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Aldo Dinucci
Taynam Bueno
(Organizadores)
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Taynam Bueno
1. Filosofia.
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Apresentação da Coleção do XIX Encontro
Nacional de Filosofia da ANPOF
Diretoria ANPOF
Sumário
Apresentação .................................................................................. 13
12
Apresentação
Aldo Dinucci
Taynam Bueno
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
14
O lógos encantado: magia e feitiçaria da
palavra em Górgias
Raquel Wachtler 1
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.76.01
1 Introdução
contrários se atribuem contrários, mas o contrário do ser é o não-ser; e por isso se, em geral, a
propriedade de ser pensado se atribui ao ser, então ao não-ser será atribuída a de não ser
pensado. Mas isso é absurdo; pois Cila, a Quimera e outros não-seres são pensados. Portanto,
o ser não é pensado” (Górgias in Dinucci, 2017, p. 97).
3 Sócrates afirma que ouvindo Agatão lhe vinha à mente o discurso de Górgias e temeu que ao
concluir, Agatão lhe enviasse a cabeça de Górgias “terrível orador” — como em Homero a
augusta Perséfone envia uma cabeça de Górgona — transformando o próprio Sócrates em
pedra (Platão, 2016, 198c).
4 Gomperz (1964, p. 490) viu em Górgias: “a vitalidade tempestuosa e desenfreada de uma
quanto positivo, e até hoje existem os que continuam considerando-o como, principalmente,
mestre da retórica. A origem da designação como cético, habitual nos textos de história da
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
filosofia, teria como inspiração a leitura de Górgias via Sexto Empírico e persiste até hoje
(Vedenius; Barbosa). Mesmo quando vemos que alguns estudiosos têm o cuidado de qualificar
Górgias apenas em alguns aspectos como nominalista (Rosenmayer); behaviorista
(Mourelatos) ou convencionalista (Porter) tememos que depois de certo tempo fiquem de tais
estudos apenas esses rótulos que vão se juntar àqueles de niilista (Gomperz) ou precursor do
positivismo (Grote). Quanto ao termo relativista, ele é tão comum quanto problemático;”
(Coelho, 2010, p. 32); Para Untersteiner (2012, p. 253): “Górgias não é cético, não é relativista,
mas um trágico e um irracionalista”.
6 “Górgias, por séculos, foi obscurecido pela interpretação socrático platônica-aristotélica. [...]
Esse monólito interpretativo foi lentamente desmontado ao longo do século XX e deste século,
e é inegável que a tentativa de empreender uma ‘redescoberta’ do sofista por parte de Leontini,
objetivamente, teve sucesso. Sim, Górgias foi redescoberto!” (Giombini, 2016, p. 28).
7 Uso Parmênides apenas para elogiar os bicéfalos que agem como Górgias diante das
bifurcações. No Poema, a deusa diz: “mortais que nada sabem/ erram, duplas cabeças, pois o
imediato em seus/ peitos dirige errante pensamento; e são levados/ como surdos e cegos,
perplexas, indecisas massas,/ para os quais ser e não ser é reputado o mesmo/ e não o mesmo...”
(Parmênides, 1973, p. 148). Os bicéfalos, em lugar de escolherem um dos caminhos, decidem
se implantar e florescer nas encruzas, especulando e percorrendo discursivamente ser e não-
ser. Górgias percebe que: “a ambiguidade do verbo ser” não é “nem um defeito, nem um acaso”
(Cassin, 2005, p. 22).
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O lógos encantado: magia e feitiçaria da palavra em Górgias
8 “Como percorreria um sofista, se ele fosse Górgias, esses campos minados da ontologia? [...]
‘Travestido’ de ontólogo, seus atos de linguagem surpreendem [...]. A seu modo, ele é uma
encruzilhada. Nela se cruzam Parmênides, todos os que perderam a ‘inocência’, por força de
seu Poema, e quem mais o sucedesse” (Pães, 1992, p. 44); A invenção da retórica é atribuída a
um deus das encruzilhadas: “the invention of rhetoric was attributed either to Hermes, the god
of crossroads and highways, of movement, passage, of communication in all senses of the term
[…]” (Pernot, 2005, p. 10); Mas para fazer justiça a força das encruzilhadas é preciso conjurar
seu dono: Exu! Chamado de Elegbara (Senhor do Poder Mágico), Enugbarijó (Senhor da boca
coletiva) e Igbá Ketá (Senhor da terceira cabaça), “Exu é o princípio dinâmico fundamental a
todo e qualquer ato criativo. Elemento responsável pelas diferentes formas de comunicação, é
ele o tradutor e linguista do sistema mundo” (Simas & Rufino, 2018, p. 20); Vale lembrar que a
encruzilhada: “não é mera metáfora ou alegoria, nem tão quanto pode ser reduzida a uma
espécie de fetichismo próprio do racismo e de mentalidades assombradas por um fantasma
cartesiano. A encruzilhada é a boca do mundo, é saber praticado nas margens por inúmeros
seres que fazem tecnologias e poéticas de espantar a escassez abrindo caminhos. Exu, como
dono da encruzilhada, é um primado ético que diz acerca de tudo que existe e pode vir a ser”
(Rufino, 2019, p. 4). Moradores das encruzas, magos da comunicação, feiticeiros da
ambiguidade farmacêutica e bicéfalos do ser — “Exu que tem duas cabeças, ele faz sua gira
com fé / Uma é satanás do inferno, a outra é Jesus de Nazaré” — quantas semelhanças é possível
encontrar entre a Górgona púrpura e o dono da boca do mundo!
9 Vestir-se com esta cor talvez seja uma herança poética na sofística: “Poetas e rapsodos usavam
vestes especiais, em particular roupas de púrpura. Hípias e Górgias fizeram o mesmo” (Guthrie,
1995, p. 45).
10 “O Tratado seria a imagem no espelho do Poema, e essa imagem suficientemente consultada
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
imperceptíveis ao olhar sem mediação, e as leis óticas do próprio espelho, espelho feiticeiro
que é a sofística” (Cassin, 2015, p. 54).
11 “O Tratado de Górgias é uma proeza da polêmica antiparmenidiana. Sua dialética também é
uma façanha ao reduzir algo ao absurdo, porque as premissas de que Górgias se utiliza para
derrubar Parmênides são tomadas do próprio Parmênides ou da escola parmenidiana. [...]
Górgias [...] ridiculariza Melisso e Zenão. Melisso transformou a tese de que o ser é em uma
tese que defende que o ser é um corpo uno, e Zenão usou a divisibilidade do corpo para mostrar
que o ser não pode ser múltiplo” (Simpson, 2011, p. 1-5).
12 “Górgias diz que nada é. Se é, é incognoscível. Se tanto é quanto é cognoscível, não pode ser
evidenciado aos demais. E conclui que não é ao reunir as coisas ditas por outros — isto é, todos
os que, dizendo coisas contrárias acerca do-que-é, denunciam-se (como parece) uns aos
outros. Alguns, ao dizerem que o ser é uno e não múltiplo. Outros, ao dizerem que é múltiplo
e não uno. Alguns, ao dizerem que o ser não é gerado. Outros, ao dizerem que é gerado. Górgias
raciocina segundo ambas as partes” (Górgias in Dinucci, 2017, p. 87).
13 “O Elogio de Helena retoma a dificuldade final do Tratado, isto é, o hiato entre palavra e coisa,
2010, p. 49).
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O lógos encantado: magia e feitiçaria da palavra em Górgias
15 “Entre os gregos, a evocação à alma dos mortos por vezes se aproximava das práticas de magia,
cujos praticantes contavam com diferentes denominações segundo as especialidades, tais
como: pharmakeus, epodos, psychagogos, necromanteos e góētes. [...] Cada palavra contém um
significado específico de determinada prática mágica com difícil equivalência na língua
portuguesa, fato que dificulta a tradução desses vocábulos, levando-nos ao emprego de termos
comuns, como mágico, feiticeiro ou bruxo” (Cândido, 2017, p. 19).
16 “Em pleno século V, Empédocles comprova a vitalidade do modelo de mago capaz de
comandar os ventos, de trazer um defunto do Hades, e que se apresenta ele mesmo não mais
como um mortal, mas como um deus” (Vernant, 2006, p. 86); Dodds (2002, p. 150) lembra que:
“um homem como Empédocles já era um anacronismo mesmo no século V a.C”.
17 Derrida (1994, p. 27) ensina que a posição de scholar é incompetente para falar aos espectros,
sendo os scholars incapazes de lidar com fantasmas: “Não há mais, nunca houve um scholar
capaz de falar de tudo, dirigindo-se a qualquer um, e principalmente aos fantasmas. Nunca
houve um scholar que tivesse verdadeiramente, enquanto tal, lidado com fantasmas. Um
scholar tradicional não acredita em fantasmas […]”.
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
18 “[Empédocles] vestia-se de roupas cor de púrpura cingidas por um cinto de ouro, como diz
Favorinos em suas Memórias” (Laêrtios, 2008, p. 245); “Corre a notícia que Hípias e Górgias
apareciam em público com vestes púrpuras” (Eliano, 2005, p. 105); Há uma preocupação
sofística com a beleza e adequação das vestes à ocasião performática: “La beauté naturelle de
l’orateur ajoute encore, le cas échéant, à l’effet produit. De telles recherches vestimentaires
existaient déjà à l’époque de la Première Sophistique (Gorgias, Hippias); La prononciation d’une
oraison funèbre exige certainement des habits de circonstance […]” (Pernot, 1993, p. 447).
19 Em diversas passagens de Empédocles é notável sua ênfase na eloquência, no discurso, na
língua, nos lábios. Teofrasto, em Da sensação, aponta que para Empédocles (1973, p. 225) é:
“como se a língua fosse a causa da eloquência”; No poema Sobre a natureza, Empédocles (1973,
p. 242) prega a importância de estar “articulado nas entranhas do discurso”, pedindo aos deuses
que: “a loucura [...] afastai-me da língua / e de santificados lábios deixai correr pura fonte”
(Empédocles, 1973, p. 227); Sobre a relação da retórica com o escorrimento, Hansen (2013, p.
11) nos lembra que: “no termo grego rhetoriké [...] se acha a raiz indo-europeia -r-, com a noção
geral de ‘movimento’, como se lê no grego rheo, ‘escorro’, e em termos latinos e portugueses,
como currere, ‘correr’”. Ou seja, em sua etimologia a retórica é uma arte de eloquentemente
escorrer em discurso, de discorrer em percurso.
20 “É bastante útil considerar que a tradição, endossada por Aristóteles e pela crítica
siciliana, tem-se, por outro lado, além dos fragmentos de Empédocles, diversos testemunhos
que permitem aproximar essa tradição médica de determinadas práticas atribuídas à seita
pitagórica. [...] Jâmblico nos diz que os pitagóricos possuíam uma espécie de saber proto-
científico pautado por uma proporcionalização matemática das notações musicais, onde os
cânticos (epaoidé), tal como uns phármaka, eram usados terapeuticamente de um modo
distinto do que é comparado a uma impostura, no Tratado Da Doença Sagrada. Jâmblico
descreve um hipotético episódio em que Empédocles teria demonstrado a arte polytrópica dos
pitagóricos usando música instrumentalizada, acompanhada por sua voz, para conseguir
dissipar o afeto de ódio […]” (Salles, 2019, p. 101)
22 “Empédocles atuava como um pharmakeus que seguia o caminho inverso dos hipocráticos,
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O lógos encantado: magia e feitiçaria da palavra em Górgias
haver furtado os discursos do mestre; então ele, [...], foi proibido de participar das discussões
da escola. [...] até a época de Filôlaos e de Empédocles todos os pitagóricos participavam das
conversas. Mas, quando Empédocles as divulgou em seu poema, os pitagóricos tomaram a
decisão de não dar conhecimento de sua doutrina a nenhum poeta” (Laêrtios, 2008, p. 241).
25 “Em sua obra Das Doenças Heracleides diz que Empédocles deu informações a Pausânias
sobre fenômenos observados numa mulher em estado cataléptico. [...] Heracleides diz que no
caso da mulher em estado cataléptico Empédocles a manteve durante trinta dias sem pulsação
e sem respiração; por isso Heracleides o chamou de médico e de adivinho […]” (Laêrtios, 2008,
p. 242); Diógenes menciona que Empédocles ficou muito famoso após restituir a vida desta
mulher e, pouco antes de morrer, ofereceu um sacrifício pelo feito e um banquete para cerca
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
mantê-la trinta dias sem pulsação e sem respiração; (2) ele deu sinais de
compreender que o contato com os mortos, com Hades se dá através de
lágrimas e gemidos26 (voltarei posteriormente a essa relação do góēs com
a góos, isto é, com a lamentação ritual); (3) Diógenes cita Empédocles
exaltando seus poderes, logo após mencionar que Górgias foi seu
discípulo e assistiu suas práticas de feitiçaria 27. Nesse trecho (VIII, 59)
fica nítido que Empédocles promete ensinar como “trazer à luz a força”
de alguém que já morreu:
simpler explanations of the derivation of goes from goan. The most straightforward of these is
that magicians came to be called goetes because of the cries and incantations they
characteristically uttered. Since the verb goan and its cognates are used specifically as cries of
lamentation, it might just be that originally goes was a term applied to one who summoned up
the dead with an incantation in which there was a strong element of lamentation” (Dickie, 2003,
p. 13).
27 “Healing by incantations has always been important in Greece; it was honored even in the full
glory of Hippocratic times. [...] Gorgias came from Sicily, the country of Empedocles, and he is
given by several sources as Empedocles’ disciple. We are even told, by a late source, that Gorgias
used to tell about the magic cures he had seen Empedocles practicing (γοητεύοντα)” (Romilly,
1975, p. 14).
28 “Empédocles [...] afirmava ter o domínio de remédios — phármaka — que atuavam contra
os males que afligiam o corpo e que protegiam os humanos contra a velhice. Essa afirmação de
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O lógos encantado: magia e feitiçaria da palavra em Górgias
Empédocles tem sido tema de debate entre os pesquisadores e causado assombro junto aos
scholiars do filósofo. A inquietação se deve à presença da palavra phármaka, que, em grego,
pode ser entendida como a preparação de remédios à base de ervas para fins medicinais da
cura, assim como mantém uma acentuada conotação de uso de folhas e raízes na produção de
filtros amorosos — philtroi katadesmoi — e encantamentos mágicos — epoda — praticados
por indivíduos envolvidos com procedimentos mágicos” (Cândido, 2006, p. 190); “Seja como
for, os fragmentos de Empédocles são uma das fontes diretas de que ainda dispomos para
termos uma noção de como realmente era o xamã grego. [...] Trata-se de um exemplo tardio e
derradeiro de uma espécie que se extinguiria do mundo grego com a sua morte, embora ainda
continue a florescer em outros lugares. Os estudiosos têm se admirado de que um homem
capaz de agudo senso de observação e de pensamento elaborado, como o Empédocles do
poema Sobre a natureza, tenha escrito também um texto como Purificações, representando a
si mesmo como um mago divino. Alguns estudiosos tentaram explicá-lo dizendo que os dois
poemas pertencem a diferentes períodos da vida de Empédocles: ou ele começou como um
mago, perdeu seu ímpeto e tomou o caminho da ciência natural: ou como sustentam outros,
começou como cientista e se converteu [...]” (Dodds, 2002, p. 149).
29 “MÊNON: E a cor, ó Sócrates, o que dizes que é? [...] SÓCRATES: Queres pois que eu te
responda à maneira de Górgias, de forma a seguires-me mais facilmente? MÊNON: Quero sim;
porque não? SÓCRATES: Não admitis vós, de acordo com Empédocles, que os seres emanam
determinados eflúvios? MÊNON: Certamente. SÓCRATES: E os poros para os quais e através
dos quais passam os eflúvios? MÊNON: Precisamente. SÓCRATES: E alguns eflúvios adaptam-
se a alguns dos poros, mas alguns são mais pequenos e outros são maiores? MÊNON: É isso
mesmo. [...] SÓCRATES: Com efeito, a cor é um eflúvio das coisas, proporcionado e perceptível
à vista” (Platão, 2007, 76a-d); “De cada coisa irradia o que Górgias, seguindo Empédocles,
chama eflúvios; cada sentido está constituído por poros de uma certa dimensão, que
selecionam os eflúvios que lhe são proporcionados pelo tamanho. Este mecanismo explica a
diversidade das mensagens sensoriais que a mesma coisa pode produzir nos diferente sentidos.
[...] A percepção é fantasmática” (Romeyer-Dherbey, 1986, p. 40); Untersteiner (2012, p. 251-
252) comenta essa influência da teoria dos eflúvios de Empédocles ao analisar as teses do
Tratado do não-ser; No que diz respeito a parte final do Tratado, o tradutor e pesquisador Aldo
Dinucci (2008, p. 18) frisa que: “todos os comentadores concordam estar implícita a teoria da
percepção de Empédocles”.
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
30 “Eu para vós um deus imortal, não mais mortal / caminho entre todos cumulado de honras,
como é minha imagem, / de fitas coroado e de guirlandas floridas. / Quando com estas venho
às cidades florescentes, / por homens e mulheres sou venerado; e eles me seguem, milhares a
se informar por onde é o caminho ao lucro, / alguns carecendo de oráculos, e outros com
doenças / de toda espécie consultam para ouvir palavras de cura, / longamente transpassados
de pesadas dores” (Empédocles, 1973, p. 241).
31 “Como quando pintores quadros votivos pintam coloridos, / homens em arte bem entendidos
por seu talento, / os quais pegam em mãos pigmento multicores (phármaka), / em harmonia
tendo misturado uns mais e outros menos, / deles formas a todas (coisas) semelhantes
produzem [...]” (Empédocles, 1973, p. 231); “A extraordinária beleza de uma coisa oculta
manifesta-se quando pintores experientes não a podem representar com as suas
experimentadas cores. Então o seu importante esforço e a sua grande fadiga patenteiam um
testemunho maravilhoso do esplendor que permanece oculto [...] Mas aquilo que nenhuma
mão toca e nenhum olho vê, como o pode a língua expressar ou a orelha do ouvinte perceber?”
(Górgias, 1993, p. 64).
32 Cândido (2006, p. 196) conclui seu artigo sobre o mago acragantino afastando a feitiçaria de
o alcance do mito, / duplas (coisas) direi: pois ora um foi crescido a ser um só / de muitos, ora
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O lógos encantado: magia e feitiçaria da palavra em Górgias
de novo partiu-se a ser muitos de um só, / fogo e água e terra, e de ar a infinita altura, / e Ódio
funesto fora deles, de peso igual em toda parte, / e Amizade dentro deles, igual em
comprimento e largura; / [...] ela entre mortais se considera plantada em seus membros […]”
(Empédocles, 1973, p. 229).
34 “O feiticeiro procurava integrar-se não só aos elementos primordiais como: terra, água, fogo
e ar; mas, também aos mistérios da vida e da morte. [...] O feiticeiro detinha o poder sobre
estas almas porque era conhecedor de fórmulas e ritos que lhe permitiam chegar até aos
mortos. Vertia libações e sacrifícios de sangue objetivando despertar a animosidade e a
disposição dos mortos fora do tempo para subordina-los a sua vontade. Através da violação dos
túmulos, o praticante da magia tomava posse de partes do corpo destas vítimas errantes,
estabelecia um pacto de maldição e cumplicidade, de forma a atender aos anseios do feiticeiro
sempre que fosse convocado. Em seguida, de posse da psyché destes mortos, o praticante da
magia determinava a estas potências sobrenaturais para executar uma vingança ou lançar uma
maldição para alguém” (Cândido, 1998, p. 367-369).
35 “[...] l’attribution de pouvoirs magiques au philosophe n’aurait pas été posthume mais aurait
commencé avec son œuvre. Cependant, dans aucun de ses fragments, le médecin d’Agrigente ne
se désigne comme un mágos. Et il aurait même été étonnant qu’il le fasse, étant donnée la
connotation négative attachée à ce terme au Ve siècle. Ce n’est que rétrospectivement que les
revendications d’Empédocle ont été interprétées comme celles d’un mágos, une fois la notion de
mageía adoptée” (Carastro, 2006, p. 50).
36 “Górgias evoca as [...] artes gêmeas da feitiçaria e da magia sendo uma 'enganos da alma', a
outra 'ilusões da opinião', e que geralmente foram identificadas, uma como poesia, a outra com
retórica. Ele evoca então todos os que persuadiram e persuadem, ‘modelando’, ‘forjando’,
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
‘fabricando’, plásantes, como Prometeu modela as criaturas, um pseudē lógon” (Cassin, 2005,
p. 263).
37 “De même que l'evocation des morts qui, dans les [Perses], était un rite pieux, est le plus
souvent, par la suite, considérée comme une pratique suspecte et coupable, de même la parole
magique de Gorgias est un art de sorcier” (Romilly, 1973, p. 156); “Verbo com forte matiz moral
à época, significando algo como ‘ludibriar com artifícios falsamente mágicos.’ Esse termo,
goetéuei, e os seus cognatos se constituem como vitupério lançado pelo autor do tratado Da
doença sagrada aos seus opositores” (Salles, 2014, p. 69); “O ritual do psykhagōgos entra entre
degradação no período clássico, pois está sempre associado ao termo goetes, que, segundo
Aristófanes e Platão, apresenta uma conotação negativa por indicar a prática de feitiçaria e
imprecação vendidas às portas dos ricos” (Cândido, 2006, p. 196).
38 “En effet, pour que le pouvoir miraculeux de la poésie et de la magie pût se trouver annexé à
parole humaine en general, il fallait que celui-ci ecit profondement change de sens. L'exemple
de la magie peut servir à illustrer cette différence de valeur; [...] Si l'on considère les textes
littéraires antérieurs à Gorgias, on y trouve, en effet, des traces abondantes de la parole
magique. Mais, toute colorée de foi et de respect des dieux, celle-ci se présente, en général,
comme plus religieuse que magique […]” (Romilly, 1973, p. 155).
39 Em seu estudo intitulado Excluding the charming: the development of the Greek concept of
Magic, Graf (1995, p. 29-42) defende Górgias como o primeiro a reunir os termos goēteía e
mageía. Sobre goēteía e mageía: “the craft practised by goetes is known as goeteia, while the
transitive verb used to refer to the effect of that activity is goeteuein or in an intensive form,
ekgoeteuein. The craft practised by magoi is mageia or mageutike (techne) and the verb used to
refer to their actions mageuein” (Dickie, 2003, p. 12).
40 “Heródoto (I:101) nos informa que a palavra magus está relacionada aos antigos sacerdotes
persas identificados como medos. Formavam seitas secretas, detinham o domínio nas práticas
mágicas e estabeleciam contatos com as potências sobrenaturais (Heródoto. VII: 43). O que
nos leva a afirmar que o poeta Eurípides, ao compor a poesia trágica intitulada Medeia, sabia
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O lógos encantado: magia e feitiçaria da palavra em Górgias
que o nome da sacerdotisa de Hécate trazia à memória dos atenienses as práticas mágicas dos
sacerdotes persas conhecidos como medos” (Cândido, 2006, p. 190-191).
41 “Gorgias propose, avec son Éloge d’Hélène, un renversement provocateur. Il utilise en effet la
référence à la mageía pour dire la puissance trompeuse de son lógos de sophiste qui peut faire
croire une chose et son contraire. Ce faisant, il inscrit cette notion nouvelle dans le domaine de
la parole poétique, une parole efficace pour les Grecs qui, comme le chant des Sirènes, peut
méduser et enchaîner ses auditeurs ou, comme les surchants, epōidaí, peut agir sur l’âme de
ceux qui l’écoutent. En employant des termes relevant de la configuration de thélgein pour
préciser le sens de la mageía, Gorgias ancre cette dernière dans un univers de représentations
grecques présentes dès l’épopée homérique. [...] A travers son éloge du lógos, Gorgias situe donc
la mageía au cœur de la pensée grecque” (Carastro, 2006, p. 215)
42 “[...] the problem of the relationship between magic and rhetoric in ancient Greece exists and
has a meaning. [...] Gorgias, in the Helen, insists on the wonderful power of speech, and he does
so by using two similes comparing speech with poetry on the one hand and magic on the other.
[...] and in a luxurious bunch of words he combines all the expressions that can be used for
magic and witchcraft: έθελξε, γοητεία, γοητείας καϊ μαγείας, to which will be added, in §14,
ἐφαρμάκευσαν καὶ ἐξεγοήτευσαν. The spell of words is firmly assimilated to witchcraft. This very
insistence shows that what we have here is more than a mere simile; in fact, the double analogy
drawn by Gorgias may well turn out to be a program for rhetoric” (Romilly, 1975, p. 3).
43 “La parole poétique n'a plus de prestige propre. [...] C'est bien pourquoi il peut réclamer pour
la parole en général toutes les possibilités de la poésie. Et cela l'amène à polir une prose capable
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
de produire de tels effets: il ne se contente pas de lancer des procédés de style plus ou moins
voyants et plus ou moins caducs, il fonde, en Grèce, le principe même d'une prose littéraire,
principe dont peu d'auteurs se réclament ouvertement, mais auquel tous doivent plus ou moins
la qualité de leur expression. II peut le faire parce que le privilège poétique est désormais exorcisé
[...]” (Romilly, 1973, p. 161).
44 “Con Gorgias entró en el mundo la prosa artística [...]” (Nietzsche, 2000, p. 182).
45 “C’est dans un de ses discours [...] qu’il introduit une conception nouvelle des pratiques des
mágoi. [...] l’Éloge d’Hélène est un pur produit sophistique qui efface la frontière entre le bien et
le mal, entre le vrai et le faux, pour célébrer la puissance performative de la parole.[...] En
mettant ainsi la mageía en relation avec la parole poétique, Gorgias accomplit une étape
décisive dans le processus de sémantisation des mágoi et de leur art, qui, ainsi, sont placés au
cœur de la culture grecque” (Carastro, 2006, p. 53-55); “The earliest known instance of mageia
can be found in the latter half of the fifth century in Gorgias of Leontini's (ca. 485-380 BCE)
Encomium of Helen, a work that attempts to rehabilitate Helen's reputation for treachery in the
Trojan War” (Collins, 2008, p. 58).
46 “A persuasão contém em si um poder mágico (δύναμις) [...]” (Untersteiner, 2012, p. 189).
28
O lógos encantado: magia e feitiçaria da palavra em Górgias
47 “Les arts doubles du lógos, la mageía et la goétie, se retrouvent au centre du dispositif mis en
place dans son discours pour opérer ce renversement. Gorgias propose ainsi une acception
positive de la mageía, qui devient un instrument essentiel de sa performance” (Carastro, 2006,
p. 60); Enquanto Untersteiner (2012, p. 187) vê nas artes duplas do lógos uma referência à prosa
e à poesia: “uma vez que o lógos foi apresentado como potência mágica, é consequentemente
definido como dýnamis, que, por meio do encanto fascinante, ‘funde-se na opinião da alma’ de
modo a transformar a vontade e produzir engano para, dessa maneira, conseguir persuasão. O
resultado de todo esse processo é uma transformação (metéstesen) da ‘opinião da alma’, que
pode ser obtida mediante duas artes: a da poesia e a da prosa artística”; Cassin (2005, p. 145)
relaciona as artes duplas do lógos aos dissói lógoi, díssai tékhnai, à sofística discursividade
mágico-feiticeira que consegue fazer crer numa coisa e no seu contrário.
48 “The philological history of goes suggests that originally the term referred to a specialist in
one type of lamentation for the dead, called goös” (Collins, 2008, p. 59); It has indeed been
argued that goetes were originally shamans, who in an ecstatic state conveyed the spirits of the
dead on their perilous journey to the other side. That hypothesis rests on the etymological link
between the masculine noun goes and the verb goan; [...] That the substantive goes does derive
from the verb goan can hardly be doubted” (Dickie, 2003, p. 12).
49 “la mageía est associée à la goétie, goēteía; [...] La richesse de cette notion n’est cependant
pas épuisée par la traduction la plus courante, ‘sorcellerie’, et mérite quelques développements.
Attestée pour la première fois chez Gorgias, il s’agit d’un dénominatif d’un terme plus ancien,
góēs, qui est habituellement traduit par ‘enchanteur’, ‘sorcier’ ou ‘charlatan’” (Carastro, 2006,
p. 55).
50 “la connaissance et la pratique des chants de lamentation, góoi, adressés aux défunts. En
effet, selon une étymologie ancienne rapportée par les lexiques et généralement accueillie par
les spécialistes, le terme góēs serait un déverbatif de goáō, qui est déjà employé dans la
littérature homérique et signifie ‘se lamenter’, ‘prononcer des lamentations rituelles’. Ainsi, les
compétences du goète auraient été confinées presque exclusivement dans la sphère de la
psychagogie” (Carastro, 2006, p. 55-56); “the Greek language preserves a family of terms related
29
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
to góēs which bears close resemblance to shamanistic experience; [...] these terms concern the
binding of souls, notably those of the dead, by a figure of great prestige, a charismatic leader.
Indeed, the góēs is originally a psychopomp who presides over funeral rituals and ensures that
the deceased is safely situated in the afterlife, his honor appeased and his potential for harm
allayed by the proper ceremonies. The góēs oversees a rite of passage concerned with the status
of the dead, and incantation is an important tool in his arsenal” (Gellrich, 1994, p. 276).
51 “the word Ψυχαγωγείν [...] was first used for the magic ritual summoning the dead. It is used
of the magic γόoς that calls up Darius in Aeschylus' Persians. It is also used for a magician
bringing up the dead in Euripides' Alcestis. [...] But even though such a tradition may have
existed before Gorgias and may have been a factor is his bringing together magic and speech,
there is some danger in pressing these suggestions too far — not only because the documents
are all so late but because Gorgias completely altered the meaning of this connection. For his
aim was a new one, and he laid the emphasis not on magic but on speech” (Romilly, 1975, p. 15).
52 Segundo Schiappa (1995, p. 321): “There are at least five distinct categories of readings:
Sacred magic was mysterious; Gorgias' magic is technical. He wants to emulate the power of
the magician by a scientific analysis of language and of its influence. He is the theoretician of
the magic spell of words” (Romilly, 1975, p. 16); Ao comentar a inserção das figuras poéticas na
prosa, Romilly (1975, p. 20) enfatiza: “the intellectual character of Gorgias' style, and of the
great change that these figures underwent when they were transposed from poetry into prose.
The sound of words is no longer mysterious; it no longer implies divine intervention or even
produces irrational action. It is just style, and an intellectual display of skill”.
30
O lógos encantado: magia e feitiçaria da palavra em Górgias
54 “La magie ne peut donc servir ' Gorgias de reference et de moddle que parce qu'elle est devenue,
selon le mot meme qu'il emploie, une tekhne” (Romilly, 1973, p. 156); “Le chemin qui mène à
Gorgias passe par tous les poètes du passé: Gorgias a [...] conquis au profit de la parole humaine
l'ancien effet magique de la poésie inspirée. Mais ce n'est pas assez de dire que Gorgias a, dans
ce texte, remplacé une forme d'irrationnel par une autre. Car cette courte page, qui commence
avec la parole magique et les sortilèges de la poesie, aboutit, en fait, à un art de la parole
véritablement scientifique” (Romilly, 1973, p. 162).
55 “A sacralidade mágica do estilo se entrecruza com o rigor lógico, de modo que as
consequências trágicas deste são anuladas pela força persuasiva e enganadora das atitudes
formais particulares. Nesse entrecruzamento de exasperada lógica formal e de fórmulas
mágicas, que se alternam como arrebatadora cadência, forma-se o germe daquela coisa nova
que, mesmo relacionando-se às formas da poesia, sentidas e usadas de forma bem diferente, é
prosa, a ‘prosa de arte’ [...]” (Untersteiner, 2012, p. 296).
56 Na gnosiologia de Górgias: “o conflito não está, como costumeiramente se acredita, entre
verdade e opinião, assim como acontece em Parmênides, mas entre dois modos de
conhecimento. De um lado está a dóxa, que é incapaz de realizar a síntese dialética; de outro
se impõe o lógos, que atingem o engano (apátē), que domina a alma, superando assim, com
um ato irracional, a impossibilidade de um conhecimento objetivo” (Untersteiner, 2012, p. 187);
“o lógos é um ser vivo selvagem, uma animalidade ambígua. Sua força mágica, farmacêutica,
deve-se à sua ambivalência [...]” (Derrida, 2005, p. 74); “Górgias gorgianiza, diz Filóstrato, ele
inventa figuras da lexis, do pronunciado, reduplicações retomadas reviravoltas
correspondências antítese balanceamentos homeotelêutas, impactos do phármakon que se
verte na alma pelas orelhas, [...]. Esse motivo sonoro procede de uma retórica que está ligada
ao tempo e que a filosofia não subjuga. A encantação e a melopeia do phármakon resistem […]”
(Cassin, 2017, p. 88).
31
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
57 “Em suma, o pranto libera uma afetividade incontrolável, já que essencialmente feminina:
[...] chorar é, para a época clássica, o quinhão das mulheres. A pólis ateniense bem o sabe e por
isto, após destacar um lugar para as lamentações femininas durante os funerais públicos,
escolhe um homem para pronunciar o elogio fúnebre dos ándres queenterra! Discurso
indissoluvelmente militar e político, a oração fúnebre não reconhece como seus senão os
valores masculinos…” (Loraux, 1994, p. 62-63) “Talvez, a pólis ateniense, que democratizou a
atividade militar e a abriu a todos os cidadãos, seja, mais do que qualquer outra pólis, um ‘clube
de homens’; [...] No desenrolar dos funerais, o papel e o lugar das mulheres são
cuidadosamente delimitados: em meio a essa assembleia masculina, livremente reunida para
honrar seus mortos, as únicas mulheres admitidas são seus parentes próximos. Mas, ainda
assim, sua presença só é tolerada junto ao túmulo, jamais durante o cortejo, e seu papel se
restringe às lamentações rituais” (Loraux, 1994, p. 44).
32
O lógos encantado: magia e feitiçaria da palavra em Górgias
58 “o trabalho de luto, durante o qual os vivos mantêm os mortos, ocupam-se deles, agem com
eles; são mantidos ocupados e agidos pelos mortos, falam-nos e falam-lhes, portam seu nome
e conservam sua linguagem” (Derrida, 1994, p. 155).
59 “o saber mágico das ervas estendeu-se às mulheres mortais no início do século IV a.C., como
nos indica o processo impetrado contra a hetaira Frinea de Thepsis, a sacerdotisa Theoris de
Lemnos, e pharmakides Ninos; todas formam um conjunto de mulheres estrangeiras que
cultuavam divindade recentes e pouco conhecidas junto aos atenienses. Essas mulheres
atuavam como hetairas e disponibilizavam os seus conhecimentos sobre as ervas e raízes
visando atender aos problemas de saúde feminina. Por exemplo, o efeito de folhas da família
das mentas era muito útil para os problemas menstruais; as dores de varizes eram amenizadas
com fricção de folhas de hera; a cebola selvagem e o alho triturados com óleo e vinho eram
eficazes para conter sangramentos e secreção vaginal; a erva Artemísia atuava na solução de
problemas de ovário; plantas como beladona podiam ser usadas como calmante, mas, em
porções concentradas, tornavam-se abortivas; e as ervas das família do opium eram eficazes
como analgésicos para as mulheres em trabalho de parto. A documentação proveniente dos
oradores áticos deixa transparecer que as especialistas nas pharmaka circulavam entre a agora
de Atenas e o Pireu, oferecendo, por vezes, os prazeres do corpo, os seus conhecimentos
mágicos de encantamentos e filtros amorosos [...]” (Cândido, 2006, p. 192-193)
60 “a prática da necromancia detém certa antiguidade, porém, entre os atenienses, a sua
materialidade emerge junto ao discurso de oradores áticos do período clássico [...] mulheres
estrangeiras vítimas de acusação de práticas da magia como Theoris de Lemnos, Nino e Frinéia
de Téspis detinham o saber-fazer a prática de necromancia, visando prejudicar o inimigo
através do uso dos katadesmoi. Muitas dessas lâminas foram encontradas na mão direita de
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
Bandeira (2021)
62 “Os cultos noturnos introduzidos pelos frígios, [...] eram rituais considerados infames,
the dead, and although this characteristic cannot always be felt, in some authors such as Plato
34
O lógos encantado: magia e feitiçaria da palavra em Górgias
Referências
a good case can be made that such a distinction is still relevant. Later sources seem to take for
granted that goēteia refers exclusively to invocation of the dead” (Collins, 2008, p. 59); “in the
Byzantine lexicon dating to the end of the tenth century AD called the Suda [...] the practice of
being a goes, goeteia is defined as the summoning up of corpses. The trouble with that
explanation is there is no evidence that goetes originally specialized in summoning up the dead.
As for the entry in the Suda, it can be used neither as testimony to the original function of the
goes nor to actual Greek usage” (Dickie, 2003, p. 13).
64 “Defendemos que o ritual de necromancia é uma prática exercida eminentemente por
mulheres. Esta suposição se baseia no fato de que as mulheres estavam diretamente em contato
com o uso de encantamentos e rituais de contato com o corpo do morto, como nos aponta as
ações contra as hetairas Frinéia de Téspis, Nino e Theoris de Lemnos. Além disso, defendemos
que o ritual de evocação aos mortos necessita da presença de duas pessoas ao lado do
solicitante, a saber, o elemento masculino que evoca a alma do morto, identificado como
psychagōgós, esse termo grego ψυχαγωγὸν, compreende-se por uma prática que evoca a alma
do morto para obter informações, como citado anteriormente, e do elemento feminino, a
mulher cuja prática é identificada como necromancia, esse termo grego νεκρομαντεία define-
se como uma prática mágica de manipulação do corpo junto a sepultura, que ao colocar os
katadesmoi na mão direita do defunto, tem como objetivo fazer mal ao inimigo do contratante”
(Bandeira, 2021, p. 10).
35
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
CASSIN, B. O efeito sofístico. Trad. Ferraz, M.C.F; Oliveira, A.L; Pinheiro, P.,
São Paulo: Editora 34, 2005.
COLLINS, D. Magic in the ancient Greek world. John Wiley & Sons, 2008.
36
O lógos encantado: magia e feitiçaria da palavra em Górgias
37
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
PLATÃO. O Banquete. Trad. Souza, J.C. São Paulo: Editora 34, 2016.
ROSTAGNI, A. Un nuovo capitolo della storia della retorica e della sofistica. In:
Studi italiani di filologia classica, v. 2, n. 1, 1922.
38
Górgias e Epicteto: defensores de
Helena de Tróia?
Thatiane Santos Meneses 1
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.76.02
1 Introdução
Siracusa. Pesquisadores afirmam que esta foi a primeira vez que Górgias
chamou a atenção dos atenienses para seus discursos.
Górgias teria ganhado notoriedade por conta de sua técnica de
argumentação e ensino. Há relatos de que ele era capaz de discursar sobre
qualquer tema, tal afirmação pode ser comprovada por meio da leitura
de algumas obras de Platão, a exemplo do Mênon (70b-c) e do Górgias
(447-d).
Foram achados poucos escritos deixados por Górgias. Sabe-se que
a ele são atribuídos seis textos: Elogio de Helena; Defesa de Palamedes,
Epitáfio; Tratado do Não-Ser; Discurso Pítico e Discurso Olímpico. Do
Tratado do Não-Ser, não fora localizado o texto original. Do Epitáfio, nos
chegaram apenas fragmentos. Os dois discursos se perderam. Apenas o
Elogio de Helena e a Defesa de Palamedes foram achados intactos. Estas
duas últimas obras têm em comum dois fatos: primeiro, ambas são
defesas jurídicas; segundo, ambas possuem como plano de fundo a
Guerra de Tróia.
No Elogio de Helena, Górgias tem por objetivo demonstrar não só
a inocência de Helena que, para ele, fora acusada injustamente der ser a
causa da Guerra, mas também mostrar os erros de quem criticou Helena.
O sofista elenca algumas hipóteses que poderiam ter levado Helena a se
deixar seduzir por Paris e, em todos os cenários descritos, ela é mostrada
como inocente.
Sobre Epicteto convém registrar que ele foi um dos grandes
nomes do Estoicismo Imperial, entre os quais se incluem Sêneca,
Musônio Rufo e Marco Aurélio. Filho de uma serva, recebeu um nome
que era comumente dado a servos na Antiguidade e que “adquirido”.
Epicteto foi aluno de Rufo, e depois de liberto ele começou a lecionar na
Cidade Eterna e lá levava uma vida bem despojada.
Epicteto logo tornou-se filósofo-orador nas ruas de Roma (cf.
Diatribes II.12.17-25), até ser expulso de lá e se mudar para Nicópolis. Um
40
Górgias e Epicteto: defensores de Helena de Tróia?
dos temas mais recorrentes em suas Diatribes é, como nos conta Dinucci
e Julien no Encheiridion de Epicteto (2021, p. 13), “relatos de maus tratos,
pelos quais se opõe a liberdade interior à escravidão do corpo”. Seu
reconhecimento entre os que viviam em seu tempo e também por aqueles
que não conviveram com ele é inconteste. Há relatos, inclusive, de Marco
Aurélio teria exaltado Epicteto diversas vezes, chegando a colocá-lo ao
lado de nomes como Crisipo e Sócrates.
O estoico viveu na pobreza tanto em Roma quanto em Nicópolis,
mas isso não o impedia de ajudar os mais necessitados. Conta-se que ao
final da vida ele teria tomado uma serva para ajudá-lo a criar um menino
que ele adotara, pois a criança iria ser exposta pelo pai que se encontrava
em extrema miséria.
Apesar de pertencerem a correntes filosóficas distintas,
demonstraremos que ambos os filósofos possuem uma visão parecida
quando o assunto é Helena de Tróia.
41
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
bela das três seria merecedora do objeto. Para decidir a questão, Zeus
enviou as três a Páris, que escolheu Afrodite como a mais bela. Em troca,
a deusa do amor fez com que Helena, a mulher mais bela do mundo, se
apaixonasse por ele. Esse é um panorama geral da guerra.
A origem divina de Helena, a sua beleza, entre outros atributos
podem ter sido a causa dela ter despertado os desejos passionais em
tantos homens. Mas que culpa teria Helena nisso? A mulher não pode ser
bela? Ser inteligente?
No Elogio de Helena, Górgias tem por objetivo demonstrar não só
a inocência de Helena que, para ele, fora acusada injustamente der ser a
causa da Guerra, mas também mostrar os erros de quem criticou Helena.
O sofista elenca algumas hipóteses que poderiam ter levado Helena a se
deixar seduzir por Paris e, em todos os cenários descritos, ela é mostrada
como inocente.
É fato que nos idos do século V a.C. Górgias mal poderia imaginar
o quão difícil seria ser mulher neste mundo. O sofrimento de Helena,
retratado no Elogio de Helena, se torna bem atual nessa sociedade que
tem se mostrado cada dia mais machista e opressora.
No parágrafo segundo Górgias já convida os leitores a respeitar
Helena e aponta que tudo que foi feito contra ela está errado:
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Górgias e Epicteto: defensores de Helena de Tróia?
Pois ela fez o que fez ou pelos anseios da fortuna e pelas resoluções dos
deuses e pelos decretos da necessidade ou agarrada à força ou seduzida
pelas palavras ou capturada pela paixão. Se, pois, foi graças à primeira
[razão], o responsável merece ser acusado. Pois é impossível se opor,
pela diligência humana, ao desejo divino. Pois é por natureza não o mais
forte ser detido pelo mais fraco, mas o mais fraco pelo mais forte ser
comandado e conduzido. Por um lado, o mais forte comanda. Por outro,
o mais fraco obedece. O divino é mais forte que o homem tanto pela
força e pela sabedoria quanto pelas demais coisas. Pois se é necessário
atribuir a responsabilidade à Fortuna e ao divino, nesse caso é necessário
libertar Helena da ignomínia (Górgias, Elogio de Helena, 6).
43
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
44
Górgias e Epicteto: defensores de Helena de Tróia?
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
base em uma acepção falsa que no momento lhe pareceu ser verdadeira,
ou seja, ela pode ter acreditado que estaria fazendo algo de bom para ela.
Mais adiante, no excerto 22-23, o estoico defende que:
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Górgias e Epicteto: defensores de Helena de Tróia?
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
3 Considerações finais
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Górgias e Epicteto: defensores de Helena de Tróia?
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
Referências
CURADO, Ana Lúcia. A civilização grega. Trad. José Saramago. Lisboa: Edições
70, 2007.
50
Górgias e Epicteto: defensores de Helena de Tróia?
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
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A construção do universo estoico
Joelson Nascimento 1
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.76.03
1 Doutor em Filosofia pela UFBA; Professor efetivo de Filosofia do Instituto Federal de Sergipe;
προσονομάζεσθαι. κατ᾽ ἀρχὰς μὲν οὖν καθ᾽ αὑτὸν ὄντα τρέπειν τὴν πᾶσαν οὐσίαν δι᾽ ἀέρος εἰς
ὕδωρ: καὶ ὥσπερ ἐν τῇ γονῇ τὸ σπέρμα περιέχεται, οὕτω καὶ τοῦτον σπερματικὸν λόγον ὄντα
τοῦκόσμου,τοιόνδ᾽ ὑπολείπεσθαι ἐν τῷ ὑγρῷ, εὐεργὸν αὑτῷ ποιοῦντα τὴν ὕλην πρὸς τὴν τῶν ἑξῆς
γένεσιν: εἶτ᾽ ἀπογεννᾶν πρῶτον τὰ τέσσαρα στοιχεῖα πῦρ, ὕδωρ, ἀέρα, γῆν. D. L., VII.135-6 (SVF
I, 102). Trad. R.D. Hicks. Minha versão do Inglês.
3 Conforme Ário Dídimo em Eusebio ‘Praep. evang.’ XV, 15, p. 817, 6 (SVF II, 528), o Kosmos
também é chamado Zeus, pois é uma causa de vida para nós. Como governa tudo inviolável
desde a eternidade com uma concatenação de razões, também é chamado de Destino
(eimarmene), porque nada lhe escapa despercebido; e pronoia porque cada um administra para
que seja rentável.
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
4 De acordo com Harner, A teoria do Pneuma de Crisipo, p. 100, esse par de princípios acaba
por contradizer o monismo que caracteriza a filosofia estoica. Se ela é monista, como entender
a interação de mais de um princípio, a qual culmina na dualidade dos corpos? Isso torna-se
objeto de difícil elucidação, visto que o monismo estoico requer uma substância primeira
única. Todavia, a mudança que é necessária para a criação do Kosmos requer um jogo de forças
opostas, que só é possível, é claro, a partir de duas substâncias corpóreas. A esse respeito, ver
também Aécio 'Plac.' I, 5, 1, Dox. Gr. P. 291. (SVF II, 530). Filo Alexandrino 'De migrat. Abrah.
'§ 180, Vol. II, p. 303, 18 Wendl (SVF II, 532).
5 Δοκεῖ δ' αὐτοῖς ἀρχὰς εἶναι τῶν ὅλων δύο, τὸ ποιοῦν καὶ τὸ πάσχον. τὸ μὲν οὖν πάσχον εἶναι τὴν
ἄποιον οὐσίαν τὴν ὕλην, τὸ δὲ ποιοῦν τὸν ἐν αὐτῇ λόγον τὸν θέον· τοῦτον γὰρ ἀΐδιον ὄντα διὰ
πάσης αὐτῆς δημιουργεῖν ἕκαστα. τίθησι δὲ τὸ δόγμα τοῦτο Ζήνων μὲν ὁ Κιτιεὺς ἐν τῷ Περὶ
οὐσίας, Κλεάνθης δ' ἐν τῷ Περὶ τῶν ἀτόμων, Χρύσιππος δ' ἐν τῇ πρώτῃ τῶν Φυσικῶν πρὸς τῷ
τέλει, Ἀρχέδημος δ' ἐν τῷ Περὶ στοιχείων καὶ Ποσειδώνιος ἐν τῷ δευτέρῳ τοῦ Φυσικοῦ λόγου.
διαφέρειν δέ φασιν ἀρχὰς καὶ στοιχεῖα· τὰς μὲν γὰρ εἶναι ἀγενήτους <καὶ> ἀφθάρτους, τὰ δὲ
στοιχεῖα κατὰ τὴν ἐκπύρωσιν φθείρεσθαι. ἀλλὰ καὶ ἀσωμάτους εἶναι τὰς ἀρχὰς καὶ ἀμόρφους,
τὰ δὲ μεμορφῶσθαι. D.L. VII.134.10 (SVF II, 300). Conforme Boeri e Salles, Os Filósofos
estoicos: Ontologia, Lógica, Física e Ética, existem outras leituras que assumem o caráter
corpóreo dos princípios: “ἀσωμάτους e σωμάτα levantam não só dificuldades filológicas — é
provável que seja uma antecipação de ἀμόρφους, dito também dos princípios –, mas também
dificuldades de peso. A leitura de von Arnim (ἀσωμάτους, seguida por Edlstein-Kidd 1972: 40,
Tood 1978: 139-143 e Christensen 1962:11) vão de encontro à maior parte dos testemunhos que
informam que, para os estoicos, só é causa aquilo cuja natureza é de caráter corpóreo, e Deus
(o princípio ativo) sem dúvida é causa”. Nos fragmentos encontrados em Long e Sedley, por
exemplo, é encontrado o termo σωμάτα: [...] διαφέρειν δέ φασιν ἀρχὰς καὶ στοιχεῖα· τὰς μὲν γὰρ
εἶναι ἀγενήτους <καὶ> ἀφθάρτους, τὰ δὲ στοιχεῖα κατὰ τὴν ἐκπύρωσιν φθείρεσθαι. ἀλλὰ καὶ
σωμάτα εἶναι τὰς ἀρχὰς καὶ ἀμόρφους, τὰ δὲ μεμορφῶσθαι. Por ser um problema que não
interfere no objeto de nossa pesquisa e pela relação causal que deve existir entre as partes,
manteremos o termo σωμάτα.
6 Harner, Paul. A teoria do Pneuma de Crisipo, p. 99-100, trad. minha do Inglês.
54
A construção do universo estoico
7 Acontece que a passagem αὑτὸν ὄντα τρέπειν τὴν πᾶσαν οὐσίαν δι᾽ ἀέρος εἰς ὕδωρ mostra que
ar e água surgem antes da criação dos elementos fenomênicos fogo, ar, água e terra. Temos de
considerar, então, que no estágio inicial do Kosmos, ar e água são qualidades intrínsecas ao
próprio Fogo artífice, ou seja, são expressões do to poion e o to paschon, sem os quais não
existiriam as condições necessárias para que a divindade repouse como uma semente
garantidora de uma nova geração cósmica.
8 (SVF I, 95); (SVF II, 528); (SVF II, 535). Trad. Roberto Radice. Minha versão do Italiano.
9 ἔξωθεν δ᾽ σωμάτουςὐτοῦ περικεχυμένονεἶναι τὸ κενὸν ἄπειρον, ὅπερ ἀσώματον εἶναι:
ἀσώματον δὲ τὸ οἷόν τε κατέχεσθαι ὑπὸ σωμάτων οὐκατεχόμενον: ἐν δὲτῷ κόσμῳ μηδὲν εἶναι
κενόν, ἀλλ᾽ ἡνῶσθαι αὐτόν:τοῦτο γὰρ ἀναγκάζειν τὴν τῶν οὐρανίων πρὸς τὰ ἐπίγεια σύμπνοιαν
καὶ συντονίαν[...] D.L VII, 140. Ver também Cleomedes, Teoria Cíclica. I, 1, p. 5 Asse. (SVF II,
541).
55
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
10 Estobeu, Ecl. I. P. 161, 8 (SVF II 39, 162). In Brehier, A teoria dos incorporais no estoicismo
antigo, p. 36.
11 S.E., Adv. Math. X 3 (SVF II 16, 205), in Brehier, A teoria dos incorporais no estoicismo antigo,
p. 36.
12 Aécio, Plac. I, 20, I (SVF II 163, 15); S.E., Adv. Math. X 3,11, 19, in Brehier, A teoria dos
56
A construção do universo estoico
Zenão afirma que o sol, a lua e cada uma das outras estrelas é um ser
cognitivo, sábio e ígneo que cria o fogo. Pois existem dois tipos de fogo.
O fogo não artífice (atechnon), que transforma em si o que o alimenta;
e o fogo artífice (technon) causando crescimento e preservação, tal como
57
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
Pois é assim que todas as coisas que são nutridas e que crescem contêm
em si mesmas o poder do calor, sem o qual nem poderia nem crescer,
pois tudo que é quente e ígneo é atingido e atuado por seu movimento;
mas o que se nutre e cresce usa um movimento certo e uniforme; que,
enquanto permanece em nós, permanece o sentido e a vida, mas quando
o calor se esfria e se extingue nos matamos e nos extinguimos. [...]
Portanto, tudo o que vive, seja animal ou produzido pela terra, vive por
causa do calor encerrado nele, do qual deve ser entendido que é da
natureza do calor ter em si uma força vital em todo o mundo. E veremos
isso mais facilmente em todo esse tipo de fogo, que passa por tudo de
maneira mais detalhada. Portanto, todas as partes do mundo
(especialmente as maiores) são suportadas pelo calor. Isso pode ser visto
17 <Ζήνων> τὸν ἥλιόν φησι καὶ τὴν σελήνην καὶ τῶν ἄλλων ἄστρων ἕκαστον εἶναι νοερὸν καὶ
φρόνιμον, πύρινον <δὲ> πυρὸς τεχνικοῦ. δύο γὰρ γένη πυρός, τὸ μὲν ἄτεχνον καὶ μεταβάλλον
εἰς ἑαυτὸ τὴν τροφήν, τὸ δὲ τεχνικὸν αὐξητικόν τε καὶ τηρητικόν, οἷον ἐν τοῖς φυτοῖς ἐστι καὶ
ζῴοις, ὃ δὴ φύσις ἐστὶ καὶ ψυχή· τοιούτου δὴ πυρὸς εἶναι τὴν τῶν ἄστρων οὐσίαν. Estobeu, Ecl.
I, 25, 3, p. 213, 15 W.
18 Δοκεῖ δ᾽ αὐτοῖς τὴν μὲν φύσιν εἶναι πῦρ τεχνικόν, ὁδῷ βαδίζον εἰς γένεσιν, ὅπερ ἐστὶ πνεῦμα
58
A construção do universo estoico
19Sic enim res se habet, ut omnia, quae alantur et quae crescant, contineant in se vim caloris,
sine qua neque ali possent nec crescere. nam omne quod est calidum et igneum cietur et agitur
motu suo; quod autem alitur et crescit motu quodam utitur certo et aequabili; qui quam diu
remanet in nobis, tam diu sensus et vita remanet, refrigerato autem et extincto calore
occidimus ipsi et extinguimur … Omne igitur, quod vivit, sive animal, sive terra editum, id vivit
propter inclusum in eo calorem, ex quo intellegi debet eam caloris naturam vim habere in se
vitalem per omnem mundum pertinentem. Atque id facilius cernemus toto genere hoc ígneo,
quod tranat omnia subtilius explicato. Omnes igitur partes mundi (tangam autem maximas)
calore fultae sustinentur. Quod primum in terrena natura perspici potest … Atque aquae etiam
admixtum esse calorem primum ipse liquor aquae declarat et fusio, quae neque conglaciaret
frigoribus neque nive pruinaque concresceret, nisi eadem se admixto calore liquefacta et
dilapsa diffunderet; …ille vero et multo quidem calore admixtus est: ipse enim oritur ex
respiratione aquarium; earum enim quasi vapor quidam aer habendus est … Ex quo
concluditur, cum omnes mundi partes sustineantur calore, mundum etiam ipsum simili
parique natura in tanta diuturnitate servari, eoque magis, quod intellegi debet calidum illud
atque igneum ita in omni fusum esse natura, ut in eo insit procreandi vis et causa gignendi, a
quo et animantia omnia et ea, quorum stirpes terra continentur, et nasci sit necesse et
ugescere. Cícero, De Natura Deourum, XV. 39. Trad. H. Rackham.
59
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
ἐμπεριειληφὸς πάντας τοὺς σπερματικοὺς λόγους καθ' οὓς ἅπαντα καθ' εἱμαρμένην γίνεται, καὶ
πνεῦμα μὲν ἐνδιῆκον δι' ὅλου τοῦ κόσμου, τὰς δὲ προσηγορίας μεταλαμβάνον * διὰ ὅλης τῆς
ὕλης, δι' ἧς κεχώρηκε, παραλλάξαν*. θεοὺς δὲ καὶ τὸν κόσμον καὶ τοὺς ἀστέρας καὶ τὴν ῆν·
ἀνωτάτω δὲ πάντων νοῦν ἐναιθέριον εἶναι θεόν. Aécio, Plac. I, 7, 33. 1.7.33. (SVF II, 1027).
60
A construção do universo estoico
24 Conforme Harger, A teoria do Pneuma de Crisipo, p. 103, Crisipo também identifica o pneuma
com princípio ativo e conserva a ideia de que ele é misturado com a matéria, entretanto, rejeita
a tese de que o pneuma seja uma mistura de fogo e ar, mas: “ele supõe que toda a natureza é
unida pelo pneuma que a permeia e pelo qual o mundo é mantido junto e tornado coerente e
interconectado” (Alexandre de Afrodísias, Da Mistura, 216, 14, trad. S. Sambursky, O Mundo
Físico dos Gregos, p. 134. Citado por Hager, p. 104).
25 Δοκεῖ δ' αὐτοῖς ἀρχὰς εἶναι τῶν ὅλων δύο, τὸ ποιοῦν καὶ τὸ πάσχον.τὸ μὲν οὖν πάσχον εἶναι τὴν
ἄποιον οὐσίαν τὴν ὕλην, τὸ δὲ ποιοῦν τὸν ἐν αὐτῇ λόγον τὸν θέον· τοῦτον γὰρ ἀΐδιον ὄντα διὰ
πάσηςαὐτῆς δημιουργεῖν ἕκαστα. Τίθησι δὲ τὸ δόγμα τοῦτο ήνων μὲν ὁ Κιτιεὺς ἐν τῷ Περὶ οὐσίας,
Κλεάνθης δ' ἐν τῷ Περὶ τῶν ἀτόμων, Χρύσιππος δ' ἐν τῇ πρώτῃ τῶν Φυσικῶν πρὸς τῷ τέλει,
Ἀρχέδημος δ' ἐν τῷ Περὶ στοιχείων καὶ Ποσειδώνιος ἐν τῷ δευτέρῳ τοῦ Φυσικοῦ λόγου. Eles
asseguram que há dois princípios no universo, o ativo e o passivo. O princípio passivo é a
substância sem qualidade, isto é, matéria, enquanto o ativo é a razão inerente na matéria, que
é Deus. Porque ele é eterno e é o artífice de cada uma das várias coisas em toda a extensão da
matéria. Essa doutrina é exposta por Zenão em seu tratado Sobre a existência, Cleantes em seu
trabalho Sobre os átomos, Crisipo no primeiro livro de sua Física, Arquedemos em seu tratado
Sobre os Elementos e Possidônio em seu segundo livro da sua Exposição Física: D.L VII.134.5.
Trad. de R.D. Dicks. Neste fragmento, D.L. nos transmite uma ideia acordada entre os filósofos
acerca da existência de dois princípios: ativo e passivo. A matéria é aquilo através do qual o
pneuma age; modificando-a conforme seus movimentos característicos; imprimindo forma e
qualidade. Mas, apesar de ser uma doutrina compartilhada Zenão, Crisipo, Cleantes,
Arquedemos e Possidônio, este expõe uma concepção na qual podemos entender a matéria
também como ativa: φησε δὲ ὁ Ποσειδώνιος τὴν τῶν ὅλων οὐσίαν καὶ ὕλην ἄποιον καὶ ἄμορφον
εἶναι, καθ' ὅσον οὐδὲν ἀποτεταγμένον [ἴδιον] ἔχει σχῆμα οὐδὲ ποιότητα καθ' αὑτήν· ἀεὶ δ' ἔν τινι
σχήματι καὶ ποιότητι εἶναι. Διαφέρειν δὲ τὴν οὐσίαν τῆς ὕλης τὴν οὖσαν κατὰ τὴν ὑπόστασιν
<τῆς> ἐπινοίᾳ μόνον. Possidônio afirma que a substância do todo é também matéria sem forma
e sem qualidade, na medida em que ela não tem forma ou qualidade determinadas por si
mesma; mas está sempre em alguma forma e qualidade; e a substância que está de acordo com
a [ou sua] hipóstase difere da matéria apenas no pensamento. Posidonius. Die Fragmente, Frag
267 vol. 1”, Ed. Theiler, W. in Boechat, Eduardo, A Cosmovisão em Manilio e Possidônio, p. 127.
Neste caso, a matéria torna-se ativa na medida em que só existe em forma qualificada, ou seja,
podemos entender substância e matéria como conceitos diferentes, mas aquilo que nos é
apresentado já é um todo que possui qualidade e forma, logo, a matéria torna-se ativa na
medida em que espelha uma estrutura racional divina. Como nos diz WHITE, S. Possidônio e
a Física estoica apud Boechat, Eduardo, A Cosmovisão em Manilio e Possidônio, p. 127: ‘Se F,
de acordo com a sua substância, é diferente de G, então há distintos conceitos entre F e G, assim
como distintos lekta como seus conteúdos. E S e F subsistentemente difere de G ‘só no
pensamento’, então é idêntico a G somente corporalmente, e os conceitos de F e G são
coextensivos, mas distintos.’
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
26 Para Zenão e Cleantes, o pneuma é restrito aos organismos vivos. Para Crisipo, ele impregna
todo o Universo.
27 Aécio, Plac. IV, 3, 3 (SVF II, 779).
28 Galeno De usu respir. 5, Vol. IV, p. 502 K (SVF II, 783).
29 DINUCCI, Aldo, Manual Moderno do estoicismo (Artigo não publicado).
30 Long, Corpo e Alma no Estoicismo, p. 37. (SVF II. 368, 458, 741, 988, 1013).
31 D.L. afirma que o termo physis é usado também pelos estoicos como a união do Kosmos, a
causa do crescimento das coisas e sua conservação como princípio seminal (spermatikos
logos).
62
A construção do universo estoico
32 (SVF II, 714-18) in Long, Corpo e Alma no Estoicismo, p. 38. Nos seres humanos, por exemplo,
ele fará parte da estrutura do esqueleto, ossos e tendões (Harger, Paul, A Teoria do Pneuma de
Crisipo, p. 102).
33 Clemente de Alexandria, Strom. II. (SVF II, 714). Trad. Roberto Radice.
34 Nos seres humanos ela é responsável pelo crescimento dos cabelos e unhas. (Harger, Paul, A
δὴ τὴν μὲν τοῦ τρέφεσϑαί τε καὶ αὐξάνεσϑαι καὶ τῶν τοιούτῶν ἔργων αἰτίαν ὀνομάζομεν ἅπαντες
ἄνϑρωποι φύσιν, τὴν δὲ τῆς αἰσϑήσεώς τε καὶ ἐξ ἑαυτῆς κινήσεως ψυχήν. Cada vegetal é
governado pela faculdade vegetativa, enquanto cada animal é governado pela faculdade
vegetativa e, ao mesmo tempo, também pela alma. Se, portanto, todos nós damos o nome de
'faculdade vegetativa' à causa da nutrição, crescimento e tais funções, damos o nome de 'alma'
à causa da sensação e do movimento que ela origina” Galeno, Adv. Iulianum, 5, Vol. XVIII A, p.
266 K) (SVF II, 718). Trad. Roberto Radice.
36 Como observa Long, Corpo e Alma no Estoicismo p. 38, Deus possui distintas formas de
mover-se na matéria: nos objetos sem vida, apenas como hexis, nas plantas, como physis, nos
animais, como psyche, nos seres humanos, como hegemonikon. Ele afirma também que alguns
outros autores dizem existir apenas três tipos de movimentos pneumáticos. Galeno (SVF 2.716)
in Long Soul and Body in Stoicism, p. 44), afirma que há o hekitikon, physikon e psykikon. A
nutrição de plantas e animais se daria mediante o physikon; a capacidade de sensação e
movimento, através do psykikon e psykikon juntos. Clemente de Alexandria, (SVF II.714) insere
nos animais irracionais impulso e phantasia associados à hexis e physis. Philo, (SVF II.458),
afirma serem os ossos devidos à hexis e unhas à physis. A questão que se impõe é por que nos
objetos inanimados o pneuma não se desenvolve: será que a quantidade de matéria o impede
ou seu movimento é que atrai uma grande quantidade de matéria?
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
37 D.L. VII,.137-8.
38 Ibid., 138: καὶ αὐτὴν δὲ τὴν διακόσμησιν τῶν ἀστέρων κόσμον εἶναι. “O arranjo ordenado dos
corpos celestes em si mesmo como tal” (Trad. R.D. Hick).
39 D.L. VII, 138: τὸ συνεστηκὸς ἐξ ἀμφοῖν. “Para aquele todo do qual esses dois são partes” (Trad.
de R.D. Hick).
40 Κόσμον δ' εἶναί φησιν ὁ <Χρύσιππος> σύστημα ἐξ οὐρανοῦ καὶ γῆς καὶ τῶν ἐν τούτοις φύσεων
ἢ τὸ ἐκ θεῶν καὶ ἀνθρώπων σύστημα καὶ ἐκ τῶν ἕνεκα τούτων γεγονότων. λέγεται δ' ἑτέρως
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A construção do universo estoico
κόσμος ὁ θεός, καθ' ὃν ἡ διακόσμησις γίνεται καὶ τελειοῦται· Estobeu, Ecl. I, p. 184, 8 W. (SVF
II, 527). Trad. Roberto Radice.
41 DINUCCI, Aldo, Manual de Estoicismo: A visão estoica do mundo, p. 43.
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
Referências
AULO GÉLIO. The Attic Nights of Aulus Gellius. With An English Translation.
John C. Rolfe. Cambridge. Cambridge, Mass., Harvard University Press;
London, William Heinemann, 1927.
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A construção do universo estoico
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
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Uma breve introdução ao sobre as doutrinas
de Hipócrates e Platão (PHP) de Galeno
Marcus de Aquino Resende 1
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.76.04
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Uma breve introdução ao sobre as doutrinas
de Hipócrates e Platão (PHP) de Galeno
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
5Por que Galeno inicia seu tratado mencionando Aristóteles e Teofrasto? Porque, segundo ele,
“as melhores considerações de demonstração científica foram escritas pelos antigos filósofos
Teofrasto e Aristóteles em seus Analíticos Posteriores” (Galeno, PHP II 4).
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Uma breve introdução ao sobre as doutrinas
de Hipócrates e Platão (PHP) de Galeno
e Platão existem três fontes. Crisipo fala de poderes e suas fontes, mas
abre mão da possibilidade de existência dos poderes das paixões e dos
desejos (PHP I, Testemunho II). Galeno propõe que o cérebro, o coração
e o fígado são as fontes de poder que nos governam.
A questão que Galeno aponta como importante a ser feita por
todos os filósofos e médicos é: quantos poderes são em espécie, qual é a
natureza específica de cada um e em que parte do animal reside cada
poder? (PHP I, Testemunho II).
Para Galeno, examinar os estudos de Hipócrates e Platão foi
importante para a medicina e para a filosofia definirem claramente se os
poderes que governam o ser humano são um ou mais. Para ele, “parece
evidente que existem certos poderes em nossas almas: um que
naturalmente persegue o prazer e outro, o controle e vitória” (PHP I,
Testemunho II).
A argumentação de Galeno parte do método usado para
fundamentar seu conhecimento. Ele faz, pela primeira vez no PHP, no
Testemunho III, a apresentação do que ele posteriormente irá denominar
de premissa científica, mesmo sem pormenorizar ainda seu significado.
Ele aponta para o método da investigação demonstrativa (ἀποδεικτικός6)
como a escolha clara para aqueles que pretendem apresentar uma teoria
sobre os poderes. Para defender sua abordagem metodológica, Galeno
apresenta o problema da origem dos nervos: de onde parte, do coração
ou do cérebro? Segundo ele, existe apenas um argumento que pode ser
considerado válido, o do conhecimento científico:
6“παρεκάλουν τε διὰ τοῦ πρώτου τῶνδε τῶν ὑπομνημάτων ἐν ἐκείνῃ (sc. τῇ ἀποδεικτικῇ μεθόδῳ)
γυμνάσασθαι πρότερον, ὅστις ὁτιοῦν ἀποδεικνύειν ἐπιχειρεῖ” (Galeno, PHP I, Testemunho III,
O Método Apodítico). E ao longo do primeiro livro deste tratado eu exortei a todos que
empreendem qualquer demonstração para primeiro treinar-se nesse método (científico).
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
7 “Galeno, assim, entrou na longa controvérsia sobre a sede da ‘parte dominante’ da alma, ou
intelecto. Ele estava convencido de que suas experiências decidiram a questão em favor da
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Uma breve introdução ao sobre as doutrinas
de Hipócrates e Platão (PHP) de Galeno
teoria tripartite de Platão: a razão reside no cérebro, a raiva no coração e o desejo na barriga
(especificado por Galeno como o fígado). Isso significava derrota (ou assim ele pensava) para
aqueles que localizavam as principais funções psíquicas no coração — os peripatéticos, a
maioria dos estoicos e vários outros médicos” (Tieleman, 1996, xiii).
8 304-250 AEC, médico e anatomista fundador da escola de anatomia de Alexandria.
9 340 AEC, médico e anatomista.
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
defendida por Crisipo com uma aplicação errônea da lógica estoica? Esta
pergunta já recebe alguma atenção quando, ainda nesta introdução,
apresento o contexto da discussão das escolas médicas no contexto de
Galeno.
Subitamente, Galeno migra para a anatomia das artérias. Ora,
tendo estabelecido uma vez que os nervos saem do cérebro, agora é o
momento, para Galeno, de corrigir outra afirmação equivocada de
Praxágoras de que as artérias, após serem reduzidas pelo processo de
divisão, ao se espalharem pelo corpo, tornam-se nervos em suas
terminações. Galeno, mais uma vez, recorre à observação e à
demonstração (premissa científica) para fundamentar sua
contraposição: “as artérias do pulso, que costumamos tocar para
diagnosticar a febre, e aquelas entre o dedo indicador e o polegar, são
muito pequenas, mas elas ainda não se transformaram em nervos, e,
mesmo antes da dissecação, é claro que elas pulsam” (PHP I 7.15).
Para deixar claro que o PHP foi escrito para dialogar com médicos
e filósofos, Galeno põe de lado Praxágoras, a quem ele acusa de defender
falsificações (ψεύσματα) (PHP I 7.25), e de ser propositor de sofismas
abomináveis (ἀναίσχυντα σοφιζόμενον) (PHP I 8.1), e se volta para
Aristóteles, a quem poupa dos adjetivos mais agressivos e diz que “ele
falou duas vezes sobre a origem dos nervos de maneira confusa e
imprecisa” (PHP I 8.1), mas, como Praxágoras, também disse que os
nervos se originam no coração. Galeno transcreve uma citação de
Aristóteles tirada de uma de suas obras chamada Sobre as Partes dos
Animais: “o coração também tem um grande número de nervos, e é
razoável que os movimentos comecem com ele e sejam realizados
puxando e afrouxando; portanto, precisa de serviço e força desse tipo”
(PHP I 8.3). Chama a atenção que, neste momento, Galeno inicia sua
crítica a Aristóteles fazendo duas afirmações em PHP I 8.4: a) Aristóteles
falhou em demonstrar (ἀποδείκνυμι) que o coração é o órgão de onde
saem os nervos; b) seu argumento não é nem sequer persuasivo
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Uma breve introdução ao sobre as doutrinas
de Hipócrates e Platão (PHP) de Galeno
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
10 Hipócrates (460-370 AEC) é considerado por muitos como o pai da medicina grega e
certamente o maior nome da medicina grega que antecedeu Galeno.
11 Cf. Hankinson em sua introdução à tradução do texto MM de Galeno (Galen, 1991, xxvi–xxxii)
12 Cf. mais sobre o contexto médico de Galeno em Hankinson (Galen, 1991, xxvi–xxxiii); Frede
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Uma breve introdução ao sobre as doutrinas
de Hipócrates e Platão (PHP) de Galeno
dissecar corpos humanos e registrar seus estudos em nove livros, todos perdidos. É dito que
chegou a dissecar cerca de seis mil corpos de prisioneiros em seus estudos de anatomia.
16 Viveu entre 304-250 AEC. Contemporâneo de Herófilo, também era anatomista. Juntos
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
Hipócrates e sua teoria dos humores e dos médicos empíricos ou racionais propôs uma nova
teoria da doença que se fundamentava no fluxo dos átomos através dos poros do corpo, sendo
a doença resultado do movimento desequilibrado dos corpúsculos. Sua terapia consistia em
dietas, em exercícios e em banhos.
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Uma breve introdução ao sobre as doutrinas
de Hipócrates e Platão (PHP) de Galeno
24 Em sua obra O Melhor Médico é Também um Filósofo (Opt. Med 2.56) Galeno afirma: “Então
eu decidi tentar encontrar a razão pela qual essa admiração universal pelo homem
(Hipócrates) não é correspondida pela leitura dos seus textos. (Ou, se alguém certamente não
os lê, não pode entendê-los; ou, se por muita sorte ele faz ambos, ele, na verdade, hesita em
estudar os preceitos teóricos seriamente e trazê-los para sua prática costumeira”).
25 Hankinson afirma que, “na medicina, Galeno proclama a si mesmo como um seguidor da
cultivou a riqueza em Roma, mas também prometeu ensinar a arte em seis meses e
prontamente atraiu muitos alunos. Pois se aqueles que desejam ser médicos não precisam de
geometria, astronomia, lógica, música, ou quaisquer outras disciplinas nobres, como nosso
bom amigo Tessalos prometeu, e se eles nem sequer exigem longa experiência e familiaridade
com o assunto da arte em questão, então o caminho é livre para qualquer um que queira se
tornar um médico sem fazer qualquer esforço. É por essa razão que sapateiros, carpinteiros,
tintureiros, e trabalhadores do bronze embarcaram na carreira médica e abandonaram seus
primeiros negócios. Ex-comerciantes, na verdade, disputam quem é o melhor”.
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
27 Galeno, Sobre as Escolas [de medicina] Para os iniciantes I. 1. O livro de Galeno, Sobre as
Escolas [de medicina] Para os Iniciantes (SI – On the Sects for Beginners), está em Galen, 1985,
p. 3-20. A opção da tradução do título para o português vem do livro de Brito e Matsui (2022).
28 “Destas coisas” se refere à saúde e à doença mencionadas por ele no parágrafo anterior do
primeiro capítulo de seu livro Sobre as Escolas [de medicina] Para os Iniciantes.
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Uma breve introdução ao sobre as doutrinas
de Hipócrates e Platão (PHP) de Galeno
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
dia, há luz; não há luz; logo, não é dia. Esse argumento é chamado de
Tollendo Tollens.
3. O que, a partir de uma conjunção negada e um dos conjungidos
na conjunção, assere como conclusão a contraditória do asserível
restante, como, por exemplo: não é o caso que Platão morreu e Platão
está vivo; Platão morreu; Logo, não é o caso que Platão está vivo. Esse
argumento é chamado de Ponendo Tollens.
4. O que, a partir de um asserível disjunto exclusivo e um dos seus
disjuntos, conclui a contraditória do asserível restante, como, por
exemplo: ou o primeiro ou o segundo; o primeiro; logo, não o segundo.
Esse é chamado de Ponendo Tollens.
5. Aquele no qual o argumento como um todo é composto de um
asserível disjuntivo exclusivo e de uma das contraditórias de um dos seus
disjuntos e assere como conclusão o asserível restante, como em: ou é dia
ou é noite; não é noite; logo é dia. Esse é chamado de Tollendo Ponens.
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Uma breve introdução ao sobre as doutrinas
de Hipócrates e Platão (PHP) de Galeno
invisíveis aos olhos presentes no ar, que desempenham um importante papel na fisiologia. Ele
falou de pneuma vital e pneuma psíquica. A pneuma vital é resultado da conversão do ar
respirado pelos pulmões misturado com o sangue levado através das artérias ao ventrículo
esquerdo do coração. No cérebro, a pneuma vital é transformada em pneuma psíquica (cf.
Castro, 2009, p. 42-68).
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
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Uma breve introdução ao sobre as doutrinas
de Hipócrates e Platão (PHP) de Galeno
Referências
87
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
COOPER, John Madison (Ed.). Reason and Emotion: essays on ancient moral
psychology and ethical theory. New Jersey: Princeton University Press, 1999.
FREDE, Michael. The Empiricist Attitude Towards Reason and Theory. In:
Apeiron: A Journal for Ancient Philosophy and Science, v. 21, n. 2, 1988.
GALEN. Three Treatises On The Nature Science: On the Sects for Beginners; An
Outline of Empiricism; On Medical Experience. Translated by Richard Walzer
and Michael Frede. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1985.
GALEN. Galen On the Therapeutic Method: books and I and II. Translated by R.
J. Hankinson. Oxford: Claredon Press, 1991.
LACY, Phillip de. On the doctrines of Hippocrates and Plato. Trad. Phillip De
Lacy. 3. ed. Berlin: Akademie Verlag, 2005.
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Uma breve introdução ao sobre as doutrinas
de Hipócrates e Platão (PHP) de Galeno
TIELEMAN, Teun. Galen and Chrysippus on the Soul: argument and refutation
in De Placitis, Books II-III. New York: Brill, 1996.
TIELEMAN, Teun. Galen and the stoics, or: the art of naming. In: WITMARSH,
Tim; GILL, Christopher; WILKINS, John (Ed.). Galen and the world of
knowledge. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
90
Sêneca e a ortodoxia estoica:
forma literária e suasio
Marcos Vinicios Pereira de Almeida 1
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.76.05
1 Introdução
e preconceito, ele cria para si uma particular que lhe pertence [...] Não há líder de uma seita
que não tenha sido mais ou menos eclética. estão entre os filósofos que são os reis da face da
terra, os únicos que permaneceram no estado da natureza, onde tudo pertencia a todos”
(Dillon; Long, 1988, p. 19, trad. nossa).
3 “No final do século, a opinião negativa sobre a antiga filosofia eclética, que já havia sido
sancionada pela Era do Iluminismo, foi assim conciliada com a recente depreciação do próprio
conceito de ecletismo: um nome desacreditado agora poderia ser dado sem dificuldade a uma
filosofia ruim. Essa situação durou ao longo do século XIX, quase sem exceções. Em particular,
é pressuposto pelo Philosophie der Griechen, de E. Zeller, o trabalho que deveria influenciar
mais intensamente toda a tendência dos estudos subsequentes do pensamento antigo”
(Donini, 1988, p. 22, trad. nossa).
4 Giovanni Reale observa que o fenômeno eclético penetrou marginalmente no epicurismo,
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Sêneca e a ortodoxia estoica: forma literária e suasio
5 “Se o ecletismo até essa data se tornou uma noção relativamente técnica, suas origens [...] são
pelo menos tão antigas quanto Xenofonte. Ele faz Sócrates falar de leituras das obras de sábios
antigos, "que selecionamos [eklegometha] com base no que quer que percebamos bem” nelas;
e há outros exemplos desse uso do termo. Mas até o período romano, nem essa ideia nem o
termo eklegein podem ter estabelecido um lugar regular na filosofia” (Ibid., p. 22, trad. nossa).
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
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Sêneca e a ortodoxia estoica: forma literária e suasio
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
2 Sêneca e o ecletismo
6 Donini ressalta que se fomos partir da distinção entre ecléticos e ortodoxos de Karl Praechter:
“de acordo com esse ponto de vista, os filósofos que poderiam ser considerados ortodoxos, que
se esforçavam para permanecer leais a um núcleo original de doutrinas consideradas essenciais
e típicas da escola da qual eles tiravam seu nome e que, em muitos casos, eram hostis a
influência de doutrinas alienígenas. Aqueles que não tinham essa preocupação e estavam
abertos a influências estranhas [então] eram ecléticos. Uma vantagem considerável dessa
distinção era sua aplicabilidade a todas as escolas filosóficas [...] entre os estoicos, Epicteto era
ortodoxo, enquanto Sêneca era absolutamente eclético [...]” (Donini, 1988, p. 28, trad. nossa).
7 “Demétrio, que parece ter sido colocado pela natureza em nossos tempos, para provar que
não poderíamos corrompê-lo nem ser corrigidos por ele; um homem de sabedoria consumada,
embora ele próprio a negasse, constante aos princípios que professava, de uma eloquência
digna de lidar com os assuntos mais poderosos, desprezando meras belezas e sutilezas verbais,
mas expressando com espírito infinito as ideias que a inspiravam. Não duvido que ele tenha
sido dotado pela providência divina de uma vida tão pura e de um poder de expressão tão
grande que a nossa era não pode ter um modelo nem uma reprovação” (Ben., VII. 8, trad.
nossa).
96
Sêneca e a ortodoxia estoica: forma literária e suasio
8 É importante ressaltar que na tradição estoica não é só o Sêneca que estava dialogando
97
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
9 “a ira é a concupiscência da vingança contra quem se pensa ser o autor de um mal imerecido”
desprezo manifestado contra nós, ou contra pessoas da nossa convivência, sem haver razão
para isso” (Ari. Ret., 1378a42-45).
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Sêneca e a ortodoxia estoica: forma literária e suasio
11 Todavia, é importante frisar que os estoicos anteriores à Sêneca também tinham necessidade
de inovar, essa intenção não era única e exclusivamente do pensamento senequiano (cf.
Inwood, 2005, p. 24).
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
12“Creio que estaremos ambos de acordo em que é para proveito do corpo que procuramos os
bens exteriores; em que apenas cuidamos do corpo para benefício da alma, e em que na alma
há uma parte meramente auxiliar — a que nos assegura a locomoção e a alimentação — da
qual dispomos tão somente para serviço do elemento essencial. No elemento essencial da alma
há uma parte irracional e outra racional; a primeira está ao serviço da segunda; esta não tem
qualquer ponto de referência além de si própria, pelo contrário, serve ela de ponto de referência
a tudo” (Puto, inter me teque conveniet externa corpori adquiri, corpus in honorem animi coli,
in animo esse partes ministras, per quas movemur alimurque, propter ipsum principale nobis
datas. In hoc principali est aliquid inrationale, est et rationale; illud huic servit, hoc unum est
quod alio non refertur sed omnia ad se refert) (Ep. XCII. 1).
100
Sêneca e a ortodoxia estoica: forma literária e suasio
13 Cooper tem razão, Sêneca não se considera um sapiens, colocando-se sempre como um
progrediens ou proficiens: “Isto só prova como aquele modo de agir que eu considero digno e
louvável ainda se não fixou de modo definitivo e inabalável no meu espírito. Ora, quem se
envergonha de uma modesta carroça envaidecer-se-á de uma carruagem de luxo. Portanto, até
agora ainda pouco progredi: ainda não ouso praticar a frugalidade em público, ainda me
preocupa a opinião dos outros viajantes!” (Quod argumentum est ista quae probo, quae laudo,
nondum habere certam sedem et immobilem. Qui sordido vehiculo erubescit pretioso
gloriabitur.Parum adhuc profeci: nondum audeo frugalitatem palam ferre; etiamnunc curo
opiniones viatorum. Contra totius generis humani opiniones mittenda vox erat: 'ins anitis,
erratis, stupetis ad supervacua, neminem aestimatis suo) (Ep. LXXXVII. 5).
101
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
14 “Há um perigo — e eu argumentarei que Sêneca é vítima disso — que, ao confiar tão
102
Sêneca e a ortodoxia estoica: forma literária e suasio
15 “Dizia Cícero que nunca teria tempo para ler os poetas líricos ainda que a sua vida duplicasse;
o mesmo direi eu dos dialécticos, cuja insensatez ainda é mais confrangedora, pois se aqueles
são fúteis deliberadamente, estes estão convencidos de que fazem obra útil. Não nego que se
deva dar uma olhadela ao estudo da dialéctica, mas uma olhadela apenas, uma saudação, por
assim dizer, feita cá de longe e com este único propósito: o de não tomarmos o que não passa
de palavreado como se fosse a expressão de algum grande e profundo pensamento” (Negat
Cicero, si duplicetur sibi aetas, habiturum se tempus quo legat lyrical: eodem loco <pono>
dialectical: tristius inepti sunt. Illi ex professo lasciviunt, hi agere ipsos aliquid existimant. Nec
ego nego prospicienda ista, sed prospicienda tantum et a limine salutanda, in hoc unum, ne
verba nobis dentur et aliquid esse in illis magni ac secreti boni iudicemus) (Ep. XLIX. 6).
16 De fato, os estoicos consideravam a dialética uma forma de excelência: “os estoicos dizem
que a dialética é necessária e é uma forma de excelência (areté) que abrange outras formas de
excelência especiais ou particulares” (D.L. VII. 46). Por outro lado, Sêneca não anula a dialética
em absoluto, como ficou claro na epístola XLIX.
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
104
Sêneca e a ortodoxia estoica: forma literária e suasio
tempo ao invés de deixa-lo escorrer e perdê-lo por descuido 17. Além disso,
Sêneca também discorre a respeito do tema do tempo em outra obra
endereçada a outro interlocutor, em De Brevitate Vitae.
Em seguida, vale notar, que, se a filosofia perde seu tempo com
sutilezas dialéticas, ela não vai conseguir entregar aquilo que promete, a
sabedoria por meio da atualização da verdade na vida moral. A filosofia,
como meio, não entrega a vita beata que promete no final. Além do mais,
aponta Bentancur-Gómez, a filosofia precisa estar atenta à coerência da
vida prática com a vida teórica, a saber, a filosofia precisa ser acessível
para absorção e aplicação do agente moral. Isso, por sua vez, está em
acordo com o princípio estoico de que a virtude pode ser ensinada e
aprendida. Desse modo, a filosofia precisa estar configurada em atos e
obras vivas, não em silogismos instrumentais apenas (Ibid., 2012, p. 7).
Nesse sentido, Bentancur-Gómez observa que o exercício da razão,
salientado por Cooper, não se restringe ao campo da lógica formal, ele
está um pouco além disso, isto é, está diretamente ligado a outros
exercícios para “fortalecer internamente anima”. Se os exercícios da razão
não estão limitados à estrutura intelectualista lógico-formal, então quais
são os exercícios racionais que Sêneca propõe?
A propósito desses outros exercícios, Bentancur-Gómez explica
quais são os exercícios racionais que Sêneca propõe, a saber, Sêneca
coloca em suspensão as sutilezas dialéticas de difícil absorção para, sem
seguida, colocar em pauta seus exercícios de razão em forma de
persuasão (suasio). Desta forma, para Sêneca, a assimilação entre teoria
e práxis ocorre quando os escritos filosóficos são de fácil absorção,
quando há transparência e sensibilidade nos próprios escritos
17“Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de dispores de ti, concentra e aproveita
todo o tempo que até agora te era roubado, te era subtraído, que te fugia das mãos” (Ita fac, mi
Lucili: vindica te tibi, et tempus quod adhuc aut auferebatur aut subripiebatur aut excidebat
collige et serva) (Ep. I. 1).
105
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
18 Na epístola LIX, passo 6, Sêneca enfatiza que a escrita filosófica é fundamental para lidarmos
com nossas limitações e fraquezas no momento de compreender um conteúdo filosófico.
Também, na epístola XLVIII, passo 12, Sêneca discorre a respeito da importância da
transparência e simplicidade na formação do espírito filosófico.
19 Epicteto (Ench., 5a), outro estoico do período imperial, tem uma bela passagem em seu
Encheirídion que exemplifica e corrobora com o argumento do Sêneca: “as coisas não
inquietam os homens, mas as opiniões sobre as coisas. Por exemplo: a morte nada tem de
terrível, ou também a Sócrates teria se afigurado assim, mas é a opinião a respeito da morte —
de que ela é terrível — que é terrível! Então, quando se nos apresentarem entraves, ou nos
inquietarmos, ou nos afligimos, jamais consideremos outra coisa a causa, senão nós mesmos
— isto é: as nossas próprias opiniões”.
20 “Objecto de louvor não é a pobreza, mas sim o homem que se não deixa vencer nem abater
pela pobreza; objecto de louvor não é o exílio, mas sim quem parte para o exílio com mais
serenidade no rosto do que se exilasse alguém; objecto de louvor não é a dor, mas sim quem
em nada cedeu à dor; ninguém louva a morte em si, mas sim o homem que a morte arrebata
sem previamente lhe perturbar o ânimo” (Laudatur enim non paupertas, sed ille quem
paupertas non summittit nec incurvat; laudatur non exilium, sed ille [Rutilius] qui fortiore vultu
in exilium iit quam misisset; laudatur non dolor, sed ille quem nihil coegit dolor; nemo mortem
laudat, sed eum cuius mors ante bstulit animum quam conturbavit) (Ep. LXXXII. 11).
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Sêneca e a ortodoxia estoica: forma literária e suasio
21 É importante notar que o entendimento dos indiferentes como ambivalentes, isto é, podem
ser bons ou ruins dependendo do seu uso, segue a tradição heraclitiana que os estoicos se
colocam como herdeiros. Heráclito tem um fragmento que ilustra bem essa ambiguidade:
“mar, água mais pura e mais impura, para os peixes potável e saudável, para os homens
impotável e mortal” (Hipólito, Refutação, IX, 9).
107
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
22 Diogenes L. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Trad: Mário da Gama Kury. Brasília:
Editora UnB, 2014
23 Anaximenes. Hist., Rhet., Ars rhetorica vulgo Rhetorica ad Alexandrum, Chapter 35, section
3, line 2; Chapter 36, section 29, line 6; section 47, line 2 (0547: 001), Ed. Fuhrmann, M. Leipzig:
Teubner, 1966.
108
Sêneca e a ortodoxia estoica: forma literária e suasio
4 Considerações finais
109
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
Referências
BARNES, Jonathan. Logic and the imperial stoa. Leiden: Brill, 1997.
CÍCERO, Marco Túlio. Do sumo bem e do sumo mal. Trad. Carlos Ancêde
Nogué. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CÍCERO, Marco Túlio. Dos Deveres (De Officiis). Editora 70, 2017.
110
Sêneca e a ortodoxia estoica: forma literária e suasio
FITCH, J. (Ed.). Oxford readings in classical studies: Seneca. Oxford, New York:
Oxford University Press, 2008.
111
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
INWOOD, B. (Org.). Os estoicos. Trad. Raul Fiker. São Paulo: Odysseus, 2006.
KEELIN, Thomas J. The Reception of Cicero in the Early Roman Empire The
Rhetorical Schoolroom and the Creation of a Cultural Legend. Cambridge
University Press, 2018. tora Unb, 1987.
112
Sêneca e a ortodoxia estoica: forma literária e suasio
LONG, A.A. et al. Problems in Stoicism. London and Atlantic Highlands: The
Athlone Press, 1996.
LONG, A.A.; SEDLEY, D.N. (Eds.). The Hellenistic philosophers. Vol. 1-2.
Translations of the principal sources, with philosophical commentary. Greek
and latin texts with notes. Cambridge: Cambrige University Press, 1987.
MOTTO, A. N.; CLARK, J.R. Essays on Seneca. Frankfurt: Peter Lang, 1993.
OLIVEIRA, L. Sêneca, uma vida dedicada a filosofia. São Paulo: Paulus, 2010.
RIST, J. Seneca and the Stoic ortodoxy. In: Man, Soul and body in Ancient
Thought from Plato to Dyonisius. Aldershot, Hants.: Variorum, 1996. Nuova
Italia, 1967.
113
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
ZELLER, Eduard. The Stoics, Epicureans and Sceptics. New And Revised
Edition. London, 1891.
114
Uma abordagem do sábio estoico a partir da
leitura das Diatribes de Epicteto
André Capistrano Gama Santana 1
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.76.06
1 Introdução
1 Graduado em filosofia pela UnB, Mestre em Metafísica pela UnB e Doutorando em Metafísica
2 Considerações preliminares
possíveis podemos citar vontade ou volição (Long, 1890, p. 6), propósito moral (Oldfather,
1956, p. 13) e poder ou capacidade de escolha (Hard, 2014, p. 6) e (Dinucci, 2020, p. 53). Ainda
que existam diferenças na tradução do termo, o princípio que perpassa a noção de prohairesis
em Epicteto e o de que o ser humano é definido sua capacidade de efetuar escolhas.
116
Uma abordagem do sábio estoico a partir
da leitura das Diatribes de Epicteto
3 Apatheia ou liberdade das paixões é um conceito chave no estoicismo. O termo apatheia pode
ser traduzido como “sem pathe [paixão ou emoção]”, tendo aí a origem da expressão liberdade
das paixões. Aqui é fundamental esclarecer que a apatheia estoica não deve ser interpretada
como ausência completa de emoções, mas apenas daquelas que geram estados mentais
negativos. O sábio estoico, por ter conquistado a apatheia, desenvolve exclusivamente boas
emoções (eupatheia) (Dinucci, 2020, p. 16) e (Long, 2007, p. 244).
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
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Uma abordagem do sábio estoico a partir
da leitura das Diatribes de Epicteto
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
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Uma abordagem do sábio estoico a partir
da leitura das Diatribes de Epicteto
4 To want to be a Stoic is to be dissatisfied with one's own human weaknesses and to want to be
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
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Uma abordagem do sábio estoico a partir
da leitura das Diatribes de Epicteto
Epicteto relata que Sócrates, apesar das ofensas proferidas por sua esposa
e filho, sempre manteve um temperamento sereno e equilibrado já que
era capaz de distinguir os e ventos que estavam ou não sob o seu controle.
Finalmente, em Diss. 3.5.14, Epicteto exalta a semelhança entre Sócrates
e os deuses ao tratar o medo e o desejo desmedido como paixões
decorrentes da ignorância humana sobre a sua própria natureza.
Quanto a Diógenes, e a filosofia cínica, vemos Epicteto, em Diss.
3.22, apresentar a filosofia cínica definindo o seguidor dessa escola como
alguém que é capaz de suprimir completamente o seu desejo e de
direcionar sua aversão apenas àquilo que está circunscrito pela sua
capacidade de escolha. Dessa forma, o cínico não sente raiva, inveja ou
pena nem vê beleza em nada que lhe é externo. Como resultado do
desprendimento em relação ao que se situa fora do seu campo de escolha,
Epicteto diz que o cínico não utiliza portas, muros ou a escuridão para se
proteger, uma vez que ele tem no autorrespeito a sua única, entretanto a
mais nobre, forma de proteção. Em Diss. 4.1.151-158, Epicteto afirma que
Diógenes é verdadeiramente livre porque é capaz de se desprender de
tudo aquilo que não lhe pertence, inclusive o seu próprio corpo, e se
dedica exclusivamente a viver em harmonia com a natureza divina do
cosmos. Além disso, em Diss. 1.24.6-8, Diógenes é descrito uma pessoa
que não teme a morte, a desonra ou a má reputação e demonstra essa
atitude por meio de sua coragem, equanimidade e liberdade, atributos
que são aplicáveis ao sábio, de acordo com a visão epictetiana do
estoicismo.
Como podemos perceber, Epicteto não outorga a si mesmo ou a
qualquer outro estoico o título de sábio, ao invés disso, ele prefere
apresentar Sócrates e Diógenes aos seus estudantes como modelos que
exemplificam as características de uma vida virtuosa. Essa escolha nos
revela, pelo menos, duas coisas: (i) a influência dos pensamentos
socrático e cínico no estoicismo epictetiano e (ii) a dificuldade de se
conquistar a finalidade derradeira da filosofia estoica. Contudo, devemos
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
4 O sábio e o mundo
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Uma abordagem do sábio estoico a partir
da leitura das Diatribes de Epicteto
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
5 De acordo com George Long (1901, p. 230) e Robin Hard (2014, p. 329-30), a prática de se
escalar uma palmeira pode não ser tomada de forma literal, pois indica uma prática física
genérica de escalada usando apenas os pés e as mãos. Já o ato de abraçar uma estátua parece se
referir a Diógenes, o cínico, e consistia em uma prática de abraçar uma estátua durante o
inverno a fim de testar a sua resistência física e, provavelmente, a sua estabilidade mental
diante de uma situação adversa.
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Uma abordagem do sábio estoico a partir
da leitura das Diatribes de Epicteto
5 Considerações finais
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
Essa parece ser também a razão pela qual Epicteto não concebe o
sábio como uma figura alheia ao mundo, ao contrário, o filósofo de
Hierápolis defende a busca pelo bem moral de forma a beneficiar toda a
humanidade. De fato, se Epicteto entende que o sábio representa, por
meio de suas ações, a vontade de Zeus, então a sabedoria é uma qualidade
que deve ser demonstrada pelo estoico em qualquer tipo de ocasião.
Referências
BROUWER, Renné. The Stoic Sage: The Early Stoics on Wisdom, Sagehood and
Socrates. New York: Cambridge University Press, 2014.
HADOT, Pierre. O que é a Filosofia Antiga. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2014.
128
Uma abordagem do sábio estoico a partir
da leitura das Diatribes de Epicteto
LONG, A.A. Epictetus. A Stoic and Socratic Guide to Life. New York: Oxford
University Press, 2007.
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
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Observações sobre a ideia de atenção
em Epicteto
Danilo U. Patutti1
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.76.07
[20] νῦν δ’ ὅταν εἴπῃς ‘ἀπαύριον προσέξω’, ἴσθι ὅτι τοῦτο λέγεις ‘σήμερον
ἔσομαι ἀναίσχυντος, ἄκαιρος, ταπεινός· ἐπ’ ἄλλοις ἔσται τὸ λυπεῖν με·
ὀργισθήσομαι σήμερον, φθονήσω’. [21] βλέπε, ὅσα κακὰ σεαυτῷ
ἐπιτρέπεις. ἀλλ’ εἴ ς<οι> αὔριον καλῶς ἔχει, πόσῳ κρεῖττον σήμερον· εἰ
αὔριον συμφέρει, πολὺ μᾶλλον σήμερον, ἵνα καὶ αὔριον δυνηθῇς καὶ μὴ
πάλιν ἀναβάλῃ εἰς τρίτην.
[20] Agora, quando dizes ‘amanhã prestarei atenção’ sabes que, <na
verdade>, é isto o que dizes ‘Hoje serei impudente, inoportuno, baixo!
Em mais um momento me afligir! Hoje ficarei irado, invejarei’. [21] Veja
quantos males permites a ti mesmo. Mas se amanhã é bom para ti, muito
melhor hoje! Se te é vantajoso amanhã, muito mais hoje, de modo que
amanhã poderás <manter a atenção> e não adiar de novo para o terceiro
dia.
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Observações sobre a ideia de atenção em Epicteto
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
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Observações sobre a ideia de atenção em Epicteto
o de se esforçar para que cada ação seja a mais excelente possível em vista
do bem comum da comunidade onde vive. Embora a ação seja definida
em termos de interioridade psíquica, as intenções subjacentes são
sempre em vista do exterior: agir em conformidade com o todo, ser
excelente no cumprimento do papel de cidadão do cosmos, viver como
uma parte à serviço do todo que é a comunidade humana planetária.
Contudo, a possibilidade desse modo de vida jaz no esforço de mudar
drasticamente o hábito comum de prestar atenção à exterioridade e
habituar-se a prestar atenção a si mesmo, mais especificamente, ao
exame das próprias representações e ao modo como fazemos escolhas.
Por isso, o filósofo não apenas compreende que a capacidade de atenção
pode ser treinada e desenvolvida, mas que necessariamente precisamos
exercitá-la:
[1] ὅταν ἀφῇς πρὸς ὀλίγον τὴν προσοχήν, μὴ τοῦτο φαντάζου, ὅτι, ὁπόταν
θέλῃς, ἀναλήψῃ αὐτήν, ἀλλ ̓ ἐκεῖνο πρόχειρον ἔστω σοι, ὅτι παρὰ τὸ
σήμερον ἁμαρτηθὲν εἰς τἆλλα χεῖρον ἀνάγκη σοι τὰ πράγματα ἔχειν. [2]
πρῶτον μὲν γὰρ τὸ πάντων χαλεπώτατον ἔθος τοῦ μὴ προσέχειν ἐγγίνεται,
εἶτα ἔθος τοῦ ἀναβάλλεσθαι τὴν προσοχήν· ἀ[ι]εὶ δ’ εἰς ἄλλον καὶ ἄλλον
χρόνον εἴωθας ὑπερτίθεσθαι τὸ εὐροεῖν, τὸ εὐσχημονεῖν, τὸ κατὰ φύσιν
ἔχειν καὶ διεξάγειν. [3] εἰ μὲν οὖν λυσιτελὴς ἡ ὑπέρθεσίς ἐστιν, ἡ παντελὴς
ἀπόστασις αὐτῆς ἐστι λυσιτελεστέρα: εἰ δ ̓ οὐ λυσιτελεῖ, τί οὐχὶ διηνεκῆ
τὴν προσοχὴν φυλάσσεις; [4] ‘σήμερον παῖξαι θέλω.’ τί οὖν κωλύει
προσέχοντα; ‘ᾆσαι.’ τί οὖν κωλύει προσέχοντα; μὴ γὰρ ἐξαιρεῖταί τι μέρος
τοῦ βίου, ἐφ ̓ ὃ οὐ διατείνει τὸ προσέχειν; χεῖρον γὰρ αὐτὸ προσέχων
ποιήσεις, βέλτιον δὲ μὴ προσέχων; [5] καὶ τί ἄλλο τῶν ἐν τῷ βίῳ κρεῖσσον
ὑπὸ τῶν μὴ προσεχόντων γίνεται; ὁ τέκτων μὴ προσέχων......; <ὁ
κυβερνήτης μὴ προσέχων> κυβερνᾷ ἀσφαλέστερον; ἄλλο δέ τι τῶν
μικροτέρων ἔργων ὑπὸ ἀπροσεξίας ἐπιτελεῖται κρεῖσσον; [6] οὐκ
αἰσθάνῃ, ὅτι, ἐπειδὰν ἀφῇς τὴν γνώμην, οὐκ ἔτι ἐπὶ σοί ἐστιν
ἀνακαλέσασθαι αὐτήν, οὐκ ἐπὶ τὸ εὔσχημον, οὐκ ἐπὶ τὸ αἰδῆμον, οὐκ ἐπὶ
τὸ κατεσταλμένον; ἀλλὰ πᾶν τὸ ἐπελθὸν ποιεῖς, ταῖς προθυμίαις
ἐπακολουθεῖς.
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
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Observações sobre a ideia de atenção em Epicteto
[15] Πρῶτον μὲν οὖν ταῦτα ἔχειν πρόχειρα καὶ μηδὲν δίχα τούτων ποιεῖν,
ἀλλὰ τετάσθαι τὴν ψυχὴν ἐπὶ τοῦτον τὸν σκοπόν, μηδὲν τῶν ἔξω διώκειν,
μηδὲν τῶν ἀλλοτρίων, ἀλλ’ ὡς διέταξεν ὁ δυνάμενος, τὰ προαιρετικὰ ἐξ
ἅπαντος, τὰ δ’ ἄλλα ὡς ἂν διδῶται. [16] ἐπὶ τούτοις δὲ μεμνῆσθαι, τίνες
ἐσμὲν καὶ τί ἡμῖν ὄνομα, καὶ πρὸς τὰς δυνάμεις τῶν σχέσεων πειρᾶσθαι
τὰ καθήκοντα ἀπευθύνειν· [17] τίς καιρὸς ᾠδῆς, τίς καιρὸς παιδ[ε]ιᾶς,
τίνων παρόντων· τί ἔσται ἀπὸ τοῦ πράγματος· μή τι καταφρονήσωσιν
ἡμῶν <οἱ> συνόντες, μή τι ἡμεῖς αὐτῶν· πότε σκῶψαι καὶ τίνας ποτὲ
καταγελάσαι καὶ ἐπὶ τίνι ποτὲ συμπεριενεχθῆναι καὶ τίνι, καὶ λοιπὸν ἐν τῇ
συμπεριφορᾷ πῶς τηρῆσαι τὸ αὑτοῦ. [18] ὅπου δ’ ἂν ἀπονεύσῃς ἀπό τινος
τούτων, εὐθὺς ζημία, οὐκ ἔξωθέν ποθεν, ἀλλ’ ἐξ αὐτῆς τῆς ἐνεργ<ε>ίας.
[19] Τί οὖν; δυνατὸν ἀναμάρτητον ἤδη εἶναι; ἀμήχανον, ἀλλ’’ ἐκεῖνο
δυνατὸν πρὸς τὸ μὴ ἁμαρτάνειν τετάσθαι διηνεκῶς. ἀγαπητὸν γάρ, εἰ
μηδέποτ’ ἀνιέντες ταύτην τὴν προσοχὴν ὀλίγων γε ἁμαρτημάτων ἐκτὸς
ἐσόμεθα.
[15] Portanto, primeiro, tem à mão essas coisas e sem elas nada faça, mas
tenciona a sua psykhé sobre todo o escopo. Nada buscar das coisas
exteriores, nada <buscar> das outras <pessoas>, mas <buscar>, tal
como dispôs o que tem esse poder, as coisas absolutamente elegíveis,
mas das coisas alheias tal como foi dado. [16] Sobre esses assuntos,
lembrar quem somos nós e qual é o nosso nome, e se esforçar para guiar
as <nossas> capacidades segundo os atos adequados das relações: [17]
Qual é o momento oportuno de cantar, qual é o momento oportuno de
brincar, e na presença de quem? Fazer isso estará de acordo com a
situação? Para que os companheiros se riam de nós, e para que nos
riamos deles. Quando fazer piadas, de quem dar risadas, quando se
relacionar e com qual propósito e, por fim, como conservar a si mesmo
nos relacionamentos. [18] Quando desvias de algumas dessas <regras>
imediatamente há prejuízo, não a partir do exterior, mas da própria ação
<de se desviar>. [19] Então, e aí? Já é possível ser infalível? Não,
impraticável. Mas isto é possível: continuamente esforçar-se para não
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
errar. Pois devemos nos contentar se, jamais relaxando essa atenção, nos
livrarmos de pequenos erros.
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Referências
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
140
Por que Julian Assange é o maior
arauto da parrhesia greco-romana
da contemporaneidade? 1
Vanesa Cordeiro 2
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.76.08
1 Este texto é uma versão ampliada e aprofundada do artigo Julian Assange: o arauto pós-
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Por que Julian Assange é o maior arauto da parrhesia
greco-romana da contemporaneidade?
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Assange finaliza com um trecho que nos faz supor que ele já sabia
qual era o seu papel neste mundo desde a adolescência — conforme
processo de 1996 supra citado, qual seja:
Se vivemos apenas uma vez, então que seja uma aventura ousada, que
reúna todas as nossas forças. [...] O universo inteiro[...] é um adversário
digno, mas, por mais que eu tente, não posso deixar de ouvir o
sofrimento […]. Os homens, no auge, quando têm convicções, são
chamados a agir de acordo com elas (Leigh; Harding, 2011, p. 980-1005).
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Por que Julian Assange é o maior arauto da parrhesia
greco-romana da contemporaneidade?
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Por que Julian Assange é o maior arauto da parrhesia
greco-romana da contemporaneidade?
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greco-romana da contemporaneidade?
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Por que Julian Assange é o maior arauto da parrhesia
greco-romana da contemporaneidade?
9 Cf. Art. 5º, incisos X, XII e XXXIII da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
10 Cf. Art. 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.
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Por que Julian Assange é o maior arauto da parrhesia
greco-romana da contemporaneidade?
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Claro que todos nós sabemos que eles não estão dizendo toda a verdade,
mas esse é o truque da ideologia. Mesmo que não mintam diretamente,
as implicações que fazem e as coisas que não dizem são uma mentira. E
você (Assange) traz isso à tona. Você não está pegando tanto eles, como
eles dizem, com as calças abaixadas, mentindo em nome do que eles
dizem explicitamente, mas precisamente em nome do que implicam ao
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Por que Julian Assange é o maior arauto da parrhesia
greco-romana da contemporaneidade?
Amy Goodman: Vamos falar sobre o início do Wikileaks. Nos diga sobre
como você fundou, nomeou e quais eram suas esperanças para o futuro
dele, e se neste ponto você ficou desapontado com o que você foi capaz
de realizar ou se surpreendeu com isso.
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
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Por que Julian Assange é o maior arauto da parrhesia
greco-romana da contemporaneidade?
Só mais uma coisa. Este não é um ponto crítico para você, mas um ponto
para esclarecer o que o Wikileaks pode fazer. Não devemos fetichizar a
verdade como tal. Vivemos tempos de incríveis investimentos
ideológicos, tempos em que a ideologia é muito forte justamente porque
nem sequer é vivida como ideologia.
O que estou tentando dizer é que discordo não de você, mas, por
exemplo, com outra pessoa por quem tenho respeito: Noam Chomsky.
Um amigo meu me disse que Chomsky disse a ele recentemente que
hoje todas as obscenidades são tão claras que não precisamos de
nenhuma crítica da ideologia, nós só precisamos dizer às pessoas a
verdade. Não, a verdade deve ser contextualizada no sentido do que
justifica, do que diz, do que nega.
Então, para concluir, este é meu ponto sobre o Wikileaks: você não está
simplesmente dizendo a verdade. Você está dizendo a verdade de uma
forma muito precisa de confrontar linhas explícitas de justificação e
racionalização — o discurso público com seus pressupostos implícitos.
Não é apenas sobre dizer a verdade.
Julian Assange: Por outro lado, isso também gerou uma situação em que
o primeiro-ministro sueco e o ministro da justiça sueco me atacaram
pessoalmente e disseram que (eu) tinha sido acusado, perante o público
sueco, quando não tinha (não havia qualquer denúncia formal no
judiciário sueco contra mim).
11Aqui há equívoco de Žižek. Em verdade, a democracia a que Žižek se refere não é judaico-
cristã, mas ateniense, dos áureos tempos de Sócrates e tantos filósofos antigos, quando a
democracia direta ocorria com debates em praça pública, na ágora de Atenas.
157
Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
Eu acho importante que eles não possam mais negar isto. Estamos numa
situação em que todos sabemos, mas ainda podemos jogar o jogo cínico
“Vamos agir como se não soubéssemos”. A função do Wikileaks, afirmo,
em situações ideológicas e políticas concretas, é nos empurrar para esse
ponto onde você não pode mais fingir que não sabe — o ponto de onde
não há mais retorno, o ponto de virada.
Julian Assange: Bem, aí está o grande futuro que se pode desejar. Para
que seja um futuro onde todos possamos comunicar livremente nossas
esperanças e sonhos, informações factuais sobre o mundo uns com os
outros, e o registro histórico seja um item completamente ‘sacrossanto’,
que nunca poderá ser alterado, nunca será modificado, nunca será
excluído, e que nos desviará do dito de Orwell de “aquele que controla o
presente controla o passado”. Então isso é algo que ao longo de toda
minha vida busquei fazer. E disso flui a justiça, porque a maioria de nós
tem um instinto de justiça, e a maioria de nós é razoavelmente
inteligente, e se pudermos nos comunicar uns com os outros, sem sermos
oprimidos e todos soubermos o que está acontecendo, então
praticamente (todo) o resto cai. Então, essa é a minha grande
esperança 12.
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Por que Julian Assange é o maior arauto da parrhesia
greco-romana da contemporaneidade?
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Por que Julian Assange é o maior arauto da parrhesia
greco-romana da contemporaneidade?
nomes sem a nossa anuência, bem como a defesa dos direitos daquele
que lutou por tais direitos e mudou o modo de se fazer política no mundo
contemporâneo é nosso dever de reciprocidade comunitária para com
Julian Assange até que ele seja libertado e possa desfrutar minimamente
de sua vida e colher os merecidos louros por seus atos parrhesiásticos.
Referências
MELZER, Nils (with Oliver Kobold). The trial of Julian Assange: a story of
persecution. E-book. New York; London: Verso books: 2022.
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Diatribe III – Que as mulheres também
devem filosofar & Diatribe IV – Se se deve
educar as filhas semelhantemente aos filhos
Musônio Rufo (Trad. Aldo Dinucci 1 & Luís Márcio Fontes 2)
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.76.09
1 Doutor em Filosofia pela PUC Rio, professor titular do Departamento de Filosofia da UFES,
Pesquisador honorário da Universidade de Kent (UK). Atua em pesquisas e traduções de fontes
primárias nas áreas de História da Filosofia Helenística e Tardo-Antiga, notadamente
Estoicismo. E-mail: aldodinucci@gmail.com
2 Professor do Instituto Federal de Piranhas e Mestre em Filosofia pela UNICAMP.
E-mail: lmfontes@hotmail.com
3 SUIDAS, Suda, M, 1305. Etrúria, chamada comumente de Tyrrhenia nos textos gregos e
latinos: situava-se na região central da Itália, cobrindo parcialmente as áreas das atuais
províncias italianas de Toscânia, Lácio, Emília Romana e Úmbria.
4 Suidas, Suda, M, 1305.
5 Suidas, Suda, E, 3046.
6 Cf. King, 2011, p. 13.
7 Para uma biografia de Musônio, cf. nosso artigo: Dinucci, A. Apresentação e Tradução dos
tratam de Musônio são: Laurenti. Musonio, maestro di Epitteto. In: Anrw 2.36.3, 1989; Francis,
J. A. Subversive virtue: asceticism and authority in the second-century pagan world. University
Park, Pa.: Pennsylvania State University Press. 1995.
12 Lutz, C. Musonius Rufus: The Roman Socrates. In: Yale Classical Studies, Volume X. A. R.
2011.
14 Jagú, A. Musonius Rufus. Entretiens et Fragments. Introduction, Traduction et Commentaire.
In: Studien und Materialien zur Geschichte der Philosophie, Kleine Reine, Band I, Olms, 1979.
15Festugière, A. J. Télès et Musonius: Predications. Paris: Vrin, 1978.
16 Ortiz, P. Tabla de Ceres, dissertationes, fragmentos menores, manual, fragmentos. Madrid:
Gredos: 1995.
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Diatribe III – Que as mulheres também devem filosofar &
Diatribe IV – Se se deve educar as filhas semelhantemente aos filhos
17 Esta Diatribe se encontra em Estobeu 2.31.123. Cf. Lactâncio Inst. Div. III 25. Clemens Al.
Strom. IV 8.
18 Tradução baseada no texto de Hense. Divergências serão notadas (exceto as de pontuação,
se cosméticas).
19 Literalmente: o desejo e a apropriação por natureza para a virtude. Quanto à doutrina estoica
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
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Diatribe IV – Se se deve educar as filhas semelhantemente aos filhos
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
mostra que o maior bem é o decoro 27. Se pode habituar a viver com mais
impudência o argumento que indica o caminho para uma maior
modéstia. [3.70] Se não ensina a ter autocontrole o argumento que
mostra ser mal extremo a licenciosidade. Se não exorta à administração
da casa o argumento que estabeleceu que a administração da casa é uma
excelência 28. O argumento dos filósofos encoraja a mulher a ser
industriosa e autossuficiente” 29.
27 Aidos.
28 Cf. Plat. Men. 73 a-b.
29 Há uma lacuna no texto aqui, que, porém, não impede de captar o sentido da frase.
30 Tradução baseada no texto de Hense. Divergências serão notadas (exceto as de pontuação,
se cosméticas). Agradeço a Aldo Dinucci, pela leitura cuidadosa e pelas valiosas sugestões.
31 Pontuo com interrogação. Hense usa o ponto final.
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Diatribe IV – Se se deve educar as filhas semelhantemente aos filhos
Porém, que não são umas as virtudes dos homens e outras as das
mulheres, é fácil notar. Por exemplo, o homem deve ser sensato, mas a
mulher também deve ser — ou qual seria o valor de um homem ou de
uma mulher sem juízo?
Além disso, nenhum dos dois deve conduzir a vida menos
justamente que o outro. [4.15] Ora, nem o homem seria um bom cidadão
se fosse injusto, nem a mulher administraria bem a casa se não o fizesse
de modo justo. Aliás, se fosse injusta, faria mal ao próprio esposo, como
dizem de Erifila 32.
Novamente, é acertado para a mulher ter autocontrole, e é
igualmente acertado para o homem. [4.20] As leis, ao menos, punem o
cometer adultério na mesma medida em que o ser tomada em adultério33.
Comer demais, beber demais e outros vícios semelhantes — atos de
licenciosidade que envergonham enormemente quem está sujeito a eles
— mostram que o autocontrole é da maior necessidade para todo ser
humano: para as mulheres e para os homens. Afinal, é apenas pelo
autocontrole, e de nenhum outro modo, que escapamos da
licenciosidade.
[4.25] Talvez alguém dissesse que a virilidade cabe aos homens
apenas . Isso não é assim. Pois a mulher também deve ser viril, e a
34
32 Erifila teria aceitado de Polinices o colar de Harmonia como suborno para convencer seu
marido, Anfiarau, a ir à guerra contra Tebas. Cf. Pseudo-Apolodoro, Biblioteca 3.6.2; Diodoro
Sículo, Biblioteca histórica IV.65.5-6; Pausânias, Descrição da Grécia 9.41.2. Cp. Arriano, As
diatribes de Epicteto II, 22.32-33.
33 Isto é, o adultério masculino (“o cometer adultério”) e o feminino (“o ser tomada em
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
se traduzisse ‘mulheres corajosas’. (Outra opção, mais recherché, seria ‘varonilidade’.) Preferi
‘autocontrole’ à ‘temperança’ porque aquele me parece mais atual; imagino que pessoas com
inclinações distintas se valeriam do mesmo motivo para preferir ‘temperança’. Já φρόνησις é,
de fato, de tradução problemática; creio ser justo falar que é consenso que ‘prudência’ —
considerando o que o vocábulo veio a significar em línguas modernas — não é uma tradução
adequada do termo grego. A dificuldade, porém, é encontrar um termo que seja; ‘sabedoria
prática’, ‘razão prática’ foram propostas em certos contextos. Aqui, optei por ‘sensatez’,
especialmente tendo em vista seu oposto, que parece mais claramente ser a falta de juízo.
35 Há uma lacuna no texto aqui. A ideia suprimida parece ser a de que a falta de prática é a
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38 Lendo κατὰ ταὐτὸν, uma das conjeturas de Hense em seu aparato crítico, em vez de † κακὸν
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Diatribe III – Que as mulheres também devem filosofar &
Diatribe IV – Se se deve educar as filhas semelhantemente aos filhos
Que cada um aprenda coisas distintas apenas no que tange as que não são
as mais grandiosas! 40
Mas se alguém me perguntar qual ciência é encarregada dessa
educação, dir-lhe-ei que, assim como nenhum homem seria
corretamente educado sem a filosofia, tampouco a mulher seria. [4.95] E
não é isto que quero dizer: que é preciso incutir nas mulheres clareza nos
argumentos e uma perspicácia excepcional, se também filosofarão as
mulheres41; pois nem bem recomendo isso no caso dos homens. Pelo
contrário, digo que as mulheres devem ter honestidade de caráter e
nobreza de comportamento, já que a filosofia é o cultivo da nobreza e
nada mais”.
40 O texto de Hense aqui me parece impossível: οὔπω τοῦτο διάφορον ἀποφαίνει τὴν ἑκάτερου
παιδείαν· μόνον περὶ μηδενὸς τῶν μεγíστων ἕτερος ἕτερα μεμαθηκέτω, ἀλλὰ ταὐτά. ἂν δὲ τις
ἐρωτᾷ με. O sentido pretendido, presumo, é: “que cada um aprenda coisas distintas apenas
sobre as coisas que não importam, mas as mesmas coisas <sobre as que importam>”. O
problema é justamente que a expressão em cunhas não está no texto e subentendê-la me parece
forçado. Uma solução, então, seria postular uma lacuna aqui.
Outra solução seria repontuar a frase e ler ταῦτα com os manuscritos, assim: οὔπω τοῦτο
διάφορον ἀποφαίνει τὴν ἑκάτερου παιδείαν· μόνον περὶ μηδενὸς τῶν μεγíστων ἕτερος ἕτερα
μεμαθηκέτω. ἀλλὰ ταῦτα ἂν δὲ τις ἐρωτᾷ με. É essa opção que sigo na minha tradução.
41 Lendo καὶ γυναῖκες com os manuscritos, em vez da emenda desnecessária de Hense, ὡς
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Diatribe IV – Se se deve educar as filhas semelhantemente aos filhos
Δία ὅτι τύραννος. ὑπάρχει γὰρ αὐτῇ μεμελετηκέναι μέγα φρονεῖν, καὶ τὸν
μὲν θάνατον ἡγεῖσθαι μὴ κακόν, τὴν δὲ ζωὴν μὴ ἀγαθόν· ὡσαύτως δὲ καὶ
τὸν μὲν πόνον μὴ ἐκτρέπεσθαι, τὴν δὲ ἀπονίαν μὴ διώκειν ἐξ ἅπαντος. ὅθεν
εἰκὸς εἶναι τὴν γυναῖκα ταύτην καὶ αὐτουργικὴν καὶ κακόπαθον, οἵαν [3.50]
ἃ μὲν ἂν τέκῃ τρέφειν μαστῷ τῷ ἑαυτῆς, τῷ δὲ ἀνδρὶ ὑπηρετεῖν χερσὶ ταῖς
ἑαυτῆς· ἃ δὲ δουλικὰ νομίζουσιν ἔνιοι, ταῦτα ἀόκνως ποιεῖν. ἆρ’ οὐκ ἂν ἡ
τοιαύτη γυνὴ μέγα μὲν ὄφελος εἴη τῷ γεγαμηκότι, κόσμος δὲ τοῖς
προσήκουσι γένει, παράδειγμα δὲ χρηστὸν ταῖς ἐπισταμέναις αὐτήν; ἀλλὰ
νὴ Δία, φασί τινες, ὅτι αὐθάδεις [3.55] ὡς ἐπὶ πολὺ καὶ θρασείας εἶναι
ἀνάγκη τὰς προσιούσας τοῖς φιλοσόφοις γυναῖκας, ὅταν ἀφέμεναι τοῦ
οἰκουρεῖν ἐν μέσοις ἀναστρέφωνται τοῖς ἀνδράσι καὶ μελετῶσι λόγους καὶ
σοφίζωνται καὶ ἀναλύωσι συλλογισμούς, δέον οἴκοι καθημένας
ταλασιουργεῖν. ἐγὼ δὲ οὐχ ὅπως τὰς γυναῖκας τὰς φιλοσοφούσας ἀλλ’
οὐδὲ τοὺς [3.60] ἄνδρας ἀξιώσαιμ’ ἂν ἀφεμένους τῶν προσηκόντων ἔργων
εἶναι περὶ λόγους μόνον· ἀλλὰ καὶ ὅσους μεταχειρίζονται λόγους, τῶν
ἔργων φημὶ δεῖν ἕνεκα μεταχειρίζεσθαι αὐτούς. ὥσπερ γὰρ ἰατρικοῦ λόγου
ὄφελος οὐδέν, ἐὰν μὴ πρὸς ὑγίειαν φέρῃ σώματος ἀνθρωπίνου, οὕτως οὐδ’
εἴ τινα φιλόσοφος ἔχει ἢ διδάσκει λόγον, οὐδὲν [3.65] ὄφελος αὐτοῦ, ἐὰν
μὴ φέρῃ πρὸς ἀρετὴν ψυχῆς ἀνθρωπίνης. πρὸ παντὸς δὲ σκοπεῖν τὸν λόγον
χρή, ᾧ ἕπεσθαι τὰς φιλοσοφούσας ἀξιοῦμεν, εἰ δύναται θρασείας ποιεῖν ὁ
τὴν αἰδῶ μέγιστον ἀποφαίνων ἀγαθόν· εἰ ζῆν ἰταμώτερον ἐθίζει ὁ
καταστολὴν πλείστην ὑφηγούμενος· εἰ μὴ διδάσκει σωφρονεῖν ὁ κακὸν
ἀποδεικνὺς [3.70] ἔσχατον τὴν ἀκολασίαν· εἰ μὴ προτρέπει οἰκονομεῖν ὁ
παριστὰς ἀρετὴν εἶναι τὴν οἰκονομικήν. καὶ στέργειν δὲ [...] καὶ αὐτουργεῖν
ὁ τῶν φιλοσόφων λόγος παρακαλεῖ τὴν γυναῖκα.
[4.1] Λόγου δέ ποτέ τινος ἐμπεσόντος, εἰ τὴν αὐτὴν παιδείαν
παιδευτέον τοὺς υἱέας καὶ τὰς θυγατέρας, ἵππους μέν, ἔφη, καὶ κύνας ὁμοῦ
οὐδὲν διαφερόντως παιδεύουσιν οἵ τε ἱππικοὶ καὶ οἱ κυνηγετικοὶ τοὺς
ἄρρενας τῶν θηλειῶν· ἀλλ’ αἵ τε κύνες αἱ θήλειαι παραπλησίως [4.5] τοῖς
ἄρρεσι διδάσκονται θηρᾶν· ἵππους τε θηλείας ἄν τις θέλῃ τὰ ἵππων ἔργα
ἀποτελεῖν καλῶς, οὐ διάφορον τῶν ἀρρένων διδασκαλίαν διδασκομένας
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Referências
AULO GÉLIO. Attic Nights. Vols. I, II e III. Trad. J. C. Rolfe. Harvard: Loeb
Classical Library, 1927.
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Diatribe III – Que as mulheres também devem filosofar &
Diatribe IV – Se se deve educar as filhas semelhantemente aos filhos
DION CÁSSIO. Roman History. Trad. Cary; Foster. Harvard: Loeb Classical
Library, 1914-1927.
EPICTETO. The Discourses as reported by Arrian (Books I, II, III & IV);
Fragments; Encheiridion. Trad. W. A. Oldfather. Cambridge: Loeb, 2000.
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Ensaios sobre Filosofia Antiga e Estoicismo
LUTZ, C. Musonius Rufus: The Roman Socrates. In: Yale Classical Studies, Vol.
X. A. R. Bellinger (Ed.). Yale: Yale University Press, 1947.
TÁCITO. Annals. Vols. I e II. Trad. Jackson John. Harvard: Loeb Classical
Library, 1937.
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Instituto Quero Saber
www.institutoquerosaber.org
editora@institutoquerosaber.org
Informações técnicas