M Que Consiste A Identidade Linguística Ma Questão Saussuriana
M Que Consiste A Identidade Linguística Ma Questão Saussuriana
M Que Consiste A Identidade Linguística Ma Questão Saussuriana
identidade linguística?
Uma questão saussuriana
1
Maria Fausta Pereira de Castro*
https://orcid.org/0000-0003-1420-6096
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MARIA FAUSTA PEREIRA DE CASTRO
DOSSIÊ
A identidade linguística1
O
■ tema da identidade linguística está presente em vários momentos da
reflexão de Saussure: no Curso de Linguística Geral (2018 [1916])2 e
suas edições críticas – por Engler (SAUSSURE, 1989 [1968]) e De
Mauro (SAUSSURE, 2005 [1967]) –, nos cursos II (1908-1909) e III (1910-1911),
oferecidos por Saussure na Universidade de Genebra, com notas dos alunos e
cujos cadernos foram posteriormente publicados e, ainda, em manuscritos que
se encontram arquivados na Biblioteca de Genebra (BGE) e que serão mencio-
nados ao longo deste trabalho.
Essa apresentação, em nada exaustiva, apenas oferece uma primeira medida
do espraiamento do tema da identidade ao longo dos textos saussurianos e dos
cursos.
Para Saussure (2004, p. 34) a identidade é a base necessária e absoluta para
o trabalho do linguista: “[...] é só por ela e com relação a ela que se chega a de-
terminar, depois, as entidades de cada ordem, os termos primeiros que o lin-
guista pode, legitimamente, acreditar ter diante de si”.
A anterioridade lógica atribuída à identidade e seu consequente papel na
constituição das entidades linguísticas podem esclarecer, pelo menos em parte,
o fato de Saussure atribuir à questão um alcance filosófico, termo pouco usado
por ele. Em outras palavras, podemos nos perguntar com o título deste trabalho
e adiantando o que leremos no próprio Saussure: em que consiste a identidade
de um signo em um sistema semiológico?
Trazemos aqui um excerto do manuscrito Ms. fr. 3951, fol. 1v (SAUSSURE,
1894), também nomeado por alguns pesquisadores como “Notas para um artigo
sobre Whitney” (cf. GODEL, 1969, p. 43). A folha em questão (1v) se abre em duas
páginas do caderno. Como se pode ver, à esquerda uma página quase em bran-
co, em que podemos ler no alto uma frase em diagonal: “x ou uma convenção
inicial”. Mais abaixo – ainda em diagonal –, um borrão ilegível com uma escrita
em espelho, provavelmente marca de tinta da página ao lado.
Na página à direita e na sua margem esquerda, está marcado outro x. Se-
guindo um critério do próprio Saussure, inserimos o trecho da página anterior
sobrescrito na linha assinalada. Segue então o texto objeto de nossa atenção:
1 Os textos deste trabalho que não foram publicados em português foram traduzidos pela autora.
2 De agora em diante, CLG.
DOSSIÊ
O objeto que serve de signo não é jamais o mesmo duas vezes: é preciso desde o pri-
meiro momento um exame, ou uma convenção inicial para saber dentro de quais limites em nome do que
temos o direito de chamá-lo o mesmo; é essa a diferença fundamental com um objeto
qualquer, e a primeira fonte muito simples.
Por ex., a mesa que tenho diante de mim é materialmente a mesma hoje e amanhã, xx3
e a letra b que escrevo é tão material como a mesa. mas4 ela não é [ ]5
Fonte: Genève, Bibliothèque de Genève, Ms. fr. 3951, fol. 1v.
3 Esta sequência de dois ou mais xx indica um trecho ilegível e tachado pelo autor.
4 Em letra minúscula no manuscrito.
5 Os colchetes vazios indicam um branco; nada escrito e nenhuma pontuação.
DOSSIÊ
6 Este trabalho está no prelo e será publicado pela Mercado de Letras, Campinas.
7 No curso III, a palavra trabalhada foi “guerra”, mas a questão é a mesma.
DOSSIÊ
um ponto caro a Saussure, isto é, a relação entre sentido próprio e sentido figu-
rado. Para ele, “não há diferença entre o sentido próprio e o sentido figurado das
palavras – porque o sentido das palavras é uma coisa essencialmente negativa”
(SAUSSURE, 2004, p. 73).
Entende-se assim o modo como a citação é fechada, dando destaque ao jogo
de contrapartes que caracteriza o mecanismo da língua: “O mecanismo linguís-
tico gira [...]”.
O capítulo III da segunda parte do CLG – “Identidades, realidades, valores”
– é objeto de inúmeros comentários por parte de De Mauro na sua edição crítica
(SAUSSURE, 2005 [1967]).
Atento ao que os alunos registraram em notas do início do curso II8, De Mauro
observa que Saussure trata do problema da identidade, tanto do ponto de vista
das questões relativas à diacronia como à sincronia (cf. SAUSSURE, 2005 [1967]).
Na essência, trata-se “das razões que permitem identificar dois fatos como
duas manifestações de uma coisa que permanece idêntica” (cf. SAUSSURE,
2005, p. 459). O problema se impôs a Saussure, enquanto um linguista do sé-
culo XIX, “nos seus termos diacrônicos: o que permite identificar o francês
chaud ao latim calidus?” (p. 460). Entretanto, por decisão dos editores, essa
questão e a discussão que a ela se refere foram levadas para o capítulo VIII9,
quando na verdade Saussure tratou-as “em relação com a questão mais radical
da identidade sincrônica10, reduzindo o problema diacrônico ao sincrônico”
(p. 460). Essa crítica pode, aliás, ser confirmada pelo o que lemos no próprio
capítulo VIII, que é concluído convergindo para o que diz De Mauro.
“Ora, a identidade diacrônica de duas palavras tão diferentes quanto calidum
e chaud significa simplesmente que se passou de uma a outra por meio de uma
série de identidades sincrônicas na fala, sem que jamais o vínculo que as une
tenha sido rompido pelas transformações fonéticas sucessivas” [...] Eis porque
pudemos dizer, nas páginas 153-154, que é tão interessante saber como Senho-
res! repetido diversas vezes em seguida num discurso é idêntico a si mesmo,
quanto saber por que, em francês, pas (negação) é idêntico a pas (substantivo)
ou, o que vem a dar na mesma, por que chaud é idêntico a calidum. O segundo
problema não é, com efeito, mais que um prolongamento e uma complicação do
primeiro (SAUSSURE, 2005 [1967], p. 250).
O alcance teórico e epistemológico do capítulo III é mais uma vez comentado
por De Mauro na breve citação a seguir. Momento em que Saussure interroga as
categorizações vigentes na linguística. Unde exoriar?11, pergunta-se ainda em
outro momento de sua reflexão.
Neste capítulo igualmente, a intenção de Saussure é destruens12, tendendo a
lançar dúvida sobre o conjunto das categorizações e das definições de base
ontológico-universalista que as gramáticas modernas herdaram da tradição
aristotélico-racionalista (SAUSSURE, 2005 [1916], p. 460).
DOSSIÊ
13 “Da essência dupla/a notar”; “Da essência dupla”; “Da dupla essência da (linguagem)”.
DOSSIÊ
Uma edição crítica dos Escritos é publicada em 2011, pela editora Droz, em
Genebra, ainda sem tradução brasileira. Seu editor, René Amacker (2011), um
dos primeiros pesquisadores a tomar conhecimento dos documentos encon
trados em 1996, insatisfeito com o trabalho realizado por Bouquet e Engler
(cf. SAUSSURE, 2004 [2002]), lança esse novo trabalho. O título escolhido pro-
cura acolher as variadas anotações de Saussure no arquivo de que falamos:
Science du langage: de la double essence du langage. Édition des Écrits de lin-
guistique générale.
A edição, preparada então sob novas condições, até mesmo com inclusão de
novos itens e levando em consideração as edições alemã e italiana, passou a re-
presentar um instrumento de trabalho mais rico e mais seguro para os estudio-
sos. “Graças a uma contextualização pensada com maturidade, cada fragmento
se encontra assim esclarecido por seus vizinhos” (BÉGUELIN, 2016, p. 129-130).
Dadas as qualidades estruturais e filológicas da nova versão, trabalharemos
no trecho a seguir com a transcrição de Amacker (2011), traduzindo-a14. Ao
apresentar as convenções seguidas na edição, o linguista segue os critérios edi-
toriais elaborados por Marchese (1995) e parte do princípio de que o texto deve
ser “legível sem esforço”. Todas as indicações sobre a sua constituição são dadas
em notas, salvo os seguintes indicadores: ‘[’ (seguido de um fim de linha) = texto
inacabado; ‘[ ]’ = lacuna deixada pelo autor no texto; ‘<...>’ = integração neces
sária (palavra acrescida ou eventualmente palavra completada pelo editor). De
nossa parte, recorreremos às notas de rodapé, quando necessário.
O manuscrito Ciência da linguagem inclui vários fragmentos que abordam a
questão da identidade linguística, mas pela pertinência às nossas indagações
e propostas em debate, tomamos do manuscrito 372 o fragmento 41 [2.12-14].
Trata-se de um documento extenso em que Saussure extrai as consequências
teóricas e epistemológicas de um projeto de estudo sobre a identidade linguísti-
ca que contemple sincronia e diacronia. Há tanto uma reflexão sobre o momen-
to em que se encontra o trabalho investigativo, assim como o encaminhamento
dos expedientes necessários dali para a frente, sem deixar de exprimir seu ceti-
cismo sobre o futuro.
14 Nos Escritos de Linguística Geral, o excerto escolhido está nas páginas 24 e 25.
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15 Item que ainda diz respeito a II, mas acompanhamos a disposição da transcrição de Amacker. Na edição dos Escritos não há o
algarismo romano.
16 Nota de Amacker: esta última frase é um acréscimo parcialmente interlinear, provavelmente posterior à redação do ponto IV.
17 Nota de Amacker: duas linhas e meia em branco.
18 Nota de Amacker: essas adições (posteriores, na minha opinião, ao resto do texto), anotadas no alto das páginas 13 e 14, resu-
mem o exposto ao mesmo tempo que poderiam servir de baliza para os desenvolvimentos previstos, mas não redigidos.
19 Nota de Amacker: há uma linha e meia em branco. Os pontos estão afastados uns dos outros.
DOSSIÊ
de vista, mas essa dependência não chega a ser totalmente explicitada: “[...] de
fato, o quarto só poderá sê-lo (cultivado) no dia em que o primeiro [...]”.
Seguem duas linhas em branco antes do novo parágrafo. O branco do texto
não deixa de ecoar as palavras de De Mauro sobre o pensamento de Saussure a
respeito do problema da identidade no eixo diacrônico tal como foi relatado na
primeira parte deste trabalho. Entretanto, agora não se trata mais da diacronia
– de identificar o francês chaud ao latim calidus –, a situação é outra: no ponto
de vista histórico, inicialmente, dois estados de língua sucessivos – dois siste-
mas – são tomados cada um em si mesmo, sem subordinação de um ao outro,
“seguido de explicação [”.
E mais uma vez seguem duas linhas e meia em branco. Se o ponto de vista I
é de algum modo essencial na relação com o IV – isto é, para que o IV seja cul-
tivado –, a tarefa de explicitar essa relação, ainda que necessária, não era for-
mulável nos seus termos.
Na sua “profissão de fé”, Saussure enfrenta sem ilusão a tarefa do linguista
ao abordar o seu objeto: declara ter certeza do que deve ser feito e, na mesma
medida, duvida que se possa fazê-lo.
À complexidade da identidade linguística, considerada a partir dos pontos de
vista, acresce-se outra quando o mestre se volta para a perspectiva da identidade
do signo e de sua contraparte, a diferença.
Retomamos neste momento o episódio em que Saussure, ao tratar das diferen-
tes ocorrências da palavra Senhores em uma conferência, afirma que o senti-
mento de identidade persiste apesar das diferenças fônicas facilmente reconhe-
cíveis e conclui com um axioma: “O mecanismo linguístico gira todo ele sobre
identidades e diferenças, não sendo estas mais que a contraparte daquelas”
(SAUSSURE, 2018 [1916], p. 154). A identidade é, nesse caso, assegurada pelo
mesmo valor. Por outro lado, em “son violon a le même son”20, a homofonia não
é suficiente como critério de identidade. Os signos homófonos não são idênticos
se os valores são diferentes.
O termo diferença na formulação saussuriana merece atenção. Se na relação
entre identidades e diferenças estas não são mais do que a contraparte das identi-
dades, qual o modo de relação entre esses dois termos na teorização saussuriana?
Jean Claude Milner (2002), em uma leitura sobre o conceito de diferença no
CLG, mostra em que medida o pensamento saussuriano rompe com as concep-
ções então sustentadas pela filosofia. Acompanhamos Milner.
A lógica escolástica já distinguia entre o próprio e a diferença e, de acordo
com Edmond Globot (1901, p. 408):
O próprio é uma característica que pertence a uma espécie ou indivíduo, e não
se encontra em nenhuma outra espécie ou indivíduo do mesmo gênero. O pró-
prio é, portanto, suficiente para caracterizar a espécie. Entretanto, o distingui-
mos da diferença. A diferença é uma característica ao mesmo tempo própria e
essencial. Uma característica essencial é permanente, ao passo que o próprio
pode ser acidental ou passageiro.
É a partir dessa distinção que Milner encaminha sua reflexão sobre a diferen-
ça no CLG. Ao afirmar que “na língua só existem diferenças” (SAUSSURE, 2018
[1916], p. 167), Saussure assume que as entidades linguísticas devem reter
20 “Seu violão tem o mesmo som”. A homofonia só pode ser escutada em francês.
DOSSIÊ
Não se pode imaginar ruptura mais profunda do ponto de vista da tradição filo-
sófica. Quer seja ela idealista ou empirista, esta última com certeza distinguiu
radicalmente entre identidade e semelhança. Mas admitia-se que uma relação
devia subsistir entre as duas: que a semelhança material era um índice – even-
tualmente enganador, mas sempre digno de consideração – de identidade; que
a identidade acontecia de certo modo naturalmente pelas semelhanças. Daqui
por diante, a relação está rompida. Pode-se adiantar que todo o Curso se propõe
a resolver o problema que foi assim formulado. O estruturalismo generalizado,
no que ele tinha de melhor, consistiu em levar a sério essa solução, para explorar
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Referências
DOSSIÊ
Département
Département des
des manuscrits manuscrits
mss.bge@ville-ge.ch
mss.bge@ville-ge.ch