeira República brasileira costuma ser lembrada como a República do
Café com Leite, ou de forma mais abusada, pelo epíteto de “República Velha”, que foi
conforme os homens que fizeram a Revolução de 1930 resolveram batizar esse período
republicano. O apelido algo pejorativo foi reforçado durante o chamado Estado Novo, a
ditadura varguista levada a efeito entre os anos de 1937 a 194565.
A bibliografia dedicada à Primeira República é vasta, oferecendo ao leitor
múltiplas possibilidades de exploração. Por ocasião do centenário da República, as
62
Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro:
Museu da República,2006,p.95.
63
Ibidem, p.96.
64
Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.5, n10,
1992, p. 137.
65
DE DECCA, Edgard. 1930: o silêncio dos vencidos (memória, história e revolução). 6.ed. São Paulo:
Brasiliense, 1997.
51
66
GOMES, Ângela de Castro, FERREIRA, Marieta de Moraes. Primeira República: um balanço
historiográfico. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2, n.4, 1989, pp.244-280. Resta destacar além do
artigo dessas historiadoras, por sua importância em nosso estudo, os trabalhos de Joseph Love, ‘São Paulo
na Federação Brasileira: 1889-1937’, John D. Wirth, ‘Minas Gerais na Federação Brasileira: 1889-1937,
cujos recortes temporais e similitudes temáticas sob a forma de capítulos permitiram adquirir uma visão
mais totalizante dessas duas unidades federativas. Também listado pelas autoras, o ensaio de Renato
Lessa, ‘A Invenção Republicana: Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República
brasileira’, merece realce por propor uma análise sob o guarda-chuva teórico das proposições de Robert
Dahl, tanto para o reformismo do período imperial, quanto para os procedimentos do pacto oligárquico
republicano. Ainda digno de nota, e bem mais recente é o volume de ensaios organizado por Jorge
Ferreira e Lucília de Almeida Neves Delgado, intitulado O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo
excludente (da Proclamação da República à Revolução de 1930). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2008.
67
A Economia política do café com leite: 1900 – 1930. Belo Horizonte: UFMG/PROED, 1981.
52
como os Estados mais populosos, por sua densidade eleitoral. Havia sim, uma política
regionalista, mas que era sobretudo uma política oligárquica, que se distinguia uma
determinada região, favorecia por sua vez desigualmente as classes sociais, servindo o
termo oligarquia estadual como referência simultânea para a localização geográfica e a
dimensão de classe da elite política.
Nesse sentido Celso Furtado assinalou para o período a importância crescente da
classe média urbana, e no interior dessa, destacando-se as burocracias civil e militar.68
Amílcar Viana ressalta que haviam três pontos fundamentais no federalismo brasileiro,
a saber, a dominação oligárquica, a exclusão de setores não oligárquicos e uma
hierarquização do poder entre as oligarquias. Cabe lembrar no entanto que a vitória
desse modelo de república liberal burguesa de moldura conservadora e dinâmica
oligárquica além de socialmente excludente e elitista em termos sociais não estava
configurada ao término da parada militar ocorrida sob o tapete de estrelas da noite de 15
de novembro de 1889, no Rio de Janeiro.
Assim acredito que podemos considerar a vitória de modelo republicano ao qual
se costuma dar o nome de modelo Campos Sales como uma exitosa escalada cujos
marcos fundamentais teriam sido a promulgação da Constituição de 1891 e o advento de
liquidação da ditadura militar burguesa representado pela posse de Prudente de Morais
em 1894. Sua ascensão se fez em uma áspera disputa entre os modelos republicanos
então disponíveis, discordantes em suas concepções e portanto rivais. Os constantes
atritos e graves desentendimentos entre essas facções republicanas foram a tônica dos
primeiros anos do novo regime, além de pairar sobre a jovem república uma séria
desconfiança de que os próceres do regime decaído conspiravam por uma restauração
monárquica69. O desencontro entre as hostes oligárquicas colaborou para que a
indefinição dos rumos do novo regime perdurasse até a tentativa de assassinato do
presidente Prudente de Morais, quando finalmente refluíram as manifestações de rua
68
Formação econômica do Brasil. 22.ed.São Paulo: Editora Nacional, 1987.
69
A facção de republicanos radicais antiliberais, ou ainda, jacobinos, levada à tona dos acontecimentos
pelas circunstâncias enfrentadas pelo regime durante a chamada ‘República da Espada’, organizada em
clubes republicanos e mobilizada sob uma força paramilitar que recebia o nome de batalhões patrióticos
era constantemente açulada pelas folhas de uma imprensa republicana radical face a eventos como a
Revolta da Armada de 1893, a Revolução Federalista no Sul do Brasil ou ainda pela ameaça que
julgavam haver no arraial de Canudos, levantado no sertão da Bahia. CARONE, Edgard. A república
velha II: evolução política (1889-1930). São Paulo: Difel, 1977; SAES, Décio. A formação do estado
burguês no Brasil (1888-1891). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Os
radicais da república: jacobinismo, ideologia e ação (1893-1897). São Paulo: Brasiliense, 1986; e,
PENNA, Lincoln de Abreu. O progresso da ordem: o florianismo e a construção da república. Rio de
Janeiro: Sette Letras, 1997.
53
pela contenção das ações dos jacobinos, que acabam desmobilizados perdendo assim o
seu ‘momento maquiaveliano’70.
Cabe acrescer que as oligarquias que chegam à presidência com Prudente de
Morais e são consolidadas no poder com Campos Sales se consideravam então como
erguidas a uma posição de guias do Estado-Nação, e conseguiram já ao término da
primeira década republicana, fazer com que fossem fechados os canais orgânicos para a
participação popular, além de reduzir ao máximo as disputas políticas nos âmbitos
estaduais.
Essas oligarquias estavam classificadas entre principais e secundárias, sendo que
as primeiras buscavam assenhorear-se do governo federal, como foi o caso da aliança
política entre São Paulo e Minas Gerais, ficando para as secundárias, os governos
estaduais, que mesmo em Estados não hegemônicos, eram em menor escala,
beneficiárias desse sistema. A pressão econômica, basicamente o controle da terra a da
oferta de trabalho pelos coronéis, foi largamente utilizada enquanto instrumento de
dominação oligárquica. Mas a violência e a coerção física representavam também seu
papel na sustentação política das oligarquias.
Federalismo e clientelismo político foram dois elementos básicos que se
combinaram na estrutura do regime político brasileiro, durante a primeira república.
Assim, Amílcar Viana explicou o federalismo brasileiro, que permitiu que Minas Gerais
e São Paulo assumissem a liderança política nacional. Esse autor reitera que nessa forma
e sob estas condições, não seria incorreta a utilização dos termos oligarquias política
paulista e mineira como sinônimas de elite política paulista e mineira, que bem
poderiam “falar” em nome de seus Estados, por controlarem inteiramente os governos e
as máquinas políticas estaduais, auxiliadas como sabemos, pelo reverso da lisura
política, representados pelo voto de cabresto, as atas a bico de pena e as comissões de
verificação de poderes.
Tratava-se assim, ao fim e ao cabo, da manutenção de uma lenta transição que
devia encaminhar-se para uma ordem social competitiva, ou seja, a constituição de uma
sociedade de classes, planejada no entanto para que ocorresse sem rupturas no interior
das elites71, posicionamento que seria consoante à visão de mundo de elites
70
COSTA, Antonio Carlos Figueiredo. A República na Praça (1893-1899). São Paulo: Baraúna, 2010.
71
Observemos as condições que em seu exercício de sociologia histórica comparada Barrington Moore Jr.
Realizou quanto às vias abertas ao mundo tradicional para o mundo moderno. Constata-se pela obra de
Moore que em certos países ocorreu uma asfixia das condições necessárias para uma ruptura
revolucionária de modelo burguês, sendo este um dos fatores de determinação para a dificuldade de
54
formação de uma moderna sociedade civil. As Origens Sociais da Ditadura e da Democracia: Senhores e
Camponeses na Formação do Mundo Moderno. São Paulo: Atlas, 1987. Sobre a teoria das elites, ver o
artigo de Eduardo de Freitas, ‘Algumas notas sobre a teoria das elites’, em Análise Social. ano 8, n.30-31,
1970, p. 519-527.
72
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1996. O autor utiliza-se da expressão componente aristocrático territorialista, que seria
ibérico e especializado no fornecimento de proteção e busca de poder, o qual aliado a um componente
burguês (e dicotômico) capitalista , de origem genovesa, especializado na compra e venda de mercadorias
e na busca do lucro enfim, teria resultado na expansão material do primeiro ciclo sistêmico de
acumulação. Um desenvolvimento mais aprofundado sobre a temática do territorialismo na formação
ibérica pode ser encontrada em FILHO, Rubem Barbosa, Tradição e Artifício: iberismo e barroco na
formação americana, Belo Horizonte: UFMG, 2000, p. 217 – 258.
73
Idéias em Movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
74
Cabe remeter à obra de Sheldon Leslie Maram. Nas centenas de greves que analisou para alinhar os
argumentos contidos no seu livro, o autor deparou-se com a participação indissimulada da polícia contra o
operariado, com exceção para alguns poucos casos. As autoridades religiosas uniram-se ao patronato, ao
55
governo e ao seu aparelho repressor. Assim, mesmo o direito de reunião pacífica, protegido pela primeira
carta constitucional republicana não oferecia as suficientes garantias, pois os ocupantes do poder a
interpretavam à sua maneira, como se tivessem prerrogativas divinas, como as majestades dos czares de
todas as ‘Rússias’. Anarquistas, imigrantes e o movimento operário brasileiro: 1890 – 1920. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979. (grifos nossos).
75
Conforme defendeu Arno Wehling, os historiadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro se
referiam, desde a sua fundação, a uma história tríplice, ou seja, filosófica por elucidar o significado dos
acontecimentos à luz das grandes tendências; pragmática, para que pudesse servir como orientação para a
sociedade do presente; e, crítica, no intuito de eliminar excessos literários e restabelecer, mediante a
adoção de métodos confiáveis, a verdade objetiva, ressalvadas aquelas distorções partidárias de viés
político ou religioso. A invenção da história: estudos sobre o historicismo. 2.ed. Rio de Janeiro: Gama
Filho, 2001,p. 139.
56
século XX nos são proporcionados por algumas contribuições que gravitam nas obras de
seletos historiadores como Reinhart Koselleck, François Hartog, Hayden White, José
Carlos Reis e Astor Antonio Diehl.
Partimos portanto da noção de cultura historiográfica, conceito chave na obra de
Diehl. Para esse autor, a cultura historiográfica pode ser pensada como uma
especificidade da cultura histórica. Ela se encontra ligada ao ofício do historiador, e ao
estudo da história enquanto disciplina, englobando as suas mudanças ao longo do
tempo, que são de natureza teórico-metodológica, mas que também envolvem as
alterações sociais e culturais da sociedade76. A cultura historiográfica encontra-se então
vinculada à complexidade que envolve o conhecimento histórico no que propomos
considerá-la inclusive como articulada ao regime de historicidade, noção cara a François
Hartog.
De acordo com Hartog, devemos entender o regime de historicidade como uma
‘ferramenta’ que busca esclarecer o tempo presente, sendo formulada a partir de nossa
contemporaneidade, e que se destina a permitir o desdobramento de um questionamento
da parte do historiador, ou seja, do vaivém entre o presente e os ‘passados’ freqüentados
por este, passados esses via-de-regra tão distanciados uns dos outros, tanto no tempo,
quanto no espaço.
Assim tornar possível o desdobramento do historiador sobre as suas relações
com os tempos passados é a especificidade dessa ferramenta heurística, que tem por
finalidade precípua, ajudar a melhor compreender os momentos de crise do tempo, ou
seja, aqueles momentos nos quais se perde a evidência das articulações entre o passado,
o presente e o futuro.
A noção de regime de historicidade deve servir então, de acordo com Hartog,
para operar nos espaços de interrogação produzidos entre o presente e os ‘passados’,
76
De acordo com Diehl, devemos entender por cultura historiográfica todas as formas de representação
do passado, característica que torna esse conceito dotado de maior abrangência em relação ao de
historiografia. É dessa forma que a cultura historiográfica consegue dar conta das diferentes áreas das
ciências humanas, aspecto que se articula à história enquanto disciplina para ter plausibilidade científica
no quadro das ciências humanas. O autor considera que para que essa plausibilidade possa existir deve ser
contemplada uma matriz composta por cinco elementos – pelo menos – que produzem sua
fundamentação, a saber: 1. Interesses pelo conhecimento histórico; 2. Perspectivas teóricas sobre o
passado; 3. Método e técnicas de pesquisa; 4. Formas de representação do conhecimento, ou seja, para a
história, as formas narrativas historiográficas; e, 5. As funções didáticas da história. Ainda para Diehl, o
pensar histórico terá plausibilidade científica se o historiador conseguir argumentar a partir de três
perspectivas de interesses: o teor das experiências (o passado somente terá sentido a partir das orientações
dos problemas do nosso presente e da prática social), o teor das normas (a função que o conhecimento
terá na atualidade) e o teor dos sentidos (o espaço sociocultural no qual o conhecimento é produzido).
DIEHL, Astor Antonio. Cultura historiográfica: memória, identidade e representação. Bauru: Edusc,
2002.
57
passados esses que tanto podem ter sido esquecidos, quanto demasiadamente lembrados,
mas que irremediavelmente podem manter relações com um futuro ameaçador. Para
Hartog, a noção de regime de historicidade vale tanto por, como tanto, para esses
movimentos de ida ao passado e reencontro do historiador com o seu presente.
Com efeito, lembra François Hartog que o tempo histórico na feição
koselleckiana “...é produzido pela distância criada entre o campo de experiência, de um
lado, e o horizonte de expectativa, de outro: ele é gerado pela tensão entre os dois
lados. É essa tensão que o regime de historicidade propõe-se a esclarecer...”77
Já a cultura histórica sob a acepção de Diehl, possui uma amplitude que abrange
pensar historicamente além dos cânones da historiografia, o que significa que inclui
historiadores não acadêmicos, mas também leigos que pensam a história a seu modo.
No Brasil, o processo de institucionalização do saber histórico ocorreu a partir
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em uma tarefa que visava a
construção de uma identidade nacional iluminista, realizada sob a perspectiva de uma
história científica. A construção da idéia de nação foi realizada – conforme ressalta
Diehl – em sentido contrário ao das demais nações latino-americanas, pois a nova nação
procurou reconhecer-se como continuadora da tarefa civilizadora que se considerava ter
sido iniciada pela colonização portuguesa. Dessa forma, conforme aponta Astor Antonio
Diehl, ao se definir externamente ‘o outro’ do Brasil, qual seja, as outras nações, os
homens do IHGB teriam constituído uma totalidade brasileira: uma nação monárquica e
civilizada que poderia ser contraposta às suas vizinhas repúblicas latino-americanas
então avaliadas como o espelho da barbárie e da desorganização.
Devemos considerar no entanto que com a instauração no Brasil do regime
republicano de governo, essa identidade deveria passar por uma reavaliação78, passando
as repúblicas vizinhas da América do Sul, da condição de ameaças em potencial, para o
77
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte:
Autêntica, 2013, p. 39. Sobre o conceito de tempo histórico na perspectiva proposta por Reinhart
Koselleck, podemos acrescer uma curta, porém esclarecedora observação de José Carlos Reis. Para ele, o
historiador alemão introduz o que parece essencial para a constituição de um terceiro tempo: a perspectiva
da simultaneidade, não na perspectiva estrutural, mas historicista. Cada presente articula-se com o
passado e o futuro em ritmos diferenciados. Nesse sentido, o tempo histórico é pensado por Koselleck a
partir de duas categorias principais: o ‘campo de experiência’ e o ‘horizonte de espera’. A tensão entre
experiência e espera fica apresentada numa dinâmica relação que suscita diferentes soluções e engendra o
tempo histórico. REIS, José Carlos. O conceito de tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e “Annales”:
uma articulação possível. Síntese, Belo Horizonte, v.23, n.73, p.229-252, 1996.
78
Conforme frisou Marco A. Pamplona, “quando antigas designações se mostram inadequadas à
realidade ou incompatíveis com as novas ideias professadas, elas costumam ser redefinidas”. Verbete
‘nação’. In: FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da histórica dos conceitos políticos do Brasil. Belo
Horizonte: UFMG, 2009, p.169.
58
79
Imaginación Histórica e Identidad Nacional en Brasil y Argentina. Un estudio comparativo. Revista
Iberoamericana. V. LVII, n. 174, enero.marzo, 1996, p. 52.
59
dissertação do historiador era a interpretação daquilo que ele entendeu ser o relato
verdadeiro. Dessa forma, nas palavras de Hayden White,
“um dado discurso histórico podia ser factualmente preciso e tão verídico
em seu aspecto narrativo quanto a evidência permitisse, e ainda assim ser
valorado como um engano, inválido, ou inadequado em seu aspecto
dissertativo. [ou seja] os fatos podiam ser verdadeiramente expostos, e a
interpretação deles, errônea.” 80.
Dessa forma, face aos objetivos que propomos, cabe iluminar o conceito de
imaginação histórica, observando as proposições de Hayden White, que o distingue
como a capacidade de criação de imagens que se exercitam no passado histórico,
cabendo ao historiador o papel de utilizar-se de metáforas para que venha a lograr a
necessária conciliação de dados que possui acerca de um determinado passado81.
Caberia no entanto acrescer que a noção de imaginação histórica foi tematizada
anteriormente na obra clássica de Robin George Collingwood, ‘A idéia de História’82.
Então a crítica histórica aparecia a Collingwood como a demonstração de autonomia do
historiador, pois se na teoria do senso comum a memória e a autoridade das fontes
surgem como essenciais para a História, certo é que todo historiador possui a
consciência de alterar, quando necessário, aquilo que encontra nas suas fontes, pois
seleciona delas o que lhe parece importante – omitindo o resto – interpolando nelas
coisas que elas não dizem explicitamente, além de criticá-las, rejeitando ou emendando
aquilo que considera devido a informações erradas ou a falsidades.
E a autonomia da qual se acha investido o historiador aparece de forma mais clara
sob o nome de interpretação histórica. Neste sentido, cabe lembrar que se as fontes do
historiador falam desta ou daquela fase de um processo do qual os estádios intermédios
ficam por descrever, é o historiador que procede à interpolação desses estádios. Dessa
feita ele constrói a imagem do seu objeto, que consiste naturalmente em afirmações
extraídas diretamente de suas fontes, das quais a competência do historiador produz
aumentos provenientes de afirmações atingidas dedutivamente, a partir de aspectos
dessas fontes que estejam de acordo com seus critérios, suas regras metodológicas e
seus cânones de importância. As fontes assumem, nesta fase do trabalho, o status de
simples provas. Para Colingwood, além de selecionar entre as afirmações das fontes
80
A questão da narrativa na teoria histórica contemporânea. In: NOVAIS, Fernando Antonio, SILVA,
Rogério Forastieri da.(orgs.). Nova História em perspectiva. V.1. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 443.
81
O fardo da História. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp,
2001.
82
COLLINGWOOD, Robin George. A idéia de História. 8.ed. Presença: Lisboa, 1994.
60
83
A idéia de História. 8.ed. Presença: Lisboa, 1994, p. 303.
61
que vale dizer que para o ajuizamento sobre a veracidade de uma afirmação histórica,
recorre-se a relação entre esta afirmação e as provas84.
Ora, o conceito de imaginação histórica nos coloca face a face com os
apetrechos dos quais se socorre o historiador em seu trabalho de captura dos tempos
pretéritos. O seu gabinete de trabalho podendo ser comparado a um atelier ou oficina,
uma imagem que consideramos de especial significado, por trazer à baila o ambiente de
trabalho do historiador. Qual a bancada de um artífice, foi no bureau do historiador –
que no caso de Capistrano de Abreu bem poderia ser um rede ou mesmo uma mesa onde
documentos antigos e obras raras dividiam espaço com prosaicos cachos de bananas –
que se deu a instituição do chamado método rankeano na historiografia brasileira,
tornado a partir de então o modus operandi pela qual evoluiu a execução do trabalho
histórico, documental e realista, sob um modelo narrativo.
Seria através da edição e das anotações de João Capistrano de Abreu sobre a
monumental obra de Francisco Adolfo de Varnhagen que julgamos poder encontrar uma
consistente explicação para o desenvolvimento da pesquisa histórica no período que
consideramos. Foi através da revisitação dos escritos de Varnhagen, das leituras dos
mestres alemães como Leopold Von Ranke e de alguns trabalhos tematicamente
inovadores que o historiador João Capistrano de Abreu conseguiu ampliar a sua
influência sobre os outros historiadores. Alguns dos resultados mais significativos se
revelaram de forma palpável a partir do Primeiro Congresso de História Nacional,
promovido pelo IHGB em 1914.
Dessa forma, coube a Capistrano de Abreu, conforme tentaremos demonstrar
nos capítulos seguintes, imbricar um monumento da historiografia – a História Geral do
Brasil – e a edição crítica de textos históricos da época colonial85, com a imposição do
método histórico dito rankeano86 e com tudo isso, prover a entronização daquilo que
podemos considerar como o primado do documento.
84
Ibidem.
85
Conforme observam Angélica Madeira e Mariza Veloso, Capistrano editou de maneira cuidadosa a
obra magistral de Frei Vicente do Salvador (História do Brasil, 1612), os tratados de Cardim e Gândavo,
além de fazer as descobertas definitivas sobre a autoria de textos coloniais, como a Cultura e Opulência
do Brasil (1711), quando conseguiu identificar o jesuíta Andreoni a Antonil. Molduras para o período
colonial brasileiro: uma agenda de pesquisa. In: ____________ (orgs.). Descobertas do Brasil. Brasília:
Unb, 2001.
86
Uma interessante associação entre as proposições partidas de Ranke e a apropriação posterior dessas
pela escola histórica francesa que ao final do século XIX havia passado a gravitar ao redor dos métodos
popularizados por Langlois e Seignobos na obra ‘Introdução ao estudo da história’, cuja primeira edição é
de 1898, foi alinhada por Guy Bordé e Hervé Martim. Avançamos que à época da realização do Primeiro
Congresso de História Nacional, em 1914, a ‘Introdução ao estudo da história’ já havia se tornado uma
62
espécie de bíblia dos estudos históricos. De acordo com Bordé&Martin, em meados do século XIX, as
teses de Leopold Von Ranke haviam popularizado fórmulas as quais pretensamente científicas e
objetivas, influenciaram seguidas gerações de historiadores na Alemanha, mas também na França, onde
jovens historiadores, entre estes Charles Seignobos, influenciados pela vitória alemã na Guerra Franco-
Prussiana, associavam a então perfeita organização das instituições militares alemãs às instituições civis e
intelectuais do além-Reno, onde foram completar a sua formação, com anseios futuros de assegurar a
reparação francesa. A Escola Metódica aplicaria então à letra, o programa de Von Ranke. Guy Borde e
Hervé Martin resumiram os postulados teóricos de Leopold Von Ranke da seguinte forma: o historiador
devia registrar o fato histórico de maneira passiva, como o espelho reflete uma imagem, ou a câmera
fotográfica uma paisagem, pois a tarefa do historiador deveria consistir na reunião de um número
suficiente de dados, assentados em documentos seguros, sendo que a partir destes fatos, por si só o
registro histórico se organizaria e deixar-se-ia interpretar. Claro está que na concepção rankeana de
história, não cabe ao historiador julgar o passado, nem instruir os seus contemporâneos, mas dar conta
daquilo que realmente havia se passado. Em resumo: defendia-se que deveria haver uma relação cognitiva
historiador-objeto mediatizada pelo mecanicismo, e que trazia consigo, numa era de nacionalismo e
imperialismo latentes e óbvias contradições entre o discurso e a sua prática, pois a escola metódica tendia
a acentuar os fatos políticos, militares e diplomáticos, no que se conduzia a uma restrita concepção que
faziam do que seria o documento. Protegidos os documentos escritos, como cartas, decretos,
correspondências e manuscritos diversos - ou seja, o que chamaríamos hoje de testemunhos voluntários -
desprezava-se tudo aquilo que não se enquadrasse nesta estreita noção documental, o que acabava por
trazer, coerente com os princípios da escola metódica, a própria ambição da história. Salvo o documento,
registrado, classificado e submetido a uma crítica externa, a erudição, para posterior avaliação da crítica
interna, a hermenêutica, restariam as chamadas operações sintéticas, constituídas por cinco fases, a
saber:1. A comparação de vários documentos para que se pudesse estabelecer um fato particular;2.
Reagrupamento dos atos isolados em quadros gerais, reunindo-se para tanto, os fatos que dissessem
respeito às condições naturais, às produções materiais, aos grupos sociais e às instituições políticas;3. Na
terceira fase cabia ligar os fatos entre si para o preenchimento das lacunas da documentação;4. Na quarta
etapa o historiador via-se obrigado a praticar uma escolha na massa documental; e, 5. Na última etapa do
seu trabalho, o historiador tentava algumas generalizações, arriscava algumas interpretações. Com prática
diversa do seu discurso, a escola metódica descumpriu os postulados teóricos de Ranke, entre os quais o
de que a história seria o conjunto das res-gestae, existindo em si objetivamente, tendo mesmo uma dada
forma que seria diretamente acessível ao conhecimento. Ao subordinar os eventos econômicos e culturais
em relação aos políticos, ao privilegiar o factual ao serviço do estado-nação, levando sua concepção de
história aos cidadãos por intermédio das suas cartilhas escolares, a escola metódica acabou contribuindo
para o festim sangrento da primeira guerra de massa da história, colaborando ainda que um pouco de
forma indireta, para que a história política fosse relegada, desprezada, tratada com suspeição no futuro.
In: As escolas históricas. 2.ed. Lisboa:Europa-América, 2003.
87
Para Paul Ricoeur , o que constitue a força das análises de H.White é a lucidez com a qual ele explicita
os pressupostos de suas leituras de grandes textos históricos e define o universo de discurso no qual esses
pressupostos, por sua vez, se encontram. Tempo e Narrativa. T.1. Campinas: Papirus, 1994. P. 231.
63
Dessa forma, seguimos ainda as lições de Reis, da intriga não devemos esperar
aprender os universais lógicos dos filósofos, mas sim, os universais poéticos, o possível
e o verossímil. A intriga produz uma unidade temporal, com início, meio e fim,
imitando a temporalidade, mas apresentando os traços temporais de forma inversa à
dimensão episódica e oferecendo uma solução poética, onde a sucessão dos eventos é
transformada em uma totalidade significante91. E essa significação tem a ver com a
civilização ocidental. Assim, prossegue Reis,
“ Há uma tradição da narração, que não é uma forma morta, mas um jogo
de inovação e sedimentação. Nossa cultura ocidental é herdeira de diversas
tradições narrativas: hebraica, cristã, anglo-saxônica, germânica, ibérica.
São paradigmas. Há também as obras-modelo: Ilíada, Édipo, Histórias.
Esses paradigmas fornecem as regras para a experiência narrativa
posterior.”92
88
História&Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: FGV, 2003.
Essas observações são tomadas a partir da obra de Paul Ricoeur, Tempo e Narrativa. Para Ricoeur, o
conhecimento histórico possui um caráter intrinsecamente narrativo. Assim, a forma narrativa ofereceria
inteligibilidade ao vivido, por articular tempo e ordem lógica.
89
Ibidem, p. 136.
90
Ibidem, p. 136. (grifos do autor).
91
Ibidem, passim.
92
Ibidem, p. 142.
64
93
Quanto ao modo de argumentação formal, H. White aponta quatro paradigmas da forma que se pode
conceber que assuma uma explicação histórica, considerada como argumento discursivo: formista,
organicista, mecanicista e contextualista. Exemplificando, as hipóteses organicistas do mundo e suas
correspondentes teoria da verdade e da argumentação são relativamente mais integrativas e portanto mais
redutivas em suas operações. O organicista tenta descrever os pormenores discernidos no campo histórico
como componentes de processos sintéticos. No âmago da estratégia organicista existe um compromisso
metafísico com o paradigma da relação microcósmico-macrocósmica; e o historiador organicista tenderá
a ser regido pelo desejo de ver entidades individuais como componentes de processos que se agregam em
totalidades que são maiores ou qualitativamente diferentes da soma de suas partes. White postula quatro
posições ideológicas básicas, no que se utilizou das análises constantes da obra Ideologia e Utopia, de
Karl Mannheim, que a grosso modo seriam o anarquismo, o conservantismo, o radicalismo e o
liberalismo, cumprindo ressaltar que estes termos destinam-se a servir mais como designadores de uma
preferência ideológica geral, e quase nunca na qualidade de designadores dos emblemas de partidos
políticos específicos. Os conservadores, de acordo com Mannheim, citado por H.White, tendem a ver a
mudança social através da analogia das graduações botânicas, além de insistirem em um ritmo ‘natural’
quanto à velocidade das mudanças imaginadas. A esses, cabe acrescer a teoria dos tropos – considerados
aqui os quatro tropos básicos para a análise da linguagem poética ou figurada: metáfora, metonímia,
sinédoque e ironia - proporciona, de acordo com o entendimento de Hayden White, um meio de
caracterizar os modos dominantes da reflexão histórica que tomou forma na Europa no século XIX, no
que seria permitido descrever a estrutura profunda da imaginação histórica daquele período. WHITE,
Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. 2.ed. São Paulo: Edusp, 1995.
94
O enredo da comédia, implica o modo de argumentação organicista e uma posição ideológica
conservadora. Assim, Hayden White recorre a Leopold Von Ranke, considerando que suas histórias são
“...consistentemente vazadas no modo de comédia, forma de enredo que tem como tema central a idéia
de reconciliação. Da mesma maneira, o modo dominante de explicação utilizado por ele foi organicista,
que consiste na descoberta das estruturas e dos processos integrativos que , acreditava ele, representam
os modos fundamentais de relação encontrados na história. Ranke não se ocupava com ‘leis’ mas com a
descoberta das ‘idéias’ dos agentes e agências que via como habitantes do campo histórico...[afirmando
ainda que] ...o tipo de explicação que ele [Ranke] supunha que o conhecimento histórico proporciona é o
equivalente epistemológico de uma percepção estética do campo histórico que toma a forma de um
65
esclarecer que Hayden White fez uso das proposições que Northrop Frye utilizou em
seu ‘Anatomia da Crítica’95, indicando quatro modos de elaboração de enredo, a saber, a
estória romanesca, a tragédia, a comédia e a sátira.
Na fundamentada opinião de Hayden White, o mythos cômico utilizado como
estrutura de enredo na grande maioria das obras históricas de Leopold Von Ranke teria
servido ainda como uma espécie de arcabouço onde cada uma dessas obras pudesse ser
entendida enquanto um ato individual de uma drama macrocósmico. Para ele,
“Esse mythos permitiu a Ranke concentrar-se nos detalhes individuais das
cenas que narrava, mas proceder com resoluta autoconfiança através da
profusão de documentos à seleção segura daqueles que eram significativos e
daqueles que eram insignificantes como testemunho. Sua objetividade, seus
princípios críticos, sua tolerância e simpatia por todos os lados dos conflitos
com que deparava em todo o registro histórico eram distribuídos dentro da
atmosfera sustentadora de uma prefiguração meta-histórica do campo
histórico como conjunto de conflitos que devem necessariamente terminar
em resoluções harmoniosas, resoluções em que a ‘natureza’ é finalmente
suplantada por uma ‘sociedade’ que é tão justa quanto estável.”96
A procura por uma forma de produção historiográfica que servisse como modelo
de discurso histórico possível de tematizar as nuances do processo histórico da
construção da nação, parece haver aproximado o grupo de historiadores congregados à
volta do IHGB com a metodologia do trabalho histórico proposto por Ranke e seus
seguidores. Ao vulgarizar o método histórico proposto por seus mestres alemães,
Capistrano de Abreu possibilitou aos historiadores congregados à volta dos Institutos
Históricos a abertura de uma janela ao sistema de interpretação histórica de Ranke: a
sua idéia de nação.
Nesse sentido, esclarece Hayden White que o tema da nação desempenha no
sistema de Ranke, não apenas uma idéia – entre tantas – que os homens podem ter dos
meios de organizar a sociedade humana, mas trata-se do,
“...único princípio possível de organizá-las para a realização do ‘progresso
pacífico’. Em resumo, a ‘idéia da nação’ era para Ranke não apenas um
dado mas também um valor; mais, era o princípio em virtude do qual se
podia atribuir a tudo na história uma significação positiva ou negativa”.97
97
WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. 2.ed. São Paulo: Edusp, 1995,
p. 184.
98
Ibidem, p. 185.
99
A Introdução aos Estudos Históricos, de autoria de Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos é um
manual que conheceu sua primeira edição francesa em 1898. Embora apresentado por seus autores como
“...apenas um esboço sumário”, de notas tomadas nos anos escolares de 1896 e 1897, não nos deixemos
enganar. Trata-se de uma obra capital, que à época da sua escrita estava voltada tanto para aqueles que
pretendiam iniciar-se na letras históricas, quanto para os que já possuindo experiências, buscavam uma
contribuição sumamente epistemológica. Ao longo do texto os autores priorizam o aprendizado desse
primeiro contato com as letras históricas, expondo em riqueza de detalhes os recursos à época
considerados como imprescindíveis ao método da pesquisa e escrita históricas.Entre os anos finais do
século XIX e as três primeiras décadas do século vinte, essa obra teria chegado a monopolizar no ensino
universitário ocidental, as práticas voltadas à reflexão e à produção histórica. Era o livro de
Langlois&Seignobos a resultante, então considerada válida, entre a formação dos seus autores na École
de Chartes e Escola Normal Superior e o valor da prática de suas experiências como professores na
Sorbonne. O texto mantém certo diálogo intermitente com as opções de trabalho defendidas por Fustel de
67
estagiado em universidades alemãs. Pois como lembram Guy Bourdé e Hervé Martin,
“na realidade, os adeptos da escola metódica não tiraram a inspiração do francês
Auguste Comte, mas do alemão Leopold Von Ranke”.100
Poderíamos dizer que considerados os resultados saídos das mesas de trabalho
dos homens que labutavam nas hostes de Clio, consorciados aos Institutos Históricos,
ocorrera o fortalecimento acerca da convicção de que os grupos nacionais constituíam
as únicas unidades viáveis de investigação histórica relevante aquele momento. Pelo
talento e desprendido esforço daqueles historiadores do início do século XX, ocorreriam
uma série de mudanças significativas na forma de entendimento da História do Brasil.
Tais mudanças, tentaremos tornar mais visíveis a partir de contribuição inspirada na
metodologia da história dos conceitos, diziam respeito à formação étnica do povo
brasileiro e dos condicionamentos históricos que davam uma nova provisão de sentido
para a nação e para a constituição do território brasileiro. Essas mudanças passaram a
permitir por sua vez, reavaliar e redefinir as condições de assento do país no almejado
concerto das nações civilizadas.
Capistrano de Abreu, fizera sua aprendizagem do alemão 101, e a sua biblioteca
revelava a predominância germânica de sua formação, pois ali figuravam as obras de
historiadores alemães, não somente Ranke, mas também Meyer e Mommsen.
Certamente que Capistrano não era, no período que consideramos, o único a ter o
privilégio de ler os mestres da historiografia mundial. Pois haviam, como veremos
adiante, outros que haviam se dedicado ao estudo sistemático da história brotada das
lavras de historiadores não somente alemães, mas ingleses e franceses principalmente.
Porém, o papel desempenhado por Capistrano foi de pioneirismo – por sua tese
para a docência do Imperial Colégio Pedro II – onde demonstrou com sobejas a
aplicação do método histórico rankeano102, de liderança intelectual – pelo seu papel de
incentivador dos estudos históricos ao articular a pesquisa das fontes com ênfase na
renovação temática103 – mas também de autoridade moral, ao exigir dos seus pares que
Coulanges, antigo professor da Universidade de Paris, desaparecido em 1889. Foi utilizada a edição em
Língua portuguesa, preparada pela editora Renascença, São Paulo, em 1946.
100
As escolas históricas. Lisboa: Europa-América, 2003, p.113.
101
De acordo com José Honório Rodrigues, Capistrano aprendera alemão tendo Carlos Jansen como
professor, em grupo do qual faziam parte Ferreira de Araújo e o renomado romancista Machado de Assis.
Aprendido o novo idioma, passara a traduzir de tudo: Geografia, Medicina, História Natural, Viagens e
Direito. A História ele lia no original, na rede. História e historiadores do Brasil. São Paulo: Fulgor, 1961.
102
Conforme fica demonstrado em ARAÚJO (1988) e DIEHL (1998).
103
Da forma como incentivou – às vezes um pouco rude – amigos que amiúde o procuravam, mas
também aos confrades do IHGB, onde, apesar de ausente, era muito respeitado. Ver. GUIMARÃES,
68
adotassem a necessidade, que para ele já era imprescindível, de indicar com precisão as
fontes que utilizavam104.
Todo esse esforço, no entanto, somente veio a colher resultados expressivos a
partir do investimento dos governos nas instituições oficiais, como exemplificados no
Museu Paulista e no Arquivo Público Mineiro, e oficiosas, como foram os casos do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e seus correspondentes estaduais, nos quais
privilegiamos o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) e o Instituto
Histórico e Geográfico de Minas Gerais (IHGSP). Para estas instituições, suas propostas
norteadoras, e seus ilustrados consócios, objeto do nosso capítulo dois, devemos agora
voltar as nossas atenções.
Lucia Maria Paschoal. Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-
1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2006.
104
Como na carta a Guilherme Studart, datada de 20 de abril de 1904. Assim escrevia Capistrano: “Agora
és um mestre reconhecido e acatado; podemos portanto conversar calmamente sobre o assunto. Por que
não dás a procedência dos documentos que publicas? Félix Ferreira, sujeito aliás pouco fidedigno,
contou-me que indo um dia visitar Melo Morais, encontrou-o queimando uns papéis: Estou queimando
estes documentos, explicou-lhe o alagoano historiador (?), porque mais tarde, quando quiserem estudar
História do Brasil hão de recorrer às minhas obras. Tu não és Melo Morais. Varnhagen, pelo menos na
Torre do Tombo, levou para casa alguns documentos e se esqueceu de restituí-los: não podia depois
indicar a procedência. Tu não és Varnhagen. Por que motivo, portanto, te insurges contra uma
obrigação a que se sujeitam todos os historiadores, principalmente desde que, com os estudos arquivais,
com a criação da crítica histórica, com a crítica das fontes, criada por Leopoldo von Ranke, na
Alemanha, foi renovada a fisionomia da História?” In: RODRIGUES, José Honório (Org.)
Correspondência de Capistrano de Abreu. 2. ed., v.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1977, pp.165-
166.
69
2 – Oficinas da História
“...assim também nunca São Paulo coube dentro das suas fronteiras.
cados num âmbito que tinha dimensões para abrigar qualquer nação
1
A História. Bauru: Edusc, 2003.
70
homens de letras manter à parte a sua subjetividade e rejeitar em bloco aquilo que os
dois grandes mestres da ciência histórica na Sorbonne, Charles-Victor Langlois e
Charles Seignobos, os renomados autores de “Introdução aos Estudos Históricos”
(1898) chamavam de micróbios literários. Caso esses ‘micróbios’ viessem a ser
utilizados, poluiriam o discurso histórico culto.
No presente capítulo nossa tarefa será apresentar, em linhas bastante gerais, as
motivações que deram origem à fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), bem como as condições que vieram a transformá-lo ao longo do século XIX na
mais prestigiada ‘casa da memória’ do Brasil. Trataremos ainda de realizar um esboço,
ainda que breve, dos sodalícios pertencentes aos Estados de São Paulo e Minas Gerais,
constituídos já durante o período republicano e vinculados de forma umbilical, às
oligarquias desses Estados. Contando com práticas institucionais muito semelhantes às
então vigentes no IHGB, os institutos históricos e geográficos paulista e mineiro, ao
manterem a atalaia sob o celeiro de ‘Clio’, logo dariam provas de rara fertilidade
intelectual, contribuindo com relevantes esforços para a renovação temática na
historiografia brasileira.
Cabe reservarmos ainda algum espaço para apresentar duas instituições oficiais,
a saber, o Museu Paulista e o Arquivo Público Mineiro, as quais, também surgidas na
República, acabaram por mobilizar esforços que viabilizaram com diversificados
subsídios, as tarefas colocadas pelos institutos históricos de seus respectivos Estados.
Ao falarmos em discurso historiográfico no Brasil dos anos iniciais do século
vinte somos remetidos para um ambiente envolvido pelo elitismo e pela tradição
iluminista, características que conforme sabemos marcaram tanto as discussões acerca
da questão nacional, quanto a posição que deveria vir a ser ocupada pelo país no
conjunto mais amplo das nações 2 . A discussão ganhava corpo ao tocar as reais
possibilidades brasileiras de reproduzir nos trópicos o modelo civilizacional europeu, o
único, diga-se de passagem, considerado adequado por nossas elites, que temiam a
africanização tanto quanto mantinham esperanças no ideal de embranquecimento da
população.
Convém lembrar que ainda sob a égide da imaginação histórica oitocentista, a
historiografia que inaugura a belle èpoque era, em grande medida, uma historiografia
2
GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História Nacional. Estudos históricos. Rio de Janeiro, n.1, 1988,
p. 5 – 27.
71
combatente 3 , o que vale dizer, voltada para os interesses mantidos pelos estados
nacionais em iluminar o passado tendo em vista as indagações do presente, cabendo
ainda esclarecer sobre os condicionamentos epistemológicos que a operação histórica
impunha aos historiadores naquele momento.
Nesse contexto, a operação histórica passa a ser caracterizada como a formulou
Michel de Certeau, enquanto “ a combinação de um lugar social, de práticas científicas
e de uma escrita” 4 . Trata-se portanto de um conceito muito útil que remete à
compreensão da relação entre um lugar, entendido como a instituição do conhecimento
que media seleção e certo ambiente de profissão. É a partir destes fatores que passam a
se articular determinados procedimentos de análise próprios à História, permitindo por
sua vez, a construção de um texto. Essa tarefa, conforme veremos, foi realizada por
historiadores no âmbito dos Institutos Históricos em um período eivado por indefinições
e graves desafios, porém entremeado por efemérides onde se poderia talvez ainda contar
com o concurso da História magistra vitae.
Dessa forma, convocados a aliar-se a uma afirmada tradição conservadora
existente no Brasil, defensora da conciliação como traço constante do seu
comportamento político5, o que parece explicar o revivescimento de valores e mesmo
personalidades remanescentes à época do Império, historiadores vinculados ao IHGB
teriam atuado, à semelhança daquilo que Eric J. Hobsbawm denominou como minorité
agissante, para enfatizar – em concordância com Ernest Gellner – o elemento de
artefato, invenção e engenharia social existente na idéia de nação6.
A minorité agissante seria a denominação dada ao conjunto de pioneiros e
militantes da idéia nacional que participam de campanhas iniciais com a finalidade de
plasmar a idéia de nação, campanhas que possuem óbvias finalidades políticas.7
3
Trata-se de uma alusão a certa obra de José Honório Rodrigues quanto a certa possibilidade do
historiador intervir politicamente com seu trabalho em uma dada sociedade. Cfe. RODRIGUES, José
Honório. História combatente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
4
A operação historiográfica. In: a escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
P. 66.
5
MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1972.
6
HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. São Paulo: Paz e
Terra, 1998. Hobsbawm explicita sua crítica às noções formuladas por E. Gellner especificamente pela
preferência de Gellner em utilizar a perspectiva da modernização pelo alto, o que torna, no entendimento
de Hobsbawm, difícil uma adequada atenção à visão dos ‘de baixo’. P. 18 – 22.
7
RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a idéia de nação no Brasil ( 1830 – 1870). São Paulo:Martins
Fontes, 2004. Esta fase de atuação da minorité agissante seria precedida por atividades de grupos sem
implicações políticas explícitas, sendo puramente culturais, literárias e folclóricas, que no caso brasileiro
poderíamos associar ao romantismo e ao indianismo do século XIX.
72
8
A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009, p.24.
9
O terror na História envolve a validade quanto às lições deixadas pelos registros dos tempos pretéritos
na modernidade. A partir das rupturas iniciadas com a Revolução francesa, a história deixara de ser a
mestra da vida. Cfe. Koselleck (2006), Domingues (1996) e Araújo (1989).
73
um bom começo para refletirmos acerca de escolhas, seja postar os olhos sobre uma
ferramenta heurística que permita formar um quadro de pensamento de longa duração.
Essa ferramenta já nos foi apresentada por François Hartog, sob a denominação
de regime de historicidade. Essa noção, conforme podemos observar no capítulo
anterior, procura dar conta das mudanças ocorridas na história, sendo muito útil para
encontrar uma posição firme em momentos de entropia como foram os anos
imediatamente posteriores à emancipação dos escravos e à queda do Império.
Escrevendo sobre o IHGB, a historiadora Angela de Castro Gomes indicou ser
fato comum naquele sodalício, já nas décadas iniciais do século XX, o entendimento no
qual a História formula questões, e desenha acontecimentos segundo a ótica do presente.
Ao iniciar o século vinte, o IHGB estava perspassado por divergências, existindo ali,
desde republicanos convictos a admiradores da nossa fase imperial, no que esta possuíra
de estabilidade e caráter centralizador.
Esses historiadores tiveram que levar em conta que independentemente de aderir
a uma nova ordem, deviam certamente atuar de maneira consequente, em coerência ao
lugar institucional do qual produziam: via de regra, os Institutos Históricos. Cabe
esclarecer que já em meados do século XIX, a escrita da História havia assumido uma
extraordinária importância no tocante à discussão da questão nacional, bem como
quanto à formação do Estado Nacional.
Conforme observou Manoel Luiz Salgado Guimarães, foi exatamente no
momento de consolidação do poder central, o que ocorreu entre 1822 e 1840, que foi
desenvolvido o interesse pela elaboração da História Nacional e a fundação no Rio de
Janeiro, em 21 de outubro de 1838, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB)10. O ato se deu em plena Regência, com a participação de vinte e sete sócios 11
da prestigiosa Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN), tendo se originado
de proposta anterior do marechal-de-campo Raymundo José da Cunha Mattos e do
Cônego Januário da Cunha Barbosa. O modelo teria sido proporcionado pelo Institut
Historique de Paris (IHP), que fora organizado em 1834. De acordo com o historiador
Manoel Luiz Salgado Guimarães, para os homens do IHP a história seria uma
10
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. História e Nação no Brasil: 1838 – 1857. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2011.
11
A relação dos sócios fundadores, onde constam seus perfis sócio-profissionais foi apresentada pela
historiadora Lucia Maria Paschoal Guimarães. Tratavam-se em sua maior parte de políticos, militares,
funcionários públicos, havendo ainda médicos, advogados, um professor e um comerciante. Quanto às
origens familiares – profissão do pai – também apresentavam-se majoritários os militares e funcionários
públicos. Debaixo da imediata proteção imperial: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889).
São Paulo: Annablume, 2011, p. 37.
74
12
História e Nação no Brasil: 1838-1857. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011, p.99.
13
Ibidem, p. 99-102. Ainda de acordo com o autor, caberia acrescer que tais princípios ligados ao
conceito de história no IHP representavam uma espécie de paradigma generalizado do pensamento do
dezenove, onde o pano de fundo seria uma crença inabalável no progresso humano. M.L.S.Guimarães
aponta o trabalho de Maria Alice de Oliveira Faria, que identificou para o período entre 1834 a 1850, 46
brasileiros membros do IHP, entre eles 26 também pertencentes ao IHGB. Cfe. FARIA, Maria Alice de
Oliveira. Os brasileiros no Instituto Histórico de Paris. RIHGB. Rio de Janeiro, n.266, 1965, p. 68-148.
14
De acordo com Magali G.Engel, o romantismo exprimiu nas artes, de forma geral, a crítica aos custos
sociais, políticos, econômicos e culturais das mudanças em curso nas sociedades ocidentais, entre fins do
século XVIII e inícios do século XIX. No caso brasileiro, o movimento romântico veio assumir feições
específicas, pois foi contemporâneo do processo de construção do Estado, buscando dar base para a
elaboração de uma literatura original em relação às tradições da antiga metrópole. A produção do
romantismo brasileiro buscaria a sua originalidade priorizando o tema indígena. Nesse sentido, o
indianismo ofereceu os fundamentos ideológicos para a construção dos símbolos da nacionalidade, no que
se procurava apagar a presença negra e incluir a contribuição de um indígena idealizado e concebido a
partir das virtudes de um cavaleiro medieval. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil
Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.p. 661-662. Dante Moreira Leite relacionou a
ideologia que presidiu o romantismo europeu com o brasileiro, ao qual considerou uma feliz transposição
daquele. A volta à tradição proposta na Europa foi identificada no Brasil como uma necessidade de
retorno ao passado colonial, o que trouxe a celebração do indígena. Cfe. O caráter nacional brasileiro:
história de uma ideologia. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1969.
75
15
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. História e Nação no Brasil: 1838 – 1857. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2011, p.50.
16
Em ‘Território e História no Brasil’, Antonio Carlos Robert Moraes procurou evidenciar o conceito de
território, bem como a sua utilização em detrimento de outros mais usuais na literatura geográfica. Para
Moraes, seria o uso social entendido no termo que serviria como definidor para o conceito de território.
Segundo o autor seria a “própria” apropriação que qualifica uma porção de terra como território, sendo o
conceito impossível de formular sem o recurso a um grupo social que ocupa e explora aquele espaço.
Ainda segundo Moraes, essa visão social do objeto geográfico, equaciona como entidade movente, sua
formação, servindo a formação territorial como o desenho de um objeto empírico, dando-se o ajuste de
foco naquela ótica angular de se captar o movimento histórico. Território e História no Brasil. 2.ed. São
Paulo: Annablume, 2005.
17
WEHLING, Arno. A invenção da história: estudos sobre o historicismo. Rio de Janeiro: Gama Filho,
2001, p.140.
76
Cabe ainda reiterar a vinculação do IHGB com o Estado Imperial, pois conforme
explicou Alice Pfeiffer Canabrava 18 , o Instituto se caracterizava por trabalhos
envolvidos em ‘nativismo’ 19 , onde ficavam evidenciados dois fatores. O primeiro
seriam as qualidades do jovem Império, no plano material. Porém, bem como as
benemerências do país, procurava-se ainda nas páginas da revista do Instituto exaltar
exemplos a serem seguidos, o que vale dizer, uma louvação aos varões que haviam
conseguido destaque por suas vidas exemplares, as quais deveriam inspirar o
comportamento dos jovens e estimular as repetições dessas experiências no futuro. Essa
forma de conceber a história e instrumentalizá-la, catalisa os interesses de grupos
dominantes, e passa a eleger uma forma hegemônica de pensar a história, a qual dá-se o
nome, como já vimos, de Historia Magistrae Vitae.
O segundo dos fatores que nos cabe explorar encontra-se imbricado à maneira de
se pensar a História da jovem nação no recinto do IHGB ao longo do século XIX.
Apresentava-se a História colonial sob laivos de um sentimento que explodindo em
situações tomadas como exemplares, procuravam dar conta das chamadas manifestações
de cunho nativista como uma espécie de nexo entre a colônia e a futura nação.
Da nossa parte, sugerimos que a constituição do tempo histórico como tensão
entre as meta categorias campo de experiência e horizonte de expectativas permite
pensar a constituição de tal tempo como articulada à capacidade de mobilizar imagens
do passado, resta dizer, à imaginação histórica. Ora, para essa ocorreria a priori a
possibilidade de redefinição, caso possam ser ressignificados alguns conceitos
fundamentais à consciência histórica de um dado presente. Tanto a noção de nação,
quanto as de território e civilização iriam, como tentaremos demonstrar, desmanchar-se
18
Apontamentos sobre Varnhagen e Capistrano. Revista de História. São Paulo, USP, 18 (88), out.-dez.
1971.
19
Não é nossa intenção rediscutir a noção de nativismo. Essa questão, nos parece, já foi superada, para os
limites do nosso estudo, através do trabalho de Rogério Forastieri da Silva, o qual com seu ‘Colônia e
Nativismo: a história como biografia da nação’ foi capaz de bem equacionar o problema. Seus
referenciais foram tomados aqui como um dos pontos de partida – a ‘mistificação da colônia como ante-
sala da nação – tão explorada por certa historiografia que encontrou respaldo no IHGB e outros institutos,
pelo menos até a década de 1930, para não falarmos de uma época mais próxima. Assim, cabe apenas
acentuar o que há de falseamento em utilizar a expressão nativismo como uma espécie de proto-
nacionalismo. Na obra acima mencionada, Rogério Forastieri volta-se contra a busca de antecedentes de
emancipação política, ou seja, a negação do estatuto colonial como estando articulada a eventos ao longo
da história colonial considerados precursores da independência, o que equivaleria a dizer a colônia como
antecessora da nação, ou ainda, o nativismo como antecessor do nacionalismo. Cabe acrescer que a
expressão ‘nativismo’, de acordo com o autor mencionado, não é encontrada nem em Southey, nem em
Varnhagen. Por fim, caberia esclarecer também que a expressão ‘nativismo’ já foi empregada para
eventos pós-coloniais, tendo sido usada com frequência para referir-se a objetos variados, como
lusofobia, reivindicações populares, sentimento autonomista, luta contra estrangeiros, ou como já nos
referimos, movimento precursor da emancipação política, ou sinônimo de nacionalismo.
77
com toda a sua solidez ‘no ar’, no momento em que lhe fossem retirados, com a
Abolição e a República, os ‘pés de barro’ que lhes tinham sido postos pela
historiografia fundante instituída a partir da obra de Varnhagen.
Mas voltemos por hora, à problemática que envolve a historia magistra vitae.
Afinal, como conciliar, se isso pode ser possível, essa noção ciceroniana de História
com as lides do historicismo – em suas correntes ao longo do século XIX - cuja
emergência faz parte, como sabemos, de um conjunto de significativas revoluções
provenientes da Ilustração?
Sabemos pela obra clássica de Reinhart Koselleck que a expressão historia
magistra vitae foi utilizada por cerca de dois mil anos para representar o papel de uma
escola, fazendo com isso, as vezes de um cadinho que conteria as múltiplas experiências
alheias. De acordo com Koselleck, o objetivo pedagógico contido nesse tropos seria
deixar os homens livres para repetir os sucessos do passado, ao invés de recorrer no seu
presente vivido, os erros antigos.
Essa então seria a fórmula criada no interior do IHGB no curso das monografias
de vida dos varões preclaros. Não seria demais repetir que já entrado o século XX,
figurões do IHGB defendiam a confecção de uma história pragmática. Aliás, esse era o
caso de Afonso Celso, que de acordo com a historiadora Lúcia Maria Paschoal
Guimarães, possuía uma visão pragmática da história, entendendo que se a história era
mestra da vida, as experiências do passado não poderiam ser negligenciadas por
governados e governantes20.
Pois a historia magistra vitae, ou melhor, a sua persistente utilização, seria um
exercício de sapiência e prudência. Cabe acrescer com o autor de Futuro Passado, que
a historia magistra vitae, ou ainda, o papel cumprido por ela, ou esperado pelos que
dela faziam uso, perdurou quase ileso21, até o século XVIII, momento decisivo no qual
ganha sentido essa palavra substanciosa: o historicismo. Houve, como sabemos, o
historicismo ilustrado da segunda metade do século XVIII, bem como sua fase
posterior, o historicismo romântico. A esse se seguirá o historicismo cientificista, o qual
alcança os primeiros anos do século XX. É visível, ao estudo da produção
historiográfica, que essas formas de historicismo reagem bem didaticamente, mas de
20
Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938), p. 67.
21
Cabe acrescer de Koselleck que a historia magistra vitae “orientou, ao longo dos séculos, a maneira
como os historiadores compreenderam o seu objeto, ou até mesmo a sua produção. Embora tenha
conservado sua forma verbal, o valor semântico de nossa fórmula variou consideravelmente ao longo do
tempo”. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, p.42.
78
forma desconfortável, quando confrontado nas suas épocas. Afinal, como nos alerta
Arno Wehling, encontramos para exemplificar, um historicismo ilustrado em momento
no qual deveríamos verificar um historicismo perspassado pelo romantismo, e isso deve
ser creditado às explicações que são genéricas demais22.
Mas para clarificar nosso entendimento, dois fatos merecem ser realçados. O
primeiro deles é que temos que entender o historicismo como uma reação na história, à
abordagem fisicalista e mecanicista, conforme em Newton, ou ainda, racionalista,
conforme em Descartes.
A raiz do historicismo estaria, conforme defende Arno Wehling, no
irrompimento da mudança, ou ainda na necessidade de conviver de maneira científica
com a inovação e a diferença. Ora, o século XVIII, ou melhor, suas últimas três décadas
acumulou extenso repertório, não somente de inovações e diferenças, como também de
uma dupla revolução, econômica e política, para a qual a experiência da história muito
pouco valia.
Não teria sido por mera casualidade que Georg Wilhelm Friedrich Hegel ao
esboçar uma análise acerca da natureza da história em si, considerou que a história
pragmática – ou seja, aquela que tornava presente o acontecimento – não possuía a
devida força contra a liberdade e a vitalidade do presente, ou nas suas próprias palavras,
“nada é mais oco do que os apelos tantas vezes repetidos aos exemplos gregos e
romanos durante a Revolução Francesa; nada é mais indiferente do que a natureza
destes povos e a de nosso próprio tempo”23.
Para um autor como Arno Wehling, não haveriam dúvidas. Teria sido o
historicismo, com suas ramificações epistemológicas (conforme acima nos referimos),
culturais – relação com o romantismo - e políticas (relações com o nacionalismo), que
marca profundamente, mais do que outra influência intelectual, as origens do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro.
Aliás, cabe registrar que essa elite política do Império24 – fundadora do IHGB
por intermédio da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN) – a par da sua
heterogeneidade funcional, possuía unidade ideológica que a levava a defender a
unidade nacional, a consolidação do governo civil, uma redução do conflito no plano
22
A Invenção da História: estudos sobre o historicismo, p.133.
23
A razão na História: uma introdução geral à Filosofia da História. 2.ed. São Paulo: Centauro, 2001,
p.50.
24
Sobre a constituição e visão de mundo da elite política imperial afirmaram-se duas obras de
incontestável valor, a saber, A construção da ordem: a elite política imperial, de autoria de José Murilo de
Carvalho e O tempo saquarema: a formação do estado imperial, de Ilmar Rohloff de Mattos.
79
nacional, bem como, coerente aos pontos anteriores, a limitação tanto da mobilidade
social quanto da mobilização política. Temia-se a instabilidade política, a balcanização
do território e, tomando por base as experiências da América hispânica, o caudilhismo e
a república, associando esse regime político com a anarquia.
Daí a defesa intransigente da monarquia constitucional, bem como de pontos
considerados inegociáveis que envolviam essa forma de governo e sua configuração
política, a saber, seus desdobramentos econômicos, políticos, sociais e ideológicos tais
como o liberalismo, a grande propriedade, a escravidão, o padroado e o voto
censitário.25
Durante seus anos iniciais, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro estivera
bastante envolvido, ao que nos parece, com a construção de uma memória nacional que
era representada por tudo aquilo que fosse encontrado em termos de registros históricos,
tanto nas províncias26, quanto no exterior27. Esses cuidados foram tomados desde os
primeiros tempos do IHGB e foram esclarecidos sob a forma de artigo pelo cônego
Januário da Cunha Barbosa, sob o título “Lembranças do que devem procurar os sócios
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro nas províncias para remeterem à
sociedade central”28. A esse respeito, José Honório Rodrigues considerou em sua obra
A Pesquisa histórica no Brasil, ter sido constituído, por ação do IHGB o primeiro
programa surgido em nosso país dedicado à pesquisa histórica29.
Para a realização das narrativas fundamentadas das idas e vindas ao passado,
cabe dizer que tratava o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de imprimir a essa
tarefa o signo do oficial, ou ainda que de forma não autorizada em termos institucionais,
a chancela do Estado, talvez porque durante o Segundo Reinado, essa agremiação
histórico-geográfica-literária tenha se colocado sob a “imediata proteção do
Imperador”, tendo sido correspondida afetuosamente por esse Soberano .
25
Conforme Wehling, a invenção da história: estudos sobre o historicismo, pp.130-132.
26
Idem, ibidem, p.116.
27
A necessidade de pesquisa nos arquivos estrangeiros marca de certa forma a entrada definitiva de
Francisco Adolfo de Varnhagen na seara do conhecimento histórico. Anteriormente a Varnhagen, José
Maria do Amaral havia realizado investigações sem muito resultado. O IHGB, onde Varnhagen era sócio
correspondente desde 1840, de certa forma, abriu o caminho do futuro visconde de Porto Seguro, tanto à
diplomacia, quanto aos estudos históricos voltados ao interesse público. Após sugestão de Vasconcelos de
Drummond e influência do IHGB, Varnhagen foi nomeado em 18 de maio de 1842 como adido de
primeira classe em Lisboa. Conforme, RODRIGUES, José Honório. A Pesquisa Histórica no Brasil. 2.ed.
São Paulo: Cia Editora Nacional, 1969, pp. 44-49. Ver ainda, GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal.
Francisco Adolfo de Varnhagen. História Geral do Brasil. In: MOTTA, Lourenço Dantas (Org.).
Introdução ao Brasil: um banquete no trópico, 2. 2.ed.São Paulo: SENAC, 2002, pp. 75-96.
28
RIHGB, 1(4): 128-130, 1839.
29
RODRIGUES, José Honório. A Pesquisa Histórica no Brasil. 2.ed. São Paulo: Cia Editora Nacional,
1969, p. 38.
80
30
Essas expressões constaram do primeiro número da Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, avançando no tempo, nas folhas de rosto das suas sucessivas e intermitentes publicações.
Durante o Império, desde o primeiro tomo, a revista cunhou a expressão “Debaixo da imediata proteção
de S.M.I. ( o Senhor D. Pedro II). Essa última expressão foi mantida mesmo após a queda do Império, no
tomo nº 53, parte I (referente aos 1º e 2º trimestres de 1890), porém abandonada a partir da parte II desse
mesmo tomo (referente ao 3º e 4º trimestres de 1890).
31
A expressão sociedade de corte contempla as práticas instituídas a partir do século XIII no Ocidente
europeu, movimento antitético ao da débacle do mundo feudal. A sociedade de corte foi estudada, entre
outros autores, por Norbert Elias, o qual deu realce às estruturas de uma sociedade que se revelava
estamental e aristocrática, onde os papéis adscritos algo que confundiam-se com os comportamentos que
se introjetavam, alinhados que estavam às representações de poder e chances de alçar prestígio. Quando
pensamos o século XIX brasileiro, devemos acrescer que antes de vir a tornar-se uma sociedade de
classes emergente, foi necessário ocorrer, conforme argumentou Angela Alonso, certa desilusão com o
modus operantis do Império, que era fundamentalmente estamental. Lembramos ainda, com Manoel Luis
Salgado Guimarães, que em seu artigo Nação e Civilização nos trópicos, publicado em 1988 na revista
Estudos Históricos, também utilizou a expressão sociedade de corte para qualificar o IHGB, mesmo
depois dos estatutos de 1851, onde o candidato a sócio passava a ter que provar ser capaz de realizar uma
produção intelectual na área de estudos do Instituto. A verdade é que aquele sodalício atuava como uma
academia de tipo ilustrado, que segundo M.L.S.Guimarães era regulada ainda por uma teia de relações
sociais e pessoais. Cfe. Elias, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e
da aristocracia de corte; Alonso, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-
Império. Além das obras citadas, cabe acrescer de autoria de Lucia Maria Paschoal Guimarães, o livro
‘Debaixo da imediata proteção imperial: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889).
32
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da escola palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889 – 1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2007.
81
33
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889-1938), p. 79.
34
A esse respeito ver LESSA, Renato. A invenção da República no Brasil: da aventura à rotina. In:
CARVALHO, Maria Alice Rezende de (Org.). República no Catete. Rio de Janeiro: Museu da República,
2001.
35
Lucia Maria Paschoal Guimarães escreveu que o Instituto “cedeu peças do seu valioso acervo
documental, sobretudo os mapas antigos, para o exame de questões de fronteira. De outra feita, atendeu às
solicitações do ministro da Guerra, e participou do planejamento da Carta Geral da República, elaborado
pelo Estado Maior, examinando detalhes técnicos e oferecendo sugestões para a sua consecução.” Da
escola palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889 – 1938). Rio de Janeiro:
Museu da República, 2007, p. 29.
36
De Manoel Luiz Salgado Guimarães, destacamos Historiografia e Nação no Brasil (1838-1857), a
organização da obra coletiva Estudos sobre a Escrita da História, bem como, o artigo Nação e civilização
nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional, publicado
82
na revista Estudos Históricos, em 1988. A contribuição de Lilia Moritz Schwarcz, com seu O espetáculo
das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930), assim como de Lúcia Maria
Paschoal Guimarães, Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-
1938), e da própria Ângela de Castro Gomes, com seus A República a História e o IHGB, e História e
historiadores: a política cultural do Estado Novo, parecem integrar uma espécie de núcleo duro dessa
temática.
37
O texto é referente à revista de abril de 1844, v. 6, n. 21, mas publicada na revista de nº 24, em janeiro
de 1845. Ele será objeto de análise no capítulo seguinte.
38
Inicialmente a data das sessões magnas era o dia 1º de dezembro , mudado posteriormente para o dia 15
de dezembro, quando o IHGB passou a ocupar as instalações no Paço Imperial, passando a data de quinze
de dezembro a ser anualmente comemorada como aniversário do Instituto. GUIMARÃES, 1988, p.9-10.
83
denominado ‘O Brazil Social’, texto esse que tomava mais de oitenta páginas daquele
periódico.
Caberia acrescer ainda, que com a presidência do grêmio sob o Barão do Rio
Branco, a ‘casa da memória nacional’ chegara à sua terceira geração, o que permitira
aliar prestígio oficial com a experiência profissional, o que serviu para “...que as
próprias finalidades do grêmio se...[alterassem, pois]...(...)...ultrapassara-se aquela
etapa, identificada por Jacques Le Goff, de formação do equipamento erudito da
História”39
Um Instituto confirmado na qualidade de “Casa da Memória Nacional”, e ávido
a navegar novamente nos favores oficiais, contando para isso com personagens
simpáticos ao regime deposto, uma República eivada pelas contradições, e somente
posta a funcionar na regulação dos seus conflitos, após um pacto oligárquico40, tudo isso
articulado a uma burguesia transtornada por ter importado mão-de-obra européia que
teimava em não se comportar como o exemplo que se esperava dos filhos do Velho
Mundo, da civilizada Europa 41 ? Os novos donos do poder articulados com a
inteligentsia brasileira, pareciam manter muitas dúvidas, e uma delas parecia ser a
organização de um panteão nacional, uma galeria de heróis, talvez uma tarefa de
extrema urgência, ao observarmos a agenda dos grêmios históricos, via-de-regra
articulada ao calendário cívico dos governos republicanos.
Naquele momento, talvez mais do que em outros da história republicana até
então vivida, a manutenção do status quo pela via da representação histórica, ocupava
lugar proeminente e altamente honroso, ação que diríamos, deveria irromper de forma
irresistível e revestida de caráter inegociável, no universo das demandas oligárquicas, e
conforme encontramos documentado, sobretudo das oligarquias paulista e mineira, à
época as representantes dos principais estados da federação.
39
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889-1938), p.116. A expressão ‘equipamento erudito da história’ é do agrado de Jacques Le
Goff, que a utiliza no verbete ‘História’ de sua lavra para a Enciclopédia Einaudi. Ela busca retratar os
esforços decisivos ocorridos ao longo do século XIX, da parte dos historiadores e das instituições às quais
estes estavam ligados, para difundir o método crítico dos documentos.
40
Onde poderíamos dizer, com seus eixos de liberalização e includência (R. A. Dahl) restritos às práticas
viciosas da tríade formada pelo voto de cabresto/ata de bico de pena/comissão de verificação de poderes.
41
Cabe notar que a substituição do trabalho escravo pelo assalariado se dera, de acordo com Roberto
Ventura, associada a uma percepção de uma sociedade dividida: de um lado estariam senhores indefesos,
de outro, escravos violentos. Entre a proibição do tráfico (1850) e a Abolição da escravatura (1888), a
escravidão passou a ser vista como problemática, e nas camadas letradas falava-se “de um ‘perigo negro’,
que traria riscos à sobrevivência da civilização no Brasil.” VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história
cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 45-46.
84
42
SAES, Décio. A Formação do estado burguês no Brasil (1888-1891).
85
manifeste num instante por todas as camadas da população”. 43 Para seu presidente
honorário e benemérito, nomearam o então Presidente da República, Prudente de
Moraes.
Antonio Celso Ferreira também colocou em destaque a escolha da autoridade
máxima do Poder Executivo para ocupar o posto de presidente honorário da
agremiação, em momento no qual se reuniam a elite intelectual e política de São Paulo,
para fundar o IHGSP. Na opinião desse historiador, “era sintomático, aliás, que a
inauguração dos trabalhos do instituto ocorresse às vésperas da posse do primeiro
presidente civil da República”. Ferreira assinalou ainda que “desde cedo e durante toda
a Primeira República, momento em que São Paulo firmou sua posição hegemônica na
Federação, o IHGSP gozaria de grande prestígio, inserindo-se na órbita do poder
político dominante do Estado.”44
43
O espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870 – 1930). São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, especialmente as págs. 125 a 133, onde se encontram essas citações.
44
A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940), p. 94.
45
Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo
Horizonte, ano XXI, fasc. II, abr – jun, 1927, p. 103. (grifo nosso).
86
A listagem dos homens que fundaram o IHGMG expunha uma íntima relação da
recén-criada instituição com representantes dos poderes constituídos do Estado, o que
por sua vez revelava o seu caráter semi-oficial. Cabe registrar que de passagem pela
capital de Minas, o jurista Pedro Lessa esteve presente naquela histórica tarde e por
sugestão de Augusto de Lima, passou a ser considerado sócio fundador do Instituto
Histórico e Geográfico que então era fundado.48
Após tomar assento à mesa de direção dos trabalhos, atendendo a pedido do
Presidente do Estado, Pedro Lessa faria um breve discurso. Pelas suas palavras ficamos
sabendo que comparecera atendendo a convite do seu ilustre amigo, Augusto de Lima, e
que até pensara recusar, devido ao seu estado de saúde que o impediria de tomar parte
ativa nos trabalhos daquela assembléia. Segundo ele,
“Quase banalidade é enaltecer a fundação do Instituto, tão promissoramente
iniciada: nem ha quem duvide que o olhar que se embebe no passado vê mais
claramente o presente e chega a vislumbrar o futuro. Os gregos e os
romanos disseram da historia ser ella a mestra da vida; e os Polybios, os
Plutarchos e os Ciceros a entendiam como um gênero litterario em que – as
biographias e as narrativas tratadas na amplificação imaginosa que os
antigos historiadores se permittiam, visavam a educação politica e moral,
inspirada nos fortes exemplos de virtudes, do heroismo e patriotismo. Essa
conceituação ingenua da historia foi severamente desmentida pelo criterio
da exactidão e da fidelidade na averiguação dos factos humanos contraposto
á creação romantica dos seus primeiros cultores. Mas a historia, continua,
mestra da vida, não se limita a reunir os factos humanos, de cujo exame
comparativo se induzem-as leis sociológicas; proporciona ensinamentos
46
Estatutos do Instituto Histórico e Geographico do Estado de Minas Geraes. Revista do Archivo Publico
Mineiro. Belo Horizonte, ano XXII, 1928, p. 355.
47
Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo
Horizonte, ano XIV, 1909, p. 6-7.
48
Acta da sessão de fundação do «Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes». Revista do
Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, ano XIV, 1909, p. 7.
87
49
Ibidem, p. 8.
50
Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo
Horizonte, ano XXI, fasc. II, abr – jun, 1927, p. 104
51
Estatutos do Instituto Histórico e Geographico do Estado de Minas Geraes. Belo Horizonte. 12 jul
1906. Republicado na Revista do Arquivo Público Mineiro ano XXII (1928), p. 355 – 370.
52
MOLLO, Helena Miranda, SILVA, Rodrigo Machado da. Diogo de Vasconcelos e a “oficina central do
pensamento”. In: ROMEIRO, Adriana, SILVEIRA, Marco Antonio. (orgs.) Diogo de Vasconcelos: o
ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 72.
53
Estatutos do Instituto Histórico e Geographico do Estado de Minas Geraes. Belo Horizonte. 12 jul
1906. Republicado na Revista do Arquivo Público Mineiro ano XXII (1928), p. 355.
54
Acerca do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), torna-se necessário lembrar que, fundado
em 1838, constituíra-se como uma espécie de espaço da academia dos escolhidos, sob o critério das
relações sociais, como nos moldes das Academias Ilustradas européias de fins do séc XVII e séc XVIII.
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos: O Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.1,
1988, p.5 – 27. Uma mudança significativa ocorreu em 1851, com os novos estatutos, onde o candidato
aos seus quadros deveria provar sua capacidade de pertencimento ao Instituto, apresentando uma
produção intelectual na área de atuação do mesmo. José Honório Rodrigues, crítico respeitoso para com o
passado do Instituto, assinala que foi com a criação do IHGB que nasceu a pesquisa histórica brasileira.
Admite que muitas vezes o Instituto foi dominado por um caráter acadêmico propenso a trabalhos “mais
ornamentais e sociais, como comemorações, necrológios, elogios históricos, conferências e discursos” A
pesquisa histórica no Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p.37. José Honório
frisa também que “nos estatutos fixava-se claramente que o principal fim e objetivo do Instituto era
coligir, metodizar, publicar ou arquivar os documentos necessários para a História e Geografia do
Império do Brasil” Idem, Ibidem. Parte desta citação José Honório Rodrigues anotou dos Estatutos
publicados na Revista do IHGB, 1839, t.1, 22., de onde concluiu que “se o método histórico baseia-se
essencialmente na consulta às fontes escritas originais e nas tarefas críticas auxiliares, então, não há
como negar que os fundadores do Instituto Histórico deram ao seu trabalho, desde o início, uma
orientação impecável”. Idem, Ibidem, p. 38. Lilia Moritz Schwarcz apresenta-se menos condescendente
88
agremiação que ficara um pouco esquecida, conforme vimos, com a adoção do regime
republicano. A reabilitação do IHGB deve ser vista em nosso entendimento como um
esforço no qual estavam presentes os Institutos Históricos estaduais de São Paulo e
Minas Gerais, iniciativa que se revelaria fundamental diante da tarefa de legitimação da
ordem social então vigente. É verdade que haviam disputas, pois a denominação de
Instituto Brasileiro assumida pelo ‘grêmio carioca’ não era bem aceita pelos paulistas55.
No dia 16 de junho chegava à sede do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
um telegrama passado de Minas Gerais. O teor era o seguinte:
em relação ao IHGB, ao qual se refere como ‘grêmio carioca’. (grifo nosso). Lilia Moritz Schwarcz
acrescentou que “além de um levantamento documental, [havia] a afirmação de uma perspectiva teórica.
Fazer história da pátria era antes de tudo um exercício de exaltação. Essa lógica comemorativa do
instituto se efetivou não só mediante os textos produzidos e publicados na revista, como por uma prática
efetiva de produção de monumentos, medalhas, hinos, lemas, símbolos e uniformes próprios ao
estabelecimento. Lembrar para comemorar, documentar para bem festejar.” SCHWARCZ, Lilia Moritz.
O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870 – 1930). São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. P. 104. Ligado de forma visceral ao Império, tendo sido colocado sob a
proteção pessoal do Imperador Pedro II, o fim do Regime monárquico teria obrigado o IHGB, sem
desligar-se da gratidão pessoal mantida in memorian para com o imperador deposto - considerado
protetor perpétuo do estabelecimento - a sutis adaptações para com os novos tempos, tarefa que caberia
em parte a Max Fleiuss, secretário do Instituto a partir de 1905.
55
SWARTZ, Lilia Moritz . O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
(1870-1930), p. 126. Caberia lembrar que, desde a sua fundação, o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro procurou assumir o papel de centro hegemônico da escrita da História da nação.
56
Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro. Rio de Janeiro, t. LXX, parte II, 1907, p.723.
57
Ibidem, p. 723-724.
89
58
Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo
Horizonte, ano 14, 1909, p. 213 – 215.
59
SWARTZ, Lilia Moritz . O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
(1870-1930), p.106.
60
Idem, Ibidem, p. 107.
90
“...aos menos reflectidos poderá parecer, talvez, que taes estudos mais
participam dos prazeres intellectuaes menos úteis, si é possível a gradação,
do que das fecundas e positivas cogitações da actualidade, na solução
premente de problemas mais necessarios, que resguardem o futuro,
melhorando-o. Si é certo que o trabalho intellectual que se exercita no
passado, traz sempre, para o coração, o consolo dos exames serenos e o
conforto dos julgamentos em que as paixões arrefecidas deixam dominar
inteira a belleza da justiça calma e definitiva ( e nenhum prazer mais puro e
tambem mais nobre lhe póde ser equiparado), há ahi ainda, além do puro
prazer intellectual, forças positivas governando a actualidade, e elementos
poderosos sustentando o presente e dirigindo o futuro, nos ensinar ao
homem que deve confiar sómente nesta justiça, que nunca falta, contra a
onda das paixões ephemeras e dos interesses passageiros que desapparecem
com o tempo que os creou, para deixar, eterno e duradouro, o que foi feito
no serviço da Humanidade e da Pátria, que nunca morrem....”.61
61
Respectivamente, Estatutos do Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes. Revista do Arquivo
Público Mineiro. Belo Horizonte. ano XXII, 1928. P. 355 e Instituto Historico e Geographico de Minas
Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte. ano XXI, fasc. II, abr – jun, 1927. P. 105.
62
Emprego a expressão historiografia fundante adotando a definição de Jörn Rusen, e a esta articulando
proposição formulada por Nilo Odália. Assim entendemos como historiografia fundante ao processo da
constituição narrativa de sentido pelo qual o saber histórico, a priori conhecimento científico – no que
sujeita-se às exigências da verdade e certeza científicas, mas também conhecimento fundante, passa a ser
o fundamento, origem e explicação de projetos e medidas políticas práticas, inclusive de um Estado, para
atingir fins determinados. Desta forma a historiografia fundante passa a ser inscrita nos processos
comunicativos da práxis vital humana, na qual o agir humano e auto-compreensão de seus sujeitos
orientam-se por representações de processos temporais significativos que, no entanto, tiveram o almejado
sentido prático da pesquisa científica dado de antemão.
63
Entendemos por pensamento conservador aquele surgido a partir da negação da razão iluminista, e que
conheceu a partir do pensamento tradicionalista europeu de Joseph de Maistre e Louis de Bonald, a defesa
da ordem, da autoridade e da contra-revolução. No pensamento conservador a História é entendida como
um processo orgânico de evolução, sendo evocada a imagem da árvore para significar evolução e
enraizamento, que se apresentam como opostos aos ideais do universalismo abstrato e progressivista de
uma razão qualificada como supratemporal. Neste sentido a razão iluminista passa a ser entendida pelo
pensamento conservador como possuidora de um potencial de terror, na qual em oposto o pensamento
conservador concebe sua idéia de liberdade.
64
Se o Museu Nacional, criado em 1922 tinha vocação já pré-traçada e livre de compromissos anteriores,
O Museu Paulista foi reorientado ao longo dos 28 anos de direção de Afonso d’Escragnolle Taunay,
91
sempre a partir da ótica paulista e dos limites marcados pelos interesses políticos e econômicos da elite
bandeirante.O ‘Palácio de Bezzi’, nome pelo qual também ficou conhecido o prédio do Museu Paulista,
por ter sido construído a partir do projeto do engenheiro-arquiteto Tommaso Gaudencio Bezzi, começou a
ser erguido em 1885, tornando-se propriedade do Estado de São Paulo em 1892 e passando a abrigar a
sede do Museu do Estado em 1894, quando foi oficialmente batizado de Museu Paulista. Passou a abrigar
as coleções provenientes do antigo Museu Sertório, formado sobretudo de coleções zoológicas, mas
também de uma miscelânea de objetos, incluindo-se aí, algumas peças preciosas e únicas do patrimônio
arqueológico e histórico nacional que haviam sido adquiridas pelo Estado de São Paulo em 1890. BREFE,
Ana Claudia Fonseca. O Museu Paulista: Affonso de Taunay e a memória nacional (1917-1945). São
Paulo: Unesp, 2005.
65
MATTOS, Odilon Nogueira de. Afonso de Taunau: historiador de São Paulo e do Brasil (perfil
biográfico e bibliográfico). São Paulo: Museu Paulista, 1977.
66
COSTA, Wilma Peres. Afonso D’Escragnolle Taunay: História Geral das bandeiras paulistas. In: Mota,
Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. 2. ed. V.2 São Paulo: SENAC, 2002. p.
102.
92
67
Odilon Nogueira de Matos cita também a Alfredo Moreira Pinto. Ibidem, p. 28.
68
COSTA, Wilma Peres, ibidem, p. 103.
69
Os Princípios Geraes da Moderna Critica Historica. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo, v.XVI, 1911, p.324-344.
70
Seriam os casos da alocução proferida por Myriam Ellis em 19 de agosto de 1976, bem como do perfil
biográfico e ensaio bibliográfico preparado por Odilon Nogueira de Matos no ano seguinte, ambos com o
objetivo de comemorar o centenário do nascimento de Afonso Taunay. Myriam Ellis classificou o ensaio
‘Os princípios Geraes da Moderna Critica Historica’ como “excelente”, e “ainda pleno de atualidade”.
Por seu turno, Odilon Nogueira de Matos fazia coro quanto aos aspectos de interesse e atualidade da
Conferência de 1911, indo mais além, pois acreditava que “está a merecer reedição, juntamente com
outros trabalhos que o mestre deixou esparsos, contendo subsídios preciosos para a história da cultura
brasileira.” Ver: ELLIS, Myriam. Afonso D’escragnolle Taunay no ano do seu centenário (1876 – 1976).
Homenagem da Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo. Revista de História. N.107, v. LIV, jul. set. 1976, p. 3-9. e MATOS, Odilon Nogueira de.
Afonso de Taunay: Historiador de São Paulo e do Brasil (perfil biográfico e ensaio bibliográfico).
Coleção Museu Paulista, série ensaios, v.1, São Paulo, 1977, p. 27.
71
Para Mattos (2003), esse ensaio serviu como a declaração de fé do autor quanto à necessidade de
enfatizar a documentação enquanto fonte privilegiada de acesso do historiador ao fato, o que estaria em
acordo com a História de cunho ‘positivista’ e historicista do IHGB e IHGSP. (grifo nosso). Taunay teria
se declarado partidário da historiografia francesa representada por Charles-Victor Langlois e Charles
93
Taunay com o que havia de mais avançado à época no sentido da Teoria da História 72.
Para Taunay, o “arsenal das sciencias auxiliares da Historia”, que seriam,
Seignobos, autores que se opunham a Ranke e Taine, por procurarem desenvolver uma visão de História
evolutiva, privilegiando uma História das Civilizações, em oposição a uma História dos ‘Grandes
Homens’. Já para Anhezini (2003), importante é ressaltar a ligação da crença de Taunay acerca das
potencialidades da ‘Moderna Crítica Histórica’, exposta na Conferência de 1911, como possibilidade
aberta para a reafirmação do objetivo de pensar a nação, mais representativa das tendências gerais da
intelectualidade, em uma época marcada (anos 10 e 20) por insurreições militares e agitações operárias.
Ver. MATTOS, Cláudia Valladão de. Da Palabra à Imagem: sobre o programa decorativo de Affonso
Taunay para o Museu Paulista. Anais do Museu Paulista, v.6-7, n.7, 2003, p. 123-148 e ANHEZINI,
Karina. Correspondência e escrita da História na trajetória intelectual de Afonso Taunay. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n.32, 2003.
72
Com efeito devemos frisar que muito antes de Marc Bloch e Lucien Febvre desafiarem o status quo,
François Simiand havia proferido uma comunicação em janeiro de 1903 na Sociedade de História
Moderna e Contemporânea de Paris, onde estaria presente, ao que parece, Charles-Victor Seignobos,
expoente do historicismo objetivista e interlocutor ao qual Simiand deu voz, respondendo através das
numerosas notas acrescidas ao trabalho publicado, a maioria com referências explícitas a obras de
Seignobos como Método histórico aplicado às Ciências Sociais ou História Política da Europa
Contemporânea. De orientação durkheimiana e perspectiva teórica marcadamente interdisciplinar, o
futuro inspirador da área de História econômica dos Annales colocara certamente, uma cunha e muitas
incertezas no e’stablishment da historiografia francesa. Ver SIMIAND, François. Método histórico e
ciência social. Bauru: EDUSC, 2003.
73
Os Princípios Geraes da Moderna Critica Historica. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo, v.XVI, 1911, p.326-328.
74
Idem, ibidem, p. 326.
75
Idem, ibidem, p.328.
94
com a sua copia collossal de informes das autoridades ecclesiasticas á Santa Sé, ainda
nada desvendaram.”76. Esta preocupação presente na fala de Taunay, o qual conduzia
ao entendimento que havia em termos da História do Brasil quase tudo a se fazer,
encontrava correspondente na atuação do seu grande mestre e interlocutor: Capistrano
de Abreu. Capistrano queria abrasileirar a historiografia brasileira, pois, explica José
Honório Rodrigues, era “preciso ver os caminhos, as monções, a fronteira movediça, os
processos de conquista do sertão e de criação de uma personalidade histórica
distintamente brasileira”77.
Caberia ao historiador apenas colecionar documentos, para à moda dos velhos
cronistas, “reuni-los por meio de algumas phrases de transição” 78. Cada fato histórico,
esclarecia Taunay, era uma questão a julgar. A crítica às fontes se fazia mais que tudo,
necessária. Chamava atenção para o estilo das épocas e para o significado de certas
palavras que os séculos alteraram. Um aspecto que atrai a atenção no ensaio de Taunay,
apontando uma divergência entre a teoria apregoada e sua prática seria a respeito da
dúvida metódica, aplicada às afirmações contidas nos documentos. Taunay era
categórico quanto a isto: “a priori deve o historiador desconfiar das affirmações de um
autor, mesmo quando é tido como muito verídico”, no que reiterava, logo após,
“Repetimo-lo: é preciso procurar saber o que o autor realmente acreditava
porque pode não ser sincero ou talvez se tenha enganado. Com effeito é
possivel que minta conscientemente por interesse proprio, alheio, individual
ou collectivo, como é tão freqüente succeder nos papeis de origem official;
pode ter se achado numa situação que o obrigava a mentir, como succede,
por exemplo em actos, aliás inspirados pela boa fé, e redigidos a uma certa
distancia dos acontecimentos.”79
76
Ibidem, p. 329.
77
Afonso Taunay e o revisionismo histórico. Revista de História, São Paulo, n. 36, out.dez. 1958, p.98-
99.
78
Os Princípios Geraes da Moderna Critica Historica. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo, v.XVI, 1911, p.329.
79
Idem, Ibidem, p. 333.
80
Idem, Ibidem, p.334.
95
81
Idem, Ibidem, p. 335.
82
Ibidem, p. 338.
96
83
Os documentos paulistas do Arquivo Geral das Índias vieram a lume nos v. 1, 3 e 5 dos Anais do
Museu Paulista, publicados respectivamente em 1922, 1925 e 1931.
84
TAUNAY apud. RODRIGUES. In: A pesquisa histórica no Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1969. P. 98-99.
85
Trecho do Discurso de Afonso Taunay na sua posse na Academia Brasileira de Letras. Citado em
RODRIGUES, J. H. Taunay e o revisionismo histórico, p. 100.
86
Idem, Ibidem, p. 21.
87
Idem, Ibidem, p. 25.
97
Nos interessa ressaltar alguns aspectos dessa decoração, que foi percorrida por
milhares de visitantes, que representavam para a época uma considerável massa
humana. Esse público adentrou ao interior do Palácio Bezzi para apreciar mediante a
narrativa museológica arquitetada por Taunay, a representação do passado colonial
paulista que – conforme se apregoava – contribuíra para a constituição da unidade
nacional em virtude do movimento das bandeiras. De quebra, teriam os visitantes se
aproveitado para refugiar-se da chuva torrencial que se precipitou sobre a cidade de São
Paulo naquela data festiva.
Quanto ao projeto de decoração de Afonso Taunay cabe destacar inicialmente o
hall de entrada, com as enormes figuras dos bandeirantes Antonio Raposo Tavares e
Fernão Dias Paes, situadas à esquerda e à direita desse hall a encher as vistas e a
impressionar a imaginação do público. O trabalho fora assinado pelo escultor italiano
Luiz Brizzolara.
88
Da palavra à imagem: sobre o programa decorativo de Affonso Taunay para o Museu Paulista. Anais
do Museu Paulista, São Paulo, ano 6, v. 7, n. 7, 2003, p. 123 – 148.
89
Guia da Secção Historica do Museu Paulista. São Paulo: Imprensa Official do Estado, 1937, p. 48.
Cabem considerações sobre esse quadro, que já se encontrava exposto no Museu desde 1895. Assim,
defendeu Ana Cláudia Fonseca Brefe que essa obra acabou ganhando um sentido integral em virtude da
construção espacial de uma história que a ela se encontrava ligada. Isso se tornou possível graças à
decoração idealizada pelo novo Diretor do Museu Paulista. O Museu Paulista: Affonso de Taunay e a
memória nacional (1917-1945). São Paulo: Unesp, 2005. Karina Anhezini observa que foi diante das
séries de documentos publicados em 1914, 1917 e 1920, bem como de tantos outros adquiridos pelo
Museu Paulista, que tornou possível a Taunay abrir essas oito salas. ARAÚJO, Karina Anhezini de. Um
metódico à brasileira: a História da historiografia de Afonso de Taunay (1911-1939). 237f.Tese
(Doutorado em História) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual
Paulista, Franca, 2006.
98
90
Guia da Secção Historica do Museu Paulista. São Paulo: Imprensa Official do Estado, 1937, p. 57.
91
Ibidem, p. 60.
92
Ibidem, p. 60. (grifo do autor).
93
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, v. 1, 1895, p.1.
99
dos seus documentos e textos que conferissem uma imagem a essa unidade federativa.
Assim, iniciava-se a construção de um sujeito histórico, o Estado de Minas Gerais.
Para pesquisadores como Medeiros & Araújo (2007), era preciso deixar clara a
sensação de que o passado teria ficado para trás, devendo ser revalorizada a história dos
mineiros, e com ela, o sentido de uma nacionalidade que herdava do Império a
concepção de civilização enquanto continuidade histórica, conforme defendia seu
primeiro diretor, José Pedro Xavier da Veiga (1846 -1900).
Assim pensando, a República não deveria ser vista como uma revolução, mas
compreendida enquanto evolução natural da própria história do Brasil 94. Assim defendia
Xavier da Veiga, o marcante diretor do Arquivo nos primeiros anos de sua existência.
Esse jornalista e poeta dedicou-se também à História, tendo contribuído “...para a
redefinição do significado do histórico de Minas Gerais tanto com seus trabalhos no
APM quanto na confecção monumental das Efemérides Mineiras.”95
Cláudia Regina Callari, reforça essa opinião, no que para ela deve ser acentuado
o fato do Arquivo Público Mineiro, instituição regional formada dentro de um regime
acentuadamente federalista, também teria servido para “justificar o predomínio
econômico e político de Minas Gerais na Primeira República” 96 , ao tratar da
Inconfidência Mineira como movimento local, mas simultaneamente nacional. Nesse
sentido, a Inconfidência Mineira “seria vista como o movimento mais representativo do
passado mineiro, que se pretendia nacional”97. Cabe acrescer que o Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais, não contando com os mesmos recursos do Arquivo
Público Mineiro, utilizaria da páginas da revista do Arquivo para suas publicações, o
que era veiculado também no jornal Minas Gerais, órgão oficial do Estado.
Medeiros & Araújo, atentam para o fato que o,
“advento da República sinalizou a preocupação com um novo regime de
historicidade para Minas Gerais. A crise do Império tornou mais perceptiva
94
MEDEIROS, Bruno Franco, ARAÚJO, Valdei Lopes de. A História de Minas como História do Brasil.
Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, ano XLIII, n.1, jan.- jun. 2007. Pp. 23-37.
95
Idem, Ibidem, p. 29
96
Os Institutos Históricos: do Patronato de D. Pedro II à construção do Tiradentes. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 21, nº 40, 2001, p. 75. Ao Arquivo Público Mineiro devia caber
concomitantemente, conforme a autora, o papel de porta-voz de um suposto passado glorioso mineiro,
precursor do Regime republicano, bem como servir de espelho ao novo papel desempenhado pelo Estado
dentro da Federação. Através da valorização do passado mineiro, e do caráter combativo de seu povo, a
legitimação do papel de Minas Gerais naquela época de descentralização política vinha de encontro ao
desejo de recuperação do posto proeminente ocupado pela capitania de Minas Gerais no século XVIII.
97
Daí a justificativa para que a Revista do Arquivo Público Mineiro, editada desde 1896 dedicasse
especial atenção a esse capítulo da nossa história. No extravasamento do ardor republicano, seria nas
páginas dessa Revista que Eduardo Machado de Castro publicava, em 1901, ‘A Inconfidência Mineira –
narrativa popular’.
100
Com isso, tornava-se condição necessária aos novos tempos uma reorganização
histórica dos novos Estados da Federação: seus elementos históricos singulares
deveriam concorrer na disputa de posições no cenário político nacional. Ora, durante o
Império, escritas de histórias regionais estavam sujeitas a certo crivo hierarquizante da
história nacional, essa formulada a partir do IHGB. Em resumo, o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro pretendera, a princípio, que as províncias do Império produzissem
bons materiais locais, para que a partir da história particular dessas províncias pudesse
ser escrita a história geral do Império brasileiro.
Não custa dizer que a experiência da América portuguesa fora fragmentária, com
as suas imagens históricas dispersas sob um território precariamente vinculado ao
Império português. Nesse contexto ficava dificultada a produção histórica, a não ser que
se utilizasse da forma corográfica 99 , que associada ao memorialismo passasse a ser
orientada pela metáfora do mosaico100.
A essas corografias, cumpre dizer, a essas histórias particulares, correspondiam
um conjunto de formas literárias que seriam especialmente talhadas para oferecer um
tratamento temático, não raro sendo encontrado um derramamento de subjetividade, em
descrições de paisagens, bem como na dramatização de personagens e eventos
históricos. Esse parece ter sido o caso de ‘Tiradentes’, uma ‘opera lyrica em 4 actos’ de
autoria de Augusto de Lima, e publicada na Revista do Arquivo Público Mineiro, no
ano de 1897.
Nessa ópera, a ação se desenvolve entre os anos de 1789 e 1792, possuindo
como personagens de primeiro plano, além do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o
Ouvidor de Vila Rica, Tomás Antonio Gonzaga, o Visconde de Barbacena, Maria de
Seixas – ‘Marília’, e Joaquim Silvério, entre outros. Curiosamente foi incluído com
grande evidência, a personagem Perpétua (descendente de Felipe dos Santos). Ela
98
A História de Minas como História do Brasil. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte,
ano XLIII, n.1, jan.- jun. 2007, p. 29.
99
Podemos entender a corografia como uma espécie de História Regional compreendida esta como um
conceito amplo de histórias particulares, ou seja, histórias que seriam opostas e complementares aos
princípios de uma história geral. O projeto de constituição de uma corografia mineira ganhou fôlego com
a criação da Revista do Arquivo Público Mineiro no ano de 1896. Além de corografias, a revista do
Arquivo Público Mineiro, publicava sobre biografias, letras e artes na forma de seções permanentes, além
de documentos inéditos.
100
A sugestão encontra-se em Arnaldo Momigliano. O surgimento da pesquisa antiquaria. In: ________.
Raízes clássicas da historiografia moderna. São Paulo: Edusc, 2004, p. 85-117.
101
101
Revista do Arquivo Público Mineiro. Ouro Preto. V.1, ano 2, fev. 1897. Pp. 87 – 232. A citação
encontra-se na p. 232.
102
VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva: americanismo e iberismo no Brasil, p. 17.
103
O Tribunal da Posteridade. In: PRADO, Maria Emília (Org.). O Estado como vocação: idéias e
práticas políticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Acess, 1999, p.33-57.
104
Conforme a pergunta intelectualmente instigante aos historiadores realizada por Michel de Certeau: “ -
o que é uma ‘obra de valor’ em história? [ao que ele responde] Aquela que é reconhecida como tal pelos
pares. Aquela que pode ser situada num conjunto operatório. Aquela que representa um progresso com
relação ao estatuto atual dos ‘objetos’ e dos métodos históricos e, que, ligada ao meio no qual se
elabora, torna possíveis, por sua vez, novas pesquisas. O livro ou o artigo de história é, ao mesmo tempo,
um resultado e um sintoma do grupo que funciona como um laboratório. Como o veículo saído de uma
fábrica, o estudo histórico está muito mais ligado ao complexo de uma fabricação específica e coletiva
102
então algo que marcava indelevelmente a qualquer indivíduo, transformando a sua pena
em uma espécie de sinete autorizado do Instituto, e os resultados dessa lavra em uma
extensão das páginas da sua revista. Tentaremos trabalhar em um recorte limitado entre
as balizas temporais que em um extremo demarca os primeiros anos do regime
republicano e pela outra extremidade anuncia uma nova etapa na vida desses sodalícios,
face à realização do Primeiro Congresso de História Nacional que foi promovido pelo
IHGB nos primeiros dias de setembro de 1914, e que acabou coincidindo com a eclosão
da Primeira Guerra Mundial.
Talvez a conjunção de algumas palavras consiga refletir as idéias presentes à
época, e com isso iluminar o significado da produção historiográfica dos Institutos
considerados, pelo menos até 1914. Pois a partir desse ano o contexto do primeiro
grande conflito mundial veio a fortalecer o nacionalismo105 e em conseqüência disso fez
refluir a base ideológica que sustentava as ‘pequenas pátrias’ que as inspirações
positivistas vinham tentando consolidar amparadas no federalismo consagrado pela
ordem política republicana 106 . Assim “existiram” entre outras, a ‘pátria paulista’ de
do que ao estatuto de efeito de uma filosofia pessoal ou à ressurgência de uma ‘realidade’ passada. É o
produto de um lugar.” A Escrita da História. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 72-73.
(grifos do autor).
105
Conforme costumeiramente se diz, o patriotismo ‘modelo 1914’ – expressão utilizada por Maurice
Agulhon para o contexto europeu – alimentou a guerra, mas aí estariam seus limites. Refletindo sobre
esse momento, a historiadora Angela de Castro Gomes fala dessa guerra produzindo o descrédito aos
valores políticos ocidentais, bem como “sobre uma visão de História, de progresso e de civilização
fundada em valores universais e ‘otimistas’...” A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte:
Argumentum, 2009, p.66.
106
De acordo com João Cruz Costa, para homens do Apostolado Positivista como Teixeira Mendes a
pátria seria algo marcado pelo empirismo: supunha ele então um agrupamento de famílias ao qual não se
poderia assinalar o limite e o território exato. Para Teixeira Mendes a pátria real seria algo distinto de um
acervo de famílias que algum conquistador pudesse outrora ter agrupado violenta e caprichosamente.
Assim, na opinião daquele discípulo de Augusto Comte, as pátrias modernas seriam futuramente
constituídas por um pequeno número de famílias, abrangendo um território que seria menor que o de
Portugal, com uma população que variasse entre um e três milhões de habitantes. Segundo Mendes,
seriam território e população considerados exíguos na visão de estadistas retrógrados, acostumados a
pensar na formação de grandes nacionalidades. Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, conforme
escreveu João Cruz Costa, Teixeira Mendes, “preso à letra dos ensinamentos de Augusto Comte, sem
atender a outros fatores históricos afirmava, convencidamente, que ‘a presente catástrofe fratricida
resulta do atraso da propaganda positivista em Paris’! ” Teixeira Mendes então aproveitava-se dos
ensinamentos do seu Mestre para denunciar aquilo que considerava como desvios na evolução histórica
da civilização do Ocidente. Na análise de Comte, o surto das grandes nacionalidades ocorrido a partir do
século XVI fora uma anomalia política, pois substituíra a santa noção de pátria que era própria às nações
de limitada extensão territorial, por uma vaga e quase estéril noção de pátria que seria aquela encontrada
nos países ocidentais modernos. Era em função dessas idéias – explica Cruz Costa – que os positivistas
brasileiros se referiam constantemente às pátrias brasileiras. O Positivismo na República: notas sobre a
História do Positivismo no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956. As citações encontram-
se às p. 69; 83-85; e, 159-160. (grifo do autor).
103
107
Conforme relata Antonio Paim, coube a Júlio Prates de Castilhos (1860-1903) pregar no Rio Grande
do Sul o evangelho do Mestre dos Mestres, que é como ele se referia a Augusto Comte. Formado na
Faculdade de Direito de São Paulo em 1881, Castilhos surgiu como homem forte no Rio Grande na fase
inicial da consolidação da República. Ele governou autocraticamente o Estado entre 1893 – ano no qual
conseguiu vencer a guerra civil – e 1898. A doutrina política por ele professada, que considerava ser de
regeneração, serviu para dar corpo à Constituição do seu Estado, votada em 1891. É dito costumeiramente
que o projeto de constituição do Rio Grande do Sul em vigor durante a Primeira República foi obra quase
exclusiva de Júlio de Castilhos, o qual teria se baseado no Sistema de Política Positiva de Comte. O grupo
castilhista dominou politicamente o Rio Grande do Sul durante toda a Primeira República. Em 1898
Castilhos transfere o poder a Borges de Medeiros e este o conserva até 1928, quando por imposição do
governo central, passa o governo a Getúlio Vargas, também pertencente ao castilhismo. Vargas iria
transplantar, a partir de 1930, o castilhismo para o plano nacional. João Pinheiro da Silva (1860-1908)
diplomou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em 1887. Sobre ele observou Ivan Lins que quando
esteve no Rio de Janeiro na qualidade de representante de Minas Gerais na Constituinte republicana de
1890/1891 costumava assistir sua missa aos domingos no Templo da Humanidade. Tomava notas dos
ensinamentos positivistas para aplicá-los na política. No governo de Minas, conforme relata Lins, mandou
mensagem ao Legislativo mineiro com o seu programa de governo: abrir escolas para iluminar a
inteligência das crianças; ensinar trabalho aos adultos; guiar e aconselhar nas dúvidas, aos produtores;
cuidar das questões materiais, mas sem abandonar a parte espiritual e moral; ter culto sincero da liberdade
e tornar paternal o exercício da autoridade e conciliadora a política. Morreu prematuramente no exercício
do cargo de Presidente do Estado em 25 de Outubro de 1908. No ‘Outono do Império’, certas convicções
positivistas acabaram traduzidas no livro ‘A pátria paulista’ pelo ideólogo republicano João Alberto Sales
(1857-1904). Alberto Sales colou grau na Faculdade de Direito de São Paulo no ano de 1882. Nesse
mesmo ano, escreveu ‘A Política Republicana’, trabalho publicado com recursos arrecadados do Partido
Republicano Paulista junto aos seus militantes e simpatizantes. Wilson Martins considerou esse livro não
só como a grande teoria política do positivismo brasileiro, mas também como “a única exposição
sistemática e coerente da doutrina republicana” (v.4,p.159-160). A pátria paulista era uma leitura
positivista enviesada entre a construção da nação e a integridade do território, afinal os positivistas
tratavam a questão da integridade do território nacional como um preconceito revolucionário. Assim
talvez possamos entender com base no texto de ‘A Pátria Paulista’ que o autor propugnava pelo
separatismo, o fazendo fundamentado na doutrina de Comte, porém conforme apontou João Cruz Costa,
com uma clara influência do evolucionismo de Herbert Spencer. Conforme frisou Cruz Costa, no Brasil o
evolucionismo foi adotado quase que simultaneamente ao positivismo, e “nossos letrados e filosofantes
seguiram-no como o seguiu boa parte dos europeus da época.” (p.280) Alberto Sales entendia que se a
bacia do Amazonas contava com uma população predominantemente índia, e a do São Francisco poderia
ser considerada uma província negra, restaria então ao “tipo europeu” ocupante da região compreendida
pela bacia do Paraná – região para a qual o eixo econômico do país havia sido deslocado – a tarefa de
realizar primeiramente ali, os ideais da civilização, formando a sua “pequena pátria”. Afinal, Herbert
Spencer tinha dito que “ a mistura entre duas raças inteiramente dissemelhantes produz um tipo mental
sem valor. Ao contrário, povos da mesma origem dão, por via de cruzamento, um tipo mental superior a
certos respeitos”. (p. 38) Nessa obra o federalismo aparece como o contraponto ao que o autor
denominava ironicamente como “a única entidade pensante no Império”(p.112). Para ele a centralização
do Império havia sufocado as Províncias. Na primeira parte do livro, ‘Separatismo em face da ciência’,
destaca-se sua exposição da ‘Lei do progresso em biologia’. É o momento no qual realiza uma analogia
com a sociedade e a ‘Lei do progresso em sociologia’. As conseqüências políticas que pretendia
evidenciar estariam estabelecidas nessas leis, que segundo ele, eram historicamente comprovadas.
Explicava então que, “a formação do reino de Portugal é um caso belíssimo de separação, por
diferenciação geográfica e etnológica. Desde a constituição do condado portucalense, como um
desmembramento da Galiza, até a sua organização definitiva em reino independente, observam-se
fenômenos de desagregação e de agregação política que têm todos por base, de um lado o
condicionalismo geográfico, de outro o condicionalismo étnico.” (p. 34-35) Nas ‘Vantagens práticas do
separatismo’ partia em análise sobre a autonomia política e as conseqüências para o movimento
migratório, na indústria e comércio, estradas de ferro e navegação marítima. A terceira parte do livro
‘Confronto do Separatismo com a nacionalidade’ era dedicada a apontar as vantagens da autonomia
federativa, com reflexos no campo da administração, da educação e da economia em geral. A partir desse
pequeno esforço de síntese acreditamos poder extrair algumas conclusões: 1. Nas décadas de 1880 e 1890
104
– época na qual estudaram Júlio de Castilhos, João Pinheiro e Alberto Sales – foi imensa a penetração da
Filosofia Positiva na Faculdade de Direito de São Paulo, o que parece explicar a rapidez com que a
intelligentsia brasileira mantinha-se informada do que se passava na Europa; 2. A influência do
Positivismo refletiu-se de imediato nos jornais A República, O Federalista, A Evolução e A Luta, no qual
colaboraram Júlio de Castilhos e Alberto Sales; 3. A formação superior permeada pelo positivismo
possibilitou a que jovens quadros emergissem à cena política durante a ruptura institucional provocada
pela queda do regime monárquico; 4. No governo dos seus respectivos Estados, Júlio de Castilhos e João
Pinheiro iriam marcar suas administrações sob princípios positivistas;e, 5. Conforme o dizer do seu
biógrafo Luís Washington Vita, Alberto Sales – que vinha a ser irmão de Campos Sales – tornar-se-ia um
dos principais ideólogos e articuladores republicanos. Ver. PAIM, Antônio. História das Idéias
Filosóficas no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1967; LINS, Ivan. História do positivismo no Brasil. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964; CRUZ COSTA, João. Contribuição à História das Idéias no
Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967; SALES, Alberto. A Pátria Paulista. Brasília:
UNB, 1983; ADDUCI, Cássia Chrispiniano. A “Pátria Paulista”: o separatismo como resposta à crise
final do Império. Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2000; e, MARTINS, Wilson. História da
Inteligência Brasileira. 3.ed. v. 4. Ponta Grossa: UEPG, 2010.
105
108
MOLLO, Helena Miranda, SILVA, Rodrigo Machado da. Diogo de Vasconcelos e a “oficina central
do pensamento”. In: ROMEIRO, Adriana, SILVEIRA, Marco Antonio. (orgs.) Diogo de Vasconcelos: o
ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
109
Conforme observou Antonio Celso Ferreira, o IHGSP imprimiu gratuitamente a sua Revista nas
oficinas da Imprensa Oficial entre os anos de 1902 e 1915. Depois de 1915 a Revista do Instituto seria
impressa por conta própria. Cabe mencionar que o volume XVI da Revista, relativa ao ano de 1911 e
publicado em 1914 foi impresso na cidade francesa de Tours. É nesse volume que se encontra o ensaio de
Afonso Taunay intitulado ‘Os princípios geraes da moderna critica historica’ que abordamos algumas
páginas atrás. Conforme informa Antonio C. Ferreira ao período que nos interessa, os subsídios públicos
do Governo do Estado de São Paulo ao Instituto foram interrompidos entre os anos de 1913 e 1927, o que
nas palavras do autor, curiosamente “coincide com a presidencia de Altino Arantes no Instituto (1916-
1922), simultaneamente ao exercício do governo do Estado (1916-1920).” O autor considerou contudo
que a receita permaneceu estável, talvez por “ajudas indiretas do Estado e da Prefeitura.” A epopéia
bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940). São Paulo: Unesp, 2002. As citações
encontram-se às p. 98 e 99.
106
110
IGLÉSIAS, Francisco. Reedição de Diogo de Vasconcelos. In: VASCONCELOS, Diogo de. História
Antiga de Minas Gerais. V.1. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
111
GOMES, Angela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009, p.
30.
112
Para Nilo Odália, foi sobre a estrutura racial – que ele adverte dissimular na verdade uma estrutura de
classes – que convergiram os esforços de interpretação da História brasileira. Parte significativa da
intelectualidade nacional havia feito a opção para a sociedade brasileira segundo o paradigma da
sociedade européia, no que cabia integrar na sociedade ‘branca’ os elementos que consideravam espúrios
na estrutura racial brasileira. A solução que apontavam para negros e índios era a miscigenação racial.
Ora, essa solução doméstica aparentemente tranquila para os brasileiros – face ao elevado grau de
mestiços no Brasil – não era bem aceita pela comunidade científica européia, à qual repugnava o
107
Mas esse passado interessava também pelo que poderia revelar em eventos que
descortinassem a formação da nacionalidade, na marcha errante de destemidos
sertanistas pelos sertões ignotos, no desbravamento de um território que nas narrativas
aparecia marcado pela ambiguidade, pois as serranias que desvendavam horizontes de
planícies idílicas riscadas por numerosos rios piscosos que serpenteavam as encostas
eram, na verdade, ocupados por feras e selvagens.
Porém todo esse exercício de seleção de eventos, entronização de heróis e a
conseqüente inclusão de datas em calendários cívicos passava por uma questão que
envolvia o próprio estatuto da História. Assim, não seria por mera diletância, mas sim
por uma urgente obrigação de ofício que os Institutos Históricos voltaram-se para esse
tema. Algumas páginas atrás, no intuito de associar a imagem do Diretor do Museu
Paulista, Afonso d’Escragnolle Taunay, ao labor propriamente historiográfico
apresentamos o ensaio intitulado Os Principios Geraes da Moderna Critica Histórica.
Cabe observar que ao publicá-lo – face a indiscutível relevância que o tema assumia à
época – Taunay fazia seu “ingresso quase simultâneo” 113 nos quadros do IHGB e
IHGSP.
Alguns anos antes do ensaio de Afonso Taunay, o professor Aurélio Pires
proferiu uma lição inaugural na Escola Normal Modelo de Belo Horizonte. Naquele 21
de março de 1907, o lente da cadeira de geografia, história e educação moral e cívica
discorreu especificamente sobre o estatuto da História114. Essa Escola vivia então seus
momentos iniciais, materializando uma iniciativa do Presidente do Estado, João
Pinheiro nos primeiros meses da sua administração. Na sua palestra, Aurélio Pires usava
pontos do programa de História que adotaria durante aquele ano letivo. O primeiro
desses pontos versava sobre a « importancia e interesse do estudo d’ historia na
actualidade », e o professor utilizou-se do manual Histoire de La civilization: au moyen
age et dans les temps modernes, de Joseph Crozals (1848-1915). Para esse autor –
explicava o palestrante – a «Historia é a sciencia do passado». De onde questionava o
Professor Aurélio Pires às sua assistência majoritariamente feminina: “será a historia
hibridismo racial do homem brasileiro. As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico
de Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: Unesp, 1997.
113
ANHEZINI, Karina. Correspondência e escrita da História na trajetória intelectual de Afonso Taunay.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 32, 2003, p. 52.
114
Licção de abertura de aula feita a 21 de março de 1907 na Escola Normal Modelo de Bello Horizonte.
Revista do Archivo Publico Mineiro. Bello Horizonte, v. 23, 1929, p. 181-203. Esta lição integra-se a
mais duas proferidas em datas diferentes – a saber na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte nos anos
de 1913 e 1914 como aula da cadeira de toxicologia visando a formação de farmacêuticos – portanto com
finalidades estranhas a esse estudo.
108
uma verdadeira sciencia?” 115 Para ele, teriam respondido afirmativamente homens
como Herder, Hegel, Buckle e Spencer. Mas então, o que seria a ciência? Na concepção
de Aurélio Pires, compreensivelmente bastante matizada pelas concepções positivistas
do século XIX, a ciência seria um corpo de doutrinas: um conjunto de princípios, em
suma, uma teoria que posta em relação a um grupo determinado de fenômenos seria
capaz de verificações e previsões certas e indubitáveis. Assim, se a Biologia, a Física ou
a Química satisfaziam tais requisitos, o mesmo não se daria com a História.
Aurélio Pires referia-se então a certo ensaio da lavra do mineiro Pedro Lessa,
professor de Direito na Faculdade de São Paulo, o qual escrevera uma monografia
intitulada « E’ a Historia uma Sciencia ?»116 Segundo Pires, o que vinha ocorrendo
seria uma “transformação estupenda, uma revolução profunda no estudo dessa matéria;
mas tal revolução só alterou os methodos de narração e descripção do lado visível e
palpavel da historia: homens, sociedades, acontecimentos e civilizações.”117 Com isso,
o campo de visão dos historiadores havia se alargado e fenômenos que antes escapavam
à percepção, tais como as legislações, as línguas, as religiões, literaturas, costumes,
flutuações salariais, educação e criminalidade passaram a ser objeto de estudo. Contudo,
alertava Aurélio Pires, a História não conseguira ir além do mundo visível das formas,
pois descrevia, mas ainda não explicava.
Funcionaria portanto a História como a parte descritiva de uma futura ciência,
pois faltariam ‘leis’ para ela. No entanto, alegava o professor, faltariam às chamadas
ciências stricto sensu o interesse que a História vinha na atualidade despertando nos
homens, pois eram esses ao mesmo tempo, seu sujeito e objeto. Assim, o objeto da
História não seria uma mera abstração, mas o mundo real, em sua totalidade! Dessa
forma, teria que ser dada atenção para as relações da História de um povo com sua
educação, o que equivaleria dizer que o conhecimento do passado desse povo,
ministrado corretamente, poderia dentro de certos limites, mudar as condições sociais
desse povo. Lembrava Aurélio Pires que a Antiguidade conhecera de certo modo essa
verdade, e Lutero com grande autoridade a havia proclamado. E se o princípio
115
Licção de abertura de aula feita a 21 de março de 1907 na Escola Normal Modelo de Bello Horizonte.
Revista do Archivo Publico Mineiro. Bello Horizonte, v. 23, 1929, p. 184.
116
Ibidem, p. 184.
117
Ibidem, p. 185.
109
ciceroneano da história mestra da vida não podia mais ser aceito pela “moderna sciencia
como uma definição, ‘nem por isso deixa elle de ser eminentemente verdadeiro’.” 118
Nesse sentido, conjurar crises, conhecer mecanismos (sic!) do desenvolvimento
histórico dariam vantagens e poderiam livrar os estudiosos da História de embaraços,
por conter tais conhecimentos as soluções já sancionadas pela experiência. Alguns
meses após essa palestra, o professor Aurélio Pires comparecia às reuniões que
materializariam a criação do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Então
como vimos, a discussão sobre o estatuto da história não era apanágio do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. No entanto se faz incontornável visitar a contribuição
deixada por um dos ilustres acadêmicos daquela ‘Casa da Memória’. Será através do
ensaio do dr. Pedro Lessa que tentaremos dar termo à nossa problematização acerca do
estatuto da História no âmbito dos Institutos Históricos abordados por esse estudo, e
talvez inquirir pelos autores aos quais remete, ou seja, saber a quantas andavam as
leituras dos mestres da historiografia internacional no recinto do IHGB, afinal de contas
a sua revista de circulação ininterrupta era lida nos institutos históricos estaduais.
Conforme já mencionado na palestra do professor Aurélio Pires, o dr. Pedro
Augusto Carneiro Lessa (1859-1921), nascera na cidade do Serro, em Minas Gerais119.
Morando em São Paulo, Pedro Lessa foi proposto para ingresso no IHGB no ano de
1901, na condição de sócio correspondente. Fora deputado constituinte paulista e já
exercera o cargo de chefe de polícia, sendo autor de importantes trabalhos jurídicos e
literários120.
Em 1907, Lessa seria nomeado para o Supremo Tribunal Federal (STF) – aliás
seria o primeiro negro a ser ministro do STF 121 – e ocuparia ainda o cargo de
Procurador Geral da República. Em 1910 conseguiu eleger-se para a Academia
Brasileira de Letras. Na capital federal tornou-se um dos entusiastas da Liga de Defesa
Nacional, juntamente com o poeta Olavo Bilac e Miguel Calmon, sendo presididos por
Rui Barbosa122. Pedro Lessa era leitor de Varnhagen e João Francisco Lisboa. Para a sua
118
Licção de abertura de aula feita a 21 de março de 1907 na Escola Normal Modelo de Bello Horizonte.
Revista do Archivo Publico Mineiro. Bello Horizonte, v. 23, 1929, p. 188. (grifo nosso).
119
GOMES, Angela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009.
120
Idem, Ibidem, p.32.
121
MOLLO, Helena Miranda, SILVA, Rodrigo Machado da. Diogo de Vasconcelos e a “oficina central
do pensamento”. In: ROMEIRO, Adriana, SILVEIRA, Marco Antonio. (orgs.). Diogo de Vasconcelos: o
ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
122
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 170-173; e, GOMES, Angela de Castro. A República, a História e o IHGB.
Belo Horizonte: Argumentum, 2009, p. 33.
110
123
GOMES, Angela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009,
p.32.
124
LESSA, Pedro Augusto Carneiro. Reflexões sobre o conceito de historia. Revista do Instituto
Historico e Geographico Brasileiro. Rio de Janeiro, t.69, n.2, 1908, p. 193-285. Para Angela de Castro
Gomes (2009:34) a alteração no título realizada pelo IHGB, suspendendo a pergunta direta sobre a
cientificidade da história por algumas reflexões sobre o seu conceito, tinha a ver com o tipo de resposta
dado por Lessa à questão proposta no título. Teria também a ver com a lógica de construção do texto de
Lessa e com sua leitura de Buckle, um autor então muito influente que fora traduzido há pouco para o
português.
125
LESSA, Pedro Augusto Carneiro. Reflexões sobre o conceito de história. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, T. 69, n,2, 1908, p.199.
111
126
Conforme observa Júlio César Vitorino, o historiador antigo não era um pesquisador científico, mas
antes de tudo, um escritor. Assim, a história designava um termo literário importado aos gregos, sendo a
matéria histórica as res gestae, o que equivaleria dizer, as empresas dos homens ilustres. O gênero
historiográfico na literatura latina compreendia algumas subdivisões baseadas em características
intrínsecas e extrínsecas de cada obra. Assim, haveriam os annales, as historiae, as monografias, as
biografias, os exempla, os comentarii e os epítomes. Ver: Tito Lívio (59/64 a.C. – 17 d.C). In: PARADA,
Maurício. (org.). Os historiadores clássicos da História. v.1.: de Heródoto a Humboldt. Petrópolis: Vozes,
2012.
127
Na realidade, segundo Skinner, o estudo do direito romano renascera nas universidades de Ravena e
Bolonha, em fins do século XI, quando o código civil romano passou a servir de base na qual se
enquadravam a teoria e a prática da lei por todo o Santo Império Romano. Os juristas começaram a
estudar e glosar os textos antigos, considerados o princípio cardeal para a interpretação da lei, no que
seguiam com fidelidade absoluta ao Código Justiniano. Mas com isso ficava demonstrado que o Santo
Imperador romano seria o senhor único do mundo. Na defesa dos interesses de liberdade das cidades
italianas em relação ao Imperador, coube aos ‘pós-glosadores’ tais como Bartolo de Saxoferrato e Baldo
avançar na idéia da legalidade de existência de vários Estados soberanos, separados entre si e
independentes do Império, idéia que caracterizaria a modernidade. Ver. SKINNER, Quentin. As
fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
128
De acordo com Newton Bignotto, Maquiavel “foi herdeiro de uma rica tradição, que combinava os
escritores gregos e romanos com os humanistas do ‘quattrocento’ que, desde Petrarca haviam-se
interessado pelos problemas históricos e historiográficos”, no entanto, sua maior dívida seria com
Políbio, ainda que tenha aderido apenas de forma parcial à forma pela qual o grego entendia o processo de
degradação das constituições políticas. Para Bignotto, Maquiavel utilizou as contribuições do autor da
112
Discurso sobre a história universal. Pedro Lessa considerou então ser a filosofia da
História de Bossuet uma mera articulação entre preconceitos e incongruências, pois a
seu ver, nada seria mais absurdo do que tentar conciliar o livre arbítrio com o
providencialismo.
Teria então sido Vico, com sua ‘Scienza Nuova’, o fundador da filosofia da
história? Observa Lessa que muitos assim distinguiam a Vico: as nações passariam de
forma eterna e necessária por três idades, a saber, a divina, a heróica e a humana. De
três espécies de naturezas, derivariam três espécies de costumes, que produziriam três
espécies de direito natural, que por sua vez, dariam origem a três espécies de governo.
Pela lei dos ricorsi, a idade média teria repetido a idade antiga, e Vico se esforçara para
mostrar uma minuciosa comparação entre eventos antigos e medievais. Os fatos
históricos seriam na concepção do autor de ‘Scienza Nuova’, o produto de dois fatores.
O primeiro desses, a ação dos homens. O segundo, a intervenção da Providência, que
seria superior, e muitas vezes contraria a vontade humana. Na teoria de Vico, adverte
Lessa, acaba não havendo lugar para o fatalismo e nem para o acaso. E se os homens
são dotados de livre arbítrio, os mesmos fatos se repetem, produzindo com isso, de
forma regular, os mesmos efeitos.
Mas se Vico não teria conseguido extrair as leis dos fatos históricos, poderia ser
considerado, no entendimento de Pedro Lessa, um precursor de Hegel na filosofia, o
qual defendia que o real e o ideal seriam duas manifestações de uma razão absoluta,
bem como de Niebuhr na história, defensor da idéia da qual a história seria a narração
dos contínuos e ininterruptos movimentos do homem. Iluministas como Voltaire,
Montesquieu e Condorcet haviam se revelado, a considerarmos a avaliação de Pedro
Lessa, excelentes na arte de destruir antigas concepções acerca da história, mas
incapazes de uma construção sistemática. Diferentemente desses, encontramos Herder,
um espírito religioso que não admitia o providencialismo na história, considerado pelo
autor como tendo produzido com sua ‘philosophia da historia da humanidade’, um
subsídio às tentativas de criar uma filosofia da história129. Pedro Lessa alerta no entanto:
‘Historia’, expondo-as sobre um processo ‘natural’ que aproximava as fraquezas humanas ao caráter
cíclico das constituições políticas, daí a importância em seu pensamento da virtù que exprimindo a
capacidade de agir no interesse público, deveria opor-se à corrupção que engendraria a queda dos regimes
políticos. Maquiavel Republicano. São Paulo: Loyola, 1991. Ver ainda: SKINNER, Quentin. Maquiavel:
pensamento político. São Paulo: Brasiliense, 1988, especialmente o cap. 4: O historiador de Florença. De
acordo com Skinner, Maquiavel – assim como seus contemporâneos estava voltado para os historiadores
e moralistas romanos como Tito Lívio, mas também para Cícero, Diógenes, Laércio e Salústio.
129
Trata-se do texto ‘Ideias para uma filosofia da história da humanidade’, considerado como a mais
completa expressão da filosofia da história de Herder. Para Herder e suas críticas aos iluministas, aos
113
haveria falta de precisão nos conceitos de Herder de algum vínculo que viesse ligar as
partes do todo. A avaliação que o autor realiza da obra de Herder não prescinde de
algumas linhas. Essas acabam revelando não somente traços da sua noção de história,
mas também de sua visão de mundo,
“Toda a historia da humanidade, diz Herder, é uma pura historia natural
das forças humanas, de acções e inclinações, que dependem dos tempos e
dos lugares. O homem é um ser subordinado à natureza, e della dependente.
Herder attribue ao meio cósmico e à organização physiologica uma
influencia decisiva sobre a psychica humana. Demais, o homem não é um ser
isolado; está sujeito à lei da solidariedade; para a formação de cada um de
nós contribuem os antepassados, os mestres, os amigos, os compatriotas, a
raça com todas as suas qualidades. O factor preponderante é a natureza: mil
annos de disciplina não modificariam o caracter do negro, ou do chim; não
fariam o primeiro attenuar sua paixões grosseiras e violentas, nem o
segundo libertar-se da tradição e do habito. Foi o solo da Europa,
accidentado, coberto de bosques, cortado por numerosos rios, golphos,
montanhas e valles, que formou o espírito activo e emprehendedor do
europeu.”130
quais considerava arrogantes em virtude das explicações intermediadas pelo pensamento abstrato e
comparativista ver: GARDINER, Patrick. Teorias da História. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984;
BOURDÉ, Guy, MARTIN, Hervé. As escolas históricas. 2.ed. Lisboa: Europa-América, 2003; e,
HELFER, Inácio. Johann Gottfried von Herder (1744-1803). In: PARADA, Maurício. (org.). Os
historiadores clássicos da História. v.1. De Heródoto a Humboldt. Petrópolis: Vozes, 2012.
130
LESSA, Pedro Augusto Carneiro. Reflexões sobre o conceito de história. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, T. 69, n. 2, 1908, p. 215-216.
131
Conforme Ernest Cassirer, ao dirigir-se aos ingleses da era vitoriana com suas conferências sobre os
heróis e o heróico na história, Carlyle tivera a pretensão de estabilizar a ordem política e social. Para
Cassirer, Carlyle não era um pensador sistemático, e muito menos tentara construir qualquer filosofia da
história, pois entendia que a história seria a essência das incontáveis biografias, ou ainda, a história dos
grandes homens. Para ele, haveria história caso houvessem ações e façanhas, sendo estas cometidas por
alguém sob um impulso pessoal forte e imediato. Assim, sua contribuição mais original teria sido a
substituição de uma forma medieval de hierarquia por uma moderna – a ‘herói-arquia’ – com santos
temporais transformados – santos secularizados – sendo seu herói uma espécie de Proteu, capaz de
assumir variadas formas: deus mítico, profeta, rei, homem de letras. O mito do Estado. São Paulo: Códex,
2003.
114
extraordinário” na fala de Lessa 132. Nesse sistema, a filosofia da história seria uma
parte da sociologia. Ora, sabe-se que Comte havia dividido a sociologia em duas partes:
a estática e a dinâmica. Se a estática limitava o seu estudo às condições de existência e
permanência do estado social, abstraindo do progresso, da evolução, das modificações
pelas quais passam a sociedade – o que remete à supervalorizada ‘teoria do consensus’
ou dependência mútua dos fenômenos sociais, será a dinâmica, com suas leis de
evolução social, que interessaram a Pedro Lessa.
Comte respondera de modo afirmativo que o progresso natural consistia no
aumento dos atributos humanos em relação aos atributos animais e puramente orgânicos
do homem, influindo no domínio crescente da humanidade sobre sua própria
animalidade. Portanto, o desenvolvimento intelectual do homem passava a ser o seu
principal agente de progresso. E se por três fases (teológica/metafísica/positiva),
ensinava o filósofo francês, descortinava-se o fator mais decisivo da evolução da
humanidade, poder-se-ia – acreditava Pedro Lessa – inferir sobre a lei fundamental da
história. Poderíamos, assinalava Lessa, entender que estaria constituída a filosofia da
história?133 A isso, o autor responde negativamente, pois a reflexão sobre os eventos
históricos, desde a antiguidade aos tempos modernos levavam ao convencimento que as
idéias teológicas, metafísicas e positivas haviam sempre coexistido.
Chegava-se então finalmente a Henry Thomas Buckle. Caberia a Buckle, com
sua ‘Historia da Civilização na Inglaterra’, o papel de determinar as leis da história,
alçando-a, no dizer de Pedro Lessa, “à dignidade de sciencia, ou de constituir a sciencia
da historia”? O detalhado exame que Lessa realiza sobre a obra desse inglês revela
bastante sobre as concepções do autor de ‘reflexões sobre o conceito de história’.
Afinal, do “veredicto da história”, dos limites e da contribuição da ciência e de uma
formulação mais ampliada do conceito de civilização, pareciam depender a ‘abertura’
132
De acordo com Miguel Reale, a Faculdade de Direito de São Paulo passara a contar desde 1883, com
uma plêiade de mestres eminentes, tais como João Monteiro. Em 1890 chegavam Dino Bueno e Brasílio
Machado. A estes, em 1891, juntaram-se Pedro Lessa, João Mendes de Almeida Júnior e José Luís de
Almeida Nogueira. Assim, segundo Reale, em todas as cátedras passaram a prevalecer as diretrizes
metodológicas da filosofia positiva, a começar pelo Direito Criminal, através dos estudos de Antropologia
e Sociologia. Pedro Lessa ingressara no ano de 1888 no corpo docente, na qualidade de Professor
Substituto. Lessa formara-se junto com Alberto Salles em 1883, ambos irmanados nos ideais republicanos
e num cabedal comum de teorias. Pedro Lessa e a filosofia positiva em São Paulo. Revista da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, v. 54, n. 2, 1959, p. 12-61.
133
Para Guy Bordé e Hervé Martim a filosofia positiva na história estaria representada na obra de Louis
Bourdeau. As escolas históricas. 2.ed. Lisboa:Europa-América, 2003. Segundo observou José Amado
Mendes, Bordeau – enquanto discípulo de Comte – definiu os princípios dessa ‘escola’ na obra intitulada
Histoire et historiens. Essai critique sur l’histoire considerée comme science positive (1888). Novos
rumos da historiografia, ao longo do século XX – a História na Faculdade de Letras na Universidade de
Lisboa. Biblos. Revista da Faculdade de Letras. Coimbra, v.9, 2011, p. 71-107.
115
do futuro brasileiro, com seu clima tropical e sua população de mestiços . As leis
fundamentais da história, que na teoria de Buckle seriam quatro, ocupam o cerne da
discussão movida por Pedro Lessa,
“As leis fundamentais da historia no conceito de Buckle, e segundo elle
próprio as formulou, são as seguintes: ‘1ª – os progressos do gênero humano
dependem do successo das investigações no domínio das leis dos
phenomenos da natureza, e da proporção em que se divulga os
conhecimento dessas leis; 2ª – para que possam começar essas
investigações, é mister que exista o espírito de duvida, o qual, provocando as
pesquizas scientificas, é por seu turno alimentado por ellas; 3ª – as
descobertas assim obtidas augmentam a influencia das verdades
intellectuaes, e diminuem relativamente, não absolutamente, as verdades
moraes, porquanto estas, não podendo ser tão numerosas, são mais
estacionarias do que as verdades intellectuaes; 4ª – o grande inimigo desse
movimento, e consequentemente o grande inimigo da civilização, é o espírito
protector, isto é, a convicção de que a sociedade só póde prosperar, se o
Estado e a Egreja dirigirem os nossos passos mais insignificantes, o Estado
pela determinação do que devemos fazer, a Egreja pelo ensino do que
devemos crer’ ”134.
Desfechando suas críticas, Pedro Lessa lança a pergunta inicial: o que seria
afinal, essa noção vaga e indefinível, colocada por Buckle como sendo o progresso do
gênero humano? Tão vago, nos lembra Lessa, como a palavra civilização, que adverte,
apresentam-se não raro, como expressões sinônimas.
Para Buckle a civilização seria o triunfo do espírito sobre os agentes exteriores,
sendo o progresso um duplo desenvolvimento, moral e intelectual, referindo-se o
primeiro aos nossos deveres, e o segundo, aos nossos conhecimentos. Tomando por
base a idéia que o historiador britânico desejava traçar a lei fundamental da historia da
humanidade, Pedro Lessa entendia então que o progresso a que se referia Buckle estaria
abrangendo todas as modificações consideradas úteis, fossem essas intelectuais ou
morais, que constituíam o progresso em sentido amplo. Considerava Lessa que a lei de
Buckle teria contra si os mais eloqüentes protestos da história universal. Afinal, fosse no
Oriente, ou ainda na Antiguidade Greco-romana, as instituições políticas, a legislação, a
religião, a moral, a arquitetura, ou a música, entre outras tantas manifestações da
espécie humana, não haviam aguardado o desenvolvimento das ciências físicas para
progredir, e nem passaram a se desenvolver somente à medida que se foram
descobrindo e divulgando tais conhecimentos.
Do mesmo modo, alega Pedro Lessa, não seria menos falsa a segunda lei de
Buckle. O autor da ‘historia da civilização na Inglaterra’ havia se impressionado por
certos fatos da história da Espanha, mais precisamente pela condução fanática das
134
LESSA, Pedro Augusto Carneiro. Reflexões sobre o conceito de história. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, T. 69, n,2, 1908, p. 236-237.
116
atividades da Inquisição naquele país. Para Lessa, o espírito teológico não seria
incompatível com o estudo das leis naturais, podendo-se aduzir inclusive que os
primeiros pensadores da filosofia grega não estavam emancipados daquilo que na
terminologia de Auguste Comte, seria denominado por fase teológica.
A refutação também é o destino da terceira e quarta leis de Buckle. A moral,
considerada como o conjunto dos preceitos impostos à atividade voluntária do homem,
tendo por fim a conservação e o desenvolvimento do indivíduo e da sociedade seria sim
– conforme Lessa – suscetível de progresso, à proporção que viesse a ser aumentado o
conhecimento sobre o homem e a sociedade. Assim, sociedades mais esclarecidas, cujo
progresso científico é maior, seriam melhores, ou seja, mais justas, tolerantes e
humanas. E isso teria sido reconhecido pelo próprio Buckle. No que arremata Pedro
Lessa, “que quer isso dizer, senão que representam um aperfeiçoamento moral, que são
mais moralisadas? Como, pois, desconhecer a connexão entre o progresso moral e o
intellectual ?”135
A quarta proposição ou lei de Buckle passa a ser refutada por Pedro Lessa com
base nos fatos que se encontravam àquela época, sobretudo nos países da Europa e das
Américas. O Estado não contrariava o desenvolvimento das ciências naturais, antes
provinha sua tutela, ministrando-lhes subsídios, criando e mantendo universidades e
centros de pesquisa. Enfim, as ciências que estudavam os fenômenos físicos haviam
servido como base a Buckle no estabelecimento de critérios sob a civilização. Este
conceito, advertia Pedro Lessa, é vasto, e o estudo dos fenômenos físicos não seriam
senão uma parte dos esforços humanos no caminho da civilização. E a civilização era
mais que o progresso das ciências. O aperfeiçoamento das instituições políticas e
sociais, o cultivo dos sentimentos altruísticos, as relações morais, a educação a tornar o
homem justo, bom , tolerante fariam também parte do enorme processo ao qual
denominamos por civilização. À premissa de Buckle da qual a civilização somente teria
se desenvolvido na Europa, Pedro Lessa advertia seus leitores: “ para se poder dividir a
civilização em européa e extra-européa, fôra mister que a civilização européa fosse
autochtone”136.
Buckle carregara nas cores sobre os prodígios da natureza brasileira, sobre a
profusão da sua fauna e flora, sobre sua prodigalidade inesgotável que não deixava lugar
135
LESSA, Pedro Augusto Carneiro. Reflexões sobre o conceito de história. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, T. 69, n,2, 1908, p.243.
136
Idem, Ibidem, p.245.
117
137
Focalizando o contexto francês a partir de 1866, observou François Dosse que as revistas eruditas de
história multiplicam-se na França: neste ano surge a Revista das questões históricas, fundada por jovens
diplomados, e formulada segundo François Dosse “com o objetivo de um grande trabalho [erudito] de
revisão histórica para defender os valores do Antigo Regime e a união da Monarquia e da Igreja”. Por
seu turno, os republicanos vão se organizar, dez anos mais tarde (1876), sob a Revista histórica,
constituindo o que se denominará por escola metódica, em um quadro institucional onde a III República
encontrava-se comprimida entre o peso do Caso Dreyfus e a amputação de uma parte do território
nacional (Alsácia e Lorena). Explica Dosse que, “a comissão de redação da Revista histórica faz
trabalhar em conjunto toda uma geração mais antiga como aquela representada por Victor Duruy,
Ernest Renan, Taine ou Fustel de Coulanges e a mais jovem como Gabriel Monod, Ernest Lavisse, em
torno de um axioma, o da história como ‘ciência positiva’. Pretendendo escapar ao subjetivismo, os
promotores da revista dizem-se partidários da imparcialidade em nome da ciência e do respeito à
verdade...”. Contudo, ainda segundo Dosse, “...atrás do estandarte científico, tendências implícitas ou
explícitas despontam como evidências nesses historiadores metódicos. Eles todos aderem a uma visão
progressista da história segundo a qual o historiador trabalha e está a serviço do progresso do gênero
humano. A marcha para o progresso desdobra-se como uma cumulação do trabalho científico, numa
abordagem linear da história, enriquecida pelo aporte das ciências auxiliares – antropologia, filosofia
comparada, numismática, epigrafia, paleografia ou ainda diplomática – que dão um aspecto cada vez
mais moderno ao século 19.” Gabriel Monod, o grande articulador dos trabalhos da Revista histórica, não
via nenhuma incompatibilidade entre os objetivos científicos da sua revista, quiçá da escola que essa
perfilara, com os objetivos nacionais. Na raiz dessas considerações, Monod apontava que as fontes
arquivísticas e os trabalhos históricos estariam, desde o século XVI, presentes na base, se
considerássemos o essencial, da matriz nacional. Autônoma, a disciplina histórica deveria virar as costas
para a filosofia, desvincular-se da literatura, pois a escola metódica pensava a História “...como uma
ciência do singular, do contingente, do ideográfico em oposição à epistemologia das ciências da
natureza que podem visar à elaboração das leis, de fenômenos iterativos, logo, do nomotético.
Reencontrando a inspiração erudita e sua preocupação de crítica das fontes, Langlois e Seignobos
escrevem juntos as regras de autenticação da verdade segundo os procedimentos de um conhecimento
histórico que é apenas o conhecimento indireto, ao contrário das ciências experimentais...”. Cultuando a
crítica externa, ou crítica de erudição, e a crítica interna, ou seja, os raciocínios por analogia ou a
hermenêutica, nos explica Dosse que “os historiadores da escola metódica não eram os ingênuos pelos
quais os fazem [como os historiadores dos Annales, à frente Lucien Febvre fizeram] passar. Não se pode
dizer que eles cultivavam um fetichismo do documento e que eles negavam a pertinência da subjetividade
historiadora.” Nesse universo teria sido Numa Deny Fustel de Coulanges (1830-1889) um historiador
singular. Sobre ele François Hartog realizou um estudo ao qual denominou por ‘caso Fustel de
Coulanges’. De acordo com François Dosse, “se há um historiador cujo propósito, na maturidade da
vida, sobre a metodologia da história corresponde à ingenuidade denunciada mais tarde pelos anais, é
aquele historiador que representa uma geração mais antiga da Revista histórica...”. Coulanges envolveu-
118
se em uma violenta polêmica com Gabriel Monod, acerca de questões de método da história, contestando
as teses germanistas desposadas por Monod. Para isso, Coulanges se utilizou da revista concorrente, a
Revista das questões históricas, evidenciando com as idéias ali defendidas, “um verdadeiro culto idólatra
do documento, comparando o historiador ao químico...”. No artigo intitulado ‘Da análise dos textos
históricos’ (1887), o qual François Dosse menciona, Fustel de Coulanges alegava a necessidade de
debruçar-se sobre a análise, ação muito falada por muitos, mas por muito poucos, segundo ele, praticada.
Na opinião de François Dosse, “Fustel restringe...(...)...a prática histórica a um cientificismo reativo, a
um empenho crispado sobre os textos [para Coulanges a via real da História seria a filologia, por seu
respeito à literalidade, além de sua preocupação de levantamento exaustivo], à recusa de toda forma
literária da escritura histórica e à anulação do historiador: ‘O melhor historiador é aquele que se fixa
nos textos, que os interpreta com mais justeza, exatidão; é preciso mesmo que ele só escreva e até pense
segundo os textos’. A História. Bauru: Edusc, 2003. As citações encontram-se respectivamente às páginas
38; 39-40; 40; 40-41; 41; 42; 44; e, 45. Nas palavras de Temístocles Cezar, Fustel de Coulanges se
destacava entre os historiadores por reivindicar de modo categórico a condição de ciência para a história,
pois para o autor da ‘Cidade Antiga’, a única habilidade do historiador deveria consistir em retirar dos
documentos tudo aquilo que eles contém, sem nada acrescentar-lhes. Fustel de Coulanges. In:
MALLERBA, Jurandir (org.). Lições de História: o caminho da ciência no longo século XIX. Porto
Alegre: EdiPUCRS, 2010.
138
Delacroix, Dosse e Garcia identificam a Hippolyte Taine (1828-1893) como um dos primeiros avatares
– ao lado de Fustel de Coulanges – do método histórico, ou seja, da erudição ‘alemã’, baseada no
domínio das ciências ditas auxiliares, tais como a filologia, a paleografia, a numismática, ou a
diplomática, etc... as quais eram vistas como a única via de fundação da história. A partir da década de
1860, Taine fazia referências aos procedimentos científicos da fisiologia e da patologia, elaborando o que
esses autores chamaram por mutação científica da história. A principal obra histórica de H. Taine foi Les
origines de la France contemporaine, texto que possivelmente fora manuseado por Pedro Lessa. Ao
longo dos seus escritos, Taine fortaleceu suas convicções de que os textos literários permitiriam captar a
psicologia dos povos, fornecendo consequentemente valioso material aos historiadores. Comparava o
ofício do historiador ao do naturalista, e a ciência deveria permitir desencantar as raízes do mal coletivo.
Assim fazia associações das patologias individuais, como os instintos e as perversões, com aquilo que
considerava como pulsões coletivas, pensando talvez nas jornadas revolucionárias, na instauração do
terror revolucionário ou na ditadura da virtude. Quanto à citação de Teodor Mommsen (1817-1903), esta
revela por parte de Pedro Lessa o conhecimento de que a corrente historicista liderada por Ranke não
resumia, ao menos para uma parte dos intelectuais brasileiros, toda a historiografia além-Reno. Etienne
François observa que Mommsen especializou-se no estudo do direito romano e posteriormente na história
119
Na opinião de Pedro Lessa, não se deveria naquele momento formar uma teoria
científica sobre a evolução da humanidade, ou de prever o futuro mais distante da
espécie humana. As aspirações científicas deveriam ser limitadas ao conhecimento da
sociedade, no que estariam disponíveis duas séries de processos lógicos, entre os dois
instrumentos únicos que a ciência da época podia admitir: a indução, a generalização,
obtida pela comparação dos fatos, e a dedução, ou seja, a extração pelo raciocínio de
verdades gerais menos extensivas, compreendidas virtualmente em verdades gerais
superiores.
Em suma, alegava Pedro Lessa que as leis formavam o conteúdo de uma ciência,
e sem essas, não haveria ciência, sendo condição necessária para a existência dessa,
relações constantes de sucessão e semelhança entre os fatos. Como vemos, uma idéia de
ciência bastante ancorada nos ideais de formulação e racionalização do pensamento do
século XIX. Para Lessa, a história simplesmente colecionaria e dispunha metodicamente
os materiais, ou seja, os fatos, em cuja observação e comparação haurem em suas
induções, as ciências diversas. O método descritivo aplicado pelos historiadores seria
um excelente instrumento para a aquisição de verdades gerais da sociologia. Em suma, a
história não teria um conteúdo científico próprio, o que equivaleria dizer, leis do seu
domínio, induções, princípios e deduções que lhe fossem peculiares, ou generalizações
que dela fizessem uma ciência.
Ao que nos parece escapara a Pedro Lessa acerca da discussão do estatuto
científico da História dois pontos fundamentais para o nosso estudo. Um deles seria
uma disputa política no seio da nação francesa que conseguira separar
irreconciliavelmente historiadores em campos opostos. Esse antagonismo fazia da
Revue de Questions Historiques (RQH) e da Revue Historique (RH) espécies de
quartéis-generais das forças em choque.
Se a RQH expressava a opinião católica e monarquista, e depois da derrota em
Sedan (1870), do legitimismo e do ultramontanismo, o grupo de historiadores que
romana, prosseguindo na linha do realismo crítico que fora aberta por Niebuhr, mas ultrapassando a esse
quanto ao rigor do método e rara expressão. Tais habilidades viriam a lhe dar o Prêmio Nobel de
Literatura no ano de 1902. Mommsen esforçou-se em produzir uma história total, onde utilizava-se de
conhecimentos como a jurisprudência, a filologia, a história literária, a arqueologia e a epigrafia. Na
opinião de E. François, suas explicações eruditas ainda mereceriam confiança. Aspecto importante
ressaltado por Etienne François seriam as convicções liberais de Mommsen, materializadas tanto na sua
obra, quanto nas suas severas críticas formuladas às estruturas militares e aristocráticas do II Reich.
DELACROIX, Christian, DOSSE, François, GARCIA, Patrick. Correntes históricas na França: séculos
XIX e XX. Rio de Janeiro: FGV, 2012; e, FRANÇOIS, Etienne. Mommsen. In: BURGUIÈRE, André.
(org.) Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
120
gravitava pela RH, que contava com Gabriel Monod e Ernest Lavisse e associara-se à
terceira república francesa, tinha como plataforma de ação a institucionalização dos
estudos históricos e da profissão de historiador139. Na opinião de Bourdé&Martin a RH
assumiu posições favoráveis a governos oportunistas, envolveu-se em querelas com a
Igreja católica, monárquica e ultra-montana e defendeu uma concepção de escola laica,
gratuita e obrigatória 140 . Os dividendos editoriais mais festejados dessas lutas talvez
tenham sido o célebre Petit Lavisse e a monumental Histoire de France.
Ao que nos interessa mais de perto, as preleções de Coulanges para a escrita da
história ganhariam terreno junto a historiadores católicos, como veremos em capítulos
seguintes desse estudo. Em relação à Introdução aos Estudos Históricos, de
Langlois&Seignobos, esperamos que tenha ficado visível que a obra tornara-se uma
espécie de consenso metodológico entre os historiadores.
Outro ponto para nós fundamental é a percepção da passagem de um modelo
literário e romântico para o modelo metódico, mudança que não assumiria a forma da
‘revolução científica’, valeria dizer, de uma mudança total e rápida de paradigma, mas
que no entanto iria impor-se progressivamente. No modelo literário-narrativo cabia ao
historiador dotar de vitalidade certo passado, o fazendo no entanto através da captura de
um determinado ‘presente’ do passado. Nesse viés de recuperação dos tempos pretéritos
o historiador utilizava-se das técnicas presentes na literatura – tomando como modelo
obras de autores como Walter Scott – para fugir de um tipo de história que seria uma
mera enumeração de altos feitos e célebres datas.
A instituição do método histórico alemão foi uma continuidade da tradição
erudita do século XVIII, tendo sido redefinido por Wilhelm von Humboldt (1767-1835),
fundador da Universidade de Berlim (1810). Ele escreveu em 1821 ‘As tarefas do
139
Segundo François Dosse, para aqueles historiadores que ao início da década de 1870 apontavam para a
Alemanha como uma espécie de terra prometida da História, Fustel de Coulanges retrucava dizendo que o
método o qual chamavam de alemão seria francês há dois séculos. A referência seria a personagens como
Jean Mabillon (1632-1704), da ordem de São Bento. Mabillon enunciara regras precisas que teriam
permitido distinguir peças falsas daquelas autênticas, fundando a diplomática científica. De acordo com J.
Glénison, a criação da Ecole des Chartes em 1821 passou a representar a tradição acumulada pelos
franceses no terreno da erudição. Em fins do século XVIII, cabe acrescer, os beneditinos de São Mauro e
a Academia das Inscrições e Belas Letras haviam conduzido a França a um elevado patamar no campo da
crítica, interpretação e exploração de documentos. No despertar do século XX haveria uma espécie de
partilha de competências na historiografia francesa entre a Escola Normal Superior, sob o báculo de
Ernest Lavisse e a erudição, onde reinavam os alunos das Ecole des Chartes. Essa partilha apareceria
também simbolicamente, na famosa Introduction aux études historiques (1898), cuja redação foi
partilhada por Charles Seignobos, oriundo da Escola Normal, e pelo ‘cartista’ Charles-Victor
Langlois.Cfe.: BURGUIÈRE (1993); BOURDÉ&MARTIN (1993);e, DELACROIX, DOSSE, GARCIA
(2012).
140
BOURDÉ, Guy, MARTIN, Hervé. As escolas históricas. Lisboa: Europa-América, 1993.
121
141
DELACROIX, Christian, DOSSE, François, GARCIA, Patrick. Correntes históricas na França:
séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: FGV, 2012. Cabe observar com os autores que das 149 notas de
rodapé da Introduction aux études historiques de Charles-Victor Langlois e de Charles Seignobos, 33%
remetiam a publicações alemãs.
142
Alguns meticulosos levantamentos preparados de maneira competente para trabalhos que nos
antecederam demonstram via-de-regra a freqüência de certos temas no âmbito dos Institutos, porém às
vezes o percentual das ‘frias’ estatísticas não dão conta de revelar os pontos de convergência entre uma
necessária plausibilidade científica – o passado dotado de sentido a partir das orientações dos problemas
daquele presente e da prática social naqueles Institutos, a função que o conhecimento produzido teria
naquele presente, bem como o espaço sociocultural no qual aquele conhecimento era produzido – com os
cânones seguidos pela historiografia regional mineira e paulista durante a Primeira República, aspecto
que guardava sintonia com suas identidades regionais. Ver. DIEHL, Astor Antonio. Cultura
historiográfica: memória, identidade e representação. Bauru: Edusc, 2002; e, FERREIRA, Antonio Celso.
A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940). São Paulo: Unesp, 2002.
122
143
BOSCHI,Caio. Convicções e coerências de um cultor de Clio. In: ROMEIRO, Adriana, SILVEIRA,
Marco Antonio (orgs.) Diogo de Vasconcelos: o ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
144
Historiografia Mineira: esboço. Belo Horizonte: Itatiaia, 1959.
145
Reedição de Diogo de Vasconcelos. In: VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga das Minas
Gerais. V.1, 4.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p. 19. Quanto aos fundamentos dessa afirmação,
Francisco Iglésias apontava para “o gosto da evocação do passado, certo culto ou respeito ao vivido, com
minúcias descritivas de quem tivesse presenciado a cena, que apresenta como fazem os ficcionistas,
chegando a diálogos.”
146
Sua História Média de Minas Gerais viria a lume somente em 1918. De acordo com Oiliam José,
estavam nos planos do historiador marianense escrever uma História Moderna de Minas Gerais, assim
também como uma História Contemporânea. A propósito da História Média, conforme observou
Francisco Iglésias, cabe destaque ao terceiro capítulo da segunda parte do livro, intitulado por ‘Motins do
Sertão’. Sobre esse capítulo, Iglésias lembra que as lutas que ele revela atestam a constante insubmissão
que atingia a todos os setores da população, o que afirmaria a tese de José Honório Rodrigues sobre o
caráter cruento da história do Brasil. JOSÉ, Oiliam. Historiografia Mineira: esboço. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1959, p. 95; IGLÉSIAS, Francisco. Reedição de Diogo de Vasconcelos. In: VASCONCELOS,
Diogo de. História Antiga das Minas Gerais. V.1, 4.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p. 20.
147
VASCONCELOS, Diogo de. História antiga das Minas Gerais. 2. Vols. 4.ed. Belo Horizonte: Itatiaia,
1974; e, VASCONCELOS, Diogo de. As obras de Arte. In: Bi-Centenario de Ouro Preto: 1711-1911
(memoria histórica). Ouro Preto: Imprensa Official do Estado de Minas Geraes, 1911, p. 135-184.
148
MOLLO, Helena Miranda, SILVA, Rodrigo Machado da. Diogo de Vasconcelos e a “oficina central
do pensamento”. In: ROMEIRO, Adriana, SILVEIRA, Marco Antonio (orgs.) Diogo de Vasconcelos: o
ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. A expressão ‘oficina central do pensamento’
figurou no discurso de Diogo de Vasconcelos durante a sessão de instalação do IHGMG.
123
149
situando-a numa temporalidade de longa duração” . Para essa historiadora,
Vasconcelos fez a história mineira alçar vôos maiores que a retiraram do mero recorte
da história do Brasil na qual estava aprisionada. O ‘heródoto mineiro’ não desprezou as
contribuições oferecidas pelas memórias locais e pode assim desfrutar de uma tradição
memorialística que havia sido inaugurada ainda no século XVIII.
O propósito maior de Diogo de Vasconcelos talvez fosse construir parâmetros
para a escrita da história mineira articulando a essa tarefa o avivamento de um passado
que julgava tanto ameaçado quanto esquecido. Esse aspecto parece bastante presente em
seu ensaio sobre as obras de arte de Ouro Preto. É o momento no qual ele resgata a
enfática expressão dos portugueses que na era colonial chamavam a antiga capital por
“Villa Rica, a perola preciosa do Brasil”150. Na sua história antiga das Minas Gerais ele
faz ‘conviver’ homens que portam a civilização com aqueles que viviam em estado de
barbárie ou mesmo selvageria 151 . A educação jesuítica impedira que os primeiros
descobridores sucumbissem a uma semi-barbárie, e posteriormente a organização
política com vilas e câmaras articulada à centralização do poder sob os governadores
pôs fim à era dos potentados. Então, os valores da civilização puderam se afirmar.
149
ROMEIRO, Adriana. In: ROMEIRO, Adriana, SILVEIRA, Marco Antonio (orgs.) Diogo de
Vasconcelos: o ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p.15.
150
As obras de Arte. In: Bi-Centenario de Ouro Preto: 1711-1911 (memoria historica). Ouro Preto:
Imprensa Official do Estado de Minas Geraes, 1911, p.174. Nesse ensaio os laços afetivos que
Vasconcelos mantinha com Ouro Preto irmanaram-se à sua declarada religiosidade para compor uma peça
na qual a memória unia-se a um melancólico sentimento de perda por parte de Ouro Preto da sua
condição de capital do Estado, uma carga dramática ao que parece, Vasconcelos carregou pelo resto da
vida. Para ele, “...os monumentos, quaisquer que sejam, grandes ou pequenos, bem o mal acabados,
constituem por certo, o patrimonio herdado; e cada um na proporção de seu valor, ou de sua lenda,
concorre para o conjunto das tradicções, que fizeram dessa cidade o centro e o coração da historia.”; ou
ainda: “Fora de duvida, que as Bellas Artes nasceram do sentimento religioso. Os proprios palacios
reaes, cujas ruinas gigantescas deixam-se admirar no Egipto e na Assyria, tiveram sua rasão de ser n’um
regimen theocratico, em que os soberanos se impunham como personagens celestes.” Dessa forma, para
Vasconcelos, “Em Minas tambem como em toda parte a religião primeiro creou as Bellas-Artes, e só Ella
soube iniciar artistas. Assim sendo, não é para se admirar que as povoações antigas tenham se enchido
de Igrejas cada qual mais bella. Ouro Preto pode se dizer é a cidade das torres.” As citações encontram-
se respectivamente às páginas 135 e 158.
151
O devassamento do território por força das entradas de homens como Spinoza, Rodriges Caldas,
Sebastião Fernandes Tourinho ou ainda, Antonio Dias Adorno, gente possuidora de ‘grandes espíritos’,
impressionou a Vasconcelos, que defendeu que os sucessos iniciais impulsionaram as expedições
seguintes. Tempos difíceis porém heróicos no entendimento do autor, a quem repugnava o materialismo
grosseiro sob o qual eram tratadas em suas tribos as mulheres indígenas. A guerra entre os índios assumia
um caráter de voracidade brutal, nunca apaziguada. Mesmo entre os goianá, reconhecidamente mais
dóceis, nessas situações, o ‘heroísmo’ era exaltado. Energias aparentemente inesgotáveis como a de
Fernão Dias e sangue pelos sertões, como em conflitos que envolveram a D. Rodrigo de Castel Branco e
o Borba Gato pincelavam os tempos iniciais de Minas Gerais, e sob a ‘justiça’ do Conde de Assumar
pereceria Felipe dos Santos. Ver.: VASCONCELOS, Diogo de. História antiga das Minas Gerais. 2. Vols.
4.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
124
152
Durante todo o período colonial, e especialmente até meados do século XVIII, compreendido pela
época retratada por A. Teixeira Duarte, a palavra povo ou povos foi utilizada para designar o conjunto da
população que habitava uma região, sendo entendido como o conjunto de vassalos ou súditos, ou ainda, o
conjunto das ordens e corpos que mantinham com o rei um dever de obediência e lealdade. De acordo
com Luisa R. Pereira, no Império colonial português predominaram nesse período as concepções e
práticas ‘corporativas’ da sociedade de origem medieval. Havia uma hierarquia fundada numa ordem
universal imutável, onde as respectivas partes ou órgãos possuíam responsabilidades, privilégios e
deveres indispensáveis àquela organização político-social. Ao rei, cabeça dessa organização, cabia ser o
centro moral e espiritual, dando proteção e garantindo paz, harmonia, sossego e felicidade, cabendo a ele
ainda, governar com justiça e equidade, ouvindo queixas e dando solução aos conflitos. Povo/povos. In:
FERES JÚNIOR, João. Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG,
2009. Ver ainda: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no espelho: a monarquia portuguesa e a
colonização da América (1640-1720). São Paulo: Hucitec, 2002; e, FILHO, Rubem Barboza. Tradição e
artifício: iberismo e barroco na formação americana.Belo Horizonte: UFMG, 2000.
153
A historiografia mais recente trabalha em um contexto de ‘Antigo Regime’, o que segundo Maria
Fernanda Bicalho consiste na adoção do conceito de Império visando à compreensão do conjunto de
relações que deram vida à dinâmica ultramarina portuguesa nos tempos modernos, priorizando relações
entre centro e periferia, poder central e poder local, a noção de redes, etc. Os historiadores que atuam sob
tais perspectivas costumam utilizar um arcabouço teórico explicitado sob a forma de conceitos
sofisticados, tais como os de “Império Colonial Português”, “Antigo Regime nos Trópicos”, “Redes
125
episódio que por seu aparente inusitado parece ter despertado a atenção de Teixeira
Duarte foi a ‘execução’ “em effigie [do] audaz rebelde” Domingos Rodrigues do Prado,
por ordem do Ouvidor de Ribeirão do Carmo, Bernardo Pereira de Gusmão, em
Pitangui154. Quanto à ‘Sedição de Villa Rica’, o autor nomeia os líderes deixando claro
que estes pertenciam à elite local: um mestre de campo, um sargento mor, um ex-
ouvidor, um doutor, padres. A esses ‘cabeças’ juntara-se “o tribuno e agitador popular
Felipe dos Santos Freire, o mais desambicioso e leal dedicado à causa do povo e da
justiça” e ainda para o autor, o “único dos cabeças, verdadeiramente identificado com a
revolução, pela causa do povo.”155
A “atrevida intimação” alcançou o Conde de Assumar no Ribeirão do Carmo
em 2 de julho de 1720, para onde os amotinados levaram presos os camaristas de Vila
Rica. As exigências se faziam em torno da suspensão das casas de fundição, dos
arbitrários processos de extorsão fiscal e o pleno indulto quantos aos meios pelos quais
buscaram justiça. Ao conde de Assumar coube a tudo ceder, “com a mais refinada
hypocrisia, refreando embora com solércia, as amarguras de tão insólita humilhação,
que lhe dilacerava a alma, toda feita de cavilação e astucia.”156 Faltara aos revoltosos
“uma cabeça directora, fleugmatica e perspicaz”157, e assim caíram vítima da desforra
arquitetada pela felonia do Conde de Assumar, que consegue prender e executar
sumariamente a Felipe dos Santos. As ligações entre as malfadadas sedição de 1720 e a
conjuração de 1789 estavam então construídas, e Antonio Teixeira Duarte podia
finalmente concluir seu texto, aproximando naquilo que considerava como uma
regeneradora lição de civismo, seus decantados heróis, pois,
“Quando os revolucionários triunfam, as lições contra o dispotismo são
imediatas e positivas, todos as compreendem; porèm quando os planos e os
sonhos de liberdade fracassam, só muitos tempo (sic!) passado è que vamos
aprender nos feitos e na abnegação dos seus corifêus. São os dois casos
typicos de Tiradentes e Felipe dos Santos.” 158
rebelião. Assim, se os donos do poder representam seu teatro de majestade, superstição, poder, riqueza e
justiça sublime, aos pobres cabe encenar seu contrateatro, e ocupar o cenário de ruas e mercados,
empregando o simbolismo do protesto e do ridículo. NEGRO, Antonio Luigi, SILVA, Sérgio (orgs.).
E.P.Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Unicamp, 2001.
155
Sedição de Villa: 1720 (Felippe dos Santos Freire), p. 579 – 580.
156
Ibidem, p. 580.
157
Ibidem, p. 581.
158
Sedição de Villa: 1720 (Felippe dos Santos Freire), p.586.
159
FERREIRA, Antonio Celso. A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-
1940). São Paulo: Unesp, 2002, p. 114.
127
até um pouco mais além – os trabalhos estampados nas páginas da Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo (RIHGSP) tomando por base modelos recentes de
escrita da história, pois àquela época os aspectos narrativos bem como os recursos
retóricos e figurativos se faziam sob características discursivas tradicionais, sendo que o
olhar historiográfico então vigente – ao qual nos acostumamos, por influência dos
Annales, a rotular como positivista – tratava tanto de monumentalizar o documento,
quanto de submetê-lo à crítica externa e interna, julgando-se que assim se obteria a
verdade160. Dois artigos da lavra de Antonio de Toledo Piza (1848-1905), a saber, ‘A
Expulsão dos Jesuítas em 1640’ e ‘A miseria do sal em S. Paulo’, publicados na
RIHGSP respectivamente nos anos de 1898 e 1899, nos oferecem algumas achegas
acerca das estratégias para a constituição da identidade paulista, cujos arcanos teriam se
originado coevos à própria fundação do Instituto.
Nossa sugestão é que a digna e decantada pobreza dos paulistas durante o século
XVII – época na qual São Paulo seria uma economia marginal da Colônia – teria
servido como argumento no âmbito do IHGSP para justificar a origem da escravidão
indígena, e consequentemente o avanço sob as reduções jesuíticas, então localizadas em
possessões espanholas. Essas ações de desbravamento do território por sua vez teriam
sido possíveis graças ao providencial encontro entre portugueses e índios de origem
tupi. Reunidas as característica de disciplinados guerreiros cristãos à resistência de
índios bravios surgiram homens aos quais Auguste de Saint Hilaire, ao início do século
XIX, acreditara pertencer a uma ‘raça de gigantes’161. Esses homens independentes e
160
Idem, Ibidem, p. 116-117. Na opinião desse autor, que nos parece alinhada com as proposições de
Hayden White, os documentos passaram a receber um tratamento cuidadoso, não obstante servissem
como uma forma de “atestado a enredos e substâncias históricas prefiguradas.” Dessa forma a escrita
ficava presa a modelos de retórica e sob uma capa literária que seria típica, segundo o autor, do universo
intelectual oitocentista no Brasil. Cabe lembrar ainda que o historiador típico dos Institutos – entre os
quais os do IHGSP, que mantidas suas especificidades regionais, não seriam exceções – deveria transitar
com fluência por diferentes domínios intelectuais, ser considerado um pesquisador sério, não se deixando
portanto seduzir por preconceitos apaixonados, além de possuir uma sempre estimada bela oratória. Sobre
as influências da historiografia européia já falamos de forma abundante, porém cabe registrar a
contribuição de Antonio Celso Ferreira, que em exaustiva pesquisa nas RIHGSP percebeu uma maior
incidência. em meio às poucas referências feitas, a historiadores românticos e escritores como Michelet e
Victor Hugo, a filósofos da História como Comte e Spencer, além de vagas citações a Fustel de
Coulanges. Entre os historiadores nacionais, a maior freqüência de citações coube a Capistrano de Abreu,
Varnhagen, além de alguns literatos que meio cronistas, meio poetas haviam se arriscado em narrativas
históricas nas páginas do Almanach Litterario de São Paulo, lançado por José Maria Lisboa em 1876, e
que circulou até 1885.
161
Afonso Taunay iniciou a sua obra maior reproduzindo a fala de Saint Hilaire: “Tempo houve em que
no interior do Brasil não se avistava uma única choupana, o menor vestígio de cultura, em que as feras
disputavam entre si a posse da terra. Foi então que os paulistas o percorreram em todos os sentidos.
Varias vezes penetraram no Paraguay, descobriram o Piauhy, as minas de Sabará e Paracatú,
internaram-se nas vastas solidões de Cuyabá e de Goyaz, percorreram o Rio Grande do Sul; no norte do
128
Janeiro, hospedando-se com os jesuítas ali estabelecidos, para os quais foi comunicado
o conteúdo do breve. Esses apressaram-se em publicar o conteúdo da declaração papal,
despertando a ira indignada da população que chegou a ameaçá-los de morte. Em Santos
os jesuítas tiveram seu colégio assaltado pelo povo. Conforme escreveu Toledo Piza,
“Em S. Paulo se procedeu de modo mais correcto: o povo e auctoridades
intimaram os jesuítas a se retirarem da capitania em prazo fixo, e como não
fossem logo obedecidos, renovaram a intimação por duas vezes com
prorrogações dos prazos concedidos para elles deixarem a capitania, o que
os padres fizeram depois de terem tomado todas as providencias
garantidoras das suas já valiosas propriedades e de seus direitos futuros.”164
164
Ibidem, p. 46. Em 1929, Afonso Taunay faria publicar ‘A expulsão dos jesuítas do Collegio de S.
Paulo’, precedendo o texto com um estudo sobre a obra do linhagista Pedro Taques. Para uma versão
mais atualizada do evento cabe consultar MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e
bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
165
A idéia da rochela inexpugnável serviu como reforço à auto-imagem dos paulistas que procuraram
manter sua altivez nas tratativas com o Soberano português, do qual não se consideravam vassalos, mas
arrendatários de terras na América. Os serviços que os paulistas haviam prestado ao rei de Portugal
acabaram por lhes proporcionar um aprendizado de negociação que alimentou seu imaginário político de
impermeabilidade ao controle metropolitano, e portanto, de autonomia e independência em relação à
Coroa. Nas contribuições historiográficas mais recentes a idéia de Rochela – que envolve eventos como a
Aclamação de Amador Bueno – foi tematizada por autores como: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no
espelho: a monarquia portuguesa e a colonização da América (1640-1720). São Paulo: Hucitec, 2002;
ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no coração das minas: idéias, práticas e imaginário político
no século XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 2008; e, MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e
bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
166
PIZA, Antonio de Toledo. A miséria do sal em S. Paulo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo. São Paulo, v. IV, 1898-1899, p. 279 – 295.
130
de forçar a alta dos preços, reduzindo a comercialização do produto que ficava então
armazenado.
Debalde se faziam queixas às autoridades, porém os monopolistas – seguros de
sua impunidade – mantinham-se na prática colimada, alegando que a pequena oferta do
sal na Colônia se devia à falta de transportes, pela retenção nos portos portugueses de
numerosos navios, em virtude da ação no Atlântico de corsários e piratas franceses,
inglezes e holandeses. No mais, os oficiais da alfândega de Santos passavam certidões
corretas sobre a quantidade de sal introduzido, estando o preço de venda em
conformidade com o contrato. Na opinião de Toledo Piza,
“O governo de Lisbôa, que quase sempre estava disposto a se contentar com
quaesquer desculpas, acceitava estas do arrematante, que, se não eram
verdadeiras, eram muito plausíveis, e tudo permanecia no mesmo estado
anterior, continuando fabulosos os lucros auferidos pelo contractador e seus
associados e sem écho nem justiça as queixas e os soffrimentos dos
paulistas.”167
167
Ibidem, p. 282.
168
PIZA, Antonio de Toledo. A miséria do sal em S. Paulo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo. São Paulo, v. IV, 1898-1899, p. 284. Ficaria aqui mais uma vez sugerido contemplar como
base conceitual os estudos de Thompson sobre as resistências populares, tomando novamente em
consideração os limites de sua aplicação para o mundo ibérico em geral e uma sociedade colonial e
escravista em particular. Os motins populares são explicados por Thompson como reação a uma resposta
ao mal estar conjuntural, motins que não podem ser reduzidos ao seu aspecto econômico, mas estudados e
compreendidos sob uma ótica mais abrangente, a qual inclui, inclusive, a esfera econômica. O conceito de
“Economia Moral” ou “Modelo Paternalista”, aparece como a condenação da comunidade à economia de
mercado livre, que baseada exclusivamente no lucro, teoricamente acabava resultando na escassez de
mercadorias consideradas vitais para certa comunidade, com sua consequente alta de preço. Em situações
como esta, a comunidade tenderá a voltar-se para o controle da produção, colheita e especialmente da
comercialização desses gêneros para proteger seus interesses de consumidores.Como o conceito de
economia moral, outras noções igualmente importantes, aparecem, sendo um deles a categoria consenso
comunitário. Esta engloba princípios compartilhados no seio de uma comunidade, sugerindo uma idéia de
coesão e união que às vezes pode aparecer como legitimante das ações violentas perpetradas. Ver:
131
Nos anos de 1905 e 1908 vinham a lume dois artigos da lavra do engenheiro
baiano Theodoro Sampaio (1855-1937), intitulados ‘A fundação da cidade de S. Paulo’
e ‘A propósito dos guayanazes da capitania de S. Vicente’, textos que envolviam o mito
da origem da sociedade paulista. Afinal, se da fundação de São Paulo dependera a
conquista do planalto brasileiro e em consequência, conforme as diretrizes seguidas pelo
IHGSP, a expansão do território brasileiro e da civilização, caberia esclarecer – e se
possível de maneira afirmativa – a filiação dos guaianazes ao tronco tupi. Conforme
observou John Manuel Monteiro, desde o século XVIII haviam afirmações que faziam
crer que os guainazes seriam tupis, porém na última década do século XIX surgiu em
meio ao debate a sugestão de que os guaianá da documentação antiga seriam na verdade
tapuias, uma ‘raça’ indígena que era então desprezada pela ciência moderna e pelos
defensores do progresso. Seriam então os guaianás remotos ancestrais dos modernos
Kaingang?169
A polêmica era extensa e segundo J. M. Monteiro, começara meio ao acaso em
1888, por intermédio de uma memória lida por João Mendes de Almeida na Sociedade
dos homens de letras de São Paulo 170 . Daí a significação dos dois artigos que
abordamos, quando observados em conjunto. Assim, entre 1905 e 1908 ao menos nos
aspectos então tidos como mais urgentes, ao que parece Theodoro Sampaio conseguiu
de maneira hábil, emprestar certa moderação às discussões no interior do IHGSP, pois
durante o período compreendido por nosso estudo, o assunto não mais voltou à pauta
das discussões estampadas nas páginas da RIHGSP171.
Com efeito, no seu artigo sobre a fundação de São Paulo (1905), Sampaio
apontava para a singeleza dos primeiros tempos de Piratininga, onde os jesuítas
reduziram índios tupiniquins, carijós, tupis e guayanazes, contando para tanto com a
colaboração das tribos de Tibiriçá e Caiubi. Para Theodoro Sampaio, não haveriam
dúvidas, eram tupis os indígenas que os jesuítas catequizaram na Capitania de São
Vicente, a cuja língua conseguiram dar gramática e vocabulário. No final das contas, se
os guaianazes não eram tupis, e sim tapuias, como haviam declarado alguns escritores
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das Letra, 2002.
169
MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias e a história de São Paulo: revisitando a velha questão
guaianá. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, n.34, nov. 1992, p. 125-135.
170
Idem, ibidem, p. 125.
171
Cabe esclarecer que no mesmo volume no qual Theodoro Sampaio publicou seu artigo de 1908, saíram
também escritos das lavras de dois dos mais apaixonados defensores da origem tupi dos guaianazes, a
saber, J.C.Gomes Ribeiro e Afonso A. de Freitas.
132
quinhentistas como o padre Anchieta, Fernão Cardim e Gabriel Soares – todos citados
por Capistrano de Abreu172 – também não eram os principais habitantes das áreas que
viriam a ser colonizadas pelos portugueses. Dessa forma ficara portanto resolvida a
querela que tanto abalara os brios de certos consócios do IHGSP173.
172
Os guaianases de Piratininga. In: Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia,
1989.
173
O fato de João Mendes de Almeida, ser maranhense, Capistrano de Abreu, cearense e Theodoro
Sampaio, apesar de sócio-fundador do IHGSP ser um não-paulista, ou melhor, um baiano participarem
ativamente da discussão apontando para os guaianazes como tapuias teria avivado mais ainda o brio dos
paulistas. Acalmada a polêmica sobre os tapuias, o discurso sobre os resultados da miscigenação entre
lusos e indígenas teve vida longa na historiografia paulista pois intimamente ligada à expansão
bandeirante. Em ensaio de fins dos anos 40, Sérgio Buarque de Holanda defendeu que a expansão
geográfica paulista se fez por obra de mamelucos plenamente adaptados ao ambiente americano, meio o
qual era hostil ao europeu. O mameluco, mestiço do branco, a raça conquistadora, com a raça
conquistada, o índio, o ‘gentio bravo’, foi o grande móvel desta expansão, e as influências indígenas que
lhe foram comunicadas vieram a tornar possíveis as grandes empresas bandeirantes; esta era a tese central
defendida pelo então diretor do Museu Paulista, que assumira o cargo em 1945, substituindo a Afonso
Taunay. Com essa versão parece ter concordado Myriam Ellis, para quem a contribuição das bandeiras
para a expansão geográfica, vinculada às reduzidas possibilidades materiais oferecidas pela modestíssima
São Paulo, situada em sítio de solo pobre e pouco profundo, sujeitara a sua população a uma agricultura
de subsistência. Neste aspecto, o predomínio da pequena propriedade, e consequentemente, a inexistência
de compromissos do homem com o latifúndio, vieram a facilitar a expansão dos paulistas rumo ao sertão.
Entendia Sérgio Buarque de Holanda que o encontro do índio com o branco deu-se de forma imediata, e a
conseqüência foi, antes que um amálgama, uma simbiose, que emprestou a Piratininga, “desde os
primeiros tempos da colonização, um colorido social inconfundível”. Dessa forma, o branco, que
atravessara o Oceano e encontrara a Serra, e além dela o sertão ignoto, conheceu no planalto da capitania
de Martim Afonso uma vocação antes no caminho que convida ao movimento, que ao sedentarismo
característico dos engenhos das Capitanias do Norte. Em conseqüência disso, seus descendentes,
legítimos ou bastardos, continham a “marca do chamado selvagem, da raça conquistada”, o que para
Sérgio Buarque, olhos postos na expansão geográfica, “não representa uma herança desprezível e que
deva ser dissipada ou ocultada, não é um traço negativo e que cumpre superar; constitui, ao contrário,
um elemento fecundo e positivo, capaz de estabelecer poderosos vínculos entre o invasor e a nova terra”.
Myriam Ellis acresceria que o sertão teria exercido sobre os paulistas dos séculos XVI e XVII, “uma
provocação, um fascínio constante”, onde o espírito aventureiro que fizera galgar a Serra do Mar passava
a aliar-se em face das reduzidas condições de subsistência, à herança biológica do arrojado povo lusitano;
na descrição da autora, um povo fisicamente forte e “pronto a adaptar-se às condições do Novo Mundo”.
Nesse aspecto, seus descendentes mamelucos, conseqüência da inevitável miscigenação ocorrida com a
população nativa, legítimos ou bastardos, seriam doravante, o combustível humano para o enfrentamento
do sertão ignoto em busca daquilo que chamavam por “remédio para a pobreza”. O historiador português
Jaime Cortesão apoiou-se largamente em textos de Sérgio Buarque de Holanda, cujos cursos teria
frequentado, justificando na plasticidade caracterizadora da ação colonizadora portuguesa, o sucesso
experimentado pelos lusitanos, os quais em sua união com as índias, acabaram tornando-se parentes da
tribo, ou das tribos, às quais passaram, pelas suas capacidades superiores, a dirigir. Para Cortesão, a
estreita aliança entre portugueses e os tupi de São Paulo, foi seguramente de base familiar. Para o autor,
se em todo o território brasileiro existia algum núcleo social, a quem, por excelência, coubesse a função
geopolítica de incorporar novos territórios ao Estado do Brasil, incumbisse o mandato natural para os
descobrir, movesse a necessidade econômica de os ocupar, e até uma suposta base jurídica para
reivindicá-los, esse era o de São Paulo, por ser núcleo essencialmente mameluco, produto – na lavra de
Jaime Cortesão – “duma feliz fusão de raças”. Índios e mamelucos na expansão paulista. Anais do Museu
Paulista. T. XIII. São Paulo: Imprensa Oficial, 1949; ELLIS, Myriam. As bandeiras na expansão
geográfica do Brasil. In: Hollanda, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo I,
v. 1., 8.ed.,1989,p.277 e 280; e, Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Cultura, 1958, p.117.
133
Afinal, assim como se faziam pactos para prover com certa estabilidade o mundo
da Política, não raro, os mesmos homens que os produziam, possuíam vínculos com os
Institutos Históricos. Nesses casos, encontramos os espaços de sociabilidade, conforme
os definiu Jean-François Sirinelli ao realizar sua análise sobre o meio intelectual175.
Os Estados de São Paulo e Minas Gerais partiriam em busca da iluminação de
temas que pretendiam dar conta da construção do território brasileiro – ainda no século
XVII (por obra dos paulistas) com a ação dos bandeirantes, ou mesmo da construção de
uma nação ‘republicana’ (como em Minas Gerais), já no século XVIII, com o evento
conhecido por Conjuração Mineira, onde era enaltecida uma suposta tentativa de
independência ocorrida em Minas Gerais .
A importância dessas temáticas mobilizou historiadores entre os anos finais do
século XIX e as duas primeiras décadas do século XX. Caberia entender que o modus
operandi da História oitocentista, ainda bastante presente nas décadas iniciais do século
XX, fazia da imaginação histórica um recurso que visava auxiliar o historiador a
articular os elementos de sua narrativa. A História dita científica dava vigorosos passos
174
Nesse sentido, Angela Alonso esclarece que o pressuposto da autonomia do campo intelectual era
duvidosa para o Brasil ainda na segunda metade do século XIX, sendo que a separação entre um campo
político e outro intelectual estava ainda em processo, mesmo na Europa. Idéias em Movimento: a geração
1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
175
Os intelectuais. In: REMOND, René (Org.) Por uma história política. 2.ed.Rio de Janeiro:FGV, 2003.
134
para autonomizar-se então, pari passu, dando continuidade ao seu ‘divórcio’ com a
Filosofia176.
Cabia no entanto, sob certos limites, dar rédeas à poética, o que equivale dizer,
que deveria se manter sob controle os elementos da faculdade imaginativa do
historiador. Se o objetivo era atingir a verdade histórica, devia-se subordinar a faculdade
imaginativa à experiência e à investigação da realidade.177
176
REIS, José Carlos. A História entre a Filosofia e a Ciência. São Paulo: Ática, 1996.
177
MALERBA, Jurandir (Org.). Lições de História: o caminho da Ciência no longo século XIX. Porto
Alegre: Edipucrs, 2010.
135
“Na nossa Historia sigo trabalhando seis a oito horas por dia,
E já estou no período de 1715 a 1750, período cuja gloria
principalmente pertence aos Paulistas, e os assumptos importantes
as províncias de Minas, Goyaz, e Matto Grosso, concluindo com o 1º
tratado de limites. O período seguinte abrangerá até o 2º tratado de
limites, isto é até 1777, e virá a compreender o reinado de elrei D. José,
e por conseguinte a administração do Marquez de Pombal. Já a História
nesta altura se emancipa dos nomes dos Governadores (às vezes obscurís-
simos) que cada trez annos se mudavam nas differentes capitanias. Esses
roes de nomes pretores os darei talvez no fim da obra para poderem servir
alguma vez à chronologia.” Carta de Francisco Adolfo de Varnhagen ao
Imperador D. Pedro II. Madrid, 7 de fevereiro de 1853.
nascia. Inspirado por esse ideal o autor procurara realizar uma abordagem objetiva das
esferas econômicas, políticas e sociais. Para essa autora, o livro de Southey ainda hoje
se trata de importante contribuição ao conhecimento da nossa fase colonial 2. Southey
preparara seu texto à luz de uma abundante documentação, tanto de textos publicados,
quanto de manuscritos.
Cabe observar porém que essa História do Brasil lançada em Londres entre
1810 e 1819 ligava-se de forma entranhada a uma ‘História da América Portuguesa,
desde seu descobrimento até o ano de 1724’, que fora publicada em 1731, texto de
autoria de Sebastião da Rocha Pita (1660-1738). Esse livro chegara às mãos de Southey,
o qual discordou da versão apresentada por Rocha Pita, apontando-lhe lacunas e
tentando dissipar-lhe erros.
Os críticos costumam considerar a ‘História da América Portuguesa’ muito
mais como uma crônica, poema em prosa ou mesmo como uma novela histórica do que
propriamente seria em termos modernos, uma história3. Contudo, nos explica Pedro
Moacyr Campos, houve uma fria acolhida ao texto de Southey no interior do IHGB. Ao
passo que Rocha Pita teria sido “respeitado – quando não seguido – pela mentalidade
predominante entre os fundadores do Instituto Histórico e Geográfico”. Afinal Robert
Southey era um estrangeiro, e além do mais protestante, que tivera a pretensão de
escrever sobre o Brasil, uma terra que afinal, não conhecia4.
Naquele momento, o que era postado sobre os atelieres dos historiadores,
constituindo-se em sua ‘matéria-prima’, compunha-se de um substancioso quanto difuso
2
DIAS, Maria Odila da Silva. O fardo do homem branco: Southey, historiador do Brasil (um estudo dos
valores ideológicos do império do comércio livre). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974.
3
José Honório Rodrigues o considerou pobre de conhecimentos, e com exceção de Gabriel Soares de
Sousa, inferior aos demais cronistas do século XVI, sendo sua fraqueza somente disfarçada pelos
requintes de estilo. Seria Rocha Pita antigentio, pró-escravidão, antijudeu, antipaulista, antiBrasil,
colonialista empedernido, discriminatório e preconceituoso. Teria tentado agradar aos poderosos,
inteiramente alienado, servindo e servil a Portugal. Nele não teria havido uma palavra de simpatia em
relação aos movimentos populares. Américo Jacobina Lacombe o achou delirante aos louvores com que
se refere à terra, seus conhecimentos geográficos seriam estranhos. Seria o Brasil um terreal paraíso, o
que tornaria Rocha Pita um precursor da corrente cognominada por ufanismo. Francisco Iglésias percebeu
nesse autor um descambamento para o preciosismo, a retórica, o discurso grandiloqüente, uma oratória
que chega à logomaquia. Sua exposição teria se perdido no hino de louvores à terra. Pedro Moacyr de
Campos viu em Rocha Pita um desejo de exibir sapiência a qualquer pretexto, segundo o gosto das
Academias literárias, como a dos Esquecidos, à qual Rocha Pita era filiado.Ver: RODRIGUES, José
Honório. História da História do Brasil: historiografia colonial (1ª parte) São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1978; LACOMBE, Américo Jacobina. Introdução ao estudo da História do Brasil. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1974; IGLÉSIAS, Francisco. Historiadores do Brasil: capítulos de
historiografia brasileira. Belo Horizonte:UFMG, 2000; e, CAMPOS, Pedro Moacyr de. Esboço da
Historiografia Brasileira nos séculos XIX e XX – apêndice. In: GLÉNISSON, Jean. Iniciação aos estudos
históricos. 3.ed. Rio de Janeiro: Difel, 1979.
4
CAMPOS, Pedro Moacyr de. Esboço da Historiografia Brasileira nos séculos XIX e XX – apêndice. In:
GLÉNISSON, Jean. Iniciação aos estudos históricos. 3.ed. Rio de Janeiro: Difel, 1979, pp. 252-258.
137
material que reunia sob um mesmo teto as biografias das elites, assim como questões
que envolviam índios, jesuítas, fronteiras, entre outros tantos temas. Mas o que faltava
efetivamente, era uma história do Brasil, obra que deveria alinhavar os pontos
inegociáveis de um programa de consolidação do Império e de afirmação da jovem
nação. Caberia aos historiadores então, lançar luzes ao passado para extrair dos tempos
pretéritos os laços de união que autorizassem a falar em nacionalidade, que
emprestassem concretude ao projeto de nação, e que viessem a dissipar, mediante o
suprimento de registros históricos, algumas dúvidas e questionamentos quanto à
legalidade das fronteiras. A materialidade dos registros históricos deveria funcionar
como fiadora de uma nação afinada com a civilização, além de servir como uma sólida
garantia para a integridade da posse do território.
Contaria o jovem Império com três principais instrumentos para uma auto-
legitimação de sua identidade, e o intuito desses era figurar a existência do Brasil
enquanto nação, desde o contato inicial dos portugueses com os primeiros indígenas,
tomados então como marcos inaugurais do surgimento da nação. Conforme apontou
Nicolau Sevcenko, esses instrumentos seriam o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, a Escola Nacional de Belas Artes e a literatura5.
Deixaremos por último o papel desempenhado pelo Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, com vistas a tratar de maneira um pouco menos detida dos dois
outros recursos desse tripé de estratégia ideológica que, conforme tentaremos
demonstrar, estava direcionado para a configuração de uma mitologia nacional: as artes
a serviço da história, e a literatura, mais independente, “mas nunca demasiado afastada
da ambiência da Corte e dos sistemas de patronato do Trono...”6.
Comecemos pela Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro. Criada
em 1826, ela foi uma espécie de desdobramento da missão artística francesa que
aportara no Brasil em 1816, e eram franceses os artistas que vieram a compor o seu
quadro docente. Após 1840, com a chegada ao trono de D. Pedro II, a Academia
tornava-se um dos eixos de sustentação da imagem da pessoa e da família do Monarca,
assim como do seu governo. Pedro II manteve estreitas relações com essa instituição,
fosse servindo como tema e modelo, fosse patrocinando a produção de obras, ou ainda,
5
O outono dos césares e a primavera da história. Revista USP, São Paulo, n.54, jun.ago. 2002, p. 30-37.
6
Idem, Ibidem, p. 33.
138
7
FONSECA, Thais Nívia de Lima e. “Ver para compreender”: arte, livro didático e a história da nação.
In: SIMAN, Lana Mara de Castro, FONSECA, Thais Nívia de Lima e (orgs.). Inaugurando a História e
construindo a nação: discursos e imagens no ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
8
FONSECA, Thais Nívia de Lima e. “Ver para compreender”: arte, livro didático e a história da nação.
In: SIMAN, Lana Mara de Castro, FONSECA, Thais Nívia de Lima e (orgs.). Inaugurando a História e
construindo a nação: discursos e imagens no ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 95.
(grifos da autora).
9
As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
10
Idem, Ibidem, p. 146.
139
11
As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2.ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, p. 146.
12
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e Nação no Brasil: 1838-1857. Rio de Janeiro:
Eduerj, 2011, p. 101.
13
Conforme esclareceu Antonio Candido, essa revista foi publicada no ano de 1836, e nos dois únicos
números que vieram a lume estavam contidos o essencial da nova teoria literária. O título completo da
publicação era ‘Niterói, Revista Brasiliense de Ciências, Letras e Artes’, trazendo ainda como epígrafe:
‘Tudo pelo Brasil, e para o Brasil’. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos
decisivos. 11.ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007.
14
RICUPERO, Bernardo. O Romantismo e a idéia de Nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
140
15
SEVCENKO, Nicolau. O outono dos césares e a primavera da história. Revista USP, São Paulo, n.54,
jun.ago. 2002, p. 33. Sobre o indianismo e a idéia do índio retratado como um herói ver: GALVÃO,
Walnice Nogueira. Indianismo revisitado. In: ARINOS, Afonso et. Ali. Esboço de figura: homenagem a
Antonio Candido. São Paulo: Duas Cidades, 1979.
16
RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a idéia de Nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins
Forntes, 2004. Caberia uma observação em relação a certa demonstração de altivez da parte de Antonio
Gonçalves Dias. Conforme explica Ricupero, era ele um mestiço, filho de pai português e mãe cafuza, e
identificado com a situação do índio e do homem livre e pobre na sociedade escravista. Mesmo à margem
de uma sociedade de senhores ‘brancos’, Gonçalves Dias ousou dar mostras de não fazer questão de
receber a Ordem da Rosa, que lhe fora oferecida pelo Imperador, pelo motivo de não desejar ser
confundido com negreiros e tendeiros.
17
Maria Isaura Pereira de Queiroz apud. Lima. In: Um sertão chamado Brasil: intelectuais e
representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
141
18
Para uma análise detalhada dessa poesia e os mecanismos de invenção histórica que a animaram ver:
PUNTONI, Pedro. A confederação dos Tamoyos de Gonçalves de Magalhães. Novos Estudos CEBRAP.
São Paulo, n. 45, jul. 1996, p. 119-130.
19
RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a idéia de Nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins
Forntes, 2004, p. 160.
20
Conforme explica Ricupero, a divergência entre Gonçalves de Magalhães e José de Alencar residiria na
opinião desse escritor cearense de que para que viesse a existir uma literatura nacional não bastaria tratar
de temas brasileiros, conforme ocorreu na Confederação dos Tamoios, mas de encontrar a forma literária
que melhor expressasse a experiência da sociedade da qual provém o autor. Ainda de acordo com
Ricupero, o principal feito de Alencar consistiu em criar um mito de origem para o Brasil e para os
brasileiros. Afinal, Iracema é o nome da personagem central de um dos seus mais importantes romances,
e conforme notara Afrânio Peixoto, era um anagrama feito a partir da palavra América. De acordo com
Antonio Candido os primeiros românticos principiaram na revista Niterói (1836), consolidaram-se na
Minerva Brasiliense (1843) e despediram-se na Guanabara (1849-1855), porém apesar de continuarem
produzindo após, acabaram perdendo terreno enquanto grupo. Candido os classificou como uma ‘geração
vacilante’, denominação que Ricupero considerou apropriada. Antonio Candido reputou José de Alencar
como tendo sido o único escritor da literatura brasileira a criar um mito heróico: o de Peri. Além da
polêmica com Gonçalves de Magalhães – provocada por José de Alencar na sua juventude, como jovem
editor do Diário do Rio de Janeiro – o autor de ‘O Guarani’ enfrentaria outra no ano de 1875, dessa vez
tendo Joaquim Nabuco como oponente. Dessa vez no entanto, seriam o negro – escravo ou liberto – e o
papel a ser ocupado pela cultura africana na sociedade brasileira o foco das discussões. Assim, enquanto
Nabuco considerava a escravidão uma linha negra a limitar e comprometer a própria civilização no Brasil,
Alencar em suas ‘Cartas de Erasmo’ julgaria a escravidão um fato social necessário ao considerar que a
emancipação prematura dos escravos colocaria em risco a agricultura e a estabilidade política do Império.
VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São
Paulo: Companhia das Letras, 1991; RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a idéia de Nação no Brasil
(1830-1870). São Paulo: Martins Forntes, 2004; e, CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura
Brasileira: momentos decisivos. 11.ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007.
142
21
Acerca da constituição do pensamento histórico na vida prática, veja-se RUSEN, Jörn. Razão histórica:
teoria da história (os fundamentos da ciência histórica). Brasília: UNB, 2001.
143
22
O tempo saquarema: a formação do Estado Imperial. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1990.
23
MATTOS, Ilmar Rohrloff de. Do Império à República. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v.2,n.4,
1989, p. 163-171.
24
Idem, ibidem, p. 168.
144
25
Idem, ibidem, p. 167.
26
CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro:
Campus, 1980, p. 149.
145
27
MATTOS, Ilmar Rohloff de. Do Império à República. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v.2,n.4, 1989,
p.167-168. (grifos do autor).
28
Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
29
O Romantismo e a idéia de Nação no Brasil: 1830-1870. São Paulo:Martins Fontes, 2004.
146
dizer possuir um sentimento nacional, que estaria relacionado mais com um sentimento
de propriedade da terra, que fora conquistada e reconquistada, do que de um sentimento
comum, no qual valores comuns são compartilhados no caminho de transformar a massa
heterogênea em povo, e o simples território em uma nação.
Na tarefa de ‘fazer a nação’, ou ainda, de criar um projeto de nação, ao
intelectual, e em especial, ao historiador, passa a caber o papel de suprir a ação política
com os elementos teóricos e históricos necessários à consecução dos ideais
estabelecidos no projeto de fazer a nação. Tal nação, Conforme asseverou Nilo Odália,
tem de ser compreendida, desde o seu início como uma construção histórica, em sua
essência, devendo ser sabido quais ações são possíveis e desejáveis em determinada
situação histórica, bem como em que fatores, sejam esses presentes ou passados,
conjunturais ou estruturais, nacionais ou internacionais, devem repousar os alicerces da
construção nacional. Assim, a nação ‘construída’ se afigura ao autor como “a resultante
natural tanto de uma ação pragmática como de uma interpretação pragmática da
história”.30
Parece ficar claro então que uma jovem nação não nasce espontaneamente –
como pretendiam os românticos – mas é parte da tarefa do historiador, que lhe
acrescenta ou extirpa, em artesanal trabalho, os elementos esparsos da nacionalidade em
processo de formação. Contudo, a idealidade dessa nova nação acaba circunscrita às
condições específicas da experiência histórica da sociedade nascida do sistema colonial,
experiência que “é avaliada, limitada e corrigida, no interior do projeto em gestação,
em razão da experiência histórica mais ampla e mais absorvente da civilização
ocidental.”31
Contando com populações diferentes, com culturas diferentes e em estágios
diferentes de evolução, a história da colônia é também a história da constatação de uma
superioridade que vai além da simples conquista de uma etnia sobre a outra. A história
da colônia nessa situação, se avizinha da narrativa da constatação da superioridade de
uma cultura e de uma civilização, onde as formas primitivas de civilização, vencidas,
passam a ser interpretadas como pertencendo ao estado de barbárie.
Assim, o conflito entre brancos, negros e índios, assume, além da sua natureza
racial, aspectos de um conflito entre a civilização e a barbárie, da ordem contra a
30
As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. São
Paulo: Unesp, 1997, p. 45.
31
Idem, ibidem, p. 45.
147
Conforme observou José Carlos Reis, nos primeiros anos de sua fundação, o
Império brasileiro, que lembramos, já conhecera uma abdicação em 1831, precisava
muito da história e dos historiadores. O seu futuro segundo imperador precisava dos
historiadores do IHGB para legitimar-se no poder. Talvez seja esse o momento para
tecermos algumas considerações sobre a historiografia surgida naquele tempo, no
interior do Instituto Histórico: a historiografia monarquista.
Em momento anterior desse trabalho já nos referimos às características da
historiografia de caráter conservador. De acordo com José Honório Rodrigues 33, para
caracterizarmos a historiografia monarquista bastaria um leve acento no caráter da
historiografia conservadora, ou seja, um breve ajuste de foco, onde encontramos: 1. a
justificativa do poder das classes dominantes aparecendo aliada à realeza; 2. o
reconhecimento da continuidade histórica – de Ourique ao Ipiranga – onde ao mesmo
tempo que se condena todo o inconformismo e rebeldia, elogia-se a resignação das
classes dominadas; e, 3. essa pretendida continuidade histórica acaba por reforçar a tese
na qual a independência política acaba surgindo como uma doação da dinastia.
Com efeito, para um político do Império, como Bernardo Pereira de
Vasconcelos, o pensamento conservador-monarquista acerca do mundo não seria o
movimento, mas a resistência às mudanças e transformações que se avizinhavam
sobretudo em rebeliões. Naquele momento fundador, onde podemos entrelaçar a
construção do Estado e a invenção da nação, a monarquia hereditária, onde logicamente
iremos encontrar aqueles interesses que seriam próprios do monarca e sua família,
aparecia como irmanada aos interesses nacionais. Daí, o pedido formulado por Januário
da Cunha Barbosa ao imperador-menino, D. Pedro de Alcântara, de tomar o Instituto
32
Idem, ibidem, p. 46. O autor chama atenção para os parâmetros da história a ser criada, que deveria
nascer da nossa história colonial, sendo nela explicitados, devendo ser observado contudo que suas
origens encontram-se na Europa – com tudo o que significa em termos de cultura e civilização, modelo ao
qual se apega a nova nação – modelo o qual permanece como o paradigma a ser imitado.
33
História da História do Brasil. V.2,t.1 (a historiografia conservadora). São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1988.
148
sob sua imediata proteção. E como bem afirmou Lucia Maria Paschoal Guimarães 34, o
IHGB apesar de nascer privado, fora desde o início portador de cunho oficioso. Basta
dizer que de instalações emprestadas na Sociedade Auxiliadora para o progresso da
indústria, o Instituto logo ocuparia seu lugar junto ao Paço Imperial.
Para que houvesse coerência no modelo que deveria conferir a necessária
articulação entre Estado, Nação e sociedade deveria se considerar que a nação
monarquista teria nascido de um Estado colonial, logo com a independência, tornado
representativo. José Honório Rodrigues35 explica que os princípios monárquicos foram
mais debatidos na prática brasileira parlamentar que nos textos dos publicistas. De
acordo com esse autor, dos atos do imperador e da imputação ou não das
responsabilidades ao poder moderador como chave da organização política nacional,
tudo em minúcias era discutido.
O governo monárquico representativo então fazia-se representante dos interesses
da sociedade, quando na realidade, representava os interesses de uma classe. Para
acrescer, cabe o entendimento que a imutabilidade das instituições é um princípio
monárquico, nem sempre declarado, mas sempre buscado e desejado.
Daí concluir José Honório Rodrigues que a história resultante de tal contexto,
“apresenta uma visão personalista, intitucional maculada, não popular,
continuísta. Ela não parte do povo, apesar de reconhecer que o imperador é
imperador por aclamação popular, antes que o povo submisso, baseia-se
numa forma de produção latifundiária, escravocrata e de monocultura”.36
34
O “Tribunal da posteridade”. In: PRADO, Maria Emília (Org.). O Estado como vocação: idéias e
práticas políticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Acess, 1999.
35
História da História do Brasil. V.2,t.1 (a historiografia conservadora). São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1988,p.36 e seguintes.
36
História da História do Brasil. V.2,t.1 (a historiografia conservadora), p.40.
149
Imperio do Brazil”. Afirmou José Honório Rodrigues que esse texto, que somente veio
a lume em 1863, quando finalmente foi publicado no volume XXVI da Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, teria sofrido ligeiras modificações37.
Tendo noticiado sobre as várias fontes da História do Brasil, Cunha Matos
acabava por propor três épocas, a saber: a primeira, referente aos autóctones; a segunda,
voltada à compreensão do descobrimento pelos portugueses e a administração colonial;
e, a terceira, a qual abrangeria todos os acontecimentos nacionais ocorridos desde a
independência. A pretensão de Cunha Matos, considerada em termos gerais, era que a
partir desse plano viesse a ser escrita uma história filosófica do Brasil 38.
O interesse em se preparar as diretrizes para uma História do Brasil criara um
envolvimento pessoal dos homens do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a
ponto do seu primeiro-secretário, o Cônego Januário da Cunha Barbosa oferecer, com
recursos pessoais, cem mil-réis a título de prêmio para quem entregasse ao Instituto o
plano para a escrita da História Antiga e moderna do Brasil, compreendidas as partes
política, civil, eclesiástica e literária39.
A proposta foi tão bem recebida que o grêmio, em deliberação, resolveu acrescer
mais cem mil-réis ao prêmio inicial. É fundamental que entendamos que a proposta
partia de uma instituição semi-oficial, além de ser naquele momento e por muitas
décadas adiante, a mais autorizada ao tratamento da escrita acerca dos tempos
pretéritos40.
Não obstante, a proposta deveria fornecer as diretrizes para a escrita da História
coerente aos parâmetros ideológicos defendidos pelos homens do Instituto. Era por
assim dizer, um momento de definições cujas conseqüências, conforme veremos, iriam
impactar a forma de pensar a história do Brasil ao longo de todo o século XIX e décadas
iniciais do século XX. Podemos considerar que se tratava de um momento decisivo.
37
RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil: introdução metodológica. 4.ed.São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1978.
38
A respeito do história filosófica como um dos três métodos de se fazer a história, ver HEGEL, Georg
Wilhelm Friedrich. Os três modos de escrever a História. In: A razão na História: uma introdução geral à
Filosofia da História. 2.ed.São Paulo:Centauro, 2001.
39
RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil: introdução metodológica. 4.ed.São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1978.
40
Conforme registrou Lucia Maria Paschoal Guimarães, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
visto por diversos prismas, colecionou ao longo do seu tempo de vida, alguns substitutivos ao seu nome,
tais como “Casa da Memória Nacional”, “Reduto intelectual”, “tipo de associação sábia”, “herdeiro
muito próximo da tradição iluminista” ou “guardião da história oficial”. Debaixo da imediata proteção
imperial: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). São Paulo: Annablume, 2011, p. 21. A
primeira edição é de 1995.
150
41
Von MARTIUS, Karl Friedrich Philip. Como se deve escrever a Historia do Brazil. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro. v.6, n.21. abr. 1844, pp.381-403.
151
seu aparecimento, merecerá de nossa parte acurada atenção. Ela parece ter influenciado,
salvo a questão da periodização, a Francisco Adolfo Varnhagen, o historiador de cuja
autoria é o monumento da historiografia brasileira do século XIX: a ‘História Geral do
Brasil’.
O naturalista Karl F.P. Von Martius inicia sua dissertação fazendo considerações
de caráter geral, concitando aos que se propusessem a escrever a História do Brasil que
não perdessem de vista os fatores de natureza muito diversas que concorreram ao longo
do tempo, e que convergindo de um modo particular, resultaram na formação dos
brasileiros42.
Von Martius chamava atenção para a mescla de raças havida no Brasil, a qual
resultara nas mudanças que se encontrava na população brasileira. Martius especificava
então os três grandes troncos formadores do homem brasileiro, a saber, as matrizes
indígena, lusa e negro africana, que na fala do autor, se traduzem respectivamente nas
raças ‘cor de cobre ou americana’; branca ou caucasiana; e, preta ou etiópica.
Por conta desses fatores, a história brasileira assumiria no entendimento de Von
Martius, “um cunho muito particular”43. O naturalista bávaro na sua tentativa de
apreender um movimento histórico característico e particular refere-se a uma ‘indole
inata’ das raças humanas – ‘tão diferentes’44 – que havia formado um ‘povo novo’,
ainda em nascimento, que continha por caráter intrínseco das suas particularidades
físicas e morais um ‘motor especial’, de onde o português, na qualidade de
“descobridor, conquistador e Senhor”, teria influído de forma poderosa e essencial
nesse motor, por suas garantias morais e físicas para que se pudesse formar um reino
independente.
Porém, logo esclarece Martius, era certo que,
“seria um grande erro para com todos os princípios da Historiografia
pragmática, se se desprezassem as forças dos indígenas e dos negros
importados, forças estas que igualmente concorreram para o
desenvolvimento físico, moral e civil da totalidade da
população...[pois]...tanto os indígenas, como os negros, reagiram sobre a
raça predominante.” 45
42
Martius concitava aqueles que fossem escrever a História do Brasil que ‘encantassem’ seus leitores,
mas de forma desastrosa, conforme anotado por Fernando Antonio Novais, da história havida entre
brancos portugueses, índios americanos e negros africanos deveria ser obliterada toda a forma de
dominação, exploração e conflito. NOVAIS, Fernando Antonio. Capistrano de Abreu na historiografia
brasileira. Revista da cátedra Jaime Cortesão. São Paulo, n. 1 (nova série), 1. sem. 2006, p. 229-233.
43
Como se deve escrever a História do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio
de Janeiro. V.6, n.21, abr. 1844, p.382.
44
Ibidem, p. 382.
45
Ibidem, p.382.
152
Ora, Von Martius não deixava dúvidas para quem estava escrevendo. Nesse
ponto talvez caibam maiores esclarecimentos acerca da história pragmática. Ela foi
classificada por W.F.Hegel como uma das subdivisões da história reflexiva. Reflexões
pragmáticas para Hegel pertenceriam tanto ao presente que o filósofo as considerava
como sendo histórias do passado reanimadas para a vida atual. As reflexões deveriam
então ser cheias de vida e prenhes de interesse, devendo possuir aquilo que dá à História
o motivo para ser escrita46.
Dessa forma, podemos entender que os leitores a quem Martius destinou a sua
obra são os eruditos de Clio, ou seja, aqueles eleitos a serem os apascentadores da
documentação a ser coligida e examinada, ou ainda os cultores de uma historiografia
hegelianamente filosófica, os quais devem, a priori, possuir uma visão necessariamente
holística para não menoscabar a concorrência das duas ‘raças inferiores’. A doutrina dos
tipos humanos permanentes, que segundo Michael Banton tinha conquistado na
primeira metade do século XIX, por sua concepção simples, a atenção popular, datava
da metade do século47.
Ora, se raça e classe pareciam confundidos no discurso do establismenth
saquarema, as duas ‘raças inferiores’ às quais se referia o sábio naturalista bávaro,
46
Manoel Luiz Salgado Guimarães inscreve a obra de Martius em uma cultura histórica oitocentista que
seria sinônimo de civilização, onde a história aparece enquanto discurso cronologicamente organizado e
hierarquizado dos fatos do passado. Martius seria um rebento do iluminismo abeberando-se nas águas de
pensadores como Voltaire, d’Holbach e Turgot, onde estariam presentes as temáticas das viagens, das
experiências colonizadoras, ou ainda, da diversidade das civilizações. História e natureza em von Martius.
História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v.7, n.2, jul.-out. 2000, p. 391-413.Para o
historiador Pedro Moacyr Campos, Martius certamente conheceria a obra de Augustin Thierry e teria sido
por esta influenciado, bem como pela chamada escola de historiadores liberais franceses. Um naturalista e
a História. Revista de História, São Paulo. Universidade de São Paulo, n. 87, 1971, p. 241-248. Por sua
vez, Arno Wheling propõe que no jargão setecentista, a expressão historiografia filosófica poderia estar
vinculada tanto a Kant, quanto a Hegel. A concepção histórica de Von Martius. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 155, v.385, out.-dez.1994, p. 721-731.
47
A Ideia de raça. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 14. A chamada teoria da tipologia racial data de 1850,
quando foi publicada nos EUA, o livro The Races of Men, de Robert Knox. Para esse autor, haveria um
número finito de raças, e a natureza das raças determinava as relações entre elas. Conforme essa natureza,
pretos e brancos seriam o que havia de mais distanciado entre os seres humanos. Na condição de
naturalista não poderia no entanto ser estranho a Von Martius a classificação dos tipos humanos
defendida pelo botânico sueco Lineu. Esse naturalista do século XVIII estipulara a primeira classificação
racial das plantas, e acabou sendo também o responsável, segundo José D’Assunção Barros, por uma
primeira classificação que dividia a humanidade em quatro raças: americana, asiática, africana e européia.
A esta, Lineu acrescentara valores. Então, nessa classificação ‘botânica’ da espécie humana, são
observados os humores que reconhecemos como ‘aristotélicos’, no que se considerava então os
americanos (indígenas) como coléricos, os asiáticos como melancólicos, os negros como flegmáticos e os
europeus (brancos) como sanguíneos. Por essa classificação, que segundo Barros, logo seriam ampliadas
por outros autores, “...os brancos eram os depositários da engenhosidade e inventividade ( portanto a
parte da humanidade capaz de produzir ciência, progresso, transformação e evolução), ao mesmo tempo
em que, amantes da legalidade e distanciados do preconceito, eram os condutores naturais da
civilização.” In:BARROS, José D’Assunção. A construção social da Cor. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 76.
153
48
Como se deve escrever a História do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio
de Janeiro. V.6, n.21, abr. 1844, p.383.
49
O Romantismo e a ideia de Nação no Brasil (1830 – 1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.125. (
grifos do autor).
154
reforçando a idéia de uma escravidão benigna, que teria sido diferenciada no Brasil,
onde tanto indígenas quanto negros tinham interferido mais que nos outros Estados da
América, nos destinos da antiga Colônia, bem como para a formação da nacionalidade.
Doravante dependeria, no entendimento de Martius, que o historiador
conseguisse expor com leveza e calor as razões contidas nas demandas de cada uma
daquelas raças ‘desamparadas’, do que iria ser exigida a imparcialidade, e mesmo um
sentido filantrópico e moralizante no ato de escrever.
O naturalista bávaro apontava para as dificuldades da empreitada, a começar
pela história dos índios na parte que lhes era cabida na História do Brasil. E haviam
mais perguntas que respostas, propriamente. Não se sabia ao certo da origem dos
indígenas e achava-se que eles fossem povos degenerados, ou seja, a face da ruína de
um povo que entrara em estado de dissolução moral e civil50, ideia contra a qual, Sílvio
Romero iria utilizar da sua pena quando da lavra da História da Literatura Brasileira, em
188851.
Cabia desentravar ainda a influência, recebida pelos índios, da civilização
européia, afinal de contas deviam ser conhecidos os traços de aculturação acumulados
ao longo de trezentos anos de contato com as leis e o comércio dos brancos.
Martius não perde a oportunidade de tecer críticas ao mito do bom selvagem
rousseauniano, no que o autor firmou-se em proposições nas quais os índios brasileiros
50
Manoel Luis Salgado Guimarães relacionou a visita de von Martius ao Brasil, entre os anos de 1817 e
1820 com a construção da história nacional, ao longo do século XIX. As viagens como as realizadas por
Martius, em companhia de von Spix inscreviam-se em um momento distinto da história européia,
definido argutamente por Norbert Elias como processo civilizador. Ao uso da força, da espada, deveria
naquele momento ser utilizado o poder do saber europeu sobre os outros povos, apoiado na letra e na
palavra que os define e cataloga. As viagens científicas haviam se tornado então, uma questão de Estado.
Entendidas como uma sociedade ‘sem história’, para Martius o estudo das sociedades indígenas deveria
ser feito por meio de recursos à botânica, a qual deveria servir como chave da temporalidade dessas
sociedades. Foi utilizada então a nomenclatura botânica em uso pelos tupis para concluir que aqueles
povos não se encontravam em seu estado original de desenvolvimento. Alegava Martius que certas
plantas somente tiveram seu uso e propriedades reconhecidos quando esses povos já se encontravam em
seu estado atual de decadência. História e natureza em von Martius. História, Ciências, Saúde –
Manguinhos. Rio de Janeiro, v.7, n.2, jul.-out. 2000, p. 391-413.
51
Contra as críticas negativas e contundentes de Sílvio Romero posicionou-se Arno Wehling. Romero
chamara a Martius de “obreiro da dissolução” do Brasil, quando o naturalista bávaro apenas chamara
atenção para as diferenças regionais. Além disso, a chamada ‘mistura de raças’, vista com positividade
por Von Martius, irritara ao polêmico Sílvio Romero, fundamentado na antropologia raciológica e racista
de Gobineau, Amon e Vacher de Lapouges, para os quais a miscigenação geraria apenas “bastardos
infecundos”. De acordo com Wheling, Sílvio Romero via nas idéias históricas de von Martius, três erros:
“a afirmação do reduzido número de indígenas, estes como últimos elementos da queda de uma grande
cultura e a força das instituições municipais. Via também «três lacunas de exposição»: a divisão do País
em «zonas históricas», os caminhos para o interior e a contribuição das diferentes raças para a
formação do Brasil.” Apesar dessas críticas, fazemos coro a Wheling, “Von Martius continuou referência
obrigatória”. A concepção histórica de von Martius. Revista do Instituto Histórico e Geografico
Brasileiro. Rio de Janeiro, n.155,v.385, out.-dez. 1994, p. 721-731.
155
não poderiam figurar na condição de estado primitivo do homem, mas como resíduo de
uma muito antiga civilização, no seu juízo, perdida para a História.
Daí a necessidade de cercar-se de cuidados na pesquisa. Uma análise
comparativa com os povos autóctones vizinhos, registros que poderiam estar contidos
na linguagem, de onde avultava a necessidade de produzir dicionários e gramáticas da
língua dos aborígenes. Apontava para as possibilidades de estudo da língua geral ou
tupi, falada outrora em vastíssima região do Brasil. Defendia ainda Martius que o estudo
dos cultos religiosos dos indígenas, tomados naquele momento, revelariam muito
daquilo que hoje chamamos de estrutura social, pelo conhecimento das relações do pajé,
curandeiro e chefe para a simbologia e tradições do direito entre os indígenas.
Autores como Manoel Luiz Salgado Guimarães52 e Lucia Maria Paschoal
Guimarães53 perceberam nessas demandas abertas por Von Martius a gênese de
mudanças importantes no seio do Instituto, tais como a levada a efeito a partir de 1849,
que desembocou tanto no alargamento das atividades daquele sodalício, como na
criação de campos de pesquisa para a arqueologia, a etnografia e a língua dos indígenas
do Brasil. Ora, tais medidas visavam abranger o estudo de povos sem escrita, que de
acordo com a concepção da época teriam que ser necessariamente, conforme vimos,
povos sem História. A isso, providencialmente tratou-se de substituir a SAIN como
apoio do Instituto, papel que a partir de 1851 passaria a caber pessoalmente ao
imperador.
Assim, ao lado das seções de História e de Geografia, criava-se uma terceira
destinada aos estudos de Arqueologia, Etnografia e línguas indígenas. O ano de 1851
assistiu ainda a mudança dos estatutos daquele grêmio.
Conforme afiançou Lúcia Maria Paschoal Guimarães, multiplicaram-se os
grupos de trabalho permanentes, com a introdução de comitês subsidiários nas áreas de
História e Geografia. As atividades de investigação de fontes, por sua vez, passaram
para a responsabilidade das comissões de revisão de manuscritos e de pesquisa de
documentos. Um comitê científico passou a tratar das admissões de novos sócios.
Modificaram-se, também, os critérios de ingresso, exigindo-se a comprovação de
produção intelectual, tanto para sócios efetivos, quanto para os correspondentes. Não
52
História e Nação no Brasil: 1838-1857. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011.
53
O tribunal da posteridade. In: PRADO, Maria Emília. O Estado como vocação: ideias e práticas
políticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Acess, 1999.
156
54
Koselleck, Reinhart. Futuro pasado: para uma semântica de los tiempos históricos. Barcelona:Paidós,
1993. De acordo com Koselleck, os conceitos contrários assimétricos fazem alusão a um significado
depreciativo na qualificação do outro, onde este outro sentindo-se aludido, não se sente no entanto,
reconhecido. São assimétricos os conceitos quando ajustados em sentidos desigualmente contrários, sendo
aplicados somente de maneira unilateral.
157
55
Como se deve escrever a História do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio
de Janeiro. V.6, n.21, abr. 1844, p.395.
56
Ibidem, p. 397.
158
Dessa forma, Bernardo Ricupero julga não ser difícil explicar o êxito de Von
Martius face aos interesses dos saquaremas, pois o naturalista bávaro teria elaborado
um verdadeiro programa para o pensamento conservador brasileiro, que Varnhagen logo
poria em prática59.
Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) nasceu em São João do Ipanema,
atual Sorocaba, descendendo de estrangeiros tanto do lado paterno – seu pai era um
57
Ibidem, p. 398-399.
58
Como se deve escrever a História do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio
de Janeiro. V.6, n.21, abr. 1844, p.401.
59
O romantismo e a ideia de nação no Brasil (1830 – 1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004.
159
oficial alemão contratado pelo Regente da Coroa portuguesa, o futuro D. João VI, para
restaurar e ampliar a fundição de ferro de Ipanema – quanto do lado materno, pois sua
mãe era uma portuguesa. Varnhagen esteve pouco tempo no Brasil, pois já em 1823
partia para Portugal em companhia da sua mãe, D. Maria Flávia de Sá Magalhães. Lá
iria reencontrar seu pai, que partira um ano antes, e iniciar seus estudos no Real Colégio
da Luz. Sua formação militar foi adquirida na Academia de Fortificações, onde obteria
o título de engenheiro em 1832, passando ainda neste ano para os bancos escolares da
Academia da Marinha, onde estudou Matemática.
Apesar de ter sua formação quase toda voltada para o campo das ciências exatas,
Varnhagen também realizou estudos mais voltados para a sua futura atividade de
historiador, tendo estudado Diplomática, Paleografia e Economia Política. A partir de
1835 começou a tornar mais concreta a sua paixão pela História, com suas pesquisas
sobre Gabriel Soares de Sousa, as “Reflexões críticas sobre o escrito do século XVI
impresso com o título de Notícia do Brasil”, apresentadas à Academia de Ciências de
Lisboa, da qual veio a se tornar membro em 1839.
Seus dotes intelectuais, conjugados ao reconhecimento da sua nacionalidade
brasileira em 1841, possibilitaram a Varnhagen as condições iniciais para o seu trabalho
como diplomata, ocupação diga-se de passagem, algo paradoxal quando confrontamos a
sua escrita nacionalista com suas longas estadias fora do solo pátrio. Nilo Odália,
comentarista de sua obra, percebeu em Varnhagen uma rara tenacidade que seria digna
de um erudito renascentista. Havia mais, pois além de ser alguém que acreditava no que
fazia, o visconde de Porto Seguro agiria como um romântico “...num mundo romântico”
60
, caso venhamos a entender, conforme esse autor, que o século XIX, especialmente em
sua primeira metade fora um mundo abalado por guerras e revoluções, momento no qual
nasciam as primeiras nações livres do Novo Mundo.
Nesse sentido, a opção de Varnhagen pela nacionalidade brasileira teria sido
originada – segundo Nilo Odália – “de uma necessidade vivencial e intelectual – fruto
de seu desenraizamento”61.
Passara o visconde de Porto Seguro boa parte da vida nas legações brasileiras de
Portugal, Espanha, Paraguai, Venezuela, Colômbia (então Nova Granada), Equador,
Peru e Chile, tendo contraído matrimônio nesse último país. Começara como Adido de
Primeira Classe em 1842, indicado pelo então ministro plenipotenciário do Império em
60
ODÁLIA, Nilo. Varnhagen. São Paulo:Ática, 1979,p.9.
61
Idem, Ibidem, p.9.
160
62
Varnhagen,p.13.
63
História e Nação no Brasil: 1838-1857, p.53-54. (grifo do autor).
161
Outro aspecto a marcar a História Geral do Brasil seria a sua fria acolhida no
recinto do IHGB, e para esboçar os motivos que levaram a que isso acontecesse, se faz
mister elencar as observações de José Honório Rodrigues (1965) e Lucia Maria
Paschoal Guimarães (2002). Iniciando pela contribuição de José Honório Rodrigues, um
dos pioneiros no estudo da historiografia brasileira, ficamos sabendo que no interior do
IHGB, pelos idos de 1876, quando faltavam portanto apenas dois anos para o
desaparecimento de Varnhagen, reconhecia-se como méritos do Visconde de Porto
Seguro somente sua capacidade como investigador de fontes históricas.
Negava-se assim a Varnhagen, a tomarmos como base o discurso de caráter
oficial do Conselheiro Tristão de Alencar Araripe, em sua conferência ‘como cumpre
escrever a história pátria’, o valor da História Geral do Brasil para realçar as
contribuições e acertos de Robert Southey e do Conselheiro Pereira da Silva. Para a
historiadora Lucia Maria Paschoal Guimarães, a fria acolhida que a História Geral do
64
O estamento burocrático desenvolveu-se, segundo Raymundo Faoro, para que o capitalismo estatal,
predominante em Portugal, pudesse ser exercido, e enobrecida a posse do cargo público, estando
concentrado o governo dos negócios nas mãos do próprio Rei. O estamento burocrático teria sido
originalmente formado em Portugal, pelo novo patriciado renascentista, surgido da reconquista, e uma
criação do patrimonialismo. O estamento burocrático é na definição de Faoro, uma capa social rígida,
com o exercício de privilégios jurídicos assegurados pela lei, ou pela tradição. Para Faoro, o estamento
apropria-se do poder em caráter privilegiado e monopolístico, preformando a nação e constituindo o
próprio Estado. Nessas condições, fica constituído o poder minoritário, que é autônomo, sem controle ou
firmes limitações da vontade popular. Quem o exerce são os funcionários, os militares, os clérigos e o
patronato político. Em Portugal, e para Faoro, posteriormente no Brasil, o comando lhe é assegurado pela
dinâmica material da economia, cuja regulação foi conquista do regime patrimonial e perpetuada pelo
capitalismo estatal. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro.
Porto Alegre: Globo, 1958.
65
História e Nação no Brasil: 1838-1857. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011, p. 54.
162
Brasil conheceu no interior do Instituto deve ser explicada pela prevalência que havia
naquele sodalício de uma visão romântica das origens da nacionalidade, que pretendiam
os estudiosos, ser de viés indigenista. Entre esses encontrava-se o poeta e cronista
Domingos Gonçalves de Magalhães, autor do épico ‘A Confederação dos Tamoios’,
bem como de uma intransigente defesa dos gentios, intitulada ‘os indígenas perante a
história’.
É claro que Varnhagen realizara uma tarefa enorme no sentido de buscar a
autenticidade de documentos, ou de revelar uma multidão de fatos, como nos traz José
Honório Rodrigues. Mas o problema principal nos parece, seria buscar a elucidação de
como é constituído esse paradigma criado por Varnhagen para a História do Brasil.
Arno Wehling apresenta o chamado paradigma Varnhagen como estabelecido
sob três aspectos, a saber, o seu valor científico intrínseco; o papel desempenhado pelos
escritos do visconde de Porto Seguro na criação de um determinado tipo de memória
nacional ; e, a força da obra de Varnhagen na elaboração de uma matriz explicativa para
a história brasileira. Foi a essa matriz explicativa que Capistrano de Abreu chamou de
os “quadros de ferro” de Varnhagen. A propósito dessa questão, cabe dizer que atores
sociais, dinâmica social e formação nacional são na opinião de Wehling as chaves da
interpretação de Varnhagen sobre a História do Brasil. A exposição da matéria realizada
com grande coerência interna associada a supostos teórico-metodológicos e ideológicos
se tornaria modelar por mais de um século.
Inicialmente cabe tecer algumas considerações que envolvem a explicação da
História brasileira com uma grande coerência interna, onde tomam vulto atores sociais
que podem ser os agentes mesológicos, as etnias, as instituições sociais e políticas; os
grandes personagens; e o próprio reino português.
Quanto aos agentes mesológicos cabe ressaltar a natureza hostil encontrada no
território americano. Espanhóis e ingleses tiveram maiores facilidades. Já o português
encontrou os aspectos sombrios da mata virgem, à qual varou com destemor. Varnhagen
seria algo que forçado a concordar que o meio, apesar de condicionar a vida social, não
é tudo. No caso brasileiro, a colonização portuguesa teria cumprido o seu papel
civilizador.
As etnias comparecem com desafios ao Visconde de Porto Seguro. Tanto por
este defender a preeminência branca, quanto pela existência de índios e negros na
formação brasileira. Para Varnhagen, povos sem escrita como os indígenas brasileiros,
163
Tinham o costume de manter entre si, as guerras de extermínio, motivo pelo qual
suas tribos ou cabildas, mantidas por laços sociais muito frouxos, ao invés de crescerem
em número, tornavam-se ainda mais debilitadas. As rixas eram transmitidas de filhos a
netos, predominando os instintos de vingança, não se encontrando entre eles nenhum
sentimento de abnegação em favor do interesse comum e da posteridade. Assim, os que
antes combatiam juntos, facilmente tornavam-se inimigos acérrimos. O ódio excessivo
contra os inimigos – assim julgava Varnhagen – seria o principal estímulo que os
66
Cabe no entanto acrescer que apesar do tratamento secundário destinado à matriz autóctone, a ponto de
ver-se compelido a trocar a ordem dos dez primeiros capítulos da segunda edição da HGB, Varnhagen,
apesar de detratar a religiosidade dos indígenas, sendo pouco lisongeiro quanto aos seus costumes, e além
de tudo, classificar aqueles povos no estado de selvageria, contribuiu com exposição circunstanciada
sobre o grupo de língua tupi, o que segundo Lúcia Maria Paschoal Guimarães constitui um trabalho
etnográfico cuidadoso, rico de informações. Francisco Adolfo de Varnhagen. História Geral do Brasil. In:
Mota, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, 2. 2.ed. São Paulo:Senac,
2002, p.80.
67
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 29. (a primeira edição é de 1854).
164
O Visconde de Porto Seguro deplorava, por tudo o que foi dito, a forma de vida
dos índios, acrescendo ao seu nomadismo as qualificações de bárbaro e selvagem. Não
possuindo o entendimento sobre aspectos do clima a eles tão familiares, como as
tempestades, receavam o trovão, o qual consideravam como a manifestação da ira de
Ibag ou do firmamento. Acreditavam na existência de um espírito maligno, a quem
chamavam Tupã. Encontrando-se os indígenas – utilizo das palavras de Varnhagen – na
‘infância’ da humanidade, costumavam em certas contrariedades, tomar vingança contra
tal espírito, ao disparar flechas contra o firmamento. Temiam igualmente a outros entes
dados como malignos, como o anhangá, o jeropari, o curupira e o caipora. Eram
supersticiosos e viam em várias coisas mau agouro. Os laços de família, tomadas as
medidas de Varnhagen, seriam muito frouxos: os filhos não respeitavam as mães,
temendo somente, e mesmo assim temporariamente, a pais e tios. Não havia no amor
sentimentos morais, não havendo assim, para o autor, “as delícias da verdadeira
felicidade doméstica”69
Da mesma forma não poderia se encontrar o desenvolvimento, entre tais
‘homens-feras’, da “...parte afetuosa da nossa natureza, a amizade, a gratidão, a
dedicação.”70 Favorecidos nos dotes do corpo – chorar, soltar um gemido, demonstrar
dor passavam por ação de grande covardia – eram geralmente taciturnos, comendo em
silêncio, e bebendo água quando acabavam suas refeições. Reservavam bebidas fortes
somente para as festas. Dotados de sentidos muito agudos em meio à floresta, observava
Varnhagen, seriam falsos e infiéis, inconstantes e ingratos, além de bastante
desconfiados, no que desconheciam inclusive, a virtude da compaixão.
Para o autor da História Geral do Brasil, ao olhar o Brasil sob a sua ótica
oitocentista, não possuiriam os indígenas do século XVI, os sentimentos elevados como
68
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 30.
69
Idem, ibidem, p. 48.
70
Idem, ibidem, p. 48.
165
71
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 24.
72
Idem, ibidem, p. 24.
73
Idem, ibidem, p. 24.
166
indígenas do Brasil. Dessa forma tinha como “uma quase convicção” de ter havido para
o Brasil uma grande emigração dos “...Cários da Ásia Menor, efetuada talvez depois da
queda de Tróia.”74
74
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 55.
75
Idem, ibidem, p. 150.
76
Idem, ibidem, p. 152.
167
Segundo a visão do autor, “tudo concorria a nivelar este país [Portugal] com os
outros mais adiantados nessa época [século XVI], em todos os ramos dos
conhecimentos humanos”.78 Portugal seria então um dos lócus privilegiados da
civilização. A Universidade havia sido favorecida pelo soberano, que a doou com seus
próprios paços em Coimbra, ao perceber que o tráfego da corte e o grande comércio
condizia mal com o repouso e quietação das letras. A ciência marítima era aquela na
qual Portugal mais se avantajava perante as outras nações. O pequeno reino ibérico fôra
inicialmente parte do império romano, sendo posteriormente conquistado pelos bárbaros
que cederam por fim à conquista dos mauro-árabes. De todos esses herdara instituições
e hábitos. As guerras de reconquista trouxeram as ordens militares, contando Portugal
com três: a de Cristo, a de Santiago e a de São Bento, vulgo d’Avis.
O décimo-quinto século fora todo de atividade e de invenção, como a imprensa.
Essa prestava-se a tudo, e o livre exame daquilo que respeitava a religião havia invadido
a autoridade do catolicismo. Tomado pela apreensão face à invasão das heresias, o
governo português, a pretexto de combater o judaísmo, pedia a instalação do Tribunal
da Inquisição. Varnhagen oscila sobre essa medida do governo português: se por um
lado, “Triste foi o recurso, segundo a experiência veio a mostrar”, teria contudo o
governo a necessidade “de meios heróicos – para meter nos eixos a roda da sociedade
que se desgarrava e desgalgava.”79
O autor fazia a defesa da Monarquia e o elogio da aristocracia e da nobreza
hereditária. Seus títulos representavam os serviços prestados, e a aristocracia de serviços
seria diferente daquela de sangue ou nascimento somente pelo espaço das gerações.
Explicava então que as honras da Casa Real portuguesa seriam muito empregadas para
recompensar também os serviços feitos no Brasil. As aristocracias seriam para
Varnhagen, os sustentáculos dos tronos, e ao mesmo tempo a mais segura barreira
77
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 153.
78
Idem, ibidem, p.160.
79
Idem, ibidem, p.163.
168
80
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 156.
81
Idem, ibidem, p.214.
82
Idem, ibidem, p.215.
169
83
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p.221. (grifo do autor).
84
Conforme observou José Honório Rodrigues, em matéria de negros e índios Varnhagen aceitava como
lícita a escravatura. Para o autor da História Geral do Brasil não haveria outro recurso, e não caberia
esperar que os índios quisessem civilizar-se. Os avanços e recuos da política indígena portuguesa, assim
como as sublevações de negros e índios somente poderiam contar com sua total desaprovação. Daí
considerar aceitável declarar guerra a indígenas que não quisessem submeter-se, ocupando pela força as
terras que considerava, estavam roubando à civilização. RODRIGUES, José Honório. Varnhagen, mestre
da História geral do Brasil. In: ______________. História e historiografia. Petrópolis: Vozes, 2008.
85
Idem, ibidem, p. 225.
170
Com efeito, Varnhagen acreditava que os africanos trazidos para o Brasil, não
obstante a escravidão ser venal, teriam melhorado de sorte, pois na Guiné, no Congo,
em Moçambique – de onde provinham – a liberdade individual não era assegurada, com
os mais fortes vendendo os mais fracos, os pais aos filhos, e os vencedores aos
vencidos. E a razão dessa melhoria social, segundo o autor da História Geral do Brasil
seria o contato com gente mais polida e com a civilização do cristianismo. Tendo
realizado a defesa da escravidão ‘benigna’, Varnhagen colocava uma espécie de pedra
fundamental no edifício da construção ideológica que futuramente ficaria conhecida
como o ‘mito da democracia racial’.
Quanto às instituições sociais e políticas, podemos dizer que o Estado é
associado por Varnhagen à noção de lei. Aliás, leis, escrita e Estado aparecem na
condição de indicadores básicos da existência de civilização para Varnhagen, como nos
ensinam Arno Wehling (1999 e 2001), Nilo Odália (1979 e 1997) e José Carlos Reis
(2001). O Estado aparece em sua obra como uma necessidade natural do ser humano. A
religião figura como elemento indispensável da ordem, e poderosíssimo instrumento de
civilização e de moral.
Na opinião de Arno Wehling, Varnhagen teria assumido os pressupostos
políticos do Marquês de Pombal, ao tentar subordinar a religião, como no caso dos
jesuítas e todo o mais, à razão de Estado. Assim, Varnhagen aprova os atos desse
ministro, “ hábil e poderoso”87, o qual impunha respeito por seu zelo, ilustração,
gravidade e probidade, tanto no trato do Estado, quanto nos negócios da sua casa, os
quais reservava para as manhãs de domingo. Atuando em meio aquilo que Varnhagen
qualificou como as “...tendências tão excessivamente inovadoras do século”88, as ações
de Pombal teriam contribuído para preencher com cunho modernizador a Colônia,
86
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 223. (grifos nossos).
87
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.4,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 234.
88
Idem, Ibidem, p. 235.
171
89
História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1962, p. 299. No ano de 1899, com o lançamento do ensaio ‘Caminhos Antigos e
Povoamento do Brasil’, Capistrano de Abreu colocaria por terra tanto a tese que Varnhagen defendera –
sobre o desaparecimento dos índios dever-se a cruzamentos inter-raciais mais do que a algum cruel
extermínio – quanto arranharia a imagem de Men de Sá. Lembrava Capistrano que as chamadas guerras
do Paraguaçu, alinhadas por Mem de Sá como serviços prestados na condição de terceiro Governador
Geral do Brasil, haviam levado à destruição cento e sessenta aldeias, afastando com isso um gentio de
língua geral, mais ou menos assimilável, os quais cederam lugar à avançada de tapuias irredutíveis. Da
mesma forma recebia censuras o Marquês de Pombal, o todo poderoso ministro de D. José I. Capistrano
de Abreu o alcança em três oportunidades do seu ensaio. Assim, na avaliação de Capistrano, Pombal teria
exercido um poderio truculento, havia confiscado com sua vesânia as célebres fazendas nacionais, além
de haver transformado em mártir dos seus furores ao padre Malagrida, incansável missionário dos sertões
da Colônia. Ver: ABREU, João Capistrano de. Os Caminhos Antigos e o povoamento do Brasil.In:
______ . Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.
172
90
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.4,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 235.
173
91
As Memórias para a História da Capitania de São Vicente, do beneditino Frei Gaspar da Madre de Deus
ganharam estampa em 1797. De acordo com frei Gaspar, a notícia da elevação do duque de Bragança ao
trono português foi recebida como um golpe pelos espanhóis que se haviam estabelecido e casado na Vila
de São Paulo. Face às circunstâncias dos interesses que colimavam, resolveram unir-se aos seus amigos,
parentes e aliados no fito de eleger um rei paulista, no que apontaram como o mais digno da coroa a
Amador Bueno da Ribeira. Persuadiram então a paulistas e europeus pouco instruídos a abraçar sua causa,
não reconhecendo por soberano a um príncipe – o Duque de Bragança – que afinal ainda não haviam
jurado obediência. Assim, um grande número de pessoas concorreu em entusiasmado alvoroço à casa de
Amador Bueno para aclamá-lo rei. Ao deparar-se com as proposições da multidão, lembrou-lhes o
aclamado que teriam os paulistas que conformar-se com os votos de todo o Reino, e a persistir nos seus
intentos concorreriam para a ignomínia de sua Pátria. A obstinação do povo ignorante teria sido tanta que
o ‘fiel vassalo’ saiu furtivamente de sua casa, espada na mão para defender-se se necessário, tendo
caminhado apressado para o Mosteiro de São Bento, no intento de refugiar-se. Cabe dar voz a Frei
Gaspar: “Todos correm após ele, gritando: viva Amador Bueno, nosso Rei: ao que ele respondeu muitas
vezes, em voz alta: viva o Senhor D. João IV, nosso Rei e senhor, pelo qual darei a vida.” Chegando ao
mosteiro e nele sendo as portas rapidamente fechadas, coube aos eclesiásticos mais respeitáveis então
presentes, esclarecer à multidão que o Reino pertencia à Sereníssima Casa de Bragança desde 1580, caso
a violência dos monarcas espanhóis não tivessem sufocado o seu direito. MADRE DE DEUS, Frei Gaspar
da. Memórias para a história da Capitania de São Vicente. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. A citação
encontra-se à p. 140. Em obra recente, Rodrigo Bentes Monteiro lançou algumas luzes que auxiliam a
esclarecer tanto esse fato, quanto as dúvidas que sobre ele lançou Varnhagen. Frei Gaspar era amigo e
primo do linhagista setecentista Pedro Taques, com o qual correspondia-se frequentemente. Assim como
Taques, que construíra uma nobiliarquia paulistana, Frei Gaspar também recuperava o passado paulista
procurando destacar a sua nobreza de sangue e de valores, bem como a obediência dos paulistas às ordens
vindas de Portugal. Ele narra o evento da aclamação de Amador Bueno com base na genealogia que fora
composta por Taques em 1742, a ‘história dos Buenos’. De acordo com Monteiro, os documentos que frei
Gaspar e Pedro Taques utilizam para comprovar seus relatos são os mesmos. A veracidade dos fatos seria
dada inclusive pela obtenção de mercês por parte de um neto de Amador Bueno. Na segunda metade do
século XIX essa versão foi contestada por autores como Cândido Mendes de Almeida e José Veríssimo.
Porém, na primeira metade do século XX, Afonso Taunay partiu em defesa dos escritores setecentistas, e
comprovou a autenticidade dos documentos mencionados, achando os mesmos nos arquivos da câmara de
São Vicente e no Arquivo Nacional. MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no Espelho: a monarquia
portuguesa e a colonização da América (1640-1720). São Paulo: Hucite, 2002.
174
92
História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. T.3,7. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1962, p. 131.
93
História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. T.3,7. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1962, p. 132.
94
A questão da escravidão indígena articulou-se de forma ineludível na história paulista ao discurso da
pobreza. Assim, nos anos 1960 ainda percebemos a historiadora Myriam Ellys tratar o tema recuperando
as falas dos antigos habitantes da cidade Planaltina em seus testamentos: “buscar remédio para a sua
pobreza”, “buscar o seu remédio”, ou ainda, “o seu modo de lucrar” para dar evidência à pobreza. A
penúria que dominava a Capitania de São Vicente teria obrigado o povoador a lançar mão do trabalho
indígena que deveria assegurar-lhe os meios de subsistência – em uma agricultura também de subsistência
– na impossibilidade de aquisição do escravo negro. Recentemente coube a John Manuel Monteiro
esclarecer melhor tal situação. O surto bandeirante que resultou no auge do apresamento de cativos
guarani visava ao abastecimento da mão-de-obra de uma florescente agricultura comercial no planalto
paulista. A versão sobre a captura de indígenas para abastecer engenhos de açúcar no Norte do país fora
uma invenção dos jesuítas com vistas a fornecer elementos de base jurídica em seus pleitos contra os
paulistas. Assim, a versão convencional da historiografia brasileira acabou por associar uma crise aguda
na oferta de escravos no Nordeste açucareiro – pela perda de Angola durante as guerras holandesas –
esquecendo-se no entanto que as grandes expedições de apresamento de Antonio Raposo Tavares
ocorreram anos antes da invasão de Pernambuco e da tomada de Angola. Além do mais, os índios recén-
trazidos do sertão tinham reduzido valor de venda em razão das suas também reduzidas chances de
sobrevivência no novo ambiente, tornando o tráfico para outras regiões pouco interessante
economicamente, limitando-se as transferências a pequenos grupos cujo valor justificasse o custo da
viagem. ELLIS, Myriam. As bandeiras na expansão geográfica do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio
Buarque de (dir.). História Geral da Civilização Brasileira. T.1, v.1. A época colonial: do descobrimento à
expansão territorial. 8.ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989; e, MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra:
índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
175
95
História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. T.3,7. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1962, p.136-137.
176
96
Joaquim Norberto nasceu no Rio de Janeiro, a 6 de junho de 1820, tendo falecido em Niterói, a 14 de
maio de 1891. Era monarquista, servidor público e sócio do IHGB. Foi no arquivo da Secretaria de
Estado do Império, repartição na qual trabalhava que Norberto veio a encontrar a coleção de documentos
originais das duas devassas que ocorreram nas capitanias de Minas Gerais e Rio de Janeiro. A
documentação então encontrada foi completada então por uma exposição manuscrita que andava um
pouco esquecida nos arquivos do IHGB, e que levava o título de ‘Memória do êxito que teve a
Conjuração de Minas e dos fatos relativos a ela acontecidos nesta cidade do Rio de Janeiro desde o dia
17 até 26 de abril de 1792’. A partir de fins de 1860, J. Norberto iria ler no recinto do Instituto, as suas
conclusões parciais que reunidas, dariam ensejo aquela que seria a sua obra literária de maior valor.
Escrevendo em 1912, José Veríssimo considerou a História da Conjuração Mineira como uma das boas
monografias da literatura histórica brasileira, feita com pesquisas próprias – i.e. com emprego de fontes
primárias – além de bem ordenada e composta. No início da década de 1950, Eduardo Frieiro qualificou
Joaquim Norberto como um autor ponderado que apesar de lastimar a sorte infausta de Tiradentes, não o
tratou como herói. Aliás, Norberto não simpatizou com os propósitos dos conjurados mineiros, pois lhe
parecia condenável instituir a partir de três províncias, quando muito (Minas Gerais, Rio de Janeiro e São
Paulo) uma república, desmembrada do resto do país. Esse posicionamento rendera a J.Norberto, na
opinião de Frieiro, um autor romântico, a ira de nativistas lusófobos e republicanos jacobinos. Na
narrativa de Norberto, a figura de Tiradentes aparece como lamentável, inclinando mais à piedade, que à
admiração. Américo Jacobina Lacombe considerou que esse livro de Norberto foi baseado em boa e
metódica documentação, sendo além disso, bem redigido. Francisco Iglésias avaliou a obra como fruto de
muita pesquisa, e dotada de sentido crítico ao longo da exposição dos seus capítulos. Amante da poesia,
Joaquim Norberto destacara como chefe dos Inconfidentes a um dos poetas de sua predileção, o
desembargador Tomás Antonio Gonzaga. Aliás, nessa personagem à qual Varnhagen tratou de inocentar e
retirar do círculo dos conciliábulos ocorridos na Conjura de Vila Rica parece residir a maior distância
entre sua narrativa e a de Joaquim Norberto. SILVA, Joaquim Norberto de Sousa. História da Conjuração
Mineira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948; VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira.
3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954; FRIEIRO, Eduardo. O Diabo na livraria do Cônego: como era
Gonzaga? E outros temas mineiros. Belo Horizonte: Itatiaia, 1957. (o ensaio A sombra de Tiradentes é de
1953); LACOMBE, Américo Jacobina. Introdução ao estudo da história do Brasil. São Paulo: Editora
Nacional, 1973; e, IGLÉSIAS, Francisco. Os historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
97
De acordo com João Pinto Furtado, a sedição abortada entre os anos de 1788 e 1789 foi gerada em
meio a um “contexto de transição, em que valores tipicamente estamentais como honra, fidalguia e
precedência chocavam-se com valores de classe como trabalho, riqueza e propriedade”; em suma, o
movimento teria sido portador da expressão de uma “série de ambigüidades e contradições próprias do
período”. Lembra o autor que “na sociedade setecentista a rebelião, a revolta ou o motim são recursos
políticos normais, até admitidos pelo Estado ou pela Igreja, e com muita frequência redundavam apenas
numa série de escaramuças seguidas de algum nível de negociação e anistia.” Ainda para esse autor, os
inconfidentes mineiros seriam, em cada caso e em doses diferenciadas, “homens do barroco tardio, e,
portanto, contraditórios e anti-cartesianos...” Dessa forma defendeu Furtado que a Inconfidência Mineira
poderia ser considerada um processo híbrido, onde estariam reunidas tanto algumas características das
últimas rebeliões do Antigo Regime, quanto daqueles levantes que prefigurariam a ‘nacionalidade’.
FURTADO, João Pinto. Imaginando a nação: o ensino da história da Inconfidência Mineira na
perspectiva da crítica historiográfica. In: SIMAN, Lana Mara de Castro, FONSECA, Thais Nívia de Lima
177
e. (orgs.) Inaugurando a História e construindo a nação: discursos e imagens no ensino de História. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001. As citações encontram-se respectivamente às p. 55, 63, 69 e 70.
98
As conversações entre Thomas Jefferson e José Joaquim da Maia foram alvo de publicações na revista
trimensal do Instituto no ano de 1841, tomo 3º à p. 208 sob o título ‘Extractos das correspondências de
Thomas Jefferson’, bem como em 1884. As cartas são datadas de 1786 e 1787. Vendek escreveu a
Jefferson uma carta de Montpellier com data de 2 de outubro de 1786, pedindo que a resposta fosse
encaminhada a Mr. Vigarons, Conselheiro do Rei e professor de Medicina na Universidade daquela
cidade. Então Jefferson respondeu com data de 16 de outubro. Em 21 de novembro, Vendek/Maia tornava
a escrever para Jefferson, recebendo resposta do ministro norte-americano com data de 26 de dezembro.
Nessa missiva Jefferson dizia estar pronto para marcar uma entrevista, em Montpellier ou nas suas
vizinhanças. Nova carta é escrita por Vendek em 5 de janeiro de 1787. Entre o recebimento desta por
T.Jefferson e o dia 4 de maio de 1787, data na qual esse ministro escreve a J. Jay, presidente do
Congresso no fito de colocá-lo a par dos acontecimentos, ocorreu o encontro. Idéas de Independencia no
Brazil. RIHGB. Rio de Janeiro, t. XLVII, parte I, 1884, p. 123-132.
178
101
História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. T.4,7. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1962, p. 312-313. (grifo nosso).
102
História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. T.4,7. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1962, p. 313-314.
181
103
Entre a primeira e a segunda edição – que acabou servindo de base às demais – Varnhagen deu
retoques importantes a certas considerações que fizera sobre o Alferes, ao qual chamara de insignificante
e indiscreto, e ao qual o martírio do patíbulo viera conferir méritos que afinal, considerava o autor, ele
não tinha. Assim, a glória da primeira tentativa de independência passava a ser uma obra de patrícios
ilustres, bem como de vários indivíduos de letras e ciências. RODRIGUES, José Honório. Varnhagen,
mestre da História geral do Brasil. In: ___________. História e Historiografia. Petrópolis: Vozes, 2008.
Assim Varnhagen se referiu ao Tiradentes na primeira edição de sua História Geral (1857): “O alferes
Silva Xavier foi considerado cabeça; julgando os juízes necessário para o escarmento público algum
exemplo, votaram por que fosse ao patíbulo o insignificante e indiscreto Tiradentes”. A isso associava-se
uma nota esclarecedora: “...«Sendo talvez por esta descomedida ousadia, com que mostrava ter
totalmente perdido o temor das justiças e o respeito e fidelidade devida à dita Senhora (Rainha),
reputado por um heroe entre os conjurados.» Sentença etc., na Rev. do Inst., Tom VIII, p. 318. Dizia «que
os Cariocas americanos eram fracos, vis e de espíritos baixos, porque podiam passar sem o jugo que
soffriam e viver independentes do reino, e o toleravam» etc. Sentença, na Rev. do Inst., VIII, 319.”
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Historia Geral do Brazil. Tomo II, Rio de Janeiro: Laemmert,
1857, p.279. (grifos do autor).
182
de Deus que tudo ficasse sabido. Os seus depoimentos últimos merecem, pois, o
conceito de um relato muito verdadeiro de quanto se passou.”104
Lidas as sentenças, eram condenados à morte, para serem enforcados com
infâmia, o Tiradentes, Alvarenga, Freire de Andrada, Maciel, Abreu Vieira, Vaz de
Toledo, Oliveira Lopes, Vidal Barbosa, os Rezendes – pai e filho – e o Amaral Gurgel.
Nas palavras do autor da História geral do Brasil,
“Felizmente, não tinha para todos de executar-se a dura sentença. Ocupava
o trono uma piedosa rainha, que havia com tempo prevenido contra a
severidade do código criminal do país, o livro quinto das Ordenações
Filipinas. Por carta régia de 15 de outubro de 1790, dirigida ao chanceler,
juiz da alçada, fora ordenado que, aos próprios chefes da facção, a pena
ficasse limitada a degredo; exceto quando fosse isso absolutamente
impossível, pela atrocidade e escandalosa publicidade de seu crime,
revestido de tais e tão agravantes circunstâncias que fizessem a comiseração
impossível. Esse ato da boa alma da primeira testa coroada, que veio em
pessoa com o diadema ao novo mundo, fará todos os brasileiros bendizer a
memória desta ínclita herdeira da piedosa Santa Isabel, da talentosa rainha
D. Catarina (mulher de D. João III) e da intrépida esposa do primeiro rei
bragantino...”105
“...uma nova tessitura mental no trato dos textos. A análise crítica rigorosa
precede o reconhecimento da validade das fontes e sua erudição se nutre do
conhecimento extenso das mesmas. Afasta o lendário e o maravilhoso, assim
como os juízos de valor alimentados pelo ufanismo. A História Geral se filia
104
História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. T.4,7. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1962, p. 319.
105
Ibidem, p. 320.
106
Estado, História, Memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999, p.186.
107
Apontamentos sobre Varnhagen e Capistrano de Abreu. Revista de História. São Paulo, USP, 18 (88),
out. dez. 1971, p. 418.
183
Observou Arno Wehling (1999) que Varnhagen teria sido para o caso brasileiro
um exemplo característico da ‘culture savante’, que conforme o autor deve ser
associada no plano europeu ao conservadorismo da Restauração. Para Wehling a culture
savante conforme ocorrida no Brasil acabaria se estendendo por mais tempo que na
Europa, sendo seus traços: 1. O tradicionalismo contra revolucionário; 2. A
identificação com as minorias privilegiadas pelo nascimento ou pelo talento; 3. O
nacionalismo (contra o cosmopolitismo iluminista); 4. O predomínio da literatura sobre
a ciência, mediante o deslocamento do interesse pelas ciências sociais para o romance, a
poesia, o panfleto político e a reflexão filosófica; 5. O individualismo irracionalista e
místico, o que iria contra o equilíbrio classicista; e, 6. O desprezo pela cultura popular,
“exceto como recurso ao folclore para a valorização do nacional”109.
Ainda de acordo com Wehling, a tipologia da culture savante aplica-se quase
que integralmente à obra de Varnhagen, por tanto ter esse pretendido valorizar o Estado,
a Nação e o indivíduo criativo. Quanto às minorias estamentais é possível defender que
Varnhagen catalizou ideologicamente os seus anseios, alimentando com os frutos do seu
ofício algumas exigências da cultura típica de uma sociedade de corte – situação que
perdurou com o Estado Monárquico até 1889 – tendo contudo começado a entrar em
crise por volta de 1870.
Varnhagen colhera muitas críticas e parcela significativa dessas, ao que nos
interessará, ocorreram justamente no pós 1870, ou seja, a partir de uma geração a qual
pertencem Capistrano de Abreu e Sílvio Romero, mas também autores da influência de
José Veríssimo e João Ribeiro110.
108
Idem, Ibidem, p. 418-419.
109
Estado, História e Memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, p. 48.
110
Na fundamentada opinião de José Honório Rodrigues, a História do Brasil (Curso Superior), de
autoria de João Ribeiro, se limitou a uma contribuição à cultura escolar, tendo exercido enorme influência
didática, mais infelizmente tendo surgido cedo demais (1900), para beneficiar-se das lições desenvolvidas
por Capistrano de Abreu. Esclarece J.H.Rodrigues que João Ribeiro, influenciado por Martius, notou em
cada um dos núcleos primitivos da nação, um sentimento característico. Assim, na Bahia, seria a religião
e a tradição, em Pernambuco, o radicalismo republicano; em São Paulo, mas também em Minas e no Rio,
o liberalismo moderado; o Amazonas seria demasiadamente indígena; e no extremo sul, o Rio Grande,
demasiadamente platino. Contudo João Ribeiro não realizara nenhuma pesquisa decisiva, “embora
trouxesse alguma contribuição importante ao nosso saber histórico. Alguns subsídios originais, algumas
interpretações felizes podem realmente ser destacadas no seu compêndio superior de História do Brasil.”
Arno Wehling classificou esse livro de João Ribeiro como sendo, quando do seu surgimento (que
antecede em sete anos aos Capítulos de História Colonial), como uma “alternativa teórica à visão
varnhageniana dominante na historiografia brasileira”, embora Ribeiro não tenha colocado a questão em
184
Entre as críticas colhidas por Varnhagen talvez a primeira tenha vindo da pena
de Marie-Armand d’Avezac de Castera. D’Avezac, como era mais conhecido, disse que
Varnhagen aplicara o plano de Von Martius oferecido ao Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro como modelo para a escrita da História do Brasil. Relata Alice P.
Canabrava que o Visconde de Porto Seguro achou injusta a crítica daquele respeitável
membro da Sociéte de Géographie, mas resolveu fazer sua réplica debandando para a
trivialidade que era àquele momento a ‘fórmula’ de Martius.
Essas críticas de d’Avezac parecem ter afetado bastante os brios de Varnhagen,
dado que entre a primeira e a segunda edição ele tratou de fazer alterações substanciais
nas seções da sua História Geral111. José Honório Rodrigues localiza a raiz de tais
problemas na periodização, pois lhe pareceu que apesar de notoriamente inspirado em
Martius, Varnhagen teria seguido quase que as mesmas linhas mestras de Southey, ou
ainda de autores mais antigos que dividiam a história em décadas 112. As considerações
de Varnhagen sobre a obra de Southey não tentaram esconder as reservas que
Varnhagen dele fazia. Aquilo decididamente não era para o Visconde de Porto Seguro a
História do Brasil, mas bem que poderia ser intitulada como ‘memórias para escrever-
termos polêmicos, expondo sua própria síntese sem contrapor-se à de Varnhagen. O Brasil
contemporâneo derivaria, para João Ribeiro, “do colono, do jesuíta, do mameluco, do índio e do escravo”.
Contudo, no capítulo VI do livro de João Ribeiro, intitulado “A formação do Brasil; a) História comum”,
o autor realiza críticas à condescendência pela qual fora tratada a escravidão indígena. Resta dizer que a
crítica de João Ribeiro se estendia não somente aos paulistas, mas também aos jesuítas, que mesmo em
suas tentativas de defesa dos indígenas, tentavam opor-se aos planos de má-fé dos colonos, mascarando
no entanto suas próprias ações sob a aparência de bons propósitos. Em sua História da literatura
brasileira, José Veríssimo classificou a História Geral do Brasil como providencialista e uma apologia da
razão de Estado. Varnhagen não poderia ser admitido no universo dos românticos, apesar de
cronologicamente pertencer a essa geração, por sua recusa ao indianismo. Para Veríssimo, fôra da sua
estirpe germânica que Varnhagen tirara seu instinto de veneração e respeito aos magnates, aos poderosos,
às instituições consagradas e coisas estabelecidas. Como historiador raro achava-se a censurar os que
detem o mando, esforçando-se por lhes encontrar razões e desculpas. Quanto às instituições, descobre-
lhes ou inventa-lhes virtudes e benefícios. No mais, “mal pode esconder o júbilo e a vaidade pela troca
feita pelo imperador, seu amigo e protetor, do seu nome já glorioso de Varnhagen pelo de Visconde de
Porto Seguro.” Cfe. RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil: Introdução metodológica.
4.ed. São Paulo:Companhia Editora Nacional, 1978, p.138-139; WEHLING, Arno. Estado, História,
Memória: Varnhagen e a Construção da Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999,
pp.202-203; RIBEIRO, João. História do Brasil:curso superior. 19.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1966, p. 165 e seguintes; e, VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira
(1601) a Machado de Assis (1908). 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954, 190-194.
111
Parte das críticas recebidas era devido a Varnhagen, na primeira edição do livro (1854) abrir o
primeiro volume da obra justamente com a narrativa da viagem de Pedro Álvares Cabral. Observou Lucia
Maria Paschoal Guimarães que boa parte das censuras vieram do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Na segunda edição da obra Varnhagen tratou alterar a ordem dos dez primeiros capítulos. Mas
se o indianismo romântico do Instituto prezava pela valorização aos “verdadeiros donos da terra”, o
comentário da autora é que “a alteração efetuada não provocou nenhuma revisão de caráter
interpretativo” Francisco Adolfo de Varnhagen. História Geral do Brasil. In: MOTA, Lourenço Dantas.
(org.) Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. 2.ed. São Paulo: Senac, 2002, p.79-80.
112
Teoria da História do Brasil: introdução metodológica. 4.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1978, p. 132.
185
se a História do Brasil e dos países do Prata, etc... .113 Certamente o juízo sintético
formulado por Sérgio Buarque de Holanda sobre Varnhagen lhe faria justiça: não era
espírito ameno e tolerava mal oficiais do mesmo, por temor que pudessem fazer sombra
aos seus altos méritos. Eriçava-se à menor possibilidade de ação de detratores reais ou
imaginários, pois ciumento das glórias e gloríolas que não se achassem ao seu
alcance114. Conforme a profética expressão de Capistrano de Abreu, aqui tomada de
forma livre, Varnhagen seria lido por poucos.
Nesse sentido, alguns esclarecimentos se fazem necessários. Conforme observou
Lucia Maria Paschoal Guimarães (2011), o emblemático livro de Varnhagen, ‘História
Geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal’ fora editado em
Madrid, entre 1854 e 1857. Essa historiadora lembra que embora a historiografia
contemporânea vincule essa obra como contribuição chancelada pelo IHGB, a verdade é
que o Instituto Histórico não avalizou o livro naquela época. Naquele Instituto, a obra
de Varnhagen enfrentara o crivo agudo da comissão de ‘História’, a qual cabia emitir
parecer sobre o mérito e a conveniência da publicação, e a comissão de ‘Redação’, a
qual cumpria selecionar dentre os textos aprovados, aqueles que seriam impressos e
publicados na Revista do IHGB115. Observa ainda a autora que entre a pretensão de
Varnhagen e o efetivo acolhimento da obra pelo IHGB haveria uma grande distância. E
segundo ela, tão grande que,
113
Arno Wehling considera que Varnhagen tenha sentido uma identificação com o clima intelectual do
romantismo filosófico. Ora, ainda de acordo com esse autor isso teria feito o Visconde de Porto Seguro
identificar-se com a questão da moral, a concepção do Estado como ser vivo – em oposição a uma fria
concepção mecanicista do Iluminismo. Seus valores morais estariam em conformidade com aqueles
definidos pelo Cristianismo. Os elementos constitutivos do Estado seriam para ele, a tradição, autoridade,
organicidade, natureza espiritual e natureza moral. Ao fazermos uso das contribuições de Maria Odila da
Silva Dias para a compreensão da obra de R.Southey – no que pese esse ser anglo-saxão e protestante –
nos inclinamos a ver algumas aproximações desse autor com Varnhagen: a idéia da continuidade do
processo histórico, enquanto uma das características da ideologia conservadora da História; a busca no
passado de um fio de evolução lenta que não implicasse rupturas e desenraizamento, a descrença quanto a
saltos milagrosos e revoluções súbitas e a própria idéia de nação que teria em seu cerne as tradições,
costumes e religião e até mesmo a revolta contra a tendência dos historiadores do século XVIII de
desprezar os fatos em favor das teorias: tanto Southey quanto Varnhagen criticaram abertamente a
J.J.Rousseau por suas teorias abstratas. Talvez as similaridades fiquem por aí. Pois Southey guardava
afinidades com a narrativa romântica de W.Scott, Carlyle e J. Michelet, desprezava a visão dos que
pretendiam ver pelo alto as relações da sociedade e além de tudo, tentava imprimir na sua narrativa a
capacidade de comunicar vida ao passado, pois entendia que a história devia recriar a vida, e por isso,
requeria antes a forma – de uma narrativa que como um romance aparecesse divertida ao leitor – do que a
interpretação racional. Ver. DIAS, Maria Odila da Silva. O fardo do homem branco: Southey, historiador
do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974; e, WHELING, Arno. Estado, História,
Memória: Varnhagen e a Construção da Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
114
Idem, ibidem, p. XIV-XV.
115
Debaixo da imediata proteção imperial: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). 2.ed.
São Paulo: Annablume, 2011.
186
116
Ibidem, p. 118. (grifos da autora). Em obra posterior Lucia M. P. Guimarães voltaria a esse tema.
Naquela época o Instituto professava o indianismo romântico, e exaltar o índio “se constituía na suprema
manifestação do nativismo, o Instituto Histórico dificilmente iria avalizar as idéias e as expressões que
Varnhagen utilizou no tratamento dos primitivos habitantes da Terra de Santa Cruz...(...)... Como se isso
não bastasse, ele ainda desqualificou o papel desempenhado pelos jesuítas, responsáveis por (...)
providências de mal-entendida filantropia no processo civilizatório.” Da Escola Palatina ao Silogeu:
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2006, p.
122.
117
Assim Gonçalves de Magalhães iniciava a sua memória intitulada ‘Os indígenas do Brasil perante a
Historia’: “Quando no estudo da historia, religião, usos e costumes de um povo vencido e subjugado
outros documentos não temos além de chronicas e relações de conquistadores, sempre empenhados em
todos os tempos a glorificar seus actos com apparencias de justiça, e a denegrir as suas victimas com
imputações de todos os gêneros; engano fora si cuidássemos achar a verdade e os factos expostos com
sincera imparcialidade, e devidamente interpretados.” Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro, 1860, t. XXIII, v. 23, p.3.
187
Conforme é sabido, a ‘História Geral do Brasil’ não seria adotada nas escolas de
direito e militares, nem tampouco nos colégios da Corte ou das Províncias. Varnhagen
não se tornaria o ‘cronista mór’ do Império, e até onde somos informados, o Imperador
não deixou de participar das sessões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, para
o qual aliás, franqueara e continuaria a ceder até a sua partida para o exílio algumas
instalações no próprio Paço Imperial. Escrevendo no início dos anos 1970, a
historiadora Alice Pffeifer Canabrava classificou, ao nosso entendimento
acertadamente, a História Geral do Brasil como sendo o monumento da historiografia
brasileira do século XIX119.
Capistrano de Abreu, com sua benéfica influência sobre os demais historiadores,
sempre incentivara a leitura da História Geral do Brasil, pois mesmo sob certa crítica
cientificista, Varnhagen continuou paradigmático – tanto pelo uso das fontes, quanto
pela sua concepção – de uma certa maneira de produzir a história do Brasil. Conforme
observa Arno Wheling, Varnhagen,
“permaneceu como o modelo dominante para a maioria dos trabalhos
publicados pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, quer em sua
revista, quer nos congressos que patrocinou, como o I Congresso de História
Nacional, de 1914, e o Congresso de História da América, de 1922. O
mesmo pode ser dito da produção dos institutos históricos estaduais ou da
orientação que presidiu à publicação das grandes coleções documentais,
como os Anais e os Documentos históricos da Biblioteca Nacional, as
Publicações do Arquivo Nacional e os Documentos interessantes para a
história de São Paulo.”120
Podemos então dizer que na História Geral do Brasil, a nação brasileira que
vemos passo a passo ser construída, nas páginas alinhadas por Varnhagen, segue uma
118
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Carta dirigida a D. Pedro II, datada de Madrid, 14 de julho de
1857. In: ______. Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro Lessa. Rio de Janeiro:
Mec, 1961, p. 242-243. (grifos do autor).
119
Apontamentos sobre Varnhagen e Capistrano. Revista de História. São Paulo, USP, 18 (88), out.dez.
1971.
120
Estado, História, Memória: Varnhagen e a Construção da Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999, p. 203.
188
121
Segundo apontou Nilo Odália, sob a ótica de Varnhagen a vitória final do branco não seria um ato
histórico casuístico, mas “a concreção de uma forma superior de civilização” que deveria indicar o
caminho a ser seguido pela nova nação. Nesse sentido, a nação de Varnhagen passa a ser compreendida
“como um bloco monolítico, onde qualquer voz discordante é um perigo e uma ameaça a serem
extirpados. As soluções variam – miscigenação forçada, centralismo, autoritarismo – , os objetivos são
os mesmos: preservação da unidade, preservação das condições que tornaram possível a colônia.” Ainda
para o autor, na ótica varnhageneriana a civilização européia “é superior porque ela traz lei, ordem,
religião e autoriade – elementos básicos para a constituição de uma nação.” Varnhagen: história. São
Paulo: Ática, 1979. As citações encontram-se às p. 20 e 22-23.
122
O Império colonial português. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 293. As outras ordens militares, conforme
sabemos eram as de Avis e Sant’Iago.
189
Conhecedor da obra de Varnhagen, não deve ter sido difícil para Joaquim
Manuel de Macedo, no que cumpria aos méritos do historiador falecido, compor o seu
elogio fúnebre. Tarefa de maior complexidade, seria utilizar cuidadosamente as
palavras, para poder retratar o gênio irascível do visconde de Porto Seguro porém
mantendo o espírito conciliador exigido pela ocasião. Romancista e jornalista, artesão
123
WEHLING, Arno. Estado, História, Memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.213.
124
Discurso. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, t.41, parte II, 1878, p.
483-489.
190
das palavras, Macedo encontrava então sob a fórmula “Pythagoras magister dixit” a
saída para retratar o espírito de ditador de sentenças que movia a prática historiadora de
Varnhagen.
Por fim, nos inclinamos a concordar com o historiador Ronaldo Vainfas, em
seus comentários à História Geral do Brasil, feito com vistas a qualificar o trabalho de
Capistrano de Abreu. Para Vainfas, Varnhagen louvara a colonização portuguesa, bem
como sua obra expansionista. Do seu conceito de civilização já tecemos comentários. O
intuito de Varnhagen fora tecer loas para a dinastia de Bragança, em detrimento da
monarquia de Avis. Varnhagen fizera uma história elitista e laudatória, pois desprezava
o índio e mal falara do negro. De resto, desqualificara as rebeliões, sobretudo por seu
apelo popular125.
Mas, visando o futuro, fosse como programa de trabalho a congressos de
História, ou como peça de consulta documental, até mesmo pela falta de monografias
que se faziam necessárias, Varnhagen permaneceria em seu pedestal, absoluto, quase
intocável, e na plenitude do termo, monumental!
125
Capistrano de Abreu. Capítulos de História Colonial. In:MOTA, Lourenço Dantas. Introdução ao
Brasil. Um banquete no trópico. 3.ed.São Paulo: Senac, 2007.
191
“...estou resolvido a escrever a História do Brasil, não a que sonhei há muitos anos
no Ceará, depois de ter lido Buckle, e no entusiasmo daquela leitura que fez época
em minha vida – uma História modesta, a grandes traços e largas malhas, até 1807.
Escrevo-a porque posso reunir muita cousa que está esparsa, e espero encadear melhor
certos fatos, e chamar a atenção para certos aspectos até agora menosprezados.
Parece-me que poderei dizer algumas coisas novas e pelo menos quebrar os quadros de
Ferro de Varnhagen que, introduzidos por Macedo no Colégio de Pedro II, ainda hoje
são a base de nosso ensino. As bandeiras, as minas, as estradas, a criação de gado pode
dizer-se que ainda são desconhecidas, como, aliás, quase todo o século XVII, tirando as
entanto esses paulistas iam à procura de índios, o que faziam em razias. Aqueles rápidos
golpes de mão não mantinham nenhum domínio sob o território, embora fizessem
brecar o assanhado avanço dos jesuítas espanhóis. A seguirmos Varnhagen, as ações
passadas na Colônia aparecem como simples caixa de ressonância daquilo que se
articulava além mar, e suas resultantes meras tratativas a título precário, pois a
verdadeira homologação dos atos passados acerca do território encontram-se sempre
adscritas às ações das coroas portuguesa e espanhola em suas torres de marfim
européias.
Dessa forma, os atores que determinam o território brasileiro não se encontram
na América, mas na Europa, e seus instrumentos são os tratados que as diplomacias
portuguesa e castelhana discutem. Os grandes heróis para Varnhagen não seriam os
bandeirantes, apesar de nutrir por esses certa simpatia, mas Alexandre de Gusmão e
outros homens de Estado que lograram demarcar o solo para que o Império Português
ganhasse forma na América. Assim, as ações que se passaram na América teriam sido, a
considerarmos a ‘História Geral do Brasil’, episódios subsidiários encenados por atores
secundários – para não dizer marginais – quando comparados ao que se passava
principalmente na península ibérica, pelas conversações relativamente contínuas entre
Portugal e Espanha2.
Não se trata aqui de negar o protagonismo aos atores coloniais3, mas de
reconhecer que em uma obra como a de Varnhagen, que cumpre perceber, valorizava o
Estado português, a dinastia portuguesa, e a etnia branca, havia uma hierarquia bem
marcada – como diria-se posteriormente uma velha história política vista por cima – e o
que contava afinal, eram as decisões tomadas nas Cortes européias, as discussões
enfeixadas a partir das chancelarias das potências do Velho Mundo, cuja visão
2
Essa afirmação fica evidente pelos títulos escolhidos por Varnhagen para os capítulos da História Geral
do Brasil. Como exemplificação, vejamos o Tomo III: “XXXV. – Os dois Estados (Do Maranhão e do
Brasil) Até a Paz de 1668”; “XXXVI. – Desde o Tratado de 1668 até a execução do de 1681”; “XXXVII. –
Desde o Tratado de 1681 até o de Aliança em 1703”; ou ainda, “XXXVIII. – Consequências da Liga de
1703 até as Pazes de Utrecht (1715)”. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil:
antes de sua separação de Independência de Portugal. 7.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 8-9.
3
Conforme explica Arno Wheling, foram traçados aspectos tanto positivos quanto negativos para
personagens, entidades coletivas e coletividades pelo autor da História Geral do Brasil. Assim, aos
portugueses ficava realçada a ‘energia’, cabendo aos bandeirantes e aos índios, a ‘audácia’. Quanto aos
indígenas ocorre uma oscilação entre aspectos positivos e negativos: ‘força física’ aparece contraposta à
‘crueldade’, ao ‘espírito traiçoeiro’, ao ‘egoísmo’(no caso do homem índio) e à ‘volubilidade’, esse
aspecto sendo estendido também aos negros. Para personagens históricos individuais, onde a positividade
liga-se a traços que realçam a civilização, a simpatia de Varnhagen parece dirigir-se a homens como
Alexandre de Gusmão: ‘talento’ e ‘memória’; Marquês de Pombal: ‘sagacidade’; D. José I: ‘probidade’,
‘nobreza de caráter’, ‘benignidade’; e, Gomes Freire: ‘garbo’ e ‘simpatia’. Estado, História, Memória:
Varnhagen e a Construção da Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
193
4
MELLO, Evaldo Cabral de. O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste (1641-1669).
3.ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.
5
O Império Colonial Português. Lisboa: Edições 70, 1977, p.133.
6
Maria Aparecida Rezende Mota apontou para alguns traços significativos na biografia de Sílvio
Romero. Nascido em Lagarto, interior do estado de Sergipe, em 1851, onde teve uma infância modesta e
de afastamento dos pais, seus biógrafos consideram que o fato de ser proveniente de família pouco
abastada e marcada pela tragédia teriam contribuído para formar o seu temperamento arredio, irascível e
propenso a disputas que degeneravam em incidentes pessoais. Mas talvez mais importante que o seu
temperamento difícil, a longa permanência no Engenho Moreira, de propriedade dos seus avós, foi
responsável por fazer despertar no jovem Sílvio Romero o interesse pelas manifestações de caráter
popular. No futuro, Romero lembraria o deleite com o qual escutava, à noite, as maravilhosas e às vezes
sombrias fábulas narradas pelas velhas senhoras daquele engenho, onde apareciam personagens como o
saci, o jurupari ou o caipora. Já como crítico literário, Sílvio Romero iria conferir um grande valor às
fontes populares, considerando o processo de mestiçamento brasileiro como base da formação nacional.
194
Ao longo de sua vida, Romero atuou como jornalista, crítico, historiador e professor. Sílvio Romero
participou, em 1897, da criação da Academia Brasileira de Letras, tendo escolhido como patrono a
Hipólito José da Costa. Seguiria então colecionando polêmicas e desafetos, fosse em pugna direta ou em
situações que envolvessem a crítica a personagens do mundo das letras, como Teófilo Braga, Manoel
Bonfim e José Veríssimo. Sílvio Romero: dilemas e combates no Brasil da virada do século XX. Rio de
Janeiro: FGV, 2000.
7
Utilizo aqui a expressão geração de 1870 sob os mesmos cuidados para os quais atentou Roberto
Ventura, ou seja, “entre aspas, para evitar a ilusão da unidade de grupo ou da homogeneidade de
época.” In: Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p.10.
8
Há que se colocar a importância à essa época de pertencer ao quadro de Docentes do Colégio Pedro II.
Era essa instituição de ensino a responsável pela aplicação do exame que validava os diplomas dos
colégios, públicos ou particulares de todo o Brasil. Nisso, afirma-se a importância das opiniões de
professores como Silvio Romero e Capistrano de Abreu. Servia como um efeito cascata, por tudo aquilo
que poderíamos chamar de um ainda tênue esboço de sistema educacional. Suas convicções, conforme
podemos inferir, transformadas por força dos exames regulares, em palavras de ordem. Ver LOPES,
Eliane Marta Teixeira, FARIA FILHO, Luciano Mendes, VEIGA, Cynthia Greive (Orgs). 500 Anos de
Educação no Brasil. 5. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. Por sua vez, ao Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, conforme escreveu Alice Pfeifer Canabrava, coube ser, desde sua fundação, até a
criação das faculdades de Filosofia, já na década de 1930, o mais importante centro de estudos históricos
do Brasil. Estava o IHGB nessa situação, apto a formular a definição daquilo que considerava como
‘povo’. Para o IHGB de então, cumpria exaltar os varões preclaros e distintos por seu saber e brilhantes
qualidades. Tidos como modelos a ser perpetuados, entende-se que essa forma de história cívica visava
eternizar exemplos de brilhantismo e benemerência, sendo as biografias uma secção da Revista do
Instituto, no intuito que vidas exemplares viessem a inspirar o comportamento dos jovens e a repetição
dessas experiências bem sucedidas no futuro. Atestou Alice P. Canabrava que a História Geral do Brasil
(1854), obra histórica máxima de Varnhagen, “...afastou-se de algumas tendências que marcavam a
mentalidade dos homens daquele sodalício [o IHGB] como o indianismo, mas ligou-se aos seus grandes
objetivos. É o monumento da historiografia brasileira do século XIX.” Apontamentos sobre Varnhagen e
Capistrano. Revista de História, São Paulo, v. XVIII, n.88, out-dez.,1971,p.418.
195
9
WEHLING, Arno. Capistrano de Abreu e Sílvio Romero: um paralelo cientificista. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n.152, v. 370, jan. mar. 1991, p. 266.
10
Cabe dizer que na análise produzida por José Carlos Reis, Varnhagen descrevera o encontro entre
portugueses e índios ‘postado’ do tombadilho das caravelas portuguesas, atento expectador que era a
elogiar a colonização portuguesa por força e obra do aparato estatal lusitano, mas sempre pronto a
pulverizar qualquer iniciativa que não tivesse como sujeito da ação a Coroa portuguesa. As Identidades
do Brasil: de Varnhagen a FHC. 4. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2001.
11
A expressão aparece em uma carta de Capistrano de Abreu ao seu amigo João Lúcio de Azevedo. A
missiva é datada de 16 de julho de 1920, e Capistrano se dirigia ao ilustre historiador português nesses
196
termos: “Nossos pontos de vista são inconciliáveis. Para V. a reima semítica é o principal. A mim
preocupa o povo, durante três séculos, capado e recapado, sangrado e ressangrado...” Correspondência
de Capistrano de Abreu. v.2.2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p. 166.
12
Duas fases de Capistrano de Abreu: notas em torno de uma produção historiográfica. História,
Historiadores, Historiografia. Projeto História. n. 41, dez. 2010, p. 456-457.
13
Sobre a ‘Escola do Recife’, cabe observar com Ricardo Luiz de Souza que foi colocada em dúvida a
sua própria existência, com opiniões como as de José Veríssimo – para quem a Escola do Recife não teria
existência real – ou ainda, a de Alcântara Nogueira (em seu ‘Conceito ideológico do Direito na Escola do
Recife, 1980), que além de negar a existência dessa, a definiu não como uma Escola, mas como um
movimento. A esse, alinha-se Paulo Mercadante, e até um jurista que foi nela arrolado como Clóvis
Bevilaqua lhe negam a existência enquanto unidade de pensamento. Para Souza, o que se pode extrair de
mais importante a ser dito sobre a Escola/Movimento do Recife seriam alguns dos seus traços definidores,
que seriam: 1. Movimento contrário ao Romantismo e ao Império; 2. Busca de uma articulação teórica
entre poligenismo e evolucionismo, realizada sob o pressuposto de uma diferença original entre as raças,
com a naturalização das desigualdades de base social; 3. Desejo de renovação no campo filosófico, com o
rompimento do ecletismo espiritualista; 4. Idéia de uma hipostasia do Estado para a transformação social,
haja visto o entendimento da sociedade civil brasileira ser desarticulada e inorgânica, sendo o povo
amorfo, esgarçado e ligado apenas pelos maus costumes; e, 5. A Escola do Recife bateu-se contra o
monopólio das influências francesa e inglesa. Identidade nacional e Modernidade brasileira: o diálogo
entre Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica,
2007.
197
14
A cultura historiográfica brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo: UPF, 1998, p. 115.
15
ROMERO, Sílvio. Da interpretação filosófica na evolução dos fatos históricos (tese de concurso).
Studia, Rio de Janeiro, Colégio Pedro II, ano II, n. 2, dez. 1951. Pp. 143-154.
16
Idem, Ibidem, p. 145.
17
MOTA, Maria Aparecida Rezende. Sílvio Romero: dilemas e combates no Brasil da virada do século
XX. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
198
história que lograra desenvolver, tomando por base a combinação entre forças físicas e
mentais, uma concepção científica do assunto. Na opinião de Sílvio Romero, o
evolucionismo que regia as leis físicas e mentais havia suplantado aos sistemas
decrépitos dos metafísicos e teólogos.
Demonstrava o candidato grande entusiasmo, em meio ao que chamava de
“revolução intelectual do século XIX”18, pois passar-se-ia a contar com a aplicação de
contributos como o cálculo das probabilidades e a formação de estatísticas, além de
algumas descobertas de antigos monumentos do pensar humano – como o sânscrito, as
inscrições cuneiformes e hieroglíficas – as quais vieram a permitir que se formassem os
fundamentos da crítica histórica.
Subsídios dessa natureza deveriam possibilitar, na visão de Sílvio Romero, o
avanço da “marcha coletiva da humanidade”, e consequentemente, a liberdade desta, do
despotismo da natureza (pela ação da indústria), do despotismo dos padres (por meio da
crítica), e do despotismo dos tiranos, “...que se apossaram do poder de dispor de seus
destinos, e contra o qual ela [a humanidade] vai obtendo desforras por intermédio da
ciência e da revolução.”19 A história, defendia Romero, não deveria “mais ser uma
simples exposição árida de fatos; tão pouco poderá ser mais um estudo abstrato e
inaplicável ao gosto das deduções de Hegel e consócios.”20
A Introdução à História da Civilização na Inglaterra, escrita pelo inglês Henry
Thomas Buckle (1821-1862) foi publicada pela primeira vez em 1857, na Inglaterra, e
somente viria a lume em língua portuguesa em 1900, conforme vimos, tendo conhecido,
até onde sabemos, essa única edição. A seguirmos os comedidos comentários de Patrick
Gardiner21, nessa obra, Buckle teria defendido de maneira firme, mas um tanto confusa,
uma interpretação da história segundo a qual as evoluções históricas ocorreriam de
acordo com leis universais. Assim, conforme explica Gardiner, seguia Buckle a
exigência comtiana da qual a sociedade deveria ser estudada pela aplicação de métodos
científicos, tendo identificado que tal exigência devia significar a descoberta por
investigação indutiva, das uniformidades causais que determinavam a vida e a evolução
sociais.
18
Idem, Ibidem, p. 147.
19
Da interpretação filosófica na evolução dos fatos históricos (tese de concurso). Studia, Rio de Janeiro,
Colégio Pedro II, ano II, n. 2, dez. 1951, p. 151.
20
Idem, Ibidem, p. 154.
21
Teorias da História.3.ed.Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984.
199
Buckle chamava ainda atenção para a influência das leis físicas, tentando
evidenciar o papel daqueles agentes físicos, os quais classificava em quatro grupos. Tais
agentes exerceriam um peso preponderante sobre a raça humana. Seriam eles: o clima, a
alimentação, o solo e o aspecto geral da natureza. A este último corresponderia a função
de excitar a imaginação e sugerir superstições, que por sua vez, passavam a constituir
obstáculos ao progresso do conhecimento humano. Nesse sentido, é realçado pelo autor
o poder dessas superstições nos primeiros estágios dos povos, o que acabaria
acarretando peculiaridades às religiões desses.
A conclusão, ainda que provisória, conforme alegava Buckle, seria que onde as
forças da natureza haviam se revelado muito maiores, como nas civilizações não-
européias, havia ocorrido um mal enorme conforme se constatava na desigual
distribuição da riqueza e do conhecimento, obstáculo que se revelou insuperável a todas
essas civilizações. No caso da Europa, região mais fria e de solo menos exuberante,
teria sido mais fácil ao homem libertar-se das superstições que a natureza sugerira à sua
imaginação, sendo mais fácil também realizar uma distribuição mais justa da riqueza.
Isso significava dizer que na Europa, a natureza havia sido subordinada ao homem, ao
passo que no mundo não-europeu o contrário se impunha, embora reconhecesse o autor
a existência em países ‘bárbaros’ de exceções a essa regra do domínio da natureza.
As causas do progresso europeu – progresso moral e intelectual do homem – não
se constituíam portanto, num progresso de aptidão natural, mas num processo de
oportunidade. Somente na Europa o homem havia conseguido domesticar as energias da
natureza, submetendo-as à sua própria vontade pelo desvio dessas do seu curso normal,
e obrigando-as a contribuírem para a sua felicidade. Dessa forma, tais forças passavam a
servir aos objetivos gerais da vida humana. A civilização se avaliaria pelo triunfo do
espírito sobre os agentes externos, deduzindo-se daí, que no pensamento de Buckle, das
leis que regem o progresso da humanidade, as de espécie mental seriam mais
importantes do que as de natureza física.
Talvez seja possível dizer que as idéias defendidas por Buckle tenham sido um
dos capítulos finais, se não o último conhecido no percurso do longo século XIX, de
toda uma série de avaliações negativas voltadas aos povos não europeus. Conforme
observou Roberto Ventura (1991), a formação da antropologia esteve vinculada à
expansão européia, à noção da inferioridade dos povos não-brancos e ao racismo
científico. Tratava-se de uma visão eurocêntrica que pretendia inclusive negar “a
201
22
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São
Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.23-24. Conforme observou o autor, para Buffon, a história da
América não deveria ser escrita tomando-se por base as crônicas coloniais, mas a partir de dados da sua
história natural. Ele não acreditava na autenticidade dos relatos de Hernán Cortés e Bartolomé de Las
Casas, sobre a numerosa população Asteca e Inca, pois de acordo com as teorias professadas no Velho
Mundo, a população da América deveria ser rarefeita. Zonas densamente habitadas no continente
americano entravam em choque com as hipóteses sobre o caráter recente do continente, em termos
geológicos. Com base em princípios da mesma ordem recusava-se a grandeza dos monumentos e
construções conforme descritos por Cortés ou pelo Inca Garcilaso de La Veja. Para o abade Raynal teria
havido exageração, motivada pelo desejo de dar maior esplendor ao triunfo da conquista.
23
CARVALHO, José Murilo de. O motivo edênico no imaginário social brasileiro. Revista brasileira de
Ciências Sociais, n.13, v.38, 1998, p. 63-79.
24
Conforme observou Antonello Gerbi em sua análise da leitura de Buffon, havia a adoção tácita de um
conjunto de idéias aristotélicas, entre as quais, a que o estável, o fixo, o invariável possuiria prerrogativas
sobre o variável. Assim, as espécies que não mudam, seriam superiores aquelas que mudam, significando
que mudar corresponderia a decair, a degenerar. De acordo com Gerbi, a adoção do conceito de que o
invariável seria superior possuiria origem escolástica, e até aristotélica. Assim Gerbi se reporta: “Buffon
relata com freqüência que um dia, após longa fadiga, acreditava ter descoberto ‘um sistema muito
engenhoso sobre a geração’, mas (acrescentava) “abro Aristóteles e não é que encontro todas as minhas
idéias nesse desgraçado Aristóteles? Também, por Deus!, foi o que Aristóteles fez de melhor!’ ” O Novo
Mundo: História de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia das Letras, 1996,p. 33-34.
25
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São
Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.19. Cabe acrescer que o despotismo aparecia na visão de
Montesquieu, vinculado à escravidão e à poligamia, resultando em uma apatia geral conforme entendiam
os europeus ao observar as populações dos climas quentes.
202
com vida regrada, doce e tranqüila, e difere dos outros tipos climáticos, os
climas frios e tórridos, tidos como desvios negativos quanto a um modelo de
natureza. No Novo Mundo, as terras habitadas estariam na zona tórrida,
cuja natureza seria menos ‘ativa’ do que a do Antigo Mundo, com animais
menos numerosos e de menor porte, devido ao calor e à umidade. Seus
habitantes estariam em estado selvagem, com vida dispersa e errante,
impedidos de vencer a natureza e se aperfeiçoar.”26
26
Idem, Ibidem, p. 21-22. (grifos do autor).
27
Brasil: nações imaginadas. In: Pontos e Bordados: escritos de História e Política. Belo Horizonte:
UFMG, 2005, p. 233-268.
28
Identidade nacional e Modernidade brasileira: o diálogo entre Sílvio Romero, Euclides da Cunha,
Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
203
29
Observou Roberto Ventura que essa questão remete à polêmica travada (1882) entre Sílvio Romero e
Araripe Júnior. Para Araripe Júnior, a noção de natureza e imaginação não era marcado pela negatividade,
nem remeteria a uma ausência de raciocínio ou fraqueza nata aos habitantes dos trópicos. Araripe Júnior
passava então a considerar o que chamou por obnubilação tropical, que para ele seria um processo de
diferenciação psicológica e literária, processo determinista causado pelo impacto do meio sobre a
mentalidade européia. Como Araripe Júnior, também Sílvio Romero se baseava em princípios de Taine e
Spencer, no que acrescia sua ideologia nacionalista. Para Romero a nação seria “concebida como o
resultado da progressiva transformação das matrizes européias pela ação do meio ou da mistura de
raças”.Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São Paulo:
Companhia das Letras, 1991,p.37.
30
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira: contribuições e estudos gerais para o exato
conhecimento da literatura brasileira. v.1.7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 61. A primeira
edição é de 1888.
31
Idem, Ibidem, p. 61.
204
seja, o português, então colocado claramente como o mais poderoso e essencial motor,
por haver propiciado as condições e garantias morais e físicas para que existisse um
reino independente. Até aí, estaria tudo bem, mas Von Martius deixara em
esquecimento, o ponto que Romero considerava fundamental: o mestiço.
Ao analisar as perspectivas de Teófilo Braga, Romero esclarece que este não
teria pretendido, de forma consciente, escrever uma teoria da história do Brasil, mas
sim, fazer reparos sobre a vida literária do país na sua ‘Questões de literatura e arte
portuguesa’, editado em 1877.
Braga defendia então que o lirismo da Europa meridional teria sua origem
comum nas populações turanas, as quais descidas da alta Ásia em dois grandes grupos,
e realizando percursos tanto pelo norte da Europa, quanto através da África, acabaram
por convergir na Espanha. Na América teria se dado uma marcha semelhante desses
povos. Essas hipóteses de Teófilo Braga teriam sido absorvidas, segundo Romero, das
idéias de autores como Retzius, Beloguet, Pruner-Bey e Varnhagen. Com isso, Sílvio
Romero aproveitava para dar um quináu em Varnhagen, ao criticar a teoria da qual
seriam os povos indígenas do Brasil, ‘povos retrogradados’, conforme grafara o autor
da História Geral do Brasil. No entanto, Romero apresenta-se geralmente simpático à
Varnhagen, merecimento que ele justifica pela,
“erudição séria, do estudo direto dos documentos nos arquivos, nas
bibliotecas, nos cartórios; e mais de não se ter ele limitado a fazer pequenas
monografias e sim em ter levado ombros a empresas mais árduas, à história
geral do país, e à história de duas fases memoráveis de sua vida, a das lutas
com os holandeses e a da independência nacional.”32
32
História da Literatura Brasileira: contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura
brasileira. v.5. 7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 1551.
33
Idem, Ibidem, p. 1551. A História da Independência do Brasil liga-se a um episódio pouco visitado da
História da Historiografia. Falecido em 1914, Sílvio Romero não acompanharia esse desfecho. Desde
1914 o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro vinha realizando preparativos para o I Congresso
Internacional de História da América, programado para o ano de 1922, o qual abordaremos em nosso
último capítulo. Esse evento era parte das comemorações oficiais do Centenário da Independência.
205
Porém, para o Brasil, ao contrário das demais Repúblicas Sul Americanas, as quais haviam sido tornadas
co-irmãs da jovem república brasileira, não havia uma publicação digna de ser ostentada referente às lutas
pela Independência. O que havia de conhecido e publicado era a ‘História da Fundação do Império
Brasileiro’ (1865), da lavra de João Manoel Pereira da Silva (1817-1898), reportada por José Veríssimo
como “cheia de inexatidões e falhas, como todas as suas obras históricas.” Porém, em 1916, verificando
alguns manuscritos que haviam sido adquiridos pelo Ministério das Relações Exteriores aos herdeiros do
Barão do Rio Branco, o ministro Lauro Severiano Muller – sócio honorário do IHGB – encontrou entre os
papéis do antigo chanceler os originais do que seria a História da Independência do Brasil. O Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro tratou então de nomear uma comissão para verificar a autenticidade da
obra, com vistas à sua publicação. Dessa forma tratou a comissão, composta por J.Vieira Fazenda, B. F.
Ramiz Galvão, Pedro Lessa, Max Fleiuss e Basílio de Magalhães, sendo este o relator, de conferir e
coordenar os originais de Francisco Adolfo de Varnhagen. O trabalho se prolongou de 14 de maio aos
primeiros dias de setembro de 1916. Em suma, a comissão apontara indícios encontrados ao final da
secção LIV da edição de 1876 da História Geral do Brasil onde Varnhagen declarava que a História da
Independência seria “objecto de uma obra especial. «Essa nossa Historia da Independencia já se acha
escripta e será publicada, apenas consigamos elucidar algumas poucas dúvidas que ainda temos.” Por
motivos que a comissão ignorava, Varnhagen não conseguira dar estampa para a anunciada produção,
tendo sido colhido pela morte em 29 de junho de 1878. Baseando-se em uma narrativa verbal de Manuel
de Oliveira Lima, a comissão dizia que o manuscrito anunciado por Varnhagen fora pedido à sua viúva,
então no Chile, pelo delegado financeiro da embaixada brasileira em Londres, J. A. de Azevedo Castro.
Constava ainda haver uma carta do Barão de Rio Branco que “dirigida a um dos mais profundos mestres
da Historia Patria” asseverava que “ o valioso manuscripto lhe fora entregue pelo barão de Nioac”.
Dessa forma, Silva Paranhos, então cônsul em Liverpool e futuro Barão do Rio Branco teria ficado com
os originais. Conforme veremos, Rio Branco tornar-se-ia em algumas décadas, Ministro das Relações
Exteriores, e a partir de 1908, presidente do IHGB. A Max Fleiuss ele prometera por mais de uma vez que
doaria ao Instituto os manuscritos da História de Independência, que ficara em um dos muitos caixões
onde guardara o seu arquivo na Europa. Voltando à comissão instaurada no IHGB, esta tratara de
restaurar o texto de Varnhagen, pondo à margem as modificações feitas por Rio Branco e Eduardo Prado.
Nas palavras do seu relator, Basílio de Magalhães, não poderia “ser mais apropositada a occasiao, pois
que dentro em breve vai ser condignamente commemorado o primeiro centenário da conquista da nossa
soberania, e a Historia da Independencia do visconde de Porto-Seguro, com os inestimáveis adminículos
do barão do Rio-Branco, concorrerá grandemente para o brilho de tal festividade, que por si mesma,
quer fornecendo licção proveitosa e indispensável a quem se abalance a novo trabalho sobre os alicerces
sagrados da construcção definitiva de nossa amada Patria.” Conforme observou Lucia Maria Paschoal
Guimarães, na sessão magna de 6 de março de 1917, destinada a comemorar o centenário da efeméride da
Revolução Pernambucana, seriam apresentados os originais da ‘História da Independência do Brasil’.
Essa viria a público na Revista do IHGB somente em 1919, constando como parte do tomo 70
correspondente ao ano de 1916. Assim, sob os ventos do nacionalismo que sopravam no Brasil, a História
da Independência brasileira poderia ser ostentada ao público do I Congresso Internacional de História da
América (1922), eliminando assim o constrangimento frente aos historiadores de outras nações e
completando a reabilitação de Varnhagen junto ao Instituto, o que já vinha ocorrendo por obra de
Capistrano de Abreu desde 1906, quando o ‘Mestre’ preparara uma edição comentada do tomo I da
História Geral do Brasil. Ver: VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira
(1601) a Machado de Assis (1908). 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954. A primeira edição é de
1912. A citação encontra-se na pag. 189; Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de
Janeiro, T. LXXIX, parte I, 1916; e, GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da Escola Palatina ao
Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República,
2006, p. 119-120.
206
34
História da Literatura Brasileira: contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura
brasileira. v.1. 7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 66.
35
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira: contribuições e estudos gerais para o exato
conhecimento da literatura brasileira. v.1.7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 67.
36
Idem, ibidem, p. 69.
207
morais. Se nas civilizações primitivas predominam a ação das leis físicas sobre o
homem, nas modernas ocorreria o inverso.
As civilizações antigas teriam encontrado condições para se desenvolver onde as
condições favoráveis à vida – penínsulas, margem dos grandes rios, condições
mesológicas associadas ao calor e a umidade – vieram a marcar uma forte presença.
Mas reunindo tais condições favoráveis, o Brasil seria uma exceção, pois apesar das
condições naturais que o aproximariam de um paraíso terreal, nenhum lugar havia sido
deixado ao homem, o qual teria sido reduzido à insignificância pela majestade que o
cerca. Os ventos alísios trazendo consigo constantes chuvas torrenciais seriam o agente
natural (físico) perturbador, no quadro pintado por Buckle. A partir daí, o potencial da
agricultura teria sido obstaculizado pelas florestas intransitáveis, os rios seriam demais
largos para poder ser atravessados, e a abundante fauna brasileira, reunindo os animais
mais ferozes e daninhos devastadores de plantações, atuavam contra o pensamento
humano, que assim teria sido contido em sua ambição.
Daí o quadro que explicava as razões pela qual os habitantes primitivos do Brasil
não terem ultrapassado os últimos degraus da selvageria, bem como da civilização
brasileira ser impregnada pelo barbarismo. Sílvio Romero concordava nesse ponto, com
Buckle.
Porém colocava as seguintes ressalvas às teses do autor de História da
Civilização na Inglaterra: as inexatidões começavam por considerar uma exageração no
tocante ao ‘agente perturbador’, identificado por Henry Thomas Buckle nos ventos
alísios. O que havia de periódico no clima do Brasil, explicava Romero, não eram as
enchentes devastadoras, mas as calamitosas e destruidoras secas, estendidas a grosso
modo, das margens do São Francisco às do Rio Parnaíba, deixando mais de um terço do
país sujeito a esse flagelo. Os rios não seriam tão largos, exceção feita ao Amazonas e
ao São Francisco. Quanto à vegetação, alegava Sílvio Romero, transpassada a pequena
cinta das florestas, seria o Brasil coberto por vegetação rasteira.
Porém, de acordo com Sílvio Romero, se Buckle não fora verdadeiro na
determinação dos fatores do atraso brasileiro, era fiel na pintura que fazia do nosso
atraso. E Romero enumerava então, três categorias de fatores que, segundo ele,
explicariam o nosso atraso. Esses fatores seriam de ordem natural ou primária,
secundários ou étnicos, e terciários ou morais. Calores excessivos associados a secas,
chuvas torrenciais e intenso calor, falta de grandes vias fluviais nas províncias entre o
São Francisco e o Parnaíba, além das “...febres de mau caráter reinantes na costa”
208
37
História da Literatura Brasileira: contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura
brasileira. v.1.7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 87.
38
Idem, ibidem, p.94.
209
contavam mais da metade da população, sendo que o seu número tendia a aumentar,
pois os índios e negros puros apresentavam como tendência uma redução percentual no
universo da população. O mestiço afigurava-se ao autor como uma genuína formação
histórica brasileira, estando fadado pelo tempo, a confundir-se com o branco ‘quase
puro’. Quanto a essa conclusão, Romero se baseava na seleção natural que haveria na
mestiçagem, ao cabo de algumas gerações, o que faria prevalecer o tipo da raça mais
numerosa. A resposta para essa equação, Romero respondia que era – ou seria – a raça
branca mais numerosa, e dentro de dois ou três séculos a fusão étnica estaria completa,
bem caracterizando com isso, o brasileiro mestiço.
E a certeza dessa resposta estava fundada no estancamento dos mananciais de
negros e índios, bem como na contínua imigração de portugueses, italianos e alemães,
imigração que diga-se de passagem, esperava que se tornasse melhor dirigida e mais
bem localizada. É que Sílvio Romero observava com preocupação a formação de
quistos raciais no Sul do Brasil, e bater-se-á contra isso até data próxima ao seu
falecimento. Nesse caso, os descendentes desses povos, constituídos em um novo povo
misto, deveriam mostrar-se superiores aos seus antecessores, enquanto elementos de
colonização.
Não se deveria no entanto, de acordo com o autor, sustentar que ao colonizador
português caberia o galardão de ter sido o único fator da civilização brasileira. Seria
verdade entretanto que os portugueses, povo de origem variadíssima e complicadíssimo
resultado da história, encontrara as terras da América quando experimentavam o ápice
do seu florescimento, em momento que foi considerado o século mais brilhante de sua
história.
Mas a nova terra não chegaria a usufruir as vantagens da pátria ibérica, apesar
dos colonos portugueses que aqui aportaram, virem de posse de uma cultura adiantada.
O motivo, em parte, é que os indígenas teriam sido, para Romero, refratários à cultura.
Concomitante a isso, o jesuitismo expandindo-se e a carolice desenfreada contribuiu
para que fosse completado o quadro. Na América os jesuítas identificaram nos índios os
hereges que deveriam ser extirpados, mais do que os braços que poderiam ser
aproveitados. O regimen teocrático amordaçou a nação. Os indígenas brasileiros eram
nômades caçadores, não tendo outra cultura a não ser o cultivo da mandioca e do milho,
mesmo assim em reduzida escala. A arte cerâmica pela qual produziam suas talhas,
panelas, púcaros e igaçabas estavam ainda na infância. Quanto às idéias religiosas,
utilizada a classificação ao gosto dos positivistas, estavam os índios no período do
210
39
História da Literatura Brasileira: contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura
brasileira. v.1.7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 120.
40
Idem, ibidem, p. 196-197. Cabe dizer que a idéia de sistema literário seria retomada por Antônio
Cândido em sua Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos, porém em novas bases e maior
211
complexidade, ou seja, sem a subordinação aos fenômenos políticos e sociais. O sistema literário de
Cândido envolve autores, caracterizando a existência de uma vida literária; públicos, por permitir sua
veiculação, além da tradição, que seria segundo Cândido, a grande responsável por dar continuidade ao
repertório literário.
41
História da Literatura Brasileira, t. 2, p. 386.
42
História da Literatura Brasileira, T. 2, p. 483.
212
43
Correspondência de Capistrano de Abreu. v.1.2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p.199-
200.
44
Correspondência de Capistrano de Abreu. v.2.2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p.37-
38. Cabe esclarecer que Barbosa Lima Sobrinho utilizou dessas correspondências de Capistrano, em uma
conferência realizada em 9.9.1953, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. O título dessa
comunicação era “Capistrano de Abreu – Historiador”. Nosso intuito porém, difere daquele que
impulsionou ao grande imortal. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro,
v.221, out. – dez. 1953, p. 67 – 91.
45
Uma sugestão que se apresenta bastante didática provém de José D’Assunção Barros. Para ele,
Capistrano de Abreu teria passado por uma primeira fase, considerada inicial de formação historiográfica,
e que abrange até o ano de 1874. Entre 1874 e 1883 passava Capistrano pela fase denominada de
historicista cientificista, a qual estaria apoiada fundamentalmente em uma concepção mecanicista do real,
em uma metodologia indutiva e na busca de leis e generalizações que pudessem dar conta quanto à
compreensão das sociedades humanas historicamente realizadas. Na terceira e última fase encontraríamos
então em Capistrano de Abreu, uma influência mais decisiva do realismo histórico alemão. O grande
fetiche de Capistrano passava a ser o documento. O exercício de hermenêutica historicista de Capistrano
era então executado através de uma rigorosa crítica documental e de uma inquirição da verdade extraível
das fontes. Duas fases de Capistrano de Abreu: notas em torno de uma produção historiográfica. História,
historiadores, historiografia. Projeto História, n. 41. Dez. 2010, p. 455-489.
46
Sobre a cultura historiográfica brasileira ver DIEHL, Astor Antonio. A cultura historiográfica
brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo: Ediupf, 1998.
213
47
Capistrano de Abreu: ensaio biobibliográfico. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955.
48
Respectivamente, História e historiadores do Brasil. São Paulo: Fulgor, 1961 e Teoria da História do
Brasil: introdução metodológica. 4.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.
49
Ronda Noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, n.1, 1988, p. 28 – 54.
50
História e historiadores: a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
51
A cultura historiográfica brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo: Ediupf, 1998.
52
As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
53
A invenção da história: estudos sobre o historicismo. 2.ed. Rio de Janeiro: Gama Filho, 2001.
54
Capistrano de Abreu e a historiografia cientificista: entre o positivismo e o historicismo. In: NEVES,
Lucia Maria Bastos Pereira das Neves et. Ali. (Orgs.). Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro:
FGV, 2011.
214
55
ABREU, João Capistrano de. Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto
Seguro. In: Ensaios e Estudos: 1ª série. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975,p. 81-91.
215
56
Incentivado por Ramiz Galvão, Capistrano de Abreu que dominava conhecimentos em áreas tais como
História, Literatura, Filosofia, Geografia, Bibliografia, Paleografia, Inglês, Francês e Latim, dedicou-se
também ao estudo da Iconografia. Foi aprovado em primeiro lugar, e nomeado a 9 de agosto de 1879.
VIANNA, op. Cit, p. 14.
57
Trata-se do ‘Catálogo da Exposição de História do Brasil realizada pela Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro’, realizada a 2 de dezembro de 1881. Este trabalho encontra-se publicado nos Anais da Biblioteca
Nacional, v.IX, 1881, ocupando dois tomos.
216
58
História e historiadores do Brasil. São Paulo: Fulgor, 1961,p. 36.
59
Ibidem, p. 37-38. A biblioteca de Capistrano revelava, segundo José Honório Rodrigues, a
predominância da formação alemã do autor. Nela haviam obras de Ranke, Mommsen, Meyer, Georg
Friederici. Capistrano de Abreu teve como companheiro nos estudos de alemão, o escritor Machado de
Assis. Caberia acrescer da fala de José Honório Rodrigues que o historiador, não criando como na ficção,
acaba por recriar um mundo realmente vivido, mundo que foi sofrido, aproveitado ou perdido. O
historiador na sua prática, é guiado pelas teorias, que se apresentam variantes, segundo os interesses
presentes. Portanto, seria o documento, “...a única coisa permanente na mudança contínua. Para
acrescentar ao mundo dos fatos mais fatos, a pesquisa e a edição de textos eram o primeiro caminho que
a escola da crítica histórica de Ranke o faria [ a Capistrano de Abreu] seguir obstinadamente.” P. 47.
60
Capistrano de Abreu e a historiografia cientificista: entre o positivismo e o historicismo. In: NEVES,
Lucia Maria Bastos Pereira das Neves et. Ali. (Orgs.). Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro:
FGV, 2011, p.154.
61
Hélio Vianna recorreu ao relato do jornalista alemão Carlos von Koseritz, para quem a tese de
Capistrano ia muito além dos horizontes dos seus limitadíssimos examinadores, Moreira de Azevedo e
Matoso Maia. A esses, o examinando superava de longe, o que fazia com que os examinadores com ele se
chocassem, fazendo extraordinárias e por vezes, até tolas objeções à tese do talentoso jovem. O
Imperador, que se encontrava presente, e se irritava a cada demonstração da incapacidade dos
examinadores, deu o sinal para que o exame cessasse. Capistrano bateu-se com linha, mas brilhara à custa
dos seus ignorantes examinadores. Nomeado professor, Capistrano de Abreu deixava a Biblioteca
Nacional, e no mesmo ano editou a sua tese, dedicando-a “Aos organizadores do Catálogo da Exposição
de História e Geografia do Brasil, como prova de admiração e reconhecimento”. Capistrano de Abreu:
ensaio biobibliográfico. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955, p. 24-25.
217
62
WEHLING, Arno. A invenção da História: estudos sobre o historicismo. 2.ed. Rio de Janeiro: Gama
Filho, 2001.
63
Na proposta formulada por Arno Wehling, conforme já adiantamos, a expressão cientificismo tenta dar
conta daquilo que seria uma mitificação da ciência, ou seja, da transformação da ciência de um método de
abordagem em uma visão de mundo. Ver Capistrano de Abreu e Sílvio Romero: um paralelo cientificista.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 152 (370) pp 265-274, jan.mar.
1991.
64
O historicismo cientificista estava baseado em algumas idéias, a saber, a concepção mecanicista do
real, onde acreditava-se poder afirmar as regularidades da natureza humana; a indução, que fazia com
que a partir da observação e da experiência fossem encontrados indícios que autorizassem uma crescente
escala de generalização que levasse ao descobrimento das ‘leis’ da História.
218
65
O intelectual como símbolo da brasilidade: o caso de Capistrano de Abreu. In: ABREU, Martha,
SOIHET, Rachel, GONTIJO, Rebeca (Orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e
ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 309 - 327.
66
ABREU, João Capistrano de. Sobre o Visconde de Porto Seguro. In: Ensaios e Estudos: 1ª série. 2.ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
219
67
Capítulos de História Colonial, p. 18.
221
68
Capítulos de História Colonial, p. 49.
69
Capítulos de História Colonial, p. 60.
222
70
Ver: MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630/1654. São
Paulo: Edusp, 1975; e, MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração
pernambucana. 3.ed. São Paulo: Alameda, 2008.
223
Acreditamos que cabe aqui ressaltar uma observação de Nilo Odália (1997)
acerca da obra de Varnhagen. O episódio da deserção de Calabar havia adquirido realce
no contexto da afirmação da nacionalidade presente nos escritos do Visconde de Porto
Seguro. Assim, Calabar representava mais que uma traição, por motivo de sua
transferência para o campo inimigo haver auxiliado ao invasor holandês com aquilo que
de melhor possuíam os defensores da terra, tais como as táticas próprias das lutas de
guerrilha, onde se lutava uma guerra fora dos padrões de engajamento em campo aberto
com o inimigo, ou seja, uma luta na qual jogavam um papel fundamental as armadilhas
e surpresas, mas sobretudo, o conhecimento dos pontos geográficos vulneráveis72.
Doravante, com Calabar ao lado do invasor estrangeiro – e o aspecto da
afirmação da nacionalidade aparece em Capistrano de forma quase tão marcante como
na obra de Varnhagen – havia sido transferido ao campo inimigo os melhores recursos
de estratégia que antes eram monopolizados pelos ‘nacionais’73.
De igual valor aparece na narrativa de Capistrano, a restauração portuguesa,
onde é apreciado o panorama vicentino, assim escrevendo,
“Governava na Bahia, como primeiro vice-rei do Brasil, D. Jorge de
Mascarenhas, marquês de Montalvão, quando chegou a notícia dos sucessos
71
Capítulos de História Colonial, p. 82.
72
Fernand Braudel, leitor de Evaldo Cabral de Mello, tematizou os aspectos desse tipo de guerra
transportando-a para outras partes do mundo. Ele acaba concluindo que contra essa forma de luta pouco
podiam fazer as técnicas da ‘guerra científica’, válidas segundo ele somente “se praticada por ambos os
lados”. Nas suas palavras, a guerrilha fora imposta aos presunçosos veteranos holandeses, por “índios e
brasileiros, incomparáveis especialistas do ataque de improviso”. Essa seria uma guerra travada sob o
imponderável ‘tempo do mundo’, que rege, conforme os lugares e as épocas, certos espaços e certas
realidades, mas que deixa escapar outras realidades e outros espaços. Sob essa ótica braudeliana haveria
em toda parte, zonas nas quais a história mundial não se repercute, zonas de silêncio ou ainda, zonas de
tranquila ignorância. Daí a perplexidade do soldado holandês que “queria conduzir a guerra segundo as
regras da Europa, é desmoralizado por esses inimigos evanescentes que, em vez de aceitarem o combate
leal, em campo aberto, se furtam, escapam, fazem emboscadas. Que covardes! Que frouxos! Até os
espanhóis concordam. Como diz um dos seus veteranos: ‘não somos macacos para lutar nas árvores!’ ”
BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: séculos XV-XVIII (o Tempo do
Mundo). V. 3. São Paulo: Martins Fontes, 1998. As citações encontram-se respectivamente às pags. 47 e
48.
73
Analisando a História Geral do Brasil, de Francisco Adolfo de Varnhagen, Nilo Odália defendeu aquilo
que fica ressaltado das guerras de reconquista, que é como o Visconde de Porto Seguro qualificava as
chamadas invasões holandesas, seriam os elementos que permitem uma maior coesão interna da nação.
Tal coesão seria uma afirmação e uma garantia da unidade territorial, que estaria sustentada no papel
desempenhado na luta conjunta das três etnias. As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento
historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: Unesp, 1997. Sobre o papel de Capistrano
como anotador da História Geral do Brasil, de Francisco Adolfo de Varnhagen, ver AMED, Fernando.
Ser historiador no Brasil: João Capistrano de Abreu e a anotação da História Geral do Brasil de Francisco
Adolfo de Varnhagen. In:NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das et ali. (Orgs). Estudos de historiografia
brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2011.
224
Capistrano tece loas à nação que acredita estar sendo esboçada, logo ali pela
ação daqueles intemeratos heróis coloniais, onde,
“venceu o espírito nacional. Reinóis como Francisco Barreto, ilhéus como
Vieira, mazombos como André Vidal, índios como Camarão, negros como
Henrique Dias, mamalucos, mulatos caribocas, mestiços de todos os matizes
combateram unânimes pela liberdade divina. Sob a pressão externa operou-
se uma solda, superficial, imperfeita, mas um princípio de solda, entre os
diversos elementos étnicos” 75
77
Capítulos de História Colonial, p. 99.
78
O título completo é extenso: ‘Cultura e Opulência do Brasil, por suas drogas e minas, com várias
notícias curiosas do modo de fazer o açúcar; plantar e beneficiar o tabaco; tirar ouro das minas; e
descobrir as da prata, e dos grandes emolumentos que esta conquista da América Meridional dá ao Reino
de Portugal com estes e outros gêneros e contratos reais.’
226
79
Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. In:________________________ . Caminhos antigos e
povoamento do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988, p. 43.
80
Cada uma das vilas extremas da capitania de São Vicente, observou o autor, demandava destino
diverso, pois “ as vilas do Paraíba do Sul apontavam para as próximas Minas Gerais, como Parnaíba e
Itu apontavam para Mato Grosso, como Jundiaí apontava para Goiás, e Sorocaba para os campos de
pinheiros em que já surgia Curitiba”. Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil, p. 45.
81
Idem, Ibidem, p. 44.
227
movimento paulista, desta vez voltado para o sertão ocidental veio a chocar-se com o
movimento paraguaio à procura do mar. Harmonia inicial por conta de interesses
econômicos, até que já na primeira década do século XVII, os jesuítas castelhanos
viessem missionar na margem oriental do Paraná, fundando Loreto e San Ignácio, no
Paranapanema e mais de uma dezena de reduções no Tibagi, Ivaí, Corumbataí e Iguaçu.
O conceito de reduções jesuíticas, que Capistrano toma de empréstimo de um
jesuíta do século XVII, seria,
“...povoados dos índios, que vivendo à sua antiga usança, em matos, serras e
vales, em escondidos arroios, em três, quatro ou seis casas apenas,
separados, uma, duas, três e mais léguas uns dos outros, os reduziu a
diligência dos padres a povoações grandes e a vida política e humana, a
beneficiar algodão com que se vistam, porque comumente viviam em nudez,
ainda sem cobrir o que a natureza ocultava” 82
82
Capítulos de História Colonial, p. 102.
228
83
Capítulos de História Colonial, p. 103.
84
Capítulos de História Colonial, p. 104.
229
naturalmente ajustava-se a paga dos serviços em cruzados, tudo por conta da fazenda
pública. Ficavam ainda acertados a doação aos conquistadores da ‘Tróia Negra’, das
sesmarias a serem demarcadas no sítio de Palmares. Como de regra, oferecia-se ainda
quatro hábitos das três ordens militares portuguesas para Domingos Jorge Velho e os
oficiais que ele viesse a nomear85. Assim, os paulistas teriam passado de bandeirantes a
colonizadores, isto é, na linguagem de Capistrano de Abreu, de despovoadores a
povoadores, entregando-se nas ribeiras do rio das Velhas e do São Francisco à criação
de gado.
Aliás, o gado vacum, pedindo pessoal mínimo, quase abolindo capitais, além de
não exigir riqueza de solos, foi o responsável pelo adentramento de uma população
doravante fixada no interior. Apesar das temerárias fomes que assolaram a Colônia, essa
situação não via conformidade em relação ao trato do gado, sempre a fornecer
alimentação constante. Mas havia também o couro para a porta das cabanas e para o
rude leito aplicado ao chão duro, passando pelas cordas, pelo alforje da comida ou ainda
pelas bainhas de faca e os surrões apropriados para entrar no mato. No entendimento de
Capistrano de Abreu, foi a criação de gado que tornou possível o descobrimento das
minas.
Mas tal descoberta tem também a sua ligação com o chamado de D Pedro II de
Portugal à gente principal dos paulistas. À época, ressalta Capistrano, uma carta régia
era ombreada a uma honra quase sobre-humana. Os paulistas, pioneiros da mineração,
sofreram seu revés na Guerra dos Emboabas, mas viraram mineiros novamente, no
Oeste, com os achados de Pascoal Moreira Cabral nas minas de Cuiabá, quando ele e
seus companheiros andavam à cata de índios.
Lembra Capistrano que, “depois da guerra dos emboabas, houve ainda
desordens em Minas Gerais, uma delas, em 1720, sufocada energicamente; não mais
inspirou-as o espírito de nativismo, isto é, a queixa de espoliação e sua importância é
meramente provinciana.” 86
Ganha realce sob Capistrano de Abreu a análise do livro de João Antonio
Andreoni Luquense, o jesuíta setecentista autor de Cultura e Opulência do Brasil
(1711), por suas drogas e minas. Cabe lembrar que o livro trazia o anagrama do autor,
85
Condições ajustadas com o governador dos paulistas Domingos Jorge Velho em 14 de agosto de 1693,
para conquistar e destruir os negros de Palmares. Revista do Instituto Historico, Geographico e
Ethnographico do Brazil. Rio de Janeiro, t.XLVII, parte I, 1884, p. 19-24.
86
Capítulos de História Colonial, p. 151. Como podemos ver, nesse ponto Capistrano divergia dos
historiadores do IHGMG.
230
estando nesse grafado André João Antonil, cabendo a autoria desse achado a Capistrano
de Abreu.
A obra, dividida em cinco partes, inventariava o grau de autonomia que
alcançara a economia da colônia portuguesa já nos primeiros anos do século XVII,
tratando dos engenhos e do açúcar, do fumo, das minas e do gado.
O livro recebeu uma resposta fulminante do governo português, pois foi
confiscado mediante a desculpa de que revelaria segredos do Brasil aos estrangeiros.
Expõe Capistrano que a verdade seria outra, pois, “o livro ensinava o segredo do Brasil
aos brasileiros, mostrando toda a sua possança, justificando todas as suas pretensões,
esclarecendo toda a sua grandeza” 87.
A Conjuração Mineira se tornaria a grande ausente da obra de Capistrano. Este
ajuntara diversos motivos para que a conjura, elevada ao conceito de movimento
nativista nos anos iniciais da República, não aparecesse. Quanto a Capistrano de Abreu,
que a confiarmos na avaliação de seu crítico mais simpático, José Honório Rodrigues,
era à época do lançamento dos Capítulos de História Colonial (1907) reputado como a
mais incontrastável autoridade na história pátria88, talvez coubesse uma espécie de
‘desculpa por procuração’. É sabido que a síntese da pesquisa realizada para anotar a
História Geral do Brasil com vistas a reeditá-la89, foi uma tarefa à qual Capistrano se
atirou a partir de 1902, atividade que veio a contribuir de forma significativa na
composição dos Capítulos de História Colonial. O fato é que, em 1907, a Inconfidência
Mineira já era considerado como o mais importante evento precursor da Independência
do Brasil. Advogando em favor de Capistrano, assim, José Honório Rodrigues explicou
o ocorrido:
“O fato é que entre 1878, quando criticava Varnhagen por considerar a
Conjuração Mineira como uma cabeçada e um conluio, e 1903, quando se
intrigava com as honras prestadas a Tiradentes em detrimento dos Mascates
e dos Republicanos de 17, ele parece ter se convencido de que a Conjuração
realmente não tivera a importância que começavam a atribuir-lhe. Muito
mais importante eram as lutas dos Emboabas e dos Mascates, a consciência
da riqueza do país, as proezas dos bandeirantes, os atritos armados e
87
Capítulos de História Colonial, p. 162.
88
Lúcia Maria Paschoal Guimarães escreveu que “mesmo ausente das sessões [do IHGB], Capistrano era
uma espécie de eminência parda na vida intelectual do Instituto”(2007:123). Dessa forma, cabe acrescer,
“desde 1906, já se esboçava um certo movimento de reabilitação de Varnhagen, liderado por Capistrano
de Abreu, que preparou uma edição comentada do tomo I da História Geral do Brasil. Capistrano
costumava recomendar a leitura da obra aos confrades do IHGB. Embora discordasse de certas
interpretações do visconde, louvava seus méritos de profundo conhecedor do ofício, mormente, no que se
refere à pesquisa documental.” (2007: 122-23).
89
AMED, Fernando. Ser historiador no Brasil: João Capistrano de Abreu e a anotação da História geral
do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen. In: NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das et. Ali.(orgs.)
Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2011, p. 125-150.
231
Porém, mais importante do que possa ser imputado a Capistrano como uma falha
em sua obra de síntese, a qual ele mesmo reputava como bastante incompleta, teria sido
o seu mérito em conseguir desvencilhar-se do posicionamento típico da chamada
‘geração de 1870’, qual fosse, de perscrutar o Brasil sob o prisma do darwinismo social.
Essa geração se mantinha temerosa, como ensina José Carlos Reis (2001) no tocante ao
que as teorias de fins do século XIX reservavam ao país e ao seu povo, no tão almejado
rumo da civilização.
Daí para José Carlos Reis, o grande mérito de Capistrano nas suas obras de
maturidade teria sido reabrir o futuro do Brasil, vencendo com isso,
“...o pessimismo existente entre os intelectuais brasileiros, que olhavam o
Brasil com as teorias deterministas européias e nele não viam o que elas
valorizavam, embora ele também em uma primeira fase, tivesse se
impregnado de tais teorias e feito algum contorcionismo teórico. Finalmente,
ele optou pela teoria européia que valoriza a singularidade, a historicidade
de cada povo, e formulou uma nova interpretação do Brasil que enfatizará o
tempo histórico especificamente brasileiro.”91
O método histórico rankeano, como diz Reis, mas também uma nova perspectiva
dotada de expressiva alteridade teriam permitido com que Capistrano de Abreu
observasse sob outras cores a formação do Brasil. O protagonista principal nesse drama
de três séculos não foi o português – embora esse tenha servido como motor inicial –
pois havia atravessado o oceano saído de uma outra guerra, travada no solo da sua terra
natal, contra os muçulmanos, povo que consideravam hereges. Nessa conquista
americana, os filhos de Portugal não encontram os seguidores de Maomé, mas broncas
tribos nômades. Então eles rapidamente se desprendem de sua identidades européias, e
conquistam a complexa espacialidade dos trópicos, para em um breve espaço de tempo,
reterritorializá-lo, expressão que na acepção de uma relação natureza-homem, como em
F. Ratzel, passa a significar o domínio da natureza pelo homem.
Contudo, esse homem é algo novo, surgido na América e confrontado com seus
desafios que somente a ele cabe enfrentar e vencer, pois não conhece outras paragens, e
90
Citado em RODRIGUES, José Honório. História e historiadores do Brasil. São Paulo: Fulgor, 1961,
p.44-45. (grifos do autor).
91
As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, p.94.
232
essa terra é afinal o seu solo natal . Essa natureza tropical não seria insuperável e muito
menos degenerada como pretendiam teóricos como Montesquieu, Buffon, Raynal, De
Pauw92.
Capistrano conhecia bem os historiadores/cronistas coloniais tão menosprezados
por Buffon e parece que tomara gosto pelo contato de lê-los por força de ofício na
Biblioteca Nacional. Por sua vez, alguns desses cronistas coloniais eram padres, com
formação escolástica e que haviam lido sobre a ‘tórrida zona’ de Aristóteles, assim
como também não desconheciam a realidade da América tropical. Assim, Capistrano
embeberou-se em Antonil, decifrando seu anagrama para mostrar que esse jesuíta
setecentista revelara o segredo do Brasil aos brasileiros, estudou Gândavo, o qual
admitia fazer o elogio da terra no fito de atrair imigrantes, e escreveu as ‘notas
preliminares’ para a História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador, de 1627, obra de
apologia ao Brasil, a ponto de ter sido considerada por Sílvio Romero, como um hino
patriótico.
Ao personalizar o espaço e de forma raffesteniana transformá-lo em território,
sobrepujando a natureza aos seus interesses, esse colono já é um miscigenado com o
indígena, pois Capistrano inclinou-se a ver um Brasil mais mameluco, mais caboclo.
Esse mameluco teria sido o resultado étnico da pousada final dos bandeirantes, após
suas investidas em busca de índios, ouro, pedras preciosas, quilombolas. Após
percorrerem os quadrantes do território, estes ‘paulistas’ resolveram estabelecer-se nas
novas paragens, tornando-se um novo tipo: o sertanejo brasileiro, que Euclides da
Cunha – de maneira elegíaca, e possivelmente com os olhos postos sobre Canudos –
diria ser um forte, mas que Capistrano de Abreu – mais realista e ele próprio um
sertanejo – caracterizaria desde já como um mestiço, homem singular integrado à
natureza dos trópicos.
Por seu turno, Sílvio Romero encontrava-se enquanto parte da intelectualidade
de um país periférico, e além disso, recén-saído da escravidão, mais comprometido com
um corpo doutrinário que atuava de maneira sistemática no mundo ocidental.
Essas doutrinas defendiam que haveria uma diferença inata entre os seres
humanos, e elegia a antiguidade Greco-romana – com ênfase na sua vida intelectual,
incluídos aí os seus modelos de estatuária tomados enquanto exemplares de beleza
92
Cfe. GERBI, Antonello. O novo mundo: história de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
233
clássica – como padrão daquilo que deveria ser uma sociedade superior, constituída por
indivíduos biologicamente perfeitos.
Conforme observou Mota (2000), a Europa – entendida como a parcela da
humanidade que mais se aproximava dessa perfeição vislumbrada na Antiguidade
Clássica – foi elevada à categoria de valor supremo da comparação, e portanto também,
da desigualdade. Nas palavras da autora, “ ...a racionalidade ocidental criava uma
escala biossocial na qual figurava no topo, localizando negros, índios ou quaisquer
outras etnias que não a branca [incluídos aí os mestiços]nos patamares inferiores.”93
Dessa feita, as teorias racistas, popularizadas no contexto das crescentes
rivalidades que envolviam os países europeus na passagem do século XIX ao XX, e até
de certa forma tornadas roteiros de leituras obrigatórias aos teóricos da idéia nacional,
penetraram nos discursos sobre a nação, a eles incorporando o vocabulário proveniente
dos escritos de autores como Joseph Arthur de Gobineau.
Uma outra vertente do pensamento racial, na qual pontificava Herbert Spencer,
havia interpretado o darwinismo, no que pretendia haver fundamentado as teorias da
nação sob fórmulas biologizantes, o que acabou por fornecer ao racismo uma razão
científica que possibilitava afirmar a doutrina da superioridade de certas nações sobre
outras. Ainda de acordo com Maria Aparecida Rezende Mota,
“...a identificação, no século XIX, entre os dois termos – civilização e
progresso – foi, portanto, resultado de um lentíssimo processo de agregação
de conteúdos e de imagens positivas. E é esse o sentido que predomina nas
teorias européias sobre a nação. Seria com ele que os mais populares
autores europeus construiriam seus esquemas explicativos do indivíduo e da
sociedade, interpretando a nação – sua nação – como o lugar mesmo em que
o Ocidente se realizava enquanto civilização.”94
93
MOTA, Maria Aparecida Rezende. Sílvio Romero: dilemas e combates no Brasil da virada do século
XX. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 82.
94
Idem, Ibidem, p. 85.
234
5 – Avesso da Civilização
“De longa data vivemos num perfeito mundo da lua muito parente daquele camoneano
estado d’alma ledo e cego da Inês de Castro...Sempre vimos errado, a nós e às nossas
coisas. E apesar de inúmeras decepções continuamos a ver-nos ainda às avessas. Umas
tantas mundices da lua ganharam foros de axioma, desses que se demonstram pelo simples
enunciado, v.g.: a triplice miragem da nossa riqueza, da nossa inteligência e da nossa inven-
cibilidade.. Resumem-se assim tais dogmas: 1º - Somos um dos povos mais inteligentes e
sensatos do mundo – como o afirma Alberto Torres no “Problema Nacional”, consolidando uma
opinião generalizada. Mas como o pensador ocupa as quatrocentas paginas de sua obra no de-
monstrar que em apenas um seculo de vida livre chegamos á completa degradação moral, política
e financeira, o leitor sai do livro com esta mirifica lição nos miolos: quanto mais inteligente e
sensato um povo, tanto menos capaz de organização e progresso. 2º - Somos o país mais rico do
mundo (poetas, jornalistas, patriotas, mensagens governamentais, etc.). 3º - O Brasil é o único
país, além do Japão, que jamais foi vencido em guerra (didatas, oradores, de Recreativas, mulatos
pernósticos, etc.). Monteiro Lobato. ‘A ação de Oswaldo Cruz’.
Artigo publicado em 1918, no jornal ‘O Estado de São Paulo’. In: Problema Vital.
Nos anos iniciais do século XX o que estaria faltando ao Brasil para que fosse
considerado um país civilizado? Caso preferíssemos responder a essa questão
aproximando a noção de civilização de um viés político, encontraríamos certos
subsídios nas discussões que envolviam os rumos da República, regime que por si só
ensejava a noção de progresso, e que fora aliás instaurada em seu nome, sobretudo se
considerada a visão de mundo dos positivistas1, os quais conforme precisa observação
de José Murilo de Carvalho, haviam se mostrado hábeis produtores de símbolos 2 .
Caberia ainda acrescer que a República, com seus ideais – e com sua proposta um tanto
vaga de realizá-los – surgira alardeando, conforme apontou Lilia Moritz Schwartz,
promessas de igualdade e de cidadania, elementos esses de uma modernidade que
tomava a França como o grande modelo civilizatório3. Nesse sentido, as críticas ao novo
1
COSTA, João Cruz. Contribuição à história das idéias no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
1967.
2
A formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Ver especialmente o cap. 5, ‘Bandeira e hino: o peso da tradição’.
3
Observa essa autora que estaria sendo prometida uma era onde seriam abertas, por meio da educação, as
possibilidades de acesso à cidadania, em uma sociedade não mais cerceada por modelos de hierarquia
social restrita, o que valeria dizer que a antiga sociedade estamental cedera a vez a uma sociedade de
classes, aberta à meritocracia, e desvinculada portanto de critérios de origem ou de nascimento.
236
regime de governo poderiam servir para nos apontar aquilo que falhara, ou ainda o que
ao menos fora considerado no universo das escolhas daqueles que à época detinham o
poder.
Porém, caso queiramos investigar a mais profunda motivação existente por trás
da recorrente obsessão das nossas elites por ingressar nesse idealizado paraíso terreal
resumido na palavra civilização, teremos que considerar algumas pistas deixadas por
alguns estudiosos em trabalhos que nos precederam. Nessa tarefa, cabe apontar
inicialmente para José Murilo de Carvalho, autor que demonstrou com sobejas que a
tarefa a ser enfrentada pelos republicanos nos primeiros anos do novo regime era
substituir um governo e construir uma nação4. Naquela perspectiva, o desmoronamento
da sociedade escravocrata e a consequente emergência de uma sociedade de classes 5
veio a projetar-se ao mesmo tempo que a queda da monarquia e a instauração do regime
republicano.
Durante todo o período monárquico a tarefa dos donos do poder fora dar
continuidade à obra civilizatória da colonização portuguesa, o que consistia na
persistência da defesa dos valores inegociáveis consoantes ao ethos da elite saquarema,
o que de certa forma ficou plasmado como componente do campo de experiência
brasileiro no elogio histórico formulado por Francisco Adolfo de Varnhagen. Nesse
sentido, acreditamos estar autorizados a dizer que se antes era possível encontrar nas
páginas da História Geral do Brasil a caracterização da memória da colonização como
repositório seguro sob um paradigma consoante com a historia magistra vitae,
doravante certos conceitos e valores sofreriam um pouco a variação no seu sentido. Fora
gestada uma nova sociedade, que se declarando burguesa, e no campo discursivo,
meritocrática ameaçava destituir o homem ‘branco’ brasileiro do seu papel de condutor
privilegiado dos destinos da nação, apontando para a emergência de novos atores
coletivos.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As marcas do período. In: ____________.(Dir.) História do Brasil Nação:
1808-2010. V.3. A abertura para o Mundo (1889-1930).Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
4
Explica o autor que no Brasil, a temática nacional somente passou a ser tratada em seu âmbito político
ao se aproximar o momento de enfrentar o problema da escravidão. Dessa forma, a imigração estrangeira,
realizada pela necessidade de mão-de-obra livre para as regiões cafeeiras e a incorporação dos escravos à
sociedade de classes eram duas faces de um mesmo problema. Caberia ainda dizer que a abolição da
escravidão, realizada no penúltimo ano da Monarquia atendera na verdade à necessidade política de
preservação da ordem pública, a qual estava ameaçada pela fuga em massa de escravos. CARVALHO,
José Murilo de. Entre a liberdade dos antigos e a dos modernos: a República no Brasil. Dados – Revista
de Ciências Sociais. Rio de Janeiro,v.32, n.3,1989, pp.265-280.
5
Encontramos acerca dessa questão uma crítica incisiva movida por Florestan Fernandes. Ver desse
autor: A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978.
237
A Abolição com suas imposições legais e a República com seus trilhos e linhas
telegráficas avançando sertão adentro – então considerados como signos da civilização
pela crença mantida em seu papel transformador – haviam colocado novos problemas ao
apresentar contingentes populacionais identificados como pouco afensos aos laços de
lealdade do projeto de nação conduzido pelos donos do poder6. Negros e índios eram
então considerados pela elite branca como sendo incapazes de prover a necessária
sustentação social e política aos pressupostos hierárquicos que vinham expressos no
ideal de Civilização.
Conforme esclareceu Lilia M. Schwarcz, a Abolição contribuíra para que
desmoronasse um complexo sistema de mecanismos sociais de distinção, que seriam
apropriados e até necessários em uma sociedade estamental, dentre esses a alforria,
mobilidade que era individual, ou em outras palavras, uma alteração em pequena escala,
não contendo assim, características de alteração de magnitude no corpo social.
Mas considerado o processo histórico, que conforme sabemos retrata tão
somente uma dinâmica da vida dos homens em sociedade, novas forças se reagrupavam.
A questão da mudança de um cenário que acabou impedindo a absorção dos ex-escravos
na sociedade de classes emergente que então vinha sendo gestada, foi em parte
esclarecida por Lúcia Lippi Oliveira ao estudar a questão nacional na Primeira
República. Ela explica que já em meados do século XIX, diferentes pensadores haviam
passado a interpretar os conflitos de ordem política e social em termos de luta de raças.
O grupo étnico entendido enquanto segmento da população marcado por características
similares, com a nação organizada sobre etnias, fazia com que desaparecessem as
esperanças e aspirações da criação de uma nova ordem política e social popular. A visão
da história aparecia então como sendo uma luta incessante, e a guerra e o conflito
figuravam naquele contexto, como um instrumento do progresso.
Debruçada sobre essa mesma temática, observou Lilia Moritz Schwarcz que o
cenário que acima procuramos esboçar fora, “...convulsionado pela entrada dos
racismos e das teorias raciais de toda ordem, que impuseram novas divisões entre os
grupos humanos, agora justificadas por argumentos e teorias biológicas.” 7 O que
acabaria ocorrendo, ainda segundo essa autora foi que “em vez da trajetória
assimilacionista que se apresentava como estrada de percurso longo, mas possível,
6
MACIEL, Laura Antunes. A comissão Rondon e a conquista ordenada dos sertões: espaço, telégrafo e
civilização. Projeto História. São Paulo, n.18, mai. 1999, p.167-189.
7
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As marcas do período. In: ____________.(Dir.) História do Brasil Nação:
1808-2010. V.3. A abertura para o Mundo (1889-1930).Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 20.
238
8
Idem, ibidem, pp. 20-21.
9
Idem, ibidem, p. 25. (grifos da autora).
10
O darwinismo social foi tema recorrente nas sociedades ocidentais entre o último quartel do século XIX
e as duas primeiras décadas do século XX, tendo perdido força após a Primeira Guerra Mundial (1914-
1918). Entre os autores consagrados ao período podemos destacar GOLLWITZER, Heinz. O
imperialismo europeu (1880-1914). Lisboa: Verbo, 1969; MAYER, Arno J. A força da tradição: a
persistência do antigo regime (1848-914). São Paulo: Companhia das Letras, 1987; HOBSBAWM, Eric J.
A era dos impérios: 1875-1914. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; TUCHMAN, Barbara. A torre do
orgulho: um retrato do mundo antes da Grande Guerra (1890-1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
239
11
RAMOS, Jair de Souza, MAIO, Marcos Chor. Entre a Riqueza Natural, a Pobreza Humana e os
Imperativos da Civilização, Inventa-se a Investigação do Povo Brasileiro. In: SANTOS, Ricardo Ventura,
MAIO, Marcos Chor. (Org.) Raça como questão: História, Ciência e Identidades no Brasil. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 2010, p. 32.
12
RAMOS, Jair de Souza. O Brasil sob o Paradigma Racial: Sociologia Histórica de uma Representação.
In: PENA, Sérgio D. J. (Org.). Homo brasilis: aspectos genéticos, lingüísticos, históricos e
socioantropológicos da formação do povo brasileiro. 2.ed. Ribeirão Preto: Funpec, 2002, p.132. Sobre a
discriminação racial no Império Colonial Português, nossa referência é a obra de Charles Ralph Boxer, e
especificamente indicado seria O Império Colonial Português. Lisboa: Edições 70, 1977. O tema
encontra-se desenvolvido no capítulo 11 desse livro, intitulado «Pureza de Sangue» e «Raças Infectas».
De acordo com Boxer, durante séculos os portugueses puseram uma tônica no conceito de limpeza ou
pureza de sangue, não somente do ponto de vista classista, mas também do ponto de vista racial. Esta
afirmação contradiz pesquisadores que afirmam que os portugueses nunca tiveram qualquer preconceito
racial digno de menção. Ao contrário disso, afiança Charles Boxer que negros e mulatos, bem como todos
os indivíduos que tivessem mistura de sangue africano foram, durante séculos, considerados como
pessoas de sangue infecto em todo o Império Português.Expressões como raças infectas são
frequentemente encontradas, seja em documentos oficiais, ou ainda na correspondência privada, até o
último quartel do século XVIII. Escravos negros e indivíduos de origem judaica constituíam, de modos
diferentes, segmentos muito importantes da sociedade no Império Português, porém não eram os únicos
indivíduos sobre os quais a discriminação era feita. Os portugueses faziam uma discriminação racial
rígida, tanto na Igreja, quanto no Estado. O clero não-europeu dos seminários portugueses sofria
limitações em relação aos seus irmãos brancos. Na Índia, os portugueses consideravam todas as raças de
cor, especialmente os indianos e os africanos, como intrinsecamente inferiores à raça branca.
240
Começando pelo primeiro grupo, julgamos ser interessante observar que essa
sequência de ensaios exprime a forma pela qual se deu em nosso país a apropriação das
teorias raciais européias, sob a qual debruçaram-se alguns destacados intelectuais
13
RAMOS&MAIO destacaram entre esses, além do já citado Buckle, o diplomata francês Arthur
Gobineau (1816-1882) que viveu no Brasil por um curto período, entre 1869 e 1870, tendo se tornado um
grande amigo do Imperador Pedro II. Gobineau havia escrito em 1853 o famoso “Ensaio sobre a
Desigualdade das Raças Humanas”. Outro viajante e cientista foi Louis Agassiz (1807-1873), naturalista
suíço radicado nos EUA que aportou ao Brasil em 1865, integrando uma expedição científica à busca de
espécimes da flora e da fauna brasileiras. Dignos de registro seriam ainda o escritor francês de livros de
aventura, Gustave Aimard (1818-1883), o qual passou parte da sua juventude na América do Sul, o
também francês, Louis Couty (1854-1884) fisiologista que foi professor na Escola Politécnica do Rio de
Janeiro e o ensaísta argentino José Ingenieros (1877-1925), autor de um livro de muito sucesso na
América do Sul: “O Homem Medíocre”. RAMOS, Jair de Souza, MAIO, Marcos Chor. Entre a Riqueza
Natural, a Pobreza Humana e os Imperativos da Civilização, Inventa-se a Investigação do Povo
Brasileiro. In: SANTOS, Ricardo Ventura, MAIO, Marcos Chor. (Org.) Raça como questão: História,
Ciência e Identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010, p. 31-33.
14
Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. 3.ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2008.
241
15
O subtítulo dessa obra extensa (5 volumes) é ‘Contribuições e estudos gerais para o exato
conhecimento da literatura brasileira. Utilizamos a 7ª edição, que veio a lume pela José Olympio no ano
de 1980.
16
A edição por nós utilizada foi a 3ª (1938), preparada pela Companhia Editora Nacional no âmbito da
Coleção Brasiliana, em volume que recebeu um prefácio de Afrânio Peixoto. As linhas por ele traçadas
nos esclarecem que o Dr. Nina Rodrigues, estabelecido inicialmente em sua terra natal, o Maranhão,
estudou a lepra e criticou os hábitos alimentares, colhendo a animosidade da classe médica local, pela
qual foi apelidado de “doutor farinha-seca”. Na Bahia porém, dedicar-se-ia a estudos sobre a abasia
coreiforme, entre outros, antes que a medicina legal viesse a se tornar sua paixão. A tuberculose, o câncer,
a degeneração e a criminalidade foram seus objetos privilegiados de investigação. A morte o colheria a 17
de julho de 1906, em Paris, para onde partira em busca de melhoras para a saúde debilitada.
17
SOUZA, Ricardo Luiz de. Pensamento Social Brasileiro: de Raul Pompéia a Caio Prado Júnior.
Uberlândia: Edufu, 2011.
242
18
PERARD apud. SOUZA. In: SOUZA, Ricardo Luiz de. Pensamento Social Brasileiro: de Raul
Pompéia a Caio Prado Júnior. Uberlândia: Edufu, 2011, p. 92.
19
RODRIGUES apud. SOUZA, idem, ibidem, p. 93.
243
20
RODRIGUES, Raimundo Nina. Os mestiços brasileiros. In: _________. As coletividades anormais.
Brasília: Senado Federal, 2006, p.129.
21
RODRIGUES, Raimundo Nina. A loucura epidêmica de Canudos. In: _________. As coletividades
anormais. Brasília: Senado Federal, 2006.
22
Nina Rodrigues amparava-se então nas referências da literatura médica da época (Magnan, Garnier,
Lasègue, Falret) para diagnosticar Antônio Maciel como portador de uma psicose sistemática progressiva.
Baseando-se nas informações de um certo João Brígido, conterrâneo do ‘Antonio Conselheiro’, o dr. Nina
Rodrigues acreditava estar autorizado a fazer a sua anamnese. O ‘Conselheiro’ passara ainda no Ceará
por contínuas dissensões familiares, mudanças sucessivas de emprego e de lugar e pelo menos um
episódio de revolta agressiva na qual chegara às vias de fato, ao ferir um cunhado. Estaria então sob “os
primeiros esboços da organização do delírio crônico sob a forma do delírio de perseguição”. A fase
megalomaníaca da psicose do Conselheiro coincidiria com a sua internação nos sertões da Bahia, quando
por volta de 1876 já assumira a postura de uma espécie de enviado de Deus. Então se operara uma
transformação na personalidade do alienado. Daí a alguns anos ocorria o advento da República,
coincidente com o terceiro período da psicose progressiva de Antonio Conselheiro. Recusando a moeda e
o laicismo do governo republicano, aconselhando a que não se pagassem impostos e detratando o clero, o
Conselheiro teria achado combustível para atear o incêndio de uma verdadeira ‘epidemia vesânica’. Cabe
dar voz ao Dr. Nina Rodrigues: “As leis que regem a manifestação epidêmica da loucura são
precisamente as mesmas que Lasègue e Falret formularam desde 1877 para o caso mais simples de
contágio vesânico, o caso do delírio a dois. Três momentos básicos reconhecem essas leis. Em primeiro
244
Dante Moreira Leite, a exposição explícita de preconceito contra índios e negros coube
a Nina Rodrigues, seus estudos revelando-se datados e suas explicações sendo
23
excessivamente etnocêntricas . De acordo com Leite, o dr. Nina Rodrigues teria
aceitado integralmente – opinião da qual discordamos parcialmente – o evolucionismo
do século XIX. No entanto, os outros pontos batidos por Dante Moreira Leite nos
parecem bastante defensáveis. Assim, Nina Rodrigues teria defendido a inferiorização
do Brasil não somente pela existência de negros, mas também pela mestiçagem
ocorrida. Além disso, ele aplaudia a nítida separação havida nos Estados Unidos, de
brancos de um lado, e mestiços e negros de outro. Somando-se aos fatores da
inferioridade brasileira, para esse médico, o clima temperado favorecia aos brancos, ao
passo que o clima tropical teria favorecido aos negros e mestiços. No mais nenhuma
nota contra a injustiça da escravidão, nem um parágrafo condenando a exclusão social.
Apesar de não conseguir negar o heroísmo dos negros a bater-se por Palmares, ele
aplaude aqueles que destruíram o célebre bastião, pois teriam prestado um relevante
serviço à civilização24.
Tendo em vista o avançado estado de mestiçagem da população brasileira, que
as estatísticas da medicina lhe revelavam diariamente, Nina Rodrigues tematizou com
largueza os mestiços, cujas manifestações em Canudos parecem tê-lo impressionado de
maneira profunda:
“O jagunço é um produto tão mestiço que reproduz os caracteres
antropológicos combinados das raças que provém, quanto híbrido nas suas
manifestações sociais que representam a fusão quase inviável de civilizações
muito desiguais. Pelo lado etnológico não é jagunço todo e qualquer mestiço
brasileiro. Representa-o em rigor o mestiço do sertão que soube acomodar
lugar, a existência de um elemento ativo que cria o delírio e o impõe à multidão que passa a representar
o elemento passivo do contágio. Aceitando embora as idéias delirantes, a multidão reage por seu turno
sobre o elemento ativo, retificando, emendando, coordenando o delírio que só então se torna comum. Em
segundo lugar, é indispensável uma convivência prolongada das duas ordens de espíritos, ‘vivendo de
uma vida comum, no mesmo meio, partilhando o mesmo modo de existência, os mesmos sentimentos, os
mesmos interesses, os mesmos temores, as mesmas esperanças e estranhos a qualquer outra influência
exterior.’ Em terceiro e último lugar o contágio do delírio requer nele ‘um caráter de verossimilhança à
sua manutenção nos limites do possível, repousando em fatos ocorridos no passado ou em temores e
esperanças concebidas para o futuro.’ Em Canudos representa de elemento passivo o jagunço que
corrigindo a loucura mística de Antônio Conselheiro e dando-lhe umas tinturas das questões políticas e
sociais do momento, criou, tornou plausível e deu objeto ao conteúdo do delírio, tornando-o capaz de
fazer vibrar a nota étnica dos instintos guerreiros, atávicos, mal extintos ou apenas sofreados no meio
social híbrido dos nossos sertões, de que o louco como os contagiados são fiéis e legítimas criações. Ali
se achavam de fato, admiravelmente realizadas, todas as condições para uma constituição epidêmica de
loucura”. RODRIGUES, Raimundo Nina. A loucura epidêmica de Canudos. In: _________. As
coletividades anormais. Brasília: Senado Federal, 2006. As citações encontram-se respectivamente às
páginas 43 e 48-49. (grifos do autor).
23
O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 2.ed. São Paulo: Pioneira, 1969.
24
RODRIGUES, Nina. A Troia Negra (erros e lacunas da historia de Palmares). RIHGB, Rio de Janeiro.
Tomo LXXV, parte I, 1912, p. 231-258.
245
25
RODRIGUES, Raimundo Nina. A loucura epidêmica de Canudos. In: _________. As coletividades
anormais. Brasília: Senado Federal, 2006, p. 49-50.
26
Para esboços biográficos de Euclides da Cunha ver: LIMA, Luiz Costa. Euclides da Cunha: contrastes e
confrontos do Brasil. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000; e, CARVALHO, Mário Cesar, SANTANA, José
Carlos Barreto de.(orgs.) Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha. Roberto Ventura. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003.
246
família obrigaram Euclides a residir com outros parentes, como a avó paterna em
Salvador, ou ainda com um tio, na então capital do Império. Euclides estudou
matemática no Colégio Aquino, tendo como professor o positivista e futuro herói
republicano Benjamin Constant, uma figura que iria exercer grande influência em sua
formação. Entusiasmado pela matemática, o jovem Euclides ingressa em 1885 na
Escola Politécnica, transferindo-se no ano seguinte para a Escola Militar, onde volta a
ter aulas com seu mestre Benjamin Constant. Na Escola Militar ainda sob o cetro da
Monarquia, mas tomada pela propaganda positivista e republicana, Euclides da Cunha
protagoniza um célebre episódio de indisciplina que, apesar de juvenil – e talvez até por
isso mesmo – viria a acarretar notoriedade de desassombro para o seu autor, já no início
da República 27 . Dado como rebelde, Euclides foi expulso da Escola Militar, porém
continuaria freqüentando o círculo de militares positivistas, tendo aliás se enamorado da
filha de um dos mais destacados conspiradores republicanos, o major Solon Ribeiro.
Com o sucesso da República é oferecido a Euclides retornar à Escola Militar, no
que ele acede. Promovido ao oficialato, Euclides da Cunha permanece no serviço ativo
por curto tempo, suficiente porém para participar da defesa do Rio de Janeiro durante a
Revolta da Armada. Desligado do Exército a pedido em 1896, Euclides desempenha
então funções de engenheiro e jornalista. Conforme tão bem observou Ricardo Luiz de
Souza, a atividade de engenheiro seria para Euclides a expressão de suas idéias como
escritor, e o Euclides escritor e o Euclides engenheiro seriam indissociáveis. Para
Souza, “um não é compreensível sem o outro.”28 Em agosto de 1897 ele embarca no
navio Espírito Santo com destino a Salvador. Como correspondente do jornal O Estado
de São Paulo, segue no intuito de cobrir as operações de guerra contra o arraial de
Canudos. Mesmo à distância, Euclides já marcara a sua posição sobre o conflito ao
escrever um artigo intitulado ‘a nossa vendéa’, publicado no jornal ‘O Estado de São
Paulo’ em 14 de março de 189729. Nessa época, assim como tantos outros republicanos,
entendera Euclides da Cunha que a revolta estava vinculada a algum movimento de
restauração monárquica. Porém, conforme escreveu Dante Moreira Leite, “essa
interpretação fundamentalmente política se transformará, em sua obra, numa visão
27
O episódio ocorreu no final de 1888, em uma visita do ministro da Guerra, Tomás Coelho à Escola
Militar. Ver. LIMA, Luiz Costa. Euclides da Cunha: contrastes e confrontos do Brasil. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2000, p. 10.
28
SOUZA, Ricardo Luiz de. Identidade Nacional e Modernidade Brasileira: o diálogo entre Sílvio
Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 74.
29
VENTURA, Roberto. “A Nossa Vendéia”: Canudos, o mito da Revolução Francesa e a Constituição de
Identidade Nacional – Cultura no Brasil (1897-1902). Revista de Critica Literaria Latinoamericana. Ano
12, n. 24, 1986, p. 109-125.
247
social e histórica, isto é, Euclides da Cunha buscará, não apenas descrever a revolta de
Canudos, mas também encontrar uma explicação para o seu aparecimento.”30
Afinal de contas, inquiria Euclides da Cunha, como um alienado mental como
Antônio Conselheiro conseguira fanatizar milhares de pessoas, conduzindo-as a
incontáveis sacrifícios e fazendo com que enfrentassem e vencessem três expedições
militares? Enfim, como puderam os adeptos do Conselheiro, além de fanáticos,
ignorantes e fisicamente débeis – o que valeria dizer, seres tão miseráveis, como os
prisioneiros de Canudos que Euclides viu desfilarem presos pelas ruas de Salvador –
desenvolver uma capacidade tática e guerreira? Luis Costa Lima inferiu que a possível
perplexidade sentida por Euclides teria servido como uma espécie de ponto de partida
para uma simpatia pelo homem do interior, apesar das teorias com as quais afinava
moverem suas convicções para o lado contrário31.
A seguirmos o pensamento de Dante Moreira Leite,
“Aqui, Euclides lança a hipótese de que os jagunços são ‘colaterais
prováveis dos paulistas’, pois resultariam das incursões destes e, depois, se
desenvolveriam nas fazendas de criação de gado por eles estabelecidas às
margens do rio S. Francisco: aí se formaria uma ‘raça de cruzados
idênticos’ aos que se tinham formado em São Paulo; e ‘este tipo
extraordinário do paulista’, que decaíra no Sul, renasce no isolamento do
sertão e, ‘sem migrações e cruzamentos’ conserva até hoje ‘a índole varonil
e aventureira dos avós’”32
30
O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 2.ed. São Paulo: Pioneira, 1969, p.204.
31
LIMA, Luiz Costa. Euclides da Cunha: contrastes e confrontos do Brasil. Rio de Janeiro: Contraponto,
2000. De acordo com Lima, o futuro autor de ‘Os Sertões’ conheceu em Queimadas um vaqueiro que
acabara de conduzir para Monte Santo mais de uma centena de cabeças de gado destinadas ao Exército. A
robustez e a energia daquele sertanejo impressionaram Euclides. Ali estaria encarnada uma versão tão
inofensiva quanto exuberante de vida, diferente portanto dos prisioneiros de Canudos, os quais vira
extenuados em Salvador, humilhados em decorrência da captura e das provações sofridas.
32
O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 2.ed. São Paulo: Pioneira, 1969, p.207. De
acordo com o autor, essa hipótese levantada por Euclides teria permitido “explicar porque o jagunço,
embora mestiço, não tem a fraqueza e a inferioridade deste”.
248
33
SOUZA, Ricardo Luiz de. Identidade Nacional e Modernidade Brasileira: o diálogo entre Sílvio
Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 72.
34
The metis, or half-breeds, of Brazil foi selecionado entre as comunicações mais relevantes, ganhando
publicação entre as páginas 377 e 382 dos ‘Papers on Inter-Racial Problems Communicated to the First
Universal Races Congress’, os Anais daquele certame.
35
De acordo com Dante Moreira Leite, ao contrário de Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina
Rodrigues, foi Oliveira Vianna um retardatário em relação às ciências sociais do seu tempo, tendo sido
249
alinhar-se aos que defendiam a inferioridade das raças não brancas 36. Possivelmente
caiba a Oliveira Vianna o título de autor mais referenciado nos debates sobre a ideologia
do branqueamento, apesar das premissas que defendia já estarem colhendo grandes
desgastes nos anos 1920. Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951) nasceu em
Palmital de Saquarema, região que conforme observou José Carlos Reis, serviu de berço
aos grandes chefes conservadores fluminenses37. Formou-se em 1906 na Faculdade de
Direito da Universidade do Rio de Janeiro, instituição na qual também veio a ser
professor, lecionando Direito Criminal. Ocupou ainda cargos de relevo tais como o de
Diretor de Fomento do Estado do Rio de Janeiro (1926), Membro do Conselho
Consultivo do Estado do Rio de Janeiro (1931), Consultor Jurídico do Ministério do
Trabalho (1932) e Juiz do Tribunal de Contas da União, entre outros. Foi sócio do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e membro da Academia Brasileira de Letras.
O historiador José Honório Rodrigues quando ainda jovem estudante da
Faculdade de Direito – mas já atraído pelo estudo da História – costumava comparecer
às terças-feiras ao Instituto Histórico, pois sabia que lá encontraria reunidos, além de
Vianna, Max Fleiuss e Tavares de Lyra, a discutirem fatos e acontecimentos da história
do Brasil. Observa Rodrigues que não interferia, a não ser para levantar questões, fazer
perguntas e aprender. Para ele, Oliveira Vianna seria dos três citados, “o intérprete,
aquele que buscava compreender os motivos, descobrir as conexões, fazer enfim, uma
filosofia da História.”38 Talvez um dos mais acirrados críticos de Oliveira Vianna, José
Honório Rodrigues lembra dele como sendo,
“...tímido, reservado, discreto, austero, grave, e não revelava nenhum sinal
aparente pela enorme contradição de, sendo um mulato, defender o
arianismo, favorecer o embranquecimento da população brasileira e
desprezar negros, índios e mestiços. Era um mulato róseo, muito bem
trajado, muito limpo, muito calmo, sereno, que defendia suas teses com
lucidez, argúcia e calma. Nunca o vi exaltar-se e sempre mantinha a voz no
mesmo tom sereno, convencido da sua verdade, da grande verdade que
guardava na sua inteligência, na sua cabeça, no seu coração.”39
incapaz de acompanhar não somente aquilo que se discutia em outros países, mas também o que escrevia
Edgard Roquette-Pinto. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 2.ed. São Paulo:
Pioneira, 1969.
36
VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização, psicologia. Populações
rurais do Centro-Sul (Paulistas – Fluminenses – Mineiros ) 7.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. Autor de
grande renome à sua época, e talvez o mais referenciado nos debates sobre a ideologia do branqueamento,
Oliveira Vianna colecionou críticas pesadas da maioria dos seus comentaristas.
37
As identidades do Brasil. V.2. De Calmon a Bomfim: a favor do Brasil (direita ou esquerda?). Rio de
Janeiro: FGV, 2006.
38
História da História do Brasil. V.2, tomo 2, A metafísica do Latifúndio: o ultra-reacionário Oliveira
Viana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1988, p.2.
39
Idem, Ibidem, p. 1.
250
40
IGLÉSIAS, Francisco. Leitura historiográfica de Oliveira Vianna. In: BASTOS, Élide Rugai,
MORAES, João Quartim de. (orgs.). O pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Unicamp, 1993.
Iglésias observou de forma acurada que Oliveira Vianna “deixou-se levar pela tese de que o Brasil foi
colonizado por fidalgos, destituída de base, como também o é a tese oposta, de colonização por
degredados ou pela ralé”. A imagem que fez da aristocracia rural tinha mais fantasia que realidade, a
ponto de parecer verdadeiro delírio. O período retratado por Oliveira Vianna em breve seria descortinado
pelo historiador Alcântara Machado, com seu ‘Vida e Morte do Bandeirante’, baseado em inventários e
testamentos que expuseram a verdade, ou seja, a pobreza do cotidiano dos paulistas nos séculos XVI e
XVII.
251
Restaria compreender o juízo que esse jurista faria acerca dos resultados dos
cruzamentos raciais conforme ocorridos no Brasil. Para Oliveira Vianna os mestiços
seriam o resultado histórico dos latifúndios. Mal acomodados quanto à sua origem
bastarda, mamelucos e mulatos foram utilizados para ampliar o braço repressor da raça
branca, fosse enquadrados nas incursões dos bandeirantes, fosse a serviço dos senhores
de escravos. Acreditando no atavismo, espécie de lei antropológica que faria os
indivíduos mestiços retomarem as características físicas, morais e intelectuais das raças
originais, o que faz com que seu pensamento se aproxime bastante daquele formulado
por Nina Rodrigues42, Vianna defendia sobretudo que haveria uma degenerescência na
mestiçagem. Contudo, apontava para a existência de mulatos superiores e de mulatos
inferiores. Se os primeiros eram o resultado do cruzamento de brancos com negros
inferiores – sendo incapazes portanto de ascensão e condenados à degradação nas
camadas mais baixas da sociedade – os segundos, ocorridos do cruzamento de brancos
com negros do tipo superior seriam arianos por caráter e inteligência, suscetíveis à
arianização, que era como ele se referia ao processo de clarificação, que no seu
entendimento durava cerca de quatro ou cinco gerações. Daí, esse mestiço arianizado
estaria apto a auxiliar aos brancos na organização e civilização do Brasil. Sendo assim,
para Vianna, as qualidades morais e intelectuais do mestiço seriam definidas pela sua
aparência mais ou menos negróide. O grande adversário da arianização seria, para
Oliveira Viana, o fluxo intermitente de negros e índios, que elevava o nível de
nigrescência da população.
41
VIANNA, Oliveira. Evolução do Povo Brasileiro. 2.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933,
p. 157-159. Conforme explica José Carlos Reis, esse livro de Oliveira Vianna foi escrito em 1920, para
servir de prefácio ao recenseamento daquele ano. A primeira edição em livro saiu em 1923, sob o título
‘O povo brasileiro e sua evolução’, sendo o título modificado para a edição que utilizamos. REIS, José
Carlos. As identidades do Brasil. V.2. De Calmon a Bomfim: a favor do Brasil (direita ou esquerda?). Rio
de Janeiro: FGV, 2006.
42
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade
negra. 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 65.
252
O segundo bloco teórico que nos cabe enunciar possuía uma forte base histórica,
por apontar a existência de vícios de origem na colonização, mas também por denunciar
o acriticismo de parcela da nossa intelectualidade. Afinal o discurso sobre o tempo
pretérito incorporava também a crítica das condições enfrentadas naquele dado presente,
o que acabou por fazer convergir esforços para que houvessem tentativas de
incorporação de uma população vista como apartada do circuito da civilização, no que
ficavam caracterizados verdadeiros corpos estranhos postos a nú no interior da nação.
Comecemos por Manoel Bomfim (1868-1932), autor de ‘A América Latina:
males de origem’, ensaio que conheceu sua primeira edição no ano de 1905. Manuel
Bonfim defendeu que o atraso (relativo), tanto do Brasil, quanto da América Latina,
teria causas históricas. De acordo com Bonfim, teria sido “...bem evidente o caráter da
conquista portuguesa: saquear, sem nenhum outro objetivo – a rapina, a pirataria, o
parasitismo depredador”43. Manoel Bomfim considerava que a teoria da superioridade e
inferioridade das raças seria somente uma justificativa dos europeus para o domínio e a
escravização do resto da humanidade. Assim, os defeitos que se apontavam para os
negros seriam as resultantes da sua situação de escravo, ao passo que nos contatos com
os indígenas, os brancos haviam sido muito mais pérfidos e sanguinários que a pecha
que tentavam impingir a esses44.
Assim seriam os problemas herdados da era colonial os responsáveis pelas
dificuldades enfrentadas no presente pelos povos latino-americanos. Na América Latina
teriam prevalecido vícios aqui implantados pelos colonizadores, que articularam uma
espécie de cultura predatória que consistia nas práticas de rápido enriquecimento,
ausência de tradição científica, conservadorismo político, cultura hiperlegalista e
ausência de organização social. Articulado a isso tudo, os ex-escravos haviam sido
abandonados após a Abolição e instituições alienígenas – especialmente as políticas –
eram copiadas de forma indiscriminada. Manuel Bonfim apontava para a educação
formal e a diversificação econômica como saída para esse impasse45.
43
A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005, p. 106.
44
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 2.ed. São Paulo:
Pioneira, 1969. Para esse autor, Manoel Bomfim foi um nacionalista em período de pessimismo, além de
viver em um momento de discordância dos intelectuais quanto às razões da nossa inferioridade como
povo, mas não efetivamente quanto a essa inferioridade. Além disso, era um socialista num período em
que a intelectualidade brasileira, de forma aberta ou indireta, encontrava-se seduzida pelas realizações de
Mussolini na Itália. Então a razão fundamental para o esquecimento de sua obra seria ter proposto uma
perspectiva para a qual os intelectuais não estariam preparados, pois tentava conciliar o nacionalismo com
o socialismo, proposta que durante muito tempo foi considerada uma espécie de heresia política.
45
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade
negra. 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
253
46
IGLÉSIAS, Francisco. Prefácio à terceira edição. In: A Organização Nacional. Brasília: Unb, 1982.
47
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 2.ed. São Paulo:
Pioneira, 1969.
48
IGLÉSIAS, Francisco. Prefácio à terceira edição. In: A Organização Nacional. Brasília: Unb, 1982.
254
49
Ibidem, p. 17.
50
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 2.ed. São Paulo:
Pioneira, 1969.
255
dois blocos das idéias. Cabe então voltarmos nossas atenções para alguns momentos que
marcaram decisivamente esse debate naqueles anos emblemáticos que constituíram a
segunda década do século XX.
Em 1911, o médico e etnógrafo João Batista de Lacerda, atendendo ordens do
governo do Marechal Hermes da Fonseca, comparecia ao 1º Congresso Internacional de
Raças, levado a efeito em Londres, entre os dias 26 e 29 de julho51. O Dr. Lacerda era
então o diretor do Museu Nacional, e se fazia acompanhar do jovem professor Edgard
Roquette-Pinto, ocupante da cadeira de Antropologia, Arqueologia e Etnografia daquele
museu. Para comparecer naquele certame, o Dr. Lacerda preparara um artigo o qual
intitulou por Sur Le Métis au Brésil, conduzindo para o Congresso, juntamente com essa
peça escrita, um painel no qual fora reproduzido certo quadro de um pintor catalão
chamado Modesto Gomes y Brocos (1852-1936), artista da Escola de Belas Artes do
Rio de Janeiro. Brocos estava radicado no Brasil há alguns anos e pintara o quadro em
1895. O pintor representava com sua arte um desejo afagado e mantido por parte da
nossa intelectualidade, e a documentação nos autoriza a dizê-lo, desde o último quartel
do século XIX: o ideal do embranquecimento.
Isso significava contar nas cidades brasileiras com uma paisagem humana mais
branca, mais homogênea, e onde a sombra da mestiçagem ficasse exposta o mínimo
possível. A tela produzida pelo pintor catalão em cores vivas, não deixava dúvidas,
fosse pela representação pictórica, fosse pelo título. ‘Redenção de Can’ tratava de uma
reunião familiar. A cena se passa em frente a uma casa humilde: em um ambiente
harmônico, e onde visivelmente se buscava retratar também a ausência de conflitos
entre as raças existentes no Brasil.
Assim, vemos então uma mulher negra, de pé e com aspecto já idoso a qual
parece render graças aos céus. Ao seu lado, uma jovem mestiça – expressando o
contínuo de cor brasileiro, uma ‘mulata’ – que possivelmente, assim o expectador é
induzido frente à cena, se tratava de sua filha, segura nos braços uma criança branca. A
jovem está acompanhada de um rapaz branco, de traços europeizados. Ali estaria o pai
da criança. O título escolhido para o quadro, também não deixa muitas dúvidas. A
referência é bíblica, e via-de-regra, bastante conhecida. Can seria um dos filhos de Noé,
51
Conforme observaram Souza&Santos (2012:747), a indicação para que esse Congresso fosse realizado
ocorreu em 1907, durante a Segunda Conferência de Haia. Segundo esses autores essa iniciativa fazia
parte dos esforços pela paz mundial, e contou com o apoio entusiástico de Felix Edler – historiador
alemão de origem judaica – e de Gustav Spiller. Esse último recebeu financiamento da Ethical Culture
Society, um movimento ligado ao pensamento humanista moderno.
256
52
Conforme assinala José d’Assunção Barros, essa passagem do evangelho seria utilizada pelo tráfico
negreiro como forma de aparato ideológico justificador e legitimador de uma diferença negra que
comportaria uma segunda natureza: a diferença escrava. A construção social da cor: diferença e
desigualdade na formação da sociedade brasileira. Petrópolis: Vozes, 2009. Ver sobretudo o cap. 7., ‘A
cor escrava: noção reapropriada pelo Tráfico Atlântico cristão’.
53
O contexto da Abolição produziu imagens divergentes do negro. A imagem portadora de negatividade
elaborava um quadro de medo sobre uma possível insurreição negra. Ao haitianismo, tema recorrente no
imaginário das elites, associava-se a desqualificação do negro. Os hábitos dos negros eram avaliados
então como manifestação de barbárie por essas elites brancas. Havia porém outra imagem, menos
negativa, que retratava o negro como um servo fiel, dependente mesmo quando livre, adaptado pois a uma
posição submissa e tutelada frente à sociedade branca. RAMOS, Jair de Souza. O Brasil sob o Paradigma
Racial: Sociologia Histórica de uma Representação. In: PENA, Sérgio D. J. (Org.). Homo brasilis:
aspectos genéticos, lingüísticos, históricos e socioantropológicos da formação do povo brasileiro. 2.ed.
Ribeirão Preto: Funpec, 2002.
257
54
SOUZA, Vanderlei Sebastião de, SANTOS, Ricardo Ventura. O Congresso Universal de Raças,
Londres, 1911: contextos, temas e debates. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.Ciências
Humanas, Belém, v.7, n.3, 2012, p. 754.
55
A comunicação de João Batista de Lacerda foi inclusa na sexta sessão daquele Congresso.
Posteriormente ao encontro, os textos considerado relevantes foram editados pelo seu organizador, o
sociólogo inglês Gustav Spiller, e publicados no mesmo ano daquele evento (1911).
258
racial. Servindo de água para a roda desse ‘moinho’, haviam dois fatos incontestáveis. O
primeiro deles estava firmado sobre uma verdade histórica: os europeus não haviam
introduzido a escravidão no continente africano, apesar de – e esse fato era
providencialmente omitido – terem feito com que essa aumentasse em escala
assustadora ao incentivar as animosidades que levavam às guerras tribais, e
consequentemente a uma maior oferta de negros disponibilizados no mercado de
escravos. O segundo fato incontestável era que os negros recén libertos estavam
experimentando naquele contexto do pós-Abolição, penosas condições de subsistência.
Na opinião do Dr. João Baptista de Lacerda, o mestiço gerado não teria sido de
qualidade inferior, e embora descritos ou considerados moralmente voluptuosos e pouco
afeitos ao trabalho braçal, seriam intensamente inteligentes e bem dispostos para as
atividades das letras, ciências e política, tendo muitos deles se tornado proeminentes
poetas, escultores, músicos, advogados, médicos e engenheiros56.
Para João Baptista Lacerda, o resultado desses cruzamentos raciais tenderia a
fazer com que em menos de um século, negros e mestiços desaparecessem do território
brasileiro, possibilitando com isso, o branqueamento da população. Sua tese estava
amparada em tabelas estatísticas preparadas por Edgard Roquette-Pinto. Na opinião de
Souza&Santos (2012), o jovem professor assistente ainda compartilharia naquele
momento, muitas das teses de Lacerda, em especial o branqueamento da população
brasileira, às quais se baseavam em um decréscimo apresentado pela população negra,
com dados tomados a partir de 1870.
A ‘seleção sexual’, que era conforme Lacerda denominava a forma como os
mulatos procuravam seus parceiros para branquear a descendência, associados à
crescente entrada de imigrantes europeus no país, bem como ao abandono ao qual os
negros foram submetidos após a abolição, conjugados, faziam com que o Dr. Lacerda,
em tom comemorativo, anunciasse que o Brasil caminhava para ser “um dos principais
centros da civilização do mundo”57.
56
O Dr. Lacerda generalizou em demasia a sua análise, simplificando ao nosso entendimento de forma
inadequada algumas aptidões, bem como os saberes e fazeres que os negros africanos já conduziam
consigo ao chegar ao Brasil. De forma um tanto resumida, poderíamos dizer que, consideradas as
especificidades de cada grupo, eles dominavam conhecimentos da agricultura tropical e da pecuária
extensiva, além de serem em alguns casos, mestres da mineralogia, o que foi decisivo para que os
portugueses se tornassem o primeiro povo europeu a prosperar em terras tropicais americanas.
57
Idem, Ibidem, p. 754.
259
A tese formulada por João Baptista de Lacerda foi analisada de forma magistral
por Giralda Seyferth em artigo já clássico58, tornado referência para todos aqueles que
posteriormente se dedicaram ao tema das concepções deterministas da raça que foram
desenvolvidas a partir da Europa.
A fala do Dr. Lacerda fora otimista, observados os preceitos da ciência àquela
época, mas não o livrou das críticas de impatriotismo movidas por seu patrícios. No
Brasil houve quem entendesse que o autor estabelecera um prazo demasiadamente
longo para o embranquecimento da população. Lacerda defendia-se, sob o escudo da
ciência, e apontava para a recepção positiva que seu trabalho conhecera. Um jornal
londrino, o Morning Post chegara a classificar a sua comunicação como uma das mais
relevantes daquele Congresso59. Cerca de um ano após retornar ao Brasil, João Batista
de Lacerda produziu uma memória relativa ao Congresso de Londres 60 . Nesta
publicação apresentada sob a forma de uma exposição de motivos ao então Ministro da
Agricultura, Pedro de Toledo, Lacerda incluía um artigo intitulado ‘Réplica á critica da
memória – Sur les métis au Brésil’, texto que guarda um marcado tom de ressentimento.
O Dr. Lacerda rebatia as críticas então recebidas e reiterava as suas posições, ocupando
dezesseis páginas daquela memória. Revelava então sua mágoa pelas “deprimentes e
injustas críticas”61 que recebera, e em sincero desabafo, esclarecia ser a primeira vez,
após muitos anos de trabalho em prol da ciência, que se “ via assim desarrazoadamente
argüido e severamente criticado justamente quando me dizia a consciencia haver eu
feito uma obra esclarecida, ponderada, em assumpto difficil e delicado.” 62
Feitas tais considerações, partia então João Baptista de Lacerda no encalço do
seu crítico mor63, e na intenção de desqualificá-lo, assim escrevia,
58
A antropologia e a teoria do branqueamento da raça no Brasil: a tese de João Batista de Lacerda.
Revista do Museu Paulista, 5 (30): 81-98, 1985.
59
João Baptista de Lacerda participou ativamente da quinta e sexta sessões daquele Congresso, onde
foram debatidas a formação da consciência moderna em relação à questão racial. Apresentado na sexta
sessão do congresso, o trabalho de João Baptista de Lacerda, foi intitulado “The Metis, or half-breeds, of
Brazil”. Cabe registrar que o jornal ‘Le Brésil’ publicou na íntegra em Paris, a tradução da comunicação
de Lacerda, que levava o título francês de ‘Sur les métis au Brésil’. O texto em questão tratava da
miscigenação racial no Brasil, e do processo de branqueamento da população mestiça.
60
LACERDA, João Baptista de. Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro de Toledo. Rio
de Janeiro: Papelaria Macedo, 1912.
61
Idem, Ibidem, p. 85.
62
Idem, Ibidem, p. 86.
63
Não estamos bem certos quanto a identidade desse crítico, e talvez fosse um exercício estéril tentar
fazer inferições acerca dessa premeditada lacuna documental. De qualquer forma, mantendo certa
elegância, o Dr. Lacerda omitiu o nome do seu algoz: “Quem me fez essa calumniosa imputação foi um
festejado publicista brazileiro pelo qual nutria reaes sympathias, sem embargo de tel-o na conta de um
espírito demasiado pessimista, bellicoso e aggressivo. Para mostrar quaes eram as disposições do meu
sentimento com relação á sua pessoa, basta dizer que foi elle um dos primeiros aquinhoados com a
260
“Ainda bem que para attenuar tão dolorosa impressão suscitavam-me a idéa
de que o discernimento, a competência e a capacidade para exercer a critica
não são attributos de qualquer individuo por mais intelligente e instruído que
elle seja, e que o verdadeiro critico devera ser aquelle que, despido de
prevenções e antipathias, exercitasse o seu mistér com o espírito illuminado
pela verdade, pela justiça e pela sciencia. Afastado destes moldes o critico
perde a grave compostura do seu nobre officio para se tornar um reles e
desprezível diffamador das creações alheias.”64
offerta attenciosa e delicada do meu livrete, apenas sahido do prelo. Entretanto tão fina e graciosa
gentileza, contra toda a minha espectativa, foi respondida com uma affrontosa critica e pontinhas de
sarcasmo.” In: Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro de Toledo. Rio de Janeiro:
Papelaria Macedo, 1912, p. 91-92.
64
LACERDA, João Baptista de. Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro de Toledo. Rio
de Janeiro: Papelaria Macedo, 1912, p.86-87.
65
LACERDA, João Baptista de. Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro de Toledo. Rio
de Janeiro: Papelaria Macedo, 1912, p. 90-91.
261
forma, ao início da segunda década do século vinte e um, negros e índios teriam já
desaparecido do território nacional66.
Lacerda de fato havia conseguido um impacto positivo para o Brasil entre os
congressistas, baseando-se na defesa da idéia que a miscigenação não gerava tipos
inferiores, e o mestiço brasileiro se revelava na sua fala, como o melhor exemplo
eugênico desses cruzamentos. Contudo, a verdade é que ficara o Dr. Lacerda um longo
período sem publicar trabalhos de viés antropológico. Assim, considerou Ricardo
Ventura Santos que a comunicação Sur Le Métis au Brésil teria sido “um exercício de
conciliação entre a realidade (mestiça) da sociedade brasileira e as teorias científicas
que desqualificavam o mestiço.” 67
Em 1915 a morte colhia o Dr. João Batista de Lacerda. O desaparecimento desse
etnógrafo parece ter coincidido com uma nova fase para um dos seus discípulos,
ninguém menos que o Prof. Edgard Roquette-Pinto, que então iniciava trabalhos para
determinar as características antropológicas do Brasil 68. Um aspecto que julgamos de
interesse na formação de Roquette-Pinto, ao qual nem sempre é dada a devida ênfase foi
o ingresso em 1905, no Museu Nacional, no mesmo ano em que se formara na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro69. Transcorridos seis anos do seu ingresso
66
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Previsões são sempre traiçoeiras: João Baptista de Lacerda e seu Brasil
branco. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v.18,n.1,jan.-mar. 2011, p. 225-242.
67
Mestiçagem, Degeneração e a Viabilidade de uma Nação: Debates em Antropologia Física no Brasil
(1870 – 1930). In: PENA, Sérgio D. J. (Org.) .Homo brasilis: aspectos genéticos, lingüísticos, históricos e
socioantropológicos da formação do povo brasileiro. 2.ed. Ribeirão Preto: Funpec, 2002, p. 82.
68
Conforme escreveu Vanderlei Sebastião de Souza, Roquette-Pinto organizara uma equipe de
pesquisadores ligados ao Museu Nacional. Em 1919 a equipe composta por cientistas como Irineu
Malagueta, Mário Raja Gabaglia e Fábio Barros, entre outros, dava início a uma série de ‘mensurações
antropométricas’, com vistas a servir de base à determinação ulterior dos principais tipos antropológicos
brasileiros. Para Bruno Lobo, então Diretor do Museu Nacional, esse projeto assumia função de grande
importância para o país, pois iria auxiliar nas estatísticas do Censo Geral de 1920, tornando-se assim uma
relevante contribuição daquela instituição científica para as comemorações do Centenário da
Independência. Após contato com o ministro da Guerra a equipe iniciou a coleta de informações sobre as
características físicas, psicológicas, estado de saúde, condição social e desempenho dos soldados da
guarnição da Capital Federal, contando com a colaboração dos médicos do Exército. Roquette-Pinto
considerava a amostragem adequada, pois boa parte dos jovens incorporados na cidade do Rio de Janeiro
haviam sido recrutados em outras regiões do país. A partir de 1924, Roquette-Pinto assumia em definitivo
a chefia da 4ª seção do Museu Nacional (Antropologia-Etnografia-Arqueologia), para em 1926 substituir
interinamente Artur Neiva na função de Diretor do Museu, sendo efetivado no cargo no ano seguinte,
nomeado pelo presidente Washington Luís. In: Retratos da Nação: os ‘tipos antropológicos’ do Brasil nos
estudos de Edgard Roquette-Pinto, 1910-1920. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.Ciências
Humanas, Belém, v.7, n.3, p. 645-669, set.- dez., 2012.
69
A escolha da profissão ao que parece se deu de forma um tanto inusitada. O jovem Roquette-Pinto
mantinha interesse pelas viagens e pretendia ingressar na Marinha. Porém, teve um encontro fortuito em
um trem com Francisco de Castro, um grande médico da época. Em 1901, Edgard Roquette-Pinto iniciava
sua vida de acadêmico de Medicina. Ver.: FILHO, Alberto Venâncio. Roquette-Pinto, expressão de
humanismo. In: LIMA, Nísia Trindade, SÁ, Dominichi Miranda de (orgs.) Antropologia Brasiliana:
ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte: UFMG, 2008; e, SOUZA,
Vanderlei Sebastião de. Retratos da Nação: os ‘tipos antropológicos’ do Brasil nos estudos de Edgard
262
nessa prestigiosa instituição científica ocorreu a escolha do seu nome para compor com
João Baptista de Lacerda a delegação brasileira ao Primeiro Congresso Internacional de
Raças. Nesse congresso, Roquette-Pinto teve uma participação discreta, pois o texto que
para lá conduziu não chegou a ser incluído nos anais daquele encontro70.
Fator que consideramos de primordial importância seria a decisão tomada por
Roquette-Pinto de permanecer na Europa algum tempo após a realização do Congresso.
Três meses se passariam então, e a oportunidade foi utilizada para que ampliasse então
sua formação científica. Assim, Roquette-Pinto visitou museus de história natural, bem
como outras instituições científicas, com ênfase especial para aquelas localizadas em
Londres, Berlim e Paris. Realizou ainda cursos com o alemão Félix Von Luschan, o
qual também estivera participando ativamente daquele Congresso. Aproveitou ainda
Roquette-Pinto para fazer cursos com o parasitologista Alexander Emile Brumpt e com
o fisiologista Charles Richet, bem como com os naturalistas René Verneau e Henry
Perrier.
O retorno ao Brasil marcaria decisivamente a trajetória de Edgard Roquette-
Pinto pela expedição científica à qual se juntou com os integrantes da Comissão
Rondon. Viajando durante alguns meses, na zona compreendida entre os rios Juruena e
Madeira, cortada pela estrada Rondon, Roquette-Pinto reunia em sua caderneta de
campo as observações e dados que possibilitaram a escrita de um de seus principais
livros: ‘Rondônia’. Essa obra apareceu em 1917, em publicação nos Arquivos do Museu
Nacional71.
Roquette-Pinto, 1910-1920. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.Ciências Humanas, Belém, v.7,
n.3, p. 645-669, set.- dez., 2012.
70
‘Note sur la situation des indiens du Brésil’ alinhava os conhecimentos mais recentes sobre os
indígenas no Brasil, traçando ainda um esboço das ações que brasileiros como José Bonifácio de Andrada
e Silva, General Couto de Magalhães e mais recentemente o Tenente Coronel Cândido Mariano da Silva
Rondo haviam realizado em prol da assistência aos povos indígenas. O texto seria publicado
postumamente, em 1955, por iniciativa editorial do Conselho Nacional de Proteção ao Índio.
71
A Revista Archivos do Museu Nacional começou a ser editada em 1876, como parte dos esforços
movidos para inaugurar uma nova era para aquele museu. A revista deveria materializar a nova postura
científica adotada pela instituição. De acordo com Lilia Moritz Schwarz, o periódico contou, logo no seu
primeiro número com 41 estrangeiros entre seus membros correspondentes. O detalhe é que haviam
apenas 3 brasileiros – a saber, o visconde de Bom Retiro, Thomas Coelho de Almeida e D.S.Ferreira
Penna – na qualidade de colaboradores. Entre as personalidades estrangeiras haviam nomes de destaque
como Paul Broca, Charles Darwin, Quatrefages e L.R. Turlaine. Segundo essa autora, logo em sua página
de abertura, a revista “rendia homenagens a naturalistas estrangeiros, revelando uma característica
bastante comum às publicações dos museus nacionais, qual seja, a do debate e contato privilegiado com
o exterior.” O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp.71-72.
263
72
ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondonia. 2.ed., Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1919, p.vii-viii.
73
De acordo com Rodrigues (s.d.), estudos como os de P.Rivet (1924), M. Schmidt (1914), Metraux
(1941) e Levi-Strauss (1944 e 1948) não desmereceram as conclusões apresentadas por Roquette-Pinto.
Uma personalidade destacada como Helbert Baldus, reputou o estudo como uma das mais notáveis
contribuições à etnologia brasileira, além de poder ser considerado como uma grande homenagem à obra
científica e social de Rondon, mostrando-o como alguém despojado de vaidade, e amante da simplicidade
e modéstia.
74
ROQUETTE-PINTO, Edgard. O Brasil e a Antropo-Geographia. In: _________. Seixos rolados
(estudos brasileiros). Rio de Janeiro: Mendonça&Machado, 1927.
264
75
O Brasil e a Antropo-Geographia. In: _________. Seixos rolados (estudos brasileiros). Rio de Janeiro:
Mendonça&Machado, 1927, p. 57.
76
Caberia aqui algumas observações levadas pelo Dr. E. B. Du Bois, ao I Congresso Internacional de
Raças de Londres. Professor de História e Economia Política na Universidade de Atlanta, Du Bois havia
registrado graves denúncias de racismo e discriminação contra os negros nos Estados Unidos. Referindo-
se às condições enfrentadas pelos negros naquele início de século, Du Bois referia-se aos meios adotados
pela sociedade branca no Sul dos EUA para privar os negros da vida social e política, os quais incluíam a
ação de sociedades secretas – como a Ku Klux Klan que o autor não citou nominalmente – à quais “agiam
nas trevas, procurando fazer reviver o Terror.” No Norte do país, a situação não seria muito mais
auspiciosa, pois a população negra não era legalmente vítima de nenhuma desigualdade e podia “...sem
nenhuma restricção, frequentar as escolas, as igrejas e votar. Na realidade, entretanto, na mor parte das
Sociedades já lhes fazem sentir que a sua presença não é desejável. Nos hotéis, nos restaurantes, nos
theatros, ou se lhes recusa a entrada, ou se os recebe de má vontade. Nas igrejas e nas «associações
para a cultura do espírito», elles são tratados de tal sorte que bem poucos buscam fazer parte dellas. O
casamento com os brancos condemna-os ao ostracismo e fazem-nos cahir no desfavor publico; e nos
Tribunaes os Negros incorrem muitas vezes em penas immerecidas. «Os trabalhos grosseiros, as
occupações baixas lhes são accessíveis, mas difficilmente poderão elles aspirar a coisas melhores, a
trabalhos industriaes ou ás profissões liberaes, excepto para servir á sua raça; e há muita desigualdade
no que toca os salários. As violências populares, os lynchamentos, a tortura pelo fogo, não são raras
desde alguns annos. Entretanto nestas circumstancias se tem formado na America um mundo negro, que
tem sua vida economica e social, suas igrejas, suas escolas, seus jornaes, sua litteratura, sua opinião
266
publica, seu ideal» O Problema da Raça Negra nos Estados Unidos. In:LACERDA, João Baptista de.
Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro de Toledo. Rio de Janeiro: Papelaria Macedo,
1912, p. 20-21.
267
77
O Brasil e a Antropo-Geographia. In: _________. Seixos rolados (estudos brasileiros). Rio de Janeiro:
Mendonça&Machado, 1927, p. 73.
268
78
Prefácio à terceira edição. In: TORRES, Alberto. A Organização Nacional. Brasília: Unb, 1982, p. 20.
79
TORRES, Alberto de Seixas Martins. Discurso de Posse. RIHGB, Rio de Janeiro, Tomo LXXIV, parte
II, 1911, p. 591-592.
269
80
ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondonia. 2.ed., Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1919.
81
Idem, ibidem, p. 151-153.
270
82
Roquette-Pinto e o debate sobre raça e imigração no Brasil. In: LIMA, Nísia Trindade, DE SÁ,
Dominich Miranda (Orgs.). Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-
Pinto. Belo Horizonte:UFMG/Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008.
83
Entendemos avultar em importância algumas observações da lavra de Vanderlei Sebastião de Souza,
autor que chama atenção para o diálogo de Edgard Roquette-Pinto com a tradição alemã. As leituras de
Roquette-Pinto incluíam-se além do já citado Félix von Luschan, de teóricos como Eugen Fischer e
Rudolf Martin. Esse último fizera contribuições que superaram a clássica antropologia do francês Paul
Broca, o que possibilitou o surgimento da Antropologia moderna, e tornou possível refutar a descrição
hierárquica das raças. No entanto, cumpre ainda destacar o nome de Franz Boas (1858-1942), apontado
como um dos fundadores dessa moderna ciência. De origem prussiana, nascido em Minden (Vestfália),
Boas, judeu de origem, migrou para os Estados Unidos em 1886, motivado em parte pelo clima vigente
na Alemanha de Bismarck – conservador, nacionalista e anti-semita. Após uma série de trabalhos
temporários ele se tornou professor na Universidade de Colúmbia a partir de 1896, ocupação que se
tornou integral em 1905. Inscrito para participar do Congresso Internacional de Raças em Londres (1911),
Boas não pode comparecer, mas enviou o texto ‘Instability of Human Types’ que foi lido atenciosamente
na segunda sessão do evento. O texto discutia as condições de progresso das diferentes raças humanas, e
ocupou cerca de cinco páginas dos ‘Papers on Inter-Racial Problems Communicated to the First
Universal Races Congress’, os anais daquele encontro. Franz Boas se dedicou a demonstrar a verdadeira
falácia que considerava ser a teoria da estabilidade dos tipos físicos, que contava com argumentos
considerados até então como irrefutáveis. Boas fundamentara-se em suas pesquisas com imigrantes
europeus residentes nos Estados Unidos. Para ele, ao deslocar-se de um meio geográfico para outro, os
indivíduos podiam experimentar mudanças físicas ou mesmo mentais, que seriam herdadas por gerações
futuras. Contudo, conforme registrou Celso Castro, a principal contribuição de Franz Boas “para a
271
seus estudos sobre os tipos brasileiros, bem como suas opiniões sobre a mestiçagem
acabaram por influenciar outros pesquisadores que vinham se dedicando aos estudos
migratórios.
Ao passar em revista a obra de Edgard Roquette-Pinto, escreveu José Honório
Rodrigues que mesmo não tendo sido propriamente um historiador, as suas pesquisas
tinham contribuído para pensar o Brasil em termos de história84. E não por acaso, a
“Grande Guerra” de 1914 a 1918, evidenciara a experiência do esforço de guerra da
população civil, e deixara à flor da pele toda uma discussão que envolvia a identidade
nacional, e mesmo o papel a ser ocupado pelo Brasil no concerto das nações. A
percepção das graves vulnerabilidades do país acabou servindo como catalisador para as
discussões sobre os problemas nacionais que envolviam o pessimismo quanto à
formação da população, em um momento no qual passava a ser discutido seriamente o
abandono de idéias de empréstimo incrustadas por pensadores estrangeiros que mal
conheciam o Brasil. Conhecer o País real, suas vulnerabilidades e potencialidades para
bem decidir sobre ele, seria a tarefa da primeira hora. Desconhecia-se o que era o Brasil,
e isso ocorria tanto da parte dos intelectuais, quanto da maioria da população.
Afinal, se o sertanejo – ou seja, o homem do sertão – era então apontado sob
diversos aspectos como o tipo antropológico representante da nacionalidade – e em
autores tão respeitados como Euclides da Cunha e Edgard Roquette-Pinto – caberia um
maior entendimento sobre o que seria o sertão. Uma conferência proferida por Alberto
Rangel (1871-1945) na Biblioteca Nacional, em 17 de junho de 1913 propunha-se a
lançar luz sobre o assunto. Rangel tentou então evidenciar o desconhecido acerca do
território por parte da cartografia antiga, a qual imaginara o interior do Brasil como “um
campo de fantasia de nascentes e de falsidades de cordilheiras, circo vasio e immenso,
expresso no colorido das aquarellas convencionaes o tétrico desertão”85, de onde viria
pela amputação da primeira sílaba, a morfologia usual de sertão 86 . Lembrava então
Antropologia Cultural não foi como formalizador de teorias; seu papel foi acima de tudo o de crítico de
teorias então consagradas, como o evolucionismo e o racismo”. Ver. SOUZA, Vanderlei Sebastião de.
Retratos da Nação: os ‘tipos antropológicos’ do Brasil nos estudos de Edgard Roquette-Pinto, 1910-1920.
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.Ciências Humanas, Belém, v.7, n.3, p. 645-669, set.- dez.,
2012; e, CASTRO, Celso (org.). Franz Boas: Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. A
citação encontra-se à p. 18.
84
Roquete Pinto. In: ______________. História e historiadores do Brasil. São Paulo: Fulgor, s.d.
85
Os sertões brasileiros. Annaes da Bibliotheca Nacional. Rio de Janeiro, v. XXXV, 1913, p. 108-118.
86
Em sua premiada tese, Nísia Trindade Lima refere-se ao mesmo tipo de estudo etimológico que estaria
presente nos dicionários da língua portuguesa ao longo dos séculos XVIII e XIX, que comportaria uma
dupla idéia, qual seja, uma espacial – a terra do interior – e outra de caráter social, que alude a uma região
que seria pouco habitada, sentido que foi reafirmado por Sérgio Buarque de Holanda no clássico ‘Raízes
272
do Brasil’ (1936). LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação
geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
87
SOUZA, Candice Vidal e. A pátria geográfica: sertão e litoral no pensamento social brasileiro. Goiânia:
UFG, 1997. É possível ver nesse percurso que a imaginação geográfica posta sob a forma de narrativa
apresenta-se ineludivelmente articulada aos processos formativos da nação, aproximando-se do modus
operandi encontrado na imaginação histórica. A ficção da formação da nacionalidade passa a entremear-
se com o avanço sobre o território, ao passo que a história da ocupação espacial passa a ser a própria
história da formação nacional.
273
88
Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de
Janeiro: Revan, 1999, p. 65. Ainda para essa autora, “a substituição do indígena pelo sertanejo enquanto
símbolo da brasilidade também pode ser creditada, ao menos em parte, a experiências de incursão pelo
interior do Brasil”. P. 64.
274
trataremos, em páginas a seguir, daquela que foi considerada a mais expressiva por
haver dado ênfase ao isolamento e abandono a que eram relegadas as populações rurais
do Brasil89.
89
Essa expedição percorreu entre janeiro e outubro de 1912 o Norte da Bahia, o Sudoeste de Pernambuco,
o Sul do Piauí e as partes Norte e Sul de Goiás, a serviço do Instituto Oswaldo Cruz e da Inspetoria de
Obras contra as Secas. Teve como cientistas responsáveis os Drs. Arthur Neiva e Belisário Penna. O
relatório dessa viagem científica foi publicado no ano de 1916, com forte impacto, conforme tentaremos
demonstrar, na opinião pública brasileira.
90
Os sertões brasileiros. Annaes da Bibliotheca Nacional. Rio de Janeiro, v. XXXV, 1913, p. 115.
275
mediante a atuação do Estado Nacional91. Ao final desse conflito bélico havia ficado a
constatação que a chamada ‘civilização belle époque’ que a tantos fascinara, podia não
ser mais – conforme escreveu Marly Silva da Mota – o “modelo inegável da
modernidade a ser conquistada.”92 Em alguns círculos da intelectualidade a rejeição da
belle époque combinava-se com o nacionalismo, e alimentava pensamentos
tradicionalistas, o que gerava descrença quanto aos ideais liberais, apontando para o
desenraizamento e o artificialismo da sociedade urbano-industrial, onde na realidade,
nada haveria de moderno. Considerava-se então que esse artificialismo havia atingido a
intelectualidade cosmopolita do litoral. Então, a educação, assim como a saúde
passaram a figurar na qualidade de fatores fundamentais para uma obra que era
considerada à época como de regeneração nacional.
Ao cosmopolitismo do litoral, então entendido como dissolvente, passou a ser
considerada a brasilidade que se acreditava existir no sertão. Logo florescia uma
literatura paulista, de cunho regional, impulsionada por homens como Monteiro
Lobato 93 e Júlio de Mesquita. Em obras de cunho bastante conservador, eram
fortalecidos os sentimentos de brasilidade, e mesmo de paulistanidade, onde a paisagem
do interior e o homem rude e caboclo que nele habitava eram pintados com arroubos
ufanistas e românticos. Datam dos anos de 1915 a 1917 a Liga de Defesa Nacional
(1916), que tinha à frente Olavo Bilac, Miguel Calmon e Pedro Lessa; a Revista do
Brasil (1916) e a Liga Nacionalista (1917), organizada a partir da Faculdade de Direito
de São Paulo94.
A famosa conferência proferida em Belo Horizonte no ano de 1915, por Afonso
Arinos (1868-1916), ele mesmo um egresso da Faculdade de São Paulo, na qual se
bacharelara em 1889, integra esse rol de iniciativas. A fala de Arinos ocorreu em um
festival organizado em benefício dos flagelados da seca no Nordeste, onde o autor
91
LIMA, Nísia Trindade, HOCHMAN, Gilberto. Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil
descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República. In: MAIO, Marcos Chor, SANTOS,
Ricardo Ventura. Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996.
92
MOTTA, Marly Silva da. A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência.
Rio de Janeiro: FGV, 1992.
93
Possivelmente o personagem mais conhecido de José Bento Monteiro Lobato, faço aqui referência à
sua obra dirigida aos adultos, seja o Jeca Tatu. Esse caipira aparece em um conto publicado em 1914 no
jornal ‘O Estado de São Paulo, e republicado em Urupês, coletânea de 1918. O Jeca Tatu é um sitiante do
Vale do Paraíba, um piraquara, que com seu organismo tomado pelo parasitismo, não consegue dar vazão
às necessidades mais básicas do trabalho. LOBATO, José Bento Monteiro. Mr. Slang e o Brasil e
Problema Vital. São Paulo: Brasiliense, 1959 e Urupês, São Paulo: Brasiliense, 1969.
94
A Revista do Brasil pretendia realizar um reexame da identidade nacional. A Liga de Defesa Nacional
posicionou-se contra a neutralidade do Brasil na Grande Guerra. Ver: SKIDMORE, Thomas E. Preto no
Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976; e, DE LUCA,
Tania Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Unesp, 1999.
276
defendeu que deveria haver uma campanha cívica para criar uma nação para um
território que já existia. Para Afonso Arinos deveria partir das ‘classes superiores’, ou
ainda da ‘classe culta’, agrupadas segundo ele em torno das escolas de toda ordem, uma
campanha cívica para reerguimento do Brasil. Avaliando o País, Arinos enxergava uma
situação anômala à das demais nações, pois nele, “as classes populares são
relativamente superiores em moralidade às classes elevadas. [Defendia então a tese
que] como corpo político o povo brasileiro não existe”95. Assim, sobre o Brasil inteiro
deveria pesar o infortúnio sofrido pelo Nordeste, e os Estados não poderiam ficar
estranhos uns aos outros. Afinal, conforme convinha lembrar,
“Apesar das catástrofes, o Ceará nunca deixou de crescer em população,
computada hoje em um milhão de habitantes; e é daquele ninho de caboclos,
de dentes aguçados e canelas finas, que o Brasil tira as pugnazes energias
para as fileiras dos seus bons soldados e para as levas aventurosas dos
seringueiros, que vão disputar à morte nos marnéis pestíferos do Amazonas o
látex precioso.”96
95
FRANCO, Afonso Arinos de Melo. A Unidade da Pátria. In: COUTINHO, Afrânio (org.) Obra
completa. Rio de Janeiro: INL, 1968, p. 891.
96
Idem, Ibidem, p. 886.
97
MOTTA, Marly Silva da. A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência.
Rio de Janeiro: FGV, 1992, p. 37. Mônica Pimenta Velloso relaciona essa forma de nacionalismo ao
grupo dos verde-amarelos que marcou presença a partir dos anos 1920. A brasilidade verde-amarela:
nacionalismo e regionalismo paulista. 2.ed. Rio de Janeiro: FGV, 1990.
277
98
A fala do dr. Miguel Pereira logo tornou-se emblemática, alinhando as posições críticas da ordem
social e política da Primeira República. Proferida em ocasião na qual era feita uma saudação a Aloysio de
Castro, então diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro por motivo do êxito da delegação
brasileira em congresso médico realizado em Buenos Aires, a imagem do Brasil como imenso hospital foi
retomada pelo mesmo Miguel Pereira ao homenagear em ocasião posterior a um membro dessa
delegação, o dr. Carlos Chagas. Conforme LIMA, Nísia Trindade, HOCHMAN, Gilberto. Condenado
pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira
República. In: MAIO, Marcos Chor, SANTOS, Ricardo Ventura. Raça, ciência e sociedade. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 1996.
278
como parte da estrutura do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, que pela ótica
dos cientistas era uma agência dominada pelos políticos e bacharéis.
Na avaliação de Lima&Hochman (1996), haviam importantes elementos que
passaram a contribuir para a deflagração de uma campanha em prol do saneamento
rural, tais como: 1. O debate nacionalista intensificado pela Primeira Guerra Mundial; 2.
O impacto causado pelas viagens e descobertas científicas do Instituto Oswaldo Cruz; e,
3. As críticas à decadência da experiência republicana.
Os princípios constitucionais de autonomia aos Estados e Municípios causavam
restrições às possibilidades de atuação no âmbito do governo federal, pois, no arranjo
federativo, caberia aos poderes locais cuidar da saúde da população. Assim, o governo
central ficava restrito às ações no Distrito Federal, à vigilância sanitária dos portos e à
assistência aos Estados da federação naqueles casos que fossem previstos e regulados
constitucionalmente. As epidemias urbanas haviam sido objeto de ações mais
sistemáticas da Diretoria Geral de Saúde Pública e acabariam contribuindo com a
experiência necessária para a redefinição das atribuições do governo no campo da
saúde99.
O grande público vinha sendo preparado por artigos escritos por Belisário Penna
para um jornal de grande circulação, o ‘Correio da Manhã’, entre novembro de 1916 e
janeiro de 1917. Foram participantes fundadores da Liga os membros da Academia
Nacional de Medicina, os catedráticos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, os
cientistas do Instituto Oswaldo Cruz, juntamente com antropólogos do Museu Nacional,
militares, educadores, juristas e o Presidente da República, Wenceslau Brás.
99
Para esse tema ver os artigos da lavra de Luiz A. de Castro Santos: Estado e Saúde Pública no Brasil,
1889-1930. Dados. Rio de Janeiro, v. 23, n.2, 1980, p. 237-250; e, O Pensamento Sanitarista na Primeira
República: uma ideologia de construção da nacionalidade. Dados. Rio de Janeiro, v.28, n.2, 1985, p. 193-
210.
279
O quadro exposto por Arthur Neiva e Belisário Penna em seu relatório era
dantesco, sendo alarmante o número de portadores da doença de Chagas. A população
interiorana se caraterizava pelo abandono, pelo tradicionalismo e pela total ausência de
uma identidade nacional. A única bandeira que conheciam, conforme o relatório, era a
do Divino. Essa população seria ignorante, isolada – desconhecidos em sua boa parte o
fósforo, o moinho de café e a máquina de costura – revelando-se ainda pobre em
folclore, primitiva nos seus instrumentos de trabalho e nas trocas econômicas, pois
praticamente não utilizavam a moeda. A presença do governo somente se fazia sentir
em aspectos coercitivos da sua vida cotidiana, como no caso dos impostos que lhes
eram cobrados pelas transações com bezerros, bois, cavalos e burros100.
Em uma obra intitulada ‘Saneamento do Brasil’101, Belisário Penna oferecia em
1919, ano da sua primeira edição, um versão precisa das relações entre a doença e a
sociedade brasileira, traçando um diagnóstico crítico e sombrio da situação, mas
propondo ações mais radicais quanto ao papel a ser desempenhado pelo governo federal
no saneamento, povoamento e saúde pública. O quadro por ele traçado era assustador,
“A endemia mais extensa, reinante em todo o Brazil, a que affecta maior
porcentagem da sua população (nunca menos de 70%) é a ancylostomose,
(uncinariose, anemia tropical, vulgarmente chamada opilação, amarellão,
cangoary e mal da terra). Outras estão a ella, sempre ou quase sempre
associadas. Em seguida, reinante em todo o território pátrio, excepto em
alguns planaltos de Minas, do Paraná, de Stª Catharina e na maior parte do
Estado do Rio Grande do Sul, vem o impaludismo, ou malaria, vulgarmente
sezões, maleitas, febres intermittentes, tremedeira. Não há nenhum exagero
no calculo de 30% da população, que soffre os ataques do impaludismo. Em
terceiro lugar, sendo de todas a mais grave e incurável, segue-se a
trypanosomiase americana ou moléstia de Chagas, doença do barbeiro, que
prejudica uma parte e inutilisa a maior parte das suas victimas. Grande
parte da população sertaneja paga pezadissimo tributo a essa doença cruel,
incurável, porem perfeitamente evitavel. Além d’essas, em menor escala,
porem, vêm a lepra (morphéa), a leishmaniose (ferida brava, ulcera do
Baurú); as dysenterias (camaras de sangue), e o trachoma. Estamos nos
referindo ás doenças generalisadas nos campos, nas zonas ruraes do paiz,
porque tão extensas nas cidades e povoados, quanto o é a uncinariose nos
campos, são as syphilis e a gonococcia, e muito propagada nas capitaes e
nas cidades, a tuberculose. A lepra e a leishmaniose vão estendendo cada dia
os seus malefícios, n’um steeple chase macabro para alcançar elevada
porcentagem. A’ ancylostomose, porem, cabe, sem contestação, a
vanguarda, n’essa faina devastadora dos habitantes do Brasil, com
diminuição ou destruição da sua energia, da sua efficiencia e da sua
vitalidade. Ella não é um flogello sómente das fazendas e dos sertões, é
tambem das cidades, villas e arraiaes, a começar pela capital do paiz, onde
são innumeros, nos subúrbios e districtos ruraes, os opilados e os portadores
de ancylostomos, correndo por conta della muitos óbitos attribuidos a outras
100
LIMA, Nísia Trindade, HOCHMAN, Gilberto. Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o
Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República. In: MAIO, Marcos Chor, SANTOS,
Ricardo Ventura. Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996.
101
Saneamento do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos Editor, 1923.
280
102
Ibidem, p. 163-164.
103
Saneamento do Brasil, p. 99-100.
281
Porém o doutor Belisário Penna não parava por aí, e denunciava também que a
libertação dos escravos fora mal conduzida, gerando contingentes populacionais
desprotegidos e pouco qualificados, que migraram para as periferias das cidades. O
interior sofria daí o despovoamento, face a uma emancipação mal planejada que
relegara aqueles negros à própria sorte. Esses recén-libertos, esquecidos pelas
autoridades que sobre eles se omitiram – salvo quando suas dificuldades se
constituíssem em caso de polícia – não encontraram chances de competir por posições
na nova ordem, estacionando na marginalidade, e ali se deixando ficar. Houve como
uma das conseqüências desse triste quadro, carência de mão-de-obra para as lavouras,
acarretando uma situação que Belisário Penna classificou como de descaso para os
interesses das ‘classes agrícolas’, que em pensamento bastante afinado com o de
Alberto Torres, o autor qualificava na honrosa posição de alicerces da nacionalidade.
Haviam ainda sérios problemas habitacionais, de saneamento e educação nos
centros urbanos. E se as políticas de estradas estavam equivocadas, pois estimulavam as
migrações para os centros urbanos – levando na direção inversa, ou seja, para o interior,
pragas citadinas como o jogo, a sífilis e o álcool – não adiantaria também recorrer à
104
Ibidem, p. 100-101.
282
105
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. 2 v.
283
nossa parte podemos replicar que isso se faz analisando-se um processo que outros
franceses, no futuro, chamariam por longa duração, onde existem as continuidades –
premissas do antropólogo – mas também as rupturas tão colimadas pelos historiadores.
Trata-se de algo singular, único e irrepetível, momento de reflexão no qual se constitui
por excelência, o ‘território’ da História.
Decorridas as duas primeiras décadas do século XX, para aquela parcela de
homens brasileiros não brancos, fossem aqueles rústicos dos sertões ou ainda os
enfermiços das cidades, mas de qualquer forma, mestiços, continuavam as avaliações
pessimistas de parte da inteligentsia brasileira. Desses mestiços se dizia não reunirem as
qualidades julgadas pelos seguidores do racialismo como essenciais para a edificação de
uma nação. Mas esse discurso, mesmo que aprioristicamente se amparasse em sólidas
argumentações teóricas, já vinha se desmanchando no ar, sobretudo em virtude das
expedições científicas associadas às ações governamentais, que passaram a ser mais
integrativas, em conformidade com a lógica de conhecer para decidir.
Em todo caso, o que se viu, foi de forma majoritária o deslocamento do discurso
da inferioridade racial para as ações de combate às moléstias, para a criação de uma
infra-estrutura sanitária, articulada a práticas educativas da população. Antigos hábitos
de uma duvidosa higiene, tão incrustados no cotidiano da população deveriam ser
mudados. Por outro lado, se na investigação das causas do atraso brasileiro o discurso
racialista passava a ser mitigado, ganhavam em importância as posições que
denunciavam as falhas na colonização, ou seja, os vícios de origem da formação
brasileira.
Naquele contexto, o recurso à história passava a apresentar uma saída palpável,
concreta a até original, por permitir que as causas do atraso deixassem de ser localizadas
nos cânones da biologia e nos paradigmas das teorias raciais. O acesso ao tão almejado
caminho para a civilização não estava impedido, somente precisava ser pavimentado. E
isso poderia ser feito com os próprios tipos nacionais, que deveriam ser tratados,
educados, valorizados. Seguindo as sugestões de Capistrano de Abreu, deveriam ser
rompidos os determinismos, tanto os do meio, quanto os de natureza biológica.
Capistrano havia, conforme vimos em páginas anteriores, tematizado uma raça que
interagira com o meio, o que oferecia material para um proveitoso diálogo com a
antropologia do início do século, em parte possibilitada pelo seu aprendizado da língua
alemã. Aliás, José Honório Rodrigues considerou que a crescente admiração de
Capistrano de Abreu pela cultura alemã o tornou um germanófilo. Capistrano lia e
285
traduzia muito além de L. von Ranke, e Edward Meyer, Schmoller e Bucher eram
presenças certas na sua biblioteca. E assim como os métodos de seminário de Ranke,
‘Mestre’ Capistrano conhecia a doutrina antropogeográfica de Ratzel. Se não bastasse,
Capistrano assinava a Deustche Litteraturzeitung de Berlin, com vistas a manter-se
atualizado nos campos de estudo de seu interesse. Capistrano fora admitido em 1895
como membro correspondente da Berliner Gessellschaft Fur Anthropologie, Ethnologie
und Urgeschihte, sendo amigo de Koch Grunberg e Karl von den Steinen. Franz Boas
lhe escreve dos Estados Unidos, em 1925, pedindo apoio para a publicação das obras de
von den Steinen106.
Certamente que essa interação possibilitada pela envergadura de alguém como
Capistrano de Abreu era um daqueles momentos singulares de travessia entre o passado
e o futuro, onde o papel da história passa a ser o de proporcionar uma espécie de porto
seguro para uma sociedade angustiada pelo sentimento de inferioridade, pois
irremediavelmente perspassada pela mestiçagem que parecia condenar o Brasil a viver
em um divórcio com a civilização. Abrigado dos vendavais e correntezas, que
personificam nessa nossa metáfora o terror na história, esse atracadouro oferecido pela
história aparece como retirado das agruras do tempo presente. Nesse ambiente ocorre a
re-criação do passado, o qual, diga-se de passagem, não é qualquer tempo pretérito, mas
uma época julgada como portadora de especial significado para as questões enfrentadas
em dado presente. Trataremos dessas questões nos capítulos seguintes.
106
RODRIGUES, José Honório. História e historiografia. Petrópolis: Vozes, 2008. Cabe observar que
Alberto Torres também era leitor de Franz Boas. Assim, ao escrever em 1914, ‘O Problema Nacional
Brasileiro’, ele anota no capítulo intitulado ‘Em prol das nossas raças’: “...mas a ciência, prosseguindo
em suas indagações, chegou à conclusão de que ao lado das diversidades físicas, verificadas na estrutura
humana, nada, absolutamente nada, autoriza a afirmação de uma desigualdade radical, na constituição
cerebral, em seu funcionamento, em seu poder de desenvolvimento. A relação entre os caracteres físicos
e os caracteres psíquicos jamais se conseguiu afirmar com dados definitivos e irrefutáveis. Recentes
investigações, do mais ilustre, talvez, dos antropologistas americanos [sic!], o Sr. Fraz Boas,
demonstraram que os caracteres somáticos de uma raça alteram-se notavelmente, de uma geração para
outra, com a simples mudança para um meio novo.” In: O Problema Nacional Brasileiro. 4.ed. Brasília:
Unb, 1982, p. 59.
286
6 – Revisitando o passado
“Mais de uma vez já tem ido o Governo brasileiro buscar ou robustecer nos archivos
Por volta de 1900, alguns dos aspectos mais representativos do senso histórico1
no Brasil poderiam encontrar similaridade em relação a um texto facilmente disponível
a uma diminuta, porém crescente e a cada dia mais influente parcela da população
escolarizada. Esse texto servia como a versão da ‘história pátria’ de maior prestígio a
circular pelas escolas. Falamos das Lições de História do Brasil, preparadas por
Joaquim Manuel de Macedo para os alunos do Colégio de Pedro II, à qual fizemos
menção no quarto capítulo desse estudo. Tratava-se de uma versão duplamente
autorizada pois encontrava-se em conformidade com a cosmovisão saquarema e o ethos
da classe terratenente brasileira. Esses apelos estavam então expressos na obra de
Varnhagen, da qual as lições de Macedo, conforme já observamos em páginas
anteriores, havia contraído uma imensa dívida. Convém observar que essas lições foram
a grosso modo repetidas em uma outra obra, bastante semelhante para os estudantes das
escolas primárias2, pelo menos até a edição de 1922, pois a Escola pública republicana
1
Utilizo o conceito de senso histórico na acepção dada a ele por Hans-George Gadamer, qual seja, a
disponibilidade e o talento do historiador para a compreensão do passado, partindo do próprio contexto no
qual ele emerge. Nesse sentido, ter senso histórico significa superar de maneira conseqüente a
ingenuidade natural que nos leva a julgar o passado pelas medidas supostamente evidentes de nossa vida
atual, ou de maneira expressa, as instituições, valores e verdades adquiridos. Assim, ter senso histórico
significa pensar expressamente o horizonte histórico coextensivo à vida que vivemos. O Problema da
consciência histórica. 2.ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003.
2
De acordo com Selma Rinaldi de Mattos, as Lições de História do Brasil para uso dos alunos do
Imperial Colégio de Pedro II (ICPII) representou um desafio enfrentado e vencido por Joaquim Manuel
de Macedo no ano de 1861, qual seja, o de atender aos objetivos do Instituto Histórico e Geográfico
287
iria ainda durante muitos anos, utilizar-se do manual de Macedo, e por tabela, da versão
de Varnhagen para a História do Brasil. Referindo-se a esses manuais de Joaquim
Manuel de Macedo, José Honório Rodrigues declarou certa vez que teriam feito um mal
tremendo para a consciência histórica dos brasileiros3. Havia então, muito a ser tratado
pelos homens que se dedicavam às letras históricas naqueles anos iniciais do século XX.
Cabe ainda acrescer que nesse ano de 1900 vinha a lume um outro compêndio da lavra
de João Ribeiro, professor do Ginásio Nacional, a nova denominação dada pelos
republicanos para o Imperial Colégio de Pedro II. Cabe dizer que a existência da
História do Brasil de João Ribeiro não foi de início suficiente para destronar as lições
preparadas por Macedo, porém expressavam uma nova forma de entendimento para a
formação do Brasil. O contexto que envolve essas questões foi permeado por uma
disputa travada no seio dos meios belletristas daquela época e necessário se faz repassar
alguns aspectos que julgamos significativos para identificar os contornos do discurso
sobre os tempos pretéritos conforme era então realizado.
Uma primeira questão poderia ser colocada sobre uma efeméride, que visava
abarcar a noção de centenário, tendo sido realizada no intuito de passar em revista o
caminho percorrido pela ‘nação’ brasileira desde a chegada dos colonizadores
portugueses. Ora, um desses resumos dos quatro séculos veio a surgir no ano de 1901,
tendo sido produzido pela pena de Max Fleiuss, o autorizado primeiro secretário do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Outra versão para a história brasileira fora
estampada ainda em 1893, por Rodrigo Octávio Langaard de Meneses, a qual apresenta,
como veremos, uma perspectiva bastante diversa do texto de Fleiuss4.
Conforme lembra José Murilo de Carvalho, uma das primeiras ações do novo
regime republicano instaurado a 15.11.1889 foi a construção dos seus heróis. De acordo
com o autor, os heróis devem ter a cara da Nação e refletir o comportamento que
corresponda a um modelo coletivamente valorizado na sociedade, além de responder a
alguma aspiração coletiva, pois se isso não ocorre, o esforço de mitificação das figuras
políticas candidatas a herói torna-se em vão, o que leva com que candidatos a herói
venham a ser ignorados ou ainda, ridicularizados. Esses heróis, ou ainda, candidatos a
herói, seriam portanto “instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos
cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos”, pois conforme afiançou esse
4
Tendo Max Fleiuss e Rodrigo Octávio se utilizado de alguns autores em comum, torna-se bastante
defensável ao nosso ver, alguns pressupostos defendidos por Maria de Lourdes Mônaco Janotti. Para essa
historiadora, as condições históricas sob as quais a obra historiográfica foi produzida, passa a ser tão
importante quanto as citações – ou diríamos ainda – os autores dos quais essa se apropria. O diálogo
convergente: políticos e historiadores no início da República. In: FREITAS, Marcos Cezar (Org.).
Historiografia brasileira em perspectiva. 6.ed. São Paulo: Contexto, 2007, p. 119-143.
289
autor, “não há regime que não promova o culto de seus heróis e não possua seu
panteão cívico”.5
5
A formação das almas, p. 55.
6
Conforme apontou Lucia Lippi, as revoluções lidam pari passu com a organização de uma nova vida
social e política e a construção de um imaginário que se apresente como capaz de recuperar o equilíbrio
perdido. Assim, um momento novo carece da evocação de um tempo remoto. A memória nacional passa
então a ser (re)construída por historiadores, ideólogos, doutrinadores e educadores. Para essa finalidade,
organizam-se as comemorações, definem-se os heróis que devem ser evocados. As festas que a República
manda guardar. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.2,n.4, p.172-189, 1989.
7
A certidão do Conselho Superior de Instrução Pública do Distrito Federal é datada de 13 de setembro de
1894, ou seja, referente à primeira edição de Festas Nacionaes, que é de 1893.
290
Nacionaes não mais trazia em sua sexta edição – que veio a lume em 1912 – a famosa
‘Carta ao autor das Festas Naciones’, da lavra do não menos famoso Raul Pompéia,
figura importante dos primeiros anos do novo regime, e ideólogo considerado como um
elo entre os intelectuais do florianismo e os jacobinos ativistas8. Nas felizes palavras de
François Furet, ao final do século XIX, a história havia se tornado então uma “matéria
ensinável de pleno direito é inseparavelmente um método científico, uma concepção da
evolução e ainda a eleição de um campo de estudos ao mesmo tempo cronológico e
espacial.”9 Explica Furet que Lavisse e Seignobos retomaram naquela oportunidade os
dois temas da história filosófica desde o século XVIII, onde “a história é a nação; a
história é a civilização.”10
8
Sobre a atuação de Raul Pompéia e dos jacobinos ver: QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Os radicais da
República: jacobinismo, ideologia e ação (1893-1897). São Paulo: Brasiliense, 1986; PENNA, Lincoln de
Abreu. O florianismo e a construção da República. Rio de Janeiro:Sette Letras,1997 ; e, COSTA, Antonio
Carlos Figueiredo. Manifestações do jacobinismo popular em Minas Gerais (1893-1899). São Paulo:
Baraúna, 2010.
9
A oficina da história, p. 132-133.
10
Ibidem, p. 133.
291
Por sua vez, em seu ‘Festas Nacionaes’, Rodrigo Octávio intentava tratar da
educação cívica do cidadão de uma república recén-fundada. Entre outros propósitos,
esse pequeno livro buscava articular o cumprimento do decreto n.155 B, de 14 de
janeiro de 1890, do governo provisório – que instituíra os dias de festa nacional – a uma
interpretação pragmática da história, sob viés republicano, para que fosse utilizado nas
escolas primárias, e com isso, enfatizado o patriotismo. O livro é perspassado por uma
luta infinda entre dois grupos que o autor denomina por ‘partido da emancipação’ e
‘partido da colônia’. Na perspectiva veiculada pelo autor de Festas Nacionaes, a
República fora sempre uma aspiração nacional, porém sistematicamente sufocada pelo
grupo representado no ‘partido da colônia’11.
11
Em sua famosa ‘Carta ao autor das Festas Nacionaes’, Raul Pompéia assim se expressava: “Dá-se
uma cousa extranha com estas Festas Nacionaes. Despertada pelo titulo, vae-se-nos a imaginação
figurando perspectivas ridentes de tropheus e coroas. Festas nacionaes...Sonha-se uma jornada de
triumphos, descripta n’um hymno ovante. Espera-se a historia da consolidação cada vez mais firme de
uma nacionalidade. O volver das paginas vem-nos apear destas phantasias. Não resplende jamais nesses
capítulos a luz ampla de uma conquista definitiva: vacilla a indecisão de um difficil crepúsculo. O
compendio dos nossos suppostos regosijos patrióticos não nos traz a exposição de uma serie de alcances
conseguidos. Vamos ao contrario por uma escala de derrotas. O quadro histórico é constantemente a
cruel affirmação da pátria vencida. A alma nacional segue soffrendo dia a dia, o supplicio de todas as
dores. Sentem-se as ladeiras pedregosas do Calvario, no itinerário dos seus destinos...A proposito de
jubilos, como que nos diz que somos uma nação – proibida de ter jubilos...” Carta ao autor das Festas
Nacionaes. Rio de Janeiro: G.Leuzinger&Filhos, 1893, p.7-8.
292
vimos, possuía uma íntima vinculação com as ‘Festas Nacionaes’ de Rodrigo Octávio
para o qual escrevera um prefácio radicalmente repúblicano. Se o Brasil quinhentista
aparece a Fleiuss como uma terra de franca prosperidade, saltando as vistas a Bahia,
Pernambuco e o Rio de Janeiro12, para Rodrigo Octávio teria ocorrido nesse primeiro
século de colonização um total abandono, não havendo da parte da metrópole uma
orientação sistemática de governo que presidisse o desenvolvimento seguro 13. E para
fundamentar suas conclusões sobre o espírito devastador dos primeiros colonizadores,
Rodrigo Octávio se utilizava do sóbrio Frei Vicente do Salvador, o mais remoto dos
historiadores coloniais, cuja obra havia sido publicada em 1887, por Capistrano de
Abreu.
12
“O assucar constituía o gênero de maior productividade do Brazil naquella época, havendo ao todo
mais de cem engenhos, o que equivalia a saliente progresso, por isso que cada engenho exprimia uma
povoação mais ou menos numerosa. Cerca de setecentos mil quintaes de assucar eram o resultado dessas
fabricas; o consumo dos gêneros provindos de Portugal excedia a 400.000 cruzados, sendo geraes as
fortunas em Pernambuco, Bahia e no Rio. Quanto á parte relativa á instrucção publica, sentia-se a
benéfica supremacia dos jesuítas, que possuíam colégios nas três capitanias acima referidas. Tal em
linhas geraes e pefunctorias, por certo, o estado de nossa Patria em seu primeiro centenário. A Europa
acabava de assistir á execução capital da filha de Jacques V, determinada por Elisabeth, e esse
espectaculo junto ao da literária que se salientava-no velho continente com Cervantes, Lope de Veja,
Camões, Shakspeare, Pope, Swift, etc. coincidia com os lineamentos embora indecisos da pátria
brazileira que começava a surgir. Já haviam produzido salutares effeitos as missões de Anchieta,
Nobrega, Antonio Pires e outros que com a cruz de Christo levaram ao interior das nossas selvas as
primeiras palavras da civilisação e as primeiras palavras de fé!”, Centenários do Brazil, p. 100.
13
“...foi unicamente para não perder o domínio decurrente do facto casual da descoberta, que, nesses
tempos, era, como fonte de direitos, equiparado á occupação, que, com interesse secundário e sem um
plano regular de colonisação, se pensou no povoamento das novas terras. Foi adoptado o systema feudal
de grandes doações territoriaes...(...)...Os primeiros povoadores, porém, traziam no espírito sómente o
desejo de accumulo rápido e fácil de thesouros, pouco se importando com o beneficio e progresso das
terras que lhes haviam sido doadas....(...)...Tribus foram exterminadas; outras internaram-se,
abandonando no littoral as tabas despovoadas; aquelles indígenas que se submetteram pelo terror, foram
reduzidos ao captiveiro. Começou então mais tranquillamente o saque e a exploração devastadora das
riquezas naturaes das índias de Cabral.” Festas Nacionaes, p. 38-39.
14
Centenários do Brazil, p. 101.
293
Rodrigo Octávio, por seu turno, faz com que São Paulo apareça no século XVII,
como uma “prospera republica independente”, e para ele, esse núcleo populacional do
planalto bem poderia encarnar o seu ‘partido da emancipação’ haja vista o fato ocorrido
com Amador Bueno da Ribeira, após a queda da dominação espanhola, o qual recusou
“obstinadamente o throno e a majestade que a revolução paulista lhe havia conferido
em acclamação delirante” 17.
15
Ibidem, p. 105.
16
Festas Nacionaes, p. 82.
17
Ibidem, p. 61.
294
18
Festas Nacionaes, p. 42.
19
Centenários do Brazil, p. 107.
295
Acerca do quarto centenário do Brasil poderíamos dizer que se tornava uma fala
estratégica para Max Fleiuss, por avaliar personagens que abrangiam o Segundo
Reinado. O quarto centenário colocava em destaque alguns atores históricos que de
acordo com o 1º Secretário do IHGB, nem sempre foram bem avaliados pelos
historiadores. Um desses seria D. João VI. Novamente Oliveira Martins é criticado por
20
Ibidem, p. 107. Ora, essa versão oferecida pelo historiador português vem ao gosto do autor de Festas
Nacionaes, para quem, “Foi na alma dos moços brasileiros que cursavam as Universidades de Coimbra e
de Montpellier, que primeiro irrompeu nitidamente a idéa d’essa emancipação. Um desses rapazes, o
mais destemido d’elles, José Joaquim da Maia, entreteve com o glorioso Jefferson, então embaixador da
União Americana na corte de Luiz XIV (sic!), negociações para obter da recente e já poderosa republica,
auxilio e protecção para a patriótica tentativa. D’esse punhado de estudantes, Domingos Vidal Barbosa
conseguiu chegar a Minas, onde sabia que já lavrava o fermento revolucionario; sua chegada combinou
com a de outro illustre moço que na Inglaterra havia conquistado o então raro diploma de doutor em
sciencias naturaes, José Alves Maciel. Com elles logo se entendeu o alferes de cavallaria, Joaquim José
da Silva Xavier – o Tiradentes – que pela altivez e independência de caracter, era incarnação da Idea
revolucionaria.” P. 48-49.
21
Centenarios do Brazil, p. 107-108.
22
Festas Nacionaes, p. 46-47. (grifo do autor).
296
Fleiuss, pois teria tratado com leviandade as ações do príncipe regente, o futuro D. João
VI. Contudo a abertura dos portos ao comércio de todas as nações amigas, o livre
exercício de qualquer indústria, a criação no Brasil, de tribunais supremos, a fundação
de uma imprensa, de um banco e de escolas superiores serviam como demonstração
cabal do valor desse Príncipe, que havia proporcionado ares de civilização ao Brasil.
Para Max Fleiuss, a figura grotesca com que tentavam pintar a fisionomia de D.
João VI – aclamado rei pelo falecimento de sua mãe, em 1816 – não encontrava
materialização comprovada nos fatos; ele conseguira incontestavelmente prover com
homogeneidade sua administração, firmando os princípios do governo central, dando
provas cabais de sua capacidade e provendo no limite das possibilidades da época,
“todos os serviços e idéas que se ligavam á civilisação e ao engrandecimento da nossa
pátria.”23 Fleiuss não mantinha sérias dúvidas acerca dos serviços prestados por esse
príncipe , assim para ele, o concurso de D. João VI “na fundação de nossa
nacionalidade, foi eminente.”24
Opinião diversa propagaria Rodrigo Octávio, pois de acordo com ele, a fundação
do Império fora um erro e um engodo aos reais interesses nacionais, pois proclamou-se
a um príncipe ambicioso como defensor perpétuo do Brasil, preparando-se com isso,
Por sua vez, Max Fleiuss remetia ao que considerava como importantes
realizações no curto reinado de Pedro I, como a criação do Conselho de Estado, a
instituição do Supremo Tribunal de Justiça, o regulamento da Administração Geral dos
Correios, a fundação de dois cursos de Ciências Jurídicas e Sociais, sendo um em S.
Paulo e outro em Olinda, o estabelecimento de escolas de primeiras letras nas cidades,
vilas e lugares mais populosos do Império, a criação de um observatório astronômico,
além de uma convenção com a Inglaterra para a abolição do tráfico de escravos. Os dez
gabinetes formados durante o primeiro reinado contaram com nomes como José
Bonifácio, Martim Francisco, Felisberto Brant, Pedro de Araújo Lima e José Clemente
23
Centenários do Brazil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro. T. LXIV,
parte II, 3. Trim.- 4 . Trim, 1901, p. 119.
24
Ibidem, p. 119.
25
Festas Nacionaes, p. 106-107.
297
Pereira, a orientar o que teria sido, na opinião do autor, “...os justos desejos do
soberano”26. Por seu turno, não teriam sido infrutíferas as administrações regenciais,
porém dever-se-ia creditar à maioridade de Pedro II haver poupado “o Brazil de uma
luta em que, talvez, tivesse succumbido, não só a integridade do nosso território, mas,
também a nossa autonomia, exposto como ficava o paiz ás incertezas de uma política
tumultuaria”27.
Porém, como seria de se esperar, uma avaliação bem diversa do Segundo Reinado
faria o autor de Festas Nacionaes, para quem, nesse período, havia começado,
26
Ibidem, p. 123.
27
Ibidem, p. 124.
28
Centenários do Brazil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro. T. LXIV,
parte II, 3. Trim.- 4 . Trim, 1901, p. 126-127.
29
Ibidem, p.128.
298
A disputa pelo discurso dos tempos pretéritos era então algo bastante vivo, porém
com limites de tempo para ser decidida a partir de um local específico, conforme
veremos. A história, enquanto pedagogia do cidadão, contribuía para a formação da
consciência histórica desse cidadão desde os primeiros anos do Império. Assim,
30
Festas Nacionaes, p. 119-120.
31
Selma Rinaldi de Mattos reproduziu um extenso prefácio de Macedo, para o seu manual de História do
Brasil, na edição de 1861: “...A tarefa de que nos encarregamos difícil e espinhosa em muitos sentidos
mostrou-se-nos entretanto menos rude; porque não hesitamos em pôr em abundante tributo a nosso favor
algumas obras antigas e modernas sobre a História da Pátria, e mais que muito a História Geral do
Brasil do senhor Varnhagen, que especialmente em verificação de fatos e datas é a melhor de quantas até
hoje temos estudado.” O Brasil em lições: a história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de
Macedo. Rio de Janeiro: Access, 2000, p. 83.
32
A oficina da história, p. 133.
299
podemos dizer que diferentes grupos da sociedade constroem suas memórias coletivas, a
partir das quais – pelo trabalho de especialistas como os historiadores, os ideólogos, os
publicistas e educadores, entre outros – passa a ser montada uma memória nacional
dominante33. Ora, sob o Império, chegou-se através de Varnhagen, à História Geral do
Brasil, ou seja, a uma “primeira construção ideológica abrangente com a idealização
do Império brasileiro como fórmula política da integração nacional”34, obra na qual as
Lições de História do Brasil, de Joaquim Manuel de Macedo veio a se nutrir, para
educar a chamada ‘boa sociedade’.
Como era constituída essa boa sociedade? Responde Selma Rinaldi de Mattos que
durante o Império, essa chamada boa sociedade era formada por brancos, livres e
proprietários de escravos. Havia mais, pois para a autora, era do cruzamento particular
de atributos como o fenótipo, a liberdade e a propriedade que a chamada ‘boa
sociedade’ se diferenciava tanto do chamado ‘povo mais ou menos miúdo’, designação
empregada para aqueles que eram proprietários apenas de suas pessoas – por não
possuírem escravos – quanto da massa de escravos35. Daí, a criação de uma memória
comum, com a invenção de tradições, e a difusão de crenças, valores, símbolos e heróis
que reforçassem a coesão da população, expressa em um território unificado, uma nação
civilizada, distinta das repúblicas da América espanhola, dilaceradas por conflitos, ódios
e guerras civis36.
33
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. As festas que a República manda guardar.Estudos históricos, Rio de Janeiro,
v.2,n.4,1989,p.172-189.
34
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O diálogo convergente: políticos e historiadores no início da
República. In: FREITAS, Marcos Cezar de. (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 6.ed.São
Paulo: Contexto, 2007, p. 123.
35
O Brasil em Lições: a história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de Macedo. Rio de Janeiro:
Access, 2000.
36
Ibidem, p. 109.
300
37
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2006. Cabe registrar que a constituição do
Estado Monárquico careceu de raízes institucionais, sendo sua legitimação conforme vimos anteriormente
em parte oferecido pelo IHGB que construiu a memória nacional como uma continuidade entre o Império
Colonial português na América e o novel trono americano, cujo traço de união eram os ocupantes da Casa
de Bragança. Toda essa construção visava a dar coerência ao pacto de dominação dos Saquaremas, e
cimentar sob a proteção da narrativa histórica, mas também pictórica e literária o seu projeto de nação.
38
Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro:
Museu da República, 2007, p.116. A expressão ‘equipamento erudito da história’ foi utilizada por Jacques
Le Goff no verbete ‘História’ de sua lavra, para a Enciclopédia Einaudi. Ela busca retratar os esforços
decisivos ocorridos ao longo do século XIX, da parte dos historiadores e das instituições às quais estes
estavam ligados, para difundir o método crítico dos documentos. O exemplo paradigmático quase sempre
é o francês, pelos desdobramentos advindos da Revolução Francesa e do Império de Napoleão, que
criaram os Arquivos Nacionais, bem como pelo período da restauração, que criou a École de Chartres,
em 1821. Doravante surgiriam academias, sociedades de antiquários e de história, assim como
publicações de documentos voltados para a constituição da história, ou seja, o conjunto de organismos
que autorizou a Jacques Le Goff a dizer que existia uma “...«armadura» defensora da história: cadeiras
de faculdade, centros universitários, sociedades culturais, colecções de documentos, bibliotecas,
revistas.” Observa Le Goff que esse movimento foi não somente francês, mas europeu, sendo tingido
fortemente do espírito nacional, sendo sintomática a criação de revistas nacionais na maior parte de países
europeus como a Dinamarca, a Itália, a Hungria, a Noruega, a Inglaterra, a Polônia e a Alemanha. Fora do
continente europeu, cabe dar destaque aos Estados Unidos da América, onde havia sido fundada em 1800,
a Library of Congress em Washington. A ‘The American Historical Review’ surge em 1895. O modelo de
história erudita alemão é, como sabemos, herdeiro da tradição prussiana. Ali, a erudição havia criado
tanto instituições, quanto coleções de prestígio como a ‘Monumenta Germaniae Historiae’. A Prússia
cedeu seu chão para que ali se aliassem a erudição e o ensino sob a forma de seminário, onde nomes
como os de Niebuhr, Waitz (aluno de Ranke) – este último diretor da Monumenta Germaniae desde 1875
- Mommsen, Droysen, Treitschke, e o próprio Ranke, iriam pontificar com as suas cátedras. Quanto a
Leopold Von Ranke, cabe lembrar ser este o maior nome da escola histórica alemã do século XIX, e
fundador, conforme lembra Le Goff, do primeiro seminário de história, no qual professores e alunos
entregavam-se, em conjunto, à crítica dos textos. Para repetirmos as palavras de Jacques Le Goff, “A
erudição alemã tinha exercido uma forte sedução sobre os historiadores europeus do século XIX,
incluindo os franceses, que não estavam longe de pensar que a guerra de 1870-71 tinha sido ganha pelos
mestres prussianos e os eruditos alemães. Um Monod, um Julian, um Seignobos, por exemplo,
completaram a sua formação em seminários de Além-Reno.” História. In: Enciclopédia Einaudi. V.1.
Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional, 1997, p. 158-259.
301
foi convidado a tornar-se membro do Instituto face ao sucesso alcançado por seu
manual escolar39, obra da qual no referimos com brevidade em páginas anteriores.
39
HANSEN, Patrícia Santos. Feições&Fisionomia: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro:
Access, 2000. Lembra a autora que os livros anteriormente adotados no Imperial Colégio de Pedro II
haviam sido escritos por Joaquim Manuel de Macedo (1861) e Luiz de Queiroz Mattoso Maia (1880), este
último contemporâneo de João Ribeiro naquele estabelecimento escolar. Em boa medida, ainda conforme
HANSEN (2000:70) caberia a História do Brasil: curso superior (1900) dar concretude ao projeto de
Capistrano de Abreu, de tratar daqueles temas que ele considerara ‘novos’.
40
Ramiz Galvão é mais conhecido por ter pertencido aos quadros da Biblioteca Nacional. Organizou em
1881 a Exposição de História do Brasil naquela instituição. O catálogo dessa exposição foi considerado
por José Honório Rodrigues com o mais amadurecido exemplo de bibliografia histórica no Brasil. Nos
trabalhos para organizar essa Exposição, Ramiz Galvão contou com Capistrano de Abreu entre seus
auxiliares. Ramiz Galvão parece ter se destacado pela erudição, com amplos conhecimentos de fontes
documentais, iconografia e cartografia que adquirira e ampliara ao longo dos anos de trabalho na
Biblioteca Nacional. RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil: introdução metodológica.
5.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.
41
RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 74, parte II, 1911.
42
RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 73, parte II, 1910.
43
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. O ‘Tribunal da Posteridade’. In: PRADO, Maria Emília. (org.).
O Estado como vocação: idéias e práticas políticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Access, 1999. A
transferência das dependências modestas que ocupara na Sociedade Auxiliadora para algumas salas do
Paço da Cidade, foi avaliado pela autora como mais condizente com a situação política então desfrutada
pelos ilustres integrantes do IHGB.
302
Caberia apontar uma espécie de consenso entre diversos estudiosos dos Institutos
históricos e da historiografia do período48. O IHGB teria abdicado do autoproclamado
papel de preeminência em relação aos demais Institutos Históricos, passando assim a
prezar por uma mútua colaboração. Assim, cremos poder nos alinhar, ao menos
parcialmente, com tais opiniões que, em síntese localizam no advento da República e na
reformulação dos estatutos do IHGB, a dificuldade da sistematização da História
brasileira em uma grande obra de caráter geral. Certo seria que a concorrência das
histórias regionais e mesmo o caráter contestatório e dissidente assumido inicialmente
44
RIHGB. Rio de Janeiro, t.74, parte II, 1911, p. 698.
45
Ibidem, p. 698.
46
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2006, p. 31.
47
CORREA FILHO, Virgílio. Sedes do Instituto Histórico. RIHGB, Rio de Janeiro, v.254, jan.mar. 1962.
48
Seriam exemplos as contribuições de GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da escola palatina ao
silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República,
2006; HRUBY, Hugo, O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no limiar da República (1889-1912):
momentos decisivos. In: IX Encontro Estadual de História. Anpuh/RS, 2008; GOMES, Angela de Castro.
A república, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009; e, GONÇALVES, Tatiana Mol,
NICOLAZZI, Fernando. Inventando a historiografia mineira: o Instituto Histórico e Geográfico de Minas
Gerais em sua “primeira fase”, 1907-1927. Revista de teoria da história. Goiânia, UFG. Ano 6, n. 11.,
mai. 2014, p. 93-109.
303
Porém, nos inclinamos a ver um pouco mais que isso, e agregar a essas razões as
resultantes de certo investimento nas pesquisas históricas às quais, conforme sabemos,
passavam a contar com os refinamentos do método ‘rankeano’, com as assertivas dos
mestres franceses, lidos e citados às largas. A afirmação das histórias regionais era
acompanhada pari passu pelo discurso da legitimação dos Estados na sua busca pela
hegemonia no poder. E a cabal exemplificação dessa idéia ficava registrado nos
próprios dizeres do IHGSP, para o qual a História de São Paulo seria a História do
Brasil.
“uma criação moral dos jesuítas o quais teriam sido o elemento por
excelência da civilização nos dois primeiros séculos, e de que ordens
monásticas, como a dos franciscanos e carmelitas os quais tiveram o seu
papel no desbravar dos sertões, isto é, na conquista do interior, cooperando
assim poderosamente para a cultura geral do Brasil.”49
49
OLIVEIRA LIMA, Manuel de. Actual papel do instituto histórico. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, t. 76, 1913, p.485-493.
304
Cabe lembrar que cerca de dez anos antes dessa intervenção no IHGB, Oliveira
Lima havia realizado seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, ocorrido
em 17 de julho de 1903, tendo aproveitado a ocasião para escrever um elogio acadêmico
a Francisco Adolfo de Varnhagen. Assim, dava largas à sua admiração por aquele a
quem considerava o mais valente trabalhador da história nacional e mais notável dos
nossos historiadores. Revelava então a curiosa forma com que há muito percebera a
presença de Varnhagen nas pesquisas que realizara, sempre assinaladas nos bolorentos
papéis de consulta pela “marca discreta do lápis” daquele “pachorrento investigador”
que o precedera. Esse seria o ponto forte a apontar em Varnhagen: a paixão pela
investigação histórica, à qual a carreira diplomática – na qual havia percorrido todos os
degraus – havia possibilitado pesquisas em locais como a Torre do Tombo, em Lisboa
ou os arquivos de Simancas, na Espanha.
50
Idem, ibidem, p. 491-492.
305
Para Oliveira Lima, Varnhagen teria sido francamente anti indianista, conforme
apontara um dos seus críticos, D’Avezac, o qual estranhara que a História Geral do
Brasil não houvesse começado pelos indígenas. É que segundo Oliveira Lima,
Varnhagen não acreditava nos brandos esforços da catequese, e alegava que se devia
contar unicamente com a força para a contenção dos índios, para repeli-los, e obrigá-los
a tornarem-se úteis. Nesse sentido a,
“sujeição dos Indios era para elle equivalente a reducção na importação dos
Africanos, cuja emancipação lenta e gradual acabou por advogar com
animação, após ter pretendido substituir a servidão indigena á escravidão
negra. Para combater seu desprezo fundamental pelas ‘raças inferiores’
actuava o fermento da sua fé...”53
verdade é que Varnhagen, e aliás lembramos, lido, recomendado e editado pelo próprio
Capistrano, continuava imperante, incontornável, referencial, quase hegemônico, se não
metodológico, ao menos documental, pois sua História Geral do Brasil serviria como
programa para os temas referentes ao período colonial, durante o Primeiro Congresso de
História Nacional.
55
Para Wilson Martins, Manuel de Oliveira Lima teria sido um diplomata indiscreto. Falando em 1907,
na qualidade de representante do IHGB na inauguração do Instituto Histórico e Geográfico de Minas
Gerais (IHGMG), Max Fleiuss teria dito “Oliveira Lima, um dos nossos mais esclarecidos homens de
letras, disse com razão que o Brasil tem tido por ora grandes pesquisadores, como Varnhagen, mas não
possuiu ainda um grande historiador.” Fleiuss (apud Martins, 1996:336) estaria reproduzindo então, no
mesmo ano do lançamento dos Capítulos de História Colonial por Capistrano, uma idéia que atribuída a
Manuel de Oliveira Lima, parece que era na verdade, compartilhada por Fleiuss, mas também por João
Ribeiro, que esperavam de Capistrano a escrita de uma História do Brasil compatível com o seu talento.
Um detalhe que aqui lembramos é que Capistrano de Abreu presenciou este discurso de Fleiuss, pois
compareceu naquela tarde à sessão de instalação do IHGMG. In: MARTINS, Wilson. História da
inteligência brasileira. V.5 (1897-1914). 2.ed.São Paulo:T.A.Queiroz, 1996, p. 336. A correspondência
trocada entre o diplomata pernambucano e o historiador cearense, reunida e publicada por José Honório
Rodrigues, abrange de fevereiro de 1900 a março de 1901, demonstrando um clima de cordialidade e
cortesias, onde livros, artigos e revistas foram mutuamente presenteados. Correspondência de Capistrano
de Abreu. v.III. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
56
Em recente comunicação, Júlio Vellozo procurou esclarecer alguns aspectos do desentendimento
havido entre Manuel de Oliveira Lima e o Barão do Rio Branco. Trata-se de uma história que merece ser
contada. Pelos idos de 1903, os atritos começavam. Oliveira Lima encontrava-se no Japão e contava com
uma remoção para a Europa, sendo Londres a sua preferência. Sentia a sua carreira como diplomata
obstada e tentava se reposicionar no campo intelectual – se é que podemos falar em campo intelectual
àquela época – movendo esforços para avançar na preparação daquela que seria talvez sua principal obra:
Dom João VI no Brasil. Foi nessa conjuntura que um decreto de Rio Branco deslocou Oliveira Lima para
o Peru, ato considerado por Lima como uma afronta ao seu já grande prestígio. Para Oliveira Lima,
Londres seria a sinalização de uma promoção, mas para os interesses do Estado brasileiro, o Peru e a
Bolívia representavam pontos sensíveis de grande interesse geopolítico, onde à época eram tratadas
questões de limites territoriais. Insensível a esses argumentos, e tendo recebido um telegrama de cobrança
do Barão que lhe feriu gravemente os brios, Oliveira Lima, como forma de provocação, deixou-se
demorar na Europa, chegando ao Rio de Janeiro tardiamente, e passando então a escrever artigos de tom
polêmico e bastante ácido em relação ao mundanismo dos salões e da pouca concretude aos interesses
nacionais que julgava caracterizar a diplomacia brasileira. Deixado de lado no Rio de Janeiro, Oliveira
307
nada mais natural que a falta de referências a Capistrano de Abreu (que cultivara na
verdade uma retumbante ausência na vida do Instituto) nos trabalhos desenvolvidos para
organizar o Primeiro Congresso de História Nacional, embora tenha sido ensaiada uma
espécie de aproximação com seu ensaio sobre o Duque de Caxias no ano de 1908,
momento no qual cabe observar, o grêmio ainda era presidido pelo Barão do Rio
Branco.
Morto o barão, Oliveira Lima teria ainda mais espaço para impor suas idéias no
ambiente do IHGB. O Primeiro Congresso de História Nacional de certa maneira
idealizado por ele, representa em nossa avaliação um evento de caráter axial, ou ainda
uma espécie de divisor de águas. Momento de redefinições, onde concorriam as forças
do áulicos da Monarquia, a clamar contra o ‘deserto do esquecimento’ e os interesses
voltados para as identidades regionais – e logicamente articulados com as oligarquias
dos Estados da federação – a promover os seus tipos representativos no passado
colonial. A ‘Introdução aos Estudos Históricos’ (1898), dos historiadores franceses
Langlois&Seignobos fornecia uma espécie de chão comum para esses pesquisadores, no
que devemos entender no entanto, que a metodologia propagada pelos mestres da
Sorbonne foi utilizada, algumas vezes mais como discurso, do que propriamente como
método de trabalho.
Lima utilizou o tempo para dar mãos-à-obra ao seu D. João VI no Brasil, trabalhando para tanto no
Arquivo Nacional, na Biblioteca Nacional e nos próprios arquivos do Itamaraty e da legação dos Estados
Unidos da América no Rio de Janeiro. VELLOZO, Júlio. Oliveira Lima lendo Capistrano de Abreu –
renovação de paradigmas e disputa (1903-1904). XXVII simpósio nacional de história. Natal, jul. 2013.
57
Na opinião de Lucia Maria Paschoal Guimarães (2006), “a reunião representava uma boa
oportunidade para fazer um balanço sobre a situação dos estudos de história pátria, trazendo para o
centro dos debates as questões levantadas por Nabuco. E, quem sabe, tornar menos árido o ‘deserto do
esquecimento’ imposto pela República em relação à história do Segundo Reinado.” (grifos da autora).
Ainda de acordo com a autora (2005 e 2006), nos países europeus, desde o século XIX, a vida
universitária favorecia a realização de atividades científicas, e com estas, o incremento da circulação de
idéias, trocas de experiências e atualização do conhecimento entre intelectuais de diversas nacionalidades.
A convocação periódica desses certames propiciava então uma reflexão conjunta sobre bibliografias,
fontes, temas e métodos de trabalho. Desde 1839, por ocasião do Congresso de Ciências Históricas em
Piza, Itália, o IHGB marcara presença em algumas dessas jornadas. Outras se seguiram, como em 1866,
no Congresso Arqueológico e Histórico de Antuérpia. Em 1878 era a vez do Congresso de Americanistas
de Luxemburgo, representado pelo Barão do Rio Branco, bem como em 1881, ao Congresso de Ciências
Históricas de Veneza, quando, patrocinado pelo Imperador D. Pedro II, o IHGB logrou a conquista de
prêmios por sua coleção de mapas ali expostos, bem como pela qualidade e periodicidade da sua revista
308
trimensal. Relata ainda Lucia Maria Paschoal Guimarães a ocorrência de outras distinções, como na
Exposição Universal de Paris, em 1889, assim como na Exposição Columbiana levada a efeito em
Chicago, em 1892. Por ocasião do XVI Congresso dos Americanistas, ocorrido em Viena, no ano de
1908, a representação ficou a cargo do sócio Manuel de Oliveira Lima. GUIMARÃES, Lucia Maria
Paschoal. Primeiro Congresso de História Nacional: breve balanço da atividade historiográfica no
alvorecer do século XX. Tempo. Rio de Janeiro, n.18, 2005, 147-170 e GUIMARÃES, Lucia Maria
Paschoal. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de
Janeiro: Museu da República, 2006. De acordo com as actas das sessões realizadas em 1913, cabe
acrescer o nome do consócio Luiz Antonio Ferreira Gualberto quanto à idéia da realização do Congresso
de História Nacional. RIHGB, Rio de Janeiro, t.76,parte II, 1913, p. 505.
58
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Primeiro Congresso de História Nacional: breve balanço da
atividade historiográfica no alvorecer do século XX. Tempo. Rio de Janeiro, n.18, 2005.
59
Em 30 de maio de 1913, foi aprovada por unanimidade, e imediatamente nomeada a seguinte comissão:
Benjamin Franklin Ramiz Galvão, Manuel de Oliveira Lima, Max Fleiuss, Martim Francisco Ribeiro de
Andrade, Manuel Cícero Peregrino da Silva, Augusto Olympio Viveiros de Castro, Luiz Gastão Ruch,
Norival Soares de Freitas, Luiz Gastão d’Escragnolle Doria e Alberto Rangel. RIHGB, Rio de Janeiro,
t.76,parte II, 1913, p. 505-506.
60
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2006, p. 81.
309
61
RIHGB, Rio de Janeiro, t.76,parte II, 1913, p. 656.
62
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Primeiro Congresso de História Nacional: breve balanço da
atividade historiográfica no alvorecer do século XX. Tempo. Rio de Janeiro, n.18, 2005. P. 152. A autora
explica que para as teses oficiais o IHGB convidaria um especialista para discorrer sobre determinado
assunto do programa. No caso das teses avulsas, os autores inscreveriam seus trabalhos por iniciativa
própria, desde que fosse respeitado o elenco de temas estabelecidos, que seria qualquer episódio da
história brasileira, desde o descobrimento até a lei dos nascituros.
310
de estudos. Aliás, cumpre ressaltar que essa seção, cuja relatoria ficou a cargo de Gastão
Ruch, preocupou-se com a análise do processo de formação do território nacional. Nela
incluíam-se as teses ‘os bandeirantes paulistas’, de Gentil de Assis Moura e a
‘expansão geographica do Brasil até fins do século XVII’, de autoria de Basílio de
Magalhães.
Julgamos ser relevante considerar ainda algumas colocações com uma finalidade
que não é de divergir, porém de aprofundar as observações fazendo com que venham
convergir e centrar-se com o contexto da época. Conforme lembra Fraçois-Châtelet, o
estado-nação constituiu-se no decorrer do século XIX em uma espécie de quadro
obrigatório para a existência social e realidade política sob a qual organizaram-se os
atos históricos. Disso resultou que esse estado-nação, sendo uma representação política,
passou por sua vez a condicionar que as populações constituídas em sociedade em um
mesmo território, deveriam reconhecer-se como vinculadas a um mesmo poder
soberano, para o qual a história havia se tornado uma espécie de caminho pavimentado
o qual compactado pelas narrativas dos tempos pretéritos, mantinha-se sob as balizas
dos princípios da civilização ocidental.
Sob tais condicionantes não seria exagerado dizer que ao longo do século XIX o
Estado Nação foi apresentado de maneira um tanto naturalizada como a forma típica
para as sociedades politicamente organizadas do Ocidente, com a adoção via-de-regra
do regime republicano como forma de governo. Desde a Revolução francesa a vontade
do povo era apontada como o fundamento da república, e desse tipo de nação-pátria,
deveria estar consoante um tipo de república que enquanto vontade do povo seria ainda
a administradora de um território, mantendo ainda, certo consórcio com a história,
entendida como uma espécie de biografia da nação63. Uma concepção de história sob as
63
Essa idéia da história como biografia nacional remete a Antonio Gramsci quando tematizou a questão
do risorgimento na historiografia italiana. Ela busca expressar uma forma de escrever a história, a noção
de sentimento nacional colocada enquanto instrumento político para coordenar e consolidar nas massas da
população, aqueles sentimentos que se julgava constituir o sentimento nacional. De acordo com Rogério
Forastieri da Silva, o caso brasileiro possui o peso do passado colonial, o que de uma forma ou de outra,
tratar-se-ia “de construir uma historiografia da nação em que o passado colonial ‘deve’ estar presente”.
Dessa forma, para esse historiador, “há que se buscar no passado o presente da nação. Assim a história
tende a constituir-se como uma biografia da nação.” Essa construção seria encargo de gerações, por uma
constante repetição ao longo dos anos escolares, o que acaba por dar consistência para algo que antes não
existia. Observa Rogério Forastieri que o que para Gramsci surgiu como sentimento nacional, no caso
brasileiro toma o nome de sentimento nativista. Para o autor, ficaria armado um esquema de explicação
que “se não é verdadeiro, passa a imprimir sentido e significações entre passado e presente”. SILVA,
Rogério Forastieri da. Colônia e Nativismo: a história como ‘biografia da nação’. São Paulo: Hucitec,
1997, p. 14-15. (grifos do autor).
311
64
O paradigma iluminista da história tem suas tendências filosóficas fundadas no século XVIII, porém foi
durante o século XIX que a história encontrou seu reconhecimento acadêmico e profissional, face ao
emprego de modelos macro-históricos e teorizantes. Doravante a história, sob esse paradigma seria
analítica, explicativa e estrutural, o que equivaleria dizer, voltada para a inteligibilidade e a explicação,
tendo por princípios norteadores delimitar o quanto possível, o irracional, o acaso e o subjetivo.
CARDOSO, Ciro Flamarion. História e paradigmas rivais. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS,
Ronaldo (orgs). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p.
3-4. Para Reinhart Koselleck, desde Heródoto, a disciplina da história e a historiografia estiveram sujeitas
ao ethos da justiça. Esse seria um aspecto inerente à narrativa histórica, pois o historiador estaria em
afinidade com os procedimentos legais comumente empregados na justiça, esperando chegar aos fatos
verdadeiros, e para isso, interrogando as melhores testemunhas, comparando e contrastando seus
testemunhos e não deixando de ouvir a parte contrária. Procedimentos dessa natureza deram concretude à
narrativa histórica dos helenos a Ranke. Com esse historiador foi produzida uma espécie de ampliação
das tarefas do historiador, pois esse deveria ir além da determinação dos fatos ou de falar sobre as pessoas
neles envolvidos. Koselleck, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2014.
312
seção daquele congresso. Vale lembrar que a 1ª seção estava dedicada à História Geral,
e a tese oficial, denominada pelos promotores do congresso como ‘Tentativas de
Independencia’, estava inclusa em uma seção onde figuravam autores como Jonathas
Serrano, Lúcio José dos Santos e Max Fleiuss. Esses intelectuais pertenciam aos
quadros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, estando portanto a priori,
envolvidos, e iríamos mais adiante, visceralmente comprometidos com o sucesso dos
eventos planejados por aquele sodalício. Esse era o contexto a envolver as designações
para alguns dos autores das chamadas ‘teses oficiais’, a crermos na fidedignidade do
teor do ofício lavrado pelo presidente da Comissão Executiva, B. F. Ramiz Galvão e
endereçado a Annibal Velloso Rebello. Nessa missiva, Ramiz Galvão considerava que
Annibal Velloso, eleito para a tarefa por unanimidade de sufrágios naquele Instituto,
não recusaria “...prestar esse serviço á grande causa da nossa Historia, contribuindo
com o seu notável valor intellectual para um certamen que exprime uma obra
patriótica.”65
Pois assim era pensado aquele Primeiro Congresso de História Nacional. Fora
levado em consideração que Annibal Velloso, de formação jurídica e Conselheiro da
Embaixada Brasileira em Portugal, tendo portanto à sua disposição os ‘Archivos de
Portugal’, os quais, evidentemente – assim considerou a comissão executiva –
encerrariam valiosíssimos documentos sobre a tese a ele atribuída. Contava no entanto o
Conselheiro Annibal Velloso com um prazo relativamente exíguo, pois o texto da
memória deveria ser entregue até o dia 7 de agosto, ou seja, em pouco mais de dois
meses do recebimento da proposta. Velloso não era contudo o único a se ver em uma
situação tão assoberbadamente aflitiva. Afinal, de forma voluntária ou involuntária –
como ficou claro ser o caso do ilustrado Conselheiro diplomático – haviam outras 92
teses a ser escritas. Distante do Brasil, inferimos que face às distâncias e os meios ainda
bastante acanhados das comunicações daquela época, o que não faltava ao Conselheiro
Velloso eram assoberbações, tratativas e preocupações. Deixemo-lo à parte por alguns
instantes, destinando as próximas linhas para tratar de outras teses e personagens
igualmente importantes, alguns já bastante falados em nosso estudo. Um deles, Afonso
d’Escragnolle Taunay, já foi aqui apresentado na qualidade de historiador e diretor do
Museu Paulista. Mas pelos idos de 1914, Taunay ainda não era o diretor do Museu
65
REBELLO, Annibal Velloso. As primeiras tentativas da independência do Brasil. Lisboa: A Editora,
1915, p. 24.
313
66
Por essa época, de acordo com Karina Anhezini, Afonso Taunay dava continuidade às suas pesquisas,
publicando os resultados na forma de artigos de jornal. O pagamento auferido nessa atividade era então
fundamental para complementar sua renda obtida nas aulas da Faculdade Livre de Filosofia e Letras de
São Paulo, no Colégio de São Bento e na Escola Politécnica de São Paulo. Ainda nos meses finais de
1916, Taunay andava preocupado com sua vida financeira, conforme confidenciou ao seu amigo Max
Fleiuss, ao pedir ajuda para conseguir manter os 100$000 recebidos pela colaboração no Jornal Comércio
de São Paulo. No mês de Janeiro de 1917 Taunay recebeu auspiciosas cartas que acenavam com uma
nova oportunidade profissional que acompanharia um aumento substancial da sua renda: 650$000 a título
de vencimentos como Diretor do Museu Paulista, mais 250$000 mensais para o aluguel da casa. Seu
cunhado Edmur, irmão mais velho da sua esposa Sara de Souza Queiroz Taunay serviu como
intermediário nas conversas com o então Diretor do Museu, Armando da Silva Prado (1880-1956).
Armando Prado ocupou a direção do Museu Paulista entre agosto de 1916 e fevereiro de 1917. Ainda
segundo a autora, as negociações para que Taunay assumisse a função ocorreram entre Janeiro e meados
de Fevereiro de 1917, quando ele finalmente “pode agregar ao nome a função que o distinguiria nas
letras históricas.” Cfe. f. 107; 124-125. ARAÚJO, Karina Anhezini de. Um metódico à brasileira: a
História da historiografia de Afonso de Taunay (1911-1939). 237f.Tese (Doutorado em História) –
Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista, Franca, 2006.
67
A diferença fundamental entre as teses oficiais e as teses avulsas foi explicada por Lúcia Maria
Paschoal Guimarães no ensaio ‘Primeiro Congresso de História Nacional: breve balanço da atividade
historiográfica no alvorecer do século XX ’, publicado em Tempo, Rio de Janeiro, n. 18, p. 152. As teses
seriam as questões propostas pelos relatores daquele Congresso. Aos especialistas, responsáveis pelas
teses oficiais caberia, pela sua autoridade, discorrer uma comunicação para a reflexão dos participantes do
Congresso de História.
68
Obras de Capistrano de Abreu. Correspondência, v.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977,
p.276.
69
Idem, Ibidem, p. 276.
314
Capistrano acusava haver lido “...os artigos sobre Pedro Taques. Todos muito
interessantes, um verdadeiro feixe de novidades.” A correspondência é datada de 13 de
junho do mesmo ano, portanto, antecedendo cerca de dois meses ao Congresso de
História Nacional70. Com a tese intitulada ‘Pedro Taques de Almeida Paes Leme
(estudo biographico)’, Afonso Taunay logrou cativar naquele 15 de setembro de 1914
as atenções da assistência que compareceu ao auditório do Silogeu. O foco direto das
reflexões de Taunay pretendia iluminar ao linhagista setecentista Pedro Taques (1714-
1777), autor entre outras obras, da Nobiliarquia Paulistana. Doravante, os escritos de
Taques, juntamente com aqueles lavrados na pena do seu primo Frei Gaspar de Madre
de Deus (1715-1800), se converteriam em fontes perenes às quais recorreria Afonso
Taunay nos seus estudos sobre o sertanismo paulista. Taunay os reputava na categoria
das pessoas mais cultas do século XVIII paulista71. Podemos considerar que coube a
Afonso Taunay redescobrir e valorizar, a partir de então para a História, a obra dos dois
cronistas que se debruçaram sobre o século XVII paulista72. Em seu estudo biográfico
sobre Pedro Taques, Taunay utilizou-se para enredo, de um arquétipo que poderia ser
caracterizado como de tragédia, haja visto a trajetória do biografado apresentar
sobressaltos que influenciaram negativamente para o desfecho da sua história de vida:
mortes na família, doenças terríveis, falência e descrédito. No entanto, é devido o
entendimento que aquilo que realmente interessava ser considerado não eram os
percalços vividos por Taques, mas o valor da sua obra. A par de todas as tragédias
pessoais, nada impedira que Taques se apegasse mais ainda aos queridos e quase nunca
abandonados estudos históricos e genealógicos, dos quais resultariam entre outros a
Nobiliarquia Paulistana. E a existência desses possibilitava o devassamento no século
XX, da São Paulo do século XVII. Relevante portanto em face da natureza do
70
A relação entre Capistrano de Abreu e Afonso Taunay remonta ao ano de 1889, quando menino de 12
anos, Taunay fora acompanhado pelo Mestre . As lições, tomadas a domicílio na casa do pai de Afonso, o
Visconde de Taunay, nas Laranjeiras, bairro do Rio de Janeiro foram o ponto de partida para uma
amizade de quase quarenta anos entre discípulo e mestre. Logo após a morte do historiador cearense,
Afonso Taunay publicava com data de 10 de outubro de 1927, um pequeno artigo no qual homenageava
Capistrano. Desse, destaco o seguinte parágrafo: “A Capistrano devi assignalados serviços e os mais
leaes conselhos. Deu-me indicações preciosissimas sobre muitos e muitos assumptos. Indicou-me
opulentas fontes com aquella prodigiosa liberalidade e ausência total de inveja que formavam o fundo do
seu intimo, ao offerecer aos amigos, aos consulentes em geral, a poderosa valia de seu formidável
cabedal de conhecimentos. E como se interessava pelo andamento dos trabalhos daquelles a quem
estimava! Como desejava que se aperfeiçoassem!” J. Capistrano de Abreu. In Memoriam. Anais do
Museu Paulista. São Paulo. T.3, p. XVII, 1927.
71
José Honório Rodrigues considerou Pedro Taques, como todos genealogistas, merecedor de confiança
limitada. Utilizando-se de Varnhagen, José Honório entendia Frei Gaspar como pouco fidedigno, devendo
ser lido sempre com cautela. In: História da História do Brasil. 1ª Parte ( Historiografia Colonial). São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.
72
Idem, Ibidem, p. 151.
315
Congresso onde o estudo era apresentado. De ascendência ilustre, tanto materna, quanto
paterna, sobrinho-neto de Fernão Dias Paes e quarto neto de Braz Cubas, “excepcional”,
para usar-mos das palavras de Taunay – “era então o brilho e o prestigio dos Taques
em terras paulistas”73, e apesar de se conhecer pouco da infância de Pedro Taques, era
revelado por Taunay que este freqüentara o Colégio Jesuítico de São Paulo. Teria então
o linhagista, nas palavras do futuro ‘historiador das bandeiras’, acessado
73
Pedro Taques de Almeida Paes Leme: estudo biographico. RIHGB. Primeiro Congresso de História
Nacional. Tomo especial. Parte V. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917. P. 818.
74
Idem, Ibidem, p. 819.
75
Karina Anhezini informa que para Taunay os estudos realizados por Azevedo Marques, Toledo Piza e
Sílvio Romero sobre a História paulista e os bandeirantes não teriam considerado a vida do linhagista,
nem se preocupado com a época retratada por Taques, para Taunay, um dos melhores cronistas do
setecentos. Correspondência e escrita da História na trajetória intelectual de Afonso Taunay. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n. 32, 2003, p. 13.
76
É esclarecedor ressaltar que os cinco primeiros volumes da História Geral da Bandeiras Paulistas,
vieram a lume entre 1924 e 1929, assim como outras obras de Taunay neste período, foram total ou
parcialmente editados com o financiamento dos cofres públicos paulistas. ANHEZINI, Karina.
Correspondência e escrita da História na trajetória intelectual de Afonso Taunay. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, n. 32, 2003, p. 15.
316
Ao longo da sua tese, Gentil de Assis Moura tece referências a autores como
Diogo de Vasconcelos, Washington Luís, Basílio de Magalhães e Orville Derby. Utiliza
do ensaio do Padre Pastells, bem como de relatos produzidos por Antonio Ruiz
Montoya, superior dos jesuítas à época das investidas dos bandeirantes nas primeiras
décadas do século XVII. A grande ausência nas referências seria Capistrano de Abreu,
que no seu ‘Capítulos de História Colonial’, texto de 1907, perguntara se teria
compensado os horrores praticados pelos bandeirantes, o fato das terras por esses
devastadas terem passado a pertencer ao Brasil. Para Gentil de Assis Moura, teria
compensado. Sem citar a Capistrano de Abreu, ele dirá que o que se pretendia com a
valorização de tais violências era a depreciação das glórias dos sertanistas de São Paulo,
os quais fizeram avançar a “civilização” aos sertões.
77
Pedro Taques de Almeida Paes Leme: estudo biographico. RIHGB. Primeiro Congresso de História
Nacional. Tomo especial. Parte V. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917. P. 818.
78
As bandeiras paulistas: estabelecimento das directrizes geraes a que obedeceram e estudos das zonas
que alcançaram. São Paulo: Companhia typographica editora ‘o pensamento’, 1914.
79
Idem, ibidem, pp. 10-11. Foi mantida a grafia original.
317
Cabe aqui ressaltar que o ensaio de Gentil de Assis Moura apresenta interesse
por ser a fala de um especialista naquela iniciativa pioneira que reunia letrados e
políticos atuantes, sob o objetivo de sistematizar o saber histórico disponível,
conferindo-lhe, conforme escreveu Lúcia Maria Paschoal Guimarães, unidade e
coerência. Cabe observar que àquela época, temas como as bandeiras, as minas, a
criação de gado, a entradas, em suma, a ocupação do território, ainda eram ‘coisas
novas’, para utilizarmos da fala de Capistrano de Abreu ao Barão do Rio Branco,
conforme reproduzimos páginas acima. Nesse aspecto, a tese preparada por Basílio de
80
As bandeiras paulistas: estabelecimento das directrizes geraes a que obedeceram e estudos das zonas
que alcançaram. São Paulo: Companhia typographica editora ‘o pensamento’, 1914, p. 10-12. ( grifos
nossos).
318
81
Washington Luis administrou a cidade de São Paulo entre os anos de 1914 e 1919 enfrentando a
carestia, o desemprego, a diminuição da atividade econômica, a greve de 1917, os efeitos da Grande
Guerra e a epidemia de gripe que assolou a capital em 1918. Apoiado por Altino Arantes chegaria à
Presidência do Estado em 1920. A publicação das Atas e do Registro Geral da Câmara de São Paulo foi
financiada pelo governo municipal devido ao empenho de Washington Luis quando prefeito. Ao assumir
o governo do Estado de São Paulo, Washington Luis mandaria publicar os Inventários e Testamentos em
um total de 27 volumes.ARAÚJO, Karina Anhezini de. Um metódico à brasileira: a História da
historiografia de Afonso de Taunay (1911-1939). 237f.Tese (Doutorado em História) – Faculdade de
História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista, Franca, 2006.
319
82
Entre 1924 e 1930 Afonso Taunay lançaria os seis primeiros tomos dessa obra. Os primeiros volumes
vieram a lume em um ritmo vertiginoso: Tomo I, 1924; Tomo II, 1925; Tomo III, 1927; Tomo IV, 1928;
Tomo V, 1929; e, Tomo VI, 1930. MATOS, Odilon Nogueira de. Afonso de Taunay: Historiador de São
Paulo e do Brasil (perfil biográfico e ensaio bibliográfico). Coleção Museu Paulista, série ensaios, v.1,
São Paulo, 1977. De acordo com Karina Anhezini (2006), ao menos o primeiro tomo da História Geral
das Bandeiras Paulistas foi financiada pelo governo estadual. Ibidem.
83
Cadastro de Sócios. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, tomo 76,
v.2, 1913, p. 701.
84
MAGALHÃES, Basílio de. Expansão Geographica do Brasil até fins do século XVII. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1914, p. 45-46. As fontes utilizadas por Basílio de Magalhães ficam reveladas nas
narrativas dos sucessos e reveses dos desbravadores do território brasileiro nos séculos XVI e XVII. As
‘noções de Historia do Brasil até 1800’, de Capistrano de Abreu, lida como parte da publicação intitulada
‘O Brasil’, patrocinada pelo Centro Industrial do Brasil, merece certamente, o maior destaque. Cabe
acrescer que esses escritos da lavra de Capistrano viriam a lume posteriormente sob o título de ‘Capítulos
de História Colonial’.Merecem destaque ainda, a História Geral do Brasil, do Visconde de Porto Seguro,
qualificado pelo autor, como o “fidedigno Varnhagen” (p.50), além daqueles que ao início do século vinte
seriam considerados incontornáveis: Pandiá Calógeras, Orville Derby, Azevedo Marques, Washington
Luís, Diogo de Vasconcellos, João Ribeiro, Oliveira Lima e o historiador português Oliveira Martins.
Completam o quadro das principais fontes de Basílio de Magalhães, escritores coloniais como Pedro
Taques (Nobiliarquia Paulista e informações sobre as minas de São Paulo), frei Gaspar da Madre de
Deus, Rocha Pita (História da América Portuguesa, segundo o autor, inexata mas carregada do poder “das
bellas tintas do seu estilo gongorico” (p.54), frei Vicente do Salvador e o jesuíta João Antonio Andreoni,
alcunhado como Antonil, e autor da obra que revelara o Brasil aos brasileiros: ‘Cultura e opulência do
Brasil’. Cabe ainda registrar as constantes referências aos documentos do Arquivo Nacional, manuscritos
os quais, Basílio de Magalhães pesquisara por cerca de dois anos, e aos quais recorre para rebater autores
consagrados como Diogo de Vasconcellos, ou ainda para arremate de raciocínio acerca dos fatos
históricos que estuda.
320
“...no sul, o homem do litoral como que domina, do alto das suas montanhas,
o intimo dos sertões, a que o conduzem os rios caudaes, descendo para o
interior. Aqui, ainda que através de cataractas e de saltos, o conquistador
desce sem esforço; as águas o levam de feição; o seu trabalho é moderar a
descida, impedir que a marcha se precipite. Depois, a região é favorecida
pela benignidade do clima. Não há seccas, nem jamais o deserto se petrifica
sob a inclemência do céu.”86.
Para o autor, “O paulista, pelo seu habitat, tinha de ser o bandeirante por
excellencia. A conquista dos sertões estava no seu destino histórico”87. Ora, caberia
perguntar quem é esse paulista, tornado bandeirante conquistador por excelência do
território brasileiro. A resposta parece se consubstanciar na figura do elemento indígena.
Esse personagem histórico coletivo parece desde o início da comunicação simpático a
Basílio de Magalhães, apesar desse em sua linguagem perspassada pelo positivismo, os
qualificar como os fetichistas das selvas. Nesse sentido o quadro apresentado pelo autor
difere sobremaneira das cores daquele anteriormente pintado por Varnhagen. O Brasil
seria uma jóia bruta, cabendo aos portugueses o papel de ‘planta exótica’ em uma zona
quase toda tropical. Restou aos europeus amparar-se no braço do selvícola, o fazendo
via-de-regra sob uma ignóbil desumanidade, mas vindo a miscigenar-se e gerando o que
Magalhães denominou por ‘matéria-prima da colonização’. Referia-se então ao
cruzamento contínuo, ao longo dos séculos XVI e XVII, entre portugueses e aborígenes,
“pois que a mulher tupy era fácil e era prolífica”88. Lembra o autor que a ‘geração
mameluca’, surgida primeiro em São Paulo, mas também na Bahia – onde, conforme
frisava, a maior façanha de penetração do interior era devida a Belchior Dias Moreya,
um neto de Caramurú – mestiços criados à lei da natureza, uma massa a qual, ainda
segundo o autor, seria expressiva numericamente, e que repontava nas povoações às
85
Idem, Ibidem, p. 66.
86
Idem, Ibidem, p. 67.
87
Idem, Ibidem, p. 67.
88
Idem, Ibidem, p. 153.
321
margens do Paraíba, tais como Itú, Parnaíba e Sorocaba, locais estes de ocupação
definitiva da terra paulista, e que serviram depois como focos de irradiação para a
conquista do sertão brasileiro.
Aguilhoando ainda mais a indomável energia dos bandeirantes, foi ella que
os propelliu ás varias expedições famosas, realizadas entre 1672 e 1675, não
mais somente para a montaria aos selvicolas, mas particularmente com o fito
de descobrir riquezas mineraes, consoante com o expresso desejo do
soberano.”89
89
Idem, Ibidem, p. 83.
90
De acordo com os historiadores Antonio Manuel Hespanha e Angela Barreto Xavier, o ‘Don’era um ato
de natureza gratuita e fazia parte da sociedade do Antigo Regime, como parte de um universo normativo
preciso e detalhado que lhe retirava toda a espontaneidade e o transformava em unidade de uma cadeia
infinita de atos beneficiais, os quais constituíam as principais fontes de estruturação das relações políticas.
As categorias da ‘economia do don’ estavam na base de múltiplas práticas informais de poder. Neste
universo político singular, como parte dos seus mecanismos próprios e específicos, encontravam-se as
redes clientelares. A liberalidade, a graça, a atividade de dar integrava uma tríade de obrigações, a saber:
1. Dar; 2. Receber; e, 3. Restituir. Cabe acrescer que frequentemente o prestígio político de uma pessoa
estava vinculado à sua capacidade de dispensar benefícios, no que se deve esclarecer que usualmente os
benefícios recebidos não possuíam dimensão meramente econômica. As Redes Clientelares. In:
MATTOSO, José (org.). História de Portugal: o antigo regime. V.4. Lisboa: Estampa, 1993.
91
BICALHO, Maria Fernanda. Dos ‘Estados nacionais’ ao ‘sentido da colonização’: história moderna e
historiografia do Brasil colonial. In: ABREU, Martha, SOIHET, Rachel, GONTIJO, Rebeca (orgs.).
Cultura Política e Leituras do Passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007.
322
Talvez seja esse o momento para retornarmos com os resultados da árdua tarefa
à qual foi encarregado o Conselheiro diplomático Annibal Velloso Rebello.
Demonstrando um apurado senso histórico o autor traçou então um breve sumário de
aspectos da história antiga de Portugal, em largas malhas, como costumava se dizer
então, até os eventos que passavam a interessar mais de perto a conjuntura que
favoreceu a Independência brasileira. Mantendo em seu universo conceitual a categoria
denominada ‘movimento nativista’, localizava na Revolta de Felipe dos Santos,
ocorrida ao tempo do Conde de Assumar, um prelúdio da Conjuração Mineira de 1789.
Esse evento passava então a ser tratado como uma revolta fomentada por intelectuais,
defendida por poetas e pregada nas fazendas por um militar, sendo que tudo isso teria
sido feito sob a influência das mesmas idéias que haviam de culminar na França, na
grande Revolução. Annibal Veloso intitula a Conjura de 1789 como ‘a tentativa
mineira’, e inspirado no pensador português Theophilo Braga, traça então em leve
esboço, a conjuntura da época. Cabe a nós ouvi-lo. No século XVIII, a França tomara a
dianteira em um movimento emancipador a que o mundo todo parecia reclamar. No
bojo desse movimento, as idéias enciclopédicas, os princípios que traziam à tona a
prioridade da maioria e com esses, o ‘sonho republicano’. Essas influências chegavam
ao Brasil, e livros considerados sediciosos espalhavam-se por toda a parte. Estudantes
brasileiros das regiões mais prósperas da Colônia dirigiam-se às Universidades
Européias, como as de Paris e Montpellier. Nas suas cátedras, encontravam-se
professores a bater-se por idéias filosóficas alinhadas com o Iluminismo.
323
Nos estudantes brasileiros, tais idéias teriam produzido uma ânsia pela liberdade.
José Joaquim da Maia, de Montpellier, fizera contato com Thomas Jefferson, avistando-
se com este em Nimes. O idealismo de Maia, movido pelo entusiasmo e pela esperança
de liberdade constrastou-se nesse encontro com a frieza diplomática de Jefferson. Entre
tais sonhadores da liberdade, estavam também os estudantes mineiros, mandados à
Europa graças à prosperidade das minas de ouro e diamante, bem como das rendas dos
agricultores e dos criadores de gado. Na América do Norte havia um exemplo dessa
almejada emancipação política, e os brasileiros julgavam-se no direito de trilhar o
mesmo caminho. No entanto, observa o autor que embora a fonte de riquezas viesse do
trabalho de mineradores, agricultores e pecuaristas, a preeminência da revolta não seria
mais desses, “ feridos nas suas fazendas e nos seus interesses”, mas dos “ intellectuais
que se lançam então na propaganda.”92 Assim, para o autor,
92
As primeiras tentativas da independência do Brasil. Lisboa: A Editora, 1915, p.104-105.
93
Ibidem, p. 105-106.
324
militar, onde, preterido muitas vezes, foi o seu animo se azedando e predispondo-o á
revolta”94. Ao Alferes da cavalaria paga de Minas Gerais teria cabido o papel de
propagandista e aliciador de gente, fosse pela tropa ou ainda pelas fazendas. Seria um
“febril revolucionário”, julgando-se “predestinado para redimir a pátria. Alma de forte
tempera, educada na boa fé, teria que pagar com a vida a sua visão da liberdade.”95
Assim, se às personagens de Gonzaga e Cláudio Manoel serviam a marca do infortúnio,
a Tiradentes caberia o papel do martírio.
Porém, apesar de todos os reveses sofridos pelos inconfidentes mineiros, julgou
o autor que haveria a possibilidade de uma vitória daquela revolução. Pelas estradas já
se comentava abertamente os planos revolucionários. Mas um Alferes não poderia por si
só fazer uma revolução, e teriam sido as tentativas de aliciar outros militares que
alimentaram e passaram a constituir uma verdadeira ‘febre’ de delações. Denunciado o
plano dos conspiradores, fora suspensa pelo governador – sujeito vingativo e pronto a
tirar o maior proveito pessoal da trama descoberta – a tão temível derrama.
Ao que nos parece, apoiara-se Annibal Velloso fortemente na História da
Conjuração Mineira, que viera a lume em 1873 pela lavra do monarquista Joaquim
Norberto de Sousa e Silva.Talvez a melhor contribuição de Annibal Rebello tenha sido
a de avaliar a Conjuração de Minas como um movimento prenhe de possibilidades de
sucesso96. Durante o Primeiro Congresso de História da América, em 1922, ficaria
94
As primeiras tentativas da independência do Brasil. Lisboa: A Editora, 1915, p.108.
95
Ibidem, p.109.
96
De certa forma parece curiosa a escolha de Annibal Rebello para tratar dos movimentos em prol da
independência, enquanto coube a Diogo de Vasconcelos, como representante do IHGMG e sócio
correspondente do IHGB discorrer sobre a tese oficial ‘Linhas gerais da administração colonial. Como se
exercia. O vice-rei, os capitães-generais, os governadores, os capitães-mores de vilas e cidade.’ Como
vimos anteriormente, em 1901 Diogo de Vasconcelos já havia escrito uma História Antiga de Minas
Gerais. No interior do IHGMG, de acordo com Helena Miranda Mollo e Rodrigo Machado da Silva,
podiam ser identificados dois grupos, sendo um mais conservador, onde estava Vasconcelos. Esse grupo
entendia a história colonial mineira como o momento inicial da constituição da civilização brasileira, o
que dava ensejo a um processo evolutivo que culminaria na modernidade republicana. O outro grupo que
transitava pelo IHGMG partilhava com algumas variantes dessa idéia, considerando que a história
colonial fora uma espécie de idade de ouro, sendo Minas Gerais o principal elo que a ‘Colônia’ mantinha
com a civilização ocidental. Para o IHGB o inconveniente desse grupo era o entendimento no qual o
Império teria sido uma espécie de ‘Idade das Trevas’ para Minas, qualificada como um declínio para o
Estado, situação que caberia à República reverter. Talvez tenha sido a idéia de nação que imperava nas
obras de Diogo de Vasconcelos a razão da sua escolha para falar de outro tema. Conforme explica Helena
Magela Alberto, na História Antiga de Minas Gerais, não é possível se divisar “uma ruptura entre Brasil
e Portugal, mas uma continuidade, um modelo de nação brasileira espelhado na nação portuguesa, no
qual a história antes do povoamento português é desconsiderada”. Assim, Diogo de Vasconcelos seria
demasiadamente Varnhageniano o que não promovia as mudanças esperadas pelo Instituto no ‘estado da
arte’ nessa questão. MOLLO, Helena Miranda, SILVA, Rodrigo Machado da. Diogo de Vasconcelos e a
“oficina central do pensamento”. In: ROMEIRO, Adriana, SILVEIRA, Marco Antonio (orgs.). Diogo de
Vasconcelos: o ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2014; e, ALBERTO, Helena Magela.
Diogo de Vasconcelos, a história de Minas Gerais e a Nação. In: GONÇALVES, Andréa Lisly,
325
conhecida uma outra versão sobre a Conjuração de 1789 em Minas, dessa vez surgida
da pena de um engenheiro, o professor Lúcio José dos Santos97. Em 1914, durante o I
Congresso de História Nacional o professor Lúcio José dos Santos debruçara-se sobre
outro tema, escrevendo a tese intitulada ‘O Domínio Hespanhol’. Nos aproximaremos
de Lúcio José dos Santos, i.e., do seu viés de historiador, de maneira cautelosa porém
compreensiva e criticamente respeitosa, procurando entender suas escolhas e mapear
cognitiva e tecnicamente a sua concepção de História. A teoria da História na qual
Lúcio José dos Santos procurava apoiar-se em muito aproxima-se das noções
formuladas por Johann Gottfried Herder (1744 – 1803)98, possuindo ainda por força do
seu catolicismo ultramontano militante, formulações que seriam pertinentes a Joseph de
OLIVEIRA, Ronald Polito de (orgs.). Termo de Mariana II: história & documentação. Mariana: Imprensa
Universitária da UFOP, 2004.
97
Nascido em Cachoeira do Campo em 1875, Lúcio José era filho do coronel da Força Policial João
Lúcio da Costa Santos. Realizou seu curso secundário no Seminário de Mariana, matriculando-se em
1893 na Escola de Minas de Ouro Preto, aonde revelou-se um estudante brilhante e exímio orador.
Residiu em Ouro Preto até 1913, data após a qual transferiu residência para Belo Horizonte. Intelectual
ligado ao catolicismo militante, pertenceu a várias associações de piedade, filantrópicas e de ação social.
Confrade de São Vicente de Paulo, pertenceu à Ação Católica e realizou peregrinações à Roma, Lourdes
e à Terra Santa, tendo recebido uma condecoração da Santa Sé, quando reinante encontrava-se Pio XII.
Dirigiu o Jornal ‘O Horizonte’, pertencente à Diocese de Belo Horizonte e presidiu o Círculo Católico de
Belo Horizonte e o Centro D. Vital. Assumiu paralelamente às suas atividades como professor de
engenharia, educador e político, o ofício de historiador, tendo pertencido ao Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais e ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sendo ainda um dos
fundadores da Academia Mineira de Letras. Seguimos os traços biográficos publicados pela Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais nos anos de 1945 e 1959. Essas informações foram
compiladas a partir de MOURÃO, Paulo Krüger Corrêa. Dr. Lúcio José dos Santos. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte, v.6, 1959. Francisco Iglesias sublinhou em
prefácio de 1972 à obra de Lúcio José dos Santos ‘A Inconfidência Mineira: papel de Tiradentes na
Inconfidência Mineira’, a posição do autor na defesa de muitas causas, “notadamente católicas, como
religioso apaixonado que era”. Conservador, o Prof. Lúcio dos Santos era, ainda segundo Iglesias, visto
às vezes como reacionário. p.11. Sobre a Ação Católica seria importante assinalar que foi “ o projeto
restaurador do catolicismo ultramontano e intransigente”, por intermédio da qual o Papado convocava a
ação sistemática dos leigos para a defesa da Igreja e dos interesses católicos, em um mundo que
consideravam, desde o Séc. XIX, em franco processo de descristianização. O termo ‘Ação Católica’
surgiu propriamente com Pio X (1903-1914), Papa que organizou a Ação Católica italiana, e apresentou-a
como modelo para outros países. A ação dos leigos deveria ser complementar à do clero, inclusive
mantendo e ligando-se a partidos, escolas, associações operárias e imprensa. Pio XI (1922 – 1939)
estabeleceu a Ação Católica em âmbitos nacionais “muito dependente das autoridades eclesiásticas,
reorganizadas por ele em 1922 (encíclica Ubi Arcano Dei).” GOMES, Francisco J. S. Ação Católica. In:
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. (Org.) Dicionário Crítico do Pensamento da Direita: idéias,
instituições e personagens. Rio de Janeiro: Mauad, 2000. p. 28-29. Sobre a ação dos intelectuais católicos
no Brasil, ver: SILVA, Antonio Francisco da. Intelectuais e a defesa da religião. Último andar. São Paulo,
n. 14, jun. 2006, p. 127 – 147; FILHO, Fernando Antonio Pinheiro. A invenção da Ordem: intelectuais
católicos no Brasil. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, v. 19, n. 1, 2007, p. 33-49, e DIAS,
Romualdo. Imagens da Ordem: a doutrina católica sobre autoridade no Brasil ( 1922 – 1933 ). São Paulo:
UNESP, 1996 . O Prof. Lúcio dos Santos foi o diretor de ‘O Horizonte’ de abril de 1923 até julho de
1924, quando foi substituído pelo seu antigo gerente, o padre Vicente Soares. Na edição de 2 de julho de
1924, ‘O Horizonte’ orgulhosamente estampava em sua primeira página: “Triumpho do Mérito. Nosso
Director, Dr. Lucio José dos Santos, passa a ser o Director da Instrucção publica em Minas”.
98
Herder. In: GARDINER, Patrick. Teorias da História. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984, p. 41-
59. Herder. In: COLLINGWOOD, R. G. A ideia de História. 8. ed. Lisboa: Presença, 1994, p. 125 – 129.
BERLIN, Isaiah. Vico e Herder. Brasília: UNB, 1982, p. 11-17; 133-188.
326
No entanto Lúcio José dos Santos também citava Kant, apoiando-se neste para
buscar a fundamentação na qual, em História, deveriam ser evitadas, tanto a
especulação pura, quanto “o empirismo grosseiro que não se soccorre a nenhuma
concepção theorica”.103 É a partir deste princípio que a escrita da História saída da
lavra do Prof. Lúcio José dos Santos passa a requerer uma maior acuidade teórica da
99
Joseph de Maistre e as origens do fascismo. In: BERLIN, Isaiah. Limites da Utopia: capítulos de
História das idéias. São Paulo: Companhia da Letras, 1991, p. 84 – 140. DIAS, Romualdo. Imagens da
Ordem: a doutrina católica sobre autoridade no Brasil (1922 – 1933). São Paulo: UNESP, 1996.
100
SANTOS, Lúcio José dos. O Domínio Hespanhol: terceira these official (quarta do programma da 1ª
secção). RIHGB. Primeiro Congresso de Historia Nacional. Rio de Janeiro, s.d.
101
Idem, ibidem,p. 257.
102
Idem, ibidem, p. 257.
103
Idem, ibidem, p. 259.
327
104
Contudo, não devemos exagerar a aceitação do pensamento de Kant, sobretudo sua obra filosófica, por
Lúcio José dos Santos, o qual considerava o kantismo perigoso. O prof. Lúcio dos Santos apresentava-se
como seguidor da “philosophia de S.Thomaz de Aquino”. Escrevendo para a imprensa diocesana, assim
se expressava: “Segundo Kant, todo conhecimento que ultrapassa a natureza sensível é chimerico. Mas o
illustre philosopho, contrariamente ao que se devia esperar, não conclue dahi que emphyrismo puro, isto
é, que a sciencia proceda apenas da observação e se construa inteiramente a posteriori. Para elle si de
um lado a analyse pura do sujeito não é um processo scientifico, de outro lado o conhecimento é uma
operação constructiva, synthetica, que transcende da observação pura. Não será isso contradictorio?
Não; o principio da objectividade da sciencia, embora relativo ao objeto, é anterior a todo acto do
sujeito pensante e tem a sua raiz na natureza mesma desse sujeito; é, pois, um juízo synthetico, a priori.
Quer isso dizer que o conhecimento não resulta de uma simples analyse do objecto, nem de uma
associação de idéas subjectivas, mas de um julgamento constructivo, de alcance necessario e universal,
isto é, de um julgamento synthetico a priori. Alem, pois, dos dados experimentaes a que se applica,
suppõe a sciencia uma condição anterior á experiencia, uma forma legisladora, inherente ao sujeito
pensante. Conhecer, segundo Kant, é moldar em uma forma a priori os dados concretos da experiencia e
formular em seguida, por uma consequencia natural, leis necessarias e geraes. Tal é o systema de Kant,
e’ seductor, mas perigosíssimo.” SANTOS, Lúcio José dos. Kant. O Horizonte. Belo Horizonte, 30 de
abril de 1924, p.2. Com efeito, a filosofia de Kant conflitava com as prédicas de Tomás de Aquino acerca
da verdade, envolvendo a inteligência e o mundo sensível. Sobre esta questão em Tomás de Aquino, ver
‘O ente e a Essência. In: Sto. Tomás de Aquino: Vida e Obra. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção
Os Pensadores).
105
Torna-se importante no entanto frisar mais uma vez que o Prof. Lúcio José dos Santos não obstante
demonstrasse certa simpatia pelos escritos de Kant, ia além de classificá-los como extremamente
perigosos. Em artigo para o jornal “O Horizonte”, da imprensa diocesana, periódico do qual foi diretor,
Lúcio dos Santos marcava cunhas no pensamento do mestre de Konisberg, assim se expressando: “O
conhecimento é uma synthese, não há duvida. Kant, porem, formula um postulado, como tal
indemostravel, quando diz que essa synthese procede de uma disposição natural do espírito, em presença
das impressões da sensibilidade. Para os que seguimos a philosophia de S Thomaz de Aquino, em
contrario á affirmação de Kant, essa synthese só se faz sob a influencia do objecto: ella é o effeito
produzido na intelligencia pelo objecto.” SANTOS, Lúcio José dos. Kant. O Horizonte. Belo Horizonte,
30 de abril de 1924, p.2.
106
Herder. Teorias da História. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984, p. 42-43.
107
Herder. In: COLLINGWOOD, R. G. A idea de História. 8. ed. Lisboa: Presença, 1994, p. 121.
328
parcial aceitação nos fundamentos iluministas, embora sentisse, como assinalou Isaiah
Berlin, insegurança na fé dos seus fundamentos.108
Em ‘O Domínio Hespanhol’, Lúcio dos Santos seguiu em boa medida algumas
das principais características na corrente conservadora da historiografia brasileira, as
quais expusemos páginas acima. Nesse sentido, o domínio da coroa espanhola sobre
Portugal e suas possessões coloniais teriam sido tempos de lutas e incertezas para o
Brasil, porém haviam gerado progressos indiscutíveis. A perda da soberania portuguesa
em 1580, processo que fora iniciado em 1578 com “o grande desastre de Alcacer-Kibir,
em que se afundou a dynastia de Aviz”109, não fora o resultado de arroubos de juventude
de D. Sebastião, ao qual Oliveira Martins qualificara como “ inquieto, nervoso,
doentio”110. Para Lúcio dos Santos, o monarca de 24 anos era o “último rebento de um
tronco robusto, arrastado por um destino cruel á derrota e á morte, na esperança de
reviver as glórias estupendas dos seus maiores”111.
A expedição africana do jovem rei português teria sido, no entendimento do
Prof. Lúcio dos Santos, um plano perfeitamente exeqüível, “idea generosa e de grande
alcance, [ afinal a ] Cristandade não tinha descanso”112, desde que os mouros, nos cem
anos que precederam Alcácer-Kibir, substituíram os Vândalos na África. Filipe II, que
após a morte do Cardeal D. Henrique apresentou-se como sucessor ao trono português,
estaria inocente de qualquer culpa na morte de D. Sebastião, ao qual não arrastara à
guerra. Também, sem nenhum favor à nobreza de Portugal, não se deveria, para Lúcio
dos Santos, exagerar a sua corrupção, pois acompanharam seu soberano em Alcácer-
Kibir, mas viram no rei espanhol, após o infortúnio da derrota, uma boa oportunidade de
Portugal recuperar suas antigas glórias. Dessa forma, Filipe II não teria se apresentado
como um conquistador. Sua reputação sinistra “é devida, em maxima parte, aos
historiadores protestantes. O rei da Hespanha era o braço direito do Catholicismo; nos
seus Estados elle reprimiu a ‘heresia’ e della conseguiu preservar a Hespanha”113.
Perda da soberania portuguesa e incursões francesas, inglesas e holandesas sobre
o território luso-brasileiro, porém o Prof. Lúcio dos Santos alegava que,
108
Vico e Herder. Brasília: UNB, 1982, p. 188.
109
O Domínio Hespanhol, p. 264.
110
Ibidem, p. 270.
111
O Domínio Hespanhol, p. 270. Nesta passagem encontramos uma das similitudes mais visíveis entre a
concepção de História de Lúcio José dos Santos e Herder.
112
O Domínio Hespanhol, p. 271.
113
Ibidem, p. 315. (grifo nosso).
329
Com tais argumentos, Lúcio dos Santos – que não cita Herder – preparava seus
seus ouvintes do Primeiro Congresso de História Nacional, para a aceitação de um
conceito capital na concepção herderiana de História: a Providência Divina. Nas suas
palavras,
114
Ibidem, p. 264.
115
Ibidem, p.262. Em relação a noção de Providência Divina, são mais conhecidos dois historiadores que
a utilizaram. O a-racionalista (e na opinião de Hayden White, excêntrico) Giambattista Vico (1668-1744)
e Herder. Em ‘A Ciência Nova’, Vico esboçou uma tentativa de interpretação do processo histórico, onde
a História seria o equivalente a uma teologia civil racional da providência divina. Vico conseguira ir além
da tríplice classificação mantida pela crítica da época, que classificava a produção historiográfica em
fabulosa, verdadeira e satírica. Descobrira a racionalidade implícita até nas mais irracionais das
imaginações humanas, na medida em que tais imaginações tinham de fato servido de base para a
construção de instituições sociais e culturais, graças as quais puderam os homens viver suas vidas com e
contra a própria natureza. A noção de providência de Herder porém é pós-kantiana e encontra-se
imbricada à evolução e mutação históricas às quais por sua vez articulam-se a uma crença de Herder em
leis de crescimento e decadência que passam a presidir a evolução do ‘organismo nacional’. Neste
sentido, nos alertava Herder que “ pobre e mesquinho seria, pois, se quisesse nos impor como lei à
Providência omnipotente o nosso amor por um objecto da cultura humana, para conferir uma eternidade
antinatural ao momento único em que ele pode ter lugar. Esse desejo significaria nada menos do que
aniquilar a essência do tempo e destruir a natureza mesmo daquilo que é finito”. In: GARDINER,
Patrick. Teorias da História. 3.ed. Lisboa: Calouste Gunbenkian, 1984. P. 50. Isaiah Berlin chamou
atenção para o fato de que a idéia de um plano divino realizado na História humana passou, de maneira
ininterrupta, do Antigo Testamento e seus intérpretes judeus, para os fundadores do Cristianismo,
recebendo após isso, “a formulação classica de Bossuet”. Para Berlin, “ocasionalmente, Herder fala
como Bossuet, como se a História não fosse um relato episódico, senão um vasto drama; como se o dedo
de Deus guiasse os destinos da humanidade de alguma maneira teológica, uma peça de teatro da qual
cada grande época cultural fosse um ato”. Ora, isto vai levar a uma relativização do conceito de
civilização em Herder, que procurou representar as civilizações que estudou, como realizando cada uma
delas um ideal de irrevogável validade, como expressão, escreveu Isaiah Berlin, “de uma manifestação
particular do espírito humano, e não como um passo para alguma ordem mais elevada” Vico e Herder.
Brasília: UNB, 1982, p. 182.
116
O Domínio Hespanhol, p. 282.
330
O ano de 1914 pode ser considerado como um divisor de águas não somente na
historiografia brasileira, mas também na sociedade, com visíveis resultados na postura
de uma parte das oligarquias. O sentimento nacionalista aflorou em virtude da
deflagração da Grande Guerra, que em seus primeiros movimentos ainda era européia,
mas que logo revelaria o seu escopo mundial. Com o desenrolar das hostilidades, o
teatro de operações logo deixou de circunscrever-se ao território dos países europeus,
suas colônias e proximidades, revelando-se na crueza dos atos de guerra a face obscura
da civilização antes tão decantada por parcela considerável das elites brasileiras.
117
Ibidem, p. 339.
118
Isaiah Berlin escreveu que “ Herder acreditava na afinidade, na solidariedade social, no Volkstum, na
nacionalidade; mas, até o fim de sua vida detestou e denunciou todas as formas de centralização,
coerção e conquista que, tanto ele como o seu mestre, Hamann, via encarnadas e simbolizadas no
malfadado Estado. A natureza cria as nações e não os Estados”. Ibidem, p. 144.
119
O Domínio Hespanhol, p. 335.
331
Nossas próximas páginas estão dedicadas a explorar a forma pela qual os tipos
heróicos construídos a partir dos cânones historiográficos formulados pelos Institutos
Históricos de São Paulo e de Minas Gerais passaram a revestir-se de um simbolismo um
pouco menos regionalista, com vistas a assumir junto à imaginação histórica cores mais
representativas da nação. Ao que parece, esse movimento somente veio a se tornar
possível mediante a aceitação dos novos temas da historiografia, como nas formulações
de Capistrano de Abreu e seus seguidores; da pesquisa documental, facilitada pelo
investimento dos governos, e pela utilização do método histórico. Nesse sentido, o I
Congresso de História Nacional tornou possível a divulgação de pesquisas que elevaram
a um novo patamar a prática historiográfica no Brasil.
332
o assoberbam, não pôde dar-nos a honra de sua grada presença. Nem por
1
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos: conflito e integração na América
do Sul (da Tríplice Aliança ao Mercosul 1870-2003). 2.ed.Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 127. Ver ainda
MONTEIRO, Débora Paiva. 1912: um ano com dois carnavais. XXVII Simpósio Nacional de História,
Natal, jul. 2013. Entre o adiamento da festa popular para o mês de abril e a opção de realizar o Carnaval
na data prevista – a partir do dia 18 de fevereiro, Domingo – a população carioca acabou por escolher as
duas opções.
2
Actas. RIHGB. Rio de Janeiro, t.LXXVII, parte II, 1914, p.605.
333
participantes estrangeiros, e por esse motivo, seria oportunamente nomeada, tendo sido
o projeto encampado pela direção do Instituto3. Afinal, tratava-se do ano comemorativo
do centenário da independência do Brasil, e o encontro serviria para reiterar junto às
demais nações americanas o desejo da intelectualidade brasileira de caminhar em
direção a um maior intercâmbio com as demais repúblicas do Continente, em
preeminência que era dada para as repúblicas sul americanas, agora guindadas ao status
de co-irmãs.
Caberia observar que ao tempo do Império a menção ao termo república possuía
uma conotação negativa, e se seguida então da adjetivação sul –americana carregava
consigo a mácula do caudilhismo, da instabilidade política, ou seja, do avesso da
civilização, e isso representava tudo aquilo que em termos políticos o Império sob a
direção dos saquaremas procurara se afastar. Em 1922 havia ficado um pouco para trás
o deslumbre com as sociedades européias, bem como tinha sido desfeita ao menos em
parte, a espécie de vertigem que tomara conta de parcela dos intelectuais brasileiros na
chamada belle époque.
Os planos de guerra planejados meticulosamente pelas potências imperialistas
européias para expressar sua superioridade racial e capacidade tecnológica4, onde ambas
as alianças pretendiam fazer uma guerra de movimento, ou seja, rápida e marcada por
ofensivas irresistíveis que levassem à tomada da capital do inimigo haviam redundado
no festim sangrento levado a efeito na primeira guerra de massas da história, onde a
barbárie generalizada acabou sendo estendida da forma mais cruel às populações civis.
Isso fez germinar em meio à intelectualidade brasileira, de forma paulatina e crescente,
um desencantamento em relação à Europa, pois ao que parecia, havia ficado evidente a
vulnerabilidade e os estreitos limites dos seus ideais civilizatórios.
No quinto capítulo desse estudo abordamos algumas das conseqüências indiretas
da Grande Guerra (1914-1918) sobre o Brasil, que conforme vimos, gerou toda uma
campanha em prol do saneamento, com ações higienistas e profiláticas, fosse nas
3
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2007. Observa a autora que apesar de
algumas opiniões contraditórias, o projeto recebeu o apoio do governo brasileiro, bem como o patrocínio
da Pan American Union, uma espécie de precursora da Organização dos Estados Americanos (OEA).
4
GOLLWITZER, Heinz. O imperialismo europeu: 1880-1914. Lisboa: Verbo, 1969; TUCHMAN,
Barbara W. A torre do orgulho: um retrato do mundo antes da Grande Guerra (1890-1914). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1990; MOMMSEN, Wolfgang J. La época del Imperialismo: Europa, 1885-1918.
Madrid: Siglo XXI, 1971; MAYER, Arno J. A força da tradição: a persistência do Antigo Regime (1848-
1914). São Paulo: Companhia das Letras, 1987; e, HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios: 1875-1914.
3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
334
cidades ou no interior do país. Assim, a população do ‘sertão’, como então era chamado
o quase desconhecido interior profundo do território brasileiro – e que certo crítico
munido de bastante ironia e talvez um pouco de exagero localizava no ponto no qual
acabava a Avenida Central, no Rio de Janeiro – passara a ser alvo de campanhas onde
eram utilizados alguns dos recursos da publicidade disponíveis à época, pela imprensa
escrita o que visava atingir uma crescente e mobilizada opinião pública. Uma parcela
desses cidadãos acabaria por engajar-se em ligas, alimentados pelo idealismo e
impulsionados pela energia cívica. Mas para que a chamada ‘regeneração nacional’,
expressão de uso corrente àquela época, amealhasse resultados reais, o mestiço nacional
teria que ser educado, extirpada dele e dos ambientes insalubres no qual vivia, a
ignorância contida no universo dos seus hábitos tradicionais e nos agentes sócio-
ambientais ao seu entorno que conforme demonstravam as pesquisas científicas, o
haviam debilitado secularmente5.
5
Nesse sentido, o personagem Jeca Tatu criado pelo escritor Manuel Bento Monteiro Lobato (1882-1948)
aparece como um demonstrativo emblemático dessa idéia. Inicialmente (1914) o Jeca Tatu aparece como
um desanimado, um preguiçoso, para depois (1918) ser ‘diagnosticado’ como um organismo doente,
afetado pelos parasitas, pelas verminoses, conforme mostrado no cap. 5. Cabe registrar que após haver
tomado conhecimento do relatório Pena-Neiva, Monteiro Lobato utilizou da 4ª edição (1919) de Urupês
para encaminhar um “pedido de desculpas” formal ao Jeca, nos seguintes termos: “Cumpre-me...implorar
perdão ao pobre Jeca. Eu ignorava que eras assim, meu caro Tatu, por motivo de doenças tremendas.
Está provado que tens no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel
que te faz papudo, feio, molengo, inerte. Tens culpa disso? Claro que não”. Monteiro Lobato apud.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1976, p. 309. Mais tarde, um Jeca modernizado apareceria como uma vítima da exploração
dos latifundiários sob o nome de Zé Brasil. Cfe. Urupês. 15.ed. São Paulo: Brasiliense, 1969., e; Zé
Brasil. São Paulo: Editorial Vitória, 1947. Zé Brasil era um caboclo descalço e maltrapilho. Mais uma vez
Lobato levantava a questão do trabalhador rural, tema recorrente em seus numerosos artigos. Ao contrário
do Jeca Tatu, trabalhava de sol a sol, apesar de submetido às mesmas mazelas orgânicas do Jeca. Lobato
denunciava então a permanência das condições insalubres do campo, além da injustiça que permeava as
relações de trabalho: entrega da metade da produção ao proprietário da terra, constante ameaça de
expulsão da terra, etc... Ver ainda LAJOLO, Marisa.(org.). Monteiro Lobato, livro a livro: obra adulta.
São Paulo: Unesp, 2014 e LUCA, Tania Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação.
São Paulo: Unesp, 1999, especialmente a parte do cap. 1, intitulada ‘Monteiro Lobato: empresário da
cultura’. Cabe no entanto observar que no Dicionário histórico, geographico e ethnographico do Brasil,
editado no ano do Centenário, como parte das comemorações oficiais, caipiras como o Jeca Tatu eram
avaliados por Oliveira Vianna como uma forma de degeneração, pois seriam na sua opinião não somente
um problema de saúde, mas também o resultado de uma ‘má mistura racial’. Seria então o caipira –
presumidamente um mameluco – alguém inadaptável à civilização. Diccionario histórico, geographico e
ethnographico do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. V.1, 1922, p. 286.
335
de não ser unívoca, fora posta em marcha sob a certeza que o Brasil não se tornaria um
país civilizado sem o auxílio da ciência6. Para aquele momento poderíamos certamente
concordar com a lúcida fala de uma historiadora que exímia conhecedora do período
identificou que a febre de brasilidade havia se articulado com os ideais de uma política
de solidariedade americana.
6
GOMES, Angela de Castro. História, ciência e historiadores na Primeira República. In: HEIZER, Alda,
VIDEIRA, Antonio Augusto Passos (orgs.). Ciência, Civilização e República nos Trópicos. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2010.
7
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. São Paulo: Brasiliense, 1999, p.46. Entre os anos de 1863 e 1888 a Grã-Bretanha concedera ao
governo do Império brasileiro o montante de £ 37.407.300. Entre os anos de 1889 e 1914 a concessão de
empréstimos atingia a espantosa cifra de £ 112.774.433. Autores como Cervo&Bueno (2002) e Santos
(2012) fazem referências à Doutrina Drago, assim batizada em 1902 por alusão ao chanceler argentino
Luis María Drago. Esse diplomata insurgiu-se em resposta ao bloqueio naval imposto pela Grã-Bretanha
e Alemanha à Venezuela, como forma de pressão à dívida que esse país sul-americano havia contraído e
recusava-se a pagar. O governo dos Estados Unidos que ao menos em discurso ainda sustentava a
chamada Doutrina Monroe fora consultado antes da ação militar por aquelas potências européias, e
aquiescera por considerar que os ataques não pretendiam recuperar ou colonizar territórios americanos. O
ministro Rio Branco, que ficou à frente da chancelaria nacional entre 1902 e 1912, não aceitou a
formalização de um protesto conjunto à luz da Doutrina Drago, pois o governo brasileiro desaprovava a
atitude do presidente da Venezuela, general Cipriano Castro. De acordo com Cervo&Bueno, as
manifestações da opinião pública brasileira seriam contrárias à atitude da Venezuela. Cabe acrescer que o
Brasil era credor de vários países do Continente. A revisão da Doutrina Monroe, que passou a ser
conhecida por Corolário Roosevelt justificava a política coercitiva dos Estados Unidos contra os Estados
latino-americanos, ao passo que a potência do Norte garantia à Europa que as nações do Continente, sob
sua supervisão, preservariam a ordem pública e manteriam seus compromissos em dia. Conforme
Bandeira (2003), na conferência de Haia em 1907, Rui Barbosa proclamou que “La souveraineté est la
grande muraille de la patrie”, ao defender a igualdade dos Estados soberanos contra a posição dos
Estados Unidos. Em data pouco anterior a essa, de acordo com Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos,
durante a III Conferência Pan Americana realizada no Rio de Janeiro, cuja preparação foi cuidadosa e
contou com a supervisão do Barão de Rio Branco, a agenda foi concertada de modo a eliminar temas
controversos como a Doutrina Drago. CERVO, Amado Luiz, BUENO, Clodoaldo. História da Política
Exterior do Brasil. 2.ed. Brasília: Unb, 2002; BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Brasil, Argentina e
Estados Unidos: conflito e integração na América do Sul (da Tríplice Aliança ao Mercosul 1870-2003).
2.ed.Rio de Janeiro: Revan, 2003; e, SANTOS, Luís Cláudio Villafañe Gomes. O evangelho do Barão:
Rio Branco e a identidade brasileira. São Paulo: Unesp, 2012.
336
8
Cumpre observar que apenas dois anos após as comemorações do Centenário da Independência vinha a
lume a coletânea de ensaios organizada por Vicente Licínio Cardoso que se propunha a ser um “inquérito
por escritores da geração nascida com a República”. Ver. CARDOSO, Vicente Licínio (org.). À Margem
da História da República. 3.ed. Recife: Massangana, 1990.
9
A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência. Rio de Janeiro: FGV, 1992.
337
Porém, naquele momento, essas diferentes vozes críticas não chegavam ainda a
formar um discurso que aparentasse alguma homogeneidade, ou pelo menos articulasse
suas demandas sob uma causa comum. Caberia ainda citar ao grupo de jovens chamados
‘modernistas’, os quais formulavam a partir de São Paulo, aonde se encontravam
radicados em sua maioria, suas contundentes críticas à cultura oficial brasileira, pelo seu
caráter de imitação superficial dos modelos estrangeiros. De acordo com Sven Shuster,
a opinião de alguns intelectuais era que a elite política tradicional havia transformado o
Brasil em uma cópia malfeita da Europa, no que apontavam que o Rio de Janeiro da
Belle Époque materializava isso11. Considerava-se então que as medidas tomadas sob o
objetivo de reeuropeizar o Brasil haviam aumentado ainda mais a dependência
econômica e cultural do país. Dessa forma, passava a caber a São Paulo, no discurso de
uma parte da intelectualidade, o papel de representar o Brasil no rumo de um futuro
melhor. Para eles, São Paulo deveria ser considerado como o local do país onde ocorria
o ‘verdadeiro Brasil’, em antítese ao Rio de Janeiro, considerado como a antinação.
10
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estratégias da ilusão: a Revolução Mundial e o Brasil (1922-1935). São
Paulo: Companhia das Letras, 1991.
11
SCHUSTER, Sven. História, nação e raça no contexto da Exposição do Centenário em 1922. História,
Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.21, n. 1, jan. – mar. 2014, p.1-13. Passim.
338
permitiu transformar a antiga capital – que antes fora conhecida por ‘cidade da morte’,
em face das epidemias de febre amarela – em uma ‘Paris tropical’.
12
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. São Paulo: Brasiliense, 1999, p.33.
13
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996, p. 40.
14
Esse Decreto dava execução ao Decreto Legislativo nº 4.175, de 11 de novembro de 1920. Através do
Decreto 15.066 acima citado, o Presidente da República Epitácio Pessoa nomeava uma comissão
constituída pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio
e pelo Prefeito do Distrito Federal. Essa comissão, que ficaria sob as ordens diretas do Presidente da
República, deveria executar o programa de Comemoração do Centenário da Independência Política do
Brasil, já organizado, analisando ainda as modificações que se tornassem necessárias.
15
A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência. Rio de Janeiro: FGV, 1992,
p. 67.
339
16
História, nação e raça no contexto da Exposição do Centenário em 1922. História, Ciências, Saúde –
Manguinhos, Rio de Janeiro, v.21, n. 1, jan. – mar. 2014, p.2. O autor chama atenção para algumas
iniciativas como a fundação em janeiro de 1923, no Rio de Janeiro, da Liga Brasileira de Higiene Mental,
liderada pelo psiquiatra Gustavo Reidel, bem como a reunião promovida nessa mesma cidade, para o
Congresso Brasileiro de Higiene, em outubro de 1923. Um desses pesquisadores higienistas, o médico
José Paranhos Fontenelle escreveria para o Diccionario histórico, geographico e ethnographico do Brasil
o capítulo que versava sobre ‘higiene e saúde pública’. No seu discurso, esses higienistas diziam lutar por
um ‘melhor tipo humano’ e entendiam que a ‘raça de caboclos’ colhidos pelas doenças no interior do
Brasil dificultaria essa tarefa, pois haviam sofrido uma ‘degeneração gradual’.
17
Idem, ibidem, p. 12. Observa ainda o autor que a República instaurada em 1889 aparecia então como o
produto final de um longo processo histórico linear. Ocorria desde 1908 – cabe dizer, por ocasião da
Exposição Nacional – uma revalorização do papel histórico de Portugal, das tradições portuguesas e sua
‘heróica’ raça ibérica de descobridores que haviam se dedicado à colonização. Naquele contexto de
comemorações do centenário da independência, a legitimidade do governo republicano e do tipo de
sistema representativo que então havia, aparecia por meio da evocação de momentos gloriosos, e a elite
republicana baseava sua fala em elementos discursivos como o progresso, a civilização e sobretudo, a
raça. Pois o ideal de embranquecimento ainda marcava o imaginário e a prática da cúpula republicana,
sempre empenhada em deter a africanização do Brasil – haja visto as subvenções estatais para a imigração
branca e européia – porém é importante frisar, que conforme vimos em nosso capítulo 5, o teor dos
debates acerca das supostas origens e qualidades do povo brasileiro, já mudara.
340
pesquisas com a qual tem sido contemplado18, pois ao mesmo tempo no qual o ano de
1922 representava uma forma de repensar a nação e a identidade nacional, devemos
lembrar que as comemorações do Centenário haviam sido organizadas para demonstrar,
sob um viés teleológico, que a República teria sido uma antiga aspiração enraizada nos
séculos da colonização, e que o novo regime de governo instaurado a 15.11.1889 não
fora a resultante de uma mera casualidade histórica derivada da parada militar realizada
naquela histórica noite da cidade do Rio de Janeiro, cujo registro na bandeira
republicana acusa ter sido pródiga em estrelas. Entendemos quanto a isso que ganha
realce e deve ser considerada ainda válida para o período a fala da historiadora Angela
de Castro Gomes, para quem a República seria,
18
Dessa feita ganham realce as pesquisas saídas da lavra da historiadora Lucia Maria Paschoal
Guimarães, com os artigos em periódicos científicos que aqui iremos explorar, além do livro dedicado ao
IHGB sob parte do período republicano. Além dessas publicações, cabe reconhecer o esforço de Angela
de Castro Gomes ao citar como referência o Diccionario histórico, geographico e ethnographico do
Brasil, vinculando essa publicação às providências do IHGB como parte dos trabalhos executados para a
comemoração do Centenário da Independência. Conforme GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Um
olhar sobre o Continente: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Congresso Internacional de
História da América. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.20, 1997, p. 217-229; GUIMARÃES, Lucia
Maria Paschoal. Limites políticos de um projeto intelectual para a integração dos povos do Novo Mundo:
o Primeiro Congresso Internacional de História da América. Topoi. Rio de Janeiro, v. 6, n.10, jan.-jun.
2005, p. 192-212; GUIMARÃES, Lucia Maria Pachoal. Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2006; e, GOMES, Angela de
Castro Gomes. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009.
19
A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009, 24-25.
341
Afinal cabe entender que a nova orientação dada pelo Barão ao IHGB parecia
manter um forte vínculo com os parâmetros que adotara para a política externa
brasileira. Cumpre lembrar que o chanceler trabalhara para deslocar o eixo da política
externa brasileira da Europa para os Estados Unidos e vinha se dedicando por construir
uma situação de liderança para o Brasil ao sul do hemisfério americano, procurando
ainda reduzir os potenciais atritos com os países do Continente, tendo se dedicado de
maneira firme, logo que assumira a pasta das relações exteriores a resolver problemas
ainda pendentes das fronteiras do território brasileiro21.
20
Um olhar sobre o Continente: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Congresso Internacional
de História da América. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.20, 1997, p. 217-229.
21
De acordo com Cervo&Bueno, a política de limites ao longo do século XIX representou somente mais
um aspecto da política externa brasileira, pois a fronteira não representava o interesse maior e o esforço
principal da diplomacia durante o Império. Para os autores, “a definição das fronteiras engendraria o
corpo da pátria, ainda, no entender dos estadistas brasileiros, condição prévia para qualquer tipo de
integração.” Apenas no quadro de uma estratégia continental – como protelar a solução do lado do
342
Assim talvez pareça ficar mais visível a articulação entre o governo republicano
e o IHGB, cujo elo forte teria sido o chanceler Rio Branco por força da sua atuação nos
assuntos de Estado. Ao prestigiado Rio Branco poderia ser creditada boa parcela da
nova condição que o IHGB desfrutava nos meios governamentais. Se aos primeiros
anos do regime republicano fôra considerado uma resistência letrada ao novo regime,
pois abrigo intelectual de alguns áulicos da monarquia, a ‘Casa da Memória Nacional’
passava agora a desfrutar de uma maior proximidade nas relações com a cúpula
republicana.
Paraguai, enquanto tática para mantê-lo na sua órbita no subsistema regional; adiá-la na Amazônia, para
não ter que abrir o rio à navegação internacional – seriam ações voltadas para o fortalecimento das
nacionalidades isoladas. O que se visava era a destruição de posições hispano-americanas unívocas.
Ainda para os autores, o mito da grandeza ditara a política de limites. CERVO, Amado Luiz, BUENO,
Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. 2.ed. Brasília: Unb, 2002, p.101. Conforme observa
Demétrio Magnoli, “a delimitação definitiva das fronteiras nacionais brasileiras realizou-se, em sua
maior parte, no período compreendido entre o Segundo Império e a ‘era Rio Branco’. Ao contrário da
lenda, apenas uma extensão relativamente pequena das linhas de limites emergiu efetivamente da época
colonial. De fato, as díades do Paraguai e da Bolívia, com a exceção do segmento guaporeano,
distinguiram-se consideravelmente dos traçados definidos grosseiramente nos tratados de Madri e Santo
Ildefonso.” In: MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no
Brasil (1808-1912). São Paulo: Unesp, 1997, p.295.
22
Conforme explicou Elias dos Santos Bigio, a intenção de Roosevelt teria sido realizar uma expedição
voltada para o estudo dos mamíferos e aves, com vistas a contemplar o Museu Americano de História
Natural, de Nova York. Porém, a finalidade da expedição fora ampliada pelo fato de haver sido dotada
posteriormente de um caráter geográfico e zoológico. A proposta teria partido do Ministro das Relações
Exteriores do Brasil, Lauro Muller. Em companhia de Rondon, o ex-presidente Roosevelt visitou diversos
grupos indígenas localizados principalmente no Estado de Mato Grosso, como os Pareci e os
Nhambiquara, tendo seus naturalistas catalogado aves, mamíferos, répteis, batráquios e peixes. Segundo
relatos de Roosevelt porém, o trabalho mais importante teria sido o da exploração do rio da Dúvida, o
maior afluente do rio Madeira. Os seringueiros o chamavam de Castanho e de Baixo Aripuanã. A
expedição concluiu tratar-se de um só rio, e então o governo brasileiro decidiu denominá-lo rio Roosevelt.
BIGIO, Elias dos Santos. Cândido Rondon: a integração nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
343
constituído mediante a compilação de duas obras editadas em anos anteriores 26. Nessa
ocasião, Taunay utilizou-se de forma emblemática da elaboração de enredo sob o
arquétipo da comédia, esboçando ainda ao longo do texto, os conceitos de nação,
território e civilização.
Os primeiros anos de São Paulo passam a ser narrados a partir das circunstâncias
de abandono que Portugal relegara às centenas de léguas de litoral atlântico que lhe
coube por força do achamento de abril de 1500. Ao fracasso do sistema de Capitanias
Hereditárias, respondia D. João III com o apelo à Companhia de Jesus. Chegados os
jesuítas ao Brasil, fundam no planalto da Capitania de São Vicente seu colégio. Na
opinião de Taunay, tal escolha fora motivada pelo fato dos jesuítas, desde sua chegada
terem arvorado-se “ em protectores dos selvícolas escravisados [ no que ] começaram a
percorrer os engenhos de assucar a syndicar das condições em que viviam os míseros
captivos.”27
Ora, tais ações teriam ofendido “de frente os interesses, habitos e costumes de
uma população inteira” levantando-a furiosamente contra os jesuítas, e levando Manuel
da Nóbrega a entender que,
“ a região litorânea não era a zona propicia para a grande obra que se ia
emprehender, dahi a escolha de um local além da Serra do Mar onde se
fundasse ‘de novo, um povo principiado em sinceridade, verdadeira religião
e amor de Christo’ na phrase do chronista da Provincia do Brasil”.28
26
São Paulo nos primeiros anos (1554 – 1601): ensaio de reconstituição social e São Paulo no seculo
XVI: História da Vila Piratininga.
27
A Fundação de S. Paulo. Anais do Congresso Internacional de Historia da América. V.3, T. especial.
Rio de Janeiro. Imprensa Nacional, 1927. P. 54.
28
Ibidem, p. 54.
29
Ibidem, p. 55.
345
30
A Fundação de S. Paulo. Anais do Congresso Internacional de Historia da América. V.3, T. especial.
Rio de Janeiro. Imprensa Nacional, 1927. P. 57.
31
Ibidem, p. 75.
346
32
José Honório Rodrigues assinalou que Pedro Taques não utilizou nem uma vez as palavras bandeira e
bandeirante, não obstante Taunay, conforme aponta o autor de História da História do Brasil, tenha
encontrado em suas pesquisas, a palavra bandeira empregada pela primeira vez em um documento de
1676, do Conselho Ultramarino, enquanto que bandeirante havia se tornado termo de uso corrente por
volta de 1740. In: História da História do Brasil. 1ª parte (Historiografia Colonial). São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1979. P. 136.
33
Esta obra foi publicada somente em 1927. Em sua Revista, o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro publicou o texto na íntegra, em tomos especialmente dedicados ao Congresso Internacional de
História da América.
34
Este fato foi ressaltado por Francisco Iglesias no prefácio de 1972, escrito para esta obra de Lúcio dos
Santos. Naquela época, Francisco Iglesias creditou a qualidade do texto ao estudo das citadas fontes
primárias.
347
Lúcio José dos Santos havia se auto-imposto uma tarefa, que inferimos seria
superior à que lhe fora confiada pela comissão que organizava o Congresso
Internacional. Seu diálogo se fazia diante de dois extremos que haviam se estabelecido
quanto ao papel do Alferes Tiradentes. O primeiro relato, ainda muito acreditado à
época, havia surgido das mãos de Eduardo Machado de Castro,35 autor de outra obra
que fora por muitos anos leitura obrigatória, sobretudo nas escolas mineiras.36
A partir deste ponto, outra importante hipótese a ser investigada pelo Prof. Lúcio
dos Santos seria a contradição entre a detratação do Regime Colonial, realizada por
republicanos mais ferrenhos, que não descortinavam naquele período da História
brasileira, bondades ou benefícios sendo este “ todo despotismo, maldade, ignorancia,
35
A Inconfidência Mineira. Narrativa Popular. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte. T.
VI, fasc. III-IV, jul.dez. 1901.
36
Trata-se da “Epanaphora historica de Minas”, que o Prof. Lúcio dos Santos lembrava ter lido quando
criança, texto classificado por ele como uma “narração pavorosa”, de “sombria impressão, [pois nela] os
Governadores são monstros de crueldade, rapacidade e perfidia. Não se exceptua nenhum. Ao lado desse
Governo tyranico, o povo era um martyr permanente ! Semelhante concepção é erronea a priori. Como
poderiam os descobridores e colonizadores da nossa terra preparar, em tres seculos de despotismo e
ignorancia, uma nacionalidade vigorosa, capaz de emancipar-se por si mesma e seguir uma evolução
rapida e não sem brilho, da colonia ao imperio e deste á republica? ” A Inconfidencia Mineira: papel de
Tiradentes na Inconfidencia Mineira. São Paulo: Escolas Profissionaes do Lyceu Coração de Jesus,p. 66.
37
Trata-se da “História da Conjuração Mineira”, obra de 1873, de pequeno valor literário no
entendimento de Lúcio dos Santos, o qual aponta diversos equívocos de Joaquim Norberto. Cabe registrar
que Alfredo Bosi destaca a Joaquim Norberto, classificado sob o nacionalismo romântico, como uma
referência sólida para a historiografia justamente por essa obra. BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
38
A Inconfidencia Mineira: papel de Tiradentes na Inconfidencia Mineira. São Paulo: Escolas
Profissionaes do Lyceu Coração de Jesus. 1927. P. 62.
348
Foi a partir da leitura dos interrogatórios aos quais foi submetido Tiradentes,
impressão que Lúcio dos Santos classificou haver lhe tomado o espírito de maneira
“extremamente reconfortante” que surgiu a personagem histórica do Alferes Joaquim
José da Silva Xavier. Assim, no decorrer de duros interrogatórios, reconhecendo a
inutilidade de continuar com a negativa da Conspiração, e estando os juízes “senhores
de todos os segredos”41, o propagandista da Inconfidência, papel que nominalmente lhe
fora destinado, revelava-se na realidade, “o heroico chefe da conspiração”42 .
Na avaliação dessa personagem histórica, o sempre contido Prof. Lúcio dos Santos
conseguia vazar e, com sua autoridade, endossar qualidades tais como: “digno”, “hábil”,
“generoso”, “devotado”, “espírito elevado”, “patriota”. Teria sido Tiradentes um herói
desassombrado; um herói cristão – e para Lúcio dos Santos, possivelmente, um bom
católico! – a extrair suas certezas da fé. Para aqueles que procuravam safrear nele a
temeridade, responderia o Alferes, cheio de segurança: “ - não ha de ser nada; Deus
está comnosco.”43
39
A Inconfidencia Mineira: papel de Tiradentes na Inconfidencia Mineira, p. 66.
40
Ibidem, p. 69-70.
41
Ibidem, p. 167.
42
Ibidem, p. 396.
43
Ibidem, p. 391.
349
Talvez tenha ficado perceptível uma sutil modificação operada por Lúcio José
dos Santos na narrativa histórica que preparou, se comparada a dos historiadores que o
precederam. E o principal beneficiário dessa mudança ao que parece, foi o Alferes
Tiradentes. Pois ao manejar as imagens no passado histórico, Lúcio dos Santos o faz no
limite que a documentação lhe permitia fazer, e assim, pela sua lavra, a devoção
religiosa do Alferes Joaquim José não é nenhuma conversão extemporânea e indigna
para um revolucionário, conforme Joaquim Norberto tentara fazer crer a partir dos
relatos dos frades que assistiram aos Inconfidentes. Dessa forma, ter sido um cristão, ou
ainda um bom católico conforme pretendia Lúcio dos Santos somente teria dado maior
perseverança ao Alferes, e maior verossimilhança a sua imagem de um Cristo-
Tiradentes. Curiosamente mesmo a estátua erguida em Ouro Preto ao início da fase
republicana deu preferência à representação do Alferes da cavalaria paga de Minas
Gerais vestido com a alva dos condenados, talvez uma forma de ampliar o alcance da
aceitação do herói em um país majoritariamente católico. Voltaremos oportunamente a
esse tema.
44
Ibidem, p. 575.
350
Voltando a refletir sobre esse Congresso alguns anos depois, a autora considerou
que o projeto de uma História Geral da América – um projeto colimado pela direção do
IHGB e parte daquilo que se perseguia como uma espécie de comunhão intelectual de
consolidação da doutrina do pan-americanismo – acabou por ter um curto fôlego, e
possivelmente, assim considerou a autora, por haver se perdido no cipoal da diplomacia.
A construção de um passado comum aos povos do Novo Mundo teria servido de suporte
a um projeto de relações interamericanas que privilegiava a esfera política, porém a
diplomacia do continente acabou deslocando seu foco de interesse para o campo
econômico46.
Cabe voltarmos brevemente a 1914, mas por um motivo que julgamos ser tão
justo quanto incontornável, além de como de costume deveras aprazível que é o ato de
travar diálogo com esse ‘presente’ do passado. Lembramos que o I Congresso de
História Nacional fora organizado em um contexto nacionalista, e mantivera de forma
primordial entre seus objetivos a sistematização do saber histórico disponível, ao qual
pretender-se-ia dotar de unidade e coerência. Talvez seja esse o momento mais propício
para tentarmos estabelecer, face aos objetivos que colimamos, algumas conseqüências
ocorridas a partir das investigações promovidas pela chamada geração de 1870, e logo
pela de 1890 que lhe seguiu, as rupturas políticas e sociais acarretadas pela instauração
do regime republicano e do término do regime servil e a constituição de uma sociedade
de classes emergente, tudo isso às voltas com uma conjuntura à qual um historiador
denominou pelo sugestivo nome de inserção compulsória do Brasil na belle époque47.
Cumpriria então tomar como ponto de partida a carga semântica dos conceitos
de nação, território e civilização conforme foram entendidos na obra capital de
Varnhagen, a História Geral do Brasil, bem como da sua versão para as escolas, as
Lições de História do Brasil, de Joaquim Manuel de Macedo, tentando confrontá-las
com as teses que selecionamos em nosso sexto capítulo, e que foram levadas a efeito no
45
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Um olhar sobre o Continente: o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e o Congresso Internacional de História da América. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.20,
1997, p. 217-229.
46
Limites políticos de um projeto intelectual para a integração dos povos do Novo Mundo: o Primeiro
Congresso Internacional de História da América. Topoi. Rio de Janeiro, v. 6, n.10, jan.-jun. 2005, passim.
47
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. São Paulo: Brasiliense, 1999.
351
Congresso de História Nacional de 1914. É preciso contudo ressaltar o quanto são lentas
as mudanças. Assim, por volta de 1915, caberia ainda a Varnhagen o mérito de haver
criado aquilo que de mais notável haveria em nossa literatura histórica. Essa opinião
vinha de ninguém menos que o crítico literário José Veríssimo que naquele ano lançava
a sua bem recepcionada História da literatura brasileira. Haviam no entanto, partida da
pena do meticuloso Veríssimo, uns tantos reparos à História Geral do Brasil. Afinal, a
origem germânica, a formação luso-européia, a constante ausência e pouca convivência
com o país natal, e diria-se até mesmo a constituição de família fora do Brasil haviam
dado a Varnhagen – essa era a avaliação um tanto quanto ontológica de Veríssimo –
uma espécie de fisionomia particular que o afastava do temperamento, da índole e do
sentimento brasileiros. Sua proximidade aos poderosos – Varnhagen fora levado à pia
batismal pelo capitão-general da província na qual nascera e mantivera uma relação de
amizade e proteção com Pedro II – haviam, de acordo com esse crítico literário,
acrisolado no ânimo do Visconde de Porto Seguro o sentimento de afeto e
pertencimento aos próceres mandatários da terra, reforçando seu ímpeto conservador,
dando vazão a que se esforçasse em seus exercícios de idas e vindas ao passado por
encontrar razões e desculpas dos eventuais erros e omissões dos poderosos e das
instituições a que estivessem a serviço, descobrindo-lhes ou ainda inventando-lhes
virtudes e benefícios.
Cultuado por Oliveira Lima, citado com largueza por Max Fleiuss e criticado de
maneira um tanto moderada por Capistrano de Abreu e Sílvio Romero, conforme vimos
em páginas anteriores, a verdade é que a narrativa dos tempos pretéritos da lavra de
Varnhagen, monumentalizada por força das conveniências do status quo saquarema
carecia nos anos iniciais do século XX, de uma falta de sintonia com os interesses
daquele presente histórico, por disfarçar os defeitos da época colonial, por desprezar o
indígena como fator de formação da população, por não captar o que existira por trás e
além dos alvarás, decretos e iniciativas do Estado.
Faltara talvez a Varnhagen aquilo que seria uma providencial alteridade para
reconhecer a positividade das contribuições de outras sociedades humanas, o que
correspondia a dizer, o aprendizado do branco europeu com o índio, o natural da terra.
Para o Visconde de Porto Seguro era ‘forçoso reconhecer’48 que essas culturas guiaram
com sua presença a vida diária dos primeiros colonos com as técnicas fundamentais à
48
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 214.
352
vida nos trópicos, com conhecimentos que partiam do ‘selvagem’ para o ‘civilizado’.
Essa interação mostrou-se decisiva para a constituição daquilo que viria a ser um ‘povo
novo’, conforme entendera Martius. Assim, os aprendizados e fazeres dos trópicos
americanos estiveram articuladas a conquista territorial, possibilitada pelo
aproveitamento dos antigos caminhos dos índios e realizadas em boa parte pelos seus
descendentes, os mamelucos meridionais. Ausentes ainda estavam os labores do povo
miúdo com suas dores e folguedos, a saga dos tropeiros e das monções, as minas e seus
faiscadores; faltavam também o gado com suas patas sertão adentro em seus imensos
currais, que formariam as hinterlands, alinhavando ainda que precariamente as
capitanias para que no futuro fosse possível falar em um conjunto articulado de
populações pelo território, o que daria verossimilhança ao contar a história de povos que
comungaram valores próximos, de traços culturais que pudessem autorizar a idéia de
um sentimento nacional, de memórias locais que colhidas para serem instrumentalizadas
sob a forma de narrativas históricas pudessem dar verossimilhança a essa construção, e
autorizasse a crer que a nação brasileira estava ancorada no distante passado colonial.
Como bem frisou Ulpiano Meneses49, que ao início dos anos 1990 ocupava o
cargo de Diretor do Museu Paulista, não há qualquer coincidência entre memória e
História, pois se essa última se dá sob a forma intelectual de conhecimento, sendo uma
operação cognitiva, trata-se a memória de uma operação ideológica, um processo de
constituição e reforço da identidade individual, coletiva e nacional. Porém ainda
segundo o autor, a memória fornece quadros de orientação, e funciona mesmo como
uma auxiliar para a assimilação do novo. Conforme sabemos a cultura histórica
encontra-se articulada a um conjunto de representações compartilhadas na sociedade.
Ela se encontra integrada à consciência histórica e auxilia nas escolhas coletivas. A
estrutura temporal do passado apreendida sob a forma de campo de experiência encontra
sua ligação com o tempo presente em operadores hermenêuticos tais como a atenção, a
expectação e a memória50. É das representações compartilhadas no seio da sociedade
que ficam possibilitados os juízos de valor a períodos, personagens, acontecimentos ou
narrativas.
49
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de Meneses. A História, cativa da memória? Para um mapeamento da
memória no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n.34,
p.9-24, 1992.
50
DOMINGUES, Ivan. O fio e a trama. Reflexões sobre o tempo e a história. Belo Horizonte: UFMG,
1996.
353
55
Vide nosso cap. 1., ‘O território de Clio’.
56
WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. 2.ed. São Paulo: Edusp, 1995,
p. 201.
355
da lei. Caberia ainda lembrar com base nesses mesmos escritos de Moura, que os rios
dos quais haviam se valido os bandeirantes nas suas incursões seguiam direções que,
conforme a fala dos ideólogos da paulistanidade haviam facilitado a dilatação das
fronteiras.
Ora, isso configurava conforme vemos, também uma naturalização da geografia
paulista, a qual passava a servir como explicação para a conformação geográfica do
território brasileiro. No mais, a expansão e posterior fixação dos sertanistas de São
Paulo no desbravamento e colonização do território brasileiro pareciam também atestar
a sua responsabilidade maior na formação da nacionalidade brasileira, inclusos aí os
resultados da miscigenação racial. Conforme observou a historiadora Maria Isaura
Pereira de Queiroz, ser paulista havia se tornado a “manifestação de uma coletividade
geograficamente localizada”59, expressa pela figura mítica do bandeirante. Essas
personagens pareciam saltar das páginas da História sob o signo do desbravamento, pois
indômitos, conquistadores e rebeldes, possuidores de um vivo sentimento de iniciativa e
audácia, eram apontados por essas qualidades como os responsáveis pela conquista do
imenso território brasileiro. Assim, a matriz da nacionalidade brasileira parecia estar
localizada em terras paulistas60.
Contudo, fatos dessa natureza davam abertura a que os bandeirantes tornados
mineradores, e logo fazendeiros conforme ocorrera em Minas Gerais, fossem pensados
sob uma nova roupagem. Esses podiam também agora passar a ser representados como
os austeros e moderados mineiros, habitantes das montanhas. A intelectualidade
modernista mineira, contando com nomes como os de Carlos Drumond de Andrade e
59
Ufanismo paulista: vicissitudes de um imaginário. Revista USP. São Paulo, n. 13, p.78-87, mai. 1992.
A autora observa que no Dicionário da Língua Portugueza, datado de 1802 da autoria de Moraes e Silva
(1757-1824) a palavra bandeira já se encontrava registrada, sendo entendida como “associações de
homens que vão pelos Sertões debaixo de um cabeça, descobrir terras mineiras. Dantes chamavão assim
os que ião descobrir índios gentios e conduzi-los, ou cativá-los, regatá-los.” A denominação da qual
fizera uso o dicionarista fora tomada de empréstimo das famosas Cartas, do padre Antonio Vieira (1608-
1697), o qual fora contemporâneo das bandeiras. Mais tarde, seguimos o texto da autora, Antonio
Cândido de Figueiredo (1846-1925) registrava na edição de 1913 do seu Novo Dicionário da Língua
Portuguesa o conceito de bandeirante da seguinte forma: “Bandeirante: indivíduo que no Brasil, faz parte
dos bandos, destinados a explorar os sertões, atacar selvagens, etc.” Cabe frisar que esse dicionarista
português informava na introdução da sua obra que havia incluído mais de sete mil brasileirismos que
antes nunca haviam entrado em dicionários da língua portuguesa. Nos cabe acrescer que na edição de
1925 desse dicionário eram mantidas tanto a definição, quanto a informação da edição de 1913. Convém
ainda observar que haviam definições também para “Bandeira: expedição armada, mais ou menos
numerosa, destinadas a explorar os sertões, ou a castigar os selvagens que prejudicam os
estabelecimentos civilizados”, bem como para “Bandeirar: sêr bandeirante.” Cfe. FIGUEIREDO,
Antonio Candido de. Novo Diccionário da Língua Portuguesa. 4.ed. Lisboa: Arthur Brandão, 1925, p.
250.
60
VELLOSO, Mônica Pimenta. A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. 2.ed.
Rio de Janeiro: CPDOC, 1990, p. 71.
357
61
BOMENY, Helena Bousquet. Cidade, República, Mineiridade. Dados, Rio de Janeiro, v.30,n.2, 1987,
p. 187-206. P. 188.
62
Quanto a esse aspecto ver o artigo do escritor Manuel Bento Monteiro Lobato, ‘O direito de
secessão’(1926). In: ________. Na antevespera. 12.ed. São Paulo: Brasiliense, 1968.
63
A Elites Mineiras e a Conciliação. Ciências Sociais Hoje, 1984. São Paulo, Cortez, 1985, p. 7-32.
64
BOMENY, Helena Bousquet. Cidade, República, Mineiridade. Dados, Rio de Janeiro, v.30,n.2, 1987,
p. 187-206. P. 188.
65
Nesse aspecto é importante frisar que “ o realismo supera a utopia: ‘o espírito bandeirante, de
iniciativa e descoberta, a que os mineiros devem a sua própria província natal, não é mineiro, é paulista.
A concepção mineira de vida é, de certo modo, inimiga de viagens, de horizontes diversos, de aventuras e
de riscos.’ ” DULCI, Otavio Soares. A Elites Mineiras e a Conciliação. Ciências Sociais Hoje, 1984. São
Paulo, Cortez, 1985, p. 10. (grifos do autor).
358
mineiro. Enfim, a idéia de conciliação seria um traço peculiar das elites mineiras e
aparece para Otavio S. Dulci como central na auto-imagem das elites mineiras no plano
político nacional.
Aliás, para o autor, a origem da fórmula da conciliação, que seria o foco da
mineiridade enquanto ideologia, possuiria as raízes da sua formulação no Império. Seria
a mineiridade uma interpretação que visara construir um caráter regional sobre um
“terreno pantanoso”, nas palavras do autor, e que se liga à temática da cultura política.
Assim, a mineiridade ou o ‘caráter mineiro’, seguimos o autor, possui sua dimensão
mais propriamente política “expressa pela noção da ‘cultura política’, que representa o
‘padrão de atitude e orientações individuais com relação à política, compartilhadas
por membros de um sistema político”66.
Analisando os argumentos alinhados por Otávio Dulci em seu lapidar artigo,
entendeu Helena Bomeny que esse autor “toma a mineiridade como a ideologia política
de uma elite que dela se beneficia como recurso de poder capaz de integrá-la, a ela,
elite e ao estado de que é porta-voz, no cenário político nacional.”67
Ainda sobre o tema da mineiridade, achamos interessante dar voz mais uma vez
à historiadora Marly Silva da Motta. Para ela,
“Se os elementos geográficos configuravam Minas Gerais como o lugar da
austeridade, da tenacidade, da sobriedade e da discrição, a história havia
predestinado a região a ser o nascedouro da liberdade e da democracia,
conquistadas, sempre era bom lembrar, graças ao ‘martírio’, ao sofrimento e
à luta do povo mineiro. A história do Brasil, na verdade, seria um
desdobramento do movimento da Inconfidência, que conteria em si o gérmen
do sentimento nacional; as origens da nação estariam em Minas Gerais,
berço de Tiradentes. Calcada nos ‘indiscutíveis’ fatos do passado e nos
‘imutáveis’ aspectos da natureza, a mineiridade, quer como ideologia
política, quer como mitologia, revelou-se eficaz ao projetar o mineiro como
elemento indispensável no concerto político nacional.”68
66
Ibidem, p. 12. (grifos do autor). Para o autor ficava sugerida a existência de uma “subcultura política
mineira”, que por sua vez seria consistente com a idéia de um caráter regional. Para Dulci, em termos
sintéticos os elementos de tal subcultura seriam: o apego à tradição e o senso de continuidade; a
valorização da ordem e da estabilidade, bem como a prudência nas iniciativas; o senso de naturalidade,
idéia que seria afinada com uma visão evolutiva da sociedade e da História; o centrismo, o que
equivaleria dizer, aversão aos extremos e ao radicalismo; a busca pelas soluções moderadas, ou pelo meio
termo; o realismo, o pragmatismo e a acomodação às circunstâncias, com acento para a transação e a
acomodação de interesses; e, a habilidade e a paciência como estratégias à consecução de objetivos
políticos a um menor custo.
67
BOMENY, Helena Bousquet. Cidade, República, Mineiridade. Dados, Rio de Janeiro, v.30,n.2, 1987,
p. 187-206. P. 188.
68
A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência. Rio de Janeiro: FGV, 1992,
p. 80. (grifos da autora).
359
que à época estavam visivelmente mais abalizados para tratar sob o ponto de vista da
história, o papel desempenhado por seus Estados na formação nacional. Estavam eles
investidos de uma autoridade que ia além das suas opiniões acadêmicas, pois tratavam-
se de posições assumidas nos aparelhos de Estado de São Paulo e de Minas Gerais.
Desde 1917, conforme vimos, Afonso Taunay estivera à frente do Museu
Paulista. Em Minas Gerais, como também mostramos, encontrava-se desde 1924, Lúcio
José dos Santos como diretor da Instrução Pública. O nosso intuito será apresentar a
forma pela qual esses historiadores conciliaram com as suas graves funções os
interesses mobilizados pelas oligarquias dos seus Estados, no sentido de reforçar as
identidades regionais. Portanto, não iremos intentar aqui o que seria uma monótona
revisão que visasse recuperar e discutir criticamente a extensa bibliografia que trata dos
bandeirantes paulistas ou da Inconfidência Mineira.
Afinal não se encontra inscrito em nossos objetivos tecer observações acerca da
validade para os dia atuais, da historiografia produzida por Taunay ou L.J.Santos, mas
somente demonstrar para aquele momento histórico a pertinência das narrativas
históricas que produziram com os interesses das oligarquias – que afinal representavam
– em constituir uma identidade regional, porém de forte apelo nacional, alicerçada nos
registros históricos. Ainda que tais narrativas tenham sido feitas no limite àquela época
aceitável para o exercício da imaginação histórica, e mesmo que hoje algumas dessas
interpretações nos pareçam forçadas. Não obstante, cabe reiterar, a proposta desse nosso
estudo se limita a produzir uma explicação – que esperamos ser a mais consistente
possível – da forma como tais identidades regionais foram tratadas pelos historiadores
que temos sob foco, a ponto de serem reconhecidos pela via da imaginação histórica –
os bandeirantes em sua errância teriam se radicado em todo o território nacional; a
conjuração em Minas teria lutado pela independência do Brasil – enquanto símbolos
representativos não mais de uma região, mas de alcance nacional.
Comecemos pela versão de Lúcio José dos Santos para a Inconfidência Mineira
e seu herói maior, o Alferes Joaquim José da Silva Xavier. Na segunda metade da
década de 1920 o Professor Lúcio José dos Santos era reputado no interior do Instituto
Histórico de Minas Gerais como uma espécie de continuador dos trabalhos do eminente
360
Aliás, a palavra liberdade, ou ao menos a aspiração por essa, se faz sentir presente
em toda extensão desse pequeno livro, e o texto assumia o caráter cívico-pedagógico de
formar o cidadão. Após rápidas inserções de caráter geral, o Professor Lúcio dos Santos
iniciava efetivamente a sua narrativa sobre a história das Minas Gerais. Então ele fala
do território mineiro, de difícil penetração pelo relevo acentuado, rios invadeáveis,
sertões ínvios, febres mortíferas e animais ferozes. Porém o obstáculo maior ficava por
conta das tribos indígenas, povos os quais ele classificava como estando na ‘infância da
civilização.’
Pois, conforme explicava o autor, haviam tribos tidas como inassimiláveis e que
moveram guerra ao colonizador branco, aos ‘portadores da civilização’: os Aimorés,
69
Acta da Sessão de 21 de abril de 1928. Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes. Revista do
Archivo Publico Mineiro. Belo Horizonte, anno XXII, 1928, p. 56.
70
Acta da Sessão de 27 de novembro de 1927. Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes.
Revista do Archivo Publico Mineiro. Belo Horizonte, anno XXII, 1928, p. 7. Cabe acrescer que à beira do
seu túmulo, no dia do seu sepultamento, recebeu o pranteado historiador uma expressiva antonomásia
cunhada por Francisco Campos, de “Heródoto mineiro”.
361
Atendendo a um pedido real formulado por D. Affonso VI, uma nova era iria
começar. O Professor Lúcio José dos Santos refere-se respeitosamente aos bandeirantes
e a toda sorte de dificuldades enfrentadas por estes, chegando a reproduzir uma efígie de
Fernão Dias Paes Leme, bem como uma fotografia da sua estátua em mármore, do
Museu Ipiranga. Narra então os entreveros havidos entre sertanistas como Borba Gato e
enviados da Coroa, como D. Rodrigo Castello Branco, o qual acabou assassinado no
Sabarabuçu. O episódio sangrento do Capão da Traição e a Guerra dos Emboabas
figuram então como as causas que acabariam culminando em providências da parte do
governo português: a criação da Capitania de Minas Gerais.
É o momento no qual Lúcio dos Santos aproxima-se ainda mais dos seus
esperados jovens leitores para confidenciar-lhes sobre o grande patrimônio de Minas
Gerais. Da riqueza do território mineiro, tanto era o ouro e as pedrarias que nele se
encontravam, era um segredo de polichinelo, há muito por todos sabido. Porém a ironia
é que seria exatamente a partir da prodigalidade com a qual a natureza dotara Minas
Gerais, atraindo para essa Capitania a cobiça da Coroa portuguesa mediante prepostos
venais e arrogantes que a história de Minas Gerais que interessava realmente começava
a ser contada. Pois o grande e real patrimônio mineiro seria de ordem imaterial, e
passava a ser revelado aos leitores através de eventos que o autor chamaria por “reacção
nativista”. Esses haviam sido motivados pelos abusos do poder à sombra do
absolutismo monárquico.
71
Historia de Minas Geraes: resumo didactico. São Paulo: Melhoramentos, 1926, p.19.
362
que nas duas margens do Atlântico se empenhavam no cumprimento dos interesses cada
vez mais aviltantes da dinastia reinante em Portugal, de hábitos suntuários e
dissipatórios. Assim é apresentado D. José I, “rei incapaz, cupido e libidinoso”72 que
ficou entregue aos desmandos do seu onipotente ministro Sebastião José de Carvalho e
Mello, o Marquês de Pombal, de “refalsada hypocrisia”73. A esses se ombreariam
governadores da mais negra memória, tais como Antonio Carlos Furtado de Mendonça,
D. Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcellos – Conde de Assumar, D. Luiz da
Cunha Menezes (o fanfarrão Minesio, das Cartas Chilenas), e evidentemente Luiz
Antonio Furtado de Mendonça, o Visconde de Barbacena, governador de Minas Gerais
à época da Inconfidência Mineira74.
Traçava então o autor uma espécie de fio a conduzir seu leitor através dos
movimentos que haviam abalado a pretensa estabilidade que o governo português
julgava possuir em Minas Gerais. Contra seus prepostos se levantaram os mineiros em
1720, com Felipe dos Santos, assim como nos motins do Pitangui e do rio das velhas,
inicialmente contra o fiscalismo português, e posteriormente na Inconfidência Mineira,
quando chegou a ser contestada a soberania portuguesa. O grande patrimônio dos
mineiros seria portanto, a aspiração pela liberdade. Seria tal aspiração a resultante de
um vento geral de revolta que espalhara pela Europa e fizera com que germens
libertários chegassem à América.
72
Historia de Minas Geraes: resumo didactico. São Paulo: Melhoramentos, 1926, p. 71.
73
Ibidem, p. 71.
74
Curiosamente o Professor Lúcio dos Santos refere-se ao movimento ocorrido em Minas Gerais como
Inconfidência, tanto na sua tese de 1922 para o Congresso Internacional de História da América quanto no
seu resumo didático. Posteriormente ele voltaria ao tema, em palestra no IHGMG, denominando as
tratativas havidas em Vila Rica como Conjuração.
363
Porém com as prisões, justificava Lúcio dos Santos, todos os indiciados, mesmo
aqueles que lhe eram mais próximos, se preservaram do contacto com o Alferes,
tentando descobrir-lhe defeitos físicos e morais. O resto dessa história todos sabemos
desde os primeiros anos dos bancos escolares: com a destituição do governador, cujo
destino oscilou entre a execução e a expulsão da Capitania, seria proclamada uma
república, com capital em São João d’El Rei, criada uma universidade, e a bandeira,
pela proposta do Alferes teria um triângulo representando a Santíssima Trindade, com o
verso de Virgílio, essa uma proposta de Alvarenga Peixoto: Libertas quae será tamen.76
75
Historia de Minas Geraes: resumo didactico. São Paulo: Melhoramentos, 1926, p.85.
76
Talvez caiba estender para o resumo didático de 1926, uma opinião de José Ivan Calou Filho expressa
para a tese do Congresso Internacional de História da América. Escrevendo no ano de 1989 esse
pesquisador do Arquivo Nacional defendia que o texto de Lúcio José dos Santos (1922) assumiu uma
postura conciliatória fugindo tanto da abordagem de autores monarquistas que haviam condenado
Tiradentes, quanto dos republicanos que o haviam endeusado. Cfe. Versões clássicas da Inconfidência
Mineira. Acervo. Rio de Janeiro, v.4, n.1, jan.jun. 1989, p. 149-174. Da nossa parte sugerimos que talvez
por esse traço definidor da ideologia da mineiridade o texto de Lúcio José dos Santos tenha servido como
base de exposição didática durante tanto tempo.
364
Assim, nesse pequeno livro feito a título de resumo didático não podiam mais
haver sérias dúvidas, e Tiradentes passava a ser o motor inicial da trama. Foi do seu
encontro no Rio de Janeiro, com José Álvares Maciel, que se deu início, por iniciativa
do Alferes, a Conspiração. A derrota do plano dos Inconfidentes não se deveria a uma
suposta leviandade do Alferes e suas falácias de propagandista, mas à delação de um
devedor da Fazenda Real, Joaquim Silvério dos Reis. Assim, o golpe de morte na
conjuração e fator capital para que fossem estancados os planos de sedição passava a ser
a suspensão da derrama por ordem do Visconde de Barbacena.
77
Historia de Minas Geraes: resumo didactico, p. 103 . (grifo nosso).
78
Somente sob a rubrica ‘História’ haviam sido lançados sete títulos sobre a História do Brasil e cinco
sobre a História da Cidade de São Paulo. Ao que nos interessa mais de perto haviam sido publicados seis
volumes versando sobre a História de São Paulo: Á gloria das monções; História Geral das Bandeiras
365
Paulistas (tomos I e II), Um grande bandeirante: Bartholomeu Paes de Abreu, Collectanea de documentos
da antiga cartografia paulista, Ensaio da Carta Geral das Bandeiras Paulistas, e Na era das bandeiras, a
qual já se encontrava em sua 2ª edição.
79
FERREIRA, Antonio Celso. epopéia bandeirante: letrados, intituições, invenção histórica (1870-1940).
São Paulo: Unesp, 2002; e, BREFE, Ana Claudia Fonseca. O Museu Paulista: Affonso de Taunay e a
memória nacional (1917-1945). São Paulo: Unesp, 2005.
80
Cabe observar que o projeto vencedor do concurso público para o monumento à Independência foi
muito contestado. Vencido pelo escultor italiano Ettore Ximenes, a proposta foi criticada por sua
inexpressividade, e entre os críticos mais ruidosos, estava Monteiro Lobato. Naquele sete de setembro de
1922, a obra estava inacabada, e somente seria entregue dali a quatro anos. Segundo observação de
Antonio Celso Ferreira, corria à boca pequena que Ximenes havia reaproveitado um projeto apresentado
ao Czar da Rússia, mas que fora inviabilizado pela eclosão da revolução bolchevique. Ximenes teria ainda
proposto uma maqueta idêntica ao governo belga. Cfe. FERREIRA(2002) e BREFE (2005).
366
tanto a sua vida de historiador81, quanto boa parte da sua atividade de museólogo. Ao
longo da sua vida de historiador Afonso d’Escragnolle Taunay iria basear-se em larga
medida naquilo que ele considerava como os três fatores da civilização brasileira, que
segundo ele seriam os fastos das bandeiras, a obra dos jesuítas e a guerra contra os
holandeses.
Índios! Ouro! Pedras! era a reunião de esboços biográficos de duas das maiores
personagens do sertanismo, um deles representando a expansão territorial que teria sido
proporcionada a partir do desassombro dos bandeirantes paulistas. Para Taunay, era
devido a Antonio Raposo Tavares serviços memoráveis, como o avanço sobre as
reduções jesuíticas do Sul, o socorro a Pernambuco, à época em luta com os holandeses,
e o apoio decisivo ao reconhecimento em São Paulo, de D. João IV como legítimo rei
de Portugal. Por fim era adjudicado a esse sertanista a grande bandeira também
conhecida pelo nome de périplo raposeano.
81
Nesse sentido era apresentado uma espécie de adiantamento daquilo que viria a ser a História Geral das
Bandeiras Paulistas, lançada entre os anos de 1924 e 1950.
82
Índios! Ouro! Pedras! Antonio Raposo Tavares; Fernão Dias Paes; Á Gloria das Monções. São Paulo:
Weszflog, 1926. p. 7. Era o conde Monsanto o donatário da Capitania de São Vicente.
367
De Fernão Dias Paes Leme, segundo Taunay, haviam partido serviços tão
importantes quanto aqueles executados pelo ‘Senhor de Quitaúna’. À custa das suas
vidas e fazendas, já idoso, Fernão Dias embrenhara-se nos sertões ignotos, não por
simples avidez por riquezas minerais, mas em atendimento aos reclamos do Soberano
português. Essa interpretação de Taunay possibilitava definitivamente a que os paulistas
do século XVII fossem reabilitados pela história. Varnhagen falara em súditos infensos
às solicitações da Coroa, apartados e insubordinados. Visava assim Afonso Taunay a
produzir o reverso para a imagem da rochela, uma metáfora que definira o impenetrável
território paulista e seus arredios habitantes, onde os caminhos para São Paulo eram
cegados, e governadores como Salvador Correia de Sá e D. Fernando de Lencastre
desafiados em sua autoridade. Ao registrar alguns desses episódios, o autor da História
Geral do Brasil alinhara-se a Rocha Pita e fizera coro à tradição emboaba de detratação
83
Idem, Ibidem, p. 11.
84
Idem, Ibidem, p. 46.
368
dos paulistas85. A outra face da moeda que definiria os paulistas, agora cunhada por
Taunay e que se utilizava dos relatos de Pedro Taques e Frei Gaspar da Madre de Deus
era de súditos desassombrados face aos desafios, desprendidos perante os perigos,
porém altivos diante da opressão e da tirania.
São Paulo não deveria figurar então como uma ‘rochela’, mas como um núcleo da
‘verdadeira’ formação da nacionalidade. Abandonada aos seus próprios recursos nos
primeiros anos da colonização, sua economia marginal teria condicionado os paulistas a
embrenhar-se sertões adentro aonde a cobiça veio a combinar-se com a audácia em
irresistíveis avançadas meridionais que culminaram em substanciais aumentos da
superfície territorial brasileira. Mas esses sertanistas não se tratam mais de europeus, e
sim de mamelucos, homens já forjados na terra. Nesse sentido, o papel dos jesuítas na
85
John Manuel Monteiro referiu-se ao ressentimento dos paulistas para com a interferência das
autoridades reais em assuntos – questão da liberdade e do trabalho indígenas – que consideravam
internos, o que acabara valendo “para São Paulo a fama de ser a ‘Rochela do Sul’”. Ainda segundo esse
autor, “diversos movimentos dos colonos nesse período [anos finais do século XVII – anos iniciais do
século XVIII] – a revolta da moeda, o assalto aos armazéns de sal, a tentativa de assassinato do ouvidor,
entre outros – reforçaram semelhante reputação, agredindo a autoridade régia frontalmente.” Negros da
Terra: Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.216. Ao
tratar dos episódios que antecederam a ‘Guerra dos Emboabas’, a historiadora Adriana Romeiro refere-se
à imagem compartilhada pelos homens do Conselho Ultramarino: “o espectro da Rochela – de uma zona
encravada em meio ao sertão, espécie de República independente, impermeável ao controle da Coroa.”
A idéia de uma rochela americana dominada por homens mestiços e rebeldes na periferia do Império
Ultramarino português – imagem que segundo a autora se prestava aos interesses metropolitanos na fase
inicial das descobertas auríferas – logo deixaria de ser tolerada, ao surgimento de um contexto mais
favorável. Paulistas e Emboabas no coração das Minas: idéias, práticas e imaginário político no século
XVIII. Belo Horizonte:UFMG, 2008, p.78 e 316. Cabe relatar a discordância entre esses dois autores.
Assim, para exemplificar, enquanto John Monteiro preferiu ver no motim do sal de outubro de 1710 a
expressão da força de um poder privado, Adriana Romeiro preferiu qualificá-lo em uma concepção nos
moldes de autores como E.P.Thompson, G. Rudé, C.Tilly ou Natalie Z. Davis enquanto motins de fome.
369
pacificação dos indígenas permitiu a fixação da cidade Planaltina que podia então ser
apresentada como uma sentinela da civilização em pleno sertão.
Os conflitos posteriores dos paulistas tanto com os jesuítas, quanto com a Coroa
portuguesa deveriam ser entendidos então como uma reafirmação dos direitos da
comunidade, valeria dizer, da Câmara de São Paulo enquanto representante legal do
povo paulista. Afinal de contas, em um momento no qual São Paulo candidatava-se a
uma difícil hegemonia na Federação Brasileira, sua história deveria infundir confiança
nos destinos da nação. Assim, aprear índios teria sido para Taunay uma necessidade
justificada pelo estado de pobreza da Capitania, e logo mitigada pela formação da ‘raça’
materializada pelo mameluco. Ademais, o conflito com os jesuítas teria servido como
uma espécie de freio às pretensões dos inacinos de fundar no planalto paulista um
estado teológico.
86
Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte. Ano XXI, 1927, n.2, p. 109-119, abr.jun. 1927.
370
87
Aurélio Egídio dos Santos Pires (1862-1937) era natural do Serro (MG). Formou-se pela Escola de
Farmácia de Ouro Preto em 1894, mudando residência para Belo Horizonte em 1897. Na nova capital
mineira foi Reitor do Ginásio Mineiro, Diretor e Professor na Escola Normal. Integrou ainda o corpo
docente da Faculdade Livre de Medicina entre os anos de 1913 a 1933, e a convite do presidente Antonio
Carlos dirigiu o Arquivo Público Mineiro entre 1927 e 1930. Inventário do fundo Aurélio Pires. Arquivo
Público Mineiro, 2005.
88
Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte. Ano XXI, 1927, n.2, p. 109-119, abr.jun. 1927,
p.131.
89
Acta da sessão realizada a 27 de novembro de 1927. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo
Horizonte. Ano XXII, 1928, p. 7.
372
alguns estudiosos, em sua maioria sócios, para que desenvolvessem teses propostas em
acordo com o extenso e ambicioso programa então elaborado. Deveriam ser
apresentadas 42 teses, e muitas não seriam levadas a efeito, como parece ter sido o caso
da 4ª tese, que nos interessaria conhecer. Intitulada “As avançadas meridionaes: o seu
espírito e seus effeitos. As descobertas auríferas”, fora convidado a proferi-la o Dr.
Affonso de Taunay90. Possivelmente essa tese não tenha sido levada ao púlpito do
IHGMG por Taunay, e é possível que ele nem ao menos a tenha alinhado sob esse
formato de escrita. Os motivos que temos para fazer essa inferição encontram-se
fundamentados tanto na inexistência de registros na Revista do Arquivo Público
Mineiro e no periódico oficial Minas Geraes, quanto no meticuloso recenseamento dos
escritos de Taunay preparado por Odilon Nogueira de Mattos 91.
“... é licito duvidar que nos fosse preferível o advento da republica em 1789,
em vez de seguirmos uma evolução mais segura, atravez da monarchia. A
nossa situação não era comparável á das colônias inglezas do norte.
Teríamos, talvez, seguido o lamentável destino das colônias hispano-
americanas, isto é, teríamos aberto o nosso caminho no meio de vacillações
entre a dictadura e a anarchia. Quando a educação política falta a um povo,
disse eu alhures, ella só lhe póde vir como o resultado de uma cultura que
exige longos annos. Ora a força não substitue o tempo, nem a revolta infunde
aos povos a capacidade, que não possuem. Assim, pois, a intercorrencia do
período imperial foi útil á nossa vida social. A independência, sob o regimen
monarchico, nos veiu pela ordem natural das cousas, sem abalo nem choque,
como um fructo plenamente sazonado.”93
90
Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte. Ano XXII, 1928, p. 9.
91
MATOS, Odilon Nogueira de. Afonso de Taunay: Historiador de São Paulo e do Brasil (perfil
biográfico e ensaio bibliográfico). Coleção Museu Paulista, série ensaios, v.1, São Paulo, 1977.
92
Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte. Ano XXII, 1928, p. 56-66.
93
A conjuração mineira: suas causas, seu espírito, seus effeitos. P. 56.
373
A Conjuração Mineira vinha ocupando, a pena de Lúcio José dos Santos desde o
ano de 1911, conforme vimos, quando do seu ensaio para o livro comemorativo do
Bicentenário de Ouro Preto. O tema da Conjuração Mineira então já acumulava junto à
historiografia as diversas versões estampadas por Robert Southey, Francisco Adolfo de
Varnhagen e José Norberto Souza e Silva. Sabemos que a Conjura apareceu pouco
documentada para o historiador inglês. Por seu turno, Varnhagen alinhou uma versão
sobre o movimento que oscilou bastante nos juízos emitidos sobre aquele que em breve
seria apontado como o principal personagem daquela Conjuração, o Alferes Tiradentes,
parcialmente corrigida, conforme tivemos a oportunidade de perceber, a partir da
segunda edição da História Geral do Brasil. Contudo Varnhagen afirmou seu juízo
contrário a Joaquim Silvério dos Reis, mantendo no entanto a veneração pela Dinastia
de Bragança, pois afinal tratavam-se dos ascendentes do seu protetor, o Imperador D.
Pedro II. José Norberto lançou dúvidas sobre o heroísmo do Alferes Tiradentes,
remetendo o que seriam atos de desprendimento e desassombro a uma extemporânea
conversão religiosa diante da iminente condenação à pena de morte.
A tarefa à qual se propôs Lúcio José dos Santos parece ter sido facilitada pelo
fato da figura de Tiradentes haver angariado simpatias que iam além do IHGMG,
alcançando o IHGB e as associações cívicas populares, além dos próprios governos
republicanos. Tal aceitação parece ter favorecido a versão proposta por Lúcio dos
Santos, à qual baseada nos Autos da Devassa procurou refletir a resolução cômica
identificada como comédia do desejo, onde o triunfo do protagonista, que para ele não
374
poderia ser outro que não Tiradentes, ocorreu sobre a sociedade que lhe bloqueou a
caminhada para a meta que colimava, vale dizer, a libertação do jugo metropolitano.
Contudo, esse triunfo viria muito após a execução do Alferes, por meio de um príncipe
português, mediante uma passagem considerada segura, na avaliação de Lúcio dos
Santos: o regime monárquico. Para o autor, o percurso de mais de seis décadas sob o
Império teria evitado os desmembramentos territoriais, revoluções e caudilhismo por
que passaram as demais repúblicas sul americanas.
94
FERREIRA, Antonio Celso. A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-
1940). São Paulo: Unesp, 2002. p.23.
95
No trabalho acima citado, Antonio Celso Ferreira enfocou particularmente o caso de São Paulo.
Concordando com esse autor, estenderemos esta situação para Minas Gerais, pela documentação que
trouxemos à luz nesse trabalho, bem como pelos próprios condicionamentos que formaram e vieram a
animar o IHGMG.
96
COSTA, Wilma Peres. Afonso D’Escragnolle Taunay. História geral das bandeiras paulistas. In:
MOTA, Lourenço Dantas (Org.). Introdução ao Brasil: um banquete nos trópicos. 2.ed. v.2. São Paulo:
SENAC, 2002. p. 111.
97
Conforme esclarece José Murilo de Carvalho, houve disputa pela posição de herói republicano: Bento
Gonçalves, presidente da República Piratini ao Sul; Ao Norte, Frei Caneca, herói de uma revolta pela
independência (1817) e de outra contra o absolutismo de Pedro I. Acabou fuzilado pois nenhum carrasco
375
se dispôs a enforcá-lo. José M. Carvalho considerou que talvez a imagem de um Cristo cívico articulada à
questão geográfica tenha facilitado o êxito de Tiradentes. Assim, para o autor, a tradição cristã do povo e
o fato de Tiradentes ser o representante de uma área que a partir da segunda metade do século XIX podia
ser considerada como o centro político do país podem ter decidido essa disputa. Ver: A Formação das
Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Especialmente o
cap. 3.
98
Trata-se de uma “relação triangular”, que é de caráter conservador, conforme Robert Nisbet. Ver. O
Conservadorismo. Lisboa: Estampa, 1987. Especialmente o cap. 2, ‘Dogmática do Conservadorismo’.
376
Para o autor, a mágica força motriz que levou as bandeiras sertão adentro teve
origem nos mitos de fundo econômico, o que vale dizer, mitos que a imaginação
daqueles homens situara no outro lado do Continente, atrás daqueles mataréus trágicos
que pareciam querer contar-lhes o segredo de uma fortuna escondida. Tratava-se de
mobilizar o imaginário coletivo para uma espécie de reedição das avançadas
meridionais do século XVII, onde ao invés de ouro e pedras preciosas, agora se
prometiam terras e prosperidade na abertura de uma nova fronteira agrícola. Caso
tivesse sido possível a Karl Marx se pronunciar, talvez ele viesse a se lembrar de um
providencial reparo que introduzira a uma fala de Hegel, inclusa providencialmente no
‘Dezoito Brumário de Luis Bonaparte’100: a História somente se repete como farsa, e
nunca como tragédia.
99
RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste: a influência da bandeira na formação social e política do
Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940.
100
As palavras de Marx, que entendemos cabe aqui reproduzir, foram a seguintes: “Hegel observa em uma
de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem,
por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda
como farsa.” MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich.
Obras escolhidas. V.1. São Paulo: Alfa-Omega, s.d., p.203.
377
8 – Considerações Finais
religião católica a vincar de forma abençoada o sentido da sua História, e fosse nos
campos do baixo Alentejo ou nas colinas do Ipiranga, tratar-se-ia de uma mesma elite
guerreira saída da vitoriosa cepa lusitana, digno rebento de uma civilização de matriz
latina.
Assim, o ‘corpo da pátria’ representado pelo território brasileiro passava a ser
considerado, com a Independência, conforme vimos uma ‘doação’ de Portugal,
transmitido hereditariamente e garantido pacificamente na formalização jurídica dos
tratados chancelados pela diplomacia portuguesa. O nóvel trono inicialmente ocupado
por Pedro I, conforme sabemos, teria a sua consolidação sob Pedro II, sob a direção
saquarema. Nesse momento não deveriam mais haver dúvidas quanto aos laços com
Portugal e as tradições portuguesas transplantadas para a América. Na visão de
Varnhagen, Portugal deveria ser apresentado como a ‘Pátria-mãe’, sendo a nação
brasileira uma conseqüência da bem sucedida expansão ultramarina portuguesa,
avaliada como uma espécie de cruzada portadora da fé cristã e semeadora – no caso
brasileiro – de uma civilização nos trópicos.
Essa nação seria branca ou metamorfoseada em matiz próximo a essa ‘raça’,
sendo formada por proprietários que deveriam ser preferencialmente brancos. O núcleo
desse grupo seria constituído pelas chamadas ‘boas famílias’, a formar uma ‘boa
sociedade’, idéia que Joaquim Manuel de Macedo esmerou-se por inculcar na
mentalidade dos seus alunos do Imperial Colégio de Pedro II – e em fidelidade ao
pensamento historiográfico de Varnhagen – a partir de sua nomeação como lente em
1849, contribuindo para dar forma às jovens consciências históricas daqueles discentes
– elite intelectual do Império – para que estas se apresentassem amistosas, e no futuro,
colaboradoras potenciais do projeto da elite saquarema. Cabe dizer que esse público
estudantil – leitor em segunda mão de Varnhagen – fora expandido exponencialmente
pela adoção das ‘Lições’ que Macedo publicara a partir de 1861, obras essas adotadas
nas Escolas Públicas do Império, sob o beneplácito do Conselho Superior de Instrução
Pública, e seriam editadas pelo menos até 1922.
Mas toda essa construção ideológica começara a ruir a partir de pontos de vista
mais afinados com os novos donos do poder, sob uma visão que alinhava as pretensões
da cúpula republicana com o discurso sobre os tempos pretéritos, e que descortinasse
nas brumas do passado registros que autorizassem inscrever o novo regime como um
antigo ideal.
381
A partir do discurso sobre o território, era agora permitido pensar que esse fora
conquistado por bandos de sertanistas, os chamados bandeirantes. Conforme mostrara
Capistrano de Abreu (1899 e 1907), esses desbravadores que percorriam os sertões para
apresar índios e buscar riquezas minerais haviam se tornado povoadores com o passar
do tempo. Assim, pela apropriação dessa idéia e as sutis deformações que dela fizeram
sobretudo os homens do IHGSP, os bandeirantes passaram de sertanistas a mineradores,
e daí a fazendeiros e industriais. Defendia-se que havia sido mantida uma linha de
princípios muito arraigados, que se defenderia em um futuro próximo, haviam sido
herdados daqueles errantes desbravadores do século XVII. Tais princípios seriam
valorizados em uma sociedade de classes a caminho da industrialização, que tentava
amparar-se em valores como a disciplina, a iniciativa, a previsibilidade, o respeito às
leis e a prática constante do trabalho.
Por seu turno, o desejo do conhecimento acerca do sertão e do homem que nele
vivia permitia dotar o sertanejo de uma carga de positividade capaz de elevá-lo à
condição de cerne da nacionalidade, o que provia as formações sociais interioranas com
um duradouro revestimento discursivo no pensamento social brasileiro. Essa condição
elevava os sertanejos ao signo da autenticidade, em contraposição aquilo seriam as
sociedades ‘de empréstimo’ do litoral, constantemente metamorfoseadas pelas vagas
recebidas do Atlântico.
Da mesma forma, a nação não poderia ser homogênea em termos étnicos, mas
declaradamente mestiça, e caso fosse possível falar em raça, essa não possuiria seus
fundamentos na biologia, mas nos lentos porém constantes cruzamentos interraciais.
Enfim, caso se quisesse falar em raça no Brasil, suas raízes deveriam ser procuradas sob
os auspícios da História, pois encontravam seu lastro na aventura humana de conquista
do território à natureza dos trópicos, uma obra que à época contava mais de quatro
séculos. A ‘raça’ brasileira teria sido uma singular contingência histórica, e apesar da
posição de Oliveira Viana ser marcada pelo ideal de branqueamento – tratava-se então
de uma introdução a uma importante publicação brasonada pelo sinete oficial – o censo
de 1920 – época na qual Alberto Torres, leitor de Franz Boas, já demonstrara que a
unidade nacional seria de natureza sociológica, e que fazendo coro a essa idéia, Manoel
Bomfim denunciara os vícios da colonização ibérica e Edgard Roquette Pinto percorrera
os sertões para dizer aos brasileiros que a nossa população, clara ou escura, carecia na
verdade de mínimas condições de higiene e educação. Dessa forma, assim como ‘Os
382
O desejo de conciliação entre o passado e o presente surgia então como uma das
esperanças de pavimentar, sob os auspícios dos cultores de Clio, uma estrada segura
para a travessia entre o passado e o futuro, em busca da tão esperada integração do país
na marcha das nações civilizadas feita sob o signo da tradição. Fica claro portanto que o
recurso às tradições trouxe consigo o irremediável apelo à História. Nesse sentido, o ano
de 1914 parece ter servido como uma espécie de divisor de águas para as mudanças que
foram operadas, pois ao mesmo tempo no qual já se podia contar com uma certa
segurança institucional no condomínio oligárquico que fora montado, havia também o
concurso de Institutos Históricos Estaduais criados a partir da República. Foi sobre a
atuação dos Institutos Históricos e Geográficos de São Paulo e de Minas Gerais que
383
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