Bunny - Mona Awad
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Bunny - Mona Awad
I.
Contam os anciãos de outrora que o mundo sempre foi mundo. No alvorecer de todas as coisas,
porém, se havia mundo, existia apenas na consciência dos deuses, sempre à iminência de revelar-se
fisicamente conforme sua vontade. Mas, por incontáveis eras, não ousou tomar forma, qualquer que
fosse, pois temiam os deuses a desgraça para a qual se podiam converter os filhos da Terra – a própria
humanidade –, tão somente vivos em seu pensamento. E dentre os deuses havia um senhor, para quem
a noção da Existência se fez maior, e seu nome era Sabate; e era ele, pois, responsável por tais
Princípios, e ele guardou em si a glória da Criação a salvo do espaço e do tempo. No início de todas
as coisas, havia somente os deuses. Ora em sua indescritível constituição física, ora na fisiologia
etérea a partir da qual ganharam forma, festejavam a beleza das coisas e do devir – daquilo que um dia
havia de ser – sem, no entanto, consolidá-los. Inclusive, nem mesmo eles, a despeito de sua força e
conhecimento, puderam delimitar as causas, tampouco os limites da Criação. Houve, apenas, um dia
no qual o que não era tornou a ser; de algo inexplicável, pois, vieram todas as coisas. E eram parte
dessas coisas os deuses, e ganharam consciência imediata. Porém, Aqueles que os forjaram à vida
permaneceram ocultos de seu conhecimento, e assim ainda o é.
Por mais nobre que fosse seu destino, os deuses guardaram para si os frutos da Criação, pois
tamanhos eram seus temores; e queriam eles saber como vieram todas as coisas surgir. Este que tudo
criou, contudo, jamais se fez manifestar a quaisquer seres no céu e na terra, e seu paradeiro é ainda
mistério. Portanto, não temiam os deuses qualquer punição, pois não se tinha força maior a respeitar
que se fizesse a eles defronte. Havia os deuses, os engenheiros da matéria e os arquitetos da vida; não
tinham para quem – ou o que – responder em virtude de negligência. Uma coisa era fato: os frutos da
Criação causavam-lhes medo, e se carecia de disposição para assumir os riscos de confrontá-lo. Os
deuses temiam manchar os Pilares da Existência com essas ideias, por igualmente não saberem a
natureza de todas elas. Estavam eles limitados à própria fronteira da ignorância e, durante a
eternidade, restringiram o esforço apenas a si e a seus pares.
Todavia, houve um dia em que a afeição desceu por sobre uma das mentes divinas. De todos
aqueles seres que recobriam o cosmos, havia Variel – a deusa mãe dos Homens, de quem os próprios
pilares da Existência eram morada – que, dentre todos, era a mais curiosa e alucinada pelos princípios
da Criação. Contam os mais sábios que, pela eternidade, buscara ela explicações sobre a fundação das
coisas, procurando encontrar Aqueles que tal propósito forjaram e os motivos que os levaram a tal.
Enquanto o esmero de seu empenho não fora recompensado pela luz do esclarecimento, sua
impertinência fazia os deuses adorarem-na e, por vezes, invejavam alguns deles sua natureza, por ser
ela a menos amedrontada de todos ali presentes.
Houve um dia, então, em que a curiosidade de Variel levou-a aos Cofres do deus Sabate – os
quais sua forma etérea integravam –, onde se mantinham resguardados os Princípios da Criação. E ela
viu, pois, o que ali se guardava, e o que os deuses tanto temiam. Porém, ela se afeiçoou pela beleza da
Terra e de seus filhos e, mesmo ao vislumbre da desgraça e miséria sob as quais estes seres mortais e o
mundo se curvariam em eras distantes, ela reconheceu a bondade de seu propósito, e isso a alegrou.
Por dias ela visitou os Cofres para ter com as belezas da Terra, e seu regozijo irradiava pelo cosmos
em ondas imparáveis de alegria que, traduzidas em forma de luz, fizeram surgir as primeiras estrelas
do Universo. E não entendia o temor que sentiam seus irmãos das coisas, e censurou-se por ora ter
sentido tal emoção.
Variel ansiava pela aurora da Terra, pois a ela não havia coisa mais bonita e nobre no
Propósito da Criação. E gradativamente, mais longas eram as suas visitas aos Cofres de Sabate, de
onde podia admirar o mundo e seus filhos diretamente. Mas, por um tempo infinitamente longo –
maior que a vida de qualquer reino da história – adiaram os deuses a chegada dos Homens na Terra, tal
qual a própria criação do mundo. E disso se entristecia muito Variel, por antecipar aquilo que ainda
não era, e sua tristeza não tornou a cessar, pois sua ansiedade era imensa e incontrolável. E sua dor
fê-la esquecer da beleza do mundo e dos seres que a habitavam, por não suportar pensar naquilo que
jamais haveria de se consolidar. Quando o peso da dor resguardada corroeu-lhe na consciência, Variel
relegou-se aos confins do Universo e, durante eras, sumiu. Abandonou sua casa nos Pilares, e em seu
exílio buscou esquecer o que vira e amara por dias.
Diz-se que sua tristeza nunca cessou, porém, e a cada dia que transgredia sem a vinda das
coisas, ganhava corpo seu lamento, até tornar-se um luto completo. E num dia, quando os deuses
procuravam-na pelo cosmos, diz-se que Variel chorou. Houve de ter sido o mais angustiante lamento
de todos os que os Homens são capazes de pensar, pois guardou ela por inúmeros anos a dor do vazio
que em si se acumulou. Os Pilares da Criação fraquejaram ante o som de seu luto eterno, e todos os
deuses ouviram-na. A Dor espalhou-se pelos recantos de matéria que jaziam sobre o Universo, e
ninguém vivo àquele momento pôde escapar de compartilhar do sofrimento de Variel. As estrelas que
outrora brilhavam pela força de sua alegria se apagaram em intensos choques de lamentação, e a
Criação se escureceu por muitos anos.
Pois foi assim que os Cofres de Sabate ressonaram. Quando o coro fúnebre irradiou pelos
artefatos ali guardados, nem mesmo o deus-Senhor fora capaz de conter a inquietação que nele
mesmo surgiu. Sua força, reduzida pela angústia compartilhada, foi incapaz de conter a vontade que
jorrava dos Princípios da Criação. E quando o Pilares da Existência fraquejaram e sua estrutura
vacilou, caíram todos os deuses sobressaltados, engolfados pelo desespero. E o Cofre se desfez, e o
devir fez-se à luz do Universo, quando as coisas finalmente vieram a ser. Os deuses, alheios ao ocorrido,
não puderam impedi-lo. E a Terra veio a se formar, recheada de vales, águas, céus, terras e montanhas;
e pouco depois vieram os Homens para fazer do mundo seu lar.
E quando os primeiros raios luminosos refletiram o esplendor da Terra criada, cessou-se o
lamento. Ainda que a dor de Variel manteve-se vagando pela Existência, qual o fantasma de uma
época sombria, seu choro emudeceu perante a beleza que tanto previra. E, finalmente, fez os deuses
perceberem a beleza das coisas, e de seu medo e temor se esquecerem. Cada deidade desceu à Terra, e
fez-se incorporar em um aspecto específico. E disso vieram os deuses do Sol, da Luz, dos ventos, do
céu, do mar, da própria terra e de todos os fenômenos que as divindades encantavam.
E também veio à vida a raça humana. Eram estes os filhos da terra, presos à sina da morte, e
eles foram embebidos com uma incessante vontade de perambular pelo mundo, e fazer de cada parte
sua um recanto de prosperidade e felicidade. Sempre vigiados a distância por Sabate – o deus Sol – e
admirados à distância por Variel, a mais brilhante das estrelas restantes que fulguravam no céu
noturno, os Homens vieram ao mundo e o exploraram, fazendo dele seu lar. O seu destino, porém, não
lhes pertence pela eternidade, pois o Universo ainda aguarda o inevitável momento durante o qual a
dor de Variel ressurgirá pela imprudência da própria humanidade, e Tudo será relegado ao sofrimento
mais uma vez, do qual pode nunca mais acordar. Durante os incontáveis anos nos quais a desgraça não
resplandecerá por sobre os Homens, farão eles de si o que lhes for justo, e os deuses estarão acima de
suas cabeças, em vigília.
Por muitos anos, viveu a humanidade no seio do mundo, em vales onde os rios jorravam águas
das mais límpidas, e as plantas recobriam em profusão o chão sob seus pés, e lá eles prosperaram.
Diz-se que, durante tais eras, deu Sabate a eles uma parcela da virtuosidade divina e, pela primeira
vez, vieram os homens falar e comunicar-se em prosa tão fluida, que canções singelas eles
compuseram, e homenageavam elas os deuses. Nessa época primitiva, pouco sabiam das coisas os
homens, no entanto. Sua consciência não transpassava a mera noção da existência, pois nem da terra
tiravam os homens seu fruto. Tampouco sabiam os deuses das coisas que na Terra se manifestavam,
pois cada um deles teve de aprender à perfeição a natureza dos fenômenos que incorporam. E,
finalmente, puderam ensinar a humanidade. E os Homens puderam, finalmente, plantar e colher da
terra, assim como tirar do solo o que lhes convinha. Pois, desse modo, inúmeras casas fizeram esses
homens e mulheres de outrora.
Porém, por milênios, teve seu destino atado ao desbravamento, e os Homens sentiam o ímpeto
de explorar as terras que jaziam a seu dispôr. E os deuses reconheceram a beleza de tal desejo, pois
lembrava-lhes de Variel em épocas primevas, quando a curiosidade levou-a aos recantos do Universo
na busca de respostas às perguntas irrespondíveis. Sentiram eles, pois, que em sua afeição pelas
coisas, jorrara Variel parte de sua natureza no âmago dos Homens, tornando-os produtos indubitáveis
da alegria que a percorreu enquanto ansiava por sua chegada. Portanto, era também destino deles
desbravar o mundo e, assim, singraram eles pelos vales.
Quando seus trajetos os levaram aos recantos mais inóspitos da Terra, separou-se a
humanidade, fazendo incontáveis tribos e reinos que se espalharam pelos solos qual os indômitos
ventos que sopram nos ares. Muitos deles perderam-se à posteridade, e a memória de suas jornadas
não mais flutua por entre as mentes de quaisquer ouvintes ávidos pelos mitos e lendas de outrora.
Mas, a alguns deles, a sorte recaiu por sobre seus caminhos, preservando as entrelinhas de seus
trajetos, e foram estes que o mundo mais desbravaram, pois houve uma época na qual a esse grupo
surgiu a missão de explorar as terras mais ao norte, as únicas que de sua presença escapavam.
E assim empreenderam tal esforço, pois suas ambições revigoravam-lhes o ímpeto quando as
terras mais além tornavam-se gradativamente mais próximas. E eles chegaram aos recantos do mundo,
e lá, por fim, fizeram morada. Na linguagem que Sabate tanto cultivou em suas mentes,
chamar-se-iam de galárdes – aqueles que desbravam –, e eram, pois, os senhores do mundo, por ser a
Terra seu espetáculo. Muitas histórias ainda aguardam sua aurora dentre os galárdes, pois a seu ânimo
não se carecem fortificadores; e o grande mundo a sua frente reduz-se à vista de suas conquistas
obstinadas. E muitos ainda serão as mulheres e os homens que honrarão a hoste ousada de seus
antepassados, que abandonaram antigas terras de prosperidade na busca de horizontes mais límpidos.
E ali, junto a eles, estavam os deuses, incorporados a cada aspecto que recobria os incontáveis
vales que preenchiam a terra, sempre à espreita dos Homens e das suas intenções. Poucos
permaneceram nos terrenos que jazem acima dos céus – alguns dos quais, eventualmente,
aprisionarão suas consciências nas trevas por desdenhar dos Princípios da Criação –, pois a maioria
das deidades desceu à Terra, censurando-se de seu velho amedrontamento pelas coisas, que agora se
prostravam belíssimas em sua frente. Porém, três deles seguiram nas terras inalteráveis que existem
acima das nuvens, sem evitar o cuidado e a vigília da humanidade em seus caminhos. E eram eles
Medana e Sabate, que vigiavam os Homens em seus espíritos; e Variel, em seu lar de estrelas
coruscantes, que abençoava os galárdes em seus espíritos inconformados.
II.
E assim foi. Medana, incumbida com parte da Luz, punha-se a observar Sabate enquanto este
vigiava as criaturas, para que, quando o ressentimento recaísse sobre sua mente e sua força fosse
incapaz de aturar o propósito a ele dado, ela pudesse fornecer a humanidade a vigília da qual
necessitavam. Ora, não se encontrava sozinha em sua labuta, pois no mar de estrelas distantes no
Universo, Variel projetava-se ao mundo, e o iluminava com o brilho de sua alegria, para guiar
solenemente os filhos da Terra. Assim vieram o dia e a noite, nos ciclos a que tanto se acostumaram os
Homens. Mas, contam os galárdes, que houve um dia no qual ambos cruzaram seus caminhos.
Quando Sabate e Medana cumpriam seu dever conjunto, e observavam a humanidade nos
Palácios celestes que repousavam sobre as nuvens, contam os galárdes que, em seu dever
compartilhado, Medana afeiçoou-se por Sabate, pois viu a graça contida no cuidado da humanidade.
Buscava ela, portanto, aproximar-se de sua luz enquanto a orbe luminosa dele recaía por trás do
horizonte para o seu autoflagelo rotineiro. Porém, não o alcançava, e isso fazia nela crescer um desejo
profundo. Quanto mais ciclos se passavam sem que suas luzes sequer compartilhassem um vislumbre
de sua contraparte, crescia sua expectativa e enchia seu íntimo de mais afeição. E por eras ela esperou.
E durante esse período, apenas aumentou sua afeição, pois ela via o esforço de Sabate diariamente, e
seu comprometimento com os filhos da Terra – maior do que o seu próprio, ela admitiu –, e a vontade
dele fazia-a encher-se de eterno orgulho. Tamanhos eram seus sentimentos, que logo sua afeição
cresceu para uma paixão ardente.
Portanto, quando sua ansiedade fez transbordar sua consciência eterna de puro regozijo, e sua
atenção volveu a recair sobre Sabate no céu ao seu lado, Medana decidiu-se. Enquanto a orbe
resplandescente do deus Sol caía pelo horizonte, ela se pôs em seu caminho e, finalmente, além da
sina, compartilhou seus desejos e sua emoção. E houve de, por um tempo, os corpos enormes de
ambos, fixos dentre o mar de estrelas, cruzarem um ao outro, e ambos os deuses dançaram, qual o
faziam nos tempos imemoriais antes da vinda das coisas. A Luz eterna que deles emanava limitou-se
durante a dança, e o mundo foi lançado numa breve escuridão, da qual não se envergonharam Sabate
ou Medana, por estarem presos um ao outro. E eles permitiram um ligeiro egoísmo: guardaram a luz
apenas para si, para iluminar seus passos, e nada além disso. Ora, por inúmeras revoluções ao redor da
Terra, jamais foram eles capazes de fazer algo semelhante. E todos os deuses permitiram-se sentir a
felicidade, mesmo que breve e indireta.
Os galárdes contam também que o próprio Sabate enamorou-se de Medana antes de sua dança
celeste, pois ele lhe era eternamente grato. Quando as duas orbes resplandecentes separaram-se mais
uma vez, e a luz eterna de ambos pôde ser vista simultaneamente, a humanidade aplaudiu e celebrou
esse amor selado, tão nobre e tão sincero. E por vezes o deus Sol e a Rainha da Noite tornaram a
cruzar seus caminhos, e durante o tempo em que o mundo se escurecia, ambos dançavam à luz que
emanavam de seus próprios corpos. E a cada nova dança, sentiam-se sortudos pela sina, e a chaga de
Sabate suavizava-se, fazendo de seus pensamentos menos corrosivos; pois o autoflagelo, ao longo das
eras, fora substituído pela afeição intensa que sentia por Medana.
III.
Enquanto os homens na Terra festejavam a dança celeste dos deuses que se consolidava sobre
as nuvens e desbravavam o mundo, à distância Variel observava. É fato que também afeiçoou-se ela
pelo amor de Sabate e Medana, e seu regozijo revitalizou a profusão de estrelas pelo Universo. Porém,
mesmo perante tamanho acalento, mantinha-se concentrada e, quando se fazia possível, observava os
destinos da humanidade, refletindo sobre os filhos da Terra. Sentia-se igualmente responsável pelo
cuidado de toda a humanidade por ter sido ela a causadora de tal advento. E no seu lar de estrelas, a
muitas léguas do próprio mundo, não retirava dos galárdes sua própria vigília.
Ocorreu que um dia, em sua consciência, veio um desejo inexplicável. Parecia ter surgido de
alguma elevação cognitiva que, de súbito, atingiu-lhe na mente. Jamais sentira desejo parecido, pois
em nenhuma de suas próprias ideias havia tal natureza intrusiva, quase como uma violação. E
manteve-se essa ideia em sua mente por dias. Exigiu de si tempo para acostumar-se a ela, e Variel
tornou a analisar o seu conteúdo. Após incontáveis dias, deduziu ser tal ideia parte do próprio
propósito uno, que a tudo deu origem. Podia não saber de qual mente proveio tamanha engenhosidade,
mas, incontrovertivelmente, podia assegurar que dela advinha. Passou a tratar, pois, com mais
naturalidade o pensamento e, no incurso de semanas, pôde compreendê-la na íntegra, e disse:
– Precisa a humanidade de um novo lar, pois as terras em que moram já não mais lhes servem.
Dessa sublevação que em mim se acometeu não posso tirar nada além disso de sentido. Devo ser eu a
guia de seus passos, e os filhos da Terra haverão de ter o mais belo lar de todo esse mundo, tão nobre
quanto os próprios Pilares da Existência, por serem eles dignos de tal honraria. E já vejo as maravilhas
que serão capazes de lá construir.
E, num dia, durante um dos vários encontros colossais de Sabate e Medana, quando a Luz
Celeste iluminava-os apenas, Variel concretizou seu desejo. Fez arder imensamente a sua própria luz,
por gigantesca ser uma alegria e ansiedade, e a estrela sob cuja forma ela se resguardava brilhou
intensamente no céu, destacando-se de toda a penumbra que recaía sobre a Terra. Ela sentiu em seu
íntimo que os homens haviam-na percebido, pois mais intensa foi a celebração naquela noite. Além da
contemplação, fez-se entender a humanidade que tal estrela dava-lhes uma missão. E Mesmo quando a
luz de Sabate voltou a rogar sua clareza por sobre a terra, esforçaram-se os homens para observar a
estrela de Variel, que lhes guiava rumo ao paraíso, e os aconselhava a perder de seus corações o medo
do mundo que jazia a sua frente.
– Pois são vocês os senhores desse mundo, e são dignos de tal jornada. Desbravem, pois, e
sigam a minha luz rumo às terras das quais vocês serão senhores – dizia Variel a eles em seus sonhos
ousados, a partir de onde almejavam suas conquistas.
E assim os homens rumaram o mundo. Ora, tornaram-se seus espíritos tão atados a
exploração que entre si receberam o nome de galárdes, aqueles que desbravam, aqueles que não temem
a Terra e as feras que o Mal põe sobre ela, aqueles cujo pensamento não retrai à iminência do
desconhecido. Não haviam seres mais dignos, pois, de serem, além deles, os senhores da Terra. E
durou muito tempo sua viagem, mais do que os registros são capazes de contabilizar e tornar
conhecido à posteridade.
Contam as lendas que muitas canções eles entoaram, e lá fizeram uma sinfonia heroica para
sua viagem enaltecer, e alguns contadores de história ousam dizer que alguns deuses manifestaram-se
durante tais entoações. E quando Sabate e Medana tornavam a se encontrar naquela dança colossal, os
galárdes cantavam mais alto e também mexiam seus corpos no ritmo da música, reproduzindo a dança
celestial que por alguns minutos rompia nos céus acima de suas cabeças. Ora, recordam-se os galárdes
apenas de boas memórias durante tais momentos de travessia, pois o Mal ainda não havia se
manifestado nas terras sólidas sob seus pés, e seu domínio era pouco ainda no Universo imutável, pois
os deuses ainda digladiavam contra as Trevas para onde alguns de sua estirpe caíram, e protegiam a
raça humana de seus espíritos ímpios. Mal sabiam os galárdes da guerra que irradiava o cosmos além
de onde Sabate e Medana podiam tocar, pois suas mentes jamais teimaram desvirtuar-se da luz de
Variel no céu acima.
Enfim, um dia, chegaram os galárdes nas terras do norte, que há muito se fazia presente em
seus sonhos, e por muitos anos estiveram eles caminhando. Ao finalmente tornarem seus olhos ao céu
reluzente, quando puseram seus pés em tais terras, viram brilhar a Estrela uma última vez e, enquanto
sua luz desvanecia em pulsos vagarosos e sua forma se confundia à do Universo logo acima deles,
entenderam os galárdes que estava ali terminada sua jornada, e, enfim, assentaram-se naqueles solos.
Quando se permitiram vislumbrar os campos planos que se estendiam a sua frente até onde se perdia
a vista, disseram: “Grande é Variel, que em seu lar de estrelas por nós intercede.”
E dizem as lendas que eles festejaram por cinco dias inteiros.
IV.
Enquanto na Terra estavam os galárdes fazendo sua morada, nos céus imutáveis deflagrou-se
o primeiro conflito entre os deuses e aqueles de sua gente. Desde a aurora dos tempos, houve aqueles
da estirpe divina que, a despeito da beleza revelada nos Princípios da Criação, não partilharam do
contentamento e da felicidade das outras deidades quando todas essas coisas vieram a Ser.
Parecia-lhes ilógico arrepender-se daquele temor que por muito tempo sentiram, haja vista que, no
início da Existência, eles próprios haviam analisado o mundo e seus filhos, e há muito já se havia
concluído o perigo de sua criação. Agora que tudo se havia tornado realidade, parecia difícil superar
tais emoções. Portanto, mantiveram-nas mesmo em face da Luz do mundo e dos trajetos humanos.
Assim, por muitos anos, estes deuses recusaram-se a descer pelas fronteiras do mundo,
alheios aos eventos que se faziam acontecer nas terras abaixo. Mas não contraíram quaisquer juízos
degradantes sobre a Terra e seus filhos – e apenas mantiveram seu temor pela miséria e pela desgraça
de todas as coisas. Contudo, houve um momento no qual tal temor transfigurou-se num ódio pulsante,
que contaminou os Pilares da Existência com tamanha cólera que suas estruturas enegreceram e
contraíram uma veste de escuridão corrosiva e latente. Isso se deu quando muitos de sua estirpe
desceram à Terra e lá fizeram sua morada, fazendo dos Palácios Celestes um museu de memórias
esquecidas, um flagelo de outras eras, durante as quais os deuses festejavam e celebravam sua
eternidade sem a preocupação da vigília e assistência. Logo, muitos daqueles que se recusaram a
descer passaram a reunir raiva tremenda pela humanidade e seu mundo.
Seu ódio foi reunido ao longo das eras. E em pouco tempo, seus espíritos dissuadiram sua
consciência e, em dado momento, animação nenhuma sentiam em virtude da vinda das coisas, pois só
lhes restou o ódio e o nojo pelo que todas elas haviam causado. E, em conjunto, tal estirpe praguejou e
amaldiçoou o nome dos Homens e açoitou a decisão dos deuses de descer ao mundo e incorporar-se a
seus fenômenos, pois eram todos eles repletos de estupidez e ilusão. Lamentaram pelas coisas
passadas, que haviam nunca mais de voltar, pois haviam os deuses sucumbido aos prazeres do mundo
e da humanidade, imperfeitos por natureza. E assim sucedeu a cisão entre as divindades, pois muitos
do que ainda viviam nos Palácios elogiavam e abençoavam a Terra, desejando-lhe e a seus filhos
prosperidade, e muitos deles detestavam-nos.
E assim contam os galárdes da vinda das Trevas, pois o ódio e a sanha que crescia em suas
consciências corroía seus espíritos, afastando-os do Propósito forjado desde a Aurora. Sua fúria
ensandecida incorporou-se em seus âmagos até perfurarem seus íntimos com um rancor tão
tremendo, que palavras inenarráveis foram praguejadas por sobre o mundo, e todos os deuses
puderam escutar-lhes, denunciando o ódio que por muito tempo censuravam. Mas aqueles que
insultaram não retraíram, a despeito da denúncia feita, pois em sua raiva compartilhada ganharam
força e, em conjunto, reclamaram o domínio das coisas, pois cabia a eles resgatar a riqueza da
Existência, perdida no meio de seres mortais e mundos passageiros ignóbeis e desprezíveis.
E seu grito ecoou pelo cosmos. Até a própria Variel, em seu longínquo lar de estrelas
brilhantes, pôde ouvi-los desdenhar daquilo que ela tanto admirara. Podia sentir também seu nome
entoado no alarde, e todas as letras que desgraçavam-lhe por ter ela trazido a perdição dos deuses.
Todos no Palácio amedrontaram-se daquele horror revelado, e empreenderam um esforço inigualável
que expulsou os blasfemos daqueles solos celestes. E eles tiveram, pois, de vagar pela Existência, a
praguejar e insultar os Princípios da Criação, dos quais tanto desdenhavam e enojavam-se. Mas sua
vontade jamais cessou, pois mesmo diante de tamanho expurgo, planejaram seus atos maléficos.
Queriam eles consolidar seu domínio cósmico e, para tal, exigia-se danificar tudo aquilo que dos
Cofres de Sabate proveio, desde os ventos uivantes até a própria raça humana.
Todavia, decidiram atacar os criadores antes de açoitar as criaturas. Dizem que estes que se
tornaram Trevas eram dezenas, com poder inigualável entre os deuses. Nos poucos anos de seu exílio,
muitos daqueles de sua estirpe desceram à Terra, pois agora haviam de se incorporar nos fenômenos
forjados pela própria humanidade, desde a agricultura a metalurgia. Portanto, os Palácios Celestes
esvaziaram-se ainda mais, e sua força, pois, reduzia-se a frangalhos do que fora um dia. E os
blasfemos, então, agiram rapidamente. Unindo suas forças malignas, invadiram os Palácios e, ali
mesmo, declararam sua guerra contra os deuses e contra tudo aquilo que estes ousavam bajular,
iludindo-se com prazeres passageiros e miserentos. E, de suas consciências, forjaram armas
poderosíssimas, com as quais avançaram contra aqueles que um dia foram seus irmãos, e todos os que
ainda viviam sobre o chão do Palácio pereceram sob o ódio e a fúria, seus espíritos reduzidos a meras
lembranças de um passado que já não é mais.
Enquanto os blasfemos festejavam por sobre o massacre que perpetraram, veio Sabate ter com
eles. O Sol não pôde, a despeito de seu conhecimento, prever o evento que se havia acabado de realizar
naqueles locais tão sagrados – e seu luto endureceu, intensificando o flagelo que nele se acometia.
Porém, tomou uma atitude prudente e, com o seu poder e com a Luz que em si incorporara,
amedrontou os blasfemos, e retraiu as Trevas que neles habitavam, e suas palavras assim penetraram
naquelas mentes:
– Por todo esse sangue derramado, por toda a blasfêmia proferida e por toda a dor infligida,
não sois vós mais digno de se contarem entre nós, tampouco de compartilharem a graça que nos fora
dada no início de Tudo. Vós manchastes as nobres estruturas da Existência com essa escuridão podre
e fétida que lhes mordeu na alma e, com tamanho egoísmo, rogaram pragas por sobre aqueles que
jamais ousaram dizer-lhes mentiras. Fostes vós que para eles mentistes, desonrando a vossa própria
natureza, e agora não passam de mentirosos, tão baratos e fúteis quanto teu propósito maligno. Jamais
sereis os senhores do Universo, pois não precisa ele de outros além Daqueles que o moldaram antes de
Tudo, e vós apenas manchas o que um dia fora moldado pelos Arquitetos de todas as coisas, e deviam,
pois, envergonhar-se de tentar se equivaler a tais seres, quando não sois vós nem maiores que uma
pulga. Por todo o Mal que sobre nós jogaram, e por todo aquele que ainda ousarão jogar, não saireis
sem punição. Desde já proclamo que vossos nomes, mergulhados em desgraça, jamais possam ser
outra vez declamados, e que de vós seja retirada a virtude de nosso povo, pois agora não poderão
nunca mais pronunciar blasfêmia alguma, e nenhuma outra criatura será capaz de entendê-los. Jamais
haveis de ser donos do cosmos, pois agora não sereis donos nem de seus próprios nomes.
E assim foi. A força de Sabate, enrijecida pela Luz que dele emanava, feriu os blasfemos, de tal
modo que da própria Estrutura da Existência seus nomes foram selados, e nenhuma outra criatura
fora capaz de pronunciá-los, nem mesmo aqueles que um dia o possuíram. E sua língua confundiu-se,
pois suas palavras perderam o sentido e a lógica, e sua comunicação jamais pôde ocorrer do mesmo
modo que um dia fora, tornando-se defasada. Ninguém jamais os entendeu novamente. Por tal
decisão, não se pode nomear aqueles que praguejaram um dia contra a humanidade e contra os
próprios deuses, pois suas identidades perderam-se naquele julgamento proferido pelo Sol.
Mas Sabate não fora capaz de conter tais forças por completo. Quando passou o horror do
massacre, a perda de seus nomes fê-los contrair um ódio puro e maciço contra os que ainda restavam
dos deuses. E quando escaparam do Palácio, retornaram a suas fabulações desprezíveis, das quais
retiravam seus novos atos maléficos contra tudo e todos. E não lhes parecia mais justo do que agora
subtrair da Existência tudo aquilo que detestavam, pois seus motivos tornaram-se pessoais. Haviam
declarado guerra aos deuses e, pois, agora haviam de lutar não apenas contra aqueles que caíram na
ilusão do mundo, mas também contra aqueles que desgraçaram suas identidades, arrancando deles
uma parte de seu íntimo, pois jamais puderam proferir seus próprios nomes.
Quando ergueram seus ânimos novamente, decidiram infligir danos à própria Luz que vigiava
a humanidade, incorporada em Sabate e Medana – pois grande era também o seu rancor pela
felicidade de ambos, personificada na dança que protagonizavam regularmente nos céus imutáveis. E
sempre que havia na Terra comemoração, enojavam-se. Assim, decidiram atingir as criações
desprezíveis por meio daquilo que lhes dava esperança, a luz. Mas temiam as Trevas o deus Sol, por
maior que fosse o seu ódio, pois sabiam eles do poder que resguardava em sua natureza,
potencializado pela Luz nele incorporada. Portanto, sabiam que dele não poderiam aguardar vitória e,
antecipando-se dos resultados, escolheram atacá-lo por via indireta, atacando a Rainha da Noite a
princípio. Se dela fosse retirada a Luz, arrancariam dos Homens sua vigília e de Sabate seu amor, qual
havia ele arrancado seus nomes da Existência.
Pois um dia, quando ambos os deuses ocupavam-se de sua vigília, vieram os blasfemos
sorrateiros até os céus, onde repousavam sua orbes luminosas, e, quando Sabate recaiu por trás do
horizonte infinito, para recuperar-se daquele flagelo autoinfligido, atacaram a Rainha da Noite. Com
as Trevas que emanavam de seus espíritos, armaram-se novamente e, de surpresa, sobressaltaram-na
com sua perversidade, com a qual apunhalaram-na e dela subtraíram a luz. E, quando tal ato fora feito,
a vigília cessou, e os galárdes sentiram a falta da Luz, e temeram durante aqueles momentos,
revigorando os blasfemos com seu medo. E a Luz causava-lhes dor, produzindo chagas em seus
corpos, mas que logo se curavam pela engenhosidade da escuridão que lhes cobria.
E Medana gritou, urrando de dor. Seu corpo definhava ante a ausência da Luz com a qual
tanto se acostumara, e a vida esvaía lentamente de si. Dizem que as Trevas riram frente a tamanho
sofrimento, e o desespero e a desolação davam-lhes mais força e poder. E eles festejaram novamente,
pela facilidade com a qual haviam obtido parte daquela inigualável Luz, enquanto a Rainha da Noite
agonizava no céu. E lá mesmo destruíram aquela parte da Luz. E Sabate enfim ouviu quando ela, em
pranto, lamentou o ocorrido, e seu sofrimento ecoou na mente do Sol em turbilhão, fazendo-o acordar
de seu autoflagelo. E, enfim, retornou ele ao céu desprovido de Luz e lá viu a miséria perpetrada. O
pranto de Medana fê-lo reunir ódio semelhante àquele incorporado pelos blasfemos, pois a visão de
seu amor sucumbir lentamente causou-lhe profunda dor e fúria. Dizem que nunca antes, e depois, o
Sol sentiu cólera equiparável, e o choque que se seguiu fez Sabate explodir em uma onda luminosa de
puro ódio, e a força de seu luto e rancor fez medo nas Trevas novamente, e a potência de sua veste
luminosa feriu-os permanentemente, e logo os blasfemos puseram-se à distância, nos confins do
Universo.
Sabate, enfim, tornou a Medana. Repousou-se sobre seu corpo moribundo – e chorou. Seus
prantos varreram também o Universo e parte da Luz destacou-se de si. O Sol usou-as para curá-la e,
lentamente, fazê-la acordar. Por breves minutos, ele temeu ser incapaz de tal, por desconhecida ser
natureza das Trevas. Todavia, a Rainha da Noite lentamente volveu à vida, e sua orbe luminosa tornou
a brilhar modestamente. Em seu corpo, no entanto, despontavam marcas enegrecidas, cicatrizes do
golpe que recebera, marcados eternamente nela para lembrá-la da agonia e dos sofrimentos passados.
E imediatamente voltou ela a sua vigília, pois era este seu propósito. Paulatinamente, Medana
recuperou-se do trauma sofrido, sem jamais, porém, dispor de noites tranquilas, pois aquela não foi a
única vez em que as Trevas atentaram contra ela. E sempre que o faziam, sua Luz se apagava por
breves momentos, mas jamais foram capazes os blasfemos de subtrair-lhe definitivamente a vida e a
luz que dela emanava.
E as Trevas perduraram. Sua atenção, contudo, mudou-se para as criaturas, por resistirem em
demasiado os criadores. E seu ódio ganhou forma novamente, focado na própria humanidade e no
mundo onde viviam. Foram eles capazes de vislumbrar o dito paraíso sobre o qual morava a
humanidade, em eterno regozijo e contentamento. E veio-lhes a ideia de atacá-los quando ainda não
se tinham espalhado pelos recantos do mundo, e faziam-se todos presentes naqueles vales. Mas as
Trevas jamais ousaram ultrapassar os limites da Terra, pois enojavam-se dela e nunca submeteriam
seus corpos aos ventos e ares ilusórios daquele mundo passageiro. Haviam, pois, de criar emissários
que, incumbidos com o Mal iminente, fariam com a Terra o que eles haviam feitos no Palácio.
Assim, criaram as Trevas as bestas e feras. Eram eles tão engenheiros quanto os outros
deuses; mas, assim como eles, jamais foram arquitetos. Portanto, nunca suas criaturas dispuseram da
graça e virtude dos Princípios da Criação – moldados por Aqueles que tudo criaram. Por outro lado,
suas criaturas ostentavam tamanhas deformidades de caráter e sua natureza sombria escurecia seus
espíritos. Eram elas horrendas e indescritíveis, pois haviam vindo de mentes conturbadas, preenchidas
apenas pelo ódio e pelo nojo. Desse modo, tais feras não eram, além de odiosas e enojantes, nada. E as
Trevas as criaram para amedrontar a humanidade e massacrá-la em seus recantos, fazendo da Terra
um caos infindável a partir do qual se veria a ruína de todas as coisas.
Quando sentiram seus espíritos revigorados, lançaram suas criaturas ao mundo. Fizeram-no
durante mais um dos ataques a Medana, quando o medo invadia os corações humanos e os deuses
ocupavam-se com a Rainha da Noite. Com o poder de seu rancor, fizeram as feras ultrapassar as
barreiras do céu e da terra, e cair no paraíso dos Homens, para sobressaltá-los e, de surpresa,
arrancá-los de seus lares. E decerto teriam feito.
Todavia, por algum tipo de intervenção divina, os Homens já haviam rumado o mundo quando
as criaturas nefastas puseram seus pés por sobre a terra. E os vales paradisíacos já não mais contavam
com a presença humana, pois tal raça há muito havia saído de lá. Questionaram os blasfemos por um
bom tempo, pois algo havia fugido de seu conhecimento, e suas feras agora teriam de rumar
semelhantemente o mundo, e nos confins da Terra haviam de enfrentar a humanidade, consolidando o
propósito para o qual foram criados. Enquanto faziam, as Trevas não puderam impedir-se de notar
que, no cosmos indômito, a luz de Variel brilhava na noite eterna mais do que qualquer outra estrela
que dela havia surgido, e eles amaldiçoaram-na em seus espíritos.
V.
Os sábios dizem ainda que, quando os galárdes seguiam a estrela de Variel, os ventos
sopravam rumo ao norte, sussurrando e uivando sons graciosos, que complementavam suas melodias
ousadas. Vúlimo era deus dos ventos, e supõe-se que ele também tenha visto a Estrela fulgurar no céu
acima e, compadecendo da jornada dos Homens, fez, portanto, soprar os ventos para onde se deviam
direcionar os galárdes em sua incessante caminhada. E quando naquele paraíso finalmente chegaram,
e a luz de Variel se fez sumir pelo infinito, lá estava a humanidade no seu lar, e os ventos tornaram a
correr em sua habitual natureza, e muito a Vúlimo agradeceu Variel.
Chegaram eles àquelas Terras Antigas por meio dos enormes campos que se alargavam no
extremo sul, repletos de vida e primores ímpares, que fez os galárdes exaltarem Variel por mais vezes.
Em seu idioma, chamaram o novo lar de Digalar – a terra do desbravamento –, pois não viam nome
mais apropriado. Mas, desde a ruína das civilizações, tal nome se perdera da memória dos
desbravadores. Em eras futuras, os tanaldes de Laso dariam àqueles solos primitivos a alcunha de
Darlos – as terras rasas – e foi esse o nome que ecoou no espírito galárde do porvir.
Em Darlos, corria ao norte um rio extenso, bordeado por rochas e pedregulhos de puro
calcário, cujas águas rumavam mais ao norte até desaguar num enorme lago, sobre o qual os senhores
galárdes fariam pesca. As águas que corriam eram límpidas, e jamais desapareciam, mesmo durante o
inverno. A grande bacia d’água, enfim, se afunilava ainda mais ao norte, e outro rio tornava a correr às
terras longínquas, mas pouco se sabia ou navegava nele à época, por subestimarem os galárdes as
terras mais além. A sudoeste, por outro lado, desaguava o rio na costa, onde se abria o mar extenso a
sua frente, desconhecido dos Homens, que o temiam, e mal suspeitavam das outras terras que sobre
ele jaziam mais ao longe. Como um todo, não se faziam bem-vindos às águas: diziam que Sabate e os
deuses haviam-nas criado para mostrar-lhes o limite de seus lares, pois eram eles os senhores da terra
– e somente os deuses eram donos de tudo.
O rio, por sua vez, era-lhes bem-vindo, pois precisavam dele para fazer da terra crescer o
fruto. E os cursos que cortavam a terra num filete contínuo d’água e rocha não aparentavam perigo
semelhante ao dos mares extensos. Ora, celebravam eles o rio – o que em hipótese alguma fariam ao
mar –, e se convencionou de chamá-lo Iti, pois esse era também o nome do deus das águas, que
mantinha guarda do povo ao longo do curso. E no rio fizeram eles muitas coisas, pois para muito
serviam suas águas. Para os mais ávidos adoradores de Iti, diziam que um mero banho em sua costa
poderia tirar dos homens quaisquer chagas que se acometessem em sua pele, por serem sagradas as
águas do rio.
Já nas terras sólidas fazia-se crescer uma profusa vegetação rasteira que não ultrapassavam
dos homens o joelho e cobria o solo em toda sua extensão, até onde se perdia a vista. No centro,
cresciam incontáveis espécies de flores, cada qual com aromas indescritíveis, muito cobiçadas pelas
senhoras galárdes, encantadas com sua beleza. E junto às flores viviam diversos animais – dos mais
pequenos insetos voadores aos impávidos quadrúpedes que ruminavam pela grama –, e muito deles os
homens tiraram proveito. Ora, muitos frutos dava a terra quando nela se plantava e, pois, o galárdes lá
fizeram morada, e por séculos prosperaram e as linhagens dos humanos espalharam-se pelas
planícies. Cobriram toda a terra com as marcas de seu povo, e os campos tornaram-se seu paraíso. É
daí que os monges sábios do quarto milênio dão início a contagem do tempo; pois foi quando a tribo
dos galárdes primeiro fez casa nos campos extensos que cercavam Darlos, que o triunfo das
civilizações parecia iminente no coração dos homens. E vários dos homens e mulheres ali fizeram
morada, e por seis décadas inteiras eles se dividiram pelas planícies em pequenos grupos, sem nunca
perder-se de seus relativos que habitavam os outros lados, pois todos haviam ali chegado através de
um mesmo propósito.
Por fim, a leste, projetavam-se do chão imensas árvores, cujas copas cruzavam-se uma na
outra num enorme emaranhado de incontáveis colorações de verde. Os ramos cresciam para fora dos
troncos corpudos e imponentes dos abetos que preenchiam a terra, dando-lhe um aroma silvestre
inconfundível. Não interessava aos galárdes muito a selva, e pouco se faziam notar por aquelas áreas
sem um motivo. Preferiam os campos mais ao centro, ou nas proximidades do rio Iti, onde a terra lhes
servia um propósito. Mas reservaram ainda à floresta um nome, pois chamavam-na de Laso, que na
língua galárde se traduz para folha, por ter a selva muitas delas, ora pendentes nos galhos, ora caídas
ao chão. Contudo, outras matas cresciam por sobre o chão de Darlos, e suas árvores também
alimentavam os galárdes com doces frutos, e suas extensões eram decerto muito inferiores
comparadas às de Laso e, pois, daquelas se amedrontavam menos os galárdes.
E por décadas eles viveram em suas tribos espalhadas pelos campos e pelo curso do rio.
Tornaram-se agricultores impecáveis e, quando os cursos do Iti transbordavam a costa e alagavam o
solo, muitos frutos dava a terra de Darlos. E os frutos da terra por décadas saciou as ânsias dos
homens e mulheres ao longo daqueles campos infindáveis. E a paz reinou por sobre o paraíso galárde
nestes anos d’ouro, e dizem que muitas festas eles celebravam, sempre que viam a luz de Variel brilhar
no céu, a lembrá-los eternamente do favor que a ela deviam, por tê-los guiado até lá.
Porém, iminente era a chegada do Mal nas terras sagradas que Variel lhes reservou, pois as
forças maléficas já se faziam presentes nos Palácios celestes acima das nuvens. Houve de um dia uma
dessas forças nefastas intentar roubar de Medana sua luz, e por um tempo obtiveram-na, antes dos
deuses conseguirem recuperá-la novamente. Os galárdes temeram o retorno das trevas. E temia Sabate
pela segurança dos filhos da Terra, por estarem eles muito vulneráveis nos campos. Se viessem as feras
sedentas dos senhores malignos ter com eles, estaria toda Darlos arruinada. Se fez, pois, dentre os
deuses, a necessidade de se juntar as forças humanas em antecipação às ações sórdidas que recairiam
por sobre todas as coisas. E Sabate chamou os galárdes.
Diz-se que tal chamado viera na contagem de seis décadas passadas desde seu emergimento
em Darlos. E Sabate contou aos galárdes sobre a ameaça inigualável que se aproximava; alertou-os do
sofrimento humano e da miséria consequente. E, com uma voz reverberante, cujas palavras tentavam
transmitir tranquilidade, disse ele:
– Escutai, filhos da Terra, pois importante é o meu recado. Ameaçam as trevas envenenar as
terras que seus pais e avós tanto aprenderam a amar. Inexoráveis são seus espíritos, e suas intenções
verdadeiras ainda escapam de nosso conhecimento. Mas tememos que planejem rogar por sobre vós
os frutos de seus desejos sórdidos. E não estareis vós seguros enquanto ainda jazem distantes de seus
irmãos que povoam esses campos plácidos, pois vossa força não se equipara à de nossos Inimigos.
Devem vocês, pois, singrar os campos, e de volta à boca do rio devem fazer morada definitiva, sem
quaisquer separações. E lá deverão todos morar, sem distinção, pois será este lugar sua fortaleza
contras as bestas que as Trevas podem conjurar na Terra. Devem, ao redor dela, erguer muros, que não
devem contar com menos que o triplo de suas alturas em tamanho e largura, pois somente assim
estarão seguros e deles resistirão por eras incontáveis. Agora vão, e não temam o caminho – e sua voz
ecoou pelos campos carregando tais palavras.
E muitos dos galárdes ouviram-no, e de sua mensagem tomaram conhecimento. Houve alguns
que fizeram marcha subitamente, não mais que uma hora após tal evento. E o próprio Sabate auxiliou
a humanidade. Dizem que sua graça recaiu por sobre os seres de Darlos e, junto a Vúlimo, fez soprar
os ventos para a boca do rio Iti, e muitos animais os seguiram em sua viagem. Numa noite, contam,
viram os homens surgir no horizonte uma frota de centenas de cavalos. E eles trotavam em passo
acelerado, quando foram ter com os Homens, e fizeram-se a sua disposição. E, pela primeira vez, os
galárdes subiram naqueles animais, e cavalgaram incessantemente, certos de que não havia mais nada
que lhes pusessem abaixo em sua marcha veloz e implacável.
E, como mandara Sabate, uniram-se às margens do Iti para uma congregação jamais vista em
outras eras, e toda a humanidade parecia unida no propósito divino. Estavam reunidos ali os filhos
daqueles que um dia haviam chegado às terras, e muitos celebraram o encontro, pois jamais tinham
compartilhado seus espíritos desde a infância. E a congregação proferiu um cântico de louvor, pois
aquela era a sua terra sagrada. Durante as entoações fervorosas, o mundo se manifestou, pois fez Iti
correr as águas e elas se ergueram violentamente do chão, e o filete d’água formou no céu um arco
fluido que compenetrou nos olhares galárdes, e jorrou bênçãos sobre a terra. O céu abriu-se, e um
turbilhão luminoso carmesim irradiou por sobre o arco, e do calor gerado fez-se pela primeira vez o
fogo. Fora esse mais um presente dos deuses a humanidade. E disso ela jamais se esqueceu e muito
tirou proveito nos anos do porvir.
Logo, montaram suas casas nos campos, ao redor daquela Chama que crepitava em sua frente
num amálgama fervente de tons vermelho-alaranjados. E subiram também os muros de pedras ao
redor das casas, que tão prontamente construíram, e muitas centenas de seres passam a viver por lá. E,
no incurso dos anos, muitas outras construções edificaram por dentro dos muros impenetráveis. E,
quando a labuta cessou muitos anos depois, e puderam os galárdes tirar proveito de seu esmero,
finalmente estavam eles seguros e, à distância, Sabate observava-os, tranquilizado. Poucas vezes, no
incurso de alguns anos, ousou ele ter com a humanidade, por ocupar-se em demasiado com as trevas
insurgentes que se espalhavam no cosmos, ameaçando envenenar a Terra.
Mas foram muito felizes os galárdes por lá. E estava feita, assim, a primeira das cidades
humanas naquelas terras antigas, e não havia mais nobre local naqueles solos, e dificilmente a hoste
dos galárdes unir-se-ia de forma tão ardente quanto nesses anos esquecidos. No centro da urbe, onde
de início crepitava o fogo dos deuses, ergueram um enorme farol, que iluminava o caminho daqueles
que ousavam afastar-se da cidade, e seu brilho replicava o de Variel quando sua estrela ardia reluzente,
pois agora sabiam os galárdes manipular as chamas. Finalmente elegeram os homens os seus reis, que
governaram por décadas por dentre os muros, e eram eles senhores daquela tribo. À época, deram os
galárdes ao lugar o nome de Dierna, pois era aquela a cidade das luzes.