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Antonio - Tese

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ANTONIO CARLOS FIGUEIREDO COSTA

As luzes de Ithaca: a imaginação histórica na


Primeira República no Brasil
( nação, território e civilização )

Belo Horizonte
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
Maio de 2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

ANTONIO CARLOS FIGUEIREDO COSTA

As luzes de Ithaca: a imaginação histórica na Primeira República no Brasil


( nação, território e civilização )

Tese apresentada à banca examinadora como


requisito parcial para obtenção do título de Doutor
no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
Linha de Pesquisa: História e Culturas Políticas.
Orientador: Prof. Dr. João Pinto Furtado.

Belo Horizonte – Maio de 2016


Universidade Federal de Minas Gerais
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Tese defendida pelo Aluno Antonio Carlos Figueiredo Costa em _____de __________

de 2016 e ________________ pela Banca Examinadora constituída pelos Professores:

_______________________________________
Prof. Dr. João Pinto Furtado – Orientador
Universidade Federal de Minas Gerais

_______________________________________
Profª. Drª. Adriane Aparecida Vidal Costa
Universidade Federal de Minas Gerais

_______________________________________
Prof. Dr. Tarcísio Rodrigues Botelho
Universidade Federal de Minas Gerais

_______________________________________
Prof. Dr. Angelo Alves Carrara
Universidade Federal de Juiz de Fora

_________________________________________
Profª. Drª. Ângela Maria de Castro Gomes
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Agradecimentos

A escrita de uma Tese é fato de grande significância na vida acadêmica e ao


mesmo tempo uma fase marcada por grande solidão. Esse sentimento de isolamento
parece amplificar-se quando após acatadas as alterações propostas pela Banca de
Qualificação e tendo o Professor Orientador dado o trabalho por concluído, resta ao
candidato a Doutor em História recolher-se e avaliar em silêncio o trajeto percorrido,
tendo por companhia somente uma pungente angústia. A ocasião merece que sejam
envidados cuidados redobrados, pois a execução de um trabalho dessa natureza contrai
imensas dívidas, e o risco de deixarmos alguém para trás, o que quase sempre acaba
acontecendo, é grande.

No entanto esse é o momento único para formular os agradecimentos. No


Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais felizmente
encontrei Professores de elevada competência, dedicação e seriedade como Heloísa
Maria Murgel Starling, Luiz Carlos Villalta, José Carlos Reis e Júnia Ferreira Furtado,
entre outros. Cito nominalmente apenas aqueles do período do Doutorado, aos quais
acrescento meu estimado orientador da época do Mestrado, o Prof. Rodrigo Patto Sá
Motta, e meu paciente orientador nesse trabalho, o Prof. João Pinto Furtado. Ao Prof.
João Furtado agradeço penhoradamente pela simpatia, a disponibilidade, a confiança, a
segura e precisa orientação, e sobretudo, o exercício da autonomia intelectual que me
foi possibilitada desde o primeiro contato. Aos Professores Adriane Aparecida Vidal
Costa e Tarcísio Rodrigues Botelho agradeço por terem aceitado participar da minha
Banca de Qualificação em um momento de término do Calendário Acadêmico,
sugerindo com uma irresistível simpatia alguns rumos para esse trabalho. Procurei na
medida do possível acatar suas fundamentadas sugestões, e espero não ter embaçado o
brilho original com que foram formuladas. Aos sempre prestimosos e muito atarefados
Maurício e Edilene meu reconhecimento e respeitoso agradecimento pela atenção que a
mim dispensaram. Trabalhos acadêmicos não são adequadamente concretizados sem
boas bibliotecas. Na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais felizmente somos aquinhoados com um excelente acervo sob
os cuidados da magnânima bibliotecária chefe, Profª Vilma Carvalho.
Aos meus colegas de docência na Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG), aos quais me encontro unido há mais de três anos na luta pela construção de
uma universidade democrática, pública e de qualidade, agradeço o interesse pela minha
pesquisa, o incentivo e o companheirismo. Aos meus alunos da UEMG, de ontem e de
hoje, agradeço a paciência e a generosidade pela escuta e pelo diálogo às digreções
meio intempestivas que em meio aos nossos encontros acabei formulando, quase
sempre sendo contemplado com vivo interesse. Minhas sinceras intenções é que eu
consiga me tornar um professor melhor aos seus colegas de amanhã. Ao pessoal da sala
da pós-graduação, mestrandos e doutorandos do Programa de Pós-Graduação em
História da UFMG muito agradeço a simpatia e a solicitude com a qual me acolheram.
Guardarei as lembranças dessa breve convivência, permeada pelos engraçados
desabafos que escutei, mas que também fiz em nossos intervalos para o café. A paixão
pela História nos une, jovens companheiros de caminhada.

Reservei para o final o espaço daqueles possivelmente mais afetados pela minha
ausência forçada. Não deve ser fácil a convivência familiar com um Doutorando. Ainda
mais quando este após mais de trinta anos de extenuante trabalho no serviço público
federal, aposenta-se para se tornar por meio de concurso, Professor em uma
Universidade pública. Portanto uma nova carreira em meio à execução de um
Doutorado. E quando esse Doutorando é casado e pai, aí a coisa se complica e à vezes
parece que desandará ou fugirá ao controle. Fica portanto aqui não apenas meus
agradecimentos mas também meus pedidos de desculpas a Nilza, Beatriz e Guilherme,
pelas ausências constantes e não poucas vezes, minhas mudanças repentinas de humor.
O que fiz, venho fazendo e espero farei, faço em grande parte por vocês. Resta então o
agradecimento aos meus pais, Everaldo e Maria Laura – in memoriam. Meu querido pai
segue a sua velhice digna em Niterói, e diz que costuma ler os textos que já publiquei.
Ele me disse que um dia formulará seus comentários críticos por escrito. Aguardo com
ansiedade. Aos meus pais fica o agradecimento muito especial, pois sei que a eles devo,
com meus defeitos e qualidades, o que sou.
RESUMO

A Tese “As luzes de Ithaca: a imaginação histórica na Primeira República no Brasil


(nação, território e civilização)”, trata do esforço efetuado durante a Primeira
República em dotar a “História Pátria” de novos referenciais que melhor se adequassem
ao pacto de dominação surgido após 1894. No âmbito das mais autorizadas ‘Casas da
Memória’, os historiadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, juntamente
com seus consócios dos Institutos Históricos paulista e mineiro debruçaram-se sobre o
passado brasileiro e implementaram esforços para produzir uma escrita da história que
era fruto de uma renovação temática e metodológica, mas que também abrigava
contributos do interesse das oligarquias dos dois principais Estados da federação
brasileira. Com isso, produziram novos referenciais históricos, os quais estavam
ancorados no passado colonial, mas coerentes com os interesses de instaurar um novo
panteão cívico republicano que pudesse servir como marca identitária para as
oligarquias paulista e mineira.

Palavras-chave: Primeira República, Institutos Históricos, Historiografia.

Résumé

La thèse " Les feux d'Ithaca : de l'imaginaire historique dans la première république au
Brésil (Nation, de territoire et de civilisation)", c'est l'effort déployé au cours de la
Première République, à équiper la "patrie" de l'histoire de nouvelles références que
mieux si leur remplacement au pacte de domination avait surgi après 1894 . Dans le
contexte de la plus engagée ‘Maisons de mémoire', les historiens de l'Institut
géographique et historique brésilien, de concert avec ses instituts historiques consócios
Paulista et Mineiros axées sur le brésilien passé et ont mis en oeuvre les initiatives
visant à produire une écriture de l'histoire qui est le fruit d'un renouvellement
thématique et méthodologique, mais qui a également creolesâ l'intérêt des oligarchies
des contributions des deux principaux États de la Fédération brésilienne . Avec ce, ont
produit de nouvelles références historiques, qui étaient ancrés dans le passé colonial,
mais compatible avec les intérêts de l'établissement d'un nouveau panthéon civique
républicain qui pourrait servir de marque pour l'identitaire des oligarchies Paulista et
Mineira.

Mots-clés : Première République, instituts historiques, l'historiographie.


8

Sumário:

Introdução ................................................................................ 9

Capítulo 1 O Território de Clio ................................................ 26

Capítulo 2 Oficinas da História................................................ 69

Capítulo 3 Uma Nação Tropical.............................................. 135

Capítulo 4 O Atelier dos historiadores.................................... 191

Capítulo 5 Avesso da Civilização........................................... 235

Capítulo 6 Revisitando o Passado .......................................... 286

Capítulo 7 O Panteão Cívico das Oligarquias......................... 332

8 - Considerações finais .............................................................................. 377

9 - Referências bibliográficas .............................................................................. 385


9

Introdução

“Por nove dias navegamos, nove noites;

O solo ancestre se descortinou ao décimo,

Tão perto que avistávamos sinais de fogo.

Não resisti, exausto, ao sono deleitável;

Mantinha sempre a escota reta, sem confiá-la

A mais ninguém, com pressa de voltar ao lar.

Mas os marujos arengavam na surdina,

Imaginando o conteúdo de ouro e prata

Do odre, regalo de Éolo, magna prole de Hípote.”

Homero. Odisseia.

Ithaca é uma pequena ilha situada no mar Jônico. Seria mais uma entre as
numerosas ilhas gregas não fosse por uma história registrada há milhares de anos
atribuída ao velho Homero. Ithaca é a pátria de Ulisses, e são as tentativas do herói em
voltar ao lar após o vitorioso desfecho da Guerra de Tróia, todas marcadas por
pungentes resultados, que aproximam o leitor de Ulisses, humanizado em seus revezes e
angústias, do início ao fim da Odisséia. As espalhadas luzes que brilhavam na ilha
chegaram a ser divisadas certa noite por Ulisses a bordo de seu navio. Porém fatores
alheios à sua vontade, entre eles o sono que o abateu após nove dias e nove noites de
vigília e a cobiça dos seus próprios companheiros à procura de um possível tesouro que
o herói teria recebido do rei dos Ventos colocou tudo a perder.

O saco de couro de boi que fora entregue a Ulisses pelo benemérito monarca da
ilha Eólia, presente do qual ele não se desprendera desde então, ao ser aberto pela
maruja fez libertar todos os ventos que poderiam impedir aqueles exaustos viajantes de
alcançarem sua terra, causando o desvio da rota e os afastando irremediavelmente do
destino que colimavam.
10

Nesse sentido, as luzes de Ithaca servem a esse trabalho como uma metáfora. Ela
nos oferece uma referência para algo que é fugidio, almejado porém distante, sendo
acenado como possível para ao final, ser declarado como um objetivo quase
intransponível. Seria porém, passível de ser alcançado. Na sociedade brasileira tais luzes
se constituem em um objetivo constantemente perseguido, e possuíram ao longo do
tempo, século XX afora, nomes que denotam essa mesma fugacidade:
desenvolvimentismo, primeiro mundo, globalização ou ainda, modernidade, conceito
esse que se apresenta dotado de extensa semântica. No Brasil dos anos iniciais do século
XX, a idéia de modernidade, noção que entre nós, historicamente parece assumir um
caráter caleidoscópico, respondia pelo nome mágico de Civilização.

Mas o que seria uma nação civilizada sob a ótica das elites brasileiras durante a
Primeira República? Caso procurássemos uma resposta fácil para uma inquirição dessa
natureza, poderíamos dizer sem sérias dúvidas e temores de reproche, que o sentimento
de pertencimento à civilização embalava os sonhos de uma parcela influente da
sociedade brasileira. Essa idéia aparece nos relatos históricos e nas crônicas, tendo sido
inúmeras vezes representada pelos analistas dos últimos anos do século XIX e primeiras
décadas do século XX sob um conteúdo que priorizava os avanços da ciência e da
técnica, o que necessariamente deveria incluir os confortos e comodidades existentes
nos países do capitalismo central.

Talvez um dos mais visíveis aspectos da civilização interessantes a uma


população menos afeita às lucubrações filosóficas e existenciais fosse o automóvel, que
ao vocabulário da época também recebia o nome que hoje nos parece gratuitamente
propagandístico de ‘fordmóvel’, cuja posse impressionava e elevava por motivos óbvios
o status de qualquer mortal, talvez pelo fato de ser uma aquisição possível somente a
muito poucos, ao menos nos chamados países de capitalismo periférico .

Certamente a máquina de costura fazia sucesso entre as mulheres como um todo,


e da classe trabalhadora em particular, pois poderia oferecer a domicílio – e
possivelmente por isso fosse considerada um bem tão respeitável – a possibilidade de
ganhos pecuniários, contribuindo assim para uma elevação certamente substancial da
renda de uma família operária. Aliás, na sua simplicidade aparente, até o humilde
fósforo comparecia como uma estratégica contribuição para a aceleração do tempo
histórico que era então experimentada por aquela sociedade, pois seu emprego incorria
11

em ganho real de tempo e visava uma utilização massiva, tanto doméstica quanto
comercial, tornada possível face ao seu preço relativamente muito baixo. Por tudo isso,
tais novidades apareciam nos reclames dos jornais como invenções doravante
apreciadas como indispensáveis à vida moderna e por isso, associadas ao mundo
civilizado.

Assim também passaram a ser vistas como portadoras de um verniz civilizatório


e consideradas enquanto emblemas do desenvolvimento as largas avenidas e os arranha-
céus, as vias férreas e suas locomotivas, os navios a vapor equipados com imensas
câmaras refrigeradoras, as agências de correios agora dotadas com seus indispensáveis
telégrafos, feições várias das exigências de expansão do capital em sua fase
monopolista. Havia também a tendência urbanística de projetar nas cidades alguns
parques standartizados para a convivência de seus cidadãos e largos boulevares, com
seus passeios públicos que a certas horas recebiam o flaneur, bondes elétricos que
permitiriam uma maior mobilidade urbana mas também o afastamento dos animais de
tração e seus dejetos indesejáveis, esplêndidos teatros e grandes bibliotecas públicas.
Tudo isso é claro, organizado pela imposição de hábitos e costumes ‘civilizados’,
regulados pela adoção de um código de posturas que hoje talvez nos pareça curioso e
bastante rígido.

E no interior dos lares – valeria dizer lares da burguesia – algumas das


maravilhas domésticas, como o fogão a gaz, o telefone, a lâmpada elétrica e as
promessas dos laboratórios envasadas nos frascos de elixires, tônicos e fortificantes.
Essas seriam algumas das faces reconhecíveis da civilização, ou em termos talvez mais
adequados, da fruição da modernidade.

Ora, sem dúvida que esses aspectos importavam àquela sociedade, pois as
encontramos pontuadas em numerosas publicações e imagens da época. Mas a idéia de
civilização também gravitava pelo respeito às leis e costumes consagrados na chamada
‘boa sociedade’, o que por sua vez conduzia ao caminho da tradição e portanto aos
princípios de constância e de perenidade das normas sociais. Por sua vez guardava-se
face a tudo isso um certo tom reverencial com o qual certas instituições dos chamados
países centrais eram mencionadas. Aí reside certo interesse desse trabalho, o que nos
obriga a um recorte de testemunhos deixados pelo passado que iremos adentrar. Assim,
nos interessará aqui principalmente os registros que nos chegaram pela lavra de uma
12

camada intelectual que via-de-regra integrava a chamada minorité agissante, expressão


empregada conforme sabemos para designar o conjunto de pioneiros e militantes da
idéia nacional que participaram de campanhas sob a finalidade de plasmar a idéia de
nação, movimentos esses que possuíram óbvias finalidades políticas, pois das suas
atividades dependia a integração da massa da população ao sistema da ordem. Nação e
civilização seriam então noções imbricadas, principalmente a partir do evento axial da
modernidade, cujo epicentro costuma ser localizado na Revolução Francesa.

O conceito de nação passou a ser associado de forma cada vez mais progressiva
à uma comunidade de pessoas unidas por vínculos profundos sintetizados na idéia de
pertencimento, entre as quais a língua, as tradições e as memórias coletivas sobressaem,
mas também pelo apego à terra natal, solo ao qual estavam vinculadas as estruturas
temporais do passado e do presente, articulando um campo de experiência constituído
por laços afetivos – a terra dos antepassados – mas que representava também em cada
presente, a garantia – por força do labor em meio a atmosfera fluída das lides diárias –
das condições de subsistência dos descendentes. Dessa forma, ao final do século
dezenove a nacionalidade é condição sine qua non para qualquer indivíduo e articulado
a essa, o pertencimento a uma classe social e a uma origem racial.

No caso do Brasil, eventos como a emancipação dos escravos e a instauração do


regime republicano fariam com que fosse repensada necessariamente a idéia de nação, e
redefinida a sua integração ao universo da civilização ocidental. Da mesma forma a
nação republicana não poderia mais entender seu território como uma espécie de doação
da Coroa portuguesa, uma idéia que preservaria a continuidade com a dinastia de
Bragança, o regime decaído em 15 de novembro de 1889. Afinal, conforme vinham
apontando as pesquisas históricas, o solo pátrio tornado território graças ao trabalho das
sucessivas gerações ao longo de quatrocentos anos fora conquistado à natureza e aos
seus primitivos habitantes, reconquistado em lutas contra ‘invasores estrangeiros’,
devassado e ampliado por avançadas de bravos sertanistas.

Ora, podemos perceber por esse discurso que o caminho para integrar o
almejado universo das nações em marcha no concerto das civilizações não poderia
prescindir do concurso dos historiadores. Porém o discurso ‘científico’ de uma história
construída ao longo do século XIX mantinha certas exigências de realismo e de
verossimilhança, reservando contudo ao historiador uma espécie de ‘palavra final’,
13

assumida em grande parte por conformidade ao contexto no qual a História era


produzida. Conforme veremos, essa liberdade de tecer interpretações utilizando de
figuras de pensamento e de discurso denominadas tropos, incluindo aspectos da
composição como enredo e argumentação, possuem necessariamente implicações
ideológicas. Para dar sentido ao seu ‘relatório de pesquisa’ o historiador passava então
a movimentar imagens no passado, exercitando um componente do seu métier
conhecido por imaginação histórica. Essa era uma das tarefas primordiais a ser realizada
pelos historiadores brasileiros durante a primeira república, conforme tentaremos
demonstrar. Atividade que conforme veremos, era atravessada pela angústia, pois ao se
olhar para o ‘rosto’ da nação não se via a correspondente especular daquilo que se
entendia por civilização. Estavam os intelectuais brasileiros bastante dependentes e
aprisionados pelos paradigmas construídos na Europa, os quais vinculavam as etnias à
uma escala que compreendia degraus evolutivos para as sociedades humanas. Da
selvageria, espécie de ‘infância’ da civilização a classificação evolutiva das sociedades
humanas passava à barbárie e daí ao seleto universo das nações civilizadas. Com a
totalidade da sua população legalmente livre e a priori, apta a constituir uma sociedade
de classes emergente, do regime republicano tão sonhado pelos positivistas, e da nova
bandeira, sob o dístico da ordem e do progresso, a impressão é que o progresso, ao que
parecia, não nos chegava.

A ordem até marcara certa aparente presença, mas após uma década de
incertezas institucionais, revoltas militares e crises econômicas. A estabilização do
regime republicano fora firmada graças a um pacto de dominação baseado em uma
estrutura de cunho oligárquico, onde os estados da federação desempenhavam papéis
em conformidade com a sua produção econômica e contingente populacional. A
estrutura institucional republicana fora legalmente implantada em 1891 e modificara a
traços visíveis o formato vigente à época do Império. Contrastando com a antiga
centralização monárquica, a República oferecia em seu ordenamento jurídico uma
radical descentralização. Podiam agora os Estados subvencionar a imigração
estrangeira, contrair empréstimos internacionais, fazer a garantia de juros para a
construção das estradas de ferro e constituir forças militares próprias, as chamadas
forças públicas, que em alguns casos se assemelhavam a verdadeiros exércitos, com
armamentos pesados, artilharia, aviação e até – como foi o caso de São Paulo –
instrução proveniente de uma missão militar francesa. As antigas Províncias do Império
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passavam assim à condição de Estados de uma República Federativa, desfrutando a


partir de então de uma existência como autênticas unidades político administrativas na
vida nacional.

No caso que vai nos interessar mais de perto encontramos Minas Gerais e São
Paulo no famoso arranjo político da Primeira República, conhecido como o ‘café com
leite’. Apresentava Minas Gerais um modesto índice de crescimento econômico. Era
porém o Estado mais populoso da Federação, e tinha portanto o maior eleitorado, o que
consequentemente lhe dava a maior bancada no Congresso Nacional. Trava-se de uma
política oligárquica, unipartidária e organizada sob o Partido Republicano Mineiro
(PRM), que contava nos seus quadros com elites das velhas regiões mineradoras e das
novas regiões agrícolas, ou seja, as regiões do café e eram essas que detinham o
predomínio, pois controlavam a máquina estadual. Contava-se no seio dessa elite com
grupos identificados como o ‘silvianismo’, a ‘mata’ e o ‘grupo do Tarasca’ o qual
compunha a comissão executiva do PRM. Ao setor das elites das regiões de formação
urbana, ou seja, as antigas áreas mineradoras, restava a atuação no plano federal. A
esses representantes das velhas regiões mineradoras passava a caber então o Congresso
Nacional ou os ministérios, apartados que estavam do cenário político estadual, pois era
nos Estados, de acordo com o ‘modelo Campos Salles’ que a ‘verdadeira república’
acontecia, ou seja, onde as grandes decisões eram tomadas.

Por sua vez São Paulo havia se tornado o centro dinâmico da economia
brasileira, contando com a maioria dos ramais do sistema ferroviário e uma tão
constante quanto numerosa leva de imigrantes estrangeiros a procurar entrada pelo porto
de Santos, impulsionando a oferta de mão-de-obra que se poderia projetar sob cálculos
otimistas, seria mantida ainda por muitos anos. A política partidária paulista era mantida
sob o controle do Partido Republicano Paulista (PRP), partido único integrado pelas
classes dominantes e que permaneceu hegemônico durante toda a Primeira República,
mesmo após o ano de 1926, quando surgiu o Partido Democrático (PD).

Sob a ótica dos homens do PRP a política poderia ser traduzida sob uma fórmula
de troca de favores e cargos, sob os auspícios da corrupção, da violência e da fraude
eleitoral. A elite paulista na Primeira República era composta por uns poucos membros
das chamadas famílias quatrocentonas aos quais se somavam uma outra parcela chegada
em data relativamente recente – como a primeira metade do século XIX – o que
15

ressaltava aquilo que um historiador brasilianista chamou por ‘caráter nóvel dos donos
do poder’. Apesar disso, os imigrantes mais recentes e mesmo seus descendentes
levaram algum tempo para serem absorvidos pela elite governante. O recrutamento
político ocorria em um círculo bastante restrito e a homogeneidade do grupo era dada
pelo denominador comum do diploma universitário, uma espécie de condição sine qua
non para ingresso no restrito universo oligárquico. Para exemplificar, esse documento
comprobatório do curso superior adornava as paredes de cerca de 92% dessa elite.

Colocadas essas palavras iniciais, cabe esclarecer que iniciamos nosso estudo
procurando o entendimento de alguns conceitos que entendemos de capital importância
para pensarmos a produção do discurso histórico nos anos iniciais do século XX. Dessa
forma elegemos, não de forma aleatória ou totalmente arbitrária, três conceitos, a saber:
nação, território e civilização. O conceito de nação aparecia com uma potencial carga de
redefinição face à incorporação ao universo dos cidadãos livres, dos negros que antes
estavam submetidos à servidão. Entendia-se que o ingresso no seleto universo dos
povos civilizados dependia de certos pressupostos de enquadramento do país em
patamares aproximados das nações européias, e esperava-se com certa dose de
ansiedade que as levas de imigrantes brancos, a anunciada projeção de decréscimo da
população negra e o desaparecimento final dos indígenas conduzisse a um futuro
branqueamento da população. Essa não era afinal nenhuma novidade, pois desde
Francisco Adolfo de Varnhagen a civilização européia aparecia como superior por
trazer consigo a lei, a ordem, a religião e a autoridade, elementos então considerados
básicos para que se constituísse uma nação.

Se o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro representava em termos


institucionais o ambiente mais categorizado para as lides de Clio, é a partir de um dos
seus consócios que passamos a nos situar nesse verdadeiro cipoal que era a produção
das letras históricas no Brasil aos primeiros anos do século XX. Trata-se de João
Capistrano de Abreu, o destacado historiador que entre as décadas finais do século XIX
e as duas primeiras do século XX, manteve uma indisputada primazia no universo dos
seus pares. Diziam à boca pequena que Capistrano tinha uma aparência sui generis pois
costumava se apresentar em aspecto seboso e com roupas amassadas. Conservara no
entanto o hábito de ler na rede – o que fazia também com textos em alemão – mas o que
nos importa é que aprendera o bastante para ler autores como Leopold von Ranke, bem
como outros renomados mestres da historiografia.
16

Capistrano imigrara do Ceará para ‘provar sorte’ no Rio de Janeiro. Diz-se que
costumava dedicar-se à leitura por longos períodos – alguns falam em seis horas no
salão da Biblioteca Nacional – e isso durante as férias! Sua curiosidade intelectual o
fazia estudar desmesuradamente, o que de maneira indubitável muito o ajudou. Era
então Capistrano um historiador de ofício, mas sem uma formação bancária e
sistemática, em suma, sem diploma universitário, o que na sua época não o impediu de
conquistar cargos cobiçados e sobressair-se em seus trabalhos acadêmicos. Capistrano
estudava os documentos de maneira rigorosa, em suas minúcias, o que juntamente com
a sua erudição, aliada à capacidade que tinha em condensar e sistematizar, acabou por
levá-lo a caminhos ainda não desbravados. Fazia isso com uma coerência extraordinária
impondo-se contra idéias há tanto difundidas, para refutá-las e apontar novas hipóteses
que passaram a dar corpo às representações sobre o Brasil. O método de trabalho por ele
adotado possibilitou com que contribuísse para renovar em termos temáticos os estudos
historiográficos e ficasse estabelecido definitivamente o método rankeano no Brasil. Ao
tratar de aspectos referentes à teoria e metodologia, conviria esclarecer que as
referências que utilizamos em nosso frontispício, continuadas em nossas primeiras
linhas, não foram gratuitas, e talvez sirvam para colocar algumas questões caras a esse
estudo. Uma obra clássica como a Odisséia, assim como outras de sua estirpe, são
referenciais lapidares e relevantes para a cultura Ocidental, e ocupam por isso um papel
paradigmático na tradição da narrativa histórica.

Esse estudo é em parte tributário tanto de uma história intelectual sensível à


temporalidade e às contingências da vida política, como no modelo de História dos
conceitos proposto por Reinhart Koselleck, quanto de uma história que também
intelectual, apresenta-se como possuidora de uma vertente literária, conforme definida a
partir das contribuições do historiador Hayden White.

Assim para a primeira das nossas vertentes teóricas podemos dizer que a
História intelectual de Koselleck tem por objetivo central examinar o processo de
constituição do tempo histórico, entendendo-o como um produto da modernidade
ocidental. Sob tais pressupostos Koselleck então defendeu a tese na qual o tempo
histórico é engendrado em um processo de determinação que distinguido entre passado
e futuro se utiliza de uma terminologia de viés antropológico que toma por base os
conceitos meta-históricos de campo de experiência e horizonte de expectativa.
17

Koselleck parte do axioma da irrepetibilidade da História, onde cada evento se


apresenta como único e singular. O tempo como construção humana e a sensação da sua
passagem em ritmo de aceleração ou desaceleração ressignificam o sentido dado
coletivamente às estruturas temporais do passado e do futuro, tornando nulo o que seria
na visão da antiga historia magistra vitae o potencial prognóstico da História. Para
Koselleck uma característica específica da Modernidade é a sua contínua comparação
com períodos anteriores, dos quais emergem testemunhos linguísticos. Esses
testemunhos nos oferecem os conceitos históricos. O tempo histórico engendrado pela
diferença entre a experiência e a expectativa se forma na tensão entre atores históricos
em meio a uma espécie de guerra civil semântica onde ficam cunhadas alternativas de
significados para os conceitos. Esses são conhecidos como conceitos contrários
assimétricos, os quais se excluem mutuamente e passam a constituir campos de
significação. Assim, nessa semântica dos tempos históricos formulada por Koselleck, o
conflito se instaura sincronicamente na tensão do vivido humano para ser recepcionado
na cadeia do tempo, pois a sincronia encontra-se contida na diacronia, ou seja, no
processo histórico, mediante a narrativa histórica tornada tempo humano.

Por seu turno, trata Hayden White do modus operandi pelo qual entende o
discurso histórico. Nesse sentido ele propõe que a escrita histórica seja analisada como
um tipo de discurso em prosa, antes que possam ser testadas as suas pretensões à
objetividade e à veracidade, o que significa submeter qualquer discurso histórico a uma
análise retórica, de molde a revelar a subestrutura poética do que pretende passar por
uma modesta representação em prosa da realidade. A proposta desvelada por esse autor
é tributária da teoria das ficções de Northrop Frie, e pretende resgatar para o
entendimento contemporâneo o discurso dos historiadores do século XIX, mediante a
identificação nos textos históricos da “estrutura profunda” neles contida, expressão
utilizada por H. White para designar os tópicos teóricos que segundo ele defende em sua
magistral Meta-História, servem como espécies de arcanos da composição
historiográfica.

Conforme defende White, os historiadores do século dezenove tinham outras


mensagens por detrás das suas narrativas. Dessa forma, o passado histórico que teriam
comunicado por intermédio de suas obras teria sido um meio, mas não a mensagem
principal daqueles trabalhos. Outro aspecto que consideramos relevante pontuar em
relação ao nosso estudo e que marca também de forma indelével a proposta whiteana
18

para a historiografia, seria o referente metodológico concernente ao status quo vigente,


aspecto que abre a composição do texto histórico à ideologia, o qual foi formulado com
maior precisão no ensaio intitulado por Hayden White como ‘O Conteúdo da Forma’.
Questões dessa natureza começam a ser discutidas com maior aprofundamento a partir
do nosso primeiro capítulo, mas naturalmente irão perpassar com diferentes graus de
incidência, todo o nosso trabalho.

Em nosso segundo capítulo nos dedicamos a iluminar algumas criações que


deveriam permitir a redução do descompasso entre o Brasil e os países hegemônicos
ocidentais. As ações para a concretização desse ideal palparam-se por um discurso
coerente e logicamente formulado que foi articulado a medidas racionalmente
conduzidas sob os interesses de algumas oligarquias estatais. Afinal o caminho para a
civilização não se tratava de uma intempestiva busca incerta pelo pote de ouro ao final
do arco-íris. A mestiçagem, a inclemência de um clima predominantemente tropical, o
relaxamento dos costumes e até a feição africanizada de algumas cidades brasileiras
incomodavam aqueles que se propunham a pensar a construção da nacionalidade. A
civilização associada a uma idéia de progresso vinha articulada a imagens que podiam
evocar tanto a locomotiva – a ‘marcha da civilização’, quanto uma orquestra – ‘o
concerto das civilizações’. Participar da marcha e do concerto exigiam ritmos próprios,
ou seja, uma adequação a ritmos externos e a aceitação de certas regras mantidas nesse
jogo, sem as quais qualquer pretensa vantagem da riqueza natural ou da extensão
territorial tornava-se mera promessa de potência.

Crescia assim em importância o conhecimento do passado, como uma espécie de


âncora firme ou ponto de partida onde a travessia para as aspirações do futuro pudesse
se realizar em compromisso com as tradições do pretérito, sendo porém de fundamental
importância agir com coerência para encontrar as verdadeiras raízes da nacionalidade.
Daí a importância assumida pelos historiadores, lata classificação que adotamos em
nosso estudo para aqueles que vinham se dedicando às chamadas letras históricas.
Desenvolviam esses homens atividades diversas, como a crítica literária, o jornalismo, a
advocacia, a engenharia, a docência e o serviço público. Seu ambiente de produção
literária eram os Institutos Históricos, fosse o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, fossem os Institutos Históricos e Geográficos Estaduais. As revistas
publicadas por esses sodalícios mantiveram via-de-regra uma impressionante
periodicidade. Essas associações oficiosas, porém recebedoras de subvenções oficiais,
19

eram ainda apoiadas em termos logísticos, nos casos de São Paulo e de Minas Gerais,
por instituições estatais tais como o Museu Paulista ou o Arquivo Público Mineiro, com
as quais mantinham íntimo contato.

Alguns dos homens que encontraremos labutando nas letras históricas são
bastante conhecidos, tais como Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Capistrano de
Abreu, Manuel de Oliveira Lima, Francisco Adolfo de Varnhagen, Diogo de
Vasconcellos, Manuel Bonfim, Francisco José de Oliveira Vianna, Alberto Torres,
Edgard Roquette-Pinto e talvez, Afonso d’Escragnolle Taunay e Joaquim Norberto de
Souza e Silva. Outros, hoje um pouco ainda encobertos pelas brumas do tempo têm sido
revisitados tais os casos de Lúcio José dos Santos, João Baptista de Lacerda, Max
Fleiuss, Alberto Rangel, Rodrigo Octávio Langaard de Menezes, Pedro Lessa,
Theodoro Sampaio, Toledo Piza e Basílio de Magalhães. Mas há personagens ainda, tais
como Gentil de Assis Cardoso, Aurélio Pires, Victor Vianna, Elísio de Carvalho,
Antonio Teixeira Duarte e Annibal Velloso Rebello que tivemos que resgatar da quase
total escuridão, pois se tornaram praticamente desconhecidos com o passar do tempo.
Contudo, em momentos diversos, eles assumiram o papel de desenvolver as ideologias
de construção da nacionalidade, entendida essa expressão não como uma ‘falsa
consciência’, mas sim em sentido Geertziano , ou seja, como um sistema simbólico no
qual os homens passam a tomar consciência dos seus conflitos e do seu lugar na
sociedade.

No entanto, revisitar o passado com vistas a conhecer melhor a formação da


nacionalidade brasileira obrigava à contemplação de um monumento da historiografia
brasileira, bem como os meandros na qual essa foi produzida. Essa é a tarefa proposta
em nosso terceiro capítulo. As relações do IHGB com os pressupostos mantidos pela
elite saquarema passam então a ser estudados. É o momento no qual o concurso vencido
pelo naturalista Von Martius estabelece as diretrizes para a escrita da história do Brasil.

Dessa feita, a obra histórica produzida por Francisco Adolfo de Varnhagen,


tributária dos princípios norteadores de Martius ocupa um papel de destaque nessas
reflexões. Na sua magistral História Geral do Brasil o grande tema apresenta-se
centrado na obra da colonização portuguesa dos trópicos americanos. Nela, Varnhagen,
que futuramente seria tornado Visconde de Porto Seguro pelo imperador D. Pedro II,
20

seu amigo e protetor, defendeu o colonialismo e utilizou do conservadorismo para


marcar a sua interpretação do passado.

De uma acolhida inicialmente fria nos recintos do IHGB a História Geral do


Brasil seria popularizada através das lições preparadas por Joaquim Manuel de Macedo,
professor do Colégio Pedro II. As lições de Macedo para os alunos daquele modelar
Colégio do Império receberam também da lavra do autor uma versão muito semelhante
destinadas aos alunos das demais escolas brasileiras. Dessa forma, apesar da afirmação
certeira de Capistrano de Abreu – de que Varnhagen seria pouco lido – suas idéias sobre
a História do Brasil, apropriadas por Joaquim Manuel de Macedo iriam formar a
consciência histórica dos estudantes brasileiros entre os anos de 1861, data da primeira
edição desses livros, até pelo menos o ano de 1922, que marca a última edição a que
temos notícia.

No quarto capítulo João Capistrano de Abreu surge novamente para encarnar o


historiador que à época foi capaz de desbravar novos temas, incursionar com sucesso e
rara habilidade por áreas de estudo que exigiam uma elevada especialização, resgatar
para a historiografia obras de fundamental importância, identificando seus autores e
fazendo correções e anotações somente possíveis a um grande erudito. Incansável, mas
acima de tudo, magnânimo com aqueles que orientava, pois desapegado de toda e
qualquer vaidade, Mestre Capistrano além de apontar os caminhos, ainda insistia para
que fossem seguidas as suas sugestões de pesquisa, revelando alegria sincera com os
progressos daqueles que o acompanhavam em suas investidas através dos tempos
pretéritos.

Capistrano de Abreu ocupa então em nosso estudo o papel de elo de ligação


entre uma história ainda marcadamente oitocentista e sumamente factual desenvolvida
nos Institutos Históricos – em boa medida o modelo de História que trataremos em
nosso estudo – e o pensamento histórico brasileiro contemporâneo, inaugurado
conforme as análises históricas produzidas por homens como Gilberto Freyre, Caio
Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda, já na década de 1930. Nesse capítulo
Capistrano recebe a companhia do crítico literário Sílvio Romero, que assim como ele
era professor do Colégio Pedro II e entusiasta dos escritos de Henry Thomas Buckle. Ao
longo do capítulo no entanto, veremos as diferenças entre esses ilustres historiadores
serem cada vez mais aprofundadas. É que Capistrano teria conseguido superar a fase
21

cientificista para cumprir o papel de fundamental importância que foi afirmar no meio
acadêmico brasileiro os aspectos basilares daquilo que se costuma considerar em seus
requisitos ‘mínimos’, uma moderna concepção de história: realista, factual e narrativa,
roteiro percorrido pelo historiador para acessar de forma mais objetiva a realidade.

É justamente as reflexões desenvolvidas acerca do território por Capistrano de


Abreu, sobretudo em suas obras Caminhos antigos e povoamento do Brasil e Capítulos
de História Colonial que foram tomadas como ponto de partida para se entender o
sertão e os caminhos como processo de incorporação e dilatação de novas terras às
antigas possessões portuguesas na América, em suma, para se pensar a grande aventura
que foi a luta pela vida no Brasil colonial. A partir dessas reflexões, começaram a ser
redefinidos os conceitos de nação, pela reavaliação do valor da mestiçagem ocorrida ao
longo do processo de colonização. Através da lavra de Capistrano foi possível então, ver
o surgimento do mestiço em plena rudeza do sertão e a criação de uma nova identidade,
o brasileiro, uma raça que poderia ser caracterizada não em termos biológicos, mas
sociológicos, lastreada em um singular processo histórico. Assim, Capistrano teria dado
os primeiros passos para substituir pouco a pouco no discurso histórico, a raça pela
cultura.

Os homens de letras observavam há muito tempo a Europa como modelo. Era do


Velho Continente que recebiam os resultados de novos avanços da ciência, e era para a
Europa que sob os mais variados pretextos partiam suspirando pelos ares da civilização.
O nosso quinto capítulo procura adentrar ao Brasil dos anos iniciais do século XX e
retratar uma época na qual se acreditava na missão civilizadora que alguns países
europeus teriam, na sua alegada condição de vanguarda do Ocidente. Dessa forma, face
ao discurso hegemônico, era comum que intelectuais de países periféricos como o Brasil
incorporassem o discurso dos países centrais, onde o conteúdo em sua crueza, pregava a
violência e a exploração além de justificar com pseudos argumentos liberais e uma
firme disposição em aceitar os princípios do darwinismo social, uma injusta distribuição
das riquezas bem como o falseamento pelo racismo, dos alicerces da nascente
antropologia, com vistas a preparar um ambiente propício ao etnocentrismo e com isso
o desrespeito aos valores das diferentes culturas.

Sem tentarmos estabelecer uma data muito precisa, podemos dizer que de certa
forma as mudanças passaram a vir com uma velocidade maior a partir do último quartel
22

do século XIX e foram impactando as áreas que naquele momento não guardavam
compartimento estanques, como o campo político e o intelectual. Os Institutos
Históricos na sua qualidade de receptáculos dos homens de ciência, firmes na sua
vocação oficialista e mantidos como lócus do conhecimento histórico embeberaram-se
em tais teorias. Avaliava-se as dificuldades olhando para o rosto do contingente
populacional e esbarrava-se no problema da constituição étnica, de uma mestiçagem que
parecia obstruir o acesso do Brasil ao banquete das nações evoluídas. Estaria assim
fechado ao país, o futuro. Daí, o problema da raça, e das teorias raciais, com as quais
muniram-se homens como Nina Rodrigues, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, João
Baptista de Lacerda, e, naturalmente, Oliveira Vianna.

A contribuição que o quase sempre espirituoso Monteiro Lobato nos oferece


através de um dos seus famosos personagens vem a calhar. Trata-se do Jeca Tatu. A
imagem do Jeca, sempre sentado em seu cocho, à beira do seu casebre tornou-se
familiar quase que de forma automática. Em meio a tanta natureza o Jeca apenas vegeta.
Suas galinhas não botam ovos e seus porcos não engordam. O Jeca não se dá ao
trabalho de prover-lhes o alimento, pois isso ‘não paga a pena’. Assim como não tenta
combater as formigas que lhe comem o pouco que consegue plantar, pois também ‘não
paga a pena’. Pitando tristemente um cachimbo, chapéu de palha de bordas desfiadas à
cabeça, pés descalços e roupa remendada, o Jeca Tatu espalhou-se a partir de 1914, pelo
imaginário da população das cidades brasileiras.

O Jeca serviu como uma imagem serena, embora preocupante que parecia
acender para a memória os episódios que grassavam pelos sertões, e que já se haviam
revelado aos brasileiros em Canudos, no Contestado, e até na Capital Federal, como no
bairro da Saúde, em revolta contra a vacina obrigatória. O Jeca na verdade era um
pequeno sitiante de um lugarejo como tantos outros, ao qual somente imaginamos
vagamente a localização em vista da vaga geografia lobatiana.Talvez nosso personagem
fosse encontrado mais facilmente no Vale do Paraíba, com suas antigas e decadentes
cidades que vegetaram a partir da passagem do café, em direção ao noroeste paulista.
Possivelmente fosse um caboclo e não tivesse uma gota sequer de sangue negro. Assim,
havia quase uma unanimidade em torno da idéia de que o sertão, conforme indicava
certo escritor, começava aonde terminava a Avenida Central, ou seja, em plena Capital
da República.
23

Porém pensar o Brasil nos anos iniciais do século XX e reavaliar as suas reais
possibilidades de acesso à modernidade podia também significar encontrar um caminho
no qual as condições materiais de subsistência pudessem ser trazidas à baila no papel de
deslegitimar, ou ao menos, reduzir as injunções desanimadoras que a antropogeografia
lançava sobre um país mestiço. Essa parece ter sido a tarefa à qual se devotaram em
vários de seus trabalhos, homens como Manuel Bonfim, Alberto Torres e Edgard
Roquette-Pinto.

Em nosso sexto capítulo retomamos o caminho do Instituto Histórico e


Geográfico Brasileiro para encontrar esse sodalício sob o signo de alterações decisivas.
Sem renegar seu passado de íntima ligação com o ‘Imperador Filósofo’, o IHGB
aproximara-se da cúpula republicana e passava a promover no território de Clio algo
semelhante ao que já ocorrera no campo da política entre monarquistas e republicanos.
Conforme veremos foi algo não muito fácil de ser conciliado e se o pomo da discórdia
mais esperado era conforme poderíamos supor, a fase monárquica, as diferenças de
opinião atingiam as profundezas dos primeiros registros históricos da Colônia, para
radicalizar-se nas tentativas de cerceamento às ações dos bandeirantes pela Coroa
portuguesa e no cadafalso ao qual a dinastia de Bragança levara aquele que já era então
considerado o proto-mártir da Independência, o Alferes Tiradentes, elevado ao supremo
posto de maior herói republicano.

Mudanças ocorridas no interior do IHGB, tais como a alteração dos estatutos


criando o cargo de Diretor da Revista já pareciam demonstrar a sede de renovação que
corria no ambiente do grêmio. Assim, secundado por seus congêneres estaduais, o
IHGB promovia em 1914 o Primeiro Congresso de História Nacional. Se a palavra de
ordem era a inovação, nada poderia parecer mais inusitado do que utilizar a grosso
modo a obra História Geral do Brasil como uma espécie de base para a escolha dos
temas a serem tratados. Varnhagen vinha passando por uma reabilitação no interior
daquela “Casa da Memória”, e os grandes artífices desse trabalho foram Capistrano de
Abreu e Manuel de Oliveira Lima.

Em meio a apresentação das teses desse Congresso de História Nacional seriam


revisitados temas que ao final acenavam para o abandono progressivo de uma forma de
História que passaria a ser conhecida enquanto modalidade historiográfica como a
‘velha história política’ de forte acento sobre o papel do Estado. A geração
24

historiográfica à qual pertencia Capistrano de Abreu, ou por esse inspirada, voltava-se


agora para novos temas onde os historiadores estariam mais dispostos a reconhecer o
protagonismo do povo na sua diversidade.

Nosso último capítulo pretende oferecer uma espécie de versão historiográfica


para a chamada política do ‘café com leite’ que fora tornada exequível no modelo
político de Campos Salles. Tal arranjo político, conforme sabemos visava servir aos
Estados de primeira grandeza, sendo que São Paulo e Minas Gerais ocupavam o que
seria o eixo das composições políticas. Na lúcida avaliação de um ilustre cientista
político mineiro, o peso político representado por esse pacto de dominação revelou-se
tão grande que somente quando as oligarquias de São Paulo e de Minas Gerais
marcharam separadas no plano federal é que ocorreu uma efetiva disputa pela
presidência da República.

A imagem propagada à época remetia a São Paulo como o Estado que puxava
rampa acima os dezenove vagões irmãos. O papel da locomotiva do progresso,
alimentado pelos paulistas, logo combinaria muito bem com o mito do bandeirante,
então em franca construção. A este teria restado a difícil tarefa de desbravar o território,
na ausência do Estado, mas perseguindo interesses que não eram dissociados da coroa
portuguesa, o que fazia dos paulistas súditos leais ao Rei de Portugal, afastando a
imagem de rochela que lhes fora imputada pela crônica colonial e homologada por
historiadores como Varnhagen. Assim, foram realizados investimentos no Museu
Paulista e procurou-se transferir – o que acabou ocorrendo com relativo sucesso – parte
das comemorações do Centenário da Independência para São Paulo.

Se São Paulo era a terra do empreendedor, o antigo berço dos bandeirantes,


Minas Gerais seria o lugar da sobriedade e da discrição. Apresentados como austeros, os
mineiros representavam a região que teria sido o nascedouro da liberdade, pois Minas
Gerais ao longo da História acumulara diversas insurgências contra o fiscalismo
português. A História do Brasil combinava-se com o movimento da Inconfidência, e era
possível mesmo dizer que nas montanhas de Minas, berço do Tiradentes, encontrava-se
a gênese da nação.

Imagens dessa natureza foram propagadas tanto nas sessões do Primeiro


Congresso Internacional de História da América, evento promovido pelo IHGB e
incluso como parte das comemorações do Centenário da Independência do Brasil,
25

quanto no interior dos Institutos Históricos e Geográficos de São Paulo e de Minas


Gerais como forma de legitimação daquele condomínio oligárquico que se pretendia
fosse baseado em fundas raízes históricas e portanto decisivo na construção da nação.

Assim, ficamos convidados a percorrer um interessante e ainda pouco explorado


momento da cultura historiográfica brasileira no qual as lides de Clio passavam por
marcantes redefinições. Trata-se ao mesmo tempo de tentar entender as escolhas
formuladas pelos historiadores daquele período, os quais estavam imersos em uma
cultura política que via-de-regra possuía um viés marcadamente conservador. Esses
historiadores são portanto os nossos interlocutores privilegiados, com os quais nos
esforçamos para manter um diálogo profícuo de modo a conduzir de maneira empática,
porém amparados por uma crítica que nos adiantamos, cuidamos durante todo o
trabalho, para que fosse respeitosa.

Convém esclarecer um pouco acerca do nosso corpus documental. O conjunto


de documentos com os quais formalizei a minha intenção de desenvolver esse tema
começou a se formar cerca de três anos antes da minha admissão ao doutorado do
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. Da
data da minha admissão se passaram então quase cinco anos e o antigo corpus
documental transformou-se em uma massa ciclópica com a qual eu não poderia
conviver por muito tempo mais, tal tem sido meu grau de envolvimento. Nessas
condições, somente a rica qualidade desse material tornou possível o trabalho
intermitente e algo prazenteiro nesse já longo período. Nossa fontes primárias são
basicamente alguns lapidares textos de História, os quais encontrados em extensos
volumes ou ensaios mais curtos, consideramos extremamente representativos para a
compreensão da forma pela qual se escrevia a História durante a Primeira República. A
esses somam-se estatutos, atas e demais publicações na sua maioria de revistas dos
Institutos Históricos, mas também de jornais temáticos e medidas legais assumidas pela
administração pública, que foram quase que na maioria, levados à prensa. O ano de
publicação desses escritos é importante para os nossos argumentos e procurei na medida
do possível, manter cuidado quanto a esse aparentemente pequeno, porém fundamental
detalhe.
26

1 – O Território de Clio

“Consiste a minha primordial ambição em vos dar exemplos e


Conselhos que vos façam úteis à vossa família, à vossa nação e
àvossa espécie, tornando-os fortes, bons e felizes. Se de meus
ensinamentos colherdes algum fruto, descansarei satisfeito de
haver cumprido a minha missão. Entre esses ensinamentos, avulta
o patriotismo. Quero que consagreis sempre ilimitado amor à região
onde nascestes, servindo-a com dedicação absoluta, destinando-lhe
o melhor da vossa inteligência, os primores do vosso sentimento, o
mais fecundo da vossa atividade, - dispostos a quaisquer sacrifícios
por ela, inclusive a vida.” Afonso Celso. Porque me ufano do meu País.
(1ª edição, 1900)

A aceleração da história, tema tão caro ao historiador Reinhart Koselleck, além


de ser provavelmente uma das suas mais notáveis contribuições à teoria da história, nos
parece um bom ponto de partida para iniciar a nossa ‘aventura epistemológica’, por
permitir relacionar temáticas que ocuparam generoso espaço nas décadas iniciais do
século XX brasileiro.
Essa percepção do ritmo de aceleração do tempo esteve presente nas agendas
dos primeiros governos republicanos, transitou pelas instituições culturais e científicas e
aportou junto a um público, que relativamente bem informado pela leitura de livros e
jornais, teria boas razões para manter, na qualidade de integrante do seu ‘horizonte de
expectativas’, aquilo que poderiam jurar, serem fundamentadas razões para a articulação
de difusos sentimentos como a euforia, o medo, e a incerteza, mas também da
esperança.
A euforia seria àquela época uma expressão dos eflúvios recebidos da belle
époque. Afinal, afirmavam-se os avanços da ciência, que cada vez parecia mais
fortemente alicerçada em institutos de pesquisa e universidades, pelo menos nos grandes
centros mundiais. As grandes exposições internacionais, que podiam ser vistas como
uma forma de exibicionismo burguês, mas também – em perspectiva otimista, e um
tanto ingênua, como uma demonstração que dali em diante as disputas entre os Estados-
Nação não se resolveriam mais mediante conflitos bélicos – faziam crer no avanço
contínuo e ilimitado da tecnologia voltado ao bem estar dos homens. E consoante a
isso, poder-se-ia almejar que algum dia, ao menos três daqueles quatro “cavaleiros do
27

apocalipse” – milenares flagelos da humanidade – como a guerras, a fome e as pestes –


poderiam ser então finalmente erradicados.
O medo também marcava a sua presença no imaginário social brasileiro, pois os
anos finais do século XIX contemplaram o Brasil com mudanças significativas, que
incluíam um novo regime de governo, bem como a implementação das mudanças que
envolviam tanto a emergência de uma sociedade de classes, quanto a formação de um
imenso mercado de trabalho face ao término da escravidão. A forma pela qual se dera a
deposição do regime monárquico, que a população assistira bestializada – conforme a
famosa expressão de Aristides Lobo – fizera emergir uma república que não era aquela
dos sonhos: politicamente elitista, socialmente desigual e excludente em termos raciais.
A antiga estabilidade que fora alcançada pelo regime imperial e que fazia com que os
súditos – brancos – do Império se reconhecessem como participantes de uma civilização
nos trópicos, primus inter pares às vizinhas repúblicas sul-americanas, parecia agora
quebrada, fosse por períodos de exceção, oligarquização política ou crises financeiras. O
arrivismo social parecia haver se tornado a regra. Assim, face à dupla ruptura política e
social, uma parcela dos grupos dirigentes da sociedade brasileira vivia absorvida pelos
desafios de repensar a identidade nacional.
A incerteza por sua vez se justificava face à dinâmica que congregava o término
da escravidão com a grande imigração européia. Havia em alguns setores da sociedade
brasileira, um alto grau de pessimismo, que seria justificado pela ampla aceitação à
época, das injunções que o darwinismo social impunha às chamadas nações mestiças.
Esse interdito abalava as projeções do pequeno núcleo que compunha as elites
brasileiras daquela época, em suas ilusões ilustradas de formar nos trópicos uma nação
branca e europeizada. Dessa forma, manter a unidade da nação, atribuindo aos ex-
escravos e aos seus descendentes, um lugar na nova pátria1 republicana parecia então

1
Apresenta-se aqui uma diferenciação entre nação e pátria. Essa última aparece nos textos dos escritores
da época como carregada com as cores sentimentais das lembranças afetivas dos anos pueris e das
primeiras palavras balbuciadas no idioma natal. Seria a pátria ainda o solo que serve de sepulcro aos
antepassados, onde a terra adquire em conseqüência um caráter sagrado. Descanso eterno para a
ascendência e promessa de vida para os nascituros, a pátria dilata-se no tempo fazendo sentir aos homens
de cada presente a idéia heideggeriana da finitude e consequentemente o pertencimento ao transitório.
Conforme veremos no próximo capítulo os positivistas suscitaram a idéia das pequenas pátrias, à qual foi
sendo desvanecida a partir do irrompimento da Primeira Guerra Mundial. Quanto à idéia de nação poder-
se-ia dizer que à época considerada por nosso recorte temporal – a primeira República – não se acreditava
mais que essa tivesse surgido espontaneamente conforme pretenderam anteriormente os românticos, mas
como uma construção histórica em sua essência. Daí o investimento em instituições de pesquisa e o status
conferido à História pelo Estado, que no Brasil representou em sua ação e omissão o papel de agente
tutelar de construção da nação. Assim, a nação era então percebida pelos homens que dirigiam os destinos
da jovem República como algo que surgiria dos escombros do período colonial amalgamando a massa
28

uma tarefa em desacordo com os interesses de garantir a vitória da civilização sobre a


barbárie2, ou ainda, por outro lado, o prodígio de aceitação de todas as formulações dos
etnógrafos da época, com a refutação de seus corolários3.
Por fim, a esperança. A euforia, o medo e a incerteza poderiam ser amortizadas
pela esperança de realizar uma travessia segura entre o passado e o futuro, como
defende a historiografia conservadora. A História, entendida como um discurso acerca
do tempo pretérito foi adquirindo prestígio no Ocidente, ao longo do século XIX, o que
explicaria a escolha dessa forma de saber como meio primordial de veiculação de
memórias agregadoras. Se no passado, a História fora a mestra da vida, ou a historia
magistra vitae de Cícero, na Modernidade, sob a perspectiva conservadora a História
não seria muita coisa a mais que a experiência, e a verdadeira História para
conservadores tais como Edmund Burke e Joseph De Maistre deveria ser expressa não
de maneira linear e cronológica, mas evidenciando a persistência de estruturas,
comunidades, hábitos e mesmo preconceitos que acompanham as gerações afora4.
De acordo com a fundamentada opinião do saudoso historiador José Honório
Rodrigues, coube a Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) aplicar pela primeira
vez na historiografia brasileira os princípios conservadores à História do Brasil. Dessa
forma, as principais características da corrente conservadora na historiografia brasileira,
conforme observou Rodrigues seriam: 1. a defesa da razão de Estado; 2. a defesa das
classes dominantes e exaltação dos grandes estadistas; 3. a pregação da continuidade
histórica e combate à ruptura; 4. o conformismo e dizer amém aos poderosos; e por fim,
5. os fracassos explicados como erros humanos5. Retornaremos oportunamente a esse
tema, dado a magnitude que representaram as interpretações de Varnhagen para a
História brasileira.
Voltemos portanto à Historia magistra vitae. Conforme observou Ricardo
Benzaquen de Araújo (1988) essa concepção de história, também conhecida como
clássica, antecedeu à chamada história moderna, tendo sido dominante na Europa, desde
o Renascimento, até o Iluminismo. De acordo com esse autor, a melhor maneira de

heterogênea das três etnias em um povo e localizando com lentes de aumento seus pretensos laços de
união intempestiva para que se pudesse escrever no tempo aquilo que seria uma nova nação.
2
VENTURA, Roberto. Um Brasil mestiço: raça e cultura na passagem da Monarquia à República. In:
MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem incompleta. Formação: histórias. 2.ed. São Paulo: Senac, 2000.
3
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Espetáculo da miscigenação. Estudos Avançados. São Paulo,
v.8,n.20,1994,pp.137-150.
4
NISBET, Robert. O conservadorismo.Lisboa: Estampa, 1987.
5
História da História do Brasil. v.II,t.1 (A Historiografia Conservadora). São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1988.
29

defini-la seria posicioná-la como uma forma de História que não se funda no tempo –
como a moderna – mas que estabelece um ‘espaço de experiências’, no qual passam a
ser reunidos exemplos e histórias excepcionais e extraordinárias; ‘exemplares’ em
suma, e por isso mesmo, capazes de fornecer orientação e sabedoria a todos que venham
acessar a esse repositório.
Diante dessas circunstâncias temos para o autor, uma
“...formulação[que] supõe uma crença na unidade essencial do gênero
humano, único argumento capaz de validar a organização da história como
se ela fosse um palco no qual um conjunto aberto, mas altamente
selecionado de cenas, sem uma articulação necessária entre si, seria
continuamente representado em prol do aperfeiçoamento político e moral
dos seus expectadores. Um procedimento como este vai envolver
indubitavelmente a história com a tradição e com a memória coletiva, numa
associação que praticamente desconhece o passado e o presente e mantém o
futuro sob o mais estrito controle.”6

A concepção clássica de história, ao contrário do que possa parecer, distinguia o


futuro do passado, porém a decisão sobre como, quando e em que direção agir –
caracterizando o conceito meta-histórico que Reinhart Koselleck designa por horizonte
de expectativas7 – dependia de uma avaliação atenta e cuidadosa dos ensinamentos
armazenados naquele modelo de história, ou seja, no que poderíamos designar por
repositório de exemplos reunidos sob a forma de história excepcionais, extraordinárias
ou exemplares, campo de experiência no qual os historiadores clássicos, por ser um
modo de argumentação disponível a qualquer intelectual daquela época clássica,
tentavam promover suas perspectivas mediante o recurso às experiências acumuladas da
História.
Dessa concepção clássica, conforme escreveu Astor Antonio Diehl, haviam
participado autores como Nicolau Maquiavel. Das obras de Maquiavel poderiam ser
destacadas os ‘Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio’ e a ‘História de
Florença’, por fornecerem exemplos válidos de uma concepção de história clássica, mas
também em obras de Montaigne, Jean Bodin e Racine, que como acresce Diehl, haviam

6
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Ronda Noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.1, 1988, p. 29.
7
De acordo com Reinhart Koselleck, apesar de tratar-se de metáforas temporais – segundo esse autor, a
única forma possível de expressar-se o tempo – o campo de experiência e o horizonte de expectativa
distinguem-se sobretudo pela presença do passado ser diverso da presença do futuro, sendo a experiência
procedente do passado espacial, por estar reunida, formando uma totalidade na qual estão presentes
muitos estratos de tempos anteriores, sem referência nestes do seu antes ou do seu depois. Já o ‘horizonte’
seria a linha atrás da qual se abre no futuro um novo espaço de experiência, que ainda não pode ser
contemplado. In: Futuro pasado: para una semántica de los tiempos históricos e Uma história dos
conceitos: problemas teóricos e práticos.
30

procurado “promover suas perspectivas por meio das experiências acumuladas pela
história, pois, pela variedade de conteúdos, e longe de definir-se matéria de
especialistas, constitui-se o conteúdo e o gênero freqüente da intelectualidade
clássica.”8
A concepção clássica de história, cabe registrar, conheceu rivais durante o
período no qual foi hegemônica, bem como não desapareceu – ao menos de forma
abrupta, conforme explica Diehl – quando ao início do século XIX, veio a se apresentar
a irrupção de uma moderna concepção de história.
No caso do Brasil, não contando com universidades, o discurso histórico veio a
se desenvolver em outro espaço de produção acadêmica, ou seja, o ambiente das
associações de eleitos, congregados a partir de relações sociais aos moldes das
academias ilustradas, conforme ocorrera na Europa, onde conheceram seu auge nos fins
do século XVII e ao longo do século XVIII. No caso brasileiro, esse local foi
inicialmente o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838 na
capital do Império.
Conforme explica Diehl, no Brasil, o lugar privilegiado para a produção
historiográfica permaneceu, até certo período do século XX, vinculado a uma marca
elitista e iluminista, onde a história ainda era representada como mestra da vida, tendo
esse espaço – no qual se produziu o discurso historiográfico – desempenhado papel
decisivo na construção, tanto da historiografia, quanto das interpretações sobre o Brasil
que fossem afetas à questão nacional.
Então, partindo dessas considerações, podemos dizer que para os homens
dedicados à escrita da História do Brasil nas décadas iniciais do século XX, havia uma
tarefa: redescobrir no campo de experiências brasileiro, e sob os aportes de um modelo
de história ainda considerada como clássica, temas que envolvessem os então novos
fundamentos da nacionalidade9, em consonância aos interesses dos grupos políticos que
haviam chegado ao poder com a República. Para esses novos donos do poder, o regime
republicano de governo representava uma espécie de regeneração, devendo ser
entendido como restauração da soberania nacional, o ‘governo de todos por todos’, ou

8
DIEHL, Astor Antonio. A cultura historiográfica brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo: UPF,
1998, p. 62.
9
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. As festas que a República manda guardar. Estudos históricos, Rio de Janeiro,
v.2, n.4, 1989, p.172-189.
31

nas palavras do historiador Ilmar Rohrloff de Mattos, “o governo democrático do


Populus – que não devia ser confundido com a multidão formada pela plebe”10.
Essa história a ser escrita, deveria ainda ser dotada das características às quais
José Honório Rodrigues denominou por incruenta11. Nessa concepção de escrita da
história, o homem branco seria o portador da civilização. A este colonizador de origem
européia, vieram a unir-se o índio, vencido e pacificado, e o negro africano que apesar
de escravizado, o fôra sob um cativeiro que teria sido benigno, pois o seu novo senhor
diferia daquele que o escravizara em guerras tribais na África, pois era branco e
‘civilizado’.
Doravante unidos e reconciliados na tarefa de exploração do território
conquistado na América, esses três grupos haviam no passado lutado ombro a ombro
contra invasores estrangeiros, pela reconquista da terra. E esse simulacro de união
deveria autorizar a pensar a nação como verdadeiramente constituída pela união das
suas três principais etnias. Presenças constantes nos textos da época, os conceitos de
nação, território e civilização passam a ser entendidos em nosso estudo, a partir de uma
base eminentemente histórica12.
Assim, passamos a tratar do conceito de civilização, justificando a escolha por
sua abrangência, o que nos autoriza tratá-la como uma categoria de análise13. A idéia de
civilização funcionava na época como uma espécie de chave para o ingresso na
modernidade, por ser considerada portadora das noções que regiam as relações entre as
nações e os princípios que entre essas decorriam acerca da posse de territórios.
Uma referência segura para tratar do conceito de civilização seria Norbert Elias.
Em uma de suas obras mais conhecidas, esse sociólogo alemão explicou a forma pela
qual veio a ocorrer no Ocidente uma lenta porém progressiva redução no círculo de

10
Do Império à República. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v.2, n.4, 1989, p. 163-171. Observa ainda
Mattos que para alguns publicistas republicanos, a República deveria ser a “...expressão do progresso
material, do triunfo da liberdade, do advento da democracia e da instauração de uma ordem mais
racional. A República, enfim, como progresso e como ordem; como ponto de chegada inevitável e como
ponto de partida de um novo processo que se procura ter sob controle.” P. 165.
11
Conciliação e Reforma no Brasil: um desafio histórico-cultural.2.ed.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1982.
12
Conceitos históricos seriam para Reinhart Koselleck, palavras providas de um sentido relevante do
ponto de vista da História dos conceitos, e portadoras de um conteúdo indicador de sua formulação sob
um certo nível de teorização. Porém, cada conceitualização abarca mais que a singularidade passada, a
qual ajuda a conceber. In: Futuro pasado: para una semántica de los tiempos históricos e Uma história
dos conceitos: problemas teóricos e práticos.
13
SILVA, Kalina Vanderlei, SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. 3.ed. São
Paulo: Contexto, 2014.
32

senhores feudais que se propunham a competir pelo poder14. Antes, por força da
compulsão, esses nobres eram levados para situações competitivas, e suas vidas eram
contínua e diretamente ameaçadas por atos de violência. Esse processo competitivo
acabou por levar ao monopólio do poder um desses filhos da nobreza. A essa
centralização do poder político associaram-se então outros mecanismos de integração,
para os quais concorreram processos de formação de capital e diferenciação funcional.
O ápice de tudo isso acabou culminando na formação do Estado Absolutista.
O que se costuma chamar por civilização teria sido então um processo posto em
movimento cegamente, sendo mantido em marcha pela dinâmica autônoma de uma rede
de relacionamentos. De acordo com Elias, a reorganização dos relacionamentos
humanos foi acompanhada de correspondentes mudanças nas maneiras. A nobreza
guerreira teve que abrir mão da sua alegria ‘selvagem’, da satisfação sem limites de
prazer, fosse à custa das mulheres que desejassem ou do exercício do ódio sobre aqueles
que lhes fossem hostis. Mas a mudança ‘civilizadora’ do comportamento passava a
atingir também aqueles indivíduos que desejavam resguardar as vantagens, privilégios e
o valor distintivo que passaram a usufruir, localizadas tais distinções na sua formação,
educação, costumes e cultura. De uma maneira geral, todos estavam doravante
submetidos às coerções civilizadoras15.
Assim a estrutura da personalidade dos homens viria a alcançar no futuro um
resultado provisório, que o autor identifica na forma contemporânea de conduta e de
sentimentos ditos ‘civilizados’. Em síntese, Norbert Elias procurou explicar a
transformação da nobreza, de uma classe de cavaleiros em um círculo de cortesãos,
onde a corte serviu como um instrumento para domar e preservar a nobreza. Cabe
observar que uma nobreza preservada interessava ao rei, como contrapeso à burguesia.
Por outro lado, também o rei precisava da burguesia, como forma de sobressair-se à
nobreza. Devemos ainda lembrar – observa o autor – que a nobreza ocidental vivia
principalmente dos impostos e tributos pagos pelo terceiro estado, sendo a cobrança
desses determinada sob um território sob o qual se exercia a soberania e executada pela
burocracia real, porém legitimada por uma posição a priori incontestada do soberano. E

14
ELIAS, Norbert. O Processo civilizador: formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Zahar,
1993.
15
ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de
corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
33

somente poderia a nobreza ter acesso a tais recursos legitimando o rei e as instituições
que o representavam16. Em suma, segundo Norbert Elias teria ocorrido,
“A moderação das emoções espontâneas, o controle dos sentimentos, a
ampliação do espaço mental além do momento presente, levando em conta o
passado e o futuro, o hábito de ligar os fatos em cadeias de causa e efeito –
todos estes são distintos aspectos da mesma transformação de conduta, que
necessariamente ocorre com a monopolização da violência física e a
extensão das cadeias da ação e interdependência social. Ocorre uma
mudança ‘civilizadora’ do comportamento.”17

Mas a palavra civilização propriamente, teria surgido “na França iluminista do


século XVIII com um significado moral: ser civilizado era ser bom, urbano, culto e
educado”18. Na opinião de Denis Cuche19, esse vocábulo pertence ao mesmo campo
semântico e reflete as mesmas concepções fundamentais da palavra cultura. Às vezes
estas aparecem como que associadas, não sendo contudo, equivalentes, em seu sentido
figurado. Isto se explicaria pelo fato da noção de cultura se prestar a evocação dos
progressos individuais, ao passo que a civilização apontaria para os progressos
coletivos. Dessa forma, civilização apresentava-se então como um conceito unitário,
sendo utilizado somente no singular, para designar o afinamento dos costumes,
significando para os filósofos reformistas da época do iluminismo como, “...o processo
que arranca a humanidade da ignorância e da irracionalidade.”20
Assim, a civilização seria um processo de melhoria das instituições, da
legislação e da educação, sendo que o governo da sociedade deveria apoiar-se na razão
e nos conhecimentos. A civilização, pelos ideais iluministas, deveria estender-se a todos
os povos que compõem a humanidade, e oportuno seria observar que se considerava

16
Conclusões em parte semelhantes às de Norbert Elias seriam expressadas na década de 1970 (a 1ª
edição inglesa é de 1974) por Perry Anderson, que identificou nas chamadas inovações institucionais do
Estado Moderno Absolutista Renascentista – a saber, exército, burocracia, tributação, comércio e
diplomacia – o que seria “a nova carapaça política de uma nobreza atemorizada”. No bojo da burocracia
do Estado Absolutista estava um estrato qualificado de juristas com a tarefa de operar suas máquinas
administrativas: letrados na Espanha, maîtres de requêtes em França, doctores na Alemanha, todos
estavam “imbuídos das doutrinas romanas da autoridade decretal do príncipe e das concepções romanas
de normas jurídicas unitárias, estes juristas-burocratas foram os zelosos instrumentos do centralismo
régio no primeiro século crítico de construção do Estado Absolutista.” Ver: ANDERSON, Perry.
Linhagens do Estado Absolutista. Porto: Afrontamento, 1984. As citações encontram-se respectivamente
nas páginas 17e 28-29.
17
O Processo civilizador: formação do Estado e Civilização. V.2.Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p.198.
18
SILVA, Kalina Vanderlei, SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos. 3.ed. São
Paulo: Contexto, 2014, p.59.
19
A noção de cultura nas ciências sociais.2.ed. Bauru: Edusc, 2002. Lembra Denis Cuche que a palavra
cultura começa a se impor no século XVIII, quando na França aparece no Dicionário da Academia
Francesa – edição de 1718 – sendo quase sempre empregado no singular, de onde refletiria, segundo esse
autor, o universalismo e o humanismo dos filósofos, além de marcar toda a ideologia do Iluminismo.
Nesse sentido, a palavra passou a ser associada ao progresso, à educação, à razão e à evolução.
20
Ibidem, p. 22.
34

então que alguns povos já estivessem em avançado processo de aperfeiçoamento a


ponto de serem considerados civilizados – como a França – ao passo que haveria outros
povos ainda considerados ‘selvagens’.
Cumpre ressaltar com esse autor que mesmo os povos mais selvagens, à luz
dessa ideologia de matriz iluminista, teriam vocação para entrar nesse movimento
civilizatório, sendo que os povos mais avançados teriam o dever de ajudar aqueles mais
atrasados na tarefa de diminuir esta defasagem.
As idéias de progresso que estavam inscritas nas noções de cultura e civilização
– idéias francamente otimistas, na opinião de Cuche – poderiam ser consideradas como
uma forma de sucedâneo da esperança religiosa. O Homem estaria então, finalmente
colocado no centro do universo, e com a reflexão iluminista aparece na lavra de Diderot,
no seu verbete ‘Enciclopédia’, da sua Enciclopédia, a idéia de uma ciência do homem.
Então, Alexandre de Chavannes criava o termo ‘etnologia’, o qual definiu como a
história dos progressos dos povos em direção à civilização.
Na Alemanha, surgia o termo kultur, de sentido mais restrito que o termo
civilização, pois este último significava para a burguesia alemã os hábitos afrancesados
21
da aristocracia de corte. Na Alemanha portanto, sua intelligentsia burguesa
considerava que a nobreza ‘civilizada’ da corte sofreria de uma grande falta de cultura.
Aponta Dennys Cuche que na Alemanha das vésperas da Revolução Francesa, o termo
havia perdido a sua conotação aristocrática, passando a evocar as potências ocidentais
de forma geral, e a França em particular. Dessa forma, se a noção francesa de
civilização é universalista, kultur passa a partir do século XIX a delimitar as diferenças
nacionais, ou seja, a noção alemã de kultur, tendeu a particularizar cada nação política
colocando cada uma delas na qualidade de herdeira de uma nação cultural, sendo que a
cultura abrangeria todo um conjunto de conquistas artísticas, intelectuais e morais,
doravante o patrimônio de uma nação, e fundadora – além de fiadora – da sua unidade.
No Brasil dos primeiros anos do século XX, entendia-se a diferença racial ou
étnica sem qualquer alteridade, existindo mesmo certa chave eurocêntrica para que a
questão fosse alçada à condição de pensamento científico. Naquele contexto, as raças
branca, negra e indígena eram agrupadas respectivamente sob o signo da civilização, da
barbárie ou da selvageria. De acordo com Lúcia Lippi Oliveira, o conceito de

21
Utilizo a concepção de Karl Mannheim, que entende por intelligentsia ao “grupo social cuja tarefa
específica consiste em dotar uma dada sociedade de uma interpretação do mundo”. MANNHEIM, Karl.
Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p.38.
35

civilização, juntamente com a noção de cultura, encontra-se inserido no debate


ideológico do século XIX. Para a autora, respeitado o seu sentido latino original, a
cultura referia-se ao,
“...cultivo do solo, e civis ao status do cidadão. Ao longo dos séculos, essas
concepções foram se alterando, até haver uma identificação maior entre
civilização e progresso técnico. O processo civilizatório passa a ser visto
como um processo contínuo e cumulativo, passível de ser universalmente
difundido.”22

O modelo de civilização perseguido pelas oligarquias republicanas para a nação


brasileira era indiscutivelmente aquele que fora desenvolvido pelos países europeus, e
creio podemos defender com Lúcia Oliveira, que, se a cultura implica a idéia de
caminhos específicos para cada povo, a civilização teria em seus fundamentos a
evolução geral do gênero humano.
Conforme observou Michael Banton em seu trabalho esclarecedor, as idéias de
nação, raça e classe social percorreram o século XIX mobilizando todo um manancial
de medos e preconceitos, não raro revestidos de uma pseudo cientificidade23.
Se nos inclinamos a ver o discurso da raça e da nação conforme eram
propagados pela classe dirigente, também é verdade que o discurso sobre a classe social
no Brasil anterior à Abolição da escravatura fazia pouco sentido. Não possuíamos de
fato uma sociedade composta por classes24, embora o discurso em prol dos interesses de
classe, diga-se da classe dominante, fosse realizado com destreza no Império, pela elite
saquarema com certo vigor até os idos de 1870.
O discurso da raça, embora não possa ser olhado como uma mera idéia política,
sempre apareceu ligado a um universo de conhecimentos biológicos. A teoria da
tipologia racial formulada por Robert Knox em 1850, em seu livro The Races of Men foi
substituída via-de-regra pelos darwinistas sociais por volta de 1875, ano no qual Ludwig
Gumplowicz publicou Rasse und Staat. Acreditava-se então em uma explicação
biológica para as relações sociais, ou seja, a raça aparecia como a chave para o

22
A Questão Nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990, pp. 40-41.
23
BANTON. Michael. A idéia de raça, p. 9 – 19.
24
Em A integração do negro na sociedade de classes, obra clássica de Florestan Fernandes, encontramos
um bom detalhamento acerca da sociedade estamental e do seu esfacelamento pelo duplo choque exercido
pelos eventos históricos que foram a emancipação dos escravos em 1888 e a instauração do regime
republicano, logo no ano seguinte. Trata-se de uma análise lapidar que associou a emancipação dos
escravos com a mudança de regime político. Para esse autor, essa dupla ruptura incluindo regimes de
trabalho e de governo criaram uma sociedade de classes emergente, onde o negro foi marginalizado por
inação da classe dominante. Essa havia tratado de articular a formação de um mercado de trabalho livre
alimentado por força de trabalho européia. A integração do negro na sociedade de classes,v.1. São Paulo:
Ática, 1978.
36

entendimento das relações sociais. Para Lilia Moritz Schwarcz, os discursos raciais
estariam, naquele momento, vinculados a projetos que argüiam sobre o caráter da
nacionalidade25.
Temia-se a degeneração, pois face aos modelos evolucionistas, haveria um
verdadeiro abismo entre o progresso e a civilização, e a mistura de raças consideradas
muito heterogêneas eram entendidas como um erro que condenaria não somente o
indivíduo, mas toda a coletividade. Quanto a isso, o historiador José D’Assunção Barros
ressaltou que havia uma parcela da nossa elite imperial que guardava tamanha aversão
ao negro que – em um Império agrícola e escravocrata – chegava a se colocar contra a
continuidade do fluxo de escravos africanos. De acordo com esse autor,
“para esta elite, os africanos seriam portadores de uma ‘doença moral’ que
os inclinava a contaminar a sociedade brasileira e promover a ‘corrupção
dos costumes’, de modo que quanto mais africanizada se apresentasse a
população do Império, tanto maior seria a sua distância em relação à
civilização e ao progresso”.26

Em seu elucidativo estudo de história social das idéias, Lilia Moritz Schwarcz 27
após haver pesquisado os parâmetros que envolviam os museus etnográficos brasileiros,
os institutos históricos e geográficos e as faculdades de direito e de medicina concluiu
que em tais instituições ficara resolvido adotar o ideário científico das teorias que
chegavam do exterior, vale dizer, a idéia da diferenciação ontológica entre as raças, mas
sem a condenação ao hibridismo, pois como se sabia, o Brasil estava miscigenado de
forma irremediável.
O tema da raça remetia ao pessimismo por não haver lugar no mundo civilizado
para a nação brasileira. O mundo considerado civilizado correspondia então ao universo
das nações reconhecidas como homogêneas em termos biológicos, devendo ser estas
naturalmente brancas. Assim, a face pessimista da adoção desse ideário científico
somente poderia ser mitigada pela idéia de que uma futura homogeneização fenotípica
viesse a ocorrer, o que nos coloca diante da teoria do branqueamento racial.
Teses dessa natureza eram defendidas, entre outros, pelo etnógrafo João Batista
Lacerda, então diretor do Museu Nacional, em viagem a Londres para o I Congresso

25
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Espetáculo da miscigenação. Estudos Avançados. São Paulo,
v.8,n.20,1994,p.139.
26
BARROS, José D’Assunção. A construção social da cor: diferença e desigualdade na formação da
sociedade brasileira. Petrópolis: Vozes, 2009, pp.100-101.
27
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
(1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
37

Internacional de Raças, em julho de 1911. Para Lacerda, em quatro gerações, o Brasil


seria um país majoritariamente branco28.
Essa última perspectiva admitia algum futuro para uma nação mestiça. Para Lilia
Moritz Schwarcz, a questão da raça no Brasil se tornara um conceito negociado. Nos
Institutos Históricos, lócus da produção científica que nos interessa mais de perto, os
modelos deterministas fizeram sua entrada tardiamente. A autora identificou nesses
locais explicações variadas acerca da nacionalidade pensada sob a miscigenação.
Explicações variadas pululavam entre uma visão otimista, católica e patriótica, sem que
deixasse obviamente de correr em paralelo – dado o caráter ‘científico’ de tais
instituições – uma concepção determinista e evolutiva da nação, tendo por resultado um
modelo que acomodava por um lado, explicações que concebiam a humanidade em sua
origem e desenvolvimento, e por outro, argumentos do darwinismo social que
procuravam justificar as hierarquias sociais já consolidadas. Definitivamente, pela ótica
das elites daquela época, que seguia de perto os critérios etnográficos dominantes do
início do século XX, não haveria espaço para nações mestiças no restrito grupo das
nações civilizadas29.
Para que a singularidade e a miscigenação pudessem ser pensadas como algo
que fosse portador de alguma positividade, e se passasse a contemplar com certo
otimismo as futuras possibilidades brasileiras, algumas batalhas, ideológicas e
científicas deveriam ser travadas por homens da envergadura de Edgard Roquette-Pinto.
Em um futuro um pouco mais distante, haveriam as contribuições do instrumental
teórico da moderna Antropologia, através do qual se divisaria um ‘povo novo’30.

28
A tese de João Baptista de Lacerda será tratada com mais detalhamento em nosso capítulo 5.
29
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
(1870-1930). São Paulo: Companhia das Letra, 1993.
30
O conceito de “povos novos” é da lavra de Darcy Ribeiro, com sua obra Teoria do Brasil, cuja primeira
edição é de 1968. A esta noção Darcy Ribeiro contrapôs, na perspectiva americana, as noções de ‘povos
testemunhos’ (que constroem sua identidade na recuperação da História pré-colombiana, como nos casos
andino e meso-americano). Formulou ainda Darcy Ribeiro a categoria de povos transplantados (
nomeadamente os casos argentino e dos E.U.A, que primam por manter os valores dos países de origem),
conceito que, entendemos, teria tomado de empréstimo de Herder. Os povos novos teriam uma identidade
problemática, por força da mesclagem de etnias e culturas. Caberiam acrescer aqui alguns
esclarecimentos, a título de síntese, os quais acredito, podem ser entendidos à luz de dois grandes blocos
temáticos. O primeiro procura dar conta das teorias de racialização vigentes na segunda metade do século
XIX, alcançando ainda os anos 1920. Teríamos então, a tipologia racial, seguida pelo darwinismo social,
o qual por sua vez, verá sair de suas entranhas, a teoria proto-sociológica. No Brasil, o darwinismo social
contou com uma trajetória de apropriação que incluiu nomes como Nina Rodrigues, Sílvio Romero e
Euclides da Cunha. O segundo dos grandes blocos analisa especificamente o Brasil, sendo encabeçado
por Gilberto Freyre, com a polêmica tese da democracia racial. Em seguida, encontramos a segunda onda
teórica, representada pela escola sociológica paulista pontificada por Florestan Fernandes; e, na
sequência, a terceira onda teórica com Carlos Hasenbalg e Nélson do Valle Silva, com a teoria das
desvantagens cumulativas ao longo da vida. Ver: FREYRE, Gilberto. Casa-Grande&Senzala: formação
38

Caberia a partir de agora dar tratos ao desenvolvimento do conceito de nação, no


que entendemos como válido refleti-lo a partir da contribuição de historiadores como
Ernest Gellner e Benedict Anderson. O primeiro desses autores defende ser a nação o
compartilhamento de uma mesma cultura, entendida aqui como um sistema de idéias,
símbolos, associações e formas de conduta e linguagem, de onde fica ressaltado que os
homens só serão de uma mesma nação caso venham a se reconhecer como sendo desta
mesma nação.
Gellner afirma que as nações são as construtoras das convicções, fidelidades e
solidariedades entre os homens. Assim entendido, uma simples categoria de indivíduos
ocupantes de um território ou usuários de uma mesma linguagem seriam uma nação, se
e quando seus membros reconhecerem mútua e firmemente certos direitos e deveres em
razão de sua qualidade comum. Da mesma forma achamos interessante ressaltar que o
conceito de nacionalismo expressado por Gellner é de um princípio político que sustenta
que a unidade política e a unidade nacional devem ser congruentes 31. Por seu turno,
Benedict Anderson observa que a nação é imaginada como comunidade, sendo também
imaginada como limitada e como soberana. Assim, Benedict Anderson considera a
nacionalidade, bem como o nacionalismo enquanto,
“artefatos culturais de um tipo peculiar, pois para compreendê-los
adequadamente, é preciso que consideremos com cuidado como se tornaram
entidades históricas, de que modo seus significados se alteraram no correr
do tempo, e por que, hoje em dia, inspiram uma legitimidade emocional tão
profunda”32.

Anderson procurou demonstrar que a criação da nacionalidade e do


nacionalismo ocorreram por volta do século XVIII, sendo que a palavra nacionalismo
somente começou a ser empregada em plenitude ao final do século XIX. Aliás,
conforme defende o autor, ao empregar a palavra nações no clássico ‘A riqueza das
nações’, Adam Smith a invocou no sentido de sociedades ou Estados. Assim,
nacionalidade e nacionalismo teriam sido para o autor “a destilação espontânea de um
cruzamento complexo de forças históricas”33, às quais, uma vez uma vez tendo sido

da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. 35.ed. Rio de Janeiro: Record, 1999;
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3.ed.SãoPaulo:Ática, 1978;
HASENBALG, Carlos, SILVA, Nelson do Valle, LIMA, Márcia. Cor e estratificação social. Rio de
Janeiro: Contra capa, 1999; e, HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil.
2.ed. Belo Horizonte: UFMG, 2005. Outras leituras de interesse ao tema podem ser encontradas em
MAIO, Marcos Chor, SANTOS, Ricardo Ventura (orgs.). Raça como questão: História, ciência e
identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.
31
GELLNER, Ernest. Naciones y nacionalismo. Madrid: Alianza Editorial, 1997. P. 13 – 20.
32
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989, p. 12.
33
Ibidem, p. 12-13.
39

criadas, tornaram-se ‘modulares’, passíveis, segundo Anderson, “de serem


transplantados, com graus diversos de consciência e a grande variedade de terrenos
sociais, para se incorporarem à variedade igualmente grande de constelações políticas
e ideológicas.”34
Em decorrência do anteriormente exposto, Benedict Anderson propôs então para
a nação, um conceito e definição antropológicas, sendo que a nação seria a
“comunidade política imaginada – e imaginada como implicitamente limitada e
soberana”35.
Pois, de acordo com Anderson, essa comunidade seria imaginada pelo fato dos
membros da nação, mesmo aqueles das menores nações, não virem a conhecer jamais a
maioria daqueles que consideram como seus compatriotas, o que não os impede de
conservar viva nas suas mentes, a memória dessa união. Aí se encontraria talvez, aquilo
que se considera como o pomo da discórdia entre Ernest Gellner e Benedict Anderson.
Para Gellner, o nacionalismo não seria o despertar das nações para a autoconsciência,
mas a invenção dessas nações onde elas não existem. Pronunciando-se sobre essa
divergência considerou Benedict Anderson que o inconveniente da formulação do seu
oponente “é que Gellner está tão ansioso em demonstrar que o nacionalismo se
dissimula sob falsas aparências, que assimila ‘invenção’ a ‘contrafação’ e ‘falsidade’,
ao invés de assimilá-la a ‘imaginação’ e ‘criação’ ”36. Desse modo, o que insinua
Gellner, continuo a seguir a argumentação de B. Anderson, é que existem comunidades
‘verdadeiras’ que se podem sobrepor vantajosamente às nações. Assim, observa
Anderson, de fato, todas as comunidades maiores do que as primitivas aldeias de
contato face a face – e para o autor, talvez até mesmo estas – são imaginadas. Enfim,

34
Ibidem, p. 13. Nesse sentido considera o autor que existem três paradoxos no caminho de uma
definição sumária para o conceito de nação, a saber: 1. A modernidade objetiva das nações aos olhos do
historiador versus sua antiguidade subjetiva aos olhos dos nacionalistas; 2. A universalidade formal da
nacionalidade como conceito sócio-cultural versus a particularidade irremediável de suas manifestações
concretas; e, 3. O poder ‘político’ dos nacionalismos versus sua pobreza e até mesmo sua ‘incoerência
filosófica’. (grifos do autor).
35
Ibidem, p. 14. Conforme Anderson, a nação é imaginada como soberana em virtude do conceito ter
nascido em uma época na qual o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino
dinástico hierárquico e divinamente instituída e limitada porque na concepção moderna a soberania do
Estado tornava-se plena, categórica e uniformemente atuante sobre um território legalmente demarcado,
em contraste portanto com os antigos Estados nos quais as fronteiras se definiam por centros, sendo estas
então porosas e indistintas. As soberanias então fundiam-se imperceptivelmente umas nas outras. Cabe
observar, em conformidade com o autor, que a antiga legitimidade automática da monarquia sagrada
sofreu decadência no Ocidente, não obstante ter sido bastante lenta. Bastaria lembrar o imaginário e
costumes do tempo dos monarcas taumaturgos que “curavam” doentes pela superposição de mãos reais.
Dessa forma, Luís XIV e Luís XVI ainda realizavam tais práticas mais de 150 anos depois dos ingleses
haverem decapitado seu rei.
36
Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989, p. 14-15.
40

para Benedict Anderson, “as comunidades não devem ser distinguidas por sua
falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas.”37
Na opinião de Anderson, a nação é imaginada como comunidade, e sem que se
leve em consideração a desigualdade e a exploração que nelas existem e prevalecem,
principalmente por: 1. Sua concepção de companheirismo profundo e horizontal; 2.
Tornar possível a que milhões de pessoas matem e morram, de forma voluntária, por
imaginações que seriam tão limitadas. Para o autor, as origens devem ser procuradas
naqueles fatores que ele denomina por raízes culturais do nacionalismo 38. Parafraseando
o autor, os Estados-Nações até poderiam ser novos e históricos, porém as nações das
quais eles seriam expressão política assomariam de um passado imemorial, deslizando
outrossim, para um futuro ilimitado.
Poderíamos então passar às considerações de um texto clássico, e talvez ainda
incontornável da historiadora Maria Odila Silva Dias39. Ela avaliou as perspectivas que
a Colônia oferecia para transformar-se em nação. Para a autora, durante as duas
primeiras décadas do século XIX, caberia confrontar as inquietações dos homens da
época, quando em postura realista, expressavam seu pessimismo, lançando olhares
sobre a população escrava e mestiça, as quais, vistos de qual ângulo fosse – tensões
internas, sociais, raciais, fragmentárias, regionalistas, em suma – da falta de uma
unidade que viesse a expressar o aparecimento de uma consciência nacional.
E por não expressarem o amálgama esperado para tal “união nacional”, não
havia de onde retirar as forças para um movimento revolucionário que se apresentasse
como cumpridor da tarefa de reconstrução da sociedade. Reconstrução está claro, mas
sob o signo dos ideais constitucionalistas e via-de-regra, liberais, traçados por homens
que viram – ao menos até a separação política de Portugal – a possibilidade de

37
Ibidem, p. 15.
38
O século XVIII é apontado pelo autor como o crepúsculo das modalidades religiosas do pensamento e
refluxo da fé religiosa. É nesse século que a secularidade racionalista é inaugurada. Os novos tempos
teriam demandado então uma transformação secular da fatalidade em continuidade, da contingência em
significado. Para o autor, “poucas coisas se adaptam melhor a essa finalidade do que uma idéia de
nação.” O desvanecimento dos quadros de referência situados na comunidade religiosa e no reino
dinástico combinaram-se com a perda de domínio axiomático sobre o pensamento dos homens que antes
era mantido pela língua, pela organização da sociedade de maneira ‘natural’ em torno e sob ‘centros
elevados’e a antiga concepção de temporalidade, onde cosmologia e história não se distinguiam. As novas
comunidades tornaram-se imagináveis por meio de “uma interação semifortuita, mas explosiva, entre um
sistema de produção e de relações produtivas (capitalismo), uma tecnologia de comunicações (a
imprensa) e a fatalidade da diversidade de lingüística do homem.” Ibidem. As citações encontram-se às
páginas 19 e 52, respectivamente.
39
A Interiorização da metrópole. In: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole e
outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005. Originalmente o ensaio viera a lume na coletânea 1822 –
Dimensões, organizada por Carlos Guilherme Motta, publicada pela editora Perspectiva em 1972.
41

existência de uma monarquia dual que julgavam a mantenedora responsável pelos seus
laços à civilização européia, a que apontavam como a fonte de seus valores
cosmopolitas de renovação e progresso.
Ainda de acordo com a autora, aquilo que se tenta chamar por consciência
nacional veio pela integração de diversas províncias, e sob a imposição do que ela
denomina por “nova Corte”, ou seja, da resultante do processo histórico pós
independência política, ocorrido sob a tutela do Rio de Janeiro entre os anos de 1840 a
1850, em uma dura luta pela centralização do poder. Sobre esse aspecto, convém dar
atenção ao que foi observado por Marco Antonio Pamplona. A consolidação do projeto
nacional se deu sob muita contestação sob a chamada direção Saquarema, cujos
interesses eram tecidos a partir da Corte, passando pela província fluminense40. Para
esse autor, nesses anos marcados por drásticas mudanças se deu a discussão sobre a
formação da nação, enquanto efetiva comunidade de cidadãos, e mesmo de quem
deveria ser cidadão naquela nova ordem.
Nesse sentido, em conformidade com Maria Odila Silva Dias, a vinda e
instalação da Corte no Rio de Janeiro, surge como ponto crucial que essa transmigração
começou a enraizar-se através do estreitamento dos seus laços de integração no Centro-
Sul brasileiro. Daí a complexidade, de acordo com a autora, do nosso processo de
transição de Colônia para Império, por fato da separação política da Colônia com a sua
metrópole (1822) não ter coincidido com o período reconhecido como de consolidação
da unidade nacional (1840-1850). Dessa forma, muito mais que as imagens de uma
Colônia em luta contra a sua metrópole, foi o enraizamento de interesses portugueses e
a sistemática de interiorização da metrópole no centro-sul da colônia que cedeu água ao
moinho da emancipação política.
No futuro, e pelo concurso da história, capitanias dispersas e quando muito
articuladas precariamente à lógica de um império marítimo português por cerca de três
séculos, deram lugar à narrativa territorial que passava a descortinar um território
nacional que assim aparece já prefigurado no “Brasil-Colônia”, sob a imaginação

40
PAMPLONA, Marco Antonio. Nação. In: FERES JÚNIOR, João. (org.). Léxico da história dos
conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p. 161-175. Na realidade ocorrera uma
acirrada disputa entre a centralização e o federalismo na década de 1830. Assim, ao projeto de unidade
acalentado por grupos políticos articulados ao aparato político instalado a partir de 1808 “opunha-se a
resistência de algumas elites provinciais mais ciosas de sua autonomia”. Quanto à direção Saquarema,
cabe lembrar que essa ficou simbolizada nas pessoas de Eusébio de Queiroz, Joaquim José Rodrigues
Torres – o futuro visconde de Itaboraí – e Paulino Soares de Souza, o futuro visconde de Uruguai. A
citação encontra-se na página 172.
42

geográfica de uma nação cercada por fronteiras naturais estendidas entre a bacia do Rio
da Prata e a bacia do Rio Amazonas.
Com a instauração da república, face a uma conjuntura internacional que deveria
contemplar e manter vigília sobre os arroubos das potências imperialistas, além é claro,
do próprio ethos republicano, a temática da união nacional passava então a encontrar
lugar de destaque no discurso de elites atemorizadas pela emergência de condições que
lhes pareciam adversas, no que estas passavam a considerar, a partir de certo momento,
uma variação na sua ‘lei de ferro’ de extração do consenso pela força. Situações dessa
natureza costumam contar, conforme sabemos, com o recurso que brota entre a história
reificada e a história incorporada41. Daí o investimento nas comemorações de eventos
centenários, dos quais os de maior destaque em nosso período teriam sido as
comemorações da passagem do século (1900), da chegada da Corte portuguesa ao Brasil
(1908), da Revolução Pernambucana de (1917), e principalmente o Centenário da
Independência (1922). Tais comemorações foram dedicadas a um público mais amplo, e
destinadas conforme nos sugere Bordieu, a forjar com civismo o espírito dos cidadãos
da República.
Naquele contexto, tomadas de posição sobre o passado radicavam
frequentemente em tomadas de posição latentes sobre o presente. Isso ocorreu
especialmente onde o uso da ilusão teleológica pelos historiadores veio a permitir que
sobre agentes históricos individuais ou coletivos, fossem expedidos juízos conclusivos,
os quais foram baseados no conhecimento obtido pelo historiador, do resultado
imputado às ações e premeditações de atores históricos selecionados. Tais operações
estariam a priori, autorizando a transformar o fim da História, em fim da ação histórica
destes atores. Neste sentido, avultava para os intelectuais, e para os historiadores em
particular, a assunção do papel de protagonistas no cenário histórico que esboçamos, e
ganhava evidência a atuação dos Institutos Históricos e Geográficos de alguns Estados,
sobretudo os de Minas Gerais e São Paulo, pois tarefa que aparecia de forma inadiável,
seria a da redefinição da identidade brasileira.

41
A História reificada, ou no seu estado objetivo, significa para Pierre Bordieu, a História que se
acumulou ao longo do tempo em coisas, como edifícios, monumentos, teorias, lugares. Em relação à
noção de História no seu Estado incorporado, que se tornou habitus, Bordieu afirma ser uma aquisição
histórica que permite a apropriação do adquirido histórico. Toda a ação histórica põe em presença -
anotou Bordieu – esses dois Estados da História, onde, inferimos, a efeméride histórica metamorfoseada
em festa cívica das ruas ou do espaço standardizado dos Institutos e Congressos Históricos encontra seu
momento de sublimação, conforme veremos em nossos dois últimos capítulos.
43

Tal passado deveria ser dotado do distanciamento das violências e barbáries


outrora cometidas entre as etnias e grupos sociais, devendo ser capaz de fazer brotar de
forma coerente, os germens da união, necessários a que fosse pensada a nação
republicana.
Dessa forma, pensar a nação significava dar vazão às angústias represadas por
uma elite atemorizada diante do recrudescimento das ameaças, reais ou imaginárias ao
seu domínio até então não seriamente disputado, levando-se em conta que a formação
de uma sociedade de classes, então em curso, havia colocado por terra a sociedade
estamental e escravocrata que se formara na Colônia, herança que fora transmitida, em
linhas gerais, à nossa experiência imperial42.
Por sua vez, o elogio do passado imperial dava ensejo a que fosse habilitado para
contribuir com suas idéias – e seu indisfarçado ufanismo – um antigo personagem que
chegara a trafegar no cume da sociabilidade da corte, no apagar das luzes do Império,
como Afonso Celso, o qual à época transitava com prestígio pelo Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, e por alguns Institutos Históricos estaduais de maior brilho.
Afonso Celso desempenhou a função de Presidente do IHGB entre os anos de
1912 e 1938, e tinha a concepção de História pragmática, conforme nos indica Lucia
Maria Paschoal Guimarães43.
Na corrente ufanista, escreveu Lúcia Lippi, a nacionalidade seria pensada não
como resultado de regimes políticos, mas como fruto das condições naturais da terra.
Ora, seria da junção das qualidades da terra aos valores das três raças originárias que
viria a esperança de construção de uma grande civilização nos trópicos, o que passa a
imbricar-se, convergindo para o foco das nossas atenções, os temas da nação, do
território e da civilização.
Àquela época então, ‘construir a nação’, equivaleria dizer, finalizar os artefatos
simbólicos da sua construção, iniciada em meados do século XIX pelo Instituto

42
MATTOS, Ilmar Rohlof de. O Tempo Saquarema: a formação do estado imperial.2.ed. São Paulo:
Hucitec, 1990.
43
Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro:
Museu da República, 2006, p.67. Quanto à História pragmática, podemos aproximar seu significado a
partir de observações extraídas de certo texto de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. No início do século
XIX, Hegel produziu algumas reflexões cuja temática era a filosofia da História, tendo se voltado para
aquilo que denominou por ‘a natureza da história em si’. Listou então três métodos para tratar a História,
os quais seriam a História original, a História reflexiva (que subdividiu em universal, pragmática, crítica e
fragmentária), e a História filosófica. A História pragmática seria portanto um tipo de História reflexiva
que tornaria presente o acontecimento. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich.Os três métodos de escrever a
História. In: A razão na História: uma introdução geral à Filosofia da História. 2.ed. São Paulo: Centauro,
2001.
44

Histórico e Geográfico Brasileiro e pelo homens do Romantismo, e consistia em realizar


uma urgente tarefa de re-engenharia social, com seus símbolos e valores que conferem
significado à vida em sociedade.
Caberia ainda reiterar que nos derradeiros anos do século XIX, o País conhecera
um grande afluxo de imigrantes, os quais ainda continuavam chegando em levas
vigorosas nas primeiras décadas do século XX. Não obstante, também havia sido
incorporado à população livre, um expressivo contingente de ex-escravos. Isso
implicava que o estatuto da cidadania daquele momento histórico – ainda que tal
estatuto fosse quase fictício para fins práticos – estivesse fundamentado em aspectos
simbólicos e alegóricos44 que como sabemos, deviam ser capazes da produção de
representações históricas45.
A remodelação do passado se daria então em um momento axial46 para a
redefinição da identidade nacional, e deveria pautar-se no entanto, por uma reescrita de
alguns capítulos de nossa História, mantendo uma fundamentação afinada com uma
visão de mundo construída sob acordes do conservadorismo, porém aberta para alguns
selecionados traços de modernização capitalista, pontos de partida por sua vez de um
roteiro de viagem que devia confrontar-se com a conjuntura de efervescentes
nacionalismos e de visões ratzelianas47 que à época ainda transitavam dominantes pelos

44
Para Pierre Bordieu, a compreensão dos sistemas simbólicos se dá com estes vistos como estruturas em
si mesmas estruturadas, portadoras da chave da sua interpretação. Aponta Bordieu para a condição dos
sistemas simbólicos serem a um só tempo, estruturas estruturadas e estruturantes de conhecimento e
comunicação, de onde fica salientada a função política do símbolo, que possui nesse autor a prerrogativa
de instrumentos políticos de imposição e legitimação da dominação. Desta forma, o poder simbólico não
reside nos sistemas simbólicos, mas numa relação determinada, sendo definido entre aqueles que exercem
o poder e os que lhe estão sujeitos. A força da representação encontra-se então expressa em Bordieu
através da sua eficácia na constituição dos grupos sociais e nas suas estratégias de interesse material e
simbólico. Impondo, legitimando ou transformando uma visão de mundo, o trabalho político das
representações na teoria de Bordieu consiste em fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer
reconhecer, de impor as definições legítimas das divisões do mundo social. A representação é adjetivada
como um discurso performativo cujo ato de enunciação garante, pela autoridade de quem enuncia, a
sobrevivência do que é enunciado, constituindo nisso o poder simbólico. As alegorias – que podem se
apresentar sob a forma de discursos, mensagens e representações - por sua vez, simulariam a estrutura
real das relações sociais, onde Bordieu procura evidenciar sua função política e ideológica, cujo papel é o
de legitimar uma ordem arbitrária em que se funda o sistema de dominação vigente. Cfe. BORDIEU,
Pierre. A economia das trocas simbólicas.5.ed.São Paulo: Perspectiva, 2001 e O Poder simbólico.
3.ed.Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.
45
Estaria claro que esta forma de representação, proporcionada pelos historiadores seria o conhecimento
científico e sobretudo documentado do passado humano, onde se procurava realizar um diálogo entre os
homens vivos do passado e os homens vivos do presente.
46
Conforme Ivan Domingues o momento axial não se trata de um instante qualquer no curso do tempo,
mas de um momento privilegiado relativo a um acontecimento fundador, capaz de dar ao curso das coisas
um sentido novo, inaugurando talvez uma nova era. O Fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a História.
Belo Horizonte: UFMG, 1996, p. 72.
47
Nas obras do alemão Friedrich Ratzel, publicadas no último quartel do século XIX, o estudo da
influência do meio, ou das condições naturais, sobre a humanidade ocupava lugar de destaque.
45

meios intelectuais sob a rubrica de estudo histórico de estilo marcadamente ensaístico, e


que reiteradamente pareciam ratificar junto ao horizonte de expectativa brasileiro, a
indelével marca do determinismo geográfico.
Tendo transitado por essa temática com excepcional propriedade, nos adianta
Demétrio Magnoli48 que certamente coube à Geografia uma contribuição diferente
daquela à qual a História ficara encarregada, mas que porém seguia paralela ao
nacionalismo: a idealização do território nacional, o que fez precisamente ao ancorá-lo
na natureza, cartografando suas fronteiras e descrevendo as suas paisagens.
Entendendo que nos cabe registrar alguma formulação sobre o que estamos
caracterizando como território, passamos então a recepcionar uma contribuição do
saudoso Milton Santos. Para o corifeu da geografia crítica, mais que um simples
conjunto de objetos em meio ao qual uma população trabalha, circula ou habita, o
território forma um dado simbólico, do qual a linguagem regional ajuda a compor uma
parte desse mundo de símbolos, construindo o amálgama sem o qual o autor acreditava
que não se poderia falar em territorialidade. Por outro lado, ainda lembrado por Milton
Santos, a territorialidade é proveniente da comunhão que uma determinada população
mantém com um dado território49.
Não menos importante seria certa observação partida de Claude Raffestin. Após
explicar que o espaço é anterior ao território, expõe ainda Raffestin que o território,
formado a partir do espaço, “ é o resultado de uma ação conduzida por um ator
sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um
espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator
‘territorializa’ o espaço.”50
Conforme explica Demétrio Magnoli, coube à História e à Geografia no
contexto sob o qual nos debruçamos, a tarefa de criar narrativas poderosas, no intuito de

Distinguindo povos naturais como aqueles em que viviam sob a constrição da natureza, dos povos
civilizados que seriam os que viviam em união mais multíplice e mais ampla com a natureza, onde
considerava o território dos povos civilizados como a expressão de uma ligação completa e íntima entre
sociedade e natureza. Para Ratzel a decadência ou o progresso de uma sociedade estariam ligados
respectivamente à perda ou à conquista de territórios, servindo o tamanho de um Estado como um
indicador do grau de civilização de seu povo; um aspecto importante da geografia política de Friedrich
Ratzel seria a expansão por força do progresso de uma dada civilização por fronteiras e espaços vazios,
expansão que seria justificada pela energia desenvolvida através da cultura. In: Povos naturais e povos
civilizados; As leis do crescimento espacial dos Estados. MORAES, Antônio Carlos Robert (Org.).
Ratzel. São Paulo: Ática, 1990, p. 122 e 176 – 178.
48
O Corpo da Pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: Unesp,
1997.
49
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987, p. 61.
50
Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993.
46

conferir identidade, singularidade e drama ao Estado-Nação que se imaginava. Assim,


na qualidade de disciplinas acadêmicas, a História e a Geografia foram consolidadas
junto com o Estado-Nação, tendo participado como protagonistas daquele
empreendimento criador. Observou esse autor que teria cabido à História a produção da
biografia nacional, ao inscrever a pátria no tempo. A cargo da Geografia ficava a
cartografia nacional, no que cumpria entalhar a pátria no espaço.
Dessa forma, para a Nação que se imaginava, a Geografia imaginou o “corpo da
pátria”, inculcando-a, segundo o autor, nas sucessivas gerações, e erguendo o mapa do
país à condição de símbolo tão poderoso quanto a bandeira nacional. Toda essa
imaginação geográfica, ao fim e ao cabo, um vigoroso trabalho ideológico, teve que ser
realizada ao longo do período imperial, pois o Estado brasileiro que emerge com a
Independência, tinha a consciência de que o território herdado com a ruptura de 1822,
não estava inscrito na obra colonial portuguesa.
Ora, basta lembrar que a manutenção da unidade territorial brasileira havia sido
o grande atrativo da estratégia de compromisso da classe terratenente, tanto com o
príncipe português, na instituição do novel trono, quanto por ocasião do segundo
reinado, pelo potencial de ocupação do antigo território colonial, tornado solo da pátria
com a independência política.
Assim, no caso brasileiro, o império colonial desagregado 51 transferiu ao Estado
nacional em gestação52 a tarefa de realizar a narrativa de um território nacional como
um todo coerente estruturado pela própria natureza, tendo sido ocupado pela
colonização, e legitimado pelos Tratados com a Coroa espanhola. Essa narrativa seria
construída sob o pano de fundo da naturalização. Conforme José Murilo de Carvalho o
Estado Imperial somente pode ser consolidado graças a algumas características
encontradas na elite, tais como a homogeneidade ideológica gerada pela educação e o
treinamento político comum, heranças do Estado herdado da tradição portuguesa
absolutista e patrimonial. Estado e elite imperial ao convergir interesses vincaram traços
marcantes do sistema político do Império, tais como “a monarquia, a unidade, a
centralização, a baixa representatividade. A elite produzida deliberadamente pelo
51
HOLANDA, Sérgio Buarque de. A herança colonial: sua desagregação. In: História Geral da
Civilização Brasileira. O Brasil Monárquico t.2.,v.1.O processo de emancipação. Rio de Janeiro:
Bertrand, 1993, pp 9 - 39. Esse texto é exemplar quanto ao intuito de mostrar o quanto é frágil a
presunção, presente em algumas construções discursivas acadêmicas arraigadas ao discurso oficial, de
que aos domínios portugueses na América deveriam corresponder, após a ruptura de 1822, o território e a
nação para o novo Império brasileiro surgido de sua dissolução.
52
A interiorização da metrópole. In: A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda,
2005.
47

Estado foi eficiente na tarefa de fortalecê-lo, particularmente em sua capacidade de


controle da sociedade.”53 Na opinião do autor esse momento pode ser datado com certa
precisão, tendo origem no regresso conservador de 1837, em meio às incertezas e
turbulências enfrentadas pela Regência. O sistema de dominação foi concertado tendo
de um lado, o Rei e a alta magistratura, e de outro, o grande comércio, e a grande
propriedade, com destaque para a cafeicultura fluminense54.
Conforme Demétrio Magnoli que para que essa narrativa territorial brasileira –
preparada a partir do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – ganhasse substância,
foram fundidos o mito geográfico da Ilha-Brasil, que fora esboçado na obra de
Francisco Adolfo de Varnhagen, e que adquiriu forma definitiva ao final do século XIX,
e a doutrina das fronteiras naturais, que possui origem francesa, mas que sofreu um
revitalização por intermédio da geopolítica alemã.
A invenção do Brasil teria sido portanto, acompanhamos a Magnoli, um
empreendimento, conduzido em grande medida, no interior dos Institutos Históricos, os
quais reconstituíram sob uma nova perspectiva, o período colonial: o de ter propiciado
uma pátria natural, chocada no ninho do Império português, uma narrativa conforme
podemos perceber, elaborada pelas elites ilustradas imperiais. Contudo, a emancipação
dos escravos e a instauração da República, mudariam mais uma vez, esse quadro de
maneira substancial, tendo sido aguçada a questão da identidade geográfica.
Assim, cabe esclarecer, o que fazemos mediante uma contribuição da lavra do
geógrafo Antonio Carlos Robert Moraes55 que se durante a vigência do escravismo não
teria sido tão urgente a geração de ideologias geográficas voltadas ao consumo da base
da população, a derrocada da sociedade estamental colocava na linha de frente a nova
forma de idealizar o território.

53
Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Vértice, 1988, p. 11.
54
Ibidem, p. 11-13. Conforme explica o autor, o processo de enraizamento social da monarquia foi difícil
e complexo, e se a Coroa estava legitimada por volta de 1850, permaneceu tensa a relação entre o
Imperador e as forças dominantes do país até o final do Império. O autor ilustra em quadro à pag. 13,
quinze rebeliões (envolvendo atores como tropa, povo, proprietários e pequenos proprietários,
camponeses, índios, escravos, estancieiros e charqueadores), além de sete motins cujos participantes
principais foram a tropa e o ‘povo’. Entre o Ceará e o Rio Grande do Sul, da Corte ao Pará e Maranhão o
status quo foi frontalmente desafiado entre os anos de 1831 a 1848, sendo avaliado pelo autor que a
população urbana livre e o campesinato se constituíram no maior perigo à ordem vigente. Havia contudo
um grande cuidado para não envolver escravos em revoltas, o que não foi possível evitar no caso dos
Cabanos (PE e AL, 1832-1835); Cabanagem (PA, 1835-1840); Balaiada (MA, 1838-1841); e,
evidentemente a Revolta dos Malês (Salvador, 1835).
55
Notas sobre a identidade nacional e institucionalização da Geografia no Brasil. Estudos Históricos: Rio
de Janeiro, v.4, n.8, 1991, pp. 166-176.
48

Idealização que no entanto encontrava limites bastante curtos, pois a população


encontrava-se distribuída de forma rarefeita em grandes superfícies territoriais, o que
fazia ressoar as críticas que a geografia de feição ratzeliana destinava a este tipo de
relação povo-nação versus território, o tão temido risco de balcanização, que colocava
prognósticos sombrios para as nossas elites territorialistas, como em um espelho onde
os nossos narcisos não queriam mirar-se por saberem que se a posse da terra servia
como legitimante do poder político, por outro viés expunha os riscos de uma nação sem
cidadãos, ou melhor dizendo, por cidadãos que poderiam ser classificados como
passivos, ou não votantes, justamente por não serem proprietários. Caberia dizer que
essa nação rarefeita de cidadãos poderia não encontrar defensores dispostos a pagar um
singelo imposto de sangue, caso viesse a ter seu território questionado56.
Cabe esclarecer que nos anos iniciais do regime republicano, conforme observou
com acuidade o historiador e diplomata Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, o
imperialismo europeu era uma ameaça real ao território brasileiro. A diplomacia
brasileira havia sido derrotada em seus argumentos na questão de arbitramento da
fronteira com a Guiana Inglesa, e a ilha da Trindade havia passado por uma ocupação da
parte dos ingleses. A Conferência de Berlin, em 1885, além de haver consagrado a
partilha do continente africano, havia estabelecido princípios para que pudessem ser
declarados como rex nullius, ou ‘terras sem dono”, os territórios que não contassem
com uma efetiva ocupação na África. Assim o autor observa que caso esses princípios
fossem estendidos para a América do Sul, ficaria ameaçada “a maior parte do território
brasileiro, em especial a Amazônia. O Brasil fazia fronteira com três países europeus
(França, Inglaterra e Holanda) exatamente na região onde sua soberania era mais
nominal que real.”57
Em suma, seria o Brasil uma singularidade geográfica ocupada de forma um
tanto rarefeita por um povo “de irremediável incompletude e rusticidade”58 que não
encontrara o rumo do desenvolvimento, estando portanto, a priori, distante do progresso

56
Lembramos que a escrita de A América Latina: males de origem, da lavra de Manoel Bomfim ganhou
estampa em 1905 em boa medida para rebater críticas na imprensa francesa a respeito dos grandes
espaços que existiriam na América Latina, os quais estariam disponibilizados, pela ótica dos europeus, a
uma população inepta à exploração de todo aquele potencial. BOMFIM, Manoel. A América Latina:
males de origem.Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.
57
O Evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira. São Paulo: Unesp, 2012, p. 101. Lembra o
autor que ainda recente no panorama internacional seriam a abertura forçada do Japão ao comércio
internacional, a conquista da Indochina, a imposição de tratados desiguais à China e, na África do Sul, o
esmagamento dos boers.
58
VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro:
Revan, 1997. p.16.
49

e da civilização. Essa singularidade da nossa formação procurava abrigar-se das suas


visíveis vulnerabilidades sob as teses da teoria da fronteira natural59 e a temática
recorrente em boa parte da corrente conservadora, senão reacionária, da historiografia
brasileira60.
Afinal, se em seus fundamentos, aponta Janotti, a teoria da fronteira natural seria
simples61, o que acabaria fornecendo ao Estado o legitimante superestrutural para as
suas ações, a inculcação de historiografias conservadoras ou reacionárias podem
oferecer, por sua vez, o substrato necessário para as iniciativas voltadas para a
perpetuação ou recriação das representações afinadas com os interesses que gravitam
em torno do estado-maior das oligarquias. Em momentos assim, envolvendo e
mobilizando representações que agregam a nação e território, as efemérides passam a
fornecer as oportunidades para eventos de forte simbolismo, balizando e afiançando um
projeto de civilização.
Na linha de frente das urgentes soluções a serem tomadas, havia algo mais que a
formulação de recursos a envolver as tradições, a cultura e a re-engenharia social.
Caberia formular os traços do desejo de união nacional sobre uma base física, o
território. Isso equivaleria a dizer que deveria ser encontrado no passado mais
longínquo, as indicações que teriam oferecido à nação as condições de sua realização
histórica. Nos tempos pretéritos ocorreram momentos de avanço para o Oeste, de
descumprimento de Tratados – e da submissão de índios e de negros – momentos onde
poderia ser sugeridas a possibilidade de reavaliar o passado colonial, com as tradições
herdadas pela colonização portuguesa e pela ação da Igreja católica enquanto alicerces
do passado da nação.

59
Aldo Janotti explica que a teoria da fronteira natural teve sua origem na Europa, embora ela nunca tenha
sido levada em conta pelos próprios europeus, relevando-se que Lucien Febvre distinguiu-se como dos
mais esforçados no sentido de desacreditá-la. Para Febvre, quem dissesse limite natural estaria a dizer
‘limite predestinado – ideal a conquistar e a realizar’. Citado em Janotti, Aldo. Historiografia brasileira e
teoria da fronteira natural. Revista de História. n. 101, v. LI, jan-mar 1975, p. 239 – 263.
60
A linha historiográfica reacionária constitui para José Honório Rodrigues, uma exacerbação
conservadora, o que equivaleria dizer que os princípios seriam os mesmos, “agravados excessivamente
pela visão deturpada e extremista”, onde ocupam lugar de destaque a defesa do direito natural, da
prudência, da imperfectibilidade humana e o da prescrição. É a legitimação exaltada do status quo que
torna reacionária a posição conservadora. A corrente reacionária na historiografia brasileira é tributária de
autores como Edmund Burke, Bonald e De Maistre, corrente que encontrou sua inspiração inicial na
reação à Revolução Francesa. História da História do Brasil.v.II,t.1 ( A Historiografia Conservadora). São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1988. Ver especialmente os Cap. I e III.
61
“os países, visando maior segurança, devem, preferentemente aos políticos, levar seus limites até
fronteiras naturais, como por exemplo, o mar, o rio, a montanha. Envolve portanto, tal teoria,
preocupação nitidamente defensiva, estreitamente vinculada aos acidentes da natureza, justificando
inclusive o caso de um esforço ofensivo que, com a mesma finalidade defensiva, procure levar os limites
de um determinado país até os referidos acidentes naturais”.Idem, Ibidem, p. 246-7.
50

Em 1922, a questão do território aparece mais uma vez como parte da tarefa do
IHGB de expansão dos seus horizontes de atuação. Nesse sentido, nos parece
emblemático o Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil, uma
contribuição do Instituto iniciada ainda em 1917, a qual foi destinada ao público leigo.
Em tal empreendimento, que Lucia Maria Paschoal Guimarães insere como
inscrito na onda do culto à nacionalidade, o território aparece como delimitação da
soberania nacional. Ou seja, se a idéia central era “desvendar o Brasil aos brasileiros
pelo caminho das letras”62, nesse grande repertório deveriam estar reunidos “os
conhecimentos básicos que os bons brasileiros deveriam dominar sobre a Pátria
...(...)...[assim], do meio físico, passava-se para a formação étnica e cultural, chegando-
se até os principais fastos da História Nacional e seus vultos ilustres”63.
Colocadas as considerações iniciais acerca das noções de nação, território e
civilização, julgamos caber dar vazão a algumas linhas no sentido de contextualizar a
época que estudamos. Ressalvamos que nosso trabalho não tem por intuito aprofundar
em demasia as questões que envolvam as estruturas política, social e econômica
vigentes na Primeira República. Manteremos nossa atalaia postada sob o celeiro que
para nós representa a historiografia brotada no seio dos Institutos Históricos e
Geográficos, ou mais precisamente, de alguns dos seus mais ilustres historiadores.
Nessa postura, cabe esclarecer, devemos nos colocar sob as imposições da
chamada “metáfora do fotógrafo”, expressão utilizada por Reinhart Koselleck para
exprimir aquelas escolhas que o pesquisador passa a utilizar quanto ao escopo do seu
estudo, e que se tornam determinantes quanto às escolhas das fontes utilizadas64.
A Primeira República brasileira costuma ser lembrada como a República do
Café com Leite, ou de forma mais abusada, pelo epíteto de “República Velha”, que foi
conforme os homens que fizeram a Revolução de 1930 resolveram batizar esse período
republicano. O apelido algo pejorativo foi reforçado durante o chamado Estado Novo, a
ditadura varguista levada a efeito entre os anos de 1937 a 194565.
A bibliografia dedicada à Primeira República é vasta, oferecendo ao leitor
múltiplas possibilidades de exploração. Por ocasião do centenário da República, as

62
Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro:
Museu da República,2006,p.95.
63
Ibidem, p.96.
64
Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.5, n10,
1992, p. 137.
65
DE DECCA, Edgard. 1930: o silêncio dos vencidos (memória, história e revolução). 6.ed. São Paulo:
Brasiliense, 1997.
51

historiadoras Angela Maria de Castro Gomes e Marieta de Moraes Ferreira publicaram


um recenseamento que visava apontar os trabalhos de mais fácil acesso ao público. A
iniciativa – bastante exitosa – procurava ainda contemplar com uma maior visibilidade
as teses que ainda não haviam sido publicadas. Trata-se ainda para aqueles interessados
no período, de uma boa leitura inicial que aponta a diversificação a partir dos marcos de
uma história reconhecidamente política, e que inclui, além de trabalhos de historiadores,
algumas importantes contribuições de cientistas políticos e economistas. Assim,
ficavam registradas as temáticas de importantes movimentos sociais, base para que
fosse discutido aquele período, como o tenentismo, o movimento operário, o
campesinato, e as questões que envolviam a urbanização.66
Contudo, quando falamos na primeira república, a estruturas jurídico-federalistas
vigentes nesse período tornam-se um assunto incontornável, devendo merecer por esse
motivo, da nossa parte, um melhor desenvolvimento. Pois conforme escreveu Amílcar
Viana Martins Filho, foi essa estrutura, consagrada na Constituição de 1891, que
possibilitou aos Estados tornarem-se as unidades político econômicas básicas sobre as
quais se assentava o sistema federativo brasileiro67.
Esse sistema federativo transformou as unidades da Federação nos verdadeiros
centros políticos do país, com o direito de votar as suas próprias constituições, organizar
suas forças públicas estaduais, contrair empréstimos diretamente do exterior e canalizar
para os cofres de suas próprias Fazendas Públicas o imposto sobre as exportações. A
autonomia para os Estados e a hierarquização entre eles acabaram por permitir a criação
de um federalismo desigual, havendo unidades estaduais de primeira, segunda e terceira
grandezas na federação.
O sistema político vigente na Primeira República poderia ser entendido então
como uma forma de favorecer o setor agro-exportador, por sua política fiscal, bem

66
GOMES, Ângela de Castro, FERREIRA, Marieta de Moraes. Primeira República: um balanço
historiográfico. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2, n.4, 1989, pp.244-280. Resta destacar além do
artigo dessas historiadoras, por sua importância em nosso estudo, os trabalhos de Joseph Love, ‘São Paulo
na Federação Brasileira: 1889-1937’, John D. Wirth, ‘Minas Gerais na Federação Brasileira: 1889-1937,
cujos recortes temporais e similitudes temáticas sob a forma de capítulos permitiram adquirir uma visão
mais totalizante dessas duas unidades federativas. Também listado pelas autoras, o ensaio de Renato
Lessa, ‘A Invenção Republicana: Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República
brasileira’, merece realce por propor uma análise sob o guarda-chuva teórico das proposições de Robert
Dahl, tanto para o reformismo do período imperial, quanto para os procedimentos do pacto oligárquico
republicano. Ainda digno de nota, e bem mais recente é o volume de ensaios organizado por Jorge
Ferreira e Lucília de Almeida Neves Delgado, intitulado O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo
excludente (da Proclamação da República à Revolução de 1930). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2008.
67
A Economia política do café com leite: 1900 – 1930. Belo Horizonte: UFMG/PROED, 1981.
52

como os Estados mais populosos, por sua densidade eleitoral. Havia sim, uma política
regionalista, mas que era sobretudo uma política oligárquica, que se distinguia uma
determinada região, favorecia por sua vez desigualmente as classes sociais, servindo o
termo oligarquia estadual como referência simultânea para a localização geográfica e a
dimensão de classe da elite política.
Nesse sentido Celso Furtado assinalou para o período a importância crescente da
classe média urbana, e no interior dessa, destacando-se as burocracias civil e militar.68
Amílcar Viana ressalta que haviam três pontos fundamentais no federalismo brasileiro,
a saber, a dominação oligárquica, a exclusão de setores não oligárquicos e uma
hierarquização do poder entre as oligarquias. Cabe lembrar no entanto que a vitória
desse modelo de república liberal burguesa de moldura conservadora e dinâmica
oligárquica além de socialmente excludente e elitista em termos sociais não estava
configurada ao término da parada militar ocorrida sob o tapete de estrelas da noite de 15
de novembro de 1889, no Rio de Janeiro.
Assim acredito que podemos considerar a vitória de modelo republicano ao qual
se costuma dar o nome de modelo Campos Sales como uma exitosa escalada cujos
marcos fundamentais teriam sido a promulgação da Constituição de 1891 e o advento de
liquidação da ditadura militar burguesa representado pela posse de Prudente de Morais
em 1894. Sua ascensão se fez em uma áspera disputa entre os modelos republicanos
então disponíveis, discordantes em suas concepções e portanto rivais. Os constantes
atritos e graves desentendimentos entre essas facções republicanas foram a tônica dos
primeiros anos do novo regime, além de pairar sobre a jovem república uma séria
desconfiança de que os próceres do regime decaído conspiravam por uma restauração
monárquica69. O desencontro entre as hostes oligárquicas colaborou para que a
indefinição dos rumos do novo regime perdurasse até a tentativa de assassinato do
presidente Prudente de Morais, quando finalmente refluíram as manifestações de rua

68
Formação econômica do Brasil. 22.ed.São Paulo: Editora Nacional, 1987.
69
A facção de republicanos radicais antiliberais, ou ainda, jacobinos, levada à tona dos acontecimentos
pelas circunstâncias enfrentadas pelo regime durante a chamada ‘República da Espada’, organizada em
clubes republicanos e mobilizada sob uma força paramilitar que recebia o nome de batalhões patrióticos
era constantemente açulada pelas folhas de uma imprensa republicana radical face a eventos como a
Revolta da Armada de 1893, a Revolução Federalista no Sul do Brasil ou ainda pela ameaça que
julgavam haver no arraial de Canudos, levantado no sertão da Bahia. CARONE, Edgard. A república
velha II: evolução política (1889-1930). São Paulo: Difel, 1977; SAES, Décio. A formação do estado
burguês no Brasil (1888-1891). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Os
radicais da república: jacobinismo, ideologia e ação (1893-1897). São Paulo: Brasiliense, 1986; e,
PENNA, Lincoln de Abreu. O progresso da ordem: o florianismo e a construção da república. Rio de
Janeiro: Sette Letras, 1997.
53

pela contenção das ações dos jacobinos, que acabam desmobilizados perdendo assim o
seu ‘momento maquiaveliano’70.
Cabe acrescer que as oligarquias que chegam à presidência com Prudente de
Morais e são consolidadas no poder com Campos Sales se consideravam então como
erguidas a uma posição de guias do Estado-Nação, e conseguiram já ao término da
primeira década republicana, fazer com que fossem fechados os canais orgânicos para a
participação popular, além de reduzir ao máximo as disputas políticas nos âmbitos
estaduais.
Essas oligarquias estavam classificadas entre principais e secundárias, sendo que
as primeiras buscavam assenhorear-se do governo federal, como foi o caso da aliança
política entre São Paulo e Minas Gerais, ficando para as secundárias, os governos
estaduais, que mesmo em Estados não hegemônicos, eram em menor escala,
beneficiárias desse sistema. A pressão econômica, basicamente o controle da terra a da
oferta de trabalho pelos coronéis, foi largamente utilizada enquanto instrumento de
dominação oligárquica. Mas a violência e a coerção física representavam também seu
papel na sustentação política das oligarquias.
Federalismo e clientelismo político foram dois elementos básicos que se
combinaram na estrutura do regime político brasileiro, durante a primeira república.
Assim, Amílcar Viana explicou o federalismo brasileiro, que permitiu que Minas Gerais
e São Paulo assumissem a liderança política nacional. Esse autor reitera que nessa forma
e sob estas condições, não seria incorreta a utilização dos termos oligarquias política
paulista e mineira como sinônimas de elite política paulista e mineira, que bem
poderiam “falar” em nome de seus Estados, por controlarem inteiramente os governos e
as máquinas políticas estaduais, auxiliadas como sabemos, pelo reverso da lisura
política, representados pelo voto de cabresto, as atas a bico de pena e as comissões de
verificação de poderes.
Tratava-se assim, ao fim e ao cabo, da manutenção de uma lenta transição que
devia encaminhar-se para uma ordem social competitiva, ou seja, a constituição de uma
sociedade de classes, planejada no entanto para que ocorresse sem rupturas no interior
das elites71, posicionamento que seria consoante à visão de mundo de elites

70
COSTA, Antonio Carlos Figueiredo. A República na Praça (1893-1899). São Paulo: Baraúna, 2010.
71
Observemos as condições que em seu exercício de sociologia histórica comparada Barrington Moore Jr.
Realizou quanto às vias abertas ao mundo tradicional para o mundo moderno. Constata-se pela obra de
Moore que em certos países ocorreu uma asfixia das condições necessárias para uma ruptura
revolucionária de modelo burguês, sendo este um dos fatores de determinação para a dificuldade de
54

territorialistas, as quais estariam acostumadas a identificar o poder com a extensão e a


densidade populacional dos seus domínios, e a conceber o capital como um subproduto
de busca de expansão territorial 72.
Caberia completar que essas características tão incrustadas na mentalidade
brasileira, possuíam um longo curso, tendo sido cabalmente demonstrada no excelente
estudo preparado por Angela Alonso, autora que descreveu o liberalismo imperial como
o constructo responsável por reproduzir politicamente a desigualdade social 73.
Haviam – e em elevado número – os descontentes, que não aceitavam a
incômoda posição de cidadãos de segunda classe em uma ‘res-publica’. Assim, eles se
revelaram em Canudos e no Contestado, nas barricadas do bairro da Saúde, durante a
‘Revolta da Vacina’, e à bordo das belonaves comandadas por João Cândido Felisberto,
o ‘Almirante Negro’, na formidável revolta dos marinheiros de 1910, exemplo cabal da
expansão das energias cívico-republicanas partidas de um humilde homem ‘do povo’.
Porém, havia mais, pois com aquilo que se revelou uma explosiva combinação de
imigração estrangeira – sobretudo italiana – e a acelerada urbanização, foi multiplicado
em termos exponenciais o universo daqueles que militavam nas fileiras anarquistas. As
duras condições de subsistência do operariado serviram então como combustível para as
corajosas jornadas de lutas trabalhistas, com suas inevitáveis greves, das quais as
ocorridas em 1917 mereceram até o momento a maior atenção dos pesquisadores.
Um verdadeiro choque nas orgulhosas pretensões dos donos do poder, que
juravam não haver – como se dizia na linguagem corrente daquela época – uma
‘questão social’ no Brasil. Assim, os sindicatos e suas quase sempre justas
reivindicações passaram a ser inscritos na agenda pública, porém como um ‘caso de
polícia’74.

formação de uma moderna sociedade civil. As Origens Sociais da Ditadura e da Democracia: Senhores e
Camponeses na Formação do Mundo Moderno. São Paulo: Atlas, 1987. Sobre a teoria das elites, ver o
artigo de Eduardo de Freitas, ‘Algumas notas sobre a teoria das elites’, em Análise Social. ano 8, n.30-31,
1970, p. 519-527.
72
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1996. O autor utiliza-se da expressão componente aristocrático territorialista, que seria
ibérico e especializado no fornecimento de proteção e busca de poder, o qual aliado a um componente
burguês (e dicotômico) capitalista , de origem genovesa, especializado na compra e venda de mercadorias
e na busca do lucro enfim, teria resultado na expansão material do primeiro ciclo sistêmico de
acumulação. Um desenvolvimento mais aprofundado sobre a temática do territorialismo na formação
ibérica pode ser encontrada em FILHO, Rubem Barbosa, Tradição e Artifício: iberismo e barroco na
formação americana, Belo Horizonte: UFMG, 2000, p. 217 – 258.
73
Idéias em Movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
74
Cabe remeter à obra de Sheldon Leslie Maram. Nas centenas de greves que analisou para alinhar os
argumentos contidos no seu livro, o autor deparou-se com a participação indissimulada da polícia contra o
operariado, com exceção para alguns poucos casos. As autoridades religiosas uniram-se ao patronato, ao
55

Em 1922, ano emblemático pela efeméride do centenário da independência e da


Semana de Arte Moderna, ocorria o episódio dos ‘dezoito do Forte de Copacabana’,
além da fundação do Partido Comunista Brasileiro. Dali a dois anos apenas, surgia o
heróico movimento que foi a ‘Coluna Prestes’, que no espaço de cerca de três anos
afrontou de forma desafiadora o poder das oligarquias, até retirar-se da luta – invicta –
internando-se no interior da Bolívia.
No período compreendido por nosso estudo, alguns daqueles que se dedicavam
às ‘letras históricas’ realizavam suas pesquisas baseados em práticas que às vezes
ficavam fronteiriças às dos antigos antiquários. Suas leituras costumavam obedecer a
um natural diletantismo, o qual devemos no entanto relativizar e considerar como
desculpável pela ausência de formação específica. Os resultados desses estudos
brotavam sob a forma de ensaios, no que vinha à luz uma história algo romanceada,
extremamente factual e que debandava em algumas circunstâncias, para a prática
laudatória75.
Algo de novo começara a surgir no entanto, no ambiente dos Institutos
Históricos a partir da primeira década do século XX, o que envolvia novos critérios de
admissão de sócios, bem como algumas iniciativas que vieram a propiciar a divulgação
de trabalhos considerados como modelos a serem seguidos. Ocorreram também
momentos propiciatórios que colimavam a identificação do ‘estado da arte’ no qual se
encontrava a pesquisa histórica no Brasil. Devemos considerar então que nas suas
melhores expressões figurava de forma hegemônica, a história de modelo narrativo.
Tomadas essas considerações como uma espécie de pano de fundo, passamos a
considerar nossas escolhas teórico-metodológicas, eleitas em virtude das fontes
primárias que exploramos, que conforme dissemos páginas atrás são em sua maioria
ensaios de história. Os instrumentais teóricos que melhor se aplicam a analisar as
práticas historiográficas hegemônicas no Brasil durante as três primeiras décadas do

governo e ao seu aparelho repressor. Assim, mesmo o direito de reunião pacífica, protegido pela primeira
carta constitucional republicana não oferecia as suficientes garantias, pois os ocupantes do poder a
interpretavam à sua maneira, como se tivessem prerrogativas divinas, como as majestades dos czares de
todas as ‘Rússias’. Anarquistas, imigrantes e o movimento operário brasileiro: 1890 – 1920. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979. (grifos nossos).
75
Conforme defendeu Arno Wehling, os historiadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro se
referiam, desde a sua fundação, a uma história tríplice, ou seja, filosófica por elucidar o significado dos
acontecimentos à luz das grandes tendências; pragmática, para que pudesse servir como orientação para a
sociedade do presente; e, crítica, no intuito de eliminar excessos literários e restabelecer, mediante a
adoção de métodos confiáveis, a verdade objetiva, ressalvadas aquelas distorções partidárias de viés
político ou religioso. A invenção da história: estudos sobre o historicismo. 2.ed. Rio de Janeiro: Gama
Filho, 2001,p. 139.
56

século XX nos são proporcionados por algumas contribuições que gravitam nas obras de
seletos historiadores como Reinhart Koselleck, François Hartog, Hayden White, José
Carlos Reis e Astor Antonio Diehl.
Partimos portanto da noção de cultura historiográfica, conceito chave na obra de
Diehl. Para esse autor, a cultura historiográfica pode ser pensada como uma
especificidade da cultura histórica. Ela se encontra ligada ao ofício do historiador, e ao
estudo da história enquanto disciplina, englobando as suas mudanças ao longo do
tempo, que são de natureza teórico-metodológica, mas que também envolvem as
alterações sociais e culturais da sociedade76. A cultura historiográfica encontra-se então
vinculada à complexidade que envolve o conhecimento histórico no que propomos
considerá-la inclusive como articulada ao regime de historicidade, noção cara a François
Hartog.
De acordo com Hartog, devemos entender o regime de historicidade como uma
‘ferramenta’ que busca esclarecer o tempo presente, sendo formulada a partir de nossa
contemporaneidade, e que se destina a permitir o desdobramento de um questionamento
da parte do historiador, ou seja, do vaivém entre o presente e os ‘passados’ freqüentados
por este, passados esses via-de-regra tão distanciados uns dos outros, tanto no tempo,
quanto no espaço.
Assim tornar possível o desdobramento do historiador sobre as suas relações
com os tempos passados é a especificidade dessa ferramenta heurística, que tem por
finalidade precípua, ajudar a melhor compreender os momentos de crise do tempo, ou
seja, aqueles momentos nos quais se perde a evidência das articulações entre o passado,
o presente e o futuro.
A noção de regime de historicidade deve servir então, de acordo com Hartog,
para operar nos espaços de interrogação produzidos entre o presente e os ‘passados’,

76
De acordo com Diehl, devemos entender por cultura historiográfica todas as formas de representação
do passado, característica que torna esse conceito dotado de maior abrangência em relação ao de
historiografia. É dessa forma que a cultura historiográfica consegue dar conta das diferentes áreas das
ciências humanas, aspecto que se articula à história enquanto disciplina para ter plausibilidade científica
no quadro das ciências humanas. O autor considera que para que essa plausibilidade possa existir deve ser
contemplada uma matriz composta por cinco elementos – pelo menos – que produzem sua
fundamentação, a saber: 1. Interesses pelo conhecimento histórico; 2. Perspectivas teóricas sobre o
passado; 3. Método e técnicas de pesquisa; 4. Formas de representação do conhecimento, ou seja, para a
história, as formas narrativas historiográficas; e, 5. As funções didáticas da história. Ainda para Diehl, o
pensar histórico terá plausibilidade científica se o historiador conseguir argumentar a partir de três
perspectivas de interesses: o teor das experiências (o passado somente terá sentido a partir das orientações
dos problemas do nosso presente e da prática social), o teor das normas (a função que o conhecimento
terá na atualidade) e o teor dos sentidos (o espaço sociocultural no qual o conhecimento é produzido).
DIEHL, Astor Antonio. Cultura historiográfica: memória, identidade e representação. Bauru: Edusc,
2002.
57

passados esses que tanto podem ter sido esquecidos, quanto demasiadamente lembrados,
mas que irremediavelmente podem manter relações com um futuro ameaçador. Para
Hartog, a noção de regime de historicidade vale tanto por, como tanto, para esses
movimentos de ida ao passado e reencontro do historiador com o seu presente.
Com efeito, lembra François Hartog que o tempo histórico na feição
koselleckiana “...é produzido pela distância criada entre o campo de experiência, de um
lado, e o horizonte de expectativa, de outro: ele é gerado pela tensão entre os dois
lados. É essa tensão que o regime de historicidade propõe-se a esclarecer...”77
Já a cultura histórica sob a acepção de Diehl, possui uma amplitude que abrange
pensar historicamente além dos cânones da historiografia, o que significa que inclui
historiadores não acadêmicos, mas também leigos que pensam a história a seu modo.
No Brasil, o processo de institucionalização do saber histórico ocorreu a partir
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em uma tarefa que visava a
construção de uma identidade nacional iluminista, realizada sob a perspectiva de uma
história científica. A construção da idéia de nação foi realizada – conforme ressalta
Diehl – em sentido contrário ao das demais nações latino-americanas, pois a nova nação
procurou reconhecer-se como continuadora da tarefa civilizadora que se considerava ter
sido iniciada pela colonização portuguesa. Dessa forma, conforme aponta Astor Antonio
Diehl, ao se definir externamente ‘o outro’ do Brasil, qual seja, as outras nações, os
homens do IHGB teriam constituído uma totalidade brasileira: uma nação monárquica e
civilizada que poderia ser contraposta às suas vizinhas repúblicas latino-americanas
então avaliadas como o espelho da barbárie e da desorganização.
Devemos considerar no entanto que com a instauração no Brasil do regime
republicano de governo, essa identidade deveria passar por uma reavaliação78, passando
as repúblicas vizinhas da América do Sul, da condição de ameaças em potencial, para o

77
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte:
Autêntica, 2013, p. 39. Sobre o conceito de tempo histórico na perspectiva proposta por Reinhart
Koselleck, podemos acrescer uma curta, porém esclarecedora observação de José Carlos Reis. Para ele, o
historiador alemão introduz o que parece essencial para a constituição de um terceiro tempo: a perspectiva
da simultaneidade, não na perspectiva estrutural, mas historicista. Cada presente articula-se com o
passado e o futuro em ritmos diferenciados. Nesse sentido, o tempo histórico é pensado por Koselleck a
partir de duas categorias principais: o ‘campo de experiência’ e o ‘horizonte de espera’. A tensão entre
experiência e espera fica apresentada numa dinâmica relação que suscita diferentes soluções e engendra o
tempo histórico. REIS, José Carlos. O conceito de tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e “Annales”:
uma articulação possível. Síntese, Belo Horizonte, v.23, n.73, p.229-252, 1996.
78
Conforme frisou Marco A. Pamplona, “quando antigas designações se mostram inadequadas à
realidade ou incompatíveis com as novas ideias professadas, elas costumam ser redefinidas”. Verbete
‘nação’. In: FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da histórica dos conceitos políticos do Brasil. Belo
Horizonte: UFMG, 2009, p.169.
58

status de repúblicas vizinhas co-irmãs. Redefinido também seria o conceito de nação,


pois o projeto historiográfico imperial considerado sob a centralidade da obra de
Francisco Adolfo de Varnhagen – e conforme veremos, cuja hegemonia ainda era
indisputada por volta de 1914 – havia excluído a índios e negros.
Tomando a idéia da redefinição como norteadora dos nossos argumentos,
tentaremos vincular o conceito de regime de historicidade que é parte componente do
nosso instrumental teórico e metodológico à noção de imaginação histórica, com vistas
a alicerçar alguns fundamentos às nossas pretensões, qual seja, argumentar que havia
nos derradeiros anos do século XIX as condições para que os historiadores viessem a
pensar a nação e a constituição do território brasileiro sob um pressuposto diverso
daquele defendido por Varnhagen, ou seja, pensar um pouco ao arrepio daquilo que
Elias José Palti denominou corretamente como “una poderosa tradición historiográfica
que alcanza su primera sintesis con la História Geral do Brasil...” 79.
Ora, disso dependiam não somente das experiências possibilitadas por alguns
desafios surgidos a partir de eventos históricos, como a instauração da República e a
Abolição, mas também da disponibilidade de certo tipo de documentação, fosse essa
inédita ou já conhecida, porém revisitada sob outra perspectiva. Todo esse trabalho de
inquirição dos tempos passados se tornava possível pela obra de uma geração que
chegou movimentada por ‘um bando de idéias novas’, geração à qual pertenceu Sílvio
Romero e Capistrano de Abreu. A esses prolíficos trabalhadores das letras históricas
deu continuidade a geração de 1890, à qual pertenceram, entre outros, Basílio de
Magalhães, Afonso Taunay e Lúcio José dos Santos. Face ao trabalho dessas duas
gerações tornava-se possível, conforme procuraremos demonstrar, redefinir conceitos
tais como nação, território e civilização, modificação que tornava possível ao
historiador, ao escrever a sua dissertação, exercer a sua imaginação histórica sob outros
pressupostos. De acordo com H.White, depois de ter o historiador descoberto aquilo que
verdadeiramente teria acontecido e representar aquilo que encontrou sob uma narrativa,
de acordo com a teoria histórica dita tradicional – pelo menos, desde a segunda metade
do século XIX – ele poderia abandonar o modo narracional de falar, para dirigir-se ao
leitor e representar sua opinião cuidadosa de especialista. Assim ele passava a discorrer
sobre a natureza do período que estudara: lugares, agentes, forças e processos. Assim, a

79
Imaginación Histórica e Identidad Nacional en Brasil y Argentina. Un estudio comparativo. Revista
Iberoamericana. V. LVII, n. 174, enero.marzo, 1996, p. 52.
59

dissertação do historiador era a interpretação daquilo que ele entendeu ser o relato
verdadeiro. Dessa forma, nas palavras de Hayden White,
“um dado discurso histórico podia ser factualmente preciso e tão verídico
em seu aspecto narrativo quanto a evidência permitisse, e ainda assim ser
valorado como um engano, inválido, ou inadequado em seu aspecto
dissertativo. [ou seja] os fatos podiam ser verdadeiramente expostos, e a
interpretação deles, errônea.” 80.

Dessa forma, face aos objetivos que propomos, cabe iluminar o conceito de
imaginação histórica, observando as proposições de Hayden White, que o distingue
como a capacidade de criação de imagens que se exercitam no passado histórico,
cabendo ao historiador o papel de utilizar-se de metáforas para que venha a lograr a
necessária conciliação de dados que possui acerca de um determinado passado81.
Caberia no entanto acrescer que a noção de imaginação histórica foi tematizada
anteriormente na obra clássica de Robin George Collingwood, ‘A idéia de História’82.
Então a crítica histórica aparecia a Collingwood como a demonstração de autonomia do
historiador, pois se na teoria do senso comum a memória e a autoridade das fontes
surgem como essenciais para a História, certo é que todo historiador possui a
consciência de alterar, quando necessário, aquilo que encontra nas suas fontes, pois
seleciona delas o que lhe parece importante – omitindo o resto – interpolando nelas
coisas que elas não dizem explicitamente, além de criticá-las, rejeitando ou emendando
aquilo que considera devido a informações erradas ou a falsidades.
E a autonomia da qual se acha investido o historiador aparece de forma mais clara
sob o nome de interpretação histórica. Neste sentido, cabe lembrar que se as fontes do
historiador falam desta ou daquela fase de um processo do qual os estádios intermédios
ficam por descrever, é o historiador que procede à interpolação desses estádios. Dessa
feita ele constrói a imagem do seu objeto, que consiste naturalmente em afirmações
extraídas diretamente de suas fontes, das quais a competência do historiador produz
aumentos provenientes de afirmações atingidas dedutivamente, a partir de aspectos
dessas fontes que estejam de acordo com seus critérios, suas regras metodológicas e
seus cânones de importância. As fontes assumem, nesta fase do trabalho, o status de
simples provas. Para Colingwood, além de selecionar entre as afirmações das fontes

80
A questão da narrativa na teoria histórica contemporânea. In: NOVAIS, Fernando Antonio, SILVA,
Rogério Forastieri da.(orgs.). Nova História em perspectiva. V.1. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 443.
81
O fardo da História. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp,
2001.
82
COLLINGWOOD, Robin George. A idéia de História. 8.ed. Presença: Lisboa, 1994.
60

aquelas que considera importantes, o historiador deveria transcender de dois modos


aquilo que as fontes lhe dizem. A primeira é o modo crítico. A outra é o modo
construtivo, que consiste na interpolação, entre as afirmações feitas pelas fontes, de
outras afirmações deduzidas daquelas, o que o historiador faz inferindo, e que não pode
ser de forma arbitrária ou meramente imaginativa, mas kantianamente apriorística.
Mas o que é inferido desta forma, é essencialmente, algo que se imagina. Se esta
construção não implica nada que não seja exigido pela evidência, ela será uma legítima
construção histórica. É a imaginação histórica que atuando sob a sua forma apriorística
que executa todo o trabalho de construção histórica, bem entendido que esta atuação não
pode ser caprichosa ou fantasiosa, mas de imaginação apriorística, tipificada em
pensamento histórico. A imaginação histórica tem por tarefa especial, “imaginar o
passado: não um objeto de possível percepção, uma vez que já não existe, mas um
objeto suscetível de se tornar, através da imaginação histórica, um objeto do nosso
pensamento.”83
A imaginação a priori, que executa o trabalho de construção histórica, é para
Collingwood, quem acaba fornecendo os meios necessários à crítica histórica. Ademais,
ainda conforme Collingwood, aceitando, modificando, rejeitando ou reinterpretando o
que lhe comunicam as fontes-autoridades, é o historiador o responsável pelas
afirmações que faz, sendo que seu critério de justificação não poderá ser nunca o de ter
recebido as afirmações de uma fonte autorizada: estas informações necessitam receber a
devida crítica. Assim, conforme o autor, a imagem que o historiador elabora sobre um
determinado passado é um produto da sua imaginação a priori, mas ele deverá justificar
as fontes usadas na sua construção, merecendo estas fontes crédito, na medida em que
sejam justificadas.
Afinal, se como obras de imaginação o trabalho do historiador e o do romancista
não diferem, o quadro criado pelo historiador deverá possuir veracidade, o que passa a
obrigá-lo a obedecer três regras de método: 1. O seu quadro tem de estar situado no
espaço e no tempo; 2. Toda história deve ser coerente em relação a si mesma, havendo
somente um mundo histórico e nele tendo que estar em relação com tudo o mais, ainda
que esta relação seja apenas topográfica e cronológica; e, 3. O quadro esboçado pelo
historiador encontra-se relacionado especialmente com aquilo que se chama provas, o

83
A idéia de História. 8.ed. Presença: Lisboa, 1994, p. 303.
61

que vale dizer que para o ajuizamento sobre a veracidade de uma afirmação histórica,
recorre-se a relação entre esta afirmação e as provas84.
Ora, o conceito de imaginação histórica nos coloca face a face com os
apetrechos dos quais se socorre o historiador em seu trabalho de captura dos tempos
pretéritos. O seu gabinete de trabalho podendo ser comparado a um atelier ou oficina,
uma imagem que consideramos de especial significado, por trazer à baila o ambiente de
trabalho do historiador. Qual a bancada de um artífice, foi no bureau do historiador –
que no caso de Capistrano de Abreu bem poderia ser um rede ou mesmo uma mesa onde
documentos antigos e obras raras dividiam espaço com prosaicos cachos de bananas –
que se deu a instituição do chamado método rankeano na historiografia brasileira,
tornado a partir de então o modus operandi pela qual evoluiu a execução do trabalho
histórico, documental e realista, sob um modelo narrativo.
Seria através da edição e das anotações de João Capistrano de Abreu sobre a
monumental obra de Francisco Adolfo de Varnhagen que julgamos poder encontrar uma
consistente explicação para o desenvolvimento da pesquisa histórica no período que
consideramos. Foi através da revisitação dos escritos de Varnhagen, das leituras dos
mestres alemães como Leopold Von Ranke e de alguns trabalhos tematicamente
inovadores que o historiador João Capistrano de Abreu conseguiu ampliar a sua
influência sobre os outros historiadores. Alguns dos resultados mais significativos se
revelaram de forma palpável a partir do Primeiro Congresso de História Nacional,
promovido pelo IHGB em 1914.
Dessa forma, coube a Capistrano de Abreu, conforme tentaremos demonstrar
nos capítulos seguintes, imbricar um monumento da historiografia – a História Geral do
Brasil – e a edição crítica de textos históricos da época colonial85, com a imposição do
método histórico dito rankeano86 e com tudo isso, prover a entronização daquilo que
podemos considerar como o primado do documento.

84
Ibidem.
85
Conforme observam Angélica Madeira e Mariza Veloso, Capistrano editou de maneira cuidadosa a
obra magistral de Frei Vicente do Salvador (História do Brasil, 1612), os tratados de Cardim e Gândavo,
além de fazer as descobertas definitivas sobre a autoria de textos coloniais, como a Cultura e Opulência
do Brasil (1711), quando conseguiu identificar o jesuíta Andreoni a Antonil. Molduras para o período
colonial brasileiro: uma agenda de pesquisa. In: ____________ (orgs.). Descobertas do Brasil. Brasília:
Unb, 2001.
86
Uma interessante associação entre as proposições partidas de Ranke e a apropriação posterior dessas
pela escola histórica francesa que ao final do século XIX havia passado a gravitar ao redor dos métodos
popularizados por Langlois e Seignobos na obra ‘Introdução ao estudo da história’, cuja primeira edição é
de 1898, foi alinhada por Guy Bordé e Hervé Martim. Avançamos que à época da realização do Primeiro
Congresso de História Nacional, em 1914, a ‘Introdução ao estudo da história’ já havia se tornado uma
62

Os pressupostos teórico-metodológicos formulados por Ranke aparecem em


nosso trabalho sob a lente proposta pelo historiador norte-americano Hayden White87.
Esse historiador considerou que a marca realista da historiografia de Leopold Von
Ranke, que veio posteriormente a ser chamada de historicismo, deve ser entendida como
uma espécie de modelo daquilo que uma historiografia profissionalmente responsável
devesse aspirar, considerada a conformação intelectual dos historiadores a partir da
segunda metade do século XIX.
A história dita rankeana, vale dizer, de enfoque diferenciado daquele que era
proposto por positivistas, românticos e idealistas, caiu no gosto dos historiadores, tanto
conservadores, quanto liberais, fazendo desse modelo aquilo que deveria ser uma

espécie de bíblia dos estudos históricos. De acordo com Bordé&Martin, em meados do século XIX, as
teses de Leopold Von Ranke haviam popularizado fórmulas as quais pretensamente científicas e
objetivas, influenciaram seguidas gerações de historiadores na Alemanha, mas também na França, onde
jovens historiadores, entre estes Charles Seignobos, influenciados pela vitória alemã na Guerra Franco-
Prussiana, associavam a então perfeita organização das instituições militares alemãs às instituições civis e
intelectuais do além-Reno, onde foram completar a sua formação, com anseios futuros de assegurar a
reparação francesa. A Escola Metódica aplicaria então à letra, o programa de Von Ranke. Guy Borde e
Hervé Martin resumiram os postulados teóricos de Leopold Von Ranke da seguinte forma: o historiador
devia registrar o fato histórico de maneira passiva, como o espelho reflete uma imagem, ou a câmera
fotográfica uma paisagem, pois a tarefa do historiador deveria consistir na reunião de um número
suficiente de dados, assentados em documentos seguros, sendo que a partir destes fatos, por si só o
registro histórico se organizaria e deixar-se-ia interpretar. Claro está que na concepção rankeana de
história, não cabe ao historiador julgar o passado, nem instruir os seus contemporâneos, mas dar conta
daquilo que realmente havia se passado. Em resumo: defendia-se que deveria haver uma relação cognitiva
historiador-objeto mediatizada pelo mecanicismo, e que trazia consigo, numa era de nacionalismo e
imperialismo latentes e óbvias contradições entre o discurso e a sua prática, pois a escola metódica tendia
a acentuar os fatos políticos, militares e diplomáticos, no que se conduzia a uma restrita concepção que
faziam do que seria o documento. Protegidos os documentos escritos, como cartas, decretos,
correspondências e manuscritos diversos - ou seja, o que chamaríamos hoje de testemunhos voluntários -
desprezava-se tudo aquilo que não se enquadrasse nesta estreita noção documental, o que acabava por
trazer, coerente com os princípios da escola metódica, a própria ambição da história. Salvo o documento,
registrado, classificado e submetido a uma crítica externa, a erudição, para posterior avaliação da crítica
interna, a hermenêutica, restariam as chamadas operações sintéticas, constituídas por cinco fases, a
saber:1. A comparação de vários documentos para que se pudesse estabelecer um fato particular;2.
Reagrupamento dos atos isolados em quadros gerais, reunindo-se para tanto, os fatos que dissessem
respeito às condições naturais, às produções materiais, aos grupos sociais e às instituições políticas;3. Na
terceira fase cabia ligar os fatos entre si para o preenchimento das lacunas da documentação;4. Na quarta
etapa o historiador via-se obrigado a praticar uma escolha na massa documental; e, 5. Na última etapa do
seu trabalho, o historiador tentava algumas generalizações, arriscava algumas interpretações. Com prática
diversa do seu discurso, a escola metódica descumpriu os postulados teóricos de Ranke, entre os quais o
de que a história seria o conjunto das res-gestae, existindo em si objetivamente, tendo mesmo uma dada
forma que seria diretamente acessível ao conhecimento. Ao subordinar os eventos econômicos e culturais
em relação aos políticos, ao privilegiar o factual ao serviço do estado-nação, levando sua concepção de
história aos cidadãos por intermédio das suas cartilhas escolares, a escola metódica acabou contribuindo
para o festim sangrento da primeira guerra de massa da história, colaborando ainda que um pouco de
forma indireta, para que a história política fosse relegada, desprezada, tratada com suspeição no futuro.
In: As escolas históricas. 2.ed. Lisboa:Europa-América, 2003.
87
Para Paul Ricoeur , o que constitue a força das análises de H.White é a lucidez com a qual ele explicita
os pressupostos de suas leituras de grandes textos históricos e define o universo de discurso no qual esses
pressupostos, por sua vez, se encontram. Tempo e Narrativa. T.1. Campinas: Papirus, 1994. P. 231.
63

consciência histórica realista. A concepção de explicação e representação histórica de


Ranke estaria definitivamente estabelecida por volta de 1850.
Dada a importância da narrativa atribuída por Ranke na sua concepção de
história, bem como do emprego que dela faz Hayden White, julgamos que cabe
considerar nesse momento, algumas observações da lavra de José Carlos Reis88 acerca
do modelo narrativo da história. Explica esse autor que,
“a narração é produzida por uma imaginação produtora, que cria novas
pertinências semânticas, novos sentidos. Essa imaginação produtora
aproxima termos afastados e produz uma novidade de sentido. A intriga põe
junto e integra em uma história total e completa os eventos múltiplos e
dispersos, criando uma significação inteligível.”89

Prosseguindo, Reis assim esclarece,


“A intriga é uma obra de síntese. Ela reúne objetivos, causas e azares em
uma unidade temporal, total e completa. Ao reunir o que estava disperso, o
que era sucessão e devir, essa ‘síntese do heterogêneo’ que é a intriga (
assim como a metáfora ) faz aparecer na linguagem o novo, o inédito, o
ainda não dito. A narração é produzida por uma imaginação produtora, que
cria novas pertinências semânticas, novos sentidos. Essa imaginação
produtora aproxima termos afastados e produz uma novidade de sentido. A
intriga põe junto e integra em uma história total e completa os eventos
múltiplos e dispersos, criando uma significação inteligível.”90

Dessa forma, seguimos ainda as lições de Reis, da intriga não devemos esperar
aprender os universais lógicos dos filósofos, mas sim, os universais poéticos, o possível
e o verossímil. A intriga produz uma unidade temporal, com início, meio e fim,
imitando a temporalidade, mas apresentando os traços temporais de forma inversa à
dimensão episódica e oferecendo uma solução poética, onde a sucessão dos eventos é
transformada em uma totalidade significante91. E essa significação tem a ver com a
civilização ocidental. Assim, prossegue Reis,
“ Há uma tradição da narração, que não é uma forma morta, mas um jogo
de inovação e sedimentação. Nossa cultura ocidental é herdeira de diversas
tradições narrativas: hebraica, cristã, anglo-saxônica, germânica, ibérica.
São paradigmas. Há também as obras-modelo: Ilíada, Édipo, Histórias.
Esses paradigmas fornecem as regras para a experiência narrativa
posterior.”92

88
História&Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: FGV, 2003.
Essas observações são tomadas a partir da obra de Paul Ricoeur, Tempo e Narrativa. Para Ricoeur, o
conhecimento histórico possui um caráter intrinsecamente narrativo. Assim, a forma narrativa ofereceria
inteligibilidade ao vivido, por articular tempo e ordem lógica.
89
Ibidem, p. 136.
90
Ibidem, p. 136. (grifos do autor).
91
Ibidem, passim.
92
Ibidem, p. 142.
64

Conforme observou Hayden White, Ranke entendia que a modalidade mais


elevada de explicação que a história poderia aspirar era a de uma descrição narrativa do
processo histórico; e, enquanto a história fosse concebida como explicação por
narração, seria necessário trazer para a tarefa de narração o mito, ou estrutura de enredo,
arquetípico, o único pelo qual se poderia dar forma àquela narrativa.
A elaboração de enredo pretende prover o sentido de uma estória através da
identificação da modalidade de estória que foi contada, sendo a via pela qual uma
sequência de eventos modelados numa estória gradativamente se revela como sendo
uma estória de um tipo determinado.
De acordo com White, o historiador é forçado a por em enredo o conjunto de
estórias que compõem sua narrativa, no que o enredo assume uma forma de estória
abrangente ou arquetípica. Cabe acrescer que H. White agrega ao lado do enredo, na
qualidade de conceptualização da obra histórica, o modo de argumentação formal e o
modo de implicação ideológica93.
Uma Exemplificação útil ao nosso trabalho seria o historiador Leopold Von
Ranke, por ter vazado suas estórias, segundo H. White, no modo cômico94. Caberia

93
Quanto ao modo de argumentação formal, H. White aponta quatro paradigmas da forma que se pode
conceber que assuma uma explicação histórica, considerada como argumento discursivo: formista,
organicista, mecanicista e contextualista. Exemplificando, as hipóteses organicistas do mundo e suas
correspondentes teoria da verdade e da argumentação são relativamente mais integrativas e portanto mais
redutivas em suas operações. O organicista tenta descrever os pormenores discernidos no campo histórico
como componentes de processos sintéticos. No âmago da estratégia organicista existe um compromisso
metafísico com o paradigma da relação microcósmico-macrocósmica; e o historiador organicista tenderá
a ser regido pelo desejo de ver entidades individuais como componentes de processos que se agregam em
totalidades que são maiores ou qualitativamente diferentes da soma de suas partes. White postula quatro
posições ideológicas básicas, no que se utilizou das análises constantes da obra Ideologia e Utopia, de
Karl Mannheim, que a grosso modo seriam o anarquismo, o conservantismo, o radicalismo e o
liberalismo, cumprindo ressaltar que estes termos destinam-se a servir mais como designadores de uma
preferência ideológica geral, e quase nunca na qualidade de designadores dos emblemas de partidos
políticos específicos. Os conservadores, de acordo com Mannheim, citado por H.White, tendem a ver a
mudança social através da analogia das graduações botânicas, além de insistirem em um ritmo ‘natural’
quanto à velocidade das mudanças imaginadas. A esses, cabe acrescer a teoria dos tropos – considerados
aqui os quatro tropos básicos para a análise da linguagem poética ou figurada: metáfora, metonímia,
sinédoque e ironia - proporciona, de acordo com o entendimento de Hayden White, um meio de
caracterizar os modos dominantes da reflexão histórica que tomou forma na Europa no século XIX, no
que seria permitido descrever a estrutura profunda da imaginação histórica daquele período. WHITE,
Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. 2.ed. São Paulo: Edusp, 1995.
94
O enredo da comédia, implica o modo de argumentação organicista e uma posição ideológica
conservadora. Assim, Hayden White recorre a Leopold Von Ranke, considerando que suas histórias são
“...consistentemente vazadas no modo de comédia, forma de enredo que tem como tema central a idéia
de reconciliação. Da mesma maneira, o modo dominante de explicação utilizado por ele foi organicista,
que consiste na descoberta das estruturas e dos processos integrativos que , acreditava ele, representam
os modos fundamentais de relação encontrados na história. Ranke não se ocupava com ‘leis’ mas com a
descoberta das ‘idéias’ dos agentes e agências que via como habitantes do campo histórico...[afirmando
ainda que] ...o tipo de explicação que ele [Ranke] supunha que o conhecimento histórico proporciona é o
equivalente epistemológico de uma percepção estética do campo histórico que toma a forma de um
65

esclarecer que Hayden White fez uso das proposições que Northrop Frye utilizou em
seu ‘Anatomia da Crítica’95, indicando quatro modos de elaboração de enredo, a saber, a
estória romanesca, a tragédia, a comédia e a sátira.
Na fundamentada opinião de Hayden White, o mythos cômico utilizado como
estrutura de enredo na grande maioria das obras históricas de Leopold Von Ranke teria
servido ainda como uma espécie de arcabouço onde cada uma dessas obras pudesse ser
entendida enquanto um ato individual de uma drama macrocósmico. Para ele,
“Esse mythos permitiu a Ranke concentrar-se nos detalhes individuais das
cenas que narrava, mas proceder com resoluta autoconfiança através da
profusão de documentos à seleção segura daqueles que eram significativos e
daqueles que eram insignificantes como testemunho. Sua objetividade, seus
princípios críticos, sua tolerância e simpatia por todos os lados dos conflitos
com que deparava em todo o registro histórico eram distribuídos dentro da
atmosfera sustentadora de uma prefiguração meta-histórica do campo
histórico como conjunto de conflitos que devem necessariamente terminar
em resoluções harmoniosas, resoluções em que a ‘natureza’ é finalmente
suplantada por uma ‘sociedade’ que é tão justa quanto estável.”96

As reconciliações que acontecem no final da comédia são reconciliações dos


homens com os homens, dos homens com seu mundo e sua sociedade. Em contextos
dessa natureza, a condição da sociedade é então representada como sendo mais pura,
mais sã e mais sadia em conseqüência do conflito entre elementos do mundo
aparentemente opostos de forma inalterável; estes elementos revelam-se, no fim de
contas, harmonizáveis uns com os outros, unificados, concordes consigo mesmos e com
os outros.

enredo cômico em todas as narrativas de Ranke. As implicações ideológicas dessa combinação de um


modo cômico de elaboração do enredo e um modo organicista de argumento são especificamente
conservadoras.” Os historiadores que operam dentro dessa estratégia de explicação organicista, como
Ranke e a maioria dos historiadores nacionalistas das décadas de meados do século XIX, tendem a
estruturar suas narrativas de modo a desenhar a consolidação ou cristalização, a partir de um conjunto de
eventos evidentemente dispersos, de alguma entidade integrada cuja importância é maior do que a de
qualquer das entidades individuais analisadas ou descritas no curso da narrativa. WHITE, Hayden. Meta-
História: a imaginação histórica do século XIX. 2.ed. São Paulo: Edusp, 1995, p. 42 e seguintes.
95
Para H.White, toda história, mesmo a mais sincrônica ou estrutural, há de ser posta em enredo, de
alguma maneira. A comédia (bem como a tragédia),sugerem a possibilidade de libertação, ao menos
parcial da condição de queda, e de alívio provisório do estado dividido em que os homens se acham neste
mundo. Na comédia, a esperança do temporário triunfo do homem sobre seu mundo é oferecida pela
perspectiva de reconciliações ocasionais das forças em jogo nos mundos social e natural. Tais
reconciliações são simbolizadas nas ocasiões festivas de que se vale tradicionalmente o autor cômico para
terminar seus relatos dramáticos de mudança e transformação. WHITE, Hayden. Meta-História: a
imaginação histórica do século XIX. 2.ed. São Paulo: Edusp, 1995. Acrescemos que de acordo com
Northrop Frye, na comédia, ou o mythos da primavera, a ação se forma pelos obstáculos ao desejo do
herói, sendo sua superação o desenlace cômico. Explica Frye que “ a tendência da comédia é incluir tanta
gente quanto possível em sua sociedade final: as personagens obstrutoras são mais amiúde
reconciliadas, ou convertidas, do que simplesmente repudiadas.” Anatomia da Crítica: quatro ensaios.
São Paulo: Cultrix, 1973. (a primeira edição americana, Anatomy of Criticism, é de 1957).
96
WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. 2.ed. São Paulo: Edusp, 1995,
p. 179.
66

A procura por uma forma de produção historiográfica que servisse como modelo
de discurso histórico possível de tematizar as nuances do processo histórico da
construção da nação, parece haver aproximado o grupo de historiadores congregados à
volta do IHGB com a metodologia do trabalho histórico proposto por Ranke e seus
seguidores. Ao vulgarizar o método histórico proposto por seus mestres alemães,
Capistrano de Abreu possibilitou aos historiadores congregados à volta dos Institutos
Históricos a abertura de uma janela ao sistema de interpretação histórica de Ranke: a
sua idéia de nação.
Nesse sentido, esclarece Hayden White que o tema da nação desempenha no
sistema de Ranke, não apenas uma idéia – entre tantas – que os homens podem ter dos
meios de organizar a sociedade humana, mas trata-se do,
“...único princípio possível de organizá-las para a realização do ‘progresso
pacífico’. Em resumo, a ‘idéia da nação’ era para Ranke não apenas um
dado mas também um valor; mais, era o princípio em virtude do qual se
podia atribuir a tudo na história uma significação positiva ou negativa”.97

Pois, Acreditando que a ‘idéia’ de nação seria intemporal e eterna, Ranke


deixava claro que “considerava caber ao historiador escrever história de modo a
reforçar o princípio de nacionalidade como única salvaguarda contra o afundamento
na barbárie.” 98
Por volta do último quartel do século XIX, falar em método histórico equivalia a
falar em método rankeano. Certo está que muitos estavam mais familiarizados com os
pressupostos defendidos pelos franceses Langlois&Seingnobos. E se Ranke havia
atrelado aos seus métodos os pressupostos de que a nação era a única unidade possível –
em uma era de imperialismos – além de ser a única desejável em termos de organização
social, lembramos que os autores da Introdução ao estudos históricos99 haviam

97
WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. 2.ed. São Paulo: Edusp, 1995,
p. 184.
98
Ibidem, p. 185.
99
A Introdução aos Estudos Históricos, de autoria de Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos é um
manual que conheceu sua primeira edição francesa em 1898. Embora apresentado por seus autores como
“...apenas um esboço sumário”, de notas tomadas nos anos escolares de 1896 e 1897, não nos deixemos
enganar. Trata-se de uma obra capital, que à época da sua escrita estava voltada tanto para aqueles que
pretendiam iniciar-se na letras históricas, quanto para os que já possuindo experiências, buscavam uma
contribuição sumamente epistemológica. Ao longo do texto os autores priorizam o aprendizado desse
primeiro contato com as letras históricas, expondo em riqueza de detalhes os recursos à época
considerados como imprescindíveis ao método da pesquisa e escrita históricas.Entre os anos finais do
século XIX e as três primeiras décadas do século vinte, essa obra teria chegado a monopolizar no ensino
universitário ocidental, as práticas voltadas à reflexão e à produção histórica. Era o livro de
Langlois&Seignobos a resultante, então considerada válida, entre a formação dos seus autores na École
de Chartes e Escola Normal Superior e o valor da prática de suas experiências como professores na
Sorbonne. O texto mantém certo diálogo intermitente com as opções de trabalho defendidas por Fustel de
67

estagiado em universidades alemãs. Pois como lembram Guy Bourdé e Hervé Martin,
“na realidade, os adeptos da escola metódica não tiraram a inspiração do francês
Auguste Comte, mas do alemão Leopold Von Ranke”.100
Poderíamos dizer que considerados os resultados saídos das mesas de trabalho
dos homens que labutavam nas hostes de Clio, consorciados aos Institutos Históricos,
ocorrera o fortalecimento acerca da convicção de que os grupos nacionais constituíam
as únicas unidades viáveis de investigação histórica relevante aquele momento. Pelo
talento e desprendido esforço daqueles historiadores do início do século XX, ocorreriam
uma série de mudanças significativas na forma de entendimento da História do Brasil.
Tais mudanças, tentaremos tornar mais visíveis a partir de contribuição inspirada na
metodologia da história dos conceitos, diziam respeito à formação étnica do povo
brasileiro e dos condicionamentos históricos que davam uma nova provisão de sentido
para a nação e para a constituição do território brasileiro. Essas mudanças passaram a
permitir por sua vez, reavaliar e redefinir as condições de assento do país no almejado
concerto das nações civilizadas.
Capistrano de Abreu, fizera sua aprendizagem do alemão 101, e a sua biblioteca
revelava a predominância germânica de sua formação, pois ali figuravam as obras de
historiadores alemães, não somente Ranke, mas também Meyer e Mommsen.
Certamente que Capistrano não era, no período que consideramos, o único a ter o
privilégio de ler os mestres da historiografia mundial. Pois haviam, como veremos
adiante, outros que haviam se dedicado ao estudo sistemático da história brotada das
lavras de historiadores não somente alemães, mas ingleses e franceses principalmente.
Porém, o papel desempenhado por Capistrano foi de pioneirismo – por sua tese
para a docência do Imperial Colégio Pedro II – onde demonstrou com sobejas a
aplicação do método histórico rankeano102, de liderança intelectual – pelo seu papel de
incentivador dos estudos históricos ao articular a pesquisa das fontes com ênfase na
renovação temática103 – mas também de autoridade moral, ao exigir dos seus pares que

Coulanges, antigo professor da Universidade de Paris, desaparecido em 1889. Foi utilizada a edição em
Língua portuguesa, preparada pela editora Renascença, São Paulo, em 1946.
100
As escolas históricas. Lisboa: Europa-América, 2003, p.113.
101
De acordo com José Honório Rodrigues, Capistrano aprendera alemão tendo Carlos Jansen como
professor, em grupo do qual faziam parte Ferreira de Araújo e o renomado romancista Machado de Assis.
Aprendido o novo idioma, passara a traduzir de tudo: Geografia, Medicina, História Natural, Viagens e
Direito. A História ele lia no original, na rede. História e historiadores do Brasil. São Paulo: Fulgor, 1961.
102
Conforme fica demonstrado em ARAÚJO (1988) e DIEHL (1998).
103
Da forma como incentivou – às vezes um pouco rude – amigos que amiúde o procuravam, mas
também aos confrades do IHGB, onde, apesar de ausente, era muito respeitado. Ver. GUIMARÃES,
68

adotassem a necessidade, que para ele já era imprescindível, de indicar com precisão as
fontes que utilizavam104.
Todo esse esforço, no entanto, somente veio a colher resultados expressivos a
partir do investimento dos governos nas instituições oficiais, como exemplificados no
Museu Paulista e no Arquivo Público Mineiro, e oficiosas, como foram os casos do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e seus correspondentes estaduais, nos quais
privilegiamos o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) e o Instituto
Histórico e Geográfico de Minas Gerais (IHGSP). Para estas instituições, suas propostas
norteadoras, e seus ilustrados consócios, objeto do nosso capítulo dois, devemos agora
voltar as nossas atenções.

Lucia Maria Paschoal. Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-
1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2006.
104
Como na carta a Guilherme Studart, datada de 20 de abril de 1904. Assim escrevia Capistrano: “Agora
és um mestre reconhecido e acatado; podemos portanto conversar calmamente sobre o assunto. Por que
não dás a procedência dos documentos que publicas? Félix Ferreira, sujeito aliás pouco fidedigno,
contou-me que indo um dia visitar Melo Morais, encontrou-o queimando uns papéis: Estou queimando
estes documentos, explicou-lhe o alagoano historiador (?), porque mais tarde, quando quiserem estudar
História do Brasil hão de recorrer às minhas obras. Tu não és Melo Morais. Varnhagen, pelo menos na
Torre do Tombo, levou para casa alguns documentos e se esqueceu de restituí-los: não podia depois
indicar a procedência. Tu não és Varnhagen. Por que motivo, portanto, te insurges contra uma
obrigação a que se sujeitam todos os historiadores, principalmente desde que, com os estudos arquivais,
com a criação da crítica histórica, com a crítica das fontes, criada por Leopoldo von Ranke, na
Alemanha, foi renovada a fisionomia da História?” In: RODRIGUES, José Honório (Org.)
Correspondência de Capistrano de Abreu. 2. ed., v.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1977, pp.165-
166.
69

2 – Oficinas da História

“...assim também nunca São Paulo coube dentro das suas fronteiras.

Eram os paulistas um punhado de homens ainda e, como que suffo-

cados num âmbito que tinha dimensões para abrigar qualquer nação

européa, já procuravam devassar os mysterios do continente sul-americano.

A linha subtil dos demarcadores de Tordesilhas comprimia-os de encontro

ao oceano, e elles, movidos por mysteriosa força, empolgados pela visão

do grande império portuguez, que um dia vinha occupar quase metade da

America do Sul, começaram desde os primeiros annos vicentinos a perseguir

o meridiano hespanhol, rechassando-o constantemente para o Oeste, para

as selvas impenetráveis do centro.” Afonso d’Escragnolle Taunay.

Discurso de posse. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.

V. XVII, 1912, p.89.

Nos anos iniciais do século XX, o relativamente pequeno grupo de ilustrados


homens que se dedicavam às ‘letras históricas’ contava para realizar as suas tarefas de
estudo dos tempos pretéritos com algo mais que o papel e tinta que consumiam em
cópias, transcrições e notas, tomadas quase que invariavelmente à mão. Sob o amparo
dos Institutos Históricos e Geográficos, percebendo seus textos transitar pelos olhares
de um reduzido porém influente público leitor, e sob as opiniões de uma nascente e
seleta crítica literária, haviam algumas condições, é certo, que deveriam observar no
alinhamento dos seus trabalhos além das qualidades de esmero, apuro e elegância com
as quais esses costumeiramente eram distinguidos. Pois doravante o discurso corrente
incluía também realizar a crítica documental, respeitar os testemunhos escritos, manter a
objetividade e a imparcialidade.
O ethos desses historiadores os condicionava a adotar as práticas profissionais
que aportavam ao Brasil vindas sobretudo da Europa. Conforme nos aponta François
Dosse1, ser historiador então significaria passar a pertencer – com todos os signos que a
isso agregava – a uma comunidade de sábios, no que caberia doravante parcela de

1
A História. Bauru: Edusc, 2003.
70

homens de letras manter à parte a sua subjetividade e rejeitar em bloco aquilo que os
dois grandes mestres da ciência histórica na Sorbonne, Charles-Victor Langlois e
Charles Seignobos, os renomados autores de “Introdução aos Estudos Históricos”
(1898) chamavam de micróbios literários. Caso esses ‘micróbios’ viessem a ser
utilizados, poluiriam o discurso histórico culto.
No presente capítulo nossa tarefa será apresentar, em linhas bastante gerais, as
motivações que deram origem à fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), bem como as condições que vieram a transformá-lo ao longo do século XIX na
mais prestigiada ‘casa da memória’ do Brasil. Trataremos ainda de realizar um esboço,
ainda que breve, dos sodalícios pertencentes aos Estados de São Paulo e Minas Gerais,
constituídos já durante o período republicano e vinculados de forma umbilical, às
oligarquias desses Estados. Contando com práticas institucionais muito semelhantes às
então vigentes no IHGB, os institutos históricos e geográficos paulista e mineiro, ao
manterem a atalaia sob o celeiro de ‘Clio’, logo dariam provas de rara fertilidade
intelectual, contribuindo com relevantes esforços para a renovação temática na
historiografia brasileira.
Cabe reservarmos ainda algum espaço para apresentar duas instituições oficiais,
a saber, o Museu Paulista e o Arquivo Público Mineiro, as quais, também surgidas na
República, acabaram por mobilizar esforços que viabilizaram com diversificados
subsídios, as tarefas colocadas pelos institutos históricos de seus respectivos Estados.
Ao falarmos em discurso historiográfico no Brasil dos anos iniciais do século
vinte somos remetidos para um ambiente envolvido pelo elitismo e pela tradição
iluminista, características que conforme sabemos marcaram tanto as discussões acerca
da questão nacional, quanto a posição que deveria vir a ser ocupada pelo país no
conjunto mais amplo das nações 2 . A discussão ganhava corpo ao tocar as reais
possibilidades brasileiras de reproduzir nos trópicos o modelo civilizacional europeu, o
único, diga-se de passagem, considerado adequado por nossas elites, que temiam a
africanização tanto quanto mantinham esperanças no ideal de embranquecimento da
população.
Convém lembrar que ainda sob a égide da imaginação histórica oitocentista, a
historiografia que inaugura a belle èpoque era, em grande medida, uma historiografia

2
GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História Nacional. Estudos históricos. Rio de Janeiro, n.1, 1988,
p. 5 – 27.
71

combatente 3 , o que vale dizer, voltada para os interesses mantidos pelos estados
nacionais em iluminar o passado tendo em vista as indagações do presente, cabendo
ainda esclarecer sobre os condicionamentos epistemológicos que a operação histórica
impunha aos historiadores naquele momento.
Nesse contexto, a operação histórica passa a ser caracterizada como a formulou
Michel de Certeau, enquanto “ a combinação de um lugar social, de práticas científicas
e de uma escrita” 4 . Trata-se portanto de um conceito muito útil que remete à
compreensão da relação entre um lugar, entendido como a instituição do conhecimento
que media seleção e certo ambiente de profissão. É a partir destes fatores que passam a
se articular determinados procedimentos de análise próprios à História, permitindo por
sua vez, a construção de um texto. Essa tarefa, conforme veremos, foi realizada por
historiadores no âmbito dos Institutos Históricos em um período eivado por indefinições
e graves desafios, porém entremeado por efemérides onde se poderia talvez ainda contar
com o concurso da História magistra vitae.
Dessa forma, convocados a aliar-se a uma afirmada tradição conservadora
existente no Brasil, defensora da conciliação como traço constante do seu
comportamento político5, o que parece explicar o revivescimento de valores e mesmo
personalidades remanescentes à época do Império, historiadores vinculados ao IHGB
teriam atuado, à semelhança daquilo que Eric J. Hobsbawm denominou como minorité
agissante, para enfatizar – em concordância com Ernest Gellner – o elemento de
artefato, invenção e engenharia social existente na idéia de nação6.
A minorité agissante seria a denominação dada ao conjunto de pioneiros e
militantes da idéia nacional que participam de campanhas iniciais com a finalidade de
plasmar a idéia de nação, campanhas que possuem óbvias finalidades políticas.7

3
Trata-se de uma alusão a certa obra de José Honório Rodrigues quanto a certa possibilidade do
historiador intervir politicamente com seu trabalho em uma dada sociedade. Cfe. RODRIGUES, José
Honório. História combatente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
4
A operação historiográfica. In: a escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
P. 66.
5
MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1972.
6
HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. São Paulo: Paz e
Terra, 1998. Hobsbawm explicita sua crítica às noções formuladas por E. Gellner especificamente pela
preferência de Gellner em utilizar a perspectiva da modernização pelo alto, o que torna, no entendimento
de Hobsbawm, difícil uma adequada atenção à visão dos ‘de baixo’. P. 18 – 22.
7
RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a idéia de nação no Brasil ( 1830 – 1870). São Paulo:Martins
Fontes, 2004. Esta fase de atuação da minorité agissante seria precedida por atividades de grupos sem
implicações políticas explícitas, sendo puramente culturais, literárias e folclóricas, que no caso brasileiro
poderíamos associar ao romantismo e ao indianismo do século XIX.
72

Coube ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, porém com uma ativa


participação dos Institutos Históricos e Geográficos dos Estados de São Paulo e Minas
Gerais, o papel de evidenciar personagens históricos, sobrelevando papéis, bem como
recuperar eventos, para nuançá-los ou sob uma historia magistra vitae, ou sob uma
forma de instrumento de cultura intelectual, como defendiam Langlois e Seignobos.
Sobre as mesas dos seus mais ilustres historiadores realizava-se a tarefa de
encaminhar adequadamente o trabalho de leitura comum e normativa do passado
brasileiro, o que servia para apontar, frente às dúvidas e incertezas que então pairavam,
uma consistente redefinição, naquele presente histórico, para a identidade nacional
brasileira.
Partia-se então da idéia que o Estado Nacional deveria ser lastreado pela história
para inculcação do passado, alinhando as práticas epistemológicas do historicismo
objetivista então reinante, no que importava sinalizá-lo como a única estrutura temporal
capaz de emprestar concretude ao Estado-nação.
Conforme explicou a historiadora Angela de Castro Gomes, a resultante desse
movimento iria desdobrar-se na constituição de um novo imaginário cívico, com
diversos acontecimentos e personagens sofrendo uma espécie de ‘revisão’, tendo sido
introduzidos novos fatos e heróis na narrativa, e alterando-se por vezes a hierarquia
entre aqueles que já eram conhecidos8.
Como tentarei pontuar no presente capítulo, as lacunas para a produção histórica
haviam passado a requerer então temas que privilegiassem tanto a formação da nação,
quanto a construção do território, que conforme foi demonstrado no capítulo anterior,
poderia passar a ser questionado. A metáfora do caleidoscópio então volta ao nosso
pensamento, como nas páginas iniciais desse trabalho. Poderíamos então dizer que a
cada ‘mexida’ nas ‘imagens’ que se fazia da nação – cujo universo de indivíduos sofrera
um substancial redimensionamento com o evento da emancipação dos escravos –
correspondia também a uma nova condição de acesso do país para o concerto das
nações civilizadas. E era exatamente aí, que o terror da história se fazia presente.9
Como então, perguntavam os historiadores, realizar a construção de suas
narrativas com os pés postos no presente, mas sob o compromisso de uma travessia
segura que trazendo o passado à luz, lograsse caminhar em direção ao futuro? Talvez,

8
A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009, p.24.
9
O terror na História envolve a validade quanto às lições deixadas pelos registros dos tempos pretéritos
na modernidade. A partir das rupturas iniciadas com a Revolução francesa, a história deixara de ser a
mestra da vida. Cfe. Koselleck (2006), Domingues (1996) e Araújo (1989).
73

um bom começo para refletirmos acerca de escolhas, seja postar os olhos sobre uma
ferramenta heurística que permita formar um quadro de pensamento de longa duração.
Essa ferramenta já nos foi apresentada por François Hartog, sob a denominação
de regime de historicidade. Essa noção, conforme podemos observar no capítulo
anterior, procura dar conta das mudanças ocorridas na história, sendo muito útil para
encontrar uma posição firme em momentos de entropia como foram os anos
imediatamente posteriores à emancipação dos escravos e à queda do Império.
Escrevendo sobre o IHGB, a historiadora Angela de Castro Gomes indicou ser
fato comum naquele sodalício, já nas décadas iniciais do século XX, o entendimento no
qual a História formula questões, e desenha acontecimentos segundo a ótica do presente.
Ao iniciar o século vinte, o IHGB estava perspassado por divergências, existindo ali,
desde republicanos convictos a admiradores da nossa fase imperial, no que esta possuíra
de estabilidade e caráter centralizador.
Esses historiadores tiveram que levar em conta que independentemente de aderir
a uma nova ordem, deviam certamente atuar de maneira consequente, em coerência ao
lugar institucional do qual produziam: via de regra, os Institutos Históricos. Cabe
esclarecer que já em meados do século XIX, a escrita da História havia assumido uma
extraordinária importância no tocante à discussão da questão nacional, bem como
quanto à formação do Estado Nacional.
Conforme observou Manoel Luiz Salgado Guimarães, foi exatamente no
momento de consolidação do poder central, o que ocorreu entre 1822 e 1840, que foi
desenvolvido o interesse pela elaboração da História Nacional e a fundação no Rio de
Janeiro, em 21 de outubro de 1838, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB)10. O ato se deu em plena Regência, com a participação de vinte e sete sócios 11
da prestigiosa Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN), tendo se originado
de proposta anterior do marechal-de-campo Raymundo José da Cunha Mattos e do
Cônego Januário da Cunha Barbosa. O modelo teria sido proporcionado pelo Institut
Historique de Paris (IHP), que fora organizado em 1834. De acordo com o historiador
Manoel Luiz Salgado Guimarães, para os homens do IHP a história seria uma
10
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. História e Nação no Brasil: 1838 – 1857. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2011.
11
A relação dos sócios fundadores, onde constam seus perfis sócio-profissionais foi apresentada pela
historiadora Lucia Maria Paschoal Guimarães. Tratavam-se em sua maior parte de políticos, militares,
funcionários públicos, havendo ainda médicos, advogados, um professor e um comerciante. Quanto às
origens familiares – profissão do pai – também apresentavam-se majoritários os militares e funcionários
públicos. Debaixo da imediata proteção imperial: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889).
São Paulo: Annablume, 2011, p. 37.
74

“necessidade dos tempos, como condição de todo o progresso e como possibilidade


para o aprendizado do presente e do futuro”12. O autor identificou nessas idéias uma
relação com os princípios do Iluminismo, pois da história adviria o conhecimento para
estimular de forma contínua, o desenvolvimento da humanidade. Para Manoel
L.S.Guimarães, não devem pairar dúvidas: os fundadores do IHGB atribuíam à historia
tarefa semelhante13, tendo havido uma relação estreita entre o instituto parisiense e o
brasileiro, em especial nos anos imediatamente posteriores a 1838.
Os objetivos estatutários do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro eram,
entre outros, coligir, metodizar, publicar ou arquivar documentos, promover cursos e
editar a Revista Trimestral de História e Geografia, ou Jornal do IHGB. Pedro II logo o
tomaria sob seus auspícios. Foi uma época emblemática onde a independência política
deveria encontrar seu correspondente na independência cultural, momento no qual, nos
relata o autor, a questão da identidade brasileira emergiu como tema importante. O
Romantismo14 estava em voga, e a análise das bases da nação havia se tornado a tarefa
fundamental tanto dos intelectuais, quanto dos políticos. Naquele momento,
“uma identidade nacional era tomada como pressuposto para que o Brasil se
afirmasse plenamente como nação no quadro internacional. Tratava-se,
porém, de se afirmar como uma nação civilizada, de acordo com os padrões
europeus. Nação e civilização eram vistas como equivalentes. O projeto de
análise das bases da nação se articulava a partir dos padrões europeus. O
índio, que surgia nos romances do século XIX como símbolo da
nacionalidade e como portador da brasilidade, apesar da diferença do traje,
era, no fundo, um herói europeu. A dedicação ao exame do que era

12
História e Nação no Brasil: 1838-1857. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011, p.99.
13
Ibidem, p. 99-102. Ainda de acordo com o autor, caberia acrescer que tais princípios ligados ao
conceito de história no IHP representavam uma espécie de paradigma generalizado do pensamento do
dezenove, onde o pano de fundo seria uma crença inabalável no progresso humano. M.L.S.Guimarães
aponta o trabalho de Maria Alice de Oliveira Faria, que identificou para o período entre 1834 a 1850, 46
brasileiros membros do IHP, entre eles 26 também pertencentes ao IHGB. Cfe. FARIA, Maria Alice de
Oliveira. Os brasileiros no Instituto Histórico de Paris. RIHGB. Rio de Janeiro, n.266, 1965, p. 68-148.
14
De acordo com Magali G.Engel, o romantismo exprimiu nas artes, de forma geral, a crítica aos custos
sociais, políticos, econômicos e culturais das mudanças em curso nas sociedades ocidentais, entre fins do
século XVIII e inícios do século XIX. No caso brasileiro, o movimento romântico veio assumir feições
específicas, pois foi contemporâneo do processo de construção do Estado, buscando dar base para a
elaboração de uma literatura original em relação às tradições da antiga metrópole. A produção do
romantismo brasileiro buscaria a sua originalidade priorizando o tema indígena. Nesse sentido, o
indianismo ofereceu os fundamentos ideológicos para a construção dos símbolos da nacionalidade, no que
se procurava apagar a presença negra e incluir a contribuição de um indígena idealizado e concebido a
partir das virtudes de um cavaleiro medieval. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil
Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.p. 661-662. Dante Moreira Leite relacionou a
ideologia que presidiu o romantismo europeu com o brasileiro, ao qual considerou uma feliz transposição
daquele. A volta à tradição proposta na Europa foi identificada no Brasil como uma necessidade de
retorno ao passado colonial, o que trouxe a celebração do indígena. Cfe. O caráter nacional brasileiro:
história de uma ideologia. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1969.
75

‘verdadeiramente brasileiro’ contagiou os mais diversos movimentos ao


longo do século XIX e XX”15.

De tudo isso convém acrescer, no que nos utilizamos de escritos da lavra de


Bernardo Ricupero, que a idéia de território passou a assumir um papel fundamental na
criação da simbologia nacional. Esse autor nos chama a atenção para o fato de que no
Brasil, após a organização do Estado, deveria se construir a nação, onde aos românticos
caberia o papel da sua criação e invenção.
Tal criação estaria atravessada por uma situação, que de acordo com Ricupero,
seria insólita, pois se por um lado o Estado fora criação das elites criollas contra sua
antiga metrópole, ele era também um anteparo institucional ao medo que essas mesmas
elites mantinham em relação às suas classes subalternas 16.
Naquele momento fundacional, observada a gramática histórica dos homens do
IHGB, alguns pontos merecem destaque. O evento da independência política, apesar de
nodal, mantivera diversas certezas que iriam influir na escrita da História, de onde ficam
ressaltados uma visão monarquista da História, arrumada sob um gradiente de
pressupostos que seguiam o historicismo de uma forma bastante particular.
Nisso cabe acrescer para um melhor entendimento que os homens que fundaram
o IHGB teriam pretendido, nas palavras de Arno Wehling, o “esclarecimento da
sociedade”. Mas para alcançar esse objetivo, entendiam que deveriam desenvolver a
cultura literária, melhorar os quadros da administração pública e aperfeiçoar, entre
outras providências a representação política17.
Ora, para que isso fosse alcançado, cabia dotar as monografias biográficas, de
cunho declaramente pedagógico, como escreveu Wehling, o que seria especialmente
interessante para o exercício de funções públicas.

15
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. História e Nação no Brasil: 1838 – 1857. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2011, p.50.
16
Em ‘Território e História no Brasil’, Antonio Carlos Robert Moraes procurou evidenciar o conceito de
território, bem como a sua utilização em detrimento de outros mais usuais na literatura geográfica. Para
Moraes, seria o uso social entendido no termo que serviria como definidor para o conceito de território.
Segundo o autor seria a “própria” apropriação que qualifica uma porção de terra como território, sendo o
conceito impossível de formular sem o recurso a um grupo social que ocupa e explora aquele espaço.
Ainda segundo Moraes, essa visão social do objeto geográfico, equaciona como entidade movente, sua
formação, servindo a formação territorial como o desenho de um objeto empírico, dando-se o ajuste de
foco naquela ótica angular de se captar o movimento histórico. Território e História no Brasil. 2.ed. São
Paulo: Annablume, 2005.
17
WEHLING, Arno. A invenção da história: estudos sobre o historicismo. Rio de Janeiro: Gama Filho,
2001, p.140.
76

Cabe ainda reiterar a vinculação do IHGB com o Estado Imperial, pois conforme
explicou Alice Pfeiffer Canabrava 18 , o Instituto se caracterizava por trabalhos
envolvidos em ‘nativismo’ 19 , onde ficavam evidenciados dois fatores. O primeiro
seriam as qualidades do jovem Império, no plano material. Porém, bem como as
benemerências do país, procurava-se ainda nas páginas da revista do Instituto exaltar
exemplos a serem seguidos, o que vale dizer, uma louvação aos varões que haviam
conseguido destaque por suas vidas exemplares, as quais deveriam inspirar o
comportamento dos jovens e estimular as repetições dessas experiências no futuro. Essa
forma de conceber a história e instrumentalizá-la, catalisa os interesses de grupos
dominantes, e passa a eleger uma forma hegemônica de pensar a história, a qual dá-se o
nome, como já vimos, de Historia Magistrae Vitae.
O segundo dos fatores que nos cabe explorar encontra-se imbricado à maneira de
se pensar a História da jovem nação no recinto do IHGB ao longo do século XIX.
Apresentava-se a História colonial sob laivos de um sentimento que explodindo em
situações tomadas como exemplares, procuravam dar conta das chamadas manifestações
de cunho nativista como uma espécie de nexo entre a colônia e a futura nação.
Da nossa parte, sugerimos que a constituição do tempo histórico como tensão
entre as meta categorias campo de experiência e horizonte de expectativas permite
pensar a constituição de tal tempo como articulada à capacidade de mobilizar imagens
do passado, resta dizer, à imaginação histórica. Ora, para essa ocorreria a priori a
possibilidade de redefinição, caso possam ser ressignificados alguns conceitos
fundamentais à consciência histórica de um dado presente. Tanto a noção de nação,
quanto as de território e civilização iriam, como tentaremos demonstrar, desmanchar-se

18
Apontamentos sobre Varnhagen e Capistrano. Revista de História. São Paulo, USP, 18 (88), out.-dez.
1971.
19
Não é nossa intenção rediscutir a noção de nativismo. Essa questão, nos parece, já foi superada, para os
limites do nosso estudo, através do trabalho de Rogério Forastieri da Silva, o qual com seu ‘Colônia e
Nativismo: a história como biografia da nação’ foi capaz de bem equacionar o problema. Seus
referenciais foram tomados aqui como um dos pontos de partida – a ‘mistificação da colônia como ante-
sala da nação – tão explorada por certa historiografia que encontrou respaldo no IHGB e outros institutos,
pelo menos até a década de 1930, para não falarmos de uma época mais próxima. Assim, cabe apenas
acentuar o que há de falseamento em utilizar a expressão nativismo como uma espécie de proto-
nacionalismo. Na obra acima mencionada, Rogério Forastieri volta-se contra a busca de antecedentes de
emancipação política, ou seja, a negação do estatuto colonial como estando articulada a eventos ao longo
da história colonial considerados precursores da independência, o que equivaleria a dizer a colônia como
antecessora da nação, ou ainda, o nativismo como antecessor do nacionalismo. Cabe acrescer que a
expressão ‘nativismo’, de acordo com o autor mencionado, não é encontrada nem em Southey, nem em
Varnhagen. Por fim, caberia esclarecer também que a expressão ‘nativismo’ já foi empregada para
eventos pós-coloniais, tendo sido usada com frequência para referir-se a objetos variados, como
lusofobia, reivindicações populares, sentimento autonomista, luta contra estrangeiros, ou como já nos
referimos, movimento precursor da emancipação política, ou sinônimo de nacionalismo.
77

com toda a sua solidez ‘no ar’, no momento em que lhe fossem retirados, com a
Abolição e a República, os ‘pés de barro’ que lhes tinham sido postos pela
historiografia fundante instituída a partir da obra de Varnhagen.
Mas voltemos por hora, à problemática que envolve a historia magistra vitae.
Afinal, como conciliar, se isso pode ser possível, essa noção ciceroniana de História
com as lides do historicismo – em suas correntes ao longo do século XIX - cuja
emergência faz parte, como sabemos, de um conjunto de significativas revoluções
provenientes da Ilustração?
Sabemos pela obra clássica de Reinhart Koselleck que a expressão historia
magistra vitae foi utilizada por cerca de dois mil anos para representar o papel de uma
escola, fazendo com isso, as vezes de um cadinho que conteria as múltiplas experiências
alheias. De acordo com Koselleck, o objetivo pedagógico contido nesse tropos seria
deixar os homens livres para repetir os sucessos do passado, ao invés de recorrer no seu
presente vivido, os erros antigos.
Essa então seria a fórmula criada no interior do IHGB no curso das monografias
de vida dos varões preclaros. Não seria demais repetir que já entrado o século XX,
figurões do IHGB defendiam a confecção de uma história pragmática. Aliás, esse era o
caso de Afonso Celso, que de acordo com a historiadora Lúcia Maria Paschoal
Guimarães, possuía uma visão pragmática da história, entendendo que se a história era
mestra da vida, as experiências do passado não poderiam ser negligenciadas por
governados e governantes20.
Pois a historia magistra vitae, ou melhor, a sua persistente utilização, seria um
exercício de sapiência e prudência. Cabe acrescer com o autor de Futuro Passado, que
a historia magistra vitae, ou ainda, o papel cumprido por ela, ou esperado pelos que
dela faziam uso, perdurou quase ileso21, até o século XVIII, momento decisivo no qual
ganha sentido essa palavra substanciosa: o historicismo. Houve, como sabemos, o
historicismo ilustrado da segunda metade do século XVIII, bem como sua fase
posterior, o historicismo romântico. A esse se seguirá o historicismo cientificista, o qual
alcança os primeiros anos do século XX. É visível, ao estudo da produção
historiográfica, que essas formas de historicismo reagem bem didaticamente, mas de

20
Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938), p. 67.
21
Cabe acrescer de Koselleck que a historia magistra vitae “orientou, ao longo dos séculos, a maneira
como os historiadores compreenderam o seu objeto, ou até mesmo a sua produção. Embora tenha
conservado sua forma verbal, o valor semântico de nossa fórmula variou consideravelmente ao longo do
tempo”. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, p.42.
78

forma desconfortável, quando confrontado nas suas épocas. Afinal, como nos alerta
Arno Wehling, encontramos para exemplificar, um historicismo ilustrado em momento
no qual deveríamos verificar um historicismo perspassado pelo romantismo, e isso deve
ser creditado às explicações que são genéricas demais22.
Mas para clarificar nosso entendimento, dois fatos merecem ser realçados. O
primeiro deles é que temos que entender o historicismo como uma reação na história, à
abordagem fisicalista e mecanicista, conforme em Newton, ou ainda, racionalista,
conforme em Descartes.
A raiz do historicismo estaria, conforme defende Arno Wehling, no
irrompimento da mudança, ou ainda na necessidade de conviver de maneira científica
com a inovação e a diferença. Ora, o século XVIII, ou melhor, suas últimas três décadas
acumulou extenso repertório, não somente de inovações e diferenças, como também de
uma dupla revolução, econômica e política, para a qual a experiência da história muito
pouco valia.
Não teria sido por mera casualidade que Georg Wilhelm Friedrich Hegel ao
esboçar uma análise acerca da natureza da história em si, considerou que a história
pragmática – ou seja, aquela que tornava presente o acontecimento – não possuía a
devida força contra a liberdade e a vitalidade do presente, ou nas suas próprias palavras,
“nada é mais oco do que os apelos tantas vezes repetidos aos exemplos gregos e
romanos durante a Revolução Francesa; nada é mais indiferente do que a natureza
destes povos e a de nosso próprio tempo”23.
Para um autor como Arno Wehling, não haveriam dúvidas. Teria sido o
historicismo, com suas ramificações epistemológicas (conforme acima nos referimos),
culturais – relação com o romantismo - e políticas (relações com o nacionalismo), que
marca profundamente, mais do que outra influência intelectual, as origens do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro.
Aliás, cabe registrar que essa elite política do Império24 – fundadora do IHGB
por intermédio da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN) – a par da sua
heterogeneidade funcional, possuía unidade ideológica que a levava a defender a
unidade nacional, a consolidação do governo civil, uma redução do conflito no plano

22
A Invenção da História: estudos sobre o historicismo, p.133.
23
A razão na História: uma introdução geral à Filosofia da História. 2.ed. São Paulo: Centauro, 2001,
p.50.
24
Sobre a constituição e visão de mundo da elite política imperial afirmaram-se duas obras de
incontestável valor, a saber, A construção da ordem: a elite política imperial, de autoria de José Murilo de
Carvalho e O tempo saquarema: a formação do estado imperial, de Ilmar Rohloff de Mattos.
79

nacional, bem como, coerente aos pontos anteriores, a limitação tanto da mobilidade
social quanto da mobilização política. Temia-se a instabilidade política, a balcanização
do território e, tomando por base as experiências da América hispânica, o caudilhismo e
a república, associando esse regime político com a anarquia.
Daí a defesa intransigente da monarquia constitucional, bem como de pontos
considerados inegociáveis que envolviam essa forma de governo e sua configuração
política, a saber, seus desdobramentos econômicos, políticos, sociais e ideológicos tais
como o liberalismo, a grande propriedade, a escravidão, o padroado e o voto
censitário.25
Durante seus anos iniciais, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro estivera
bastante envolvido, ao que nos parece, com a construção de uma memória nacional que
era representada por tudo aquilo que fosse encontrado em termos de registros históricos,
tanto nas províncias26, quanto no exterior27. Esses cuidados foram tomados desde os
primeiros tempos do IHGB e foram esclarecidos sob a forma de artigo pelo cônego
Januário da Cunha Barbosa, sob o título “Lembranças do que devem procurar os sócios
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro nas províncias para remeterem à
sociedade central”28. A esse respeito, José Honório Rodrigues considerou em sua obra
A Pesquisa histórica no Brasil, ter sido constituído, por ação do IHGB o primeiro
programa surgido em nosso país dedicado à pesquisa histórica29.
Para a realização das narrativas fundamentadas das idas e vindas ao passado,
cabe dizer que tratava o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de imprimir a essa
tarefa o signo do oficial, ou ainda que de forma não autorizada em termos institucionais,
a chancela do Estado, talvez porque durante o Segundo Reinado, essa agremiação
histórico-geográfica-literária tenha se colocado sob a “imediata proteção do
Imperador”, tendo sido correspondida afetuosamente por esse Soberano .

25
Conforme Wehling, a invenção da história: estudos sobre o historicismo, pp.130-132.
26
Idem, ibidem, p.116.
27
A necessidade de pesquisa nos arquivos estrangeiros marca de certa forma a entrada definitiva de
Francisco Adolfo de Varnhagen na seara do conhecimento histórico. Anteriormente a Varnhagen, José
Maria do Amaral havia realizado investigações sem muito resultado. O IHGB, onde Varnhagen era sócio
correspondente desde 1840, de certa forma, abriu o caminho do futuro visconde de Porto Seguro, tanto à
diplomacia, quanto aos estudos históricos voltados ao interesse público. Após sugestão de Vasconcelos de
Drummond e influência do IHGB, Varnhagen foi nomeado em 18 de maio de 1842 como adido de
primeira classe em Lisboa. Conforme, RODRIGUES, José Honório. A Pesquisa Histórica no Brasil. 2.ed.
São Paulo: Cia Editora Nacional, 1969, pp. 44-49. Ver ainda, GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal.
Francisco Adolfo de Varnhagen. História Geral do Brasil. In: MOTTA, Lourenço Dantas (Org.).
Introdução ao Brasil: um banquete no trópico, 2. 2.ed.São Paulo: SENAC, 2002, pp. 75-96.
28
RIHGB, 1(4): 128-130, 1839.
29
RODRIGUES, José Honório. A Pesquisa Histórica no Brasil. 2.ed. São Paulo: Cia Editora Nacional,
1969, p. 38.
80

A complexidade da tarefa não seria pequena, sobretudo se considerarmos que o


dever ao qual o IHGB se impunha seria apresentar o processo civilizador que o país
atravessou e durante o qual se aproximou do padrão europeu, mantendo-se contudo já
durante o regime republicano destituído do conforto do “auspice Petro Secundo”,
procurando no entanto manter a sua intenção de “Pacifica scientiae occupatio”30.

Durante os primeiros governos republicanos, mas especialmente no período


conhecido por república da espada, ou seja, os governos do Marechal Deodoro da
Fonseca e Floriano Peixoto, especialmente nesse último, tinham ocorrido manifestações
jacobinas contra tudo que trouxesse à lembrança o período imperial. Nesse contexto, o
IHGB sofrera com a falta de recursos e perda de prestígio, algo que marcado, diríamos,
como a sociedade de Corte31 que na prática era, bem como por sua proximidade (ainda
física) com o Paço Imperial.
Após 1894 porém, as autoridades capitulavam diante da reconhecida capacidade
do Instituto em realizar trabalhos nos domínios da Geografia. O que ainda era negado
em relação ao campo da História32. Em 1896, ao tomar posse na qualidade de sócio
efetivo do IHGB, Joaquim Nabuco referia-se a um ‘deserto do esquecimento’. O quadro
pouco alvissareiro que nos aponta Lucia Maria Paschoal Guimarães acerca dos estudos
históricos daquela época buscava dar conta da tentava de reduzir, por mutilação, três
séculos de História nacional a três nomes apenas naqueles anos iniciais da República:

30
Essas expressões constaram do primeiro número da Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, avançando no tempo, nas folhas de rosto das suas sucessivas e intermitentes publicações.
Durante o Império, desde o primeiro tomo, a revista cunhou a expressão “Debaixo da imediata proteção
de S.M.I. ( o Senhor D. Pedro II). Essa última expressão foi mantida mesmo após a queda do Império, no
tomo nº 53, parte I (referente aos 1º e 2º trimestres de 1890), porém abandonada a partir da parte II desse
mesmo tomo (referente ao 3º e 4º trimestres de 1890).
31
A expressão sociedade de corte contempla as práticas instituídas a partir do século XIII no Ocidente
europeu, movimento antitético ao da débacle do mundo feudal. A sociedade de corte foi estudada, entre
outros autores, por Norbert Elias, o qual deu realce às estruturas de uma sociedade que se revelava
estamental e aristocrática, onde os papéis adscritos algo que confundiam-se com os comportamentos que
se introjetavam, alinhados que estavam às representações de poder e chances de alçar prestígio. Quando
pensamos o século XIX brasileiro, devemos acrescer que antes de vir a tornar-se uma sociedade de
classes emergente, foi necessário ocorrer, conforme argumentou Angela Alonso, certa desilusão com o
modus operantis do Império, que era fundamentalmente estamental. Lembramos ainda, com Manoel Luis
Salgado Guimarães, que em seu artigo Nação e Civilização nos trópicos, publicado em 1988 na revista
Estudos Históricos, também utilizou a expressão sociedade de corte para qualificar o IHGB, mesmo
depois dos estatutos de 1851, onde o candidato a sócio passava a ter que provar ser capaz de realizar uma
produção intelectual na área de estudos do Instituto. A verdade é que aquele sodalício atuava como uma
academia de tipo ilustrado, que segundo M.L.S.Guimarães era regulada ainda por uma teia de relações
sociais e pessoais. Cfe. Elias, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e
da aristocracia de corte; Alonso, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-
Império. Além das obras citadas, cabe acrescer de autoria de Lucia Maria Paschoal Guimarães, o livro
‘Debaixo da imediata proteção imperial: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889).
32
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da escola palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889 – 1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2007.
81

Tiradentes, José Bonifácio e Benjamin Constant. Na percepção de Joaquim Nabuco,


conforme escreveu a autora, “...os novos donos do poder pretendiam fazer tabula rasa
do passado, relegando ao esquecimento três séculos da História pátria”33.
Esclarece a autora que Joaquim Nabuco não questionava os méritos da trindade
formada pelos republicanos, mas sim, do longo deserto de quase setenta anos que
identificara naquela gramática geográfico-histórica. A idéia defendida por Nabuco era
que a República pretendia apagar a então recente História do Brasil, deixando às
escuras, tanto o Império, quanto a luta pela consolidação nacional que fora o legado
maior deixado pelo período regencial, bem como do Segundo Império. Lembra-nos
ainda Lucia Paschoal Guimarães que tal estratégia de esquecimento atingia ainda a
figura central daquele período, na pessoa do Imperador D. Pedro II.
A questão de reaproximação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro com
o Estado brasileiro ocorreu fundamentalmente com a ascensão das oligarquias
republicanas ao poder. No novo pacto de dominação instaurado com a rotinização34 do
regime republicano, havia espaço para aqueles que reunissem a plasticidade necessária
para ajustar-se à nova situação institucional. A contribuição do Instituto, inicialmente
tímida, o retirava do isolamento ao qual estivera confinado 35, passando a receber as
visitas dos supremos mandatários do Executivo Federal, sempre alçados à posição de
Presidentes de Honra, e portanto participando, via-de-regra das sessões magnas de
aniversário, comemoradas a 15 de dezembro.
De acordo com Ângela de Castro Gomes, havia uma espécie de ‘simbiose’ entre
a historiografia e o Estado, processo que se daria num crescente, conforme lembrado
pela autora. Cumpre ressaltar que se trata de um tema recorrente, sempre aventado em
textos de destacados historiadores como Manoel Luiz Salgado Guimarães, Lilia Moritz
Schwarcz e Lúcia Maria Paschoal Guimarães36.

33
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889-1938), p. 79.
34
A esse respeito ver LESSA, Renato. A invenção da República no Brasil: da aventura à rotina. In:
CARVALHO, Maria Alice Rezende de (Org.). República no Catete. Rio de Janeiro: Museu da República,
2001.
35
Lucia Maria Paschoal Guimarães escreveu que o Instituto “cedeu peças do seu valioso acervo
documental, sobretudo os mapas antigos, para o exame de questões de fronteira. De outra feita, atendeu às
solicitações do ministro da Guerra, e participou do planejamento da Carta Geral da República, elaborado
pelo Estado Maior, examinando detalhes técnicos e oferecendo sugestões para a sua consecução.” Da
escola palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889 – 1938). Rio de Janeiro:
Museu da República, 2007, p. 29.
36
De Manoel Luiz Salgado Guimarães, destacamos Historiografia e Nação no Brasil (1838-1857), a
organização da obra coletiva Estudos sobre a Escrita da História, bem como, o artigo Nação e civilização
nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional, publicado
82

O Estado aparecendo então como o criador e fiador da nacionalidade brasileira,


o que já se descortinava na monografia do naturalista bávaro Carl Friedrich Von
Martius, que apresentou o texto “Como se deve escrever a História do Brasil”,
publicado na RIHGB em 184537.
Por volta de 1908, os ventos da mudança sopravam com muita intensidade para
os lados do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Chegava à presidência do
grêmio o Barão do Rio Branco. Por cerca de quatro anos, até a sua morte, ocorrida no
Carnaval de 1912, a reaproximação do sodalício com o Poder avança de forma
significativa.
É verdade que já haviam ocorrido algumas iniciativas no caminho dessa
reaproximação, e cabe aqui ressaltar uma que partira justamente de Max Fleiuss,
secretário do Instituto, o qual deliberou alterar a data das sessões magnas do IHGB, as
quais seguiam até então a da primeira participação do imperador – 15 de dezembro 38-
para o dia 15 de novembro, forma encontrada de homenagem e aliança com os
representantes do novo regime, que teriam a partir daquela mudança, um acesso mais
formalizado aos recintos do instituto.
A readequação do Instituto aos novos tempos não se resumia no entanto a uma
troca de presidência nem a flertes com os novos donos do poder, e os ensaios de
mudança já vinham ocorrendo, como exemplificado na reforma dos seus Estatutos,
ainda em 1906, que criou o cargo de diretor da Revista, publicação que ocupou
avultadas páginas do tomo LXX da revista, em sua parte II, de 1907, tendo a publicação
ocorrido em 1908.
Também podem ser consideradas sintomáticas das mudanças que se preparavam
no sentido de revitalizar o Instituto, o fato de que imediatamente anterior à publicação
de tais Estatutos, a revista daquele sodalício pusesse a lume, em um mesmo tomo,
trabalhos de Euclides da Cunha, ‘Da Independência à República’; de Capistrano de
Abreu, ‘O Duque de Caxias’; além de um alentado ensaio de Sílvio Romero,

na revista Estudos Históricos, em 1988. A contribuição de Lilia Moritz Schwarcz, com seu O espetáculo
das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930), assim como de Lúcia Maria
Paschoal Guimarães, Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-
1938), e da própria Ângela de Castro Gomes, com seus A República a História e o IHGB, e História e
historiadores: a política cultural do Estado Novo, parecem integrar uma espécie de núcleo duro dessa
temática.
37
O texto é referente à revista de abril de 1844, v. 6, n. 21, mas publicada na revista de nº 24, em janeiro
de 1845. Ele será objeto de análise no capítulo seguinte.
38
Inicialmente a data das sessões magnas era o dia 1º de dezembro , mudado posteriormente para o dia 15
de dezembro, quando o IHGB passou a ocupar as instalações no Paço Imperial, passando a data de quinze
de dezembro a ser anualmente comemorada como aniversário do Instituto. GUIMARÃES, 1988, p.9-10.
83

denominado ‘O Brazil Social’, texto esse que tomava mais de oitenta páginas daquele
periódico.
Caberia acrescer ainda, que com a presidência do grêmio sob o Barão do Rio
Branco, a ‘casa da memória nacional’ chegara à sua terceira geração, o que permitira
aliar prestígio oficial com a experiência profissional, o que serviu para “...que as
próprias finalidades do grêmio se...[alterassem, pois]...(...)...ultrapassara-se aquela
etapa, identificada por Jacques Le Goff, de formação do equipamento erudito da
História”39
Um Instituto confirmado na qualidade de “Casa da Memória Nacional”, e ávido
a navegar novamente nos favores oficiais, contando para isso com personagens
simpáticos ao regime deposto, uma República eivada pelas contradições, e somente
posta a funcionar na regulação dos seus conflitos, após um pacto oligárquico40, tudo isso
articulado a uma burguesia transtornada por ter importado mão-de-obra européia que
teimava em não se comportar como o exemplo que se esperava dos filhos do Velho
Mundo, da civilizada Europa 41 ? Os novos donos do poder articulados com a
inteligentsia brasileira, pareciam manter muitas dúvidas, e uma delas parecia ser a
organização de um panteão nacional, uma galeria de heróis, talvez uma tarefa de
extrema urgência, ao observarmos a agenda dos grêmios históricos, via-de-regra
articulada ao calendário cívico dos governos republicanos.
Naquele momento, talvez mais do que em outros da história republicana até
então vivida, a manutenção do status quo pela via da representação histórica, ocupava
lugar proeminente e altamente honroso, ação que diríamos, deveria irromper de forma
irresistível e revestida de caráter inegociável, no universo das demandas oligárquicas, e
conforme encontramos documentado, sobretudo das oligarquias paulista e mineira, à
época as representantes dos principais estados da federação.

39
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889-1938), p.116. A expressão ‘equipamento erudito da história’ é do agrado de Jacques Le
Goff, que a utiliza no verbete ‘História’ de sua lavra para a Enciclopédia Einaudi. Ela busca retratar os
esforços decisivos ocorridos ao longo do século XIX, da parte dos historiadores e das instituições às quais
estes estavam ligados, para difundir o método crítico dos documentos.
40
Onde poderíamos dizer, com seus eixos de liberalização e includência (R. A. Dahl) restritos às práticas
viciosas da tríade formada pelo voto de cabresto/ata de bico de pena/comissão de verificação de poderes.
41
Cabe notar que a substituição do trabalho escravo pelo assalariado se dera, de acordo com Roberto
Ventura, associada a uma percepção de uma sociedade dividida: de um lado estariam senhores indefesos,
de outro, escravos violentos. Entre a proibição do tráfico (1850) e a Abolição da escravatura (1888), a
escravidão passou a ser vista como problemática, e nas camadas letradas falava-se “de um ‘perigo negro’,
que traria riscos à sobrevivência da civilização no Brasil.” VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história
cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 45-46.
84

Em um contexto dessa natureza cumpria evidenciar o papel da elaboração e


execução do projeto de construção da nação, o qual, fruto da vontade e consciência de
grupos sociais que se julgam capazes de compreender o sentimento nacional, e a usá-lo
para seus próprios fins, acaba não ficando circunscrito ao âmbito de uma tarefa de
cunho político-administrativa, motivo pelo qual, historiadores afinados com o
pensamento conservador, passam a engajar-se na extração do consenso pela via do
convencimento.
Nesse sentido, cabe ressaltar que o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo
(IHGSP), fundado ainda em 1894, coincide com a etapa final da transformação
burguesa do Estado brasileiro, o qual sob a vigência da Constituição de 1891, assumira
forma federativa, proporcionando o acionamento nos Estados de instrumentos políticos
materializados na autonomia financeira, na capacidade de tributar e na constituição de
forças públicas estaduais. Estes instrumentos acumularam forças para liquidar em 1894,
a ditadura militar burguesa, subtraindo ao grupo militar o controle imediato do aparelho
de Estado42.
Tendo se dedicado a analisar os primeiros anos do IHGSP, a historiadora Lilia
Moritz Schwartz escreveu que logo no início da sua história, os homens daquela
agremiação procuraram fazer dos seus artigos, profissão de fé republicana em acordo
com a nova configuração política. Sobre a fundação desse sodalício paulista nos
esclarece Lilia Schwartz sobre o cumprimento de certas formalidades quando da
fundação daquele Instituto, muito semelhantes aliás, aquelas que o Instituto criado em
Minas Gerais cumpriria alguns anos mais tarde. No caso do Instituto paulista, sessenta e
nove senhores acolheram a uma convocação pela imprensa, e participaram em 10 de
novembro de 1894, da criação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.
Conforme escreveu essa autora, o IHGSP tinha como pretensão, “ir buscar no
passado fatos e vultos da história do Estado que fossem representativos para constituir
uma historiografia marcadamente paulista, mas que desse conta do país como um
todo”, sendo que “sua concepção básica seguia as características fundamentais do
IHGB, dando ênfase a um conhecimento patriótico e cívico da nação.” Ficavam
evidenciados uma especificidade paulista: “ a História de São Paulo é a História do
Brasil”, tanto quanto elitista, “ o amor do nosso passado paulista e nacional, essa
demonstração indiscutível da civilização de um paiz, não podemos esperar que se

42
SAES, Décio. A Formação do estado burguês no Brasil (1888-1891).
85

manifeste num instante por todas as camadas da população”. 43 Para seu presidente
honorário e benemérito, nomearam o então Presidente da República, Prudente de
Moraes.
Antonio Celso Ferreira também colocou em destaque a escolha da autoridade
máxima do Poder Executivo para ocupar o posto de presidente honorário da
agremiação, em momento no qual se reuniam a elite intelectual e política de São Paulo,
para fundar o IHGSP. Na opinião desse historiador, “era sintomático, aliás, que a
inauguração dos trabalhos do instituto ocorresse às vésperas da posse do primeiro
presidente civil da República”. Ferreira assinalou ainda que “desde cedo e durante toda
a Primeira República, momento em que São Paulo firmou sua posição hegemônica na
Federação, o IHGSP gozaria de grande prestígio, inserindo-se na órbita do poder
político dominante do Estado.”44

Em 1907 era chegada a vez dos mineiros formalizar a entrada do Instituto


Histórico e Geográfico de Minas Gerais na vereda histórica. A idéia da criação de um
Instituto Histórico e Geográfico para o Estado de Minas Gerais surgira em 1901, através
do Diário de Minas, periódico de Belo Horizonte. Porém a idéia do Instituto acabou
criando corpo a partir do Clube Floriano Peixoto,

“por iniciativa e proposta de seu benemérito sócio, coronel Julio César


Pinto Coelho, [o qual] nomeou uma commissão composta dos seguintes
sócios do mesmo Club: dr. Antonio Augusto de Lima, dr Prado Lopes, dr.
João Luiz Alves, dr. Francisco Alves Junior, coronel Francisco Bressane, dr.
Olyntho Meirelles, dr. Estevam Pinto, major João Libano Soares, coronel
Julio Pinto Coelho e dr Pedro Sigaud, para promoverem uma reunião
publica, na qual fosse ventilado o magno assunpto da fundação do
Instituto.Essa reunião, realizada a 16 de junho de 1907, na sala das sessões
da Câmara dos Deputados ao Congresso Mineiro, nesta capital, foi o posto
(sic!) de partida do actual Instituto Histórico e Geographico de Minas
Geraes”45

Naquele 16 de junho de 1907 setenta e dois cavalheiros acataram a proposta de


aclamação de João Pinheiro da Silva, Presidente do Estado, para a presidência das
sessões preparatórias. Dentre os fins e objetivos, do Instituto havia a previsão de
correspondência com sociedades e academias estrangeiras de mesma natureza, e “com
as associações congêneres existentes na Capital Federal e nos diversos Estados da

43
O espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870 – 1930). São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, especialmente as págs. 125 a 133, onde se encontram essas citações.
44
A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940), p. 94.
45
Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo
Horizonte, ano XXI, fasc. II, abr – jun, 1927, p. 103. (grifo nosso).
86

República”46. A divulgação científica e cultural deveria contar com a publicação de


uma revista, estando reservada uma de suas partes para os documentos relativos a Minas
Gerais.
Ao tomar a palavra pelo Club Floriano Peixoto, Augusto de Lima falava do
caráter de urgência e importância daquele evento,
“...Senhores, já era tempo de Minas fundar seu aeropago historico, quando
quase todos os outros Estados da União já o fizeram. Não é demais recordar
que Minas foi o foco mais intenso da formação da nossa nacionalidade,
sendo a precursora dos eventos mais notáveis da nossa evolução politico-
social. As luctas dos Emboabas, os motins dos Sertões, a erupção formidável
de Felippe dos Santos, a tragédia sanguinolenta dos Conjurados, formam
outros tantos marcos crescentes do caracter cívico mineiro, atravez da
historia política.”47

A listagem dos homens que fundaram o IHGMG expunha uma íntima relação da
recén-criada instituição com representantes dos poderes constituídos do Estado, o que
por sua vez revelava o seu caráter semi-oficial. Cabe registrar que de passagem pela
capital de Minas, o jurista Pedro Lessa esteve presente naquela histórica tarde e por
sugestão de Augusto de Lima, passou a ser considerado sócio fundador do Instituto
Histórico e Geográfico que então era fundado.48
Após tomar assento à mesa de direção dos trabalhos, atendendo a pedido do
Presidente do Estado, Pedro Lessa faria um breve discurso. Pelas suas palavras ficamos
sabendo que comparecera atendendo a convite do seu ilustre amigo, Augusto de Lima, e
que até pensara recusar, devido ao seu estado de saúde que o impediria de tomar parte
ativa nos trabalhos daquela assembléia. Segundo ele,
“Quase banalidade é enaltecer a fundação do Instituto, tão promissoramente
iniciada: nem ha quem duvide que o olhar que se embebe no passado vê mais
claramente o presente e chega a vislumbrar o futuro. Os gregos e os
romanos disseram da historia ser ella a mestra da vida; e os Polybios, os
Plutarchos e os Ciceros a entendiam como um gênero litterario em que – as
biographias e as narrativas tratadas na amplificação imaginosa que os
antigos historiadores se permittiam, visavam a educação politica e moral,
inspirada nos fortes exemplos de virtudes, do heroismo e patriotismo. Essa
conceituação ingenua da historia foi severamente desmentida pelo criterio
da exactidão e da fidelidade na averiguação dos factos humanos contraposto
á creação romantica dos seus primeiros cultores. Mas a historia, continua,
mestra da vida, não se limita a reunir os factos humanos, de cujo exame
comparativo se induzem-as leis sociológicas; proporciona ensinamentos

46
Estatutos do Instituto Histórico e Geographico do Estado de Minas Geraes. Revista do Archivo Publico
Mineiro. Belo Horizonte, ano XXII, 1928, p. 355.
47
Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo
Horizonte, ano XIV, 1909, p. 6-7.
48
Acta da sessão de fundação do «Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes». Revista do
Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, ano XIV, 1909, p. 7.
87

praticos, lições de immediata utilidade, exemplos vivamente suggestivos, que


os estadistas não podem deixar de aproveitar...”49

Após João Pinheiro salientar “a importância da fundação do Instituto”50, nomeou


51
uma comissão encarregada de redigir seus estatutos. Conforme corretamente
observaram Helena Miranda Mollo e Rodrigo Machado da Silva, a criação do IHGMG
deveria servir como um espaço para a criação de um cânone para a história mineira, no
que a nova instituição deveria se diferenciar do Arquivo Público Mineiro, um lugar de
guarda da memória.52
Redigidos os estatutos do IHGMG, seu Art. 1º esclarecia que os fins daquele
Instituto seriam “investigar, colligir, methodizar, publicar ou archivar os documentos
concernentes á historia e á geographia de Minas-Geraes, e á archeologia, á
ethnographia e á língua dos seus indígenas”53.
É interessante ressaltar a similaridade existente entre os estatutos do Instituto
Histórico e Geográfico de Minas Gerais, com os estatutos do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Igualmente
caberia observar que em um ambiente ainda rarefeito em termos de vida universitária, o
espaço central do conhecimento acadêmico sobre a História era ocupado pelo IHGB54,

49
Ibidem, p. 8.
50
Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo
Horizonte, ano XXI, fasc. II, abr – jun, 1927, p. 104
51
Estatutos do Instituto Histórico e Geographico do Estado de Minas Geraes. Belo Horizonte. 12 jul
1906. Republicado na Revista do Arquivo Público Mineiro ano XXII (1928), p. 355 – 370.
52
MOLLO, Helena Miranda, SILVA, Rodrigo Machado da. Diogo de Vasconcelos e a “oficina central do
pensamento”. In: ROMEIRO, Adriana, SILVEIRA, Marco Antonio. (orgs.) Diogo de Vasconcelos: o
ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 72.
53
Estatutos do Instituto Histórico e Geographico do Estado de Minas Geraes. Belo Horizonte. 12 jul
1906. Republicado na Revista do Arquivo Público Mineiro ano XXII (1928), p. 355.
54
Acerca do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), torna-se necessário lembrar que, fundado
em 1838, constituíra-se como uma espécie de espaço da academia dos escolhidos, sob o critério das
relações sociais, como nos moldes das Academias Ilustradas européias de fins do séc XVII e séc XVIII.
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos: O Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.1,
1988, p.5 – 27. Uma mudança significativa ocorreu em 1851, com os novos estatutos, onde o candidato
aos seus quadros deveria provar sua capacidade de pertencimento ao Instituto, apresentando uma
produção intelectual na área de atuação do mesmo. José Honório Rodrigues, crítico respeitoso para com o
passado do Instituto, assinala que foi com a criação do IHGB que nasceu a pesquisa histórica brasileira.
Admite que muitas vezes o Instituto foi dominado por um caráter acadêmico propenso a trabalhos “mais
ornamentais e sociais, como comemorações, necrológios, elogios históricos, conferências e discursos” A
pesquisa histórica no Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p.37. José Honório
frisa também que “nos estatutos fixava-se claramente que o principal fim e objetivo do Instituto era
coligir, metodizar, publicar ou arquivar os documentos necessários para a História e Geografia do
Império do Brasil” Idem, Ibidem. Parte desta citação José Honório Rodrigues anotou dos Estatutos
publicados na Revista do IHGB, 1839, t.1, 22., de onde concluiu que “se o método histórico baseia-se
essencialmente na consulta às fontes escritas originais e nas tarefas críticas auxiliares, então, não há
como negar que os fundadores do Instituto Histórico deram ao seu trabalho, desde o início, uma
orientação impecável”. Idem, Ibidem, p. 38. Lilia Moritz Schwarcz apresenta-se menos condescendente
88

agremiação que ficara um pouco esquecida, conforme vimos, com a adoção do regime
republicano. A reabilitação do IHGB deve ser vista em nosso entendimento como um
esforço no qual estavam presentes os Institutos Históricos estaduais de São Paulo e
Minas Gerais, iniciativa que se revelaria fundamental diante da tarefa de legitimação da
ordem social então vigente. É verdade que haviam disputas, pois a denominação de
Instituto Brasileiro assumida pelo ‘grêmio carioca’ não era bem aceita pelos paulistas55.
No dia 16 de junho chegava à sede do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
um telegrama passado de Minas Gerais. O teor era o seguinte:

“Bello Horizonte, 16 de junho de 1907. – Marquez Paranaguá, Presidente do


Instituto Histórico Brazileiro, Rio – Tenho prazer communicar V. Ex.
fundação hoje Instituto Historico e Geographico Minas Geraes, moldado
pelo venerável Instituto de que V.Ex. é digno presidente. Saudações
56
affectuosas. – João Pinheiro.”

A auspiciosa notícia da fundação do grêmio dos mineiros encontrou resposta


logo no dia seguinte,
“Rio, 17 de junho de 1907. – Exm. Sr. Dr. João Pinheiro da Silva, M. D.
Presidente do Estado de Minas Gerais. « Profundamente desvanecido,
recebeu o Instituto Historico e Geographico Brazileiro o gentil telegramma
de V. Ex., communicando a fundação Instituto Historico e Geographico de
Minas Geraes, hontem occorrida. «Augurando futuro brilhante à nascente
associação, que reaes serviços póde prestar ao Estado tão patrioticamente
administrado por V. Ex., tenho a satisfação de offerecer para a bibliotheca
do novo grêmio uma collecção dos tomos existentes da Revista do Instituto
Historico e Geographico Brazileiro, assim como um exemplar das
publicações pelo mesmo Instituto editadas. « Ficam pois, á disposição do
Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes, nesta Secretaria, os
referidos exemplares, que serão entregues, mediante communicação, com 24
horas de antecedência. « Aproveito a opportunidade para apresentar a V Ex.
os meus protestos de alta admiração e respeito. – O 1º Secretario Perpetuo,
57
Max Fleiuss.»”

em relação ao IHGB, ao qual se refere como ‘grêmio carioca’. (grifo nosso). Lilia Moritz Schwarcz
acrescentou que “além de um levantamento documental, [havia] a afirmação de uma perspectiva teórica.
Fazer história da pátria era antes de tudo um exercício de exaltação. Essa lógica comemorativa do
instituto se efetivou não só mediante os textos produzidos e publicados na revista, como por uma prática
efetiva de produção de monumentos, medalhas, hinos, lemas, símbolos e uniformes próprios ao
estabelecimento. Lembrar para comemorar, documentar para bem festejar.” SCHWARCZ, Lilia Moritz.
O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870 – 1930). São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. P. 104. Ligado de forma visceral ao Império, tendo sido colocado sob a
proteção pessoal do Imperador Pedro II, o fim do Regime monárquico teria obrigado o IHGB, sem
desligar-se da gratidão pessoal mantida in memorian para com o imperador deposto - considerado
protetor perpétuo do estabelecimento - a sutis adaptações para com os novos tempos, tarefa que caberia
em parte a Max Fleiuss, secretário do Instituto a partir de 1905.
55
SWARTZ, Lilia Moritz . O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
(1870-1930), p. 126. Caberia lembrar que, desde a sua fundação, o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro procurou assumir o papel de centro hegemônico da escrita da História da nação.
56
Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro. Rio de Janeiro, t. LXX, parte II, 1907, p.723.
57
Ibidem, p. 723-724.
89

Decorrido um mês, personalidades ilustres da política e dos meios belletristas


estavam presentes na sessão de instalação do Instituto Histórico e Geográfico de Minas
Gerais, ocorrida em 16 de julho de 1907, entre elas o 1º Secretário Perpétuo Max
Fleiuss. Contudo o salão da Câmara dos Deputados contava no seu recinto com
personagens de extrema importância ao nosso estudo, entre os quais destacamos João
Capistrano de Abreu, José Veríssimo e Diogo de Vasconcelos, este último escolhido
como o orador oficial daquele novo Instituto. Naquela tarde belorizontina coube a Max
Fleiuss, em nome do IHGB, felicitar aos mineiros pela criação do seu Instituto Histórico
e Geográfico, declarando em seu discurso que considerava “ ocioso encarecer [o]
prestigio de taes associações que consultam uma necessidade de primeira ordem,
visando o estudo da historia, considerada hoje o elemento social mais decisivo”.
Fleiuss enaltecia o papel da História como “instrumento de cultura intellectual”,
amparando-se teoricamente em Charles Langlois. A História deveria, na opinião de
Fleiuss, “absorver o espirito dos nossos homens públicos” no que o secretário do IHGB
concitava os mineiros:
“Cuidemos, pois, com entranhado amor do nosso passado, mas não traga
isso o esquecimento do nosso presente. Compenetremo-nos todos dos altos
deveres que nos assistem. Ora, a fundação do Instituto Histórico de Minas
demonstra que nesta terra, onde o patriotismo e o caracter tem fundas
raízes, há a comprehensão exacta desses encargos superiores.”58

É importante acrescer que fazia parte da tradição dos secretários do IHGB,


normalmente destoantes em perfil social dos demais sócios, “a labuta de quem acredita
e pretende sustentar uma instituição” 59 , no que podemos evidenciar a atuação de
Fleiuss, a quem coube cumprir na Primeira República,

“o mesmo papel que seus colegas haviam desempenhado durante o regime


anterior. Max Fleiuss foi, antes de mais nada, um ‘profissional de institutos’:
sócio correspondente do Instituto Archeologico Pernambucano e do Instituto
de Minas Gerais e da Bahia, efetivo da Sociedade de Geographia do Rio de
Janeiro e acadêmico da Real Academia de Madrid, mostrou-se um entusiasta
do modelo dos institutos.”60

Talvez seja o pronunciamento de João Pinheiro, naquela sessão solene da


instalação do IHGMG, que esclareça melhor as intenções mais imediatas que envolviam
a criação do Instituto,

58
Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo
Horizonte, ano 14, 1909, p. 213 – 215.
59
SWARTZ, Lilia Moritz . O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
(1870-1930), p.106.
60
Idem, Ibidem, p. 107.
90

“...aos menos reflectidos poderá parecer, talvez, que taes estudos mais
participam dos prazeres intellectuaes menos úteis, si é possível a gradação,
do que das fecundas e positivas cogitações da actualidade, na solução
premente de problemas mais necessarios, que resguardem o futuro,
melhorando-o. Si é certo que o trabalho intellectual que se exercita no
passado, traz sempre, para o coração, o consolo dos exames serenos e o
conforto dos julgamentos em que as paixões arrefecidas deixam dominar
inteira a belleza da justiça calma e definitiva ( e nenhum prazer mais puro e
tambem mais nobre lhe póde ser equiparado), há ahi ainda, além do puro
prazer intellectual, forças positivas governando a actualidade, e elementos
poderosos sustentando o presente e dirigindo o futuro, nos ensinar ao
homem que deve confiar sómente nesta justiça, que nunca falta, contra a
onda das paixões ephemeras e dos interesses passageiros que desapparecem
com o tempo que os creou, para deixar, eterno e duradouro, o que foi feito
no serviço da Humanidade e da Pátria, que nunca morrem....”.61

A produção da escrita histórica e o aperfeiçoamento das novas práticas


republicanas andavam de mãos dadas. Assim, a partir de 1907, as oligarquias paulista e
mineira, encontravam-se devidamente aparelhadas de instituições que tinham por
objetivo tornar-se o lugar da memória e do fazer História, no que equivaleria dizer, na
produção de uma historiografia fundante62 e reificada, que atendesse aos interesses do
pensamento conservador63 no projeto de idealizar a nação.
Mas os Institutos Históricos de São Paulo e de Minas Gerais também contavam
com instituições que lhes eram muito próximas, e cabe aqui evidenciar o papel
desempenhado pelo Museu Paulista e pelo Arquivo Público Mineiro.
O Museu Paulista é um dos mais antigos museus históricos brasileiros 64, tendo
surgido enquanto museu histórico em 1917, por conta de um projeto de ruptura com um
museu oitocentista de história natural que fora criado em 1891.

61
Respectivamente, Estatutos do Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes. Revista do Arquivo
Público Mineiro. Belo Horizonte. ano XXII, 1928. P. 355 e Instituto Historico e Geographico de Minas
Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte. ano XXI, fasc. II, abr – jun, 1927. P. 105.
62
Emprego a expressão historiografia fundante adotando a definição de Jörn Rusen, e a esta articulando
proposição formulada por Nilo Odália. Assim entendemos como historiografia fundante ao processo da
constituição narrativa de sentido pelo qual o saber histórico, a priori conhecimento científico – no que
sujeita-se às exigências da verdade e certeza científicas, mas também conhecimento fundante, passa a ser
o fundamento, origem e explicação de projetos e medidas políticas práticas, inclusive de um Estado, para
atingir fins determinados. Desta forma a historiografia fundante passa a ser inscrita nos processos
comunicativos da práxis vital humana, na qual o agir humano e auto-compreensão de seus sujeitos
orientam-se por representações de processos temporais significativos que, no entanto, tiveram o almejado
sentido prático da pesquisa científica dado de antemão.
63
Entendemos por pensamento conservador aquele surgido a partir da negação da razão iluminista, e que
conheceu a partir do pensamento tradicionalista europeu de Joseph de Maistre e Louis de Bonald, a defesa
da ordem, da autoridade e da contra-revolução. No pensamento conservador a História é entendida como
um processo orgânico de evolução, sendo evocada a imagem da árvore para significar evolução e
enraizamento, que se apresentam como opostos aos ideais do universalismo abstrato e progressivista de
uma razão qualificada como supratemporal. Neste sentido a razão iluminista passa a ser entendida pelo
pensamento conservador como possuidora de um potencial de terror, na qual em oposto o pensamento
conservador concebe sua idéia de liberdade.
64
Se o Museu Nacional, criado em 1922 tinha vocação já pré-traçada e livre de compromissos anteriores,
O Museu Paulista foi reorientado ao longo dos 28 anos de direção de Afonso d’Escragnolle Taunay,
91

Coube portanto, ao novo diretor do Museu Paulista, Afonso d’Escragnolle


Taunay, dar tratos para a transformação por completo do antigo aspecto de um museu
que fora voltado para a história natural, dando a esse, novos direcionamentos. Pela
importância assumida por esse historiador no período que estamos estudando, convém
conhecê-lo um pouco melhor.
Afonso d’Escragnolle Taunay pode ser considerado como uma aquisição
bastante significativa que as lides de Clio lograram capturar das pranchetas, dos
cálculos estruturais e dos teodolitos. A darmos fé aos comentários do seu filho Augusto,
fora Afonso Taunay um engenheiro sem vocação, embora na Escola Politécnica de São
Paulo tenha se revelado um proficiente professor de Física e Química65.
Diplomado pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, foi atendendo a um
convite do seu tio, Augusto Carlos da Silva Teles, então professor da Escola Politécnica
paulista, que Afonso Taunay radicou-se na cidade por ele chamada de ‘metrópole do
Sul’, de onde não mais saiu, a não ser para viagens. Na capital paulista, Afonso, de
nome ilustre mas destituído de fortuna pessoal, conseguiu, por dispor de distinção
intelectual, ligar-se pelo casamento com “uma herdeira das mais tradicionais fortunas
ligadas à cafeicultura paulista – os Sousa Queirós.”66
Em São Paulo Taunay foi professor no Ginásio São Bento e na Escola
Politécnica de São Paulo, até ser designado, conforme sabemos em 1917, pelo
presidente do Estado de São Paulo, Altino Arantes, para dirigir em Comissão, o Museu
Paulista, onde seria efetivado na função de Diretor, em 1923.
Os biógrafos e críticos de Afonso Taunay apontam várias interferências que de
certa forma parecem ter palmilhado seu caminho, convertendo esse engenheiro de
formação em renomado historiador. A influência paterna teria sido um aspecto
importante, pois sempre citada. Afinal, o visconde de Taunay deixara uma obra de

sempre a partir da ótica paulista e dos limites marcados pelos interesses políticos e econômicos da elite
bandeirante.O ‘Palácio de Bezzi’, nome pelo qual também ficou conhecido o prédio do Museu Paulista,
por ter sido construído a partir do projeto do engenheiro-arquiteto Tommaso Gaudencio Bezzi, começou a
ser erguido em 1885, tornando-se propriedade do Estado de São Paulo em 1892 e passando a abrigar a
sede do Museu do Estado em 1894, quando foi oficialmente batizado de Museu Paulista. Passou a abrigar
as coleções provenientes do antigo Museu Sertório, formado sobretudo de coleções zoológicas, mas
também de uma miscelânea de objetos, incluindo-se aí, algumas peças preciosas e únicas do patrimônio
arqueológico e histórico nacional que haviam sido adquiridas pelo Estado de São Paulo em 1890. BREFE,
Ana Claudia Fonseca. O Museu Paulista: Affonso de Taunay e a memória nacional (1917-1945). São
Paulo: Unesp, 2005.
65
MATTOS, Odilon Nogueira de. Afonso de Taunau: historiador de São Paulo e do Brasil (perfil
biográfico e bibliográfico). São Paulo: Museu Paulista, 1977.
66
COSTA, Wilma Peres. Afonso D’Escragnolle Taunay: História Geral das bandeiras paulistas. In: Mota,
Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. 2. ed. V.2 São Paulo: SENAC, 2002. p.
102.
92

grande interesse para a historiografia, tanto no referente à Guerra do Paraguai, quanto à


vida política do Segundo Reinado, do qual fora deputado, senador e presidente de duas
províncias.
Outra influência que parece ter marcado a vida intelectual de Afonso Taunay
foram as suas amizades, notadamente as relações mantidas com Capistrano de Abreu e
Manuel de Oliveira Lima67. E por fim, a sociabilidade envolta em laços familiares, pois
Afonso Taunay vinha a ser concunhado de Washington Luís, eminente político, o qual
“abrigava também uma vocação de historiador”68. Estes relacionamentos, certamente,
a par de toda a sua capacidade e empenho pessoal, serviram para que portas lhe fossem
abertas.
Em maior propriedade para os nossos objetivos, cabe portanto descortinar o
Afonso Taunay ligado a tentativas de reinvenção do passado paulista, onde uma espécie
de destino manifesto estivesse prefigurada nas ações dos bandeirantes, e na dinâmica da
cidade Planaltina, o que inevitavelmente passa a mobilizar as temáticas da nação, do
território e da civilização.
Cabendo entender a concepção de História defendida por Afonso D’Escragnolle
Taunay, torna-se inadiável conhecer, ainda que em reduzidas linhas, um ensaio
produzido por ele em 191169. Esse trabalho foi proferido em conferência, a 3 de maio
daquele mesmo ano, na abertura do Curso de História Universal da Faculdade Livre de
Filosofia e Letras de São Paulo, ensaio sempre lembrado e elogiado pelos historiadores,
não somente em laudatórias homenagens post-morten70, mas também em estudos mais
71
críticos , Os Principios Geraes da Moderna Critica Histórica, alinhavam Afonso

67
Odilon Nogueira de Matos cita também a Alfredo Moreira Pinto. Ibidem, p. 28.
68
COSTA, Wilma Peres, ibidem, p. 103.
69
Os Princípios Geraes da Moderna Critica Historica. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo, v.XVI, 1911, p.324-344.
70
Seriam os casos da alocução proferida por Myriam Ellis em 19 de agosto de 1976, bem como do perfil
biográfico e ensaio bibliográfico preparado por Odilon Nogueira de Matos no ano seguinte, ambos com o
objetivo de comemorar o centenário do nascimento de Afonso Taunay. Myriam Ellis classificou o ensaio
‘Os princípios Geraes da Moderna Critica Historica’ como “excelente”, e “ainda pleno de atualidade”.
Por seu turno, Odilon Nogueira de Matos fazia coro quanto aos aspectos de interesse e atualidade da
Conferência de 1911, indo mais além, pois acreditava que “está a merecer reedição, juntamente com
outros trabalhos que o mestre deixou esparsos, contendo subsídios preciosos para a história da cultura
brasileira.” Ver: ELLIS, Myriam. Afonso D’escragnolle Taunay no ano do seu centenário (1876 – 1976).
Homenagem da Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo. Revista de História. N.107, v. LIV, jul. set. 1976, p. 3-9. e MATOS, Odilon Nogueira de.
Afonso de Taunay: Historiador de São Paulo e do Brasil (perfil biográfico e ensaio bibliográfico).
Coleção Museu Paulista, série ensaios, v.1, São Paulo, 1977, p. 27.
71
Para Mattos (2003), esse ensaio serviu como a declaração de fé do autor quanto à necessidade de
enfatizar a documentação enquanto fonte privilegiada de acesso do historiador ao fato, o que estaria em
acordo com a História de cunho ‘positivista’ e historicista do IHGB e IHGSP. (grifo nosso). Taunay teria
se declarado partidário da historiografia francesa representada por Charles-Victor Langlois e Charles
93

Taunay com o que havia de mais avançado à época no sentido da Teoria da História 72.
Para Taunay, o “arsenal das sciencias auxiliares da Historia”, que seriam,

“a Philologia, a Epigrafia, a Paleographia, a Diplomatica, sem fallar nos


conhecimentos linguisticos correspondentes a certas regiões e o estudo da
interpretação das inscripções em casos especiaes. Quanto mais longínquas
taes épocas, maior importância toma a critica dos documentos figurados: as
obras d’arte, a architetura, a numismática, a heráldica, todos os ramos da
archeologia, emfim.”73

A recolha dos documentos deveria ser realizada juntamente com os cuidados da


Heurística. A preocupação exacerbada com a documentação, “ninguem pode hoje
descrever uma epoca, fazendo trabalho original sem se dar a um trabalho immenso de
pesquiza e de cotejo” 74 , que reforçada pela concepção de História cultivada nos
Institutos Históricos o fazia demorar-se, frisando a sua importância:

“Assim, pois, se o historiador estribado em grande copia de documentos


enceta o seu trabalho, ainda lhe cabe verificar precisamente se o que recolhe
ja foi criticado e se ainda há material que não soffreu os reparos da critica.
Se um bom fado o guiar á descoberta de ineditos que delle esperam
commentarios ve-se na imminencia do perigoso passo a que só se pode
abalançar, criteriosamente, se tiver uma formação muito bem equilibrada.
Daunou em princípios do século XIX, dizia que o officio de historiador
reclama sólida bagagem litteraria e philosophica, e o conhecimento da
sciencia política e o do direito ‘Grotius e Machiavel tanto quanto Homero,
Aristoteles e Plutarco’ ”75

No tocante à História do Brasil, acusava Taunay, “basta lembrar que os


archivos hollandeses apenas foram atacados pelo Dr. José Hygino e que os Vaticanos,

Seignobos, autores que se opunham a Ranke e Taine, por procurarem desenvolver uma visão de História
evolutiva, privilegiando uma História das Civilizações, em oposição a uma História dos ‘Grandes
Homens’. Já para Anhezini (2003), importante é ressaltar a ligação da crença de Taunay acerca das
potencialidades da ‘Moderna Crítica Histórica’, exposta na Conferência de 1911, como possibilidade
aberta para a reafirmação do objetivo de pensar a nação, mais representativa das tendências gerais da
intelectualidade, em uma época marcada (anos 10 e 20) por insurreições militares e agitações operárias.
Ver. MATTOS, Cláudia Valladão de. Da Palabra à Imagem: sobre o programa decorativo de Affonso
Taunay para o Museu Paulista. Anais do Museu Paulista, v.6-7, n.7, 2003, p. 123-148 e ANHEZINI,
Karina. Correspondência e escrita da História na trajetória intelectual de Afonso Taunay. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n.32, 2003.
72
Com efeito devemos frisar que muito antes de Marc Bloch e Lucien Febvre desafiarem o status quo,
François Simiand havia proferido uma comunicação em janeiro de 1903 na Sociedade de História
Moderna e Contemporânea de Paris, onde estaria presente, ao que parece, Charles-Victor Seignobos,
expoente do historicismo objetivista e interlocutor ao qual Simiand deu voz, respondendo através das
numerosas notas acrescidas ao trabalho publicado, a maioria com referências explícitas a obras de
Seignobos como Método histórico aplicado às Ciências Sociais ou História Política da Europa
Contemporânea. De orientação durkheimiana e perspectiva teórica marcadamente interdisciplinar, o
futuro inspirador da área de História econômica dos Annales colocara certamente, uma cunha e muitas
incertezas no e’stablishment da historiografia francesa. Ver SIMIAND, François. Método histórico e
ciência social. Bauru: EDUSC, 2003.
73
Os Princípios Geraes da Moderna Critica Historica. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo, v.XVI, 1911, p.326-328.
74
Idem, ibidem, p. 326.
75
Idem, ibidem, p.328.
94

com a sua copia collossal de informes das autoridades ecclesiasticas á Santa Sé, ainda
nada desvendaram.”76. Esta preocupação presente na fala de Taunay, o qual conduzia
ao entendimento que havia em termos da História do Brasil quase tudo a se fazer,
encontrava correspondente na atuação do seu grande mestre e interlocutor: Capistrano
de Abreu. Capistrano queria abrasileirar a historiografia brasileira, pois, explica José
Honório Rodrigues, era “preciso ver os caminhos, as monções, a fronteira movediça, os
processos de conquista do sertão e de criação de uma personalidade histórica
distintamente brasileira”77.
Caberia ao historiador apenas colecionar documentos, para à moda dos velhos
cronistas, “reuni-los por meio de algumas phrases de transição” 78. Cada fato histórico,
esclarecia Taunay, era uma questão a julgar. A crítica às fontes se fazia mais que tudo,
necessária. Chamava atenção para o estilo das épocas e para o significado de certas
palavras que os séculos alteraram. Um aspecto que atrai a atenção no ensaio de Taunay,
apontando uma divergência entre a teoria apregoada e sua prática seria a respeito da
dúvida metódica, aplicada às afirmações contidas nos documentos. Taunay era
categórico quanto a isto: “a priori deve o historiador desconfiar das affirmações de um
autor, mesmo quando é tido como muito verídico”, no que reiterava, logo após,
“Repetimo-lo: é preciso procurar saber o que o autor realmente acreditava
porque pode não ser sincero ou talvez se tenha enganado. Com effeito é
possivel que minta conscientemente por interesse proprio, alheio, individual
ou collectivo, como é tão freqüente succeder nos papeis de origem official;
pode ter se achado numa situação que o obrigava a mentir, como succede,
por exemplo em actos, aliás inspirados pela boa fé, e redigidos a uma certa
distancia dos acontecimentos.”79

Desconfiava ainda Taunay das memórias, que “tem introduzido na historia


innumeras causas de erro”80, mas também da tradição oral, pois,

“A critica precisa saber se essas transmissões successivas conservaram ou


deformaram a affirmação primitiva, sobretudo se a tradição recolhida pelo
documento foi escripta ou oral. A tradição oral é, pela sua natureza, um
conjuncto de alterações continuas assim pois a sciencia geralmente a
repelle. Sua forma mais saliente é a lenda que se produz nos grupos de
homens cujo único meio de intercommunicação é a palavra, nas sociedades
barbaras e nas classes pouco cultas. A historia de todos os povos começa
por um periodo lendario; embelleza a lenda minimos factos a que empresta
gigantescas proporções. Assim por exemplo os sagas escandinavos que

76
Ibidem, p. 329.
77
Afonso Taunay e o revisionismo histórico. Revista de História, São Paulo, n. 36, out.dez. 1958, p.98-
99.
78
Os Princípios Geraes da Moderna Critica Historica. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo, v.XVI, 1911, p.329.
79
Idem, Ibidem, p. 333.
80
Idem, Ibidem, p.334.
95

alguns criticos reduziram ás proporções insignificantes de brigas de aldeões,


de miseraveis questiunculas locaes, faltando lhes o sopro épico que muitos
lhes attribuem. Tudo isto tem lugar marcado no folklore de uma nação e não
em sua historia.”81

Finalmente Taunay, afastados os escolhos traiçoeiros ao historiador, apontava


para uma questão que iria render muita discussão nas décadas seguintes: o
posicionamento dos historiadores entre a História da Civilização e a tradicional História
dos grandes vultos, apelidada desdenhosamente pelos defensores do primeiro campo
como a História-batalha. Sobre esta questão, assim se posicionava Taunay:

“Os historiadores, occupados sobretudo com a politica, sentem-se


geralmente empolgados pelo sentimento das individualidades, percebem
actos de governantes onde é muito difficil descobrir qualquer traço geral.
Querem os seus adversários, quanto possível, supprimir a acção destas
individualidades, annulalas, servindo-se de factos geraes em que a massa
homogena se move sob determinado impulso commum, sem que dentre della
surja nenhuma figura em destaque. E’ pueril extremar-se num ou noutro
campo. A construcção histórica completa suppõe o estudo dos factos sob os
dous aspectos. O quadro dos habitos, dos pensamentos, vida e acção dos
homens, constitue evidentemente uma parte capital da historia, no emtanto,
se reunirmos todos os actos de todos os individuoos para dahi tirar o que
elles possuem em comum, ainda assim resta o elemento propriamente
histórico: o facto de que certas acções foram obra de um homem ou de um
grupo, em determinado momento. Assim, pois a historia é obrigada a
combinar, com o estudo dos factos geraes, a apreciação de outros,
particulares, a adoptar um caracter mixto de sciencia de generalidades e
narrativa de aventuras.”82

A época que estamos considerando as proposições metodológicas de Afonso


Taunay encontravam-se inscritas em um processo maior, contexto no qual a escola
metódica impôs-se com irresistível vigor, tomados os grandes centros historiográficos
mundiais como referência.
Entendemos que embora filiando-se em discurso à Escola Metódica de Langlois
& Seignobos, bem reputados – como já observado – dentro dos Institutos Históricos, os
quais Taunay respeitosamente cita, consideramos ser defensável anotar que
metodologicamente, o futuro ‘historiador das bandeiras paulistas’ se conservasse
fundamentalmente rankeano, talvez por influência do seu ‘mestre’, Capistrano de
Abreu. Atendendo aos princípios metodológicos que então em voga, Afonso Taunay se
notabilizou no aspecto documental pela iniciativa de imprimir nos Anais do Museu

81
Idem, Ibidem, p. 335.
82
Ibidem, p. 338.
96

Paulista a documentação espanhola do Arquivo Geral das Índias de Sevilha 83 ,


entendendo que,
“para o estudo do passado paulista cabia a capital importância à
documentação espanhola na parte relativa à expansão bandeirante, ao Sul e
a Oeste, de que resultou para os castelhanos o recuo Além-Paraná e
Uruguai e para o Brasil a incorporação de centenas de milhares de
quilômetros quadrados ao seu território”84.

Acresce em importância ressaltar que Taunay, atirava-se à “exigência árdua de


labor, a fidelidade da consulta às fontes e o desejo de servir à verdade”85, um ideal que
reiteramos, estava mais próximo de Ranke, que da escola metódica.
A historiadora Ana Claudia Fonseca Brefe esclarece que a nomeação de Afonso
d’Escragnolle Taunay para a direção do Museu Paulista “...foi bastante calculada pelo
governo do Estado de São Paulo, dada a aproximação da comemoração do centenário
da Independência brasileira, em 1922. A principal tarefa de Taunay era preparar o
Monumento do Ipiranga para as festas centenárias”86 , daí a importância que a autora
cinge os cinco primeiros anos de Afonso de Taunay à frente do Museu. Com o tempo,
Taunay iria utilizar-se largamente dos seus estudos historiográficos, bem como de
amplos conhecimentos de métodos e conceitos de história para transformar o edifício
em um museu histórico.
De acordo com essa autora,
“o objetivo de Taunay era contar a história da constituição da nação
brasileira do ponto de vista de São Paulo, isto é, como resultado do esforço
paulista desde os primórdios da colonização. Por isso, era fundamental
contar a história de São Paulo bandeirante, para mostrar como, já no início
do Brasil colonial, os paulistas estavam fortemente envolvidos em um projeto
de construção de uma unidade nacional. O Museu Paulista é, então, o lugar
em que essa história vai tomar corpo e materialidade.”87

Posição semelhante à defendida por Ana Cláudia Brefe encontramos no trabalho


preparado por Cláudia Valladão de Mattos. De acordo com ela, Afonso Taunay abraçara
a missão de configurar uma unidade entre a arquitetura representativa do ‘Palácio
Bezzi’ e a função da instituição, passando a desenvolver uma política persistente de
valorização da coleção histórica daquele Museu. No ano de 1922, face às

83
Os documentos paulistas do Arquivo Geral das Índias vieram a lume nos v. 1, 3 e 5 dos Anais do
Museu Paulista, publicados respectivamente em 1922, 1925 e 1931.
84
TAUNAY apud. RODRIGUES. In: A pesquisa histórica no Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1969. P. 98-99.
85
Trecho do Discurso de Afonso Taunay na sua posse na Academia Brasileira de Letras. Citado em
RODRIGUES, J. H. Taunay e o revisionismo histórico, p. 100.
86
Idem, Ibidem, p. 21.
87
Idem, Ibidem, p. 25.
97

comemorações do Centenário da Independência, era grande o interesse despertado pelo


‘Museu do Ipiranga’ na população, e há registros que reaberto ao público em 7 de
setembro de 1922 ele contaria até o final do ano com mais de 50.000 visitantes.
Tentando atender a expectativa de um público que se sabia tão expressivo, Taunay
desenvolveu um programa decorativo, tanto extenso quanto complexo, mantendo uma
coesa unidade da decoração, lógica, coerente e que acabou obtendo um grande
significado simbólico88. Observa Ana Cláudia Fonseca Brefe que o cenário escolhido
para abrir o cerimonial de celebração do Centenário da Independência em São Paulo foi
o Museu Paulista. Conforme a programação das festividades centenárias,
“a 7 de setembro de 1922 foram abertas á visita publica oito salas novas
consagradas á historia paulista e nacional, além de se ter procedido á
decoração do magestoso peristylo, da escadaria monumental e do Salão de
Honra, onde apenas se apresentava outr’ora o quadro de Pedro Americo.” 89

Nos interessa ressaltar alguns aspectos dessa decoração, que foi percorrida por
milhares de visitantes, que representavam para a época uma considerável massa
humana. Esse público adentrou ao interior do Palácio Bezzi para apreciar mediante a
narrativa museológica arquitetada por Taunay, a representação do passado colonial
paulista que – conforme se apregoava – contribuíra para a constituição da unidade
nacional em virtude do movimento das bandeiras. De quebra, teriam os visitantes se
aproveitado para refugiar-se da chuva torrencial que se precipitou sobre a cidade de São
Paulo naquela data festiva.
Quanto ao projeto de decoração de Afonso Taunay cabe destacar inicialmente o
hall de entrada, com as enormes figuras dos bandeirantes Antonio Raposo Tavares e
Fernão Dias Paes, situadas à esquerda e à direita desse hall a encher as vistas e a
impressionar a imaginação do público. O trabalho fora assinado pelo escultor italiano
Luiz Brizzolara.

88
Da palavra à imagem: sobre o programa decorativo de Affonso Taunay para o Museu Paulista. Anais
do Museu Paulista, São Paulo, ano 6, v. 7, n. 7, 2003, p. 123 – 148.
89
Guia da Secção Historica do Museu Paulista. São Paulo: Imprensa Official do Estado, 1937, p. 48.
Cabem considerações sobre esse quadro, que já se encontrava exposto no Museu desde 1895. Assim,
defendeu Ana Cláudia Fonseca Brefe que essa obra acabou ganhando um sentido integral em virtude da
construção espacial de uma história que a ela se encontrava ligada. Isso se tornou possível graças à
decoração idealizada pelo novo Diretor do Museu Paulista. O Museu Paulista: Affonso de Taunay e a
memória nacional (1917-1945). São Paulo: Unesp, 2005. Karina Anhezini observa que foi diante das
séries de documentos publicados em 1914, 1917 e 1920, bem como de tantos outros adquiridos pelo
Museu Paulista, que tornou possível a Taunay abrir essas oito salas. ARAÚJO, Karina Anhezini de. Um
metódico à brasileira: a História da historiografia de Afonso de Taunay (1911-1939). 237f.Tese
(Doutorado em História) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual
Paulista, Franca, 2006.
98

As estátuas em mármore, juntamente com o pedestal atingindo três metros e


meio de altura, representam o ciclo de caça ao índio e devassa do sertão (Antonio
Raposo Tavares) e o do ouro e pedras preciosas (Fernão Dias Paes). Cabe dar voz a
Taunay: “Está Antonio Raposo magnificamente caracterisado num gesto de devassador
de terras, com o braço alçado ao nível dos olhos, como quem explora o horizonte.
Fernão Dias, não menos expressivamente, examina um mineral.”90
No interior do museu, a escadaria monumental, e nesta, ânforas contendo as
águas de rios que circunscrevem o território nacional, que em número de dezoito, foram
somadas a mais duas, com a mistura de águas dos rios dos extremos norte e sul e leste e
oeste do país. Esclarecia Afonso Taunay tratar-se das águas dos rios “Amazonas,
Madeira, Negro, Paraná, Paraguay, Uruguay, S.Francisco, Tocantins, Doce,
Jaguaribe, Assú, Parnahyba, Parahyba, Carioca, Oyapock, Chuy, Capibaribe e
Javary”. As águas misturadas seriam “do Oyapock e do Chuy e as do Capibaribe e
Javary, os rios dos extremos norte e sul, e leste e oeste do Brasil.”91
No nicho central da escadaria, a estátua de D. Pedro, e ao nível do seu pedestal
seis figuras de bandeirantes simbolizando cada uma das unidades da Federação
destacadas do território de São Paulo. Para o Diretor do Museu Paulista tais estátuas
haviam sido postas nesse local pois,
“assim, rememoram as seguintes figuras capitaes e symbolicas do
bandeirantismo: Manoel de Borba Gato (Minas Geraes); Paschoal Moreira
Cabral Leme (Matto Grosso); Bartholomeu Bueno da Silva, o Anhanguera
(Goyaz); Manoel Preto (Paraná); Francisco Dias Velho (Santa Catharina);
e Francisco de Brito Peixoto (Rio Grande do Sul)”92.

Ora, todo esse conjunto de representações integradas no espaço standartizado de


um museu estaria em cabal acordo com as pretensões do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo, que no primeiro volume de sua revista, grafava já na página
seguinte ao sumário das matérias editadas, a seguinte advertência ao leitor: “ A historia
de S. Paulo é a própria historia do Brasil”93
No caso de Minas Gerais, o advento da República, possibilitou logo de início, a
fundação do Arquivo Público Mineiro, instituição a qual surgida nos primeiros anos do
novo regime, passara a cumprir o papel de unificar o Estado de Minas Gerais, utilizando

90
Guia da Secção Historica do Museu Paulista. São Paulo: Imprensa Official do Estado, 1937, p. 57.
91
Ibidem, p. 60.
92
Ibidem, p. 60. (grifo do autor).
93
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, v. 1, 1895, p.1.
99

dos seus documentos e textos que conferissem uma imagem a essa unidade federativa.
Assim, iniciava-se a construção de um sujeito histórico, o Estado de Minas Gerais.
Para pesquisadores como Medeiros & Araújo (2007), era preciso deixar clara a
sensação de que o passado teria ficado para trás, devendo ser revalorizada a história dos
mineiros, e com ela, o sentido de uma nacionalidade que herdava do Império a
concepção de civilização enquanto continuidade histórica, conforme defendia seu
primeiro diretor, José Pedro Xavier da Veiga (1846 -1900).
Assim pensando, a República não deveria ser vista como uma revolução, mas
compreendida enquanto evolução natural da própria história do Brasil 94. Assim defendia
Xavier da Veiga, o marcante diretor do Arquivo nos primeiros anos de sua existência.
Esse jornalista e poeta dedicou-se também à História, tendo contribuído “...para a
redefinição do significado do histórico de Minas Gerais tanto com seus trabalhos no
APM quanto na confecção monumental das Efemérides Mineiras.”95
Cláudia Regina Callari, reforça essa opinião, no que para ela deve ser acentuado
o fato do Arquivo Público Mineiro, instituição regional formada dentro de um regime
acentuadamente federalista, também teria servido para “justificar o predomínio
econômico e político de Minas Gerais na Primeira República” 96 , ao tratar da
Inconfidência Mineira como movimento local, mas simultaneamente nacional. Nesse
sentido, a Inconfidência Mineira “seria vista como o movimento mais representativo do
passado mineiro, que se pretendia nacional”97. Cabe acrescer que o Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais, não contando com os mesmos recursos do Arquivo
Público Mineiro, utilizaria da páginas da revista do Arquivo para suas publicações, o
que era veiculado também no jornal Minas Gerais, órgão oficial do Estado.
Medeiros & Araújo, atentam para o fato que o,
“advento da República sinalizou a preocupação com um novo regime de
historicidade para Minas Gerais. A crise do Império tornou mais perceptiva

94
MEDEIROS, Bruno Franco, ARAÚJO, Valdei Lopes de. A História de Minas como História do Brasil.
Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, ano XLIII, n.1, jan.- jun. 2007. Pp. 23-37.
95
Idem, Ibidem, p. 29
96
Os Institutos Históricos: do Patronato de D. Pedro II à construção do Tiradentes. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 21, nº 40, 2001, p. 75. Ao Arquivo Público Mineiro devia caber
concomitantemente, conforme a autora, o papel de porta-voz de um suposto passado glorioso mineiro,
precursor do Regime republicano, bem como servir de espelho ao novo papel desempenhado pelo Estado
dentro da Federação. Através da valorização do passado mineiro, e do caráter combativo de seu povo, a
legitimação do papel de Minas Gerais naquela época de descentralização política vinha de encontro ao
desejo de recuperação do posto proeminente ocupado pela capitania de Minas Gerais no século XVIII.
97
Daí a justificativa para que a Revista do Arquivo Público Mineiro, editada desde 1896 dedicasse
especial atenção a esse capítulo da nossa história. No extravasamento do ardor republicano, seria nas
páginas dessa Revista que Eduardo Machado de Castro publicava, em 1901, ‘A Inconfidência Mineira –
narrativa popular’.
100

a aceleração do tempo histórico, produzindo uma sensação de atraso e


letargia que o novo tempo republicano procuraria exorcizar.”98

Com isso, tornava-se condição necessária aos novos tempos uma reorganização
histórica dos novos Estados da Federação: seus elementos históricos singulares
deveriam concorrer na disputa de posições no cenário político nacional. Ora, durante o
Império, escritas de histórias regionais estavam sujeitas a certo crivo hierarquizante da
história nacional, essa formulada a partir do IHGB. Em resumo, o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro pretendera, a princípio, que as províncias do Império produzissem
bons materiais locais, para que a partir da história particular dessas províncias pudesse
ser escrita a história geral do Império brasileiro.
Não custa dizer que a experiência da América portuguesa fora fragmentária, com
as suas imagens históricas dispersas sob um território precariamente vinculado ao
Império português. Nesse contexto ficava dificultada a produção histórica, a não ser que
se utilizasse da forma corográfica 99 , que associada ao memorialismo passasse a ser
orientada pela metáfora do mosaico100.
A essas corografias, cumpre dizer, a essas histórias particulares, correspondiam
um conjunto de formas literárias que seriam especialmente talhadas para oferecer um
tratamento temático, não raro sendo encontrado um derramamento de subjetividade, em
descrições de paisagens, bem como na dramatização de personagens e eventos
históricos. Esse parece ter sido o caso de ‘Tiradentes’, uma ‘opera lyrica em 4 actos’ de
autoria de Augusto de Lima, e publicada na Revista do Arquivo Público Mineiro, no
ano de 1897.
Nessa ópera, a ação se desenvolve entre os anos de 1789 e 1792, possuindo
como personagens de primeiro plano, além do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o
Ouvidor de Vila Rica, Tomás Antonio Gonzaga, o Visconde de Barbacena, Maria de
Seixas – ‘Marília’, e Joaquim Silvério, entre outros. Curiosamente foi incluído com
grande evidência, a personagem Perpétua (descendente de Felipe dos Santos). Ela

98
A História de Minas como História do Brasil. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte,
ano XLIII, n.1, jan.- jun. 2007, p. 29.
99
Podemos entender a corografia como uma espécie de História Regional compreendida esta como um
conceito amplo de histórias particulares, ou seja, histórias que seriam opostas e complementares aos
princípios de uma história geral. O projeto de constituição de uma corografia mineira ganhou fôlego com
a criação da Revista do Arquivo Público Mineiro no ano de 1896. Além de corografias, a revista do
Arquivo Público Mineiro, publicava sobre biografias, letras e artes na forma de seções permanentes, além
de documentos inéditos.
100
A sugestão encontra-se em Arnaldo Momigliano. O surgimento da pesquisa antiquaria. In: ________.
Raízes clássicas da historiografia moderna. São Paulo: Edusc, 2004, p. 85-117.
101

presencia ao lado de Marília, a execução de Tiradentes, e realiza a última fala do


epílogo: “ – Não vejo o morto da justiça humana! Vejo a Gloria da Patria soberana!
Vejo a justiça da posteridade, Glorificando o sol da Liberdade!!...”.101
Assim, os Institutos Históricos, a partir de 1907, teriam sido o palco no qual os
meios belletristas brasileiros supririam com vigor renovado, a falta do encontro
intelectuais-povo, utilizando da posição não ocupada por este segundo componente da
relação, para representar na escrita da História a posição subalterna deste, característica
que sabemos possuir a historiografia conservadora, emprestando consistência ao
processo de revolução burguesa em continuidade à sua forma passiva.102
Quanto aos Institutos Históricos de São Paulo e de Minas Gerais, surgidos entre
outros objetivos, para legitimar o regime republicano em seus passos iniciais, já teria
sido possível a produção do conhecimento histórico, ao passo que fica explicitado por
Lucia Maria Paschoal Guimarães as condições bastante originais com as quais o IHGB
se defrontou no passado, quando enfrentara, face ao difícil processo de enraizamento da
Coroa, uma verdadeira monumentalização das lembranças daquilo que se considerava
apropriado a uma nação103.
Cabe portanto tecer algumas considerações sobre a produção literária desses
Institutos Históricos. Tratava-se de aspecto de fundamental importância na vida desses
grêmios, pois ao mesmo tempo que no ambiente acadêmico os consócios realizavam
leituras aos seus pares, o resultado dessa produção historiográfica servia para encher as
páginas das revistas editadas. Sabemos no entanto que parte desses escritos eram
editados de forma independente, o que a nosso ver não elimina em sentido lato, o seu
caráter institucional.
Afinal se as contribuições publicadas nas revistas desses Institutos serviam
naturalmente como a chancela de um local de produção, ou seja, como a fala autorizada
a partir de um determinado lugar104, pertencer a essas associações histórico-literárias era

101
Revista do Arquivo Público Mineiro. Ouro Preto. V.1, ano 2, fev. 1897. Pp. 87 – 232. A citação
encontra-se na p. 232.
102
VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva: americanismo e iberismo no Brasil, p. 17.
103
O Tribunal da Posteridade. In: PRADO, Maria Emília (Org.). O Estado como vocação: idéias e
práticas políticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Acess, 1999, p.33-57.
104
Conforme a pergunta intelectualmente instigante aos historiadores realizada por Michel de Certeau: “ -
o que é uma ‘obra de valor’ em história? [ao que ele responde] Aquela que é reconhecida como tal pelos
pares. Aquela que pode ser situada num conjunto operatório. Aquela que representa um progresso com
relação ao estatuto atual dos ‘objetos’ e dos métodos históricos e, que, ligada ao meio no qual se
elabora, torna possíveis, por sua vez, novas pesquisas. O livro ou o artigo de história é, ao mesmo tempo,
um resultado e um sintoma do grupo que funciona como um laboratório. Como o veículo saído de uma
fábrica, o estudo histórico está muito mais ligado ao complexo de uma fabricação específica e coletiva
102

então algo que marcava indelevelmente a qualquer indivíduo, transformando a sua pena
em uma espécie de sinete autorizado do Instituto, e os resultados dessa lavra em uma
extensão das páginas da sua revista. Tentaremos trabalhar em um recorte limitado entre
as balizas temporais que em um extremo demarca os primeiros anos do regime
republicano e pela outra extremidade anuncia uma nova etapa na vida desses sodalícios,
face à realização do Primeiro Congresso de História Nacional que foi promovido pelo
IHGB nos primeiros dias de setembro de 1914, e que acabou coincidindo com a eclosão
da Primeira Guerra Mundial.
Talvez a conjunção de algumas palavras consiga refletir as idéias presentes à
época, e com isso iluminar o significado da produção historiográfica dos Institutos
considerados, pelo menos até 1914. Pois a partir desse ano o contexto do primeiro
grande conflito mundial veio a fortalecer o nacionalismo105 e em conseqüência disso fez
refluir a base ideológica que sustentava as ‘pequenas pátrias’ que as inspirações
positivistas vinham tentando consolidar amparadas no federalismo consagrado pela
ordem política republicana 106 . Assim “existiram” entre outras, a ‘pátria paulista’ de

do que ao estatuto de efeito de uma filosofia pessoal ou à ressurgência de uma ‘realidade’ passada. É o
produto de um lugar.” A Escrita da História. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 72-73.
(grifos do autor).
105
Conforme costumeiramente se diz, o patriotismo ‘modelo 1914’ – expressão utilizada por Maurice
Agulhon para o contexto europeu – alimentou a guerra, mas aí estariam seus limites. Refletindo sobre
esse momento, a historiadora Angela de Castro Gomes fala dessa guerra produzindo o descrédito aos
valores políticos ocidentais, bem como “sobre uma visão de História, de progresso e de civilização
fundada em valores universais e ‘otimistas’...” A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte:
Argumentum, 2009, p.66.
106
De acordo com João Cruz Costa, para homens do Apostolado Positivista como Teixeira Mendes a
pátria seria algo marcado pelo empirismo: supunha ele então um agrupamento de famílias ao qual não se
poderia assinalar o limite e o território exato. Para Teixeira Mendes a pátria real seria algo distinto de um
acervo de famílias que algum conquistador pudesse outrora ter agrupado violenta e caprichosamente.
Assim, na opinião daquele discípulo de Augusto Comte, as pátrias modernas seriam futuramente
constituídas por um pequeno número de famílias, abrangendo um território que seria menor que o de
Portugal, com uma população que variasse entre um e três milhões de habitantes. Segundo Mendes,
seriam território e população considerados exíguos na visão de estadistas retrógrados, acostumados a
pensar na formação de grandes nacionalidades. Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, conforme
escreveu João Cruz Costa, Teixeira Mendes, “preso à letra dos ensinamentos de Augusto Comte, sem
atender a outros fatores históricos afirmava, convencidamente, que ‘a presente catástrofe fratricida
resulta do atraso da propaganda positivista em Paris’! ” Teixeira Mendes então aproveitava-se dos
ensinamentos do seu Mestre para denunciar aquilo que considerava como desvios na evolução histórica
da civilização do Ocidente. Na análise de Comte, o surto das grandes nacionalidades ocorrido a partir do
século XVI fora uma anomalia política, pois substituíra a santa noção de pátria que era própria às nações
de limitada extensão territorial, por uma vaga e quase estéril noção de pátria que seria aquela encontrada
nos países ocidentais modernos. Era em função dessas idéias – explica Cruz Costa – que os positivistas
brasileiros se referiam constantemente às pátrias brasileiras. O Positivismo na República: notas sobre a
História do Positivismo no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956. As citações encontram-
se às p. 69; 83-85; e, 159-160. (grifo do autor).
103

Alberto Sales, a ‘pátria gaúcha’ de Júlio de Castilhos e a ‘pátria mineira’ de João


Pinheiro107.

107
Conforme relata Antonio Paim, coube a Júlio Prates de Castilhos (1860-1903) pregar no Rio Grande
do Sul o evangelho do Mestre dos Mestres, que é como ele se referia a Augusto Comte. Formado na
Faculdade de Direito de São Paulo em 1881, Castilhos surgiu como homem forte no Rio Grande na fase
inicial da consolidação da República. Ele governou autocraticamente o Estado entre 1893 – ano no qual
conseguiu vencer a guerra civil – e 1898. A doutrina política por ele professada, que considerava ser de
regeneração, serviu para dar corpo à Constituição do seu Estado, votada em 1891. É dito costumeiramente
que o projeto de constituição do Rio Grande do Sul em vigor durante a Primeira República foi obra quase
exclusiva de Júlio de Castilhos, o qual teria se baseado no Sistema de Política Positiva de Comte. O grupo
castilhista dominou politicamente o Rio Grande do Sul durante toda a Primeira República. Em 1898
Castilhos transfere o poder a Borges de Medeiros e este o conserva até 1928, quando por imposição do
governo central, passa o governo a Getúlio Vargas, também pertencente ao castilhismo. Vargas iria
transplantar, a partir de 1930, o castilhismo para o plano nacional. João Pinheiro da Silva (1860-1908)
diplomou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em 1887. Sobre ele observou Ivan Lins que quando
esteve no Rio de Janeiro na qualidade de representante de Minas Gerais na Constituinte republicana de
1890/1891 costumava assistir sua missa aos domingos no Templo da Humanidade. Tomava notas dos
ensinamentos positivistas para aplicá-los na política. No governo de Minas, conforme relata Lins, mandou
mensagem ao Legislativo mineiro com o seu programa de governo: abrir escolas para iluminar a
inteligência das crianças; ensinar trabalho aos adultos; guiar e aconselhar nas dúvidas, aos produtores;
cuidar das questões materiais, mas sem abandonar a parte espiritual e moral; ter culto sincero da liberdade
e tornar paternal o exercício da autoridade e conciliadora a política. Morreu prematuramente no exercício
do cargo de Presidente do Estado em 25 de Outubro de 1908. No ‘Outono do Império’, certas convicções
positivistas acabaram traduzidas no livro ‘A pátria paulista’ pelo ideólogo republicano João Alberto Sales
(1857-1904). Alberto Sales colou grau na Faculdade de Direito de São Paulo no ano de 1882. Nesse
mesmo ano, escreveu ‘A Política Republicana’, trabalho publicado com recursos arrecadados do Partido
Republicano Paulista junto aos seus militantes e simpatizantes. Wilson Martins considerou esse livro não
só como a grande teoria política do positivismo brasileiro, mas também como “a única exposição
sistemática e coerente da doutrina republicana” (v.4,p.159-160). A pátria paulista era uma leitura
positivista enviesada entre a construção da nação e a integridade do território, afinal os positivistas
tratavam a questão da integridade do território nacional como um preconceito revolucionário. Assim
talvez possamos entender com base no texto de ‘A Pátria Paulista’ que o autor propugnava pelo
separatismo, o fazendo fundamentado na doutrina de Comte, porém conforme apontou João Cruz Costa,
com uma clara influência do evolucionismo de Herbert Spencer. Conforme frisou Cruz Costa, no Brasil o
evolucionismo foi adotado quase que simultaneamente ao positivismo, e “nossos letrados e filosofantes
seguiram-no como o seguiu boa parte dos europeus da época.” (p.280) Alberto Sales entendia que se a
bacia do Amazonas contava com uma população predominantemente índia, e a do São Francisco poderia
ser considerada uma província negra, restaria então ao “tipo europeu” ocupante da região compreendida
pela bacia do Paraná – região para a qual o eixo econômico do país havia sido deslocado – a tarefa de
realizar primeiramente ali, os ideais da civilização, formando a sua “pequena pátria”. Afinal, Herbert
Spencer tinha dito que “ a mistura entre duas raças inteiramente dissemelhantes produz um tipo mental
sem valor. Ao contrário, povos da mesma origem dão, por via de cruzamento, um tipo mental superior a
certos respeitos”. (p. 38) Nessa obra o federalismo aparece como o contraponto ao que o autor
denominava ironicamente como “a única entidade pensante no Império”(p.112). Para ele a centralização
do Império havia sufocado as Províncias. Na primeira parte do livro, ‘Separatismo em face da ciência’,
destaca-se sua exposição da ‘Lei do progresso em biologia’. É o momento no qual realiza uma analogia
com a sociedade e a ‘Lei do progresso em sociologia’. As conseqüências políticas que pretendia
evidenciar estariam estabelecidas nessas leis, que segundo ele, eram historicamente comprovadas.
Explicava então que, “a formação do reino de Portugal é um caso belíssimo de separação, por
diferenciação geográfica e etnológica. Desde a constituição do condado portucalense, como um
desmembramento da Galiza, até a sua organização definitiva em reino independente, observam-se
fenômenos de desagregação e de agregação política que têm todos por base, de um lado o
condicionalismo geográfico, de outro o condicionalismo étnico.” (p. 34-35) Nas ‘Vantagens práticas do
separatismo’ partia em análise sobre a autonomia política e as conseqüências para o movimento
migratório, na indústria e comércio, estradas de ferro e navegação marítima. A terceira parte do livro
‘Confronto do Separatismo com a nacionalidade’ era dedicada a apontar as vantagens da autonomia
federativa, com reflexos no campo da administração, da educação e da economia em geral. A partir desse
pequeno esforço de síntese acreditamos poder extrair algumas conclusões: 1. Nas décadas de 1880 e 1890
104

Entre a instauração da República e o ano de 1914 teríamos para o IHGB a idéia-


chave de adaptação aos novos tempos republicanos articulada a uma substancial
reformulação de procedimentos institucionais onde o critério da suficiência literária
parece ter ocupado uma condição prioritária para acesso ao grêmio, cabendo para alguns
dos Institutos Estaduais adotar as linhas de força que envolviam a idéia positivista-
comtiana de pequenas pátrias a qual se associava a aspiração de que o passado do
Estado podia ser representado enquanto lócus da nacionalidade.
Dessa forma, se para o IHGB essas mudanças constituíam uma condição sine
qua non à sua aproximação da cúpula republicana, para os Institutos Estaduais seria a
possibilidade cabal de associar suas pretensões de hegemonia no presente consoante à
demonstração da existência de um lastro histórico pontuado por varões de Plutarco.
Associado ao feitos dessas proeminentes individualidades formulava-se uma narrativa
histórica que visava resgatar das brumas do tempo a superação das dificuldades vividas
em épocas quase imemoriais – localizados via de regra na fase colonial – harmonizando
o passado aos desafios enfrentados no presente, sob o liame da crença nos valores da
nacionalidade.
Para os paulistas o devassamento do território a partir de um ponto privilegiado
no planalto, onde brancos e índios confraternizaram e constituíram o mameluco, síntese
do homem brasileiro. Para Minas Gerais a luta contra o fiscalismo e os desmandos da
metrópole, onde os mineiros teriam dado provas de sua constante insubmissão em uma
linha contínua traçada desde os emboabas, reforçada por Felipe dos Santos e ratificada
pela Conjura que encontrara em Tiradentes a suma do devotamento e desassombro pela
causa nacional.

– época na qual estudaram Júlio de Castilhos, João Pinheiro e Alberto Sales – foi imensa a penetração da
Filosofia Positiva na Faculdade de Direito de São Paulo, o que parece explicar a rapidez com que a
intelligentsia brasileira mantinha-se informada do que se passava na Europa; 2. A influência do
Positivismo refletiu-se de imediato nos jornais A República, O Federalista, A Evolução e A Luta, no qual
colaboraram Júlio de Castilhos e Alberto Sales; 3. A formação superior permeada pelo positivismo
possibilitou a que jovens quadros emergissem à cena política durante a ruptura institucional provocada
pela queda do regime monárquico; 4. No governo dos seus respectivos Estados, Júlio de Castilhos e João
Pinheiro iriam marcar suas administrações sob princípios positivistas;e, 5. Conforme o dizer do seu
biógrafo Luís Washington Vita, Alberto Sales – que vinha a ser irmão de Campos Sales – tornar-se-ia um
dos principais ideólogos e articuladores republicanos. Ver. PAIM, Antônio. História das Idéias
Filosóficas no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1967; LINS, Ivan. História do positivismo no Brasil. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964; CRUZ COSTA, João. Contribuição à História das Idéias no
Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967; SALES, Alberto. A Pátria Paulista. Brasília:
UNB, 1983; ADDUCI, Cássia Chrispiniano. A “Pátria Paulista”: o separatismo como resposta à crise
final do Império. Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2000; e, MARTINS, Wilson. História da
Inteligência Brasileira. 3.ed. v. 4. Ponta Grossa: UEPG, 2010.
105

Porém, avaliando a produção historiográfica dos Institutos durante a Primeira


República logo somos alertados que ocorreram períodos de certo recesso, com
retomadas do movimento que às vezes se revelaram intempestivas. Esse foi certamente
o caso do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais o qual sofreu grave revés
logo no ano seguinte à sua fundação, pelo falecimento prematuro de João Pinheiro. O
Instituto chegou a ser refundado em 1927, conforme veremos com maior detalhamento
em outra parte desse trabalho. Além disso, O IHGMG permaneceu durante toda a
Primeira República sem uma sede própria, realizando suas reuniões no Arquivo Público
Mineiro – utilizando-se da Revista desse Arquivo mas também do Diário Oficial do
Estado para publicar suas atas e trabalhos – mas fazendo uso também, em certas épocas,
dos salões da Câmara dos Deputados de Minas Gerais, do antigo Senado Estadual, de
instalações da Secretaria do Interior108 e conforme somos informados, mesmo de salas
na Faculdade de Direito.
Cabe no entanto esclarecer que mesmo o Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo que pode contar desde os primeiros anos com uma sede própria, além de uma
revista específica que pretendia-se de circulação perene também passou por alguns
percalços109. Quanto a isso, basta a exemplificação que o volume XXI da RIHGSP, que
abrangia os anos de 1916 a 1921, somente tenha sido publicado no ano de 1924.
Possivelmente coube ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro colher
durante a Primeira República os maiores dividendos em termos materiais, pois
conforme veremos em outra parte desse estudo, conseguiu construir a sua sede própria
que ficaria conhecida como Silogeu. No entanto, para entender a produção das
chamadas ‘letras históricas’ que é a base privilegiada sob a qual posicionamos nossa
visada, devemos alongar nossas vistas para além dos recursos materiais presentes no
ambiente dos Institutos – que conforme já falamos era então o lugar do discurso

108
MOLLO, Helena Miranda, SILVA, Rodrigo Machado da. Diogo de Vasconcelos e a “oficina central
do pensamento”. In: ROMEIRO, Adriana, SILVEIRA, Marco Antonio. (orgs.) Diogo de Vasconcelos: o
ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
109
Conforme observou Antonio Celso Ferreira, o IHGSP imprimiu gratuitamente a sua Revista nas
oficinas da Imprensa Oficial entre os anos de 1902 e 1915. Depois de 1915 a Revista do Instituto seria
impressa por conta própria. Cabe mencionar que o volume XVI da Revista, relativa ao ano de 1911 e
publicado em 1914 foi impresso na cidade francesa de Tours. É nesse volume que se encontra o ensaio de
Afonso Taunay intitulado ‘Os princípios geraes da moderna critica historica’ que abordamos algumas
páginas atrás. Conforme informa Antonio C. Ferreira ao período que nos interessa, os subsídios públicos
do Governo do Estado de São Paulo ao Instituto foram interrompidos entre os anos de 1913 e 1927, o que
nas palavras do autor, curiosamente “coincide com a presidencia de Altino Arantes no Instituto (1916-
1922), simultaneamente ao exercício do governo do Estado (1916-1920).” O autor considerou contudo
que a receita permaneceu estável, talvez por “ajudas indiretas do Estado e da Prefeitura.” A epopéia
bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940). São Paulo: Unesp, 2002. As citações
encontram-se às p. 98 e 99.
106

autorizado sobre os tempos pretéritos – no fito de privilegiar a atuação de atores que


via-de-regra nos pareceram bastante desprendidos. Afinal, os consócios desses grêmios
Históricos eram bacharéis, jornalistas, médicos, políticos, militares, funcionários
públicos – enfim, um grupo que não se formara para o ofício de historiador que afinal
era em termos formais desconhecido no Brasil.
O que parecia então congregar esses homens no ambiente dos Institutos seria a
sua capacidade de manejar a pena para reconstituir o passado, realizando tais atividades
à custa de horas vagas e do sacrifício de dias de férias, o fazendo geralmente movidos
pelo patriotismo 110 . Passamos então a visitar algumas das contribuições que esses
acadêmicos diligentes nos deixaram. Trata-se de um breve panorama, no que
esclarecemos desde já, estaremos desprovidos da pretensão de esgotar a miríade
temática que representa a produção desses sodalícios.
Assim, mais uma vez naturalmente nos serão impostas escolhas para que
possamos cumprir nossas tarefas de diálogo com o presente do passado. Sim, porque há
mais de um século aqueles homens que freqüentavam os Institutos Históricos estavam
imbuídos de perscrutar os desvãos dos tempos pretéritos, percorrendo as páginas da
documentação que vinha gradualmente sendo disponibilizada pela criação de arquivos e
pelo investimento em museus, conforme vimos. A importância do trabalho que então
executavam tornava uma agremiação como o IHGB em um “lugar de sociabilidade
fundamental para a vida política e intelectual do país, como instituição encarregada de
trabalhar com o passado...”.111
Afinal, vivia-se em uma clara percepção de uma nova era onde eventos como a
Abolição e a República haviam acenado com novos desafios para os homens que se
dedicavam à escrita da História. Prover o passado com explicações consistentes à luz da
documentação tornara-se então uma necessidade face aos novos tempos. Avultavam em
relevância as temáticas que envolviam a identidade étnica da população com a
incômoda questão do mestiço112 que obrigava a uma reavaliação do passado colonial.

110
IGLÉSIAS, Francisco. Reedição de Diogo de Vasconcelos. In: VASCONCELOS, Diogo de. História
Antiga de Minas Gerais. V.1. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
111
GOMES, Angela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009, p.
30.
112
Para Nilo Odália, foi sobre a estrutura racial – que ele adverte dissimular na verdade uma estrutura de
classes – que convergiram os esforços de interpretação da História brasileira. Parte significativa da
intelectualidade nacional havia feito a opção para a sociedade brasileira segundo o paradigma da
sociedade européia, no que cabia integrar na sociedade ‘branca’ os elementos que consideravam espúrios
na estrutura racial brasileira. A solução que apontavam para negros e índios era a miscigenação racial.
Ora, essa solução doméstica aparentemente tranquila para os brasileiros – face ao elevado grau de
mestiços no Brasil – não era bem aceita pela comunidade científica européia, à qual repugnava o
107

Mas esse passado interessava também pelo que poderia revelar em eventos que
descortinassem a formação da nacionalidade, na marcha errante de destemidos
sertanistas pelos sertões ignotos, no desbravamento de um território que nas narrativas
aparecia marcado pela ambiguidade, pois as serranias que desvendavam horizontes de
planícies idílicas riscadas por numerosos rios piscosos que serpenteavam as encostas
eram, na verdade, ocupados por feras e selvagens.
Porém todo esse exercício de seleção de eventos, entronização de heróis e a
conseqüente inclusão de datas em calendários cívicos passava por uma questão que
envolvia o próprio estatuto da História. Assim, não seria por mera diletância, mas sim
por uma urgente obrigação de ofício que os Institutos Históricos voltaram-se para esse
tema. Algumas páginas atrás, no intuito de associar a imagem do Diretor do Museu
Paulista, Afonso d’Escragnolle Taunay, ao labor propriamente historiográfico
apresentamos o ensaio intitulado Os Principios Geraes da Moderna Critica Histórica.
Cabe observar que ao publicá-lo – face a indiscutível relevância que o tema assumia à
época – Taunay fazia seu “ingresso quase simultâneo” 113 nos quadros do IHGB e
IHGSP.
Alguns anos antes do ensaio de Afonso Taunay, o professor Aurélio Pires
proferiu uma lição inaugural na Escola Normal Modelo de Belo Horizonte. Naquele 21
de março de 1907, o lente da cadeira de geografia, história e educação moral e cívica
discorreu especificamente sobre o estatuto da História114. Essa Escola vivia então seus
momentos iniciais, materializando uma iniciativa do Presidente do Estado, João
Pinheiro nos primeiros meses da sua administração. Na sua palestra, Aurélio Pires usava
pontos do programa de História que adotaria durante aquele ano letivo. O primeiro
desses pontos versava sobre a « importancia e interesse do estudo d’ historia na
actualidade », e o professor utilizou-se do manual Histoire de La civilization: au moyen
age et dans les temps modernes, de Joseph Crozals (1848-1915). Para esse autor –
explicava o palestrante – a «Historia é a sciencia do passado». De onde questionava o
Professor Aurélio Pires às sua assistência majoritariamente feminina: “será a historia

hibridismo racial do homem brasileiro. As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico
de Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: Unesp, 1997.
113
ANHEZINI, Karina. Correspondência e escrita da História na trajetória intelectual de Afonso Taunay.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 32, 2003, p. 52.
114
Licção de abertura de aula feita a 21 de março de 1907 na Escola Normal Modelo de Bello Horizonte.
Revista do Archivo Publico Mineiro. Bello Horizonte, v. 23, 1929, p. 181-203. Esta lição integra-se a
mais duas proferidas em datas diferentes – a saber na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte nos anos
de 1913 e 1914 como aula da cadeira de toxicologia visando a formação de farmacêuticos – portanto com
finalidades estranhas a esse estudo.
108

uma verdadeira sciencia?” 115 Para ele, teriam respondido afirmativamente homens
como Herder, Hegel, Buckle e Spencer. Mas então, o que seria a ciência? Na concepção
de Aurélio Pires, compreensivelmente bastante matizada pelas concepções positivistas
do século XIX, a ciência seria um corpo de doutrinas: um conjunto de princípios, em
suma, uma teoria que posta em relação a um grupo determinado de fenômenos seria
capaz de verificações e previsões certas e indubitáveis. Assim, se a Biologia, a Física ou
a Química satisfaziam tais requisitos, o mesmo não se daria com a História.
Aurélio Pires referia-se então a certo ensaio da lavra do mineiro Pedro Lessa,
professor de Direito na Faculdade de São Paulo, o qual escrevera uma monografia
intitulada « E’ a Historia uma Sciencia ?»116 Segundo Pires, o que vinha ocorrendo
seria uma “transformação estupenda, uma revolução profunda no estudo dessa matéria;
mas tal revolução só alterou os methodos de narração e descripção do lado visível e
palpavel da historia: homens, sociedades, acontecimentos e civilizações.”117 Com isso,
o campo de visão dos historiadores havia se alargado e fenômenos que antes escapavam
à percepção, tais como as legislações, as línguas, as religiões, literaturas, costumes,
flutuações salariais, educação e criminalidade passaram a ser objeto de estudo. Contudo,
alertava Aurélio Pires, a História não conseguira ir além do mundo visível das formas,
pois descrevia, mas ainda não explicava.
Funcionaria portanto a História como a parte descritiva de uma futura ciência,
pois faltariam ‘leis’ para ela. No entanto, alegava o professor, faltariam às chamadas
ciências stricto sensu o interesse que a História vinha na atualidade despertando nos
homens, pois eram esses ao mesmo tempo, seu sujeito e objeto. Assim, o objeto da
História não seria uma mera abstração, mas o mundo real, em sua totalidade! Dessa
forma, teria que ser dada atenção para as relações da História de um povo com sua
educação, o que equivaleria dizer que o conhecimento do passado desse povo,
ministrado corretamente, poderia dentro de certos limites, mudar as condições sociais
desse povo. Lembrava Aurélio Pires que a Antiguidade conhecera de certo modo essa
verdade, e Lutero com grande autoridade a havia proclamado. E se o princípio

115
Licção de abertura de aula feita a 21 de março de 1907 na Escola Normal Modelo de Bello Horizonte.
Revista do Archivo Publico Mineiro. Bello Horizonte, v. 23, 1929, p. 184.
116
Ibidem, p. 184.
117
Ibidem, p. 185.
109

ciceroneano da história mestra da vida não podia mais ser aceito pela “moderna sciencia
como uma definição, ‘nem por isso deixa elle de ser eminentemente verdadeiro’.” 118
Nesse sentido, conjurar crises, conhecer mecanismos (sic!) do desenvolvimento
histórico dariam vantagens e poderiam livrar os estudiosos da História de embaraços,
por conter tais conhecimentos as soluções já sancionadas pela experiência. Alguns
meses após essa palestra, o professor Aurélio Pires comparecia às reuniões que
materializariam a criação do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Então
como vimos, a discussão sobre o estatuto da história não era apanágio do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. No entanto se faz incontornável visitar a contribuição
deixada por um dos ilustres acadêmicos daquela ‘Casa da Memória’. Será através do
ensaio do dr. Pedro Lessa que tentaremos dar termo à nossa problematização acerca do
estatuto da História no âmbito dos Institutos Históricos abordados por esse estudo, e
talvez inquirir pelos autores aos quais remete, ou seja, saber a quantas andavam as
leituras dos mestres da historiografia internacional no recinto do IHGB, afinal de contas
a sua revista de circulação ininterrupta era lida nos institutos históricos estaduais.
Conforme já mencionado na palestra do professor Aurélio Pires, o dr. Pedro
Augusto Carneiro Lessa (1859-1921), nascera na cidade do Serro, em Minas Gerais119.
Morando em São Paulo, Pedro Lessa foi proposto para ingresso no IHGB no ano de
1901, na condição de sócio correspondente. Fora deputado constituinte paulista e já
exercera o cargo de chefe de polícia, sendo autor de importantes trabalhos jurídicos e
literários120.
Em 1907, Lessa seria nomeado para o Supremo Tribunal Federal (STF) – aliás
seria o primeiro negro a ser ministro do STF 121 – e ocuparia ainda o cargo de
Procurador Geral da República. Em 1910 conseguiu eleger-se para a Academia
Brasileira de Letras. Na capital federal tornou-se um dos entusiastas da Liga de Defesa
Nacional, juntamente com o poeta Olavo Bilac e Miguel Calmon, sendo presididos por
Rui Barbosa122. Pedro Lessa era leitor de Varnhagen e João Francisco Lisboa. Para a sua

118
Licção de abertura de aula feita a 21 de março de 1907 na Escola Normal Modelo de Bello Horizonte.
Revista do Archivo Publico Mineiro. Bello Horizonte, v. 23, 1929, p. 188. (grifo nosso).
119
GOMES, Angela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009.
120
Idem, Ibidem, p.32.
121
MOLLO, Helena Miranda, SILVA, Rodrigo Machado da. Diogo de Vasconcelos e a “oficina central
do pensamento”. In: ROMEIRO, Adriana, SILVEIRA, Marco Antonio. (orgs.). Diogo de Vasconcelos: o
ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
122
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 170-173; e, GOMES, Angela de Castro. A República, a História e o IHGB.
Belo Horizonte: Argumentum, 2009, p. 33.
110

admissão ao IHGB contaria a monografia ‘É a história uma ciência?’. Conforme


Angela de Castro Gomes, esse volume fora editado em São Paulo, pela tipografia da
Casa Eclética no ano de 1900. Esse possivelmente seria o texto ao qual teve acesso o
Professor Aurélio Pires como fonte para realizar sua palestra em 1907. A outra opção
ficava por conta da introdução que Lessa fizera para uma tradução para a História da
Civilização na Inglaterra, de Henry Thomas Buckle. Rapidamente Pedro Lessa se
tornaria um nome de vulto no IHGB, bastando dizer que em 1912, e já na condição de
sócio efetivo, foi “elevado à condição de sócio honorário, o que não ocorria
necessariamente com todos os integrantes do IHGB, evidenciando-se assim sua
respeitabilidade na Casa.” 123 O texto do qual faremos uso foi publicado na revista do
IHGB no ano de 1908, e teve seu título alterado para “Reflexões sobre o conceito de
História” 124 . Pedro Lessa encaminhou o questionamento do estatuto científico da
História sob uma divisão tripartite, apresentando o que considerava como sendo ‘a
história antes de Buckle’, ‘a história no conceito de Buckle’, e por fim, o que chamou
por ‘mais algumas teorias’, onde incluía aquilo que denominava por conceito ‘real’ da
história. Como era de se esperar, Lessa fez sua inquirição consoante à perspectiva de
ciência do século XIX, o que fazia com que buscasse ‘leis’ na História. O
questionamento perdia-se na poeira dos tempos, visto que gregos e romanos haviam
considerado a história um gênero literário:
“O que constitue a seducção da historia na antiguidade é a língua, o estylo,
a arte da composição, a movimentação dramática, fonte inexgottavel de
emoções e de prazer, a nos mostrar, em quadros animados da mais vívida
eloqüência, as grandes e fortes virtudes do heroísmo e do patriotismo”125.

Obra de arte, e não de ciência, insiste Pedro Lessa, na antiguidade greco-romana,


a missão do historiador era narrar os acontecimentos memoráveis, sendo escrita para
encarecer, e com isso, perpetuar feitos militares e políticos, no que se satisfazia em
reproduzir tradições e crônicas muitas vezes infiéis. Inimitáveis modelos de narração
poderiam ser encontrados em Tucídides e Xenofonte; a eloquência romana em Tito

123
GOMES, Angela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009,
p.32.
124
LESSA, Pedro Augusto Carneiro. Reflexões sobre o conceito de historia. Revista do Instituto
Historico e Geographico Brasileiro. Rio de Janeiro, t.69, n.2, 1908, p. 193-285. Para Angela de Castro
Gomes (2009:34) a alteração no título realizada pelo IHGB, suspendendo a pergunta direta sobre a
cientificidade da história por algumas reflexões sobre o seu conceito, tinha a ver com o tipo de resposta
dado por Lessa à questão proposta no título. Teria também a ver com a lógica de construção do texto de
Lessa e com sua leitura de Buckle, um autor então muito influente que fora traduzido há pouco para o
português.
125
LESSA, Pedro Augusto Carneiro. Reflexões sobre o conceito de história. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, T. 69, n,2, 1908, p.199.
111

Lívio – não obstante a sua absoluta ausência de curiosidade quanto a documentos e


testemunhos com as quais deveria cimentar as suas narrativas – asseverava Lessa, além
dos planos de Cícero para escrever uma história de Roma, incluindo nesta, parte da
história grega com algumas de suas fábulas. Mas a Antiguidade Clássica não faria da
história uma ciência, nem mesmo – observava Pedro Lessa – quando Tucídides teve a
percepção fugaz das regularidades a que estariam sujeitos os fenômenos sociais, nem
tampouco com Políbio, o qual considerava como o continuador do método histórico de
Tucídides. Em relação aos gregos e aos romanos o jurista Pedro Lessa não os absolve,
mas antes logo os desculpa. Conforme justificava ao seu leitor, não se observavam, por
total desconhecimento, os cânones da heurística, da diplomática ou da crítica de
interpretação126.
Em relação à Idade Média, reconhecia que essa havia legado esboços – ainda
que toscos – de história universal, pois permitira a prática das glosas, tão úteis ao
desenvolvimento do direito medieval e que fora transplantada para o estudo e
composição da história 127 . Na Renascença, escrevia Lessa, Maquiavel faria de Tito
Lívio o seu guia. Maquiavel acreditava então que os Estados se organizam como os
indivíduos, e como esses, corrompiam-se. A fortuna regia as coisas do mundo, e toda a
prudência humana seria impotente para detê-la. Fatos históricos se repetiriam, e os
mesmos desejos e as mesmas paixões dominariam em todos os tempos, todas as
regiões128. Polo oposto da doutrina de Maquiavel, seria a perseguida por Bossuet em seu

126
Conforme observa Júlio César Vitorino, o historiador antigo não era um pesquisador científico, mas
antes de tudo, um escritor. Assim, a história designava um termo literário importado aos gregos, sendo a
matéria histórica as res gestae, o que equivaleria dizer, as empresas dos homens ilustres. O gênero
historiográfico na literatura latina compreendia algumas subdivisões baseadas em características
intrínsecas e extrínsecas de cada obra. Assim, haveriam os annales, as historiae, as monografias, as
biografias, os exempla, os comentarii e os epítomes. Ver: Tito Lívio (59/64 a.C. – 17 d.C). In: PARADA,
Maurício. (org.). Os historiadores clássicos da História. v.1.: de Heródoto a Humboldt. Petrópolis: Vozes,
2012.
127
Na realidade, segundo Skinner, o estudo do direito romano renascera nas universidades de Ravena e
Bolonha, em fins do século XI, quando o código civil romano passou a servir de base na qual se
enquadravam a teoria e a prática da lei por todo o Santo Império Romano. Os juristas começaram a
estudar e glosar os textos antigos, considerados o princípio cardeal para a interpretação da lei, no que
seguiam com fidelidade absoluta ao Código Justiniano. Mas com isso ficava demonstrado que o Santo
Imperador romano seria o senhor único do mundo. Na defesa dos interesses de liberdade das cidades
italianas em relação ao Imperador, coube aos ‘pós-glosadores’ tais como Bartolo de Saxoferrato e Baldo
avançar na idéia da legalidade de existência de vários Estados soberanos, separados entre si e
independentes do Império, idéia que caracterizaria a modernidade. Ver. SKINNER, Quentin. As
fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
128
De acordo com Newton Bignotto, Maquiavel “foi herdeiro de uma rica tradição, que combinava os
escritores gregos e romanos com os humanistas do ‘quattrocento’ que, desde Petrarca haviam-se
interessado pelos problemas históricos e historiográficos”, no entanto, sua maior dívida seria com
Políbio, ainda que tenha aderido apenas de forma parcial à forma pela qual o grego entendia o processo de
degradação das constituições políticas. Para Bignotto, Maquiavel utilizou as contribuições do autor da
112

Discurso sobre a história universal. Pedro Lessa considerou então ser a filosofia da
História de Bossuet uma mera articulação entre preconceitos e incongruências, pois a
seu ver, nada seria mais absurdo do que tentar conciliar o livre arbítrio com o
providencialismo.
Teria então sido Vico, com sua ‘Scienza Nuova’, o fundador da filosofia da
história? Observa Lessa que muitos assim distinguiam a Vico: as nações passariam de
forma eterna e necessária por três idades, a saber, a divina, a heróica e a humana. De
três espécies de naturezas, derivariam três espécies de costumes, que produziriam três
espécies de direito natural, que por sua vez, dariam origem a três espécies de governo.
Pela lei dos ricorsi, a idade média teria repetido a idade antiga, e Vico se esforçara para
mostrar uma minuciosa comparação entre eventos antigos e medievais. Os fatos
históricos seriam na concepção do autor de ‘Scienza Nuova’, o produto de dois fatores.
O primeiro desses, a ação dos homens. O segundo, a intervenção da Providência, que
seria superior, e muitas vezes contraria a vontade humana. Na teoria de Vico, adverte
Lessa, acaba não havendo lugar para o fatalismo e nem para o acaso. E se os homens
são dotados de livre arbítrio, os mesmos fatos se repetem, produzindo com isso, de
forma regular, os mesmos efeitos.
Mas se Vico não teria conseguido extrair as leis dos fatos históricos, poderia ser
considerado, no entendimento de Pedro Lessa, um precursor de Hegel na filosofia, o
qual defendia que o real e o ideal seriam duas manifestações de uma razão absoluta,
bem como de Niebuhr na história, defensor da idéia da qual a história seria a narração
dos contínuos e ininterruptos movimentos do homem. Iluministas como Voltaire,
Montesquieu e Condorcet haviam se revelado, a considerarmos a avaliação de Pedro
Lessa, excelentes na arte de destruir antigas concepções acerca da história, mas
incapazes de uma construção sistemática. Diferentemente desses, encontramos Herder,
um espírito religioso que não admitia o providencialismo na história, considerado pelo
autor como tendo produzido com sua ‘philosophia da historia da humanidade’, um
subsídio às tentativas de criar uma filosofia da história129. Pedro Lessa alerta no entanto:

‘Historia’, expondo-as sobre um processo ‘natural’ que aproximava as fraquezas humanas ao caráter
cíclico das constituições políticas, daí a importância em seu pensamento da virtù que exprimindo a
capacidade de agir no interesse público, deveria opor-se à corrupção que engendraria a queda dos regimes
políticos. Maquiavel Republicano. São Paulo: Loyola, 1991. Ver ainda: SKINNER, Quentin. Maquiavel:
pensamento político. São Paulo: Brasiliense, 1988, especialmente o cap. 4: O historiador de Florença. De
acordo com Skinner, Maquiavel – assim como seus contemporâneos estava voltado para os historiadores
e moralistas romanos como Tito Lívio, mas também para Cícero, Diógenes, Laércio e Salústio.
129
Trata-se do texto ‘Ideias para uma filosofia da história da humanidade’, considerado como a mais
completa expressão da filosofia da história de Herder. Para Herder e suas críticas aos iluministas, aos
113

haveria falta de precisão nos conceitos de Herder de algum vínculo que viesse ligar as
partes do todo. A avaliação que o autor realiza da obra de Herder não prescinde de
algumas linhas. Essas acabam revelando não somente traços da sua noção de história,
mas também de sua visão de mundo,
“Toda a historia da humanidade, diz Herder, é uma pura historia natural
das forças humanas, de acções e inclinações, que dependem dos tempos e
dos lugares. O homem é um ser subordinado à natureza, e della dependente.
Herder attribue ao meio cósmico e à organização physiologica uma
influencia decisiva sobre a psychica humana. Demais, o homem não é um ser
isolado; está sujeito à lei da solidariedade; para a formação de cada um de
nós contribuem os antepassados, os mestres, os amigos, os compatriotas, a
raça com todas as suas qualidades. O factor preponderante é a natureza: mil
annos de disciplina não modificariam o caracter do negro, ou do chim; não
fariam o primeiro attenuar sua paixões grosseiras e violentas, nem o
segundo libertar-se da tradição e do habito. Foi o solo da Europa,
accidentado, coberto de bosques, cortado por numerosos rios, golphos,
montanhas e valles, que formou o espírito activo e emprehendedor do
europeu.”130

Também não convencia a Pedro Lessa uma história universal conforme


apregoada por Carlyle, a qual consistiria essencialmente nas biografias reunidas dos
heróis. Afinal, como nos esclarece Lessa, os grandes homens, esses heróis, seriam os
produtos do meio social, e antes que um grande homem pudesse refazer uma sociedade,
era necessário antes que esta o formasse131. Da mesma forma, ficava a oposição à teoria
de Macaulay, o qual teria pecado por exageração oposta à de Carlyle. Guizot, Michelet,
Renan, Thiers e Bourdeau, também haviam, cada um à sua maneira fracassado nas suas
tentativas, declaradas ou não de criar uma filosofia da história, ou dizendo melhor, nas
suas tentativas de reduzir a história a uma ciência.
Antes de tratar da história no conceito de Buckle, o autor faz referências ao
então incontornável sistema proposto por Auguste Comte, “o philosopho

quais considerava arrogantes em virtude das explicações intermediadas pelo pensamento abstrato e
comparativista ver: GARDINER, Patrick. Teorias da História. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984;
BOURDÉ, Guy, MARTIN, Hervé. As escolas históricas. 2.ed. Lisboa: Europa-América, 2003; e,
HELFER, Inácio. Johann Gottfried von Herder (1744-1803). In: PARADA, Maurício. (org.). Os
historiadores clássicos da História. v.1. De Heródoto a Humboldt. Petrópolis: Vozes, 2012.
130
LESSA, Pedro Augusto Carneiro. Reflexões sobre o conceito de história. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, T. 69, n. 2, 1908, p. 215-216.
131
Conforme Ernest Cassirer, ao dirigir-se aos ingleses da era vitoriana com suas conferências sobre os
heróis e o heróico na história, Carlyle tivera a pretensão de estabilizar a ordem política e social. Para
Cassirer, Carlyle não era um pensador sistemático, e muito menos tentara construir qualquer filosofia da
história, pois entendia que a história seria a essência das incontáveis biografias, ou ainda, a história dos
grandes homens. Para ele, haveria história caso houvessem ações e façanhas, sendo estas cometidas por
alguém sob um impulso pessoal forte e imediato. Assim, sua contribuição mais original teria sido a
substituição de uma forma medieval de hierarquia por uma moderna – a ‘herói-arquia’ – com santos
temporais transformados – santos secularizados – sendo seu herói uma espécie de Proteu, capaz de
assumir variadas formas: deus mítico, profeta, rei, homem de letras. O mito do Estado. São Paulo: Códex,
2003.
114

extraordinário” na fala de Lessa 132. Nesse sistema, a filosofia da história seria uma
parte da sociologia. Ora, sabe-se que Comte havia dividido a sociologia em duas partes:
a estática e a dinâmica. Se a estática limitava o seu estudo às condições de existência e
permanência do estado social, abstraindo do progresso, da evolução, das modificações
pelas quais passam a sociedade – o que remete à supervalorizada ‘teoria do consensus’
ou dependência mútua dos fenômenos sociais, será a dinâmica, com suas leis de
evolução social, que interessaram a Pedro Lessa.
Comte respondera de modo afirmativo que o progresso natural consistia no
aumento dos atributos humanos em relação aos atributos animais e puramente orgânicos
do homem, influindo no domínio crescente da humanidade sobre sua própria
animalidade. Portanto, o desenvolvimento intelectual do homem passava a ser o seu
principal agente de progresso. E se por três fases (teológica/metafísica/positiva),
ensinava o filósofo francês, descortinava-se o fator mais decisivo da evolução da
humanidade, poder-se-ia – acreditava Pedro Lessa – inferir sobre a lei fundamental da
história. Poderíamos, assinalava Lessa, entender que estaria constituída a filosofia da
história?133 A isso, o autor responde negativamente, pois a reflexão sobre os eventos
históricos, desde a antiguidade aos tempos modernos levavam ao convencimento que as
idéias teológicas, metafísicas e positivas haviam sempre coexistido.
Chegava-se então finalmente a Henry Thomas Buckle. Caberia a Buckle, com
sua ‘Historia da Civilização na Inglaterra’, o papel de determinar as leis da história,
alçando-a, no dizer de Pedro Lessa, “à dignidade de sciencia, ou de constituir a sciencia
da historia”? O detalhado exame que Lessa realiza sobre a obra desse inglês revela
bastante sobre as concepções do autor de ‘reflexões sobre o conceito de história’.
Afinal, do “veredicto da história”, dos limites e da contribuição da ciência e de uma
formulação mais ampliada do conceito de civilização, pareciam depender a ‘abertura’

132
De acordo com Miguel Reale, a Faculdade de Direito de São Paulo passara a contar desde 1883, com
uma plêiade de mestres eminentes, tais como João Monteiro. Em 1890 chegavam Dino Bueno e Brasílio
Machado. A estes, em 1891, juntaram-se Pedro Lessa, João Mendes de Almeida Júnior e José Luís de
Almeida Nogueira. Assim, segundo Reale, em todas as cátedras passaram a prevalecer as diretrizes
metodológicas da filosofia positiva, a começar pelo Direito Criminal, através dos estudos de Antropologia
e Sociologia. Pedro Lessa ingressara no ano de 1888 no corpo docente, na qualidade de Professor
Substituto. Lessa formara-se junto com Alberto Salles em 1883, ambos irmanados nos ideais republicanos
e num cabedal comum de teorias. Pedro Lessa e a filosofia positiva em São Paulo. Revista da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, v. 54, n. 2, 1959, p. 12-61.
133
Para Guy Bordé e Hervé Martim a filosofia positiva na história estaria representada na obra de Louis
Bourdeau. As escolas históricas. 2.ed. Lisboa:Europa-América, 2003. Segundo observou José Amado
Mendes, Bordeau – enquanto discípulo de Comte – definiu os princípios dessa ‘escola’ na obra intitulada
Histoire et historiens. Essai critique sur l’histoire considerée comme science positive (1888). Novos
rumos da historiografia, ao longo do século XX – a História na Faculdade de Letras na Universidade de
Lisboa. Biblos. Revista da Faculdade de Letras. Coimbra, v.9, 2011, p. 71-107.
115

do futuro brasileiro, com seu clima tropical e sua população de mestiços . As leis
fundamentais da história, que na teoria de Buckle seriam quatro, ocupam o cerne da
discussão movida por Pedro Lessa,
“As leis fundamentais da historia no conceito de Buckle, e segundo elle
próprio as formulou, são as seguintes: ‘1ª – os progressos do gênero humano
dependem do successo das investigações no domínio das leis dos
phenomenos da natureza, e da proporção em que se divulga os
conhecimento dessas leis; 2ª – para que possam começar essas
investigações, é mister que exista o espírito de duvida, o qual, provocando as
pesquizas scientificas, é por seu turno alimentado por ellas; 3ª – as
descobertas assim obtidas augmentam a influencia das verdades
intellectuaes, e diminuem relativamente, não absolutamente, as verdades
moraes, porquanto estas, não podendo ser tão numerosas, são mais
estacionarias do que as verdades intellectuaes; 4ª – o grande inimigo desse
movimento, e consequentemente o grande inimigo da civilização, é o espírito
protector, isto é, a convicção de que a sociedade só póde prosperar, se o
Estado e a Egreja dirigirem os nossos passos mais insignificantes, o Estado
pela determinação do que devemos fazer, a Egreja pelo ensino do que
devemos crer’ ”134.

Desfechando suas críticas, Pedro Lessa lança a pergunta inicial: o que seria
afinal, essa noção vaga e indefinível, colocada por Buckle como sendo o progresso do
gênero humano? Tão vago, nos lembra Lessa, como a palavra civilização, que adverte,
apresentam-se não raro, como expressões sinônimas.
Para Buckle a civilização seria o triunfo do espírito sobre os agentes exteriores,
sendo o progresso um duplo desenvolvimento, moral e intelectual, referindo-se o
primeiro aos nossos deveres, e o segundo, aos nossos conhecimentos. Tomando por
base a idéia que o historiador britânico desejava traçar a lei fundamental da historia da
humanidade, Pedro Lessa entendia então que o progresso a que se referia Buckle estaria
abrangendo todas as modificações consideradas úteis, fossem essas intelectuais ou
morais, que constituíam o progresso em sentido amplo. Considerava Lessa que a lei de
Buckle teria contra si os mais eloqüentes protestos da história universal. Afinal, fosse no
Oriente, ou ainda na Antiguidade Greco-romana, as instituições políticas, a legislação, a
religião, a moral, a arquitetura, ou a música, entre outras tantas manifestações da
espécie humana, não haviam aguardado o desenvolvimento das ciências físicas para
progredir, e nem passaram a se desenvolver somente à medida que se foram
descobrindo e divulgando tais conhecimentos.
Do mesmo modo, alega Pedro Lessa, não seria menos falsa a segunda lei de
Buckle. O autor da ‘historia da civilização na Inglaterra’ havia se impressionado por
certos fatos da história da Espanha, mais precisamente pela condução fanática das
134
LESSA, Pedro Augusto Carneiro. Reflexões sobre o conceito de história. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, T. 69, n,2, 1908, p. 236-237.
116

atividades da Inquisição naquele país. Para Lessa, o espírito teológico não seria
incompatível com o estudo das leis naturais, podendo-se aduzir inclusive que os
primeiros pensadores da filosofia grega não estavam emancipados daquilo que na
terminologia de Auguste Comte, seria denominado por fase teológica.
A refutação também é o destino da terceira e quarta leis de Buckle. A moral,
considerada como o conjunto dos preceitos impostos à atividade voluntária do homem,
tendo por fim a conservação e o desenvolvimento do indivíduo e da sociedade seria sim
– conforme Lessa – suscetível de progresso, à proporção que viesse a ser aumentado o
conhecimento sobre o homem e a sociedade. Assim, sociedades mais esclarecidas, cujo
progresso científico é maior, seriam melhores, ou seja, mais justas, tolerantes e
humanas. E isso teria sido reconhecido pelo próprio Buckle. No que arremata Pedro
Lessa, “que quer isso dizer, senão que representam um aperfeiçoamento moral, que são
mais moralisadas? Como, pois, desconhecer a connexão entre o progresso moral e o
intellectual ?”135
A quarta proposição ou lei de Buckle passa a ser refutada por Pedro Lessa com
base nos fatos que se encontravam àquela época, sobretudo nos países da Europa e das
Américas. O Estado não contrariava o desenvolvimento das ciências naturais, antes
provinha sua tutela, ministrando-lhes subsídios, criando e mantendo universidades e
centros de pesquisa. Enfim, as ciências que estudavam os fenômenos físicos haviam
servido como base a Buckle no estabelecimento de critérios sob a civilização. Este
conceito, advertia Pedro Lessa, é vasto, e o estudo dos fenômenos físicos não seriam
senão uma parte dos esforços humanos no caminho da civilização. E a civilização era
mais que o progresso das ciências. O aperfeiçoamento das instituições políticas e
sociais, o cultivo dos sentimentos altruísticos, as relações morais, a educação a tornar o
homem justo, bom , tolerante fariam também parte do enorme processo ao qual
denominamos por civilização. À premissa de Buckle da qual a civilização somente teria
se desenvolvido na Europa, Pedro Lessa advertia seus leitores: “ para se poder dividir a
civilização em européa e extra-européa, fôra mister que a civilização européa fosse
autochtone”136.
Buckle carregara nas cores sobre os prodígios da natureza brasileira, sobre a
profusão da sua fauna e flora, sobre sua prodigalidade inesgotável que não deixava lugar

135
LESSA, Pedro Augusto Carneiro. Reflexões sobre o conceito de história. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, T. 69, n,2, 1908, p.243.
136
Idem, Ibidem, p.245.
117

para o homem, amesquinhando-o, o que explicaria a ausência nessa parte do globo, de


uma civilização aborígene. Decididamente, a nos fiar em Pedro Lessa, o autor de
‘historia da civilização na Inglaterra’ pecara por exageração, somente desculpáveis, por
seu desconhecimento sobre o Brasil. Ignorância sobre os nossos recursos e reais
potencialidades que também haviam acometido escritores brasileiros, a começar por
Rocha Pitta, na sua famosa ‘historia da América portuguesa’. Voltaremos a tratar das
considerações de Buckle em nosso quarto capítulo.
Como seria de se esperar, chegava a hora de Langlois & Seignobos entrarem em
cena, representados pelos princípios do seu manual ‘Introduction aux études
historiques’. Daí surgiam ainda autores como Taine, Mommsen ou Fustel de Coulanges.
Historiadores como Fustel de Coulanges ou Langlois & Seignobos eram severos e não
encontravam nenhum fundamento científico nas obras dos filósofos da história 137 .

137
Focalizando o contexto francês a partir de 1866, observou François Dosse que as revistas eruditas de
história multiplicam-se na França: neste ano surge a Revista das questões históricas, fundada por jovens
diplomados, e formulada segundo François Dosse “com o objetivo de um grande trabalho [erudito] de
revisão histórica para defender os valores do Antigo Regime e a união da Monarquia e da Igreja”. Por
seu turno, os republicanos vão se organizar, dez anos mais tarde (1876), sob a Revista histórica,
constituindo o que se denominará por escola metódica, em um quadro institucional onde a III República
encontrava-se comprimida entre o peso do Caso Dreyfus e a amputação de uma parte do território
nacional (Alsácia e Lorena). Explica Dosse que, “a comissão de redação da Revista histórica faz
trabalhar em conjunto toda uma geração mais antiga como aquela representada por Victor Duruy,
Ernest Renan, Taine ou Fustel de Coulanges e a mais jovem como Gabriel Monod, Ernest Lavisse, em
torno de um axioma, o da história como ‘ciência positiva’. Pretendendo escapar ao subjetivismo, os
promotores da revista dizem-se partidários da imparcialidade em nome da ciência e do respeito à
verdade...”. Contudo, ainda segundo Dosse, “...atrás do estandarte científico, tendências implícitas ou
explícitas despontam como evidências nesses historiadores metódicos. Eles todos aderem a uma visão
progressista da história segundo a qual o historiador trabalha e está a serviço do progresso do gênero
humano. A marcha para o progresso desdobra-se como uma cumulação do trabalho científico, numa
abordagem linear da história, enriquecida pelo aporte das ciências auxiliares – antropologia, filosofia
comparada, numismática, epigrafia, paleografia ou ainda diplomática – que dão um aspecto cada vez
mais moderno ao século 19.” Gabriel Monod, o grande articulador dos trabalhos da Revista histórica, não
via nenhuma incompatibilidade entre os objetivos científicos da sua revista, quiçá da escola que essa
perfilara, com os objetivos nacionais. Na raiz dessas considerações, Monod apontava que as fontes
arquivísticas e os trabalhos históricos estariam, desde o século XVI, presentes na base, se
considerássemos o essencial, da matriz nacional. Autônoma, a disciplina histórica deveria virar as costas
para a filosofia, desvincular-se da literatura, pois a escola metódica pensava a História “...como uma
ciência do singular, do contingente, do ideográfico em oposição à epistemologia das ciências da
natureza que podem visar à elaboração das leis, de fenômenos iterativos, logo, do nomotético.
Reencontrando a inspiração erudita e sua preocupação de crítica das fontes, Langlois e Seignobos
escrevem juntos as regras de autenticação da verdade segundo os procedimentos de um conhecimento
histórico que é apenas o conhecimento indireto, ao contrário das ciências experimentais...”. Cultuando a
crítica externa, ou crítica de erudição, e a crítica interna, ou seja, os raciocínios por analogia ou a
hermenêutica, nos explica Dosse que “os historiadores da escola metódica não eram os ingênuos pelos
quais os fazem [como os historiadores dos Annales, à frente Lucien Febvre fizeram] passar. Não se pode
dizer que eles cultivavam um fetichismo do documento e que eles negavam a pertinência da subjetividade
historiadora.” Nesse universo teria sido Numa Deny Fustel de Coulanges (1830-1889) um historiador
singular. Sobre ele François Hartog realizou um estudo ao qual denominou por ‘caso Fustel de
Coulanges’. De acordo com François Dosse, “se há um historiador cujo propósito, na maturidade da
vida, sobre a metodologia da história corresponde à ingenuidade denunciada mais tarde pelos anais, é
aquele historiador que representa uma geração mais antiga da Revista histórica...”. Coulanges envolveu-
118

Lembra o autor que as teorias filosóficas da história, via-de-regra encontravam-se


assentadas sobre uma lei fundamental do progresso contínuo, necessário e fundamental
do ser humano e da humanidade, indução que não teria base científica, tendo sido
demonstrado por exemplos que a história na realidade mostra progressos parciais e
intermitentes, com períodos estacionários e recuos para o passado.
Esclarece Lessa que Taine e Mommsen sem falar de maneira explícita em uma
filosofia da história, haviam adotado uma teoria, tomada de Leopold von Ranke, que
defendia que os fenômenos sociais teriam sua razão de ser no desenvolvimento da
sociedade, em cujo proveito se verificavam, no que caberia ao historiador filiar as
instituições às necessidades sociais que foram chamadas a satisfazer em sua origem.
Para Lessa, tanto Taine – com seu ‘Origens da França moderna’, quanto Mommsen –
com sua ‘História romana’, utilizaram o mesmo processo explicativo, revelando uma
ordem natural – a teoria do caráter racional da história – que se mostrava falha e
errônea, e ao fim e ao cabo, cimentada por necessidades incoercíveis138.

se em uma violenta polêmica com Gabriel Monod, acerca de questões de método da história, contestando
as teses germanistas desposadas por Monod. Para isso, Coulanges se utilizou da revista concorrente, a
Revista das questões históricas, evidenciando com as idéias ali defendidas, “um verdadeiro culto idólatra
do documento, comparando o historiador ao químico...”. No artigo intitulado ‘Da análise dos textos
históricos’ (1887), o qual François Dosse menciona, Fustel de Coulanges alegava a necessidade de
debruçar-se sobre a análise, ação muito falada por muitos, mas por muito poucos, segundo ele, praticada.
Na opinião de François Dosse, “Fustel restringe...(...)...a prática histórica a um cientificismo reativo, a
um empenho crispado sobre os textos [para Coulanges a via real da História seria a filologia, por seu
respeito à literalidade, além de sua preocupação de levantamento exaustivo], à recusa de toda forma
literária da escritura histórica e à anulação do historiador: ‘O melhor historiador é aquele que se fixa
nos textos, que os interpreta com mais justeza, exatidão; é preciso mesmo que ele só escreva e até pense
segundo os textos’. A História. Bauru: Edusc, 2003. As citações encontram-se respectivamente às páginas
38; 39-40; 40; 40-41; 41; 42; 44; e, 45. Nas palavras de Temístocles Cezar, Fustel de Coulanges se
destacava entre os historiadores por reivindicar de modo categórico a condição de ciência para a história,
pois para o autor da ‘Cidade Antiga’, a única habilidade do historiador deveria consistir em retirar dos
documentos tudo aquilo que eles contém, sem nada acrescentar-lhes. Fustel de Coulanges. In:
MALLERBA, Jurandir (org.). Lições de História: o caminho da ciência no longo século XIX. Porto
Alegre: EdiPUCRS, 2010.
138
Delacroix, Dosse e Garcia identificam a Hippolyte Taine (1828-1893) como um dos primeiros avatares
– ao lado de Fustel de Coulanges – do método histórico, ou seja, da erudição ‘alemã’, baseada no
domínio das ciências ditas auxiliares, tais como a filologia, a paleografia, a numismática, ou a
diplomática, etc... as quais eram vistas como a única via de fundação da história. A partir da década de
1860, Taine fazia referências aos procedimentos científicos da fisiologia e da patologia, elaborando o que
esses autores chamaram por mutação científica da história. A principal obra histórica de H. Taine foi Les
origines de la France contemporaine, texto que possivelmente fora manuseado por Pedro Lessa. Ao
longo dos seus escritos, Taine fortaleceu suas convicções de que os textos literários permitiriam captar a
psicologia dos povos, fornecendo consequentemente valioso material aos historiadores. Comparava o
ofício do historiador ao do naturalista, e a ciência deveria permitir desencantar as raízes do mal coletivo.
Assim fazia associações das patologias individuais, como os instintos e as perversões, com aquilo que
considerava como pulsões coletivas, pensando talvez nas jornadas revolucionárias, na instauração do
terror revolucionário ou na ditadura da virtude. Quanto à citação de Teodor Mommsen (1817-1903), esta
revela por parte de Pedro Lessa o conhecimento de que a corrente historicista liderada por Ranke não
resumia, ao menos para uma parte dos intelectuais brasileiros, toda a historiografia além-Reno. Etienne
François observa que Mommsen especializou-se no estudo do direito romano e posteriormente na história
119

Na opinião de Pedro Lessa, não se deveria naquele momento formar uma teoria
científica sobre a evolução da humanidade, ou de prever o futuro mais distante da
espécie humana. As aspirações científicas deveriam ser limitadas ao conhecimento da
sociedade, no que estariam disponíveis duas séries de processos lógicos, entre os dois
instrumentos únicos que a ciência da época podia admitir: a indução, a generalização,
obtida pela comparação dos fatos, e a dedução, ou seja, a extração pelo raciocínio de
verdades gerais menos extensivas, compreendidas virtualmente em verdades gerais
superiores.
Em suma, alegava Pedro Lessa que as leis formavam o conteúdo de uma ciência,
e sem essas, não haveria ciência, sendo condição necessária para a existência dessa,
relações constantes de sucessão e semelhança entre os fatos. Como vemos, uma idéia de
ciência bastante ancorada nos ideais de formulação e racionalização do pensamento do
século XIX. Para Lessa, a história simplesmente colecionaria e dispunha metodicamente
os materiais, ou seja, os fatos, em cuja observação e comparação haurem em suas
induções, as ciências diversas. O método descritivo aplicado pelos historiadores seria
um excelente instrumento para a aquisição de verdades gerais da sociologia. Em suma, a
história não teria um conteúdo científico próprio, o que equivaleria dizer, leis do seu
domínio, induções, princípios e deduções que lhe fossem peculiares, ou generalizações
que dela fizessem uma ciência.
Ao que nos parece escapara a Pedro Lessa acerca da discussão do estatuto
científico da História dois pontos fundamentais para o nosso estudo. Um deles seria
uma disputa política no seio da nação francesa que conseguira separar
irreconciliavelmente historiadores em campos opostos. Esse antagonismo fazia da
Revue de Questions Historiques (RQH) e da Revue Historique (RH) espécies de
quartéis-generais das forças em choque.
Se a RQH expressava a opinião católica e monarquista, e depois da derrota em
Sedan (1870), do legitimismo e do ultramontanismo, o grupo de historiadores que

romana, prosseguindo na linha do realismo crítico que fora aberta por Niebuhr, mas ultrapassando a esse
quanto ao rigor do método e rara expressão. Tais habilidades viriam a lhe dar o Prêmio Nobel de
Literatura no ano de 1902. Mommsen esforçou-se em produzir uma história total, onde utilizava-se de
conhecimentos como a jurisprudência, a filologia, a história literária, a arqueologia e a epigrafia. Na
opinião de E. François, suas explicações eruditas ainda mereceriam confiança. Aspecto importante
ressaltado por Etienne François seriam as convicções liberais de Mommsen, materializadas tanto na sua
obra, quanto nas suas severas críticas formuladas às estruturas militares e aristocráticas do II Reich.
DELACROIX, Christian, DOSSE, François, GARCIA, Patrick. Correntes históricas na França: séculos
XIX e XX. Rio de Janeiro: FGV, 2012; e, FRANÇOIS, Etienne. Mommsen. In: BURGUIÈRE, André.
(org.) Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
120

gravitava pela RH, que contava com Gabriel Monod e Ernest Lavisse e associara-se à
terceira república francesa, tinha como plataforma de ação a institucionalização dos
estudos históricos e da profissão de historiador139. Na opinião de Bourdé&Martin a RH
assumiu posições favoráveis a governos oportunistas, envolveu-se em querelas com a
Igreja católica, monárquica e ultra-montana e defendeu uma concepção de escola laica,
gratuita e obrigatória 140 . Os dividendos editoriais mais festejados dessas lutas talvez
tenham sido o célebre Petit Lavisse e a monumental Histoire de France.
Ao que nos interessa mais de perto, as preleções de Coulanges para a escrita da
história ganhariam terreno junto a historiadores católicos, como veremos em capítulos
seguintes desse estudo. Em relação à Introdução aos Estudos Históricos, de
Langlois&Seignobos, esperamos que tenha ficado visível que a obra tornara-se uma
espécie de consenso metodológico entre os historiadores.
Outro ponto para nós fundamental é a percepção da passagem de um modelo
literário e romântico para o modelo metódico, mudança que não assumiria a forma da
‘revolução científica’, valeria dizer, de uma mudança total e rápida de paradigma, mas
que no entanto iria impor-se progressivamente. No modelo literário-narrativo cabia ao
historiador dotar de vitalidade certo passado, o fazendo no entanto através da captura de
um determinado ‘presente’ do passado. Nesse viés de recuperação dos tempos pretéritos
o historiador utilizava-se das técnicas presentes na literatura – tomando como modelo
obras de autores como Walter Scott – para fugir de um tipo de história que seria uma
mera enumeração de altos feitos e célebres datas.
A instituição do método histórico alemão foi uma continuidade da tradição
erudita do século XVIII, tendo sido redefinido por Wilhelm von Humboldt (1767-1835),
fundador da Universidade de Berlim (1810). Ele escreveu em 1821 ‘As tarefas do

139
Segundo François Dosse, para aqueles historiadores que ao início da década de 1870 apontavam para a
Alemanha como uma espécie de terra prometida da História, Fustel de Coulanges retrucava dizendo que o
método o qual chamavam de alemão seria francês há dois séculos. A referência seria a personagens como
Jean Mabillon (1632-1704), da ordem de São Bento. Mabillon enunciara regras precisas que teriam
permitido distinguir peças falsas daquelas autênticas, fundando a diplomática científica. De acordo com J.
Glénison, a criação da Ecole des Chartes em 1821 passou a representar a tradição acumulada pelos
franceses no terreno da erudição. Em fins do século XVIII, cabe acrescer, os beneditinos de São Mauro e
a Academia das Inscrições e Belas Letras haviam conduzido a França a um elevado patamar no campo da
crítica, interpretação e exploração de documentos. No despertar do século XX haveria uma espécie de
partilha de competências na historiografia francesa entre a Escola Normal Superior, sob o báculo de
Ernest Lavisse e a erudição, onde reinavam os alunos das Ecole des Chartes. Essa partilha apareceria
também simbolicamente, na famosa Introduction aux études historiques (1898), cuja redação foi
partilhada por Charles Seignobos, oriundo da Escola Normal, e pelo ‘cartista’ Charles-Victor
Langlois.Cfe.: BURGUIÈRE (1993); BOURDÉ&MARTIN (1993);e, DELACROIX, DOSSE, GARCIA
(2012).
140
BOURDÉ, Guy, MARTIN, Hervé. As escolas históricas. Lisboa: Europa-América, 1993.
121

historiador’, reafirmando a aliança da história com a verdade, aduzindo no entanto que


aquilo que era produzido no mundo sensível seria uma parte, cabendo a outra parte ao
historiador, o qual completaria a composição – tal como o poeta – pela reunião das
peças imersas encontradas nas ruínas do passado. A história que tende para a verdade,
não seria uma mera cópia do real, mas uma imitação do real onde o historiador baseado
em documentos utilizava-se da sua capacidade de imaginar o passado para mostrar
como as coisas realmente foram. De Humboldt partiria a inspiração para o historiador
Leopold von Ranke141.
Caberá a partir de agora resgatar algumas amostras das contribuições
historiográficas daqueles que transitaram pelos Institutos Históricos de Minas Gerais e
de São Paulo em seus primeiros anos. Nosso processo de seleção – um tanto expedito –
partiu da hipótese que esses textos obedeceram aos cânones que foram sendo
estabelecidos naqueles Institutos, sendo que a perspectiva que movimenta tais narrativas
afina-se com aquilo que já vimos acerca das ‘pequenas pátrias’. Nosso recorte temporal
terá por limite o ano de 1914, por motivos já alegados ao longo desse capítulo, e o
conceito de cultura historiográfica conforme tomado de empréstimo a Astor Antonio
Diehl, em páginas passadas desse trabalho, se faz presente142.
Visitaremos portanto alguns exemplares da prática escriturária de cultores das
letras históricas tais como Diogo de Vasconcelos e Antonio Teixeira Duarte pelo
IHGMG e de Theodoro Fernandes Sampaio e Antonio de Toledo Piza e Almeida, que
labutaram nos quadros do IHGSP. Partiremos de um historiador ao qual já fizemos
breve menção quando da fundação do IHGMG, pois coube a ele, naquela tarde de 16 de
julho de 1907, ocupar a tribuna da Câmara dos Deputados de Minas Gerais para
discursar na condição de orador oficial do novel Instituto Histórico. Diogo de
Vasconcelos (1843-1927), embora monarquista, teria contribuído através da sua

141
DELACROIX, Christian, DOSSE, François, GARCIA, Patrick. Correntes históricas na França:
séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: FGV, 2012. Cabe observar com os autores que das 149 notas de
rodapé da Introduction aux études historiques de Charles-Victor Langlois e de Charles Seignobos, 33%
remetiam a publicações alemãs.
142
Alguns meticulosos levantamentos preparados de maneira competente para trabalhos que nos
antecederam demonstram via-de-regra a freqüência de certos temas no âmbito dos Institutos, porém às
vezes o percentual das ‘frias’ estatísticas não dão conta de revelar os pontos de convergência entre uma
necessária plausibilidade científica – o passado dotado de sentido a partir das orientações dos problemas
daquele presente e da prática social naqueles Institutos, a função que o conhecimento produzido teria
naquele presente, bem como o espaço sociocultural no qual aquele conhecimento era produzido – com os
cânones seguidos pela historiografia regional mineira e paulista durante a Primeira República, aspecto
que guardava sintonia com suas identidades regionais. Ver. DIEHL, Astor Antonio. Cultura
historiográfica: memória, identidade e representação. Bauru: Edusc, 2002; e, FERREIRA, Antonio Celso.
A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940). São Paulo: Unesp, 2002.
122

produção historiográfica para a solidificação das instituições republicanas 143 , foi


apreciado como um historiador clássico por Oiliam José 144 e a sua historiografia foi
classificada como “tipicamente romântica” por Francisco Iglésias145.
O passado de Minas Gerais era entendido como possuidor de uma dinâmica que
aludia à formação da nacionalidade brasileira, e que compreendia desde à ocupação do
território nos anos iniciais do século XVIII até a Conjuração Mineira de 1789, eventos
que denotavam a resistência do povo mineiro contra os excessos do fiscalismo
português e os abusos autoritários dos seus prepostos. Ora, essa ‘fórmula’ já havia sido
adiantada, conforme vimos, por Augusto de Lima ao proferir seu discurso pelo Club
Floriano Peixoto, quando da fundação do IHGMG. Em linhas gerais esse fora o roteiro
perseguido por Diogo de Vasconcelos em sua História Antiga de Minas Gerais, surgida
em 1901. Essa obra foi reeditada em 1904 e alcançava até a terceira década do século
XVIII146. A ‘História Antiga das Minas Gerais’ (1901), bem como o ensaio ‘As obras
de Arte’(1911) 147 apesar de não aparecerem sob a chancela do IHGMG, acabam
vinculando-se a esse Instituto dado o caráter da indelével identificação estabelecida pelo
‘Heródoto mineiro’ com a ‘oficina central do pensamento’ 148 , na qual Diogo de
Vasconcelos ocupou o cargo de orador perpétuo desde a criação do Instituto até a sua
morte, em 1927. Adriana Romeiro defendeu que Diogo de Vasconcelos “foi o primeiro
a estabelecer uma interpretação da história mineira baseada numa visão de conjunto,

143
BOSCHI,Caio. Convicções e coerências de um cultor de Clio. In: ROMEIRO, Adriana, SILVEIRA,
Marco Antonio (orgs.) Diogo de Vasconcelos: o ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
144
Historiografia Mineira: esboço. Belo Horizonte: Itatiaia, 1959.
145
Reedição de Diogo de Vasconcelos. In: VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga das Minas
Gerais. V.1, 4.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p. 19. Quanto aos fundamentos dessa afirmação,
Francisco Iglésias apontava para “o gosto da evocação do passado, certo culto ou respeito ao vivido, com
minúcias descritivas de quem tivesse presenciado a cena, que apresenta como fazem os ficcionistas,
chegando a diálogos.”
146
Sua História Média de Minas Gerais viria a lume somente em 1918. De acordo com Oiliam José,
estavam nos planos do historiador marianense escrever uma História Moderna de Minas Gerais, assim
também como uma História Contemporânea. A propósito da História Média, conforme observou
Francisco Iglésias, cabe destaque ao terceiro capítulo da segunda parte do livro, intitulado por ‘Motins do
Sertão’. Sobre esse capítulo, Iglésias lembra que as lutas que ele revela atestam a constante insubmissão
que atingia a todos os setores da população, o que afirmaria a tese de José Honório Rodrigues sobre o
caráter cruento da história do Brasil. JOSÉ, Oiliam. Historiografia Mineira: esboço. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1959, p. 95; IGLÉSIAS, Francisco. Reedição de Diogo de Vasconcelos. In: VASCONCELOS,
Diogo de. História Antiga das Minas Gerais. V.1, 4.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p. 20.
147
VASCONCELOS, Diogo de. História antiga das Minas Gerais. 2. Vols. 4.ed. Belo Horizonte: Itatiaia,
1974; e, VASCONCELOS, Diogo de. As obras de Arte. In: Bi-Centenario de Ouro Preto: 1711-1911
(memoria histórica). Ouro Preto: Imprensa Official do Estado de Minas Geraes, 1911, p. 135-184.
148
MOLLO, Helena Miranda, SILVA, Rodrigo Machado da. Diogo de Vasconcelos e a “oficina central
do pensamento”. In: ROMEIRO, Adriana, SILVEIRA, Marco Antonio (orgs.) Diogo de Vasconcelos: o
ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. A expressão ‘oficina central do pensamento’
figurou no discurso de Diogo de Vasconcelos durante a sessão de instalação do IHGMG.
123

149
situando-a numa temporalidade de longa duração” . Para essa historiadora,
Vasconcelos fez a história mineira alçar vôos maiores que a retiraram do mero recorte
da história do Brasil na qual estava aprisionada. O ‘heródoto mineiro’ não desprezou as
contribuições oferecidas pelas memórias locais e pode assim desfrutar de uma tradição
memorialística que havia sido inaugurada ainda no século XVIII.
O propósito maior de Diogo de Vasconcelos talvez fosse construir parâmetros
para a escrita da história mineira articulando a essa tarefa o avivamento de um passado
que julgava tanto ameaçado quanto esquecido. Esse aspecto parece bastante presente em
seu ensaio sobre as obras de arte de Ouro Preto. É o momento no qual ele resgata a
enfática expressão dos portugueses que na era colonial chamavam a antiga capital por
“Villa Rica, a perola preciosa do Brasil”150. Na sua história antiga das Minas Gerais ele
faz ‘conviver’ homens que portam a civilização com aqueles que viviam em estado de
barbárie ou mesmo selvageria 151 . A educação jesuítica impedira que os primeiros
descobridores sucumbissem a uma semi-barbárie, e posteriormente a organização
política com vilas e câmaras articulada à centralização do poder sob os governadores
pôs fim à era dos potentados. Então, os valores da civilização puderam se afirmar.

149
ROMEIRO, Adriana. In: ROMEIRO, Adriana, SILVEIRA, Marco Antonio (orgs.) Diogo de
Vasconcelos: o ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p.15.
150
As obras de Arte. In: Bi-Centenario de Ouro Preto: 1711-1911 (memoria historica). Ouro Preto:
Imprensa Official do Estado de Minas Geraes, 1911, p.174. Nesse ensaio os laços afetivos que
Vasconcelos mantinha com Ouro Preto irmanaram-se à sua declarada religiosidade para compor uma peça
na qual a memória unia-se a um melancólico sentimento de perda por parte de Ouro Preto da sua
condição de capital do Estado, uma carga dramática ao que parece, Vasconcelos carregou pelo resto da
vida. Para ele, “...os monumentos, quaisquer que sejam, grandes ou pequenos, bem o mal acabados,
constituem por certo, o patrimonio herdado; e cada um na proporção de seu valor, ou de sua lenda,
concorre para o conjunto das tradicções, que fizeram dessa cidade o centro e o coração da historia.”; ou
ainda: “Fora de duvida, que as Bellas Artes nasceram do sentimento religioso. Os proprios palacios
reaes, cujas ruinas gigantescas deixam-se admirar no Egipto e na Assyria, tiveram sua rasão de ser n’um
regimen theocratico, em que os soberanos se impunham como personagens celestes.” Dessa forma, para
Vasconcelos, “Em Minas tambem como em toda parte a religião primeiro creou as Bellas-Artes, e só Ella
soube iniciar artistas. Assim sendo, não é para se admirar que as povoações antigas tenham se enchido
de Igrejas cada qual mais bella. Ouro Preto pode se dizer é a cidade das torres.” As citações encontram-
se respectivamente às páginas 135 e 158.
151
O devassamento do território por força das entradas de homens como Spinoza, Rodriges Caldas,
Sebastião Fernandes Tourinho ou ainda, Antonio Dias Adorno, gente possuidora de ‘grandes espíritos’,
impressionou a Vasconcelos, que defendeu que os sucessos iniciais impulsionaram as expedições
seguintes. Tempos difíceis porém heróicos no entendimento do autor, a quem repugnava o materialismo
grosseiro sob o qual eram tratadas em suas tribos as mulheres indígenas. A guerra entre os índios assumia
um caráter de voracidade brutal, nunca apaziguada. Mesmo entre os goianá, reconhecidamente mais
dóceis, nessas situações, o ‘heroísmo’ era exaltado. Energias aparentemente inesgotáveis como a de
Fernão Dias e sangue pelos sertões, como em conflitos que envolveram a D. Rodrigo de Castel Branco e
o Borba Gato pincelavam os tempos iniciais de Minas Gerais, e sob a ‘justiça’ do Conde de Assumar
pereceria Felipe dos Santos. Ver.: VASCONCELOS, Diogo de. História antiga das Minas Gerais. 2. Vols.
4.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
124

Em 1913 aparecia nas páginas da Revista do Arquivo Público Mineiro a


conferência ‘Sedição de Villa Rica: 1720 (Felippe dos Santos Freire)’, a qual fora
proferida pelo sócio do IHGMG Antonio Teixeira Duarte em 28 de setembro daquele
mesmo ano. Naquela ocasião, a sessão do Instituto foi presidida pelo chefe do
Executivo estadual, Júlio Bueno Brandão. O texto de Teixeira Duarte segue em linhas
gerais as análises que envolviam a história mineira no âmbito do IHGMG, cujos
cânones parecem ter sido estabelecidos pela obra seminal de Diogo de Vasconcelos.
Assim podemos destacar alguns topoi, como a intenção de recuperação do passado
longínquo para uso como lição de civismo, a eleição de vultos dignos de serem
venerados e a idéia de que a história de Minas Gerais seria a mais interessante e rica
entre as histórias regionais do Brasil. Daí a construção da investigação sob parâmetros
por nós já conhecidos anteriormente, e que procuravam justificar as revoltas, motins e
sedições como as conseqüências da avidez do fisco português e do despotismo de
governantes absolutos que visaria submeter os povos152 por ela governados a impostos
que tanto podiam ser pesadíssimos quanto iníquos ou vexatórios, como respectivamente
parecem ter sido os casos das cobranças do quinto do ouro, das dez oitavas por bateia ou
aquele destinado aos ‘alfinetes da rainha’.
Os motins de Pitangui são abordados por Antonio Teixeira Duarte – apoiado
com largueza em Diogo de Vasconcelos – como uma espécie de predecessor da Sedição
de Vila Rica, de modo a tornar evidente aquilo que deveria aparecer como um sintoma
de certo “espírito de independencia em Minas”, uma idéia afinada com a noção de
‘nativismo’ conforme vimos em páginas anteriores desse capítulo153. Nesses motins, um

152
Durante todo o período colonial, e especialmente até meados do século XVIII, compreendido pela
época retratada por A. Teixeira Duarte, a palavra povo ou povos foi utilizada para designar o conjunto da
população que habitava uma região, sendo entendido como o conjunto de vassalos ou súditos, ou ainda, o
conjunto das ordens e corpos que mantinham com o rei um dever de obediência e lealdade. De acordo
com Luisa R. Pereira, no Império colonial português predominaram nesse período as concepções e
práticas ‘corporativas’ da sociedade de origem medieval. Havia uma hierarquia fundada numa ordem
universal imutável, onde as respectivas partes ou órgãos possuíam responsabilidades, privilégios e
deveres indispensáveis àquela organização político-social. Ao rei, cabeça dessa organização, cabia ser o
centro moral e espiritual, dando proteção e garantindo paz, harmonia, sossego e felicidade, cabendo a ele
ainda, governar com justiça e equidade, ouvindo queixas e dando solução aos conflitos. Povo/povos. In:
FERES JÚNIOR, João. Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG,
2009. Ver ainda: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no espelho: a monarquia portuguesa e a
colonização da América (1640-1720). São Paulo: Hucitec, 2002; e, FILHO, Rubem Barboza. Tradição e
artifício: iberismo e barroco na formação americana.Belo Horizonte: UFMG, 2000.
153
A historiografia mais recente trabalha em um contexto de ‘Antigo Regime’, o que segundo Maria
Fernanda Bicalho consiste na adoção do conceito de Império visando à compreensão do conjunto de
relações que deram vida à dinâmica ultramarina portuguesa nos tempos modernos, priorizando relações
entre centro e periferia, poder central e poder local, a noção de redes, etc. Os historiadores que atuam sob
tais perspectivas costumam utilizar um arcabouço teórico explicitado sob a forma de conceitos
sofisticados, tais como os de “Império Colonial Português”, “Antigo Regime nos Trópicos”, “Redes
125

episódio que por seu aparente inusitado parece ter despertado a atenção de Teixeira
Duarte foi a ‘execução’ “em effigie [do] audaz rebelde” Domingos Rodrigues do Prado,
por ordem do Ouvidor de Ribeirão do Carmo, Bernardo Pereira de Gusmão, em
Pitangui154. Quanto à ‘Sedição de Villa Rica’, o autor nomeia os líderes deixando claro

Clientelares”, “Economia do Don, ou economia de mercês”, “Autoridades Negociadas”, “Soberania


fragmentada”, “Governança Consensual” e “Monarquias Compósitas”, entre outros. Essa nova forma de
entender o Império construído pelos portugueses sugere doravante a substituição nas análises das noções
de “Sistema Colonial”, “Colônia de Povoamento” e “Colônia de Exploração”, bem como da idéia de
“exclusivo metropolitano”. Ao que nos interessaria de imediato, nessa perspectiva historiográfica, é que
súditos coloniais do Império Ultramarino Português recolhiam seus impostos e esperavam que seus
direitos tradicionais e costumeiros fossem preservados. Via-de-regra os motins e revoltas ocorridos nesse
ambiente de Antigo Regime faziam-se contra os prepostos do Soberano, que realizando um mau governo
dos povos, traiam ao Rei. Nessa lógica era comum em meio a tais insurgências, os gritos de ‘viva o Rei’.
Luciano Figueiredo defendeu que os novos tempos pós-restauração constituíam um misto de júbilo e
desconfianças. Haviam animosidades alimentadas por mútuas antipatias entre reinóis e os naturais das
conquistas, que as tensões de natureza fiscal só agravavam. A metrópole Caminhava no sentido da
centralização de poder, procurando aumentar a sua capacidade de intervenção em prejuízo das diversas
esferas de autonomias locais. Governadores depostos pela multidão, quando escapavam do flagelo físico
imposto pela turba amotinada, eram despachados para o Reino. De acordo com o autor, a cultura política
do Antigo Regime tendia a que o Tribunal Ultramarino homologasse as práticas políticas dos vassalos
rebeldes, pois aquele tipo de manifestação revolucionária tinham caráter restaurador, preservando a figura
do Rei. Importante acrescer das formulações do autor é que “a assunção de um novo governo
desenraizado dos grupos dirigentes locais condenava à impossibilidade a obtenção de mercês e graças
esperadas pelo soberano.”FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em apuros: notas para
o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no Império Colonial Português (séculos XVII
e XVIII). In: FURTADO, Júnia Ferreira (org.) Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens
para uma História do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: UFMG, 2001. A citação encontra-
se na p. 223. Distante da pretensão de esgotar uma bibliografia básica dedicada a esse novo e
incontornável posicionamento analítico, mencionamos algumas obras que consideramos fundamentais
para entender o ‘estado da arte’: 1. Às vésperas do Leviathan: Instituições e poder político (Portugal –
séc. XVII), do historiador português Antônio Manuel Hespanha; 2. História de Portugal, vol. 4: O Antigo
Regime (1620-1807), tomo que conta com textos de autores representativos desse novo movimento da
historiografia, como Ângela Barreto Xavier, Nuno Gonçalo Freitas Monteiro, além do próprio Antonio
Manuel Hespanha; 3. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI –
XVIII), volume organizado por João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa,
contando ainda com o prefácio de A.J.R. Russell-Wood; 4. Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas
abordagens para uma História do Império Ultramarino Português, organizado por Júnia Ferreira Furtado;
5. Modos de Governar: idéias e Práticas Políticas no Império Português (séculos XVI a XIX), que tem
como organizadoras as historiadoras Maria Fernanda Bicalho e Vera Lúcia do Amaral Ferlini; 6. O
Governo dos Povos, obra que teve como organizadoras as historiadoras Laura de Mello e Souza, Júnia
Ferreira Furtado e Maria Fernanda Bicalho; 7. História de Minas Gerais: as Minas Setecentistas, obra
extensa organizada em dois volumes por Maria Efigênia Lage de Resende e Luiz Carlos Villalta; 8. O Rei
no espelho: a monarquia portuguesa e a colonização da América (1640-1720), de Rodrigo Bentes
Monteiro; e, 9. Finalmente, mas não por reduzido valor, o volume preparado por Martha Abreu, Rachel
Soihet e Rebeca Gontijo, intitulado ‘Cultura Política e Leituras do Passado: historiografia e ensino de
História.
154
O autor citava novamente a Diogo de Vasconcelos. A forca foi erguida e o rebelde – em efígie –
executado. Porém, «ao ter noticia de tal comedia [Domingos do Prado, que havia fugido para os confins
de Goiás, onde fundou Meia Ponte, o primeiro arraial goiano] mandou fazer também uma fôrca em um
alto de seu campo, e nella pendurou o ouvidor, mascarado na mesma figuração picaresca [em efígie],
isto no meio de estrondosas gargalhadas e apupos dos companheiros.» DUARTE, Antonio Teixeira.
Sedição de Villa: 1720 (Felippe dos Santos Freire). Revista do Arquivo Publico Mineiro. Belo Horizonte,
ano XVIII, 1913, p.575-587. Talvez caiba, entendidos os limites de uma sociedade colonial e escravista,
uma breve referência à obra de Edward Palmer Thompson quanto às formas de controle social e político.
Trata-se da noção de teatro, e se leva em conta que em todas as sociedades há naturalmente, um duplo
componente que para Thompson apresenta-se essencial: o controle político e o protesto, ou mesmo a
126

que estes pertenciam à elite local: um mestre de campo, um sargento mor, um ex-
ouvidor, um doutor, padres. A esses ‘cabeças’ juntara-se “o tribuno e agitador popular
Felipe dos Santos Freire, o mais desambicioso e leal dedicado à causa do povo e da
justiça” e ainda para o autor, o “único dos cabeças, verdadeiramente identificado com a
revolução, pela causa do povo.”155
A “atrevida intimação” alcançou o Conde de Assumar no Ribeirão do Carmo
em 2 de julho de 1720, para onde os amotinados levaram presos os camaristas de Vila
Rica. As exigências se faziam em torno da suspensão das casas de fundição, dos
arbitrários processos de extorsão fiscal e o pleno indulto quantos aos meios pelos quais
buscaram justiça. Ao conde de Assumar coube a tudo ceder, “com a mais refinada
hypocrisia, refreando embora com solércia, as amarguras de tão insólita humilhação,
que lhe dilacerava a alma, toda feita de cavilação e astucia.”156 Faltara aos revoltosos
“uma cabeça directora, fleugmatica e perspicaz”157, e assim caíram vítima da desforra
arquitetada pela felonia do Conde de Assumar, que consegue prender e executar
sumariamente a Felipe dos Santos. As ligações entre as malfadadas sedição de 1720 e a
conjuração de 1789 estavam então construídas, e Antonio Teixeira Duarte podia
finalmente concluir seu texto, aproximando naquilo que considerava como uma
regeneradora lição de civismo, seus decantados heróis, pois,
“Quando os revolucionários triunfam, as lições contra o dispotismo são
imediatas e positivas, todos as compreendem; porèm quando os planos e os
sonhos de liberdade fracassam, só muitos tempo (sic!) passado è que vamos
aprender nos feitos e na abnegação dos seus corifêus. São os dois casos
typicos de Tiradentes e Felipe dos Santos.” 158

Caberá a partir de agora dedicar alguns parágrafos ao labor dos consócios do


IHGSP, cuja revista publicada anualmente era direcionada a um público leitor que
embora limitado, seria nas palavras de Antonio Celso Ferreira, “qualitativamente
escolhido: homens eruditos e de letras em geral, políticos e burocratas em variados
níveis, famílias abastadas ou de posses medianas.” 159 Conforme nos aconselha esse
autor, não devemos apreciar – ao menos no período de tempo da Primeira República e

rebelião. Assim, se os donos do poder representam seu teatro de majestade, superstição, poder, riqueza e
justiça sublime, aos pobres cabe encenar seu contrateatro, e ocupar o cenário de ruas e mercados,
empregando o simbolismo do protesto e do ridículo. NEGRO, Antonio Luigi, SILVA, Sérgio (orgs.).
E.P.Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Unicamp, 2001.
155
Sedição de Villa: 1720 (Felippe dos Santos Freire), p. 579 – 580.
156
Ibidem, p. 580.
157
Ibidem, p. 581.
158
Sedição de Villa: 1720 (Felippe dos Santos Freire), p.586.
159
FERREIRA, Antonio Celso. A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-
1940). São Paulo: Unesp, 2002, p. 114.
127

até um pouco mais além – os trabalhos estampados nas páginas da Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo (RIHGSP) tomando por base modelos recentes de
escrita da história, pois àquela época os aspectos narrativos bem como os recursos
retóricos e figurativos se faziam sob características discursivas tradicionais, sendo que o
olhar historiográfico então vigente – ao qual nos acostumamos, por influência dos
Annales, a rotular como positivista – tratava tanto de monumentalizar o documento,
quanto de submetê-lo à crítica externa e interna, julgando-se que assim se obteria a
verdade160. Dois artigos da lavra de Antonio de Toledo Piza (1848-1905), a saber, ‘A
Expulsão dos Jesuítas em 1640’ e ‘A miseria do sal em S. Paulo’, publicados na
RIHGSP respectivamente nos anos de 1898 e 1899, nos oferecem algumas achegas
acerca das estratégias para a constituição da identidade paulista, cujos arcanos teriam se
originado coevos à própria fundação do Instituto.
Nossa sugestão é que a digna e decantada pobreza dos paulistas durante o século
XVII – época na qual São Paulo seria uma economia marginal da Colônia – teria
servido como argumento no âmbito do IHGSP para justificar a origem da escravidão
indígena, e consequentemente o avanço sob as reduções jesuíticas, então localizadas em
possessões espanholas. Essas ações de desbravamento do território por sua vez teriam
sido possíveis graças ao providencial encontro entre portugueses e índios de origem
tupi. Reunidas as característica de disciplinados guerreiros cristãos à resistência de
índios bravios surgiram homens aos quais Auguste de Saint Hilaire, ao início do século
XIX, acreditara pertencer a uma ‘raça de gigantes’161. Esses homens independentes e

160
Idem, Ibidem, p. 116-117. Na opinião desse autor, que nos parece alinhada com as proposições de
Hayden White, os documentos passaram a receber um tratamento cuidadoso, não obstante servissem
como uma forma de “atestado a enredos e substâncias históricas prefiguradas.” Dessa forma a escrita
ficava presa a modelos de retórica e sob uma capa literária que seria típica, segundo o autor, do universo
intelectual oitocentista no Brasil. Cabe lembrar ainda que o historiador típico dos Institutos – entre os
quais os do IHGSP, que mantidas suas especificidades regionais, não seriam exceções – deveria transitar
com fluência por diferentes domínios intelectuais, ser considerado um pesquisador sério, não se deixando
portanto seduzir por preconceitos apaixonados, além de possuir uma sempre estimada bela oratória. Sobre
as influências da historiografia européia já falamos de forma abundante, porém cabe registrar a
contribuição de Antonio Celso Ferreira, que em exaustiva pesquisa nas RIHGSP percebeu uma maior
incidência. em meio às poucas referências feitas, a historiadores românticos e escritores como Michelet e
Victor Hugo, a filósofos da História como Comte e Spencer, além de vagas citações a Fustel de
Coulanges. Entre os historiadores nacionais, a maior freqüência de citações coube a Capistrano de Abreu,
Varnhagen, além de alguns literatos que meio cronistas, meio poetas haviam se arriscado em narrativas
históricas nas páginas do Almanach Litterario de São Paulo, lançado por José Maria Lisboa em 1876, e
que circulou até 1885.
161
Afonso Taunay iniciou a sua obra maior reproduzindo a fala de Saint Hilaire: “Tempo houve em que
no interior do Brasil não se avistava uma única choupana, o menor vestígio de cultura, em que as feras
disputavam entre si a posse da terra. Foi então que os paulistas o percorreram em todos os sentidos.
Varias vezes penetraram no Paraguay, descobriram o Piauhy, as minas de Sabará e Paracatú,
internaram-se nas vastas solidões de Cuyabá e de Goyaz, percorreram o Rio Grande do Sul; no norte do
128

destemerosos mediram forças contra as venais autoridades metropolitanas, e desafiaram


o poder da Igreja. Seus nomes de família ficaram retratados na Nobiliarquia Paulistana
Histórica e Genealógica, do cronista setecentista Pedro Taques de Almeida Paes Leme.
Dois anos antes de escrever o artigo sobre a expulsão dos jesuítas, Toledo Piza
recebeu as chaves de uma casa no largo do Arouche, na capital paulista. Fora autorizado
por um cidadão de nome Bento Ribeiro dos Santos Camargo a retirar dessa casa alguns
papéis velhos deixados pelo tenente-general José Arouche de Toledo Rendon. Apesar da
desordem dos tais papéis, e do empastamento das folhas pela ação da umidade,
conseguiu Toledo Piza divisar um extenso manuscrito de autor não identificado sob o
título: “Expulsão dos Jesuitas e causas que tiveram para ella os Paulistas desde o anno
de 1611 até o de 1640, em que os lançaram para fora de toda a capitania de São Paulo
e S. Vicente.”162 Toledo Piza acreditava que este manuscrito fora aquele lavrado por
Pedro de Moraes Madureira, no qual em parte se baseara Pedro Taques 163 para escrever
a sua História da Expulsão dos Jesuítas.
As audaciosas empresas organizadas em São Paulo no ano de 1628, visando à
caçada de índios nas reduções jesuíticas no Guairá, despertaram a reação dos padres,
que foram socorrer-se em Lisboa, mas também no Vaticano. Enviado a Roma, o padre
Francisco Dias Tanho obtivera, do Papa Urbano VII, um breve no qual aquela
autoridade religiosa manifestava-se formal e positivamente contra o cativeiro dos
indígenas. Tendo seu navio acossado por uma tempestade, Tanho aportou no Rio de

Brasil, chegaram ao Maranhão e ao Amazonas, e tendo galgado a cordilheira peruana, atacaram os


hespahoes no amago de seus dominios. Quando, por experiencia propria, se sabe quanta fadiga e
privações e perigos, ainda hoje, esperam o viajor que se aventura nestas regiões longiquas e depois se
conhecem os pormenores das jornadas interminaveis de antigos paulistas, fica-se como estupefacto e
levado a crer que estes homens pertenciam a uma raça de gigantes.” TAUNAY, Affonso de Escragnolle.
História Geral das Bandeiras Paulistas. T.1. São Paulo: Ideal, 1924, p.3.
162
PIZA, Antonio de Toledo. A expulsão dos jesuitas em 1640. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo. São Paulo, v. 3, 1898, p.48.
163
Cabe lembrar que a menção à obra de Pedro Taques acaba servindo ao autor para tecer comentários à
‘Nobiliarquia Paulistana’ desse cronista do setecentos. Toledo Piza tratou de reproduzir nominalmente em
linhas individuais os títulos da nobiliarquia, tanto os publicados, quanto os perdidos e um existente porém
inédito – os Arrudas Botelhos e Sampaios – não esquecendo de informar os volumes da Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, entre eles o de nº 34, referente ao ano de 1871, no qual
encontravam-se a história dos Pires, Affonsos Gayas, Chassins, Campos, Rendons, e naturalmente dos
Toledos Pizas. Segundo observou Wilma Peres Costa, havia no IHGSP uma atitude francamente
defensiva em relação ao acelerado ritmo das mudanças em São Paulo. Nesse sentido, “O Instituto passou
a desenvolver um interesse precisamente por aqueles aspectos do passado que contrastavam com as
transformações em curso. Enquanto o Estado passava a ser povoado pelos mais diferentes tipos de
adventícios e começavam a despontar as primeiras fortunas de imigrantes, esse interesse voltava-se para
os estudos genealógicos, para a valorização da nobiliarquia, para a recuperação das tradições de uma
pretensa época heróica, algumas vezes com acentuado conteúdo racista.” Afonso d’Escragnolle Taunay.
História Geral das Bandeiras Paulistas. In: MOTA, Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil: um banquete
no Trópico. V. 2. 2.ed. São Paulo: Senac, 2002.
129

Janeiro, hospedando-se com os jesuítas ali estabelecidos, para os quais foi comunicado
o conteúdo do breve. Esses apressaram-se em publicar o conteúdo da declaração papal,
despertando a ira indignada da população que chegou a ameaçá-los de morte. Em Santos
os jesuítas tiveram seu colégio assaltado pelo povo. Conforme escreveu Toledo Piza,
“Em S. Paulo se procedeu de modo mais correcto: o povo e auctoridades
intimaram os jesuítas a se retirarem da capitania em prazo fixo, e como não
fossem logo obedecidos, renovaram a intimação por duas vezes com
prorrogações dos prazos concedidos para elles deixarem a capitania, o que
os padres fizeram depois de terem tomado todas as providencias
garantidoras das suas já valiosas propriedades e de seus direitos futuros.”164

Nesses relatos as autoridades coloniais amiúde são apontadas no lado oposto ao


interesse dos paulistas, insensíveis aos mais dignos clamores da população, despertando
reações nos habitantes do planalto que tinham o vezo de ‘cegar’ caminhos aos
emissários da Coroa, dando corpo à fama da rochela do sul 165 . Teria sido assim no
episódio do assalto aos armazéns de sal em Santos, no ano de 1710, abordado por
Toledo Piza em trabalho lido em sessão do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo, em 5 de junho de 1899166. A Coroa portuguesa reservava para si o monopólio do
sal na Colônia, concedendo a comerciantes o contrato sobre o seu transporte marítimo e
venda a retalho. O preço então estipulado para o consumidor final previa sempre um
lucro moderado, de maneira a que todas as classes pudessem fazer uso dessa
mercadoria. Com o contrato quase sempre arrematado em Lisboa por prazo fixo de três
anos, e sendo os direitos reais recolhidos nessa mesma cidade, os contratantes se viam
livres para especular de forma inescrupulosa, contando para isso com a concupiscência
de comerciantes de Santos e de São Paulo, que vendiam o sal utilizando do estratagema

164
Ibidem, p. 46. Em 1929, Afonso Taunay faria publicar ‘A expulsão dos jesuítas do Collegio de S.
Paulo’, precedendo o texto com um estudo sobre a obra do linhagista Pedro Taques. Para uma versão
mais atualizada do evento cabe consultar MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e
bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
165
A idéia da rochela inexpugnável serviu como reforço à auto-imagem dos paulistas que procuraram
manter sua altivez nas tratativas com o Soberano português, do qual não se consideravam vassalos, mas
arrendatários de terras na América. Os serviços que os paulistas haviam prestado ao rei de Portugal
acabaram por lhes proporcionar um aprendizado de negociação que alimentou seu imaginário político de
impermeabilidade ao controle metropolitano, e portanto, de autonomia e independência em relação à
Coroa. Nas contribuições historiográficas mais recentes a idéia de Rochela – que envolve eventos como a
Aclamação de Amador Bueno – foi tematizada por autores como: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no
espelho: a monarquia portuguesa e a colonização da América (1640-1720). São Paulo: Hucitec, 2002;
ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no coração das minas: idéias, práticas e imaginário político
no século XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 2008; e, MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e
bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
166
PIZA, Antonio de Toledo. A miséria do sal em S. Paulo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo. São Paulo, v. IV, 1898-1899, p. 279 – 295.
130

de forçar a alta dos preços, reduzindo a comercialização do produto que ficava então
armazenado.
Debalde se faziam queixas às autoridades, porém os monopolistas – seguros de
sua impunidade – mantinham-se na prática colimada, alegando que a pequena oferta do
sal na Colônia se devia à falta de transportes, pela retenção nos portos portugueses de
numerosos navios, em virtude da ação no Atlântico de corsários e piratas franceses,
inglezes e holandeses. No mais, os oficiais da alfândega de Santos passavam certidões
corretas sobre a quantidade de sal introduzido, estando o preço de venda em
conformidade com o contrato. Na opinião de Toledo Piza,
“O governo de Lisbôa, que quase sempre estava disposto a se contentar com
quaesquer desculpas, acceitava estas do arrematante, que, se não eram
verdadeiras, eram muito plausíveis, e tudo permanecia no mesmo estado
anterior, continuando fabulosos os lucros auferidos pelo contractador e seus
associados e sem écho nem justiça as queixas e os soffrimentos dos
paulistas.”167

Em 1710 um paulista de nome Bartholomeu Fernandes de Faria, proprietário de


fazenda em Jacareí cultivada por centenas de escravos e índios, homem rico que
ocupara anteriormente importantes cargos públicos tais como os de juiz ordinário e dos
órfãos de São Paulo, resolveu insurgir-se contra a aviltante situação pois,
“também sentia os effeitos deste vergonhoso monopólio e sabia da existência
de grande quantidade de sal em Santos, armou-se com muitos capangas e
numerosa tropa de negros e índios e desceu a Santos, onde apanhou os
monopolistas de surpresa. Senhor da povoação, segurou os monopolistas,
forçou-os a abrirem os seus armazéns e retirou delles todo o sal que podia
conduzir; mediu esse sal, pagou-o pelo justo valor, dando margem para
lucros razoáveis, carregou a sua tropa de negros e índios e partiu
rapidamente para serra acima, destruindo na volta todas as pontes e tapando
o caminho com tranqueiras de arvores derrubadas, para que as auctoridades
santistas não pudessem vir ao seu encalço com as forças que ás pressas
tivessem conseguido reunir.”168

167
Ibidem, p. 282.
168
PIZA, Antonio de Toledo. A miséria do sal em S. Paulo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo. São Paulo, v. IV, 1898-1899, p. 284. Ficaria aqui mais uma vez sugerido contemplar como
base conceitual os estudos de Thompson sobre as resistências populares, tomando novamente em
consideração os limites de sua aplicação para o mundo ibérico em geral e uma sociedade colonial e
escravista em particular. Os motins populares são explicados por Thompson como reação a uma resposta
ao mal estar conjuntural, motins que não podem ser reduzidos ao seu aspecto econômico, mas estudados e
compreendidos sob uma ótica mais abrangente, a qual inclui, inclusive, a esfera econômica. O conceito de
“Economia Moral” ou “Modelo Paternalista”, aparece como a condenação da comunidade à economia de
mercado livre, que baseada exclusivamente no lucro, teoricamente acabava resultando na escassez de
mercadorias consideradas vitais para certa comunidade, com sua consequente alta de preço. Em situações
como esta, a comunidade tenderá a voltar-se para o controle da produção, colheita e especialmente da
comercialização desses gêneros para proteger seus interesses de consumidores.Como o conceito de
economia moral, outras noções igualmente importantes, aparecem, sendo um deles a categoria consenso
comunitário. Esta engloba princípios compartilhados no seio de uma comunidade, sugerindo uma idéia de
coesão e união que às vezes pode aparecer como legitimante das ações violentas perpetradas. Ver:
131

Nos anos de 1905 e 1908 vinham a lume dois artigos da lavra do engenheiro
baiano Theodoro Sampaio (1855-1937), intitulados ‘A fundação da cidade de S. Paulo’
e ‘A propósito dos guayanazes da capitania de S. Vicente’, textos que envolviam o mito
da origem da sociedade paulista. Afinal, se da fundação de São Paulo dependera a
conquista do planalto brasileiro e em consequência, conforme as diretrizes seguidas pelo
IHGSP, a expansão do território brasileiro e da civilização, caberia esclarecer – e se
possível de maneira afirmativa – a filiação dos guaianazes ao tronco tupi. Conforme
observou John Manuel Monteiro, desde o século XVIII haviam afirmações que faziam
crer que os guainazes seriam tupis, porém na última década do século XIX surgiu em
meio ao debate a sugestão de que os guaianá da documentação antiga seriam na verdade
tapuias, uma ‘raça’ indígena que era então desprezada pela ciência moderna e pelos
defensores do progresso. Seriam então os guaianás remotos ancestrais dos modernos
Kaingang?169
A polêmica era extensa e segundo J. M. Monteiro, começara meio ao acaso em
1888, por intermédio de uma memória lida por João Mendes de Almeida na Sociedade
dos homens de letras de São Paulo 170 . Daí a significação dos dois artigos que
abordamos, quando observados em conjunto. Assim, entre 1905 e 1908 ao menos nos
aspectos então tidos como mais urgentes, ao que parece Theodoro Sampaio conseguiu
de maneira hábil, emprestar certa moderação às discussões no interior do IHGSP, pois
durante o período compreendido por nosso estudo, o assunto não mais voltou à pauta
das discussões estampadas nas páginas da RIHGSP171.
Com efeito, no seu artigo sobre a fundação de São Paulo (1905), Sampaio
apontava para a singeleza dos primeiros tempos de Piratininga, onde os jesuítas
reduziram índios tupiniquins, carijós, tupis e guayanazes, contando para tanto com a
colaboração das tribos de Tibiriçá e Caiubi. Para Theodoro Sampaio, não haveriam
dúvidas, eram tupis os indígenas que os jesuítas catequizaram na Capitania de São
Vicente, a cuja língua conseguiram dar gramática e vocabulário. No final das contas, se
os guaianazes não eram tupis, e sim tapuias, como haviam declarado alguns escritores

THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das Letra, 2002.
169
MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias e a história de São Paulo: revisitando a velha questão
guaianá. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, n.34, nov. 1992, p. 125-135.
170
Idem, ibidem, p. 125.
171
Cabe esclarecer que no mesmo volume no qual Theodoro Sampaio publicou seu artigo de 1908, saíram
também escritos das lavras de dois dos mais apaixonados defensores da origem tupi dos guaianazes, a
saber, J.C.Gomes Ribeiro e Afonso A. de Freitas.
132

quinhentistas como o padre Anchieta, Fernão Cardim e Gabriel Soares – todos citados
por Capistrano de Abreu172 – também não eram os principais habitantes das áreas que
viriam a ser colonizadas pelos portugueses. Dessa forma ficara portanto resolvida a
querela que tanto abalara os brios de certos consócios do IHGSP173.

172
Os guaianases de Piratininga. In: Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia,
1989.
173
O fato de João Mendes de Almeida, ser maranhense, Capistrano de Abreu, cearense e Theodoro
Sampaio, apesar de sócio-fundador do IHGSP ser um não-paulista, ou melhor, um baiano participarem
ativamente da discussão apontando para os guaianazes como tapuias teria avivado mais ainda o brio dos
paulistas. Acalmada a polêmica sobre os tapuias, o discurso sobre os resultados da miscigenação entre
lusos e indígenas teve vida longa na historiografia paulista pois intimamente ligada à expansão
bandeirante. Em ensaio de fins dos anos 40, Sérgio Buarque de Holanda defendeu que a expansão
geográfica paulista se fez por obra de mamelucos plenamente adaptados ao ambiente americano, meio o
qual era hostil ao europeu. O mameluco, mestiço do branco, a raça conquistadora, com a raça
conquistada, o índio, o ‘gentio bravo’, foi o grande móvel desta expansão, e as influências indígenas que
lhe foram comunicadas vieram a tornar possíveis as grandes empresas bandeirantes; esta era a tese central
defendida pelo então diretor do Museu Paulista, que assumira o cargo em 1945, substituindo a Afonso
Taunay. Com essa versão parece ter concordado Myriam Ellis, para quem a contribuição das bandeiras
para a expansão geográfica, vinculada às reduzidas possibilidades materiais oferecidas pela modestíssima
São Paulo, situada em sítio de solo pobre e pouco profundo, sujeitara a sua população a uma agricultura
de subsistência. Neste aspecto, o predomínio da pequena propriedade, e consequentemente, a inexistência
de compromissos do homem com o latifúndio, vieram a facilitar a expansão dos paulistas rumo ao sertão.
Entendia Sérgio Buarque de Holanda que o encontro do índio com o branco deu-se de forma imediata, e a
conseqüência foi, antes que um amálgama, uma simbiose, que emprestou a Piratininga, “desde os
primeiros tempos da colonização, um colorido social inconfundível”. Dessa forma, o branco, que
atravessara o Oceano e encontrara a Serra, e além dela o sertão ignoto, conheceu no planalto da capitania
de Martim Afonso uma vocação antes no caminho que convida ao movimento, que ao sedentarismo
característico dos engenhos das Capitanias do Norte. Em conseqüência disso, seus descendentes,
legítimos ou bastardos, continham a “marca do chamado selvagem, da raça conquistada”, o que para
Sérgio Buarque, olhos postos na expansão geográfica, “não representa uma herança desprezível e que
deva ser dissipada ou ocultada, não é um traço negativo e que cumpre superar; constitui, ao contrário,
um elemento fecundo e positivo, capaz de estabelecer poderosos vínculos entre o invasor e a nova terra”.
Myriam Ellis acresceria que o sertão teria exercido sobre os paulistas dos séculos XVI e XVII, “uma
provocação, um fascínio constante”, onde o espírito aventureiro que fizera galgar a Serra do Mar passava
a aliar-se em face das reduzidas condições de subsistência, à herança biológica do arrojado povo lusitano;
na descrição da autora, um povo fisicamente forte e “pronto a adaptar-se às condições do Novo Mundo”.
Nesse aspecto, seus descendentes mamelucos, conseqüência da inevitável miscigenação ocorrida com a
população nativa, legítimos ou bastardos, seriam doravante, o combustível humano para o enfrentamento
do sertão ignoto em busca daquilo que chamavam por “remédio para a pobreza”. O historiador português
Jaime Cortesão apoiou-se largamente em textos de Sérgio Buarque de Holanda, cujos cursos teria
frequentado, justificando na plasticidade caracterizadora da ação colonizadora portuguesa, o sucesso
experimentado pelos lusitanos, os quais em sua união com as índias, acabaram tornando-se parentes da
tribo, ou das tribos, às quais passaram, pelas suas capacidades superiores, a dirigir. Para Cortesão, a
estreita aliança entre portugueses e os tupi de São Paulo, foi seguramente de base familiar. Para o autor,
se em todo o território brasileiro existia algum núcleo social, a quem, por excelência, coubesse a função
geopolítica de incorporar novos territórios ao Estado do Brasil, incumbisse o mandato natural para os
descobrir, movesse a necessidade econômica de os ocupar, e até uma suposta base jurídica para
reivindicá-los, esse era o de São Paulo, por ser núcleo essencialmente mameluco, produto – na lavra de
Jaime Cortesão – “duma feliz fusão de raças”. Índios e mamelucos na expansão paulista. Anais do Museu
Paulista. T. XIII. São Paulo: Imprensa Oficial, 1949; ELLIS, Myriam. As bandeiras na expansão
geográfica do Brasil. In: Hollanda, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo I,
v. 1., 8.ed.,1989,p.277 e 280; e, Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Cultura, 1958, p.117.
133

Contar e recontar os eventos do passado, sempre fôra a tarefa primordial dos


historiadores. Contudo, conforme vimos, tal tarefa em um ambiente como o do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, ou ainda de seus correspondentes paulista e mineiro,
ficavam impregnadas de cunho oficioso, quando não ocorre a separação entre o campo
político e o cultural 174 . Nesses momentos, percorrem-se séculos de documentação,
desfragmentando eventos para utilizá-los como marcos de união, que venham a servir
para a construção da nacionalidade. Em outros momentos, em nome dessa mesma
nacionalidade, pode se passar a observar certas décadas com uma desenfreada
imaginação.
Às vezes, essa forma de olhar o passado ganha os contornos de uma História
Oficial. Talvez possamos dizer que no Brasil, os anos finais do século XIX, bem como
os anos iniciais do século XX estivessem impregnados de muitas indefinições, ou ainda,
carentes de um certo realinhamento de forças que se apresentavam como
majoritariamente conservadoras.

Afinal, assim como se faziam pactos para prover com certa estabilidade o mundo
da Política, não raro, os mesmos homens que os produziam, possuíam vínculos com os
Institutos Históricos. Nesses casos, encontramos os espaços de sociabilidade, conforme
os definiu Jean-François Sirinelli ao realizar sua análise sobre o meio intelectual175.
Os Estados de São Paulo e Minas Gerais partiriam em busca da iluminação de
temas que pretendiam dar conta da construção do território brasileiro – ainda no século
XVII (por obra dos paulistas) com a ação dos bandeirantes, ou mesmo da construção de
uma nação ‘republicana’ (como em Minas Gerais), já no século XVIII, com o evento
conhecido por Conjuração Mineira, onde era enaltecida uma suposta tentativa de
independência ocorrida em Minas Gerais .
A importância dessas temáticas mobilizou historiadores entre os anos finais do
século XIX e as duas primeiras décadas do século XX. Caberia entender que o modus
operandi da História oitocentista, ainda bastante presente nas décadas iniciais do século
XX, fazia da imaginação histórica um recurso que visava auxiliar o historiador a
articular os elementos de sua narrativa. A História dita científica dava vigorosos passos

174
Nesse sentido, Angela Alonso esclarece que o pressuposto da autonomia do campo intelectual era
duvidosa para o Brasil ainda na segunda metade do século XIX, sendo que a separação entre um campo
político e outro intelectual estava ainda em processo, mesmo na Europa. Idéias em Movimento: a geração
1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
175
Os intelectuais. In: REMOND, René (Org.) Por uma história política. 2.ed.Rio de Janeiro:FGV, 2003.
134

para autonomizar-se então, pari passu, dando continuidade ao seu ‘divórcio’ com a
Filosofia176.
Cabia no entanto, sob certos limites, dar rédeas à poética, o que equivale dizer,
que deveria se manter sob controle os elementos da faculdade imaginativa do
historiador. Se o objetivo era atingir a verdade histórica, devia-se subordinar a faculdade
imaginativa à experiência e à investigação da realidade.177

176
REIS, José Carlos. A História entre a Filosofia e a Ciência. São Paulo: Ática, 1996.
177
MALERBA, Jurandir (Org.). Lições de História: o caminho da Ciência no longo século XIX. Porto
Alegre: Edipucrs, 2010.
135

3 – Uma Nação Tropical

“Na nossa Historia sigo trabalhando seis a oito horas por dia,
E já estou no período de 1715 a 1750, período cuja gloria
principalmente pertence aos Paulistas, e os assumptos importantes
as províncias de Minas, Goyaz, e Matto Grosso, concluindo com o 1º
tratado de limites. O período seguinte abrangerá até o 2º tratado de
limites, isto é até 1777, e virá a compreender o reinado de elrei D. José,
e por conseguinte a administração do Marquez de Pombal. Já a História
nesta altura se emancipa dos nomes dos Governadores (às vezes obscurís-
simos) que cada trez annos se mudavam nas differentes capitanias. Esses
roes de nomes pretores os darei talvez no fim da obra para poderem servir
alguma vez à chronologia.” Carta de Francisco Adolfo de Varnhagen ao
Imperador D. Pedro II. Madrid, 7 de fevereiro de 1853.

Nos anos iniciais de vida do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, quase


tudo estava por se fazer, haja visto que a História do Brasil costumeiramente
referenciada, pois disponível, ainda era aquela que fora escrita pelo inglês Robert
Southey (1774-1843)1. Conforme observou a historiadora Maria Odila da Silva Dias, a
História do Brasil de Southey tinha como proposta desvendar uma nação que então
1
SOUTHEY, Robert. História do Brasil. 3.v.Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1981. Na fala de
Pedro Moacyr Campos encontramos que “em começos do século XIX, a bem dizer, apenas existia uma
história geral do Brasil: a de Sebastião da Rocha Pita (1660-1738), sob o título de História da América
Portuguesa.” Campos baseou-se em uma informação de Sílvio Romero tirada da 3ª edição da sua História
da Literatura Brasileira, que é de 1943. O texto original é de 1888 e ao que parece, não recebeu uma
revisão significativa, no que cabem algumas observações. De fato, a primeira História do Brasil coube ao
português Pero de Magalhães Gândavo que escreveu dois livros: a História da província de Santa Cruz
(1576) e o Tratado da terra do Brasil. Quanto a Gândavo, observou Hélio Vianna que esse estivera no
Brasil, opinião que compartilhava entre outros com Capistrano de Abreu e Oliveira Lima, opiniões
contrapostas por Pedro Calmon e Artur Hehl Neiva. A Gândavo seguiram o jesuíta Fernão Cardim (1549-
1625), também português, com Tratados da terra e da gente do Brasil. Depois apareceram os Diálogos das
grandezas do Brasil, do português Gabriel Soares de Sousa (1540-1591), colono fixado na Bahia. No
início do século XVII, Frei Vicente do Salvador – cujo nome secular era Vicente Rodrigues Palha –
natural da Bahia, escrevia uma História do Brasil (1500-1627), confiando os originais ao cônego Manuel
Severim de Faria, chantre da Sé de Évora. Severim animara a Frei Vicente escrever a obra com vistas a
sua publicação, porém tendo-a em mãos, descumpriu a promessa. Perdidos os originais, Varnhagen veio a
conhecer um apógrafo existente na Torre do Tombo. A comissão de pesquisas mantida em Portugal tirou
desses escritos uma cópia, à qual veio a extraviar-se. Somente em 1886, por intermédio de um livreiro
essa cópia chegou à Biblioteca Nacional, que em 1889 – um ano após a publicação da História da
Literatura de Sílvio Romero – deu luz ao texto em seus Anais. Teria sido Frei Vicente do Salvador então
o primeiro historiador nascido no Brasil. CAMPOS, Pedro Moacyr de. Esboço da Historiografia
Brasileira nos séculos XIX e XX – apêndice. In: GLÉNISSON, Jean. Iniciação aos estudos históricos.
3.ed. Rio de Janeiro: Difel, 1979; LACOMBE, Américo Jacobina. Introdução ao estudo da História do
Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974; e, VIANNA, Hélio. A primeira versão do Tratado
da terra do Brasil. Revista de História. São Paulo, n.15, 1953, p.89-95.
136

nascia. Inspirado por esse ideal o autor procurara realizar uma abordagem objetiva das
esferas econômicas, políticas e sociais. Para essa autora, o livro de Southey ainda hoje
se trata de importante contribuição ao conhecimento da nossa fase colonial 2. Southey
preparara seu texto à luz de uma abundante documentação, tanto de textos publicados,
quanto de manuscritos.
Cabe observar porém que essa História do Brasil lançada em Londres entre
1810 e 1819 ligava-se de forma entranhada a uma ‘História da América Portuguesa,
desde seu descobrimento até o ano de 1724’, que fora publicada em 1731, texto de
autoria de Sebastião da Rocha Pita (1660-1738). Esse livro chegara às mãos de Southey,
o qual discordou da versão apresentada por Rocha Pita, apontando-lhe lacunas e
tentando dissipar-lhe erros.
Os críticos costumam considerar a ‘História da América Portuguesa’ muito
mais como uma crônica, poema em prosa ou mesmo como uma novela histórica do que
propriamente seria em termos modernos, uma história3. Contudo, nos explica Pedro
Moacyr Campos, houve uma fria acolhida ao texto de Southey no interior do IHGB. Ao
passo que Rocha Pita teria sido “respeitado – quando não seguido – pela mentalidade
predominante entre os fundadores do Instituto Histórico e Geográfico”. Afinal Robert
Southey era um estrangeiro, e além do mais protestante, que tivera a pretensão de
escrever sobre o Brasil, uma terra que afinal, não conhecia4.
Naquele momento, o que era postado sobre os atelieres dos historiadores,
constituindo-se em sua ‘matéria-prima’, compunha-se de um substancioso quanto difuso

2
DIAS, Maria Odila da Silva. O fardo do homem branco: Southey, historiador do Brasil (um estudo dos
valores ideológicos do império do comércio livre). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974.
3
José Honório Rodrigues o considerou pobre de conhecimentos, e com exceção de Gabriel Soares de
Sousa, inferior aos demais cronistas do século XVI, sendo sua fraqueza somente disfarçada pelos
requintes de estilo. Seria Rocha Pita antigentio, pró-escravidão, antijudeu, antipaulista, antiBrasil,
colonialista empedernido, discriminatório e preconceituoso. Teria tentado agradar aos poderosos,
inteiramente alienado, servindo e servil a Portugal. Nele não teria havido uma palavra de simpatia em
relação aos movimentos populares. Américo Jacobina Lacombe o achou delirante aos louvores com que
se refere à terra, seus conhecimentos geográficos seriam estranhos. Seria o Brasil um terreal paraíso, o
que tornaria Rocha Pita um precursor da corrente cognominada por ufanismo. Francisco Iglésias percebeu
nesse autor um descambamento para o preciosismo, a retórica, o discurso grandiloqüente, uma oratória
que chega à logomaquia. Sua exposição teria se perdido no hino de louvores à terra. Pedro Moacyr de
Campos viu em Rocha Pita um desejo de exibir sapiência a qualquer pretexto, segundo o gosto das
Academias literárias, como a dos Esquecidos, à qual Rocha Pita era filiado.Ver: RODRIGUES, José
Honório. História da História do Brasil: historiografia colonial (1ª parte) São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1978; LACOMBE, Américo Jacobina. Introdução ao estudo da História do Brasil. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1974; IGLÉSIAS, Francisco. Historiadores do Brasil: capítulos de
historiografia brasileira. Belo Horizonte:UFMG, 2000; e, CAMPOS, Pedro Moacyr de. Esboço da
Historiografia Brasileira nos séculos XIX e XX – apêndice. In: GLÉNISSON, Jean. Iniciação aos estudos
históricos. 3.ed. Rio de Janeiro: Difel, 1979.
4
CAMPOS, Pedro Moacyr de. Esboço da Historiografia Brasileira nos séculos XIX e XX – apêndice. In:
GLÉNISSON, Jean. Iniciação aos estudos históricos. 3.ed. Rio de Janeiro: Difel, 1979, pp. 252-258.
137

material que reunia sob um mesmo teto as biografias das elites, assim como questões
que envolviam índios, jesuítas, fronteiras, entre outros tantos temas. Mas o que faltava
efetivamente, era uma história do Brasil, obra que deveria alinhavar os pontos
inegociáveis de um programa de consolidação do Império e de afirmação da jovem
nação. Caberia aos historiadores então, lançar luzes ao passado para extrair dos tempos
pretéritos os laços de união que autorizassem a falar em nacionalidade, que
emprestassem concretude ao projeto de nação, e que viessem a dissipar, mediante o
suprimento de registros históricos, algumas dúvidas e questionamentos quanto à
legalidade das fronteiras. A materialidade dos registros históricos deveria funcionar
como fiadora de uma nação afinada com a civilização, além de servir como uma sólida
garantia para a integridade da posse do território.
Contaria o jovem Império com três principais instrumentos para uma auto-
legitimação de sua identidade, e o intuito desses era figurar a existência do Brasil
enquanto nação, desde o contato inicial dos portugueses com os primeiros indígenas,
tomados então como marcos inaugurais do surgimento da nação. Conforme apontou
Nicolau Sevcenko, esses instrumentos seriam o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, a Escola Nacional de Belas Artes e a literatura5.
Deixaremos por último o papel desempenhado pelo Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, com vistas a tratar de maneira um pouco menos detida dos dois
outros recursos desse tripé de estratégia ideológica que, conforme tentaremos
demonstrar, estava direcionado para a configuração de uma mitologia nacional: as artes
a serviço da história, e a literatura, mais independente, “mas nunca demasiado afastada
da ambiência da Corte e dos sistemas de patronato do Trono...”6.
Comecemos pela Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro. Criada
em 1826, ela foi uma espécie de desdobramento da missão artística francesa que
aportara no Brasil em 1816, e eram franceses os artistas que vieram a compor o seu
quadro docente. Após 1840, com a chegada ao trono de D. Pedro II, a Academia
tornava-se um dos eixos de sustentação da imagem da pessoa e da família do Monarca,
assim como do seu governo. Pedro II manteve estreitas relações com essa instituição,
fosse servindo como tema e modelo, fosse patrocinando a produção de obras, ou ainda,

5
O outono dos césares e a primavera da história. Revista USP, São Paulo, n.54, jun.ago. 2002, p. 30-37.
6
Idem, Ibidem, p. 33.
138

provendo com recursos a formação de artistas brasileiros na Europa7. Dessa forma,


prêmios e medalhas concedidos a estudantes, assim como bolsas de estudo no exterior
teriam servido tanto para o incentivo da produção artística – ou ainda, para a produção
de alguns tipos específicos de obras artísticas – quanto para a criação de compromissos
permeados por gratidão, que se traduziam na criação de obras de caráter histórico, às
quais tinham por finalidade exaltar a unidade da nação e a dinastia que nela reinava.
Conforme observou Thaís Fonseca,
“Nesse espírito foram pintados quadros célebres, como ‘D. Pedro na
abertura da Assembléia Geral, A Batalha do Avaí e Independência ou
Morte!’, todos de Pedro Américo (1843-1905) e ‘Primeira Missa no Brasil’ e
a ‘Batalha dos Guararapes’, de Victor Meirelles (1832-1903). Estas são,
talvez, as mais conhecidas obras da pintura histórica brasileira do século
XIX, concebidas em fina sintonia com as propostas do IHGB.”8

Conforme apontou Lilia Moritz Schwarcz, a Academia Imperial de Belas Artes


foi a grande responsável pela transformação então operada no plano pictórico. No
período colonial o barroco havia se imposto enquanto gênero. Coube assim à Academia
fazer imperar o neoclassicismo – ao menos na corte e em algumas capitais – relegando o
barroco ao segundo plano. O academicismo importara da França a dimensão ética, a
qual contemplava a exemplaridade, a virtude e o modelo, que teriam então funcionado
como uma espécie de reação ao barroco9. Porém, conforme explicou a autora, ao
contrário da França, no Brasil o academicismo se fez palaciano, não conseguindo lograr
em consequência disso a submissão da “dimensão sensível a uma conformação rigorosa
em que a vontade prevalece sobre o mundo das paixões”10. Assim, no âmbito da
Academia, o academicismo retornou ao modelo histórico e grandiloquente. Como regra,
ele consorciara-se ao projeto imperial. Não era para menos. D. Pedro II seria assíduo
participante das anuais Exposições Gerais de Belas-Artes, concederia insígnias das
Ordens de Cristo e da Rosa aos artistas mais destacados, encomendaria considerável
volume de retratos nos quais figuraria como modelo, e ao conhecer Pedro Américo
quando este ainda era aluno do Imperial Colégio de Pedro II – e pintava às escondidas

7
FONSECA, Thais Nívia de Lima e. “Ver para compreender”: arte, livro didático e a história da nação.
In: SIMAN, Lana Mara de Castro, FONSECA, Thais Nívia de Lima e (orgs.). Inaugurando a História e
construindo a nação: discursos e imagens no ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
8
FONSECA, Thais Nívia de Lima e. “Ver para compreender”: arte, livro didático e a história da nação.
In: SIMAN, Lana Mara de Castro, FONSECA, Thais Nívia de Lima e (orgs.). Inaugurando a História e
construindo a nação: discursos e imagens no ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 95.
(grifos da autora).
9
As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
10
Idem, Ibidem, p. 146.
139

um retrato seu – tratou de matriculá-lo na Academia de Belas-Artes, financiando seus


estudos. Da mesma forma, foram estudar na Europa artistas como Vítor Meireles,
Almeida Júnior, Castagnetto, Francisco Sá, Daniel Bérard e Rodolfo Bernardelli. Esses
protegidos financiados por dotações imperiais públicas ou pessoais ficariam conhecidos
como “os pensionistas do imperador”, e conforme informa Lilia M. Schwartz, “ a
Academia estava de tal maneira ligada aos destinos do monarca que, no ocaso do
Império, a própria escola entrou em decadência, com um grande número de cadeiras
vagas e o final da política de financiamento.” 11
Um caso que merece ser realçado é o de Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-
1879), o qual agraciado com uma bolsa de estudos na Europa, seguiu ao seu mestre Jean
Baptiste Debret, antigo integrante da Missão Artística Francesa e pintor de quadros
históricos. Após seu retorno à França no ano de 1831, Debret participaria do Institut
Historique de Paris (IHP), assim como seu discípulo brasileiro. Em Paris, Araújo Porto
Alegre manteve contato próximo com outros dois brasileiros, igualmente sócios do IHP:
o político e jornalista Francisco Salles Torres Homem e Domingos José Gonçalves de
Magalhães, “cuja obra é reconhecida como inauguradora do Romantismo na literatura
brasileira.”12 Esses três brasileiros lançariam na capital francesa uma revista literário-
científica, à qual deram o nome de Nitheroy, que reunia um pauta diversificada –
literatura, música, química, direito, astronomia, economia política – tendo porém, uma
vida efêmera13. Os intelectuais identificados com o projeto da revista Nitheroy
tornaram-se ao final das suas vidas, figuras de relevo no mundo oficial. Assim,
Francisco Salles Torres Homem ascendeu à posição de importância no mundo da
política, Gonçalves de Magalhães foi elevado à condição de poeta preferido do
Imperador, ao passo que Manuel de Araújo Porto Alegre tornou-se conhecido como o
pintor da Corte14.

11
As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2.ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, p. 146.
12
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e Nação no Brasil: 1838-1857. Rio de Janeiro:
Eduerj, 2011, p. 101.
13
Conforme esclareceu Antonio Candido, essa revista foi publicada no ano de 1836, e nos dois únicos
números que vieram a lume estavam contidos o essencial da nova teoria literária. O título completo da
publicação era ‘Niterói, Revista Brasiliense de Ciências, Letras e Artes’, trazendo ainda como epígrafe:
‘Tudo pelo Brasil, e para o Brasil’. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos
decisivos. 11.ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007.
14
RICUPERO, Bernardo. O Romantismo e a idéia de Nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
140

A mais influente corrente do romantismo brasileiro foi o indianismo15.


Conforme observou Bernardo Ricupero, o romantismo brasileiro encontrou no índio o
instrumento para realizar sua tarefa precípua, qual seja, criar um mito da fundação
nacional. Claro que este índio era uma metáfora, e fora escolhido como símbolo
nacional por adequar-se às condições desejadas de encontrar-se em solo ‘brasileiro’
antes dos portugueses, podendo portanto ser considerados ‘os primeiros brasileiros’. O
primeiro poema indianista brasileiro – intitulado “Nênia” – foi escrito em 1837, e foi
publicado posteriormente na revista Minerva Brasiliense. Porém o ponto mais alto do
indianismo romântico seria atingido por Antônio Gonçalves Dias, que em 1846 estampa
seu ‘Primeiros cantos’. Aquela que deveria ser a sua maior realização literária, o poema
épico ‘Os Timbiras’ foi dedicado ao Imperador16. O índio retratado por Gonçalves Dias
não seria menos orgulhoso que o poeta. Esses heróis indígenas foram apresentados em
poemas como ‘Tabira’ e ‘I-Juca-Pirama’, como portadores de virtudes guerreiras
semelhantes às da nobreza européia, e seus inimigos que eram também indígenas, foram
igualmente representados com qualidades como honra e coragem viril. Conforme
observou Nísia Trindade Lima, Antônio Gonçalves Dias teve uma relevante atividade
como etnógrafo, tendo aliás realizado viagens exploratórias pela Amazônia, sendo que a
mais importante incursionou pelos rios Solimões, Madeira e Negro, tendo a duração de
dois anos. O valioso material então coletado seria exposto na exposição comemorativa
dos quarenta anos da Independência. As viagens ao interior e o conhecimento
etnográfico delas resultante serviam para apontar o índio como o símbolo da
nacionalidade, opinião que no entanto não representava, conforme veremos adiante, um
consenso entre os intelectuais do IHGB17.

15
SEVCENKO, Nicolau. O outono dos césares e a primavera da história. Revista USP, São Paulo, n.54,
jun.ago. 2002, p. 33. Sobre o indianismo e a idéia do índio retratado como um herói ver: GALVÃO,
Walnice Nogueira. Indianismo revisitado. In: ARINOS, Afonso et. Ali. Esboço de figura: homenagem a
Antonio Candido. São Paulo: Duas Cidades, 1979.
16
RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a idéia de Nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins
Forntes, 2004. Caberia uma observação em relação a certa demonstração de altivez da parte de Antonio
Gonçalves Dias. Conforme explica Ricupero, era ele um mestiço, filho de pai português e mãe cafuza, e
identificado com a situação do índio e do homem livre e pobre na sociedade escravista. Mesmo à margem
de uma sociedade de senhores ‘brancos’, Gonçalves Dias ousou dar mostras de não fazer questão de
receber a Ordem da Rosa, que lhe fora oferecida pelo Imperador, pelo motivo de não desejar ser
confundido com negreiros e tendeiros.
17
Maria Isaura Pereira de Queiroz apud. Lima. In: Um sertão chamado Brasil: intelectuais e
representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
141

Em 1856, Gonçalves de Magalhães publicava ‘A Confederação dos tamoios’18.


Aliados dos huguenotes franceses esses índios acabaram vencidos, mas em
consequência desse embate foi fundada a cidade do Rio de Janeiro, o que vinculava o
“projeto literário de Magalhães com o projeto político do Segundo Reinado”19. Crítico
de Magalhães, José de Alencar detratou essa obra, ao mesmo tempo que retirou da
polêmica sustentada nos jornais os temas em torno dos quais construiu um dos seus
mais importantes romances: ‘O Guarani’20.
A procura para o entendimento das questões que envolvem a nação e sua história
– a qual os homens do IHGB procuraram soldar em um passado remoto sob o território
da ex-Colônia sob o vínculo da civilização européia – nos faz debruçar inicialmente
sobre o projeto de dominação criado pelas nascentes elites imperiais, que à época, a
grosso modo, confunde-se com o programa dos interesses ‘saquaremas’. Na
continuidade desse capítulo tentaremos agregar algumas contribuições provenientes do
estudo de um tipo de historiografia que José Honório Rodrigues classificou como de
“cunho monarquista”. Visitaremos então a monografia de Karl Friedrich Philip Von
Martius (1794-1868), um naturalista bávaro conhecedor do Brasil, e que, sócio do

18
Para uma análise detalhada dessa poesia e os mecanismos de invenção histórica que a animaram ver:
PUNTONI, Pedro. A confederação dos Tamoyos de Gonçalves de Magalhães. Novos Estudos CEBRAP.
São Paulo, n. 45, jul. 1996, p. 119-130.
19
RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a idéia de Nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins
Forntes, 2004, p. 160.
20
Conforme explica Ricupero, a divergência entre Gonçalves de Magalhães e José de Alencar residiria na
opinião desse escritor cearense de que para que viesse a existir uma literatura nacional não bastaria tratar
de temas brasileiros, conforme ocorreu na Confederação dos Tamoios, mas de encontrar a forma literária
que melhor expressasse a experiência da sociedade da qual provém o autor. Ainda de acordo com
Ricupero, o principal feito de Alencar consistiu em criar um mito de origem para o Brasil e para os
brasileiros. Afinal, Iracema é o nome da personagem central de um dos seus mais importantes romances,
e conforme notara Afrânio Peixoto, era um anagrama feito a partir da palavra América. De acordo com
Antonio Candido os primeiros românticos principiaram na revista Niterói (1836), consolidaram-se na
Minerva Brasiliense (1843) e despediram-se na Guanabara (1849-1855), porém apesar de continuarem
produzindo após, acabaram perdendo terreno enquanto grupo. Candido os classificou como uma ‘geração
vacilante’, denominação que Ricupero considerou apropriada. Antonio Candido reputou José de Alencar
como tendo sido o único escritor da literatura brasileira a criar um mito heróico: o de Peri. Além da
polêmica com Gonçalves de Magalhães – provocada por José de Alencar na sua juventude, como jovem
editor do Diário do Rio de Janeiro – o autor de ‘O Guarani’ enfrentaria outra no ano de 1875, dessa vez
tendo Joaquim Nabuco como oponente. Dessa vez no entanto, seriam o negro – escravo ou liberto – e o
papel a ser ocupado pela cultura africana na sociedade brasileira o foco das discussões. Assim, enquanto
Nabuco considerava a escravidão uma linha negra a limitar e comprometer a própria civilização no Brasil,
Alencar em suas ‘Cartas de Erasmo’ julgaria a escravidão um fato social necessário ao considerar que a
emancipação prematura dos escravos colocaria em risco a agricultura e a estabilidade política do Império.
VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São
Paulo: Companhia das Letras, 1991; RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a idéia de Nação no Brasil
(1830-1870). São Paulo: Martins Forntes, 2004; e, CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura
Brasileira: momentos decisivos. 11.ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007.
142

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tornou-se vencedor do concurso estabelecido


por esse sodalício com vistas à forma de escrever a História do Brasil.
Logo após, o compromisso passa a ser com Francisco Adolfo de Varnhagen
(1816-1878), e com a mais famosa de suas obras, a ‘História Geral do Brasil’. Os
alentados tomos da lavra do visconde de Porto Seguro não receberam junto ao IHGB a
esperada acolhida, conforme era a pretensão do seu autor. A obra porém, por expressar
os anseios da elite do Império, acabou sendo incorporada – ainda que por vias tortas –
ao roteiro de leituras dos brasileiros cultos da época. Nesse sentido, visitar essa obra de
Varnhagen representa para o nosso estudo a compreensão dos conceitos de nação,
território e civilização conforme cristalizados na mentalidade da época, os quais
conforme veremos, continuaram presentes na imaginação histórica daqueles que
laboravam no campo de Clio.
Uma espécie de ‘leitura em segunda mão’ de Varnhagen começava ainda nos
bancos escolares do Imperial Colégio de Pedro II, onde o romancista Joaquim Manuel
de Macedo, regente das aulas de História do Brasil, preparara as ‘Lições de História do
Brasil’, que conforme veremos, acabou tendo uma longa vida, ao ser adotada nas
escolas primárias, com sucessivas edições, que até onde sabemos, chegaram pelo menos
ao ano de 1922. Foi assim que as ‘Lições’ estampadas por Macedo na forma de livros
didáticos ajudaram a formar a consciência histórica dos brasileiros que freqüentaram os
estabelecimentos escolares da segunda metade do século XIX, às duas primeiras
décadas do século XX. A consciência histórica apresenta-se como a suma das operações
mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal do
mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente sua vida
prática no tempo, no que constitui-se em trabalho intelectual visando tornar suas
intenções de agir conformes com a experiência do tempo, com o estabelecimento de
intenções e determinação de objetivos.
Dessa forma, a narrativa histórica torna-se o instrumento onde as tais operações
mentais constitutivas da consciência histórica são sintetizadas em uma unidade
estrutural. Com efeito, a narrativa histórica passa a designar o resultado intelectual
mediante o qual e no qual a consciência histórica se forma, e por conseguinte,
fundamenta decisivamente todo pensamento histórico e todo conhecimento histórico
científico21.

21
Acerca da constituição do pensamento histórico na vida prática, veja-se RUSEN, Jörn. Razão histórica:
teoria da história (os fundamentos da ciência histórica). Brasília: UNB, 2001.
143

A montagem da estrutura de poder do Império do Brasil foi estudada de forma


magistral pelo historiador Ilmar Rohloff de Mattos, em seu livro ‘O tempo saquarema:
a formação do Estado imperial’. Mattos cunhou uma metáfora de nome curioso para a
forma de inserção econômica do Brasil na economia mundo. Trata-se da ‘moeda
colonial’, cujas faces na época colonial seriam, os interesses da metrópole, e os
interesses dos colonos.
Com a independência tornava-se necessário recunhar essa moeda, entendida
como a garantia da reprodução das relações do recén instituído Império com o mundo
exterior, sob a égide do capital mercantil e nos acordes da Coroa, propiciadora de uma
espécie de meio de cultura capaz de integrar os interesses dos negócios e da política
dentro dos marcos considerados seguros da civilização. Dessa forma, a partir de 1837
data que marca a renúncia do Regente Feijó, iniciava-se o período do regresso, uma
facção conservadora que se mostrou capaz de articular essa restauração, ao modificar o
modelo de produção mercantil. A ordem passava a ser um valor, sendo a estabilidade
um discurso conservador de manutenção do poder que acabou sendo imposto aos
liberais, ou luzias22.
Ilmar Rohrloff de Mattos (1989 e 1990) caracterizou a direção ‘saquarema’
como uma determinação de parâmetros políticos, intelectuais e morais que teriam sido
responsáveis pela ordem imperial23. Os saquaremas gravitavam ao redor das idéias de
Bernardo Pereira de Vasconcellos, compondo o núcleo ‘saquarema’ original, homens
como Rodrigues Torres, Paulino José Soares de Sousa e Eusébio de Queirós, os quais
contavam com o apoio fundamental de Honório Hermeto Carneiro Leão e José da Costa
Carvalho. De acordo com Mattos (1989), a este grupo aderiram de forma progressiva,
todos os demais conservadores, e quase todos os ‘luzias’, por terem os saquaremas
conseguido aliar “à proposta de restauração as transformações de classe, ainda que,
para tanto, muitas vezes tivessem sido obrigados a contrariar interesses poderosos.” 24
Para Ilmar R. Mattos, a classe senhorial se constituiu para que o Estado Imperial
pudesse ser construído. A interface entre esses dois processos foi realizada pela
intervenção consciente e deliberada de uma força social a qual se forjou a si própria: os
‘Saquaremas’. Esse grupo afagava como seus objetivos fundamentais, a manutenção da
ordem e a difusão da civilização branca e européia.

22
O tempo saquarema: a formação do Estado Imperial. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1990.
23
MATTOS, Ilmar Rohrloff de. Do Império à República. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v.2,n.4,
1989, p. 163-171.
24
Idem, ibidem, p. 168.
144

Manter a ordem naquele momento de construção e afirmação do poder


monárquico implicava muito mais que prevenir ou reprimir os crimes previstos no
Código Criminal de 1830. Assim, a defesa da ordem implicava reprimir levantes da
malta urbana, combater revoltas escravas, destruir quilombos, por fim a disputas pela
posse da terra, manter a integridade territorial do Império e conhecer melhor aqueles
que afinal eram o súditos da Coroa, mantendo naturalmente o cuidado de ter sob as
vistas, um grupo denominado como ‘classes perigosas’: subversivos de toda espécie,
vadios e desordeiros. Importante também era munir-se de um conjunto de instituições
de cunho político, administrativo e judiciário, não apenas forjando, mas em algumas
circunstâncias copiando e velando pelo correto desempenho desses aparelhos estatais.
Manter a ordem efetivamente, deveria então significar naquele momento,
cotejamos até aqui, as idéias defendidas por Mattos (1989),
“garantir a continuidade das relações entre senhores e escravos, da casa-
grande e da senzala, dos sobrados e dos mocambos; do monopólio da terra
pela minoria privilegiada que deitava suas raízes na Colônia e no tempo da
corte portuguesa no Rio de Janeiro; das condições que geravam a massa de
homens livres e pobres, reforçadores do monopólio da violência pelos
senhores rurais ou agregados às famílias urbanas.”25

Nos marcos da direção ‘saquarema’, deveria ficar garantida a preponderância


das regiões mercantis-escravistas, com prevalência da parte Sul do país. Essa lógica
utilitária da geografia saquarema deveria permitir que o Sul, ou seja, a região do café
fosse mantida durante todo o restante da fase imperial sob os olhos vigilantes do
soberano e dos seus prepostos, os políticos do Império que contavam com a Guarda
Nacional – então considerada “politicamente mais confiável” – que fora instituída por
inspiração dos ‘liberais do 7 de abril’ tendo Feijó à frente26.
Ilmar R. Mattos (1989) considerou como essencial naquele momento a garantia
da reprodução daquilo que seriam os três mundos do Império do Brasil, onde fossem
mantidas a hierarquia entre pessoas e coisas, valeria dizer os escravos, mas também
entre pessoas, entendidos aqui como povo (populus) e plebe, conhecidos o lugar a ser
ocupado por cada um, os quais passavam a ser definidos pelos nexos pessoais
construídos e mantidos, tanto pelos de ‘baixo’, quanto pelos de ‘cima’.
Pois conforme observou esse autor, a difusão da civilização colimada pela
direção Saquarema deveria,

25
Idem, ibidem, p. 167.
26
CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro:
Campus, 1980, p. 149.
145

“assegurar o primado da razão, o triunfo do progresso, a difusão do espírito


de associação, a formação do povo. Isto implicava, de um lado, romper os
limites da casa, quebrando em parte o poder dos ‘despotés’, de modo a
transformá-lo, no caso particular da região de agricultura mercantil-
escravista, de mero plantador escravista em elemento integrado num
‘universo mais amplo’, entendido como propiciador da sua continuidade
num quadro de crise da ordem escravista, embora numa situação nova.
Implicava, assim, integrá-lo nas instituições que o Império forjava, como a
Guarda Nacional, ou em fazê-lo participar das associações políticas que
procuravam estender os braços do partido representado pela coroa, de modo
a colocá-lo a par do encaminhamento das questões candentes que
assinalavam uma constituição, como aquelas referentes ao tráfico negreiro e
aos projetos de colonização estrangeira. Implicava, em suma, mantê-lo em
contato permanente com a corte, rompendo seu isolamento, quer por meio de
seus representantes políticos, quer por meio das folhas e pasquins, dos
romances e do teatro. Difundir a civilização implicava também, de outro
lado, garantir a adesão a uma ordem, que se alicerçava no nexo colonial e
na existência da escravidão, de um determinado conjunto de homens livres
que não derivavam diretamente dela, embora dela não deixassem de
depender: notários e subdelegados de polícia; pequenos comerciantes e
empregados públicos; clérigos e professores.”27

Caberia acrescer que Angela Alonso percebeu a legitimação do status quo


saquarema como delineada por três eixos principais, a saber: 1. O indianismo
romântico; 2. o liberalismo estamental; e, 3. O catolicismo hierárquico 28.
Entendemos poder tomar essas considerações como um confiável ponto de
partida, acrescendo a essas, por fecho, a ilustrada opinião de Bernardo Ricupero29, autor
que transita com habilidade entre a ciência política e a teoria literária. De acordo com
Ricupero, quando da fundação do IHGB, fora proclamada claramente, a função
subalterna da cultura em relação à política.
Nesse sentido, fazendo coro a Ricupero encontramos Nilo Odália, para quem os
problemas atinentes à formação de uma nação surgida dos escombros de um sistema
colonial fazem com que o agente tutelar não seja o povo, mas o Estado, que aliás não
seria apenas tutelar, mas também onipresente em sua ação e omissão. Partia-se então de
avaliações da situação encontrada pelos portugueses em sua chegada às terras
americanas, onde teriam encontrado um solo primitivamente ocupado por homens em
estado de barbárie, cuja incapacidade ficara revelada pelo fato de nunca terem se
constituído em nação. Uma visada sobre a população brasileira acusava essa ser
formada por três etnias, sendo que uma das quais, a negra, não teria nenhuma relação,
nem com a terra, nem com as outras duas etnias. Quando muito, dessa nação, pode-se

27
MATTOS, Ilmar Rohloff de. Do Império à República. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v.2,n.4, 1989,
p.167-168. (grifos do autor).
28
Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
29
O Romantismo e a idéia de Nação no Brasil: 1830-1870. São Paulo:Martins Fontes, 2004.
146

dizer possuir um sentimento nacional, que estaria relacionado mais com um sentimento
de propriedade da terra, que fora conquistada e reconquistada, do que de um sentimento
comum, no qual valores comuns são compartilhados no caminho de transformar a massa
heterogênea em povo, e o simples território em uma nação.
Na tarefa de ‘fazer a nação’, ou ainda, de criar um projeto de nação, ao
intelectual, e em especial, ao historiador, passa a caber o papel de suprir a ação política
com os elementos teóricos e históricos necessários à consecução dos ideais
estabelecidos no projeto de fazer a nação. Tal nação, Conforme asseverou Nilo Odália,
tem de ser compreendida, desde o seu início como uma construção histórica, em sua
essência, devendo ser sabido quais ações são possíveis e desejáveis em determinada
situação histórica, bem como em que fatores, sejam esses presentes ou passados,
conjunturais ou estruturais, nacionais ou internacionais, devem repousar os alicerces da
construção nacional. Assim, a nação ‘construída’ se afigura ao autor como “a resultante
natural tanto de uma ação pragmática como de uma interpretação pragmática da
história”.30
Parece ficar claro então que uma jovem nação não nasce espontaneamente –
como pretendiam os românticos – mas é parte da tarefa do historiador, que lhe
acrescenta ou extirpa, em artesanal trabalho, os elementos esparsos da nacionalidade em
processo de formação. Contudo, a idealidade dessa nova nação acaba circunscrita às
condições específicas da experiência histórica da sociedade nascida do sistema colonial,
experiência que “é avaliada, limitada e corrigida, no interior do projeto em gestação,
em razão da experiência histórica mais ampla e mais absorvente da civilização
ocidental.”31
Contando com populações diferentes, com culturas diferentes e em estágios
diferentes de evolução, a história da colônia é também a história da constatação de uma
superioridade que vai além da simples conquista de uma etnia sobre a outra. A história
da colônia nessa situação, se avizinha da narrativa da constatação da superioridade de
uma cultura e de uma civilização, onde as formas primitivas de civilização, vencidas,
passam a ser interpretadas como pertencendo ao estado de barbárie.
Assim, o conflito entre brancos, negros e índios, assume, além da sua natureza
racial, aspectos de um conflito entre a civilização e a barbárie, da ordem contra a

30
As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. São
Paulo: Unesp, 1997, p. 45.
31
Idem, ibidem, p. 45.
147

desordem, da unidade contra a dispersão, ou ainda, da lei contra o desregramento. Nesse


contexto, a escolha sobre o que deve ser a nova nação,
“acaba por parecer como a natural decorrência de uma situação histórica
em que a oposição entre culturas e civilizações diferentes acaba por impor
um vencedor – a cultura e a civilização dos brancos, que traz um arsenal de
armas não só as de natureza guerreira, como também outras, mais efetivas e
sofisticadas, vistas como atributos de uma civilização superior. Elas se
expressam naqueles traços que são interpretados como os valores máximos
da civilização superior: lei, ordem, autoridade e religião.”32

Conforme observou José Carlos Reis, nos primeiros anos de sua fundação, o
Império brasileiro, que lembramos, já conhecera uma abdicação em 1831, precisava
muito da história e dos historiadores. O seu futuro segundo imperador precisava dos
historiadores do IHGB para legitimar-se no poder. Talvez seja esse o momento para
tecermos algumas considerações sobre a historiografia surgida naquele tempo, no
interior do Instituto Histórico: a historiografia monarquista.
Em momento anterior desse trabalho já nos referimos às características da
historiografia de caráter conservador. De acordo com José Honório Rodrigues 33, para
caracterizarmos a historiografia monarquista bastaria um leve acento no caráter da
historiografia conservadora, ou seja, um breve ajuste de foco, onde encontramos: 1. a
justificativa do poder das classes dominantes aparecendo aliada à realeza; 2. o
reconhecimento da continuidade histórica – de Ourique ao Ipiranga – onde ao mesmo
tempo que se condena todo o inconformismo e rebeldia, elogia-se a resignação das
classes dominadas; e, 3. essa pretendida continuidade histórica acaba por reforçar a tese
na qual a independência política acaba surgindo como uma doação da dinastia.
Com efeito, para um político do Império, como Bernardo Pereira de
Vasconcelos, o pensamento conservador-monarquista acerca do mundo não seria o
movimento, mas a resistência às mudanças e transformações que se avizinhavam
sobretudo em rebeliões. Naquele momento fundador, onde podemos entrelaçar a
construção do Estado e a invenção da nação, a monarquia hereditária, onde logicamente
iremos encontrar aqueles interesses que seriam próprios do monarca e sua família,
aparecia como irmanada aos interesses nacionais. Daí, o pedido formulado por Januário
da Cunha Barbosa ao imperador-menino, D. Pedro de Alcântara, de tomar o Instituto

32
Idem, ibidem, p. 46. O autor chama atenção para os parâmetros da história a ser criada, que deveria
nascer da nossa história colonial, sendo nela explicitados, devendo ser observado contudo que suas
origens encontram-se na Europa – com tudo o que significa em termos de cultura e civilização, modelo ao
qual se apega a nova nação – modelo o qual permanece como o paradigma a ser imitado.
33
História da História do Brasil. V.2,t.1 (a historiografia conservadora). São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1988.
148

sob sua imediata proteção. E como bem afirmou Lucia Maria Paschoal Guimarães 34, o
IHGB apesar de nascer privado, fora desde o início portador de cunho oficioso. Basta
dizer que de instalações emprestadas na Sociedade Auxiliadora para o progresso da
indústria, o Instituto logo ocuparia seu lugar junto ao Paço Imperial.
Para que houvesse coerência no modelo que deveria conferir a necessária
articulação entre Estado, Nação e sociedade deveria se considerar que a nação
monarquista teria nascido de um Estado colonial, logo com a independência, tornado
representativo. José Honório Rodrigues35 explica que os princípios monárquicos foram
mais debatidos na prática brasileira parlamentar que nos textos dos publicistas. De
acordo com esse autor, dos atos do imperador e da imputação ou não das
responsabilidades ao poder moderador como chave da organização política nacional,
tudo em minúcias era discutido.
O governo monárquico representativo então fazia-se representante dos interesses
da sociedade, quando na realidade, representava os interesses de uma classe. Para
acrescer, cabe o entendimento que a imutabilidade das instituições é um princípio
monárquico, nem sempre declarado, mas sempre buscado e desejado.
Daí concluir José Honório Rodrigues que a história resultante de tal contexto,
“apresenta uma visão personalista, intitucional maculada, não popular,
continuísta. Ela não parte do povo, apesar de reconhecer que o imperador é
imperador por aclamação popular, antes que o povo submisso, baseia-se
numa forma de produção latifundiária, escravocrata e de monocultura”.36

Surgira no IHGB a idéia seminal de produzir uma periodização para a História


do Brasil. Assim, Januário da Cunha Barbosa, a primeiro de dezembro de 1838 tomava
a iniciativa de propor algumas épocas para aqueles que viessem a se aventurar na escrita
da ‘história pátria’. Entre essa data e o dia 14 de novembro de 1840, quando ocorreu a
51ª sessão do Instituto Histórico, vieram à luz propostas diversas partidas inicialmente
do brigadeiro Cunha Matos e de Silvestre Rabelo.
Cabe informar que a proposta escrita por Cunha Matos, já falecido por ocasião
da sexta sessão, ocorrida em 2 de março de 1839, acabou influenciando na divisão da
História do Brasil em três períodos. A monografia do brigadeiro Cunha Matos recebera
o título de “Dissertação acerca do systema de escrever a historia antiga e moderna do

34
O “Tribunal da posteridade”. In: PRADO, Maria Emília (Org.). O Estado como vocação: idéias e
práticas políticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Acess, 1999.
35
História da História do Brasil. V.2,t.1 (a historiografia conservadora). São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1988,p.36 e seguintes.
36
História da História do Brasil. V.2,t.1 (a historiografia conservadora), p.40.
149

Imperio do Brazil”. Afirmou José Honório Rodrigues que esse texto, que somente veio
a lume em 1863, quando finalmente foi publicado no volume XXVI da Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, teria sofrido ligeiras modificações37.
Tendo noticiado sobre as várias fontes da História do Brasil, Cunha Matos
acabava por propor três épocas, a saber: a primeira, referente aos autóctones; a segunda,
voltada à compreensão do descobrimento pelos portugueses e a administração colonial;
e, a terceira, a qual abrangeria todos os acontecimentos nacionais ocorridos desde a
independência. A pretensão de Cunha Matos, considerada em termos gerais, era que a
partir desse plano viesse a ser escrita uma história filosófica do Brasil 38.
O interesse em se preparar as diretrizes para uma História do Brasil criara um
envolvimento pessoal dos homens do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a
ponto do seu primeiro-secretário, o Cônego Januário da Cunha Barbosa oferecer, com
recursos pessoais, cem mil-réis a título de prêmio para quem entregasse ao Instituto o
plano para a escrita da História Antiga e moderna do Brasil, compreendidas as partes
política, civil, eclesiástica e literária39.
A proposta foi tão bem recebida que o grêmio, em deliberação, resolveu acrescer
mais cem mil-réis ao prêmio inicial. É fundamental que entendamos que a proposta
partia de uma instituição semi-oficial, além de ser naquele momento e por muitas
décadas adiante, a mais autorizada ao tratamento da escrita acerca dos tempos
pretéritos40.
Não obstante, a proposta deveria fornecer as diretrizes para a escrita da História
coerente aos parâmetros ideológicos defendidos pelos homens do Instituto. Era por
assim dizer, um momento de definições cujas conseqüências, conforme veremos, iriam
impactar a forma de pensar a história do Brasil ao longo de todo o século XIX e décadas
iniciais do século XX. Podemos considerar que se tratava de um momento decisivo.

37
RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil: introdução metodológica. 4.ed.São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1978.
38
A respeito do história filosófica como um dos três métodos de se fazer a história, ver HEGEL, Georg
Wilhelm Friedrich. Os três modos de escrever a História. In: A razão na História: uma introdução geral à
Filosofia da História. 2.ed.São Paulo:Centauro, 2001.
39
RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil: introdução metodológica. 4.ed.São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1978.
40
Conforme registrou Lucia Maria Paschoal Guimarães, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
visto por diversos prismas, colecionou ao longo do seu tempo de vida, alguns substitutivos ao seu nome,
tais como “Casa da Memória Nacional”, “Reduto intelectual”, “tipo de associação sábia”, “herdeiro
muito próximo da tradição iluminista” ou “guardião da história oficial”. Debaixo da imediata proteção
imperial: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). São Paulo: Annablume, 2011, p. 21. A
primeira edição é de 1995.
150

Dois autores se interessaram pela tarefa. Henrique Júlio de Wallenstein e Karl


Friedrich Philip Von Martius. Suas propostas foram formuladas sob perspectivas
diferentes, e os resultados como conseqüência, apresentaram-se axialmente divergentes.
Wallenstein considerava como acertado seguir entre outros a Tito Lívio, ou seja, expor a
História em décadas, com os acontecimentos narrados dentro de períodos certos, e
privilegiando a história política. Conforme José Honório Rodrigues (1978) nos explica,
as histórias civil, eclesiástica e literária seriam tratadas em observações ao texto.
A proposta vencedora acabou sendo a formulada pelo naturalista bávaro Karl
Friedrich Philip Von Martius (1794-1868). Com seu plano de escrita da história do
Brasil não apresentava Martius nenhuma tentativa ou esboço de periodização, mas
expunha idéias gerais sobre o problema da história brasileira.
Assim entendeu J.H.Rodrigues (1978) que o ensaio filosófico-metodológico
desenvolvido por Karl F.F. Von Martius exprimiu a concepção conservadora
monarquista. Em ‘Como se deve escrever a História do Brasil’41, Von Martius defendia
que uma obra histórica sobre o Brasil deveria despertar nos leitores brasileiros, o amor
da pátria, além de outras virtudes, todas elas cívicas como a coragem, a fidelidade, a
constância e a prudência.
Em sua percepção Von Martius entendera que a população brasileira mantinha
ainda idéias políticas consideradas imaturas para quem o livro a ser escrito deveria ser
calculado.
A tarefa inicial seria convencer acerca da inexequibilidade dos projetos utópicos,
diga-se de passagem, republicanos. Deveriam ainda, ser evitadas discussões licenciosas
sobre os negócios públicos, e reforçada a necessidade de sustentar uma monarquia, pois
o país possuía um grande número de escravos. Uma monarquia constitucional
combinava muito bem, na visão de Von Martius, em um país como o Brasil, tão vasto e
rico em fontes variadíssimas. O historiador dedicado a escrever a História do Brasil
prestaria, caso assim procedesse, um verdadeiro serviço à sua pátria, sob os parâmetros
usuais de um autor monárquico-constitucional. Plano profundamente pensado, conforme
opinião de José Honório Rodrigues, o texto logrou aprovação após parecer de Francisco
Freire Alemão, lavrado para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
A monografia preparada por Von Martius, muito comentada, mas ainda pouco
estudada no que tange à sua influência na escrita da História dos anos subseqüentes ao

41
Von MARTIUS, Karl Friedrich Philip. Como se deve escrever a Historia do Brazil. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro. v.6, n.21. abr. 1844, pp.381-403.
151

seu aparecimento, merecerá de nossa parte acurada atenção. Ela parece ter influenciado,
salvo a questão da periodização, a Francisco Adolfo Varnhagen, o historiador de cuja
autoria é o monumento da historiografia brasileira do século XIX: a ‘História Geral do
Brasil’.
O naturalista Karl F.P. Von Martius inicia sua dissertação fazendo considerações
de caráter geral, concitando aos que se propusessem a escrever a História do Brasil que
não perdessem de vista os fatores de natureza muito diversas que concorreram ao longo
do tempo, e que convergindo de um modo particular, resultaram na formação dos
brasileiros42.
Von Martius chamava atenção para a mescla de raças havida no Brasil, a qual
resultara nas mudanças que se encontrava na população brasileira. Martius especificava
então os três grandes troncos formadores do homem brasileiro, a saber, as matrizes
indígena, lusa e negro africana, que na fala do autor, se traduzem respectivamente nas
raças ‘cor de cobre ou americana’; branca ou caucasiana; e, preta ou etiópica.
Por conta desses fatores, a história brasileira assumiria no entendimento de Von
Martius, “um cunho muito particular”43. O naturalista bávaro na sua tentativa de
apreender um movimento histórico característico e particular refere-se a uma ‘indole
inata’ das raças humanas – ‘tão diferentes’44 – que havia formado um ‘povo novo’,
ainda em nascimento, que continha por caráter intrínseco das suas particularidades
físicas e morais um ‘motor especial’, de onde o português, na qualidade de
“descobridor, conquistador e Senhor”, teria influído de forma poderosa e essencial
nesse motor, por suas garantias morais e físicas para que se pudesse formar um reino
independente.
Porém, logo esclarece Martius, era certo que,
“seria um grande erro para com todos os princípios da Historiografia
pragmática, se se desprezassem as forças dos indígenas e dos negros
importados, forças estas que igualmente concorreram para o
desenvolvimento físico, moral e civil da totalidade da
população...[pois]...tanto os indígenas, como os negros, reagiram sobre a
raça predominante.” 45

42
Martius concitava aqueles que fossem escrever a História do Brasil que ‘encantassem’ seus leitores,
mas de forma desastrosa, conforme anotado por Fernando Antonio Novais, da história havida entre
brancos portugueses, índios americanos e negros africanos deveria ser obliterada toda a forma de
dominação, exploração e conflito. NOVAIS, Fernando Antonio. Capistrano de Abreu na historiografia
brasileira. Revista da cátedra Jaime Cortesão. São Paulo, n. 1 (nova série), 1. sem. 2006, p. 229-233.
43
Como se deve escrever a História do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio
de Janeiro. V.6, n.21, abr. 1844, p.382.
44
Ibidem, p. 382.
45
Ibidem, p.382.
152

Ora, Von Martius não deixava dúvidas para quem estava escrevendo. Nesse
ponto talvez caibam maiores esclarecimentos acerca da história pragmática. Ela foi
classificada por W.F.Hegel como uma das subdivisões da história reflexiva. Reflexões
pragmáticas para Hegel pertenceriam tanto ao presente que o filósofo as considerava
como sendo histórias do passado reanimadas para a vida atual. As reflexões deveriam
então ser cheias de vida e prenhes de interesse, devendo possuir aquilo que dá à História
o motivo para ser escrita46.
Dessa forma, podemos entender que os leitores a quem Martius destinou a sua
obra são os eruditos de Clio, ou seja, aqueles eleitos a serem os apascentadores da
documentação a ser coligida e examinada, ou ainda os cultores de uma historiografia
hegelianamente filosófica, os quais devem, a priori, possuir uma visão necessariamente
holística para não menoscabar a concorrência das duas ‘raças inferiores’. A doutrina dos
tipos humanos permanentes, que segundo Michael Banton tinha conquistado na
primeira metade do século XIX, por sua concepção simples, a atenção popular, datava
da metade do século47.
Ora, se raça e classe pareciam confundidos no discurso do establismenth
saquarema, as duas ‘raças inferiores’ às quais se referia o sábio naturalista bávaro,

46
Manoel Luiz Salgado Guimarães inscreve a obra de Martius em uma cultura histórica oitocentista que
seria sinônimo de civilização, onde a história aparece enquanto discurso cronologicamente organizado e
hierarquizado dos fatos do passado. Martius seria um rebento do iluminismo abeberando-se nas águas de
pensadores como Voltaire, d’Holbach e Turgot, onde estariam presentes as temáticas das viagens, das
experiências colonizadoras, ou ainda, da diversidade das civilizações. História e natureza em von Martius.
História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v.7, n.2, jul.-out. 2000, p. 391-413.Para o
historiador Pedro Moacyr Campos, Martius certamente conheceria a obra de Augustin Thierry e teria sido
por esta influenciado, bem como pela chamada escola de historiadores liberais franceses. Um naturalista e
a História. Revista de História, São Paulo. Universidade de São Paulo, n. 87, 1971, p. 241-248. Por sua
vez, Arno Wheling propõe que no jargão setecentista, a expressão historiografia filosófica poderia estar
vinculada tanto a Kant, quanto a Hegel. A concepção histórica de Von Martius. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 155, v.385, out.-dez.1994, p. 721-731.
47
A Ideia de raça. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 14. A chamada teoria da tipologia racial data de 1850,
quando foi publicada nos EUA, o livro The Races of Men, de Robert Knox. Para esse autor, haveria um
número finito de raças, e a natureza das raças determinava as relações entre elas. Conforme essa natureza,
pretos e brancos seriam o que havia de mais distanciado entre os seres humanos. Na condição de
naturalista não poderia no entanto ser estranho a Von Martius a classificação dos tipos humanos
defendida pelo botânico sueco Lineu. Esse naturalista do século XVIII estipulara a primeira classificação
racial das plantas, e acabou sendo também o responsável, segundo José D’Assunção Barros, por uma
primeira classificação que dividia a humanidade em quatro raças: americana, asiática, africana e européia.
A esta, Lineu acrescentara valores. Então, nessa classificação ‘botânica’ da espécie humana, são
observados os humores que reconhecemos como ‘aristotélicos’, no que se considerava então os
americanos (indígenas) como coléricos, os asiáticos como melancólicos, os negros como flegmáticos e os
europeus (brancos) como sanguíneos. Por essa classificação, que segundo Barros, logo seriam ampliadas
por outros autores, “...os brancos eram os depositários da engenhosidade e inventividade ( portanto a
parte da humanidade capaz de produzir ciência, progresso, transformação e evolução), ao mesmo tempo
em que, amantes da legalidade e distanciados do preconceito, eram os condutores naturais da
civilização.” In:BARROS, José D’Assunção. A construção social da Cor. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 76.
153

estariam conforme as previsões da época, por diversos motivos, em vias de extinção,


fosse pelo extermínio físico, fosse pelo iminente término do tráfico escravista.
Desta feita, Martius busca amparo para sua tese, na formação do povo inglês,
considerado por ele – e pela maioria da elite brasileira de então – como dotado de
energia, firmeza e perseverança, traços de uma indiscutível estrutura civilizacional. Sob
esse aspecto, o povo inglês seria uma mescla de povos célticos, dinamarqueses,
romanos, anglo-saxões e normandos. Ora, assim observando, o ingleses seriam, eles
mesmos, mestiços! Visto por esse prisma, a mestiçagem poderia parecer à visão das
nossas elites, algo mais suportável. E esse era um problema a ser solucionado com a
consolidação do jovem Estado-nação.
A escrita de Von Martius adquire as cores de um otimismo racial, de uma
organicidade benfazeja, permitindo ao autor realizar uma espécie de exercício teórico de
branqueamento racial avant la lletre, o que equivaleria dizer, algumas décadas antes do
aparecimento dos darwinistas sociais, pois considera que,
“...o sangue português, em um poderoso rio deverá absorver os pequenos
confluentes da raças índia e etiópica...(...)...[ haja visto que na] classe baixa
tem lugar esta mescla, e como em todos os países se formam as classes
superiores dos elementos das inferiores, e por meio delas se vivificam e
fortalecem, assim se prepara atualmente na última classe da população
brasileira essa mescla de raças, que daí a séculos influirá poderosamente
sobre as classes elevadas, e lhes comunicará aquela atividade histórica para
a qual o Império do Brasil é chamado”. 48

Face a esta forma de pensar do autor, Bernardo Ricupero considerou que o


naturalista bávaro,
“pode ser visto como o iniciador de toda uma linha de interpretação do
Brasil, provavelmente a de maior êxito, tendo mesmo, de filosofia, se
convertido em senso comum. Do romantismo a Gilberto Freyre, passando
aos trancos e barrancos, pelo evolucionismo e o positivismo, acreditou-se
que o Brasil era essencialmente um país mestiço; o que foi visto por alguns
como vantagem e por outros como defeito. Martius merece, portanto, o
duvidoso título de avô da ideologia da democracia racial no Brasil. Não é
por acaso que terá tanto êxito o vocabulário político que o vencedor do
concurso do Instituto Histórico inaugura. Martius, ao estudar ‘um povo
novo’ como o brasileiro, tem em mente principalmente que ‘a história é uma
mestra’ que deve despertar em seus leitores ‘virtudes cívicas’” 49

Von Martius continuava a apelar para a história filosófica, então considerada o


nível mais elevado das três maneiras de considerar a História em Hegel, mas,

48
Como se deve escrever a História do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio
de Janeiro. V.6, n.21, abr. 1844, p.383.
49
O Romantismo e a ideia de Nação no Brasil (1830 – 1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.125. (
grifos do autor).
154

reforçando a idéia de uma escravidão benigna, que teria sido diferenciada no Brasil,
onde tanto indígenas quanto negros tinham interferido mais que nos outros Estados da
América, nos destinos da antiga Colônia, bem como para a formação da nacionalidade.
Doravante dependeria, no entendimento de Martius, que o historiador
conseguisse expor com leveza e calor as razões contidas nas demandas de cada uma
daquelas raças ‘desamparadas’, do que iria ser exigida a imparcialidade, e mesmo um
sentido filantrópico e moralizante no ato de escrever.
O naturalista bávaro apontava para as dificuldades da empreitada, a começar
pela história dos índios na parte que lhes era cabida na História do Brasil. E haviam
mais perguntas que respostas, propriamente. Não se sabia ao certo da origem dos
indígenas e achava-se que eles fossem povos degenerados, ou seja, a face da ruína de
um povo que entrara em estado de dissolução moral e civil50, ideia contra a qual, Sílvio
Romero iria utilizar da sua pena quando da lavra da História da Literatura Brasileira, em
188851.
Cabia desentravar ainda a influência, recebida pelos índios, da civilização
européia, afinal de contas deviam ser conhecidos os traços de aculturação acumulados
ao longo de trezentos anos de contato com as leis e o comércio dos brancos.
Martius não perde a oportunidade de tecer críticas ao mito do bom selvagem
rousseauniano, no que o autor firmou-se em proposições nas quais os índios brasileiros

50
Manoel Luis Salgado Guimarães relacionou a visita de von Martius ao Brasil, entre os anos de 1817 e
1820 com a construção da história nacional, ao longo do século XIX. As viagens como as realizadas por
Martius, em companhia de von Spix inscreviam-se em um momento distinto da história européia,
definido argutamente por Norbert Elias como processo civilizador. Ao uso da força, da espada, deveria
naquele momento ser utilizado o poder do saber europeu sobre os outros povos, apoiado na letra e na
palavra que os define e cataloga. As viagens científicas haviam se tornado então, uma questão de Estado.
Entendidas como uma sociedade ‘sem história’, para Martius o estudo das sociedades indígenas deveria
ser feito por meio de recursos à botânica, a qual deveria servir como chave da temporalidade dessas
sociedades. Foi utilizada então a nomenclatura botânica em uso pelos tupis para concluir que aqueles
povos não se encontravam em seu estado original de desenvolvimento. Alegava Martius que certas
plantas somente tiveram seu uso e propriedades reconhecidos quando esses povos já se encontravam em
seu estado atual de decadência. História e natureza em von Martius. História, Ciências, Saúde –
Manguinhos. Rio de Janeiro, v.7, n.2, jul.-out. 2000, p. 391-413.
51
Contra as críticas negativas e contundentes de Sílvio Romero posicionou-se Arno Wehling. Romero
chamara a Martius de “obreiro da dissolução” do Brasil, quando o naturalista bávaro apenas chamara
atenção para as diferenças regionais. Além disso, a chamada ‘mistura de raças’, vista com positividade
por Von Martius, irritara ao polêmico Sílvio Romero, fundamentado na antropologia raciológica e racista
de Gobineau, Amon e Vacher de Lapouges, para os quais a miscigenação geraria apenas “bastardos
infecundos”. De acordo com Wheling, Sílvio Romero via nas idéias históricas de von Martius, três erros:
“a afirmação do reduzido número de indígenas, estes como últimos elementos da queda de uma grande
cultura e a força das instituições municipais. Via também «três lacunas de exposição»: a divisão do País
em «zonas históricas», os caminhos para o interior e a contribuição das diferentes raças para a
formação do Brasil.” Apesar dessas críticas, fazemos coro a Wheling, “Von Martius continuou referência
obrigatória”. A concepção histórica de von Martius. Revista do Instituto Histórico e Geografico
Brasileiro. Rio de Janeiro, n.155,v.385, out.-dez. 1994, p. 721-731.
155

não poderiam figurar na condição de estado primitivo do homem, mas como resíduo de
uma muito antiga civilização, no seu juízo, perdida para a História.
Daí a necessidade de cercar-se de cuidados na pesquisa. Uma análise
comparativa com os povos autóctones vizinhos, registros que poderiam estar contidos
na linguagem, de onde avultava a necessidade de produzir dicionários e gramáticas da
língua dos aborígenes. Apontava para as possibilidades de estudo da língua geral ou
tupi, falada outrora em vastíssima região do Brasil. Defendia ainda Martius que o estudo
dos cultos religiosos dos indígenas, tomados naquele momento, revelariam muito
daquilo que hoje chamamos de estrutura social, pelo conhecimento das relações do pajé,
curandeiro e chefe para a simbologia e tradições do direito entre os indígenas.
Autores como Manoel Luiz Salgado Guimarães52 e Lucia Maria Paschoal
Guimarães53 perceberam nessas demandas abertas por Von Martius a gênese de
mudanças importantes no seio do Instituto, tais como a levada a efeito a partir de 1849,
que desembocou tanto no alargamento das atividades daquele sodalício, como na
criação de campos de pesquisa para a arqueologia, a etnografia e a língua dos indígenas
do Brasil. Ora, tais medidas visavam abranger o estudo de povos sem escrita, que de
acordo com a concepção da época teriam que ser necessariamente, conforme vimos,
povos sem História. A isso, providencialmente tratou-se de substituir a SAIN como
apoio do Instituto, papel que a partir de 1851 passaria a caber pessoalmente ao
imperador.
Assim, ao lado das seções de História e de Geografia, criava-se uma terceira
destinada aos estudos de Arqueologia, Etnografia e línguas indígenas. O ano de 1851
assistiu ainda a mudança dos estatutos daquele grêmio.
Conforme afiançou Lúcia Maria Paschoal Guimarães, multiplicaram-se os
grupos de trabalho permanentes, com a introdução de comitês subsidiários nas áreas de
História e Geografia. As atividades de investigação de fontes, por sua vez, passaram
para a responsabilidade das comissões de revisão de manuscritos e de pesquisa de
documentos. Um comitê científico passou a tratar das admissões de novos sócios.
Modificaram-se, também, os critérios de ingresso, exigindo-se a comprovação de
produção intelectual, tanto para sócios efetivos, quanto para os correspondentes. Não

52
História e Nação no Brasil: 1838-1857. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011.
53
O tribunal da posteridade. In: PRADO, Maria Emília. O Estado como vocação: ideias e práticas
políticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Acess, 1999.
156

houve contudo a ampliação no número de vagas do quadro efetivo, e os destinos da


Academia ainda permaneceriam por um bom tempo, nas mãos do grupo de fundadores.
Voltando ao texto de Martius, quanto à parte cabida aos portugueses na História
do Brasil, o sábio bávaro já adiantara ser essa matriz, o ‘motor principal’ da obra de
construção erigida em solo americano. No entanto, o português transplantado para os
trópicos se representava em sua origem e essência a civilização européia, era certo que
adquiria aqui novos ares, novos hábitos. O meio hostil, e a extensão dos domínios
territoriais, bem como a distância do mando da Coroa lusitana fez do português na
América, o miliciano, o desbravador e o camareiro.
Nas câmaras municipais, desenfreados cidadãos, no dizer de Martius,
articulavam às liberdades da deliberação ao espírito de aventura. Estabelecido no Brasil,
o português assume nova roupagem e consorcia-se com o índio, à busca de riquezas
minerais e no alargamento – meio que impulsionado ao acaso – das posses do rei de
Portugal.
Quanto ao evento das avançadas meridionais, como futuramente seria chamado
o alargamento do território nacional, fazemos coro com o historiador Manoel Luiz
Salgado Guimarães, quanto ao espaço ocupado pelo assunto nas revistas do Instituto.
Mas os limites territoriais aparecem durante o Império como a resultante entre as
negociações entre as coroas portuguesa e espanhola ao longo do século XVIII, com
ênfase no papel desempenhado por diplomatas como Alexandre de Gusmão. Durante o
Império, eram a esses fatores que se acreditava dever, conforme numerosas publicações
do tema, as dimensões do território brasileiro.
Associava-se então a conquista do território, com a expansão da civilização. Os
pares conceituais contrários assimétricos54 como a civilização e a barbárie estavam
presentes, ressalta M.L.S.Guimarães, em todas as avaliações – como pano de fundo,
pelo menos – que o IHGB fazia sobre a sociedade brasileira.
Toda essa movimentação humana é realizada em seguimento à uma torrente
ainda maior que começou nas grandes navegações; dessas, a penetração nos sertões
nada mais seria que uma continuidade, pois do grande movimento de comércio europeu

54
Koselleck, Reinhart. Futuro pasado: para uma semântica de los tiempos históricos. Barcelona:Paidós,
1993. De acordo com Koselleck, os conceitos contrários assimétricos fazem alusão a um significado
depreciativo na qualificação do outro, onde este outro sentindo-se aludido, não se sente no entanto,
reconhecido. São assimétricos os conceitos quando ajustados em sentidos desigualmente contrários, sendo
aplicados somente de maneira unilateral.
157

faz parte a aventura portuguesa na América. E esses movimentos comerciais, defendia


Martius, cabiam ser incorporados à História do Brasil.
Tendo participado desde os primeiros momentos da vida das populações que
aqui se estabeleceram – e ainda mais, se embrenhado nos sertões – as ordens religiosas,
com destaque para os jesuítas, deveriam ser estudadas. Personagens coletivos
incontornáveis quando o tema versa sobre o bandeirantismo, seus arquivos, recolhidos
em mosteiros e bibliotecas espalhados pela Europa, cabe especificar com o autor, em
Roma, Viena, Munique, Bélgica, poderiam revelar ao historiador do Brasil a malha das
relações sociais, domésticas e mesmo artísticas, pois haveria substancioso material ao se
penetrar nos fazeres e saberes da economia rústica e navegação, no comércio e na
transplantação de espécimes vegetais europeus, bem como nos métodos de ensino
aplicados nas escolas da sociedade colonial.
A cobiça estrangeira sobre as possessões portuguesas, juntamente com a
belicosidade dos donos da terra, triunfantes em suas façanhas militares contra invasores
franceses, ingleses e holandeses dava certo ensejo aquilo que chamaríamos hoje por
história militar, uma tradicional variante à época para a toda poderosa história política,
da qual Francisco Adolfo Varnhagen muito iria se ocupar.
Seria desse complexo campo de atividades entre a defesa das possessões e o
avanço para o interior, que Martius vislumbrava mais um rico filão de eventos a
considerar em uma história pragmática do Brasil. Nas palavras do autor,
“relativamente às guerras com os holandeses, não nos faltam semelhantes
notícias. Mas pelo contrário o que diz respeito a essas viagens belicosas de
descoberta no interior do Brasil, principalmente dos mamalucos de S. Paulo
e suas guerras com espanhóis; e os missionários em Paraguai, carece ainda
ser esclarecido, por acharem-se os poucos documentos escritos relativos
ainda sepultados pela maior parte nos arquivos das diferentes cidades e
vilas”55

Quanto ao quinhão cabido à raça africana, Martius revelava interessar bastante


ao historiador o conhecimento dos costumes, conhecimentos, preconceitos e
superstições, “defeitos e virtudes próprias a sua raça em geral”56, para o qual deveriam
ser computados esclarecimentos maiores sobre o manejo e demais procedimentos do
tráfico no interior africano. A história da nação era o ponto principal a ser batido para
Von Martius, pois,

55
Como se deve escrever a História do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio
de Janeiro. V.6, n.21, abr. 1844, p.395.
56
Ibidem, p. 397.
158

“nunca por tanto o historiador da Terra de Santa Cruz há de perder de vista


que a sua tarefa abrange os mais grandiosos elementos; que não lhe compete
tão somente descrever o desenvolvimento de um só povo, circunscrito em
estreitos limites, mas sim de uma nação cuja crise e mescla atuais pertencem
à história universal, que ainda se acha no meio do seu desenvolvimento
superior. Possa ele não reconhecer em tão singular conjunção de diferentes
elementos algum acontecimento desfavorável, mas sim a conjuntura mais
feliz e mais importante no sentido da mais pura filantropia. Nos pontos
principais a história do Brasil será sempre a história de um ramo de
portugueses; mas se ela aspirar a ser completa e merecer o nome de uma
história pragmática, jamais poderão ser excluídas as sua relações para com
as raças etiópica e índia.”57

Dessa forma, o autor retomava o tema da história pragmática, o que equivale na


prática à defesa de uma forma de história que tenta convencer, comover, mas também,
demover certos preconceitos fundamente ancorados na sociedade brasileira.
A idéia central defendida por Von Martius seria trazer todos aqueles que
tomassem conhecimento de uma história escrita sob tais moldes para a defesa de
posições, engrossando na justa medida, as fileiras da profissão de fé defendida pelo
historiador, o que equivaleria dizer, uma história que satisfizesse a inteligência, mas
também ao coração.
Caberiam ainda algumas observações do autor, atinentes à posição do historiador
para com a sua pátria. Seu texto é datado de Munique, a 10 de janeiro de 1843, e o 2º
Reinado encontrava-se em seus primeiros dias, sob golpes, constestações e as incertezas
de manutenção do regime e da integridade territorial herdada do período colonial. Para
Martius,
“...a história é uma mestra, não somente do futuro, com também do presente.
Ela pode difundir entre os contemporâneos sentimentos e pensamentos do
mais nobre patriotismo. Uma obra histórica sobre o Brasil deve, segundo a
minha opinião, ter igualmente a tendência de despertar e reanimar em seus
leitores brasileiros [o] amor da pátria, coragem, constância, indústria,
fidelidade, prudência, em uma palavra, todas as virtudes cívicas.”58

Dessa forma, Bernardo Ricupero julga não ser difícil explicar o êxito de Von
Martius face aos interesses dos saquaremas, pois o naturalista bávaro teria elaborado
um verdadeiro programa para o pensamento conservador brasileiro, que Varnhagen logo
poria em prática59.
Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) nasceu em São João do Ipanema,
atual Sorocaba, descendendo de estrangeiros tanto do lado paterno – seu pai era um

57
Ibidem, p. 398-399.
58
Como se deve escrever a História do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio
de Janeiro. V.6, n.21, abr. 1844, p.401.
59
O romantismo e a ideia de nação no Brasil (1830 – 1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004.
159

oficial alemão contratado pelo Regente da Coroa portuguesa, o futuro D. João VI, para
restaurar e ampliar a fundição de ferro de Ipanema – quanto do lado materno, pois sua
mãe era uma portuguesa. Varnhagen esteve pouco tempo no Brasil, pois já em 1823
partia para Portugal em companhia da sua mãe, D. Maria Flávia de Sá Magalhães. Lá
iria reencontrar seu pai, que partira um ano antes, e iniciar seus estudos no Real Colégio
da Luz. Sua formação militar foi adquirida na Academia de Fortificações, onde obteria
o título de engenheiro em 1832, passando ainda neste ano para os bancos escolares da
Academia da Marinha, onde estudou Matemática.
Apesar de ter sua formação quase toda voltada para o campo das ciências exatas,
Varnhagen também realizou estudos mais voltados para a sua futura atividade de
historiador, tendo estudado Diplomática, Paleografia e Economia Política. A partir de
1835 começou a tornar mais concreta a sua paixão pela História, com suas pesquisas
sobre Gabriel Soares de Sousa, as “Reflexões críticas sobre o escrito do século XVI
impresso com o título de Notícia do Brasil”, apresentadas à Academia de Ciências de
Lisboa, da qual veio a se tornar membro em 1839.
Seus dotes intelectuais, conjugados ao reconhecimento da sua nacionalidade
brasileira em 1841, possibilitaram a Varnhagen as condições iniciais para o seu trabalho
como diplomata, ocupação diga-se de passagem, algo paradoxal quando confrontamos a
sua escrita nacionalista com suas longas estadias fora do solo pátrio. Nilo Odália,
comentarista de sua obra, percebeu em Varnhagen uma rara tenacidade que seria digna
de um erudito renascentista. Havia mais, pois além de ser alguém que acreditava no que
fazia, o visconde de Porto Seguro agiria como um romântico “...num mundo romântico”
60
, caso venhamos a entender, conforme esse autor, que o século XIX, especialmente em
sua primeira metade fora um mundo abalado por guerras e revoluções, momento no qual
nasciam as primeiras nações livres do Novo Mundo.
Nesse sentido, a opção de Varnhagen pela nacionalidade brasileira teria sido
originada – segundo Nilo Odália – “de uma necessidade vivencial e intelectual – fruto
de seu desenraizamento”61.
Passara o visconde de Porto Seguro boa parte da vida nas legações brasileiras de
Portugal, Espanha, Paraguai, Venezuela, Colômbia (então Nova Granada), Equador,
Peru e Chile, tendo contraído matrimônio nesse último país. Começara como Adido de
Primeira Classe em 1842, indicado pelo então ministro plenipotenciário do Império em

60
ODÁLIA, Nilo. Varnhagen. São Paulo:Ática, 1979,p.9.
61
Idem, Ibidem, p.9.
160

Lisboa, com a tarefa de substituir a pesquisadores comissionados pouco familiarizados


às práticas arquivísticas. Sua tarefa seria encontrar e reproduzir documentos que fossem
de interesse à História do Brasil. Seguiria os degraus consecutivos da carreira
diplomática até ser elevado em 1871 a Ministro Plenipotenciário, cargo ocupado por ele
quando a morte o alcançou em 1878.
De acordo com a historiadora Lucia Maria Paschoal Guimarães, a contratação de
Varnhagen para os quadros diplomáticos do Império visava atender aos interesses do
oficioso IHGB, que admitiu o jovem historiador como sócio correspondente, e de
quebra, passou a contar com os serviços prestimosos do pesquisador sorocabano, o qual
conforme vimos, já fora laureado por uma associação científica no exterior. O Estado
brasileiro subsidiava então claramente, uma instituição privada, fosse pelas dotações
orçamentárias, fosse pelos recursos de acolher nas fileiras estatais pessoal que ficava, na
prática, a serviço do Instituto.
Os cânones estabelecidos por Varnhagen para a História do Brasil iriam mostrar
como a Coroa portuguesa, utilizando do Estado português, conseguira moldar apesar de
todas as dificuldades, uma civilização nos trópicos. Entre 1854 e 1857 Francisco Adolfo
de Varnhagen publica a sua História Geral do Brasil. Na expressão de Nilo Odália,
trata-se de uma história rigorosamente apoiada na erudição, possuindo um estilo pesado
e monocórdio, bem como distante e árido. Odália defende contudo que, apesar de dessas
características, essa obra de Varnhagen não pode ser interpretada sob a artificialidade ou
a limitação de um modelo cívico, ou em outras palavras, uma expressão de amor à
pátria, significando porém ,
“um dos mais valiosos testemunhos históricos de um momento-chave da
história política brasileira. Sua leitura nos põe em contato com uma preciosa
fonte de informação que nos revela os primeiros passos do processo de
formação de uma ideologia histórica que busca fundamentar e legitimar um
processo de dominação social, inerente à constituição da jovem nação
brasileira”62

Lembra o historiador Manoel Luiz Salgado Guimarães que na primeira edição da


História Geral do Brasil, seu autor dedicara a obra ao Imperador D. Pedro II, com
agradecimentos ao incentivo imperial. Nas palavras de Varnhagen, citado por
Guimarães, “...o estudo da História nacional ‘é muito importante para o brilho da
nação, para a cultura geral e também para o bom governo da nação’”63

62
Varnhagen,p.13.
63
História e Nação no Brasil: 1838-1857, p.53-54. (grifo do autor).
161

Cumpre também dar visibilidade ao aspecto de proximidade do poder como


partícipe do estamento burocrático64 consolidado a partir da política regressista. O
visconde de Porto Seguro teria, de acordo com Arno Wehling (1999), chegado a
oferecer em diferentes ocasiões seus préstimos ao Imperador, para assumir papel como
um dos ideólogos do regime.
Importante ainda ressaltar, com Manoel Luiz Salgado Guimarães que,
“A historiografia que teve início com a fundação do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, contribuiu, em primeiro lugar, para determinado
modelo de escrita da História, ainda com elementos de uma historiografia
iluminista, e, em segundo lugar, para afirmar um modelo indiscutível de
nação. A difusão da concepção de História, tanto a do Instituto, como a de
Varnhagen, que era um homem do Instituto, influenciou, em grande medida,
toda a historiografia brasileira até os anos 1930, somente a partir dessa
época novos pressupostos metodológicos colocaram em questão a
metodologia estabelecida.”65

Outro aspecto a marcar a História Geral do Brasil seria a sua fria acolhida no
recinto do IHGB, e para esboçar os motivos que levaram a que isso acontecesse, se faz
mister elencar as observações de José Honório Rodrigues (1965) e Lucia Maria
Paschoal Guimarães (2002). Iniciando pela contribuição de José Honório Rodrigues, um
dos pioneiros no estudo da historiografia brasileira, ficamos sabendo que no interior do
IHGB, pelos idos de 1876, quando faltavam portanto apenas dois anos para o
desaparecimento de Varnhagen, reconhecia-se como méritos do Visconde de Porto
Seguro somente sua capacidade como investigador de fontes históricas.
Negava-se assim a Varnhagen, a tomarmos como base o discurso de caráter
oficial do Conselheiro Tristão de Alencar Araripe, em sua conferência ‘como cumpre
escrever a história pátria’, o valor da História Geral do Brasil para realçar as
contribuições e acertos de Robert Southey e do Conselheiro Pereira da Silva. Para a
historiadora Lucia Maria Paschoal Guimarães, a fria acolhida que a História Geral do

64
O estamento burocrático desenvolveu-se, segundo Raymundo Faoro, para que o capitalismo estatal,
predominante em Portugal, pudesse ser exercido, e enobrecida a posse do cargo público, estando
concentrado o governo dos negócios nas mãos do próprio Rei. O estamento burocrático teria sido
originalmente formado em Portugal, pelo novo patriciado renascentista, surgido da reconquista, e uma
criação do patrimonialismo. O estamento burocrático é na definição de Faoro, uma capa social rígida,
com o exercício de privilégios jurídicos assegurados pela lei, ou pela tradição. Para Faoro, o estamento
apropria-se do poder em caráter privilegiado e monopolístico, preformando a nação e constituindo o
próprio Estado. Nessas condições, fica constituído o poder minoritário, que é autônomo, sem controle ou
firmes limitações da vontade popular. Quem o exerce são os funcionários, os militares, os clérigos e o
patronato político. Em Portugal, e para Faoro, posteriormente no Brasil, o comando lhe é assegurado pela
dinâmica material da economia, cuja regulação foi conquista do regime patrimonial e perpetuada pelo
capitalismo estatal. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro.
Porto Alegre: Globo, 1958.
65
História e Nação no Brasil: 1838-1857. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011, p. 54.
162

Brasil conheceu no interior do Instituto deve ser explicada pela prevalência que havia
naquele sodalício de uma visão romântica das origens da nacionalidade, que pretendiam
os estudiosos, ser de viés indigenista. Entre esses encontrava-se o poeta e cronista
Domingos Gonçalves de Magalhães, autor do épico ‘A Confederação dos Tamoios’,
bem como de uma intransigente defesa dos gentios, intitulada ‘os indígenas perante a
história’.
É claro que Varnhagen realizara uma tarefa enorme no sentido de buscar a
autenticidade de documentos, ou de revelar uma multidão de fatos, como nos traz José
Honório Rodrigues. Mas o problema principal nos parece, seria buscar a elucidação de
como é constituído esse paradigma criado por Varnhagen para a História do Brasil.
Arno Wehling apresenta o chamado paradigma Varnhagen como estabelecido
sob três aspectos, a saber, o seu valor científico intrínseco; o papel desempenhado pelos
escritos do visconde de Porto Seguro na criação de um determinado tipo de memória
nacional ; e, a força da obra de Varnhagen na elaboração de uma matriz explicativa para
a história brasileira. Foi a essa matriz explicativa que Capistrano de Abreu chamou de
os “quadros de ferro” de Varnhagen. A propósito dessa questão, cabe dizer que atores
sociais, dinâmica social e formação nacional são na opinião de Wehling as chaves da
interpretação de Varnhagen sobre a História do Brasil. A exposição da matéria realizada
com grande coerência interna associada a supostos teórico-metodológicos e ideológicos
se tornaria modelar por mais de um século.
Inicialmente cabe tecer algumas considerações que envolvem a explicação da
História brasileira com uma grande coerência interna, onde tomam vulto atores sociais
que podem ser os agentes mesológicos, as etnias, as instituições sociais e políticas; os
grandes personagens; e o próprio reino português.
Quanto aos agentes mesológicos cabe ressaltar a natureza hostil encontrada no
território americano. Espanhóis e ingleses tiveram maiores facilidades. Já o português
encontrou os aspectos sombrios da mata virgem, à qual varou com destemor. Varnhagen
seria algo que forçado a concordar que o meio, apesar de condicionar a vida social, não
é tudo. No caso brasileiro, a colonização portuguesa teria cumprido o seu papel
civilizador.
As etnias comparecem com desafios ao Visconde de Porto Seguro. Tanto por
este defender a preeminência branca, quanto pela existência de índios e negros na
formação brasileira. Para Varnhagen, povos sem escrita como os indígenas brasileiros,
163

careceriam de história, possuindo apenas a existência66. Varnhagen abraça as teses de


Von Martius de que nossos indígenas seriam ‘ruínas de povos’, isto é, descendentes de
um grande povo que decaíra para a selvageria.
Dessa forma não ficaria difícil a Varnhagen recusar aos indígenas,
diferentemente do que pretendiam os românticos, a base da nacionalidade. Nesse
sentido, ao tomar por base a situação na qual foram encontradas as gentes que
habitavam o Brasil, não se poderia considerar haver ali civilização, mas barbárie e
atraso. De tais povos na infância, não haveria uma história, mas apenas etnografia. Não
encontraram os portugueses chegados à nova terra, sinais de ocupação permanente do
solo. As aldeias indígenas – as quais não eram em grande número – duravam apenas
quatro anos, findos os quais as habitações construídas para o necessário abrigo ao tempo
estavam deterioradas, a caça dos contornos rareava, e caso a tribo fosse agricultora, as
terras por eles utilizadas estariam cansadas. Daí, relatava o visconde de Porto Seguro,
abandonavam suas antigas paragens, à procura de novas terras, nômades que eram.
A transmigração invasora desse tupis se efetuava em ondas. Apenas uns
venciam, outros lhes vinham arrancar-lhes a vitória, não tendo fim as hostilidades e
vícios. Impressionou a Varnhagen,
“...a paixão com que se davam ao pecaminoso atentado que o Senhor
condenou em Sodoma, vício que, além de ser aviltador para o homem, tanto
contribuía a que a população, em vez de aumentar-se, diminuísse cada vez
mais. Havia, em algumas cabildas, concubinos públicos protegidos pela
comunidade.”67

Tinham o costume de manter entre si, as guerras de extermínio, motivo pelo qual
suas tribos ou cabildas, mantidas por laços sociais muito frouxos, ao invés de crescerem
em número, tornavam-se ainda mais debilitadas. As rixas eram transmitidas de filhos a
netos, predominando os instintos de vingança, não se encontrando entre eles nenhum
sentimento de abnegação em favor do interesse comum e da posteridade. Assim, os que
antes combatiam juntos, facilmente tornavam-se inimigos acérrimos. O ódio excessivo
contra os inimigos – assim julgava Varnhagen – seria o principal estímulo que os

66
Cabe no entanto acrescer que apesar do tratamento secundário destinado à matriz autóctone, a ponto de
ver-se compelido a trocar a ordem dos dez primeiros capítulos da segunda edição da HGB, Varnhagen,
apesar de detratar a religiosidade dos indígenas, sendo pouco lisongeiro quanto aos seus costumes, e além
de tudo, classificar aqueles povos no estado de selvageria, contribuiu com exposição circunstanciada
sobre o grupo de língua tupi, o que segundo Lúcia Maria Paschoal Guimarães constitui um trabalho
etnográfico cuidadoso, rico de informações. Francisco Adolfo de Varnhagen. História Geral do Brasil. In:
Mota, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, 2. 2.ed. São Paulo:Senac,
2002, p.80.
67
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 29. (a primeira edição é de 1854).
164

conduzia à antropofagia. Ao entendimento do autor da História Geral do Brasil custava


a crer que em uma tão grande extensão de território não tivesse aparecido um só chefe
que tivesse conseguido estabelecer,
“...um centro poderoso, como havia no Peru, cuja aristocracia, livre de
cuidar só em resguardar-se das intempéries e em adquirir diariamente o
necessário alimento, pudesse pensar no bem dos seus semelhantes,
apaziguando as suas contendas, e civilizando-os com o exemplo, e servindo-
lhes de estímulo, para se distinguirem e procurarem elevar-se.” 68

O Visconde de Porto Seguro deplorava, por tudo o que foi dito, a forma de vida
dos índios, acrescendo ao seu nomadismo as qualificações de bárbaro e selvagem. Não
possuindo o entendimento sobre aspectos do clima a eles tão familiares, como as
tempestades, receavam o trovão, o qual consideravam como a manifestação da ira de
Ibag ou do firmamento. Acreditavam na existência de um espírito maligno, a quem
chamavam Tupã. Encontrando-se os indígenas – utilizo das palavras de Varnhagen – na
‘infância’ da humanidade, costumavam em certas contrariedades, tomar vingança contra
tal espírito, ao disparar flechas contra o firmamento. Temiam igualmente a outros entes
dados como malignos, como o anhangá, o jeropari, o curupira e o caipora. Eram
supersticiosos e viam em várias coisas mau agouro. Os laços de família, tomadas as
medidas de Varnhagen, seriam muito frouxos: os filhos não respeitavam as mães,
temendo somente, e mesmo assim temporariamente, a pais e tios. Não havia no amor
sentimentos morais, não havendo assim, para o autor, “as delícias da verdadeira
felicidade doméstica”69
Da mesma forma não poderia se encontrar o desenvolvimento, entre tais
‘homens-feras’, da “...parte afetuosa da nossa natureza, a amizade, a gratidão, a
dedicação.”70 Favorecidos nos dotes do corpo – chorar, soltar um gemido, demonstrar
dor passavam por ação de grande covardia – eram geralmente taciturnos, comendo em
silêncio, e bebendo água quando acabavam suas refeições. Reservavam bebidas fortes
somente para as festas. Dotados de sentidos muito agudos em meio à floresta, observava
Varnhagen, seriam falsos e infiéis, inconstantes e ingratos, além de bastante
desconfiados, no que desconheciam inclusive, a virtude da compaixão.
Para o autor da História Geral do Brasil, ao olhar o Brasil sob a sua ótica
oitocentista, não possuiriam os indígenas do século XVI, os sentimentos elevados como

68
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 30.
69
Idem, ibidem, p. 48.
70
Idem, ibidem, p. 48.
165

o sublime desvelo do patriotismo, que explicava, “...nos impele a sacrificar o bem-estar


e até a existência pelos compatriotas, ou pela glória da pátria...”71 Para isso, analisava,
teriam concorrido o nomadismo e as idéias de sociabilidade de curto horizonte, as quais
geralmente não estendiam além da sua tribo ou maloca,
“ a qual não dominava mais território que o dos contornos do distrito que
provisóriamente ocupavam. Essas gentes vagabundas que, guerreando
sempre, povoavam o terreno que hoje é do Brasil, eram pela maior parte
verdadeiras emanações de uma só raça ou grande nação; isto é, procediam
de uma origem comum, e falavam dialectos da mesma língua, que os
primeiros colonos do Brasil chamaram geral, e era a mais espalhada das
principais de todo este continente.”72

A unidade de raça e de língua teria facilitado, opina Varnhagen, o progresso das


conquistas feitas pelos colonos do Brasil, pois onde a língua “se lhes apresentou outra,
não conseguiram tão facilmente penetrar.”73 Caberia, segundo o autor, simplificar a
nomenclatura bárbara, no que sugeria ligar os nomes das suas tribos à sua procedência
geográfica. Assim, os potiguares seriam os índios que ocupavam as costas do Rio
Grande do Norte à Paraíba, os caetés seriam encontrados da Paraíba ao Rio São
Francisco, tupinambás e tupiniquins seriam encontrados mais ao sul, sendo a região que
ocupavam invadida posteriormente pelos cruentos aimorés. Após vinham os goitacás,
habitando Campos, os tamoios nas imediações do Rio de Janeiro a Angra dos Reis, os
guaianases ou temiminós até a Cananeia, e os carijós, mais para o sul. Haviam ainda,
caminhando mais para o sertão, outras tribos indígenas, como os caiapós em Goiás, os
muras, maués e mundrucus no Amazonas, e os guaicurus, índios cavaleiros do alto
Paraguai.
Já em relação aos colonos portugueses, esses ‘tinham história’ e a trouxeram
consigo ao atravessar o oceano. Para Varnhagen, a Providência Divina atuou em
benefício do Brasil, e acudiu a que outro povo, chegasse às abençoadas terras da
América. Estaria esse povo embebido nos ensinamentos do cristianismo, apto portanto a
interferir nessa anarquia selvagem. Ao autor da História Geral do Brasil, custava a crer
que houvessem poetas, e até filósofos que conseguissem – como o ‘Filósofo de
Genebra’ – ver no estado selvagem vantagens que haveriam sem os vínculos das leis e
da religião, sob as quais se unem os homens sob a autoridade de um governo. Eram
lucubrações dessa natureza que levavam Varnhagen a refletir sobre as origens dos

71
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 24.
72
Idem, ibidem, p. 24.
73
Idem, ibidem, p. 24.
166

indígenas do Brasil. Dessa forma tinha como “uma quase convicção” de ter havido para
o Brasil uma grande emigração dos “...Cários da Ásia Menor, efetuada talvez depois da
queda de Tróia.”74

Para Varnhagen, a Coroa portuguesa teria acertado ao outorgar concessões de


terras sob a forma de capitanias hereditárias, no objetivo de povoar toda a costa do
Brasil. Apesar de ser a época mais propícia à concentração de poderes sob o rei, alegava
o autor que os meios feudais tinham sido os mais profícuos para a colonização de países
quase ermos de gente. Dessa forma, o tempo iria “corrigir o que antes fora, e agora era
medida necessária”75. Os donatários passavam, com as cartas de doação, a serem
capitães e governadores das terras, podendo transmitir os morgados, isto é, as
capitanias, de forma indivisível aos seus herdeiros, fossem esses descendentes ou
ascendentes, concessão somente retirada em caso de traição à Coroa.
Cada Capitania recebeu o seu foral, sendo confirmadas neles, as doações e
privilégios feitas ao senhor da terra. Possuir terras próprias, dar sesmarias segundo as
leis do reino àqueles que as pedissem, cativar gentios, para tomá-los a seu serviço e
criar vilas eram alguns dos direitos dos donatários. Destaque é dado pelo autor quanto à
influência dos donatários das capitanias por ocasião das eleições dos juízes e oficiais
dos concelhos das vilas, no que deveriam tais senhores privilegiados, apurar as listas
dos homens bons votantes nessas eleições.
Os direitos do dízimo ficavam resguardados, e a religião servia como um pré-
requisito para a ocupação ou colonização das terras. Tão grande teria sido a liberalidade
da Coroa portuguesa, afinal eram “pouquíssimas regalias, que a coroa se reservava”,
que Varnhagen chegava a declarar que “...quase que podemos dizer que Portugal
reconhecia a independência do Brasil, antes de ele se colonizar.”76.
Em termos sociais, o foral e a doação reconheciam, além do privilegiado
donatário, três classes distintas, os fidalgos, os peões e os gentios. As leis estariam
vigentes desde os primeiros momentos dessa fase da colônia, pois conforme acrescia
Varnhagen, eram consideradas vigentes para o Brasil, as leis gerais do reino. Essas leis
eram as Ordenações, chamadas de acordo com o nome dos reis que as promulgara.
Assim, as Ordenações Afonsinas foram reformadas pelas Ordenações Manuelinas, as

74
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 55.
75
Idem, ibidem, p. 150.
76
Idem, ibidem, p. 152.
167

quais aditadas e melhor redigidas, se tornaram no princípio do século seguinte, nas


Ordenações Filipinas. Ouçamos o autor,
“as fontes originárias destas ordenações eram o código visigótico, as leis
promulgadas separadamente, desde o princípio da monarquia portuguesa, as
das Partidas de Castela, e todo o direito Justiniano e mais códigos romanos,
explicados e comentados nas universidades de Bolonha e Paris.”77

Segundo a visão do autor, “tudo concorria a nivelar este país [Portugal] com os
outros mais adiantados nessa época [século XVI], em todos os ramos dos
conhecimentos humanos”.78 Portugal seria então um dos lócus privilegiados da
civilização. A Universidade havia sido favorecida pelo soberano, que a doou com seus
próprios paços em Coimbra, ao perceber que o tráfego da corte e o grande comércio
condizia mal com o repouso e quietação das letras. A ciência marítima era aquela na
qual Portugal mais se avantajava perante as outras nações. O pequeno reino ibérico fôra
inicialmente parte do império romano, sendo posteriormente conquistado pelos bárbaros
que cederam por fim à conquista dos mauro-árabes. De todos esses herdara instituições
e hábitos. As guerras de reconquista trouxeram as ordens militares, contando Portugal
com três: a de Cristo, a de Santiago e a de São Bento, vulgo d’Avis.
O décimo-quinto século fora todo de atividade e de invenção, como a imprensa.
Essa prestava-se a tudo, e o livre exame daquilo que respeitava a religião havia invadido
a autoridade do catolicismo. Tomado pela apreensão face à invasão das heresias, o
governo português, a pretexto de combater o judaísmo, pedia a instalação do Tribunal
da Inquisição. Varnhagen oscila sobre essa medida do governo português: se por um
lado, “Triste foi o recurso, segundo a experiência veio a mostrar”, teria contudo o
governo a necessidade “de meios heróicos – para meter nos eixos a roda da sociedade
que se desgarrava e desgalgava.”79
O autor fazia a defesa da Monarquia e o elogio da aristocracia e da nobreza
hereditária. Seus títulos representavam os serviços prestados, e a aristocracia de serviços
seria diferente daquela de sangue ou nascimento somente pelo espaço das gerações.
Explicava então que as honras da Casa Real portuguesa seriam muito empregadas para
recompensar também os serviços feitos no Brasil. As aristocracias seriam para
Varnhagen, os sustentáculos dos tronos, e ao mesmo tempo a mais segura barreira

77
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 153.
78
Idem, ibidem, p.160.
79
Idem, ibidem, p.163.
168

contra as invasões e despotismos do poder, que para o autor poderiam ser


exemplificados nos “transbordamentos tirânicos e intolerantes das democracias.”80
Recén-chegados ao Brasil, os colonos, brancos e cristãos, sentiam-se por seu
pequeno número, desamparados. Adotam então os hábitos alimentares dos bárbaros, e
cultivam o milho, a mandioca, os feijões e as abóboras, copiando ainda a mesma forma
de preparo que lhes dava o gentio. Varnhagen é tomado pela preocupação. Ao pé da
choupana – onde à maneira dos índios utilizavam o cipó-embé para segurar as ripas –
cresciam as bananas da terra que lhes asseguravam a subsistência sem o concurso do
trabalho. Algumas espécies foram transplantadas da África, e para alguns, a bananeira
seria a figueira do paraíso terreal: a planta que fora dada ao homem para que pudesse
deixar falhar o preceito (bíblico) de ganhar o sustento com o suor do próprio rosto.
Ainda dos índios, absorvem judiciosamente os primeiros colonos tudo quanto fosse
considerado aproveitável, desde as formas dos vasos domésticos, o uso da rede e a
freqüência dos banhos, até as práticas do barquejar e da pesca.
Para a fusão entre portugueses e índios tupis a mulher foi o elo fundamental. Os
europeus, “mesmo sem ser em lei da graça”81, e muitas vezes incorrendo em poligamia,
não hesitaram em juntar-se às índias, às quais achavam bonitas. Por seu turno, aquelas
que eram meio domesticadas tinham muita disposição para unir-se aos brancos. Aos
nascidos de raças cruzadas deu-se em tupi, o nome de curibocas, preferindo-se depois
utilizar-se de nome já existente na Península ibérica para os filhos de cristão e moura:
mamelucos. Varnhagen defendia que o desaparecimento dos índios se devesse mais aos
cruzamentos sucessivos do que a algum cruel extermínio. Teria sido a resultante da
superioridade e “encantos da civilização sobre a barbárie”82, com os selvagens
prestando-se gostosos a trabalhar nas roças ou derrubadas. Conforme podemos ver,
entendia Varnhagen que a miscigenação era um caminho para o predomínio branco, e
tomando partido dos cristãos, considerava que ao cativar o gentio, esses haviam sido
muito parcos, somente os considerando legítimos se os aprisionasse em guerra. Para o
autor, essa prática, que alegava fundada no chamado ‘direito dos vencedores’, tinha
tendências civilizadoras!
Dessa forma, considerava que a tutela sobre os índios teria sido necessária para
impor-lhes, à força, o cristianismo e os hábitos civilizados. Mesmo os jesuítas de

80
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 156.
81
Idem, ibidem, p.214.
82
Idem, ibidem, p.215.
169

maiores serviços reconhecidos à causa da catequização, não se alinhavam entre os


partidários de Las Casas, propositor de uma mal entendida filantropia. Na avaliação de
Varnhagen, a adoção de leis impeditivas a que a “ ‘cobiça dos colonos bem
encaminhada’ arrebanhasse os selvagens do Brasil”83, teria trazido para as terras do
Brasil a escravidão africana.
Quanto aos negros, o autor da História Geral do Brasil se revelou
preconceituoso, referindo-se às suas tradições e costumes como a ‘barbárie negra’,
reconhecendo contudo o gênio alegre e a força física dos africanos, e destacando a sua
contribuição, por estarem na base da produção para a economia brasileira, da época do
açúcar ao momento do café, seu contemporâneo.
A vinda do negro africano teria possibilitado o exercício de um cativeiro ainda
mais atroz que aquele que envolvia o indígena. Afinal, haviam sido buscados em outro
continente indivíduos de nações igualmente bárbaras e ainda mais supersticiosas,
intolerantes e inimigas da liberdade, sem identidade de língua, de usos e de religião
entre si, de modo que somente a cor e o infortúnio os unia. Mas a experiência de
emprego de negros africanos nas Antilhas provara serem estes mais fortes e resistentes
ao trabalho ao sol que os índios84. Com os escravos vieram também plantas como o
quiabo, o maxixe, o coqueiro de dendê, e comidas e quitutes encontrados sobretudo na
Bahia. Acompanharam-nos palavras como quitanda, quenga, senzala, calundum, caçula,
mocotó, entre outras. Para Varnhagen, teria sido ainda obra dos negros africanos a
perversão dos “ costumes, por seus hábitos menos decorosos, seu pouco pudor, e sua
tenaz audácia.”85
Um indisfarçado mal estar aparece enviesado nas linhas que Porto Seguro traça
acerca do tráfico africano, tão grande fora a entrada dos cativos, distinguidos
principalmente pela cor, que era considerado então como um dos três elementos
formadores da população brasileira. Varnhagen ansiava chegar o dia no qual as cores se

83
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p.221. (grifo do autor).
84
Conforme observou José Honório Rodrigues, em matéria de negros e índios Varnhagen aceitava como
lícita a escravatura. Para o autor da História Geral do Brasil não haveria outro recurso, e não caberia
esperar que os índios quisessem civilizar-se. Os avanços e recuos da política indígena portuguesa, assim
como as sublevações de negros e índios somente poderiam contar com sua total desaprovação. Daí
considerar aceitável declarar guerra a indígenas que não quisessem submeter-se, ocupando pela força as
terras que considerava, estavam roubando à civilização. RODRIGUES, José Honório. Varnhagen, mestre
da História geral do Brasil. In: ______________. História e historiografia. Petrópolis: Vozes, 2008.
85
Idem, ibidem, p. 225.
170

combinassem pela miscigenação de modo que viesse a desaparecer totalmente do povo


brasileiro,
“os característicos da origem africana, e por conseguinte a acusação da
procedência de uma geração, cujos troncos no Brasil vieram conduzidos em
ferros do continente fronteiro, e sofreram os grilhões de escravidão, embora
talvez com mais suavidade do que em nenhum outro país da América,
começando pelos Estados Unidos do Norte, onde o anátema acompanha não
só a condição e a cor como a todas as suas gradações.” 86

Com efeito, Varnhagen acreditava que os africanos trazidos para o Brasil, não
obstante a escravidão ser venal, teriam melhorado de sorte, pois na Guiné, no Congo,
em Moçambique – de onde provinham – a liberdade individual não era assegurada, com
os mais fortes vendendo os mais fracos, os pais aos filhos, e os vencedores aos
vencidos. E a razão dessa melhoria social, segundo o autor da História Geral do Brasil
seria o contato com gente mais polida e com a civilização do cristianismo. Tendo
realizado a defesa da escravidão ‘benigna’, Varnhagen colocava uma espécie de pedra
fundamental no edifício da construção ideológica que futuramente ficaria conhecida
como o ‘mito da democracia racial’.
Quanto às instituições sociais e políticas, podemos dizer que o Estado é
associado por Varnhagen à noção de lei. Aliás, leis, escrita e Estado aparecem na
condição de indicadores básicos da existência de civilização para Varnhagen, como nos
ensinam Arno Wehling (1999 e 2001), Nilo Odália (1979 e 1997) e José Carlos Reis
(2001). O Estado aparece em sua obra como uma necessidade natural do ser humano. A
religião figura como elemento indispensável da ordem, e poderosíssimo instrumento de
civilização e de moral.
Na opinião de Arno Wehling, Varnhagen teria assumido os pressupostos
políticos do Marquês de Pombal, ao tentar subordinar a religião, como no caso dos
jesuítas e todo o mais, à razão de Estado. Assim, Varnhagen aprova os atos desse
ministro, “ hábil e poderoso”87, o qual impunha respeito por seu zelo, ilustração,
gravidade e probidade, tanto no trato do Estado, quanto nos negócios da sua casa, os
quais reservava para as manhãs de domingo. Atuando em meio aquilo que Varnhagen
qualificou como as “...tendências tão excessivamente inovadoras do século”88, as ações
de Pombal teriam contribuído para preencher com cunho modernizador a Colônia,

86
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 223. (grifos nossos).
87
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.4,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 234.
88
Idem, Ibidem, p. 235.
171

favorecendo com isso a “nacionalidade brasileira”, como na incorporação do todo no


Estado, das capitanias que ainda possuíam donatários, o que fez mediante o pagamento
de indenizações aos interessados. Aumentou, por força das guerras no Sul, as tropas de
linha, mandando trazer regimentos inteiros de Portugal.
Criava ainda em Minas, São Paulo e Rio Grande as companhias de dragões. A
atuação de Pombal ficaria registrada também nas obras públicas, no comércio, lavoura,
indústria, navegação, reformas judiciais (estabelecimento da Relação do Rio de Janeiro,
em 1751) e na arrecadação da fazenda. Sob o intuito de povoar a terra, ficava
estabelecido o alvará de lei de 4 de abril de 1755, o qual favorecia o casamento com os
indígenas. Proibia-se de tratá-los sob o nome de caboclos, ou qualquer outro
considerado injurioso, dando garantias à descendência originada destas uniões de não
haver discriminação para qualquer emprego, honra ou dignidade.
A instrução pública seria um capítulo à parte, recebendo sua atenção a reforma
da Universidade de Coimbra, bem como das chamadas escolas menores, tudo fazendo
debaixo da inspeção da Mesa Censória, o tribunal encarregado da censura dos livros.
Para a manutenção das escolas, criava Pombal o imposto do subsídio literário, valendo
este para o reino e conquistas.
Desde os primeiros séculos da colonização Varnhagen reservara louvores para
alguns administradores da Coroa, no que aparece em destaque o nome de Men de Sá.
Na avaliação de Varnhagen,
“a situação crítica em que estava o Brasil pedia governador activo,
entendido, e sobretudo honesto. Todos esses dotes reunia o desembargador
Men de Sá, fidalgo da Casa e do Conselho do Rei, irmão do conhecido poeta
Francisco de Sá de Miranda, e que no cargo de chefe da administração-
geral do Brasil sustentou os créditos de que já gozava.”89

Nos séculos posteriores – sob sua ótica – teriam se destacado personalidades


como o marquês de Lavradio, os condes de Bobadela e da Cunha e D. Antonio Rolim de

89
História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1962, p. 299. No ano de 1899, com o lançamento do ensaio ‘Caminhos Antigos e
Povoamento do Brasil’, Capistrano de Abreu colocaria por terra tanto a tese que Varnhagen defendera –
sobre o desaparecimento dos índios dever-se a cruzamentos inter-raciais mais do que a algum cruel
extermínio – quanto arranharia a imagem de Men de Sá. Lembrava Capistrano que as chamadas guerras
do Paraguaçu, alinhadas por Mem de Sá como serviços prestados na condição de terceiro Governador
Geral do Brasil, haviam levado à destruição cento e sessenta aldeias, afastando com isso um gentio de
língua geral, mais ou menos assimilável, os quais cederam lugar à avançada de tapuias irredutíveis. Da
mesma forma recebia censuras o Marquês de Pombal, o todo poderoso ministro de D. José I. Capistrano
de Abreu o alcança em três oportunidades do seu ensaio. Assim, na avaliação de Capistrano, Pombal teria
exercido um poderio truculento, havia confiscado com sua vesânia as célebres fazendas nacionais, além
de haver transformado em mártir dos seus furores ao padre Malagrida, incansável missionário dos sertões
da Colônia. Ver: ABREU, João Capistrano de. Os Caminhos Antigos e o povoamento do Brasil.In:
______ . Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.
172

Moura. Em Minas as atenções seriam para D. José Luis de Meneses, conde de


Valadares. D. José I recebe destaque entre as cabeças coroadas portuguesas,
considerando Varnhagen que esse soberano possuía,
“grandes dotes para rei, começando pelo amor do país, da glória e da
virtude. Era benigno, verdadeiro e probo. De sua firmeza de caráter,
qualidade primeira nos que governam, não necessitamos mais prova que a
do modo como soube empatar tantas e tão diferentes intrigas que lhe
armaram contra o seu ministro Pombal; e isso apesar de que era, por
compleição, um pouco timorato. Flagelado pela Providência, com um
terremoto, acometido por um atentado de alguns de seus vassalos, palpado
pela guerra estrangeira, - a nada se abalou o seu grande ânimo para deixar
de conservar à frente da administração o homem que, em meio de seus
defeitos, desejava a todo transe despertar a apatia da nação, restaurando a
sua dignidade e independência...”90

Os jesuítas aparecem como uma espécie de força centrífuga a atrapalhar a ação


do Estado. Varnhagen recrimina ainda a Inquisição, que fazia com que a sociedade
colonial vivesse sob o temor da maldade e da hipocrisia. Condenava ainda a escravidão
por ser anticristã e antieconômica, bem como por depravar os costumes e prejudicar a
produção. Mas tolerava, conforme vimos a escravidão na América por haver permitido
uma espécie de melhoramento social aos negros, fazendo com que se submetessem a
regras mais brandas, como as do Direito Romano.
Entre os componentes da história sob Varnhagen incluem-se sobretudo como
vimos, os grandes personagens. Nilo Odália e Arno Wehling entenderam que
Varnhagen esboçou a construção de um panteão nacional, vale dizer uma galeria de
‘varões de Plutarco’, que servissem para corroborar as posições nacionalistas e a defesa
do Estado Imperial. O quadro geral de virtudes apontadas por Varnhagen como traços
definidores dos grandes personagens, explica Wehling, via de regra segue o perfil
cristão, branco, estatista, lusófilo e eurocêntrico.
Simpático aos bandeirantes, Varnhagen se mostra oscilante em relação à
Inconfidência mineira, por sua influência norte-americana e o risco de fragmentar a
unidade política. Tratemos inicialmente dos bandeirantes. Varnhagen aproveitou o
sucesso da missão do padre Diaz Taño, com a obtenção do famoso breve papal de
condenação à escravidão indígena – episódio que já vimos no capítulo anterior pela
lavra de Toledo Piza – para abordar a dinâmica do planalto paulista, ligando essa à
conjuntura da restauração portuguesa de 1640. À mesma época dos episódios que
envolveram os jesuítas no Rio de Janeiro, em Santos e em São Paulo, chegara da Bahia

90
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.4,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 235.
173

a notícia da assunção do Duque de Bragança ao trono de Portugal, como D. João IV. A


sua aclamação já fora realizada na Bahia, o que seguiu-se no Rio de Janeiro, onde
observou Varnhagen, o governador Salvador Correia fora instigado pelos jesuítas
portugueses do colégio dessa cidade. A aclamação de D. João IV ocorreu então nas vilas
de Santos e São Vicente, porém em São Paulo, cujo povo estava em guerra aberta com o
governador Salvador Correia, o qual mantinha sob sua proteção os jesuítas, não havia
pressa. Teria havido – e nesse caso Varnhagen apela para a tradição recolhida no século
XVIII pelo monge beneditino Frei Gaspar da Madre de Deus em sua ‘Memórias para a
História da Capitania de São Vicente’ – até o pensamento de independência, somente
não levada a efeito graças à abnegação de Amador Bueno, a quem a coroa fôra
oferecida91. Ante esse evento, escrevia Varnhagen,
“...(se realmente sucedeu) da rejeição de uma coroa neste Estado, ainda
então nas faixas da infância, não sabemos qual admirar mais, - se o juízo são
do que descobriu que tal coroa não podia então ser perdurável, e menos
possuída por si, num Estado que carecia de todos os elementos constitutivos
da nacionalidade, e que ainda não poderia apresentar-se com dignidade ao
lado dos outros povos do universo, mantendo a alta categoria de nação – se

91
As Memórias para a História da Capitania de São Vicente, do beneditino Frei Gaspar da Madre de Deus
ganharam estampa em 1797. De acordo com frei Gaspar, a notícia da elevação do duque de Bragança ao
trono português foi recebida como um golpe pelos espanhóis que se haviam estabelecido e casado na Vila
de São Paulo. Face às circunstâncias dos interesses que colimavam, resolveram unir-se aos seus amigos,
parentes e aliados no fito de eleger um rei paulista, no que apontaram como o mais digno da coroa a
Amador Bueno da Ribeira. Persuadiram então a paulistas e europeus pouco instruídos a abraçar sua causa,
não reconhecendo por soberano a um príncipe – o Duque de Bragança – que afinal ainda não haviam
jurado obediência. Assim, um grande número de pessoas concorreu em entusiasmado alvoroço à casa de
Amador Bueno para aclamá-lo rei. Ao deparar-se com as proposições da multidão, lembrou-lhes o
aclamado que teriam os paulistas que conformar-se com os votos de todo o Reino, e a persistir nos seus
intentos concorreriam para a ignomínia de sua Pátria. A obstinação do povo ignorante teria sido tanta que
o ‘fiel vassalo’ saiu furtivamente de sua casa, espada na mão para defender-se se necessário, tendo
caminhado apressado para o Mosteiro de São Bento, no intento de refugiar-se. Cabe dar voz a Frei
Gaspar: “Todos correm após ele, gritando: viva Amador Bueno, nosso Rei: ao que ele respondeu muitas
vezes, em voz alta: viva o Senhor D. João IV, nosso Rei e senhor, pelo qual darei a vida.” Chegando ao
mosteiro e nele sendo as portas rapidamente fechadas, coube aos eclesiásticos mais respeitáveis então
presentes, esclarecer à multidão que o Reino pertencia à Sereníssima Casa de Bragança desde 1580, caso
a violência dos monarcas espanhóis não tivessem sufocado o seu direito. MADRE DE DEUS, Frei Gaspar
da. Memórias para a história da Capitania de São Vicente. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. A citação
encontra-se à p. 140. Em obra recente, Rodrigo Bentes Monteiro lançou algumas luzes que auxiliam a
esclarecer tanto esse fato, quanto as dúvidas que sobre ele lançou Varnhagen. Frei Gaspar era amigo e
primo do linhagista setecentista Pedro Taques, com o qual correspondia-se frequentemente. Assim como
Taques, que construíra uma nobiliarquia paulistana, Frei Gaspar também recuperava o passado paulista
procurando destacar a sua nobreza de sangue e de valores, bem como a obediência dos paulistas às ordens
vindas de Portugal. Ele narra o evento da aclamação de Amador Bueno com base na genealogia que fora
composta por Taques em 1742, a ‘história dos Buenos’. De acordo com Monteiro, os documentos que frei
Gaspar e Pedro Taques utilizam para comprovar seus relatos são os mesmos. A veracidade dos fatos seria
dada inclusive pela obtenção de mercês por parte de um neto de Amador Bueno. Na segunda metade do
século XIX essa versão foi contestada por autores como Cândido Mendes de Almeida e José Veríssimo.
Porém, na primeira metade do século XX, Afonso Taunay partiu em defesa dos escritores setecentistas, e
comprovou a autenticidade dos documentos mencionados, achando os mesmos nos arquivos da câmara de
São Vicente e no Arquivo Nacional. MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no Espelho: a monarquia
portuguesa e a colonização da América (1640-1720). São Paulo: Hucite, 2002.
174

a abnegação do homem desambicioso, que sacrificou sua elevação no altar


da pátria, evitando o fracionamento desta, ou pelo menos poupando-lhe uma
sanguinolenta guerra civil.”92

Em julho de 1640, a Câmara de São Paulo resolvia expulsar os jesuítas do seu


território, mas era instada por Salvador Correia de Sá a proceder como no Rio de
Janeiro, São Vicente e Santos. Porém os habitantes de São Paulo, além de não anuir às
pretensões do governador, prepararam a sua resistência, no que “...faziam cortaduras
nos caminhos, e apresentavam-se armados para defender o passo; e ao mesmo tempo
elegiam quarenta e oito indivíduos para velarem em manter ilesos os seus interesses.”93
Em 19 de maio de 1641 a câmara de São Paulo votava para que a expulsão dos
jesuítas fosse levada a efeito. Haveria demora antes que os paulistas chegassem a um
acordo com os jesuítas, e à princípio, esse somente foi levado adiante por terem os
jesuítas desistido da pretensão de intrometer-se na questão da escravidão dos índios94.
Tendo sido mantidos os interesses dos sertanistas paulistas, escrevia Varnhagen
que,
“...ainda em 1648 uma numerosa bandeira de paulistas acometeu a missão
de Xerez, sobre o Embotetey, hoje denominado Mondego, que já era bispado,
e fez prisioneiros aqueles de seus moradores que não conseguiram fugar-se.
Chegaram os invasores a projetar um ataque à própria cidade de Assunção,
onde estava então de governador D. Andrés Garavito de Leon; e talvez
houveram levado avante o seu propósito se não lhe sai em campo, à frente de
numerosas forças de índios já armados, o Padre Alfaro, obrigando os
agressores a retirarem-se destroçados. Porventura seriam restos destas

92
História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. T.3,7. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1962, p. 131.
93
História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. T.3,7. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1962, p. 132.
94
A questão da escravidão indígena articulou-se de forma ineludível na história paulista ao discurso da
pobreza. Assim, nos anos 1960 ainda percebemos a historiadora Myriam Ellys tratar o tema recuperando
as falas dos antigos habitantes da cidade Planaltina em seus testamentos: “buscar remédio para a sua
pobreza”, “buscar o seu remédio”, ou ainda, “o seu modo de lucrar” para dar evidência à pobreza. A
penúria que dominava a Capitania de São Vicente teria obrigado o povoador a lançar mão do trabalho
indígena que deveria assegurar-lhe os meios de subsistência – em uma agricultura também de subsistência
– na impossibilidade de aquisição do escravo negro. Recentemente coube a John Manuel Monteiro
esclarecer melhor tal situação. O surto bandeirante que resultou no auge do apresamento de cativos
guarani visava ao abastecimento da mão-de-obra de uma florescente agricultura comercial no planalto
paulista. A versão sobre a captura de indígenas para abastecer engenhos de açúcar no Norte do país fora
uma invenção dos jesuítas com vistas a fornecer elementos de base jurídica em seus pleitos contra os
paulistas. Assim, a versão convencional da historiografia brasileira acabou por associar uma crise aguda
na oferta de escravos no Nordeste açucareiro – pela perda de Angola durante as guerras holandesas –
esquecendo-se no entanto que as grandes expedições de apresamento de Antonio Raposo Tavares
ocorreram anos antes da invasão de Pernambuco e da tomada de Angola. Além do mais, os índios recén-
trazidos do sertão tinham reduzido valor de venda em razão das suas também reduzidas chances de
sobrevivência no novo ambiente, tornando o tráfico para outras regiões pouco interessante
economicamente, limitando-se as transferências a pequenos grupos cujo valor justificasse o custo da
viagem. ELLIS, Myriam. As bandeiras na expansão geográfica do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio
Buarque de (dir.). História Geral da Civilização Brasileira. T.1, v.1. A época colonial: do descobrimento à
expansão territorial. 8.ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989; e, MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra:
índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
175

bandeiras as que, correndo para o Norte, vieram a varar ao Tocantins e a


descer as águas deste rio, ao mando do mestre de campo Antônio Raposo,
apresentando-se em Gurupá em 1651.”95

Varnhagen entendera ser defensável tratar do tema do devassamento dos sertões


por associação dos progressos que os novos colonos faziam sobre o território a partir da
mobilidade que haviam tido os tupis sob o terreno mais de vinte séculos antes, só que
em sentido inverso, ou seja, do Norte para o Sul. Considerou a explicação apropriada
por avaliar que a vegetação não embargava tanto a progressão dos desbravadores, sendo
esta composta mais de cerrados do que de matos virgens, bem como a extensão
navegável do rio São Francisco, acima das cachoeiras. A curta distância das cabeceiras
setentrionais do Paranaíba às meridionais do Tocantins também teriam colaborado para
as entradas ao sertão. À esse último fator creditava o fato de Antônio Raposo haver
varado, em 1651, as águas do Amazonas.
Explorar os sertões constituía um interesse da Coroa portuguesa, e a metrópole
adotara a prática das cartas régias dirigidas aos principais sertanistas. Varnhagen
exemplificava o sucesso dessa forma de incentivo direto do soberano português aos seus
súditos da América citando os nomes de bandeirantes que se destacaram nos reais
serviços, tais como Fernão Dias Pais, Manuel Pires Linhares e Lourenço Castanho
Taques, os quais passam como os primeiros descobridores de minas no distrito que a
princípio se chamava dos Cataguás. Ele explica então que esperavam os sertanistas a
recompensa do rei por seus serviços, e elas vinham à vezes sob a forma de nomeações,
como foi o caso de Garcia Rodrigues Pais, filho de Fernão Dias Pais, escolhido para ser
o administrador geral das minas, em substituição a D. Rodrigo de Castel-Branco,
assassinado por motivo de uma desavença – conforme vimos em páginas passadas –
travada com Manuel de Borba Gato. Posteriormente, como se sabe, Borba Gato, que em
virtude do crime teve que homiziar-se nos sertões da Bahia, seria reabilitado por
serviços prestados à Coroa. Após muitos trabalhos e tentativas infrutíferas, encontrava-
se em Itaberaba as primeiras minas com resultados vantajosos.
Em relação à Inconfidência Mineira, apesar do capítulo sobre ela ser considerado
pífio pelos críticos, cumpre ser abordado no que observamos que as linhas gerais sob as
quais Varnhagen desenvolveu o tema na segunda edição da História Geral (1877)
guardam algumas semelhanças com certa obra de Joaquim Norberto de Sousa Silva,

95
História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. T.3,7. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1962, p.136-137.
176

História da Conjuração Mineira, publicada em 187396. Varnhagen, assim como Joaquim


Norberto, escolheu abordar o tema a partir das influências da Ilustração sobre estudantes
brasileiros na Europa. Consideramos que esse artifício teria sido a fórmula encontrada
para ligar a história brasileira aos eventos do velho continente e à bem lograda
revolução das colônias inglesas da América do Norte. Com isso ficaria patenteado que o
futuro Império surgido na América como uma espécie de doação da Casa de Bragança
era também filho da Ilustração, que lhe teria tocado o solo e produzido rebentos como
no drama dos Inconfidentes97.

96
Joaquim Norberto nasceu no Rio de Janeiro, a 6 de junho de 1820, tendo falecido em Niterói, a 14 de
maio de 1891. Era monarquista, servidor público e sócio do IHGB. Foi no arquivo da Secretaria de
Estado do Império, repartição na qual trabalhava que Norberto veio a encontrar a coleção de documentos
originais das duas devassas que ocorreram nas capitanias de Minas Gerais e Rio de Janeiro. A
documentação então encontrada foi completada então por uma exposição manuscrita que andava um
pouco esquecida nos arquivos do IHGB, e que levava o título de ‘Memória do êxito que teve a
Conjuração de Minas e dos fatos relativos a ela acontecidos nesta cidade do Rio de Janeiro desde o dia
17 até 26 de abril de 1792’. A partir de fins de 1860, J. Norberto iria ler no recinto do Instituto, as suas
conclusões parciais que reunidas, dariam ensejo aquela que seria a sua obra literária de maior valor.
Escrevendo em 1912, José Veríssimo considerou a História da Conjuração Mineira como uma das boas
monografias da literatura histórica brasileira, feita com pesquisas próprias – i.e. com emprego de fontes
primárias – além de bem ordenada e composta. No início da década de 1950, Eduardo Frieiro qualificou
Joaquim Norberto como um autor ponderado que apesar de lastimar a sorte infausta de Tiradentes, não o
tratou como herói. Aliás, Norberto não simpatizou com os propósitos dos conjurados mineiros, pois lhe
parecia condenável instituir a partir de três províncias, quando muito (Minas Gerais, Rio de Janeiro e São
Paulo) uma república, desmembrada do resto do país. Esse posicionamento rendera a J.Norberto, na
opinião de Frieiro, um autor romântico, a ira de nativistas lusófobos e republicanos jacobinos. Na
narrativa de Norberto, a figura de Tiradentes aparece como lamentável, inclinando mais à piedade, que à
admiração. Américo Jacobina Lacombe considerou que esse livro de Norberto foi baseado em boa e
metódica documentação, sendo além disso, bem redigido. Francisco Iglésias avaliou a obra como fruto de
muita pesquisa, e dotada de sentido crítico ao longo da exposição dos seus capítulos. Amante da poesia,
Joaquim Norberto destacara como chefe dos Inconfidentes a um dos poetas de sua predileção, o
desembargador Tomás Antonio Gonzaga. Aliás, nessa personagem à qual Varnhagen tratou de inocentar e
retirar do círculo dos conciliábulos ocorridos na Conjura de Vila Rica parece residir a maior distância
entre sua narrativa e a de Joaquim Norberto. SILVA, Joaquim Norberto de Sousa. História da Conjuração
Mineira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948; VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira.
3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954; FRIEIRO, Eduardo. O Diabo na livraria do Cônego: como era
Gonzaga? E outros temas mineiros. Belo Horizonte: Itatiaia, 1957. (o ensaio A sombra de Tiradentes é de
1953); LACOMBE, Américo Jacobina. Introdução ao estudo da história do Brasil. São Paulo: Editora
Nacional, 1973; e, IGLÉSIAS, Francisco. Os historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
97
De acordo com João Pinto Furtado, a sedição abortada entre os anos de 1788 e 1789 foi gerada em
meio a um “contexto de transição, em que valores tipicamente estamentais como honra, fidalguia e
precedência chocavam-se com valores de classe como trabalho, riqueza e propriedade”; em suma, o
movimento teria sido portador da expressão de uma “série de ambigüidades e contradições próprias do
período”. Lembra o autor que “na sociedade setecentista a rebelião, a revolta ou o motim são recursos
políticos normais, até admitidos pelo Estado ou pela Igreja, e com muita frequência redundavam apenas
numa série de escaramuças seguidas de algum nível de negociação e anistia.” Ainda para esse autor, os
inconfidentes mineiros seriam, em cada caso e em doses diferenciadas, “homens do barroco tardio, e,
portanto, contraditórios e anti-cartesianos...” Dessa forma defendeu Furtado que a Inconfidência Mineira
poderia ser considerada um processo híbrido, onde estariam reunidas tanto algumas características das
últimas rebeliões do Antigo Regime, quanto daqueles levantes que prefigurariam a ‘nacionalidade’.
FURTADO, João Pinto. Imaginando a nação: o ensino da história da Inconfidência Mineira na
perspectiva da crítica historiográfica. In: SIMAN, Lana Mara de Castro, FONSECA, Thais Nívia de Lima
177

Os personagens escolhidos como motor inicial da Conjura seriam então um


grupo de estudantes brasileiros que na Universidade de Coimbra e em Montpellier
teriam se comprometido a levar adiante a idéia de independência do Brasil. Nessa
última, conforme Varnhagen, desfrutavam esses jovens do entusiasmo francês pela
revolução americana, e alguns daqueles estudantes – que somariam doze, talvez algum
ido ali de Coimbra – ventilaram a mesma idéia de liberdade. Contavam-se entre esses
estudantes, Domingos Vidal Barbosa, de Minas Gerais, além de José Mariano Leal e
José Joaquim da Maia, ambos do Rio de Janeiro, sendo este último, filho de um
pedreiro. Partira de José Joaquim da Maia, que adotara o codinome de ‘Vendek’, a
iniciativa de contactar a Thomas Jefferson, o ministro plenipotenciário dos Estados
Unidos em Paris. Este, passando por Nimes, avista-se com ‘Vendek’. Então o estudante
brasileiro expõe seus planos a Jefferson: as forças com que contavam o Brasil, os seus
muitos recursos para constituir-se em nação, a forte defesa do porto do Rio de Janeiro e
a defensibilidade dos sertões da capitania de Minas Gerais. Na sua narrativa, os literatos
seriam favoráveis à independência e grande parte da tropa e do clero era composta por
brasileiros. Contraposto a isso, havia pouco receio de forças vindas de Portugal.
Jefferson teria ouvido com atenção seu jovem interlocutor, porém sem demonstrar
entusiasmo. Para Varnhagen, tratava-se de um disfarce do experiente Jefferson, que em
4 de maio de 1787 escrevia de Marselha a J. Jay, informando do que se passara, e do
quanto ficara pensando em tais planos98.
José Joaquim da Maia, o ‘Vendek’, interlocutor de Jefferson em Nimes, acabou
falecendo em Lisboa quando se preparava para voltar ao Brasil. Contudo, retornavam à
sua pátria vários recén-diplomados, entre eles o médico Domingos Vidal Barbosa, que
estudara em Bordéus e José Álvares Maciel, que concluíra o bacharelado em Filosofia
em Coimbra, passando ainda à Inglaterra onde muito se aplicara às artes e manufaturas,

e. (orgs.) Inaugurando a História e construindo a nação: discursos e imagens no ensino de História. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001. As citações encontram-se respectivamente às p. 55, 63, 69 e 70.
98
As conversações entre Thomas Jefferson e José Joaquim da Maia foram alvo de publicações na revista
trimensal do Instituto no ano de 1841, tomo 3º à p. 208 sob o título ‘Extractos das correspondências de
Thomas Jefferson’, bem como em 1884. As cartas são datadas de 1786 e 1787. Vendek escreveu a
Jefferson uma carta de Montpellier com data de 2 de outubro de 1786, pedindo que a resposta fosse
encaminhada a Mr. Vigarons, Conselheiro do Rei e professor de Medicina na Universidade daquela
cidade. Então Jefferson respondeu com data de 16 de outubro. Em 21 de novembro, Vendek/Maia tornava
a escrever para Jefferson, recebendo resposta do ministro norte-americano com data de 26 de dezembro.
Nessa missiva Jefferson dizia estar pronto para marcar uma entrevista, em Montpellier ou nas suas
vizinhanças. Nova carta é escrita por Vendek em 5 de janeiro de 1787. Entre o recebimento desta por
T.Jefferson e o dia 4 de maio de 1787, data na qual esse ministro escreve a J. Jay, presidente do
Congresso no fito de colocá-lo a par dos acontecimentos, ocorreu o encontro. Idéas de Independencia no
Brazil. RIHGB. Rio de Janeiro, t. XLVII, parte I, 1884, p. 123-132.
178

disposto a introduzí-las no Brasil99. Desse acabaria se aproximando o visconde de


Barbacena, que então assumira o cargo de governador da capitania de Minas Gerais.
Barbacena era afeiçoado aos estudos de mineralogia e ofereceu ao jovem bacharel a
hospedagem no seu palácio de Cachoeira do Campo.
Varnhagen sugere como hipótese que José Álvares Maciel fosse um daqueles
doze estudantes anteriormente citados. A capitania de origem de Vidal Barbosa e
Maciel passara ao longo de quase cinco anos por uma série de insultos da parte do
governador Luís da Cunha de Menezes, cujo desgoverno – assim Varnhagen qualifica a
sua administração – resultara nas satíricas ‘Cartas Chilenas’100.
O retorno do jovem Dr. Maciel, considerou Varnhagen, teria dado alento quanto
a que fosse possível efetuar com bom êxito na capitania de Minas Gerais um levante,
caso o governador intentasse executar as ordens que trazia da Corte, qual seja, a de
cobrar, por meio de uma derrama geral, a grande soma de impostos devidos a título de
tributo do ouro. Haveria então um certo senso comum quanto às possibilidades de
condições a que viesse a um dia ocorrer, por meio de uma insurreição, a separação
daquela Colônia, ou partes dela, do reino português. Planos algo aéreos, segundo
Varnhagen. De acordo com o autor da História Geral do Brasil as conversas havidas a
respeito entre aqueles que foram apontados como conspiradores não autorizaria a
denominação dos pretensos planos como uma conjuração. E não havendo conjurados,
99
Na primeira edição (1857), Varnhagen assim escreveu: “...passára á Inglaterra, e ahi se applicára
muito ás artes e manufacturas, proposto a introduzil-as no Brazil, quando se effectuasse a revolução;
começando por estabelecer o fabrico da pólvora, para o que, afirmava elle com razão, não faltavam no
paiz os ingredientes.” VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Historia Geral do Brazil. Tomo II, Rio de
Janeiro: Laemmert, 1857, p.272. (grifo nosso).
100
Conforme observou Luiz Carlos Villalta, as ‘Cartas Chilenas’ compostas por Tomás Antônio Gonzaga
(algumas dessas cartas são atribuídas ao poeta Cláudio Manuel da Costa), e que circularam na forma
manuscrita em 1785, podem ser consideradas como antecipadoras de alguns princípios defendidos pelos
conjurados, não podendo no entanto “ser tomadas como pura expressão dos ideais da Inconfidência
Mineira de 1788-1789”. Assim, para o autor, as ‘Cartas Chilenas’ estão inscritas em uma tradição
discursiva de insulto e crítica de autoridades através de manuscritos anônimos, que então tomavam o
nome de pasquins, e guardam semelhança com os libelos – sob a forma de impressos – que exerceram
importante papel na corrosão do antigo regime francês. Escritas em versos decassílabos brancos, as
‘Cartas’ tinham como alvo Luís da Cunha Menezes, governador da Capitania de Minas Gerais entre 1783
e 1788. Conforme explica L.C. Villalta, nessa época a produção de textos estava sujeita aos preceitos
retóricos, e entre os gêneros discursivos definidos pela retórica encontrava-se o epidítico (ou exortativo),
o qual poderia assumir a forma de louvor ou elogio, bem como o de vitupério, ou crítica. Nas ‘Cartas’
Luís da Cunha Menezes passava a ser denunciado em seus desmandos e caracterizado como um tirano, ao
mesmo tempo que eram desenhadas as linhas gerais do bom governo. Ainda de acordo com Villalta, as
imagens do bom governo e da tirania conforme aparecem nas ‘Cartas Chilenas’ possuem convergências
com as teorias corporativas de poder da Segunda Escolástica (o sistema filosófico constituído no início da
Idade Moderna visando a revitalização da escolástica medieval, e que envolvia a releitura de autores
como Aristóteles e São Tomás de Aquino), com as Luzes e com as preceptivas retóricas. VILLALTA,
Luiz Carlos. As origens intelectuais e políticas da Inconfidência Mineira. In: RESENDE, Maria Efigênia
Lage de, VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.).História de Minas Gerais: as Minas Setecentistas. V.2. Belo
Horizonte: Autêntica, 2007.
179

não teriam havido também conspiradores ajuramentados em regra. A verdadeira idéia de


uma Conjura teria sido obra da imaginação de delatores como Joaquim Silvério dos
Reis, Basílio de Brito Malheiro e Inácio Correia Pamplona.
Assim, para Varnhagen teriam havido tão somente, conventículos ou conluios,
ou ainda conversações hipotéticas e reservadas, feitas quase de portas e janelas abertas,
e somente interrompidas com a entrada de algum profano. Nelas teriam sido ventiladas
de maneira mais insistente algumas idéias revolucionárias. Assim, teria havido somente
uma reunião, ocorrida na casa do tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada,
da qual participaram, além do dono da casa, os padres Carlos Correia de Toledo e Melo
e José da Silva de Oliveira Rolim, o Dr. José Álvares Maciel, o poeta Inácio José de
Alvarenga Peixoto e o Alferes Joaquim José da Silva Xavier, apelidado Tiradentes. Um
detalhe ressaltado por Varnhagen, retirado do depoimento de Tiradentes nos autos da
devassa é que nessa ocasião, à chegada do desembargador Tomás Antonio Gonzaga,
todos se calaram, o que para o autor significava uma forte evidência de que Gonzaga
não fazia parte daquele conluio.
Dessas personagens, devido a importância que o autor lhes empresta, merecem
maior atenção, tanto por seu envolvimento, quanto por sua inocência, respectivamente,
o Alferes Tiradentes e o Desembargador Gonzaga. Comecemos pelo último. Tomás
Antonio Gonzaga aparece sob a lavra de Varnhagen como um grande injustiçado que
jamais teria se associado a planos de insurreição. Gonzaga teria ciência da comoção a
que uma derrama levaria à Capitania, e se empenhara junto ao intendente Francisco
Gregorio Pires Monteiro Bandeira, e por fim, com o próprio governador, para que essa
não ocorresse, sendo que com a retirada dessa idéia, eram afastados também os
pretextos para um tumulto. Ademais, partira de Joaquim Silvério dos Reis, um
declarado inimigo de Gonzaga – além de notório devedor de somas do contrato de
entradas que tivera por sua conta de 1782 a 1784 – a acusação de ser um dos
conspiradores, no que Gonzaga teria até sido indicado para a chefia do movimento e
organização das novas leis. Essas mencionadas dívidas, sugere Varnhagen, Silvério
estaria tentando remir com a sua traição.
Diferente seria o caso do Alferes de cavalaria Joaquim José da Silva Xavier.
Havia se iniciado na profissão de dentista, daí ser denominado Tiradentes. Lançando-se
também no comércio como mascate, em Minas Novas, saiu-se mal, resolvendo então
sentar praça na cavalaria, no que revelou-se muito pontual nos seus deveres. Foi
promovido nos postos inferiores, e em virtude da ocorrência de guerras no Sul, seu
180

corpo de cavalaria chegou a marchar para o Rio de Janeiro. Promovido a alferes,


estacionou neste posto, sendo preterido às demais promoções. Varnhagen alega que o
Tiradentes, ‘candidamente’ alegava ser por falta de proteção; nesse aspecto, corrige o
autor, as preterições teriam sido “o geral conceito de ser um hábil tiradentes”.
Varnhagen julga importante acrescer que, “...para alguns dos malogros do mesmo
alferes em suas pretensões, além da circunstância de ser tiradentes, devia também
contribuir o seu físico. – Era bastante alto e muito espaduado, de figura antipática, e
‘feio e espantado’ .”101 Dedicando-se à mineração, saiu-se mal novamente, retornando à
atividade da tropa. Contava já mais de quarenta anos quando resolveu-se, na esperança
de melhorar a fortuna, investir em estabelecimento de trapiches e encanamentos para
suprir de mais águas a capital da Colônia, não conseguindo entretanto encontrar sócios.
É nesse momento, em visita ao Rio de Janeiro, que trava conhecimento com José
Alvares Maciel, que aportava no Rio de Janeiro em regresso da Europa. Maciel vinha a
ser filho do capitão-mór de Vila Rica.
Na ocasião em que se deu a única reunião entre aqueles que seriam indiciados
pela devassa, se tratou da conveniência de haver um levante, a ser iniciado pelo povo,
ao qual a tropa iria aderir, com o menor derramento possível de sangue. Não se deveria
esperar pelo rompimento do Rio de Janeiro. Julgava-se vantajoso caso se pudesse contar
com a capitania de São Paulo. A pessoa do governador seria respeitada, e o visconde de
Barbacena deveria ser escoltado até a fronteira, no registro de Paraibuna. Nessa ocasião,

“foi, pelos que estavam presentes, aplaudida a idéia do Tiradentes, mui


devoto do mistério da Santíssima Trindade, de tomar-se por armas um
triângulo, representando o mistério, à imitação de Portugal, que tinha as
Chagas de Cristo; e também, sem se votar pelas que seriam preferidas, pela
de Alvarenga, de um gênio quebrando os grilhões, com uma legenda em
latim a isso alusiva. Mas repetimo-lo, tudo isto não passou de conversação
hipotética: não houve decididas resoluções, a que se devesse começar a dar
cumprimento. Nem sequer se assentou em quem deveria ser o chefe. De todos
o que tomou o negócio mais a sério, constituindo-se verdadeiro cabeça do
motim, foi ainda o Tiradentes, que já não pensava em outra coisa; e quando
muito, depois dele, também o vigário Toledo. – Os demais, especialmente
Alvarenga e o tenente-coronel, pareceram antes, pouco depois, arrependidos
de se haverem deixado levar tanto adiante. Quase todos trataram sem
demora de se ausentar de Vila Rica; o tenente-coronel logo, com licença
para a sua fazenda de Caldeirões, com projetos de obter outra, a fim de
passar dentro de poucos meses ao Rio de Janeiro, à Bahia, e até a
Portugal.” 102

101
História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. T.4,7. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1962, p. 312-313. (grifo nosso).
102
História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. T.4,7. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1962, p. 313-314.
181

Na contramão desses acontecimentos e dessas personagens, o alferes Joaquim


José partiu para o Rio de Janeiro, de acordo com Varnhagen, sob a alegação de verificar
seu requerimento acerca dos trapiches e das águas, mas fazendo de forma indiscreta
diante da tropa a sua propaganda, na intenção de angariar aderentes à sua causa 103.
Vigiado por prepostos do vice-rei Vasconcelos, o qual havia sido alertado pelo visconde
de Barbacena, Tiradentes chegou a ser considerado como fora do alcance das
autoridades. Teria consigo muitas armas, o que provocou em Minas Gerais, por ação do
visconde de Barbacena, a prisão de vários dos implicados na suposta conjuração.
O poeta Cláudio Manoel da Costa, que contava então com sessenta anos de
idade, após ser interrogado uma só vez – em 2 de julho de 1789 – teria, seguimos aqui a
opinião de Varnhagen – se acovardado excessivamente, e atribuindo sua desgraça ao
castigo da justiça divina, se enforcado com uma liga, tendo sido encontrado dois dias
depois no cárcere.
Por sua vez, Tiradentes foi localizado em 10 de maio de 1789, no sótão de uma
casa da rua dos Latoeiros, no Rio de Janeiro. O visconde de Barbacena abriu devassa
em Minas, sendo tirada outra no Rio de Janeiro, pelo vice-rei. Em fins de 1790, se
instaurou a alçada para julgar os réus, os quais foram levados ante ela. As penas se
avizinhavam, e na conformidade das leis, seriam muito duras, com condenações à
morte, sendo os enforcamentos seguidos de esquartejamentos.
E tudo isso, nos informa Varnhagen, seria ‘com infâmia’, à qual chegaria aos
descendentes desses condenados. Alvarenga, Maciel e Vidal Barbosa revelaram o
quanto sabiam. No que respeita a Tiradentes, havia a princípio, tudo negado. Porém,
conforme a narrativa de Varnhagen, “...o mesmo [que seus companheiros] fez
‘religiosamente’ o Tiradentes ...(...)...quando se persuadiu, devoto como era, que estava

103
Entre a primeira e a segunda edição – que acabou servindo de base às demais – Varnhagen deu
retoques importantes a certas considerações que fizera sobre o Alferes, ao qual chamara de insignificante
e indiscreto, e ao qual o martírio do patíbulo viera conferir méritos que afinal, considerava o autor, ele
não tinha. Assim, a glória da primeira tentativa de independência passava a ser uma obra de patrícios
ilustres, bem como de vários indivíduos de letras e ciências. RODRIGUES, José Honório. Varnhagen,
mestre da História geral do Brasil. In: ___________. História e Historiografia. Petrópolis: Vozes, 2008.
Assim Varnhagen se referiu ao Tiradentes na primeira edição de sua História Geral (1857): “O alferes
Silva Xavier foi considerado cabeça; julgando os juízes necessário para o escarmento público algum
exemplo, votaram por que fosse ao patíbulo o insignificante e indiscreto Tiradentes”. A isso associava-se
uma nota esclarecedora: “...«Sendo talvez por esta descomedida ousadia, com que mostrava ter
totalmente perdido o temor das justiças e o respeito e fidelidade devida à dita Senhora (Rainha),
reputado por um heroe entre os conjurados.» Sentença etc., na Rev. do Inst., Tom VIII, p. 318. Dizia «que
os Cariocas americanos eram fracos, vis e de espíritos baixos, porque podiam passar sem o jugo que
soffriam e viver independentes do reino, e o toleravam» etc. Sentença, na Rev. do Inst., VIII, 319.”
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Historia Geral do Brazil. Tomo II, Rio de Janeiro: Laemmert,
1857, p.279. (grifos do autor).
182

de Deus que tudo ficasse sabido. Os seus depoimentos últimos merecem, pois, o
conceito de um relato muito verdadeiro de quanto se passou.”104
Lidas as sentenças, eram condenados à morte, para serem enforcados com
infâmia, o Tiradentes, Alvarenga, Freire de Andrada, Maciel, Abreu Vieira, Vaz de
Toledo, Oliveira Lopes, Vidal Barbosa, os Rezendes – pai e filho – e o Amaral Gurgel.
Nas palavras do autor da História geral do Brasil,
“Felizmente, não tinha para todos de executar-se a dura sentença. Ocupava
o trono uma piedosa rainha, que havia com tempo prevenido contra a
severidade do código criminal do país, o livro quinto das Ordenações
Filipinas. Por carta régia de 15 de outubro de 1790, dirigida ao chanceler,
juiz da alçada, fora ordenado que, aos próprios chefes da facção, a pena
ficasse limitada a degredo; exceto quando fosse isso absolutamente
impossível, pela atrocidade e escandalosa publicidade de seu crime,
revestido de tais e tão agravantes circunstâncias que fizessem a comiseração
impossível. Esse ato da boa alma da primeira testa coroada, que veio em
pessoa com o diadema ao novo mundo, fará todos os brasileiros bendizer a
memória desta ínclita herdeira da piedosa Santa Isabel, da talentosa rainha
D. Catarina (mulher de D. João III) e da intrépida esposa do primeiro rei
bragantino...”105

Conforme explicou Arno Wehling, “na obra de Varnhagen, os atores e a


dinâmica social convergem para um ponto teleológico que é a formação brasileira,
entendida sobretudo mas não exclusivamente, como a constituição da base territorial e
da etnia.”106 A partir dos pontos que fomos frisando, talvez já possamos sustentar que a
história saída da lavra de Varnhagen pode ser qualificada como elitista, de elogios ao
Estado e ao Reino português. A essas características, a historiadora Alice Pffeifer
Canabrava acresce que apesar de raros os autores estrangeiros citados nas cartas de
Varnhagen, “sua preocupação e maestria quanto à exegese documental parecem
revelar a influência de Ranke”. Ainda para essa autora, a História Geral, “construída
essencialmente com documentos, correspondia sob esse aspecto, aos preceitos do
Instituto”.107 Mas, completa Canabrava, teria havido da parte do Visconde de Porto
Seguro,

“...uma nova tessitura mental no trato dos textos. A análise crítica rigorosa
precede o reconhecimento da validade das fontes e sua erudição se nutre do
conhecimento extenso das mesmas. Afasta o lendário e o maravilhoso, assim
como os juízos de valor alimentados pelo ufanismo. A História Geral se filia

104
História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. T.4,7. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1962, p. 319.
105
Ibidem, p. 320.
106
Estado, História, Memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999, p.186.
107
Apontamentos sobre Varnhagen e Capistrano de Abreu. Revista de História. São Paulo, USP, 18 (88),
out. dez. 1971, p. 418.
183

à história filosófica, inscrita entre os objetivos do Instituto, ou seja, aquela


que deve ser dominada pelo pensamento científico, pela soberania da
razão.”108

Observou Arno Wehling (1999) que Varnhagen teria sido para o caso brasileiro
um exemplo característico da ‘culture savante’, que conforme o autor deve ser
associada no plano europeu ao conservadorismo da Restauração. Para Wehling a culture
savante conforme ocorrida no Brasil acabaria se estendendo por mais tempo que na
Europa, sendo seus traços: 1. O tradicionalismo contra revolucionário; 2. A
identificação com as minorias privilegiadas pelo nascimento ou pelo talento; 3. O
nacionalismo (contra o cosmopolitismo iluminista); 4. O predomínio da literatura sobre
a ciência, mediante o deslocamento do interesse pelas ciências sociais para o romance, a
poesia, o panfleto político e a reflexão filosófica; 5. O individualismo irracionalista e
místico, o que iria contra o equilíbrio classicista; e, 6. O desprezo pela cultura popular,
“exceto como recurso ao folclore para a valorização do nacional”109.
Ainda de acordo com Wehling, a tipologia da culture savante aplica-se quase
que integralmente à obra de Varnhagen, por tanto ter esse pretendido valorizar o Estado,
a Nação e o indivíduo criativo. Quanto às minorias estamentais é possível defender que
Varnhagen catalizou ideologicamente os seus anseios, alimentando com os frutos do seu
ofício algumas exigências da cultura típica de uma sociedade de corte – situação que
perdurou com o Estado Monárquico até 1889 – tendo contudo começado a entrar em
crise por volta de 1870.
Varnhagen colhera muitas críticas e parcela significativa dessas, ao que nos
interessará, ocorreram justamente no pós 1870, ou seja, a partir de uma geração a qual
pertencem Capistrano de Abreu e Sílvio Romero, mas também autores da influência de
José Veríssimo e João Ribeiro110.

108
Idem, Ibidem, p. 418-419.
109
Estado, História e Memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, p. 48.
110
Na fundamentada opinião de José Honório Rodrigues, a História do Brasil (Curso Superior), de
autoria de João Ribeiro, se limitou a uma contribuição à cultura escolar, tendo exercido enorme influência
didática, mais infelizmente tendo surgido cedo demais (1900), para beneficiar-se das lições desenvolvidas
por Capistrano de Abreu. Esclarece J.H.Rodrigues que João Ribeiro, influenciado por Martius, notou em
cada um dos núcleos primitivos da nação, um sentimento característico. Assim, na Bahia, seria a religião
e a tradição, em Pernambuco, o radicalismo republicano; em São Paulo, mas também em Minas e no Rio,
o liberalismo moderado; o Amazonas seria demasiadamente indígena; e no extremo sul, o Rio Grande,
demasiadamente platino. Contudo João Ribeiro não realizara nenhuma pesquisa decisiva, “embora
trouxesse alguma contribuição importante ao nosso saber histórico. Alguns subsídios originais, algumas
interpretações felizes podem realmente ser destacadas no seu compêndio superior de História do Brasil.”
Arno Wehling classificou esse livro de João Ribeiro como sendo, quando do seu surgimento (que
antecede em sete anos aos Capítulos de História Colonial), como uma “alternativa teórica à visão
varnhageniana dominante na historiografia brasileira”, embora Ribeiro não tenha colocado a questão em
184

Entre as críticas colhidas por Varnhagen talvez a primeira tenha vindo da pena
de Marie-Armand d’Avezac de Castera. D’Avezac, como era mais conhecido, disse que
Varnhagen aplicara o plano de Von Martius oferecido ao Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro como modelo para a escrita da História do Brasil. Relata Alice P.
Canabrava que o Visconde de Porto Seguro achou injusta a crítica daquele respeitável
membro da Sociéte de Géographie, mas resolveu fazer sua réplica debandando para a
trivialidade que era àquele momento a ‘fórmula’ de Martius.
Essas críticas de d’Avezac parecem ter afetado bastante os brios de Varnhagen,
dado que entre a primeira e a segunda edição ele tratou de fazer alterações substanciais
nas seções da sua História Geral111. José Honório Rodrigues localiza a raiz de tais
problemas na periodização, pois lhe pareceu que apesar de notoriamente inspirado em
Martius, Varnhagen teria seguido quase que as mesmas linhas mestras de Southey, ou
ainda de autores mais antigos que dividiam a história em décadas 112. As considerações
de Varnhagen sobre a obra de Southey não tentaram esconder as reservas que
Varnhagen dele fazia. Aquilo decididamente não era para o Visconde de Porto Seguro a
História do Brasil, mas bem que poderia ser intitulada como ‘memórias para escrever-

termos polêmicos, expondo sua própria síntese sem contrapor-se à de Varnhagen. O Brasil
contemporâneo derivaria, para João Ribeiro, “do colono, do jesuíta, do mameluco, do índio e do escravo”.
Contudo, no capítulo VI do livro de João Ribeiro, intitulado “A formação do Brasil; a) História comum”,
o autor realiza críticas à condescendência pela qual fora tratada a escravidão indígena. Resta dizer que a
crítica de João Ribeiro se estendia não somente aos paulistas, mas também aos jesuítas, que mesmo em
suas tentativas de defesa dos indígenas, tentavam opor-se aos planos de má-fé dos colonos, mascarando
no entanto suas próprias ações sob a aparência de bons propósitos. Em sua História da literatura
brasileira, José Veríssimo classificou a História Geral do Brasil como providencialista e uma apologia da
razão de Estado. Varnhagen não poderia ser admitido no universo dos românticos, apesar de
cronologicamente pertencer a essa geração, por sua recusa ao indianismo. Para Veríssimo, fôra da sua
estirpe germânica que Varnhagen tirara seu instinto de veneração e respeito aos magnates, aos poderosos,
às instituições consagradas e coisas estabelecidas. Como historiador raro achava-se a censurar os que
detem o mando, esforçando-se por lhes encontrar razões e desculpas. Quanto às instituições, descobre-
lhes ou inventa-lhes virtudes e benefícios. No mais, “mal pode esconder o júbilo e a vaidade pela troca
feita pelo imperador, seu amigo e protetor, do seu nome já glorioso de Varnhagen pelo de Visconde de
Porto Seguro.” Cfe. RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil: Introdução metodológica.
4.ed. São Paulo:Companhia Editora Nacional, 1978, p.138-139; WEHLING, Arno. Estado, História,
Memória: Varnhagen e a Construção da Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999,
pp.202-203; RIBEIRO, João. História do Brasil:curso superior. 19.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1966, p. 165 e seguintes; e, VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira
(1601) a Machado de Assis (1908). 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954, 190-194.
111
Parte das críticas recebidas era devido a Varnhagen, na primeira edição do livro (1854) abrir o
primeiro volume da obra justamente com a narrativa da viagem de Pedro Álvares Cabral. Observou Lucia
Maria Paschoal Guimarães que boa parte das censuras vieram do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Na segunda edição da obra Varnhagen tratou alterar a ordem dos dez primeiros capítulos. Mas
se o indianismo romântico do Instituto prezava pela valorização aos “verdadeiros donos da terra”, o
comentário da autora é que “a alteração efetuada não provocou nenhuma revisão de caráter
interpretativo” Francisco Adolfo de Varnhagen. História Geral do Brasil. In: MOTA, Lourenço Dantas.
(org.) Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. 2.ed. São Paulo: Senac, 2002, p.79-80.
112
Teoria da História do Brasil: introdução metodológica. 4.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1978, p. 132.
185

se a História do Brasil e dos países do Prata, etc... .113 Certamente o juízo sintético
formulado por Sérgio Buarque de Holanda sobre Varnhagen lhe faria justiça: não era
espírito ameno e tolerava mal oficiais do mesmo, por temor que pudessem fazer sombra
aos seus altos méritos. Eriçava-se à menor possibilidade de ação de detratores reais ou
imaginários, pois ciumento das glórias e gloríolas que não se achassem ao seu
alcance114. Conforme a profética expressão de Capistrano de Abreu, aqui tomada de
forma livre, Varnhagen seria lido por poucos.
Nesse sentido, alguns esclarecimentos se fazem necessários. Conforme observou
Lucia Maria Paschoal Guimarães (2011), o emblemático livro de Varnhagen, ‘História
Geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal’ fora editado em
Madrid, entre 1854 e 1857. Essa historiadora lembra que embora a historiografia
contemporânea vincule essa obra como contribuição chancelada pelo IHGB, a verdade é
que o Instituto Histórico não avalizou o livro naquela época. Naquele Instituto, a obra
de Varnhagen enfrentara o crivo agudo da comissão de ‘História’, a qual cabia emitir
parecer sobre o mérito e a conveniência da publicação, e a comissão de ‘Redação’, a
qual cumpria selecionar dentre os textos aprovados, aqueles que seriam impressos e
publicados na Revista do IHGB115. Observa ainda a autora que entre a pretensão de
Varnhagen e o efetivo acolhimento da obra pelo IHGB haveria uma grande distância. E
segundo ela, tão grande que,

113
Arno Wehling considera que Varnhagen tenha sentido uma identificação com o clima intelectual do
romantismo filosófico. Ora, ainda de acordo com esse autor isso teria feito o Visconde de Porto Seguro
identificar-se com a questão da moral, a concepção do Estado como ser vivo – em oposição a uma fria
concepção mecanicista do Iluminismo. Seus valores morais estariam em conformidade com aqueles
definidos pelo Cristianismo. Os elementos constitutivos do Estado seriam para ele, a tradição, autoridade,
organicidade, natureza espiritual e natureza moral. Ao fazermos uso das contribuições de Maria Odila da
Silva Dias para a compreensão da obra de R.Southey – no que pese esse ser anglo-saxão e protestante –
nos inclinamos a ver algumas aproximações desse autor com Varnhagen: a idéia da continuidade do
processo histórico, enquanto uma das características da ideologia conservadora da História; a busca no
passado de um fio de evolução lenta que não implicasse rupturas e desenraizamento, a descrença quanto a
saltos milagrosos e revoluções súbitas e a própria idéia de nação que teria em seu cerne as tradições,
costumes e religião e até mesmo a revolta contra a tendência dos historiadores do século XVIII de
desprezar os fatos em favor das teorias: tanto Southey quanto Varnhagen criticaram abertamente a
J.J.Rousseau por suas teorias abstratas. Talvez as similaridades fiquem por aí. Pois Southey guardava
afinidades com a narrativa romântica de W.Scott, Carlyle e J. Michelet, desprezava a visão dos que
pretendiam ver pelo alto as relações da sociedade e além de tudo, tentava imprimir na sua narrativa a
capacidade de comunicar vida ao passado, pois entendia que a história devia recriar a vida, e por isso,
requeria antes a forma – de uma narrativa que como um romance aparecesse divertida ao leitor – do que a
interpretação racional. Ver. DIAS, Maria Odila da Silva. O fardo do homem branco: Southey, historiador
do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974; e, WHELING, Arno. Estado, História,
Memória: Varnhagen e a Construção da Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
114
Idem, ibidem, p. XIV-XV.
115
Debaixo da imediata proteção imperial: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). 2.ed.
São Paulo: Annablume, 2011.
186

“nem mesmo a intervenção do seu augusto padrinho conseguiria superar.


Basta dizer que no Instituto Histórico leu-se apenas o ‘Índice’ do livro, antes
da sua publicação, por iniciativa de D. Pedro II. A leitura provocou
questionamentos. Uma pista que o ‘Índice’ não obteve boa recepção está no
ofício que o Imperador mandou remeter a Varnhagen, sugerindo-lhe
consultar algumas monografias apresentadas recentemente no IHGB, que
abordavam (...) ‘questões relativas à civilização dos indígenas, à influência
que tiveram os jesuítas nos negócios do Brasil, e aos limites (...) do Sul’.
Recomendava-lhe, em especial, o exame da ‘Memória’ redigida pelo
brigadeiro Machado de Oliveira, sobre a demarcação da fronteira do Rio
Grande, com a Argentina e o Uruguai.”116

Ao atacar os indígenas, Varnhagen teria ferido os brios daqueles que


professavam o indianismo romântico117, que conforme vimos constituía um dos três
eixos do status quo Saquarema. Ainda assim, por sua relação próxima com o Imperador,
do qual recebera patrocínio para executar a obra, Varnhagen tentaria, em vão, não
somente dar um caráter oficial ao seu trabalho, vinculando-o ao Instituto, mas também
prosseguir um tanto além. Ouçamo-no,
“Ao Imperador D. Pedro II. Madrid, 14 de julho de 1857.
Senhor,
Chegou a hora de poder humildemente comparecer ante o Throno
de V.M.I. com o 2º volume concluído da Historia Geral do Brasil, depois de
haver trabalhado às vinte horas por dia, de forma que quase sinto que estes
últimos seis annos da vida me correram tão largos como os trinta e tantos
anteriores. – Ao ver a final concluída a obra, não exclamei, Senhor, cheio de
orgulho, ‘Eregi monumentu aere perennius’ a minha triste peregrinação pela
terra. Porém cahí de joelhos, dando graças a Deus não só por me haver
inspirado a Idea de tal grande serviço à nação e às demais nações, e
concedido saúde e vida para o realizar (sustentando-me a indispensável
perseverança para convergir sobre a obra desde os annos juvenis, directa e
indirectamente, todos os meus pensamentos), como por haver permittido que
a podesse escrever e ultimar no reinado de V.M.I., cujo Excelso Nome a
posteridade glorificará, como já o universo todo glorifica a sua sabedoria e
justiça. Enlevado em tão lisongeiros pensamentos, ia eu, quiçá, a
desvanecer-me com a Idea de que também a Historia Geral, por um súbdito
seu, amparado por V.M.I, viria a ajudar ao universal applauso, quando não
sei por que máu presentimento, cahí no presente; puz-me a pensar na dádiva
que sem ter honras, nem deveres de chronista mor, ia, depois de tantos
soffrimentos, de tantos suores, de tanto duvidar, de tanto errar e corrigir, de

116
Ibidem, p. 118. (grifos da autora). Em obra posterior Lucia M. P. Guimarães voltaria a esse tema.
Naquela época o Instituto professava o indianismo romântico, e exaltar o índio “se constituía na suprema
manifestação do nativismo, o Instituto Histórico dificilmente iria avalizar as idéias e as expressões que
Varnhagen utilizou no tratamento dos primitivos habitantes da Terra de Santa Cruz...(...)... Como se isso
não bastasse, ele ainda desqualificou o papel desempenhado pelos jesuítas, responsáveis por (...)
providências de mal-entendida filantropia no processo civilizatório.” Da Escola Palatina ao Silogeu:
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2006, p.
122.
117
Assim Gonçalves de Magalhães iniciava a sua memória intitulada ‘Os indígenas do Brasil perante a
Historia’: “Quando no estudo da historia, religião, usos e costumes de um povo vencido e subjugado
outros documentos não temos além de chronicas e relações de conquistadores, sempre empenhados em
todos os tempos a glorificar seus actos com apparencias de justiça, e a denegrir as suas victimas com
imputações de todos os gêneros; engano fora si cuidássemos achar a verdade e os factos expostos com
sincera imparcialidade, e devidamente interpretados.” Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro, 1860, t. XXIII, v. 23, p.3.
187

tanto arrepender, de tanto cortar e riscar, de tanto collocar e deslocar, ia,


digo, fazer as turbas invejosas e geralmente daninhas...e então, Senhor, sem
vergonha o digo, desatei a chorar como uma criança, apezar das cans que já
apparecem...E falo só de trabalhos, porque ao lado elles são nada mais de
cinco contos de réis pela impressão e gravuras, dos quaes não espero cobrar
nem metade, ainda quando V.M. a mande adoptar nas escolas de direito e
militares e nos colegios, que será a melhor maneira de fazer que no seu
imperio não só todos leiam e conheçam a pátria historia, como lhe dêem
mais importância e haja maior numero de applicados a esclarecel-a, ainda
quando, dado uma vez o impulso, o soberano deixe de assistir às sessões do
Instituto....” 118

Conforme é sabido, a ‘História Geral do Brasil’ não seria adotada nas escolas de
direito e militares, nem tampouco nos colégios da Corte ou das Províncias. Varnhagen
não se tornaria o ‘cronista mór’ do Império, e até onde somos informados, o Imperador
não deixou de participar das sessões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, para
o qual aliás, franqueara e continuaria a ceder até a sua partida para o exílio algumas
instalações no próprio Paço Imperial. Escrevendo no início dos anos 1970, a
historiadora Alice Pffeifer Canabrava classificou, ao nosso entendimento
acertadamente, a História Geral do Brasil como sendo o monumento da historiografia
brasileira do século XIX119.
Capistrano de Abreu, com sua benéfica influência sobre os demais historiadores,
sempre incentivara a leitura da História Geral do Brasil, pois mesmo sob certa crítica
cientificista, Varnhagen continuou paradigmático – tanto pelo uso das fontes, quanto
pela sua concepção – de uma certa maneira de produzir a história do Brasil. Conforme
observa Arno Wheling, Varnhagen,
“permaneceu como o modelo dominante para a maioria dos trabalhos
publicados pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, quer em sua
revista, quer nos congressos que patrocinou, como o I Congresso de História
Nacional, de 1914, e o Congresso de História da América, de 1922. O
mesmo pode ser dito da produção dos institutos históricos estaduais ou da
orientação que presidiu à publicação das grandes coleções documentais,
como os Anais e os Documentos históricos da Biblioteca Nacional, as
Publicações do Arquivo Nacional e os Documentos interessantes para a
história de São Paulo.”120

Podemos então dizer que na História Geral do Brasil, a nação brasileira que
vemos passo a passo ser construída, nas páginas alinhadas por Varnhagen, segue uma

118
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Carta dirigida a D. Pedro II, datada de Madrid, 14 de julho de
1857. In: ______. Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro Lessa. Rio de Janeiro:
Mec, 1961, p. 242-243. (grifos do autor).
119
Apontamentos sobre Varnhagen e Capistrano. Revista de História. São Paulo, USP, 18 (88), out.dez.
1971.
120
Estado, História, Memória: Varnhagen e a Construção da Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999, p. 203.
188

espécie de decalque lusitano na América. Ela aparece desenhada como uma


transposição de Portugal para os trópicos: as instituições, os códigos, a língua de
Camões triunfante a expulsar o ‘dialeto brasílico’ ou língua geral, tolerado somente por
força da catequese. Ilustrado Pombal, diria Varnhagen, que a baniu em 1758, por estar
associada aos jesuítas. Na execução da sua História Geral do Brasil ele se alegra a cada
nova leva de imigrantes portugueses. A nação seria branca!121
Ora, essa forma de entendimento da História fazia da antiga metrópole a mãe-
pátria, pois pela concepção de Varnhagen a nação não se forma por uma acaso
histórico, haja visto sua construção demandar de ações de um centro capaz de orientar e
coordenar seus passos. Os negros e índios eleitos para ocupar as páginas das lições de
História deveriam ser evidenciados por sua lealdade aos interesses metropolitanos. Mas
teriam que ser metamorfoseados, nobilitados com o recebimento de honrarias,
branqueados culturalmente diríamos. Teria sido assim com o chefe tamoio Martim
Afonso Ararigbóia, que lutara ao lado dos portugueses contra o estabelecimento no Rio
de Janeiro de uma ‘França Antártica’, mas também do negro Henrique Dias e do índio
Felipe Camarão, tornados heróis pela insurreição que expulsou os holandeses do
nordeste brasileiro no século XVII.
Desses dois últimos, Charles Ralph Boxer dá notícias de terem obtido o hábito
da Ordem de Cristo – a mais importante das Ordens Militares de Portugal – no grau de
Cavaleiro122. O Império brasileiro seria então uma ilha de tranqüilidade, espécie de
herdeiro na América, não somente do território do Império Ultramarino Português, mas
também aspirante a suceder nos trópicos a esse ramo latino da civilização européia, no
que podia contar ainda, com um representante da Casa de Bragança em seu Trono.
Seria porém, conforme já vimos, sob uma versão didática produzida pelo
jornalista, romancista e professor Joaquim Manuel de Macedo, que Varnhagen, ou
melhor dizendo, a versão por ele composta para a História do Brasil seria popularizada.
A primeira edição das ‘Lições de História do Brasil’ surge em 1861, e a segunda vem a

121
Segundo apontou Nilo Odália, sob a ótica de Varnhagen a vitória final do branco não seria um ato
histórico casuístico, mas “a concreção de uma forma superior de civilização” que deveria indicar o
caminho a ser seguido pela nova nação. Nesse sentido, a nação de Varnhagen passa a ser compreendida
“como um bloco monolítico, onde qualquer voz discordante é um perigo e uma ameaça a serem
extirpados. As soluções variam – miscigenação forçada, centralismo, autoritarismo – , os objetivos são
os mesmos: preservação da unidade, preservação das condições que tornaram possível a colônia.” Ainda
para o autor, na ótica varnhageneriana a civilização européia “é superior porque ela traz lei, ordem,
religião e autoriade – elementos básicos para a constituição de uma nação.” Varnhagen: história. São
Paulo: Ática, 1979. As citações encontram-se às p. 20 e 22-23.
122
O Império colonial português. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 293. As outras ordens militares, conforme
sabemos eram as de Avis e Sant’Iago.
189

lume já em 1865. A nona edição é publicada em 1905 e a décima seria impressa em


1907! Além de membro prestigioso do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
Macedo ainda era apresentado em seus livros, muitos anos após a sua morte, na
qualidade de “Professor de Historia e Chorographia patria do antigo Collegio de
Pedro II”. O título era complementado ainda em suas últimas edições – a última da qual
temos conhecimento, data de 1922 – pelas palavras “Para uso das Escolas de
Instrucção Primaria”, sendo que logo abaixo havia pistas sobre a abrangência do livro,
“ obra adoptada pelo Conselho Superior da Instrucção Publica para uso das Escolas
de Ensino Primario”.
Cumpriria dizer, valendo-nos de Arno Wehling, que,
“as lições de Macedo foram a transposição, para o plano da escola
secundária, da História Geral de Varnhagen. Animava-o o mesmo espírito
nacionalista, romântico e historista, a mesma visão politocêntrica e estatista
da história, a preocupação com heróis e campanhas militares vitoriosas, a
defesa da unidade nacional”.123

Com o desaparecimento de Varnhagen, coube ao então orador do Instituto


Histórico e Geográfico Brasileiro, ninguém menos que Joaquim Manuel de Macedo,
proferir o seu necrológio. Macedo tece então as referências biográficas do pranteado
historiador, enfatizando sua ascendência germânica, para logo tratar de forma resumida
a sua vida diplomática a serviço do Império. Então, passava Macedo a ressaltar o perfil
do historiador homenageado, pois,
“Varnhagen fizera do santo ócio do maior numero dos diplomatas do
Imperio labor santo dedicado às investigações históricas da pátria.
Engolfara-se nas bibliothecas, empoeirára-se nos archivos, compulsára
centenas de livros, achára thesouros e fontes de luz em obras raras,
descobrira em arcas antigas manuscriptos e documentos importantíssimos,
empregara longos annos em profundos estudos, e na accumulação de pecúlio
immenso de conhecimentos, e finalmente em 1854 e 1857 deu ao prelo a sua
Historia geral do Brasil, diadema litterario e scientifico que cingiu
dignamente sua fronte de historiador”124.

Conhecedor da obra de Varnhagen, não deve ter sido difícil para Joaquim
Manuel de Macedo, no que cumpria aos méritos do historiador falecido, compor o seu
elogio fúnebre. Tarefa de maior complexidade, seria utilizar cuidadosamente as
palavras, para poder retratar o gênio irascível do visconde de Porto Seguro porém
mantendo o espírito conciliador exigido pela ocasião. Romancista e jornalista, artesão

123
WEHLING, Arno. Estado, História, Memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.213.
124
Discurso. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, t.41, parte II, 1878, p.
483-489.
190

das palavras, Macedo encontrava então sob a fórmula “Pythagoras magister dixit” a
saída para retratar o espírito de ditador de sentenças que movia a prática historiadora de
Varnhagen.
Por fim, nos inclinamos a concordar com o historiador Ronaldo Vainfas, em
seus comentários à História Geral do Brasil, feito com vistas a qualificar o trabalho de
Capistrano de Abreu. Para Vainfas, Varnhagen louvara a colonização portuguesa, bem
como sua obra expansionista. Do seu conceito de civilização já tecemos comentários. O
intuito de Varnhagen fora tecer loas para a dinastia de Bragança, em detrimento da
monarquia de Avis. Varnhagen fizera uma história elitista e laudatória, pois desprezava
o índio e mal falara do negro. De resto, desqualificara as rebeliões, sobretudo por seu
apelo popular125.
Mas, visando o futuro, fosse como programa de trabalho a congressos de
História, ou como peça de consulta documental, até mesmo pela falta de monografias
que se faziam necessárias, Varnhagen permaneceria em seu pedestal, absoluto, quase
intocável, e na plenitude do termo, monumental!

125
Capistrano de Abreu. Capítulos de História Colonial. In:MOTA, Lourenço Dantas. Introdução ao
Brasil. Um banquete no trópico. 3.ed.São Paulo: Senac, 2007.
191

4 – O Atelier dos historiadores

“...estou resolvido a escrever a História do Brasil, não a que sonhei há muitos anos

no Ceará, depois de ter lido Buckle, e no entusiasmo daquela leitura que fez época

em minha vida – uma História modesta, a grandes traços e largas malhas, até 1807.

Escrevo-a porque posso reunir muita cousa que está esparsa, e espero encadear melhor

certos fatos, e chamar a atenção para certos aspectos até agora menosprezados.

Parece-me que poderei dizer algumas coisas novas e pelo menos quebrar os quadros de

Ferro de Varnhagen que, introduzidos por Macedo no Colégio de Pedro II, ainda hoje

são a base de nosso ensino. As bandeiras, as minas, as estradas, a criação de gado pode

dizer-se que ainda são desconhecidas, como, aliás, quase todo o século XVII, tirando as

guerras espanholas e holandesas.” Carta de Capistrano de Abreu ao Barão de Rio Branco.

Rio, 17 de abril de 1890.

Conforme vimos no capítulo anterior, a versão formulada por Francisco Adolfo


de Varnhagen em sua História Geral do Brasil desfiava três séculos de colonização, nos
quais a civilização portuguesa, transplantada para os trópicos reagira de forma vigorosa
ao embate com a selvageria dos indígenas americanos. A esse ramo da raça latina
protagonista da cena histórica teria cabido apropriar-se da nova terra e defendê-la da
cobiça de outros povos europeus, dessa vez auxiliada por índios e negros agora tornados
seus coadjuvantes. Quanto à formação da nação, caberia aos não brancos, segundo a
ótica de Varnhagen, desaparecer, ou melhor, metamorfosear-se sob a aparência branca1,
em um processo de cruzamentos raciais que então somava mais de três séculos.
A natureza do território americano havia sido domada no ato de devassamento
feito pelos portugueses, logo transformados no brasileiro. Porém, o avanço sobre esse
imenso espaço geográfico não aparecia como uma construção premeditada dos colonos.
É verdade que os sertanistas de São Paulo avançaram sob terras que estavam fora da
tutela portuguesa, a considerar os tratados assinados entre Portugal e Espanha. No
1
ODÁLIA, Nilo. As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e
Oliveira Vianna. São Paulo: Unesp, 1997.
192

entanto esses paulistas iam à procura de índios, o que faziam em razias. Aqueles rápidos
golpes de mão não mantinham nenhum domínio sob o território, embora fizessem
brecar o assanhado avanço dos jesuítas espanhóis. A seguirmos Varnhagen, as ações
passadas na Colônia aparecem como simples caixa de ressonância daquilo que se
articulava além mar, e suas resultantes meras tratativas a título precário, pois a
verdadeira homologação dos atos passados acerca do território encontram-se sempre
adscritas às ações das coroas portuguesa e espanhola em suas torres de marfim
européias.
Dessa forma, os atores que determinam o território brasileiro não se encontram
na América, mas na Europa, e seus instrumentos são os tratados que as diplomacias
portuguesa e castelhana discutem. Os grandes heróis para Varnhagen não seriam os
bandeirantes, apesar de nutrir por esses certa simpatia, mas Alexandre de Gusmão e
outros homens de Estado que lograram demarcar o solo para que o Império Português
ganhasse forma na América. Assim, as ações que se passaram na América teriam sido, a
considerarmos a ‘História Geral do Brasil’, episódios subsidiários encenados por atores
secundários – para não dizer marginais – quando comparados ao que se passava
principalmente na península ibérica, pelas conversações relativamente contínuas entre
Portugal e Espanha2.
Não se trata aqui de negar o protagonismo aos atores coloniais3, mas de
reconhecer que em uma obra como a de Varnhagen, que cumpre perceber, valorizava o
Estado português, a dinastia portuguesa, e a etnia branca, havia uma hierarquia bem
marcada – como diria-se posteriormente uma velha história política vista por cima – e o
que contava afinal, eram as decisões tomadas nas Cortes européias, as discussões
enfeixadas a partir das chancelarias das potências do Velho Mundo, cuja visão

2
Essa afirmação fica evidente pelos títulos escolhidos por Varnhagen para os capítulos da História Geral
do Brasil. Como exemplificação, vejamos o Tomo III: “XXXV. – Os dois Estados (Do Maranhão e do
Brasil) Até a Paz de 1668”; “XXXVI. – Desde o Tratado de 1668 até a execução do de 1681”; “XXXVII. –
Desde o Tratado de 1681 até o de Aliança em 1703”; ou ainda, “XXXVIII. – Consequências da Liga de
1703 até as Pazes de Utrecht (1715)”. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil:
antes de sua separação de Independência de Portugal. 7.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 8-9.
3
Conforme explica Arno Wheling, foram traçados aspectos tanto positivos quanto negativos para
personagens, entidades coletivas e coletividades pelo autor da História Geral do Brasil. Assim, aos
portugueses ficava realçada a ‘energia’, cabendo aos bandeirantes e aos índios, a ‘audácia’. Quanto aos
indígenas ocorre uma oscilação entre aspectos positivos e negativos: ‘força física’ aparece contraposta à
‘crueldade’, ao ‘espírito traiçoeiro’, ao ‘egoísmo’(no caso do homem índio) e à ‘volubilidade’, esse
aspecto sendo estendido também aos negros. Para personagens históricos individuais, onde a positividade
liga-se a traços que realçam a civilização, a simpatia de Varnhagen parece dirigir-se a homens como
Alexandre de Gusmão: ‘talento’ e ‘memória’; Marquês de Pombal: ‘sagacidade’; D. José I: ‘probidade’,
‘nobreza de caráter’, ‘benignidade’; e, Gomes Freire: ‘garbo’ e ‘simpatia’. Estado, História, Memória:
Varnhagen e a Construção da Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
193

geopolítica tinha que abarcar obrigatoriamente um império ultramarino como o


português.
O que estava em jogo portanto era muito mais que simplesmente o território
americano. Uma exemplificação feliz e isenta dos ranços conservadores do modelo
histórico varnhageneriano nos é oferecida por historiadores como Charles Ralph Boxer
e Evaldo Cabral de Mello ao tratarem da guerra de oitenta anos que travaram os
holandeses com a Espanha, pela sua Independência.
Colhido pela ‘União Ibérica’, Portugal se viu envolvido nessa luta, tendo de
acordo com Boxer, sofrido dos holandeses nas suas possessões coloniais os ataques
mais persistentes e pesados. Foi a partir da ocupação holandesa no nordeste açucareiro
que Varnhagen produziu com magnificência as suas narrativas de resistência e de
batalhas que o autorizaram a construir, ao término da guerra, parte do seu panteão de
heróis coloniais. Porém, cabe ressaltar que seguidamente ao triunfo dos valentes terços
criados por negros, índios e portugueses, ocorreram negociações onde foram colocados
sobre a mesa, a título de indenizações, alguns milhões de cruzados4. Na holística
percepção de Boxer, o resultado final da luta entre portugueses e holandeses fora
equilibrado: “vitória para os Holandeses na Ásia, um empate na África Ocidental e
vitória para os portugueses no Brasil”5
Apesar da História Geral do Brasil continuar como a grande referência para a
historiografia nacional, entrados os anos 1870, algumas novas influências se faziam
sentir na sociedade brasileira. A geração de Varnhagen fora a responsável por fazer uso
da escrita da História para inventar o Estado e a Nação. Porém, de acordo com a
significativa expressão cunhada por Arno Wehling (1991), faltava àquele Estado-Nação
o encontro com o seu povo e essa foi a tarefa-desafio enfrentada pela geração de João
Capistrano de Abreu (1853-1927) e Sílvio Romero (1851-1914)6.

4
MELLO, Evaldo Cabral de. O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste (1641-1669).
3.ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.
5
O Império Colonial Português. Lisboa: Edições 70, 1977, p.133.
6
Maria Aparecida Rezende Mota apontou para alguns traços significativos na biografia de Sílvio
Romero. Nascido em Lagarto, interior do estado de Sergipe, em 1851, onde teve uma infância modesta e
de afastamento dos pais, seus biógrafos consideram que o fato de ser proveniente de família pouco
abastada e marcada pela tragédia teriam contribuído para formar o seu temperamento arredio, irascível e
propenso a disputas que degeneravam em incidentes pessoais. Mas talvez mais importante que o seu
temperamento difícil, a longa permanência no Engenho Moreira, de propriedade dos seus avós, foi
responsável por fazer despertar no jovem Sílvio Romero o interesse pelas manifestações de caráter
popular. No futuro, Romero lembraria o deleite com o qual escutava, à noite, as maravilhosas e às vezes
sombrias fábulas narradas pelas velhas senhoras daquele engenho, onde apareciam personagens como o
saci, o jurupari ou o caipora. Já como crítico literário, Sílvio Romero iria conferir um grande valor às
fontes populares, considerando o processo de mestiçamento brasileiro como base da formação nacional.
194

Essa geração, a partir de 1870, estava identificada com as novas doutrinas do


Positivismo e do Evolucionismo. Em alguns autores, é corrente a expressão
cientificismo, a qual tenta dar conta daquilo que seria uma mitificação da ciência, ou
seja, da transformação da ciência, de um método de abordagem, em uma ‘visão de
mundo’.
A geração intelectual à qual pertenceram Sílvio Romero, crítico literário e nome
ilustre no mundo das letras, autor de uma robusta História da Literatura Brasileira e
João Capistrano de Abreu, do qual já fizemos apresentação em páginas anteriores, havia
presenciado eventos como o fim da guerra do Paraguai e o desfecho da guerra franco-
prussiana. Para a chamada “geração de 1870”7 haviam ficado evidentes tanto a
fragilidade e a vulnerabilidade da monarquia brasileira, quanto um irremediável abalo
no prestígio da cultura francesa. Caberia atentar para o fato de que Sílvio Romero e João
Capistrano de Abreu, compunham tanto os quadros do IHGB, quanto a plêiade de
professores do Colégio Pedro II8.
O reflexo para esses acontecimentos que acentuaram a inquietação dos meios
intelectuais foi a procura por novas bases que pudessem fornecer uma visão de mundo

Ao longo de sua vida, Romero atuou como jornalista, crítico, historiador e professor. Sílvio Romero
participou, em 1897, da criação da Academia Brasileira de Letras, tendo escolhido como patrono a
Hipólito José da Costa. Seguiria então colecionando polêmicas e desafetos, fosse em pugna direta ou em
situações que envolvessem a crítica a personagens do mundo das letras, como Teófilo Braga, Manoel
Bonfim e José Veríssimo. Sílvio Romero: dilemas e combates no Brasil da virada do século XX. Rio de
Janeiro: FGV, 2000.
7
Utilizo aqui a expressão geração de 1870 sob os mesmos cuidados para os quais atentou Roberto
Ventura, ou seja, “entre aspas, para evitar a ilusão da unidade de grupo ou da homogeneidade de
época.” In: Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p.10.
8
Há que se colocar a importância à essa época de pertencer ao quadro de Docentes do Colégio Pedro II.
Era essa instituição de ensino a responsável pela aplicação do exame que validava os diplomas dos
colégios, públicos ou particulares de todo o Brasil. Nisso, afirma-se a importância das opiniões de
professores como Silvio Romero e Capistrano de Abreu. Servia como um efeito cascata, por tudo aquilo
que poderíamos chamar de um ainda tênue esboço de sistema educacional. Suas convicções, conforme
podemos inferir, transformadas por força dos exames regulares, em palavras de ordem. Ver LOPES,
Eliane Marta Teixeira, FARIA FILHO, Luciano Mendes, VEIGA, Cynthia Greive (Orgs). 500 Anos de
Educação no Brasil. 5. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. Por sua vez, ao Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, conforme escreveu Alice Pfeifer Canabrava, coube ser, desde sua fundação, até a
criação das faculdades de Filosofia, já na década de 1930, o mais importante centro de estudos históricos
do Brasil. Estava o IHGB nessa situação, apto a formular a definição daquilo que considerava como
‘povo’. Para o IHGB de então, cumpria exaltar os varões preclaros e distintos por seu saber e brilhantes
qualidades. Tidos como modelos a ser perpetuados, entende-se que essa forma de história cívica visava
eternizar exemplos de brilhantismo e benemerência, sendo as biografias uma secção da Revista do
Instituto, no intuito que vidas exemplares viessem a inspirar o comportamento dos jovens e a repetição
dessas experiências bem sucedidas no futuro. Atestou Alice P. Canabrava que a História Geral do Brasil
(1854), obra histórica máxima de Varnhagen, “...afastou-se de algumas tendências que marcavam a
mentalidade dos homens daquele sodalício [o IHGB] como o indianismo, mas ligou-se aos seus grandes
objetivos. É o monumento da historiografia brasileira do século XIX.” Apontamentos sobre Varnhagen e
Capistrano. Revista de História, São Paulo, v. XVIII, n.88, out-dez.,1971,p.418.
195

mais ajustada às novas condições imperantes na sociedade e na política. Nesse sentido,


autores alemães, mas também ingleses, passaram a ser mais conhecidos e estudados,
trazendo com isso, uma maneira nova de encarar o passado. Dessa forma, nomes como
Haeckel, Darwin, Spencer, Buckle e Mommsen passavam a integrar o roteiro de leituras
dos nossos intelectuais a partir do último quartel do século XIX. De acordo com
Wheling (1991), o “bando de idéias novas”, conforme a fala de Sílvio Romero,
“...procurava refutar algo, profundamente identificado com o establishment brasileiro
da época: o romantismo. Ou, no plano da filosofia, o ecletismo” 9
Conforme Diehl (1998), sob a influência do ecletismo, do positivismo e do
evolucionismo, essa geração contribuiu para que fosse transportada para a cultura
historiográfica brasileira as formas de pensamento pelas quais a elite intelectual no
Brasil do século XIX logrou gerar modelos explicativos conciliadores conservadores.
Assim, o autor entende que as formas pelas quais esse tríplice corpo de idéias foi
assimilado no Brasil, possibilitou que fosse gerada uma totalização do processo de
representação histórica, no qual se confundiu a originalidade da história do Brasil com
as novidades teórico-metodológicas européias.
Seria no bojo do cientificismo que começaria um movimento de redefinição do
discurso sobre a sociedade brasileira, tendo doravante na História, o povo como
leitmotiv. Haviam sido superados o indianismo romântico e a preocupação com o
enraizamento do Estado, diga-se da monarquia. A nação pintada sob as cores de
Varnhagen era uma nação restrita aos portugueses transplantados para a América10, e
para os seus descendentes mazombos, não havendo espaço nela para os não brancos das
selvas e das senzalas. Nação tutelada pelo Estado, fosse ele português ou o Império
americano dos Bragança, surgido a partir de 1822.
A chamada “geração de 70”, e aqui nos interessa mais de perto a João
Capistrano de Abreu e a Sílvio Romero, se voltava para a definição do povo brasileiro,
povo esse que no saboroso vocabulário capistraneano se apresentava como ‘sangrado e
ressangrado, capado e recapado’11. Foi no ambiente dessa geração que o cientificismo

9
WEHLING, Arno. Capistrano de Abreu e Sílvio Romero: um paralelo cientificista. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n.152, v. 370, jan. mar. 1991, p. 266.
10
Cabe dizer que na análise produzida por José Carlos Reis, Varnhagen descrevera o encontro entre
portugueses e índios ‘postado’ do tombadilho das caravelas portuguesas, atento expectador que era a
elogiar a colonização portuguesa por força e obra do aparato estatal lusitano, mas sempre pronto a
pulverizar qualquer iniciativa que não tivesse como sujeito da ação a Coroa portuguesa. As Identidades
do Brasil: de Varnhagen a FHC. 4. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2001.
11
A expressão aparece em uma carta de Capistrano de Abreu ao seu amigo João Lúcio de Azevedo. A
missiva é datada de 16 de julho de 1920, e Capistrano se dirigia ao ilustre historiador português nesses
196

em sua vertente evolucionista viria a colher frutos bastante consistentes. Capistrano de


Abreu professaria o historicismo cientificista até pelo menos o ano de 1883, quando, nas
palavras de José D’Assunção Barros, “há uma ruptura do historiador consigo
mesmo”12, ao passo que Sílvio Romero manteria a defesa do cientificismo evolucionista
por toda a vida.
Astor Antonio Diehl (1998) observou em relação ao evolucionismo, que a
Faculdade de Direito do Recife, originalmente uma herdeira da escolástica e das
tradições da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, passou a envolver-se
por volta de 1870, em uma onda de germanismo, graças aos esforços de Tobias Barreto.
Cabe acrescer que a chamada ‘Escola do Recife’13, nos aspectos históricos e
filosóficos, não possuía uma concepção teórica única, mas antes, uma tendência geral
evolucionista, cujo ponto de chegada deveria ser a articulação e a fundamentação de
uma teoria da cultura brasileira que fosse capaz de integrar uma identidade nacional.
Os temas trabalhados pelos estudiosos que gravitavam em sua órbita
compreendiam o folclore, a etnografia, a produção literária, a filosofia e a história.
Viviam então seus articuladores sob a dicotomia de atender às imposições teóricas que
condenavam o Brasil a um triste destino – como profetizaram Lapouge, Gobineau e
Buckle – e a tarefa de auxiliar o Brasil a constituir-se como nação. Considera Diehl
que,“ do ponto de vista histórico, a Escola de Recife, ao lado de Capistrano de Abreu,
excetuando as profundas diferenças que os separam, foi a tentativa de criar uma

termos: “Nossos pontos de vista são inconciliáveis. Para V. a reima semítica é o principal. A mim
preocupa o povo, durante três séculos, capado e recapado, sangrado e ressangrado...” Correspondência
de Capistrano de Abreu. v.2.2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p. 166.
12
Duas fases de Capistrano de Abreu: notas em torno de uma produção historiográfica. História,
Historiadores, Historiografia. Projeto História. n. 41, dez. 2010, p. 456-457.
13
Sobre a ‘Escola do Recife’, cabe observar com Ricardo Luiz de Souza que foi colocada em dúvida a
sua própria existência, com opiniões como as de José Veríssimo – para quem a Escola do Recife não teria
existência real – ou ainda, a de Alcântara Nogueira (em seu ‘Conceito ideológico do Direito na Escola do
Recife, 1980), que além de negar a existência dessa, a definiu não como uma Escola, mas como um
movimento. A esse, alinha-se Paulo Mercadante, e até um jurista que foi nela arrolado como Clóvis
Bevilaqua lhe negam a existência enquanto unidade de pensamento. Para Souza, o que se pode extrair de
mais importante a ser dito sobre a Escola/Movimento do Recife seriam alguns dos seus traços definidores,
que seriam: 1. Movimento contrário ao Romantismo e ao Império; 2. Busca de uma articulação teórica
entre poligenismo e evolucionismo, realizada sob o pressuposto de uma diferença original entre as raças,
com a naturalização das desigualdades de base social; 3. Desejo de renovação no campo filosófico, com o
rompimento do ecletismo espiritualista; 4. Idéia de uma hipostasia do Estado para a transformação social,
haja visto o entendimento da sociedade civil brasileira ser desarticulada e inorgânica, sendo o povo
amorfo, esgarçado e ligado apenas pelos maus costumes; e, 5. A Escola do Recife bateu-se contra o
monopólio das influências francesa e inglesa. Identidade nacional e Modernidade brasileira: o diálogo
entre Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica,
2007.
197

tradição numa perspectiva nacional, inspirada na receptividade do pensamento


alemão.”14
Cabe ressaltar que para o crítico literário Sílvio Romero, a nação teria um
sentido real, mas também genético, sucedendo-se os autores numa linha de filiação,
constituindo-se como função da história, mas também da crítica, descobrir e tornar
evidentes as filiações que se estabelecem de autor nacional a autor nacional. Dessa
maneira, a nação era entendida por Sílvio Romero como a unidade real para a análise,
sendo o nacional e o não nacional, duas categorias persistentes do seu pensamento.
De acordo com Souza (2007), Sílvio Romero iria debruçar-se sobre a formação
da nacionalidade brasileira, a qual, segundo ele, teria ocorrido por um processo de
miscigenação racial e sociocultural, que deveria ser completado pelo branqueamento.
A leitura de um autor como Henry Thomas Buckle fascinara ao jovem Sílvio
Romero, deixando fundas cicatrizes na vasta obra desse crítico literário. Observações
sobre a concepção de História defendida por Buckle ocuparam generosas referências na
tese que Romero alinhou em defesa para a Cátedra do Imperial Colégio de Pedro II, no
ano de 188015. O ‘sentido da sua tese’, conforme lhe explicara a comissão julgadora do
concurso, deveria versar sobre a filosofia da história. Romero passava então a discorrer
sobre o estudo das sociedades humanas e as contribuições relativamente recentes da
sociologia, sob as quais julgava já ser possível falar, “...sem extravagância, numa
ciência da história”16.
Sílvio Romero passava a contrariar então, frontalmente, a comissão julgadora
chegando a partir em ataque aos seus arguidores17, que defendiam para a filosofia da
história, a existência de três únicos sistemas, a saber, o providencialismo, o livre arbítrio
e o fatalismo. Ao invés de seguir as sugestões da banca examinadora, à qual julgou por
ignorante do método histórico-naturalista, Romero apresentou então seis sistemas,
passando de relance pelos cinco primeiros, para concentrar-se naquilo que ele entendia
como o ponto culminante: o evolucionismo histórico ou o critério científico da história,
como ação combinada da natureza e do homem.
O aspirante a Professor do Imperial Colégio de Pedro II destacava então as
contribuições de Henry Thomas Buckle, apresentando-o como um moderno filósofo da

14
A cultura historiográfica brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo: UPF, 1998, p. 115.
15
ROMERO, Sílvio. Da interpretação filosófica na evolução dos fatos históricos (tese de concurso).
Studia, Rio de Janeiro, Colégio Pedro II, ano II, n. 2, dez. 1951. Pp. 143-154.
16
Idem, Ibidem, p. 145.
17
MOTA, Maria Aparecida Rezende. Sílvio Romero: dilemas e combates no Brasil da virada do século
XX. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
198

história que lograra desenvolver, tomando por base a combinação entre forças físicas e
mentais, uma concepção científica do assunto. Na opinião de Sílvio Romero, o
evolucionismo que regia as leis físicas e mentais havia suplantado aos sistemas
decrépitos dos metafísicos e teólogos.
Demonstrava o candidato grande entusiasmo, em meio ao que chamava de
“revolução intelectual do século XIX”18, pois passar-se-ia a contar com a aplicação de
contributos como o cálculo das probabilidades e a formação de estatísticas, além de
algumas descobertas de antigos monumentos do pensar humano – como o sânscrito, as
inscrições cuneiformes e hieroglíficas – as quais vieram a permitir que se formassem os
fundamentos da crítica histórica.
Subsídios dessa natureza deveriam possibilitar, na visão de Sílvio Romero, o
avanço da “marcha coletiva da humanidade”, e consequentemente, a liberdade desta, do
despotismo da natureza (pela ação da indústria), do despotismo dos padres (por meio da
crítica), e do despotismo dos tiranos, “...que se apossaram do poder de dispor de seus
destinos, e contra o qual ela [a humanidade] vai obtendo desforras por intermédio da
ciência e da revolução.”19 A história, defendia Romero, não deveria “mais ser uma
simples exposição árida de fatos; tão pouco poderá ser mais um estudo abstrato e
inaplicável ao gosto das deduções de Hegel e consócios.”20
A Introdução à História da Civilização na Inglaterra, escrita pelo inglês Henry
Thomas Buckle (1821-1862) foi publicada pela primeira vez em 1857, na Inglaterra, e
somente viria a lume em língua portuguesa em 1900, conforme vimos, tendo conhecido,
até onde sabemos, essa única edição. A seguirmos os comedidos comentários de Patrick
Gardiner21, nessa obra, Buckle teria defendido de maneira firme, mas um tanto confusa,
uma interpretação da história segundo a qual as evoluções históricas ocorreriam de
acordo com leis universais. Assim, conforme explica Gardiner, seguia Buckle a
exigência comtiana da qual a sociedade deveria ser estudada pela aplicação de métodos
científicos, tendo identificado que tal exigência devia significar a descoberta por
investigação indutiva, das uniformidades causais que determinavam a vida e a evolução
sociais.

18
Idem, Ibidem, p. 147.
19
Da interpretação filosófica na evolução dos fatos históricos (tese de concurso). Studia, Rio de Janeiro,
Colégio Pedro II, ano II, n. 2, dez. 1951, p. 151.
20
Idem, Ibidem, p. 154.
21
Teorias da História.3.ed.Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984.
199

Buckle defendia que se deveria levar em conta fatores como as condições


climáticas e as diferentes espécies de alimentação do homem para se chegar a
conclusões sobre os motivos das várias civilizações terem se desenvolvido de
determinada maneira, e em especial, designar os motivos que distinguiriam, de forma
significativa, a civilização européia das outras civilizações.
Com efeito, para Buckle teriam ocorrido na Europa uma combinação de fatores
ambientais que permitiram ao homem alcançar, tanto em fatores materiais de
instrumentos e tecnologia, quanto em capacidade mental, um nível de desenvolvimento,
de domínio sobre a natureza física, que não fora atingido em nenhuma parte. Os
europeus ao subjugar a natureza, teriam forçado essa a servi-los e a seus objetivos.
Inspirando-se em Comte, seguimos a análise de Gardiner, Henry T. Buckle
acreditava que o fator crucial do progresso humano residiria na evolução do
conhecimento, entendendo que haveriam leis segundo as quais progrediria a atividade
intelectual. Essas leis por conseguinte, deveriam fornecer a chave da história européia.
Na opinião de Gardiner, a estratégia de Henry Thomas Buckle teria consistido
em colocar em posição de destaque os métodos estatísticos, registros que segundo ele
defendia, estavam disponíveis fossem nas grandes nações, fossem nas diferentes
povoações e mesmo tribos visitadas e descritas por viajantes. Ou seja, considerando-se
o mundo conhecido, os historiadores estariam habilitados a comparar a condição de
humanidade em cada estágio de civilização em toda uma série de circunstâncias.
Buckle aproveitou então para destilar críticas aos historiadores que o
precederam: afinal por que estes não teriam se apoderado das possibilidades abertas a
que fossem descobertas certas regularidades das ações humanas? Seu diagnóstico não
se apresentava otimista: seriam os historiadores de competência inferior àqueles
cientistas que investigavam a natureza; essa seria uma parte das conclusões de Buckle.
Mas reconhecia, no entanto, que os fenômenos sociais apresentavam uma maior
complexidade que os fenômenos da natureza. E essas duas causas teriam, na opinião do
autor, retardado a criação de uma ciência da história.
O mundo apresentaria, segundo Buckle, uma regularidade em seus fenômenos
morais, o que seria comprovado por estatísticas. Assim, assassinatos, suicídios e até
matrimônios seriam caracterizados por uma ‘uniformidade de sequência’, sendo que a
ação dos homens seria guiada por seus antecedentes, e não pela inconseqüência, mas
fazendo parte de um vasto esquema da ordem universal.
200

Buckle chamava ainda atenção para a influência das leis físicas, tentando
evidenciar o papel daqueles agentes físicos, os quais classificava em quatro grupos. Tais
agentes exerceriam um peso preponderante sobre a raça humana. Seriam eles: o clima, a
alimentação, o solo e o aspecto geral da natureza. A este último corresponderia a função
de excitar a imaginação e sugerir superstições, que por sua vez, passavam a constituir
obstáculos ao progresso do conhecimento humano. Nesse sentido, é realçado pelo autor
o poder dessas superstições nos primeiros estágios dos povos, o que acabaria
acarretando peculiaridades às religiões desses.
A conclusão, ainda que provisória, conforme alegava Buckle, seria que onde as
forças da natureza haviam se revelado muito maiores, como nas civilizações não-
européias, havia ocorrido um mal enorme conforme se constatava na desigual
distribuição da riqueza e do conhecimento, obstáculo que se revelou insuperável a todas
essas civilizações. No caso da Europa, região mais fria e de solo menos exuberante,
teria sido mais fácil ao homem libertar-se das superstições que a natureza sugerira à sua
imaginação, sendo mais fácil também realizar uma distribuição mais justa da riqueza.
Isso significava dizer que na Europa, a natureza havia sido subordinada ao homem, ao
passo que no mundo não-europeu o contrário se impunha, embora reconhecesse o autor
a existência em países ‘bárbaros’ de exceções a essa regra do domínio da natureza.
As causas do progresso europeu – progresso moral e intelectual do homem – não
se constituíam portanto, num progresso de aptidão natural, mas num processo de
oportunidade. Somente na Europa o homem havia conseguido domesticar as energias da
natureza, submetendo-as à sua própria vontade pelo desvio dessas do seu curso normal,
e obrigando-as a contribuírem para a sua felicidade. Dessa forma, tais forças passavam a
servir aos objetivos gerais da vida humana. A civilização se avaliaria pelo triunfo do
espírito sobre os agentes externos, deduzindo-se daí, que no pensamento de Buckle, das
leis que regem o progresso da humanidade, as de espécie mental seriam mais
importantes do que as de natureza física.
Talvez seja possível dizer que as idéias defendidas por Buckle tenham sido um
dos capítulos finais, se não o último conhecido no percurso do longo século XIX, de
toda uma série de avaliações negativas voltadas aos povos não europeus. Conforme
observou Roberto Ventura (1991), a formação da antropologia esteve vinculada à
expansão européia, à noção da inferioridade dos povos não-brancos e ao racismo
científico. Tratava-se de uma visão eurocêntrica que pretendia inclusive negar “a
201

existência de sociedades com história, documentação e formas de escrita fora do


espaço europeu e asiático.”22
Essa ideologia civilizatória, ordenadora de povos e raças era na verdade bastante
antiga, e vinha pelo menos, desde Aristóteles, passando por Plínio, Cícero, e padres da
Igreja como Santo Agostinho e Beda23, até chegar a iluministas como Montesquieu e
Buffon24. Conforme observou Roberto Ventura (1991), as reflexões de Montesquieu
estavam voltadas para os tipos de sociedade, e para essas o barão de La Bréde utilizava
regras objetivas, construindo para tanto uma teoria geral do clima que possuía a
pretensão de explicar a pluralidade dos costumes e das leis. Para o autor do Espírito das
Leis, o império do clima seria o primeiro de todos os impérios. Essa teoria teria,
“...como centro, a natureza e as instituições políticas da Europa, o que
produz uma hierarquia do espaço natural e social, em que os climas
temperados e a monarquia constitucional aparecem como justa medida entre
os pólos extremos: os climas tórridos ou glaciais, e a república ou o
despotismo oriental.”25

Na sua ‘História natural do homem’, Buffon adotou a teoria climática de


Montesquieu, inserindo nessa, conforme escreveu Ventura,
“...o homem em um modelo hierárquico, normativo e eurocêntrico de climas
temperados: ‘O clima mais temperado se localiza do 40º a 50º grau de
latitude: é também nessa zona que se encontram os homens mais belos e
bem-feitos, [...] é daí que se devem tomar o modelo e a unidade a que se
devem referir todas as outras nuances de cor e beleza’. Essa área ideal
corresponde à Europa e a partes da Ásia, habitada por ‘povos civilizados’,

22
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São
Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.23-24. Conforme observou o autor, para Buffon, a história da
América não deveria ser escrita tomando-se por base as crônicas coloniais, mas a partir de dados da sua
história natural. Ele não acreditava na autenticidade dos relatos de Hernán Cortés e Bartolomé de Las
Casas, sobre a numerosa população Asteca e Inca, pois de acordo com as teorias professadas no Velho
Mundo, a população da América deveria ser rarefeita. Zonas densamente habitadas no continente
americano entravam em choque com as hipóteses sobre o caráter recente do continente, em termos
geológicos. Com base em princípios da mesma ordem recusava-se a grandeza dos monumentos e
construções conforme descritos por Cortés ou pelo Inca Garcilaso de La Veja. Para o abade Raynal teria
havido exageração, motivada pelo desejo de dar maior esplendor ao triunfo da conquista.
23
CARVALHO, José Murilo de. O motivo edênico no imaginário social brasileiro. Revista brasileira de
Ciências Sociais, n.13, v.38, 1998, p. 63-79.
24
Conforme observou Antonello Gerbi em sua análise da leitura de Buffon, havia a adoção tácita de um
conjunto de idéias aristotélicas, entre as quais, a que o estável, o fixo, o invariável possuiria prerrogativas
sobre o variável. Assim, as espécies que não mudam, seriam superiores aquelas que mudam, significando
que mudar corresponderia a decair, a degenerar. De acordo com Gerbi, a adoção do conceito de que o
invariável seria superior possuiria origem escolástica, e até aristotélica. Assim Gerbi se reporta: “Buffon
relata com freqüência que um dia, após longa fadiga, acreditava ter descoberto ‘um sistema muito
engenhoso sobre a geração’, mas (acrescentava) “abro Aristóteles e não é que encontro todas as minhas
idéias nesse desgraçado Aristóteles? Também, por Deus!, foi o que Aristóteles fez de melhor!’ ” O Novo
Mundo: História de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia das Letras, 1996,p. 33-34.
25
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São
Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.19. Cabe acrescer que o despotismo aparecia na visão de
Montesquieu, vinculado à escravidão e à poligamia, resultando em uma apatia geral conforme entendiam
os europeus ao observar as populações dos climas quentes.
202

com vida regrada, doce e tranqüila, e difere dos outros tipos climáticos, os
climas frios e tórridos, tidos como desvios negativos quanto a um modelo de
natureza. No Novo Mundo, as terras habitadas estariam na zona tórrida,
cuja natureza seria menos ‘ativa’ do que a do Antigo Mundo, com animais
menos numerosos e de menor porte, devido ao calor e à umidade. Seus
habitantes estariam em estado selvagem, com vida dispersa e errante,
impedidos de vencer a natureza e se aperfeiçoar.”26

Ora, no último quartel do século XIX, a História da Civilização na Inglaterra,


lida e comentada pela inteligentsia brasileira, ajudou a internalizar a ideologia
civilizatória européia em um momento no qual se repensava a idéia de nação. Conforme
explicou José Murilo de Carvalho27, com a abolição (1888) e a República (1889),
ocorreram mudanças na tática de construir e definir a nação. Na opinião desse autor, a
campanha abolicionista – uma causa humanitária, mas também nacional – teria sido o
mais importante movimento cívico de caráter nacional ocorrido após a experiência
vivida com a Guerra do Paraguai. Essas causas estariam vinculadas, pois se a guerra
havia sido justificada como uma luta contra a barbárie, a continuidade da escravidão – e
muitos soldados negros que voltaram da guerra, agora livres, encontravam suas famílias
escravizadas – gerava um constante e crescente constrangimento.
Autores como Mota (2000), Abdala Júnior (2002) e Souza (2007) defenderam
que a obra de Sílvio Romero gravitou sobre a formação da nacionalidade brasileira, a
questão nacional e a compreensão do caráter nacional brasileiro. Pensar o Brasil à
sombra das imposições teóricas de Buckle e Spencer, teria significado para Romero
uma tarefa de procurar a sua unidade, ou seja, decifrar em meio a dispersões e
fragmentos, a expressão genuína de uma possível cultura brasileira, e de passagem,
identificar os obstáculos que estariam impedindo a realização do país enquanto nação,
para poder inscrevê-lo na marcha da civilização, considerando mesmo a Europa, como o
lócus da civilização. Ricardo Luiz de Souza (2007) entendeu que toda a obra saída da
lavra de Sílvio Romero pode ser pensada como uma espécie de busca das leis que
regeriam a formação nacional. Possuiria Sílvio Romero uma visão monista, e o método
romeriano tendia a desconsiderar as diferenças entre as ciências da natureza e a ciência
dos homens28.

26
Idem, Ibidem, p. 21-22. (grifos do autor).
27
Brasil: nações imaginadas. In: Pontos e Bordados: escritos de História e Política. Belo Horizonte:
UFMG, 2005, p. 233-268.
28
Identidade nacional e Modernidade brasileira: o diálogo entre Sílvio Romero, Euclides da Cunha,
Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
203

Na História da Literatura Brasileira, considerada sua obra principal, Sílvio


Romero defendia que a literatura do Brasil e de toda a América tinha sido até então, um
processo de adaptação de idéias européias às sociedades do continente. Essa adaptação
que teria sido nos tempos coloniais, mais ou menos inconsciente, de imitação e de
servilismo mental, tenderia à sua época, tornar-se compreensiva e deliberadamente
feita29, o que para Romero significava que havia passado a se fazer escolhas, ou como
preferiu dizer, uma seleção literária e científica.
Romero enumerava entre as diversas teorias da história do Brasil então vigentes,
as de Von Martius, de Henry Thomas Buckle, de Teófilo Braga, de Oliveira Martins,
dos discípulos de Auguste Comte, e a dos seguidores de Herbert Spencer.
Avaliando o trabalho de Martius, intitulado ‘Como se deve escrever a História
do Brasil’, Romero classifica a sua teoria como sendo puramente descritiva, fazendo
com que a concepção do bávaro sobre a teoria da história do Brasil viesse a parecer
incompleta. Concebida, conforme explica Sílvio Romero, para abrigar-se “ao grande
princípio moderno das nacionalidades, coloca-se num ponto de vista etnográfico e
indica em traços rápidos os diversos elementos do povo brasileiro.”30
Assim, para Romero, no intuito de constituir o povo brasileiro, listava-se os
costumes e aptidões psicológicas dos ‘selvagens americanos’, hábitos dos negros
africanos, além dos portugueses, com “suas vantagens de gente civilizada”31, o que
deveria ser interpretado escrupulosamente, pois o que estaria interessando para o autor
seria como tais elementos étnicos atuaram uns sobre os outros para produzir o resultado
presente. Daí, as críticas até certo ponto injustas de Romero, pois no seu entendimento,
faltaria em Martius o nexo causal, padecendo a sua teoria de concepção incompleta.
De acordo com Romero, o autor da monografia ‘Como se deve escrever a
História do Brasil’, apontara indígenas e negros a reagirem sobre a raça dominante, ou

29
Observou Roberto Ventura que essa questão remete à polêmica travada (1882) entre Sílvio Romero e
Araripe Júnior. Para Araripe Júnior, a noção de natureza e imaginação não era marcado pela negatividade,
nem remeteria a uma ausência de raciocínio ou fraqueza nata aos habitantes dos trópicos. Araripe Júnior
passava então a considerar o que chamou por obnubilação tropical, que para ele seria um processo de
diferenciação psicológica e literária, processo determinista causado pelo impacto do meio sobre a
mentalidade européia. Como Araripe Júnior, também Sílvio Romero se baseava em princípios de Taine e
Spencer, no que acrescia sua ideologia nacionalista. Para Romero a nação seria “concebida como o
resultado da progressiva transformação das matrizes européias pela ação do meio ou da mistura de
raças”.Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São Paulo:
Companhia das Letras, 1991,p.37.
30
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira: contribuições e estudos gerais para o exato
conhecimento da literatura brasileira. v.1.7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 61. A primeira
edição é de 1888.
31
Idem, Ibidem, p. 61.
204

seja, o português, então colocado claramente como o mais poderoso e essencial motor,
por haver propiciado as condições e garantias morais e físicas para que existisse um
reino independente. Até aí, estaria tudo bem, mas Von Martius deixara em
esquecimento, o ponto que Romero considerava fundamental: o mestiço.
Ao analisar as perspectivas de Teófilo Braga, Romero esclarece que este não
teria pretendido, de forma consciente, escrever uma teoria da história do Brasil, mas
sim, fazer reparos sobre a vida literária do país na sua ‘Questões de literatura e arte
portuguesa’, editado em 1877.
Braga defendia então que o lirismo da Europa meridional teria sua origem
comum nas populações turanas, as quais descidas da alta Ásia em dois grandes grupos,
e realizando percursos tanto pelo norte da Europa, quanto através da África, acabaram
por convergir na Espanha. Na América teria se dado uma marcha semelhante desses
povos. Essas hipóteses de Teófilo Braga teriam sido absorvidas, segundo Romero, das
idéias de autores como Retzius, Beloguet, Pruner-Bey e Varnhagen. Com isso, Sílvio
Romero aproveitava para dar um quináu em Varnhagen, ao criticar a teoria da qual
seriam os povos indígenas do Brasil, ‘povos retrogradados’, conforme grafara o autor
da História Geral do Brasil. No entanto, Romero apresenta-se geralmente simpático à
Varnhagen, merecimento que ele justifica pela,
“erudição séria, do estudo direto dos documentos nos arquivos, nas
bibliotecas, nos cartórios; e mais de não se ter ele limitado a fazer pequenas
monografias e sim em ter levado ombros a empresas mais árduas, à história
geral do país, e à história de duas fases memoráveis de sua vida, a das lutas
com os holandeses e a da independência nacional.”32

De acordo com Romero, a obra de Varnhagen, que considerava “demasiado


tresmalhada” não tinha sido convenientemente estudada. Entre os principais livros do
Visconde de Porto Seguro, Romero enunciava a ‘História Geral do Brasil”, a ‘História
das lutas com os holandeses’ e a ‘História da Independência’, que considerava
“criminosamente conservada inédita, sem que o Governo Federal ou o Instituto
Histórico ou a Biblioteca Nacional tenham até agora mostrado o mais leve interesse
para a dar a lume.” 33

32
História da Literatura Brasileira: contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura
brasileira. v.5. 7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 1551.
33
Idem, Ibidem, p. 1551. A História da Independência do Brasil liga-se a um episódio pouco visitado da
História da Historiografia. Falecido em 1914, Sílvio Romero não acompanharia esse desfecho. Desde
1914 o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro vinha realizando preparativos para o I Congresso
Internacional de História da América, programado para o ano de 1922, o qual abordaremos em nosso
último capítulo. Esse evento era parte das comemorações oficiais do Centenário da Independência.
205

Para Oliveira Martins e seu livro ‘O Brasil e as Colônias Portuguesas’, a crítica


ficava centrada sob o dualismo no qual Romero entendeu ter sido lavrada a obra, o que
para ele se constituía em pura fantasia. Por um lado, haveria a luta entre os jesuítas e os
índios, por outro a dos colonos portugueses e os negros. Oliveira Martins não captara

Porém, para o Brasil, ao contrário das demais Repúblicas Sul Americanas, as quais haviam sido tornadas
co-irmãs da jovem república brasileira, não havia uma publicação digna de ser ostentada referente às lutas
pela Independência. O que havia de conhecido e publicado era a ‘História da Fundação do Império
Brasileiro’ (1865), da lavra de João Manoel Pereira da Silva (1817-1898), reportada por José Veríssimo
como “cheia de inexatidões e falhas, como todas as suas obras históricas.” Porém, em 1916, verificando
alguns manuscritos que haviam sido adquiridos pelo Ministério das Relações Exteriores aos herdeiros do
Barão do Rio Branco, o ministro Lauro Severiano Muller – sócio honorário do IHGB – encontrou entre os
papéis do antigo chanceler os originais do que seria a História da Independência do Brasil. O Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro tratou então de nomear uma comissão para verificar a autenticidade da
obra, com vistas à sua publicação. Dessa forma tratou a comissão, composta por J.Vieira Fazenda, B. F.
Ramiz Galvão, Pedro Lessa, Max Fleiuss e Basílio de Magalhães, sendo este o relator, de conferir e
coordenar os originais de Francisco Adolfo de Varnhagen. O trabalho se prolongou de 14 de maio aos
primeiros dias de setembro de 1916. Em suma, a comissão apontara indícios encontrados ao final da
secção LIV da edição de 1876 da História Geral do Brasil onde Varnhagen declarava que a História da
Independência seria “objecto de uma obra especial. «Essa nossa Historia da Independencia já se acha
escripta e será publicada, apenas consigamos elucidar algumas poucas dúvidas que ainda temos.” Por
motivos que a comissão ignorava, Varnhagen não conseguira dar estampa para a anunciada produção,
tendo sido colhido pela morte em 29 de junho de 1878. Baseando-se em uma narrativa verbal de Manuel
de Oliveira Lima, a comissão dizia que o manuscrito anunciado por Varnhagen fora pedido à sua viúva,
então no Chile, pelo delegado financeiro da embaixada brasileira em Londres, J. A. de Azevedo Castro.
Constava ainda haver uma carta do Barão de Rio Branco que “dirigida a um dos mais profundos mestres
da Historia Patria” asseverava que “ o valioso manuscripto lhe fora entregue pelo barão de Nioac”.
Dessa forma, Silva Paranhos, então cônsul em Liverpool e futuro Barão do Rio Branco teria ficado com
os originais. Conforme veremos, Rio Branco tornar-se-ia em algumas décadas, Ministro das Relações
Exteriores, e a partir de 1908, presidente do IHGB. A Max Fleiuss ele prometera por mais de uma vez que
doaria ao Instituto os manuscritos da História de Independência, que ficara em um dos muitos caixões
onde guardara o seu arquivo na Europa. Voltando à comissão instaurada no IHGB, esta tratara de
restaurar o texto de Varnhagen, pondo à margem as modificações feitas por Rio Branco e Eduardo Prado.
Nas palavras do seu relator, Basílio de Magalhães, não poderia “ser mais apropositada a occasiao, pois
que dentro em breve vai ser condignamente commemorado o primeiro centenário da conquista da nossa
soberania, e a Historia da Independencia do visconde de Porto-Seguro, com os inestimáveis adminículos
do barão do Rio-Branco, concorrerá grandemente para o brilho de tal festividade, que por si mesma,
quer fornecendo licção proveitosa e indispensável a quem se abalance a novo trabalho sobre os alicerces
sagrados da construcção definitiva de nossa amada Patria.” Conforme observou Lucia Maria Paschoal
Guimarães, na sessão magna de 6 de março de 1917, destinada a comemorar o centenário da efeméride da
Revolução Pernambucana, seriam apresentados os originais da ‘História da Independência do Brasil’.
Essa viria a público na Revista do IHGB somente em 1919, constando como parte do tomo 70
correspondente ao ano de 1916. Assim, sob os ventos do nacionalismo que sopravam no Brasil, a História
da Independência brasileira poderia ser ostentada ao público do I Congresso Internacional de História da
América (1922), eliminando assim o constrangimento frente aos historiadores de outras nações e
completando a reabilitação de Varnhagen junto ao Instituto, o que já vinha ocorrendo por obra de
Capistrano de Abreu desde 1906, quando o ‘Mestre’ preparara uma edição comentada do tomo I da
História Geral do Brasil. Ver: VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira
(1601) a Machado de Assis (1908). 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954. A primeira edição é de
1912. A citação encontra-se na pag. 189; Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de
Janeiro, T. LXXIX, parte I, 1916; e, GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da Escola Palatina ao
Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República,
2006, p. 119-120.
206

“...toda a latitude da futura evolução do Brasil.”34 Novamente na pauta, estaria o


problema do mestiço.
Quanto a Auguste Comte, pelo fato desse não ter escrito diretamente sobre o
Brasil, Sílvio Romero limita-se aos seus seguidores brasileiros, Teixeira Mendes e
Aníbal Falcão, os quais segundo ele, desenvolveram aquilo que chamam por ‘teoria da
pátria brasileira’. A teoria dos comtianos para o Brasil é resumida por Romero da
seguinte forma,
“A nação brasileira é uma pátria colonial, pertencente ao grupo das pátrias
ocidentais. Logo ao sair da luta holandesa, o Brasil reunia em si as
condições duma pátria: solo contínuo, governo independente e tradições
comuns. O destino brasileiro pode formular-se assim: ‘o prolongamento
americano da civilização ibérica, a que cada vez mais se assimilarão, até
unificação total, os índios e os negros importados, ou os seus descendentes.’
Na guerra holandesa venceu definitivamente o elemento ibérico,
representante da civilização latina; destarte o Brasil escapou à ação
dissolvente da Reforma, do deísmo, e está em melhores condições para
adotar a doutrina regeneradora do que os Estados Unidos, por exemplo.”35

Quanto às teorias listadas, a proposta partida de Herbert Spencer soava para


Sílvio Romero como aquela que mais se aproximaria dos requisitos de uma teoria da
história, apesar de considerá-la lacunosa. O que contava para Sílvio Romero seria tomar
como ponto de partida o Brasil, considerado por ele como um prolongamento da cultura
portuguesa, ao qual agregaram-se de maneira subordinada, índios e negros, criando uma
singularidade na América. A tarefa seria então saber como tais elementos atuaram e
atuarão uns sobre os outros, mostrando a partir daí, “as causas de seleção histórica que
nos vão afastando de nossos antepassados ibéricos e de nossos vizinhos também
filiados na velha cultura ibera.”36
Restava então avaliar a obra de Henry Thomas Buckle, autor ao qual Sílvio
Romero emprestava realce por ter se ocupado do Brasil de forma mais detida. Conforme
observou Romero, no primeiro volume da edição inglesa da História da Civilização na
Inglaterra, edição de 1872, cerca de sete páginas foram dedicadas para tratar do Brasil.
Na obra do historiador inglês, ensinava Romero, as civilizações foram divididas em
primitivas e modernas, sendo que as leis que dirigem a história estariam também
divididas em físicas e mentais, estando estas últimas subdivididas em intelectuais e

34
História da Literatura Brasileira: contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura
brasileira. v.1. 7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 66.
35
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira: contribuições e estudos gerais para o exato
conhecimento da literatura brasileira. v.1.7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 67.
36
Idem, ibidem, p. 69.
207

morais. Se nas civilizações primitivas predominam a ação das leis físicas sobre o
homem, nas modernas ocorreria o inverso.
As civilizações antigas teriam encontrado condições para se desenvolver onde as
condições favoráveis à vida – penínsulas, margem dos grandes rios, condições
mesológicas associadas ao calor e a umidade – vieram a marcar uma forte presença.
Mas reunindo tais condições favoráveis, o Brasil seria uma exceção, pois apesar das
condições naturais que o aproximariam de um paraíso terreal, nenhum lugar havia sido
deixado ao homem, o qual teria sido reduzido à insignificância pela majestade que o
cerca. Os ventos alísios trazendo consigo constantes chuvas torrenciais seriam o agente
natural (físico) perturbador, no quadro pintado por Buckle. A partir daí, o potencial da
agricultura teria sido obstaculizado pelas florestas intransitáveis, os rios seriam demais
largos para poder ser atravessados, e a abundante fauna brasileira, reunindo os animais
mais ferozes e daninhos devastadores de plantações, atuavam contra o pensamento
humano, que assim teria sido contido em sua ambição.
Daí o quadro que explicava as razões pela qual os habitantes primitivos do Brasil
não terem ultrapassado os últimos degraus da selvageria, bem como da civilização
brasileira ser impregnada pelo barbarismo. Sílvio Romero concordava nesse ponto, com
Buckle.
Porém colocava as seguintes ressalvas às teses do autor de História da
Civilização na Inglaterra: as inexatidões começavam por considerar uma exageração no
tocante ao ‘agente perturbador’, identificado por Henry Thomas Buckle nos ventos
alísios. O que havia de periódico no clima do Brasil, explicava Romero, não eram as
enchentes devastadoras, mas as calamitosas e destruidoras secas, estendidas a grosso
modo, das margens do São Francisco às do Rio Parnaíba, deixando mais de um terço do
país sujeito a esse flagelo. Os rios não seriam tão largos, exceção feita ao Amazonas e
ao São Francisco. Quanto à vegetação, alegava Sílvio Romero, transpassada a pequena
cinta das florestas, seria o Brasil coberto por vegetação rasteira.
Porém, de acordo com Sílvio Romero, se Buckle não fora verdadeiro na
determinação dos fatores do atraso brasileiro, era fiel na pintura que fazia do nosso
atraso. E Romero enumerava então, três categorias de fatores que, segundo ele,
explicariam o nosso atraso. Esses fatores seriam de ordem natural ou primária,
secundários ou étnicos, e terciários ou morais. Calores excessivos associados a secas,
chuvas torrenciais e intenso calor, falta de grandes vias fluviais nas províncias entre o
São Francisco e o Parnaíba, além das “...febres de mau caráter reinantes na costa”
208

certamente que contribuíam de forma negativa, mas na opinião de Romero, não


deveriam ser causa de abatimentos, pois as leis que regiam a civilização contemporânea
não eram as mesmas que presidiram o florescimento das antigas civilizações.
Dessa forma, Sílvio Romero reduzia a importância dos fatores primários ou
naturais, e com isso deslocava para os aspectos secundários ou étnicos, a explicação
para o atraso brasileiro, que nas suas palavras seria “...a incapacidade relativa das três
raças que constituíram a população do país”.37 Talvez caiba entender melhor como os
fatores chamados pelo autor de terciários ou morais, para ele fatores históricos que
constroem a política, a legislação, os usos e costumes, então considerados como efeitos
que depois passavam a atuar também como causas, poderia ser articulado com o
trabalho intelectual. Na opinião de S. Romero, o exercício do pensamento no Brasil se
revelava como um verdadeiro martírio. Com uma população mórbida, em sua maior
parte achacada e pesarosa, os talentos surgidos nessa terra seriam precoces e
extenuados, suas faculdades inventivas marcadas pela superficialidade. O brasileiro
seria um ser desequilibrado, ferido nas fontes da vida, contemplativo, marcado pela
carolice, a formar uma “galeria pátria, merencória e sombria, de tísicos e histéricos,
mortos antes dos trinta anos...”38
De acordo com Sílvio Romero, o povo brasileiro não se caracterizava nem como
um grupo étnico de caracteres específicos e definitivos, por se tratar de um resultado
pouco determinado de três raças, nem como uma formação histórica determinada, ou
raça sociológica na nomenclatura dos positivistas, por ainda não possuir uma feição
característica e original. Contudo, ressalta o autor, existiriam os elementos
indispensáveis para tomar uma face étnica e uma maior coesão histórica.
O que se dera então no Brasil? Para Sílvio Romero, a formação de uma sub-raça,
mestiça e crioula, resultante do encontro da ‘raça ariana’ com duas outras totalmente
diversas. Nesse encontro, há de se frisar a introdução do elemento negro, que por não
ser existente nas repúblicas surgidas do antigo império espanhol da América, tornava o
Brasil delas afastado, o que Romero adjudica como positividade.
O autor recorria então às estatísticas, tão valorizadas por H.T.Buckle. O povo
brasileiro estava àquela época composto por brancos ‘arianos’, índios tupis-guaranis e
negros, em sua maioria do grupo banto. Os mestiços originados destas três raças

37
História da Literatura Brasileira: contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura
brasileira. v.1.7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 87.
38
Idem, ibidem, p.94.
209

contavam mais da metade da população, sendo que o seu número tendia a aumentar,
pois os índios e negros puros apresentavam como tendência uma redução percentual no
universo da população. O mestiço afigurava-se ao autor como uma genuína formação
histórica brasileira, estando fadado pelo tempo, a confundir-se com o branco ‘quase
puro’. Quanto a essa conclusão, Romero se baseava na seleção natural que haveria na
mestiçagem, ao cabo de algumas gerações, o que faria prevalecer o tipo da raça mais
numerosa. A resposta para essa equação, Romero respondia que era – ou seria – a raça
branca mais numerosa, e dentro de dois ou três séculos a fusão étnica estaria completa,
bem caracterizando com isso, o brasileiro mestiço.
E a certeza dessa resposta estava fundada no estancamento dos mananciais de
negros e índios, bem como na contínua imigração de portugueses, italianos e alemães,
imigração que diga-se de passagem, esperava que se tornasse melhor dirigida e mais
bem localizada. É que Sílvio Romero observava com preocupação a formação de
quistos raciais no Sul do Brasil, e bater-se-á contra isso até data próxima ao seu
falecimento. Nesse caso, os descendentes desses povos, constituídos em um novo povo
misto, deveriam mostrar-se superiores aos seus antecessores, enquanto elementos de
colonização.
Não se deveria no entanto, de acordo com o autor, sustentar que ao colonizador
português caberia o galardão de ter sido o único fator da civilização brasileira. Seria
verdade entretanto que os portugueses, povo de origem variadíssima e complicadíssimo
resultado da história, encontrara as terras da América quando experimentavam o ápice
do seu florescimento, em momento que foi considerado o século mais brilhante de sua
história.
Mas a nova terra não chegaria a usufruir as vantagens da pátria ibérica, apesar
dos colonos portugueses que aqui aportaram, virem de posse de uma cultura adiantada.
O motivo, em parte, é que os indígenas teriam sido, para Romero, refratários à cultura.
Concomitante a isso, o jesuitismo expandindo-se e a carolice desenfreada contribuiu
para que fosse completado o quadro. Na América os jesuítas identificaram nos índios os
hereges que deveriam ser extirpados, mais do que os braços que poderiam ser
aproveitados. O regimen teocrático amordaçou a nação. Os indígenas brasileiros eram
nômades caçadores, não tendo outra cultura a não ser o cultivo da mandioca e do milho,
mesmo assim em reduzida escala. A arte cerâmica pela qual produziam suas talhas,
panelas, púcaros e igaçabas estavam ainda na infância. Quanto às idéias religiosas,
utilizada a classificação ao gosto dos positivistas, estavam os índios no período do
210

teologismo puro, no segundo momento do fetichismo: a astrolatria. Hipóteses como as


de Barbosa Rodrigues e de Varnhagen que pretendiam, respectivamente, ser os
indígenas do Brasil derivados dos escandinavos ou dos cários apresentavam-se para
Romero como indefensáveis.
Ao tratar dos negros, entendia Sílvio Romero serem quase todos do grupo banto,
encontrando-se ainda no período do fetichismo, sendo brutais, robustos e submissos, o
que os tornava apropriados aos árduos trabalhos da lavoura rudimentar. O negro não
carregaria consigo as desconfianças do índio, sendo adaptável ao meio americano, e
aprendendo com facilidade. Vivendo ao lado do branco e aliando-se a ele, o negro
entrou em larga medida nas atividades desenvolvidas na América. Ao cruzamento
realizado em muito maior número entre negros e brancos se devia o mestiço, forma
nova da diferenciação nacional e “produto fisiológico, étnico e histórico do Brasil”39
Adianta-se contudo Sílvio Romero, e se apressa em esclarecer que a nação que o
Brasil constituiria não seria composta por mulatos, pois a forma branca ia prevalecendo.
O ‘genuíno brasileiro’, sobre o qual repousaria o futuro da nação, seria o tipo europeu,
que aliado a outras raças, refundido, mestiçado, ou seja, transformado no resultado da
confluência de diversas camadas étnicas, acabaria por não mais ser confundido com o
português.
Cabe acrescer que para Sílvio Romero, a mestiçagem não exprimia somente os
tipos resultantes do branco, do negro e do índio, mas todas as fusões das raças humanas
ocorridas no Brasil, o que compreendia, e para o branqueamento populacional esperado
pelo autor – internação/desaparecimento progressivo do índio, extinção do tráfico de
escravos africanos, continuação da imigração européia – os diversos ramos da raça
branca entre si.
Conviria ainda abordar a concepção de sistema literário conforme percebida por
Sílvio Romero. Seguiria ela uma certa organicidade, em acordo com os modelos
biológicos de luta pela vida. De acordo com Benjamim Abdala Júnior, Sílvio Romero
entendia que,
“o sistema literário seria resultante de uma interação com outros sistemas e
estaria ligado às condições da circulação literária de cada momento
histórico. Este seria determinante, colocando a literatura como um produto
cultural, subordinando-a assim, aos fatos históricos, a determinações de
caráter político-social”40.

39
História da Literatura Brasileira: contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura
brasileira. v.1.7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 120.
40
Idem, ibidem, p. 196-197. Cabe dizer que a idéia de sistema literário seria retomada por Antônio
Cândido em sua Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos, porém em novas bases e maior
211

Na generalizada avaliação de seus críticos, Sílvio Romero teria se preocupado


sobremaneira com a repercussão das obras literárias nas classes dirigentes, o fazendo
em acordo com os modelos da seleção natural de seu tempo: a repercussão que
importava seria especialmente a associada diretamente com o poder político.
Assim, cabe mais uma vez emprestarmos voz para Sílvio Romero,
“a criação das academias literárias no século XVIII na Bahia e no Rio de
Janeiro, fenômeno tão mal apreciado por alguns críticos é, entretanto, um
fato altamente significativo. Indica só por si a grande coesão de que gozava
o país, o lazer que tinham as altas classes para o cultivo das letras, o gosto
reinante pela poesia e as cousas do espírito”.41

As ações e revoluções seguiriam, tomando por base a preservação da noção de


totalidade e de unidades ativas interdependentes em evolução, conforme sugeridas por
Sílvio Romero, no que carreariam para as ações e revoluções – seguimos aqui o
raciocínio proposto por Benjamin Abdala Júnior – o roteiro de uma longa preparação,
que levaria por fim, às ações decisivas. É sob essa perspectiva que Sílvio Romero teria
entendido o significado da Inconfidência Mineira, e sua,
“plêiada de poetas, aquele punhado de sonhadores pressentiu, no vago de
suas crenças, todas as vastas idéias que este povo deve esforçar-se para
levar a efeito [...] A Inconfidência não chegou a ser uma realidade prática;
mas uma realidade doutrinária. Não se manchou no terreno dos fatos; mas
aí está a tremular, há cem anos, como na suprema realidade no mundo de
nossas aspirações”42.

Como teria sido no caso de Capistrano de Abreu, a recepção ao historicismo


cientificista? Sua correspondência, escrita em data bem posterior à sua fase cientificista
nos revela as influências então sofridas, e planos não executados, pelo menos de acordo
com o planejamento original. Em 21 de janeiro de 1914, ele escrevia ao crítico José
Veríssimo, reportando-se a uma época, que entendemos poder localizar a partir de 1874,
mas certamente antes de 1883. Ouçamos Capistrano revolver suas memórias de,
“Quando pensei em consagrar-me a História do Brasil, resultado de uma leitura

complexidade, ou seja, sem a subordinação aos fenômenos políticos e sociais. O sistema literário de
Cândido envolve autores, caracterizando a existência de uma vida literária; públicos, por permitir sua
veiculação, além da tradição, que seria segundo Cândido, a grande responsável por dar continuidade ao
repertório literário.
41
História da Literatura Brasileira, t. 2, p. 386.
42
História da Literatura Brasileira, T. 2, p. 483.
212

febricitante de Taine, Buckle e da viagem de Agassis, feita ainda no Ceará, não me


lembro se pretendia abarcar toda a história.”43
Três anos após, Capistrano retomava a memória dessas impressões da juventude,
em carta datada de 19 de março de 1917, ao amigo português, o renomado historiador
João Lúcio de Azevedo,
“Tenho presente a primeira vez em que veio a idéia de escrever a história do
Brasil. Estava no Ceará, na freguesia de Maranguape, com poucos livros,
arredado de todo comércio intelectual. Acabava de ler Buckle no original,
relia mais uma vez Taine, tinha acabado a viagem de Agassiz. Vim depois
para o Rio em 1875; cada ano que passa é uma parede que cai. Aqui no Rio
só fiz duas aquisições: saber do alemão o bastante para lê-lo na rede, sem
estar me levantando a cada instante para recorrer ao dicionário; e através
de Wappoeus, Poschel e Ratzel compreender que a geografia é tão bela
ciência como difícil.”44

Entendemos que os progressos no campo teórico e metodológico da história


obtidos por João Capistrano de Abreu nas diversas fases 45 pelas quais seus
comentaristas nos revelam que ele passou, podem ajudar a que tenhamos um melhor
entendimento sobre as mudanças ocorridas nas práticas historiográficas entre o último
quartel do século XIX e as três primeiras décadas do século XX, revelando a cultura
historiográfica46 daquela época e oferecendo com isso, uma espécie de ‘chave de
leitura’ para analisarmos algumas contribuições saídas da lavra dos historiadores
daquele período.
Dessa forma, os alicerces teóricos e metodológicos que deverão nos sustentar
nas avaliação da imaginação histórica nas décadas iniciais do século XX passam a ser

43
Correspondência de Capistrano de Abreu. v.1.2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p.199-
200.
44
Correspondência de Capistrano de Abreu. v.2.2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p.37-
38. Cabe esclarecer que Barbosa Lima Sobrinho utilizou dessas correspondências de Capistrano, em uma
conferência realizada em 9.9.1953, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. O título dessa
comunicação era “Capistrano de Abreu – Historiador”. Nosso intuito porém, difere daquele que
impulsionou ao grande imortal. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro,
v.221, out. – dez. 1953, p. 67 – 91.
45
Uma sugestão que se apresenta bastante didática provém de José D’Assunção Barros. Para ele,
Capistrano de Abreu teria passado por uma primeira fase, considerada inicial de formação historiográfica,
e que abrange até o ano de 1874. Entre 1874 e 1883 passava Capistrano pela fase denominada de
historicista cientificista, a qual estaria apoiada fundamentalmente em uma concepção mecanicista do real,
em uma metodologia indutiva e na busca de leis e generalizações que pudessem dar conta quanto à
compreensão das sociedades humanas historicamente realizadas. Na terceira e última fase encontraríamos
então em Capistrano de Abreu, uma influência mais decisiva do realismo histórico alemão. O grande
fetiche de Capistrano passava a ser o documento. O exercício de hermenêutica historicista de Capistrano
era então executado através de uma rigorosa crítica documental e de uma inquirição da verdade extraível
das fontes. Duas fases de Capistrano de Abreu: notas em torno de uma produção historiográfica. História,
historiadores, historiografia. Projeto História, n. 41. Dez. 2010, p. 455-489.
46
Sobre a cultura historiográfica brasileira ver DIEHL, Astor Antonio. A cultura historiográfica
brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo: Ediupf, 1998.
213

construídos mediante o estudo da trajetória do historiador João Capistrano de Abreu, o


qual elegemos como uma espécie de elo de ligação entre uma prática historiográfica que
ficara muito matizada sob os pressupostos varnhagenianos e uma então nova maneira de
produção de textos históricos, que entendemos, de inspiração rankeana, a qual passou a
se divisar com a entronização do primado do documento. Sob a inspiração inicial de
Capistrano de Abreu seriam introduzidos novos temas e explorados novos mananciais
de fontes históricas.
Doravante esse método histórico dito rankeano seria adotado em diversos
trabalhos de história quando o período por nós considerado ainda estava em curso, o que
somente pode ser feito pelo investimento dos governos da união e de alguns Estados na
criação e aperfeiçoamento de arquivos, museus históricos e no subsídio dos oficiosos
Institutos Históricos, conforme percebemos em nosso segundo capítulo, ‘oficinas da
história’.
Acreditamos que uma estratégia producente para a melhoria do nosso
entendimento acerca do papel desempenhado por Capistrano de Abreu seja cotejar as
experiências institucionais pelas quais este passou, articulando a essas, e tomando por
base a leitura dos seus mestres alemães, a evolução verificada na sua práxis
historiadora. Seus muitos comentaristas e biógrafos nos oferecem alguns valiosos
subsídios para que consigamos percorrer esse itinerário intelectual com relativo sucesso.
Um breve esboço da experiência institucional que entendemos terem presidido
os experimentos intelectuais de Capistrano de Abreu pode ser traçado a partir da
contribuição de alguns historiadores, documentadas em um período que abrange seis
décadas. Tratamos aqui do esboço biobliográfico preparado por Hélio Vianna47 e dos
estudos apresentados por historiadores como José Honório Rodrigues48, Ricardo
Benzaquen de Araújo49, Angela Maria de Castro Gomes50, Astor Antônio Diehl51, José
Carlos Reis52, Arno Wehling53 e Francisco José Calazans Falcon54.

47
Capistrano de Abreu: ensaio biobibliográfico. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955.
48
Respectivamente, História e historiadores do Brasil. São Paulo: Fulgor, 1961 e Teoria da História do
Brasil: introdução metodológica. 4.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.
49
Ronda Noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, n.1, 1988, p. 28 – 54.
50
História e historiadores: a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
51
A cultura historiográfica brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo: Ediupf, 1998.
52
As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
53
A invenção da história: estudos sobre o historicismo. 2.ed. Rio de Janeiro: Gama Filho, 2001.
54
Capistrano de Abreu e a historiografia cientificista: entre o positivismo e o historicismo. In: NEVES,
Lucia Maria Bastos Pereira das Neves et. Ali. (Orgs.). Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro:
FGV, 2011.
214

Ao estudar a trajetória do seu biografado, Hélio Vianna acreditou que deveriam


ser consideradas seis fases na vida de Capistrano de Abreu. A primeira dessas fases está
compreendida entre 1853, ano de seu nascimento e 1875, data na qual desistindo de ser
bacharel em Direito, resolve tentar a sorte no Rio de Janeiro. Essa primeira fase diz
respeito à sua infância e mocidade, vividas entre o Ceará, sua terra natal, e Pernambuco,
para onde fora em busca de formação intelectual. Autores como Rodrigues (1961 e
1978), Araújo (1988), Wehling (2001) e Falcon (2011), citando com algumas variações
as influências então latentes nos escritos de Capistrano, acentuam para essa fase a
influência positivista de teóricos como Taine, Buckle e Spencer.
Na segunda fase postulada por Hélio Vianna (1955), Capistrano de Abreu já se
encontra na Corte, o Rio de Janeiro, e compreende os anos de 1875 a 1883. Esse
período foi percebido por Vianna como a primeira fase de historiador experimentada
por Capistrano. Empregado inicialmente na Livraria Garnier para logo ser professor de
português e francês no então prestigioso Externato Aquino, Capistrano ingressa no
jornalismo, passando a pertencer a partir de setembro de 1879, ao corpo editorial da
Gazeta de Notícias.
Por ocasião do falecimento de Varnhagen, Capistrano de Abreu publicou, entre
os dias 16 a 20 de dezembro de 1878, no Jornal do Comércio, um recenseamento dos
serviços prestados às letras históricas pelo historiador sorocabano. Teria sido o seu
primeiro trabalho de crítica histórica, e convém não tratá-lo an passant.55 O repertório
desfiado por Capistrano revelou um historiador resoluto e rigoroso, daqueles que
corrigem erros de copistas, de provas e contraprovas, de inéditos e revelações. Autor
que editava e tornava com isso, as fontes mais próximas aos demais trabalhadores da
seara da história. Do diário de navegação de Martim Afonso, de escritos de Pedro
Taques e de Frei Gaspar da Madre de Deus, da narrativa de Fernão Cardim.
O imenso trabalho que Varnhagen imprimiu para tornar realidade a sua História
Geral do Brasil aparece sob a lavra de Capistrano de Abreu como tocado por um
espírito febril, que estava prestando um serviço à chamada ‘História Pátria’ como uma
espécie de compensação à ausência desde muito cedo, do torrão natal. As constantes
revisões na sua obra máxima tomaram mais de vinte anos, no que nos revela Capistrano,
a primeira edição havia se esgotado em curto espaço de tempo.

55
ABREU, João Capistrano de. Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto
Seguro. In: Ensaios e Estudos: 1ª série. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975,p. 81-91.
215

A personalidade do Visconde de Porto Seguro concedeu a Capistrano de Abreu a


chance de mostrar um pouco mais do pranteado historiador. Contudo, Capistrano se
apresenta mais fleugmático que o texto de Joaquim Manuel de Macedo, que conforme
sabemos, fora realizado sob os parâmetros propostos pelo IHGB. Assim, ficamos
sabendo que a Varnhagen faltava o espírito plástico e simpático – considerado pelo
autor do necrológio como o seu maior defeito – sendo um homem que não ‘tocava sem
ferir, matando moscas a pedradas’. Assim, se a História Geral do Brasil mostrava um
progresso na maneira de conceber a História pátria – Varnhagen não escreveu como
Gândavo ou Gabriel Soares, o Brasil não aparece como apêndice de Portugal – seria
possível dizer que o autor – considerada a opinião de Capistrano – havia conseguido
colocar-se sob o verdadeiro ponto de vista nacional.
Apontava ainda Capistrano algumas ressalvas, pois Varnhagen era prevenido
contra as afirmações nacionais que partissem das camadas mais populares. Assim, ele
condenava a Conjuração baiana, rendendo graças à Providência, considerando ainda a
Revolução pernambucana de 1817 como uma grande calamidade. Para Varnhagen – a
tomarmos o julgamento do seu admirador Capistrano de Abreu – a Conjuração mineira
teria sido uma cabeçada e um conluio. Aliás, para o Visconde de Porto Seguro,
conforme nos explica Capistrano, a própria independência, sem D. Pedro, teria sido
ilegal, subversiva, e digna da forca ou do fuzil. Outra falha apontada por Capistrano,
seria o desconhecimento ou desdém de Varnhagen pelo corpo de doutrinas disseminado
por Comte e Herbert Spencer.
A entrada de Capistrano para a Biblioteca Nacional no ano de 1879, em
conseqüência de aprovação em concurso, decidiria definitivamente, segundo Vianna, a
vocação de historiador de Capistrano de Abreu56. A Biblioteca Nacional organizava, em
1881, a primeira Exposição de História do Brasil, imprimindo o seu Catálogo57.
Nesse empreendimento, Capistrano veio a se revelar um eficiente e talentoso
colaborador. Data desse período uma crescente preferência de Capistrano pelos temas
históricos. José Honório Rodrigues considerou que nesse período, a Biblioteca Nacional

56
Incentivado por Ramiz Galvão, Capistrano de Abreu que dominava conhecimentos em áreas tais como
História, Literatura, Filosofia, Geografia, Bibliografia, Paleografia, Inglês, Francês e Latim, dedicou-se
também ao estudo da Iconografia. Foi aprovado em primeiro lugar, e nomeado a 9 de agosto de 1879.
VIANNA, op. Cit, p. 14.
57
Trata-se do ‘Catálogo da Exposição de História do Brasil realizada pela Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro’, realizada a 2 de dezembro de 1881. Este trabalho encontra-se publicado nos Anais da Biblioteca
Nacional, v.IX, 1881, ocupando dois tomos.
216

servira a Capistrano de Abreu como uma espécie de “laboratório científico”58, muito


servindo para estimular suas ambições intelectuais. Assim como os estudos na
Biblioteca Nacional, escreve Rodrigues (1961), nesse período, “...a leitura constante de
Varnhagen e o convívio continuado dos autores alemães, que agora freqüentava
desembaraçadamente, começavam a produzir seus efeitos”59. Mas conforme observou
Falcon (2011), o abandono da parte de Capistrano das “convicções positivistas, com as
quais aportara ao Rio de Janeiro, deve ser entendido com algumas cautelas e
restrições, como um processo lento e incompleto.”60 Pois, de acordo com esse autor,
Capistrano continuava a frequentar, ainda em 1881, aos Domingos, as leituras
positivistas dos seus amigos Miguel Lemos e Teixeira Mendes.
O concurso para o corpo docente do Imperial Colégio de Pedro II, no ano de
1883, parece marcar definitivamente a trajetória de Capistrano de Abreu como
historiador. Hélio Vianna revela algumas curiosidades desse concurso 61, promovido por
motivo de vacância, em virtude do falecimento de Joaquim Manuel de Macedo. Para
concorrer a esse certame, Capistrano alinhou a tese ‘Descobrimento do Brasil e seu
desenvolvimento no século XVI’.
Texto que veio a lume em 1907, Capítulos de História Colonial é obra pioneira,
e diga-se de passagem, de maturidade intelectual de um historiador que aventurou-se
por áreas diversas e distintas como os estudos de historiografia, a lingüística indígena

58
História e historiadores do Brasil. São Paulo: Fulgor, 1961,p. 36.
59
Ibidem, p. 37-38. A biblioteca de Capistrano revelava, segundo José Honório Rodrigues, a
predominância da formação alemã do autor. Nela haviam obras de Ranke, Mommsen, Meyer, Georg
Friederici. Capistrano de Abreu teve como companheiro nos estudos de alemão, o escritor Machado de
Assis. Caberia acrescer da fala de José Honório Rodrigues que o historiador, não criando como na ficção,
acaba por recriar um mundo realmente vivido, mundo que foi sofrido, aproveitado ou perdido. O
historiador na sua prática, é guiado pelas teorias, que se apresentam variantes, segundo os interesses
presentes. Portanto, seria o documento, “...a única coisa permanente na mudança contínua. Para
acrescentar ao mundo dos fatos mais fatos, a pesquisa e a edição de textos eram o primeiro caminho que
a escola da crítica histórica de Ranke o faria [ a Capistrano de Abreu] seguir obstinadamente.” P. 47.
60
Capistrano de Abreu e a historiografia cientificista: entre o positivismo e o historicismo. In: NEVES,
Lucia Maria Bastos Pereira das Neves et. Ali. (Orgs.). Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro:
FGV, 2011, p.154.
61
Hélio Vianna recorreu ao relato do jornalista alemão Carlos von Koseritz, para quem a tese de
Capistrano ia muito além dos horizontes dos seus limitadíssimos examinadores, Moreira de Azevedo e
Matoso Maia. A esses, o examinando superava de longe, o que fazia com que os examinadores com ele se
chocassem, fazendo extraordinárias e por vezes, até tolas objeções à tese do talentoso jovem. O
Imperador, que se encontrava presente, e se irritava a cada demonstração da incapacidade dos
examinadores, deu o sinal para que o exame cessasse. Capistrano bateu-se com linha, mas brilhara à custa
dos seus ignorantes examinadores. Nomeado professor, Capistrano de Abreu deixava a Biblioteca
Nacional, e no mesmo ano editou a sua tese, dedicando-a “Aos organizadores do Catálogo da Exposição
de História e Geografia do Brasil, como prova de admiração e reconhecimento”. Capistrano de Abreu:
ensaio biobibliográfico. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955, p. 24-25.
217

ou a crítica literária. A reinterpretação da história brasileira colocava em xeque o


paradigma Varnhagen, montado para dar coerência à narrativa histórica.
Dessa forma, o Estado, vale dizer, a Coroa portuguesa e a sua continuidade, a
dinastia bragantina, deixavam de ser o lócus explicativo das raízes e do campo de
experiência nacional, e o convite seria embarcar em um roteiro, que no fazer
historiográfico de Capistrano de Abreu, levaria do positivismo spenceriano ao realismo
histórico rankeano, no que passou a ter, doravante, o primado do objeto como condição
sine qua nom para a produção da pesquisa histórica.
Caberia dizer que Capistrano de Abreu se mobilizava no sentido de reinterpretar
a experiência brasileira em perspectiva diversa do que fizera Varnhagen, que a
concebera em termos do Estado Imperial62. O que contava então para a geração de
Capistrano de Abreu era privilegiar o povo brasileiro e a sua formação étnica, o que era
feito aos se tomar de empréstimo as teorias européias que efervesciam sob o
cientificismo63 dominante europeu. Cabe no entanto, tecer as devidas diferenciações
entre Capistrano de Abreu e Sílvio Romero, articulando para tanto, tal cientificismo ao
historicismo, e identificando a este como constituído de três fases. Assim, a primeira
fase teria correspondido ao historicismo filosófico do século XVIII, uma corrente na
qual encontramos nomes como os de Vico, Montesquieu, Kant, Turgot e Condorcet. Ao
historicismo filosófico seguir-se-ia o historicismo erudito, identificado com o
romantismo e que imbrica-se, de acordo com Wehling (1991), metodologicamente com
a obra de Ranke, correspondendo na historiografia brasileira à História Geral do Brasil,
de Varnhagen. Na terceira fase teríamos então o historicismo cientificista, corrente que
acreditava poder encontrar leis para a História, no que caberia ao historiador o papel de
descobrir regularidades sociais e, a partir dessas, estabelecer leis 64.
O detalhe da trajetória de Capistrano de Abreu que nos interessa aqui ressaltar é
que a partir de 1880 o historiador já revelava uma certa insatisfação em aderir com
dogmatismo e postura subserviente – como Sílvio Romero faria até a data da sua morte,

62
WEHLING, Arno. A invenção da História: estudos sobre o historicismo. 2.ed. Rio de Janeiro: Gama
Filho, 2001.
63
Na proposta formulada por Arno Wehling, conforme já adiantamos, a expressão cientificismo tenta dar
conta daquilo que seria uma mitificação da ciência, ou seja, da transformação da ciência de um método de
abordagem em uma visão de mundo. Ver Capistrano de Abreu e Sílvio Romero: um paralelo cientificista.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 152 (370) pp 265-274, jan.mar.
1991.
64
O historicismo cientificista estava baseado em algumas idéias, a saber, a concepção mecanicista do
real, onde acreditava-se poder afirmar as regularidades da natureza humana; a indução, que fazia com
que a partir da observação e da experiência fossem encontrados indícios que autorizassem uma crescente
escala de generalização que levasse ao descobrimento das ‘leis’ da História.
218

em 1914 – as suas elaborações científicas. Criticado e acusado de ecletismo por Sílvio


Romero, Capistrano mudara radicalmente a sua concepção de história.
Assim podemos considerar que muito mais que as leituras em alemão, o que
sobremaneira teria influenciado a Capistrano, foi ter colocado em primeiro plano o
objeto, dando liberdade a que esse respondesse às perguntas colocadas. E quais eram os
objetos de Capistrano? Escreveu José Carlos Reis (2001) que o foco do Mestre passara
a ser o aparecimento de um homem singular, o desbravador dos sertões, surgido a partir
do encontro do europeu com os indígenas, encontro que veremos, ocorreu nas terras
tropicais do Brasil.
Foi adentrando ao sertão, conforme escreveu Reis (2001), que o europeu,
mestiçado e agora mameluco, veio a tornar-se o brasileiro, personagem central na obra
de Capistrano. A diferenciação então ocorrida poderia ser localizada a grosso modo sob
dois aspectos. Um deles seria a adaptação ao clima, sendo a outra proporcionada pelos
cruzamentos interétnicos. Ora, entendemos conforme sugeriu Rebeca Gontijo que a
cultura histórica é constituída mediante um complexo trabalho de apreensão da
temporalidade, estando ligada a um conjunto de representações, doravante
compartilhadas, e que passam a ser mobilizados juízos e atribuídos significados
positivos ou negativos, a períodos, personagens e acontecimentos 65. Voltemos então aos
capítulos de História colonial para adentrarmos aos séculos XVI e XVII , os prediletos
de Capistrano, para presenciar a ação de mamelucos conquistadores do território, bem
como a construção espiritual brasileira, sob os jesuítas.
À época que os “Capítulos” ganhavam a sua primeira edição, João Capistrano de
Abreu tratava de preparar a terceira edição da História Geral do Brasil, obra maior de
Francisco Adolfo de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro. Revisando e tomando
notas da obra do ‘Heródoto’ brasileiro, ‘Mestre’ Capistrano tratava de realizar a sua
própria versão sobre a História brasileira. Destoaria no entanto de Varnhagen, por
desejar um texto mais condensado, ou ainda, queria que de sua lavra brotasse obra que
poderia ser lida por muitos, sem pedantismos ou tantas divagações eruditas. Capistrano
reabilitara a Varnhagen e não o perderia mais de vista, produzindo belos artigos como o
intitulado “Sobre o Visconde de Porto Seguro”66. Porém, o que devemos reconhecer é

65
O intelectual como símbolo da brasilidade: o caso de Capistrano de Abreu. In: ABREU, Martha,
SOIHET, Rachel, GONTIJO, Rebeca (Orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e
ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 309 - 327.
66
ABREU, João Capistrano de. Sobre o Visconde de Porto Seguro. In: Ensaios e Estudos: 1ª série. 2.ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
219

que os interesses de Capistrano, conforme já parece ter ficado bastante visível,


divergiam muito daqueles professados pelo Visconde de Porto Seguro.
Avesso aos títulos, suspeito quanto a honras e mercês, desiludido de
reconhecimentos, viessem eles do Estado ou do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, a verdadeira ambição de Capistrano de Abreu era revelar, em uma obra de
síntese para os brasileiros, o homem brasileiro, como ele pronunciava, povo capado e
recapado, sangrado e ressangrado, mas que emergira vigoroso por obra de uma
miscigenação tanto casual quanto oportuna, ao longo de três séculos de período
colonial.
A obra a ser escrita a ‘breves traços e largas malhas’ estava fadada a conter uma
matéria a ser bem medida, para caber em um pequeno volume, e pragmaticamente
pensada, pois deveria ser capaz de transportar o leitor para os anos iniciais da
Colonização, uma época de dificuldades imensas, e mesmo de dores pungentes e
incertezas quanto à colheita dos frutos dos trabalhos mais industriosos.
Sob condições assim penosas, o povo brasileiro – personagem principal de
Capistrano de Abreu – começou pelo Oriente a ocupação do território, ficando
concentrado principalmente no século XVI, na chamada Zona da Mata, a qual lhe
propiciava o pau-brasil, a madeira para a construção, e com o tempo, os terrenos
próprios para as plantações de fumo e cana.
Por volta do ano de 1527, a Colônia ainda não se encontrava dividida em
Capitanias hereditárias, e Portugal contava com uma exigüidade populacional numérica
de pouco mais de um milhão cento e vinte mil almas para povoar o mundo. Escrevia
Capistrano, quantidade minguada até para encher o próprio Reino. A solução foi atirar-
se à mestiçagem. Mas assim também fizeram os franceses, chamados de mair pelos
indígenas. Cabe acrescer ainda no primeiro século de colonização, a chegada de outro
elemento alienígena à nova terra: o negro africano. Tendo a importação começado desde
o estabelecimento das capitanias hereditárias, e avultado nos séculos seguintes, sempre
submetendo o negro como força de trabalho escravizado na base do cultivo da cana-de-
açúcar, do fumo, das minas, do algodão ou do café.
Contudo, ao contrário da mestiçagem com o selvícola americano, a ocorrida com
o negro era vista com certa aversão, inabilitando para certos postos. Mulatos, aponta
Capistrano, não podiam receber ordens sacras. Daí, o ter padres na família era um
desejo comum que servia para provar a ‘limpeza de sangue’. Assim escreveu Capistrano
de Abreu, que,
220

“com o tempo os mulatos souberam melhorar de posição e por fim impor-se


à sociedade. Quando reuniam a audácia ao talento e à fortuna alcançaram
altas posições...[afinal] ...o negro trouxe uma nota alegre ao lado do
português taciturno e do índio sorumbático. As suas danças lascivas,
toleradas a princípio, tornaram-se instituição nacional; suas feitiçarias e
crenças propagaram-se fora das senzalas. As mulatas encontraram
apreciadores de seus desgarres e foram verdadeiras rainhas. O Brasil é
inferno dos negros, purgatório dos brancos, paraíso dos mulatos, resumiu
em 1711 o benemérito Antonil.”67

Capistrano demonstra como a história do Brasil no século XVI elaborou-se em


trechos exíguos de Itamaracá a São Vicente, e por sua própria lavra também vemos que
de Bertioga até o Cabo Frio, os tupinambás seguiam implacáveis contra os Peró e a
favor dos Mair.
A migração dos tupiniquins fora a mais antiga, mas em diversos pontos do litoral
os tupinambás já os havia repelido para o sertão, embora ainda fosse possível encontrar
tupiniquins habitando a extensa faixa litorânea. São Vicente, ao Sul, e Pernambuco,
mais ao Norte, e além disso mais oriental, mais próxima ao Reino, prosperarão.
O Nome de Nova Lusitânia, dado orgulhosamente por seu donatário, Duarte
Coelho à sua colônia, figurava esperanças ao futuro, mares piscosos e fartura na terra,
mas não foram suficientes para instigar os franceses, pois a prosperidade do comércio
costeiro mantinha ali a presença de caravelões.
Repelidos de Pernambuco por seu industrioso donatário, os franceses foram
ainda contidos ao centro da Colônia, pela cidade de Salvador e vilas que abaixo haviam
surgido, passando então a frequentar a capitania de Pero de Góis e terras vizinhas
pertencentes a Martim Afonso, facilitados tanto pela existência de pau-brasil em
abundância, quanto pelo domínio naquelas paragens, dos Tamoios.
Para que a vitória portuguesa viesse a ocorrer, muito veio a contribuir as ações
de Mem de Sá, o terceiro governador-geral, o qual mudou a antiga vila de Santo André,
fazendo com que se reunisse à missão jesuítica de Piratininga. Os tupiniquins se
insurgiram, chegando a cercar o povoado, mas foram repelidos pelos seus parentes
catecúmenos dos jesuítas, tendo a favor dos portugueses, se batido de forma heróica o
índio Martim Afonso Tibiriçá, em julho de 1562. Manuel da Nóbrega entabulou, a partir
de 1563, as pazes com os tamoios, contando para tanto com o precioso auxílio do jovem
jesuíta José de Anchieta. Por volta de 1564, nas palavras de Capistrano,
“desafrontado o sertão, desoprimida a marinha do Norte, o povo da
capitania pode auxiliar Estácio de Sá, mandado em 64 à conquista do Rio,

67
Capítulos de História Colonial, p. 18.
221

dominado ainda pelos inimigos de aquém e além-mar, sem embargo da


vitória recente. Com os navios e gente levados da Bahia, com índios tomados
do Espírito Santo, canoas e auxiliares colhidos em S. Vicente, Estácio
começou a fundar a cidade de São Sebastião em 1 de março de 65.”68

O primeiro Governador-Geral, Tomé de Souza, trouxe em sua companhia os


primeiros seis jesuítas mandados ao continente americano. Esse evento marcou a
entrada de mais um importante personagem coletivo na tessitura armada por Capistrano
de Abreu. Esses jesuítas teriam na opinião de Capistrano de Abreu, completado
harmonicamente o esboço de administração o qual fora projetado com vistas a unificar a
Colônia, o que no entendimento do autor de Capítulos de História Colonial, era avaliado
com variações de indiferença à hostilidade da parte dos outros eclesiásticos.
É no sentido da convergência de esforços que seria criado no Brasil o primeiro
bispado, tendo vindo para a colônia o bispo D. Pedro Fernandes Sardinha, o qual entrou
em discórdia com o segundo governador-geral, D. Duarte da Costa. Por essa época
(1553-1557), explica Capistrano de Abreu, os jesuítas, superiores e alheios às relações
vigentes entre o poder civil e o eclesiástico, passaram a concentrar seus esforços na
capitania de São Vicente, transpondo a serra do Mar, e estabelecendo-se na ribeira do
rio Tietê, com sua primeira missão, o Colégio de São Paulo, fundado em 25 de janeiro
de 1554.
Nas palavras de Capistrano de Abreu,
“...os jesuítas representavam outra concepção da natureza humana.
Racional como os outros homens, o indígena aparecia-lhes educável. Na
tábua rasa das inteligências infantis podia-se imprimir todo o bem; aos
adultos e velhos seria difícil acepilhar, poderiam, porém, aparar-se arestas,
afastando as bebedeiras, causa de tantas desordens, proibindo-lhes comerem
carne humana, de significação ritual repugnante aos ocidentais, impondo
quanto possível a monoginia, começo de família menos lábil. Para tanto
cumpria amparar a pobre gente das violências dos colonos, acenar-lhes com
compensações reais pela cerceadura de maus hábitos inveterados, fazer-se
respeitar e obedecer, tratar da alimentação, do vestuário, da saúde, do
corpo, enfim, para dar tempo a formar-se um ponto de cristalização no
amorfo da alma selvagem...” 69

O domínio espanhol, que havia sido vantajoso contra os franceses, foi


catastrófico contra os holandeses. Portugueses e holandeses haviam sido, desde a Idade
Média, grandes parceiros comerciais, situação que trazia benefícios para ambas as
partes. Mas em 1585, Filipe II da Espanha mandou confiscar os navios flamengos
ancorados em seus portos, tornando a fazer o mesmo nos anos de 1590, 1595 e 1599.

68
Capítulos de História Colonial, p. 49.
69
Capítulos de História Colonial, p. 60.
222

Para realizar investidas contra navios, portos e possessões espanholas, fundaram os


holandeses a Companhia das Índias Orientais (1602). Nova Companhia, desta vez
voltada para o Ocidente foi criada, obtendo o seu foral em 1621, integralizando seu
capital em 1624.
A Companhia das Índias Ocidentais, apesar da frieza com que sua idéia fora
acolhida na Holanda, deixaria sinais de sua passagem no território africano, mas
também nas costas das possessões espanholas na América do Norte e Antilhas, bem
como no Chile e no Brasil, caso este que interessa mais de perto.
É que devemos ressaltar o destaque dado por Capistrano de Abreu ao capítulo
reservado às ‘guerras flamengas’. Episódios que tanto haviam impressionado ao
Visconde de Porto Seguro, com sua batalhas campais, e a ação de um exército europeu
invasor, o que parecia dar cores mais vivas à luta dos colonos. Foi principalmente por
força de uma suposta coesão interna, de sentimentos comuns em relação à terra nativa,
que a nobreza da terra, a fidalguia mazomba se fará nos séculos seguintes se representar
de forma reiterada e consistente, e que pelo risco de suas vidas e fazendas advirá pela
Coroa portuguesa, as esperadas honras e mercês70.
Leitor atento de Varnhagen, mas estudioso percuciente das fontes primárias, dos
relatos de época, Capistrano estava atento a toda essa movimentação, e fazendo um
pouco ainda, uma história oitocentista não hesita em apontar arestas e valores nos dois
lados da contenda. Da parte dos colonos, o brio de bater-se contra um inimigo de
primeira linha, bem armado e bastante organizado para as exigências bélicas daquela
época.
A defecção de Domingos Fernandes Calabar é um dos aspectos ressaltados.
Capistrano ressalva a natureza das fontes: poucas e suspeitas, que apresentam os
escritos contemporâneos à guerra. Assim, Calabar, ‘mulato natural de Porto Calvo’,
“exercia a profissão de contrabandista, nem de outro modo se podem
explicar os roubos feitos à fazenda real de que o acusam os nossos, pois não
deviam ter andado dinheiros públicos por suas mãos; para professar o
contrabando assinalavam-no a audácia, a presença de espírito, a fertilidade
de invenções, o profundo conhecimento das localidades. Era o único homem
capaz de se medir com Matias de Albuquerque, e como tinha sobre este a
vantagem de dispor do mar, desfechou-lhes os golpes mais certeiros. Qual
móvel o levou a abandonar os compatriotas, nunca se saberá; talvez a
ambição, ou a esperança de fazer mais rápida carreira entre estranhos,
tornando-se pela singularidade de seus talentos indispensável aos novos

70
Ver: MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630/1654. São
Paulo: Edusp, 1975; e, MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração
pernambucana. 3.ed. São Paulo: Alameda, 2008.
223

patrões ou, talvez, o desânimo, a convicção da vitória certa e fácil do


invasor”71

Acreditamos que cabe aqui ressaltar uma observação de Nilo Odália (1997)
acerca da obra de Varnhagen. O episódio da deserção de Calabar havia adquirido realce
no contexto da afirmação da nacionalidade presente nos escritos do Visconde de Porto
Seguro. Assim, Calabar representava mais que uma traição, por motivo de sua
transferência para o campo inimigo haver auxiliado ao invasor holandês com aquilo que
de melhor possuíam os defensores da terra, tais como as táticas próprias das lutas de
guerrilha, onde se lutava uma guerra fora dos padrões de engajamento em campo aberto
com o inimigo, ou seja, uma luta na qual jogavam um papel fundamental as armadilhas
e surpresas, mas sobretudo, o conhecimento dos pontos geográficos vulneráveis72.
Doravante, com Calabar ao lado do invasor estrangeiro – e o aspecto da
afirmação da nacionalidade aparece em Capistrano de forma quase tão marcante como
na obra de Varnhagen – havia sido transferido ao campo inimigo os melhores recursos
de estratégia que antes eram monopolizados pelos ‘nacionais’73.
De igual valor aparece na narrativa de Capistrano, a restauração portuguesa,
onde é apreciado o panorama vicentino, assim escrevendo,
“Governava na Bahia, como primeiro vice-rei do Brasil, D. Jorge de
Mascarenhas, marquês de Montalvão, quando chegou a notícia dos sucessos

71
Capítulos de História Colonial, p. 82.
72
Fernand Braudel, leitor de Evaldo Cabral de Mello, tematizou os aspectos desse tipo de guerra
transportando-a para outras partes do mundo. Ele acaba concluindo que contra essa forma de luta pouco
podiam fazer as técnicas da ‘guerra científica’, válidas segundo ele somente “se praticada por ambos os
lados”. Nas suas palavras, a guerrilha fora imposta aos presunçosos veteranos holandeses, por “índios e
brasileiros, incomparáveis especialistas do ataque de improviso”. Essa seria uma guerra travada sob o
imponderável ‘tempo do mundo’, que rege, conforme os lugares e as épocas, certos espaços e certas
realidades, mas que deixa escapar outras realidades e outros espaços. Sob essa ótica braudeliana haveria
em toda parte, zonas nas quais a história mundial não se repercute, zonas de silêncio ou ainda, zonas de
tranquila ignorância. Daí a perplexidade do soldado holandês que “queria conduzir a guerra segundo as
regras da Europa, é desmoralizado por esses inimigos evanescentes que, em vez de aceitarem o combate
leal, em campo aberto, se furtam, escapam, fazem emboscadas. Que covardes! Que frouxos! Até os
espanhóis concordam. Como diz um dos seus veteranos: ‘não somos macacos para lutar nas árvores!’ ”
BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: séculos XV-XVIII (o Tempo do
Mundo). V. 3. São Paulo: Martins Fontes, 1998. As citações encontram-se respectivamente às pags. 47 e
48.
73
Analisando a História Geral do Brasil, de Francisco Adolfo de Varnhagen, Nilo Odália defendeu aquilo
que fica ressaltado das guerras de reconquista, que é como o Visconde de Porto Seguro qualificava as
chamadas invasões holandesas, seriam os elementos que permitem uma maior coesão interna da nação.
Tal coesão seria uma afirmação e uma garantia da unidade territorial, que estaria sustentada no papel
desempenhado na luta conjunta das três etnias. As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento
historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: Unesp, 1997. Sobre o papel de Capistrano
como anotador da História Geral do Brasil, de Francisco Adolfo de Varnhagen, ver AMED, Fernando.
Ser historiador no Brasil: João Capistrano de Abreu e a anotação da História Geral do Brasil de Francisco
Adolfo de Varnhagen. In:NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das et ali. (Orgs). Estudos de historiografia
brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2011.
224

de Portugal. Suas medidas previdentes inutilizaram a pequena guarnição


espanhola; todos os magnatas aderiram à independência de Portugal e à
aclamação do Bragança, e o resto do país, acompanhou-os, mesmo a
capitania de S. Vicente, onde havia muitas famílias de estirpe castelhana.” 74

Capistrano tece loas à nação que acredita estar sendo esboçada, logo ali pela
ação daqueles intemeratos heróis coloniais, onde,
“venceu o espírito nacional. Reinóis como Francisco Barreto, ilhéus como
Vieira, mazombos como André Vidal, índios como Camarão, negros como
Henrique Dias, mamalucos, mulatos caribocas, mestiços de todos os matizes
combateram unânimes pela liberdade divina. Sob a pressão externa operou-
se uma solda, superficial, imperfeita, mas um princípio de solda, entre os
diversos elementos étnicos” 75

Um pouco ainda preso a certos fazeres historiográficos oitocentistas,


enveredando às vezes na forma mais desabrida de história política, malgrado seu
indiscutível talento e erudição, Capistrano reserva para o capítulo dedicado ao Sertão os
melhores tratos e esperanças de constranger pela sua capacidade no burilar das letras
históricas, como faria um hábil oleiro, todo o material bruto contido nas fontes de época
que relatavam a conquista do território para além da costa. Assim, Capistrano após
narrar os feitos da insurreição pernambucana, que aliás reputa por gloriosos, o que teria
agradado a Varnhagen, os remete a mero episódio relacionado à ocupação da costa, pois
a quebra do paradigma varnhageneriano que espera fazer com sua obra, momento de
renovação temática, eleva a conquista do sertão como um dos pontos daquilo que
haveria de mais importante na História brasileira. Capistrano já ensaiara com sucesso
tarefa dessa natureza alguns anos antes, quando viera a lume o ensaio ‘Os Caminhos
Antigos e Povoamento do Brasil’. Esse texto fora escrito em 1899, antecedendo em sete
anos aos Capítulos de História Colonial, da qual é considerado um estudo
preparatório76. Pelas suas qualidades, esse ensaio aparece destacado na historiografia
capistraneana tanto pela originalidade das suas proposições – pois nele aparece pela
primeira vez em destaque o papel do sertão na história do Brasil – como por sua
inovação, em tentar criar uma visão integrada da História do Brasil, como não havia
sido tentada antes, salvo – cabe registrar – se assim quisermos considerar alguns
parágrafos alinhados pelo próprio Capistrano na parte final do seu artigo ‘Sobre o
visconde de Porto Seguro’.
74
Capítulos de História Colonial, p. 90.
75
Capítulos de História Colonial, p. 96.
76
ABREU, João Capistrano de. Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil.
In:________________________ . Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: Edusp, 1988.
225

Nos Capítulos de História Colonial, a imagem inicial que surge na abordagem do


sertão é de uma corrente volumosa, não obstante partida de pontos apartados, mas
movimento maciço, de dificuldades ásperas, mas de ubérrimas promessas de
prosperidade. É nessa corrente que avançam os paulistas, inicialmente retratados como
despovoadores. A sua terra, face à latitude, ofereceria uma lavoura semi-européia, o que
acabou retirando talvez as melhores possibilidades dos vicentinos de atirar-se à
plantation, como no caso das capitanias do Norte. Nas palavras de Capistrano, “...o
meio agiu como evaporador: os paulistas lançaram-se a bandeirantes.”77 Prevalecia
contudo o problema da falta de mão-de-obra, e os bandeirantes paulistas partem em
busca da captura do gentio ‘brabo’.
Ao final do século XIX pouco se sabia acerca das ações movidas pelos
bandeirantes do século XVII, da conquista do sertão pelos brasileiros e dos caminhos,
fossem terrestres ou fluviais percorridos pela população colonial, em seus
desbravamentos e no tanger do gado, na submissão dos índios e no estabelecimento de
núcleos de povoação. Em algumas situações, esses núcleos foram fundados pelos
portugueses e seus prepostos, para logo após serem invadidos pelos castelhanos,
gerando disputas após as quais eram retomados para quase sempre serem submetidos à
tratados internacionais, parte insubtraível que eram de questões geopolíticas brotadas na
‘Velha Europa’.
Em 1899, defendia Capistrano de Abreu em seu ‘Caminhos antigos e
povoamento do Brasil’ que existiram – após apurado o estudo da nossa história – no
movimento de penetração e povoamento brasileiro, quatro grandes centros: a capitania
de São Vicente, a Bahia, Pernambuco e o Maranhão. Entre as fontes que Capistrano
consultou destacam-se nomes tais como frei Vicente de Salvador, Rocha Pitta, o padre
Antonio Vieira, e um jesuíta de sua especial predileção: André João Antonil,
pseudônimo e anagrama de João Antônio Andreoni, visitador da Companhia de Jesus e
seu provincial, e que vem a ser o autor da reveladora obra setecentista que versou sobre
as potencialidades do Brasil, denominada ‘Cultura e Opulência do Brasil’ (1711) 78 da
qual trataremos logo adiante.

77
Capítulos de História Colonial, p. 99.
78
O título completo é extenso: ‘Cultura e Opulência do Brasil, por suas drogas e minas, com várias
notícias curiosas do modo de fazer o açúcar; plantar e beneficiar o tabaco; tirar ouro das minas; e
descobrir as da prata, e dos grandes emolumentos que esta conquista da América Meridional dá ao Reino
de Portugal com estes e outros gêneros e contratos reais.’
226

O movimento teria começado na Capitania de São Vicente. Fatores geográficos


haviam concorrido para isso: mata litorânea estreita, campos que se avizinham, rios que
avançam para o sertão e procuram o mar após longos meandros na direção do Nordeste.
Além do mais, os índios dos campos eram os mesmos que os encontrados nas praias.
Dessa forma, a população se estendeu pelo litoral, de Angra dos Reis à Laguna. A gente
de Paranaguá transpondo a serra, liga-se à Curitiba. Aproveitou-se São Paulo de sua
posição, por acessar a bacia do Prata, a Mantiqueira e o Paraíba do Sul.
Contudo, conforme escreveu Capistrano, “o caminho entre S. Paulo e S. Vicente
não era cômodo, mesmo aproveitados os trechos navegáveis do Cubatão e de um dos
afluentes do Tietê.”79 Com as asperezas do caminho dificultando o trato entre o interior
e o litoral, e precisando Piratininga somente de sal, pólvora, armas e alguns tecidos –
podendo quase que somente dar em troca algum ouro de lavagem – era costume entre os
habitantes desta cegar os caminhos que vinham do litoral com vistas a tolher a ação das
autoridades que representavam o poder real.
A situação geográfica de Piratininga impelia-a para o sertão, seus habitantes
tomando o caminho oferecido pelos rios Tietê e Paraíba do Sul, cujas bacias dela se
avizinham80. Esses teriam sido os teatros das primeiras bandeiras. Quanto a essa forma
de vida, de aprear índios, Capistrano de Abreu cerra a sua crítica pois elas:
“concorreram antes para despovoar que para povoar nossa terra, trazendo
índios dos lugares que habitavam, causando sua morte em grande número,
ora nos assaltos às aldeias e aldeiamentos, ora com os maus tratos infligidos
em viagens, ora, terminadas estas, pelas epidemias fatais e constantes, aqui e
alhures apenas os silvícolas entram em contato com os civilizados. Acresce
que os bandeirantes iam e tornavam, não se fixavam nunca nos territórios
percorridos; isto explica o motivo da sua persistência durante mais de um
século e seus exílio quando não tornaram mais à pátria.”81

Apesar de alegar em 1907 a falta de documentos para a escrita da história das


bandeiras, Capistrano acaba revelando em seus Capítulos de História Colonial a parte
geográfica das expedições desses sertanistas de São Paulo, com a utilização do Tietê no
século XVI – a primeira das regiões devastadas – seguindo-se o roteiro do Paraíba do
Sul, pela garganta de São Miguel para alcançar a Mantiqueira. Despovoamento e
depredação eram os traços caracterizadores da passagem das bandeiras, até que o

79
Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. In:________________________ . Caminhos antigos e
povoamento do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988, p. 43.
80
Cada uma das vilas extremas da capitania de São Vicente, observou o autor, demandava destino
diverso, pois “ as vilas do Paraíba do Sul apontavam para as próximas Minas Gerais, como Parnaíba e
Itu apontavam para Mato Grosso, como Jundiaí apontava para Goiás, e Sorocaba para os campos de
pinheiros em que já surgia Curitiba”. Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil, p. 45.
81
Idem, Ibidem, p. 44.
227

movimento paulista, desta vez voltado para o sertão ocidental veio a chocar-se com o
movimento paraguaio à procura do mar. Harmonia inicial por conta de interesses
econômicos, até que já na primeira década do século XVII, os jesuítas castelhanos
viessem missionar na margem oriental do Paraná, fundando Loreto e San Ignácio, no
Paranapanema e mais de uma dezena de reduções no Tibagi, Ivaí, Corumbataí e Iguaçu.
O conceito de reduções jesuíticas, que Capistrano toma de empréstimo de um
jesuíta do século XVII, seria,
“...povoados dos índios, que vivendo à sua antiga usança, em matos, serras e
vales, em escondidos arroios, em três, quatro ou seis casas apenas,
separados, uma, duas, três e mais léguas uns dos outros, os reduziu a
diligência dos padres a povoações grandes e a vida política e humana, a
beneficiar algodão com que se vistam, porque comumente viviam em nudez,
ainda sem cobrir o que a natureza ocultava” 82

Não houve dúvidas da parte dos paulistas. Lançaram-se a saltear contra as


reduções, apesar da energia dos jesuítas. Mas havia a conivência do governador do
Paraguai – Luís Cespedes Xeria – com os interesses dos paulistas, tornados sertanistas.
A tolerância era devida ao fato de Luís Xeria ser casado em família fluminense, além de
ser senhor de engenho no Rio. Interesses compartilhados portanto com a gente de São
Paulo.
Com o aceno do governador do Paraguai, os paulistas lançaram-se de forma
decidida às reduções de San Antonio, San Miguel, Jesus Maria, San Pablo, San
Francisco Xavier, ou seja, as reduções do Guairá, passando após essas, àquelas
localizadas no Uruguai e no Tape. Capistrano é crítico, e toma posição a favor dos
indígenas, sendo indisfarçável a defesa que faz da atuação dos jesuítas. Desses aponta
Antonio Ruiz de Montoya e Francisco Dias Taño, que não encontrando quem os
apoiasse em Assunção, Rio ou Salvador, rumaram respectivamente para Madrid e
Roma. As bulas e censuras conseguidas por Taño e ordens precisas de Montoya (este
conseguira a permissão para aparelhar os índios com armas de fogo e adestrá-los na arte
militar) causaria a irritação tanto do litoral, quanto do planalto paulistano.
Capistrano descreve assim, amparado em relato deixado pelo jesuíta Montoya,
os processos empregados pelas expedições paulistas contra as reduções jesuíticas,
“... no dia de São Francisco Xavier (3 de dezembro de 637), estando
celebrando a festa com missa e sermão, cento e quarenta paulistas com cento
e cinqüenta tupis, todos muito bem armados de escopetas, vestidos de
escupis, que são ao modo de dalmáticas estofadas de algodão, com que
vestido o soldado de pés à cabeça peleja seguro das setas, a som de caixa,

82
Capítulos de História Colonial, p. 102.
228

bandeira tendida e ordem militar, entraram pelo povoado, e sem aguardar


razões, acometendo a igreja, disparando seus mosquetes. Pelejaram seis
horas, desde as oito da manhã até as duas da tarde. Visto pelo inimigo o
valor dos cercados e que os mortos seus eram muitos, determinou queimar a
igreja, aonde se acolhera a gente. Por três vezes tocaram-lhe fogo que foi
apagado, mas à quarta começou a palha a arder e os refugiados viram-se
obrigados a sair. Abriram um postigo e saindo por ele a modo de rebanho de
ovelhas que sai do curral para o pasto, com espadas, machetes e alfanjes
lhes derribavam cabeças, truncavam braços, desjarretavam pernas,
atravessavam corpos. Provavam os aços de seus alfanjes em rachar os
meninos em duas partes, abrir-lhes as cabeças e despedaçar-lhes os
membros.” Dessa forma, nos indaga Capistrano, “Compensará tais horrores
a consideração de que por favor dos bandeirantes pertencem agora ao Brasil
as terras devastadas?”83

A autorização conseguida por Montoya para armar e adestrar os índios em breve


daria resultados, e a superioridade inicial dos bandeirantes estaria com tais medidas,
irremediavelmente perdida. Estes teriam agora de se lançar contra os indígenas do alto
Paraguai, empresa que por caçar gentio de corso, de língua travada não rendia tanto
quanto as investidas anteriores. Ressalta Capistrano que das reduções destruídas, as do
Guairá e dos Tape nunca mais foram restabelecidas, sendo que no Uruguai foram
fundados os sete povos, mais tarde incorporados ao Brasil.
Possessos com a atuação dos discípulos de Ignácio de Loyola, escreve
Capistrano de Abreu, e,
“...defendidos por seu caminho inexpugnável, os paulistas expulsaram os
jesuítas que só voltaram anos depois, à força de negociações e concessões.
Implantou-se, portanto, o sistema seguido nas terras espanholas de
encomendas ou administração de índios; algumas encomendas por
testamento couberam finalmente à Companhia de Jesus. Imagina-se mal
neste figurino oportunista a consciência heróica de Manuel da Nóbrega.”84

Do Sul, os paulistas passaram ao Norte empregados em incursões contra os


Tapuias. Bandeirantes como Domingos Jorge Velho auxiliaram na debelação do
quilombo de Palmares. Relata Capistrano que muitos dos paulistas empregados nas
guerras do Norte, não mais retornaram a São Paulo, preferindo a vida de grandes
proprietários de terras, as quais foram adquiridas pela força de suas armas.
Para exemplificar, em 3 de março de 1687 o governador da capitania de
Pernambuco contratou ao bandeirante Domingos Jorge Velho a conquista, destruição e
extinção total dos negros levantados nos Palmares. Além dos quintais de pólvora e
chumbo, e dos alqueires de farinha, milho e feijão a serem postos às expensas do
governador em locais determinados, visando ao emprego nas operações bélicas,

83
Capítulos de História Colonial, p. 103.
84
Capítulos de História Colonial, p. 104.
229

naturalmente ajustava-se a paga dos serviços em cruzados, tudo por conta da fazenda
pública. Ficavam ainda acertados a doação aos conquistadores da ‘Tróia Negra’, das
sesmarias a serem demarcadas no sítio de Palmares. Como de regra, oferecia-se ainda
quatro hábitos das três ordens militares portuguesas para Domingos Jorge Velho e os
oficiais que ele viesse a nomear85. Assim, os paulistas teriam passado de bandeirantes a
colonizadores, isto é, na linguagem de Capistrano de Abreu, de despovoadores a
povoadores, entregando-se nas ribeiras do rio das Velhas e do São Francisco à criação
de gado.
Aliás, o gado vacum, pedindo pessoal mínimo, quase abolindo capitais, além de
não exigir riqueza de solos, foi o responsável pelo adentramento de uma população
doravante fixada no interior. Apesar das temerárias fomes que assolaram a Colônia, essa
situação não via conformidade em relação ao trato do gado, sempre a fornecer
alimentação constante. Mas havia também o couro para a porta das cabanas e para o
rude leito aplicado ao chão duro, passando pelas cordas, pelo alforje da comida ou ainda
pelas bainhas de faca e os surrões apropriados para entrar no mato. No entendimento de
Capistrano de Abreu, foi a criação de gado que tornou possível o descobrimento das
minas.
Mas tal descoberta tem também a sua ligação com o chamado de D Pedro II de
Portugal à gente principal dos paulistas. À época, ressalta Capistrano, uma carta régia
era ombreada a uma honra quase sobre-humana. Os paulistas, pioneiros da mineração,
sofreram seu revés na Guerra dos Emboabas, mas viraram mineiros novamente, no
Oeste, com os achados de Pascoal Moreira Cabral nas minas de Cuiabá, quando ele e
seus companheiros andavam à cata de índios.
Lembra Capistrano que, “depois da guerra dos emboabas, houve ainda
desordens em Minas Gerais, uma delas, em 1720, sufocada energicamente; não mais
inspirou-as o espírito de nativismo, isto é, a queixa de espoliação e sua importância é
meramente provinciana.” 86
Ganha realce sob Capistrano de Abreu a análise do livro de João Antonio
Andreoni Luquense, o jesuíta setecentista autor de Cultura e Opulência do Brasil
(1711), por suas drogas e minas. Cabe lembrar que o livro trazia o anagrama do autor,

85
Condições ajustadas com o governador dos paulistas Domingos Jorge Velho em 14 de agosto de 1693,
para conquistar e destruir os negros de Palmares. Revista do Instituto Historico, Geographico e
Ethnographico do Brazil. Rio de Janeiro, t.XLVII, parte I, 1884, p. 19-24.
86
Capítulos de História Colonial, p. 151. Como podemos ver, nesse ponto Capistrano divergia dos
historiadores do IHGMG.
230

estando nesse grafado André João Antonil, cabendo a autoria desse achado a Capistrano
de Abreu.
A obra, dividida em cinco partes, inventariava o grau de autonomia que
alcançara a economia da colônia portuguesa já nos primeiros anos do século XVII,
tratando dos engenhos e do açúcar, do fumo, das minas e do gado.
O livro recebeu uma resposta fulminante do governo português, pois foi
confiscado mediante a desculpa de que revelaria segredos do Brasil aos estrangeiros.
Expõe Capistrano que a verdade seria outra, pois, “o livro ensinava o segredo do Brasil
aos brasileiros, mostrando toda a sua possança, justificando todas as suas pretensões,
esclarecendo toda a sua grandeza” 87.
A Conjuração Mineira se tornaria a grande ausente da obra de Capistrano. Este
ajuntara diversos motivos para que a conjura, elevada ao conceito de movimento
nativista nos anos iniciais da República, não aparecesse. Quanto a Capistrano de Abreu,
que a confiarmos na avaliação de seu crítico mais simpático, José Honório Rodrigues,
era à época do lançamento dos Capítulos de História Colonial (1907) reputado como a
mais incontrastável autoridade na história pátria88, talvez coubesse uma espécie de
‘desculpa por procuração’. É sabido que a síntese da pesquisa realizada para anotar a
História Geral do Brasil com vistas a reeditá-la89, foi uma tarefa à qual Capistrano se
atirou a partir de 1902, atividade que veio a contribuir de forma significativa na
composição dos Capítulos de História Colonial. O fato é que, em 1907, a Inconfidência
Mineira já era considerado como o mais importante evento precursor da Independência
do Brasil. Advogando em favor de Capistrano, assim, José Honório Rodrigues explicou
o ocorrido:
“O fato é que entre 1878, quando criticava Varnhagen por considerar a
Conjuração Mineira como uma cabeçada e um conluio, e 1903, quando se
intrigava com as honras prestadas a Tiradentes em detrimento dos Mascates
e dos Republicanos de 17, ele parece ter se convencido de que a Conjuração
realmente não tivera a importância que começavam a atribuir-lhe. Muito
mais importante eram as lutas dos Emboabas e dos Mascates, a consciência
da riqueza do país, as proezas dos bandeirantes, os atritos armados e

87
Capítulos de História Colonial, p. 162.
88
Lúcia Maria Paschoal Guimarães escreveu que “mesmo ausente das sessões [do IHGB], Capistrano era
uma espécie de eminência parda na vida intelectual do Instituto”(2007:123). Dessa forma, cabe acrescer,
“desde 1906, já se esboçava um certo movimento de reabilitação de Varnhagen, liderado por Capistrano
de Abreu, que preparou uma edição comentada do tomo I da História Geral do Brasil. Capistrano
costumava recomendar a leitura da obra aos confrades do IHGB. Embora discordasse de certas
interpretações do visconde, louvava seus méritos de profundo conhecedor do ofício, mormente, no que se
refere à pesquisa documental.” (2007: 122-23).
89
AMED, Fernando. Ser historiador no Brasil: João Capistrano de Abreu e a anotação da História geral
do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen. In: NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das et. Ali.(orgs.)
Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2011, p. 125-150.
231

sangrentos, as lutas dos Republicanos de 17. Ele mesmo dirá, em carta a


Mário de Alencar, que ‘na Suíça é proibido, hoje, nas escolas públicas
introduzir a história de Guilherme Tell, depois da crítica histórica ter
demonstrado sua inanidade. Por que, tendo estudado o depoimento de
Tiradentes e a sentença da alçada, sou obrigado a repetir a versão corrente
e a colocá-la no Panteon?’”90

Porém, mais importante do que possa ser imputado a Capistrano como uma falha
em sua obra de síntese, a qual ele mesmo reputava como bastante incompleta, teria sido
o seu mérito em conseguir desvencilhar-se do posicionamento típico da chamada
‘geração de 1870’, qual fosse, de perscrutar o Brasil sob o prisma do darwinismo social.
Essa geração se mantinha temerosa, como ensina José Carlos Reis (2001) no tocante ao
que as teorias de fins do século XIX reservavam ao país e ao seu povo, no tão almejado
rumo da civilização.
Daí para José Carlos Reis, o grande mérito de Capistrano nas suas obras de
maturidade teria sido reabrir o futuro do Brasil, vencendo com isso,
“...o pessimismo existente entre os intelectuais brasileiros, que olhavam o
Brasil com as teorias deterministas européias e nele não viam o que elas
valorizavam, embora ele também em uma primeira fase, tivesse se
impregnado de tais teorias e feito algum contorcionismo teórico. Finalmente,
ele optou pela teoria européia que valoriza a singularidade, a historicidade
de cada povo, e formulou uma nova interpretação do Brasil que enfatizará o
tempo histórico especificamente brasileiro.”91

O método histórico rankeano, como diz Reis, mas também uma nova perspectiva
dotada de expressiva alteridade teriam permitido com que Capistrano de Abreu
observasse sob outras cores a formação do Brasil. O protagonista principal nesse drama
de três séculos não foi o português – embora esse tenha servido como motor inicial –
pois havia atravessado o oceano saído de uma outra guerra, travada no solo da sua terra
natal, contra os muçulmanos, povo que consideravam hereges. Nessa conquista
americana, os filhos de Portugal não encontram os seguidores de Maomé, mas broncas
tribos nômades. Então eles rapidamente se desprendem de sua identidades européias, e
conquistam a complexa espacialidade dos trópicos, para em um breve espaço de tempo,
reterritorializá-lo, expressão que na acepção de uma relação natureza-homem, como em
F. Ratzel, passa a significar o domínio da natureza pelo homem.
Contudo, esse homem é algo novo, surgido na América e confrontado com seus
desafios que somente a ele cabe enfrentar e vencer, pois não conhece outras paragens, e

90
Citado em RODRIGUES, José Honório. História e historiadores do Brasil. São Paulo: Fulgor, 1961,
p.44-45. (grifos do autor).
91
As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, p.94.
232

essa terra é afinal o seu solo natal . Essa natureza tropical não seria insuperável e muito
menos degenerada como pretendiam teóricos como Montesquieu, Buffon, Raynal, De
Pauw92.
Capistrano conhecia bem os historiadores/cronistas coloniais tão menosprezados
por Buffon e parece que tomara gosto pelo contato de lê-los por força de ofício na
Biblioteca Nacional. Por sua vez, alguns desses cronistas coloniais eram padres, com
formação escolástica e que haviam lido sobre a ‘tórrida zona’ de Aristóteles, assim
como também não desconheciam a realidade da América tropical. Assim, Capistrano
embeberou-se em Antonil, decifrando seu anagrama para mostrar que esse jesuíta
setecentista revelara o segredo do Brasil aos brasileiros, estudou Gândavo, o qual
admitia fazer o elogio da terra no fito de atrair imigrantes, e escreveu as ‘notas
preliminares’ para a História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador, de 1627, obra de
apologia ao Brasil, a ponto de ter sido considerada por Sílvio Romero, como um hino
patriótico.
Ao personalizar o espaço e de forma raffesteniana transformá-lo em território,
sobrepujando a natureza aos seus interesses, esse colono já é um miscigenado com o
indígena, pois Capistrano inclinou-se a ver um Brasil mais mameluco, mais caboclo.
Esse mameluco teria sido o resultado étnico da pousada final dos bandeirantes, após
suas investidas em busca de índios, ouro, pedras preciosas, quilombolas. Após
percorrerem os quadrantes do território, estes ‘paulistas’ resolveram estabelecer-se nas
novas paragens, tornando-se um novo tipo: o sertanejo brasileiro, que Euclides da
Cunha – de maneira elegíaca, e possivelmente com os olhos postos sobre Canudos –
diria ser um forte, mas que Capistrano de Abreu – mais realista e ele próprio um
sertanejo – caracterizaria desde já como um mestiço, homem singular integrado à
natureza dos trópicos.
Por seu turno, Sílvio Romero encontrava-se enquanto parte da intelectualidade
de um país periférico, e além disso, recén-saído da escravidão, mais comprometido com
um corpo doutrinário que atuava de maneira sistemática no mundo ocidental.
Essas doutrinas defendiam que haveria uma diferença inata entre os seres
humanos, e elegia a antiguidade Greco-romana – com ênfase na sua vida intelectual,
incluídos aí os seus modelos de estatuária tomados enquanto exemplares de beleza

92
Cfe. GERBI, Antonello. O novo mundo: história de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
233

clássica – como padrão daquilo que deveria ser uma sociedade superior, constituída por
indivíduos biologicamente perfeitos.
Conforme observou Mota (2000), a Europa – entendida como a parcela da
humanidade que mais se aproximava dessa perfeição vislumbrada na Antiguidade
Clássica – foi elevada à categoria de valor supremo da comparação, e portanto também,
da desigualdade. Nas palavras da autora, “ ...a racionalidade ocidental criava uma
escala biossocial na qual figurava no topo, localizando negros, índios ou quaisquer
outras etnias que não a branca [incluídos aí os mestiços]nos patamares inferiores.”93
Dessa feita, as teorias racistas, popularizadas no contexto das crescentes
rivalidades que envolviam os países europeus na passagem do século XIX ao XX, e até
de certa forma tornadas roteiros de leituras obrigatórias aos teóricos da idéia nacional,
penetraram nos discursos sobre a nação, a eles incorporando o vocabulário proveniente
dos escritos de autores como Joseph Arthur de Gobineau.
Uma outra vertente do pensamento racial, na qual pontificava Herbert Spencer,
havia interpretado o darwinismo, no que pretendia haver fundamentado as teorias da
nação sob fórmulas biologizantes, o que acabou por fornecer ao racismo uma razão
científica que possibilitava afirmar a doutrina da superioridade de certas nações sobre
outras. Ainda de acordo com Maria Aparecida Rezende Mota,
“...a identificação, no século XIX, entre os dois termos – civilização e
progresso – foi, portanto, resultado de um lentíssimo processo de agregação
de conteúdos e de imagens positivas. E é esse o sentido que predomina nas
teorias européias sobre a nação. Seria com ele que os mais populares
autores europeus construiriam seus esquemas explicativos do indivíduo e da
sociedade, interpretando a nação – sua nação – como o lugar mesmo em que
o Ocidente se realizava enquanto civilização.”94

Ao encerrarmos o presente capítulo convém não perdermos de vista tais teorias


raciológicas que tão longa duração conheceram em nossos meios intelectuais, sob a
forma de ensaio ‘científico’ voltado para a identificação das características do povo
brasileiro e da sua possibilidade de constituir-se em nação capaz de acompanhar a
marcha da civilização. Um longo inquérito voltado para a identificação do mestiço se
tornava discurso corrente onde expressões como branqueamento, mestiçagem, eugenia
tornaram-se pontos de convergência e de discordância nos anos iniciais do século XX
brasileiro.

93
MOTA, Maria Aparecida Rezende. Sílvio Romero: dilemas e combates no Brasil da virada do século
XX. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 82.
94
Idem, Ibidem, p. 85.
234

Da mesma forma convém perceber na trajetória percorrida por Capistrano de


Abreu, e mais detidamente na sua fase final, onde o realismo histórico rankeano se
apresenta em toda sua riqueza, os pilares onde vieram assentar-se o fazer historiográfico
que iria propor novos temas, explorar sob nova perspectiva velhos documentos e
utilizar-se das possibilidades aventadas por uma elite política que visava constituir a
partir do seu campo de experiência, um discurso acerca do tempo pretérito que lhes
servisse como representação especular condizente às suas pretensões, ou seja, onde
pudessem se identificar e da qual pudessem se orgulhar.
235

5 – Avesso da Civilização

“De longa data vivemos num perfeito mundo da lua muito parente daquele camoneano
estado d’alma ledo e cego da Inês de Castro...Sempre vimos errado, a nós e às nossas
coisas. E apesar de inúmeras decepções continuamos a ver-nos ainda às avessas. Umas
tantas mundices da lua ganharam foros de axioma, desses que se demonstram pelo simples
enunciado, v.g.: a triplice miragem da nossa riqueza, da nossa inteligência e da nossa inven-
cibilidade.. Resumem-se assim tais dogmas: 1º - Somos um dos povos mais inteligentes e
sensatos do mundo – como o afirma Alberto Torres no “Problema Nacional”, consolidando uma
opinião generalizada. Mas como o pensador ocupa as quatrocentas paginas de sua obra no de-
monstrar que em apenas um seculo de vida livre chegamos á completa degradação moral, política
e financeira, o leitor sai do livro com esta mirifica lição nos miolos: quanto mais inteligente e
sensato um povo, tanto menos capaz de organização e progresso. 2º - Somos o país mais rico do
mundo (poetas, jornalistas, patriotas, mensagens governamentais, etc.). 3º - O Brasil é o único
país, além do Japão, que jamais foi vencido em guerra (didatas, oradores, de Recreativas, mulatos
pernósticos, etc.). Monteiro Lobato. ‘A ação de Oswaldo Cruz’.
Artigo publicado em 1918, no jornal ‘O Estado de São Paulo’. In: Problema Vital.

Nos anos iniciais do século XX o que estaria faltando ao Brasil para que fosse
considerado um país civilizado? Caso preferíssemos responder a essa questão
aproximando a noção de civilização de um viés político, encontraríamos certos
subsídios nas discussões que envolviam os rumos da República, regime que por si só
ensejava a noção de progresso, e que fora aliás instaurada em seu nome, sobretudo se
considerada a visão de mundo dos positivistas1, os quais conforme precisa observação
de José Murilo de Carvalho, haviam se mostrado hábeis produtores de símbolos 2 .
Caberia ainda acrescer que a República, com seus ideais – e com sua proposta um tanto
vaga de realizá-los – surgira alardeando, conforme apontou Lilia Moritz Schwartz,
promessas de igualdade e de cidadania, elementos esses de uma modernidade que
tomava a França como o grande modelo civilizatório3. Nesse sentido, as críticas ao novo

1
COSTA, João Cruz. Contribuição à história das idéias no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
1967.
2
A formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Ver especialmente o cap. 5, ‘Bandeira e hino: o peso da tradição’.
3
Observa essa autora que estaria sendo prometida uma era onde seriam abertas, por meio da educação, as
possibilidades de acesso à cidadania, em uma sociedade não mais cerceada por modelos de hierarquia
social restrita, o que valeria dizer que a antiga sociedade estamental cedera a vez a uma sociedade de
classes, aberta à meritocracia, e desvinculada portanto de critérios de origem ou de nascimento.
236

regime de governo poderiam servir para nos apontar aquilo que falhara, ou ainda o que
ao menos fora considerado no universo das escolhas daqueles que à época detinham o
poder.
Porém, caso queiramos investigar a mais profunda motivação existente por trás
da recorrente obsessão das nossas elites por ingressar nesse idealizado paraíso terreal
resumido na palavra civilização, teremos que considerar algumas pistas deixadas por
alguns estudiosos em trabalhos que nos precederam. Nessa tarefa, cabe apontar
inicialmente para José Murilo de Carvalho, autor que demonstrou com sobejas que a
tarefa a ser enfrentada pelos republicanos nos primeiros anos do novo regime era
substituir um governo e construir uma nação4. Naquela perspectiva, o desmoronamento
da sociedade escravocrata e a consequente emergência de uma sociedade de classes 5
veio a projetar-se ao mesmo tempo que a queda da monarquia e a instauração do regime
republicano.

Durante todo o período monárquico a tarefa dos donos do poder fora dar
continuidade à obra civilizatória da colonização portuguesa, o que consistia na
persistência da defesa dos valores inegociáveis consoantes ao ethos da elite saquarema,
o que de certa forma ficou plasmado como componente do campo de experiência
brasileiro no elogio histórico formulado por Francisco Adolfo de Varnhagen. Nesse
sentido, acreditamos estar autorizados a dizer que se antes era possível encontrar nas
páginas da História Geral do Brasil a caracterização da memória da colonização como
repositório seguro sob um paradigma consoante com a historia magistra vitae,
doravante certos conceitos e valores sofreriam um pouco a variação no seu sentido. Fora
gestada uma nova sociedade, que se declarando burguesa, e no campo discursivo,
meritocrática ameaçava destituir o homem ‘branco’ brasileiro do seu papel de condutor
privilegiado dos destinos da nação, apontando para a emergência de novos atores
coletivos.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. As marcas do período. In: ____________.(Dir.) História do Brasil Nação:
1808-2010. V.3. A abertura para o Mundo (1889-1930).Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
4
Explica o autor que no Brasil, a temática nacional somente passou a ser tratada em seu âmbito político
ao se aproximar o momento de enfrentar o problema da escravidão. Dessa forma, a imigração estrangeira,
realizada pela necessidade de mão-de-obra livre para as regiões cafeeiras e a incorporação dos escravos à
sociedade de classes eram duas faces de um mesmo problema. Caberia ainda dizer que a abolição da
escravidão, realizada no penúltimo ano da Monarquia atendera na verdade à necessidade política de
preservação da ordem pública, a qual estava ameaçada pela fuga em massa de escravos. CARVALHO,
José Murilo de. Entre a liberdade dos antigos e a dos modernos: a República no Brasil. Dados – Revista
de Ciências Sociais. Rio de Janeiro,v.32, n.3,1989, pp.265-280.
5
Encontramos acerca dessa questão uma crítica incisiva movida por Florestan Fernandes. Ver desse
autor: A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978.
237

A Abolição com suas imposições legais e a República com seus trilhos e linhas
telegráficas avançando sertão adentro – então considerados como signos da civilização
pela crença mantida em seu papel transformador – haviam colocado novos problemas ao
apresentar contingentes populacionais identificados como pouco afensos aos laços de
lealdade do projeto de nação conduzido pelos donos do poder6. Negros e índios eram
então considerados pela elite branca como sendo incapazes de prover a necessária
sustentação social e política aos pressupostos hierárquicos que vinham expressos no
ideal de Civilização.
Conforme esclareceu Lilia M. Schwarcz, a Abolição contribuíra para que
desmoronasse um complexo sistema de mecanismos sociais de distinção, que seriam
apropriados e até necessários em uma sociedade estamental, dentre esses a alforria,
mobilidade que era individual, ou em outras palavras, uma alteração em pequena escala,
não contendo assim, características de alteração de magnitude no corpo social.
Mas considerado o processo histórico, que conforme sabemos retrata tão
somente uma dinâmica da vida dos homens em sociedade, novas forças se reagrupavam.
A questão da mudança de um cenário que acabou impedindo a absorção dos ex-escravos
na sociedade de classes emergente que então vinha sendo gestada, foi em parte
esclarecida por Lúcia Lippi Oliveira ao estudar a questão nacional na Primeira
República. Ela explica que já em meados do século XIX, diferentes pensadores haviam
passado a interpretar os conflitos de ordem política e social em termos de luta de raças.
O grupo étnico entendido enquanto segmento da população marcado por características
similares, com a nação organizada sobre etnias, fazia com que desaparecessem as
esperanças e aspirações da criação de uma nova ordem política e social popular. A visão
da história aparecia então como sendo uma luta incessante, e a guerra e o conflito
figuravam naquele contexto, como um instrumento do progresso.
Debruçada sobre essa mesma temática, observou Lilia Moritz Schwarcz que o
cenário que acima procuramos esboçar fora, “...convulsionado pela entrada dos
racismos e das teorias raciais de toda ordem, que impuseram novas divisões entre os
grupos humanos, agora justificadas por argumentos e teorias biológicas.” 7 O que
acabaria ocorrendo, ainda segundo essa autora foi que “em vez da trajetória
assimilacionista que se apresentava como estrada de percurso longo, mas possível,

6
MACIEL, Laura Antunes. A comissão Rondon e a conquista ordenada dos sertões: espaço, telégrafo e
civilização. Projeto História. São Paulo, n.18, mai. 1999, p.167-189.
7
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As marcas do período. In: ____________.(Dir.) História do Brasil Nação:
1808-2010. V.3. A abertura para o Mundo (1889-1930).Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 20.
238

houve a retomada de um projeto hierárquico, agora pautado na diferenciação racial –


nova moeda corrente”8.
Em suma, defendeu L.M.Schwarcz, e no nosso entendimento acertadamente, que
finda a escravidão, novas modalidades de hierarquia ficaram estabelecidas, “sendo a
raça e a biologia bússolas a orientar a ‘nova civilização’ ”9. Vale dizer que os modelos
raciais então vigentes, condenavam o destino dos brasileiros como povo miscigenado.
Assim, no Brasil dos primeiros anos do século XX, o darwinismo social já se
consolidara como sendo a versão então assumida pelo liberalismo. Resta ainda dizer que
o darwinismo social já ao final do século XIX 10 , estava representado no Brasil por
aqueles que se inspiravam em Herbert Spencer.
Certamente que cabem alguns acréscimos quanto às proposições formuladas por
Lilia Schwarcz, cabendo evidenciar que o racismo é parte de uma estrutura simbólica
que compõe uma das chaves interpretativas da realidade brasileira. Nessa estrutura
simbólica estava incluso um esquema classificatório de base racial construído a partir da
colonização portuguesa. Dessa forma, Jair de Souza Ramos (2002), considerou o
período colonial como sendo o ponto de partida para a montagem da estrutura simbólica
que tornou possível esse esquema classificatório de base racial. Amparado no excelente
estudo de Charles Ralph Boxer, Ramos aponta para o ‘Estatuto da Pureza do Sangue’,
originado no bojo da Contra-Reforma.
Esse Estatuto teria servido como orientação para que fossem discriminados
judeus, mouros, negros e mulatos. Em trabalho posterior, assinado em conjunto com
Marcos Chor Maio, Ramos voltaria ao tema procurando realçar a característica de longo
prazo desse processo de absorção das teorias raciais por parte dos intelectuais
brasileiros. Acentuava no entanto que os termos tais como aparecem na documentação
colonial – mamelucos, pardos, mulatos, crioulos, boçais, mouriscos, cristãos novos –
com os quais a administração portuguesa buscava estabelecer as diferenças e
desigualdades entre os segmentos da população no Brasil não identificavam raças no
sentido biologizante, mas como um mecanismo de classificação e diferenciação

8
Idem, ibidem, pp. 20-21.
9
Idem, ibidem, p. 25. (grifos da autora).
10
O darwinismo social foi tema recorrente nas sociedades ocidentais entre o último quartel do século XIX
e as duas primeiras décadas do século XX, tendo perdido força após a Primeira Guerra Mundial (1914-
1918). Entre os autores consagrados ao período podemos destacar GOLLWITZER, Heinz. O
imperialismo europeu (1880-1914). Lisboa: Verbo, 1969; MAYER, Arno J. A força da tradição: a
persistência do antigo regime (1848-914). São Paulo: Companhia das Letras, 1987; HOBSBAWM, Eric J.
A era dos impérios: 1875-1914. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; TUCHMAN, Barbara. A torre do
orgulho: um retrato do mundo antes da Grande Guerra (1890-1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
239

hierárquica para desiguais 11 . O autor localiza, em termos temporais, o ápice desse


esquema classificatório na Primeira República, pois considera que nessa época foi
definida “uma relação específica entre unidade do território e hierarquia entre
populações.”12
Equacionado o problema acerca dos marcos temporais do racismo no Brasil,
podemos dizer que acoplado ao presidencialismo, o darwinismo republicano tinha em
mãos instrumentos ideológicos e políticos para estabelecer um regime profundamente
autoritário. Dessa forma, a busca de uma identidade coletiva para o país, a qual serviria
como base para a construção da nação, teria sido na opinião de José Murilo de Carvalho
(1989, 1995 e 1997), a tarefa maior que coube à geração intelectual da Primeira
república.
Talvez melhor seria dizer, e assim sugerimos, que estava em curso a
reconstrução da identidade coletiva para o país, pela incorporação nesta, daqueles
contingentes populacionais de negros e índios antes submetidos ao eito e à senzala, pois
emancipados para a República. Outrora segregados às brenhas e às selvas, e agora
convocados ao banquete da civilização pelos ideais humanitários de um Rondon, de um
Carlos Chagas, de um Belisário Penna. Juntamente com a alteração de alguns matizes
da noção de civilização, que sobretudo após a Primeira Guerra deixava de ser
referenciada somente à Europa, estava em curso a redefinição do conceito de nação.

11
RAMOS, Jair de Souza, MAIO, Marcos Chor. Entre a Riqueza Natural, a Pobreza Humana e os
Imperativos da Civilização, Inventa-se a Investigação do Povo Brasileiro. In: SANTOS, Ricardo Ventura,
MAIO, Marcos Chor. (Org.) Raça como questão: História, Ciência e Identidades no Brasil. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 2010, p. 32.
12
RAMOS, Jair de Souza. O Brasil sob o Paradigma Racial: Sociologia Histórica de uma Representação.
In: PENA, Sérgio D. J. (Org.). Homo brasilis: aspectos genéticos, lingüísticos, históricos e
socioantropológicos da formação do povo brasileiro. 2.ed. Ribeirão Preto: Funpec, 2002, p.132. Sobre a
discriminação racial no Império Colonial Português, nossa referência é a obra de Charles Ralph Boxer, e
especificamente indicado seria O Império Colonial Português. Lisboa: Edições 70, 1977. O tema
encontra-se desenvolvido no capítulo 11 desse livro, intitulado «Pureza de Sangue» e «Raças Infectas».
De acordo com Boxer, durante séculos os portugueses puseram uma tônica no conceito de limpeza ou
pureza de sangue, não somente do ponto de vista classista, mas também do ponto de vista racial. Esta
afirmação contradiz pesquisadores que afirmam que os portugueses nunca tiveram qualquer preconceito
racial digno de menção. Ao contrário disso, afiança Charles Boxer que negros e mulatos, bem como todos
os indivíduos que tivessem mistura de sangue africano foram, durante séculos, considerados como
pessoas de sangue infecto em todo o Império Português.Expressões como raças infectas são
frequentemente encontradas, seja em documentos oficiais, ou ainda na correspondência privada, até o
último quartel do século XVIII. Escravos negros e indivíduos de origem judaica constituíam, de modos
diferentes, segmentos muito importantes da sociedade no Império Português, porém não eram os únicos
indivíduos sobre os quais a discriminação era feita. Os portugueses faziam uma discriminação racial
rígida, tanto na Igreja, quanto no Estado. O clero não-europeu dos seminários portugueses sofria
limitações em relação aos seus irmãos brancos. Na Índia, os portugueses consideravam todas as raças de
cor, especialmente os indianos e os africanos, como intrinsecamente inferiores à raça branca.
240

Assim, torna-se incontornável, contemplar as teorias raciais, ou a idéia de raça


como noção que estava articulada aos princípios atinentes a que fosse pensada a nação,
bem como as possíveis representações que sobre essa vigoravam naquela época.
Predominavam sobre o Brasil as imagens de um país predominantemente ocupado por
uma população atrasada em termos evolutivos, considerados os critérios ‘científicos’
que o darwinismo social traçara entre o último quartel do século XIX e as duas
primeiras décadas do século XX. Aqueles que tinham escrito sobre o Brasil até então,
via-de-regra, encontravam-se como presos a amarras de ordem ideológica, submetidos
ao condicionamento de teorias estrangeiras, quando não, como era o caso do tão
valorizado historiador inglês Henry Thomas Buckle – do qual tratamos em capítulo
anterior – tinham feito de ouvir falar ou da leitura dos relatos de alguns cientistas,
naturalistas, diplomatas ou viajantes13, também estrangeiros.
O fato era que não conheciam verdadeiramente o Brasil e muito menos os
brasileiros. Kabengele Munanga sumariou tais teorias que à época procuravam explicar
a situação racial do país e propor caminhos para a construção da nacionalidade
brasileira 14 . Face à sugestão expressa no estudo de Munanga, talvez possamos tirar
algumas lições, dividindo tais teorias inicialmente em dois grandes blocos, a saber: 1.
Aqueles que se baseavam no racismo e no determinismo biológico, acreditando na
inferioridade das raças não brancas; e, 2. Os que avaliavam que haviam existido certos
vícios na colonização, defendendo ainda que havia sido feita uma absorção acrítica das
teorias alienígenas.

Começando pelo primeiro grupo, julgamos ser interessante observar que essa
sequência de ensaios exprime a forma pela qual se deu em nosso país a apropriação das
teorias raciais européias, sob a qual debruçaram-se alguns destacados intelectuais

13
RAMOS&MAIO destacaram entre esses, além do já citado Buckle, o diplomata francês Arthur
Gobineau (1816-1882) que viveu no Brasil por um curto período, entre 1869 e 1870, tendo se tornado um
grande amigo do Imperador Pedro II. Gobineau havia escrito em 1853 o famoso “Ensaio sobre a
Desigualdade das Raças Humanas”. Outro viajante e cientista foi Louis Agassiz (1807-1873), naturalista
suíço radicado nos EUA que aportou ao Brasil em 1865, integrando uma expedição científica à busca de
espécimes da flora e da fauna brasileiras. Dignos de registro seriam ainda o escritor francês de livros de
aventura, Gustave Aimard (1818-1883), o qual passou parte da sua juventude na América do Sul, o
também francês, Louis Couty (1854-1884) fisiologista que foi professor na Escola Politécnica do Rio de
Janeiro e o ensaísta argentino José Ingenieros (1877-1925), autor de um livro de muito sucesso na
América do Sul: “O Homem Medíocre”. RAMOS, Jair de Souza, MAIO, Marcos Chor. Entre a Riqueza
Natural, a Pobreza Humana e os Imperativos da Civilização, Inventa-se a Investigação do Povo
Brasileiro. In: SANTOS, Ricardo Ventura, MAIO, Marcos Chor. (Org.) Raça como questão: História,
Ciência e Identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010, p. 31-33.
14
Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. 3.ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2008.
241

brasileiros naquilo que acreditavam ser os desafios de fazer do Brasil um país


civilizado. Cabe então iniciar nossas considerações por um monumental trabalho da
lavra de Sílvio Romero, do qual já tecemos várias referências em capítulo anterior. Na
sua obra de maior expressão, a História da literatura brasileira15, cuja primeira edição
conforme sabemos foi publicada em 1888, Romero afirmava crer no nascimento de um
povo tipicamente brasileiro, o qual deveria surgir do resultado da miscigenação entre as
três raças originárias. Para ele, esse processo estaria em curso nos próximos dois ou três
séculos. A mestiçagem seria no Brasil uma fase transitória no caminho para uma nação
brasileira que deveria ser presumidamente branca.
Em 1894 o Dr. Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) dava a público o ensaio
‘As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil’16. Professor da Faculdade de
Medicina da Bahia entre os anos de 1891 e 1906, tendo sido o introdutor no Brasil da
disciplina de Medicina Legal, Nina Rodrigues vinha realizando pesquisas que
envolviam a camada mais humilde da população, sendo afeito aos estudos de
Antropologia Criminal do médico italiano Cesare Lombroso. Natural do Maranhão,
Nina Rodrigues radicou-se na Bahia, e essa terra muito lhe serviu como uma espécie de
laboratório para o estudo de temáticas tais como a questão racial, as religiões afro-
brasileiras e a inserção do negro na sociedade brasileira17. Conforme observou Ricardo
Luiz de Souza, o Dr. Nina Rodrigues teria sido em seu tempo um intelectual plenamente
reconhecido, e um médico cujos estudos frequentemente derivaram para o terreno da
Etnologia. Dessa forma talvez seja possível dizer – com suporte no texto desse
comentarista – que para Nina Rodrigues a medicina e a etnologia estavam entrelaçadas,
dado que os propósitos seguidos pela medicina legal naquele período faziam corroborar
essa prática.
De acordo com o Dr. Nina Rodrigues, as raças negras e índias seriam espécies
incapazes, ou seja, espíritos atrasados cuja adaptação a uma civilização superior poderia

15
O subtítulo dessa obra extensa (5 volumes) é ‘Contribuições e estudos gerais para o exato
conhecimento da literatura brasileira. Utilizamos a 7ª edição, que veio a lume pela José Olympio no ano
de 1980.
16
A edição por nós utilizada foi a 3ª (1938), preparada pela Companhia Editora Nacional no âmbito da
Coleção Brasiliana, em volume que recebeu um prefácio de Afrânio Peixoto. As linhas por ele traçadas
nos esclarecem que o Dr. Nina Rodrigues, estabelecido inicialmente em sua terra natal, o Maranhão,
estudou a lepra e criticou os hábitos alimentares, colhendo a animosidade da classe médica local, pela
qual foi apelidado de “doutor farinha-seca”. Na Bahia porém, dedicar-se-ia a estudos sobre a abasia
coreiforme, entre outros, antes que a medicina legal viesse a se tornar sua paixão. A tuberculose, o câncer,
a degeneração e a criminalidade foram seus objetos privilegiados de investigação. A morte o colheria a 17
de julho de 1906, em Paris, para onde partira em busca de melhoras para a saúde debilitada.
17
SOUZA, Ricardo Luiz de. Pensamento Social Brasileiro: de Raul Pompéia a Caio Prado Júnior.
Uberlândia: Edufu, 2011.
242

provocar desequilíbrios e perturbações psíquicas. Para ele, o atavismo se manifestava


nos produtos dos cruzamentos inter-raciais, e a heterogeneidade, fosse de base racial ou
cultural da população brasileira, fazia rejeitar a idéia de uma unidade étnica para o país.
Com a população branca distribuída de forma desigual pelo território, Nina
Rodrigues apontava para a degradação das chamadas raças cruzadas, denominação que
utilizava para referir-se aos mestiços. Na sua opinião, a culpa deveria ser atribuída ao
colonizador português, povo o qual considerava atrasado e arredio da civilização. A
tudo isso, entendia esse autor, deveriam ser acrescidas as influências do clima quente e
do insucesso da catequese, com um relaxamento dos costumes que a riqueza do solo
somente contribuiu para agravar. À dificuldade em se construir uma identidade nacional
deveria ser respondida com a criação de uma legislação diferente para os brancos e as
‘espécies inferiores’, dado que as características raciais ‘inatas’, ao afetar o
comportamento social, deveriam ser levadas em conta pelo legislador. Assim, o Dr.
Nina Rodrigues se bateu contra o código penal republicano que acusava de possuir
grave falta por atribuir uma igualdade de direitos fundada no Direito Clássico, o fazendo
no entanto para um meio racial heterogêneo. Nina Rodrigues defendia com base em “um
argumento poligenista, que diferentes espécies humanas, constituídas por variações
físicas e químicas e moldadas por diferentes estilos de vida, possuem predisposições
diferentes a algumas doenças” 18 . A medicina legal professada por Raimundo Nina
Rodrigues iria bem adiante do conhecimento médico stricto sensu, atribuindo-se a tarefa
de controle social. Após o massacre sofrido pelo arraial de Canudos, ele examinou o
crânio de Antônio Conselheiro – um crânio de mestiço, nas suas palavras – que
associava caracteres antropológicos de raças diferentes19.
Frequentador dos candomblés da Bahia, o doutor Nina Rodrigues entendeu que
os rituais de transe e possessão estariam associados a patologias de fundo psíquico, e ele
os enquadrava na clave dos fenômenos mórbidos. Ricardo Luiz de Souza esclarece que
foi estudando tais fenômenos que Nina Rodrigues construiu a ponte que o levou da
medicina à etnologia. Para aquele professor de medicina legal a religiosidade do negro
era uma disfunção mental, e portanto um problema da medicina. Para que esse problema
fosse equacionado deveriam ser utilizadas as contribuições da psiquiatria, devidamente
enquadradas a uma moldura de concepção evolucionista. Evolucionismo difuso e

18
PERARD apud. SOUZA. In: SOUZA, Ricardo Luiz de. Pensamento Social Brasileiro: de Raul
Pompéia a Caio Prado Júnior. Uberlândia: Edufu, 2011, p. 92.
19
RODRIGUES apud. SOUZA, idem, ibidem, p. 93.
243

ciência empírica combinavam-se tanto na teoria quanto na prática de Nina Rodrigues,


ainda que teoria e prática lhe apresentassem contradições, e o autor apesar de
intelectualmente alinhar-se – assim como os intelectuais de sua época – com Buckle,
Spencer ou Gobineau, nem sempre se mostrasse inclinado a concordar com a totalidade
das idéias professadas por eles. Em um texto intitulado ‘Os mestiços brasileiros’, cuja
data de lavra é um pouco imprecisa, mas que certamente consideradas as referências que
faz e a intenção de futuras publicações que exprime foi produzido entre 1888 e 1894, ele
declarava certa contrariedade com a forma pela qual as informações etnológicas
apareciam nos registros médicos, os quais acabavam oferecendo ao pesquisador
informações insatisfatórias. A divisão adotada, considerada artificial por esse médico –
cabe dizer que essa era a classificação adotada nas faculdades de medicina, clínicas de
ensino e estatísticas hospitalares – incluía num mesmo grupo de ‘pardos ou mestiços’
não somente os mulatos (mestiços de branco com o negro), mas também os mamelucos
(mestiços de branco com o índio), bem como “os mulatos que voltam ao negro”20. De
acordo com Nina Rodrigues, essa insubsistente divisão dificultava tanto o entendimento
de doenças afetas a determinados grupos étnicos, quanto o aprofundamento dos estudos
voltados para a capacidade eugenésica dos cruzamentos raciais.
Animado por essas crenças científicas o Doutor Nina Rodrigues estampava em
primeiro de novembro de 1897 um artigo na Revista Brasileira 21 . Dessa vez a sua
proposta era abordar o drama que então se desenrolava em Canudos à luz da psiquiatria,
no que passava a relacionar a história de vida de Antonio Conselheiro com os períodos
da que a ciência médica de então adotava para os casos de psicose 22. Conforme apontou

20
RODRIGUES, Raimundo Nina. Os mestiços brasileiros. In: _________. As coletividades anormais.
Brasília: Senado Federal, 2006, p.129.
21
RODRIGUES, Raimundo Nina. A loucura epidêmica de Canudos. In: _________. As coletividades
anormais. Brasília: Senado Federal, 2006.
22
Nina Rodrigues amparava-se então nas referências da literatura médica da época (Magnan, Garnier,
Lasègue, Falret) para diagnosticar Antônio Maciel como portador de uma psicose sistemática progressiva.
Baseando-se nas informações de um certo João Brígido, conterrâneo do ‘Antonio Conselheiro’, o dr. Nina
Rodrigues acreditava estar autorizado a fazer a sua anamnese. O ‘Conselheiro’ passara ainda no Ceará
por contínuas dissensões familiares, mudanças sucessivas de emprego e de lugar e pelo menos um
episódio de revolta agressiva na qual chegara às vias de fato, ao ferir um cunhado. Estaria então sob “os
primeiros esboços da organização do delírio crônico sob a forma do delírio de perseguição”. A fase
megalomaníaca da psicose do Conselheiro coincidiria com a sua internação nos sertões da Bahia, quando
por volta de 1876 já assumira a postura de uma espécie de enviado de Deus. Então se operara uma
transformação na personalidade do alienado. Daí a alguns anos ocorria o advento da República,
coincidente com o terceiro período da psicose progressiva de Antonio Conselheiro. Recusando a moeda e
o laicismo do governo republicano, aconselhando a que não se pagassem impostos e detratando o clero, o
Conselheiro teria achado combustível para atear o incêndio de uma verdadeira ‘epidemia vesânica’. Cabe
dar voz ao Dr. Nina Rodrigues: “As leis que regem a manifestação epidêmica da loucura são
precisamente as mesmas que Lasègue e Falret formularam desde 1877 para o caso mais simples de
contágio vesânico, o caso do delírio a dois. Três momentos básicos reconhecem essas leis. Em primeiro
244

Dante Moreira Leite, a exposição explícita de preconceito contra índios e negros coube
a Nina Rodrigues, seus estudos revelando-se datados e suas explicações sendo
23
excessivamente etnocêntricas . De acordo com Leite, o dr. Nina Rodrigues teria
aceitado integralmente – opinião da qual discordamos parcialmente – o evolucionismo
do século XIX. No entanto, os outros pontos batidos por Dante Moreira Leite nos
parecem bastante defensáveis. Assim, Nina Rodrigues teria defendido a inferiorização
do Brasil não somente pela existência de negros, mas também pela mestiçagem
ocorrida. Além disso, ele aplaudia a nítida separação havida nos Estados Unidos, de
brancos de um lado, e mestiços e negros de outro. Somando-se aos fatores da
inferioridade brasileira, para esse médico, o clima temperado favorecia aos brancos, ao
passo que o clima tropical teria favorecido aos negros e mestiços. No mais nenhuma
nota contra a injustiça da escravidão, nem um parágrafo condenando a exclusão social.
Apesar de não conseguir negar o heroísmo dos negros a bater-se por Palmares, ele
aplaude aqueles que destruíram o célebre bastião, pois teriam prestado um relevante
serviço à civilização24.
Tendo em vista o avançado estado de mestiçagem da população brasileira, que
as estatísticas da medicina lhe revelavam diariamente, Nina Rodrigues tematizou com
largueza os mestiços, cujas manifestações em Canudos parecem tê-lo impressionado de
maneira profunda:
“O jagunço é um produto tão mestiço que reproduz os caracteres
antropológicos combinados das raças que provém, quanto híbrido nas suas
manifestações sociais que representam a fusão quase inviável de civilizações
muito desiguais. Pelo lado etnológico não é jagunço todo e qualquer mestiço
brasileiro. Representa-o em rigor o mestiço do sertão que soube acomodar

lugar, a existência de um elemento ativo que cria o delírio e o impõe à multidão que passa a representar
o elemento passivo do contágio. Aceitando embora as idéias delirantes, a multidão reage por seu turno
sobre o elemento ativo, retificando, emendando, coordenando o delírio que só então se torna comum. Em
segundo lugar, é indispensável uma convivência prolongada das duas ordens de espíritos, ‘vivendo de
uma vida comum, no mesmo meio, partilhando o mesmo modo de existência, os mesmos sentimentos, os
mesmos interesses, os mesmos temores, as mesmas esperanças e estranhos a qualquer outra influência
exterior.’ Em terceiro e último lugar o contágio do delírio requer nele ‘um caráter de verossimilhança à
sua manutenção nos limites do possível, repousando em fatos ocorridos no passado ou em temores e
esperanças concebidas para o futuro.’ Em Canudos representa de elemento passivo o jagunço que
corrigindo a loucura mística de Antônio Conselheiro e dando-lhe umas tinturas das questões políticas e
sociais do momento, criou, tornou plausível e deu objeto ao conteúdo do delírio, tornando-o capaz de
fazer vibrar a nota étnica dos instintos guerreiros, atávicos, mal extintos ou apenas sofreados no meio
social híbrido dos nossos sertões, de que o louco como os contagiados são fiéis e legítimas criações. Ali
se achavam de fato, admiravelmente realizadas, todas as condições para uma constituição epidêmica de
loucura”. RODRIGUES, Raimundo Nina. A loucura epidêmica de Canudos. In: _________. As
coletividades anormais. Brasília: Senado Federal, 2006. As citações encontram-se respectivamente às
páginas 43 e 48-49. (grifos do autor).
23
O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 2.ed. São Paulo: Pioneira, 1969.
24
RODRIGUES, Nina. A Troia Negra (erros e lacunas da historia de Palmares). RIHGB, Rio de Janeiro.
Tomo LXXV, parte I, 1912, p. 231-258.
245

as qualidades viris dos seus ascendentes selvagens, índios ou negros, às


condições sociais da vida livre e da civilização rudimentar dos centros que
habita. Muito diferente é o mestiço do litoral que a aguardente, o ambiente
das cidades, a luta pela vida mais intelectual do que física, uma civilização
superior às exigências da sua organização física e mental, enfraqueceram,
abastardaram, acentuando a nota degenerativa que já resulta do simples
cruzamento de raças antropologicamente muito diferentes, e criando, numa
regra geral que conhece muitas exceções, esses tipos imprestáveis e sem
virilidade que vão desde os degenerados inferiores, verdadeiros produtos
patológicos, até esses talentos tão fáceis, superficiais e palavrosos quanto
abúlicos e improdutivos, nos quais os lampejos de uma inteligência vivaz e
de curto vôo, correm parelhas com a falta de energia e até de perfeito
equilíbrio moral. No jagunço ao contrário revelam-se inteiriços o caráter
indomável do índio selvagem, o gosto pela vida errante e nômade, a
resistência aos sofrimentos físicos, à fome, à sede, às intempéries, decidido
pendor pelas aventuras da guerra cuja improvisação eles descobrem no
menor pretexto, sempre prontos e decididos para as razias das vilas e
povoados, para as depredações à mão armada, para as correrias de todo o
gênero que os interesses do mando, as exigências da politicagem e as
ambições de aventureiros fazem suceder-se de contínuo por toda a vasta
extensão das zonas pouco habitadas do país.”25

Decididamente, Nina Rodrigues não via no mestiço a saída para um Brasil


branco ou ainda ‘branqueado’, talvez imaginando para essas ‘raças cruzadas’ o papel
de uma espécie tropical de “monstro da lagoa”, a embargar o acesso da sociedade
brasileira em sua busca pela civilização.
Com algumas variações no diagnóstico promovido por Sílvio Romero e Nina
Rodrigues, encontramos Euclides da Cunha (1866-1909), autor entre outras obras do
aclamado livro ‘Os sertões’, cuja primeira edição veio a lume em 1902. Nascido em
Santa Rita do Rio Negro, Cantagalo, na então província do Rio de Janeiro, Euclides era
filho de um baiano de nome Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha, o qual exercia o
ofício de guarda-livros nas fazendas de café da região do Paraíba do Sul. Por
consequência de um casamento, Manuel Rodrigues tornou-se proprietário de uma
pequena fazenda, porém em pouco tempo sua situação familiar agravou-se por motivo
das dificuldades financeiras e da da saúde de sua mulher. Constantes mudanças de
residência não lograram o efeito pretendido na recuperação da fragilidade orgânica de
Eudóxia Moreira da Cunha, que morreu de tuberculose deixando Euclides órfão aos três
anos de idade26. A maior parte da sua infância passou Euclides em companhia das suas
tias. As exigências da educação formal combinadas com as dificuldades econômicas da

25
RODRIGUES, Raimundo Nina. A loucura epidêmica de Canudos. In: _________. As coletividades
anormais. Brasília: Senado Federal, 2006, p. 49-50.
26
Para esboços biográficos de Euclides da Cunha ver: LIMA, Luiz Costa. Euclides da Cunha: contrastes e
confrontos do Brasil. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000; e, CARVALHO, Mário Cesar, SANTANA, José
Carlos Barreto de.(orgs.) Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha. Roberto Ventura. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003.
246

família obrigaram Euclides a residir com outros parentes, como a avó paterna em
Salvador, ou ainda com um tio, na então capital do Império. Euclides estudou
matemática no Colégio Aquino, tendo como professor o positivista e futuro herói
republicano Benjamin Constant, uma figura que iria exercer grande influência em sua
formação. Entusiasmado pela matemática, o jovem Euclides ingressa em 1885 na
Escola Politécnica, transferindo-se no ano seguinte para a Escola Militar, onde volta a
ter aulas com seu mestre Benjamin Constant. Na Escola Militar ainda sob o cetro da
Monarquia, mas tomada pela propaganda positivista e republicana, Euclides da Cunha
protagoniza um célebre episódio de indisciplina que, apesar de juvenil – e talvez até por
isso mesmo – viria a acarretar notoriedade de desassombro para o seu autor, já no início
da República 27 . Dado como rebelde, Euclides foi expulso da Escola Militar, porém
continuaria freqüentando o círculo de militares positivistas, tendo aliás se enamorado da
filha de um dos mais destacados conspiradores republicanos, o major Solon Ribeiro.
Com o sucesso da República é oferecido a Euclides retornar à Escola Militar, no
que ele acede. Promovido ao oficialato, Euclides da Cunha permanece no serviço ativo
por curto tempo, suficiente porém para participar da defesa do Rio de Janeiro durante a
Revolta da Armada. Desligado do Exército a pedido em 1896, Euclides desempenha
então funções de engenheiro e jornalista. Conforme tão bem observou Ricardo Luiz de
Souza, a atividade de engenheiro seria para Euclides a expressão de suas idéias como
escritor, e o Euclides escritor e o Euclides engenheiro seriam indissociáveis. Para
Souza, “um não é compreensível sem o outro.”28 Em agosto de 1897 ele embarca no
navio Espírito Santo com destino a Salvador. Como correspondente do jornal O Estado
de São Paulo, segue no intuito de cobrir as operações de guerra contra o arraial de
Canudos. Mesmo à distância, Euclides já marcara a sua posição sobre o conflito ao
escrever um artigo intitulado ‘a nossa vendéa’, publicado no jornal ‘O Estado de São
Paulo’ em 14 de março de 189729. Nessa época, assim como tantos outros republicanos,
entendera Euclides da Cunha que a revolta estava vinculada a algum movimento de
restauração monárquica. Porém, conforme escreveu Dante Moreira Leite, “essa
interpretação fundamentalmente política se transformará, em sua obra, numa visão
27
O episódio ocorreu no final de 1888, em uma visita do ministro da Guerra, Tomás Coelho à Escola
Militar. Ver. LIMA, Luiz Costa. Euclides da Cunha: contrastes e confrontos do Brasil. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2000, p. 10.
28
SOUZA, Ricardo Luiz de. Identidade Nacional e Modernidade Brasileira: o diálogo entre Sílvio
Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 74.
29
VENTURA, Roberto. “A Nossa Vendéia”: Canudos, o mito da Revolução Francesa e a Constituição de
Identidade Nacional – Cultura no Brasil (1897-1902). Revista de Critica Literaria Latinoamericana. Ano
12, n. 24, 1986, p. 109-125.
247

social e histórica, isto é, Euclides da Cunha buscará, não apenas descrever a revolta de
Canudos, mas também encontrar uma explicação para o seu aparecimento.”30
Afinal de contas, inquiria Euclides da Cunha, como um alienado mental como
Antônio Conselheiro conseguira fanatizar milhares de pessoas, conduzindo-as a
incontáveis sacrifícios e fazendo com que enfrentassem e vencessem três expedições
militares? Enfim, como puderam os adeptos do Conselheiro, além de fanáticos,
ignorantes e fisicamente débeis – o que valeria dizer, seres tão miseráveis, como os
prisioneiros de Canudos que Euclides viu desfilarem presos pelas ruas de Salvador –
desenvolver uma capacidade tática e guerreira? Luis Costa Lima inferiu que a possível
perplexidade sentida por Euclides teria servido como uma espécie de ponto de partida
para uma simpatia pelo homem do interior, apesar das teorias com as quais afinava
moverem suas convicções para o lado contrário31.
A seguirmos o pensamento de Dante Moreira Leite,
“Aqui, Euclides lança a hipótese de que os jagunços são ‘colaterais
prováveis dos paulistas’, pois resultariam das incursões destes e, depois, se
desenvolveriam nas fazendas de criação de gado por eles estabelecidas às
margens do rio S. Francisco: aí se formaria uma ‘raça de cruzados
idênticos’ aos que se tinham formado em São Paulo; e ‘este tipo
extraordinário do paulista’, que decaíra no Sul, renasce no isolamento do
sertão e, ‘sem migrações e cruzamentos’ conserva até hoje ‘a índole varonil
e aventureira dos avós’”32

Euclides no entanto inclinava-se em defender que haveria uma inferioridade nas


raças não brancas. Acreditava na existência de um tipo étnico caracteristicamente
brasileiro que seria resultado da convergência dos cruzamentos sucessivos dos três
grupos raciais originais. Esse tipo étnico não seria único, pois haveriam vários, face à
heterogeneidade racial, aos cruzamentos, ao meio físico e às condições históricas. O
mestiço seria na opinião de Euclides da Cunha, um tipo decaído, destituído tanto da
energia física das ‘raças inferiores’, quanto das condições intelectuais dos ancestrais
brancos (superiores), e por isso considerava que a miscigenação em grande escala seria
o mais sério dos problemas enfrentados pelo Brasil. O mestiço seria sempre um instável,

30
O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 2.ed. São Paulo: Pioneira, 1969, p.204.
31
LIMA, Luiz Costa. Euclides da Cunha: contrastes e confrontos do Brasil. Rio de Janeiro: Contraponto,
2000. De acordo com Lima, o futuro autor de ‘Os Sertões’ conheceu em Queimadas um vaqueiro que
acabara de conduzir para Monte Santo mais de uma centena de cabeças de gado destinadas ao Exército. A
robustez e a energia daquele sertanejo impressionaram Euclides. Ali estaria encarnada uma versão tão
inofensiva quanto exuberante de vida, diferente portanto dos prisioneiros de Canudos, os quais vira
extenuados em Salvador, humilhados em decorrência da captura e das provações sofridas.
32
O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 2.ed. São Paulo: Pioneira, 1969, p.207. De
acordo com o autor, essa hipótese levantada por Euclides teria permitido “explicar porque o jagunço,
embora mestiço, não tem a fraqueza e a inferioridade deste”.
248

um desequilibrado, porém inclinava-se a aceitar que a raça sertaneja – segundo ele o


mestiço do interior do Norte – poderia vir a constituir a raça brasileira.
Cabe dizer que para Euclides essa mestiçagem era de branco com índio, e já
estava se constituindo em raça – e por isso achava o autor – poderia constituir a raça
brasileira, no que se esperava que esse mestiço fosse, futuramente, capaz de um
desenvolvimento mental. A integração étnica brasileira dependeria da direção do
governo e da elite, no que seriam exigidas a imigração européia, juntamente com um
tratamento político e econômico diferenciado para os setores mais baixos da sociedade.
Aliás, o tema da alienação das elites, conforme lembrou Ricardo Luiz de Souza, surge
logo no início de ‘Os Sertões’, estando presente em toda a obra. Souza atribuiu parte da
rápida consagração de Euclides após a publicação desse livro, tornado em seu tempo um
best-seller, ao “sentimento de escândalo e remorso que se seguiu, em todo o Brasil, ao
massacre de Canudos.”33
A sequência de autores aponta o Dr. João Baptista Lacerda. O seu ensaio Sur les
métis au Brésil (1911) recebeu texto em língua inglesa para que fosse comunicado em
um Congresso ocorrido na Universidade de Londres34. Na avaliação de Lacerda, índios,
negros e mestiços desapareceriam dentro de um século. Esse processo seria coincidente
com a extinção da raça negra do meio brasileiro, pois essa, após a Abolição, havia
ficado exposta a agentes de destruição e sem recursos para sobreviver. Considerada a
opinião de João Baptista de Lacerda, os filhos de mestiços apresentavam na terceira
geração, todos os caracteres físicos das raças brancas. Para o Dr. Lacerda, os mestiços
teriam pouca resistência às moléstias, sendo inferiores aos negros nos trabalhos
agrícolas. Porém, considerados sob o ponto de vista físico e intelectual, os mestiços
seriam superiores aos negros. As raças mais fortes teriam origem ariana, e a raça branca
seria dotada de um instinto civilizador. Com elas, os mestiços não seriam capazes de
competir, mas nem por isso deveriam ser considerados no nível das raças realmente
inferiores.
Um pouco que tardiamente, Francisco José de Oliveira Viana engrossava o coro
desses ensaístas35. No seu ‘Populações Meridionais do Brasil’ (1918), passava Vianna a

33
SOUZA, Ricardo Luiz de. Identidade Nacional e Modernidade Brasileira: o diálogo entre Sílvio
Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 72.
34
The metis, or half-breeds, of Brazil foi selecionado entre as comunicações mais relevantes, ganhando
publicação entre as páginas 377 e 382 dos ‘Papers on Inter-Racial Problems Communicated to the First
Universal Races Congress’, os Anais daquele certame.
35
De acordo com Dante Moreira Leite, ao contrário de Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina
Rodrigues, foi Oliveira Vianna um retardatário em relação às ciências sociais do seu tempo, tendo sido
249

alinhar-se aos que defendiam a inferioridade das raças não brancas 36. Possivelmente
caiba a Oliveira Vianna o título de autor mais referenciado nos debates sobre a ideologia
do branqueamento, apesar das premissas que defendia já estarem colhendo grandes
desgastes nos anos 1920. Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951) nasceu em
Palmital de Saquarema, região que conforme observou José Carlos Reis, serviu de berço
aos grandes chefes conservadores fluminenses37. Formou-se em 1906 na Faculdade de
Direito da Universidade do Rio de Janeiro, instituição na qual também veio a ser
professor, lecionando Direito Criminal. Ocupou ainda cargos de relevo tais como o de
Diretor de Fomento do Estado do Rio de Janeiro (1926), Membro do Conselho
Consultivo do Estado do Rio de Janeiro (1931), Consultor Jurídico do Ministério do
Trabalho (1932) e Juiz do Tribunal de Contas da União, entre outros. Foi sócio do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e membro da Academia Brasileira de Letras.
O historiador José Honório Rodrigues quando ainda jovem estudante da
Faculdade de Direito – mas já atraído pelo estudo da História – costumava comparecer
às terças-feiras ao Instituto Histórico, pois sabia que lá encontraria reunidos, além de
Vianna, Max Fleiuss e Tavares de Lyra, a discutirem fatos e acontecimentos da história
do Brasil. Observa Rodrigues que não interferia, a não ser para levantar questões, fazer
perguntas e aprender. Para ele, Oliveira Vianna seria dos três citados, “o intérprete,
aquele que buscava compreender os motivos, descobrir as conexões, fazer enfim, uma
filosofia da História.”38 Talvez um dos mais acirrados críticos de Oliveira Vianna, José
Honório Rodrigues lembra dele como sendo,
“...tímido, reservado, discreto, austero, grave, e não revelava nenhum sinal
aparente pela enorme contradição de, sendo um mulato, defender o
arianismo, favorecer o embranquecimento da população brasileira e
desprezar negros, índios e mestiços. Era um mulato róseo, muito bem
trajado, muito limpo, muito calmo, sereno, que defendia suas teses com
lucidez, argúcia e calma. Nunca o vi exaltar-se e sempre mantinha a voz no
mesmo tom sereno, convencido da sua verdade, da grande verdade que
guardava na sua inteligência, na sua cabeça, no seu coração.”39

incapaz de acompanhar não somente aquilo que se discutia em outros países, mas também o que escrevia
Edgard Roquette-Pinto. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 2.ed. São Paulo:
Pioneira, 1969.
36
VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização, psicologia. Populações
rurais do Centro-Sul (Paulistas – Fluminenses – Mineiros ) 7.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. Autor de
grande renome à sua época, e talvez o mais referenciado nos debates sobre a ideologia do branqueamento,
Oliveira Vianna colecionou críticas pesadas da maioria dos seus comentaristas.
37
As identidades do Brasil. V.2. De Calmon a Bomfim: a favor do Brasil (direita ou esquerda?). Rio de
Janeiro: FGV, 2006.
38
História da História do Brasil. V.2, tomo 2, A metafísica do Latifúndio: o ultra-reacionário Oliveira
Viana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1988, p.2.
39
Idem, Ibidem, p. 1.
250

Francisco Iglésias analisou a obra de Oliveira Vianna, dando ênfase ao que


haveria de historiográfico nela. Para Iglésias, Vianna teria grande interesse pela
História, movido talvez pelo gosto da realidade, pelo concreto, mantendo interesse pelas
coisas nacionais, e estaria convicto de que era preciso buscar no passado as raízes do
presente. Porém, não seria dado a arquivos, nunca fez pesquisas documentais, de busca
e leitura de documentos, apesar de haver lido muitos documentos impressos nas séries
documentais que à sua época já estavam disponíveis. Seu gosto teria sido pelas
tipologias, pelas classificações, pelas generalizações, e dessa forma teríamos que
procurar o ‘histórico’ em suas obras sociológicas. Não possuía apego nem pela
cronologia, nem pela periodização. Estudou o latifúndio e o senhor de terras e escravos
representavam para ele ícones pelos quais prezava, pois haviam garantido a ordem 40.
A transcrição de um certo trecho da ‘Evolução do Povo Brasileiro’, cuja
primeira edição data de 1923, ajuda a entender um pouco do pensamento desse
sociólogo ultra-reacionário e racista, porém lúcido e coerente na sua exposição,
“O homem branco cultiva com effeito, certas aspirações, move-se segundo
certas predilecções e visa certos objectivos superiores, que de modo algum
serão capazes de constituir motivos determinantes da actividade social do
homem negro.Esses objectivos, que são a causa intima da incomparável
aptidão ascencional das sociedades aryanas, deixam indifferentes os homens
da raça negra, na sua quase totalidade incapazes de se elevarem, quando
transportados para um meio civilizado, acima das aspirações limitadas da
sua civilização originaria. O poder ascencional dos negros em nosso povo e
em nossa historia, si é, pois, muito reduzido, apesar da sua formidável
maioria, não o é apenas pela pequena capacidade eugenistica da raça negra,
não o é apenas pela acção compressiva dos preconceitos sociaes, mas
principalmente pela insensibilidade do homem negro e essa solicitações
superiores que constituem as forças dominantes da mentalidade do homem
branco. Quando sujeitos á disciplina das senzalas, os senhores os mantêm
dentro de certos costumes de moralidade e sociabilidade, que os assimilam,
tanto quanto possível, á raça superior; desde o momento, porém, em que,
abolida a escravidão, são entregues, em massa, á sua própria direcção,
decaem e chegam progressivamente á situação abastardada, em que os
vemos hoje. Os índios não estão, neste ponto, em condições superiores aos
negros. O eugenismo do H. americanus póde ser grande em funcção da sua
civilização rudimentar e do seu estado selvagem; posto, porém, em funcção
da civilização, organizada aqui pelo homem peninsular, é absolutamente
negativo: em nossa sociedade, modelada e européa, o seu poder de
capillaridade social, a sua ascensionalidade é mesmo muito inferior á do
negro. O negro, pelo seu temperamento imitador, ainda se deixa

40
IGLÉSIAS, Francisco. Leitura historiográfica de Oliveira Vianna. In: BASTOS, Élide Rugai,
MORAES, João Quartim de. (orgs.). O pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Unicamp, 1993.
Iglésias observou de forma acurada que Oliveira Vianna “deixou-se levar pela tese de que o Brasil foi
colonizado por fidalgos, destituída de base, como também o é a tese oposta, de colonização por
degredados ou pela ralé”. A imagem que fez da aristocracia rural tinha mais fantasia que realidade, a
ponto de parecer verdadeiro delírio. O período retratado por Oliveira Vianna em breve seria descortinado
pelo historiador Alcântara Machado, com seu ‘Vida e Morte do Bandeirante’, baseado em inventários e
testamentos que expuseram a verdade, ou seja, a pobreza do cotidiano dos paulistas nos séculos XVI e
XVII.
251

suggestionar por certos aspectos da civilização superior, dentro da qual se


acha e, aqui e ali, vemol-o operar certos movimentos ascencionaes; mas, o
índio, o caboclo puro, arrancado das suas florestas pela ferocidade dos
sertanistas ou pela uncção do missionário, é absolutamente incivilizável, isto
é, inteiramente refractario a qualquer influxo educativo no sentido da
aryanização. Parece que a estructura do seu typo mental é mais solida do
que a do negro e dahi, desta sua menor malleabilidade, a sua invencível
resistência á acção dos agentes civilizadores. Quando incorporado á
sociedade colonial, nos primeiros tempos da conquista, vemol-o succumbir
rapidamente, ferido pela nostalgia das suas tabas, ou refugir, na primeira
opportunidade, para o recesso das suas florestas.”41

Restaria compreender o juízo que esse jurista faria acerca dos resultados dos
cruzamentos raciais conforme ocorridos no Brasil. Para Oliveira Vianna os mestiços
seriam o resultado histórico dos latifúndios. Mal acomodados quanto à sua origem
bastarda, mamelucos e mulatos foram utilizados para ampliar o braço repressor da raça
branca, fosse enquadrados nas incursões dos bandeirantes, fosse a serviço dos senhores
de escravos. Acreditando no atavismo, espécie de lei antropológica que faria os
indivíduos mestiços retomarem as características físicas, morais e intelectuais das raças
originais, o que faz com que seu pensamento se aproxime bastante daquele formulado
por Nina Rodrigues42, Vianna defendia sobretudo que haveria uma degenerescência na
mestiçagem. Contudo, apontava para a existência de mulatos superiores e de mulatos
inferiores. Se os primeiros eram o resultado do cruzamento de brancos com negros
inferiores – sendo incapazes portanto de ascensão e condenados à degradação nas
camadas mais baixas da sociedade – os segundos, ocorridos do cruzamento de brancos
com negros do tipo superior seriam arianos por caráter e inteligência, suscetíveis à
arianização, que era como ele se referia ao processo de clarificação, que no seu
entendimento durava cerca de quatro ou cinco gerações. Daí, esse mestiço arianizado
estaria apto a auxiliar aos brancos na organização e civilização do Brasil. Sendo assim,
para Vianna, as qualidades morais e intelectuais do mestiço seriam definidas pela sua
aparência mais ou menos negróide. O grande adversário da arianização seria, para
Oliveira Viana, o fluxo intermitente de negros e índios, que elevava o nível de
nigrescência da população.

41
VIANNA, Oliveira. Evolução do Povo Brasileiro. 2.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933,
p. 157-159. Conforme explica José Carlos Reis, esse livro de Oliveira Vianna foi escrito em 1920, para
servir de prefácio ao recenseamento daquele ano. A primeira edição em livro saiu em 1923, sob o título
‘O povo brasileiro e sua evolução’, sendo o título modificado para a edição que utilizamos. REIS, José
Carlos. As identidades do Brasil. V.2. De Calmon a Bomfim: a favor do Brasil (direita ou esquerda?). Rio
de Janeiro: FGV, 2006.
42
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade
negra. 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 65.
252

O segundo bloco teórico que nos cabe enunciar possuía uma forte base histórica,
por apontar a existência de vícios de origem na colonização, mas também por denunciar
o acriticismo de parcela da nossa intelectualidade. Afinal o discurso sobre o tempo
pretérito incorporava também a crítica das condições enfrentadas naquele dado presente,
o que acabou por fazer convergir esforços para que houvessem tentativas de
incorporação de uma população vista como apartada do circuito da civilização, no que
ficavam caracterizados verdadeiros corpos estranhos postos a nú no interior da nação.
Comecemos por Manoel Bomfim (1868-1932), autor de ‘A América Latina:
males de origem’, ensaio que conheceu sua primeira edição no ano de 1905. Manuel
Bonfim defendeu que o atraso (relativo), tanto do Brasil, quanto da América Latina,
teria causas históricas. De acordo com Bonfim, teria sido “...bem evidente o caráter da
conquista portuguesa: saquear, sem nenhum outro objetivo – a rapina, a pirataria, o
parasitismo depredador”43. Manoel Bomfim considerava que a teoria da superioridade e
inferioridade das raças seria somente uma justificativa dos europeus para o domínio e a
escravização do resto da humanidade. Assim, os defeitos que se apontavam para os
negros seriam as resultantes da sua situação de escravo, ao passo que nos contatos com
os indígenas, os brancos haviam sido muito mais pérfidos e sanguinários que a pecha
que tentavam impingir a esses44.
Assim seriam os problemas herdados da era colonial os responsáveis pelas
dificuldades enfrentadas no presente pelos povos latino-americanos. Na América Latina
teriam prevalecido vícios aqui implantados pelos colonizadores, que articularam uma
espécie de cultura predatória que consistia nas práticas de rápido enriquecimento,
ausência de tradição científica, conservadorismo político, cultura hiperlegalista e
ausência de organização social. Articulado a isso tudo, os ex-escravos haviam sido
abandonados após a Abolição e instituições alienígenas – especialmente as políticas –
eram copiadas de forma indiscriminada. Manuel Bonfim apontava para a educação
formal e a diversificação econômica como saída para esse impasse45.

43
A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005, p. 106.
44
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 2.ed. São Paulo:
Pioneira, 1969. Para esse autor, Manoel Bomfim foi um nacionalista em período de pessimismo, além de
viver em um momento de discordância dos intelectuais quanto às razões da nossa inferioridade como
povo, mas não efetivamente quanto a essa inferioridade. Além disso, era um socialista num período em
que a intelectualidade brasileira, de forma aberta ou indireta, encontrava-se seduzida pelas realizações de
Mussolini na Itália. Então a razão fundamental para o esquecimento de sua obra seria ter proposto uma
perspectiva para a qual os intelectuais não estariam preparados, pois tentava conciliar o nacionalismo com
o socialismo, proposta que durante muito tempo foi considerada uma espécie de heresia política.
45
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade
negra. 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
253

Em 1912, o médico e antropólogo Edgard Roquette-Pinto (1884-1954) escreveu


uma comunicação que foi levada a público na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O
Brasil e a antropogeografia seria publicado somente no ano de 1927, incluso entre os
ensaios do autor no livro Seixos Rolados. Para o Dr. Roquette-Pinto, o problema
nacional não estaria localizado na diversidade racial da população, mas residia na
educação de todos, fossem esses indivíduos claros ou escuros. Apesar da leitura de ‘Os
Sertões’ tê-lo influenciado, Roquete Pinto denunciou os fundamentos racistas da
antropogeografia. Por isso, ele refutava a apregoada degenerescência dos mestiços,
resquício que haveria do pensamento de Agassiz na obra de Euclides da Cunha, e
defendia que aqueles que eram então considerados inferiores, seriam na verdade
somente uns atrasados e ignorantes por efeito da falta de educação. A unidade nacional
seria então, no caso brasileiro, de natureza sociológica, o que valeria dizer, de ordem
político-econômica, e nunca de natureza racial.
Em 1914 seria a vez de Alberto Torres (1865-1917) apresentar a público duas
obras de sua lavra intituladas “O problema nacional brasileiro: introdução a um
programa de organização social” e “A Organização Nacional”, considerados seus dois
livros principais, que segundo Francisco Iglésias, resultaram de colaboração na
imprensa, na qual trabalhou quando moço e nos últimos anos da sua breve existência46.
Alberto Torres nasceu em Porto das Caixas, no município de São João de Itaboraí, na
então província do Rio de Janeiro. Participou da campanha abolicionista e do
movimento republicano47. Aliás, para Francisco Iglésias, teria sido na militância pelo
abolicionismo e em prol da República que Alberto Torres teria formado o seu
pensamento. Iniciou seus estudos superiores em 1880, pensando em ser médico, mas
logo abandonou a idéia, dirigindo-se então a São Paulo, para cursar a partir de 1882 a
Faculdade de Direito. Torres não se destacou como estudante, mas integrou-se aos
clubes republicanos, aos comícios, à folhas jornalísticas da famosa ‘casa das
Arcadas’48.
Instaurado o novo regime, ele foi deputado estadual, deputado federal, ministro
da justiça e presidente do Estado do Rio de Janeiro. Nesse cargo engendrou esforços a
favor do ensino e da colonização. Na opinião de Iglésias, era Alberto Torres homem de
idéias próprias, com princípios e temperamento firmes, e que se recusava a usar as

46
IGLÉSIAS, Francisco. Prefácio à terceira edição. In: A Organização Nacional. Brasília: Unb, 1982.
47
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 2.ed. São Paulo:
Pioneira, 1969.
48
IGLÉSIAS, Francisco. Prefácio à terceira edição. In: A Organização Nacional. Brasília: Unb, 1982.
254

artimanhas comuns aos políticos, daí a dificuldade de composição de grupos de apoio


que teriam lhe permitido uma administração mais facilitada e operosa. Defendia o
trabalhador nacional e não concebia que fossem dados amparo e favores aos
estrangeiros, ao passo que deixavam os filhos da terra entregues a si mesmo. Chegaram
a tentar seu impeachment, mas a justiça prevaleceu49. Foi ainda ministro do Supremo
Tribunal Federal, tendo sido aposentado precocemente por motivo de doença.
Dante Moreira Leite analisou as contribuições de Alberto Torres tendo
encontrado nessas um idealismo que padece a qualquer prova, pois ele parecia acreditar
que o enunciado das verdades – uma vez aceitas e compreendidas – deveriam ser
suficientes para modificar a realidade. Ele se opunha aos ideólogos da sua época que
diziam ser o brasileiro um indolente, retorquindo que o que faltava aos brasileiros,
enquanto trabalhadores nacionais, eram oportunidades de trabalho.
Alberto Torres deslocou o eixo da discussão da formação da nacionalidade, da
diversidade racial para a adequação das instituições nacionais à realidade do país.
Segundo ele, os brasileiros estariam vivendo alienados da realidade nacional, por
haverem tomado de empréstimo o modelo de suas instituições às nações mais antigas,
daí o diagnóstico de inadequação. A nação para Alberto Torres deveria conter as
diversidades raciais e culturais, e não apenas um conjunto de tradições comuns.
Rejeitando as doutrinas racistas, bem como as idéias de desigualdade racial e
inferioridade étnica do Brasil, Torres acusava as elites brasileiras de estarem alienadas
da realidade nacional, motivo pelo qual haviam se tornado presas fáceis das teorias de
degenerescência propagadas a partir da Europa. Inspirado em Ratzel e Franz Boas,
Alberto Torres rejeitava além do racismo, a moldura determinista biológica, e com isso
afastava o espectro da inferioridade racial brasileira. Nesse ponto, considerou Dante
Moreira Leite que Alberto Torres se aproximaria de Manoel Bomfim em sua crítica de
importação de doutrinas racistas européias que se tomadas a sério, levariam a negar
qualquer futuro para o Brasil50.
Tendo percorrido um tanto sumariamente os ensaístas que se propuseram ao
debate sobre as raças no Brasil, nossa estratégia será concentrar esforços a partir do
confronto entre as idéias formuladas por João Baptista de Lacerda e Edgard Roquette
Pinto, que a nosso ver parece demonstrar um momento crítico de confronto entre esses

49
Ibidem, p. 17.
50
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 2.ed. São Paulo:
Pioneira, 1969.
255

dois blocos das idéias. Cabe então voltarmos nossas atenções para alguns momentos que
marcaram decisivamente esse debate naqueles anos emblemáticos que constituíram a
segunda década do século XX.
Em 1911, o médico e etnógrafo João Batista de Lacerda, atendendo ordens do
governo do Marechal Hermes da Fonseca, comparecia ao 1º Congresso Internacional de
Raças, levado a efeito em Londres, entre os dias 26 e 29 de julho51. O Dr. Lacerda era
então o diretor do Museu Nacional, e se fazia acompanhar do jovem professor Edgard
Roquette-Pinto, ocupante da cadeira de Antropologia, Arqueologia e Etnografia daquele
museu. Para comparecer naquele certame, o Dr. Lacerda preparara um artigo o qual
intitulou por Sur Le Métis au Brésil, conduzindo para o Congresso, juntamente com essa
peça escrita, um painel no qual fora reproduzido certo quadro de um pintor catalão
chamado Modesto Gomes y Brocos (1852-1936), artista da Escola de Belas Artes do
Rio de Janeiro. Brocos estava radicado no Brasil há alguns anos e pintara o quadro em
1895. O pintor representava com sua arte um desejo afagado e mantido por parte da
nossa intelectualidade, e a documentação nos autoriza a dizê-lo, desde o último quartel
do século XIX: o ideal do embranquecimento.
Isso significava contar nas cidades brasileiras com uma paisagem humana mais
branca, mais homogênea, e onde a sombra da mestiçagem ficasse exposta o mínimo
possível. A tela produzida pelo pintor catalão em cores vivas, não deixava dúvidas,
fosse pela representação pictórica, fosse pelo título. ‘Redenção de Can’ tratava de uma
reunião familiar. A cena se passa em frente a uma casa humilde: em um ambiente
harmônico, e onde visivelmente se buscava retratar também a ausência de conflitos
entre as raças existentes no Brasil.
Assim, vemos então uma mulher negra, de pé e com aspecto já idoso a qual
parece render graças aos céus. Ao seu lado, uma jovem mestiça – expressando o
contínuo de cor brasileiro, uma ‘mulata’ – que possivelmente, assim o expectador é
induzido frente à cena, se tratava de sua filha, segura nos braços uma criança branca. A
jovem está acompanhada de um rapaz branco, de traços europeizados. Ali estaria o pai
da criança. O título escolhido para o quadro, também não deixa muitas dúvidas. A
referência é bíblica, e via-de-regra, bastante conhecida. Can seria um dos filhos de Noé,

51
Conforme observaram Souza&Santos (2012:747), a indicação para que esse Congresso fosse realizado
ocorreu em 1907, durante a Segunda Conferência de Haia. Segundo esses autores essa iniciativa fazia
parte dos esforços pela paz mundial, e contou com o apoio entusiástico de Felix Edler – historiador
alemão de origem judaica – e de Gustav Spiller. Esse último recebeu financiamento da Ethical Culture
Society, um movimento ligado ao pensamento humanista moderno.
256

justamente aquele que no texto bíblico – a referência é o cap. IX do gênesis – teria


desrespeitado seu pai, motivo pelo qual o patriarca diluviano acabou por lhe lançar uma
maldição: que ele fosse para seus irmãos, o último dos escravos 52. Como vemos, pelas
condições impostas pela época, redimir o Can implicava não apenas extirpar-lhe a
ignominiosa condição de escravo, mas também metamorfoseá-lo sob a aparência
característica da raça branca, ou seja, significava torná-lo alguém que não contivesse
fenótipos da raça negra.
A função desse painel era fornecer representação visual à fala de Lacerda, além
de expressar os anseios da ilustrada elite brasileira dos primeiros anos do século XX.
Essa elite havia assimilado as teorias evolucionistas que pululavam mundo afora a partir
de centros acadêmicos localizados na Europa e nos Estados Unidos da América. As
conclusões que delas podiam ser extraídas, por assim dizer, fechavam o futuro do
Brasil, pelo fato de ser um país miscigenado.
Como podemos ver, o grande fardo que a primeira geração das nossas elites
republicanas acreditavam estar carregando era então a imposição de construir uma
nação que apesar de miscigenada, mantivesse as expectativas de ingresso na civilização
promovida pelas potências ocidentais. Jair de Souza Ramos (2002) observa que foi a
partir da década de setenta do século XIX que ocorreu uma ênfase nos discursos
favoráveis a uma solução imigrantista ao problema da construção de um povo e uma
raça brasileira, em um movimento no qual se passou da ênfase na reforma do povo, vale
dizer de práticas disciplinares de educação para o trabalho, para a idéia de regeneração
do povo mediante a imigração branca53.
Buscava-se enfim a eugenia. Fortalecia-se a idéia na qual a evolução futura do
país dependia de uma unidade física e cultural do seu povo, a ser constituída em um
patamar então considerado como mais elevado. Nessa lógica, a teoria do

52
Conforme assinala José d’Assunção Barros, essa passagem do evangelho seria utilizada pelo tráfico
negreiro como forma de aparato ideológico justificador e legitimador de uma diferença negra que
comportaria uma segunda natureza: a diferença escrava. A construção social da cor: diferença e
desigualdade na formação da sociedade brasileira. Petrópolis: Vozes, 2009. Ver sobretudo o cap. 7., ‘A
cor escrava: noção reapropriada pelo Tráfico Atlântico cristão’.
53
O contexto da Abolição produziu imagens divergentes do negro. A imagem portadora de negatividade
elaborava um quadro de medo sobre uma possível insurreição negra. Ao haitianismo, tema recorrente no
imaginário das elites, associava-se a desqualificação do negro. Os hábitos dos negros eram avaliados
então como manifestação de barbárie por essas elites brancas. Havia porém outra imagem, menos
negativa, que retratava o negro como um servo fiel, dependente mesmo quando livre, adaptado pois a uma
posição submissa e tutelada frente à sociedade branca. RAMOS, Jair de Souza. O Brasil sob o Paradigma
Racial: Sociologia Histórica de uma Representação. In: PENA, Sérgio D. J. (Org.). Homo brasilis:
aspectos genéticos, lingüísticos, históricos e socioantropológicos da formação do povo brasileiro. 2.ed.
Ribeirão Preto: Funpec, 2002.
257

branqueamento, elaborada entre o final do Império e a Primeira Guerra Mundial,


aparecia aos brasileiros sob o signo da ambigüidade, pois como informa Ramos, havia
uma peculiaridade nacional, no que se defendia que a partir da miscigenação das raças
inferiores com as melhores raças brancas, desde que realizada sob uma ‘seleção
natural’, conseguir-se-ia um tipo branco mais evoluído.
Quanto a isso, as intenções do Dr. Lacerda vinham no sentido de procurar uma
saída para a miscigenação brasileira, sem contudo contrariar tais teorias, mas tornando
convincente à luz da nova ciência estatística que no Brasil de então as evidências já
apontavam para o embranquecimento da população. Em Londres, o Diretor do Museu
Nacional direcionou a sua comunicação utilizando argumentos bastante sintonizados
com as estratégias do governo brasileiro, o qual movia um esforço em apresentar uma
imagem positiva do país, no que visava atrair imigrantes e investimentos estrangeiros,
consonante com o objetivo de modernizar e expandir o comércio e a economia
brasileiras. Autores como Souza&Santos observam que o financiamento da viagem de
Lacerda e Roquette-Pinto pelo governo brasileiro tivera “o intuito de ampliar a
propaganda cultural e científica do Brasil na Europa”.54
Dessa forma, na sua comunicação ao Primeiro Congresso Universal de Raças55,
Lacerda tratava da questão da mestiçagem ocorrida no Brasil, a qual esclarecia, teria
para o país uma importância excepcional, sendo que a miscigenação entre brancos e
negros era livremente aceita entre nós. Segundo ele, no passado, os escravos africanos
após capturados na África, e brutalmente escravizados no Brasil, não teriam sofrido
segregação da parte dos colonizadores portugueses. Estes, ao contrário, teriam feito de
suas escravas as suas concubinas, fazendo com que a população mestiça crescesse
rapidamente.
Como podemos perceber, os registros históricos revelavam no passado
escravista brasileiro, a presença de padres, artistas plásticos, músicos e bacharéis,
omitindo toda a carga de violência física e emocional, dos abusos sexuais e da
coisificação da mulher negra e do negro em geral. Revelava assim somente os detalhes
selecionados que pudessem autorizar a crença em uma escravidão benigna, base para
que fosse assentado o marco de uma constructo ideológico maior, o mito da democracia

54
SOUZA, Vanderlei Sebastião de, SANTOS, Ricardo Ventura. O Congresso Universal de Raças,
Londres, 1911: contextos, temas e debates. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.Ciências
Humanas, Belém, v.7, n.3, 2012, p. 754.
55
A comunicação de João Batista de Lacerda foi inclusa na sexta sessão daquele Congresso.
Posteriormente ao encontro, os textos considerado relevantes foram editados pelo seu organizador, o
sociólogo inglês Gustav Spiller, e publicados no mesmo ano daquele evento (1911).
258

racial. Servindo de água para a roda desse ‘moinho’, haviam dois fatos incontestáveis. O
primeiro deles estava firmado sobre uma verdade histórica: os europeus não haviam
introduzido a escravidão no continente africano, apesar de – e esse fato era
providencialmente omitido – terem feito com que essa aumentasse em escala
assustadora ao incentivar as animosidades que levavam às guerras tribais, e
consequentemente a uma maior oferta de negros disponibilizados no mercado de
escravos. O segundo fato incontestável era que os negros recén libertos estavam
experimentando naquele contexto do pós-Abolição, penosas condições de subsistência.
Na opinião do Dr. João Baptista de Lacerda, o mestiço gerado não teria sido de
qualidade inferior, e embora descritos ou considerados moralmente voluptuosos e pouco
afeitos ao trabalho braçal, seriam intensamente inteligentes e bem dispostos para as
atividades das letras, ciências e política, tendo muitos deles se tornado proeminentes
poetas, escultores, músicos, advogados, médicos e engenheiros56.
Para João Baptista Lacerda, o resultado desses cruzamentos raciais tenderia a
fazer com que em menos de um século, negros e mestiços desaparecessem do território
brasileiro, possibilitando com isso, o branqueamento da população. Sua tese estava
amparada em tabelas estatísticas preparadas por Edgard Roquette-Pinto. Na opinião de
Souza&Santos (2012), o jovem professor assistente ainda compartilharia naquele
momento, muitas das teses de Lacerda, em especial o branqueamento da população
brasileira, às quais se baseavam em um decréscimo apresentado pela população negra,
com dados tomados a partir de 1870.
A ‘seleção sexual’, que era conforme Lacerda denominava a forma como os
mulatos procuravam seus parceiros para branquear a descendência, associados à
crescente entrada de imigrantes europeus no país, bem como ao abandono ao qual os
negros foram submetidos após a abolição, conjugados, faziam com que o Dr. Lacerda,
em tom comemorativo, anunciasse que o Brasil caminhava para ser “um dos principais
centros da civilização do mundo”57.

56
O Dr. Lacerda generalizou em demasia a sua análise, simplificando ao nosso entendimento de forma
inadequada algumas aptidões, bem como os saberes e fazeres que os negros africanos já conduziam
consigo ao chegar ao Brasil. De forma um tanto resumida, poderíamos dizer que, consideradas as
especificidades de cada grupo, eles dominavam conhecimentos da agricultura tropical e da pecuária
extensiva, além de serem em alguns casos, mestres da mineralogia, o que foi decisivo para que os
portugueses se tornassem o primeiro povo europeu a prosperar em terras tropicais americanas.
57
Idem, Ibidem, p. 754.
259

A tese formulada por João Baptista de Lacerda foi analisada de forma magistral
por Giralda Seyferth em artigo já clássico58, tornado referência para todos aqueles que
posteriormente se dedicaram ao tema das concepções deterministas da raça que foram
desenvolvidas a partir da Europa.
A fala do Dr. Lacerda fora otimista, observados os preceitos da ciência àquela
época, mas não o livrou das críticas de impatriotismo movidas por seu patrícios. No
Brasil houve quem entendesse que o autor estabelecera um prazo demasiadamente
longo para o embranquecimento da população. Lacerda defendia-se, sob o escudo da
ciência, e apontava para a recepção positiva que seu trabalho conhecera. Um jornal
londrino, o Morning Post chegara a classificar a sua comunicação como uma das mais
relevantes daquele Congresso59. Cerca de um ano após retornar ao Brasil, João Batista
de Lacerda produziu uma memória relativa ao Congresso de Londres 60 . Nesta
publicação apresentada sob a forma de uma exposição de motivos ao então Ministro da
Agricultura, Pedro de Toledo, Lacerda incluía um artigo intitulado ‘Réplica á critica da
memória – Sur les métis au Brésil’, texto que guarda um marcado tom de ressentimento.
O Dr. Lacerda rebatia as críticas então recebidas e reiterava as suas posições, ocupando
dezesseis páginas daquela memória. Revelava então sua mágoa pelas “deprimentes e
injustas críticas”61 que recebera, e em sincero desabafo, esclarecia ser a primeira vez,
após muitos anos de trabalho em prol da ciência, que se “ via assim desarrazoadamente
argüido e severamente criticado justamente quando me dizia a consciencia haver eu
feito uma obra esclarecida, ponderada, em assumpto difficil e delicado.” 62
Feitas tais considerações, partia então João Baptista de Lacerda no encalço do
seu crítico mor63, e na intenção de desqualificá-lo, assim escrevia,

58
A antropologia e a teoria do branqueamento da raça no Brasil: a tese de João Batista de Lacerda.
Revista do Museu Paulista, 5 (30): 81-98, 1985.
59
João Baptista de Lacerda participou ativamente da quinta e sexta sessões daquele Congresso, onde
foram debatidas a formação da consciência moderna em relação à questão racial. Apresentado na sexta
sessão do congresso, o trabalho de João Baptista de Lacerda, foi intitulado “The Metis, or half-breeds, of
Brazil”. Cabe registrar que o jornal ‘Le Brésil’ publicou na íntegra em Paris, a tradução da comunicação
de Lacerda, que levava o título francês de ‘Sur les métis au Brésil’. O texto em questão tratava da
miscigenação racial no Brasil, e do processo de branqueamento da população mestiça.
60
LACERDA, João Baptista de. Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro de Toledo. Rio
de Janeiro: Papelaria Macedo, 1912.
61
Idem, Ibidem, p. 85.
62
Idem, Ibidem, p. 86.
63
Não estamos bem certos quanto a identidade desse crítico, e talvez fosse um exercício estéril tentar
fazer inferições acerca dessa premeditada lacuna documental. De qualquer forma, mantendo certa
elegância, o Dr. Lacerda omitiu o nome do seu algoz: “Quem me fez essa calumniosa imputação foi um
festejado publicista brazileiro pelo qual nutria reaes sympathias, sem embargo de tel-o na conta de um
espírito demasiado pessimista, bellicoso e aggressivo. Para mostrar quaes eram as disposições do meu
sentimento com relação á sua pessoa, basta dizer que foi elle um dos primeiros aquinhoados com a
260

“Ainda bem que para attenuar tão dolorosa impressão suscitavam-me a idéa
de que o discernimento, a competência e a capacidade para exercer a critica
não são attributos de qualquer individuo por mais intelligente e instruído que
elle seja, e que o verdadeiro critico devera ser aquelle que, despido de
prevenções e antipathias, exercitasse o seu mistér com o espírito illuminado
pela verdade, pela justiça e pela sciencia. Afastado destes moldes o critico
perde a grave compostura do seu nobre officio para se tornar um reles e
desprezível diffamador das creações alheias.”64

Com a pena ainda em punho, reiterava as posições do Congresso londrino,


“...a sciencia já o demonstrou, que embora tomada como caracter
differencial de raça, a côr não passa de um caracter anthropologico
accidental, susceptível de modificar-se profundamente sob a influencia dos
agentes cósmicos; que a superioridade e a inferioridade das raças no sentido
absoluto é um facto inverídico; e que no mundo só existem raças adiantadas
e atrazadas, devendo ser attribuidas essas differenças ás condições do meio
physico e social em que o homem evoluio. Estes princípios consagrados
pelas resoluções de um Congresso, como foi aquelle que se reuniu em
Londres, em 1911, fazem cahir por terra as desigualdades que a ignorância e
os preconceitos de muitos séculos admittiram entre as variedades do gênero
humano. Entretanto não se póde negar que o demorado contacto entre duas
raças, uma atrazada, outra adiantada, venha com o tempo fazer adquirir á
raça adiantada muitos dos vícios e defeitos da raça atrazada. Existe um
certa ordem de hábitos, costumes e impressões que facilmente se
communicam de uns a outros indivíduos, quando se dá entre elles um
diuturno contacto, e, mais fácil se torna ainda essa communicabilidade,
quando o contacto se produz desde a tenra idade. Na infância as impressões
fixam-se, permanecem, e pelo curso da idade, tornam-se ellas o ponto de
origem de grande numero de actos inconscientes, que se repetem como
expressão de habitos adquiridos e inconversíveis nas relações sociaes e
domesticas. Este facto verificou-se não só no Brasil como em outros paizes
onde a raça negra teve prolongado contacto com a população branca.
Affirmando, pois, como fiz no meu trabalho apresentado ao Congresso, que
no Brazil o longo contacto do negro prejudicou os dotes Moraes do branco,
não disse uma inverdade nem commetti uma insensatez.”65

O Dr. Lacerda concluía seu artigo de réplica acrescentando um diagrama da


constituição antropológica do Brasil, preparado pelo Dr. Edgard Roquette-Pinto
segundo as estatísticas oficiais de 1872 e 1890, no que incluía um cálculo aproximado
para o ano de 1912 e uma projeção para o longínquo ano de 2012, apresentando então o
Brasil do futuro como constituído por uma população que seria em sua maior parte de
indivíduos da raça branca e latina, considerados então como mais adaptáveis. Dessa

offerta attenciosa e delicada do meu livrete, apenas sahido do prelo. Entretanto tão fina e graciosa
gentileza, contra toda a minha espectativa, foi respondida com uma affrontosa critica e pontinhas de
sarcasmo.” In: Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro de Toledo. Rio de Janeiro:
Papelaria Macedo, 1912, p. 91-92.
64
LACERDA, João Baptista de. Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro de Toledo. Rio
de Janeiro: Papelaria Macedo, 1912, p.86-87.
65
LACERDA, João Baptista de. Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro de Toledo. Rio
de Janeiro: Papelaria Macedo, 1912, p. 90-91.
261

forma, ao início da segunda década do século vinte e um, negros e índios teriam já
desaparecido do território nacional66.
Lacerda de fato havia conseguido um impacto positivo para o Brasil entre os
congressistas, baseando-se na defesa da idéia que a miscigenação não gerava tipos
inferiores, e o mestiço brasileiro se revelava na sua fala, como o melhor exemplo
eugênico desses cruzamentos. Contudo, a verdade é que ficara o Dr. Lacerda um longo
período sem publicar trabalhos de viés antropológico. Assim, considerou Ricardo
Ventura Santos que a comunicação Sur Le Métis au Brésil teria sido “um exercício de
conciliação entre a realidade (mestiça) da sociedade brasileira e as teorias científicas
que desqualificavam o mestiço.” 67
Em 1915 a morte colhia o Dr. João Batista de Lacerda. O desaparecimento desse
etnógrafo parece ter coincidido com uma nova fase para um dos seus discípulos,
ninguém menos que o Prof. Edgard Roquette-Pinto, que então iniciava trabalhos para
determinar as características antropológicas do Brasil 68. Um aspecto que julgamos de
interesse na formação de Roquette-Pinto, ao qual nem sempre é dada a devida ênfase foi
o ingresso em 1905, no Museu Nacional, no mesmo ano em que se formara na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro69. Transcorridos seis anos do seu ingresso

66
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Previsões são sempre traiçoeiras: João Baptista de Lacerda e seu Brasil
branco. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v.18,n.1,jan.-mar. 2011, p. 225-242.
67
Mestiçagem, Degeneração e a Viabilidade de uma Nação: Debates em Antropologia Física no Brasil
(1870 – 1930). In: PENA, Sérgio D. J. (Org.) .Homo brasilis: aspectos genéticos, lingüísticos, históricos e
socioantropológicos da formação do povo brasileiro. 2.ed. Ribeirão Preto: Funpec, 2002, p. 82.
68
Conforme escreveu Vanderlei Sebastião de Souza, Roquette-Pinto organizara uma equipe de
pesquisadores ligados ao Museu Nacional. Em 1919 a equipe composta por cientistas como Irineu
Malagueta, Mário Raja Gabaglia e Fábio Barros, entre outros, dava início a uma série de ‘mensurações
antropométricas’, com vistas a servir de base à determinação ulterior dos principais tipos antropológicos
brasileiros. Para Bruno Lobo, então Diretor do Museu Nacional, esse projeto assumia função de grande
importância para o país, pois iria auxiliar nas estatísticas do Censo Geral de 1920, tornando-se assim uma
relevante contribuição daquela instituição científica para as comemorações do Centenário da
Independência. Após contato com o ministro da Guerra a equipe iniciou a coleta de informações sobre as
características físicas, psicológicas, estado de saúde, condição social e desempenho dos soldados da
guarnição da Capital Federal, contando com a colaboração dos médicos do Exército. Roquette-Pinto
considerava a amostragem adequada, pois boa parte dos jovens incorporados na cidade do Rio de Janeiro
haviam sido recrutados em outras regiões do país. A partir de 1924, Roquette-Pinto assumia em definitivo
a chefia da 4ª seção do Museu Nacional (Antropologia-Etnografia-Arqueologia), para em 1926 substituir
interinamente Artur Neiva na função de Diretor do Museu, sendo efetivado no cargo no ano seguinte,
nomeado pelo presidente Washington Luís. In: Retratos da Nação: os ‘tipos antropológicos’ do Brasil nos
estudos de Edgard Roquette-Pinto, 1910-1920. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.Ciências
Humanas, Belém, v.7, n.3, p. 645-669, set.- dez., 2012.
69
A escolha da profissão ao que parece se deu de forma um tanto inusitada. O jovem Roquette-Pinto
mantinha interesse pelas viagens e pretendia ingressar na Marinha. Porém, teve um encontro fortuito em
um trem com Francisco de Castro, um grande médico da época. Em 1901, Edgard Roquette-Pinto iniciava
sua vida de acadêmico de Medicina. Ver.: FILHO, Alberto Venâncio. Roquette-Pinto, expressão de
humanismo. In: LIMA, Nísia Trindade, SÁ, Dominichi Miranda de (orgs.) Antropologia Brasiliana:
ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte: UFMG, 2008; e, SOUZA,
Vanderlei Sebastião de. Retratos da Nação: os ‘tipos antropológicos’ do Brasil nos estudos de Edgard
262

nessa prestigiosa instituição científica ocorreu a escolha do seu nome para compor com
João Baptista de Lacerda a delegação brasileira ao Primeiro Congresso Internacional de
Raças. Nesse congresso, Roquette-Pinto teve uma participação discreta, pois o texto que
para lá conduziu não chegou a ser incluído nos anais daquele encontro70.
Fator que consideramos de primordial importância seria a decisão tomada por
Roquette-Pinto de permanecer na Europa algum tempo após a realização do Congresso.
Três meses se passariam então, e a oportunidade foi utilizada para que ampliasse então
sua formação científica. Assim, Roquette-Pinto visitou museus de história natural, bem
como outras instituições científicas, com ênfase especial para aquelas localizadas em
Londres, Berlim e Paris. Realizou ainda cursos com o alemão Félix Von Luschan, o
qual também estivera participando ativamente daquele Congresso. Aproveitou ainda
Roquette-Pinto para fazer cursos com o parasitologista Alexander Emile Brumpt e com
o fisiologista Charles Richet, bem como com os naturalistas René Verneau e Henry
Perrier.
O retorno ao Brasil marcaria decisivamente a trajetória de Edgard Roquette-
Pinto pela expedição científica à qual se juntou com os integrantes da Comissão
Rondon. Viajando durante alguns meses, na zona compreendida entre os rios Juruena e
Madeira, cortada pela estrada Rondon, Roquette-Pinto reunia em sua caderneta de
campo as observações e dados que possibilitaram a escrita de um de seus principais
livros: ‘Rondônia’. Essa obra apareceu em 1917, em publicação nos Arquivos do Museu
Nacional71.

Roquette-Pinto, 1910-1920. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.Ciências Humanas, Belém, v.7,
n.3, p. 645-669, set.- dez., 2012.
70
‘Note sur la situation des indiens du Brésil’ alinhava os conhecimentos mais recentes sobre os
indígenas no Brasil, traçando ainda um esboço das ações que brasileiros como José Bonifácio de Andrada
e Silva, General Couto de Magalhães e mais recentemente o Tenente Coronel Cândido Mariano da Silva
Rondo haviam realizado em prol da assistência aos povos indígenas. O texto seria publicado
postumamente, em 1955, por iniciativa editorial do Conselho Nacional de Proteção ao Índio.
71
A Revista Archivos do Museu Nacional começou a ser editada em 1876, como parte dos esforços
movidos para inaugurar uma nova era para aquele museu. A revista deveria materializar a nova postura
científica adotada pela instituição. De acordo com Lilia Moritz Schwarz, o periódico contou, logo no seu
primeiro número com 41 estrangeiros entre seus membros correspondentes. O detalhe é que haviam
apenas 3 brasileiros – a saber, o visconde de Bom Retiro, Thomas Coelho de Almeida e D.S.Ferreira
Penna – na qualidade de colaboradores. Entre as personalidades estrangeiras haviam nomes de destaque
como Paul Broca, Charles Darwin, Quatrefages e L.R. Turlaine. Segundo essa autora, logo em sua página
de abertura, a revista “rendia homenagens a naturalistas estrangeiros, revelando uma característica
bastante comum às publicações dos museus nacionais, qual seja, a do debate e contato privilegiado com
o exterior.” O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp.71-72.
263

Laureada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ‘Rondônia’ conheceu


a sua segunda edição já em 1919. Talvez seja melhor darmos voz ao autor para que
apresente, melhor do que nós, essa obra e o espírito que a constituiu,
“Este livro, que teve a boa sorte de receber apoio dos maiores nomes da
sciencia e das lettras nacionaes, e encontrou no extrangeiro acolhida muito
honrosa, é filho de uma sincera dedicação. Não foi escripto para satisfazer
preoccupações litterarias; nem traçado no aconchego de confortável
gabinete, á luz carinhosa d’uma lâmpada, amortecida á feição das
necessidades do trabalho, entre outros livros...Foi nascendo pelas quebradas
humidas das serras, pelos caminhos marulhentos dos rios, nos areiaes
desolados. Só por isso, quando mais não fosse, mesmo sem levar em conta as
imperfeições insanáveis da propria origem, deve elle contar, nas modestas
paginas, erros e imperfeições.” 72

De acordo com José Honório Rodrigues, a grande novidade inaugurada por


‘Rondônia’ foi ter surgido em uma época na qual a etnologia brasileira era ainda em
grande parte, um ‘estudo de gabinete’. Rondônia colecionaria ainda recepções positivas
73
na avaliação geral da comunidade científica internacional. Com efeito, essa
oportunidade de incursão aos sertões do Brasil possibilitaram a Roquette-Pinto a
reunião de dados de natureza antropológica, etnográfica e lingüística sobre os Paressi e
os Nanbiquara, o que tornou seu trabalho um dos mais notáveis da etnologia brasileira.
Porém, havia mais. E bastante elucidativa das idéias que mobilizavam aquele jovem
professor-assistente do Museu Nacional, seria, assim consideramos, uma conferência
proferida por ele, logo após o retorno da sua viagem científica aos sertões do Brasil.
Essa conferência não é outra que ‘O Brasil e a Antropo-Geographia’, da qual tecemos
breves referências algumas páginas atrás. Ela ocorreu em 25 de setembro de 1912,
conforme sabemos, nas então novas dependências da Biblioteca Nacional, em uma
região central da antiga capital da República.
O seleto público era então constituído por estudantes das escolas superiores do
Rio de Janeiro os quais integravam, na sua maioria, uma sociedade de propaganda
nacionalista denominada “Colméia”. O tema não poderia ser mais propício para ser
desenvolvido por quem cruzara recentemente os sertões do Brasil: versava sobre as
potencialidades brasileiras à luz da antropogeografia74. Como podemos perceber face ao

72
ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondonia. 2.ed., Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1919, p.vii-viii.
73
De acordo com Rodrigues (s.d.), estudos como os de P.Rivet (1924), M. Schmidt (1914), Metraux
(1941) e Levi-Strauss (1944 e 1948) não desmereceram as conclusões apresentadas por Roquette-Pinto.
Uma personalidade destacada como Helbert Baldus, reputou o estudo como uma das mais notáveis
contribuições à etnologia brasileira, além de poder ser considerado como uma grande homenagem à obra
científica e social de Rondon, mostrando-o como alguém despojado de vaidade, e amante da simplicidade
e modéstia.
74
ROQUETTE-PINTO, Edgard. O Brasil e a Antropo-Geographia. In: _________. Seixos rolados
(estudos brasileiros). Rio de Janeiro: Mendonça&Machado, 1927.
264

tema, o palestrante não trataria de “Paressis” ou de “Nanbiquaras” em específico. Pois


o doutor Roquette-Pinto conhecera a dura lida que era o cotidiano das populações do
sertão, da sua luta, à vezes inglória, para adaptar-se às hostilidades do meio, vivendo
sob o abandono dos poderes do Estado, e arrancando em meio às incertezas, a sua rude
subsistência; e a natureza nem sempre respondia de forma clemente.
Edgard Roquette-Pinto realizou então uma apresentação bastante didática para
introduzir alguns princípios básicos do estudo descritivo das populações, no esforço de
expor as correlações existentes entre a história dos povos e as características geográficas
dos territórios por estes ocupados. Sobre a sistematização defendida por Friedrich
Ratzel, teria influído o sistema filosófico de Augusto Comte. Roquette-Pinto
considerava as contribuições partidas de homens como Montesquieu, Condorcet – o
qual escrevera a primeira história filosófica da civilização, de Buffon, do naturalista
Humboldt, alinhando as estes o nome de Le Play como contribuição à constituição da
antropogeografia. Sílvio Romero era lembrado, pois segundo o palestrante, partira
daquele crítico literário a vulgarização da chamada geografia humana. No entendimento
de Roquette-Pinto, Ratzel teria sido antes de tudo um etnólogo, e a orientação
etnográfica impressa em seus trabalhos por ser visível, teria sido seguida pelos seus
discípulos.
Considerava então Roquette-Pinto que a antropogeografia e a etnografia seriam
segmentos conexos de um mesmo saber. Lembrava o autor que cada fenômeno humano
poderia ser avaliado por dois pontos de vista diversos: o primeiro desses pontos, estando
ligado ao conhecimento do meio cósmico; o segundo ponto, estaria atrelado ao exame
do meio social.
Para Edgard Roquette-Pinto, nenhum outro país apresentava aspectos
antropogeográficos tão interessantes quanto o Brasil: os elementos humanos postos em
contato tendo sido, mais ou menos, os mesmos, com a ressalva porém que os tipos
resultantes não se espalharam de maneira equivalente pelo território.
A partir dessa perspectiva, trabalhava Roquette-Pinto com dados coletados
naquele mesmo ano de 1912. Na sua metodologia de trabalho passava a considerar que
a distribuição da população no Brasil acusava então três zonas, mais ou menos nítidas,
correspondendo cada uma delas às chamadas raças fundamentais reunidas sobre o
território brasileiro. Denominava então tais demarcações como a ‘zona do caboclo’; a
‘zona de influência africana’; e, a ‘zona de influência européia’. Cada uma dessas zonas
265

despertava em Roquette-Pinto preocupações díspares, mas cujo escopo da pretendida


atuação porém, convergia para a idéia da educação da população.
Nessa palestra na Biblioteca Nacional lembrava o autor ao seu auditório que
existia no Brasil um tipo de população que “a poucos kilometros desta sala sumptuosa,
treme de paludismo, devorada pela febre, que um farrapo de instrucção permittiria
evitar, uma população que é só pequena amostra de um grande povo á espera de um
mínimo de educação.”75
O palestrante declarava não acreditar em preconceito contra a raça negra, e
fundamentava a sua opinião expondo estatísticas que demonstravam, de forma
inequívoca, que o negro estava sendo absorvido rapidamente no seio da população
brasileira. A chamada zona de influência africana, delimitada por ele aos estados de
Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Minas Gerais, sul de Goiás, Espírito Santo, Rio
de Janeiro e norte de São Paulo fora assim concebida em obediência a determinantes
geológicas e possibilidades agrícolas particulares. Ou seja, a terra havia imposto a
repartição dos negros pelo Brasil.
Para essa zona concentradora de tantos negros, muito útil seria, e para isso
chamava atenção Roquette-Pinto, considerar o exemplo dos negros norte-americanos.
Pois na condição de agricultores eles teriam adquirido riqueza, e progredido moral e
intelectualmente. A mortalidade havia diminuído, e no intervalo de tempo que separava
o ano de 1900 ao ano de 1910, o percentual de negros norte-americanos analfabetos
havia despencado de metade, para cerca de 30%!76

75
O Brasil e a Antropo-Geographia. In: _________. Seixos rolados (estudos brasileiros). Rio de Janeiro:
Mendonça&Machado, 1927, p. 57.
76
Caberia aqui algumas observações levadas pelo Dr. E. B. Du Bois, ao I Congresso Internacional de
Raças de Londres. Professor de História e Economia Política na Universidade de Atlanta, Du Bois havia
registrado graves denúncias de racismo e discriminação contra os negros nos Estados Unidos. Referindo-
se às condições enfrentadas pelos negros naquele início de século, Du Bois referia-se aos meios adotados
pela sociedade branca no Sul dos EUA para privar os negros da vida social e política, os quais incluíam a
ação de sociedades secretas – como a Ku Klux Klan que o autor não citou nominalmente – à quais “agiam
nas trevas, procurando fazer reviver o Terror.” No Norte do país, a situação não seria muito mais
auspiciosa, pois a população negra não era legalmente vítima de nenhuma desigualdade e podia “...sem
nenhuma restricção, frequentar as escolas, as igrejas e votar. Na realidade, entretanto, na mor parte das
Sociedades já lhes fazem sentir que a sua presença não é desejável. Nos hotéis, nos restaurantes, nos
theatros, ou se lhes recusa a entrada, ou se os recebe de má vontade. Nas igrejas e nas «associações
para a cultura do espírito», elles são tratados de tal sorte que bem poucos buscam fazer parte dellas. O
casamento com os brancos condemna-os ao ostracismo e fazem-nos cahir no desfavor publico; e nos
Tribunaes os Negros incorrem muitas vezes em penas immerecidas. «Os trabalhos grosseiros, as
occupações baixas lhes são accessíveis, mas difficilmente poderão elles aspirar a coisas melhores, a
trabalhos industriaes ou ás profissões liberaes, excepto para servir á sua raça; e há muita desigualdade
no que toca os salários. As violências populares, os lynchamentos, a tortura pelo fogo, não são raras
desde alguns annos. Entretanto nestas circumstancias se tem formado na America um mundo negro, que
tem sua vida economica e social, suas igrejas, suas escolas, seus jornaes, sua litteratura, sua opinião
266

Considerado esse diapasão, perguntava o autor, quantos seriam os negros


brasileiros que haviam se casado regularmente – constituído família, tendo filhos e
netos – e se mantido por toda a vida em um ambiente verdadeiramente doméstico?
Quantos seriam capazes, pelas roças afora, de declinar com segurança os nomes dos
seus pais e avós? Nas classes populares, nas camadas mais pobres da população da
maior das cidades brasileiras, apontava Roquette-Pinto, quase todas as mulheres pobres
tinham por nome ‘Maria da Conceição’, sem acrescer mais nada, por ignorância das
suas origens. Dessa forma, resgatar a auto-estima dos negros brasileiros assumia – para
o autor – o significado do pagamento de uma dívida, pois como observava com ênfase,
sem os negros não teria havido no Brasil, nem união e nem progresso.
Quanto à zona do caboclo, seria essa composta por Mato Grosso, Amazonas,
Pará, norte de Goiás, e os estados nordestinos, até as vizinhanças da foz do São
Francisco. O caboclo predominaria nessa zona, porém, no grande sertão central e na
baixada amazônica, o sertanejo não se resume somente a ele, pois nas chapadas do
Nordeste, ou ainda, nos seringais, haviam cafuzos ou caborés detentores de uma parcela
de sangue africano. Dividida então em duas regiões, a saber, o Grande Sertão e a
Amazônia, é nesta última que a atividade humana veio a encontrar óbices sem conta à
sua natural expansão. Euclides da Cunha denominara o rio Amazonas pela alcunha de
‘continente em marcha’.
Pois a Amazônia reservava ao homem clima e regime de chuva inclementes. Ali
havia a mata contínua, insetos em abundância, aluviões seguidas, formidáveis erosões,
ervas daninhas a perturbar as plantações e o calor sufocante a tornar preguiçoso ao
homem. A construção da casa – considerada o primeiro passo para a execução de um
trabalho longo e sistemático – se resumia em uma edificação palafita, habitação precária
cujo objetivo maior era dominar as enchentes. Aí seria encontrada uma população
oscilante, vulnerável ao paludismo, à leschimaniose, à febre amarela e ao béri-béri.
Seria a Amazônia o espaço do seringueiro ou paroara, que nascido no nordeste, para a
planície amazônica segue, para trabalhar e morrer! Ou ainda, do tapuio, esse índio ou
filho de índio amansado, que vive pescando pirarucu, peixe-boi ou tartaruga, e que
segue o mesmo destino final do paroara, morto pela civilização, onde a sífilis e o

publica, seu ideal» O Problema da Raça Negra nos Estados Unidos. In:LACERDA, João Baptista de.
Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro de Toledo. Rio de Janeiro: Papelaria Macedo,
1912, p. 20-21.
267

aguardente atuariam, segundo as observações de Edgard Roquette-Pinto, como


aceleradores do tempo para o seu desaparecimento.
No ‘Grande sertão’ se encontrava o tipo étnico considerado por Roquette-Pinto
como o mais representativo do Brasil: tipo sempre magro, de grande capacidade vital e
amplo tórax. Mas os habitantes dessa enorme zona não possuiam aparência uniforme,
pois fisicamente o cuiabano e o cearense (ou seja, o jagunço), não seriam muito
parecidos, por possuir o primeiro uma estatura mais elevada, por influência dos seus
ascendentes bororos.
O sertanejo seguiria então como uma espécie de “intermediário forçado” entre os
antigos e os futuros colonizadores do interior, conservando técnicas herdadas do gentio,
ou seja, com muitos saberes e costumes indígenas sendo passados para as fazendas,
influência que por vezes se demonstrava nefasta na avaliação de nosso palestrante,
como no costume de queimar matas e campos para fazer roças à moda índia, ou mesmo
para afugentar aos répteis e insetos mais tenazes, quando não, para fazer lenha.
Quanto à terceira zona, chamada zona de influência européia, aparecia
constituída pela fita litorânea e os Estados do Sul, a partir da capital da República. Para
essa região havia sido transplantada, de forma quase pura, a cultura européia. Entendia
Edgard Roquette-Pinto que os europeus não formavam ainda no Brasil um povo
periférico no conceito formulado por Ratzel – ou seja, aqueles que ocupam as margens
do oceano, limitando assim, uma fita exterior – o que somente deveria ocorrer caso as
correntes de imigrantes chegados ao Brasil não fossem desviadas.
Considerava o autor que as ações imprevidentes do passado haviam criado um
viveiro de graves questões futuras, ao mergulhar a região onde residiria o elemento
diretor do país em um ambiente cosmopolita extremamente prejudicial. Um naturalista
viajante como Auguste de Saint-Hilaire já observava no século XIX que as massas
imigratórias não estavam sendo nacionalizadas, pois o filho do alemão permanecia
alemão, e o filho de italiano se considerava como italiano. Dessa forma, perguntava
Roquette-Pinto: “E si nós, brasileiros de origem varia, porém já nacionalizados, não
fizermos a propaganda das puras tradições do Brasil, para que esses moços as
conheçam, as respeitem, as estimem e as abracem, quem velará pela sorte desse
patrimônio moral?”77

77
O Brasil e a Antropo-Geographia. In: _________. Seixos rolados (estudos brasileiros). Rio de Janeiro:
Mendonça&Machado, 1927, p. 73.
268

Em 1912, Roquette-Pinto já se encontrava bastante influenciado por idéias que


guardavam semelhança com as que Alberto Torres defendia na imprensa e no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, e que seriam em breve estampadas, conforme vimos
em obras como ‘A organização nacional’ e ‘O problema nacional brasileiro’, no ano de
1914. Conforme apontou Francisco Iglésias78, o capítulo ‘Em prol das nossas raças’,
que compunha ‘O problema nacional brasileiro’ fora preparado com a utilização de
artigos publicados no Jornal do Comércio, em 1912, sendo que algumas partes seriam
inéditas, e outras aproveitadas do sempre citado discurso de posse de Alberto Torres no
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no ano de 1911, cujo representativo trecho
interessa aqui reproduzir:
“O problema das raças, como problema de selecção social, é materia
julgada pela nossa experiência e pela experiencia de outros. Nós sabemos,
porque o temos verificado, em cinco séculos de vida, que as diversas
variedades humanas, habitantes de nosso solo, são capazes de attingir o
grão mais alto de aperfeiçoamento moral e intellectual, alcançado por
qualquer outra raça. Sabemos que sua adaptação ao sólo produz uma
vitalidade e uma média de longevidade e de fecundidade, melhores do que
as de raças tidas por superiores. Podemos affirmar que o negro puro e o
índio puro são susceptíveis da producção dos mais elevados typos humanos.
Sem estatísticas, lembrando nomes próprios, chegaríamos facilmente á
conclusão de que, para o numero dos negros e índios que têm conseguido
vencer as difficuldades sociaes e economicas da educação, os homens de
valor representam um boa proporção. Quanto ao mulato, o mesmo processo
nos levará a conclusão ainda mais segura: os typos de mestiços de alta
intelligencia e elevado caracter moral são communs no Brazil. «Há aqui,
como em toda parte, contra o mulato do povo, um preconceito; mas, este
preconceito resulta antes do facto que eu chamarei de «mestiçagem social»
do que de «mestiçagem ethnica». O mulato é o typo intermédio entre duas
camadas da sociedade; elevado acima do meio dos pretos, não encontra
apoio bastante para se incorporar aos brancos: e fica assim, «déclassé»,
entre nobre e «parias», desprezado por uns e invejado por outros. Do facto
social resulta um estado psychico, que caracteriza o typo ambíguo e instável
do mulato das ruas. A cordura da alma brazileira vai destruindo estas
distincções.”79

Ao colocar de forma clara que o grande problema do Brasil seria a organização


dos seus valores – em idéias bastante alinhadas com as que Alberto Torres defendeu no
discurso acima – parece ter ficado possível a Roquette-Pinto fazer com bastante
propriedade a denúncia dos erros do passado, quando a política de povoamento do
Brasil havia se baseado no trucidamento dos índios e na importação de escravos
africanos negros. Defendia para o presente a imigração nacional, em prejuízo da
imigração que então se fazia, de uma gente branca estrangeira, buscada então a peso de

78
Prefácio à terceira edição. In: TORRES, Alberto. A Organização Nacional. Brasília: Unb, 1982, p. 20.
79
TORRES, Alberto de Seixas Martins. Discurso de Posse. RIHGB, Rio de Janeiro, Tomo LXXIV, parte
II, 1911, p. 591-592.
269

ouro e sem fiscalização. Com isso deixava-se no seu entendimento, à indigência, os


melhores elementos nacionais80.
Tais conclusões possivelmente fossem devidas, também em parte, à sua
expedição científica ocorrida naquele mesmo ano. Um dos seus relatos merece ser aqui
reproduzido na totalidade:
“Pouso no Sauêuiná, á tardinha. Os tropeiros tampavam o lote para o
preservar da chuva imminente; o acampamento tinha a animação commum
ás horas de recolher. Na linha do chapadão infinito, desenhou-se, ao longe,
um vulto impreciso; seguindo a trilha do Juruena, em nossa direcção, vinha
se arrastando um homem andrajoso. Sua camisa tinha uma só manga; cobria
metade do tronco. Suas calças, reduzidas á tanga esfarrapada. As nadegas,
expostas. O chapéo de palha, sem abas; o cinto de couro, remendado a
embira. Um sacco amarrado cahia sobre o dorso daquelle homem
miserando, de faces encovadas. Fazemos signal para que se chegasse.
Approximou-se e foi logo atirando, ao chão, o sacco e o corpo fatigado.
Pedio comida; e depois contou sua historia, que transcrevi á medida que elle
falava. Chamava-se Benedicto; era seringueiro. Vinha das matas do Juruena
exploradas por um certo João Kolb, residente em Tapirapuan, conhecido por
D. João. Passára no seringal, dois mezes sem viveres, que o patrão não
mandára, faltando ao ajuste prévio. No seringal, 20 pessoas. O encarregado
do barracão, um tal Soares, no fim de todo esse tempo, durante o qual
viveram de palmito e de mel, morreu de fome e febres. Ninguem tinha mais
forças para arrancar da floresta o indispensável á subsistência. Dos 20, nem
um só podia mais empunhar um machado; o terçado, nas mãos daquelles
homens doentes, oscilava como a espada de um dragão entre os dedos de
uma creança. E a tropa de Kolb não chegava. Desanimado então, para não
morrer tambem á míngua, resolvera abandonar a mata. Atraz delle deveriam
vir os outros. Tinha uma arthrite traumática no joelho direito; mesmo assim,
fizera, naquelle dia, pelo areião á fóra, sete léguas bem contadas. Encarnava
aquelle typo uma raça forte, que por ahi anda a soffrer supplicios na sua
terra, onde os estranhos engordam...Era preciso documentar-lhe a vida e
registar aqui essa observação, como um caso clinico de pathologia social.
Foi o que eu fiz. Havia 14 annos que principiára a trabalhar na borracha.
Sabe lêr muito mal. Nasceu na povoação de ‘Barra dos Bugres’, no alto
Paraguai, proximo a Diamantino. Tem cerca de 35 annos. É caboclo de
complexa mestiçagem. Alto, de saliências ósseas accentuadas, membros
longos; pelle cúprica olivacea; nariz convexo, estreito; olhos meio oblíquos;
malares projectados. Cabello negroide. No fim da safra do anno passado
ficara devendo 500$ a D. João; este ano não receberia nada. No começo da
estação, quando foi para o seringal, recebeu, além de um terno de roupa de
riscado, o seguinte, que é o fornecimento habitualmente feito pelos patrões a
cada trabalhador: 25 litros de arroz. 25 litros de feijão. 50 litros de farinha.
10 kilos de banha. 7¹/² kilos de xarque. 3 kilos de assucar. ¹/² kilo de café. ¹/²
libra de guaraná. 2 metros de fumo de corda. 2 barras de sabão. 4 litros de
sal. Eis ahi o preço de um homem.”81

Sobre o posicionamento de Edgard Roquette-Pinto no tocante às temáticas da


raça e imigração no Brasil convém citar uma contribuição de Giralda Seyferth que é
bastante posterior ao seu citado artigo de 1985 publicado na Revista do Museu

80
ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondonia. 2.ed., Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1919.
81
Idem, ibidem, p. 151-153.
270

Paulista82. De acordo com a autora, os pressupostos civilizatórios estiveram presentes na


discussão e implementação das políticas imigratórias desde 1818, portanto ainda ao
tempo de D. João VI. Naquele momento a idéia da imigração como propulsora do
progresso e da civilização estava presente nos escritos de pensadores sociais e
imigrantistas.
Conforme lembra a autora, logo nos momentos iniciais da República ocorreu
uma massiva naturalização de estrangeiros por força do decreto 58-A, de 14 de
dezembro de 1889, onde ficava patente o interesse oficial em incrementar a imigração
européia para o Brasil. A esse, logo se juntaria o decreto 528, de 28 de junho de 1890, o
qual colocava embaraços à entrada de nativos da África e da Ásia. A celebração de
tratados de comércio e amizade com a China e o Japão fez revogar o impedimento da
imigração para indivíduos daqueles países, porém não fez reduzir o anátema lançado
por aqueles que defendiam a tese do branqueamento, baseados como estavam na idéia
da inferioridade racial dos não brancos. A idéia da desigualdade das raças fazia
contrapor-se à idealização dos imigrantes ideais ao grupo dos imigrantes tidos como
indesejáveis: esses últimos retardariam o processo de branqueamento da nação.
Seyferth esclarece que Edgard Roquette-Pinto escreveu pouco sobre a
imigração, e quando o fez foi movido por interesse na eugenia. Influenciado pelas teses
eugenistas, Roquette-Pinto sempre procurou despregá-las do dogma racista da
desigualdade biológica83. Porém, devemos acrescer com a autora, que de forma indireta,

82
Roquette-Pinto e o debate sobre raça e imigração no Brasil. In: LIMA, Nísia Trindade, DE SÁ,
Dominich Miranda (Orgs.). Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-
Pinto. Belo Horizonte:UFMG/Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008.
83
Entendemos avultar em importância algumas observações da lavra de Vanderlei Sebastião de Souza,
autor que chama atenção para o diálogo de Edgard Roquette-Pinto com a tradição alemã. As leituras de
Roquette-Pinto incluíam-se além do já citado Félix von Luschan, de teóricos como Eugen Fischer e
Rudolf Martin. Esse último fizera contribuições que superaram a clássica antropologia do francês Paul
Broca, o que possibilitou o surgimento da Antropologia moderna, e tornou possível refutar a descrição
hierárquica das raças. No entanto, cumpre ainda destacar o nome de Franz Boas (1858-1942), apontado
como um dos fundadores dessa moderna ciência. De origem prussiana, nascido em Minden (Vestfália),
Boas, judeu de origem, migrou para os Estados Unidos em 1886, motivado em parte pelo clima vigente
na Alemanha de Bismarck – conservador, nacionalista e anti-semita. Após uma série de trabalhos
temporários ele se tornou professor na Universidade de Colúmbia a partir de 1896, ocupação que se
tornou integral em 1905. Inscrito para participar do Congresso Internacional de Raças em Londres (1911),
Boas não pode comparecer, mas enviou o texto ‘Instability of Human Types’ que foi lido atenciosamente
na segunda sessão do evento. O texto discutia as condições de progresso das diferentes raças humanas, e
ocupou cerca de cinco páginas dos ‘Papers on Inter-Racial Problems Communicated to the First
Universal Races Congress’, os anais daquele encontro. Franz Boas se dedicou a demonstrar a verdadeira
falácia que considerava ser a teoria da estabilidade dos tipos físicos, que contava com argumentos
considerados até então como irrefutáveis. Boas fundamentara-se em suas pesquisas com imigrantes
europeus residentes nos Estados Unidos. Para ele, ao deslocar-se de um meio geográfico para outro, os
indivíduos podiam experimentar mudanças físicas ou mesmo mentais, que seriam herdadas por gerações
futuras. Contudo, conforme registrou Celso Castro, a principal contribuição de Franz Boas “para a
271

seus estudos sobre os tipos brasileiros, bem como suas opiniões sobre a mestiçagem
acabaram por influenciar outros pesquisadores que vinham se dedicando aos estudos
migratórios.
Ao passar em revista a obra de Edgard Roquette-Pinto, escreveu José Honório
Rodrigues que mesmo não tendo sido propriamente um historiador, as suas pesquisas
tinham contribuído para pensar o Brasil em termos de história84. E não por acaso, a
“Grande Guerra” de 1914 a 1918, evidenciara a experiência do esforço de guerra da
população civil, e deixara à flor da pele toda uma discussão que envolvia a identidade
nacional, e mesmo o papel a ser ocupado pelo Brasil no concerto das nações. A
percepção das graves vulnerabilidades do país acabou servindo como catalisador para as
discussões sobre os problemas nacionais que envolviam o pessimismo quanto à
formação da população, em um momento no qual passava a ser discutido seriamente o
abandono de idéias de empréstimo incrustadas por pensadores estrangeiros que mal
conheciam o Brasil. Conhecer o País real, suas vulnerabilidades e potencialidades para
bem decidir sobre ele, seria a tarefa da primeira hora. Desconhecia-se o que era o Brasil,
e isso ocorria tanto da parte dos intelectuais, quanto da maioria da população.
Afinal, se o sertanejo – ou seja, o homem do sertão – era então apontado sob
diversos aspectos como o tipo antropológico representante da nacionalidade – e em
autores tão respeitados como Euclides da Cunha e Edgard Roquette-Pinto – caberia um
maior entendimento sobre o que seria o sertão. Uma conferência proferida por Alberto
Rangel (1871-1945) na Biblioteca Nacional, em 17 de junho de 1913 propunha-se a
lançar luz sobre o assunto. Rangel tentou então evidenciar o desconhecido acerca do
território por parte da cartografia antiga, a qual imaginara o interior do Brasil como “um
campo de fantasia de nascentes e de falsidades de cordilheiras, circo vasio e immenso,
expresso no colorido das aquarellas convencionaes o tétrico desertão”85, de onde viria
pela amputação da primeira sílaba, a morfologia usual de sertão 86 . Lembrava então

Antropologia Cultural não foi como formalizador de teorias; seu papel foi acima de tudo o de crítico de
teorias então consagradas, como o evolucionismo e o racismo”. Ver. SOUZA, Vanderlei Sebastião de.
Retratos da Nação: os ‘tipos antropológicos’ do Brasil nos estudos de Edgard Roquette-Pinto, 1910-1920.
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.Ciências Humanas, Belém, v.7, n.3, p. 645-669, set.- dez.,
2012; e, CASTRO, Celso (org.). Franz Boas: Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. A
citação encontra-se à p. 18.
84
Roquete Pinto. In: ______________. História e historiadores do Brasil. São Paulo: Fulgor, s.d.
85
Os sertões brasileiros. Annaes da Bibliotheca Nacional. Rio de Janeiro, v. XXXV, 1913, p. 108-118.
86
Em sua premiada tese, Nísia Trindade Lima refere-se ao mesmo tipo de estudo etimológico que estaria
presente nos dicionários da língua portuguesa ao longo dos séculos XVIII e XIX, que comportaria uma
dupla idéia, qual seja, uma espacial – a terra do interior – e outra de caráter social, que alude a uma região
que seria pouco habitada, sentido que foi reafirmado por Sérgio Buarque de Holanda no clássico ‘Raízes
272

Alberto Rangel que o desejo de encontrar tesouros minerais, como em Potosi,


arrastaram os exploradores em sua cobiça ao melhor conhecimento do território, onde
os caminhos já estariam previamente indicados, servindo o curso dos rios para conduzir
a marcha e viabilizar as atividades econômicas, tarefa da qual se ocuparam desde as
priscas eras da colonização. Adiante, nos séculos XVII e XVIII, rios como o Paraná, o
Paraíba, o São Francisco, o Paraguassú e o Amazonas cumpririam o papel de auxiliar,
com seus afluentes e sub afluentes um melhor conhecimento do país, tendo por
chamarizes o índio, o mineral e as drogas.
O avanço sobre o interior – explicava Rangel – fez refluir as lendas do Eldorado,
das Amazonas e do Sabarabussu, mas manteve a nítida separação entre a fímbria cinta
litorânea e o sertão. Conforme observou Candice Vidal e Souza em seu trabalho, coube
ao chamado pensamento social brasileiro fazer relatos da nacionalidade imaginando
espaços sociais qualificados como sertão e litoral. Assim, homens como Euclides da
Cunha (1902), Capistrano de Abreu (1899 e 1907), Alberto Rangel (1913) e Oliveira
Vianna (1918), entre outros, se viam em meio a uma missão entendida como de cunho
político patriótica. Em consonância com esse ambiente intelectual os modos de viver
encontrados no litoral e no sertão passavam a ser representados como uma contribuição
à construção da nacionalidade, cujos foros de autenticidade deveriam homologar um
firme assentamento no rol da civilização. Na opinião dessa autora, em algumas dessas
construções narrativas é possível perceber que as imagens do sertão e do litoral deixam
de ser excludentes em si, no que se passava a idealizar esses espaços geográficos com
vistas a reconstruí-los de maneira integrada87.

Na opinião de Nísia Trindade Lima o sertão teria se constituído mais em


contraste com a idéia de região colonial, do que propriamente como antítese de litoral.
Assim, a região colonial seria o espaço preenchido pelo colonizador, sendo portanto o
mundo da ordem, ou seja, do Estado e da Igreja. Em boa medida por tratar-se de uma
colonização dirigida por um povo de mercadores, voltados para o mar, a região colonial,
mapeada pela exploração capitalista foi sistematicamente integrada à cartografia e

do Brasil’ (1936). LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação
geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
87
SOUZA, Candice Vidal e. A pátria geográfica: sertão e litoral no pensamento social brasileiro. Goiânia:
UFG, 1997. É possível ver nesse percurso que a imaginação geográfica posta sob a forma de narrativa
apresenta-se ineludivelmente articulada aos processos formativos da nação, aproximando-se do modus
operandi encontrado na imaginação histórica. A ficção da formação da nacionalidade passa a entremear-
se com o avanço sobre o território, ao passo que a história da ocupação espacial passa a ser a própria
história da formação nacional.
273

consequentemente às vias de comércio. Região conhecida portanto, e doravante peça


constante da agenda pública interna e do xadrez da geopolítica internacional.

Ao longo do século XIX coube o rótulo de sertão às regiões identificadas como


áreas despovoadas no interior do Brasil, e durante o Império não passou despercebida a
vulnerabilidade que essa situação continha, conforme ficou mais visível durante a
Guerra do Paraguai e na pressão diplomática sofrida pelo governo brasileiro para a
abertura do rio Amazonas à navegação internacional. Para Nísia Trindade Lima, os
primeiros anos do regime republicano “foram palco de um expressivo movimento de
valorização do sertão, seja enquanto espaço a ser incorporado ao esforço civilizatório
das elites políticas do país, seja como referência da autenticidade nacional.”88 Ainda
de acordo com essa autora é possível perceber que para os intelectuais-cientistas do
primeiro período republicano, o sertão integrava o mesmo campo semântico de
incorporação, progresso, civilização e conquista, ao passo que em termos propriamente
geográficos, esse mesmo sertão seria o lugar do atraso e da resistência ao progresso,
podendo se localizar em lugares tão diversos como no Norte de Minas Gerais, no Oeste
do Paraná, em Goiás, ou mesmo nos subúrbios da Capital Federal. Seriam portanto os
sertões, lugares da pouca ou total ausência do poder público, criatório da doença e das
mazelas sociais, onde prosperavam somente a ignorância, o crime e a impunidade, e
onde se afirmava o mandonismo dos senhores locais. Talvez por isso, tivéssemos tanto
os “Os Sertões” de Euclides da Cunha, no interior da Bahia, assim como os de Afrânio
Peixoto, nos bairros cariocas mais afastados servidos pela Estrada de Ferro Central do
Brasil, onde o impaludismo sem qualquer constrangimento, fazia suas vítimas. Haviam
também os sertões de Cândido Rondon – uma imensa região delimitada ao Norte por
um trecho do curso seguido pelo rio Amazonas, e que encontrava a Noroeste e Sudeste
os cursos dos rios Madeira e Guaporé, região aliás, percorrida em parte, como vimos,
por Edgard Roquette-Pinto – bem como outros “sertões” os quais seriam visitados pelas
expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz, instituição que durante a Primeira
República se consolidava como centro de pesquisa experimental, conforme lembra
Nísia T. Lima. Essa autora listou nada menos que nove expedições científicas partidas
desse centro de pesquisas, entre os anos de 1908 e 1922. Dessas viagens científicas

88
Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de
Janeiro: Revan, 1999, p. 65. Ainda para essa autora, “a substituição do indígena pelo sertanejo enquanto
símbolo da brasilidade também pode ser creditada, ao menos em parte, a experiências de incursão pelo
interior do Brasil”. P. 64.
274

trataremos, em páginas a seguir, daquela que foi considerada a mais expressiva por
haver dado ênfase ao isolamento e abandono a que eram relegadas as populações rurais
do Brasil89.

Da fala de Alberto Rangel é possível perceber que, de maneira geral, não se


considerava aos sertanejos como degenerados, mas sim como um grupo humano que
apesar do atraso, resistira às intempéries das condições de uma vida agreste,
constituindo-se portanto em uma espécie de patrimônio nacional,

“A alta funcção moral do sertão é a de ser um isolador ás trepidações da


faixa [litorânea] que se achando mais próxima ao espumejo do oceano, por
isto é mais sujeita aos espasmos e vícios transmitidos nas trocas do
commercio e pensamentos internacionaes. O seu papel preeminente é o de
conservador de nossos traços ethnicos mais fundos, como povo vencedor de
uma adaptação estupenda. Se os sertões não fossem algo de estorvo passivo
ás faceis desnaturalizações da beira-mar, seriamos uns descaracterizados;
na salsugem do contacto marinho dar-nos-ia um uniforme total a civilização
dos paquetes e couraçados. Sentimos todos a responsabilidade de zelar por
esse bem de família, porque o sertão, grande e ubertoso, tem sido o
formidável cadinho onde se apurou, com a coragem das bandeiras, o
segredo das populações centraes resignadas, taes como por exemplo a dos
caboclos paraenses na enchente e a dos sertanejos cearenses na secca.” 90

De forma paulatina ganhava espaço a idéia da inconformidade da adoção de


modelos estrangeiros para uso na realidade nacional, e com isso pairava uma grave
denúncia quanto ao artificialismo das instituições brasileiras, bem como das soluções
apontadas para os problemas nacionais. Nesse sentido, observa Marly Silva da Motta
que ganhava realce a voz do escritor fluminense Alberto Torres.
Conforme a opinião dessa mesma autora, a geração que acompanhara o grande
conflito mundial de 1914-1918, de forte impacto sobre a nossa intelectualidade, adotou
então um sentimento de urgência face aqueles que eram apontados como os grandes
problemas nacionais. Na avaliação de autores como Lima&Hochman (1996), a
ideologia da construção da nacionalidade passou a ser potencializada no período da
Primeira Guerra Mundial, bem como no imediato pós-guerra, com o surgimento de
movimentos de caráter nacionalista. A pretensão desses movimentos era descobrir,
afirmar e reclamar os princípios da nacionalidade, os quais deveriam ser realizados

89
Essa expedição percorreu entre janeiro e outubro de 1912 o Norte da Bahia, o Sudoeste de Pernambuco,
o Sul do Piauí e as partes Norte e Sul de Goiás, a serviço do Instituto Oswaldo Cruz e da Inspetoria de
Obras contra as Secas. Teve como cientistas responsáveis os Drs. Arthur Neiva e Belisário Penna. O
relatório dessa viagem científica foi publicado no ano de 1916, com forte impacto, conforme tentaremos
demonstrar, na opinião pública brasileira.
90
Os sertões brasileiros. Annaes da Bibliotheca Nacional. Rio de Janeiro, v. XXXV, 1913, p. 115.
275

mediante a atuação do Estado Nacional91. Ao final desse conflito bélico havia ficado a
constatação que a chamada ‘civilização belle époque’ que a tantos fascinara, podia não
ser mais – conforme escreveu Marly Silva da Mota – o “modelo inegável da
modernidade a ser conquistada.”92 Em alguns círculos da intelectualidade a rejeição da
belle époque combinava-se com o nacionalismo, e alimentava pensamentos
tradicionalistas, o que gerava descrença quanto aos ideais liberais, apontando para o
desenraizamento e o artificialismo da sociedade urbano-industrial, onde na realidade,
nada haveria de moderno. Considerava-se então que esse artificialismo havia atingido a
intelectualidade cosmopolita do litoral. Então, a educação, assim como a saúde
passaram a figurar na qualidade de fatores fundamentais para uma obra que era
considerada à época como de regeneração nacional.
Ao cosmopolitismo do litoral, então entendido como dissolvente, passou a ser
considerada a brasilidade que se acreditava existir no sertão. Logo florescia uma
literatura paulista, de cunho regional, impulsionada por homens como Monteiro
Lobato 93 e Júlio de Mesquita. Em obras de cunho bastante conservador, eram
fortalecidos os sentimentos de brasilidade, e mesmo de paulistanidade, onde a paisagem
do interior e o homem rude e caboclo que nele habitava eram pintados com arroubos
ufanistas e românticos. Datam dos anos de 1915 a 1917 a Liga de Defesa Nacional
(1916), que tinha à frente Olavo Bilac, Miguel Calmon e Pedro Lessa; a Revista do
Brasil (1916) e a Liga Nacionalista (1917), organizada a partir da Faculdade de Direito
de São Paulo94.
A famosa conferência proferida em Belo Horizonte no ano de 1915, por Afonso
Arinos (1868-1916), ele mesmo um egresso da Faculdade de São Paulo, na qual se
bacharelara em 1889, integra esse rol de iniciativas. A fala de Arinos ocorreu em um
festival organizado em benefício dos flagelados da seca no Nordeste, onde o autor

91
LIMA, Nísia Trindade, HOCHMAN, Gilberto. Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil
descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República. In: MAIO, Marcos Chor, SANTOS,
Ricardo Ventura. Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996.
92
MOTTA, Marly Silva da. A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência.
Rio de Janeiro: FGV, 1992.
93
Possivelmente o personagem mais conhecido de José Bento Monteiro Lobato, faço aqui referência à
sua obra dirigida aos adultos, seja o Jeca Tatu. Esse caipira aparece em um conto publicado em 1914 no
jornal ‘O Estado de São Paulo, e republicado em Urupês, coletânea de 1918. O Jeca Tatu é um sitiante do
Vale do Paraíba, um piraquara, que com seu organismo tomado pelo parasitismo, não consegue dar vazão
às necessidades mais básicas do trabalho. LOBATO, José Bento Monteiro. Mr. Slang e o Brasil e
Problema Vital. São Paulo: Brasiliense, 1959 e Urupês, São Paulo: Brasiliense, 1969.
94
A Revista do Brasil pretendia realizar um reexame da identidade nacional. A Liga de Defesa Nacional
posicionou-se contra a neutralidade do Brasil na Grande Guerra. Ver: SKIDMORE, Thomas E. Preto no
Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976; e, DE LUCA,
Tania Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Unesp, 1999.
276

defendeu que deveria haver uma campanha cívica para criar uma nação para um
território que já existia. Para Afonso Arinos deveria partir das ‘classes superiores’, ou
ainda da ‘classe culta’, agrupadas segundo ele em torno das escolas de toda ordem, uma
campanha cívica para reerguimento do Brasil. Avaliando o País, Arinos enxergava uma
situação anômala à das demais nações, pois nele, “as classes populares são
relativamente superiores em moralidade às classes elevadas. [Defendia então a tese
que] como corpo político o povo brasileiro não existe”95. Assim, sobre o Brasil inteiro
deveria pesar o infortúnio sofrido pelo Nordeste, e os Estados não poderiam ficar
estranhos uns aos outros. Afinal, conforme convinha lembrar,
“Apesar das catástrofes, o Ceará nunca deixou de crescer em população,
computada hoje em um milhão de habitantes; e é daquele ninho de caboclos,
de dentes aguçados e canelas finas, que o Brasil tira as pugnazes energias
para as fileiras dos seus bons soldados e para as levas aventurosas dos
seringueiros, que vão disputar à morte nos marnéis pestíferos do Amazonas o
látex precioso.”96

A solidariedade viria fortificar a unidade moral da Pátria, definida por Arinos


como a terra querida que guardava os restos dos antepassados, na imobilidade dos
túmulos e no estremecimento dos berços, bem como as tradições e costumes na qual se
fora criado, onde foram balbuciadas as primeiras palavras no idioma comum, ou seja,
todas essa idéias e os sentimentos delas decorrentes que para o autor se constituíam em
princípios diretores da civilização.
E o exemplo deveria vir do alto, pois tratava-se de uma campanha de
reerguimento do Brasil, campanha cívica sine qua non poder-se-ia falar em soberania
nacional.Talvez não seja demasiado exagero dizer que o pensamento nacionalista
irmanava-se com o ufanista e buscava – como observou Marly Mota – a identidade
nacional em aspectos da natureza, como os rios, o clima e as riquezas do subsolo. Para a
autora, “a identificação entre nacionalismo e território era clara. ”97
Uma das palavras de ordem era ocupar os espaços vazios, demarcá-los para
garanti-los na posse da nação, sob os referenciais da ciência de engenheiros e médicos.
Entre a condição de simples espaço e território existe, conforme sabemos a ação do
homem, na qualidade de ator insubstituível nas transformações perseguidas. Educar o

95
FRANCO, Afonso Arinos de Melo. A Unidade da Pátria. In: COUTINHO, Afrânio (org.) Obra
completa. Rio de Janeiro: INL, 1968, p. 891.
96
Idem, Ibidem, p. 886.
97
MOTTA, Marly Silva da. A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência.
Rio de Janeiro: FGV, 1992, p. 37. Mônica Pimenta Velloso relaciona essa forma de nacionalismo ao
grupo dos verde-amarelos que marcou presença a partir dos anos 1920. A brasilidade verde-amarela:
nacionalismo e regionalismo paulista. 2.ed. Rio de Janeiro: FGV, 1990.
277

sertanejo apartado pelos sertões, amansar e civilizar índios. Em resumo, transformar o


que antes era apenas povo, em uma nação. No caminho dessas tarefas, haviam no
entanto duas palavras de sentido antitético que pareciam então ocupar os discursos dos
próceres do espírito civilizador que tomara de assalto a sociedade civil daquela época: a
regeneração e a degeneração. Da primeira, já tecemos alguns comentários. Cabe agora
algum desenvolvimento sobre o que estaria sendo considerado como um risco à
degeneração.
Na década de 1910, os problemas de saúde pública passaram a ocupar um lugar
central na agenda política do Brasil. A ciência experimental médica passava a acenar
com soluções para o drama brasileiro da raça indolente e do clima tropical, candentes
questões que até aquele momento que pareciam obstaculizar a ascensão do país às tão
almejadas alturas do progresso e da civilização. A resposta da biologia ao que seria a
preguiça e improdutividade dos brasileiros apontava para a correção das condições
sanitárias vividas pela população em grande parte do território nacional.
Assim, no novo discurso articulado pelos médicos-higienistas, o povo brasileiro
estava doente, pois havia sido abandonado pelas elites políticas. Em outubro de 1916,
Miguel Pereira, professor da Faculdade de medicina do Rio de Janeiro denunciava a
situação com essas palavras: ‘O Brasil é um imenso hospital’. A frase logo assumiu o
caráter de diagnóstico corroborado pela classe médica, tanto daqueles que pertenciam ao
corpo docente da Faculdade de Medicina, mas também de cientistas e higienistas de
instituições como a Academia Nacional de Medicina e do Instituto Oswaldo Cruz98.
Naquele momento, o papel atribuído aos médicos, não podia ser dissociado das
críticas à República, ou mais especificamente, ao federalismo da Constituição de 1891.
No diagnóstico de intelectuais do período, o federalismo havia propiciado a
oligarquização da política, o que por sua vez, trazia soluções artificiais e incompatíveis
para a realidade brasileira. Para exemplificar a questão, o órgão federal que se
responsabilizava pela saúde era a Diretoria Geral de Saúde Pública, criada em 1897,

98
A fala do dr. Miguel Pereira logo tornou-se emblemática, alinhando as posições críticas da ordem
social e política da Primeira República. Proferida em ocasião na qual era feita uma saudação a Aloysio de
Castro, então diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro por motivo do êxito da delegação
brasileira em congresso médico realizado em Buenos Aires, a imagem do Brasil como imenso hospital foi
retomada pelo mesmo Miguel Pereira ao homenagear em ocasião posterior a um membro dessa
delegação, o dr. Carlos Chagas. Conforme LIMA, Nísia Trindade, HOCHMAN, Gilberto. Condenado
pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira
República. In: MAIO, Marcos Chor, SANTOS, Ricardo Ventura. Raça, ciência e sociedade. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 1996.
278

como parte da estrutura do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, que pela ótica
dos cientistas era uma agência dominada pelos políticos e bacharéis.
Na avaliação de Lima&Hochman (1996), haviam importantes elementos que
passaram a contribuir para a deflagração de uma campanha em prol do saneamento
rural, tais como: 1. O debate nacionalista intensificado pela Primeira Guerra Mundial; 2.
O impacto causado pelas viagens e descobertas científicas do Instituto Oswaldo Cruz; e,
3. As críticas à decadência da experiência republicana.
Os princípios constitucionais de autonomia aos Estados e Municípios causavam
restrições às possibilidades de atuação no âmbito do governo federal, pois, no arranjo
federativo, caberia aos poderes locais cuidar da saúde da população. Assim, o governo
central ficava restrito às ações no Distrito Federal, à vigilância sanitária dos portos e à
assistência aos Estados da federação naqueles casos que fossem previstos e regulados
constitucionalmente. As epidemias urbanas haviam sido objeto de ações mais
sistemáticas da Diretoria Geral de Saúde Pública e acabariam contribuindo com a
experiência necessária para a redefinição das atribuições do governo no campo da
saúde99.

A principal referência dessa campanha foi o relatório da viagem científica


organizada pelo Instituto Oswaldo Cruz em 1912, por solicitação da Inspetoria de Obras
contra as Secas, conforme mencionamos páginas atrás. O relatório levava o seguinte
título: ‘Viagem Científica pelo Norte da Bahia, Sudoeste de Pernambuco, Sul do Pará e
de Norte a Sul de Goiás’, e fora preparado por Arthur Neiva e Belisário Penna. No
desenrolar da campanha pelo saneamento dos sertões, seria criada a ‘Liga Pró-
Saneamento do Brasil’, em fevereiro de 1918.

O grande público vinha sendo preparado por artigos escritos por Belisário Penna
para um jornal de grande circulação, o ‘Correio da Manhã’, entre novembro de 1916 e
janeiro de 1917. Foram participantes fundadores da Liga os membros da Academia
Nacional de Medicina, os catedráticos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, os
cientistas do Instituto Oswaldo Cruz, juntamente com antropólogos do Museu Nacional,
militares, educadores, juristas e o Presidente da República, Wenceslau Brás.

99
Para esse tema ver os artigos da lavra de Luiz A. de Castro Santos: Estado e Saúde Pública no Brasil,
1889-1930. Dados. Rio de Janeiro, v. 23, n.2, 1980, p. 237-250; e, O Pensamento Sanitarista na Primeira
República: uma ideologia de construção da nacionalidade. Dados. Rio de Janeiro, v.28, n.2, 1985, p. 193-
210.
279

O quadro exposto por Arthur Neiva e Belisário Penna em seu relatório era
dantesco, sendo alarmante o número de portadores da doença de Chagas. A população
interiorana se caraterizava pelo abandono, pelo tradicionalismo e pela total ausência de
uma identidade nacional. A única bandeira que conheciam, conforme o relatório, era a
do Divino. Essa população seria ignorante, isolada – desconhecidos em sua boa parte o
fósforo, o moinho de café e a máquina de costura – revelando-se ainda pobre em
folclore, primitiva nos seus instrumentos de trabalho e nas trocas econômicas, pois
praticamente não utilizavam a moeda. A presença do governo somente se fazia sentir
em aspectos coercitivos da sua vida cotidiana, como no caso dos impostos que lhes
eram cobrados pelas transações com bezerros, bois, cavalos e burros100.
Em uma obra intitulada ‘Saneamento do Brasil’101, Belisário Penna oferecia em
1919, ano da sua primeira edição, um versão precisa das relações entre a doença e a
sociedade brasileira, traçando um diagnóstico crítico e sombrio da situação, mas
propondo ações mais radicais quanto ao papel a ser desempenhado pelo governo federal
no saneamento, povoamento e saúde pública. O quadro por ele traçado era assustador,
“A endemia mais extensa, reinante em todo o Brazil, a que affecta maior
porcentagem da sua população (nunca menos de 70%) é a ancylostomose,
(uncinariose, anemia tropical, vulgarmente chamada opilação, amarellão,
cangoary e mal da terra). Outras estão a ella, sempre ou quase sempre
associadas. Em seguida, reinante em todo o território pátrio, excepto em
alguns planaltos de Minas, do Paraná, de Stª Catharina e na maior parte do
Estado do Rio Grande do Sul, vem o impaludismo, ou malaria, vulgarmente
sezões, maleitas, febres intermittentes, tremedeira. Não há nenhum exagero
no calculo de 30% da população, que soffre os ataques do impaludismo. Em
terceiro lugar, sendo de todas a mais grave e incurável, segue-se a
trypanosomiase americana ou moléstia de Chagas, doença do barbeiro, que
prejudica uma parte e inutilisa a maior parte das suas victimas. Grande
parte da população sertaneja paga pezadissimo tributo a essa doença cruel,
incurável, porem perfeitamente evitavel. Além d’essas, em menor escala,
porem, vêm a lepra (morphéa), a leishmaniose (ferida brava, ulcera do
Baurú); as dysenterias (camaras de sangue), e o trachoma. Estamos nos
referindo ás doenças generalisadas nos campos, nas zonas ruraes do paiz,
porque tão extensas nas cidades e povoados, quanto o é a uncinariose nos
campos, são as syphilis e a gonococcia, e muito propagada nas capitaes e
nas cidades, a tuberculose. A lepra e a leishmaniose vão estendendo cada dia
os seus malefícios, n’um steeple chase macabro para alcançar elevada
porcentagem. A’ ancylostomose, porem, cabe, sem contestação, a
vanguarda, n’essa faina devastadora dos habitantes do Brasil, com
diminuição ou destruição da sua energia, da sua efficiencia e da sua
vitalidade. Ella não é um flogello sómente das fazendas e dos sertões, é
tambem das cidades, villas e arraiaes, a começar pela capital do paiz, onde
são innumeros, nos subúrbios e districtos ruraes, os opilados e os portadores
de ancylostomos, correndo por conta della muitos óbitos attribuidos a outras

100
LIMA, Nísia Trindade, HOCHMAN, Gilberto. Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o
Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República. In: MAIO, Marcos Chor, SANTOS,
Ricardo Ventura. Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996.
101
Saneamento do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos Editor, 1923.
280

causas. No interior, quando um individuo é atacado por qualquer doença, já


é, em regra, um anemiado pelos ancylostomos, que desde muito vêm sugando
o seu sangue, e intoxicando-o e deprimindo-o. Nos domínios da
trypanosomiase americana, rara é a pessoa affectada d’essa doença
chronica e incurável, que não seja ao mesmo tempo um opilado e uma
victima do impaludismo.”102

Belisário Penna assinalava com acidez as escolhas equivocadas feitas pelos


homens da República, atingindo ainda os formuladores do projeto abolicionista por não
terem realizado o exercício de engenharia social que viesse a acolher os libertos na
sociedade de classes capitalista que então se formava. Na sua fala ficam expressas as
desilusões com o desenrolar do projeto republicano, com o descompasso que presidia a
eleição das medidas que poderiam emancipar a população das suas muitas formas de
miséria, materializadas na falta de saúde, educação e infraestrutura básicas. Onde em
extenso território faltava o sentimento nacional, o ingresso no rol dos países civilizados
seria uma quimera,
“ Os precursores desta Republica prepararam com astucia o desfecho
puramente sentimental da abolição e aproveitaram-se habilmente do
despeito que ella provocou, da molestia de d. Pedro de Alcantara, e da
cobiça dos militares, para proclamal-a, por intermédio destes, em nome do
povo bestializado. Infelizmente, essa bestialização permaneceu, aggravada
dia a dia pela miséria, pela doença generalizada e pelo alcoolismo incontido
no povo ignorante, e peor ainda, pela descrença, pela connivencia aos
processos adoptados de delapidação, por parte da minguada população mais
ou menos lettrada, e pelo aviltamento do caracter dos seus representantes
geraes. A Republica quiz dar uma lição ao mundo, atirando-se, num salto
mortal, por sobre os principios basicos da natureza, e por sobre os
ensinamentos da historia de todos os povos, instituindo o mais liberal dos
systemas politicos para um povo ignorante, escasso, ainda em formação,
diluído em vastissimo territorio, e que em materia de organização social e de
nacionalismo, tal como uma creança de seis a sete annos, começava a
soletrar o abc. Como era de precaver-se, caiu de costas, contundiu a medulla
e abalou o cérebro. Disso resultou ficar atacada de manias funestas e
perniciosas, taes como as da grandeza, da luxuria, da presumpção de
sabedoria, e a da imitação e importação de todos os vícios alheios, a que
Ella dá o nome pomposo de ‘civilização’.” 103

A partir de 1889, os novos donos do poder haviam permitido a associação do


oportunismo com o arrivismo social, articulação que acabou por tornar ainda mais
debilitante as conseqüências do federalismo da constituição republicana de 1891. Para
um médico como Belisário Penna, conforme já nos referimos, tal arranjo federativo
colocava sérias limitações ao planejamento e execução da ações do governo federal face
aos cuidados da saúde da população. Penna combatia a inadequação da organização

102
Ibidem, p. 163-164.
103
Saneamento do Brasil, p. 99-100.
281

administrativa, surgida por solução de continuidade com o Império e perpetuada pela


República, regime que,

“conservou a divisão errada das antigas províncias, deu-lhes ampla


autonomia e baptisou-as com o nome retumbante de Estados (!!), alguns dos
quaes não passam ainda hoje de vastos sertões deshabitados, pontilhados
aqui e ali de núcleos maiores ou menores de aventureiros audazes e sem
escrúpulos; outros, com população autochtone menos esparsa, mas
ignorante e pobre, sem capacidade para dirigir sua pessoa e bens, como se
diz em linguagem juridica. Apenas tres ou quattro das antigas provincias
estavam em condições de, sob vigilância, gosar de limitada autonomia, até
que se constituissem em verdadeiros Estados....(...)...Organizou-se desde
então a aristocracia metallica e rastaqüera dos arrivistas e dos velhacos e
foi-se constituindo o famoso syndicato açambarcador das posições politicas
nos Estados e na União. Enquanto isso os governos das antigas provincias
eram assaltados e transformados em satrapias. Em quase todos constituiram-
se dois grupos; um dos que têm em seu poder o thesouro, e outro dos que
aguardam o momento opportuno para delle se apoderar, sem outro intuito
que o de se apossar do seu conteúdo. Dahi a causa permanente da
reproducção fatidiosa e degradante dos indecentes casos estaduaes, com o
ridículo e caríssimo cortejo de conflictos, de «habeas - corpus», de
movimentos de tropas, de intervenções ou não intervenções, de accordos
mais ou menos immoraes e demais pilherias, tragicomicas que levam de
roldão a honra do paiz.”104

Porém o doutor Belisário Penna não parava por aí, e denunciava também que a
libertação dos escravos fora mal conduzida, gerando contingentes populacionais
desprotegidos e pouco qualificados, que migraram para as periferias das cidades. O
interior sofria daí o despovoamento, face a uma emancipação mal planejada que
relegara aqueles negros à própria sorte. Esses recén-libertos, esquecidos pelas
autoridades que sobre eles se omitiram – salvo quando suas dificuldades se
constituíssem em caso de polícia – não encontraram chances de competir por posições
na nova ordem, estacionando na marginalidade, e ali se deixando ficar. Houve como
uma das conseqüências desse triste quadro, carência de mão-de-obra para as lavouras,
acarretando uma situação que Belisário Penna classificou como de descaso para os
interesses das ‘classes agrícolas’, que em pensamento bastante afinado com o de
Alberto Torres, o autor qualificava na honrosa posição de alicerces da nacionalidade.
Haviam ainda sérios problemas habitacionais, de saneamento e educação nos
centros urbanos. E se as políticas de estradas estavam equivocadas, pois estimulavam as
migrações para os centros urbanos – levando na direção inversa, ou seja, para o interior,
pragas citadinas como o jogo, a sífilis e o álcool – não adiantaria também recorrer à

104
Ibidem, p. 100-101.
282

pretensa força de trabalho na figura do imigrante estrangeiro, pois logo ao chegar ao


País, este seria abrasileirado, ou seja, marcado com o ‘ferrete’ da verminose.
Havíamos começado o presente capítulo com uma pergunta que se revelou de
certa forma, algo provocativa. Afinal de contas a resposta para aquilo que seria a
civilização para as nossas ilustradas elites do início do século XX, e o caminho para
alcançar esse verdadeiro pote de ouro no final do arco-íris estaria longe de ser unívoca.
Talvez convenha ao concluir essa parte do nosso estudo, referenciar um breve
texto da lavra de dois sociólogos que àquela época constituíam-se em referências
maiores da escola sociológica francesa. Trata-se da ‘Nota sobre a noção de civilização’,
artigo assinado por Émile Durkeim e Marcel Mauss, publicada no Année Sociologique,
no ano de 1913. Explicavam então os autores que uma das regras utilizadas para o
estudo dos fenômenos sociais é a de trazê-los para um substrato definido, como um
grupo humano que ocupe um determinado espaço possível de ser representado
geograficamente. Desses, o mais vasto, por compreender e enquadrar todas as formas de
atividade social, seria a nação, considerada na modernidade, como materializada sob a
forma assumida pelo Estado Nação. Até aqui, esses mestres franceses nos parecem
exprimir, avant la lettre, as idéias de Norbert Elias para o conceito de civilização, no
sentido dessa enquanto expressão da autoconsciência do Ocidente e mesmo, da
consciência nacional105.
Dessa forma, sinalizavam aqueles autores que no ‘outono’ daquela era de
imperialismos a vida nacional ainda apresentava-se como a forma mais elevada a que a
Sociologia poderia aspirar, parecendo ainda, que a vida coletiva não pudesse
desenvolver-se a não ser no interior dos contornos definidos e claramente marcados dos
organismos políticos. Lembravam os autores, é verdade, que certos fenômenos da vida
coletiva atravessam as fronteiras políticas, acabando por estender-se por espaços menos
facilmente determináveis.
Nesse sentido, qual seria o papel ocupado pela etnografia? Ora, para
Durkheim&Mauss (1913) esta funcionaria como uma chave para explicar o
entendimento da noção de civilização, pelo fato de ser este conceito um fenômeno que
em certa medida, acabava se revelando como supranacional. Dessa forma, fenômenos
sociais revelam uma existência que não é unida a um determinado organismo social,
mas que estende-se por áreas que excedem a um território nacional específico,

105
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. 2 v.
283

desenvolvendo-se mesmo por períodos de tempo que extrapolam a história de uma


sociedade, possuindo vida, como já dito anteriormente, supranacional. Assim aparecem
enquanto fenômenos, a tecnologia, as manifestações de arte, a língua, as formas de
magia ou religião, além daquilo que poderia ser nomeado como um fundo comum de
idéias e instituições.
O que se constata no entanto, é que tais fenômenos possuem um grau de
extensão que não os tornam independentes uns dos outros, antes revelam-se como
vinculados em um sistema solidário. Dessa forma, exemplificavam os autores que entre
os povos que falam uma língua indo-européia, existem sistemas complexos e solidários
os quais possuem um organismo político determinado, sendo localizáveis no tempo e no
espaço. Tratam-se de sistemas de fatos que tem a sua unidade e sua maneira de ser
própria, e aos quais podemos dar apropriadamente o nome de civilização.
As civilizações, acentuavam Durkeim&Mauss, seriam suscetíveis de se
nacionalizar, mas assim explicam, continuam a existir nessas, vale dizer, em seus
elementos constituintes mais essenciais aqueles traços que não são específicos nem de
um Estado, nem de um povo, pois ultrapassam as suas fronteiras. Dessa forma, como
escreveram os autores, a civilização constitui uma espécie de meio moral no qual são
mergulhadas diversas nações e onde cada cultura nacional seria apenas uma forma
particular.
Sempre houve e haveriam pelos tempos afora civilizações diversas, a dominar e
envolver as vidas coletivas específicas de cada povo. Não são todos os fatos sociais
igualmente suscetíveis de serem internacionalizados, pois as instituições políticas,
jurídicas, ou os fenômenos de morfologia social fazem parte da constituição que é
própria a cada povo.
O contrário se daria com os mitos, os contos, o comércio, a moeda, os
instrumentos e as técnicas, assim como as formas e os ideais literários. A etnografia e a
história conseguem traçar as formas de civilização, unindo civilizações diversas à uma
base fundamental, mas certos problemas que esses fenômenos suscitam – questões que
envolvem formas de vida coletiva suscetíveis ou não de serem internacionalizados, por
exemplo – deveriam ser abordados pela sociologia.
No entanto, e ainda mantendo um estreito contato com os autores da ‘nota sobre
a noção de civilização’, para que se consiga explicar uma civilização, devem ser
encontradas as causas das quais essa resultou, dizer quais são as interações coletivas,
consideradas as ordens diversas, das quais uma civilização surge como o produto. Da
284

nossa parte podemos replicar que isso se faz analisando-se um processo que outros
franceses, no futuro, chamariam por longa duração, onde existem as continuidades –
premissas do antropólogo – mas também as rupturas tão colimadas pelos historiadores.
Trata-se de algo singular, único e irrepetível, momento de reflexão no qual se constitui
por excelência, o ‘território’ da História.
Decorridas as duas primeiras décadas do século XX, para aquela parcela de
homens brasileiros não brancos, fossem aqueles rústicos dos sertões ou ainda os
enfermiços das cidades, mas de qualquer forma, mestiços, continuavam as avaliações
pessimistas de parte da inteligentsia brasileira. Desses mestiços se dizia não reunirem as
qualidades julgadas pelos seguidores do racialismo como essenciais para a edificação de
uma nação. Mas esse discurso, mesmo que aprioristicamente se amparasse em sólidas
argumentações teóricas, já vinha se desmanchando no ar, sobretudo em virtude das
expedições científicas associadas às ações governamentais, que passaram a ser mais
integrativas, em conformidade com a lógica de conhecer para decidir.
Em todo caso, o que se viu, foi de forma majoritária o deslocamento do discurso
da inferioridade racial para as ações de combate às moléstias, para a criação de uma
infra-estrutura sanitária, articulada a práticas educativas da população. Antigos hábitos
de uma duvidosa higiene, tão incrustados no cotidiano da população deveriam ser
mudados. Por outro lado, se na investigação das causas do atraso brasileiro o discurso
racialista passava a ser mitigado, ganhavam em importância as posições que
denunciavam as falhas na colonização, ou seja, os vícios de origem da formação
brasileira.
Naquele contexto, o recurso à história passava a apresentar uma saída palpável,
concreta a até original, por permitir que as causas do atraso deixassem de ser localizadas
nos cânones da biologia e nos paradigmas das teorias raciais. O acesso ao tão almejado
caminho para a civilização não estava impedido, somente precisava ser pavimentado. E
isso poderia ser feito com os próprios tipos nacionais, que deveriam ser tratados,
educados, valorizados. Seguindo as sugestões de Capistrano de Abreu, deveriam ser
rompidos os determinismos, tanto os do meio, quanto os de natureza biológica.
Capistrano havia, conforme vimos em páginas anteriores, tematizado uma raça que
interagira com o meio, o que oferecia material para um proveitoso diálogo com a
antropologia do início do século, em parte possibilitada pelo seu aprendizado da língua
alemã. Aliás, José Honório Rodrigues considerou que a crescente admiração de
Capistrano de Abreu pela cultura alemã o tornou um germanófilo. Capistrano lia e
285

traduzia muito além de L. von Ranke, e Edward Meyer, Schmoller e Bucher eram
presenças certas na sua biblioteca. E assim como os métodos de seminário de Ranke,
‘Mestre’ Capistrano conhecia a doutrina antropogeográfica de Ratzel. Se não bastasse,
Capistrano assinava a Deustche Litteraturzeitung de Berlin, com vistas a manter-se
atualizado nos campos de estudo de seu interesse. Capistrano fora admitido em 1895
como membro correspondente da Berliner Gessellschaft Fur Anthropologie, Ethnologie
und Urgeschihte, sendo amigo de Koch Grunberg e Karl von den Steinen. Franz Boas
lhe escreve dos Estados Unidos, em 1925, pedindo apoio para a publicação das obras de
von den Steinen106.
Certamente que essa interação possibilitada pela envergadura de alguém como
Capistrano de Abreu era um daqueles momentos singulares de travessia entre o passado
e o futuro, onde o papel da história passa a ser o de proporcionar uma espécie de porto
seguro para uma sociedade angustiada pelo sentimento de inferioridade, pois
irremediavelmente perspassada pela mestiçagem que parecia condenar o Brasil a viver
em um divórcio com a civilização. Abrigado dos vendavais e correntezas, que
personificam nessa nossa metáfora o terror na história, esse atracadouro oferecido pela
história aparece como retirado das agruras do tempo presente. Nesse ambiente ocorre a
re-criação do passado, o qual, diga-se de passagem, não é qualquer tempo pretérito, mas
uma época julgada como portadora de especial significado para as questões enfrentadas
em dado presente. Trataremos dessas questões nos capítulos seguintes.

106
RODRIGUES, José Honório. História e historiografia. Petrópolis: Vozes, 2008. Cabe observar que
Alberto Torres também era leitor de Franz Boas. Assim, ao escrever em 1914, ‘O Problema Nacional
Brasileiro’, ele anota no capítulo intitulado ‘Em prol das nossas raças’: “...mas a ciência, prosseguindo
em suas indagações, chegou à conclusão de que ao lado das diversidades físicas, verificadas na estrutura
humana, nada, absolutamente nada, autoriza a afirmação de uma desigualdade radical, na constituição
cerebral, em seu funcionamento, em seu poder de desenvolvimento. A relação entre os caracteres físicos
e os caracteres psíquicos jamais se conseguiu afirmar com dados definitivos e irrefutáveis. Recentes
investigações, do mais ilustre, talvez, dos antropologistas americanos [sic!], o Sr. Fraz Boas,
demonstraram que os caracteres somáticos de uma raça alteram-se notavelmente, de uma geração para
outra, com a simples mudança para um meio novo.” In: O Problema Nacional Brasileiro. 4.ed. Brasília:
Unb, 1982, p. 59.
286

6 – Revisitando o passado

“Mais de uma vez já tem ido o Governo brasileiro buscar ou robustecer nos archivos

e publicações do Instituto a prova do nosso direito á posse de qualquer território

ameaçado de absorpção extrangeira. Aconteceu isto na questão da Trindade e

também na do Amapá. O Instituto não poderia aspirar a mais legitimo padrão de

gloria do que esse, a um testimunho tão inequívoco da sua utilidade e da sua

benemerência.” Manuel de Oliveira Lima. Actual papel do instituto histórico.

RIHGB. Rio de Janeiro, t. 76, 1913, p. 492.

Por volta de 1900, alguns dos aspectos mais representativos do senso histórico1
no Brasil poderiam encontrar similaridade em relação a um texto facilmente disponível
a uma diminuta, porém crescente e a cada dia mais influente parcela da população
escolarizada. Esse texto servia como a versão da ‘história pátria’ de maior prestígio a
circular pelas escolas. Falamos das Lições de História do Brasil, preparadas por
Joaquim Manuel de Macedo para os alunos do Colégio de Pedro II, à qual fizemos
menção no quarto capítulo desse estudo. Tratava-se de uma versão duplamente
autorizada pois encontrava-se em conformidade com a cosmovisão saquarema e o ethos
da classe terratenente brasileira. Esses apelos estavam então expressos na obra de
Varnhagen, da qual as lições de Macedo, conforme já observamos em páginas
anteriores, havia contraído uma imensa dívida. Convém observar que essas lições foram
a grosso modo repetidas em uma outra obra, bastante semelhante para os estudantes das
escolas primárias2, pelo menos até a edição de 1922, pois a Escola pública republicana

1
Utilizo o conceito de senso histórico na acepção dada a ele por Hans-George Gadamer, qual seja, a
disponibilidade e o talento do historiador para a compreensão do passado, partindo do próprio contexto no
qual ele emerge. Nesse sentido, ter senso histórico significa superar de maneira conseqüente a
ingenuidade natural que nos leva a julgar o passado pelas medidas supostamente evidentes de nossa vida
atual, ou de maneira expressa, as instituições, valores e verdades adquiridos. Assim, ter senso histórico
significa pensar expressamente o horizonte histórico coextensivo à vida que vivemos. O Problema da
consciência histórica. 2.ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003.
2
De acordo com Selma Rinaldi de Mattos, as Lições de História do Brasil para uso dos alunos do
Imperial Colégio de Pedro II (ICPII) representou um desafio enfrentado e vencido por Joaquim Manuel
de Macedo no ano de 1861, qual seja, o de atender aos objetivos do Instituto Histórico e Geográfico
287

iria ainda durante muitos anos, utilizar-se do manual de Macedo, e por tabela, da versão
de Varnhagen para a História do Brasil. Referindo-se a esses manuais de Joaquim
Manuel de Macedo, José Honório Rodrigues declarou certa vez que teriam feito um mal
tremendo para a consciência histórica dos brasileiros3. Havia então, muito a ser tratado
pelos homens que se dedicavam às letras históricas naqueles anos iniciais do século XX.
Cabe ainda acrescer que nesse ano de 1900 vinha a lume um outro compêndio da lavra
de João Ribeiro, professor do Ginásio Nacional, a nova denominação dada pelos
republicanos para o Imperial Colégio de Pedro II. Cabe dizer que a existência da
História do Brasil de João Ribeiro não foi de início suficiente para destronar as lições

Brasileiro (a escrita da História) e do Colégio Pedro II (a difusão da História), as duas instituições às


quais vinculava a sua vida na qualidade de estudioso da história pátria, atividades cuja similitude
podemos localizar na fixação de uma memória. Macedo conseguira elaborar um manual de história
pátria, aliando-se dessa forma ao empenho dos dirigentes imperiais, sob a finalidade de associar o Estado
Imperial que então era construído e consolidado às instituições como o IHGB e o ICPII. Segundo Mattos,
“O esforço e o empenho de Macedo revelavam como, em seu desejo de ordenar e civilizar, os dirigentes
imperiais serviam-se dos instrumentos proporcionados pelas Nações Civilizadas e por seu tempo – o
século XIX europeu, século da História, dos historiadores e da escola pública.” Ainda de acordo com
essa autora, a 26 de novembro de 1860, o Conselho de Instrução Pública aprovava o compêndio de
História do Brasil de Macedo ( que abrangia das ‘Considerações Preliminares’ até a ‘Divisão do Brasil
em dois governos, subseqüente reunião em um só. Domínio espanhol’) , o que deve ter servido de
incentivo ao autor para dar continuidade às publicações certamente já previstas, de um segundo volume
das Lições, destinado aos alunos do sétimo ano (com conteúdo que ia do ‘Domínio da Espanha:
considerações gerais. Estado em que se achava o Brasil em 1581’ até a ‘Aclamação e coroação do
primeiro imperador do Brasil. Guerra da Independência’. Nessa mesma época, publicaria Macedo em
volume único, as ‘Lições de História do Brasil para uso das escolas de Instrução Primária’. Observa
Selma Rinaldi que em 1865, esse manual já havia alcançado a sua segunda edição. Após e morte de
Macedo, e já durante a República, Olavo Bilac e Rocha Pombo, sucessivamente, ficariam encarregados
pelo editor das Lições da sua atualização periódica. O compêndio seria completado, porém o plano da
obra seria respeitado, conforme Olavo Bilac observava na nona edição, de 1905. MATTOS, Selma
Rinaldi de. O Brasil em Lições: a história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de Macedo.Rio de
Janeiro: Access, 2000.
3
Na avaliação de Rodrigues (1988), foi como professor do Colégio Pedro II, um colégio modelo no
Brasil, que a influência de Joaquim Manuel de Macedo tornou-se perdurável no campo da História, pois
ele formou as gerações da segunda metade do século passado, lhes dando a concepção conservadora,
oficial, da história do Brasil. Assim, ao dominar o ensino secundário e primário na capital do Império –
tendo sido professor também das princesas D. Isabel e D. Leopoldina – “a autoridade didática de Macedo
tornou-se indiscutível, e ele pode formar e fortalecer nas classes altas e médias o sentido conservador da
nossa formação histórica”. O diagnóstico de José Honório Rodrigues é um pouco mais sombrio daquele
formulado por Selma Rinaldi de Mattos. Assim escreveu Rodrigues, “Um quadro oficial, predominando a
matéria sobre o governo e a administração, com sete capítulos sobre a guerra com os holandeses, as
guerras no Sul, os reinados de D. João V, D. José I e a vinda da família real para o Brasil, as Lições
contém apenas um capítulo sobre a Conjuração Mineira, nada sobre as outras, que Macedo desconhece
ou oculta, um capítulo sobre 1817, a revolução portuguesa de 1820, a regência de D. Pedro, três
capítulos do Fico a 1824. Não há uma palavra sobre as Bandeiras, nem sobre o povo, as condições
sociais, a estrutura econômica, produção exportação, uma pobreza total do ponto de vista social e
econômico, ao lado da política oficial dominante e vencedora.” A ligação do texto didático do professor
do Imperial Colégio de Pedro II com a História Geral do Brasil fica realçada, pois, “...baseado em
Varnhagen [Macedo] construiu um mundo histórico árido, seco, desprovido de interesse, sem lugar para
o povo, sem sociedade e economia, no qual predominam as instituições oficiais e as guerras. As guerras
são as exteriores, porque a matança de índios, a submissão negra, o domínio sobre os lavradores e
colonos, nada disso aparece, pois predomina o sentimento de que tudo que ocorreu foi certo, não
havendo o que contar ou censurar, a não ser a insubmissão dos povos aos excessos, arbítrios e tributos
dos governos.” História da História do Brasil: a historiografia conservadora. V.II, t.1.,p.29-30.
288

preparadas por Macedo, porém expressavam uma nova forma de entendimento para a
formação do Brasil. O contexto que envolve essas questões foi permeado por uma
disputa travada no seio dos meios belletristas daquela época e necessário se faz repassar
alguns aspectos que julgamos significativos para identificar os contornos do discurso
sobre os tempos pretéritos conforme era então realizado.

Uma primeira questão poderia ser colocada sobre uma efeméride, que visava
abarcar a noção de centenário, tendo sido realizada no intuito de passar em revista o
caminho percorrido pela ‘nação’ brasileira desde a chegada dos colonizadores
portugueses. Ora, um desses resumos dos quatro séculos veio a surgir no ano de 1901,
tendo sido produzido pela pena de Max Fleiuss, o autorizado primeiro secretário do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Outra versão para a história brasileira fora
estampada ainda em 1893, por Rodrigo Octávio Langaard de Meneses, a qual apresenta,
como veremos, uma perspectiva bastante diversa do texto de Fleiuss4.

Em um segundo momento, a procura por novos caminhos, fosse no aspecto


temático ou metodológico, não poderia prescindir – conforme observou o diplomata
Manuel de Oliveira Lima – dos congressos de história, esses encontros entre
historiadores que pretendiam propiciar a divulgação de novos trabalhos, além de
marcar, corrigir e redimensionar posições.

Conforme lembra José Murilo de Carvalho, uma das primeiras ações do novo
regime republicano instaurado a 15.11.1889 foi a construção dos seus heróis. De acordo
com o autor, os heróis devem ter a cara da Nação e refletir o comportamento que
corresponda a um modelo coletivamente valorizado na sociedade, além de responder a
alguma aspiração coletiva, pois se isso não ocorre, o esforço de mitificação das figuras
políticas candidatas a herói torna-se em vão, o que leva com que candidatos a herói
venham a ser ignorados ou ainda, ridicularizados. Esses heróis, ou ainda, candidatos a
herói, seriam portanto “instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos
cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos”, pois conforme afiançou esse

4
Tendo Max Fleiuss e Rodrigo Octávio se utilizado de alguns autores em comum, torna-se bastante
defensável ao nosso ver, alguns pressupostos defendidos por Maria de Lourdes Mônaco Janotti. Para essa
historiadora, as condições históricas sob as quais a obra historiográfica foi produzida, passa a ser tão
importante quanto as citações – ou diríamos ainda – os autores dos quais essa se apropria. O diálogo
convergente: políticos e historiadores no início da República. In: FREITAS, Marcos Cezar (Org.).
Historiografia brasileira em perspectiva. 6.ed. São Paulo: Contexto, 2007, p. 119-143.
289

autor, “não há regime que não promova o culto de seus heróis e não possua seu
panteão cívico”.5

Observa ainda José Murilo de Carvalho que a construção de um panteão cívico


requer um esforço tanto maior quanto menor é a forma de envolvimento real do povo na
implantação de um novo regime, situação que leva a uma maior compensação
simbólica, pois a criação de símbolos não ocorre no vazio social, não sendo também
arbitrária. Por nosso turno, observamos que passados os primeiros embates ocorridos
entre os republicanos mais radicais e os áulicos defensores da monarquia, passou a
haver certa convergência de interesses a partir da qual os novos “donos do poder”,
lograram compatibilizar os dados disponíveis de um passado histórico já remoto, com a
premente necessidade de fortalecimento de uma identidade regional, como foi o caso de
alguns dos Estados mais poderosos. Partindo dessas premissas, passamos a acompanhar
o desenvolvimento de duas concepções diversas acerca da história do Brasil.

Uma delas fora produzida no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico


Brasileiro, e se constituía em uma visão que integrava a Colônia à fase monárquica,
sendo amistosa, senão grata pelos esforços do Estado português, ao enaltecer seus
progressos em terras americanas. A outra versão para a história do Brasil alinhava-se
com as iniciativas dos primeiros governos republicanos nas suas tentativas de
estabelecer “um novo universo simbólico capaz de conferir legitimidade à nova nação
republicana”6. O Governo Provisório da República instituíra, logo em seus primeiros
atos, o decreto nº 155 B, de 14 de Janeiro de 1890, elevando algumas datas como dias
de festa nacional. O escritor Rodrigo Octávio Langaard de Menezes tomou por base
esse decreto republicano e reorganizou as datas comemorativas, criando com isso um
pequeno manual que tratando da História brasileira, logo veio a ser indicado em parecer
do Conselho Superior de Instrução Pública do Distrito Federal para uso nas escolas
primárias7. Corroborando nossa hipótese sobre um novo arranjo no campo da
historiografia que estava para ser desenhado entre monarquistas e republicanos, Festas

5
A formação das almas, p. 55.
6
Conforme apontou Lucia Lippi, as revoluções lidam pari passu com a organização de uma nova vida
social e política e a construção de um imaginário que se apresente como capaz de recuperar o equilíbrio
perdido. Assim, um momento novo carece da evocação de um tempo remoto. A memória nacional passa
então a ser (re)construída por historiadores, ideólogos, doutrinadores e educadores. Para essa finalidade,
organizam-se as comemorações, definem-se os heróis que devem ser evocados. As festas que a República
manda guardar. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.2,n.4, p.172-189, 1989.
7
A certidão do Conselho Superior de Instrução Pública do Distrito Federal é datada de 13 de setembro de
1894, ou seja, referente à primeira edição de Festas Nacionaes, que é de 1893.
290

Nacionaes não mais trazia em sua sexta edição – que veio a lume em 1912 – a famosa
‘Carta ao autor das Festas Naciones’, da lavra do não menos famoso Raul Pompéia,
figura importante dos primeiros anos do novo regime, e ideólogo considerado como um
elo entre os intelectuais do florianismo e os jacobinos ativistas8. Nas felizes palavras de
François Furet, ao final do século XIX, a história havia se tornado então uma “matéria
ensinável de pleno direito é inseparavelmente um método científico, uma concepção da
evolução e ainda a eleição de um campo de estudos ao mesmo tempo cronológico e
espacial.”9 Explica Furet que Lavisse e Seignobos retomaram naquela oportunidade os
dois temas da história filosófica desde o século XVIII, onde “a história é a nação; a
história é a civilização.”10

Tratemos então das significativas empreitadas que representaram os textos de


Max Fleiuss e de Rodrigo Octávio. Conforme vimos anteriormente, Fleiuss era um
entusiasmado leitor de Seignobos, ao passo que Rodrigo Octávio não tece referências
aos mestres da historiografia francesa, embora ao longo do seu livro demonstre alguma
intimidade em relação às então recentes contribuições historiográficas de Capistrano de
Abreu e Oliveira Martins, bem como o conhecimento de alguns destacados cronistas
coloniais, como Sebastião da Rocha Pitta e Frei Vicente do Salvador.

Fleiuss preparara o artigo ‘Centenários do Brazil’ sob a alegação de marcar o


início do novo século, e tinha o intuito de passar em revista os quatro centenários da
integração brasileira à civilização européia, ou seja, tomando como ponto de partida o
início da colonização portuguesa, que como poderemos ver, era uma proposta bem
assentada sobre a ótica de Varnhagen. O século XIX acabava de ser encerrado, e o autor
talvez esboçasse ainda uma resposta às acusações acerca do tal ‘deserto do
esquecimento’ que Joaquim Nabuco levantara poucos anos antes, conforme vimos no
seu discurso de posse no IHGB (1896), no que era reclamado o reconhecimento das
contribuições positivas do Segundo Reinado. Contudo, cabe lembrar que tratar de
eventos próximos ao tempo de vida do historiador feria os critérios metodológicos da

8
Sobre a atuação de Raul Pompéia e dos jacobinos ver: QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Os radicais da
República: jacobinismo, ideologia e ação (1893-1897). São Paulo: Brasiliense, 1986; PENNA, Lincoln de
Abreu. O florianismo e a construção da República. Rio de Janeiro:Sette Letras,1997 ; e, COSTA, Antonio
Carlos Figueiredo. Manifestações do jacobinismo popular em Minas Gerais (1893-1899). São Paulo:
Baraúna, 2010.
9
A oficina da história, p. 132-133.
10
Ibidem, p. 133.
291

análise histórica rankeana, bastante presente no âmbito do Instituto, qual seja, o da


perspectiva do tempo.

Por sua vez, em seu ‘Festas Nacionaes’, Rodrigo Octávio intentava tratar da
educação cívica do cidadão de uma república recén-fundada. Entre outros propósitos,
esse pequeno livro buscava articular o cumprimento do decreto n.155 B, de 14 de
janeiro de 1890, do governo provisório – que instituíra os dias de festa nacional – a uma
interpretação pragmática da história, sob viés republicano, para que fosse utilizado nas
escolas primárias, e com isso, enfatizado o patriotismo. O livro é perspassado por uma
luta infinda entre dois grupos que o autor denomina por ‘partido da emancipação’ e
‘partido da colônia’. Na perspectiva veiculada pelo autor de Festas Nacionaes, a
República fora sempre uma aspiração nacional, porém sistematicamente sufocada pelo
grupo representado no ‘partido da colônia’11.

No ensaio ‘Centenários do Brazil’, Max Fleiuss procurou ater-se criteriosamente


à cronologia, e para tratar do século XVI brasileiro recorreu aos ensaios de Fernão
Cardim, o jesuíta autor do ‘Tratados da Terra e gente do Brasil’, obra que conforme
lembrava, fora editada graças ao “zelo benemérito do maior historiador
nacional”[Francisco Adolfo de Varnhagen], que a fizera aparecer em volume impresso
em Lisboa, no ano de 1847. Também importante para os seus argumentos foi o Tratado
descritivo do Brazil em 1587, de autoria de Gabriel Soares de Souza, senhor de engenho
e ‘homem bom’ na Bahia. A propósito, o ‘Tratado descritivo do Brazil’ fora publicado
no tomo XIV da Revista do Instituto Histórico, após passar pelo ‘olhar crítico’ de
Varnhagen. Para os séculos/centenários seguintes, figuram nomes como Robert Southey
– então ainda muito utilizado – bem como o historiador português Oliveira Martins, do
qual Fleiuss quase sempre discorda e veementemente critica. Papel à parte nas censuras
lançadas pelo autor são ocupados por Felisbelo Freire e Raul Pompéia, o qual conforme

11
Em sua famosa ‘Carta ao autor das Festas Nacionaes’, Raul Pompéia assim se expressava: “Dá-se
uma cousa extranha com estas Festas Nacionaes. Despertada pelo titulo, vae-se-nos a imaginação
figurando perspectivas ridentes de tropheus e coroas. Festas nacionaes...Sonha-se uma jornada de
triumphos, descripta n’um hymno ovante. Espera-se a historia da consolidação cada vez mais firme de
uma nacionalidade. O volver das paginas vem-nos apear destas phantasias. Não resplende jamais nesses
capítulos a luz ampla de uma conquista definitiva: vacilla a indecisão de um difficil crepúsculo. O
compendio dos nossos suppostos regosijos patrióticos não nos traz a exposição de uma serie de alcances
conseguidos. Vamos ao contrario por uma escala de derrotas. O quadro histórico é constantemente a
cruel affirmação da pátria vencida. A alma nacional segue soffrendo dia a dia, o supplicio de todas as
dores. Sentem-se as ladeiras pedregosas do Calvario, no itinerário dos seus destinos...A proposito de
jubilos, como que nos diz que somos uma nação – proibida de ter jubilos...” Carta ao autor das Festas
Nacionaes. Rio de Janeiro: G.Leuzinger&Filhos, 1893, p.7-8.
292

vimos, possuía uma íntima vinculação com as ‘Festas Nacionaes’ de Rodrigo Octávio
para o qual escrevera um prefácio radicalmente repúblicano. Se o Brasil quinhentista
aparece a Fleiuss como uma terra de franca prosperidade, saltando as vistas a Bahia,
Pernambuco e o Rio de Janeiro12, para Rodrigo Octávio teria ocorrido nesse primeiro
século de colonização um total abandono, não havendo da parte da metrópole uma
orientação sistemática de governo que presidisse o desenvolvimento seguro 13. E para
fundamentar suas conclusões sobre o espírito devastador dos primeiros colonizadores,
Rodrigo Octávio se utilizava do sóbrio Frei Vicente do Salvador, o mais remoto dos
historiadores coloniais, cuja obra havia sido publicada em 1887, por Capistrano de
Abreu.

O século seguinte afigura-se para o autor de ‘Centenários do Brazil’, pela


invasão dos sertões, o qual já não mais possuía “o caracter humanitario da civilisação,
predominou a cobiça: o desejo de descobrir as minas e as pedras preciosas constituia o
14
móvel verdadeiro das bandeiras.” . O século XVII se apresentava então para Max
Fleiuss como o século das bandeiras, do devassamento do interior, sendo a característica
principal dos anos desse segundo centenário, o desejo ardente da descoberta das
minas.Como observa Fleiuss,

“as próprias bandeiras organisadas em 1696 e que tomaram o rumo de


Matto Grosso não tinham só em vista a busca de trabalhadores selvagens
que substituíssem os negros da Africa; movia-lhes também o interesse das

12
“O assucar constituía o gênero de maior productividade do Brazil naquella época, havendo ao todo
mais de cem engenhos, o que equivalia a saliente progresso, por isso que cada engenho exprimia uma
povoação mais ou menos numerosa. Cerca de setecentos mil quintaes de assucar eram o resultado dessas
fabricas; o consumo dos gêneros provindos de Portugal excedia a 400.000 cruzados, sendo geraes as
fortunas em Pernambuco, Bahia e no Rio. Quanto á parte relativa á instrucção publica, sentia-se a
benéfica supremacia dos jesuítas, que possuíam colégios nas três capitanias acima referidas. Tal em
linhas geraes e pefunctorias, por certo, o estado de nossa Patria em seu primeiro centenário. A Europa
acabava de assistir á execução capital da filha de Jacques V, determinada por Elisabeth, e esse
espectaculo junto ao da literária que se salientava-no velho continente com Cervantes, Lope de Veja,
Camões, Shakspeare, Pope, Swift, etc. coincidia com os lineamentos embora indecisos da pátria
brazileira que começava a surgir. Já haviam produzido salutares effeitos as missões de Anchieta,
Nobrega, Antonio Pires e outros que com a cruz de Christo levaram ao interior das nossas selvas as
primeiras palavras da civilisação e as primeiras palavras de fé!”, Centenários do Brazil, p. 100.
13
“...foi unicamente para não perder o domínio decurrente do facto casual da descoberta, que, nesses
tempos, era, como fonte de direitos, equiparado á occupação, que, com interesse secundário e sem um
plano regular de colonisação, se pensou no povoamento das novas terras. Foi adoptado o systema feudal
de grandes doações territoriaes...(...)...Os primeiros povoadores, porém, traziam no espírito sómente o
desejo de accumulo rápido e fácil de thesouros, pouco se importando com o beneficio e progresso das
terras que lhes haviam sido doadas....(...)...Tribus foram exterminadas; outras internaram-se,
abandonando no littoral as tabas despovoadas; aquelles indígenas que se submetteram pelo terror, foram
reduzidos ao captiveiro. Começou então mais tranquillamente o saque e a exploração devastadora das
riquezas naturaes das índias de Cabral.” Festas Nacionaes, p. 38-39.
14
Centenários do Brazil, p. 101.
293

minas, agitava-lhes o espírito o brilho seductor do ouro e por elle tudo


arriscavam, nesses lances de temeridade que só a insânia justifica”15.

Na opinião de Rodrigo Octávio, os bandeirantes haviam avançado sobre uma


farsa que fora organizada pelos jesuítas e que tomava a forma de missões. O homens da
Companhia de Jesus haviam criado repúblicas de índios, as quais governavam como
ditadores absolutos. Para o autor de Festas Nacionaes, esta absorção do trabalho
indígena pelos jesuítas excitou “a cobiça dos colonos, e começaram as correrias feitas
ás Missões pelos bandeirantes paulistas, os assaltos ás plantações e feitorias jesuiticas,
cujos trabalhadores eram levados como escravos.”16

Aparentemente a avaliação de Fleiuss guarda semelhanças com aquela


formulada por Rodrigo Octávio. Contudo ela acaba se revelando bastante diversa, pois
ele somente se posiciona contrário às ações da Companhia de Jesus no século XVIII,
quando os jesuítas entraram em rota de colisão com os interesses do Estado português.
Assim, ele declara que os padres jesuítas se socorriam dos índios para manifestar seus
desígnios subversivos, motivo pelo qual Pombal os expulsou do Brasil e das demais
possessões portuguesas, pela lei de setembro de 1759. Teria havido dos atos do todo
poderoso ministro de D. José I, nas suas ações contrárias aos jesuítas prejuízos ao
Brasil? Max Fleiuss utilizava-se de Varnhagen, para quem a presença dos jesuítas teria
trazido para o Brasil, três proveitos: 1. Conversão dos índios; 2. Educação da mocidade;
e, 3. Construção de alguns edifícios públicos, os quais passaram a ser propriedade do
Estado. Nesse sentido, em contrapartida, a influência de Pombal quanto aos negócios do
Brasil havia se dado de forma salutar, fosse no terreno material, fosse no campo das
letras.

Rodrigo Octávio, por seu turno, faz com que São Paulo apareça no século XVII,
como uma “prospera republica independente”, e para ele, esse núcleo populacional do
planalto bem poderia encarnar o seu ‘partido da emancipação’ haja vista o fato ocorrido
com Amador Bueno da Ribeira, após a queda da dominação espanhola, o qual recusou
“obstinadamente o throno e a majestade que a revolução paulista lhe havia conferido
em acclamação delirante” 17.

15
Ibidem, p. 105.
16
Festas Nacionaes, p. 82.
17
Ibidem, p. 61.
294

O terceiro centenário brasileiro aparece desenhado por Max Fleiuss como um


pontilhado de contínuas lutas: a guerra dos mascates, entre os fazendeiros brasileiros de
Olinda e os negociantes portugueses, a guerra dos emboabas, entre paulistas e
“portugueses”, as lutas com os espanhóis, motivadas pela Colônia do Sacramento, as
arremetidas contra o Rio de Janeiro, de Duclerc – rechaçada – e de Duguay Trouin,
exitosa. Por seu turno, para Rodrigo Octávio teria ocorrido logo no início do século
XVIII, “o início da formação do espírito brasileiro.” Para o autor de “Festas
Nacionaes”,

“As grandes guerras, a dominação hollandeza, o trabalho subterrâneo dos


jesuítas, que armavam o brasileiro contra o portuguez, foram formando nas
camadas sociaes um certo espírito de nativismo, a que dava incremento o
enorme vulto que ia tomando a exportação das riquezas brasileiras para a
metrópole que, em pagamento, tão pouco cuidado dispensava á nova
terra.”18

Ao norte da América, os colonos ingleses haviam experimentado também a


crise, tendo saída dela com a independência. A repercussão do movimento ocorrido na
América do Norte e a convulsão européia teriam encontrado repercussão no Brasil, “e,
assim foi que se originou em Minas, que tão mal interpretada tem sido, exalçando-se o
mérito diminuto de uns, com manifesto prejuízo dos que verdadeiramente se
empenharam nessa tentativa de separação.”19

Fleiuss se utilizava então de uma longa citação do historiador português Oliveira


Martins,

“Menos feliz ao sul do que no norte, onde poderam vingar os limites


deixados pelo tratado de Utrecht, o Brazil, entretanto, apresentava no fim do
XVIII século os elementos constitucionaes de uma nação; e as idéas de
autonomia e liberdade começavam a amadurecer como fructos naturaes de
uma árvore chegada ao período de fecundidade. Do centro ou coração do
paiz sahira um grito de independência, breve afogado em sangue: os acasos
da política européa atiraram com D. João VI e com os restos podres da
nação portugueza para a America e logo soou por toda a costa do Pacifico a
acclamação da independência nas colônias da Hespanha. Tudo se conjurava
para a definição de uma autonomia já effectiva, já real nos factos. Desde que
Portugal na Europa vivia à custa de um Brazil, não índio mas europeu, força
era que as condições políticas se invertessem: traduzindo de facto a
realidade: Portugal era, a colônia, o Brazil a metrópole. Foi isto que a
translação dos penates bragantinos para a America veio demonstrar.
Fortuito, sob o ponto de vista do systema da historia brazileira, o caso da
fugida de D. João VI para o Brazil, teve o merecimento de pôr em evidencia
e de sanccionar politicamente o facto de ordem social anterior; o Brazil era

18
Festas Nacionaes, p. 42.
19
Centenários do Brazil, p. 107.
295

já uma nação e não foi D. João VI que lhe levou a carta da


independência.”20

Para logo após dele discordar, pois na sua opinião,

“Ao finalisar o século XVIII o Brazil aspirava é certo, por sua


independência, mas não era licito negar o árduo trabalho de Pombal, que
como se sabe, transferira a capital do Brazil para o Rio de Janeiro,
elevando-o á categoria de vice-reinado por Carta-Regia, datada de 27 de
janeiro de 1763, fazendo volver ao domínio exclusivo da corôa as capitanias
em poder dos sucessores dos donatários primitivos, serviço este cuja
relevancia não é preciso encarecer, e que corrobora a necessidade de ser
homogênea a administração, entregue a um só centro director, muito embora
com delegados investidos de amplas attribuições.” 21

Dessa forma então, o terceiro centenário do Brasil terminava por anunciar,


conforme Fleiuss, a instituição de uma nova nacionalidade, em futuro não remoto.
Porém, na opinião de Rodrigo Octávio, após a saída do,

“austero Marquez [de Pombal], cujo governo seria sómente digno de


louvores, se não fossem os rios de sangue que fez correr, pensando nelles
afogar a devassidão e o jesuitismo, com D. Maria I enthronou-se a reacção
clerical e as vexações para a colônia recrudesceram. Mas o impulso estava
dado, e a colônia desenvolvia-se. Contra esse desenvolvimento vieram as leis
tyrannicas, as instituições oppressoras, para matar na raiz os primeiros
elementos de seiva e de expansão. Apezar da completa falta de cultura em
que a metrópole deixava mergulhada a colônia, cujos filhos tanto valor
haviam denotado no campo de batalha, enxotando do território pátrio
ousados invasores, as manufacturas progrediam, academias de letras se
fundavam, mantinha-se uma typographia. Mas a ‘Mãe-patria’ não via com
bons olhos esse salutar desenvolvimento. Foi prohibida a manufactura do
ouro e prata, as academias foram dissolvidas, a imprensa se mandou
fechar.”22

Acerca do quarto centenário do Brasil poderíamos dizer que se tornava uma fala
estratégica para Max Fleiuss, por avaliar personagens que abrangiam o Segundo
Reinado. O quarto centenário colocava em destaque alguns atores históricos que de
acordo com o 1º Secretário do IHGB, nem sempre foram bem avaliados pelos
historiadores. Um desses seria D. João VI. Novamente Oliveira Martins é criticado por

20
Ibidem, p. 107. Ora, essa versão oferecida pelo historiador português vem ao gosto do autor de Festas
Nacionaes, para quem, “Foi na alma dos moços brasileiros que cursavam as Universidades de Coimbra e
de Montpellier, que primeiro irrompeu nitidamente a idéa d’essa emancipação. Um desses rapazes, o
mais destemido d’elles, José Joaquim da Maia, entreteve com o glorioso Jefferson, então embaixador da
União Americana na corte de Luiz XIV (sic!), negociações para obter da recente e já poderosa republica,
auxilio e protecção para a patriótica tentativa. D’esse punhado de estudantes, Domingos Vidal Barbosa
conseguiu chegar a Minas, onde sabia que já lavrava o fermento revolucionario; sua chegada combinou
com a de outro illustre moço que na Inglaterra havia conquistado o então raro diploma de doutor em
sciencias naturaes, José Alves Maciel. Com elles logo se entendeu o alferes de cavallaria, Joaquim José
da Silva Xavier – o Tiradentes – que pela altivez e independência de caracter, era incarnação da Idea
revolucionaria.” P. 48-49.
21
Centenarios do Brazil, p. 107-108.
22
Festas Nacionaes, p. 46-47. (grifo do autor).
296

Fleiuss, pois teria tratado com leviandade as ações do príncipe regente, o futuro D. João
VI. Contudo a abertura dos portos ao comércio de todas as nações amigas, o livre
exercício de qualquer indústria, a criação no Brasil, de tribunais supremos, a fundação
de uma imprensa, de um banco e de escolas superiores serviam como demonstração
cabal do valor desse Príncipe, que havia proporcionado ares de civilização ao Brasil.

Para Max Fleiuss, a figura grotesca com que tentavam pintar a fisionomia de D.
João VI – aclamado rei pelo falecimento de sua mãe, em 1816 – não encontrava
materialização comprovada nos fatos; ele conseguira incontestavelmente prover com
homogeneidade sua administração, firmando os princípios do governo central, dando
provas cabais de sua capacidade e provendo no limite das possibilidades da época,
“todos os serviços e idéas que se ligavam á civilisação e ao engrandecimento da nossa
pátria.”23 Fleiuss não mantinha sérias dúvidas acerca dos serviços prestados por esse
príncipe , assim para ele, o concurso de D. João VI “na fundação de nossa
nacionalidade, foi eminente.”24

Opinião diversa propagaria Rodrigo Octávio, pois de acordo com ele, a fundação
do Império fora um erro e um engodo aos reais interesses nacionais, pois proclamou-se
a um príncipe ambicioso como defensor perpétuo do Brasil, preparando-se com isso,

“os acontecimentos do dia 7 de Setembro, que não foram uma revolução,


mas uma tangente, que não fizeram mais que aggravar a situação brasileira,
prolongando a dominação portugueza e preparando para a nação o advento
de um regimen que se intercalou anachronicamente no desenvolvimento
racional da nossa emancipação política e social.”25

Por sua vez, Max Fleiuss remetia ao que considerava como importantes
realizações no curto reinado de Pedro I, como a criação do Conselho de Estado, a
instituição do Supremo Tribunal de Justiça, o regulamento da Administração Geral dos
Correios, a fundação de dois cursos de Ciências Jurídicas e Sociais, sendo um em S.
Paulo e outro em Olinda, o estabelecimento de escolas de primeiras letras nas cidades,
vilas e lugares mais populosos do Império, a criação de um observatório astronômico,
além de uma convenção com a Inglaterra para a abolição do tráfico de escravos. Os dez
gabinetes formados durante o primeiro reinado contaram com nomes como José
Bonifácio, Martim Francisco, Felisberto Brant, Pedro de Araújo Lima e José Clemente

23
Centenários do Brazil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro. T. LXIV,
parte II, 3. Trim.- 4 . Trim, 1901, p. 119.
24
Ibidem, p. 119.
25
Festas Nacionaes, p. 106-107.
297

Pereira, a orientar o que teria sido, na opinião do autor, “...os justos desejos do
soberano”26. Por seu turno, não teriam sido infrutíferas as administrações regenciais,
porém dever-se-ia creditar à maioridade de Pedro II haver poupado “o Brazil de uma
luta em que, talvez, tivesse succumbido, não só a integridade do nosso território, mas,
também a nossa autonomia, exposto como ficava o paiz ás incertezas de uma política
tumultuaria”27.

Realizado o balanço de meio século da administração do segundo reinado,


Fleiuss entendia ter sido esse longo período coroado de êxito, pois,

“reprimio o caudilhismo no Brazil e no Prata, garantio 40 annos de paz


interna, suffocou cinco revoluções, em S. Paulo, Minas, Maranhão, Rio
Grande do Sul e Pernambuco, sustentou três gloriosas guerras externas,
destruindo três tyrannias, - a de Rosas, a de Aguirre e a de Lopez; assegurou
a independência do Uruguay e do Paraguay; contribuiu decisivamente para
a libertação de dois milhões de escravos. A’ Victoria sobre as revoluções
seguiu-se sempre ampla e generosa amnistia. Na guerra contra Rosas,
triumphou o Brazil, onde a França e a Inglaterra haviam naufragado. Nunca
aproveitou suas vantagens para opprimir visinhos mais fracos. O Imperador
era alliado de todos os espíritos liberaes do Prata. Nada impoz ao Paraguay,
depois de tel-o vencido com ingente sacrifício. Organisou alli o governo
republicano que, sob o despotismo de Francia, Lopez I e Lopez II era até
então desconhecido dos paraguayos, e determinou-lhes a abolição do
captiveiro. Tres vezes sérvio de arbitro em questões internacionaes de
grande monta entre poderosas nacionalidades. Defendeu com extrema
energia, a dignidade do Brazil contra nações fortes, como a Inglaterra,
vendo-se esta obrigada a nos dar satisfação cabal.”28.

Contudo, para Fleiuss, o lado humano e as relações pessoais do Imperador,


também eram dignas de nota, pois,

“... membro do Instituto de França e de todas as grandes sociedades


scientificas e literárias do mundo, protector das sciencias, das letras e das
artes, auxiliou Pedro Americo, Victor Meirelles, Carlos Gomes, Almeida
Junior, Varnhagen, Gonçalves Dias, Macedo, Porto Alegre, Magalhães, cuja
Confederação dos Tamoyos foi luxuosamente editada, à custa delle. Quantos
estudantes pobres educou, quantos artistas favoreceu!”29

Porém, como seria de se esperar, uma avaliação bem diversa do Segundo Reinado
faria o autor de Festas Nacionaes, para quem, nesse período, havia começado,

“a profunda degenerescencia do espírito cívico, o abastardamento do


caracter nacional. Viu-se a corrupção ser o único meio de governo.
Timandro, o independente auctor do Libello do povo, transformou-se em
visconde de Inhomirim, submisso ministro; signatários do manifesto glorioso

26
Ibidem, p. 123.
27
Ibidem, p. 124.
28
Centenários do Brazil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro. T. LXIV,
parte II, 3. Trim.- 4 . Trim, 1901, p. 126-127.
29
Ibidem, p.128.
298

de 3 de Dezembro, despiram a blusa para se abotoarem nas fardas de


ministro e senador, e, d’esse modo, desmoralisando as tentativas
revolucionarias, com lhes não oppôr embargos e indo depois ao encontro
dos agitadores, com o sorriso nos lábios e um decreto qualquer assignado,
escoou-se esse reinado innocuo durante quarenta annos que foram
«quarenta annos de mentiras, de perfídias, de prepotência, de usurpação», e
nos quaes só foi governo a vontade de um «príncipe conspirador, de um
Cesar caricato.»”30

Ora, conforme podemos perceber através do longo – porém necessário –


cotejamento entre o ensaio Centenários do Brazil e o opúsculo Festas Nacionaes é que
por volta do início do Século XX, ou melhor dizendo, ainda pelos idos de 1912,
circulavam duas versões divergentes, mas bastante autorizadas quanto ao sentido da
história do Brasil. Fica também bastante visível que, não obstante a fria acolhida da
História Geral do Brasil no âmbito do IHGB, por ocasião do seu lançamento, a
influência de Varnhagen se fazia sentir em um crescente naquele ambiente acadêmico, o
que possibilitara a que as Lições de História do Brasil, de Joaquim Manuel de Macedo31
continuasse a ser adotada e atualizada sucessivamente por Olavo Bilac e Rocha Pombo,
com edições pelo que sabemos até 1922, sendo que suas indicações para uso nas
Escolas públicas continuava em vigor. Contudo, conforme demonstramos, a versão
propagada por Rodrigo Octávio também recebia entusiástica indicação da parte da
mesma instituição – o Conselho Superior de Instrução Pública – para uso nas escolas
primárias. O que Fleiuss e Rodrigo Octávio tentaram fazer foi um esboço da marcha da
civilização brasileira, e caso tomemos a sério as lições de François Furet 32 sobre a
História ao estilo de Lavisse e Seignobos, podemos achar na economia interna das
figuras que eles desenham em ‘Centenários do Brazil’ e ‘Festas Nacionaes’, a
civilização – na qualidade de profecia científica então reinante ao final do século – bem
como o principal agente histórico para realizar essa travessia, qual seja, a nação.

A disputa pelo discurso dos tempos pretéritos era então algo bastante vivo, porém
com limites de tempo para ser decidida a partir de um local específico, conforme
veremos. A história, enquanto pedagogia do cidadão, contribuía para a formação da
consciência histórica desse cidadão desde os primeiros anos do Império. Assim,
30
Festas Nacionaes, p. 119-120.
31
Selma Rinaldi de Mattos reproduziu um extenso prefácio de Macedo, para o seu manual de História do
Brasil, na edição de 1861: “...A tarefa de que nos encarregamos difícil e espinhosa em muitos sentidos
mostrou-se-nos entretanto menos rude; porque não hesitamos em pôr em abundante tributo a nosso favor
algumas obras antigas e modernas sobre a História da Pátria, e mais que muito a História Geral do
Brasil do senhor Varnhagen, que especialmente em verificação de fatos e datas é a melhor de quantas até
hoje temos estudado.” O Brasil em lições: a história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de
Macedo. Rio de Janeiro: Access, 2000, p. 83.
32
A oficina da história, p. 133.
299

podemos dizer que diferentes grupos da sociedade constroem suas memórias coletivas, a
partir das quais – pelo trabalho de especialistas como os historiadores, os ideólogos, os
publicistas e educadores, entre outros – passa a ser montada uma memória nacional
dominante33. Ora, sob o Império, chegou-se através de Varnhagen, à História Geral do
Brasil, ou seja, a uma “primeira construção ideológica abrangente com a idealização
do Império brasileiro como fórmula política da integração nacional”34, obra na qual as
Lições de História do Brasil, de Joaquim Manuel de Macedo veio a se nutrir, para
educar a chamada ‘boa sociedade’.

Como era constituída essa boa sociedade? Responde Selma Rinaldi de Mattos que
durante o Império, essa chamada boa sociedade era formada por brancos, livres e
proprietários de escravos. Havia mais, pois para a autora, era do cruzamento particular
de atributos como o fenótipo, a liberdade e a propriedade que a chamada ‘boa
sociedade’ se diferenciava tanto do chamado ‘povo mais ou menos miúdo’, designação
empregada para aqueles que eram proprietários apenas de suas pessoas – por não
possuírem escravos – quanto da massa de escravos35. Daí, a criação de uma memória
comum, com a invenção de tradições, e a difusão de crenças, valores, símbolos e heróis
que reforçassem a coesão da população, expressa em um território unificado, uma nação
civilizada, distinta das repúblicas da América espanhola, dilaceradas por conflitos, ódios
e guerras civis36.

Porém, com a Abolição e a instauração da República, o período anterior à


Independência seria novamente iluminado para que se tornasse possível destacar nas
brumas da fase colonial, em personagens como Felipe dos Santos, Amador Bueno,
Henrique Dias, Tiradentes, e Frei Caneca do Amor Divino, os albores da nação, em
eventos que eram retratados como perspassados por uma protonacionalidade. Caberia
dizer que algumas dessas figuras coloniais teriam sido, a corroborar essa nova maneira

33
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. As festas que a República manda guardar.Estudos históricos, Rio de Janeiro,
v.2,n.4,1989,p.172-189.
34
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O diálogo convergente: políticos e historiadores no início da
República. In: FREITAS, Marcos Cezar de. (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 6.ed.São
Paulo: Contexto, 2007, p. 123.
35
O Brasil em Lições: a história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de Macedo. Rio de Janeiro:
Access, 2000.
36
Ibidem, p. 109.
300

de encarar tal passado, testemunhas de que “A mãe-pátria [Portugal] então doce e


liberal, finalmente, mostrara a sua face oculta, a de metrópole absolutista”37

A historiadora Lucia Maria Paschoal Guimarães acentua o papel da alteração nos


estatutos do IHGB ocorridos em 1912, para dizer que o Instituto ultrapassara então a
etapa identificada como de formação do equipamento erudito da história para
“transformar-se formalmente num lugar privilegiado de produção do conhecimento
histórico”38. O Instituto alterara substancialmente o perfil de admissão de seus sócios
ao mesmo tempo no qual procurava valer-se da orientação daqueles acadêmicos
considerados como possuidores de melhor suficiência literária. Esse parece ter sido o
caso de João Ribeiro (1860-1934) Professor do Ginásio Nacional – a denominação
conforme já vimos, dada pelos republicanos para o Imperial Colégio de Pedro II – e
primeiro membro a ser eleito para a Academia Brasileira de Letras (1898). João Ribeiro

37
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2006. Cabe registrar que a constituição do
Estado Monárquico careceu de raízes institucionais, sendo sua legitimação conforme vimos anteriormente
em parte oferecido pelo IHGB que construiu a memória nacional como uma continuidade entre o Império
Colonial português na América e o novel trono americano, cujo traço de união eram os ocupantes da Casa
de Bragança. Toda essa construção visava a dar coerência ao pacto de dominação dos Saquaremas, e
cimentar sob a proteção da narrativa histórica, mas também pictórica e literária o seu projeto de nação.
38
Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro:
Museu da República, 2007, p.116. A expressão ‘equipamento erudito da história’ foi utilizada por Jacques
Le Goff no verbete ‘História’ de sua lavra, para a Enciclopédia Einaudi. Ela busca retratar os esforços
decisivos ocorridos ao longo do século XIX, da parte dos historiadores e das instituições às quais estes
estavam ligados, para difundir o método crítico dos documentos. O exemplo paradigmático quase sempre
é o francês, pelos desdobramentos advindos da Revolução Francesa e do Império de Napoleão, que
criaram os Arquivos Nacionais, bem como pelo período da restauração, que criou a École de Chartres,
em 1821. Doravante surgiriam academias, sociedades de antiquários e de história, assim como
publicações de documentos voltados para a constituição da história, ou seja, o conjunto de organismos
que autorizou a Jacques Le Goff a dizer que existia uma “...«armadura» defensora da história: cadeiras
de faculdade, centros universitários, sociedades culturais, colecções de documentos, bibliotecas,
revistas.” Observa Le Goff que esse movimento foi não somente francês, mas europeu, sendo tingido
fortemente do espírito nacional, sendo sintomática a criação de revistas nacionais na maior parte de países
europeus como a Dinamarca, a Itália, a Hungria, a Noruega, a Inglaterra, a Polônia e a Alemanha. Fora do
continente europeu, cabe dar destaque aos Estados Unidos da América, onde havia sido fundada em 1800,
a Library of Congress em Washington. A ‘The American Historical Review’ surge em 1895. O modelo de
história erudita alemão é, como sabemos, herdeiro da tradição prussiana. Ali, a erudição havia criado
tanto instituições, quanto coleções de prestígio como a ‘Monumenta Germaniae Historiae’. A Prússia
cedeu seu chão para que ali se aliassem a erudição e o ensino sob a forma de seminário, onde nomes
como os de Niebuhr, Waitz (aluno de Ranke) – este último diretor da Monumenta Germaniae desde 1875
- Mommsen, Droysen, Treitschke, e o próprio Ranke, iriam pontificar com as suas cátedras. Quanto a
Leopold Von Ranke, cabe lembrar ser este o maior nome da escola histórica alemã do século XIX, e
fundador, conforme lembra Le Goff, do primeiro seminário de história, no qual professores e alunos
entregavam-se, em conjunto, à crítica dos textos. Para repetirmos as palavras de Jacques Le Goff, “A
erudição alemã tinha exercido uma forte sedução sobre os historiadores europeus do século XIX,
incluindo os franceses, que não estavam longe de pensar que a guerra de 1870-71 tinha sido ganha pelos
mestres prussianos e os eruditos alemães. Um Monod, um Julian, um Seignobos, por exemplo,
completaram a sua formação em seminários de Além-Reno.” História. In: Enciclopédia Einaudi. V.1.
Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional, 1997, p. 158-259.
301

foi convidado a tornar-se membro do Instituto face ao sucesso alcançado por seu
manual escolar39, obra da qual no referimos com brevidade em páginas anteriores.

Em agosto de 1912, o Secretário Perpétuo do Instituto, Max Fleiuss passava em


revista a reforma dos Estatutos do IHGB, a qual criara o cargo de Diretor do periódico
editado por aquele sodalício. O novo Presidente do Instituto, Conde da Afonso Celso,
nomeara Benjamin Franklin Ramiz Galvão (1846-1938) para a importante função40.
Terminava assim a incumbência desempenhada por Fleiuss desde o tomo 69, relativo ao
ano de 1906. Era então o momento de agradecer, e Max Fleiuss relembrava seus
colaboradores mais fiéis, nas pessoas de Euclides da Cunha, Pedro Lessa, Sílvio
Romero, Capistrano de Abreu e Pedro Souto Maior, entre outros41.

Outro aspecto de suma importância estava relacionado à guarda de valiosos


documentos que iam muito além da Revista do Instituto que, conforme lembrava
orgulhosamente a comissão de redação, fora publicada com a maior regularidade desde
183942. Com suas instalações ainda no antigo Paço Imperial, ocupado desde 184043,
causara impacto aos homens da Escola Palatina o incêndio ocorrido em 15 de setembro
na Imprensa Nacional, onde a agremiação perdera todos os originais do 3º volume do
tomo especial dedicado ao Centenário da Imprensa no Brasil, o qual continha os
catálogos parciais dos jornais publicados em 11 Estados do Brasil. E o pior é que seus
autores não haviam guardado cópia alguma. Além disso, o Instituto perdera naquele
mesmo sinistro a Parte II referente ao tomo 73 da Revista, correspondente ao ano de

39
HANSEN, Patrícia Santos. Feições&Fisionomia: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro:
Access, 2000. Lembra a autora que os livros anteriormente adotados no Imperial Colégio de Pedro II
haviam sido escritos por Joaquim Manuel de Macedo (1861) e Luiz de Queiroz Mattoso Maia (1880), este
último contemporâneo de João Ribeiro naquele estabelecimento escolar. Em boa medida, ainda conforme
HANSEN (2000:70) caberia a História do Brasil: curso superior (1900) dar concretude ao projeto de
Capistrano de Abreu, de tratar daqueles temas que ele considerara ‘novos’.
40
Ramiz Galvão é mais conhecido por ter pertencido aos quadros da Biblioteca Nacional. Organizou em
1881 a Exposição de História do Brasil naquela instituição. O catálogo dessa exposição foi considerado
por José Honório Rodrigues com o mais amadurecido exemplo de bibliografia histórica no Brasil. Nos
trabalhos para organizar essa Exposição, Ramiz Galvão contou com Capistrano de Abreu entre seus
auxiliares. Ramiz Galvão parece ter se destacado pela erudição, com amplos conhecimentos de fontes
documentais, iconografia e cartografia que adquirira e ampliara ao longo dos anos de trabalho na
Biblioteca Nacional. RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil: introdução metodológica.
5.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.
41
RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 74, parte II, 1911.
42
RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 73, parte II, 1910.
43
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. O ‘Tribunal da Posteridade’. In: PRADO, Maria Emília. (org.).
O Estado como vocação: idéias e práticas políticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Access, 1999. A
transferência das dependências modestas que ocupara na Sociedade Auxiliadora para algumas salas do
Paço da Cidade, foi avaliado pela autora como mais condizente com a situação política então desfrutada
pelos ilustres integrantes do IHGB.
302

1910. Em 1911 o Comandante do Corpo de Bombeiros visitara as instalações do


Instituto e declarara que “« aqui há, de facto, milhares de contos a resguardar»”.44
Considerava-se a necessidade urgente da associação possuir “um edificio proprio,
construído especialmente para os seus fins, isolado, e possuindo todos os requesitos
que o premunam do perigo de um incêndio.”45

Um projeto do engenheiro Francisco Peixoto poderia ser levado a efeito pela


quantia de 196 contos de réis. Ao assunto havia sido dada publicidade em artigos que
vieram a lume no ‘Jornal do Brasil’, aonde Afonso Celso, ainda na função de orador do
grêmio emprestava seu decisivo apoio. Como também se tornou decisiva a atuação de
Rio Branco que conseguiu junto ao Congresso o indispensável auxílio, a ser distribuído
por cinco exercícios financeiros46. Porém, com o falecimento do Barão, caberia ao
Conde de Afonso Celso tomar a si a tarefa de executar a obra. A sede teria proporções
mais modestas que a idealizada por Rio Branco. O terreno disponibilizado fora
aproveitado por sua contigüidade a um prédio erguido pelo Governo Federal para
acolher várias instituições culturais. Tomaria o nome de Silogeu, por proposta de Ramiz
Galvão, pois assim ficava indicada a sua utilização por sociedades dedicadas às ciências
e as letras47. A nova sede do IHGB foi inaugurada em 21 de outubro de 1913.

Caberia apontar uma espécie de consenso entre diversos estudiosos dos Institutos
históricos e da historiografia do período48. O IHGB teria abdicado do autoproclamado
papel de preeminência em relação aos demais Institutos Históricos, passando assim a
prezar por uma mútua colaboração. Assim, cremos poder nos alinhar, ao menos
parcialmente, com tais opiniões que, em síntese localizam no advento da República e na
reformulação dos estatutos do IHGB, a dificuldade da sistematização da História
brasileira em uma grande obra de caráter geral. Certo seria que a concorrência das
histórias regionais e mesmo o caráter contestatório e dissidente assumido inicialmente

44
RIHGB. Rio de Janeiro, t.74, parte II, 1911, p. 698.
45
Ibidem, p. 698.
46
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2006, p. 31.
47
CORREA FILHO, Virgílio. Sedes do Instituto Histórico. RIHGB, Rio de Janeiro, v.254, jan.mar. 1962.
48
Seriam exemplos as contribuições de GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da escola palatina ao
silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República,
2006; HRUBY, Hugo, O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no limiar da República (1889-1912):
momentos decisivos. In: IX Encontro Estadual de História. Anpuh/RS, 2008; GOMES, Angela de Castro.
A república, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009; e, GONÇALVES, Tatiana Mol,
NICOLAZZI, Fernando. Inventando a historiografia mineira: o Instituto Histórico e Geográfico de Minas
Gerais em sua “primeira fase”, 1907-1927. Revista de teoria da história. Goiânia, UFG. Ano 6, n. 11.,
mai. 2014, p. 93-109.
303

pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), haviam contribuído


sobremaneira para essa nova atitude.

Porém, nos inclinamos a ver um pouco mais que isso, e agregar a essas razões as
resultantes de certo investimento nas pesquisas históricas às quais, conforme sabemos,
passavam a contar com os refinamentos do método ‘rankeano’, com as assertivas dos
mestres franceses, lidos e citados às largas. A afirmação das histórias regionais era
acompanhada pari passu pelo discurso da legitimação dos Estados na sua busca pela
hegemonia no poder. E a cabal exemplificação dessa idéia ficava registrado nos
próprios dizeres do IHGSP, para o qual a História de São Paulo seria a História do
Brasil.

Face a essas condições, Manuel de Oliveira Lima, diplomata e historiador proferiu


no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 23 de abril de 1913, uma conferência
que viria alcançar grande repercussão. Nome de grande credibilidade intelectual,
Oliveira Lima reiterava a necessidade de sobrelevar-se a reprodução dos documentos
aos ensaios, nas revistas do Instituto, pois ainda necessitaríamos de reunir o muito que
andava disperso, tarefa que deveria estender-se além das fronteiras nacionais. Era
visível, a par do idealismo que movia Oliveira Lima, certa angústia, pois assistia à
derrocada do Portugal monárquico, o que sugeria para ele a urgência do reconhecimento
e recolhimento de papéis das casas fidalgas portuguesas que tinham relação com o
Brasil. Simpático à Monarquia, Oliveira Lima apontava caminhos prioritários à busca
de documentos, e lembrava ter sido o Brasil,

“uma criação moral dos jesuítas o quais teriam sido o elemento por
excelência da civilização nos dois primeiros séculos, e de que ordens
monásticas, como a dos franciscanos e carmelitas os quais tiveram o seu
papel no desbravar dos sertões, isto é, na conquista do interior, cooperando
assim poderosamente para a cultura geral do Brasil.”49

Manuel de Oliveira Lima entendia a História brasileira como uma continuidade,


de onde encontrava sua substância e beleza, ponto inegociável para a produção de uma
escrita conservadora de História, a qual denominava por tradicionalismo, apontando que
os povos que o cultivam encontravam-se em elevado grau de adiantamento. As linhas à
seguir, que entendemos de grande interesse a reprodução, espelham um pouco da sua
visão de História, em uma avaliação elogiosa – à maneira de Varnhagen – da

49
OLIVEIRA LIMA, Manuel de. Actual papel do instituto histórico. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, t. 76, 1913, p.485-493.
304

colonização portuguesa, e sua nostalgia do período monárquico, bem como perspassa


temas, sob a sua ótica, que envolvem conceitos de nação, civilização e território:
“O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tem, pois, pelo que estamos
vendo, um variado, nobre e fecundo papel a desempenhar na evolução da
nossa cultura. Compete-lhe em primeiro lugar ser o divulgador máximo das
informações relativas ao nosso passado comum, isto é, à nossa tradição
nacional, para tanto transformando seus arquivos em depósito de
documentos de caráter histórico, oficiais e particulares, interessando todo o
Brasil, que a colonização exclusiva e ciosamente portuguesa preparou uno,
que na Independência o Império fez realmente uno, e uno deverá ficar se
quiser ser grande e forte...(...)...Cabe, além disso, ao Instituto o cultivar
relações proveitosas para ambos os lados com os institutos europeus de
natureza intelectual, empenhados em aproximar culturas diversas no aspecto
e na substância idênticas. Quando digo europeus, incluo os americanos,
porquanto o Novo Mundo deve ser um prolongamento moral da Europa.
Pertence-lhe por fim a altíssima missão de zelar a integridade da pátria
brasileira mediante a guarda das suas tradições. Mais de uma vez já tem ido
o Governo brasileiro buscar ou robustecer nos arquivos e publicações do
Instituto a prova do nosso direito à posse de qualquer território ameaçado de
absorção estrangeira. Aconteceu isto na questão da Trindade e também na
do Amapá. O Instituto não poderia aspirar a mais legítimo padrão de glória
do que esse, a um testemunho tão inequívoco da sua utilidade e da sua
benemerência.”50

Cabe lembrar que cerca de dez anos antes dessa intervenção no IHGB, Oliveira
Lima havia realizado seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, ocorrido
em 17 de julho de 1903, tendo aproveitado a ocasião para escrever um elogio acadêmico
a Francisco Adolfo de Varnhagen. Assim, dava largas à sua admiração por aquele a
quem considerava o mais valente trabalhador da história nacional e mais notável dos
nossos historiadores. Revelava então a curiosa forma com que há muito percebera a
presença de Varnhagen nas pesquisas que realizara, sempre assinaladas nos bolorentos
papéis de consulta pela “marca discreta do lápis” daquele “pachorrento investigador”
que o precedera. Esse seria o ponto forte a apontar em Varnhagen: a paixão pela
investigação histórica, à qual a carreira diplomática – na qual havia percorrido todos os
degraus – havia possibilitado pesquisas em locais como a Torre do Tombo, em Lisboa
ou os arquivos de Simancas, na Espanha.

Na avaliação de Oliveira Lima, a vida intelectual de Varnhagen seria inseparável


da sua vida pública, e o que lhe escasseava em “espirito propriamente philosofico”,
superabundava em erudição, cultor que era da comprovação, essencial ao trabalho do
historiador. Conhecia e redigia em uma porção de línguas, fossem essas vivas ou
mortas, tendo impresso nos mais variados locais, como Lisboa, Estocolmo, Madri,
Caracas, Viena, Lima, Havana ou Santiago. A biblioteca que formara era das mais

50
Idem, ibidem, p. 491-492.
305

curiosas, com volumes de todos os formatos. Se havia falhas em Varnhagen, escrevia


Oliveira Lima, seria a falta do dom de comunicar vibração ao passado, de reconstituir o
burburinho dos locais, dando o sopro da vida às multidões desaparecidas na poeira dos
tempos, “Varnhagen tinha entretanto, em si a melhor das condições para ser um
escriptor – tinha idéas.”51 Contudo, prosseguia Oliveira Lima, “foi um ardente
investigador, um infatigável resuscitador de chronicas esquecidas nas bibliotecas e de
documentos soterrados nos archivos, um valioso corrector de falsidades e illustrado
collecionador de factos”52.

Para Oliveira Lima, Varnhagen teria sido francamente anti indianista, conforme
apontara um dos seus críticos, D’Avezac, o qual estranhara que a História Geral do
Brasil não houvesse começado pelos indígenas. É que segundo Oliveira Lima,
Varnhagen não acreditava nos brandos esforços da catequese, e alegava que se devia
contar unicamente com a força para a contenção dos índios, para repeli-los, e obrigá-los
a tornarem-se úteis. Nesse sentido a,

“sujeição dos Indios era para elle equivalente a reducção na importação dos
Africanos, cuja emancipação lenta e gradual acabou por advogar com
animação, após ter pretendido substituir a servidão indigena á escravidão
negra. Para combater seu desprezo fundamental pelas ‘raças inferiores’
actuava o fermento da sua fé...”53

Dessa forma, explicava Manuel de Oliveira Lima, a civilização seria para


Varnhagen, o fruto de uma invasão européia, e o herói nacional não seria outro que não
o invasor. Nos anos iniciais do século XX, considerava então Manuel Oliveira Lima
que, “...Varnhagen foi e continua a ser a peça de resistência da nossa refeição
histórica, o assado solido, gordo, appetitoso na sua simplicidade, pois é cozinhado á
velha moda portugueza, sem adubos nem temperos francezes, com um molho leal e
nenhum acompanhamento.”54

Assim, conforme podemos constatar, apesar das tentativas de Capistrano de


Abreu no rumo da renovação temática, como foi o caso dos “Caminhos antigos e
povoamento do Brasil” (1899), e nos “Capítulos de História Colonial” (1907), além é
claro da verdadeira ‘guerrilha de bastidores’ que representa a sua correspondência
travada com importantes nomes das letras históricas brasileiras daquela época, a
51
LIMA, Manuel de Oliveira. Francisco Adolpho Varnhagen. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo. São Paulo,v.13, 1908, p.73.
52
Idem, Ibidem, p.65.
53
Idem, ibidem, p. 71-72. (grifo nosso).
54
Idem, ibidem, p. 83.
306

verdade é que Varnhagen, e aliás lembramos, lido, recomendado e editado pelo próprio
Capistrano, continuava imperante, incontornável, referencial, quase hegemônico, se não
metodológico, ao menos documental, pois sua História Geral do Brasil serviria como
programa para os temas referentes ao período colonial, durante o Primeiro Congresso de
História Nacional.

Ao favorecer a Varnhagen, Manuel de Oliveira Lima deixava plantadas algumas


dúvidas acerca do papel de proa que então era ocupado por Capistrano de Abreu
naquele cenário historiográfico, onde ‘Mestre’ Capistrano despontava na qualidade de
símbolo de toda aquela renovação temática. Wilson Martins lança luzes sobre o
conceito externado por Oliveira Lima sobre o historiador cearense, à qual a própria
correspondência mantida entre o diplomata pernambucano e Mestre Capistrano parece
ratificar55. Talvez possamos inferir que Capistrano estaria algo afastado em relação a
Manuel de Oliveira Lima, o que por sua vez, talvez possa explicar o seu distanciamento
cada vez maior das atividades do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro onde
Oliveira Lima vinha se tornando cada vez mais influente, sobretudo após o
desaparecimento (1912) do Barão do Rio Branco, seu poderoso desafeto 56. Se assim for,

55
Para Wilson Martins, Manuel de Oliveira Lima teria sido um diplomata indiscreto. Falando em 1907,
na qualidade de representante do IHGB na inauguração do Instituto Histórico e Geográfico de Minas
Gerais (IHGMG), Max Fleiuss teria dito “Oliveira Lima, um dos nossos mais esclarecidos homens de
letras, disse com razão que o Brasil tem tido por ora grandes pesquisadores, como Varnhagen, mas não
possuiu ainda um grande historiador.” Fleiuss (apud Martins, 1996:336) estaria reproduzindo então, no
mesmo ano do lançamento dos Capítulos de História Colonial por Capistrano, uma idéia que atribuída a
Manuel de Oliveira Lima, parece que era na verdade, compartilhada por Fleiuss, mas também por João
Ribeiro, que esperavam de Capistrano a escrita de uma História do Brasil compatível com o seu talento.
Um detalhe que aqui lembramos é que Capistrano de Abreu presenciou este discurso de Fleiuss, pois
compareceu naquela tarde à sessão de instalação do IHGMG. In: MARTINS, Wilson. História da
inteligência brasileira. V.5 (1897-1914). 2.ed.São Paulo:T.A.Queiroz, 1996, p. 336. A correspondência
trocada entre o diplomata pernambucano e o historiador cearense, reunida e publicada por José Honório
Rodrigues, abrange de fevereiro de 1900 a março de 1901, demonstrando um clima de cordialidade e
cortesias, onde livros, artigos e revistas foram mutuamente presenteados. Correspondência de Capistrano
de Abreu. v.III. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
56
Em recente comunicação, Júlio Vellozo procurou esclarecer alguns aspectos do desentendimento
havido entre Manuel de Oliveira Lima e o Barão do Rio Branco. Trata-se de uma história que merece ser
contada. Pelos idos de 1903, os atritos começavam. Oliveira Lima encontrava-se no Japão e contava com
uma remoção para a Europa, sendo Londres a sua preferência. Sentia a sua carreira como diplomata
obstada e tentava se reposicionar no campo intelectual – se é que podemos falar em campo intelectual
àquela época – movendo esforços para avançar na preparação daquela que seria talvez sua principal obra:
Dom João VI no Brasil. Foi nessa conjuntura que um decreto de Rio Branco deslocou Oliveira Lima para
o Peru, ato considerado por Lima como uma afronta ao seu já grande prestígio. Para Oliveira Lima,
Londres seria a sinalização de uma promoção, mas para os interesses do Estado brasileiro, o Peru e a
Bolívia representavam pontos sensíveis de grande interesse geopolítico, onde à época eram tratadas
questões de limites territoriais. Insensível a esses argumentos, e tendo recebido um telegrama de cobrança
do Barão que lhe feriu gravemente os brios, Oliveira Lima, como forma de provocação, deixou-se
demorar na Europa, chegando ao Rio de Janeiro tardiamente, e passando então a escrever artigos de tom
polêmico e bastante ácido em relação ao mundanismo dos salões e da pouca concretude aos interesses
nacionais que julgava caracterizar a diplomacia brasileira. Deixado de lado no Rio de Janeiro, Oliveira
307

nada mais natural que a falta de referências a Capistrano de Abreu (que cultivara na
verdade uma retumbante ausência na vida do Instituto) nos trabalhos desenvolvidos para
organizar o Primeiro Congresso de História Nacional, embora tenha sido ensaiada uma
espécie de aproximação com seu ensaio sobre o Duque de Caxias no ano de 1908,
momento no qual cabe observar, o grêmio ainda era presidido pelo Barão do Rio
Branco.

Morto o barão, Oliveira Lima teria ainda mais espaço para impor suas idéias no
ambiente do IHGB. O Primeiro Congresso de História Nacional de certa maneira
idealizado por ele, representa em nossa avaliação um evento de caráter axial, ou ainda
uma espécie de divisor de águas. Momento de redefinições, onde concorriam as forças
do áulicos da Monarquia, a clamar contra o ‘deserto do esquecimento’ e os interesses
voltados para as identidades regionais – e logicamente articulados com as oligarquias
dos Estados da federação – a promover os seus tipos representativos no passado
colonial. A ‘Introdução aos Estudos Históricos’ (1898), dos historiadores franceses
Langlois&Seignobos fornecia uma espécie de chão comum para esses pesquisadores, no
que devemos entender no entanto, que a metodologia propagada pelos mestres da
Sorbonne foi utilizada, algumas vezes mais como discurso, do que propriamente como
método de trabalho.

De acordo com a bem fundamentada opinião da historiadora Lucia Maria


Paschoal Guimarães, apesar da idéia do Instituto promover um congresso de história
nacional ser aventada desde 1903, por João Mendes de Almeida e Afonso Arinos de
Mello Franco57, foi o contexto nacionalista que estimulou o Instituto Histórico e

Lima utilizou o tempo para dar mãos-à-obra ao seu D. João VI no Brasil, trabalhando para tanto no
Arquivo Nacional, na Biblioteca Nacional e nos próprios arquivos do Itamaraty e da legação dos Estados
Unidos da América no Rio de Janeiro. VELLOZO, Júlio. Oliveira Lima lendo Capistrano de Abreu –
renovação de paradigmas e disputa (1903-1904). XXVII simpósio nacional de história. Natal, jul. 2013.
57
Na opinião de Lucia Maria Paschoal Guimarães (2006), “a reunião representava uma boa
oportunidade para fazer um balanço sobre a situação dos estudos de história pátria, trazendo para o
centro dos debates as questões levantadas por Nabuco. E, quem sabe, tornar menos árido o ‘deserto do
esquecimento’ imposto pela República em relação à história do Segundo Reinado.” (grifos da autora).
Ainda de acordo com a autora (2005 e 2006), nos países europeus, desde o século XIX, a vida
universitária favorecia a realização de atividades científicas, e com estas, o incremento da circulação de
idéias, trocas de experiências e atualização do conhecimento entre intelectuais de diversas nacionalidades.
A convocação periódica desses certames propiciava então uma reflexão conjunta sobre bibliografias,
fontes, temas e métodos de trabalho. Desde 1839, por ocasião do Congresso de Ciências Históricas em
Piza, Itália, o IHGB marcara presença em algumas dessas jornadas. Outras se seguiram, como em 1866,
no Congresso Arqueológico e Histórico de Antuérpia. Em 1878 era a vez do Congresso de Americanistas
de Luxemburgo, representado pelo Barão do Rio Branco, bem como em 1881, ao Congresso de Ciências
Históricas de Veneza, quando, patrocinado pelo Imperador D. Pedro II, o IHGB logrou a conquista de
prêmios por sua coleção de mapas ali expostos, bem como pela qualidade e periodicidade da sua revista
308

Geográfico Brasileiro a promover o Primeiro Congresso de História Nacional. Entre


seus objetivos centrais estava o de sistematizar o saber histórico disponível, conferindo
a esse saber, a unidade e a coerência58. Vários fatores convergiram e acabaram por
influir no desenvolvimento dos estudos históricos, e nesse em particular, no chamado
estudo da história pátria, como a mudança do regime político, ocorrida alguns anos
antes, mas também uma fase de manifestações cívicas nas quais parecia avultar o
interesse pelas questões nacionais.

Uma comissão executiva ficou incumbida de preparar o regulamento do Primeiro


Congresso de História Nacional, passando a trabalhar nas bases indicadas por Oliveira
Lima. Esperava-se que esse Congresso de História viesse a contribuir para a afirmação
do espírito da nacionalidade brasileira. A seguirmos as deliberações expressas nas atas
do ano de 1913, essa comissão executiva foi encarregada de formular as bases desse
Congresso, onde somente poderiam ser membros os Institutos Históricos estaduais e
seus sócios, além dos representantes dos Governadores dos Estados e pessoas que
tivessem produzido trabalho de caráter histórico relativo ao Brasil 59. Previra-se que as
atividades propriamente acadêmicas ocorreriam na sede do Instituto, entre os dias 7 e 16
de setembro de 1914, de onde se seguiria uma excursão dos congressistas à cidade
mineira de Ouro Preto, “considerada a mais típica e sugestiva das cidades coloniais
brasileiras”60.

A seguirmos as atas do IHGB referentes ao ano de 1913, o recebimento da notícia


do evento foi alvo de aplausos nos Estados da União e até no exterior, e o êxito do

trimensal. Relata ainda Lucia Maria Paschoal Guimarães a ocorrência de outras distinções, como na
Exposição Universal de Paris, em 1889, assim como na Exposição Columbiana levada a efeito em
Chicago, em 1892. Por ocasião do XVI Congresso dos Americanistas, ocorrido em Viena, no ano de
1908, a representação ficou a cargo do sócio Manuel de Oliveira Lima. GUIMARÃES, Lucia Maria
Paschoal. Primeiro Congresso de História Nacional: breve balanço da atividade historiográfica no
alvorecer do século XX. Tempo. Rio de Janeiro, n.18, 2005, 147-170 e GUIMARÃES, Lucia Maria
Paschoal. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de
Janeiro: Museu da República, 2006. De acordo com as actas das sessões realizadas em 1913, cabe
acrescer o nome do consócio Luiz Antonio Ferreira Gualberto quanto à idéia da realização do Congresso
de História Nacional. RIHGB, Rio de Janeiro, t.76,parte II, 1913, p. 505.
58
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Primeiro Congresso de História Nacional: breve balanço da
atividade historiográfica no alvorecer do século XX. Tempo. Rio de Janeiro, n.18, 2005.
59
Em 30 de maio de 1913, foi aprovada por unanimidade, e imediatamente nomeada a seguinte comissão:
Benjamin Franklin Ramiz Galvão, Manuel de Oliveira Lima, Max Fleiuss, Martim Francisco Ribeiro de
Andrade, Manuel Cícero Peregrino da Silva, Augusto Olympio Viveiros de Castro, Luiz Gastão Ruch,
Norival Soares de Freitas, Luiz Gastão d’Escragnolle Doria e Alberto Rangel. RIHGB, Rio de Janeiro,
t.76,parte II, 1913, p. 505-506.
60
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2006, p. 81.
309

empreendimento segundo o IHGB estaria assegurado pelo prestígio dos membros da


comissão executiva61. O recorte temporal observado pelo Primeiro Congresso cobria o
extenso período de 1500 a 1871, em conformidade portanto com a noção de
distanciamento que o Instituto julgava ser necessária para que o historiador pudesse
julgar os eventos históricos com a devida isenção. O certame compreenderia nove
seções de trabalho, cada qual correspondendo a uma especialidade dos estudos
históricos, inspirada na tipologia definida por Langlois&Seignobos no manual
Introdução aos Estudos Históricos (1898). Cada uma destas seções contaria com um
relator e um comitê científico, cabendo aos relatores redigir a síntese dos trabalhos
apresentados e propor as teses, que eram os temas ou questões que deviam ser objeto de
reflexões durante o Congresso. As comunicações ficavam divididas em teses oficiais e
teses avulsas62.

Ao fim e ao cabo, o núcleo central da programação ficou constituído por 93 teses


oficiais, distribuídas por seções de história geral do Brasil; história das explorações
geográficas; história das explorações arqueológicas e etnográficas; história
constitucional e administrativa; história parlamentar; história econômica; história
militar; história diplomática; e, a história literária e das artes. Lucia Maria Paschoal
Guimarães recenseou a distribuição percentual dos temas por seção, encontrando nessa
uma demonstração da sintonia dos relatores com as principais tendências da
historiografia européia naqueles primeiros anos do século XX.

De resto, cabe registrar que haveria um privilégio nítido ao campo da história


política e seus territórios correlatos, sobrelevando as teses que gravitavam em torno da
história política, sob uma visão ainda oitocentista de história. Nesse sentido, digno de
nota sobre tal visão, seria o fato que naquilo que se referia à história colonial, a relação
das matérias calcava-se, conforme observamos acima, na obra ‘história geral do brasil’,
de Francisco Adolfo de Varnhagen. Ao contemplar a história das explorações
geográficas, os organizadores do Congresso revelavam a familiaridade com aquelas
orientações, sendo que a geografia histórica vinha se consolidando como uma nova área

61
RIHGB, Rio de Janeiro, t.76,parte II, 1913, p. 656.
62
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Primeiro Congresso de História Nacional: breve balanço da
atividade historiográfica no alvorecer do século XX. Tempo. Rio de Janeiro, n.18, 2005. P. 152. A autora
explica que para as teses oficiais o IHGB convidaria um especialista para discorrer sobre determinado
assunto do programa. No caso das teses avulsas, os autores inscreveriam seus trabalhos por iniciativa
própria, desde que fosse respeitado o elenco de temas estabelecidos, que seria qualquer episódio da
história brasileira, desde o descobrimento até a lei dos nascituros.
310

de estudos. Aliás, cumpre ressaltar que essa seção, cuja relatoria ficou a cargo de Gastão
Ruch, preocupou-se com a análise do processo de formação do território nacional. Nela
incluíam-se as teses ‘os bandeirantes paulistas’, de Gentil de Assis Moura e a
‘expansão geographica do Brasil até fins do século XVII’, de autoria de Basílio de
Magalhães.

Julgamos ser relevante considerar ainda algumas colocações com uma finalidade
que não é de divergir, porém de aprofundar as observações fazendo com que venham
convergir e centrar-se com o contexto da época. Conforme lembra Fraçois-Châtelet, o
estado-nação constituiu-se no decorrer do século XIX em uma espécie de quadro
obrigatório para a existência social e realidade política sob a qual organizaram-se os
atos históricos. Disso resultou que esse estado-nação, sendo uma representação política,
passou por sua vez a condicionar que as populações constituídas em sociedade em um
mesmo território, deveriam reconhecer-se como vinculadas a um mesmo poder
soberano, para o qual a história havia se tornado uma espécie de caminho pavimentado
o qual compactado pelas narrativas dos tempos pretéritos, mantinha-se sob as balizas
dos princípios da civilização ocidental.

Sob tais condicionantes não seria exagerado dizer que ao longo do século XIX o
Estado Nação foi apresentado de maneira um tanto naturalizada como a forma típica
para as sociedades politicamente organizadas do Ocidente, com a adoção via-de-regra
do regime republicano como forma de governo. Desde a Revolução francesa a vontade
do povo era apontada como o fundamento da república, e desse tipo de nação-pátria,
deveria estar consoante um tipo de república que enquanto vontade do povo seria ainda
a administradora de um território, mantendo ainda, certo consórcio com a história,
entendida como uma espécie de biografia da nação63. Uma concepção de história sob as

63
Essa idéia da história como biografia nacional remete a Antonio Gramsci quando tematizou a questão
do risorgimento na historiografia italiana. Ela busca expressar uma forma de escrever a história, a noção
de sentimento nacional colocada enquanto instrumento político para coordenar e consolidar nas massas da
população, aqueles sentimentos que se julgava constituir o sentimento nacional. De acordo com Rogério
Forastieri da Silva, o caso brasileiro possui o peso do passado colonial, o que de uma forma ou de outra,
tratar-se-ia “de construir uma historiografia da nação em que o passado colonial ‘deve’ estar presente”.
Dessa forma, para esse historiador, “há que se buscar no passado o presente da nação. Assim a história
tende a constituir-se como uma biografia da nação.” Essa construção seria encargo de gerações, por uma
constante repetição ao longo dos anos escolares, o que acaba por dar consistência para algo que antes não
existia. Observa Rogério Forastieri que o que para Gramsci surgiu como sentimento nacional, no caso
brasileiro toma o nome de sentimento nativista. Para o autor, ficaria armado um esquema de explicação
que “se não é verdadeiro, passa a imprimir sentido e significações entre passado e presente”. SILVA,
Rogério Forastieri da. Colônia e Nativismo: a história como ‘biografia da nação’. São Paulo: Hucitec,
1997, p. 14-15. (grifos do autor).
311

determinações do paradigma iluminista e sujeita a uma espécie de ethos da justiça, que


seria inerente à narrativa histórica64.

Daí a importância de certos temas a serem comunicados àquela época, em um


Congresso de história nacional que se pretendia de afirmação da nacionalidade. A
república fora recentemente instaurada, escravos haviam sido libertos e haviam sérias
questões territoriais que vinham sendo tratadas tanto com as repúblicas vizinhas da
América do Sul, quanto com algumas potências européias. Afinal era uma época de
imperialismos e de paz armada.

Face a esse contexto, consideramos producente passarmos a analisar algumas teses


que julgamos relevantes para a nossa investigação. Entre as comunicações do I
Congresso de História Nacional julgamos de imprescindível abordagem para o nosso
estudo as seguintes: ‘Expansão Geographica do Brasil até fins do seculo XVII’,
preparada por Basílio de Magalhães; ‘As bandeiras paulistas: estabelecimento das
directrizes geraes a que obedeceram e estudos das zonas que alcançaram’, escrita por
Gentil de Assis Moura; e ‘As primeiras tentativas da independência do Brasil’, da
autoria de Annibal Velloso Rebello. Duas outras teses revestem-se de importância para
as nossas considerações, sendo estas a intitulada ‘Pedro Taques de Almeida Paes Leme
(estudo biographico), escrita por Afonso Taunay e ‘O Domínio Hespanhol’, da lavra do
professor Lúcio José dos Santos.

Os trâmites burocráticos da ilustrada comissão executiva do I Congresso de


História Nacional ajudam a entender o alcance e as limitações desse ambicioso projeto.
Assim, em fins de maio de 1914, Annibal Velloso Rebello (1871-1947), diplomata de
carreira, foi encarregado pela comissão executiva para ser o relator da quinta tese da 1ª

64
O paradigma iluminista da história tem suas tendências filosóficas fundadas no século XVIII, porém foi
durante o século XIX que a história encontrou seu reconhecimento acadêmico e profissional, face ao
emprego de modelos macro-históricos e teorizantes. Doravante a história, sob esse paradigma seria
analítica, explicativa e estrutural, o que equivaleria dizer, voltada para a inteligibilidade e a explicação,
tendo por princípios norteadores delimitar o quanto possível, o irracional, o acaso e o subjetivo.
CARDOSO, Ciro Flamarion. História e paradigmas rivais. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS,
Ronaldo (orgs). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p.
3-4. Para Reinhart Koselleck, desde Heródoto, a disciplina da história e a historiografia estiveram sujeitas
ao ethos da justiça. Esse seria um aspecto inerente à narrativa histórica, pois o historiador estaria em
afinidade com os procedimentos legais comumente empregados na justiça, esperando chegar aos fatos
verdadeiros, e para isso, interrogando as melhores testemunhas, comparando e contrastando seus
testemunhos e não deixando de ouvir a parte contrária. Procedimentos dessa natureza deram concretude à
narrativa histórica dos helenos a Ranke. Com esse historiador foi produzida uma espécie de ampliação
das tarefas do historiador, pois esse deveria ir além da determinação dos fatos ou de falar sobre as pessoas
neles envolvidos. Koselleck, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2014.
312

seção daquele congresso. Vale lembrar que a 1ª seção estava dedicada à História Geral,
e a tese oficial, denominada pelos promotores do congresso como ‘Tentativas de
Independencia’, estava inclusa em uma seção onde figuravam autores como Jonathas
Serrano, Lúcio José dos Santos e Max Fleiuss. Esses intelectuais pertenciam aos
quadros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, estando portanto a priori,
envolvidos, e iríamos mais adiante, visceralmente comprometidos com o sucesso dos
eventos planejados por aquele sodalício. Esse era o contexto a envolver as designações
para alguns dos autores das chamadas ‘teses oficiais’, a crermos na fidedignidade do
teor do ofício lavrado pelo presidente da Comissão Executiva, B. F. Ramiz Galvão e
endereçado a Annibal Velloso Rebello. Nessa missiva, Ramiz Galvão considerava que
Annibal Velloso, eleito para a tarefa por unanimidade de sufrágios naquele Instituto,
não recusaria “...prestar esse serviço á grande causa da nossa Historia, contribuindo
com o seu notável valor intellectual para um certamen que exprime uma obra
patriótica.”65

Pois assim era pensado aquele Primeiro Congresso de História Nacional. Fora
levado em consideração que Annibal Velloso, de formação jurídica e Conselheiro da
Embaixada Brasileira em Portugal, tendo portanto à sua disposição os ‘Archivos de
Portugal’, os quais, evidentemente – assim considerou a comissão executiva –
encerrariam valiosíssimos documentos sobre a tese a ele atribuída. Contava no entanto o
Conselheiro Annibal Velloso com um prazo relativamente exíguo, pois o texto da
memória deveria ser entregue até o dia 7 de agosto, ou seja, em pouco mais de dois
meses do recebimento da proposta. Velloso não era contudo o único a se ver em uma
situação tão assoberbadamente aflitiva. Afinal, de forma voluntária ou involuntária –
como ficou claro ser o caso do ilustrado Conselheiro diplomático – haviam outras 92
teses a ser escritas. Distante do Brasil, inferimos que face às distâncias e os meios ainda
bastante acanhados das comunicações daquela época, o que não faltava ao Conselheiro
Velloso eram assoberbações, tratativas e preocupações. Deixemo-lo à parte por alguns
instantes, destinando as próximas linhas para tratar de outras teses e personagens
igualmente importantes, alguns já bastante falados em nosso estudo. Um deles, Afonso
d’Escragnolle Taunay, já foi aqui apresentado na qualidade de historiador e diretor do
Museu Paulista. Mas pelos idos de 1914, Taunay ainda não era o diretor do Museu

65
REBELLO, Annibal Velloso. As primeiras tentativas da independência do Brasil. Lisboa: A Editora,
1915, p. 24.
313

Paulista, e tampouco o celebrado ‘historiador das bandeiras’, sobrevivendo então como


professor e articulista66. Nos cerca de dois meses que precederam o Congresso, utilizou
sua horas vagas para preparar um texto sobre a vida do linhagista setecentista Pedro
Taques de Almeida Paes Leme. Taunay subiria ao púlpito do Silogeu, a nova sede do
IHGB, para apresentar sua tese avulsa, o que significava que Taunay, respeitando os
temas e questões estabelecidos pelos organizadores daquele Congresso, inscrevera seu
trabalho por iniciativa própria67.

Taunay faria sua exposição sobre a vida do autor da Nobiliarquia Paulistana,


porém não entraria propriamente no tema das bandeiras. Certamente que estudar as
bandeiras paulistas do século XVII não era uma idéia nova para Afonso Taunay, em
1914. Sua correspondência com Capistrano de Abreu, seu Mestre, já revelava isso, ao
menos uns dez anos antes, ou mais precisamente em 1904. Nessa data, Capistrano
tentava demover ao jovem Afonso Taunay da intenção de escrever a história dos
capitães-generais de São Paulo, idéia que o Mestre achava “...simplesmente infeliz”68.
Cabe explicar que em seu papel de orientar aos menos experientes, ou mais jovens,
Capistrano ia além, apontando caminhos, dessa forma: “Que lembrança desastrada a de
preferir um período desinteressante, quando a grande época dos paulistas é o século
XVII!” 69. A leitura da correspondência mantida entre os dois aponta que no ano de 1914

66
Por essa época, de acordo com Karina Anhezini, Afonso Taunay dava continuidade às suas pesquisas,
publicando os resultados na forma de artigos de jornal. O pagamento auferido nessa atividade era então
fundamental para complementar sua renda obtida nas aulas da Faculdade Livre de Filosofia e Letras de
São Paulo, no Colégio de São Bento e na Escola Politécnica de São Paulo. Ainda nos meses finais de
1916, Taunay andava preocupado com sua vida financeira, conforme confidenciou ao seu amigo Max
Fleiuss, ao pedir ajuda para conseguir manter os 100$000 recebidos pela colaboração no Jornal Comércio
de São Paulo. No mês de Janeiro de 1917 Taunay recebeu auspiciosas cartas que acenavam com uma
nova oportunidade profissional que acompanharia um aumento substancial da sua renda: 650$000 a título
de vencimentos como Diretor do Museu Paulista, mais 250$000 mensais para o aluguel da casa. Seu
cunhado Edmur, irmão mais velho da sua esposa Sara de Souza Queiroz Taunay serviu como
intermediário nas conversas com o então Diretor do Museu, Armando da Silva Prado (1880-1956).
Armando Prado ocupou a direção do Museu Paulista entre agosto de 1916 e fevereiro de 1917. Ainda
segundo a autora, as negociações para que Taunay assumisse a função ocorreram entre Janeiro e meados
de Fevereiro de 1917, quando ele finalmente “pode agregar ao nome a função que o distinguiria nas
letras históricas.” Cfe. f. 107; 124-125. ARAÚJO, Karina Anhezini de. Um metódico à brasileira: a
História da historiografia de Afonso de Taunay (1911-1939). 237f.Tese (Doutorado em História) –
Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista, Franca, 2006.
67
A diferença fundamental entre as teses oficiais e as teses avulsas foi explicada por Lúcia Maria
Paschoal Guimarães no ensaio ‘Primeiro Congresso de História Nacional: breve balanço da atividade
historiográfica no alvorecer do século XX ’, publicado em Tempo, Rio de Janeiro, n. 18, p. 152. As teses
seriam as questões propostas pelos relatores daquele Congresso. Aos especialistas, responsáveis pelas
teses oficiais caberia, pela sua autoridade, discorrer uma comunicação para a reflexão dos participantes do
Congresso de História.
68
Obras de Capistrano de Abreu. Correspondência, v.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977,
p.276.
69
Idem, Ibidem, p. 276.
314

Capistrano acusava haver lido “...os artigos sobre Pedro Taques. Todos muito
interessantes, um verdadeiro feixe de novidades.” A correspondência é datada de 13 de
junho do mesmo ano, portanto, antecedendo cerca de dois meses ao Congresso de
História Nacional70. Com a tese intitulada ‘Pedro Taques de Almeida Paes Leme
(estudo biographico)’, Afonso Taunay logrou cativar naquele 15 de setembro de 1914
as atenções da assistência que compareceu ao auditório do Silogeu. O foco direto das
reflexões de Taunay pretendia iluminar ao linhagista setecentista Pedro Taques (1714-
1777), autor entre outras obras, da Nobiliarquia Paulistana. Doravante, os escritos de
Taques, juntamente com aqueles lavrados na pena do seu primo Frei Gaspar de Madre
de Deus (1715-1800), se converteriam em fontes perenes às quais recorreria Afonso
Taunay nos seus estudos sobre o sertanismo paulista. Taunay os reputava na categoria
das pessoas mais cultas do século XVIII paulista71. Podemos considerar que coube a
Afonso Taunay redescobrir e valorizar, a partir de então para a História, a obra dos dois
cronistas que se debruçaram sobre o século XVII paulista72. Em seu estudo biográfico
sobre Pedro Taques, Taunay utilizou-se para enredo, de um arquétipo que poderia ser
caracterizado como de tragédia, haja visto a trajetória do biografado apresentar
sobressaltos que influenciaram negativamente para o desfecho da sua história de vida:
mortes na família, doenças terríveis, falência e descrédito. No entanto, é devido o
entendimento que aquilo que realmente interessava ser considerado não eram os
percalços vividos por Taques, mas o valor da sua obra. A par de todas as tragédias
pessoais, nada impedira que Taques se apegasse mais ainda aos queridos e quase nunca
abandonados estudos históricos e genealógicos, dos quais resultariam entre outros a
Nobiliarquia Paulistana. E a existência desses possibilitava o devassamento no século
XX, da São Paulo do século XVII. Relevante portanto em face da natureza do
70
A relação entre Capistrano de Abreu e Afonso Taunay remonta ao ano de 1889, quando menino de 12
anos, Taunay fora acompanhado pelo Mestre . As lições, tomadas a domicílio na casa do pai de Afonso, o
Visconde de Taunay, nas Laranjeiras, bairro do Rio de Janeiro foram o ponto de partida para uma
amizade de quase quarenta anos entre discípulo e mestre. Logo após a morte do historiador cearense,
Afonso Taunay publicava com data de 10 de outubro de 1927, um pequeno artigo no qual homenageava
Capistrano. Desse, destaco o seguinte parágrafo: “A Capistrano devi assignalados serviços e os mais
leaes conselhos. Deu-me indicações preciosissimas sobre muitos e muitos assumptos. Indicou-me
opulentas fontes com aquella prodigiosa liberalidade e ausência total de inveja que formavam o fundo do
seu intimo, ao offerecer aos amigos, aos consulentes em geral, a poderosa valia de seu formidável
cabedal de conhecimentos. E como se interessava pelo andamento dos trabalhos daquelles a quem
estimava! Como desejava que se aperfeiçoassem!” J. Capistrano de Abreu. In Memoriam. Anais do
Museu Paulista. São Paulo. T.3, p. XVII, 1927.
71
José Honório Rodrigues considerou Pedro Taques, como todos genealogistas, merecedor de confiança
limitada. Utilizando-se de Varnhagen, José Honório entendia Frei Gaspar como pouco fidedigno, devendo
ser lido sempre com cautela. In: História da História do Brasil. 1ª Parte ( Historiografia Colonial). São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.
72
Idem, Ibidem, p. 151.
315

Congresso onde o estudo era apresentado. De ascendência ilustre, tanto materna, quanto
paterna, sobrinho-neto de Fernão Dias Paes e quarto neto de Braz Cubas, “excepcional”,
para usar-mos das palavras de Taunay – “era então o brilho e o prestigio dos Taques
em terras paulistas”73, e apesar de se conhecer pouco da infância de Pedro Taques, era
revelado por Taunay que este freqüentara o Colégio Jesuítico de São Paulo. Teria então
o linhagista, nas palavras do futuro ‘historiador das bandeiras’, acessado

“as aulas dos antigos – trivio – e quatrivio medievaes, evolvidas no ratio


studiorum dos discípulos de S. Ignácio, no seculo XVI. Estudou a
grammatica, a rhetorica e a logica, o latim, os algarismos e a geometria e se
não chegou a concluir o curso, e obter o tão honrado titulo de mestre em
artes, deveu-o às difficuldades da vida paterna, pois a simples leitura de sua
obra é mais que sufficiente para nos convencer de que á robusta intelligencia
lhe não custara adquirir os vastos conhecimentos que armazenou.”74

Ao eleger como objeto de sua palestra de 1914 o estudo biográfico de Pedro


Taques, Afonso D’escragnolle Taunay buscava revalorizar a obra de um historiador que
redescobrira75 e tentava resignificar. Nele identificara a possibilidade de produzir uma
historiografia afinada com a dinâmica paulista76 e coerente com o élan representativo
dos paulistas ao longo dos séculos, pois sertanistas no dezessete, tropeiros e
mineradores no dezoito, cafeicultores no dezenove e industriais no século vinte, teriam
mantido intocável o espírito do bandeirante. Afonso Taunay havia aventado a
possibilidade de articulação do desenrolar dos principais troncos paulistas figurados na
Nobiliarquia Paulistana, com o recuo do Meridiano Quinhentista que, a permanecer,
teria condenado o Brasil a uma mesquinha faixa litorânea. Os testemunhos de Pedro
Taques seriam importantes na opinião de Taunay, pois segundo ele devíamos ao
linhagista,

“...as únicas manifestações do documento humano. Devemos os traços


insubstituiveis para o estudo das personalidades, os caracteres das gerações
que passaram sem deixar vestigios; foi dentre os nossos chronistas dos raros
que, na Historia do paiz, alguma coisa viram além da inexpressiva resenha e

73
Pedro Taques de Almeida Paes Leme: estudo biographico. RIHGB. Primeiro Congresso de História
Nacional. Tomo especial. Parte V. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917. P. 818.
74
Idem, Ibidem, p. 819.
75
Karina Anhezini informa que para Taunay os estudos realizados por Azevedo Marques, Toledo Piza e
Sílvio Romero sobre a História paulista e os bandeirantes não teriam considerado a vida do linhagista,
nem se preocupado com a época retratada por Taques, para Taunay, um dos melhores cronistas do
setecentos. Correspondência e escrita da História na trajetória intelectual de Afonso Taunay. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n. 32, 2003, p. 13.
76
É esclarecedor ressaltar que os cinco primeiros volumes da História Geral da Bandeiras Paulistas,
vieram a lume entre 1924 e 1929, assim como outras obras de Taunay neste período, foram total ou
parcialmente editados com o financiamento dos cofres públicos paulistas. ANHEZINI, Karina.
Correspondência e escrita da História na trajetória intelectual de Afonso Taunay. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, n. 32, 2003, p. 15.
316

serzidura dos actos officiaes: cartas regias, provisões e alvarás quase


sempre tão ocos e vasios, amorphos. Resta-nos, graças a Pedro Taques, um
pouco de alma dos conquistadores do Brasil Central” 77.

Apesar do seu significado, a comunicação de Afonso Taunay não tratava


diretamente das bandeiras paulistas do século XVII. Da tese oficial relativa a esse tema
fora incumbido, conforme já vimos, Gentil de Assis Moura, considerado pelos
organizadores daquele certame como um especialista no assunto 78. O autor era sócio do
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, bem como dos Institutos Históricos e
Geográficos dos Estados de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Norte, sendo
também participante de diversas Associações, Academias e Sociedades nacionais e
internacionais voltadas à pesquisa científica.

Ao longo da sua tese, Gentil de Assis Moura tece referências a autores como
Diogo de Vasconcelos, Washington Luís, Basílio de Magalhães e Orville Derby. Utiliza
do ensaio do Padre Pastells, bem como de relatos produzidos por Antonio Ruiz
Montoya, superior dos jesuítas à época das investidas dos bandeirantes nas primeiras
décadas do século XVII. A grande ausência nas referências seria Capistrano de Abreu,
que no seu ‘Capítulos de História Colonial’, texto de 1907, perguntara se teria
compensado os horrores praticados pelos bandeirantes, o fato das terras por esses
devastadas terem passado a pertencer ao Brasil. Para Gentil de Assis Moura, teria
compensado. Sem citar a Capistrano de Abreu, ele dirá que o que se pretendia com a
valorização de tais violências era a depreciação das glórias dos sertanistas de São Paulo,
os quais fizeram avançar a “civilização” aos sertões.

Cabe realçar, no estudo realizado por Gentil de Assis Moura a sistematização de


certos dados que então cuidadosamente compilara, esclarecendo acerca dos sentidos das
bandeiras, com seus efetivos, hierarquias, itinerários, que culminaram em uma “lucta
que durou dois e meio séculos para o triumpho...[a narrativa se faz sob o manto
intencional da geopolítica expansionista]..., mas o lugar conquistado pelo bandeirante
nunca mais foi retomado, e a linha de Tordezillas affastou-se das proximidades do
Atlantico para as vizinhanças dos Andes”79. Ora, essas últimas linhas parecem
corroborar e avançar as contribuições de Capistrano de Abreu ocorridas alguns anos

77
Pedro Taques de Almeida Paes Leme: estudo biographico. RIHGB. Primeiro Congresso de História
Nacional. Tomo especial. Parte V. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917. P. 818.
78
As bandeiras paulistas: estabelecimento das directrizes geraes a que obedeceram e estudos das zonas
que alcançaram. São Paulo: Companhia typographica editora ‘o pensamento’, 1914.
79
Idem, ibidem, pp. 10-11. Foi mantida a grafia original.
317

antes, e representam um avanço substancial em relação ao conceito que Varnhagen fazia


acerca dos bandeirantes. Assim, para Gentil de Assis Moura, o fenômeno das bandeiras
teria sido um drama de mais de dois séculos. No desenrolar dos seus atos, veio a se
constituir no primeiro movimento brasileiro de povoamento do solo e formação da
‘raça’, atuando como um dos fatores preponderantes da constituição geográfica do país.
Para ele, a tenacidade observada nesse empreendimento, bem como a resistência
empregada na luta, teriam servido como pontos capitais para superar os estorvos que se
antepunham à sua marcha, engolfada no desconhecido. De acordo com o autor,

“A verdadeira pedra de toque para a avaliação da importância histórica dos


acontecimentos é a fecundidade, a grandeza de suas conseqüências, e dahi o
alto valor dos feitos dos bandeirantes, cuja actuação é realçada pela
tenacidade no esforço, na lucta, para a consecução de seus fins, para a
realização de seus projectos. A resolução de Bartholomeu Bueno de só voltar
para S. Paulo com a descoberta de que fora encarregado ou morrer no
sertão é exuberantemente demonstrativa da tenacidade do bandeirante. Não
fosse elle dotado de um caracter que não se conforma com o mallogro do
emprehendimento a que se propoz, e nunca teríamos a constituição
geographica que possuímos...(...)...As bandeiras paulistas não
consubstanciam somente a epopéa de Tordezillas, mas synthetizam também
os factos políticos, sociaes, ethnographicos e econômicos da raça em
formação. A sociedade paulista entrou nellas com todos os vícios inherentes
á época e ao meio em que vivia, mas levou também para sobrepujal-os um
forte contingente de virtudes de que fez seu apanágio. A escravização dos
índios, a expulsão dos jesuítas, são actos lembrados para a depreciação das
suas glorias; mas sua importancia é nenhuma desde que se lhes
contraponham o avançamento dos limites, a exploração e civilização do
sertão e a educação da raça no trabalho. Das suas excursões nasceu o
povoamento das zonas que hoje constituem sete grandes circumscripções
administrativas; da longa estadia do bandeirante na região sertaneja surgiu
o seu amor á vida agrícola; do caracter aventureiro proveio ‘o espírito de
iniciativa que é hoje a feição característica dos seus descendentes’; de sua
força da obediência passiva ao cabo da tropa nasceu o espírito de respeito
ás leis.”80

Cabe aqui ressaltar que o ensaio de Gentil de Assis Moura apresenta interesse
por ser a fala de um especialista naquela iniciativa pioneira que reunia letrados e
políticos atuantes, sob o objetivo de sistematizar o saber histórico disponível,
conferindo-lhe, conforme escreveu Lúcia Maria Paschoal Guimarães, unidade e
coerência. Cabe observar que àquela época, temas como as bandeiras, as minas, a
criação de gado, a entradas, em suma, a ocupação do território, ainda eram ‘coisas
novas’, para utilizarmos da fala de Capistrano de Abreu ao Barão do Rio Branco,
conforme reproduzimos páginas acima. Nesse aspecto, a tese preparada por Basílio de

80
As bandeiras paulistas: estabelecimento das directrizes geraes a que obedeceram e estudos das zonas
que alcançaram. São Paulo: Companhia typographica editora ‘o pensamento’, 1914, p. 10-12. ( grifos
nossos).
318

Magalhães, intitulada ‘Expansão Geographica do Brasil até fins do século XVII’,


trataria de temas ainda pouco explorados, além de vincular definitivamente a expansão
territorial às investidas paulistas.

Nascido em Barroso, estado de Minas Gerais, Basílio de Magalhães (1874-


1957), estudou em São João Del Rei, encontrando-se em sua biografia uma curiosa
menção a certa distinção por méritos intelectuais recebida das mãos da Princesa Isabel,
quando a então herdeira do Trono visitava aquela cidade mineira. Basílio de Magalhães
adotou o ideal republicano desde cedo, tendo exercido inicialmente as profissões de
tipógrafo, revisor e editor. Transferindo residência para Campinas, foi aprovado em
concurso para o cargo de professor do Ginásio daquela cidade. Seu interesse pelo
jornalismo, considerada uma verdadeira paixão, o fez fundar e dirigir o jornal ‘Correio
de Campinas’. Polemista, tornou-se colaborador de grandes jornais do Rio de Janeiro,
de onde conquistou renome no acanhado meio cultural brasileiro do início do século
vinte.

Basílio de Magalhães foi, de certa forma, ao mesmo tempo tributário e agente de


impulso às pesquisas históricas de sua época, campo de estudos ao qual se aplicou de
forma intensa. Aproveitou-se de um momento especialmente pródigo para as letras
históricas, no qual se experimentava uma sistemática e abundante divulgação da
documentação existente nos arquivos, ocorrida especialmente em São Paulo, pela
iniciativa e liderança de Washington Luís Pereira de Sousa81. E parte do trabalho dessa
verdadeira febre de vasculhamento do passado coube à ação de Basílio de Magalhães.
Seu esforço apareceu registrado na compilação intitulada ‘Documentos relativos ao
“Bandeirismo” paulista e questões connexas, no período de 1664 a 1700 – peças
historicas todas existentes no Archivo Nacional, e copiadas, coordenadas e annotadas,
de ordem do Governo do Estado de S. Paulo’. Essa documentação foi publicada no
volume XVIII (1913), da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Os
documentos mandados publicar por Washington Luis, bem como aqueles pesquisados

81
Washington Luis administrou a cidade de São Paulo entre os anos de 1914 e 1919 enfrentando a
carestia, o desemprego, a diminuição da atividade econômica, a greve de 1917, os efeitos da Grande
Guerra e a epidemia de gripe que assolou a capital em 1918. Apoiado por Altino Arantes chegaria à
Presidência do Estado em 1920. A publicação das Atas e do Registro Geral da Câmara de São Paulo foi
financiada pelo governo municipal devido ao empenho de Washington Luis quando prefeito. Ao assumir
o governo do Estado de São Paulo, Washington Luis mandaria publicar os Inventários e Testamentos em
um total de 27 volumes.ARAÚJO, Karina Anhezini de. Um metódico à brasileira: a História da
historiografia de Afonso de Taunay (1911-1939). 237f.Tese (Doutorado em História) – Faculdade de
História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista, Franca, 2006.
319

por Basílio de Magalhães acabariam por servir em um futuro próximo a Afonso


d’Escragnolle Taunay, fosse nas suas várias obras sobre o sertanismo paulista, ou ainda
na composição de sua monumental História Geral das Bandeiras Paulistas, escrita entre
os anos de 1924 e 195082.

Basílio de Magalhães participou do I Congresso de História Nacional já na


condição de sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro83, tendo
causado ao que parece, uma excelente impressão entre a assistência face à qualidade do
seu trabalho. Ao longo da sua ‘Expansão Geographica do Brasil até fins do Seculo
XVII’ ele defendeu que o território brasileiro foi uma conquista de missionários
católicos, criadores de gado e bandeiras paulistas. Sem dúvidas, o lugar de destaque
caberia no seu entendimento a esses últimos, aos quais ele denomina por mamelucos
meridionaes, e a quem coube, “prestar auxilio efficaz” nas investidas dos jesuítas e
criadores de gado, com maior ênfase, no sul,

“...onde o bandeirismo paulista, numa avançada continua e triumphal,


desbravara as terras immanes do sertão e conquistara todo o Paraná e
Santa-Catharina e parte do Rio Grande, a acção da metrópole com elle
cooperou, hábil e previdentemente, em começo, pela fundação da Colonia do
Sacramento, realizada em 1680 e ajudada pelos naturaes de S. Paulo.”84

82
Entre 1924 e 1930 Afonso Taunay lançaria os seis primeiros tomos dessa obra. Os primeiros volumes
vieram a lume em um ritmo vertiginoso: Tomo I, 1924; Tomo II, 1925; Tomo III, 1927; Tomo IV, 1928;
Tomo V, 1929; e, Tomo VI, 1930. MATOS, Odilon Nogueira de. Afonso de Taunay: Historiador de São
Paulo e do Brasil (perfil biográfico e ensaio bibliográfico). Coleção Museu Paulista, série ensaios, v.1,
São Paulo, 1977. De acordo com Karina Anhezini (2006), ao menos o primeiro tomo da História Geral
das Bandeiras Paulistas foi financiada pelo governo estadual. Ibidem.
83
Cadastro de Sócios. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, tomo 76,
v.2, 1913, p. 701.
84
MAGALHÃES, Basílio de. Expansão Geographica do Brasil até fins do século XVII. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1914, p. 45-46. As fontes utilizadas por Basílio de Magalhães ficam reveladas nas
narrativas dos sucessos e reveses dos desbravadores do território brasileiro nos séculos XVI e XVII. As
‘noções de Historia do Brasil até 1800’, de Capistrano de Abreu, lida como parte da publicação intitulada
‘O Brasil’, patrocinada pelo Centro Industrial do Brasil, merece certamente, o maior destaque. Cabe
acrescer que esses escritos da lavra de Capistrano viriam a lume posteriormente sob o título de ‘Capítulos
de História Colonial’.Merecem destaque ainda, a História Geral do Brasil, do Visconde de Porto Seguro,
qualificado pelo autor, como o “fidedigno Varnhagen” (p.50), além daqueles que ao início do século vinte
seriam considerados incontornáveis: Pandiá Calógeras, Orville Derby, Azevedo Marques, Washington
Luís, Diogo de Vasconcellos, João Ribeiro, Oliveira Lima e o historiador português Oliveira Martins.
Completam o quadro das principais fontes de Basílio de Magalhães, escritores coloniais como Pedro
Taques (Nobiliarquia Paulista e informações sobre as minas de São Paulo), frei Gaspar da Madre de
Deus, Rocha Pita (História da América Portuguesa, segundo o autor, inexata mas carregada do poder “das
bellas tintas do seu estilo gongorico” (p.54), frei Vicente do Salvador e o jesuíta João Antonio Andreoni,
alcunhado como Antonil, e autor da obra que revelara o Brasil aos brasileiros: ‘Cultura e opulência do
Brasil’. Cabe ainda registrar as constantes referências aos documentos do Arquivo Nacional, manuscritos
os quais, Basílio de Magalhães pesquisara por cerca de dois anos, e aos quais recorre para rebater autores
consagrados como Diogo de Vasconcellos, ou ainda para arremate de raciocínio acerca dos fatos
históricos que estuda.
320

Aos missionários católicos ficava adjudicado o povoamento do vale do


Amazonas no século XVII, reconhecido pelo autor ser a região norte do Brasil, um
theatro dos mais ingratos, ao passo que a criação de gado deveria ser considerada como
uma simples prolação do movimento do bandeirismo paulista. Ora, é que na opinião de
Basílio de Magalhães, conduzida pela geopolítica em voga especialmente a partir dos
anos finais do século XIX, seria a região sul do Brasil que ao contrário do norte
“...reunia as condições geographicas capazes de um dia assegurar, na partilha da
America, para o domínio lusitano, quase metade do continente austral”.85Dessa forma,

“...no sul, o homem do litoral como que domina, do alto das suas montanhas,
o intimo dos sertões, a que o conduzem os rios caudaes, descendo para o
interior. Aqui, ainda que através de cataractas e de saltos, o conquistador
desce sem esforço; as águas o levam de feição; o seu trabalho é moderar a
descida, impedir que a marcha se precipite. Depois, a região é favorecida
pela benignidade do clima. Não há seccas, nem jamais o deserto se petrifica
sob a inclemência do céu.”86.

Para o autor, “O paulista, pelo seu habitat, tinha de ser o bandeirante por
excellencia. A conquista dos sertões estava no seu destino histórico”87. Ora, caberia
perguntar quem é esse paulista, tornado bandeirante conquistador por excelência do
território brasileiro. A resposta parece se consubstanciar na figura do elemento indígena.
Esse personagem histórico coletivo parece desde o início da comunicação simpático a
Basílio de Magalhães, apesar desse em sua linguagem perspassada pelo positivismo, os
qualificar como os fetichistas das selvas. Nesse sentido o quadro apresentado pelo autor
difere sobremaneira das cores daquele anteriormente pintado por Varnhagen. O Brasil
seria uma jóia bruta, cabendo aos portugueses o papel de ‘planta exótica’ em uma zona
quase toda tropical. Restou aos europeus amparar-se no braço do selvícola, o fazendo
via-de-regra sob uma ignóbil desumanidade, mas vindo a miscigenar-se e gerando o que
Magalhães denominou por ‘matéria-prima da colonização’. Referia-se então ao
cruzamento contínuo, ao longo dos séculos XVI e XVII, entre portugueses e aborígenes,
“pois que a mulher tupy era fácil e era prolífica”88. Lembra o autor que a ‘geração
mameluca’, surgida primeiro em São Paulo, mas também na Bahia – onde, conforme
frisava, a maior façanha de penetração do interior era devida a Belchior Dias Moreya,
um neto de Caramurú – mestiços criados à lei da natureza, uma massa a qual, ainda
segundo o autor, seria expressiva numericamente, e que repontava nas povoações às

85
Idem, Ibidem, p. 66.
86
Idem, Ibidem, p. 67.
87
Idem, Ibidem, p. 67.
88
Idem, Ibidem, p. 153.
321

margens do Paraíba, tais como Itú, Parnaíba e Sorocaba, locais estes de ocupação
definitiva da terra paulista, e que serviram depois como focos de irradiação para a
conquista do sertão brasileiro.

Viviam então os paulistas, ao que parece, semi-independentes em seu planalto, o


que figurava a Basílio de Magalhães como plenamente testificado em episódios como a
Aclamação de Amador Bueno ou ainda, pela expulsão dos jesuítas. Ter-se-ia constituído
São Paulo em uma quase nação, em pleno século XVII? Ora, na documentação que
consultou às largas, o autor encontra da pena do soberano português Affonso VI, uma
carta dirigida aos paulistas, datada de 27 de setembro de 1664. Essa missiva teria
produzido imensos resultados, pois,

Aguilhoando ainda mais a indomável energia dos bandeirantes, foi ella que
os propelliu ás varias expedições famosas, realizadas entre 1672 e 1675, não
mais somente para a montaria aos selvicolas, mas particularmente com o fito
de descobrir riquezas mineraes, consoante com o expresso desejo do
soberano.”89

O desejo do soberano português seria atendido, às custas evidentemente das


honras e mercês que a economia do Don preconizava90. Encontramos aqui
possivelmente duas utilizações para um mesmo evento. Inicialmente o interesse que
movera Pedro Taques ao iluminar no século XVIII as ações dos mazombos paulistas,
interessados na nobilitações dos feitos dos seus maiores. A outra, datada do século XX,
presente no IHGB e nos Institutos Históricos e Geográficos estaduais, como o IHGSP e
o IHGMG, ainda muito acoplada ao processo de fortalecimento do estado-nação, sendo
movida pela compreensão das inovações a este articuladas como a burocracia, o
exército nacional e o vivenciamento de um sentimento de nacionalidade91.

89
Idem, Ibidem, p. 83.
90
De acordo com os historiadores Antonio Manuel Hespanha e Angela Barreto Xavier, o ‘Don’era um ato
de natureza gratuita e fazia parte da sociedade do Antigo Regime, como parte de um universo normativo
preciso e detalhado que lhe retirava toda a espontaneidade e o transformava em unidade de uma cadeia
infinita de atos beneficiais, os quais constituíam as principais fontes de estruturação das relações políticas.
As categorias da ‘economia do don’ estavam na base de múltiplas práticas informais de poder. Neste
universo político singular, como parte dos seus mecanismos próprios e específicos, encontravam-se as
redes clientelares. A liberalidade, a graça, a atividade de dar integrava uma tríade de obrigações, a saber:
1. Dar; 2. Receber; e, 3. Restituir. Cabe acrescer que frequentemente o prestígio político de uma pessoa
estava vinculado à sua capacidade de dispensar benefícios, no que se deve esclarecer que usualmente os
benefícios recebidos não possuíam dimensão meramente econômica. As Redes Clientelares. In:
MATTOSO, José (org.). História de Portugal: o antigo regime. V.4. Lisboa: Estampa, 1993.
91
BICALHO, Maria Fernanda. Dos ‘Estados nacionais’ ao ‘sentido da colonização’: história moderna e
historiografia do Brasil colonial. In: ABREU, Martha, SOIHET, Rachel, GONTIJO, Rebeca (orgs.).
Cultura Política e Leituras do Passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007.
322

Os maiores exemplos da energia bandeirante ficariam representados nas figuras


do intrépido Antonio Raposo Tavares bem como do sacrifício da vida e fazendas de um
Fernão Dias Paes. Basílio de Magalhães falava então da conquista do Brasil, no qual o
bandeirante teria sido o agente por excelência do desenvolvimento econômico e moral
brasileiro. Referia-se o autor a um mal costurado agregado de capitanias, revelando
nessas uma nação, como se essa já existisse enquanto irremediável conseqüência
histórica da colonização, o universo colonial oferecendo necessariamente o ambiente
ecológico para as insurreições contra a metrópole, e como se estas revoltas carregassem
obrigatoriamente os germes de um proto-nacionalismo e ficassem aptas portanto a ser
classificadas mediante o rótulo de movimentos nativistas, expressão de uso
correntemente aceito à época.

Talvez seja esse o momento para retornarmos com os resultados da árdua tarefa
à qual foi encarregado o Conselheiro diplomático Annibal Velloso Rebello.
Demonstrando um apurado senso histórico o autor traçou então um breve sumário de
aspectos da história antiga de Portugal, em largas malhas, como costumava se dizer
então, até os eventos que passavam a interessar mais de perto a conjuntura que
favoreceu a Independência brasileira. Mantendo em seu universo conceitual a categoria
denominada ‘movimento nativista’, localizava na Revolta de Felipe dos Santos,
ocorrida ao tempo do Conde de Assumar, um prelúdio da Conjuração Mineira de 1789.
Esse evento passava então a ser tratado como uma revolta fomentada por intelectuais,
defendida por poetas e pregada nas fazendas por um militar, sendo que tudo isso teria
sido feito sob a influência das mesmas idéias que haviam de culminar na França, na
grande Revolução. Annibal Veloso intitula a Conjura de 1789 como ‘a tentativa
mineira’, e inspirado no pensador português Theophilo Braga, traça então em leve
esboço, a conjuntura da época. Cabe a nós ouvi-lo. No século XVIII, a França tomara a
dianteira em um movimento emancipador a que o mundo todo parecia reclamar. No
bojo desse movimento, as idéias enciclopédicas, os princípios que traziam à tona a
prioridade da maioria e com esses, o ‘sonho republicano’. Essas influências chegavam
ao Brasil, e livros considerados sediciosos espalhavam-se por toda a parte. Estudantes
brasileiros das regiões mais prósperas da Colônia dirigiam-se às Universidades
Européias, como as de Paris e Montpellier. Nas suas cátedras, encontravam-se
professores a bater-se por idéias filosóficas alinhadas com o Iluminismo.
323

Nos estudantes brasileiros, tais idéias teriam produzido uma ânsia pela liberdade.
José Joaquim da Maia, de Montpellier, fizera contato com Thomas Jefferson, avistando-
se com este em Nimes. O idealismo de Maia, movido pelo entusiasmo e pela esperança
de liberdade constrastou-se nesse encontro com a frieza diplomática de Jefferson. Entre
tais sonhadores da liberdade, estavam também os estudantes mineiros, mandados à
Europa graças à prosperidade das minas de ouro e diamante, bem como das rendas dos
agricultores e dos criadores de gado. Na América do Norte havia um exemplo dessa
almejada emancipação política, e os brasileiros julgavam-se no direito de trilhar o
mesmo caminho. No entanto, observa o autor que embora a fonte de riquezas viesse do
trabalho de mineradores, agricultores e pecuaristas, a preeminência da revolta não seria
mais desses, “ feridos nas suas fazendas e nos seus interesses”, mas dos “ intellectuais
que se lançam então na propaganda.”92 Assim, para o autor,

“ ...exaltados e ardentes, sonhavam os estudantes, em cujas veias corria um


pouco de sangue índio, com a emancipação immediata. N’essa aspiração
generosa nota-se o principio da egualdade social. Os próprios escravos
deixam de ser encarados objectivamente para se esperar d’elles o auxilio e
dos senhores a liberdade. Idéa de doutrinários, mas Idea de sonhadores,
encontra logo nos poetas os seus melhores defensores. Faltam-lhe armas,
mas já a bandeira se desenha com a sua divisa libertadora Libertas quae
será tamen. Com Ella, como verdadeiros romanticos marchariam para a
revolução – Jose Joaquim da Maia, Vidal Barbosa, Alvares Maciel, José
Maria Leal, Claudio Manoel da Costa, Alvarenga Peixoto e Thomaz Antonio
Gonzaga, o poeta apaixonado da Marilia de Dirceu.” 93

A crermos em Annibal Rebello o destino irmanara esses poetas para arrastá-los


na tempestade revolucionária que se seguiria. Para o autor, Thomaz Antonio Gonzaga,
português nascido no Porto, homem de elevado valor intelectual e investido na alta
magistratura teria sido, por suas qualidades, denunciado como o chefe da sedição, pois o
perjúrio e a traição teriam sido as características da ‘revolução infeliz’. Recebia também
as simpatias do autor em boa medida o poeta Cláudio Manoel reputado por ele como
tendo sido, possivelmente, o primeiro brasileiro que em Minas lera e citara as doutrinas
de Adam Smith, além de presumivelmente haver comentado favoravelmente a história
da Independência da América Inglesa.
Tiradentes, que com a República havia se tornado um símbolo da luta pela
emancipação política, aparece no texto de Annibal Rebello somente como um
complemento à plêiade de letrados que o autor faz desfilar. Para o ilustrado Conselheiro
seria Tiradentes uma ‘figura bizarra’, o qual “de simples mascate passara á carreira

92
As primeiras tentativas da independência do Brasil. Lisboa: A Editora, 1915, p.104-105.
93
Ibidem, p. 105-106.
324

militar, onde, preterido muitas vezes, foi o seu animo se azedando e predispondo-o á
revolta”94. Ao Alferes da cavalaria paga de Minas Gerais teria cabido o papel de
propagandista e aliciador de gente, fosse pela tropa ou ainda pelas fazendas. Seria um
“febril revolucionário”, julgando-se “predestinado para redimir a pátria. Alma de forte
tempera, educada na boa fé, teria que pagar com a vida a sua visão da liberdade.”95
Assim, se às personagens de Gonzaga e Cláudio Manoel serviam a marca do infortúnio,
a Tiradentes caberia o papel do martírio.
Porém, apesar de todos os reveses sofridos pelos inconfidentes mineiros, julgou
o autor que haveria a possibilidade de uma vitória daquela revolução. Pelas estradas já
se comentava abertamente os planos revolucionários. Mas um Alferes não poderia por si
só fazer uma revolução, e teriam sido as tentativas de aliciar outros militares que
alimentaram e passaram a constituir uma verdadeira ‘febre’ de delações. Denunciado o
plano dos conspiradores, fora suspensa pelo governador – sujeito vingativo e pronto a
tirar o maior proveito pessoal da trama descoberta – a tão temível derrama.
Ao que nos parece, apoiara-se Annibal Velloso fortemente na História da
Conjuração Mineira, que viera a lume em 1873 pela lavra do monarquista Joaquim
Norberto de Sousa e Silva.Talvez a melhor contribuição de Annibal Rebello tenha sido
a de avaliar a Conjuração de Minas como um movimento prenhe de possibilidades de
sucesso96. Durante o Primeiro Congresso de História da América, em 1922, ficaria

94
As primeiras tentativas da independência do Brasil. Lisboa: A Editora, 1915, p.108.
95
Ibidem, p.109.
96
De certa forma parece curiosa a escolha de Annibal Rebello para tratar dos movimentos em prol da
independência, enquanto coube a Diogo de Vasconcelos, como representante do IHGMG e sócio
correspondente do IHGB discorrer sobre a tese oficial ‘Linhas gerais da administração colonial. Como se
exercia. O vice-rei, os capitães-generais, os governadores, os capitães-mores de vilas e cidade.’ Como
vimos anteriormente, em 1901 Diogo de Vasconcelos já havia escrito uma História Antiga de Minas
Gerais. No interior do IHGMG, de acordo com Helena Miranda Mollo e Rodrigo Machado da Silva,
podiam ser identificados dois grupos, sendo um mais conservador, onde estava Vasconcelos. Esse grupo
entendia a história colonial mineira como o momento inicial da constituição da civilização brasileira, o
que dava ensejo a um processo evolutivo que culminaria na modernidade republicana. O outro grupo que
transitava pelo IHGMG partilhava com algumas variantes dessa idéia, considerando que a história
colonial fora uma espécie de idade de ouro, sendo Minas Gerais o principal elo que a ‘Colônia’ mantinha
com a civilização ocidental. Para o IHGB o inconveniente desse grupo era o entendimento no qual o
Império teria sido uma espécie de ‘Idade das Trevas’ para Minas, qualificada como um declínio para o
Estado, situação que caberia à República reverter. Talvez tenha sido a idéia de nação que imperava nas
obras de Diogo de Vasconcelos a razão da sua escolha para falar de outro tema. Conforme explica Helena
Magela Alberto, na História Antiga de Minas Gerais, não é possível se divisar “uma ruptura entre Brasil
e Portugal, mas uma continuidade, um modelo de nação brasileira espelhado na nação portuguesa, no
qual a história antes do povoamento português é desconsiderada”. Assim, Diogo de Vasconcelos seria
demasiadamente Varnhageniano o que não promovia as mudanças esperadas pelo Instituto no ‘estado da
arte’ nessa questão. MOLLO, Helena Miranda, SILVA, Rodrigo Machado da. Diogo de Vasconcelos e a
“oficina central do pensamento”. In: ROMEIRO, Adriana, SILVEIRA, Marco Antonio (orgs.). Diogo de
Vasconcelos: o ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2014; e, ALBERTO, Helena Magela.
Diogo de Vasconcelos, a história de Minas Gerais e a Nação. In: GONÇALVES, Andréa Lisly,
325

conhecida uma outra versão sobre a Conjuração de 1789 em Minas, dessa vez surgida
da pena de um engenheiro, o professor Lúcio José dos Santos97. Em 1914, durante o I
Congresso de História Nacional o professor Lúcio José dos Santos debruçara-se sobre
outro tema, escrevendo a tese intitulada ‘O Domínio Hespanhol’. Nos aproximaremos
de Lúcio José dos Santos, i.e., do seu viés de historiador, de maneira cautelosa porém
compreensiva e criticamente respeitosa, procurando entender suas escolhas e mapear
cognitiva e tecnicamente a sua concepção de História. A teoria da História na qual
Lúcio José dos Santos procurava apoiar-se em muito aproxima-se das noções
formuladas por Johann Gottfried Herder (1744 – 1803)98, possuindo ainda por força do
seu catolicismo ultramontano militante, formulações que seriam pertinentes a Joseph de

OLIVEIRA, Ronald Polito de (orgs.). Termo de Mariana II: história & documentação. Mariana: Imprensa
Universitária da UFOP, 2004.
97
Nascido em Cachoeira do Campo em 1875, Lúcio José era filho do coronel da Força Policial João
Lúcio da Costa Santos. Realizou seu curso secundário no Seminário de Mariana, matriculando-se em
1893 na Escola de Minas de Ouro Preto, aonde revelou-se um estudante brilhante e exímio orador.
Residiu em Ouro Preto até 1913, data após a qual transferiu residência para Belo Horizonte. Intelectual
ligado ao catolicismo militante, pertenceu a várias associações de piedade, filantrópicas e de ação social.
Confrade de São Vicente de Paulo, pertenceu à Ação Católica e realizou peregrinações à Roma, Lourdes
e à Terra Santa, tendo recebido uma condecoração da Santa Sé, quando reinante encontrava-se Pio XII.
Dirigiu o Jornal ‘O Horizonte’, pertencente à Diocese de Belo Horizonte e presidiu o Círculo Católico de
Belo Horizonte e o Centro D. Vital. Assumiu paralelamente às suas atividades como professor de
engenharia, educador e político, o ofício de historiador, tendo pertencido ao Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais e ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sendo ainda um dos
fundadores da Academia Mineira de Letras. Seguimos os traços biográficos publicados pela Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais nos anos de 1945 e 1959. Essas informações foram
compiladas a partir de MOURÃO, Paulo Krüger Corrêa. Dr. Lúcio José dos Santos. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte, v.6, 1959. Francisco Iglesias sublinhou em
prefácio de 1972 à obra de Lúcio José dos Santos ‘A Inconfidência Mineira: papel de Tiradentes na
Inconfidência Mineira’, a posição do autor na defesa de muitas causas, “notadamente católicas, como
religioso apaixonado que era”. Conservador, o Prof. Lúcio dos Santos era, ainda segundo Iglesias, visto
às vezes como reacionário. p.11. Sobre a Ação Católica seria importante assinalar que foi “ o projeto
restaurador do catolicismo ultramontano e intransigente”, por intermédio da qual o Papado convocava a
ação sistemática dos leigos para a defesa da Igreja e dos interesses católicos, em um mundo que
consideravam, desde o Séc. XIX, em franco processo de descristianização. O termo ‘Ação Católica’
surgiu propriamente com Pio X (1903-1914), Papa que organizou a Ação Católica italiana, e apresentou-a
como modelo para outros países. A ação dos leigos deveria ser complementar à do clero, inclusive
mantendo e ligando-se a partidos, escolas, associações operárias e imprensa. Pio XI (1922 – 1939)
estabeleceu a Ação Católica em âmbitos nacionais “muito dependente das autoridades eclesiásticas,
reorganizadas por ele em 1922 (encíclica Ubi Arcano Dei).” GOMES, Francisco J. S. Ação Católica. In:
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. (Org.) Dicionário Crítico do Pensamento da Direita: idéias,
instituições e personagens. Rio de Janeiro: Mauad, 2000. p. 28-29. Sobre a ação dos intelectuais católicos
no Brasil, ver: SILVA, Antonio Francisco da. Intelectuais e a defesa da religião. Último andar. São Paulo,
n. 14, jun. 2006, p. 127 – 147; FILHO, Fernando Antonio Pinheiro. A invenção da Ordem: intelectuais
católicos no Brasil. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, v. 19, n. 1, 2007, p. 33-49, e DIAS,
Romualdo. Imagens da Ordem: a doutrina católica sobre autoridade no Brasil ( 1922 – 1933 ). São Paulo:
UNESP, 1996 . O Prof. Lúcio dos Santos foi o diretor de ‘O Horizonte’ de abril de 1923 até julho de
1924, quando foi substituído pelo seu antigo gerente, o padre Vicente Soares. Na edição de 2 de julho de
1924, ‘O Horizonte’ orgulhosamente estampava em sua primeira página: “Triumpho do Mérito. Nosso
Director, Dr. Lucio José dos Santos, passa a ser o Director da Instrucção publica em Minas”.
98
Herder. In: GARDINER, Patrick. Teorias da História. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984, p. 41-
59. Herder. In: COLLINGWOOD, R. G. A ideia de História. 8. ed. Lisboa: Presença, 1994, p. 125 – 129.
BERLIN, Isaiah. Vico e Herder. Brasília: UNB, 1982, p. 11-17; 133-188.
326

Maistre e Edmund Burke, pensadores caros aos doutrinadores da Ação Católica e do


Centro D. Vital, como Jackson de Figueiredo e Alceu de Amoroso Lima99.
A concepção de História defendida por Lúcio José dos Santos aparece de forma
mais explícita na Introdução preparada para a sua comunicação ao Primeiro Congresso
de História Nacional100. Naquela ocasião, Lúcio dos Santos apontava de forma
condenatória para a Introdução aos Estudos Históricos de Langlois&Seignobos, que
conforme vimos, era a grande obra teórica do historicismo. Seignobos havia escrito no
seu prefácio à História Contemporânea, que havia uma imperiosa necessidade da França
ligar-se a uma “política ‘leiga’ [o grifo é nosso!], democratica e ocidental”, no que
assinalava Lúcio dos Santos, “devia condemnar necessariamente quanto de catholico se
lhe deparasse no caminho, como elemento contrario á ‘politica leiga’.” No
entendimento do Prof. Lúcio José dos Santos, Langlois&Seignobos pretendiam,

“reduzir a Historia a uma exposição incolor dos factos, a ‘uma collecção de


materiaes históricos para os exercícios históricos dos estudantes, assim
como um diccionario é uma collecção de materiaes lingüísticos para os
exercícios de traducção; com a differença apenas de serem os factos
coordenados, não por ordem alphabetica, mas nos quadros naturaes da
Historia, segundo a ordem dos paizes e dos tempos”101

Para o Prof. Lúcio José dos Santos, o modelo metodológico de tratamento


documental seguido por Fustel de Coulanges seria a antítese das proposições mantidas
por Langlois&Seignobos. Para ele, o autor de ‘A cidade antiga’ havia resumido,

“magnificamente as regras que devem seguir no exame e estudo das fontes, e


nas quatro principaes: 1.a E’ preciso ler os textos com attenção e sem idéas
preconcebidas. 2.a.E’ indispensável lel-os em si mesmos, no sentido literal e
próprio. 3.a. Não se deve procurar nelles sentido allegorico. 4.a. Deve-se
crer nelles; a presunpção é que exprimam a verdade, mesmo quando
pareçam inverossímeis, até prova em contrario.”102

No entanto Lúcio José dos Santos também citava Kant, apoiando-se neste para
buscar a fundamentação na qual, em História, deveriam ser evitadas, tanto a
especulação pura, quanto “o empirismo grosseiro que não se soccorre a nenhuma
concepção theorica”.103 É a partir deste princípio que a escrita da História saída da
lavra do Prof. Lúcio José dos Santos passa a requerer uma maior acuidade teórica da

99
Joseph de Maistre e as origens do fascismo. In: BERLIN, Isaiah. Limites da Utopia: capítulos de
História das idéias. São Paulo: Companhia da Letras, 1991, p. 84 – 140. DIAS, Romualdo. Imagens da
Ordem: a doutrina católica sobre autoridade no Brasil (1922 – 1933). São Paulo: UNESP, 1996.
100
SANTOS, Lúcio José dos. O Domínio Hespanhol: terceira these official (quarta do programma da 1ª
secção). RIHGB. Primeiro Congresso de Historia Nacional. Rio de Janeiro, s.d.
101
Idem, ibidem,p. 257.
102
Idem, ibidem, p. 257.
103
Idem, ibidem, p. 259.
327

parte do leitor.104 Herder, que freqüentou as lições de Kant na Universidade de


Könisberg, por se tratar de um autor para quem as noções de nação, civilização e
providência eram caras, servirá ao ceder sua concepção de História, como marco
analítico, no que se intenta emprestar maior inteligibilidade aos textos de Lúcio José dos
Santos105.
Patrick Gardiner, comentarista de Herder, sublinhou neste filósofo da História a
insistência na imparcialidade e na compreensão do historiador, bem como “os limites
impostos pelas situações e pelas circunstâncias históricas”106, enquanto Collingwood
grifou ter Herder avançado substancialmente em duas direções requeridas pelo
progresso ulterior do desenvolvimento histórico, a saber, o interesse por épocas
passadas consideradas obscuras ou bárbaras pelo Iluminismo, assim como o ataque à
concepção iluminista da natureza humana como algo uniforme e imutável107. Não
obstante apresenta-se também a tarefa de identificar junto à concepção de teoria da
História de Lúcio José dos Santos, aqueles traços que mais se aproximam de De Maistre
ou de Burke, autores que contrariamente a Herder não mantinham como este, uma

104
Contudo, não devemos exagerar a aceitação do pensamento de Kant, sobretudo sua obra filosófica, por
Lúcio José dos Santos, o qual considerava o kantismo perigoso. O prof. Lúcio dos Santos apresentava-se
como seguidor da “philosophia de S.Thomaz de Aquino”. Escrevendo para a imprensa diocesana, assim
se expressava: “Segundo Kant, todo conhecimento que ultrapassa a natureza sensível é chimerico. Mas o
illustre philosopho, contrariamente ao que se devia esperar, não conclue dahi que emphyrismo puro, isto
é, que a sciencia proceda apenas da observação e se construa inteiramente a posteriori. Para elle si de
um lado a analyse pura do sujeito não é um processo scientifico, de outro lado o conhecimento é uma
operação constructiva, synthetica, que transcende da observação pura. Não será isso contradictorio?
Não; o principio da objectividade da sciencia, embora relativo ao objeto, é anterior a todo acto do
sujeito pensante e tem a sua raiz na natureza mesma desse sujeito; é, pois, um juízo synthetico, a priori.
Quer isso dizer que o conhecimento não resulta de uma simples analyse do objecto, nem de uma
associação de idéas subjectivas, mas de um julgamento constructivo, de alcance necessario e universal,
isto é, de um julgamento synthetico a priori. Alem, pois, dos dados experimentaes a que se applica,
suppõe a sciencia uma condição anterior á experiencia, uma forma legisladora, inherente ao sujeito
pensante. Conhecer, segundo Kant, é moldar em uma forma a priori os dados concretos da experiencia e
formular em seguida, por uma consequencia natural, leis necessarias e geraes. Tal é o systema de Kant,
e’ seductor, mas perigosíssimo.” SANTOS, Lúcio José dos. Kant. O Horizonte. Belo Horizonte, 30 de
abril de 1924, p.2. Com efeito, a filosofia de Kant conflitava com as prédicas de Tomás de Aquino acerca
da verdade, envolvendo a inteligência e o mundo sensível. Sobre esta questão em Tomás de Aquino, ver
‘O ente e a Essência. In: Sto. Tomás de Aquino: Vida e Obra. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção
Os Pensadores).
105
Torna-se importante no entanto frisar mais uma vez que o Prof. Lúcio José dos Santos não obstante
demonstrasse certa simpatia pelos escritos de Kant, ia além de classificá-los como extremamente
perigosos. Em artigo para o jornal “O Horizonte”, da imprensa diocesana, periódico do qual foi diretor,
Lúcio dos Santos marcava cunhas no pensamento do mestre de Konisberg, assim se expressando: “O
conhecimento é uma synthese, não há duvida. Kant, porem, formula um postulado, como tal
indemostravel, quando diz que essa synthese procede de uma disposição natural do espírito, em presença
das impressões da sensibilidade. Para os que seguimos a philosophia de S Thomaz de Aquino, em
contrario á affirmação de Kant, essa synthese só se faz sob a influencia do objecto: ella é o effeito
produzido na intelligencia pelo objecto.” SANTOS, Lúcio José dos. Kant. O Horizonte. Belo Horizonte,
30 de abril de 1924, p.2.
106
Herder. Teorias da História. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984, p. 42-43.
107
Herder. In: COLLINGWOOD, R. G. A idea de História. 8. ed. Lisboa: Presença, 1994, p. 121.
328

parcial aceitação nos fundamentos iluministas, embora sentisse, como assinalou Isaiah
Berlin, insegurança na fé dos seus fundamentos.108
Em ‘O Domínio Hespanhol’, Lúcio dos Santos seguiu em boa medida algumas
das principais características na corrente conservadora da historiografia brasileira, as
quais expusemos páginas acima. Nesse sentido, o domínio da coroa espanhola sobre
Portugal e suas possessões coloniais teriam sido tempos de lutas e incertezas para o
Brasil, porém haviam gerado progressos indiscutíveis. A perda da soberania portuguesa
em 1580, processo que fora iniciado em 1578 com “o grande desastre de Alcacer-Kibir,
em que se afundou a dynastia de Aviz”109, não fora o resultado de arroubos de juventude
de D. Sebastião, ao qual Oliveira Martins qualificara como “ inquieto, nervoso,
doentio”110. Para Lúcio dos Santos, o monarca de 24 anos era o “último rebento de um
tronco robusto, arrastado por um destino cruel á derrota e á morte, na esperança de
reviver as glórias estupendas dos seus maiores”111.
A expedição africana do jovem rei português teria sido, no entendimento do
Prof. Lúcio dos Santos, um plano perfeitamente exeqüível, “idea generosa e de grande
alcance, [ afinal a ] Cristandade não tinha descanso”112, desde que os mouros, nos cem
anos que precederam Alcácer-Kibir, substituíram os Vândalos na África. Filipe II, que
após a morte do Cardeal D. Henrique apresentou-se como sucessor ao trono português,
estaria inocente de qualquer culpa na morte de D. Sebastião, ao qual não arrastara à
guerra. Também, sem nenhum favor à nobreza de Portugal, não se deveria, para Lúcio
dos Santos, exagerar a sua corrupção, pois acompanharam seu soberano em Alcácer-
Kibir, mas viram no rei espanhol, após o infortúnio da derrota, uma boa oportunidade de
Portugal recuperar suas antigas glórias. Dessa forma, Filipe II não teria se apresentado
como um conquistador. Sua reputação sinistra “é devida, em maxima parte, aos
historiadores protestantes. O rei da Hespanha era o braço direito do Catholicismo; nos
seus Estados elle reprimiu a ‘heresia’ e della conseguiu preservar a Hespanha”113.
Perda da soberania portuguesa e incursões francesas, inglesas e holandesas sobre
o território luso-brasileiro, porém o Prof. Lúcio dos Santos alegava que,

108
Vico e Herder. Brasília: UNB, 1982, p. 188.
109
O Domínio Hespanhol, p. 264.
110
Ibidem, p. 270.
111
O Domínio Hespanhol, p. 270. Nesta passagem encontramos uma das similitudes mais visíveis entre a
concepção de História de Lúcio José dos Santos e Herder.
112
O Domínio Hespanhol, p. 271.
113
Ibidem, p. 315. (grifo nosso).
329

“ em 80 anos de posse do Brasil, estavam apenas os portugueses senhores


de uma estreita faixa de terra, ao longo da costa, bastando dizer que o
núcleo colonial mais afastado do mar era S.Paulo. Essa faixa de terra, em
1600, extendia-se da barra de Paranaguá, ao sul, até a foz do rio Potengy,
ao norte” 114

Com tais argumentos, Lúcio dos Santos – que não cita Herder – preparava seus
seus ouvintes do Primeiro Congresso de História Nacional, para a aceitação de um
conceito capital na concepção herderiana de História: a Providência Divina. Nas suas
palavras,

“Admittir, na Historia, a Providencia, não é negar a existência de leis


regendo os acontecimentos, não é introduzir na gênese dos factos, um
elemento caprichoso, incompatível com a ordem scientifica. O legislador
supremo póde perfeitamente, na trama complicada dos acontecimentos
humanos, fazer com que as leis por elle estabelecidas, convirjam para o
mesmo resultado geral, previsto pela sua omnisciencia. Assim a sciencia
histórica não exclue a justiça; e as leis, regendo os factos, não são
incompatíveis com a Providencia Divina”. 115

Ora, é a forma de percepção da História sob o crivo da Providência Divina que


contribui definitivamente para a compreensão da História, tal como formulada pelo
Prof. Lúcio dos Santos. Dessa maneira, “as provas de uma energia, de uma coragem, de
uma tenacidade verdadeiramente admiráveis”116, patenteadas pelos portugueses na
conquista do território ao Norte da Paraíba, tomado de franceses e índios,

114
Ibidem, p. 264.
115
Ibidem, p.262. Em relação a noção de Providência Divina, são mais conhecidos dois historiadores que
a utilizaram. O a-racionalista (e na opinião de Hayden White, excêntrico) Giambattista Vico (1668-1744)
e Herder. Em ‘A Ciência Nova’, Vico esboçou uma tentativa de interpretação do processo histórico, onde
a História seria o equivalente a uma teologia civil racional da providência divina. Vico conseguira ir além
da tríplice classificação mantida pela crítica da época, que classificava a produção historiográfica em
fabulosa, verdadeira e satírica. Descobrira a racionalidade implícita até nas mais irracionais das
imaginações humanas, na medida em que tais imaginações tinham de fato servido de base para a
construção de instituições sociais e culturais, graças as quais puderam os homens viver suas vidas com e
contra a própria natureza. A noção de providência de Herder porém é pós-kantiana e encontra-se
imbricada à evolução e mutação históricas às quais por sua vez articulam-se a uma crença de Herder em
leis de crescimento e decadência que passam a presidir a evolução do ‘organismo nacional’. Neste
sentido, nos alertava Herder que “ pobre e mesquinho seria, pois, se quisesse nos impor como lei à
Providência omnipotente o nosso amor por um objecto da cultura humana, para conferir uma eternidade
antinatural ao momento único em que ele pode ter lugar. Esse desejo significaria nada menos do que
aniquilar a essência do tempo e destruir a natureza mesmo daquilo que é finito”. In: GARDINER,
Patrick. Teorias da História. 3.ed. Lisboa: Calouste Gunbenkian, 1984. P. 50. Isaiah Berlin chamou
atenção para o fato de que a idéia de um plano divino realizado na História humana passou, de maneira
ininterrupta, do Antigo Testamento e seus intérpretes judeus, para os fundadores do Cristianismo,
recebendo após isso, “a formulação classica de Bossuet”. Para Berlin, “ocasionalmente, Herder fala
como Bossuet, como se a História não fosse um relato episódico, senão um vasto drama; como se o dedo
de Deus guiasse os destinos da humanidade de alguma maneira teológica, uma peça de teatro da qual
cada grande época cultural fosse um ato”. Ora, isto vai levar a uma relativização do conceito de
civilização em Herder, que procurou representar as civilizações que estudou, como realizando cada uma
delas um ideal de irrevogável validade, como expressão, escreveu Isaiah Berlin, “de uma manifestação
particular do espírito humano, e não como um passo para alguma ordem mais elevada” Vico e Herder.
Brasília: UNB, 1982, p. 182.
116
O Domínio Hespanhol, p. 282.
330

empreendimento que foi realizado durante o domínio espanhol, ganha inteligibilidade.


Para Lúcio José dos Santos, “ a Hespanha, recebendo Portugal quando este entrara em
plena e accentuada decadência, o salvou da ruína, permittindo-lhe recobrar, em 60
annos de repouso, a sua força e energia quase extinctas”117. Ora, tal posição suscita
perguntas atinentes à questão nacional118, avaliada positivamente por Lúcio dos Santos
para o Brasil, pois, com o domínio espanhol,

“ o sentimento nacional portuguez transportou-se para o Brasil, ou antes,


veio aqui renascer. Os Portuguezes no Brasil, vendo-se fora de Portugal,
mas no meio de um povo que tinham criado, dever-se-iam sentir mais livres
do domínio hespanhol, mais em sua casa, mais em sua pátria do que si nesta
tivessem permanecido, lá onde tudo lhes falava na independência perdida. A
esse sentimento nacional se devem o denodo e a galhardia com que se
portaram as raças da colônia – Portuguezes, Brasileiros, Índios e Negros, na
reacção contra o domínio hollandez. Mais do que qualquer outra, essa lucta
deu aos povos do Brasil a consciência da sua força e a segurança do seu
destino.”119

O ano de 1914 pode ser considerado como um divisor de águas não somente na
historiografia brasileira, mas também na sociedade, com visíveis resultados na postura
de uma parte das oligarquias. O sentimento nacionalista aflorou em virtude da
deflagração da Grande Guerra, que em seus primeiros movimentos ainda era européia,
mas que logo revelaria o seu escopo mundial. Com o desenrolar das hostilidades, o
teatro de operações logo deixou de circunscrever-se ao território dos países europeus,
suas colônias e proximidades, revelando-se na crueza dos atos de guerra a face obscura
da civilização antes tão decantada por parcela considerável das elites brasileiras.

Ao mesmo tempo ficava visível que as ‘pequenas pátrias’ inspiradas pelos


positivistas não poderiam passar de meras idealizações naquele cenário mundial tão
pouco amistoso, onde os governos não poderiam carecer do poder de centralização para
implementar o esforço de guerra. A guerra de massa revelara-se afinal, uma guerra total,
e as fronteiras internas dos países, suas divisões provinciais ou departamentais deveriam
ser encaradas tão somente como separações nominais para simples facilitação
administrativa.

117
Ibidem, p. 339.
118
Isaiah Berlin escreveu que “ Herder acreditava na afinidade, na solidariedade social, no Volkstum, na
nacionalidade; mas, até o fim de sua vida detestou e denunciou todas as formas de centralização,
coerção e conquista que, tanto ele como o seu mestre, Hamann, via encarnadas e simbolizadas no
malfadado Estado. A natureza cria as nações e não os Estados”. Ibidem, p. 144.
119
O Domínio Hespanhol, p. 335.
331

Nossas próximas páginas estão dedicadas a explorar a forma pela qual os tipos
heróicos construídos a partir dos cânones historiográficos formulados pelos Institutos
Históricos de São Paulo e de Minas Gerais passaram a revestir-se de um simbolismo um
pouco menos regionalista, com vistas a assumir junto à imaginação histórica cores mais
representativas da nação. Ao que parece, esse movimento somente veio a se tornar
possível mediante a aceitação dos novos temas da historiografia, como nas formulações
de Capistrano de Abreu e seus seguidores; da pesquisa documental, facilitada pelo
investimento dos governos, e pela utilização do método histórico. Nesse sentido, o I
Congresso de História Nacional tornou possível a divulgação de pesquisas que elevaram
a um novo patamar a prática historiográfica no Brasil.
332

7 – O Panteão Cívico das Oligarquias

“O nosso benemérito Presidente Perpetuo, Sr. Barão do Rio Branco,

já por motivo de enfermidade, já devido às múltiplas preoccupações que

o assoberbam, não pôde dar-nos a honra de sua grada presença. Nem por

isso, todavia, deixou de orientar-nos com as suas preclaras luzes, sendo

sempre ouvido sobre todos os factos ocorridos e concedendo-nos plena

approvação às providencias tomadas.”

Acta da Sessão Magna Commemorativa do 73º Anniversario,

21 de outubro de 1911. RIHGB, Rio de Janeiro, t.74, 1911, p.695

Em fevereiro de 1912 o Barão do Rio Branco convalescia de uma crise de


uremia em Petrópolis, quando foi chamado às pressas ao Rio de Janeiro. Diversas
razões motivaram seu imediato deslocamento, entre elas, uma revolta que ocorrera no
Paraguai. O Chanceler foi então acometido de mal súbito, vindo a falecer em 10 de
fevereiro no Palácio do Itamraty. Era um Sábado e faltava apenas uma semana para o
ínício da folia de Momo1. A notícia causou forte comoção no Brasil e grande
repercussão internacional. O Barão deixara um grande legado ao País e auxiliara
prestimosamente a ‘Casa da Memória Nacional’ na travessia de momentos difíceis.
Passaram-se dez anos e finalmente ali estava o ano de 1922, momento no qual o IHGB,
agora instalado no Silogeu, engalanou-se em júbilo para acolher o I Congresso
Internacional de História da América.
A proposta para a organização desse encontro tinha sido apresentada a 11 de
setembro de 1914, na primeira sessão plena do I Congresso de História Nacional2.
Dessa forma, posta em discussão e unanimemente aprovada, entendia-se que a sua
comissão executiva deveria contar além de representantes brasileiros, também com

1
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos: conflito e integração na América
do Sul (da Tríplice Aliança ao Mercosul 1870-2003). 2.ed.Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 127. Ver ainda
MONTEIRO, Débora Paiva. 1912: um ano com dois carnavais. XXVII Simpósio Nacional de História,
Natal, jul. 2013. Entre o adiamento da festa popular para o mês de abril e a opção de realizar o Carnaval
na data prevista – a partir do dia 18 de fevereiro, Domingo – a população carioca acabou por escolher as
duas opções.
2
Actas. RIHGB. Rio de Janeiro, t.LXXVII, parte II, 1914, p.605.
333

participantes estrangeiros, e por esse motivo, seria oportunamente nomeada, tendo sido
o projeto encampado pela direção do Instituto3. Afinal, tratava-se do ano comemorativo
do centenário da independência do Brasil, e o encontro serviria para reiterar junto às
demais nações americanas o desejo da intelectualidade brasileira de caminhar em
direção a um maior intercâmbio com as demais repúblicas do Continente, em
preeminência que era dada para as repúblicas sul americanas, agora guindadas ao status
de co-irmãs.
Caberia observar que ao tempo do Império a menção ao termo república possuía
uma conotação negativa, e se seguida então da adjetivação sul –americana carregava
consigo a mácula do caudilhismo, da instabilidade política, ou seja, do avesso da
civilização, e isso representava tudo aquilo que em termos políticos o Império sob a
direção dos saquaremas procurara se afastar. Em 1922 havia ficado um pouco para trás
o deslumbre com as sociedades européias, bem como tinha sido desfeita ao menos em
parte, a espécie de vertigem que tomara conta de parcela dos intelectuais brasileiros na
chamada belle époque.
Os planos de guerra planejados meticulosamente pelas potências imperialistas
européias para expressar sua superioridade racial e capacidade tecnológica4, onde ambas
as alianças pretendiam fazer uma guerra de movimento, ou seja, rápida e marcada por
ofensivas irresistíveis que levassem à tomada da capital do inimigo haviam redundado
no festim sangrento levado a efeito na primeira guerra de massas da história, onde a
barbárie generalizada acabou sendo estendida da forma mais cruel às populações civis.
Isso fez germinar em meio à intelectualidade brasileira, de forma paulatina e crescente,
um desencantamento em relação à Europa, pois ao que parecia, havia ficado evidente a
vulnerabilidade e os estreitos limites dos seus ideais civilizatórios.
No quinto capítulo desse estudo abordamos algumas das conseqüências indiretas
da Grande Guerra (1914-1918) sobre o Brasil, que conforme vimos, gerou toda uma
campanha em prol do saneamento, com ações higienistas e profiláticas, fosse nas

3
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2007. Observa a autora que apesar de
algumas opiniões contraditórias, o projeto recebeu o apoio do governo brasileiro, bem como o patrocínio
da Pan American Union, uma espécie de precursora da Organização dos Estados Americanos (OEA).
4
GOLLWITZER, Heinz. O imperialismo europeu: 1880-1914. Lisboa: Verbo, 1969; TUCHMAN,
Barbara W. A torre do orgulho: um retrato do mundo antes da Grande Guerra (1890-1914). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1990; MOMMSEN, Wolfgang J. La época del Imperialismo: Europa, 1885-1918.
Madrid: Siglo XXI, 1971; MAYER, Arno J. A força da tradição: a persistência do Antigo Regime (1848-
1914). São Paulo: Companhia das Letras, 1987; e, HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios: 1875-1914.
3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
334

cidades ou no interior do país. Assim, a população do ‘sertão’, como então era chamado
o quase desconhecido interior profundo do território brasileiro – e que certo crítico
munido de bastante ironia e talvez um pouco de exagero localizava no ponto no qual
acabava a Avenida Central, no Rio de Janeiro – passara a ser alvo de campanhas onde
eram utilizados alguns dos recursos da publicidade disponíveis à época, pela imprensa
escrita o que visava atingir uma crescente e mobilizada opinião pública. Uma parcela
desses cidadãos acabaria por engajar-se em ligas, alimentados pelo idealismo e
impulsionados pela energia cívica. Mas para que a chamada ‘regeneração nacional’,
expressão de uso corrente àquela época, amealhasse resultados reais, o mestiço nacional
teria que ser educado, extirpada dele e dos ambientes insalubres no qual vivia, a
ignorância contida no universo dos seus hábitos tradicionais e nos agentes sócio-
ambientais ao seu entorno que conforme demonstravam as pesquisas científicas, o
haviam debilitado secularmente5.

A deflagração daquele primeiro grande conflito mundial havia proporcionado


como uma de suas conseqüências, uma espécie de cruzada, a qual, foi orquestrada por
governos e associações de cidadãos. O Estado e a sociedade civil, ou seja, o ‘estado
ampliado’ conforme a conceituação gramsciana havia mobilizado uma crescente
camada média da população nas cidades, sob esforços de uma modernização que apesar

5
Nesse sentido, o personagem Jeca Tatu criado pelo escritor Manuel Bento Monteiro Lobato (1882-1948)
aparece como um demonstrativo emblemático dessa idéia. Inicialmente (1914) o Jeca Tatu aparece como
um desanimado, um preguiçoso, para depois (1918) ser ‘diagnosticado’ como um organismo doente,
afetado pelos parasitas, pelas verminoses, conforme mostrado no cap. 5. Cabe registrar que após haver
tomado conhecimento do relatório Pena-Neiva, Monteiro Lobato utilizou da 4ª edição (1919) de Urupês
para encaminhar um “pedido de desculpas” formal ao Jeca, nos seguintes termos: “Cumpre-me...implorar
perdão ao pobre Jeca. Eu ignorava que eras assim, meu caro Tatu, por motivo de doenças tremendas.
Está provado que tens no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel
que te faz papudo, feio, molengo, inerte. Tens culpa disso? Claro que não”. Monteiro Lobato apud.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1976, p. 309. Mais tarde, um Jeca modernizado apareceria como uma vítima da exploração
dos latifundiários sob o nome de Zé Brasil. Cfe. Urupês. 15.ed. São Paulo: Brasiliense, 1969., e; Zé
Brasil. São Paulo: Editorial Vitória, 1947. Zé Brasil era um caboclo descalço e maltrapilho. Mais uma vez
Lobato levantava a questão do trabalhador rural, tema recorrente em seus numerosos artigos. Ao contrário
do Jeca Tatu, trabalhava de sol a sol, apesar de submetido às mesmas mazelas orgânicas do Jeca. Lobato
denunciava então a permanência das condições insalubres do campo, além da injustiça que permeava as
relações de trabalho: entrega da metade da produção ao proprietário da terra, constante ameaça de
expulsão da terra, etc... Ver ainda LAJOLO, Marisa.(org.). Monteiro Lobato, livro a livro: obra adulta.
São Paulo: Unesp, 2014 e LUCA, Tania Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação.
São Paulo: Unesp, 1999, especialmente a parte do cap. 1, intitulada ‘Monteiro Lobato: empresário da
cultura’. Cabe no entanto observar que no Dicionário histórico, geographico e ethnographico do Brasil,
editado no ano do Centenário, como parte das comemorações oficiais, caipiras como o Jeca Tatu eram
avaliados por Oliveira Vianna como uma forma de degeneração, pois seriam na sua opinião não somente
um problema de saúde, mas também o resultado de uma ‘má mistura racial’. Seria então o caipira –
presumidamente um mameluco – alguém inadaptável à civilização. Diccionario histórico, geographico e
ethnographico do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. V.1, 1922, p. 286.
335

de não ser unívoca, fora posta em marcha sob a certeza que o Brasil não se tornaria um
país civilizado sem o auxílio da ciência6. Para aquele momento poderíamos certamente
concordar com a lúcida fala de uma historiadora que exímia conhecedora do período
identificou que a febre de brasilidade havia se articulado com os ideais de uma política
de solidariedade americana.

1922 seria o Centenário da Independência brasileira, caso queiramos observá-lo


sob uma perspectiva oficialista, ou seja, como parte de um programa de festas cívicas
organizado por um governo oligárquico, que mantinha uma fé aparentemente
inaquebrantável na ortodoxia manchesteriana, a qual seria vincada em práticas
macroeconômicas que deveriam assegurar credibilidade internacional, traduzida
naturalmente na solvência pacífica dos compromissos internacionais, pois afinal de
contas vivia-se em uma época de colonialismos e imperialismos implacáveis 7. A
imagem da estabilidade fora adquirida pela atuação de homens como Rodrigues Alves e
Campos Sales, por uma série de compromissos internacionais que ao mesmo tempo que
lastreava no plano interno as garantias para os empréstimos externos, garantia os

6
GOMES, Angela de Castro. História, ciência e historiadores na Primeira República. In: HEIZER, Alda,
VIDEIRA, Antonio Augusto Passos (orgs.). Ciência, Civilização e República nos Trópicos. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2010.
7
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. São Paulo: Brasiliense, 1999, p.46. Entre os anos de 1863 e 1888 a Grã-Bretanha concedera ao
governo do Império brasileiro o montante de £ 37.407.300. Entre os anos de 1889 e 1914 a concessão de
empréstimos atingia a espantosa cifra de £ 112.774.433. Autores como Cervo&Bueno (2002) e Santos
(2012) fazem referências à Doutrina Drago, assim batizada em 1902 por alusão ao chanceler argentino
Luis María Drago. Esse diplomata insurgiu-se em resposta ao bloqueio naval imposto pela Grã-Bretanha
e Alemanha à Venezuela, como forma de pressão à dívida que esse país sul-americano havia contraído e
recusava-se a pagar. O governo dos Estados Unidos que ao menos em discurso ainda sustentava a
chamada Doutrina Monroe fora consultado antes da ação militar por aquelas potências européias, e
aquiescera por considerar que os ataques não pretendiam recuperar ou colonizar territórios americanos. O
ministro Rio Branco, que ficou à frente da chancelaria nacional entre 1902 e 1912, não aceitou a
formalização de um protesto conjunto à luz da Doutrina Drago, pois o governo brasileiro desaprovava a
atitude do presidente da Venezuela, general Cipriano Castro. De acordo com Cervo&Bueno, as
manifestações da opinião pública brasileira seriam contrárias à atitude da Venezuela. Cabe acrescer que o
Brasil era credor de vários países do Continente. A revisão da Doutrina Monroe, que passou a ser
conhecida por Corolário Roosevelt justificava a política coercitiva dos Estados Unidos contra os Estados
latino-americanos, ao passo que a potência do Norte garantia à Europa que as nações do Continente, sob
sua supervisão, preservariam a ordem pública e manteriam seus compromissos em dia. Conforme
Bandeira (2003), na conferência de Haia em 1907, Rui Barbosa proclamou que “La souveraineté est la
grande muraille de la patrie”, ao defender a igualdade dos Estados soberanos contra a posição dos
Estados Unidos. Em data pouco anterior a essa, de acordo com Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos,
durante a III Conferência Pan Americana realizada no Rio de Janeiro, cuja preparação foi cuidadosa e
contou com a supervisão do Barão de Rio Branco, a agenda foi concertada de modo a eliminar temas
controversos como a Doutrina Drago. CERVO, Amado Luiz, BUENO, Clodoaldo. História da Política
Exterior do Brasil. 2.ed. Brasília: Unb, 2002; BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Brasil, Argentina e
Estados Unidos: conflito e integração na América do Sul (da Tríplice Aliança ao Mercosul 1870-2003).
2.ed.Rio de Janeiro: Revan, 2003; e, SANTOS, Luís Cláudio Villafañe Gomes. O evangelho do Barão:
Rio Branco e a identidade brasileira. São Paulo: Unesp, 2012.
336

interesses da cafeicultura paulista, umbilicalmente ligada às finanças internacionais. Em


tempos de prosperidade se dava a privatização dos lucros, não obstante em momentos
de dificuldades ocorresse a socialização das perdas; essa era a fórmula em vigor.
Uma república de feições burguesas ainda por completar seus trinta e três anos
de existência, e que entre 1889 e 1914 havia dotado o país de uma estrutura onde se
destacavam grandes troncos ferroviários e a melhoria de portos como nas cidades do
Rio de Janeiro e Santos, pois a crescente demanda européia por matérias primas
impulsionara vertiginosamente o comércio exterior brasileiro.
Não somente o café, mas também a borracha e o cacau eram levados a viajar
para a Europa e os Estados Unidos. E no percurso de volta eram desembarcadas uma
miríade de produtos dos países do capitalismo central, além é claro, de uma vacilante
leva de imigrantes europeus, que na linguagem da época poderíamos denominar
metonimicamente como ‘braços para a lavoura’. Receosos pelo desenraizamento, cujas
dores via-de-regra afinal já haviam experimentado uma primeira vez, quando da saída
das suas aldeias originais, esses europeus eram alcançados pela propaganda oficial
mantida pelos governo brasileiro em algumas selecionadas cidades européias e
convencidos a fazer a travessia oceânica com destino a um praticamente desconhecido
país tropical. As promessas quase sempre não cumpridas inclusas na propaganda
contavam, certamente para a decisão de imigrar, além é claro do nobre, digno,
compreensível e indeclinável ideal de continuar a manter vivos os seus corpos e de suas
quase sempre extensas famílias, conforme as consultas aos livros de entrada das
“hospedarias dos imigrantes” costumam facilmente demonstrar aos pesquisadores.
Embora o término da primeira república brasileira somente viesse a ocorrer em
1930, ou seja, oito anos depois, 1922 poderia então servir para marcar uma espécie de
ruptura na história brasileira, momento que levou a que diferentes setores da
intelectualidade brasileira refletisse sobre a idéia de nação8. Para Marly Silva da Mota, o
que estava em jogo era o sentido da nação brasileira face à modernidade, ou ainda, o
descompasso do país com aquilo que era então entendido por modernidade9.

Assim, novos atores políticos, como os comunistas (que na ainda bucólica


Niterói fundam o seu partido), e a jovem oficialidade das forças armadas – mais

8
Cumpre observar que apenas dois anos após as comemorações do Centenário da Independência vinha a
lume a coletânea de ensaios organizada por Vicente Licínio Cardoso que se propunha a ser um “inquérito
por escritores da geração nascida com a República”. Ver. CARDOSO, Vicente Licínio (org.). À Margem
da História da República. 3.ed. Recife: Massangana, 1990.
9
A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência. Rio de Janeiro: FGV, 1992.
337

precisamente do Exército, atravessado pela influência positivista, e bandeado para o


espectro dos descontentes por aquilo que consideravam ser a decadência e a corrupção
da República – entravam em cena, ou ainda, passavam a marcar posições de forma mais
visível10. Tais setores conforme sabemos, logo entraram em conflito com o governo
republicano.

Porém, naquele momento, essas diferentes vozes críticas não chegavam ainda a
formar um discurso que aparentasse alguma homogeneidade, ou pelo menos articulasse
suas demandas sob uma causa comum. Caberia ainda citar ao grupo de jovens chamados
‘modernistas’, os quais formulavam a partir de São Paulo, aonde se encontravam
radicados em sua maioria, suas contundentes críticas à cultura oficial brasileira, pelo seu
caráter de imitação superficial dos modelos estrangeiros. De acordo com Sven Shuster,
a opinião de alguns intelectuais era que a elite política tradicional havia transformado o
Brasil em uma cópia malfeita da Europa, no que apontavam que o Rio de Janeiro da
Belle Époque materializava isso11. Considerava-se então que as medidas tomadas sob o
objetivo de reeuropeizar o Brasil haviam aumentado ainda mais a dependência
econômica e cultural do país. Dessa forma, passava a caber a São Paulo, no discurso de
uma parte da intelectualidade, o papel de representar o Brasil no rumo de um futuro
melhor. Para eles, São Paulo deveria ser considerado como o local do país onde ocorria
o ‘verdadeiro Brasil’, em antítese ao Rio de Janeiro, considerado como a antinação.

Contudo, para os organizadores dos festejos do Centenário da Independência, o


ano de 1922 deveria servir como uma ocasião propícia para apresentar ao mundo um
país moderno, caminhando para a industrialização, e apto a receber cada vez mais
imigrantes, e claro, mais empréstimos internacionais, o que por sua vez deveria dar-lhe
ares ainda mais definitivos de um lugar ‘civilizado’.

Quanto ao aspecto da modernização, devemos conceder um papel de relevo e


vital importância para as reformas urbanas que haviam começado na capital federal,
ainda durante o governo do prefeito Pereira Passos (1902-1906). Esse trabalho
ambicioso de reordenamento urbano articulou-se obviamente à reforma sanitária
desenvolvida pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz. A conjugação desses esforços

10
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estratégias da ilusão: a Revolução Mundial e o Brasil (1922-1935). São
Paulo: Companhia das Letras, 1991.
11
SCHUSTER, Sven. História, nação e raça no contexto da Exposição do Centenário em 1922. História,
Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.21, n. 1, jan. – mar. 2014, p.1-13. Passim.
338

permitiu transformar a antiga capital – que antes fora conhecida por ‘cidade da morte’,
em face das epidemias de febre amarela – em uma ‘Paris tropical’.

Assim, da Avenida Central, inaugurada em 1904, aos suntuosos prédios em


estilo neoclássico, tudo seria primor. Nas crônicas e na ainda recente arte da fotografia
não deveriam mais aparecer figurados a inconveniência de transeuntes sem paletó ou
descalços12, pois havia a firme determinação de mudanças que se pretendiam
antológicas; aliás, caso consideremos os pardais mandados trazer por Pereira Passos
para uma maior verossimilhança com a paisagem parisiense, poderíamos até dizer mais:
seriam alterações biológicas! E que os nativos tico-ticos encontrassem outro lugar para
viver... Assim como as populações pobres, retiradas dos casarões-cortiços postos abaixo
e mandadas para os subúrbios, quando seus destinos não fossem as nascentes favelas. O
reordenamento urbano havia permitido que a antiga capital, ao ser visitada por uma
empolgada poetisa francesa, fosse por ela declarada “La ville merveilleuse”, ou a cidade
maravilhosa13, ao pôr título no livro de poemas que escrevera.

Haveriam então a priori, a crermos no discurso oficial, muitos motivos para


comemorar o Centenário da Independência, e foi expedido o decreto nº 15.066, datado
de 24.10.1921 para regulamentar a programação das festividades14. Do programa oficial
constavam além da Exposição do Centenário, a inauguração do Panteão dos Andradas,
na cidade de Santos, bem como as inaugurações do novo Palácio para o Conselho
Municipal, e o prédio da Escola Nacional de Belas Artes. Ao mesmo tempo seriam
publicados o Dicionário histórico, geográfico e etnográfico do Brasil e o Arquivo
diplomático da independência. Além desses eventos, seriam realizados congressos sobre
direito, educação e história15, sendo esse último, o foco das nossas atenções.

Dessa forma a Exposição do Centenário – que no curso do seu planejamento fora


batizada sob o pomposo nome de “Exposição Internacional Comemorativa do 1º

12
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. São Paulo: Brasiliense, 1999, p.33.
13
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996, p. 40.
14
Esse Decreto dava execução ao Decreto Legislativo nº 4.175, de 11 de novembro de 1920. Através do
Decreto 15.066 acima citado, o Presidente da República Epitácio Pessoa nomeava uma comissão
constituída pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio
e pelo Prefeito do Distrito Federal. Essa comissão, que ficaria sob as ordens diretas do Presidente da
República, deveria executar o programa de Comemoração do Centenário da Independência Política do
Brasil, já organizado, analisando ainda as modificações que se tornassem necessárias.
15
A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência. Rio de Janeiro: FGV, 1992,
p. 67.
339

Centenário da Independência” – foi realizada no Rio de Janeiro entre setembro de 1922


e julho de 1923, e mostrou-se um sucesso, atraindo mais de três milhões de visitantes,
com a participação de vários expositores estrangeiros. Em relação a essa exposição e
aos congressos, alguns deles embebidos em uma pretensa cientificidade, a opinião de
Schuster é que,

“não só nos oferecem uma perspectiva nacional sobre a maneira como a


elite política e cultural queria dotar de sentido a história do Brasil, mas
também foram espaços transnacionais nos quais houve um rico intercâmbio
entre acadêmicos latino-americanos, europeus e norte-americanos.”16

A linha oficialista implementada pelos organizadores da Exposição apresentava


a sociedade brasileira como o resultado de um longo processo teleológico para o
progresso e a civilização. E a culminação desse processo teria sido a República federal.
Assim, avaliou o autor que “...a comemoração do centenário representa um hiato
histórico, pois era o último instante de autoconfiança e relativa estabilidade de um
sistema político em crise.”17

Face a essa conjuntura, o I Congresso Internacional de História da América foi


realizado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro entre os dias 7 e 15 de
novembro de 1922, no âmbito das comemorações do Centenário da Independência do
Brasil. A iniciativa era pioneira e de indiscutível valor historiográfico, além disso,
visava ultrapassar o espaço acadêmico. Esse encontro internacional de historiadores
alcança em nossa opinião, uma importância inversamente proporcional ao volume de

16
História, nação e raça no contexto da Exposição do Centenário em 1922. História, Ciências, Saúde –
Manguinhos, Rio de Janeiro, v.21, n. 1, jan. – mar. 2014, p.2. O autor chama atenção para algumas
iniciativas como a fundação em janeiro de 1923, no Rio de Janeiro, da Liga Brasileira de Higiene Mental,
liderada pelo psiquiatra Gustavo Reidel, bem como a reunião promovida nessa mesma cidade, para o
Congresso Brasileiro de Higiene, em outubro de 1923. Um desses pesquisadores higienistas, o médico
José Paranhos Fontenelle escreveria para o Diccionario histórico, geographico e ethnographico do Brasil
o capítulo que versava sobre ‘higiene e saúde pública’. No seu discurso, esses higienistas diziam lutar por
um ‘melhor tipo humano’ e entendiam que a ‘raça de caboclos’ colhidos pelas doenças no interior do
Brasil dificultaria essa tarefa, pois haviam sofrido uma ‘degeneração gradual’.
17
Idem, ibidem, p. 12. Observa ainda o autor que a República instaurada em 1889 aparecia então como o
produto final de um longo processo histórico linear. Ocorria desde 1908 – cabe dizer, por ocasião da
Exposição Nacional – uma revalorização do papel histórico de Portugal, das tradições portuguesas e sua
‘heróica’ raça ibérica de descobridores que haviam se dedicado à colonização. Naquele contexto de
comemorações do centenário da independência, a legitimidade do governo republicano e do tipo de
sistema representativo que então havia, aparecia por meio da evocação de momentos gloriosos, e a elite
republicana baseava sua fala em elementos discursivos como o progresso, a civilização e sobretudo, a
raça. Pois o ideal de embranquecimento ainda marcava o imaginário e a prática da cúpula republicana,
sempre empenhada em deter a africanização do Brasil – haja visto as subvenções estatais para a imigração
branca e européia – porém é importante frisar, que conforme vimos em nosso capítulo 5, o teor dos
debates acerca das supostas origens e qualidades do povo brasileiro, já mudara.
340

pesquisas com a qual tem sido contemplado18, pois ao mesmo tempo no qual o ano de
1922 representava uma forma de repensar a nação e a identidade nacional, devemos
lembrar que as comemorações do Centenário haviam sido organizadas para demonstrar,
sob um viés teleológico, que a República teria sido uma antiga aspiração enraizada nos
séculos da colonização, e que o novo regime de governo instaurado a 15.11.1889 não
fora a resultante de uma mera casualidade histórica derivada da parada militar realizada
naquela histórica noite da cidade do Rio de Janeiro, cujo registro na bandeira
republicana acusa ter sido pródiga em estrelas. Entendemos quanto a isso que ganha
realce e deve ser considerada ainda válida para o período a fala da historiadora Angela
de Castro Gomes, para quem a República seria,

“ um regime que precisava ser legitimado, produzindo tanto um ‘passado’ no


qual pudesse se reconhecer e ser reconhecido, como ‘futuros’ que pudessem
ser projetados e nos quais se pudessem acreditar. A Abolição e a República
impactaram profundamente o processo de construção da identidade nacional
brasileira, até porque apenas depois desses eventos foi possível ‘imaginar’ a
existência de uma nação constituída por um ‘povo’, ou seja, integrada
juridicamente por homens livres.”19

Muito mais que no Congresso de História Nacional levado a termo em 1914, o


Congresso de História Internacional da América marcava uma posição do Brasil no
cenário internacional, produzindo um discurso sobre a História que seria demonstrativo
de uma república liberal burguesa em processo de afirmação. Conforme sabemos, o
lócus do poder encontrava-se fora da capital federal, onde as oligarquias dos Estados
mais poderosos davam as ‘cartas do jogo’ e procuravam reforçar suas identidades
regionais, daí o interesse em conhecermos sobre tais constructos alegóricos. Porém,
havia um pouco mais por trás da realização desse Congresso, e sem que anulemos a
iniciativa do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de convocar esse encontro de
historiadores como parte das comemorações do Centenário da Independência, podemos

18
Dessa feita ganham realce as pesquisas saídas da lavra da historiadora Lucia Maria Paschoal
Guimarães, com os artigos em periódicos científicos que aqui iremos explorar, além do livro dedicado ao
IHGB sob parte do período republicano. Além dessas publicações, cabe reconhecer o esforço de Angela
de Castro Gomes ao citar como referência o Diccionario histórico, geographico e ethnographico do
Brasil, vinculando essa publicação às providências do IHGB como parte dos trabalhos executados para a
comemoração do Centenário da Independência. Conforme GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Um
olhar sobre o Continente: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Congresso Internacional de
História da América. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.20, 1997, p. 217-229; GUIMARÃES, Lucia
Maria Paschoal. Limites políticos de um projeto intelectual para a integração dos povos do Novo Mundo:
o Primeiro Congresso Internacional de História da América. Topoi. Rio de Janeiro, v. 6, n.10, jan.-jun.
2005, p. 192-212; GUIMARÃES, Lucia Maria Pachoal. Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2006; e, GOMES, Angela de
Castro Gomes. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009.
19
A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009, 24-25.
341

também entender, corroborando certa intervenção da lavra de Lúcia Guimarães (2005)


que esse evento pode ser pensado como uma tentativa do novo presidente daquele
sodalício, o conde Afonso Celso, de dar continuidade ao programa de trabalho
inaugurado pelo barão do Rio Branco.

Afinal, no tempo em que esteve à frente da presidência do Instituto (1908-1912),


o chanceler José Maria da Silva Paranhos Júnior chegara a esboçar uma jornada
internacional que intentava reunir historiadores do Brasil e de Portugal, o que deveria
ocorrer durante a planejada visita do rei de Portugal D. Carlos ao Brasil. Contudo, o
assassinato daquele monarca, ocorrido em Lisboa a 1º de fevereiro de 1908, acabou por
arquivar os planos de Rio Branco.

Assim, caso aceitemos que as raízes desse Congresso Internacional de História


antecedera aos limites de 1914, quando fora oficialmente formulada, devemos ir um
pouco além, e ultrapassar os fatos lindeiros decalcados na documentação imediatamente
disponível para contemplar o ambiente europeu, onde tais congressos internacionais –
via-de-regra de caráter enciclopédico – vinham se multiplicando entre as principais
metrópoles do Velho Mundo, desde a segunda metade do século XIX. Aliás, conforme
revela Lúcia Maria Paschoal Guimarães, desde o ano de 1898 teria havido uma sugestão
da parte do conselheiro Manuel Francisco Correia de um encontro dessa natureza como
parte das idéias dos festejos relativos ao centenário da Independência do Brasil20.

Afinal cabe entender que a nova orientação dada pelo Barão ao IHGB parecia
manter um forte vínculo com os parâmetros que adotara para a política externa
brasileira. Cumpre lembrar que o chanceler trabalhara para deslocar o eixo da política
externa brasileira da Europa para os Estados Unidos e vinha se dedicando por construir
uma situação de liderança para o Brasil ao sul do hemisfério americano, procurando
ainda reduzir os potenciais atritos com os países do Continente, tendo se dedicado de
maneira firme, logo que assumira a pasta das relações exteriores a resolver problemas
ainda pendentes das fronteiras do território brasileiro21.

20
Um olhar sobre o Continente: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Congresso Internacional
de História da América. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.20, 1997, p. 217-229.
21
De acordo com Cervo&Bueno, a política de limites ao longo do século XIX representou somente mais
um aspecto da política externa brasileira, pois a fronteira não representava o interesse maior e o esforço
principal da diplomacia durante o Império. Para os autores, “a definição das fronteiras engendraria o
corpo da pátria, ainda, no entender dos estadistas brasileiros, condição prévia para qualquer tipo de
integração.” Apenas no quadro de uma estratégia continental – como protelar a solução do lado do
342

Assim talvez pareça ficar mais visível a articulação entre o governo republicano
e o IHGB, cujo elo forte teria sido o chanceler Rio Branco por força da sua atuação nos
assuntos de Estado. Ao prestigiado Rio Branco poderia ser creditada boa parcela da
nova condição que o IHGB desfrutava nos meios governamentais. Se aos primeiros
anos do regime republicano fôra considerado uma resistência letrada ao novo regime,
pois abrigo intelectual de alguns áulicos da monarquia, a ‘Casa da Memória Nacional’
passava agora a desfrutar de uma maior proximidade nas relações com a cúpula
republicana.

Um exemplo bastante ilustrativo do prestígio do Instituto frente ao regime


republicano parece ter sido a visita do ex-presidente dos Estados Unidos da América,
Theodore Roosevelt, ocorrida em fins de 1913. Roosevelt aceitara convites do Brasil e
da Argentina para realizar conferências nesses dois países. No Rio de Janeiro ele toma
posse como sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, profere um discurso
entusiasmado e calorosamente aplaudido, e parte com destino ao Mato Grosso,
encontrando-se com o então Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon em 13 de
dezembro de 1913 na cidade de Porto Murtinho, para início da “Expedição científica
Roosevelt-Rondon”, a qual iria durar até 7 de maio de 191422.

Paraguai, enquanto tática para mantê-lo na sua órbita no subsistema regional; adiá-la na Amazônia, para
não ter que abrir o rio à navegação internacional – seriam ações voltadas para o fortalecimento das
nacionalidades isoladas. O que se visava era a destruição de posições hispano-americanas unívocas.
Ainda para os autores, o mito da grandeza ditara a política de limites. CERVO, Amado Luiz, BUENO,
Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. 2.ed. Brasília: Unb, 2002, p.101. Conforme observa
Demétrio Magnoli, “a delimitação definitiva das fronteiras nacionais brasileiras realizou-se, em sua
maior parte, no período compreendido entre o Segundo Império e a ‘era Rio Branco’. Ao contrário da
lenda, apenas uma extensão relativamente pequena das linhas de limites emergiu efetivamente da época
colonial. De fato, as díades do Paraguai e da Bolívia, com a exceção do segmento guaporeano,
distinguiram-se consideravelmente dos traçados definidos grosseiramente nos tratados de Madri e Santo
Ildefonso.” In: MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no
Brasil (1808-1912). São Paulo: Unesp, 1997, p.295.
22
Conforme explicou Elias dos Santos Bigio, a intenção de Roosevelt teria sido realizar uma expedição
voltada para o estudo dos mamíferos e aves, com vistas a contemplar o Museu Americano de História
Natural, de Nova York. Porém, a finalidade da expedição fora ampliada pelo fato de haver sido dotada
posteriormente de um caráter geográfico e zoológico. A proposta teria partido do Ministro das Relações
Exteriores do Brasil, Lauro Muller. Em companhia de Rondon, o ex-presidente Roosevelt visitou diversos
grupos indígenas localizados principalmente no Estado de Mato Grosso, como os Pareci e os
Nhambiquara, tendo seus naturalistas catalogado aves, mamíferos, répteis, batráquios e peixes. Segundo
relatos de Roosevelt porém, o trabalho mais importante teria sido o da exploração do rio da Dúvida, o
maior afluente do rio Madeira. Os seringueiros o chamavam de Castanho e de Baixo Aripuanã. A
expedição concluiu tratar-se de um só rio, e então o governo brasileiro decidiu denominá-lo rio Roosevelt.
BIGIO, Elias dos Santos. Cândido Rondon: a integração nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
343

Feitas essas considerações, tratemos diretamente do Congresso de História,


dando a palavra para a historiadora Lucia Paschoal Guimarães. Segundo ela, iniciativas
dessa natureza seriam representativas da,

“gênese de um primeiro movimento de cooperação internacional, uma vez


que os representantes oficiais dos países participantes costumavam
aproveitar a ocasião para firmar protocolos e acordos, com o objetivo de
resolver problemas aduaneiros, sanitários, técnicos e humanitários,
adotando, enfim, resoluções de valor normativo.”23

A propósito, cabe registrar que a solenidade de abertura desse Congresso foi


presidida pelo presidente da República, Epitácio Pessoa, com destaque para a presença
do secretário de Estado norte-americano, Charles Evans, além de altas autoridades e
representantes do Corpo Diplomático creditado junto ao governo brasileiro. Ao final
daquela sessão magna, “inaugurou-se uma Exposição de Objetos e Documentos da
Independência, pertencentes ao acervo da Casa da Memória Nacional”24.

As atividades propriamente acadêmicas do congresso seriam complementadas


por uma série de visitas oficiais programadas a instituições culturais tais como a
Biblioteca Nacional, o Jardim Botânico, a Escola Nacional de Belas Artes e o Museu
Nacional. Para os representantes estrangeiros estava agendada uma excursão a São
Paulo, que na luta por uma difícil hegemonia pretendia colocar-se então como uma
espécie de locomotiva da nação. Pois, apesar do Rio de Janeiro contar com um sólido
parque industrial, empresariado ativo e operariado atuante, era identificado como
responsável pelo atraso da nação que agora completava seu centenário25.

Como iremos perceber, a questão regional estaria firmemente incrustrada em


meio às falas do I Congresso Internacional de História da América. Oportuno será
lembrar que ao apresentar-se com a tese ‘A Fundação de S. Paulo’ no púlpito desse
Congresso, Afonso Taunay não era mais o Professor do Ginásio São Bento ou da
Politécnica como quando subira ao tablado daquele Congresso de História Nacional de
1914, conforme vimos no capítulo anterior. Ele progredira bastante nesses oito anos que
separam os dois encontros do Silogeu, pois fora guindado à posição de Diretor do
Museu Paulista (1917), de início de forma interina, em comissão, para ser confirmado
definitivamente no ano de 1923. ‘A Fundação de S. Paulo’ é um alentado ensaio
23
Limites políticos de um projeto intelectual para a integração dos povos do Novo Mundo: o Primeiro
Congresso Internacional de História da América. Topoi. Rio de Janeiro, v. 6, n.10, jan.-jun. 2005, p. 193.
24
Idem, Ibidem, p.196.
25
A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência. Rio de Janeiro: FGV, 1992,
p. 81.
344

constituído mediante a compilação de duas obras editadas em anos anteriores 26. Nessa
ocasião, Taunay utilizou-se de forma emblemática da elaboração de enredo sob o
arquétipo da comédia, esboçando ainda ao longo do texto, os conceitos de nação,
território e civilização.

Os primeiros anos de São Paulo passam a ser narrados a partir das circunstâncias
de abandono que Portugal relegara às centenas de léguas de litoral atlântico que lhe
coube por força do achamento de abril de 1500. Ao fracasso do sistema de Capitanias
Hereditárias, respondia D. João III com o apelo à Companhia de Jesus. Chegados os
jesuítas ao Brasil, fundam no planalto da Capitania de São Vicente seu colégio. Na
opinião de Taunay, tal escolha fora motivada pelo fato dos jesuítas, desde sua chegada
terem arvorado-se “ em protectores dos selvícolas escravisados [ no que ] começaram a
percorrer os engenhos de assucar a syndicar das condições em que viviam os míseros
captivos.”27

Ora, tais ações teriam ofendido “de frente os interesses, habitos e costumes de
uma população inteira” levantando-a furiosamente contra os jesuítas, e levando Manuel
da Nóbrega a entender que,

“ a região litorânea não era a zona propicia para a grande obra que se ia
emprehender, dahi a escolha de um local além da Serra do Mar onde se
fundasse ‘de novo, um povo principiado em sinceridade, verdadeira religião
e amor de Christo’ na phrase do chronista da Provincia do Brasil”.28

Coerente com o movimento ternário da comédia (paz aparente – revelação do


conflito – resolução do conflito), contemplado pela imaginação histórica do século XIX,
e tornada modus operandi na historiografia de caráter conservador, Taunay informa aos
seus ouvintes-leitores que, a princípio, a guiar-nos pelas ‘informações’ de Anchieta, os
jesuítas haviam sido “recebidos como anjos ou apóstolos”29, o que parece indicar a
inexistência de conflitos.

Portadores privilegiados da civilização àquele momento, conceito que Taunay


remete a um sempre bem cultivado intercâmbio com o mundo europeu, noção que seria
portanto exógena e mesmo assimétrica a qualquer influência nativa, os jesuítas tudo

26
São Paulo nos primeiros anos (1554 – 1601): ensaio de reconstituição social e São Paulo no seculo
XVI: História da Vila Piratininga.
27
A Fundação de S. Paulo. Anais do Congresso Internacional de Historia da América. V.3, T. especial.
Rio de Janeiro. Imprensa Nacional, 1927. P. 54.
28
Ibidem, p. 54.
29
Ibidem, p. 55.
345

teriam obtido com o evangelho, aonde haviam fracassado os ‘homens de guerra’.


Estabeleciam os jesuítas, entre eles o noviço José de Anchieta, no sítio da antiga aldeia
dos guaianazes, onde dois caciques, Tebiriçá e Caiuby, já convertidos e “fidelíssimos
amigos” promoviam a remoção das suas tabas para outros locais.

As impressões da missa da fundação do Colégio Jesuítico, célula-mater da


cidade planaltina, aparecem de forma poética sob a lavra de Afonso Taunay,

“Assim na bruma de 25 de janeiro de 1554, em torno do tosco altar onde


celebrara Manoel de Paiva o incruento sacrificio, curiosos observaram os
guayanazes, attentos ao sagrado espetaculo com que se iam familiarizando,
o fervor intenso com que orava aquelle rapaz de mediana estatura, robusto
em sua magreza ascetica, de grande cabeça olhos azues e pouca barba,
aspecto tão magestoso quanto affavel, portador de um todo que inspirava
logo confiança e amor, diz um dos seus biographos. A importância e a
capacidade do lugar escolhido ahi estão a attestar-nos, pela benignidade do
clima, pelo relevo topographico, pela abundancia das águas, pela belleza do
horizonte, o summo tacto, a discreta prudência, a elevação de vistas dos
discípulos de Santo Ignacio...”30.

Mas passado o momento fundador, tempos mais difíceis esperavam pela


nascente São Paulo. Avizinhava-se o conflito entre jesuítas e escravizadores de índios,
representados pelo núcleo de Santo André, de aventureiros e mamelucos sob a liderança
de João Ramalho, núcleo este que em face dos ataques dos índios seria incorporado a
São Paulo, por ordem de Mém de Sá. A partir de 1560, São Paulo passava à categoria
de Vila, elevando-se aos foros de Cidade a partir de 1711.

É a partir da relação de São Paulo, nas palavras de Taunay “atalaia da


civilização, alcandorada sobre o planalto, único ponto do Brasil onde os brancos, até
fins do século XVI, haviam deixado de ser os caranguejos arranhadores da costa,
segundo a phrase expressiva de Frei Vicente do Salvador” com o “tenebroso sertão,
mais ignoto e ameaçador do que a selva mattogrossense de hoje dentre Madeira-
Araguaia”31, que se estabelece o diálogo do historiador com os personagens da trama.
São estes, os brancos europeus: o aventureiro, o colono e o jesuíta, este último guiando
os dois primeiros atores coletivos; não sem traumas, pois os conflitos são sucessivos, e
envolvem a disputa por outros atores: os índios. Estes resistem à civilização, o que vale
dizer para Taunay, quase sempre, ao avanço do homem branco. Congregam-se, e
quando confederados, põem em risco a própria existência da cidade planaltina.

30
A Fundação de S. Paulo. Anais do Congresso Internacional de Historia da América. V.3, T. especial.
Rio de Janeiro. Imprensa Nacional, 1927. P. 57.
31
Ibidem, p. 75.
346

No desenrolar deste conflito, por obra da miscigenação, surge outro ator


coletivo: o mameluco. Melhor adaptado ao meio, o mameluco sintetizaria então, dentro
da resolução cômica escolhida por Taunay para narração dos feitos dos bandeirantes 32, a
reafirmação dos direitos de uma comunidade – neste caso os paulistas em sua História
de conquistas e expansão geográfica – sobre os indivíduos que se ergueram para
desafiá-la como forma definitiva de comunidade – encontrando-se aí os jesuítas e os
indígenas rebelados. Ora, temos nesta modalidade de enredo, a comédia do dever e da
obrigação, pois tão importante quanto à subsistência, é a obediência ao fidelíssimo rei,
consubstanciada na conquista do território e no achado de riquezas minerais para a
sempre ávida coroa portuguesa. Dessa forma, Taunay teria dado um passo no sentido de
resgatar os paulistas da era colonial da fama de insubmissos, bem como para amenizar a
incômoda pecha de Rochela do Sul que marcara a cidade Planaltina, conforme haviam
ficado registrados pelo Conselho Ultramarino, por cronistas coloniais e na História
Geral do Brasil, de Varnhagen.

Com a obra “A Inconfidencia Mineira: Papel de Tiradentes na Inconfidencia


Mineira” (1922)33, Lúcio José dos Santos apresentava-se no Congresso Internacional de
História da América. O Prof. Lúcio dos Santos fora incumbido pela comissão
organizadora do evento para apresentar a sétima tese da primeira seção, divisão que
trataria da História Geral do Brasil.

Em um texto volumoso de mais de seiscentas páginas, inclusas extensas e


numerosas notas finais, o Prof. Lúcio dos Santos defendia sua tese sobre a Conjuração
havida em Minas, reservando papel de relevo ao mais ilustre dos seus Conjurados.
Consultou a imensa documentação que compõe os processos dos Inconfidentes, à época
disponíveis somente nos originais do Arquivo Nacional e Biblioteca Nacional.34

32
José Honório Rodrigues assinalou que Pedro Taques não utilizou nem uma vez as palavras bandeira e
bandeirante, não obstante Taunay, conforme aponta o autor de História da História do Brasil, tenha
encontrado em suas pesquisas, a palavra bandeira empregada pela primeira vez em um documento de
1676, do Conselho Ultramarino, enquanto que bandeirante havia se tornado termo de uso corrente por
volta de 1740. In: História da História do Brasil. 1ª parte (Historiografia Colonial). São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1979. P. 136.
33
Esta obra foi publicada somente em 1927. Em sua Revista, o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro publicou o texto na íntegra, em tomos especialmente dedicados ao Congresso Internacional de
História da América.
34
Este fato foi ressaltado por Francisco Iglesias no prefácio de 1972, escrito para esta obra de Lúcio dos
Santos. Naquela época, Francisco Iglesias creditou a qualidade do texto ao estudo das citadas fontes
primárias.
347

Lúcio José dos Santos havia se auto-imposto uma tarefa, que inferimos seria
superior à que lhe fora confiada pela comissão que organizava o Congresso
Internacional. Seu diálogo se fazia diante de dois extremos que haviam se estabelecido
quanto ao papel do Alferes Tiradentes. O primeiro relato, ainda muito acreditado à
época, havia surgido das mãos de Eduardo Machado de Castro,35 autor de outra obra
que fora por muitos anos leitura obrigatória, sobretudo nas escolas mineiras.36

Republicano histórico, Machado de Castro fizera o caminho inverso de Joaquim


Norberto, o qual partidário da Monarquia e amigo pessoal do Imperador, havia
detratado no século XIX, o plano da Conjuração e a figura do Alferes Tiradentes37. Os
dois autores teriam cometido vícios. E Lúcio dos Santos propunha-se a repará-los,
decidindo-se a recorrer substancialmente às fontes primárias.

Cumprindo-lhe resgatar o verdadeiro papel da Inconfidência e o personagem


histórico principal da malograda tentativa de Revolta, Lúcio dos Santos decidiu-se então
no exame das fontes primárias disponíveis, partir de uma hipótese inicial, a qual
consistia que,

“ o verdadeiro chefe de uma tentativa da natureza da Conspiração Mineira,


não é necessariamente o mesmo que teve a prioridade da idéa; mas aquelle
que mais intensamente a incarna, que maiores elementos congrega para a
sua effectivação, que a conduz á victoria, ou della se constitue a principal
victima, no desastre final”. 38

A partir deste ponto, outra importante hipótese a ser investigada pelo Prof. Lúcio
dos Santos seria a contradição entre a detratação do Regime Colonial, realizada por
republicanos mais ferrenhos, que não descortinavam naquele período da História
brasileira, bondades ou benefícios sendo este “ todo despotismo, maldade, ignorancia,

35
A Inconfidência Mineira. Narrativa Popular. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte. T.
VI, fasc. III-IV, jul.dez. 1901.
36
Trata-se da “Epanaphora historica de Minas”, que o Prof. Lúcio dos Santos lembrava ter lido quando
criança, texto classificado por ele como uma “narração pavorosa”, de “sombria impressão, [pois nela] os
Governadores são monstros de crueldade, rapacidade e perfidia. Não se exceptua nenhum. Ao lado desse
Governo tyranico, o povo era um martyr permanente ! Semelhante concepção é erronea a priori. Como
poderiam os descobridores e colonizadores da nossa terra preparar, em tres seculos de despotismo e
ignorancia, uma nacionalidade vigorosa, capaz de emancipar-se por si mesma e seguir uma evolução
rapida e não sem brilho, da colonia ao imperio e deste á republica? ” A Inconfidencia Mineira: papel de
Tiradentes na Inconfidencia Mineira. São Paulo: Escolas Profissionaes do Lyceu Coração de Jesus,p. 66.
37
Trata-se da “História da Conjuração Mineira”, obra de 1873, de pequeno valor literário no
entendimento de Lúcio dos Santos, o qual aponta diversos equívocos de Joaquim Norberto. Cabe registrar
que Alfredo Bosi destaca a Joaquim Norberto, classificado sob o nacionalismo romântico, como uma
referência sólida para a historiografia justamente por essa obra. BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
38
A Inconfidencia Mineira: papel de Tiradentes na Inconfidencia Mineira. São Paulo: Escolas
Profissionaes do Lyceu Coração de Jesus. 1927. P. 62.
348

escravidão”39. A este pré-conceito sobre o período colonial devia ser articulada a


hipótese acerca da exequibilidade dos planos formulados pelos Inconfidentes. Em sua
tentativa de reconstrução do que poderíamos chamar de ‘campo de experiência’ do
século XVIII brasileiro, Lúcio dos Santos tentava esboçar aquilo que seria um dívida
para com Portugal, pela tarefa que desempenhara na colonização, que de forma
indubitável, e em vista da crítica histórica mobiliada por fatos incontestáveis fazia com
com ele entendesse que,

“contrário à natureza das cousas que um povo assim opprimido e aviltado,


mantido nas trevas e na ignorancia, possa dar essas provas de altivez,
coragem e heroismo. Como poderia haver em Minas uma sociedade já bem
culta – poetas, oradores e escriptores que pedem meças a outros muitos
dentre os que tem produzido a nossa terra, em dias incomparavelmente
melhores? Si os Portugueses tivessem conquistado um paiz já civilizado,
comprehende-se que essa cultura pudesse resistir a seculos de oppressão,
despotismo, rapacidade e violencia. Ha desses exemplos na Historia da
Humanidade. Mas que, com processos tão violentos, com meios tão
inadequados ou mesmo tão contraproducentes, pudessem esses
colonizadores crear aqui uma civilização que tão bellos fructos já produzia
naquella epocha: eis o que se não comprehende, eis o que aberra das normas
geraes que regem os acontecimentos humanos.”40

Foi a partir da leitura dos interrogatórios aos quais foi submetido Tiradentes,
impressão que Lúcio dos Santos classificou haver lhe tomado o espírito de maneira
“extremamente reconfortante” que surgiu a personagem histórica do Alferes Joaquim
José da Silva Xavier. Assim, no decorrer de duros interrogatórios, reconhecendo a
inutilidade de continuar com a negativa da Conspiração, e estando os juízes “senhores
de todos os segredos”41, o propagandista da Inconfidência, papel que nominalmente lhe
fora destinado, revelava-se na realidade, “o heroico chefe da conspiração”42 .

Na avaliação dessa personagem histórica, o sempre contido Prof. Lúcio dos Santos
conseguia vazar e, com sua autoridade, endossar qualidades tais como: “digno”, “hábil”,
“generoso”, “devotado”, “espírito elevado”, “patriota”. Teria sido Tiradentes um herói
desassombrado; um herói cristão – e para Lúcio dos Santos, possivelmente, um bom
católico! – a extrair suas certezas da fé. Para aqueles que procuravam safrear nele a
temeridade, responderia o Alferes, cheio de segurança: “ - não ha de ser nada; Deus
está comnosco.”43

39
A Inconfidencia Mineira: papel de Tiradentes na Inconfidencia Mineira, p. 66.
40
Ibidem, p. 69-70.
41
Ibidem, p. 167.
42
Ibidem, p. 396.
43
Ibidem, p. 391.
349

Apesar de tanto desprendimento e certezas, era possível vingar o sonho dos


Inconfidentes? Na avaliação de Lúcio dos Santos, sim! Pois “os conjurados se reuniram
diversas vezes, fizeram um pacto, formularam um objectivo e adoptaram um plano. Não
importa examinar, si esse plano era sufficientemente minucioso; basta constatar que
era perfeitamente exequivel.”44

Talvez tenha ficado perceptível uma sutil modificação operada por Lúcio José
dos Santos na narrativa histórica que preparou, se comparada a dos historiadores que o
precederam. E o principal beneficiário dessa mudança ao que parece, foi o Alferes
Tiradentes. Pois ao manejar as imagens no passado histórico, Lúcio dos Santos o faz no
limite que a documentação lhe permitia fazer, e assim, pela sua lavra, a devoção
religiosa do Alferes Joaquim José não é nenhuma conversão extemporânea e indigna
para um revolucionário, conforme Joaquim Norberto tentara fazer crer a partir dos
relatos dos frades que assistiram aos Inconfidentes. Dessa forma, ter sido um cristão, ou
ainda um bom católico conforme pretendia Lúcio dos Santos somente teria dado maior
perseverança ao Alferes, e maior verossimilhança a sua imagem de um Cristo-
Tiradentes. Curiosamente mesmo a estátua erguida em Ouro Preto ao início da fase
republicana deu preferência à representação do Alferes da cavalaria paga de Minas
Gerais vestido com a alva dos condenados, talvez uma forma de ampliar o alcance da
aceitação do herói em um país majoritariamente católico. Voltaremos oportunamente a
esse tema.

Conforme observou Lúcia Guimarães (1997), a intenção do IHGB fora convocar


aos cultores das letras históricas do Continente Americano para uma reflexão conjunta
sob uma proposta que era encontrar um denominador comum entre o Brasil e os demais
países americanos, com temáticas que envolviam eventos históricos da colonização e da
luta pela independência, além da evolução geral dessas nações. A memória nacional –
estabelecida antes no ambiente do Instituto como algo proveniente de herança
unicamente européia – poderia a partir de então, contar com a correspondência das
histórias dos países americanos. O Congresso ganhara vida sob uma perspectiva
ambiciosa e contara com cerca de 30 seções de trabalho as quais tiveram o encargo de
cobrir desde o estudo da história geral do continente, e comportar toda a sua divisão
política, além de abordar campos da ciência de Clio, como a história das explorações

44
Ibidem, p. 575.
350

geográficas, arqueológicas e etnográficas; a história constitucional e administrativa; a


história econômica e a militar; bem como a história literária e das artes 45.

Voltando a refletir sobre esse Congresso alguns anos depois, a autora considerou
que o projeto de uma História Geral da América – um projeto colimado pela direção do
IHGB e parte daquilo que se perseguia como uma espécie de comunhão intelectual de
consolidação da doutrina do pan-americanismo – acabou por ter um curto fôlego, e
possivelmente, assim considerou a autora, por haver se perdido no cipoal da diplomacia.
A construção de um passado comum aos povos do Novo Mundo teria servido de suporte
a um projeto de relações interamericanas que privilegiava a esfera política, porém a
diplomacia do continente acabou deslocando seu foco de interesse para o campo
econômico46.

Cabe voltarmos brevemente a 1914, mas por um motivo que julgamos ser tão
justo quanto incontornável, além de como de costume deveras aprazível que é o ato de
travar diálogo com esse ‘presente’ do passado. Lembramos que o I Congresso de
História Nacional fora organizado em um contexto nacionalista, e mantivera de forma
primordial entre seus objetivos a sistematização do saber histórico disponível, ao qual
pretender-se-ia dotar de unidade e coerência. Talvez seja esse o momento mais propício
para tentarmos estabelecer, face aos objetivos que colimamos, algumas conseqüências
ocorridas a partir das investigações promovidas pela chamada geração de 1870, e logo
pela de 1890 que lhe seguiu, as rupturas políticas e sociais acarretadas pela instauração
do regime republicano e do término do regime servil e a constituição de uma sociedade
de classes emergente, tudo isso às voltas com uma conjuntura à qual um historiador
denominou pelo sugestivo nome de inserção compulsória do Brasil na belle époque47.
Cumpriria então tomar como ponto de partida a carga semântica dos conceitos
de nação, território e civilização conforme foram entendidos na obra capital de
Varnhagen, a História Geral do Brasil, bem como da sua versão para as escolas, as
Lições de História do Brasil, de Joaquim Manuel de Macedo, tentando confrontá-las
com as teses que selecionamos em nosso sexto capítulo, e que foram levadas a efeito no

45
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Um olhar sobre o Continente: o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e o Congresso Internacional de História da América. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.20,
1997, p. 217-229.
46
Limites políticos de um projeto intelectual para a integração dos povos do Novo Mundo: o Primeiro
Congresso Internacional de História da América. Topoi. Rio de Janeiro, v. 6, n.10, jan.-jun. 2005, passim.
47
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. São Paulo: Brasiliense, 1999.
351

Congresso de História Nacional de 1914. É preciso contudo ressaltar o quanto são lentas
as mudanças. Assim, por volta de 1915, caberia ainda a Varnhagen o mérito de haver
criado aquilo que de mais notável haveria em nossa literatura histórica. Essa opinião
vinha de ninguém menos que o crítico literário José Veríssimo que naquele ano lançava
a sua bem recepcionada História da literatura brasileira. Haviam no entanto, partida da
pena do meticuloso Veríssimo, uns tantos reparos à História Geral do Brasil. Afinal, a
origem germânica, a formação luso-européia, a constante ausência e pouca convivência
com o país natal, e diria-se até mesmo a constituição de família fora do Brasil haviam
dado a Varnhagen – essa era a avaliação um tanto quanto ontológica de Veríssimo –
uma espécie de fisionomia particular que o afastava do temperamento, da índole e do
sentimento brasileiros. Sua proximidade aos poderosos – Varnhagen fora levado à pia
batismal pelo capitão-general da província na qual nascera e mantivera uma relação de
amizade e proteção com Pedro II – haviam, de acordo com esse crítico literário,
acrisolado no ânimo do Visconde de Porto Seguro o sentimento de afeto e
pertencimento aos próceres mandatários da terra, reforçando seu ímpeto conservador,
dando vazão a que se esforçasse em seus exercícios de idas e vindas ao passado por
encontrar razões e desculpas dos eventuais erros e omissões dos poderosos e das
instituições a que estivessem a serviço, descobrindo-lhes ou ainda inventando-lhes
virtudes e benefícios.
Cultuado por Oliveira Lima, citado com largueza por Max Fleiuss e criticado de
maneira um tanto moderada por Capistrano de Abreu e Sílvio Romero, conforme vimos
em páginas anteriores, a verdade é que a narrativa dos tempos pretéritos da lavra de
Varnhagen, monumentalizada por força das conveniências do status quo saquarema
carecia nos anos iniciais do século XX, de uma falta de sintonia com os interesses
daquele presente histórico, por disfarçar os defeitos da época colonial, por desprezar o
indígena como fator de formação da população, por não captar o que existira por trás e
além dos alvarás, decretos e iniciativas do Estado.
Faltara talvez a Varnhagen aquilo que seria uma providencial alteridade para
reconhecer a positividade das contribuições de outras sociedades humanas, o que
correspondia a dizer, o aprendizado do branco europeu com o índio, o natural da terra.
Para o Visconde de Porto Seguro era ‘forçoso reconhecer’48 que essas culturas guiaram
com sua presença a vida diária dos primeiros colonos com as técnicas fundamentais à

48
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. T.1,7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, p. 214.
352

vida nos trópicos, com conhecimentos que partiam do ‘selvagem’ para o ‘civilizado’.
Essa interação mostrou-se decisiva para a constituição daquilo que viria a ser um ‘povo
novo’, conforme entendera Martius. Assim, os aprendizados e fazeres dos trópicos
americanos estiveram articuladas a conquista territorial, possibilitada pelo
aproveitamento dos antigos caminhos dos índios e realizadas em boa parte pelos seus
descendentes, os mamelucos meridionais. Ausentes ainda estavam os labores do povo
miúdo com suas dores e folguedos, a saga dos tropeiros e das monções, as minas e seus
faiscadores; faltavam também o gado com suas patas sertão adentro em seus imensos
currais, que formariam as hinterlands, alinhavando ainda que precariamente as
capitanias para que no futuro fosse possível falar em um conjunto articulado de
populações pelo território, o que daria verossimilhança ao contar a história de povos que
comungaram valores próximos, de traços culturais que pudessem autorizar a idéia de
um sentimento nacional, de memórias locais que colhidas para serem instrumentalizadas
sob a forma de narrativas históricas pudessem dar verossimilhança a essa construção, e
autorizasse a crer que a nação brasileira estava ancorada no distante passado colonial.
Como bem frisou Ulpiano Meneses49, que ao início dos anos 1990 ocupava o
cargo de Diretor do Museu Paulista, não há qualquer coincidência entre memória e
História, pois se essa última se dá sob a forma intelectual de conhecimento, sendo uma
operação cognitiva, trata-se a memória de uma operação ideológica, um processo de
constituição e reforço da identidade individual, coletiva e nacional. Porém ainda
segundo o autor, a memória fornece quadros de orientação, e funciona mesmo como
uma auxiliar para a assimilação do novo. Conforme sabemos a cultura histórica
encontra-se articulada a um conjunto de representações compartilhadas na sociedade.
Ela se encontra integrada à consciência histórica e auxilia nas escolhas coletivas. A
estrutura temporal do passado apreendida sob a forma de campo de experiência encontra
sua ligação com o tempo presente em operadores hermenêuticos tais como a atenção, a
expectação e a memória50. É das representações compartilhadas no seio da sociedade
que ficam possibilitados os juízos de valor a períodos, personagens, acontecimentos ou
narrativas.

49
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de Meneses. A História, cativa da memória? Para um mapeamento da
memória no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n.34,
p.9-24, 1992.
50
DOMINGUES, Ivan. O fio e a trama. Reflexões sobre o tempo e a história. Belo Horizonte: UFMG,
1996.
353

Cabe refletir então que quando uma idéia se converte em conceito,


exemplificando, formação da nação – ‘nação’; conquista e expansão territorial –
‘território ’; bem como marcha da civilização – civilização, “a totalidade dos contextos
de experiência e significados sociopolíticos aparece”51. Incorporado à abordagem da
história dos conceitos, seguimos aqui o autor, existem tanto elementos sincrônicos,
quanto diacrônicos que tingem com maior plasticidade e realismo essa história dos
conceitos de Koselleck, e como nos ensinou o mestre de Bochun e Bielefeld, a sincronia
está contida na diacronia52, ou para tormarmos as palavras de um de seus comentaristas,
Julio Bentivoglio, umas das características fundamentais “ dos conceitos é o fato de
transcenderem de seu contexto original e a capacidade de se projetarem no tempo e no
espaço.”53 É reconhecido que o historiadores incorporam no interior das suas narrativas
um certo aparato conceitual, sendo através desse que os fatos são ordenados no
discurso da história. No interior da narrativa esse aparato conceitual passa a atuar como
um dispositivo oculto ou implícito de configuração. Hayden White defende que há em
todas as obras de história um profundo conteúdo estrutural que em geral é poético e de
natureza especificamente lingüística, o qual atua como o paradigma pré-criticamente
aceito do que deveria ser uma explicação caracteristicamente ‘histórica’.
De acordo com esse autor, é o nível dessa estrutura profunda que se torna o
ponto de partida para que o historiador pratique um ato essencialmente poético,
prefigurando o campo histórico, o qual fica constituído como um domínio onde possa
exercitar as teorias específicas que usará para explicar o que realmente estava
acontecendo nele, convindo acrescer que o número de estratégias disponíveis ao
historiador está articulada ao importante requisito de plausibilidade. No Brasil dos anos
iniciais do século XX o ‘escrever da História’ era considerado, ao menos no interior dos
Institutos Históricos, como um dever para com a nação, a pena do historiador
movimentando-se sob a gravidade de um ato patriótico, onde a busca pelos ideais de
civilização, ou ainda o tatear no caminho da modernização54 deveria ser empreendida
evitando-se os riscos revolucionários. Naquele momento as escolhas palpáveis aos
historiadores para alinhar sob um enredo o conjunto de estórias que compunham as sua
51
BENTIVOGLIO, Julio. A história conceitual de Reinhart Koselleck. Dimensões. Revista do Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo. V.24, p. 114-134, 2010.
52
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2006.
53
BENTIVOGLIO, Julio. A história conceitual de Reinhart Koselleck. Dimensões. Revista do Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo. V.24, p. 114-134, 2010, p.122.
54
FONTANA, Josep. A História dos homens. Bauru: Edusc, 2004. Ver especialmente o cap.8,
‘Historicismo e Nacionalismo’.
354

narrativas55 se fazia acompanhar de compromissos que chegavam a forçar os limites


daquilo que poderia ser autorizado pelos registros documentais, ou seja, caminhava-se
perigosamente sob uma linha muito tênue entre a inferição – exercício autorizado pela
imaginação histórica – e a mera ficção. Face a esse ambiente intelectual, era diante do
modo cômico que recaíriam as escolhas desses historiadores, guiados pelo premente
desejo de parte da intelingentsia brasileira em realizar uma travessia segura entre o
passado e o futuro no caminho da almejada civilização.
Essas observações procuram levar em conta não somente os restritos modos de
enredo disponíveis na Civilização Ocidental, mas também a influência recebida das
orientações metodológicas dos mestres alemães, além é claro do caráter conservador
então reinante na consciência histórica daquela época, pois a população escolarizada, o
que equivale em nossos argumentos dizer o público educado e leitor, havia tido sua
consciência histórica formada pela versão oficial da História conforme presente nas
Lições de História do Brasil, de Joaquim Manuel de Macedo.
Conforme vimos em nosso primeiro capítulo, as implicações ideológicas da
combinação de um modo cômico de elaboração do enredo e um modo organicista de
argumento são especificamente conservadoras. Resta então dizer que a resolução
cômica pode assumir duas formas: o triunfo do protagonista sobre a sociedade que lhe
bloqueia a caminhada para a meta, como na ‘comédia do desejo’, ou a reafirmação dos
direitos da coletividade sobre o indivíduo que se ergueu para desafiá-la como forma
definitiva de comunidade, como na ‘comédia do dever e da obrigação’56. Voltaremos a
elas oportunamente.
Cabe agora retornarmos novamente a 1922. Naquele momento a interpretação
dita oficial dos organizadores do Centenário avaliava positivamente a participação de
Portugal na História do Brasil. Aliás, não seria por acaso que Portugal fora o único país
a montar seu pavilhão representativo na área destinada ao Brasil. Uma parte da
intelectualidade carioca, de origem ou radicada na capital federal celebrava os
portugueses como co-fundadores da nação. A mistura étnica que ocorrera no Rio de
Janeiro, conforme avaliada por um estudioso como Edgard Roquette-Pinto, autorizava a
dizer, conforme vimos anteriormente, que seria esse Estado uma província negra.

55
Vide nosso cap. 1., ‘O território de Clio’.
56
WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. 2.ed. São Paulo: Edusp, 1995,
p. 201.
355

Aberto à visitação, o passado do país deixava exposto ao lado das suas


realizações, as sua mazelas também centenárias. E para essas arestas não bastavam
pavilhões comemorativos e nem painéis laudatórios. A pirotecnia dos fogos de artifício
não seria suficiente para abafar as vozes discordantes57, pois elas eram muitas e não
apreciavam as contribuições advindas dos portugueses, que consideravam, entre as
nações européias, uma das mais atrasadas. Ademais, quanto aos negros, por força talvez
dos séculos de escravidão e de uma constituição social racialista, vinha a qualificação
nada honrosa de serem pouco responsáveis, desordeiros, descompromissados com o
trabalho, imprudentes e indisciplinados, e portanto avessos às imposições de uma esfera
produtiva em moldes requeridos pelo capitalismo monopolista, abusadamente
denominado na época como propício às nações ‘civilizadas’.
Boa parte das críticas movidas contra os aspectos que se considerava encarnados
no Rio de Janeiro eram provenientes de ensaístas de São Paulo, algumas delas
cometidas por modernistas como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del
Pichia e Plínio Salgado. São Paulo era então apresentada por ser uma espécie de motor
criado pelo denodo de bravos aventureiros que desbravaram os sertões. A miscigenação
do branco com o indígena proporcionara a existência de mamelucos robustos, para os
quais Oliveira Vianna utilizou-se da denominação de ‘raça de gigantes’58, no momento
em que escrevia seu verbete para o Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do
Brasil (1922).
Além disso, nas bandeiras teria havido uma integração racial e social, que
conforme vimos fora frisada na tese de Gentil Moura (1914), daí haver se dado uma
certa naturalização do caráter dos paulistas, pois empresários ou operários, teriam
herdado dos seus antepassados a tradição de serem diligentes, disciplinados e amantes
57
Lembramos que o tema das identidades regionais, ou mesmo a disputa da parte dessas identidades por
se fazer hegemônica é extenso, e não pretendemos nos demorar excessivamente no assunto. Assim como
as identidades paulista e mineira, haviam outras como a gaúcha e a nordestina, materializada em discurso
no Manifesto regionalista do Nordeste (1926), da lavra de Gilberto Freyre. Trataremos aqui, mesmo assim
de forma expedita e com vistas a um melhor entendimento de textos historiográficos estudados somente
dos discursos sobre as identidades mineira e paulista, essa última bastante construída em contraposição ao
Rio de Janeiro. Para os interessados em aprofundar-se no assunto, servem como referências: OLIVEIRA,
Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990; VELLOSO,
Mônica Pimenta. A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. 2.ed. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1990; e DE LUCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: um
diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Unesp, 1999.
58
A expressão surgira com Saint-Hilaire que ao tomar conhecimento da obra do bandeirantismo, teria
declarado: “Dir-se-ia que tais feitos foram realizados por uma raça de gigantes”. Após a utilização por
Oliveira Vianna, a expressão voltaria em 1924, com Afonso Taunay – dando voz a Saint-Hilaire – e em
1926, de empréstimo ao título de um livro de Alfredo Ellis Jr. (1896-1974). Posteriormente reeditado e
renomeado pelo autor, essa obra passava a se chamar ‘Os primeiros troncos paulistas’. Cfe. ELLIS Jr.,
Alfredo. Os primeiros troncos paulistas. 2.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.
356

da lei. Caberia ainda lembrar com base nesses mesmos escritos de Moura, que os rios
dos quais haviam se valido os bandeirantes nas suas incursões seguiam direções que,
conforme a fala dos ideólogos da paulistanidade haviam facilitado a dilatação das
fronteiras.
Ora, isso configurava conforme vemos, também uma naturalização da geografia
paulista, a qual passava a servir como explicação para a conformação geográfica do
território brasileiro. No mais, a expansão e posterior fixação dos sertanistas de São
Paulo no desbravamento e colonização do território brasileiro pareciam também atestar
a sua responsabilidade maior na formação da nacionalidade brasileira, inclusos aí os
resultados da miscigenação racial. Conforme observou a historiadora Maria Isaura
Pereira de Queiroz, ser paulista havia se tornado a “manifestação de uma coletividade
geograficamente localizada”59, expressa pela figura mítica do bandeirante. Essas
personagens pareciam saltar das páginas da História sob o signo do desbravamento, pois
indômitos, conquistadores e rebeldes, possuidores de um vivo sentimento de iniciativa e
audácia, eram apontados por essas qualidades como os responsáveis pela conquista do
imenso território brasileiro. Assim, a matriz da nacionalidade brasileira parecia estar
localizada em terras paulistas60.
Contudo, fatos dessa natureza davam abertura a que os bandeirantes tornados
mineradores, e logo fazendeiros conforme ocorrera em Minas Gerais, fossem pensados
sob uma nova roupagem. Esses podiam também agora passar a ser representados como
os austeros e moderados mineiros, habitantes das montanhas. A intelectualidade
modernista mineira, contando com nomes como os de Carlos Drumond de Andrade e

59
Ufanismo paulista: vicissitudes de um imaginário. Revista USP. São Paulo, n. 13, p.78-87, mai. 1992.
A autora observa que no Dicionário da Língua Portugueza, datado de 1802 da autoria de Moraes e Silva
(1757-1824) a palavra bandeira já se encontrava registrada, sendo entendida como “associações de
homens que vão pelos Sertões debaixo de um cabeça, descobrir terras mineiras. Dantes chamavão assim
os que ião descobrir índios gentios e conduzi-los, ou cativá-los, regatá-los.” A denominação da qual
fizera uso o dicionarista fora tomada de empréstimo das famosas Cartas, do padre Antonio Vieira (1608-
1697), o qual fora contemporâneo das bandeiras. Mais tarde, seguimos o texto da autora, Antonio
Cândido de Figueiredo (1846-1925) registrava na edição de 1913 do seu Novo Dicionário da Língua
Portuguesa o conceito de bandeirante da seguinte forma: “Bandeirante: indivíduo que no Brasil, faz parte
dos bandos, destinados a explorar os sertões, atacar selvagens, etc.” Cabe frisar que esse dicionarista
português informava na introdução da sua obra que havia incluído mais de sete mil brasileirismos que
antes nunca haviam entrado em dicionários da língua portuguesa. Nos cabe acrescer que na edição de
1925 desse dicionário eram mantidas tanto a definição, quanto a informação da edição de 1913. Convém
ainda observar que haviam definições também para “Bandeira: expedição armada, mais ou menos
numerosa, destinadas a explorar os sertões, ou a castigar os selvagens que prejudicam os
estabelecimentos civilizados”, bem como para “Bandeirar: sêr bandeirante.” Cfe. FIGUEIREDO,
Antonio Candido de. Novo Diccionário da Língua Portuguesa. 4.ed. Lisboa: Arthur Brandão, 1925, p.
250.
60
VELLOSO, Mônica Pimenta. A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. 2.ed.
Rio de Janeiro: CPDOC, 1990, p. 71.
357

Gustavo Capanema, entre outros, também participou ativamente da formação da sua


identidade regional. Conforme observou Helena Bousquet Bomeny, o imaginário
coletivo se dá pela articulação, mediante a linguagem, de sentimentos que são ao
mesmo tempo, revelação e criação, ou em outras palavras, a manifestação do real com
aquilo que seria uma mera invenção.
Nesse sentido, a mineiridade, ou ainda, “a idéia de um ‘jeito de ser mineiro’
próprio de um grupo específico entre os demais brasileiros”61 surgia como uma forma
de prover com uma identidade própria aqueles nascidos em Minas Gerais, cujos traços
definidores mais salientados seriam a seriedade no trato – uma espécie de contraponto à
maneira ‘leviana’ do carioca, e a modéstia que deveria de forma elegante, esvaziar a
‘presunção’ dos paulistas62. De acordo com Bomeny, o discurso da mineiridade estaria
articulado a dois fenômenos coetâneos, a saber, a instauração do regime republicano e a
fundação de Belo Horizonte (1897), uma cidade que fora planejada para se tornar o
centro político e intelectual do Estado.
Uma referência ainda obrigatória para refletir sobre a mineiridade seria um
artigo da primeira metade dos anos 1980, da lavra de Otavio Soares Dulci63,
considerado como o primeiro esforço de reflexão acadêmica sobre o assunto64. Em seu
clássico texto, Otavio Dulci utilizou-se do ensaio ‘Voz de Minas’, de Alceu de Amoroso
Lima como referência para a sua análise. No referido ensaio, esse pensador católico
acentuava os atributos que julgara encontrar na gente de Minas Gerais. Seria o mineiro
um sóbrio, por sua dificuldade na tomada de iniciativas, na sua prudência, no amor à
garantia e à segurança, no gosto de conservação e de ordem, no apego à estabilidade e
ao equilíbrio. Assim, o mineiro era apresentado como o homem do bom senso, e não
sendo dado nem à paixão, nem à pura razão, o mineiro teria em alta conta o realismo65,
ou ainda o sentimento do concreto, do sólido, do autêntico. Homem mais da ordem que
da lei, escreveu Dulci (apud.Lima) que não haveria nada menos extremista que o

61
BOMENY, Helena Bousquet. Cidade, República, Mineiridade. Dados, Rio de Janeiro, v.30,n.2, 1987,
p. 187-206. P. 188.
62
Quanto a esse aspecto ver o artigo do escritor Manuel Bento Monteiro Lobato, ‘O direito de
secessão’(1926). In: ________. Na antevespera. 12.ed. São Paulo: Brasiliense, 1968.
63
A Elites Mineiras e a Conciliação. Ciências Sociais Hoje, 1984. São Paulo, Cortez, 1985, p. 7-32.
64
BOMENY, Helena Bousquet. Cidade, República, Mineiridade. Dados, Rio de Janeiro, v.30,n.2, 1987,
p. 187-206. P. 188.
65
Nesse aspecto é importante frisar que “ o realismo supera a utopia: ‘o espírito bandeirante, de
iniciativa e descoberta, a que os mineiros devem a sua própria província natal, não é mineiro, é paulista.
A concepção mineira de vida é, de certo modo, inimiga de viagens, de horizontes diversos, de aventuras e
de riscos.’ ” DULCI, Otavio Soares. A Elites Mineiras e a Conciliação. Ciências Sociais Hoje, 1984. São
Paulo, Cortez, 1985, p. 10. (grifos do autor).
358

mineiro. Enfim, a idéia de conciliação seria um traço peculiar das elites mineiras e
aparece para Otavio S. Dulci como central na auto-imagem das elites mineiras no plano
político nacional.
Aliás, para o autor, a origem da fórmula da conciliação, que seria o foco da
mineiridade enquanto ideologia, possuiria as raízes da sua formulação no Império. Seria
a mineiridade uma interpretação que visara construir um caráter regional sobre um
“terreno pantanoso”, nas palavras do autor, e que se liga à temática da cultura política.
Assim, a mineiridade ou o ‘caráter mineiro’, seguimos o autor, possui sua dimensão
mais propriamente política “expressa pela noção da ‘cultura política’, que representa o
‘padrão de atitude e orientações individuais com relação à política, compartilhadas
por membros de um sistema político”66.
Analisando os argumentos alinhados por Otávio Dulci em seu lapidar artigo,
entendeu Helena Bomeny que esse autor “toma a mineiridade como a ideologia política
de uma elite que dela se beneficia como recurso de poder capaz de integrá-la, a ela,
elite e ao estado de que é porta-voz, no cenário político nacional.”67
Ainda sobre o tema da mineiridade, achamos interessante dar voz mais uma vez
à historiadora Marly Silva da Motta. Para ela,
“Se os elementos geográficos configuravam Minas Gerais como o lugar da
austeridade, da tenacidade, da sobriedade e da discrição, a história havia
predestinado a região a ser o nascedouro da liberdade e da democracia,
conquistadas, sempre era bom lembrar, graças ao ‘martírio’, ao sofrimento e
à luta do povo mineiro. A história do Brasil, na verdade, seria um
desdobramento do movimento da Inconfidência, que conteria em si o gérmen
do sentimento nacional; as origens da nação estariam em Minas Gerais,
berço de Tiradentes. Calcada nos ‘indiscutíveis’ fatos do passado e nos
‘imutáveis’ aspectos da natureza, a mineiridade, quer como ideologia
política, quer como mitologia, revelou-se eficaz ao projetar o mineiro como
elemento indispensável no concerto político nacional.”68

Colocadas essas considerações acerca das identidades regionais mineira e


paulista convém retornarmos ao diálogo com dois diletos homens das letras históricas,

66
Ibidem, p. 12. (grifos do autor). Para o autor ficava sugerida a existência de uma “subcultura política
mineira”, que por sua vez seria consistente com a idéia de um caráter regional. Para Dulci, em termos
sintéticos os elementos de tal subcultura seriam: o apego à tradição e o senso de continuidade; a
valorização da ordem e da estabilidade, bem como a prudência nas iniciativas; o senso de naturalidade,
idéia que seria afinada com uma visão evolutiva da sociedade e da História; o centrismo, o que
equivaleria dizer, aversão aos extremos e ao radicalismo; a busca pelas soluções moderadas, ou pelo meio
termo; o realismo, o pragmatismo e a acomodação às circunstâncias, com acento para a transação e a
acomodação de interesses; e, a habilidade e a paciência como estratégias à consecução de objetivos
políticos a um menor custo.
67
BOMENY, Helena Bousquet. Cidade, República, Mineiridade. Dados, Rio de Janeiro, v.30,n.2, 1987,
p. 187-206. P. 188.
68
A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência. Rio de Janeiro: FGV, 1992,
p. 80. (grifos da autora).
359

que à época estavam visivelmente mais abalizados para tratar sob o ponto de vista da
história, o papel desempenhado por seus Estados na formação nacional. Estavam eles
investidos de uma autoridade que ia além das suas opiniões acadêmicas, pois tratavam-
se de posições assumidas nos aparelhos de Estado de São Paulo e de Minas Gerais.
Desde 1917, conforme vimos, Afonso Taunay estivera à frente do Museu
Paulista. Em Minas Gerais, como também mostramos, encontrava-se desde 1924, Lúcio
José dos Santos como diretor da Instrução Pública. O nosso intuito será apresentar a
forma pela qual esses historiadores conciliaram com as suas graves funções os
interesses mobilizados pelas oligarquias dos seus Estados, no sentido de reforçar as
identidades regionais. Portanto, não iremos intentar aqui o que seria uma monótona
revisão que visasse recuperar e discutir criticamente a extensa bibliografia que trata dos
bandeirantes paulistas ou da Inconfidência Mineira.
Afinal não se encontra inscrito em nossos objetivos tecer observações acerca da
validade para os dia atuais, da historiografia produzida por Taunay ou L.J.Santos, mas
somente demonstrar para aquele momento histórico a pertinência das narrativas
históricas que produziram com os interesses das oligarquias – que afinal representavam
– em constituir uma identidade regional, porém de forte apelo nacional, alicerçada nos
registros históricos. Ainda que tais narrativas tenham sido feitas no limite àquela época
aceitável para o exercício da imaginação histórica, e mesmo que hoje algumas dessas
interpretações nos pareçam forçadas. Não obstante, cabe reiterar, a proposta desse nosso
estudo se limita a produzir uma explicação – que esperamos ser a mais consistente
possível – da forma como tais identidades regionais foram tratadas pelos historiadores
que temos sob foco, a ponto de serem reconhecidos pela via da imaginação histórica –
os bandeirantes em sua errância teriam se radicado em todo o território nacional; a
conjuração em Minas teria lutado pela independência do Brasil – enquanto símbolos
representativos não mais de uma região, mas de alcance nacional.
Comecemos pela versão de Lúcio José dos Santos para a Inconfidência Mineira
e seu herói maior, o Alferes Joaquim José da Silva Xavier. Na segunda metade da
década de 1920 o Professor Lúcio José dos Santos era reputado no interior do Instituto
Histórico de Minas Gerais como uma espécie de continuador dos trabalhos do eminente
360

Diogo de Vasconcellos69, historiador que ocupara o cargo de orador perpétuo do


IHGMG, e que falecera a 17 de junho de 192770.
Em 1926 veio a lume um texto aparentemente despretensioso, a “História de
Minas Geraes: resumo didactico”, iniciativa à qual Lúcio dos Santos apontava, partira
da Casa Weiszflog Irmãos, empresa editora que então atuava com sedes em São Paulo e
no Rio de Janeiro. Em seu prefácio, o autor informava que o texto vinha simplificado
para torná-lo próprio às escolas. Porém, observemos as condições nas quais o livro fora
publicado: 1. Preparado com cuidados didáticos para torná-lo próprio ao uso nas
escolas; 2. Escrito e indicado pelo próprio Diretor de Instrução Pública, valeria dizer, o
próprio autor do livro; 3. Preço de venda relativamente baixo – 5$000 – ou seja, cerca
de um quarto do valor de tabela do livro de Afonso Taunay, ‘Grandes Vultos da
Independência’, que possuía número semelhante de páginas e encadernação semelhante,
em capa dura. Ora, quando associamos essas características à imagem escolhida para
estampar a capa, onde encontra-se reproduzido o brasão do Estado de Minas Gerais, fica
denunciada a chancela oficial do livro. Ainda que o autor tentasse direcioná-lo para a
Casa Weiszflog Irmãos, parece à vista da crítica histórica, um documento lavrado no
bureau de uma repartição pública por um servidor do Estado – o que efetivamente
Lúcio José dos Santos era – e sob ordens diretamente expedidas ou sancionadas pelo
Palácio da Liberdade.

Aliás, a palavra liberdade, ou ao menos a aspiração por essa, se faz sentir presente
em toda extensão desse pequeno livro, e o texto assumia o caráter cívico-pedagógico de
formar o cidadão. Após rápidas inserções de caráter geral, o Professor Lúcio dos Santos
iniciava efetivamente a sua narrativa sobre a história das Minas Gerais. Então ele fala
do território mineiro, de difícil penetração pelo relevo acentuado, rios invadeáveis,
sertões ínvios, febres mortíferas e animais ferozes. Porém o obstáculo maior ficava por
conta das tribos indígenas, povos os quais ele classificava como estando na ‘infância da
civilização.’

Pois, conforme explicava o autor, haviam tribos tidas como inassimiláveis e que
moveram guerra ao colonizador branco, aos ‘portadores da civilização’: os Aimorés,

69
Acta da Sessão de 21 de abril de 1928. Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes. Revista do
Archivo Publico Mineiro. Belo Horizonte, anno XXII, 1928, p. 56.
70
Acta da Sessão de 27 de novembro de 1927. Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes.
Revista do Archivo Publico Mineiro. Belo Horizonte, anno XXII, 1928, p. 7. Cabe acrescer que à beira do
seu túmulo, no dia do seu sepultamento, recebeu o pranteado historiador uma expressiva antonomásia
cunhada por Francisco Campos, de “Heródoto mineiro”.
361

Goitacazes e Cataguazes seriam os mais terríveis. O predomínio desses últimos no


território mineiro chegou a ser tão grande que primitivamente o distrito das minas ficara
conhecido pelo nome de Minas Geraes dos Cataguazes. Mas haviam também os Carijós,
“doces, intelligentes e amigos dos Christãos”71. Para o autor, pensador e militante
católico conforme vimos, deveria ser registrado que a primeira entrada no território
mineiro se dera no ano de 1553, sob o signo da cruz, pois contara desde já com o padre
João de Aspilcueta Navarro, jesuíta que chegara em companhia de Manoel da Nóbrega.

Atendendo a um pedido real formulado por D. Affonso VI, uma nova era iria
começar. O Professor Lúcio José dos Santos refere-se respeitosamente aos bandeirantes
e a toda sorte de dificuldades enfrentadas por estes, chegando a reproduzir uma efígie de
Fernão Dias Paes Leme, bem como uma fotografia da sua estátua em mármore, do
Museu Ipiranga. Narra então os entreveros havidos entre sertanistas como Borba Gato e
enviados da Coroa, como D. Rodrigo Castello Branco, o qual acabou assassinado no
Sabarabuçu. O episódio sangrento do Capão da Traição e a Guerra dos Emboabas
figuram então como as causas que acabariam culminando em providências da parte do
governo português: a criação da Capitania de Minas Gerais.

É o momento no qual Lúcio dos Santos aproxima-se ainda mais dos seus
esperados jovens leitores para confidenciar-lhes sobre o grande patrimônio de Minas
Gerais. Da riqueza do território mineiro, tanto era o ouro e as pedrarias que nele se
encontravam, era um segredo de polichinelo, há muito por todos sabido. Porém a ironia
é que seria exatamente a partir da prodigalidade com a qual a natureza dotara Minas
Gerais, atraindo para essa Capitania a cobiça da Coroa portuguesa mediante prepostos
venais e arrogantes que a história de Minas Gerais que interessava realmente começava
a ser contada. Pois o grande e real patrimônio mineiro seria de ordem imaterial, e
passava a ser revelado aos leitores através de eventos que o autor chamaria por “reacção
nativista”. Esses haviam sido motivados pelos abusos do poder à sombra do
absolutismo monárquico.

Bastante fundamentado na autoridade de Diogo de Vasconcellos, o autor apresenta


personagens históricas pelas quais revelava nutrir indisfarçadas simpatias: Manuel
Nunes Vianna, Felipe dos Santos e até um governador português, D. Rodrigo José de
Menezes. A condenação ficava reservada quase sempre aos representantes da Coroa,

71
Historia de Minas Geraes: resumo didactico. São Paulo: Melhoramentos, 1926, p.19.
362

que nas duas margens do Atlântico se empenhavam no cumprimento dos interesses cada
vez mais aviltantes da dinastia reinante em Portugal, de hábitos suntuários e
dissipatórios. Assim é apresentado D. José I, “rei incapaz, cupido e libidinoso”72 que
ficou entregue aos desmandos do seu onipotente ministro Sebastião José de Carvalho e
Mello, o Marquês de Pombal, de “refalsada hypocrisia”73. A esses se ombreariam
governadores da mais negra memória, tais como Antonio Carlos Furtado de Mendonça,
D. Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcellos – Conde de Assumar, D. Luiz da
Cunha Menezes (o fanfarrão Minesio, das Cartas Chilenas), e evidentemente Luiz
Antonio Furtado de Mendonça, o Visconde de Barbacena, governador de Minas Gerais
à época da Inconfidência Mineira74.

Traçava então o autor uma espécie de fio a conduzir seu leitor através dos
movimentos que haviam abalado a pretensa estabilidade que o governo português
julgava possuir em Minas Gerais. Contra seus prepostos se levantaram os mineiros em
1720, com Felipe dos Santos, assim como nos motins do Pitangui e do rio das velhas,
inicialmente contra o fiscalismo português, e posteriormente na Inconfidência Mineira,
quando chegou a ser contestada a soberania portuguesa. O grande patrimônio dos
mineiros seria portanto, a aspiração pela liberdade. Seria tal aspiração a resultante de
um vento geral de revolta que espalhara pela Europa e fizera com que germens
libertários chegassem à América.

Corria o mês de agosto de 1788 e chegava ao Rio de Janeiro o mineiro José


Alvares Maciel, o qual após formar-se em Coimbra, viajara pela Inglaterra. Maciel
vinha a ser cunhado do Comandante do Regimento dos Dragões, e Tiradentes em
licença na capital da colônia trava com ele uma rápida e aparentemente sincera amizade,
em conversa na qual o recén retornado doutor em ciências é colocado a par do
abatimento no qual se encontrava a Capitania de Minas Gerais, o sofrimento do povo e
a ameaça da derrama. Maciel então lhe conta o que vira e ouvira na Europa. Para Lúcio
José dos Santos teria sido uma observação de Maciel a responsável pela faísca que veio
a provocar um incêndio no Alferes Joaquim José. Maciel declarara que ,

72
Historia de Minas Geraes: resumo didactico. São Paulo: Melhoramentos, 1926, p. 71.
73
Ibidem, p. 71.
74
Curiosamente o Professor Lúcio dos Santos refere-se ao movimento ocorrido em Minas Gerais como
Inconfidência, tanto na sua tese de 1922 para o Congresso Internacional de História da América quanto no
seu resumo didático. Posteriormente ele voltaria ao tema, em palestra no IHGMG, denominando as
tratativas havidas em Vila Rica como Conjuração.
363

“na Europa, extranhava-se geralmente não tivesse o Brazil imitado o


exemplo das colônias inglezas da America do Norte, sacudindo o jugo da
metrópole. Fel-o Maciel sem avaliar o alcance dessas palavras, na alma
ulcerada de Tiradentes. Adquiriu este logo a convicção de que era empreza
perfeitamente viável a libertação do Brazil. Esse pensamento não lhe sahiu
mais do espírito. Entrou elle a acariciar a Idea de independência, depois a
desejar com todo o ardor o rompimento com a metrópole, e finalmente a
pensar nos meios de levar a effeito a separação e libertação do Brazil.”75

Foi contudo em um passeio no qual convidou ao jovem amigo sob o pretexto de


expor os planos para conduzir ao abastecimento da cidade as águas dos rios Andaraí e
Maracanã que surge pela boca do Alferes os planos sobre uma sublevação em Minas.
Maciel concordara com a idéia, apesar de posteriormente haver negado, como todos os
outros indiciados pela Devassa. A exceção ficava para o Tiradentes, que segundo Lúcio
dos Santos, não era um homem vulgar, pois dotado de uma “grande intelligencia e
excellente coração”. No lar no qual fora criado certamente não teria sido descurado a
educação, pois havia na família dois sacerdotes! Seu avós paternos e avô materno eram
portugueses, restando por brasileira somente a avó materna, natural de S. Paulo.
Tiradentes era presumivelmente branco! Inteligencia mineralógica não lhe faltava e o
governador D. Luiz da Cunha Menezes lhe confiara por isso, importantes e honrosas
comissões. Coragem e prudência também não lhe haviam faltado em outra importante
tarefa que desempenhara na Mantiqueira.

Porém com as prisões, justificava Lúcio dos Santos, todos os indiciados, mesmo
aqueles que lhe eram mais próximos, se preservaram do contacto com o Alferes,
tentando descobrir-lhe defeitos físicos e morais. O resto dessa história todos sabemos
desde os primeiros anos dos bancos escolares: com a destituição do governador, cujo
destino oscilou entre a execução e a expulsão da Capitania, seria proclamada uma
república, com capital em São João d’El Rei, criada uma universidade, e a bandeira,
pela proposta do Alferes teria um triângulo representando a Santíssima Trindade, com o
verso de Virgílio, essa uma proposta de Alvarenga Peixoto: Libertas quae será tamen.76

75
Historia de Minas Geraes: resumo didactico. São Paulo: Melhoramentos, 1926, p.85.
76
Talvez caiba estender para o resumo didático de 1926, uma opinião de José Ivan Calou Filho expressa
para a tese do Congresso Internacional de História da América. Escrevendo no ano de 1989 esse
pesquisador do Arquivo Nacional defendia que o texto de Lúcio José dos Santos (1922) assumiu uma
postura conciliatória fugindo tanto da abordagem de autores monarquistas que haviam condenado
Tiradentes, quanto dos republicanos que o haviam endeusado. Cfe. Versões clássicas da Inconfidência
Mineira. Acervo. Rio de Janeiro, v.4, n.1, jan.jun. 1989, p. 149-174. Da nossa parte sugerimos que talvez
por esse traço definidor da ideologia da mineiridade o texto de Lúcio José dos Santos tenha servido como
base de exposição didática durante tanto tempo.
364

Assim, nesse pequeno livro feito a título de resumo didático não podiam mais
haver sérias dúvidas, e Tiradentes passava a ser o motor inicial da trama. Foi do seu
encontro no Rio de Janeiro, com José Álvares Maciel, que se deu início, por iniciativa
do Alferes, a Conspiração. A derrota do plano dos Inconfidentes não se deveria a uma
suposta leviandade do Alferes e suas falácias de propagandista, mas à delação de um
devedor da Fazenda Real, Joaquim Silvério dos Reis. Assim, o golpe de morte na
conjuração e fator capital para que fossem estancados os planos de sedição passava a ser
a suspensão da derrama por ordem do Visconde de Barbacena.

Se a Nação já se encontrava muito próxima de guiar seus próprios destinos,


pergunta Lúcio José dos Santos, teria sido melhor que o projeto dos Inconfidentes
tivesse conseguido êxito? Categórica é a resposta do Prof. Lúcio dos Santos, em
demonstração cabal da feição conservadora de História que promovia: “Não estava o
paiz maduro para a independencia. O exemplo dos nossos irmãos da America Latina, é
bastante instructivo. Trinta e tres annos depois da conjuração, veiu-nos a
independencia como o resultado ‘natural’ dos acontecimentos” 77. Na opinião de Lúcio
dos Santos a República sonhada pelos Inconfidentes viria no tempo adequado, ou seja,
somente um século após os trágicos acontecimentos narrados, porém após 67 anos de
regime monárquico, que segundo ele, permitiram eliminar os choques que naturalmente
viriam.

Naquele ano de 1926, Afonso d’Escragnolle Taunay trazia a público um


pequeno livro o qual acreditamos, continha algumas proposições que andavam
presidindo parte dos seus esforços como Diretor do Museu Paulista. Assim como no
caso do resumo didático de Lúcio dos Santos, a proposta também fora encampada pela
Weiszflog Irmãos Incorporada e encaminhava-se no sentido de promover uma história
que sendo paulista, seria a síntese da História do Brasil. Tratava-se do volume intitulado
Índios! Ouro! Pedras!: Antonio Raposo Tavares. Fernão Dias Paes Leme. À Gloria das
monções.

Taunay já era àquela época um historiador consagrado78, e ocupava conforme


vimos, desde 1917, um cargo que podemos considerar como de importância crucial para

77
Historia de Minas Geraes: resumo didactico, p. 103 . (grifo nosso).
78
Somente sob a rubrica ‘História’ haviam sido lançados sete títulos sobre a História do Brasil e cinco
sobre a História da Cidade de São Paulo. Ao que nos interessa mais de perto haviam sido publicados seis
volumes versando sobre a História de São Paulo: Á gloria das monções; História Geral das Bandeiras
365

as pretensões da oligarquia do seu Estado no sentido de glorificar o passado de São


Paulo. Há três anos recebera Taunay a confirmação da sua permanência na qualidade de
diretor efetivo do Museu Paulista. Uma leitura atenta dos excelentes trabalhos saídos
das lavras de Antonio Celso Ferreira e Ana Cláudia Fonseca Brefe nos inclinam a inferir
que a efetivação de Afonso Taunay nesse honroso cargo, ocorrida no ano de 1923,
muito se deveu aos bons serviços que prestara envolvendo as comemorações do
centenário da Independência em São Paulo. Naquele momento, segundo Ferreira, o ato
fundador da nacionalidade foi conduzido de forma a apresentar a antiga capitania, e em
especial a cidade Planaltina como uma presença nuclear na história brasileira 79.

Nessa oportunidade além de naturalmente envolver-se em uma apressada, mas


ao que parece, bem sucedida reforma do Museu Paulista, organizou Taunay, além disso,
várias exposições comemorativas no seu interior. Também participara de uma série de
atividades e eventos entre os quais convém destacar a comissão julgadora que deveria
avaliar as propostas de construção de um monumento em homenagem à Independência,
e a co-participação como mentor intelectual do projeto do monumento aos Andradas na
praça da Independência em Santos, tornado possível pelo arquiteto Gaston Castel e pelo
escultor Antônio Sartorio, ambos franceses80.

Em Índios! Ouro! Pedras! a idéia central encaminhava-se no sentido de


promover uma história que sendo regional, devia servir como uma versão traçada em
largas passadas às pretensões da história paulista em apresentar-se como uma síntese da
História do Brasil. Repetia-se então de forma um pouco velada, as lições de Capistrano
de Abreu nas quais ficara evidente que os sertanistas paulistas haviam se tornado
fazendeiros. Tratava-se de um pequeno volume, contando pouco mais que uma centena
de páginas. A iniciativa parece ter sido bastante feliz e Afonso Taunay, via-de-regra
acusado de prolixo por seus críticos conseguia retratar as idéias centrais que ocupariam

Paulistas (tomos I e II), Um grande bandeirante: Bartholomeu Paes de Abreu, Collectanea de documentos
da antiga cartografia paulista, Ensaio da Carta Geral das Bandeiras Paulistas, e Na era das bandeiras, a
qual já se encontrava em sua 2ª edição.
79
FERREIRA, Antonio Celso. epopéia bandeirante: letrados, intituições, invenção histórica (1870-1940).
São Paulo: Unesp, 2002; e, BREFE, Ana Claudia Fonseca. O Museu Paulista: Affonso de Taunay e a
memória nacional (1917-1945). São Paulo: Unesp, 2005.
80
Cabe observar que o projeto vencedor do concurso público para o monumento à Independência foi
muito contestado. Vencido pelo escultor italiano Ettore Ximenes, a proposta foi criticada por sua
inexpressividade, e entre os críticos mais ruidosos, estava Monteiro Lobato. Naquele sete de setembro de
1922, a obra estava inacabada, e somente seria entregue dali a quatro anos. Segundo observação de
Antonio Celso Ferreira, corria à boca pequena que Ximenes havia reaproveitado um projeto apresentado
ao Czar da Rússia, mas que fora inviabilizado pela eclosão da revolução bolchevique. Ximenes teria ainda
proposto uma maqueta idêntica ao governo belga. Cfe. FERREIRA(2002) e BREFE (2005).
366

tanto a sua vida de historiador81, quanto boa parte da sua atividade de museólogo. Ao
longo da sua vida de historiador Afonso d’Escragnolle Taunay iria basear-se em larga
medida naquilo que ele considerava como os três fatores da civilização brasileira, que
segundo ele seriam os fastos das bandeiras, a obra dos jesuítas e a guerra contra os
holandeses.

Índios! Ouro! Pedras! era a reunião de esboços biográficos de duas das maiores
personagens do sertanismo, um deles representando a expansão territorial que teria sido
proporcionada a partir do desassombro dos bandeirantes paulistas. Para Taunay, era
devido a Antonio Raposo Tavares serviços memoráveis, como o avanço sobre as
reduções jesuíticas do Sul, o socorro a Pernambuco, à época em luta com os holandeses,
e o apoio decisivo ao reconhecimento em São Paulo, de D. João IV como legítimo rei
de Portugal. Por fim era adjudicado a esse sertanista a grande bandeira também
conhecida pelo nome de périplo raposeano.

Ao debelar a tentativa dos castelhanos de aclamar Amador Bueno como rei de


São Paulo, integrar expedições militares contra os holandeses e estancar a progressão
dos jesuítas espanhóis a Oeste, Antonio Raposo Tavares era elevado por Taunay à
figura máxima do primeiro grande ciclo do sertanismo. Antonio Raposo Tavares
aparece como conquistador do território para a coroa portuguesa,

“ A civilização no caso vertente representavam-na os ignacinos, mas já os


bandeirantes encaravam a realidade da expansão essencial do Brasil. Se-lo-
ia inconsciente? Não! Ao padre Justo Mansilla que lhe lança em rosto a
rebeldia de vassallo invasor de terras da coroa de Hespanha, soberbamente
retruca Antonio Raposo Tavares: ‘ide-vos vós daqui, que estaes em terras de
Portugal e do Senhor Conde de Monsanto!’ ”82

Mas também como peça-chave no episódio da aclamação de Amador Bueno. De


acordo com Taunay é a,

“Antonio Raposo Tavares a quem cabe encabeçar o movimento. Quando o


capitão mor João Luiz Mafra, vindo do littoral a S. Paulo, expressamente
para conhecer e manter a estes reinos de Portugal o senhor D. João, o
quarto, promettendo-lhe a homenagem da capitania é o vereador mais velho
da villa, Paulo do Amaral, por tres vezes arvora o pendão das quinas
clamando de cada uma Real! Real! Real! por El Rei Dom João o quarto, Rei
de Portugal! Respondem a cada uma destas vozes todos os circumstantes
com mil vivas e jubilos. No auto de ‘juramento, obediencia e eterna

81
Nesse sentido era apresentado uma espécie de adiantamento daquilo que viria a ser a História Geral das
Bandeiras Paulistas, lançada entre os anos de 1924 e 1950.
82
Índios! Ouro! Pedras! Antonio Raposo Tavares; Fernão Dias Paes; Á Gloria das Monções. São Paulo:
Weszflog, 1926. p. 7. Era o conde Monsanto o donatário da Capitania de São Vicente.
367

vassalagem ao primeiro Bragança assigna Antonio Raposo Tavares logo


após a primeira autoridade da Capitania”83.

Ombreado a Antonio Raposo Tavares, Afonso Taunay resgatava o sertanista


Fernão Dias Paes Leme para a História. No século XVIII Fernão Dias havia sido
imortalizado nas páginas da Nobiliarquia Paulistana por seu sobrinho-neto, Pedro
Taques. Para Afonso Taunay, Fernão Dias Paes seria um amigo da Igreja, capaz de
reconciliar jesuítas e paulistas, modo de caracterização tropológico sinedóquico
utilizado por Taunay em sua forma de argumentação organicista de teorizar a formação
da Nação. Na sua lavra os paulistas são premeditadamente confundidos com os
bandeirantes. Fernão Dias Paes representou para Taunay – utilizemos da sinédoque tão
ao seu gosto – a passagem dos paulistas “de apresadores de índios” a “ revolvedores
ásperos do solo, em busca de minerações preciosas.”84 Seria por isso colocado no
pedestal para encarnar o segundo grande ciclo bandeirante, o dedicado à da pesquisa do
ouro e das pedras preciosas.

Considerava Taunay que o “Caçador de Esmeraldas” fora abnegado e confiante


o suficiente para utilizar-se de uma substancial parte de seus próprios bens para realizar
a sua bandeira, tendo sido capaz de mandar executar nos sertões o seu próprio filho
bastardo, o qual ousara desafiar a sua autoridade. Pela obstinação que acabou lhe
custando a fortuna e a vida, Fernão Dias impressionou profundamente a Taunay.

De Fernão Dias Paes Leme, segundo Taunay, haviam partido serviços tão
importantes quanto aqueles executados pelo ‘Senhor de Quitaúna’. À custa das suas
vidas e fazendas, já idoso, Fernão Dias embrenhara-se nos sertões ignotos, não por
simples avidez por riquezas minerais, mas em atendimento aos reclamos do Soberano
português. Essa interpretação de Taunay possibilitava definitivamente a que os paulistas
do século XVII fossem reabilitados pela história. Varnhagen falara em súditos infensos
às solicitações da Coroa, apartados e insubordinados. Visava assim Afonso Taunay a
produzir o reverso para a imagem da rochela, uma metáfora que definira o impenetrável
território paulista e seus arredios habitantes, onde os caminhos para São Paulo eram
cegados, e governadores como Salvador Correia de Sá e D. Fernando de Lencastre
desafiados em sua autoridade. Ao registrar alguns desses episódios, o autor da História
Geral do Brasil alinhara-se a Rocha Pita e fizera coro à tradição emboaba de detratação

83
Idem, Ibidem, p. 11.
84
Idem, Ibidem, p. 46.
368

dos paulistas85. A outra face da moeda que definiria os paulistas, agora cunhada por
Taunay e que se utilizava dos relatos de Pedro Taques e Frei Gaspar da Madre de Deus
era de súditos desassombrados face aos desafios, desprendidos perante os perigos,
porém altivos diante da opressão e da tirania.

Ora, para as pretensões da oligarquia paulista no pacto de dominação estabelecido


pelo condomínio oligárquico conhecido como modelo Campos Sales, estabelecer o
passado paulista sob o signo da independência contava fundamentalmente para a
aceitação da História de São Paulo enquanto a própria História do Brasil, conforme
pretendiam os próceres do IHGSP, definição que esses magnates, conforme observamos
em páginas passadas, haviam grafado no primeiro número da revista desse Instituto. Na
estruturação cômica escolhida por Afonso Taunay para contar a história dos sertanistas
de S. Paulo enquanto história do Brasil deveriam contar os três fatores que ele
considerava constituir a civilização brasileira, que conforme vimos foram, a obra dos
jesuítas, a guerra contra os holandeses e evidentemente os fastos das bandeiras, onde ao
estilo sinedóquico rankeano ele apresenta os bandeirantes como “paulistas”.

São Paulo não deveria figurar então como uma ‘rochela’, mas como um núcleo da
‘verdadeira’ formação da nacionalidade. Abandonada aos seus próprios recursos nos
primeiros anos da colonização, sua economia marginal teria condicionado os paulistas a
embrenhar-se sertões adentro aonde a cobiça veio a combinar-se com a audácia em
irresistíveis avançadas meridionais que culminaram em substanciais aumentos da
superfície territorial brasileira. Mas esses sertanistas não se tratam mais de europeus, e
sim de mamelucos, homens já forjados na terra. Nesse sentido, o papel dos jesuítas na

85
John Manuel Monteiro referiu-se ao ressentimento dos paulistas para com a interferência das
autoridades reais em assuntos – questão da liberdade e do trabalho indígenas – que consideravam
internos, o que acabara valendo “para São Paulo a fama de ser a ‘Rochela do Sul’”. Ainda segundo esse
autor, “diversos movimentos dos colonos nesse período [anos finais do século XVII – anos iniciais do
século XVIII] – a revolta da moeda, o assalto aos armazéns de sal, a tentativa de assassinato do ouvidor,
entre outros – reforçaram semelhante reputação, agredindo a autoridade régia frontalmente.” Negros da
Terra: Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.216. Ao
tratar dos episódios que antecederam a ‘Guerra dos Emboabas’, a historiadora Adriana Romeiro refere-se
à imagem compartilhada pelos homens do Conselho Ultramarino: “o espectro da Rochela – de uma zona
encravada em meio ao sertão, espécie de República independente, impermeável ao controle da Coroa.”
A idéia de uma rochela americana dominada por homens mestiços e rebeldes na periferia do Império
Ultramarino português – imagem que segundo a autora se prestava aos interesses metropolitanos na fase
inicial das descobertas auríferas – logo deixaria de ser tolerada, ao surgimento de um contexto mais
favorável. Paulistas e Emboabas no coração das Minas: idéias, práticas e imaginário político no século
XVIII. Belo Horizonte:UFMG, 2008, p.78 e 316. Cabe relatar a discordância entre esses dois autores.
Assim, para exemplificar, enquanto John Monteiro preferiu ver no motim do sal de outubro de 1710 a
expressão da força de um poder privado, Adriana Romeiro preferiu qualificá-lo em uma concepção nos
moldes de autores como E.P.Thompson, G. Rudé, C.Tilly ou Natalie Z. Davis enquanto motins de fome.
369

pacificação dos indígenas permitiu a fixação da cidade Planaltina que podia então ser
apresentada como uma sentinela da civilização em pleno sertão.

Os conflitos posteriores dos paulistas tanto com os jesuítas, quanto com a Coroa
portuguesa deveriam ser entendidos então como uma reafirmação dos direitos da
comunidade, valeria dizer, da Câmara de São Paulo enquanto representante legal do
povo paulista. Afinal de contas, em um momento no qual São Paulo candidatava-se a
uma difícil hegemonia na Federação Brasileira, sua história deveria infundir confiança
nos destinos da nação. Assim, aprear índios teria sido para Taunay uma necessidade
justificada pelo estado de pobreza da Capitania, e logo mitigada pela formação da ‘raça’
materializada pelo mameluco. Ademais, o conflito com os jesuítas teria servido como
uma espécie de freio às pretensões dos inacinos de fundar no planalto paulista um
estado teológico.

Quanto ao embate com a metrópole, os paulistas teriam dado uma solene


manifestação de independência, ao cegar caminhos e impedir o acesso dos prepostos
reais. E a lealdade da cidade Planaltina teria ficado demonstrada de maneira cabal em
episódios como a expedição de socorro a Pernambuco, na recusa de Amador Bueno e na
aclamação de D. João IV. Nesse sentido a leitura do passado sob o enredo cômico da
comédia do dever e da obrigação pode encontrar seu termo quando os jesuítas
retornaram a São Paulo e os bandeirantes paulistas acataram as solicitações do Rei
português, conseguindo após ingentes esforços, descortinar as riquezas minerais que se
escondiam pelos sertões.

Em fevereiro de 1927 o Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais dava


cumprimento a uma iniciativa do Presidente do Estado, Antonio Carlos Ribeiro de
Andrada que entendia que a agremiação deveria entrar em uma nova fase. Nesta deveria
pautar-se no “trabalho patriotico pela reconstrucção de nosso passado, em busca da
grandeza do presente e da preparação do futuro de nossa terra”86.
Naquele 26 de fevereiro de 1927 a sessão do IHGMG foi concorrida e o salão
nobre do conselho deliberativo da Câmara dos Deputados do Estado de Minas Gerais já
se encontrava apinhado por um seleto público por volta das 20:30hs, horário marcado
para início dos trabalhos. Eram Secretários de Estado, representantes de instituições
públicas e privadas localizadas em Belo Horizonte, além é claro dos sócios do Instituto.

86
Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte. Ano XXI, 1927, n.2, p. 109-119, abr.jun. 1927.
370

Naquela ocasião fizeram uso da palavra, além do Presidente do Estado, o antigo


presidente do Instituto, Rodolpho Jacob. Foram discursos laudatórios.
Nesse ato solene, ao exame da documentação, a principal atividade foi a eleição e
posse da nova diretoria da agremiação, cuja presidência passou a caber a Aurélio Pires.
O Professor Lúcio José dos Santos passava a compor a Comissão de trabalhos
históricos. Falava-se em ‘renascimento’ do Instituto, e o entendimento era que –
excetuados os esforços de Xavier da Veiga e Diogo de Vasconcellos – a história de
Minas Gerais ainda estava por ser escrita. Projetaram-se conferências mensais que
versavam sobre temas históricos. Duas horas depois do início dos trabalhos, coube
finalmente ao Presidente Antonio Carlos anunciar ao público ali presente que a primeira
e a segunda conferências da nova fase do Instituto, a serem realizadas nos dias 7 e 21 de
abril próximos, teriam por oradores o Conde Afonso Celso e o Dr. Antonio Augusto de
Lima.
As anunciadas conferências foram realmente realizadas nas datas aprazadas.
Tratavam-se de reuniões promovidas por uma instituição privada, porém revestida de
um caráter oficial: a utilização de prédios públicos, o comparecimento do presidente do
Estado acompanhado do seu secretariado, bem como de autoridades civis e militares e a
tocata de bandas de música da Força Pública do Estado não deixavam sérias dúvidas
quanto a isso. Eram solenidades marcadas sob o viés da liturgia e da cerimônia, onde os
papéis dos atores em destaque assumiam um tom protocolar e obsequioso, e por tudo
isso, marcado pela hierarquia e pela deferência.
Em 7 de abril de 1927 o Conde de Afonso Celso, que desde 1912 presidia o
IHGB, ocupava a tribuna da Câmara dos Deputados de Minas Gerais para discorrer
sobre um tema que lhe era tão caro, por envolver um período da história a ele grato, mas
também por acessar a memória sentimental. A conferência versava sobre seu pai, sendo
intitulada “Traços Moraes do visconde de Ouro Preto”. Contudo não seria a fala de
Afonso Celso uma biografia completa, mas a narração de alguns fatos mais
característicos da individualidade do homem que presidira ao último gabinete do
Império. Para a segunda das conferências então anunciadas, talvez a mais ansiada pela
assistência, ocorreram circunstâncias anunciadas como imprevistas – às quais não
conseguimos precisar – que haviam impedido o comparecimento de Augusto de Lima a
Belo Horizonte.
371

Naquele 21 de abril, uma data especial no calendário cívico da Minas republicana,


a tribuna seria ocupada por Aurélio Pires87, que acabou sendo constrangido a aceitar um
convite de última hora. Apesar disso, não deve ter sido uma grande dificuldade para o
presidente do IHGMG, que contava com uma rica experiência, pois conforme já vimos,
fora Diretor e Professor de Geografia, História e Educação Moral e Cívica na Escola
Normal Oficial em Belo Horizonte. A conferência se destinava, como seria de se
esperar pela data, a evocar “o Proto-martyr, que foi a suprema expressão da grandeza
moral da nossa raça”, nas palavras do orador oficial do Instituto, o consócio José
Eduardo da Fonseca.
Abria-se então a oportunidade para que os Inconfidentes de Vila Rica pudessem
ser enaltecidos, e Gonzaga, Cláudio Manoel da Costa e Alvarenga Peixoto ficavam
reputados com portadores de invejados dotes intelectuais. Aquela personagem que
inicialmente fora um obscuro Alferes de cavalaria era então monumentalizado,
considerando o orador que com seu sacrifício, fora incorporado ao patrimônio moral da
“história brasileira” e das caras tradições do povo mineiro. A conspiração se fizera,
segundo o orador, em nome da liberdade, e “sob o domínio de um absolutismo brutal;
dessa arrancada atrevida de um povo opprimido e vilipendiado contra uma metropole
gananciosa e avára.” 88
Nos dias finais de 1927, em uma sala tomada de empréstimo da Faculdade Livre
de Direito da capital mineira um grupo se reuniu para tratar da ordem do dia daquela
sessão do IHGMG: o ciclo de palestras que fora idealizado pelo presidente do Estado –
presidente honorário do Instituto – como forma de escrever a história de Minas Gerais.89
Entre eles, naturalmente se achava o Prof. Lúcio José dos Santos. Em 15 de junho
tinham sido abertas as inscrições para aqueles que quisessem candidatar-se a proferir as
conferências de cunho histórico-geograficas. Apesar da ampla divulgação por meio do
Minas Geraes, o órgão oficial do Estado, nenhum candidato havia sido inscrito. A
solução encontrada por Antonio Carlos foi encarregar o sodalício de expedir convites a

87
Aurélio Egídio dos Santos Pires (1862-1937) era natural do Serro (MG). Formou-se pela Escola de
Farmácia de Ouro Preto em 1894, mudando residência para Belo Horizonte em 1897. Na nova capital
mineira foi Reitor do Ginásio Mineiro, Diretor e Professor na Escola Normal. Integrou ainda o corpo
docente da Faculdade Livre de Medicina entre os anos de 1913 a 1933, e a convite do presidente Antonio
Carlos dirigiu o Arquivo Público Mineiro entre 1927 e 1930. Inventário do fundo Aurélio Pires. Arquivo
Público Mineiro, 2005.
88
Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte. Ano XXI, 1927, n.2, p. 109-119, abr.jun. 1927,
p.131.
89
Acta da sessão realizada a 27 de novembro de 1927. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo
Horizonte. Ano XXII, 1928, p. 7.
372

alguns estudiosos, em sua maioria sócios, para que desenvolvessem teses propostas em
acordo com o extenso e ambicioso programa então elaborado. Deveriam ser
apresentadas 42 teses, e muitas não seriam levadas a efeito, como parece ter sido o caso
da 4ª tese, que nos interessaria conhecer. Intitulada “As avançadas meridionaes: o seu
espírito e seus effeitos. As descobertas auríferas”, fora convidado a proferi-la o Dr.
Affonso de Taunay90. Possivelmente essa tese não tenha sido levada ao púlpito do
IHGMG por Taunay, e é possível que ele nem ao menos a tenha alinhado sob esse
formato de escrita. Os motivos que temos para fazer essa inferição encontram-se
fundamentados tanto na inexistência de registros na Revista do Arquivo Público
Mineiro e no periódico oficial Minas Geraes, quanto no meticuloso recenseamento dos
escritos de Taunay preparado por Odilon Nogueira de Mattos 91.

Diferente foi o caso da 14ª tese do programa, denominada “ A conjuração


mineira: suas causas, seu espírito, seus effeitos”92, da qual foi incumbido Lúcio José
dos Santos. Se em seu pequeno livro didático o Prof. Lúcio dos Santos apontava para a
suspensão da derrama como fator capital para estancar o desenvolvimento dos planos da
Sedição, na Conferência realizada no IHGMG iria evidenciar os motivos da derrota do
movimento. Nesse texto, Tiradentes continuava em seu papel de protagonista da cena
histórica, além de motor inicial da trama. Então, Lúcio José dos Santos reiterava que
apesar de ser o líder, a derrota do plano dos Inconfidentes não se deveria a uma suposta
leviandade do Alferes e suas falácias de propagandista, mas à delação de um devedor da
Fazenda Real, Joaquim Silvério dos Reis. Assim, Lúcio dos Santos aprofundava seus
argumentos anteriores nesses termos,

“... é licito duvidar que nos fosse preferível o advento da republica em 1789,
em vez de seguirmos uma evolução mais segura, atravez da monarchia. A
nossa situação não era comparável á das colônias inglezas do norte.
Teríamos, talvez, seguido o lamentável destino das colônias hispano-
americanas, isto é, teríamos aberto o nosso caminho no meio de vacillações
entre a dictadura e a anarchia. Quando a educação política falta a um povo,
disse eu alhures, ella só lhe póde vir como o resultado de uma cultura que
exige longos annos. Ora a força não substitue o tempo, nem a revolta infunde
aos povos a capacidade, que não possuem. Assim, pois, a intercorrencia do
período imperial foi útil á nossa vida social. A independência, sob o regimen
monarchico, nos veiu pela ordem natural das cousas, sem abalo nem choque,
como um fructo plenamente sazonado.”93

90
Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte. Ano XXII, 1928, p. 9.
91
MATOS, Odilon Nogueira de. Afonso de Taunay: Historiador de São Paulo e do Brasil (perfil
biográfico e ensaio bibliográfico). Coleção Museu Paulista, série ensaios, v.1, São Paulo, 1977.
92
Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte. Ano XXII, 1928, p. 56-66.
93
A conjuração mineira: suas causas, seu espírito, seus effeitos. P. 56.
373

A Conjuração Mineira vinha ocupando, a pena de Lúcio José dos Santos desde o
ano de 1911, conforme vimos, quando do seu ensaio para o livro comemorativo do
Bicentenário de Ouro Preto. O tema da Conjuração Mineira então já acumulava junto à
historiografia as diversas versões estampadas por Robert Southey, Francisco Adolfo de
Varnhagen e José Norberto Souza e Silva. Sabemos que a Conjura apareceu pouco
documentada para o historiador inglês. Por seu turno, Varnhagen alinhou uma versão
sobre o movimento que oscilou bastante nos juízos emitidos sobre aquele que em breve
seria apontado como o principal personagem daquela Conjuração, o Alferes Tiradentes,
parcialmente corrigida, conforme tivemos a oportunidade de perceber, a partir da
segunda edição da História Geral do Brasil. Contudo Varnhagen afirmou seu juízo
contrário a Joaquim Silvério dos Reis, mantendo no entanto a veneração pela Dinastia
de Bragança, pois afinal tratavam-se dos ascendentes do seu protetor, o Imperador D.
Pedro II. José Norberto lançou dúvidas sobre o heroísmo do Alferes Tiradentes,
remetendo o que seriam atos de desprendimento e desassombro a uma extemporânea
conversão religiosa diante da iminente condenação à pena de morte.

Católico ultramontano, Lúcio José dos Santos pretendia enaltecer a figura de


Tiradentes, apontando suas ações como plenamente firmadas em uma consistente fé
cristã, ao mesmo tempo que tentava apagar os exageros que julgava terem sido
cometidos pela militância republicana saída da lavra de Machado de Castro. Assim, para
Lúcio José dos Santos, ao abraçar de forma apaixonada a causa da libertação da sua
pátria, o Alferes Joaquim José teria empreendido luta não somente contra os desmandos
da Coroa portuguesa, mas também à incredulidade dos seus próprios companheiros de
causa revolucionária. Com planos tão exequíveis, apontava Lúcio dos Santos, somente a
ação de um traidor, ou ainda de vários ‘traidores’, para por a causa a perder. Aliás,
conforme explicitou Lúcio dos Santos, os próprios companheiros do Alferes na causa
revolucionária, após as prisões, haviam apontado naquele exaltado propagandista
indícios de patologias físicas e arestas morais.

A tarefa à qual se propôs Lúcio José dos Santos parece ter sido facilitada pelo
fato da figura de Tiradentes haver angariado simpatias que iam além do IHGMG,
alcançando o IHGB e as associações cívicas populares, além dos próprios governos
republicanos. Tal aceitação parece ter favorecido a versão proposta por Lúcio dos
Santos, à qual baseada nos Autos da Devassa procurou refletir a resolução cômica
identificada como comédia do desejo, onde o triunfo do protagonista, que para ele não
374

poderia ser outro que não Tiradentes, ocorreu sobre a sociedade que lhe bloqueou a
caminhada para a meta que colimava, vale dizer, a libertação do jugo metropolitano.
Contudo, esse triunfo viria muito após a execução do Alferes, por meio de um príncipe
português, mediante uma passagem considerada segura, na avaliação de Lúcio dos
Santos: o regime monárquico. Para o autor, o percurso de mais de seis décadas sob o
Império teria evitado os desmembramentos territoriais, revoluções e caudilhismo por
que passaram as demais repúblicas sul americanas.

Em realidade, seguindo as tendências e práticas européias ao longo do século XIX,


onde a História havia se tornado “presença mítica, penetrante e nebulosa, que emergiu
em sua pluralidade de campos (pintura e romance, historiografia stricto sensu, museus,
entre outros) vindo a edificar um modelo integrado de representação histórica”94, os
Institutos Históricos, fosse o IHGB, fossem os Institutos dos Estados de São Paulo e
Minas Gerais, revelavam a nosso ver, uma fertilidade da imaginação histórica, reflexo
do investimento crescente de indivíduos, grupos e instituições no que Sthepen Ban
nomeou por invenção das tradições.95

Teria esse ambiente favorável contribuído sobremaneira para que Afonso


d’Escragnolle Taunay se tornasse, a partir de 1922, cada vez mais identificado como o
historiador das bandeiras paulistas, com sua produção historiográfica mobilizada em
torno de um tema central: a construção pelos paulistas da epopéia da conquista do
território brasileiro, o que deveria servir face à militância intelectual de Taunay, para
“consolidar uma identidade paulista para consumo interno e para ser reconhecida em
suas reivindicações hegemônicas do Estado”96.

Mas conforme sabemos, após o movimento de 1930, as oligarquias paulista e


mineira sofreriam a perda do controle sobre a República. Tiradentes já havia se tornado
um símbolo nacional97, passando a coexistir no entanto duas representações imagéticas

94
FERREIRA, Antonio Celso. A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-
1940). São Paulo: Unesp, 2002. p.23.
95
No trabalho acima citado, Antonio Celso Ferreira enfocou particularmente o caso de São Paulo.
Concordando com esse autor, estenderemos esta situação para Minas Gerais, pela documentação que
trouxemos à luz nesse trabalho, bem como pelos próprios condicionamentos que formaram e vieram a
animar o IHGMG.
96
COSTA, Wilma Peres. Afonso D’Escragnolle Taunay. História geral das bandeiras paulistas. In:
MOTA, Lourenço Dantas (Org.). Introdução ao Brasil: um banquete nos trópicos. 2.ed. v.2. São Paulo:
SENAC, 2002. p. 111.
97
Conforme esclarece José Murilo de Carvalho, houve disputa pela posição de herói republicano: Bento
Gonçalves, presidente da República Piratini ao Sul; Ao Norte, Frei Caneca, herói de uma revolta pela
independência (1817) e de outra contra o absolutismo de Pedro I. Acabou fuzilado pois nenhum carrasco
375

do mártir: a primeira, talvez a mais conhecida, era a do prisioneiro de longa cabeleira e


barba, vestido com a alva do dia da execução. Essa imagem fora idealizada sob cores
positivistas por Décio Villares logo no primeiro ano do novo regime, tendo servido
como inspiração para outros artistas e reproduzida sob a forma de estatuária das quais as
mais lembradas encontram-se em praças de Ouro Preto e do Rio de Janeiro.

A outra representação surgira dos pincéis de José Walsht Rodrigues (1891-1957)


e procurava retratar o Alferes da cavalaria paga de Minas Gerais. Trata-se de um óleo
sobre tela atualmente exposto no Museu Histórico Nacional. A obra data de 1940, tendo
sido composta portanto, durante o Estado Novo. Nesse quadro Tiradentes é apresentado
em uma elegante postura castrense, barbeado e com cabelos alinhados, envergando de
forma irrepreensível seu imponente uniforme militar. Tratava-se de uma imagem tão
idealizada quanto as demais já que não há registros da época retratando o Alferes
Joaquim José, porém certamente que a um regime de exceção que outorgara uma
Constituição que ficaria conhecida pelo nome de ‘polaca’ e mantinha olhares cúmplices
com as ditaduras totalitárias da época, especialmente com o corporativismo italiano da
‘Carta del Lavoro’, interessava apresentar uma versão de herói em maior conformidade
com os princípios que defendia acerca do mundo do trabalho em suas relações com o
Estado e o Patronato98.

Da mesma forma o pós 1930 iria submeter o passado paulista a um processo de


minimização premeditada por parte da política cultural do governo Vargas. Afinal o
governo central partia do princípio de não reforçar identidades locais em detrimento das
que fossem consideradas ‘nacionais’. Assim não havia interesse em exaltar construções
simbólicas regionais como o bandeirantismo. Aliás, em um futuro muito breve, a
imagem de um imenso bandeirante em praça pública da capital paulista no ano de 1932
iria demonstrar o acerto desse princípio. Naquela oportunidade um gigantesco outdoor
contendo a tradicional imagem reputada aos desbravadores do sertão servira à
população ao mesmo tempo como incentivo e fiador do emprego do ouro doado durante
a Revolução Constitucionalista, em sua luta contra o governo de Getúlio Vargas. Tais

se dispôs a enforcá-lo. José M. Carvalho considerou que talvez a imagem de um Cristo cívico articulada à
questão geográfica tenha facilitado o êxito de Tiradentes. Assim, para o autor, a tradição cristã do povo e
o fato de Tiradentes ser o representante de uma área que a partir da segunda metade do século XIX podia
ser considerada como o centro político do país podem ter decidido essa disputa. Ver: A Formação das
Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Especialmente o
cap. 3.
98
Trata-se de uma “relação triangular”, que é de caráter conservador, conforme Robert Nisbet. Ver. O
Conservadorismo. Lisboa: Estampa, 1987. Especialmente o cap. 2, ‘Dogmática do Conservadorismo’.
376

construções simbólicas e imagéticas, dada a sua força irresistível, passavam doravante a


ser centralizadas sob cores pretensamente nacionais, conforme ilustrado no Ensaio de
Cassiano Ricardo, ‘Marcha para o Oeste: a influência da bandeira na formação social
e política do Brasil’99.

A obra surgira em momento no qual o Estado Novo desfrutava de pleno vigor e


pretendia que fosse feita a ocupação de espaços vazios com a abertura de frentes de
colonização nas fronteiras agrícolas, sobretudo no Centro-Oeste do país. Texto
volumoso e obra que hoje pouco se lê, talvez por revelar-se muito datada, repetitiva e
eivada de comparações que podemos considerar apressadas ou mesmo à beira do
anacronismo, a tese de Cassiano Ricardo consistia em resumo, no seguinte: a bandeira,
invenção brasileira em cuja formação desta sociedade tanto influiu e ‘influe’, nasceu no
Planalto, e foi conquistar a base física para o destino do Brasil, como povo e nação.

Para o autor, a mágica força motriz que levou as bandeiras sertão adentro teve
origem nos mitos de fundo econômico, o que vale dizer, mitos que a imaginação
daqueles homens situara no outro lado do Continente, atrás daqueles mataréus trágicos
que pareciam querer contar-lhes o segredo de uma fortuna escondida. Tratava-se de
mobilizar o imaginário coletivo para uma espécie de reedição das avançadas
meridionais do século XVII, onde ao invés de ouro e pedras preciosas, agora se
prometiam terras e prosperidade na abertura de uma nova fronteira agrícola. Caso
tivesse sido possível a Karl Marx se pronunciar, talvez ele viesse a se lembrar de um
providencial reparo que introduzira a uma fala de Hegel, inclusa providencialmente no
‘Dezoito Brumário de Luis Bonaparte’100: a História somente se repete como farsa, e
nunca como tragédia.

99
RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste: a influência da bandeira na formação social e política do
Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940.
100
As palavras de Marx, que entendemos cabe aqui reproduzir, foram a seguintes: “Hegel observa em uma
de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem,
por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda
como farsa.” MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich.
Obras escolhidas. V.1. São Paulo: Alfa-Omega, s.d., p.203.
377

8 – Considerações Finais

Nos primeiros anos do regime republicano brasileiro as letras históricas


evidenciavam passar por uma espécie de entropia bastante semelhante à que era
enfrentada no universo da política. Possivelmente por essa similaridade, e afinal talvez
não pudéssemos falar nessa época em uma separação entre o campo político e o campo
intelectual, essa situação tenha sido denunciada por Joaquim Nabuco, um ilustre
personagem que transitava com rara habilidade por esses dois ambientes.
Aproveitando um momento de consagração intelectual, representado por seu
ingresso no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Nabuco apontava para o deserto
do esquecimento que então se fazia acerca do período imperial. Deixava claro então que
a instauração da República colocara no limbo personagens de relevo da História
brasileira, o que a seu ver seria uma tentativa de apagar a memória então ainda bastante
viva da monarquia. Talvez tenha passado desapercebido ao autor de ‘O Abolicionismo’
e ‘Um Estadista do Império’ que o problema era mais complexo, pois ocorrera na
sociedade brasileira uma dupla e profunda ruptura representada realmente pela
instauração do novo regime, mas somente perceptível em sua plenitude quando
considerada a emancipação dos escravos ocorrida no ano anterior, que aliás pela qual
ele tanto lutara. Entender essa situação foi um longo aprendizado a ser vencido por
aqueles que se dedicaram a analisar a história brasileira. Afinal se as indefinições
políticas mais graves seriam equacionadas em breve pela instituição de um condomínio
oligárquico, após amainarem as revoltas armadas e desmobilizados os grupos jacobinos,
permaneciam as incertezas e o pessimismo rondava os espíritos dados às lucubrações
filosóficas.
Um dos motivos para que isso ocorresse foi que no último quartel do século XIX
haviam aportado ao Brasil um bloco de idéias que tomavam a forma de discursos
cientificizantes. Quase que ao mesmo tempo, o Positivismo e o Evolucionismo vieram
ocupar as mentes e os textos lavrados pela pena dos nossos intelectuais. Dizia-se com
certa dose de exagero que a instauração da República teria sido precipitada pela
propaganda positivista, e o descrédito com o regime recén instaurado era imenso,
legitimação que era ainda mais precária pelos republicanos terem chegado ao poder por
meio de um golpe de Estado, desfechado aliás quando a popularidade de Pedro II estava
em alta. Por seu lado, a Abolição da escravatura ao propiciar igualdade jurídica aos ex-
378

escravos causou o desmoronamento de um intrincado sistema de mecanismos sociais de


distinção, contribuindo para que a sociedade de classes emergisse. Devemos manter
presente que conceitos como os de nação, raça e classe social haviam percorrido todo o
século XIX formando e afirmando as identidades de diversos grupos, e contribuindo
para classificar os seres humanos para arrastá-los de forma um tanto forçada aos
constrangimentos da lealdade a um Estado-Nação, aos arraigados preconceitos
envolvendo etnias e fenótipos, bem como a uma declarada luta de classes. Caberia à
sociedade brasileira reorganizar-se para fazer frente aos novos desafios, brotados do
advento da passagem de uma sociedade estamental, de papéis adscritos, para uma
moderna sociedade de classes, onde a priori, os papéis deveriam doravante serem
adquiridos em conformidade ao ‘talento’ dos atores envolvidos, conforme defendia a
ideologia liberal de firmes convicções meritocráticas. Se a sociedade de classes era uma
imposição da igualdade jurídica, e a nação uma espécie de salvo conduto para participar
da marcha das civilizações, a idéia de raça passou a ser revestida de um discurso sob os
acordes do darwinismo social. A idéia da diferença jurídica que justificara a sociedade
escravista e emprestara sentido à sociedade estamental, ao refluir fez emergir um
discurso acerca da inferioridade inata das raças não brancas, inclusos nessas os
mestiços.
Ora, esses temas haviam sido levantados por uma sociedade que estava
redescobrindo o Brasil e se reconstituindo sob novos valores. A intensificação dos
discursos sobre o passado havia recebido um impulso considerável pelo surgimento de
instituições como os Arquivos Públicos, Museus e Institutos Históricos como as que
tratamos em nosso segundo capítulo, mas também do empenho de pesquisadores que
apesar de em sua maioria leigos na formação, encontravam-se profundamente
envolvidos no atendimento dos anseios de auto-reconhecimento e busca pela civilização
da nova sociedade que era gestada.
Munidos de arraigados princípios que consideravam ser uma forma patriótica de
atuar em benefício da nação, foram esses homens de letras os primeiros a fazer uso de
certos arquivos tornados públicos pelo investimento dos governos, e a usar esses
testemunhos documentais do passado mediante as regras do método histórico.
Conforme pudemos constatar em páginas anteriores, era muitas vezes uma versão
extremamente selecionada do passado, que chegava aos limites do que permitiria a
documentação, além de bastante carregada nas cores de certas idealizações de caráter
regional. Mas seus resultados poderiam ser considerados apreciáveis quando
379

observamos que tratavam da criação de símbolos dotados de um significado específico,


com a função deliberada de perpetuar determinados valores que maior afinidade
tivessem com o momento então vivido, permeado de conflitos e constantes tensões e
onde a disputa pelo passado tinha, conforme procuramos deixar visível, uma clara
intenção de remeter aos confrontos pela significação do próprio presente.
Porém, antes de construir esses novos valores caberia reavaliar a construção
histórica promovida por Francisco Adolfo de Varnhagen em sua tentativa de tornar-se
ideólogo da monarquia e cronista-mór do Império. Ao desenvolver aqueles que seriam
os novos temas, ou as coisas novas no falar de Capistrano de Abreu, passando a narrá-
las à luz da documentação recentemente compilada, homens como Basílio de
Magalhães, Gentil de Assis Moura e Annibal Rebello, entre outros, passaram a
desconstruir no cerne, alguns dos tópicos fundamentais da tese original formulada por
Varnhagen na sua História Geral do Brasil, o que envolvia uma redefinição para a
conquista e ocupação do território brasileiro, e mesmo para o sentido da História do
Brasil.
Para o Visconde de Porto Seguro o território teria sido conquistado pelos
portugueses aos indígenas, no início do período colonial, após o que os novos donos da
terra sofreram invasões de outros povos europeus. Então aquela importante parcela do
território colonial invadido foi reconquistado pelos colonos brancos, portugueses e
mazombos – que representa o motor da História de Varnhagen – mas também pelos
indígenas e negros, ombreados aos seus ‘senhores’ na desgastante luta, pois agora
tornados seus aliados sob o incremento da ‘fé católica’. Assim, ao término do período
colonial, o novo Império surgido na América poderia ser apresentado como o legítimo
herdeiro das tradições do Antigo Império Colonial português, posição ainda mais
justificada pelo fato do ocupante do trono brasileiro ser um Bragança, que conforme
lembrara Varnhagen tratava-se de um legítimo descendente das tradições lusitanas,
dinastia que havia recuperado aos castelhanos a soberania portuguesa.
Portugal seria então celebrado por lograr manter ‘unidas’ as suas possessões
americanas e o Brasil poderia ser considerado uma herança ‘recebida’ da dinastia
portuguesa, harmonicamente descansado sob o Cruzeiro do Sul e irmanado na gloriosa
língua de Camões na forma de uma feliz contingência histórica, pois estaria divisada
uma continuidade da História de Portugal, sem rupturas ou traumas de separação.
Assim, do Ourique, com D. Afonso Henriques, ao Ipiranga, sob D. Pedro I, Portugal e
Brasil deveriam apresentar-se irmanados, pois abrigados sob a cruz da sacrossanta
380

religião católica a vincar de forma abençoada o sentido da sua História, e fosse nos
campos do baixo Alentejo ou nas colinas do Ipiranga, tratar-se-ia de uma mesma elite
guerreira saída da vitoriosa cepa lusitana, digno rebento de uma civilização de matriz
latina.
Assim, o ‘corpo da pátria’ representado pelo território brasileiro passava a ser
considerado, com a Independência, conforme vimos uma ‘doação’ de Portugal,
transmitido hereditariamente e garantido pacificamente na formalização jurídica dos
tratados chancelados pela diplomacia portuguesa. O nóvel trono inicialmente ocupado
por Pedro I, conforme sabemos, teria a sua consolidação sob Pedro II, sob a direção
saquarema. Nesse momento não deveriam mais haver dúvidas quanto aos laços com
Portugal e as tradições portuguesas transplantadas para a América. Na visão de
Varnhagen, Portugal deveria ser apresentado como a ‘Pátria-mãe’, sendo a nação
brasileira uma conseqüência da bem sucedida expansão ultramarina portuguesa,
avaliada como uma espécie de cruzada portadora da fé cristã e semeadora – no caso
brasileiro – de uma civilização nos trópicos.
Essa nação seria branca ou metamorfoseada em matiz próximo a essa ‘raça’,
sendo formada por proprietários que deveriam ser preferencialmente brancos. O núcleo
desse grupo seria constituído pelas chamadas ‘boas famílias’, a formar uma ‘boa
sociedade’, idéia que Joaquim Manuel de Macedo esmerou-se por inculcar na
mentalidade dos seus alunos do Imperial Colégio de Pedro II – e em fidelidade ao
pensamento historiográfico de Varnhagen – a partir de sua nomeação como lente em
1849, contribuindo para dar forma às jovens consciências históricas daqueles discentes
– elite intelectual do Império – para que estas se apresentassem amistosas, e no futuro,
colaboradoras potenciais do projeto da elite saquarema. Cabe dizer que esse público
estudantil – leitor em segunda mão de Varnhagen – fora expandido exponencialmente
pela adoção das ‘Lições’ que Macedo publicara a partir de 1861, obras essas adotadas
nas Escolas Públicas do Império, sob o beneplácito do Conselho Superior de Instrução
Pública, e seriam editadas pelo menos até 1922.
Mas toda essa construção ideológica começara a ruir a partir de pontos de vista
mais afinados com os novos donos do poder, sob uma visão que alinhava as pretensões
da cúpula republicana com o discurso sobre os tempos pretéritos, e que descortinasse
nas brumas do passado registros que autorizassem inscrever o novo regime como um
antigo ideal.
381

A partir do discurso sobre o território, era agora permitido pensar que esse fora
conquistado por bandos de sertanistas, os chamados bandeirantes. Conforme mostrara
Capistrano de Abreu (1899 e 1907), esses desbravadores que percorriam os sertões para
apresar índios e buscar riquezas minerais haviam se tornado povoadores com o passar
do tempo. Assim, pela apropriação dessa idéia e as sutis deformações que dela fizeram
sobretudo os homens do IHGSP, os bandeirantes passaram de sertanistas a mineradores,
e daí a fazendeiros e industriais. Defendia-se que havia sido mantida uma linha de
princípios muito arraigados, que se defenderia em um futuro próximo, haviam sido
herdados daqueles errantes desbravadores do século XVII. Tais princípios seriam
valorizados em uma sociedade de classes a caminho da industrialização, que tentava
amparar-se em valores como a disciplina, a iniciativa, a previsibilidade, o respeito às
leis e a prática constante do trabalho.
Por seu turno, o desejo do conhecimento acerca do sertão e do homem que nele
vivia permitia dotar o sertanejo de uma carga de positividade capaz de elevá-lo à
condição de cerne da nacionalidade, o que provia as formações sociais interioranas com
um duradouro revestimento discursivo no pensamento social brasileiro. Essa condição
elevava os sertanejos ao signo da autenticidade, em contraposição aquilo seriam as
sociedades ‘de empréstimo’ do litoral, constantemente metamorfoseadas pelas vagas
recebidas do Atlântico.
Da mesma forma, a nação não poderia ser homogênea em termos étnicos, mas
declaradamente mestiça, e caso fosse possível falar em raça, essa não possuiria seus
fundamentos na biologia, mas nos lentos porém constantes cruzamentos interraciais.
Enfim, caso se quisesse falar em raça no Brasil, suas raízes deveriam ser procuradas sob
os auspícios da História, pois encontravam seu lastro na aventura humana de conquista
do território à natureza dos trópicos, uma obra que à época contava mais de quatro
séculos. A ‘raça’ brasileira teria sido uma singular contingência histórica, e apesar da
posição de Oliveira Viana ser marcada pelo ideal de branqueamento – tratava-se então
de uma introdução a uma importante publicação brasonada pelo sinete oficial – o censo
de 1920 – época na qual Alberto Torres, leitor de Franz Boas, já demonstrara que a
unidade nacional seria de natureza sociológica, e que fazendo coro a essa idéia, Manoel
Bomfim denunciara os vícios da colonização ibérica e Edgard Roquette Pinto percorrera
os sertões para dizer aos brasileiros que a nossa população, clara ou escura, carecia na
verdade de mínimas condições de higiene e educação. Dessa forma, assim como ‘Os
382

Sertões’ de Euclides da Cunha, ‘Rondônia’ de Roquette Pinto encontrou uma


fulminante consagração junto a um seleto público leitor.
Sob certos limites podemos dizer que o desencontro identificado por Joaquim
Nabuco no campo da história, ao apagar das luzes do século XIX, encontre nos textos
alinhados por Rodrigo Langaard de Menezes e Max Fleiuss, uma cabal demonstração
do momento então vivido na seara de Clio. A entropia na escrita da história do Brasil
perderia alguma força com a entrada em cena dos Institutos Históricos de São Paulo e
de Minas Gerais, mas marcaria presença pelo menos até 1914. Uma breve avaliação a
manter sob visada esses anos entrópicos acusa que se a geração de Capistrano de Abreu
e Sílvio Romero (1870) possuía em seu campo de experiência a visão de um regime
monárquico em franca decadência, a geração seguinte à qual pertenciam Afonso
Taunay, Lúcio José dos Santos e Basílio de Magalhães (1890), bem como outros,
acompanhara por sua vez as graves vicissitudes pelas quais passara o regime
republicano. Face a essa situação parece ficar perceptível que o reencontro das hostes
oligárquicas ocorrido sob o governo de Campos Sales somente foi percebido nas suas
inúmeras arestas de imperfeições e incompletudes pelos próceres do novo regime
quando esse foi confrontado por ameaças internas, como greves, movimentos de
contestação armada e levantes de excluídos sociais. Essas manifestações de alguma
forma se conjugaram às ameaças externas das quais a Primeira Grande Guerra
representa possivelmente o ápice. Assim, questões sociais e messianismo, doenças
endêmicas e o sombrio diagnóstico que uma população que além de identificada como
mestiça era desprovida de um mínimo de educação e infra estrutura sanitária, acabaram
servindo para uma rediscussão das origens e dos rumos da nação.

O desejo de conciliação entre o passado e o presente surgia então como uma das
esperanças de pavimentar, sob os auspícios dos cultores de Clio, uma estrada segura
para a travessia entre o passado e o futuro, em busca da tão esperada integração do país
na marcha das nações civilizadas feita sob o signo da tradição. Fica claro portanto que o
recurso às tradições trouxe consigo o irremediável apelo à História. Nesse sentido, o ano
de 1914 parece ter servido como uma espécie de divisor de águas para as mudanças que
foram operadas, pois ao mesmo tempo no qual já se podia contar com uma certa
segurança institucional no condomínio oligárquico que fora montado, havia também o
concurso de Institutos Históricos Estaduais criados a partir da República. Foi sobre a
atuação dos Institutos Históricos e Geográficos de São Paulo e de Minas Gerais que
383

centramos nossos esforços para o entendimento da substancial mudança ocorrida na


imaginação histórica dos nossos historiadores.

O momento do I Congresso de História Nacional representou então não somente


a demonstração do estado da arte na produção historiográfica brasileira, mas também o
ponto de conciliação no campo de Clio entre antigos áulicos da monarquia tais como
Afonso Celso e Diogo de Vasconcelos e republicanos da geração de 1890, como Afonso
Taunay e Lúcio José dos Santos.

Os Institutos Históricos de São Paulo e de Minas Gerais vinham produzindo


dentro da lógica então vigente das ‘pequenas pátrias’, as suas representações históricas
regionais, cujos arcanos podiam ser localizados na própria criação de tais agremiações.
Assim, os bandeirantes do século XVII e os ilustrados colonos mineiros do século
XVIII foram abordados em suas especificidades de construtores do território e da nação.
Talvez possamos perceber de forma significativa esse momento de redefinições pela
escolha de Anibal Rebelo, em preterição a Diogo de Vasconcelos para tratar do tema da
Conjuração de Minas por ocasião do I Congresso de História Nacional, ao mesmo passo
em que Gentil de Assis apresentava seu relatório de pesquisa sobre os bandeirantes, pois
aquele que viria a se destacar como o futuro ‘historiador das bandeiras’, Afonso
Taunay, ainda dava seus passos iniciais na construção do conhecimento sobre o
sertanismo paulista, momento no qual procurava resgatar as contribuições de cronistas
setecentistas como Pedro Taques e Frei Gaspar da Madre de Deus.
A ressignificação dos conceitos de nação, território e civilização referendados
pelos Congressos de História em 1914 e 1922 tornou possível a que os historiadores
adotassem novos pressupostos para balizar suas narrativas, e quando tematizassem sob a
nação e território apareceriam algo ultrapassados caso o fizessem sob os agora antigos
pressupostos varnhagenianos. Assim, ao passo que a História Geral do Brasil tornava-
se cada vez mais um monumento da historiografia nacional, os episódios da história
paulista no século XVII, e mineira no século XVIII, deixavam progressivamente sua
roupagem eminentemente regional para transformarem-se em incontornáveis capítulos
de uma história que se pretendia eminentemente nacional.
Essa situação nova transformava os errantes sertanistas saídos de São Paulo para
sertões ignotos, em intrépidos desbravadores de todo o território nacional, que conforme
as narrativas dos homens do IHGSP poderiam estar munidos de uma inusitada
consciência geopolítica de expansão territorial. Essa forma de entendimento da história
384

também evidenciava em insurretos mineiros de uma época colonial o sentimento


“nativista”, condição então pensada como sine qua non à criação de uma nação. Seria
por pensar na criação de uma nação que teria sido martirizado o Alferes Tiradentes na
Conjura de 1789, conforme defendiam os historiadores do IHGMG. Logo, não pareceria
tão despropositado que em algum arroubo de imaginação histórica fossem forçadas
interpretações para entender aqueles conjurados – que sabemos ainda sob certa
mentalidade barroca, ou na melhor das hipóteses, em transição para serem tocados
levemente pelas idéias do iluminismo – na qualidade de intemeratos republicanos.

A aceitação ainda que não isenta de resistências e contestações dessa versão da


História brasileira, parece que privilegiou a emergência de heróis espacialmente
vinculados na origem a uma região que despontara desde a metade do século XIX na
condição de eixo político e econômico do país, o que possivelmente tenha reforçado o
caráter entinemático dessas escolhas. Os resultados dessas ações na produção
historiográfica e consequentemente na formação da consciência histórica dos brasileiros
que acessaram as páginas dos livros didáticos é possivelmente incomensurável mas
plenamente perceptível à observação, de forma que esses “heróis” coloniais paulistas e
mineiros – sofrendo por vezes algumas providenciais amputações bem como sutis
acréscimos no seu sentido original, valeria dizer, na forma pela qual foram concebidos
no interior dos Institutos Históricos de São Paulo e de Minas Gerais – puderam ser
recepcionados com certo sucesso pelos regimes pós 1930, em seu projeto de
centralização nacional.
385

9 – Referências documentais e bibliográficas

9.1. Fontes documentais : Atas e Relatórios, Periódicos, Artigos e Livros


9.1.1. Atas e Relatórios
Atas do Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes. Livro Reuniões Diversas –
1ª e 2ª Fases (1907 a 1929): Acta da sessão de fundação do Instituto Historico e
Geographico de Minas Geraes. 16 jun 1907; Acta da sessão do Instituto Historico e
Geographico de Minas Geraes. 12 jul 1907; Acta da sessão solene de instalação do
Instituto Historico e Geographico de Minas Geraes. 15 ago 1907; Acta da primeira
sessão ordinária. 30 ago 1907; Actas das sessões ordinárias de 14 set 1907; 18 out
1907; 16 nov 1907; 02 jan 1908; 15 fev 1908; 30 out 1910; 27 nov 1910; 18 dez 1910;
22 jan 1911; 12 fev 1911; 14 maio 1911; 28 mai 1911; 20 jun 1911; 14 set 1907; 23 jul
1911; 27 ago 1911; 26 nov 1911; 31 dez 1911; 28 jan 1912; 25 fev 1912; 26 maio 1912;
25 ago 1912; 27 set 1912; 27 nov 1912; 29 dez 1912; 26 jan 1913; 31 maio 1913; 28 set
1913; 01 fev 1914; 24 mar 1914; 07 mar 1915; 11 jul 1915; 25 jul 1915; 05 mar 1916;
02 out 1916; 03 dez 1916; 17 dez 1916; 04 mar 1917; 29 jul 1917; 01 fev 1914;
Commissão Technica do 6º Congresso Brasileiro de Geographia. 30 set 1917; Actas
das sessões ordinárias de 30 jan 1918; 26 maio 1918; 11 ago 1918; 25 ago 1918; 27 ago
1919; 14 mar 1920; 13 fev 1927; 26 fev 1927; 07 abr 1927; 21 abr 1927; 22 maio 1927;
29 maio 1927; 15 jun 1927; 27 nov 1927; 12 dez 1927; 04 mar 1928; 13 mar 1928; 21
abr 1928; 13 nov 1928; 27 ago 1919; 01 dez 1928; 05 abr 1929; e, 04 jul 1929.
9.1.2. Periódicos
9.1.2.1. Revistas:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo
Revista do Arquivo Público Mineiro
Revista do Brazil
Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro
Annaes do Museu Paulista
9.1.2.2. Jornais:
O Horizonte
O Minas Geraes
9.1.3. Artigos e Livros
386

ABREU, João Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Belo


Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988. (a primeira edição é de 1899).
_________________________. Capítulos de História Colonial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1976. (a primeira edição é de 1907).
ABREU, João Capistrano de. Ensaios e Estudos. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1975.
Bi-Centenario de Ouro Preto: 1711-1911 (memoria histórica). Ouro Preto: Imprensa
Official do Estado de Minas Geraes, 1911.
BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks,
2005. (a primeira edição é de 1905).
CARDOSO, Vicente Licínio (org.). À Margem da História da República. 3.ed. Recife:
Massangana, 1990. (a primeira edição é de 1924).
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Brasília: Unb, 1963. (a primeira edição é de 1902).
Diccionario histórico, geographico e ethnographico do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional. V.1, 1922.
FIGUEIREDO, Antonio Candido de. Novo Diccionário da Língua Portuguesa. 4.ed.
Lisboa: Arthur Brandão, 1925.
LACERDA, João Baptista de. Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro
de Toledo. Rio de Janeiro: Papelaria Macedo, 1912.
LANGLOIS, Charles-Victor, SEIGNOBOS, Charles. Introdução aos Estudos
Históricos. São Paulo: Renascença, 1946. (a primeira edição francesa é de 1898).
LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Informação sobre as Minas de S. Paulo.
A Expulsão dos Jesuítas do Colégio de S. Paulo. (Com um estudo sobre a obra de
Pedro Taques por Affonso de E. Taunay). São Paulo: Melhoramentos, 1929.
MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da. Memórias para a história da Capitania de São
Vicente. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975.
MAGALHÃES, Basílio de. Expansão Geographica do Brasil até fins do século XVII.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914.
MOURA, Gentil de Assis. As bandeiras paulistas: estabelecimento das directrizes
geraes a que obedeceram e estudos das zonas que alcançaram. São Paulo:
Companhia typographica editora ‘o pensamento’, 1914.
OCTAVIO, Rodrigo. Festas Nacionaes. 6.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1912.
PENNA, Belisário. Saneamento do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos
Santos Editor, 1923.
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POMPÉIA, Raul. Carta ao autor das Festas Nacionaes. Rio de Janeiro:


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