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Bruno Ferreira, 40RN, 2021

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ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação

9583 - Resumo Expandido - Trabalho - 40ª Reunião Nacional da ANPEd (2021)


ISSN: 2447-2808
GT21 - Educação e Relações Étnico-Raciais

DESCOLONIZANDO A ESCOLA: Pensando novas possibilidades para a educação escolar


Indígena
Bruno Ferreira - FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO
RIO GRANDE DO SUL
Agência e/ou Instituição Financiadora: ---

DESCOLONIZANDO A ESCOLA: Pensando novas possibilidades para


a educação escolar Indígena

Resumo

Este trabalho resulta da tese realizada no Programa de Pós-Graduação em


Educação da (ocultado para manter o anonimato do autor) com o titulo: ocultado
para manter o anonimato do autor. É uma pesquisa que carrega preocupações do
povo Kaingang em relação às perdas de suas histórias, costumes, tradições
culturais, sua língua e seus conhecimentos e técnicas em relação aos
conhecimentos e tecnologias ocidentais brancos e suas práticas linguísticas.
Contempla referências teórico-metodológicas da pesquisa colaborativa e auto
etnografia, fundamentada na reciprocidade e na complementariedade, princípios da
relação cosmológica kaingang Kamẽ e Kajru. Com esses princípios, a ressignificação
da pesquisa colaborativa cumpre um papel de dialogo entre o método cientifico
ocidental moderno e os métodos tradicionais kaingang e possibilita construir novos
conhecimentos na perspectiva kaingang.

Palavras-chave: educação escolar indígena; escola kaingang; papel da escola;


descolonização.

Refletir e situar o papel da educação escolar na construção dos projetos no


presente e futuro, torna-se cada vez mais importante para os indígenas - e aqui me
reporto ao povo Kaingang. A escola tem papel diferenciado para cada povo,
considerando que as necessidades dos diferentes povos e ou comunidades
indígenas também são diversas. Portanto, é decisivo que os professores sejam do
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próprio povo, pois o professor indígena não é uma pessoa estranha à comunidade.

A partir das realidades dos povos indígenas decorrem suas reivindicações


coletivas sobre o que se quer da escola. São os debates coletivos que promovem o
aprofundamento do perfil diferenciado, especifico e de qualidade da escola,
respondendo as demandas das comunidades escolares do povo onde a instituição
está instalada. Nesse sentido, a ideia de “escola de qualidade” deve ser elaborada
nos debates, com contribuições das lideranças tradicionais, os velhos indígenas que
conhecem a história do povo, bem como das pessoas mais politizadas da
comunidade, conhecedoras do funcionamento das escolas, da educação escolar e
das políticas de Estado. Nestes debates estão presentes reflexões que consideram
a relação da educação tradicional indígena e a educação escolar, contribuindo para
construir o papel desta instituição no contexto próprio.

Para a construção coletiva do que é o papel da escola é importante trazer


para o debate a história da violência colonizadora, que fez sumir, ou prejudicou
grande parte das línguas indígenas, seus valores, conhecimentos e saberes,
crenças e espiritualidades, ciências e tecnologias. É necessário trazer à tona a
história que promoveu perdas significativas das culturas originárias deste continente,
como no período colonial, em que as ações coloniais se apoiaram inclusive na
chamada Guerra Justa, como estratégia de conquista e ferramenta de destruição
das populações da América indígena. “As expedições de apresamento para o interior
e o comércio de escravos índios em São Paulo datavam das origens da colônia. A
partir do século XVII adquiriram novos aspectos quantitativo e qualitativo”
(MONTEIRO, 1994).

Já, no século XX, tivemos a implementação das políticas do Estado brasileiro,


que para isso, em 1910, criou o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos
Trabalhadores Nacionais- SPILTN. Mais tarde este órgão federal passa a ser
apenas SPI, tendo como objetivo dar assistência aos índios brasileiros. O SPI, com
a ideia de transitoriedade, orientaria os índios para civilização, na busca de
transformá-los em trabalhadores nacionais. Para tanto, foram utilizados métodos
educacionais, propagando a língua portuguesa, e com isso intensificando as perdas
de tradições culturais, idiomas maternos e suas relações sociais amplas, que inclui a
natureza.

No final do século XX tivemos mudanças consideráveis, a partir Constituição


Federal do Brasil de 1988, momento bem importante para os povos indígenas, pois,
finalmente, são reconhecidos como povos com direito à diferença, com cultura,
crenças, modos próprios de organização social e suas línguas maternas. São
direitos afirmados no artigo 231 e no artigo 210, § 2º da Constituição Federal, que
reconhece as línguas maternas e os processos próprios de aprendizagem, direitos
que resultam diretamente para a educação escolar.

Nesse novo contexto, os indígenas são motivados a produzir reflexões a


respeito do seu fortalecimento como povos diferentes, autores de conhecimentos e
saberes. Isso propiciou importantes lutas pela sobrevivência de suas tecnologias,
conhecimentos, suas ciências, suas histórias e seus processos de aprendizagens,
muito especialmente pelo crescente aumento de escolas nas Terras Indígenas,
como nas terras kaingang, onde cada vez mais as comunidades buscam a
construção deste espaço de aprender. Porém, para que a lei se efetive, se faz
necessário considerar a diversidade de povos e culturas, bem como seus
patrimônios linguísticos: 305 povos e 200 línguas faladas.
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Os indígenas, portadores de conhecimentos ancestrais, construído na
coletividade, mantido e transmitido na oralidade, trazem consigo uma caminhada de
luta, de resistência e re-existência, diante da perda de seus territórios, no
enfrentamento de doenças, dos danos culturais e linguísticos; propõem e conduzem
diálogos interculturais importantes e buscam a universidade como uma aliada.

Diante da necessidade de repensar a educação escolar e as políticas que


atingem os povos indígenas, estudantes de vários povos se lançam e enfrentam o
desafio da academia, para produzir reflexões que traduzam seus pensamentos e
melhorem a compreensão da sociedade não indígena a respeito das sociedades
indígenas. São movimentos que contribuem para superar a ideia do índio objeto de
pesquisas, para o indígena sujeito. Os indígenas estudantes no ensino superior vão
ressignificando o espaço acadêmico como retomada de parte de seus territórios,
num constante fortalecimento de seu pertencimento étnico e cultural.

Compartilham da compreensão de que a universidade é um território fértil


para construção de conhecimento, porém, estes conhecimentos estão no singular,
pois em geral se referem a uma matriz europeia. Portanto, tem sido um desafio para
os indígenas lidar com este campo epistemológico, já que são detentores de outros
saberes, espiritualidades, crenças, tradições, valores e formas de fazer política, que
são importantes de serem mantidas para a sobrevivência como povos. É nesse
entendimento que surge o debate da escola, como espaço de construção coletiva de
conhecimentos, envolvendo crianças, jovens e velhos. Por isso, a escola não pode
separar a criança dos demais membros da comunidade.

Nesse contexto, a demanda dos povos indígenas por escola passa a ser
estratégica e relevante para o diálogo e para uma relação horizontal entre os
conhecimentos plurais produzidos pela humanidade, objetivando a necessidade dos
povos indígenas e sua comunidade por uma educação escolar especifica,
diferenciada e intercultural. Um movimento que visa superar a escola imposta para
os índios, que tem como premissa negar seu jeito próprio de estar no mundo.
Portanto, a escola no território indígena deve ser/é apenas um espaço a mais na
construção de conhecimentos, atuando com respeito aos processos próprios.
Intelectuais indígenas, orientado pelos conhecimentos ancestrais, já vêm se
posicionando neste sentido, contribuindo para a reflexão e a construção desta
escola.

Darlene Taukane, uma intelectual-ativista indígena, faz importantes reflexões


a respeito da educação de nossos povos, pontuando a importância da oralidade e
dos velhos no processo de educação, fortalecendo a convivência entre as pessoas.
A esse respeito Taukane (1999) fala que d esde pequenas as crianças ouvem a
narração de mitos e aprendem fazendo com os mais velhos, pessoas adultas que
têm experiências de vida, imitando-os, e colaborando nas atividades do dia-a-dia.

Com esse entendimento de educação, um dos princípios da escola indígena é


a educação voltada para a construção coletiva, um lugar em que os conhecimentos
dos velhos kaingang sejam transmitidos para as crianças, para não correr o risco de
perder o jeito de ser kaingang, respeitando as especificidades culturais de outros
povos e procurando manter as suas tradições culturais. A escola produziu efeitos de
transformação (para não falar em perdas) em relação à tradição cultural, às línguas,
aos costumes e saberes kaingang. Diante disso é preciso buscar alternativas na
construção da educação escolar indígena, ou seja, trazer as experiências para
desenvolver formas próprias de escola, fomentar situações que ajudem a reinventar
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a escola, não como modelo, mas como provocadoras de reflexões que ajudem a
repensar novas práticas, as nossas práticas indígenas.

Edson Machado de Brito, importante intelectual do povo Kayapó e atuante nos


movimentos indígenas, em sua pesquisa de doutorado sobre a tradição Karipuna, diz
que a convivência na aldeia é um aprendizado constante e todo tempo tem pessoas
dispostas a informar, explicar, alertar, repreender e colaborar de alguma forma,
especialmente com as crianças. A noite é o momento em que as pessoas sentam
para contar e ouvir histórias dos antigos e os jovens aproveitam para se encontrar,
atualizar as conversas e namorar, espaço privilegiado de transmissão de
conhecimentos do tempo memorial, dos quais os velhos são os guardiões.

Para Brito (2012, p. 46), “a educação indígena prescinde de prédio, moveis,


livros, teorias, sirenes, estruturas burocráticas e controle rigoroso de tempo”. A
educação acontece antes da alfabetização e do letramento, como tem acontecido
durantes séculos com os povos indígenas. Assim, a escola indígena nos remete a
construção de um aprendizado enraizado nos conhecimentos vindos da
ancestralidade. Compreendemos que a escola pode refletir modos específicos de
transmissão dos conhecimentos indígenas e, com isso. se juntar aos demais
conhecimentos construídos pela humanidade, numa relação de igualdade e respeito.

Claudemiro Lescano (2016), pesquisador pertencente ao povo Guarani


Kaiowá, descreve os saberes originários que formam os pilares da educação Kaiowá
e orientam a escola indígena. Essa educação é sustentada pelo território tradicional
dos Kaiowá, os valores tradicionais que formam os pilares da educação deste povo.
Como diz o pesquisador, as fases de desenvolvimento são passagens que ocorrem
ao longo da vida do Guarani, como processo de crescimento e maturidade.

Podemos constatar, no discurso de indígenas intelectuais e pesquisadores,


que existe um forte pensamento, uma filosofia educacional que diz como pautar a
escola para as comunidades indígenas, diferente daquela inserida pela escola
ocidental moderna e que modificou intensamente os modos da educação indígena.
Ou seja, temos fundamentos próprios para construir a escola como instrumento de
autonomia e desenvolvimento, conforme concepções de mundo de cada povo. A
sensibilidade de ver e compreender dos indígenas mostra que é possível buscar na
tradição cultural novas formas de pensar e de apresentar alternativas autorais para
uma escola própria e de qualidade, que respeite os conhecimentos e os processos
do aprender tradicional. Nesse sentido, a escola pode ser também uma retomada de
consciência sobre os valores culturais e interculturais, um espaço de estranhamento
e compreensão, para potencializar conhecimentos e apontar caminhos interculturais.

Contudo, a ideia de que a escola pode ser um instrumento de autonomia


indígena está distante, pois ainda é uma instituição colonizadora e, por isso, precisa
dar lugar a novas práticas oriundas dos indígenas. Nesse sentido, a compreensão
dos processos próprios de aprendizagem dos povos indígenas é importante, tendo
como referencias os direitos indígenas a uma educação escolar especifica,
diferenciada, intercultural e bilíngue, inspirada em suas tradições culturais, direitos
que estão resguardas na Constituição Federal.

As conquistas já obtidas pelos povos indígenas na direção do direito a uma


educação escolar diferenciada são grandes. Mas, é importante aprofundar, cada vez
mais, as reflexões a respeito da escola que temos e a escola que queremos na
perspectiva de uma identidade pedagógica que fará a instituição superar as grandes
perdas por ela provocadas. Assim, afirmamos uma escola sustentada pelos modos
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próprios de viver, nos conhecimentos construídos na ancestralidade, fortalecendo a
autonomia indígena, evidenciado nas práticas escolares dos alunos/crianças
kaingang. Do mesmo modo, necessitamos fortalecer os professores kaingang com
formação que lhes permita pronunciar a sua própria voz, construindo escolas de
qualidade para seu povo e sua comunidade. Dar passos importantes no uso da
língua materna, valorizar conceitos vindos da tradição e enraizados na oralidade.
Entrelaçar técnicas acadêmicas aos conhecimentos indígenas, inaugurar uma nova
fase de escrita-oralidade, uma escrita indígena que vem do coração, do tempo
espaço passado e presente e que vai dando novos significados para o aprender.

Para que isso ocorra existem muitos desafios, principalmente o de consolidar


uma política pública de educação escolar indígena capaz de atender especificidades
dos povos, como a produção de materiais didáticos específicos, a consolidação de
um currículo escolar diferenciado, um projeto político pedagógico que estruture a
escola de forma a respeitar os processos de aprender, língua originária, espaço
tempo do povo Kaingang e um currículo que represente os conhecimentos e saberes
ancestrais.

O novo papel da escola é construir e desenvolver novas práticas,


fecundadas e florescidas no seio de suas comunidades, redefinindo essa instituição
como escola indígena. É um movimento justificado pela necessidade de
restabelecer o protagonismo e a autodeterminação de cada povo, com a
participação da comunidade no processo de construção da escola e suas práticas,
fortalecendo instituições próprias como espaços importantes para materializar seus
sonhos de bem viver.

Referências

BRITO, Edson Machado de. A Educação Karipuna do Amapá no Contexto da


Educação Escolar Indígena Diferenciada na Aldeia do Espírito Santo. Tese.
(Educação). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012.

LESCANO, Claudemir. Tavyterã reko rokyta: os pilares da educação guarani


kaiowá nos processos próprios de ensino e aprendizagem. Dissertação de Mestrado
(Educação). Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, MS, 2016.

MONTEIRO, John Manuel. NEGROS DA TERRA: Índios e bandeirantes nas origens


de São Paulo. Companhia das letras: 1994.

TAUKANE, Darlene. A história da educação escolar entre os Kuarâ-Bakairi.


Dissertação de Mestrado (Educação). Universidade Federal de Mato Grosso, 1999.

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