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Marxismo Vs Teoria Queer

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Marxismo vs Teoria Queer (parte 1)

Este artigo foi publicado pela primeira vez em


alemão pelos camaradas da seção austríaca da
CMI, Der Funke. Aqui nós fornecemos uma
tradução para o português sobre esta importante
questão da Teoria Queer. Ela é compatível com o
marxismo? Pode haver algo como um “marxismo
queer”? Yola Kipcak, de Viena, responde que “não”
e explica porquê.

Opressão e discriminação são partes integrantes do


atual sistema sob o qual vivemos, que inclui a
perseguição sistemática e a estigmatização de
sexualidades e identidades que não estão em
conformidade com a “norma”. Como marxistas,
lutamos com determinação contra qualquer forma de
sexismo, discriminação e opressão. No entanto,
também temos que olhar seriamente para a questão
de como superar as atuais condições bárbaras e
como garantir a liberdade de expressão de todos os
seres humanos, o que envolve o exame de teorias e
métodos para atingir esses objetivos.
Neste artigo, lidaremos com uma vertente particular
da teoria feminista / gay que alcançou popularidade
principalmente na década de 1990. Desde então
ganhou alguma influência, especialmente nas
universidades, mas também entre alguns setores das
organizações de trabalhadores que adotaram “ideias
queer”. Portanto, examinamos de perto o que está
por trás da chamada Teoria Queer e qual deveria ser
a postura marxista em relação a ela.

O que é Teoria Queer?


A Teoria Queer surgiu principalmente nos Estados
Unidos na década de 1990, em círculos acadêmicos,
particularmente aqueles ocupados com estudos sobre
a temática gay e em conexão com o ativismo gay em
torno da crise do HIV/Aids. Originalmente um
termo depreciativo para homossexuais, “queer” foi
adotado e tornado positivo pelo movimento gay. A
Teoria Queer usa esse termo e lida com o que vêem
como rupturas na conexão entre sexo biológico,
identidade de gênero e desejo sexual – por exemplo,
transgênero, homo-/bissexualidade, fetiches, etc. –
em suma, identidades ou disposições que são vistas
como “divergentes da norma”.
A Teoria Queer centra-se na questão da identidade
individual, em particular identidade sexual, gênero e
orientação sexual. A sexualidade é considerada
crucial para a compreensão de toda a sociedade. A
crítica de literatura queer, Eve Kosofsky Sedgwick,
vai mais longe ao escrever: “A compreensão de
praticamente qualquer aspecto da cultura ocidental
moderna será não apenas incompleta, mas danificada
em sua substância central dependendo do quanto não
incorporar uma análise crítica da definição homo /
heterossexual moderna.” (Eve Kosofsky Sedgwick:
Epistemology of the Closet, p. 1.)

Em suas próprias palavras, a Teoria Queer explora


“como a sexualidade está sendo regulada e como a
sexualidade influencia e estrutura outras áreas
sociais, como políticas de estado e formas culturais.
Sua principal preocupação é despojar a sexualidade
de sua aparente naturalidade e torná-la visível como
um produto cultural inteiramente permeado por
relações de poder.” (Annamarie Jagose: Queer
Theory: Eine Einführung, p. 11. tradução livre para
o inglês.)
No entanto, a Teoria Queer não é uma teoria real
unificada e coerente, pois é deliberadamente mantida
extremamente vaga e “diversa”, e não afirma ter
definições comuns. Isso tem o efeito colateral útil de
silenciar qualquer crítica com o argumento de que
“Eu, pelo menos, vejo isso de uma maneira
completamente diferente” – que Annamarie Jagose,
uma acadêmica feminista que escreveu um livro
introdutório renomado à Teoria Queer, admite.
Sobre o termo “queer”, ela escreve: “Sua imprecisão
protege o queer de críticas, como a acusação de
tendências excludentes de ‘lésbica’ e ‘gay’ como
categorias de identidade.” (Ibidem, p. 100.)

No entanto, seria errado presumir que não há um


terreno comum nas visões dos defensores da Teoria
Queer. A Teoria Queer se baseia em certas
premissas filosóficas que necessariamente levam a
uma certa compreensão do mundo em que vivemos e
se / como podemos mudá-lo.

As principais premissas da Teoria Queer, que


examinaremos mais de perto a seguir, são as
seguintes: nossa identidade (de gênero) nada mais é
do que uma ficção. Portanto, a hetero e
homossexualidade também são uma ficção cultural.
Essa ficção é produzida por discursos e pelo poder
na sociedade. Devemos descobrir como funcionam
esses discursos e parodiá-los (ridicularizá-los,
mostrar suas contradições, “deslocá-los”).

Crise de identidade
Não é por acaso que a Teoria Queer ganhou
popularidade na década de 1990. Duas décadas
antes, por volta do agitado ano de 1968 e depois, o
mundo viu muitos movimentos revolucionários,
como a greve geral de maio de 1968 na França, o
“outono quente” de 1969 na Itália, a primavera de
Praga de 1968 na Tchecoslováquia, o Movimento
dos Direitos Civis em vários países e muitos mais.

Com a nova onda da luta de classes, o movimento


das mulheres também experimentou uma nova
explosão. Sem dúvida, muitos dos grupos radicais,
feministas e gays que surgiram naquela época se
viam como socialistas, ou pelo menos ligados à luta
de classes. Por exemplo, o Grupo de Mulheres
Independentes (AUF), fundado em 1972 na Áustria,
declarou na primeira edição de seu jornal: “O
movimento das mulheres abre caminho para uma
revolução sexual e cultural. No entanto, isso só pode
ser visto em conexão com uma revolução
econômica.” (AUF, Eine Frauenzeitschrift, n. 1,
1974. tradução livre para o inglês.)

No entanto, após as traições desses movimentos


revolucionários e as ondas de greve, a perspectiva de
uma revolução realizada pela classe trabalhadora
começou a ser vista como improvável ou impossível
para muitos ativistas de esquerda desmoralizados.
Sem o elemento de conexão das lutas sociais de
massa que uniram a classe trabalhadora, o final da
década de 1970 viu o movimento de mulheres e gays
mergulhar nas políticas de identidade e se afastar das
aspirações radicais ou revolucionárias em direção a
pequenos círculos locais. Seu ativismo agora estava
centrado na troca de experiências, projetos de
cultura e arte e sobre a administração de realizações
anteriores, como abrigos para mulheres e linhas
diretas de emergência. A institucionalização gradual
do movimento de mulheres em nível estatal – dentro
dos partidos reformistas, por meio da criação de
ministérios da mulher e por meio de cátedras e
bolsas em universidades – levou ao fortalecimento
das ideias pequeno-burguesas dentro do movimento
de mulheres do final dos anos 1970 e 1980 .

A observação de Simone de Beauvoir: “Não se


nasce, mas se torna mulher” é um precedente para a
Teoria Queer – Foto: Kristine, Flickr ***
As teorias feministas que retratam a luta de classes
como secundária à luta cultural contra o patriarcado,
ou que negam a existência da luta de classes como
um todo, ganharam influência. Não se tratava mais
de lutar contra a sociedade de classes e da opressão
das mulheres enraizada nela, mas de lutar contra o
“patriarcado trans-histórico” (ou seja, que
permanece o mesmo em diferentes formas de
sociedade). O sujeito revolucionário não era mais a
classe trabalhadora, mas a mulher oprimida pelo
homem. Partindo dessa premissa, foi lançada uma
abundância de textos e discussões que trataram da
questão da essência do patriarcado e de como a
“mulher”, que se tornara o principal objeto de
análise, poderia ser definida. A ideia de diferenciar
entre sexo biológico e gênero social adquirido
tornou-se proeminente. É expresso na emblemática
observação de Simone de Beauvoir:

“Não se nasce, mas se torna mulher. Nenhum


destino biológico, psíquico ou econômico define a
figura que a mulher humana assume na sociedade; é
a civilização como um todo que elabora esse
produto intermediário entre o homem e o eunuco
que se chama feminino. Apenas a mediação de um
outro pode constituir um indivíduo como um
Outro.” (Simone de Beauvoir: The Second Sex, p.
330.) [título em português, O Segundo Sexo]

Aqui, já vemos as raízes do que mais tarde se


tornarão as ideias centrais da Teoria Queer: 1) a
“mulher” como tal não existe; 2) para se tornar uma,
ela é apenas moldada e criada pela sociedade.

Mas se “mulher” (que não será mais estritamente


definida pela biologia) não existe – quem é esse
sujeito que deve lutar por sua emancipação? A busca
pela verdadeira identidade da mulher, pelo novo
sujeito revolucionário, ocupou os professores e
escritores da época. Em sua busca pela “essência
feminina”, alguns descobriram a queima de bruxas e
viram o xamanismo e a feitiçaria como uma
manifestação oprimida da feminilidade. Outros
viram a “feminilidade” escondida nos domínios da
irracionalidade da emoção ou da poesia; ainda outros
descobriram que apenas lésbicas poderiam realmente
lutar pela emancipação das mulheres já que recusam
relacionamentos heteronormativos com homens, e
assim por diante. Agora, a questão que se colocava
era quem deveria ter o direito de representar as
mulheres? Assim, durante um período de declínio da
luta de classes, as políticas identitárias afundaram
cada vez mais em uma crise.

Esta crise foi ainda mais exacerbada pela dissolução


da União Soviética. Para muitos, a crença de que
uma alternativa ao capitalismo era possível
desapareceu. A alegria maliciosa da burguesia,
proclamando o “fim da história”, foi espelhada em
um clima de depressão que se apoderou da esquerda,
em condições onde as forças do marxismo eram
fracas demais para apresentar uma alternativa
visível.

Foi nesse contexto que as ideias do pós-modernismo


– que rejeita sistemas complexos e processos gerais,
nega a existência da realidade objetiva e, em vez
disso, se baseia em pequenas narrativas subjetivas –
ganharam popularidade. Uma de suas características
comuns é a extraordinária importância que os pós-
modernistas atribuem à linguagem. “Quem disse que
existe uma realidade além da linguagem? A
linguagem é a realidade!”, esse é o lema desses
professores pós-modernos que conquistam cátedras,
cargos universitários e contratos de livro com suas
acrobacias intelectuais. A Teoria Queer, cujas
principais influências incluem o pós-estruturalismo
de Foucault, a psicanálise de Lacan e o
desconstrutivismo de Derrida, está entre essas idéias.

O livro mais conhecido atribuído à Teoria Queer é


Problemas de gênero: Feminismo e a subversão da
identidade (1990), de Judith Butler. Nascida em
1956, professora de filosofia com foco em literatura
comparada, Judith Butler combina com o meio
social típico e a formação teórica da Teoria Queer.
Nas primeiras frases, ela contextualiza seu livro
dentro da crise das políticas identitárias:

“Em sua maior parte, a teoria feminista assumiu


que existe alguma identidade existente, entendida
através da categoria de mulheres, que não apenas
inicia os interesses e objetivos feministas dentro do
discurso, mas constitui o sujeito para o qual a
representação política é buscada. [Porém] Há aqui
muito pouco acordo, afinal, sobre o que constitui, ou
deveria constituir, a categoria de mulheres.” (Judith
Butler: Gender Trouble [no futuro abrevidado como
GT], p. 3-4.) [título em português, Problemas de
gênero: Feminismo e a subversão da identidade]
O ponto focal da Teoria Queer é o indivíduo, o
sujeito que mergulhou em uma crise. Sua identidade
é incerta e contraditória, assim como o mundo em
que vive – ela está presa em uma teia de relações de
poder e opressão. Esses elementos centrais da Teoria
Queer pareciam finalmente dar voz ao que tantas
pessoas sentiam: o estresse permanente de tentar
atender às demandas do sistema. Deve-se ser
trabalhador, produtivo, um homem bom e forte, uma
mãe boa e compreensiva e uma mulher de carreira,
com corpo e mente saudáveis e sempre mirando nas
estrelas. A alienação de si mesmo e a sensação de
estar sozinho em um mundo em que cada expressão
de si mal parece uma caricatura estava finalmente
sendo gritada em voz alta. Colocou-se a questão de
quem pode continuar sendo si mesma, se existe
apenas cunhado e pressionado pela sociedade, como
uma moeda com valor de troca.

Essa psicologia de individualização e de uma vaga


necessidade de resistência na ausência de um
movimento de massa foram elementos importantes
dos anos 1990 e 2000. O que torna a Teoria Queer
atraente para alguns talvez seja o fato de fornecer
uma linguagem que valida o sujeito, que se baseia
no ponto de vista único de si mesmo e que descreve
sua consciência.

A base filosófica da questão de gênero


O principal argumento da Teoria Queer, bem como
de Judith Butler, é que o problema da política de
identidade reside em sua busca por uma “identidade
verdadeira” da mulher. Afinal, cada mulher é única e
diferente e como podemos determinar uma definição
sempre válida de “mulher” que ainda não tenha sido
distorcida e influenciada por preconceitos na
sociedade? Cada representação de “mulher” é,
portanto, incompleta e exclui algumas mulheres.
“Mulher”, diz Butler, não existe – ela nada mais é do
que uma projeção de preconceitos e opiniões sobre o
corpo humano. Não existe mulher antes de ser
transformada em uma pelas estruturas de poder da
sociedade. Porém, como veremos mais adiante, a
Teoria Queer não vê de forma alguma como sua a
tarefa de compreender o que chama de “estruturas de
poder”, muito menos, de quebrá-las.
Aqui, é necessário fazer uma excursão filosófica e
examinar como Butler chega a seu argumento de que
“mulher” (ou melhor, “gêneros”) não existem, e o
que está por trás desse argumento. Porque na história
da filosofia, suas afirmações não são novas, nem
originais. A única diferença é que ela aplica velhos
padrões filosóficos exclusivamente à questão de
gênero. Na verdade, os marxistas responderam
completamente, há mais de 100 anos, aos mesmos
argumentos que estão sendo refeitos hoje pela Teoria
Queer. Em particular, o excelente trabalho de Lenin,
Materialismo e Empiriocriticismo, parece uma
refutação específica da Teoria Queer.

Como ponto de partida para sua argumentação,


Butler toma o Dualismo entre sexo biológico e
gênero social descrito acima, que ela critica. Esse
Dualismo, de fato, representa a relação entre matéria
e ideia. Qual é a origem da “mulher” – é a natureza,
a biologia, o fato de ela poder ter filhos, ou é a
noção cultural de feminilidade – e qual a relação
entre esses dois aspectos?

Por trás dessa questão do sexo biológico e dos


papéis de gênero está a questão de qual fundamento
filosófico sobre o qual construímos nossa visão de
mundo, idealismo ou materialismo – já que a Teoria
Queer vê o mundo, em primeiro lugar, através das
lentes da questão de gênero. Friedrich Engels
descreveu as duas abordagens filosóficas opostas da
seguinte maneira:

“O que é primário, espírito ou natureza – essa


questão, em relação à igreja, foi aguçada nisso:
Deus criou o mundo ou o mundo existe desde
sempre? As respostas que os filósofos deram a essa
questão os dividem em dois grandes campos.
Aqueles que afirmaram a primazia do espírito sobre
a natureza e, portanto, em última instância,
assumiram a criação do mundo de uma forma ou de
outra – e entre os filósofos, Hegel, por exemplo,
essa criação muitas vezes se torna ainda mais
intrincada e impossível do que no Cristianismo –
compreendia o campo do idealismo. Os outros, que
consideravam a natureza como primária, pertencem
às várias escolas do materialismo.” (Friedrich
Engels: Ludwig Feuerbach and the End of Classical
German Philosophy.) [título em português, Ludwig
Feuerbach e o fim da filosofia alemã clássica]
A questão do fundamento filosófico de qualquer
teoria está longe de ser pedante. Dependendo se
consideramos as ideias ou a matéria como
fundamentais para o mundo, a resposta para como
ou se o mundo pode ser fundamentalmente mudado
é diferente. Podemos erradicar a opressão das
mulheres com ideias (ou seja, com a linguagem,
educação) ou por meio de mudanças materiais (com
luta de classes, mudando a forma como
produzimos)?

Em última análise, ninguém pode escapar da escolha


entre idealismo e materialismo. Isso não significa
que muitos filósofos não tenham tentado fazer
exatamente isso. Em seu livro Ludwig Feuerbach e o
fim da filosofia alemã clássica, Engels se refere ao
que ele define como “agnósticos” que se distanciam
dos idealistas e materialistas. Ele está se referindo
àqueles que tentam escapar da questão de se o
pensamento ou a matéria é primário, tratando-os
como duas esferas separadas.

Esse agnosticismo atingiu sua forma mais elevada


com Immanuel Kant (1724-1804), que assumiu que
a realidade material existe (ele a chamou de a coisa
em si), mas que essa realidade não pode ser
verdadeiramente conhecida, porque por padrão nós
iríamos impor nossas categorias preconcebidas ao
mundo e, assim, “interpretá-lo” sem ser capaz de
determinar se nossa interpretação é realmente
precisa. O Dualismo de sexo e gênero é
precisamente esse agnosticismo: o corpo de uma
mulher é uma coisa, os preconceitos culturais sobre
as mulheres, outra coisa completamente diferente. A
relação entre esses dois aspectos torna-se, assim,
misteriosa e desconhecida.

Mas mesmo o gênio Kant não pôde evitar a questão


de saber se o pensamento ou a natureza são
primários. Se os humanos percebem o mundo por
meio de suas categorias e sentidos, de onde vêm
essas categorias com as quais pensamos? O cérebro
humano e a ciência os deduzem da natureza, ou se
originam de um mundo espiritual imaterial, ou seja,
de um Deus? O próprio Kant responde a esta
pergunta com a segunda opção e, embora ele fosse
um gênio cientista e filósofo, ele era ainda assim um
idealista.
Em contraste, o marxismo está do lado do
materialismo: a matéria é primária; nossas idéias são
funções de nosso cérebro, nossos sentidos são a
conexão de nossos corpos (materiais) ao mundo
material, nossa cultura é uma expressão dos
humanos em sua interação com a natureza, da qual
fazem parte.

“A eliminação materialista do ‘dualismo mente e


corpo’ (ou seja, monismo materialista) consiste na
afirmação de que a mente não existe
independentemente do corpo, que a mente é
secundária, uma função do cérebro, um reflexo do
externo mundo. A eliminação idealista do ‘dualismo
mente e corpo’ (ou seja, monismo idealista) consiste
na afirmação de que a mente não é uma função do
corpo, que, conseqüentemente, a mente é primária,
que o ‘ambiente’ e o ‘eu’ existem apenas em uma
conexão inseparável de um e os mesmos ‘complexos
de elementos’. À parte esses dois métodos
diametralmente opostos de eliminar ‘o dualismo
mente e corpo’, não pode haver um terceiro método,
a menos que seja ecletismo, que é um confusão sem
sentido de materialismo e idealismo.” (Lenin:
Materialism and Empirio-criticism, cap. 1, s. 5,
Does Man Think With The Help of the Brain?)
[título em português, Materialismo e
Empiriocriticismo]

Idealismo subjetivo
Em relação à questão do idealismo vs. materialismo,
a Teoria Queer não é neutra. Decididamente, toma
um lado – o lado do idealismo. Butler escreve:

“A antropologia estruturalista de Lévi-Strauss,


incluindo a problemática distinção natureza /
cultura, foi apropriada por algumas teóricas
feministas para apoiar e elucidar a distinção sexo /
gênero: a posição de que há uma fêmea natural ou
biológica que é posteriormente transformada em
uma ‘mulher’ subordinada socialmente, com a
consequência de que ‘sexo’ está para a natureza ou
‘o cru’ como gênero está para a cultura ou ‘o
cozido’.” (GT, p.47.)

Ela quer dissolver esta problemática distinção entre


sexo e gênero, livrar-se do Dualismo,
nomeadamente declarando o sexo biológico como
uma construção cultural.

“Os fatos aparentemente naturais do sexo são


produzidos discursivamente por vários discursos
científicos a serviço de outros interesses políticos e
sociais? Se o caráter imutável do sexo for
contestado, talvez essa construção chamada “sexo”
seja tão culturalmente construída quanto o gênero;
na verdade, talvez já tenha sido sempre o gênero,
com a consequência de que a distinção entre sexo e
gênero acaba por não ser distinção alguma.”
(Ibidem, pp. 10-11.)

Assim, os sexos não são reais – somos simplesmente


levados pelo discurso dominante! Por meio de
repetições regulares e agindo como um determinado
sexo, desempenhamos os sexos que são assim
incorporados. É por isso que nossos corpos humanos
não são masculinos, nem femininos (ou outra coisa),
eles são completamente desconhecidos, algo que não
pode existir independentemente de nossas ideias
sobre eles. Mesmo a ideia de que eles poderiam
existir independentemente de nossa cultura é
inaceitável:
“Qualquer teoria do corpo culturalmente
construído, entretanto, deve questionar ‘o corpo’
como um construto de generalidade suspeita quando
ele é figurado como passivo e anterior ao discurso.”
(Ibidem, p. 164.)

Defendendo Judith Butler, algumas pessoas de


esquerda dizem que ela não nega realmente a
existência dos sexos e insinuar o contrário é um
exagero malicioso de suas ideias. Isso só é verdade
na medida em que ela entende a biologia também
como linguagem, como um atributo cultural. Apesar
de todo o seu estilo de escrita inacessível, ela é
relativamente consistente na defesa de suas visões
idealistas:

“A presunção aqui é que o ‘ser’ de gênero é um


efeito, um objeto de uma investigação genealógica
que mapeia os parâmetros políticos de sua
construção no modo da ontologia. Afirmar que o
gênero é construído não é afirmar sua ilusão ou
artificialidade, onde esses termos são entendidos
como residindo dentro de um binário que contrapõe
o ‘real’ e o ‘autêntico’ como opostos.”

Sua investigação “busca compreender a produção


discursiva da plausibilidade dessa relação binária e
sugerir que certas configurações culturais de gênero
tomam o lugar do ‘real’ e consolidam e aumentam
sua hegemonia por meio dessa autonaturalização
feliz.” (Ibidem, p. 43.)

A Teoria Queer de Judith Butler assume


explicitamente o lado do idealismo filosófico,
reduzindo sexo e gênero a construções culturais –
Foto: Miquel Taverna
Se traduzirmos esta formulação pomposa para um
português compreensível, Butler nos diz que toda
forma de Ser é simplesmente um efeito de
‘discursos’ (linguagem), isto é: a ideia, a palavra, a
linguagem é primária, a matéria um efeito derivado
dela, em última análise, também apenas linguagem.
Isso significa que, para ela, anatomia, biologia e
ciências naturais são todas construções de
linguagem. É por isso que os sexos não são
“artificiais” – porque do ponto de vista dela, não há
nada fora das construções culturais. Pensar a
realidade material como algo que existe
independentemente de nossas ideias significa apenas
ser enganado pelo discurso dominante, que nos diz
que existe um Dualismo entre “matéria” e “cultura”.
Esta opinião dominante (“hegemonia”) nos faz
acreditar que existe um sexo “real” e um gênero
“irreal”. Mas Butler viu através de tudo isso! TUDO
é cultura, tudo é linguagem – tudo é Ideia!

“O ‘real’ e o ‘sexualmente fático’ são construções


fantasmáticas – ilusões de substância – que os
corpos são compelidos a aproximar, mas nunca
conseguem”, diz Butler. “Este fracasso em se tornar
‘real’ e em incorporar ‘o natural’ é, eu
argumentaria, uma falha constitutiva de todas as
representações de gênero pela própria razão de que
esses locais ontológicos são fundamentalmente
inabitáveis.” (Ibidem, p. 186.)

Esse idealismo não é uma peculiaridade de Judith


Butler, com quem tratamos até agora. É um pilar
fundador da Teoria Queer, que é que homens,
mulheres, mas também a orientação sexual são
construtos culturais. Assim, os textos queer
costumam gostar de colocar natureza, biologia, sexo,
homem, mulher, etc. entre aspas para demonstrar
que os autores não caem mais no truque de que o
mundo real existe. Apenas para dar alguns
exemplos:

Annamarie Jagose argumenta: “Ao apontar a


impossibilidade de uma sexualidade ‘natural’, queer
questiona categorias aparentemente estáveis como
‘homem’ e ‘mulher’” (Annamarie Jagose: Queer
Theory, p. 15.)
David Halperin: “Ser socializado em uma cultura
sexual significa exatamente isso: as convenções
deste sistema ganham o status de uma verdade
interior autorrealizável da ‘natureza’” (Apud Jagose,
p. 31, tradução livre para o inglês.)

Gayle S. Rubin: “Minha posição sobre a relação


entre biologia e sexualidade é um ‘Kantianismo sem
libido transcendental’.” [leia-se: um Kant que não
ultrapassa [‘transcende’] o reino da experiência
imediata até o corpo real, logo, um Dualismo que
elimina a matéria = puro idealismo] (Gayle S.
Rubin: Thinking Sex, p. 149.)

Chris Weedon escreve sobre sua base filosófica que


“a linguagem, longe de refletir uma dada realidade
social, constitui a realidade social. Nem a realidade
social nem o mundo ‘natural’ têm significados fixos
e inerentes que estão sendo refletidos ou expressos
por meio da linguagem.” […] “A linguagem não é
… expressão e nomenclatura do mundo ‘real’. Não
há significado além da linguagem.” (Chris Weedon:
Feminist Practice and Poststructuralist Theory, p.
36,59, tradução livre para o inglês.)
Nancy Fraser, professora e feminista com afinidade
com a Teoria Queer, não tem tanta certeza sobre sua
própria filosofia e, portanto, vacila entre o Dualismo
Kantiano e o idealismo puro. Ela primeiro defende
“um dualismo quase-weberiano” apenas para nos
assegurar mais tarde que “A distinção econômica /
cultural, não a distinção material / cultural, é o
verdadeiro pomo de discórdia entre Butler e eu.”
(Nancy Fraser: Heterosexism, Misrecognition, and
Capitalism, p.286.)

E, por fim, Michel Foucault, o filósofo pós-moderno


e “pai da Teoria Queer”: “O segredo [do sexo] não
reside naquela realidade básica em relação à qual se
situam todos os incitamentos para falar de sexo … É
[…] uma fábula indispensável à economia em
proliferação incessante do discurso sobre o sexo”
(Michel Foucault: The History of Sexuality, p. 35.)
[título em português, A História da Sexualidade]

Resumindo: a Teoria Queer tem uma base filosófica


idealista, que afirma que tanto o sexo quanto o
gênero são construções culturais que são
continuamente “performadas”.

Como afirmamos anteriormente, esses jogos


intelectuais não são originais de forma alguma. Em
Materialismo e Empiriocriticismo, Lenin mostra isso
fazendo referência a uma série de filósofos idealistas
conhecidos. Ele parafraseia o bispo George Berkeley
do século XVII:

“O mundo prova ser não minha ideia, mas o


produto de uma única causa espiritual suprema que
cria tanto as‘ leis da natureza ’quanto as leis que
distinguem ideias ‘mais reais’ das menos reais, e
assim por diante.” (Lenin: Materialism and
Empirio-criticism, p. 32.)

Ou consideremos Johann Gottlieb Fichte (1762-


1814):

“Tome cuidado, portanto, para não pular para fora


de si mesmo e apreender qualquer coisa além do
que você é capaz de apreender, como a consciência
e a coisa, como a coisa e a consciência; ou, mais
precisamente, nem um nem outro, mas o que só
posteriormente se resolve nos dois, que é o
subjetivo-objetivo absoluto e o objetivo-subjetivo.”
(Citado em Lenin: Materialism and Empirio-
criticism, p. 68.)

Aqui, Bogdanov (1873-1928, um revolucionário


russo que foi influenciado por ideias idealistas)
afirma:

“O caráter objetivo do mundo físico consiste no fato


de ele existir não para mim pessoalmente, mas para
todos e ter um significado definido para todos, o
mesmo, estou convencido, quanto a mim … Em
geral, o mundo físico é socialmente coordenado,
socialmente harmonizado, em uma palavra,
experiência socialmente organizada.” (Citado em
Lenin: Materialism and Empirio-criticism, p. 124.)

Lenin comentou secamente: “Isto é tudo uma e a


mesma proposição, o mesmo lixo de sempre com
uma tabuleta ligeiramente remodelada ou repintada.”
(Ibidem, p. 69.)
E ele também aponta quais são as consequências
dessa visão filosófica. Porque se os pensamentos e a
realidade são realmente a mesma coisa e apenas
construídos por humanos, não podemos distinguir
entre ideias corretas (que aumentam nossa
compreensão do mundo real) e ideias erradas (que
descrevem o mundo de forma distorcida e incorreta)
– é impossível dizer o que nos ajuda a compreender
e mudar o mundo, e o que é fantasia, um absurdo
total: a religião é tão verdadeira quanto a física, o
monstro do espaguete voador tão real quanto a
gravidade.

“Se a verdade é apenas uma forma de organização


da experiência humana, então os ensinamentos,
digamos, do catolicismo também são verdadeiros.
Pois não há a menor dúvida de que o catolicismo é
uma ‘forma de organização da experiência
humana’.” (Ibidem, p. 124.)

Como outra consequência, isso também significa


que não podemos questionar a realidade subjetiva de
ninguém, que todos têm razão para si mesmos (no
reino da “realidade discursiva”). Quem pode provar
que as mulheres não são inferiores aos homens? Por
que não deveria ser verdade que a pobreza é o
resultado da preguiça e do fracasso pessoal? Por que,
durante a luta dos trabalhadores, um fura-greve não
está certo à sua maneira? O fato de que o idealismo
subjetivo trata qualquer opinião como tão válida
quanto qualquer outra mostra o papel reacionário
que desempenha em sua conclusão prática.

A afirmação da Teoria Queer e do idealismo


subjetivo de que todo o mundo é uma construção
cultural contradiz nossa experiência diária, que é a
de que os sexos são reais – como a reprodução
sexual prova diariamente – e, além disso, que o
mundo físico segue seus negócios diários
independentemente de nossa linguagem. No entanto,
para alguns, a Teoria Queer é vista como uma
ferramenta útil para perceber o mundo.

https://www.marxismo.org.br/marxismo-vs-teoria-
queer-parte-1/
***

Marxismo vs Teoria Queer (parte 2)

Sociedade de classes, opressão e cultura

A Teoria Queer chama a atenção para um aspecto do


gênero que não pode ser explicado por uma
definição biológica rígida: em nossa sociedade,
somos forçados e socializados com papéis de
gênero. Não há explicação biológica para o motivo
pelo qual rosa deveria ser feminino e azul,
masculino; por que as meninas devem brincar com
bonecas enquanto os meninos brincam com Lego; e
assim por diante. Desde muito jovens, somos
informados de que mulheres são emocionais e
irracionais, que são piores matemáticas e não devem
mexer com política, e assim por diante. Tudo isso
mostra que os gêneros cumprem mais do que apenas
funções biológicas e que estão profundamente
inseridos na cultura da nossa sociedade.

No entanto, a cultura em si não é um fenômeno


arbitrário e acidental – ela emerge da base material
de uma sociedade e da interação do homem com a
natureza: “No processo de adaptação à natureza, na
luta com suas forças hostis, a sociedade humana se
desenvolve em uma organização de classe complexa.
É a estrutura de classes da sociedade que mais
decisivamente determina o conteúdo e a forma da
história humana, ou seja, suas relações materiais e
seus reflexos ideológicos. Ao dizer isso, também
estamos dizendo que a cultura histórica tem um
caráter de classe.” (Leon Trotsky: Culture and
Socialism.) [título em português, Cultura e
Socialismo]

Na maior parte de nossa existência, os humanos não


viveram em sociedades de classes. Isso porque a
existência de sociedades de classes requer um
produto excedente, algo que uma classe possa
enriquecer às custas de outra. Nas sociedades em
que este não era o caso (Engels se referia a elas
como “comunismo primitivo”), também não havia
opressão feminina. No entanto, havia uma certa
divisão do trabalho entre os sexos (devido à gravidez
e ao nascimento), embora muito provavelmente essa
divisão não fosse absoluta e rígida.

Essa divisão do trabalho, no entanto, não significava


que as mulheres fossem consideradas inferiores aos
homens – pelo contrário. Como aquelas que
garantem a reprodução de nossa espécie, eram tidas
em alta conta. Somente quando os humanos, em sua
luta com a natureza, encontraram maneiras de criar
um produto excedente, o que por sua vez levou ao
surgimento da propriedade privada, a divisão do
trabalho levou à opressão das mulheres. Nas
palavras de Engels, essa foi a base para “a derrota
histórica mundial do sexo feminino” – ou seja, um
evento histórico, não “biológico”. Isso significa que,
embora a opressão das mulheres em última instância
tenha um fundamento biológico, não é uma lei
natural férrea. A opressão das mulheres, ao longo de
milhares de anos, criou raízes profundas em nossa
sociedade e pode assumir muitas formas que não são
estritamente derivadas do fato de que as mulheres
podem ter filhos e, por sua vez, foram adaptadas ao
respectivo sistema dominante.

A opressão está enraizada na sociedade de classes e


se expressa de maneira diferente em circunstâncias
históricas concretas. Os papéis de gênero, bem como
nossas relações com a sexualidade, mudaram muitas
vezes no curso da história humana; e eles mudam de
acordo com as condições prevalecentes. Exemplos
são a pederastia na Grécia Antiga, em oposição à
homossexualidade de hoje, ou a definição de
terceiros gêneros em algumas culturas, como os
Muxes do povo Zapoteca. Mas também mulheres e
homens receberam atributos diferentes ao longo do
tempo, só precisamos comparar os ideais femininos
de beleza durante a Renascença com as
supermodelos de hoje.
A opressão das mulheres sob o capitalismo depende
de papéis de gênero para manter intacta a unidade
econômica da “família”, com todas as tarefas
alocadas dentro dela, como um pilar importante do
capitalismo. Dentro da família, são principalmente
as mulheres que têm a função de fazer o trabalho
doméstico, educar os filhos e cuidar dos idosos. A
imagem da mulher como provedor de apoio
emocional e maternidade é alimentada. No mercado
de trabalho, em geral, as mulheres ganham menos e,
se houver excesso de mão de obra, as mulheres são
as primeiras a serem demitidas. Embora os casais
homossexuais estejam sendo reconhecidos em um
número crescente de países, isso anda de mãos dadas
com sua subordinação ao papel da família, incluindo
todas as suas responsabilidades. Os papéis de
gênero, portanto, não são puramente fantasias
culturais derivadas do mundo das idéias, mas brotam
da base material da sociedade de classes – que se
baseia na exploração e opressão – bem como em
fatores biológicos.

A opressão, que também faz parte da sociedade de


classes capitalista, penetra profundamente em nossas
vidas e inclui a degradação das mulheres a objetos
sexuais e sua submissão à violência doméstica. Há
uma pressão muito real para se mover na sociedade
como homens ou mulheres heterossexuais. A
violência e a discriminação contra gays e pessoas
transgênero são crescentes, apesar das inúmeras
campanhas liberais pelos direitos LGBT. A luta de
uma pessoa transgênero que opta por fazer terapia
hormonal ou uma mudança de sexo dura anos e, em
muitos casos, não pode ser paga. A discriminação na
habitação, no local de trabalho e mesmo quando
simplesmente se desloca em espaços públicos,
continua a existir.

Todos esses aspectos de discriminação e opressão


claramente criam uma raiva enorme e o desejo de
escapar desse pesadelo. Compreender a origem da
opressão das mulheres e o que está por trás da
discriminação contra as chamadas sexualidades
“desviantes” é crucial se quisermos encontrar uma
maneira de acabar com isso. Na ausência de uma
compreensão das raízes materiais da opressão das
mulheres, discriminação da sexualidade e papéis de
gênero, as ideias como a Teoria Queer (que coloca
todo o seu foco na cultura, educação e opinião
pública) inevitavelmente ganham popularidade.
Observando a mutabilidade dos papéis de gênero ao
longo do tempo, torna-se tentador tirar a conclusão
de que não existem sexos biológicos “reais” por trás
desses aspectos culturais.

Materialismo, ciência e sexo

A ideia de que os sexos são construídos é reforçada


pelo fato de que a ciência sob o capitalismo não está
livre dos interesses da classe dominante. Portanto, a
ciência também não assume uma postura neutra na
questão de sexo / gênero. Não esqueçamos que a
Organização Mundial da Saúde classificou a
homossexualidade como uma doença até o ano de
1992.

A compreensão científica comum e natural do sexo é


distintamente abstrata e rígida (em seu Anti-
Dühring, Engels chama esse tipo de pensamento de
“modo metafísico de pensamento”). Se definirmos
sexo apenas com base nos cromossomos XX
(feminino) e XY (masculino), alguém pode
corretamente apontar que existem pessoas com
cromossomos XX ou XY distintos, mas com níveis
hormonais atípicos, como é mostrado no tratamento
escandaloso dado à atleta Caster Semenya, que está
lutando uma batalha contínua contra ser forçada a
tomar comprimidos de hormônios devido à sua
vantagem “injusta” de testosterona. Se definirmos as
mulheres apenas devido à sua capacidade de gerar
filhos, então as mulheres inférteis não são mulheres
reais? Se os sexos existem para garantir a
reprodução sexual, por que existe a
homossexualidade? E como podemos entender as
mulheres transgênero que têm órgãos reprodutivos
masculinos, mas se identificam como mulheres?
Essa “área cinzenta”, as deficiências de um
materialismo metafísico e mecânico, é onde a Teoria
Queer entra no debate.

No entanto, esse problema de definições absolutas e


rígidas das coisas não se coloca apenas em relação
aos sexos. As mesmas perguntas podem ser feitas
em relação a cada termo que usamos. Tomemos o
termo “casa”, por exemplo. Uma casa é um edifício
que fornece um telhado sobre a cabeça, no qual se
pode entrar e morar. Mas uma casa sem telhado não
é mais uma casa? Quantos buracos um telhado deve
ter antes de deixar de ser um telhado? Em que ponto
uma casa em processo de deterioração se torna uma
ruína – e em que ponto uma casa se torna um
castelo?

Aqui podemos ver que o materialismo metafísico,


com sua rigidez e sua pretensão de imutabilidade,
leva necessariamente a contradições, às quais a
Teoria Queer se apega. Normalmente ninguém
pensaria em negar a existência de casas – afinal,
temos cidades inteiras cheias delas. Mas de acordo
com a lógica da Teoria Queer, a resposta seria que
não existem casas, uma vez que não existe uma
definição perfeita de casas que cubra cada caso com
precisão. As casas são simplesmente construções
culturais, que são “inscritas” em objetos aleatórios.

O modo de pensamento metafísico que domina as


ciências naturais e o sistema educacional não pode
explicar a relação entre o indivíduo e o universal. A
dialética marxista, no entanto, vê uma conexão
necessária entre o indivíduo (ou seja, um homem
infértil) e o universal (existem homens). O universal
só existe por meio de sua expressão concreta – não
há uma casa “eterna e completa” no mundo das
ideias, mas apenas todas as casas reais neste mundo.
Lenin descreve isso da seguinte maneira:

“Vamos começar com o que é mais simples, mais


ordinário, comum, etc., com qualquer proposição:
as folhas de uma árvore são verdes; John é um
homem; Fido é um cão, etc. Aqui já temos a
dialética (como o gênio de Hegel reconheceu): o
indivíduo é o universal [“porque naturalmente não
se pode ser da opinião de que possa haver uma casa
(uma casa em geral), exceto todos as casas
visíveis”]. Consequentemente, os opostos (o
indivíduo se opõe ao universal) são idênticos: o
indivíduo só existe na conexão que leva ao
universal. O universal só existe no indivíduo e
através do indivíduo. Cada indivíduo é (de uma
forma ou de outra) um universal. Cada universal é
(um fragmento, ou um aspecto, ou a essência de) um
indivíduo. Cada universal abrange apenas
aproximadamente todos os objetos individuais.
Cada indivíduo entra incompletamente no universal,
etc., etc… pois quando dizemos: John é um homem,
Fido é um cachorro, esta é uma folha de uma
árvore, etc., desprezamos uma série de atributos
como contingentes; separamos a essência da
aparência e contrapomos uma à outra.” (Lenin: On
the Question of Dialectics, p. 353.) [título em
português, Sobre a Questão da Dialética]

A busca por uma definição imutável e absoluta é


sem esperança, pois o mundo em que vivemos está
em constante mudança. Nossas análises e termos são
uma aproximação da realidade, eles descrevem
certos aspectos da realidade objetiva. Um
materialismo rígido e abstrato (ou “metafísico”), por
outro lado, tenta forçar nossas definições ao mundo,
não importa o que aconteça, e exige que ele as
cumpra. A Teoria Queer, no entanto, pega as
definições rígidas e imutáveis do materialismo
mecânico, valora e argumenta que o próprio mundo
material é rígido e imutável – e assim joga fora todo
o mundo material, incluindo os sexos, declarando-os
inválidos.

Ao criticar uma filosofia crua, a Teoria Queer vai ao


outro extremo e adota sua imagem refletida.
Nenhum fenômeno coincide diretamente com as
categorias gerais pelas quais os conhecemos.
Nenhum homem ou mulher se encaixa perfeitamente
na categoria universal pela qual os conhecemos. No
entanto, existem homens e mulheres. A natureza se
expressa em padrões que nós, como humanos,
podemos aprender a reconhecer. Nossas ideias de
um homem ou mulher, despojadas de todos os
atributos acidentais e não essenciais, são cruciais
para nossa compreensão de qualquer homem ou
mulher individualmente. Os teóricos queer, como
seus irmãos pós-modernos, entretanto, negam a
existência de qualquer forma de categoria ou
padrões na natureza. Em vez de compreender a
relação dialética entre o individual e o universal, eles
renunciam ao universal e elevam o individual e o
acidental ao nível de princípio.

Portanto, em vez de explorar a relação entre a base


material (biologia, mas também a reprodução social
dos humanos em uma sociedade de classes
opressora) e a cultura, declara que a matéria não
existe. Assim, absolutiza um aspecto da realidade e
degenera em uma “teoria” que não pode explicar de
onde vêm os papéis de gênero e a opressão e como
podemos superá-los – em suma, no idealismo
subjetivo. Lenin descreveu esta absolutização de
uma verdade parcial vividamente:
“O idealismo filosófico é apenas um absurdo do
ponto de vista do materialismo bruto, simples e
metafísico. Do ponto de vista do materialismo
dialético, por outro lado, o idealismo filosófico é um
desenvolvimento unilateral e exagerado (inflação,
distensão) de uma das características, aspectos,
facetas do conhecimento em algo absoluto,
divorciado da matéria, da natureza, apoteosado.
Idealismo é obscurantismo clerical. Verdade. Mas o
idealismo filosófico é … um caminho para o
obscurantismo clerical através de uma das
tonalidades do conhecimento infinitamente
complexo (dialético) do homem. O conhecimento
humano não é (ou não segue) uma linha reta, mas
uma curva, que se aproxima infinitamente de uma
série de círculos, uma espiral. Qualquer fragmento,
segmento ou seção desta curva pode ser
transformado (transformado unilateralmente) em
uma linha reta completa e independente, que então
… leva ao atoleiro, ao obscurantismo clerical (onde
é ancorado pelos interesses de classe das classes
dominantes). Retilinearidade e unilateralidade,
rigidez e petrificação, subjetivismo e cegueira
subjetiva – voilà as raízes epistemológicas do
idealismo. (O idealismo filosófico) é uma flor estéril,
sem dúvida, mas uma flor estéril que cresce na
árvore viva do vivo, fértil, genuíno, poderoso,
onipotente, objetivo e absoluto conhecimento
humano.” (Ibidem, p. 361.)

Ao afirmar que os sexos e o desejo sexual são


construídos, a Teoria Queer se enreda em
contradições. Porque a próxima questão lógica é:
porque exatamente masculino e feminino se
cristalizaram nas categorias por meio das quais os
humanos foram separados e oprimidos. Nesse ponto,
ele divaga em especulações psicanalíticas e
antropológicas, segundo as quais a “Lei” do tabu do
incesto; linguagem; o complexo de Édipo e a inveja
do pênis; e a influência persistente do intercâmbio
de mulheres em sociedades históricas, gêneros
criados e “heterossexualidade compulsória”.1 Como
a heterossexualidade e a homossexualidade podem
existir no reino animal, que não conhece a
linguagem, e como sociedades sem o tabu do incesto
conseguiram reproduzir são apenas dois dos muitos
enigmas nesta linha de argumento. Confrontada com
a realidade, a Teoria Queer é incapaz de explicá-la e
bate contra a parede. Em resposta à pergunta “por
que exatamente homens e mulheres?”, Butler
finalmente escreve:
“Já consideramos o tabu do incesto e o tabu
anterior contra a homossexualidade como os
momentos geradores da identidade de gênero, as
proibições que produzem identidade ao longo das
grades culturalmente inteligíveis de uma
heterossexualidade idealizada e compulsória. Essa
produção disciplinar de gênero efetua uma falsa
estabilização de gênero no interesse da construção
heterossexual e da regulação da sexualidade no
domínio reprodutivo.” (GT, p. 172, ênfase da
autora.)

E depois de todos os livros e textos que nos


explicaram em linguagem opaca que os sexos são
fictícios e uma construção cultural, de forma
vergonhosa e bem escondida, a natureza se
espremeu de volta: é a reprodução sexual que
determina os gêneros.

Os marxistas reconhecem que existem sexos e que


esses sexos possibilitam a reprodução dos humanos.
No geral, a maioria dos humanos pode ser designada
ao sexo feminino ou masculino. Na dialética, existe
o que se chama de “salto qualitativo”, um ponto em
que a mudança gradual e quantitativa se transforma
em nova qualidade. (Um exemplo frequentemente
usado é a água fervente que, após um aumento
“quantitativo” de calor, se transforma em vapor).
Também, com os humanos, há uma série de fatores
que, somados, nos permitem afirmar claramente que
uma pessoa é homem ou mulher.

No entanto, isso não significa que existam apenas


homens e mulheres. Também existe a
intersexualidade. E também existem pessoas
transgênero que têm uma identidade de gênero que
não combina com seus órgãos reprodutivos, e
pessoas não binárias que não são masculinas nem
femininas. Seria absurdo acusá-los de ter uma
“consciência errada” porque sua identidade não
combina com seus órgãos reprodutivos. A identidade
de uma pessoa é uma coisa muito complexa
composta de uma combinação de fatores biológicos,
psicológicos e sociais – que, em última análise,
podem ser explicados materialmente. Mas o fato de
que nossa consciência, o cérebro humano, ainda não
foi totalmente explorado cientificamente para
determinar em que medida quais fatores criam nossa
identidade de gênero, não nos dá nenhuma razão
para declará-los como puramente uma “ficção
cultural” que não está ligada a nosso corpo.

Pelo contrário, esta representação da identidade


como construção cultural dificulta os problemas
reais de muitas pessoas trans em sua luta para obter
acesso à cirurgia de redesignação sexual ou terapia
hormonal. Demandas bastante práticas, como o
direito ao aborto para as mulheres, produtos de
higiene gratuitos ou medicamentos específicos para
cada gênero (ginecologia), também não podem ser
contestadas.

O poderoso discurso do poder

Se assumirmos, como faz a Teoria Queer, que sexos


e sexualidade são construções culturais, temos que
perguntar: como essa construção surgiu e por quê?

Judith Butler zomba de Friedrich Engels e das


“feministas socialistas” quando tentam “localizar
momentos de estruturas na história da cultura que
estabelecem a hierarquia de gênero”. A própria
Butler acredita que as sociedades do passado em que
não havia opressão feminina são “fabricações
autojustificativas.” (GT, p. 46.)

O fato de ter sido provado que tais sociedades


realmente existiram só mostra sua ignorância em
relação à realidade e sua rejeição da história.

Embora a explicação marxista seja muito


“simplificadora” aos olhos da Teoria Queer, ela
apresenta outras explicações para a “construção” da
opressão na sociedade, que supostamente decorre
das relações e estruturas de poder complexas,
multifacetadas e com múltiplas camadas existentes
na sociedade.

O conceito de poder que a Teoria Queer defende é


emprestado do filósofo francês Michel Foucault
(1926-1984), que nos círculos acadêmicos às vezes é
visto como um sucessor ou “intensificador” do que
eles chamam de “marxismo ortodoxo”. Como aluno
de Louis Althusser, moveu-se durante algum tempo
na órbita do Partido Comunista Francês (PCF) e foi
membro (inativo) de 1951-1952, sem nunca ter
estudado marxismo (como ele próprio admite).2

A noção de “poder” de Michel Foucault é um


princípio central da Teoria Queer – Foto: Thierry
Ehrmann, Flickr

Durante os eventos revolucionários de maio de 68,


Foucault estava ensinando em uma universidade na
Tunísia quando protestos estudantis maciços
estavam ocorrendo. Ele via como sua tarefa ensinar
“algo novo” aos alunos que, em suas palavras, eram
fortemente influenciados pelo marxismo.
A traição histórica da greve geral e do movimento de
massas na França pela direção do PCF e o fracasso
da revolução, ele considera como sendo culpa de um
“hipermarxismo” no país naquela época. Ele
classifica esse período de intensa luta de classes
como um jogo de linguagem, uma busca por
vocabulário:

“Pensando naquele período, eu diria que o que


estava para acontecer definitivamente não tinha
uma teoria própria, um vocabulário próprio …
Quero dizer, refletir sobre o stalinismo, a política da
URSS, ou a oscilação do PCF em termos críticos,
enquanto se evitava a linguagem da direita, era uma
operação complexa que criava dificuldades.”
(Michel Foucault: Remarks on Marx, p. 110-111.)

Apesar de seu papel contraproducente no


movimento real e apesar do fato de Foucault
desenvolver suas visões conscientemente contra o
marxismo, existe essa ideia entre os círculos
universitários de que ele tinha afinidade com o
marxismo e que suas ideias são progressistas e um
bom ponto de conexão para a resistência.
Para a Teoria Queer, seu trabalho mais influente foi
A História da Sexualidade (1976), no qual ele tenta
traçar a história do discurso da sexualidade na
história moderna e em que sua compreensão do
poder desempenha um papel central. Segundo
Foucault (e a Teoria Queer), o poder permeia todas
as esferas da vida e se expressa em pares de opostos:
velho-jovem, homem-mulher, homo-hetero, etc. Isso
é frequentemente descrito como a obsessão ocidental
com a binaridade (pares de opostos), que foi
“inventado” pela filosofia ocidental.

O “poder”, segundo esse conceito, tem interesse em


manter um judiciário injusto, o discurso médico-
científico do homem e da mulher, a religião, bem
como sistemas educacionais repressivos. Forma
interesses de classe dos governantes, a vontade
masculina de opressão patriarcal, bem como a
repressão estatal. Também criou normas e proibições
relativas às práticas sexuais.

“O poder jurídico deve ser reconcebido como uma


construção produzida por um poder gerador que, por
sua vez, oculta o mecanismo de sua própria
produção”, diz Butler. (GT, p. 121.) Então: o poder
produz poder e então esconde o fato de que foi
produzido pelo poder.

Mas o poder é ainda mais poderoso: não só produz


opressão, mas também resistência. Opressão e
resistência são apenas mais um par binário de
opostos, assim como “velho-jovem” ou “homem-
mulher”, construídos pelo discurso. O poder produz
o discurso da rebelião, a ficção de que algo pode ser
feito contra os opressores, a ilusão de que poderia
haver um mundo sem poder. Partindo dessa lógica,
Foucault chega a “analisar” o fim das monarquias
absolutas por meio das revoluções burguesas como
resultado de um discurso de poder sobre a justiça:

“Essas grandes formas de poder funcionavam como


um princípio de direito […] tal era a linguagem do
poder, a representação que ele se dava … Nas
sociedades ocidentais desde a Idade Média, o
exercício do poder sempre foi formulado em termos
da lei. Uma tradição que remonta ao século XVIII
ou XIX nos habituou a colocar o poder monárquico
absoluto do lado do ilícito.” (Michel Foucault: The
History of Sexuality, p. 87.)

Quão ridícula e simplificadora é a análise


materialista e marxista de que o surgimento de um
modo de produção capitalista derrubou a velha
ordem feudal! Não, foi a “tradição” que nos levou a
repentinamente acreditar que a monarquia era injusta
e derrubá-la! Isso é resultado de uma teoria que vê a
história como uma construção de discursos.

Dentro desse ciclo de poder autorreferencial,


entretanto, nenhum dos textos Queer nos fornece
uma explicação coerente do que o poder realmente é.
Na primeira frase de suas palestras sobre o poder,
Foucault afirma: “A análise dos mecanismos de
poder não é uma teoria geral do que constitui o
poder.” (Michel Foucault: Vorlesung zur Analyze
der Macht-Mechanismen, p. 1, tradução livre para o
inglês.)

Para dar ao leitor uma ideia de como Foucault tenta


apreender o Poder, passaremos a palavra ao próprio
autor e pedimos desculpas pela longa citação:
“Parece-me que o poder deve ser entendido em
primeiro lugar como a multiplicidade de relações de
força imanentes à esfera em que operam e que
constituem sua própria organização; como o
processo que, por meio de lutas e confrontos
incessantes, as transforma, fortalece ou reverte;
como o suporte que essas relações de força
encontram umas nas outras, formando assim uma
cadeia ou um sistema, ou, ao contrário, as
disjunções e contradições que as isolam; e, por fim,
como as estratégias de efetivação, cujo desenho
geral ou cristalização institucional se consubstancia
no aparato estatal, na formulação da lei, nas
diversas hegemonias sociais. A condição de
possibilidade do poder … não deve ser buscada na
existência primária de um ponto central, em uma
fonte única de soberania … é o substrato móvel das
relações de força que, em virtude de sua
desigualdade, geram constantemente estados de
poder, mas os últimos são sempre locais e instáveis.
A onipresença do poder: … porque se produz de um
momento a outro, em todos os pontos, ou melhor, em
todas as relações de um ponto a outro. O poder está
em toda parte; não porque abrange tudo, mas
porque vem de todos os lugares. … O poder não é
uma instituição e não é uma estrutura; nem é uma
certa força de que somos dotados; é o nome que se
atribui a uma situação estratégica complexa em uma
sociedade particular.” (Michel Foucault: The
History of Sexuality, p. 92-93.)

Amém!

Não é surpreendente que Foucault tenha escrito A


História da Sexualidade sob os efeitos de uma
viagem de LSD. Engels uma vez escreveu que os
cientistas, sempre que não conseguem entender um
fenômeno, tendem a inventar uma nova “força” para
servir de explicação:

“A fim de nos salvarmos de ter que dar a causa real


de uma mudança provocada por uma função de
nosso organismo, fabricamos uma causa fictícia,
uma assim chamada força correspondente à
mudança. Em seguida, transportamos este método
conveniente também para o mundo externo e, assim,
inventamos tantas forças quanto existem diversos
fenômenos.” (Friedrich Engels: Dialectics of
Nature, cap. 3.)
Esta é uma descrição muito adequada do que são
“relações de poder” e “relações de força” para
Foucault e a Teoria Queer. O poder é a entidade que
tudo abrange, quase divina, que descreve tudo, que
em um momento cria discursos e no próximo é ela
mesma um produto do discurso. É o espírito que
permeia tudo, do qual ninguém escapa e que nos une
para sempre – afinal, também somos criações do
poder! O absurdo dessa fantasia de poder mostra
como o idealismo, por mais moderno que pareça, em
última instância sempre leva ao obscurantismo
religioso, como disse Lênin. E por último: algo que é
tudo, um Ser livre de contradições e resistências que
sempre existiu, no fundo é apenas… nada.

A Teoria Queer vai mais longe na questão dos


opostos “binários”, que ela vê como um problema
fundamental a ser tratado. Mas binários (ou opostos,
como os marxistas os chamam) são partes
intrínsecas da natureza. O filósofo grego Heráclito
escreveu certa vez que “há harmonia na luta, como o
arco e a lira”. Quente e frio, atração e repulsão; norte
e sul, correntes positivas e negativas, assim como
macho e fêmea, são todos exemplos da
interpenetração e unidade dos opostos, que é a base
de toda mudança na natureza, e a mudança é o modo
de existência da natureza. Desejar o sexo masculino
e feminino é como desejar o pólo sul, ou o ar frio.
Ironicamente, os próprios teóricos queer parecem
esquecer que desejar os binários é em si um “oposto
binário” do estado binário de coisas existente.

Resistir é inútil!

Se permanecermos no habitat natural da Teoria


Queer, o mundo dos trabalhos acadêmicos, esse
debate parece uma emoção intelectual em que se
passa citações filosóficas de um lado para outro. No
entanto, como escrevemos no início, as premissas
filosóficas também levam a certas conclusões
práticas.

A onipresença do poder na Teoria Queer significa


que nunca podemos escapar dele, que toda
resistência é apenas uma expressão do próprio poder
e, em última análise, serve à estabilidade. Daí a
citação relativamente conhecida de Foucault de que
a resistência “nunca está em uma posição de
exterioridade em relação ao poder” e que, portanto,
só existem resistências “possíveis, necessárias,
improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias,
combinadas, desenfreadas ou violentas … rápidas
em se conciliarem, interessadas ou sacrificiais.”
(Michel Foucault: The History of Sexuality, p. 95-
6.)

“As recentes percepções e práticas em torno do


“queer” questionam a crença na possibilidade de
mudança social a longo prazo ou emancipação em
geral” (Annamarie Jagose: Queer Theory, p. 61.)

Esse pessimismo absoluto em relação aos


movimentos sociais, a crença de que qualquer
resistência está automaticamente condenada, mostra
quão pouco esses filósofos entenderam dos
movimentos revolucionários das décadas de 1960 e
1970 e as razões de seu fracasso. Eles refletem a
desesperança do impasse feminista, da pequena
burguesia que não confia na classe trabalhadora (se é
que eles acreditam que ela existe). Em vez de
compreender e criticar o papel da liderança das
organizações de massa, eles procuram novas formas
de “resistência” sem uma ideia clara contra quem ou
o que essa resistência deve ser dirigida e quais
métodos devem ser usados. A possibilidade de uma
derrubada do sistema governante parece inviável e
impossível.

Como consequência, a Teoria Queer sugere uma


prática que faz até o reformismo mais brando
parecer radical. Ele recua completamente no campo
da cultura e da linguagem. Deveria haver novos
“termos” para identidade, uma “nova gramática”
desenvolvida ou uma “nova ética” elaborada (Gayle
Rubins). Por exemplo, a fim de “expor” a ilusão dos
sexos, Butler sugere parodiar as identidades de
gênero por meio de “práticas culturais de drag,
travesti e estilização sexual de identidades butch /
femme.” (GT, p. 137.) Essa é a única sugestão
prática em todo o livro Problemas de gênero! E
Nancy Fraser, aliviada, explica:

“A boa notícia é que não precisamos derrubar o


capitalismo para remediar [a desvantagem
econômica dos gays] – embora possamos precisar
derrubá-lo por outros motivos. A má notícia é que
precisamos transformar a ordem de status existente
e reestruturar as relações de reconhecimento.”
(Nancy Fraser: Heterosexism, Misrecognition, and
Capitalism, p. 285.)

Leia: precisamos melhorar a imagem da


homossexualidade. Aqui, Fraser, que é
comparativamente mais inclinada para a prática,
exibe abertamente seu reformismo: felizmente ela
não precisa derrubar o capitalismo! Ela só precisa
mudar a forma como a sociedade vê a
homossexualidade! Não é de se admirar que a Teoria
Queer tenha sido voluntariamente adotada por
alguns reformistas dentro das organizações dos
trabalhadores a fim de fugir da responsabilidade de
liderar uma luta real contra a discriminação com
greves, protestos de massa, em suma, métodos da
luta de classes e, em vez disso, focar nas demandas
por reformas linguísticas, cotas, espaços culturais
livres e faixas de pedestres coloridas.

Ao omitir a questão de classe, a Teoria Queer não é


apenas uma ferramenta útil nas mãos dos burocratas
dentro das organizações dos trabalhadores, ela
também serve como uma justificativa ideológica
para uma seção da burguesia e das forças capitalistas
se apresentarem como amigos dos LGBT e pintar
uma imagem liberal e progressista de si mesmos.
Corporações como a Apple ou a Coca-Cola, que
exploram dezenas de milhares de pessoas em
péssimas condições de trabalho, apóiam campanhas
LGBT em suas empresas ou financiam caminhões de
festa que distribuem bebidas alcoólicas
gratuitamente nas paradas do Orgulho
comercializadas. A fim de financiar a produção de
ideias aparentemente radicais, mas na verdade (para
a classe dominante) completamente inofensivas,
milhares de euros são gastos em cátedras de estudos
de gênero, departamentos e bolsas de estudo queer,
enquanto a mídia liberal de esquerda e as editoras
publicam artigos benevolentes e romances.

Muitos ativistas queer estão cientes destas


tendências e são claramente contra a cooptação de
sua resistência pelo sistema dominante. No entanto,
a Teoria Queer não oferece as idéias necessárias
para lutar contra essa usurpação pela classe
dominante; pelo contrário, é parte da ideologia
dominante que individualiza e camufla a exploração
e a opressão, ao mesmo tempo que divide a luta
unida contra o sistema, precisamente porque a luta
unida é estranha à Teoria Queer.
Apesar de sua origem como uma crítica às políticas
de identidade tradicionais dos anos 1970 e 1980,
com sua mentalidade de círculo e lutas internas, ela
falhou em superar justamente esse tipo de política de
identidade. Uma vez que não podemos escapar da
onipresença do poder na sociedade, também é
impossível escapar das identidades, mesmo que
sejam vistas como fictícias.

Uma vez que as identificações “são, dentro do


campo de poder da sexualidade, inevitáveis” (GT, p.
40), e podemos, na melhor das hipóteses, “parodiar”
essas identidades, a Teoria Queer, que começou
como uma crítica da política de identidade, acaba
exatamente onde tudo começou: com a política de
identidade. Na prática, as velhas disputas de quem-
pode-representar-quem continuam descaradamente,
assim como nos círculos feministas radicais (e
contra eles). Butler afirma com propriedade:
“Obviamente, a tarefa política não é recusar a
política representacional – como se pudéssemos.”
(GT, p. 8.)
Qualquer forma de ação coletiva e luta unida de
todos os oprimidos torna-se uma briga, uma vez que
“unidade” e “representação” conduzem
automaticamente à exclusão e opressão violenta: “a
unidade só se adquire através da extinção violenta.”
(Judith Butler: Merely Cultural, p. 44.) [título em
português, Meramente Cultural]

Isso leva a uma individualização daqueles que se


opõem ao sistema opressor sob o qual vivemos. Por
exemplo, a feminista queer Franziska Haug reclama
que “a identidade do indivíduo – origem, cultura,
gênero etc. – torna-se o cerne da questão” em
debates feministas queer, e “o direito de falar e lutar
está sendo decidido dependendo da identidade do
falante”. Há uma competição sobre quem é o mais
oprimido e, portanto, tem o direito de falar, e quem
não pode ser contestado. Contra-argumentos
indesejáveis, muitas vezes ouvimos acusações do
tipo “você, sendo um homem branco / mulher cis /
trans branco não tem o direito de discordar de mim
ou de revogar meu ponto de vista subjetivo.”
(Franziska Haug: Queerfeministische Solidarität
zwischen Kollektivität und Identität, p. 236.)
Enquanto se tenta não excluir ninguém por meio de
“generalizações violentas”, um número incontável
de identidades são criadas que supostamente cobrem
todas as combinações imagináveis de preferências
sexuais, românticas, de gênero e outras e que estão
sendo administradas em uma série de grupos queer.
Em vez de uma luta unida de todos os que querem
lutar contra o sistema, essa lógica muitas vezes leva
a assédio moral e exclusão dentro de diferentes
grupos. Uma feminista queer dá um relato vívido
disso em seu artigo, “Solidariedade Feminista a
partir da Teoria Queer”, que quase parece o
conteúdo desesperado e íntimo de um diário:

“Apesar dos meus escrúpulos sobre o termo


bissexual, este descritor fornece uma espécie de lar
para mim, quando em qualquer outro lugar parece
pior. Ambos os espaços heterossexuais e lésbicos
têm seus próprios confortos para as mulheres, e
muitas vezes fui excluída de ambos. Também me
disseram que precisava mudar para caber nesses
espaços – aceitando minha verdadeira hetero ou
homossexualidade – e tenho sentido os momentos da
verdade, bem como, algumas vezes, a hipocrisia e
complacência dessas exigências … É ao mesmo
tempo necessário e perturbador buscar um lar como
um ser de gênero ou sexual: necessário porque a
comunidade, o reconhecimento e a estabilidade são
essenciais para o florescimento humano e a
resistência política, e preocupante porque essas
mesmas práticas muitas vezes se congelam em
ideologias políticas e formações de grupo que são
exclusivos ou hegemônicos.” (Cressida J. Heyes:
Feminist Solidarity after Queer Theory: The Case of
Transgender, p. 1097.)

A partir dessas linhas, podemos sentir a miséria


criada pelas pressões e opressão do capitalismo e o
que eles fazem à nossa psique e auto-estima. Mas
elas também mostram o impasse da política de
identidade. Mesmo que o texto se proponha a tarefa
de encontrar uma forma de solidariedade entre todas
as feministas, ele não consegue imaginar uma
unidade que não seja baseada na identidade. Na
prática, a política identitária leva a uma cisão no
movimento. Por exemplo, em Viena houve duas
marchas separadas no dia da mulher em 8 de março
durante anos: uma das feministas radicais (que só
pode ter a participação de mulheres e, em um bloco,
de pessoas LGBT), e uma de ativistas queer (onde a
princípio nenhum homem cis, mas desde 2019, todos
os que se consideram feministas podem
comparecer). Uma manifestação unida foi
repetidamente recusada por ambos os lados. No
contexto da ascensão dos movimentos de massa em
torno das demandas pelos direitos das mulheres em
todo o mundo, e o potencial latente na Áustria sob
um governo de direita, este exemplo revela o papel
divisivo da política identitária.

É natural que muitas pessoas, em particular os


jovens, questionem as normas estabelecidas na
sociedade, como a sexualidade e os papéis de
gênero. Sempre foi assim e, como marxistas,
defendemos o direito de todas as pessoas de se
expressarem e se identificarem como quiserem. Mas
o problema surge aqui quando a experiência pessoal
dos indivíduos é teorizada, elevada ao nível de um
princípio filosófico e generalizada para toda a
sociedade e a natureza. Os teóricos queer nos dizem
que ser queer ou não-binário é progressivo e até
revolucionário, em oposição a ser binário (ou seja,
homem ou mulher, o que é a maioria da
humanidade), que é considerado reacionário. Aqui,
porém, é a Teoria Queer que mostra seu lado
reacionário. Apesar de todo o seu discurso radical
contra a opressão, ela se opõe a uma luta de classes
unida e promove a atomização dos indivíduos com
base nas preferências sexuais e pessoais, dividindo a
classe trabalhadora em entidades cada vez menores.
Enquanto isso, todo o edifício podre de exploração e
opressão do capitalismo permanece no lugar.

1 “Heterossexualidade compulsória” é um termo


freqüentemente usado na Teoria Queer. Cunhado em
1980, argumenta que a heterossexualidade é uma
orientação socialmente construída, semelhante ao
racismo.

2 “Para muitos de nós, jovens intelectuais, o


interesse por Nietzsche ou Bataille não representava
uma forma de se distanciar do marxismo ou do
comunismo. Em vez disso, era quase o único
caminho que conduzia ao que nós, é claro,
pensávamos que se poderia esperar do comunismo
… Assim, sem conhecer Marx muito bem,
recusando o hegelianismo e me sentindo insatisfeito
com as limitações do existencialismo, decidi aderir
ao Partido Comunista Francês.” Michel Foucault
(1981): Remarks on Marx. Conversations with
Duccio Trombadori, Semiotext(e), pp. 50-51.
https://www.marxismo.org.br/marxismo-vs-teoria-
queer-parte-2/

Pela unidade da classe trabalhadora!

Para os marxistas, a unidade na luta não se baseia na


cultura ou na identidade, nem é uma questão moral.
Em vez disso, enfatizamos a necessidade da unidade
da classe trabalhadora como a única força que pode
acabar com a exploração e a opressão, devido ao seu
papel no processo produtivo do capitalismo.

Nossa sociedade é fundamentalmente definida pela


forma como produzimos, porque a produção de
alimentos, casas, energia – tudo de que precisamos
para viver – é a base de como podemos levar nossa
vida. Há comida suficiente para permitir o
desenvolvimento da ciência e da cultura além da
mera sobrevivência? A ciência pode desenvolver
nossos meios de produção de modo que a quantidade
de trabalho possa ser reduzida e o tempo possa ser
liberado para pesquisa, educação e assim por diante?
A base econômica determina como trabalhamos e
vivemos em nossa sociedade e, como consequência,
quais morais, leis ou valores são dominantes
(embora essa relação não seja mecânica, como os
críticos de Marx gostam de afirmar, mas dialética).

Nossa sociedade é dividida em classes que não são


definidas culturalmente pelo fato de alguém ser rico
ou pobre (ao contrário, isso é uma consequência da
classe a que alguém pertence). As classes são
determinadas pelo papel que desempenham no
processo de produção. No capitalismo, as classes
principais são os capitalistas, que possuem os meios
de produção, como fábricas e terras, e a classe
trabalhadora, que tem que vender sua força de
trabalho para sobreviver dos salários recebidos. A
contradição está no fato de que a maioria das
pessoas produz socialmente em fábricas e empresas
em uma divisão mundial do trabalho, enquanto os
frutos de seu trabalho são apropriados privadamente
por uma minoria. Como esta minoria de capitalistas
produz competindo entre si, sob a anarquia do
mercado mundial e apenas para seus próprios lucros,
isso leva a crises periódicas, e é a razão pela qual os
recursos de nossa sociedade não podem ser usados
para garantir uma vida decente para toda
humanidade. Essa exploração é a base decisiva para
a opressão e a discriminação. Socialismo significa
resolver a contradição da produção social /
propriedade privada tomando a produção em nossas
próprias mãos, sob o controle da sociedade, ou seja,
expropriando a minoria parasitária dos capitalistas.

Disto, segue-se que a unidade da classe trabalhadora


está enraizada nas condições atuais. Uma boa vida
para a classe trabalhadora – salários mais altos,
jornada de trabalho mais curta, um sistema de bem-
estar de alta qualidade – só pode ser realizada contra
o interesse dos capitalistas, porque isso reduziria
diretamente seus lucros. Os marxistas vêem como
sua tarefa tornar esse interesse comum da classe
trabalhadora o mais visível possível para fortalecer
nossa unidade, porque somente juntos podemos
derrubar esse sistema explorador. É por isso que os
marxistas lutam decisivamente contra qualquer tipo
de divisão; isto é, contra o racismo, preconceitos
sexistas e outras formas de discriminação,
independentemente do proponente ser um político,
um capitalista ou um colega de trabalho. Somos
contra qualquer forma de discriminação, mas, em
contraste com a política identitária, não entendemos
os interesses dos diferentes gêneros, orientações
sexuais, etc., como fundamentalmente opostos uns
aos outros. Por outro lado, os diferentes interesses de
classe o são (ou seja, um deve perder se o outro
ganhar).

Objetivamente, há riqueza suficiente em nossa


sociedade para tornar possível uma vida confortável
para todos. Há comida suficiente e temos tecnologia
para reduzir drasticamente a jornada de trabalho e
ainda cumprir todas as tarefas da sociedade.
Preenchemos também todos os pré-requisitos para a
socialização do trabalho doméstico (limpar,
cozinhar, educar os filhos, cuidar dos idosos…), que
hoje é em grande parte feito dentro da instituição da
família. Isso poderia ser alcançado abrindo cozinhas
comunitárias e jardins de infância públicos, e
investindo em um bom sistema de bem-estar e
saúde. Essas medidas eliminariam a base material da
família capitalista, que aprisiona as mulheres em
uma jaula opressora e é a base para a discriminação
pautada no gênero e na sexualidade. Sem pressão e
dependência materiais, as relações humanas
poderiam evoluir para associações verdadeiramente
livres, o que seria um passo a frente para todas as
mulheres e homens. Ciência, educação, cultura e
linguagem seriam libertadas da motivação do lucro e
dos interesses da classe dominante, que está
constantemente nos dividindo e nos mantendo por
baixo. A cultura humana poderia atingir alturas
inimagináveis. Em comparação, as modestas
demandas dos teóricos queer por um novo
vocabulário e espaços livres mostram como eles
estão limitados dentro dos limites estreitos do
capitalismo.

Isso, é claro, não significa que as conquistas


culturais acontecerão “automaticamente” ou “por si
mesmas” simplesmente pela expropriação das
grandes corporações e bancos. Mas devemos
compreender a relação real entre base material e
cultura, entre revolução e linguagem, concretamente.

O ato da revolução significa a entrada das massas no


palco da história. É o processo em que as massas
tomam seu destino em suas próprias mãos e não
mais permitem que suas vidas sejam ditadas por
outros. Em todas as revoluções históricas, as massas
trabalhadoras desencadearam uma criatividade
incrível e começaram a remover o lixo da velha
sociedade.

Em seu texto É Preciso Lutar por uma Linguagem


Polida, Trotsky descreve como, após a Revolução
Russa, foi travada a luta contra a linguagem abusiva
e o xingamento. Em um país extremamente atrasado
que apenas começava a assumir a tarefa de
revolucionar a sociedade, numa época em que
“filosofia da linguagem” ainda nem era um termo, os
trabalhadores de uma fábrica de calçados chamada
“Comuna de Paris” decidiram em uma assembleia
geral para erradicar a linguagem imprópria em seu
local de trabalho e impor punições se essa decisão
fosse violada. Trotsky escreve:

“A revolução é, antes e acima de tudo, o despertar


da humanidade, sua marcha para a frente, e é
marcada por um respeito crescente pela dignidade
pessoal de cada indivíduo com uma preocupação
cada vez maior com aqueles que são fracos … E
como se poderia criar dia a dia, mesmo que aos
poucos, uma nova vida baseada na consideração
mútua, no respeito próprio, na igualdade real das
mulheres, vistas como colegas de trabalho, no
cuidado eficiente dos filhos – em uma atmosfera
envenenada com o vociferante, repetido, ecoante e
retumbante praguejar de senhores e escravos, esse
praguejar que não poupa ninguém e nada para? A
luta contra a ‘linguagem imprópria’ é uma condição
da cultura intelectual, assim como a luta contra a
sujeira e os vermes é uma condição da cultura
física.” (Leon Trotsky: The Struggle for Cultured
Speech.) [título em português, É Preciso Lutar por
uma Linguagem Polida]

Essa luta não é linear, nem fácil, porque a


consciência se desenvolve de forma contraditória.
Como Trotsky apontou no mesmo texto:

“Um homem é um comunista convicto e dedicado à


causa, mas as mulheres são para ele apenas
‘mulheres’, que não devem ser levadas a sério de
forma alguma. Ou acontece que um comunista sob
outros aspectos confiável, ao discutir questões
nacionalistas, começa a falar coisas
irremediavelmente reacionárias. Para explicar isso,
devemos lembrar que diferentes partes da
consciência humana não mudam e se desenvolvem
simultaneamente e em linhas paralelas. Existe uma
certa economia no processo. A psicologia humana é
muito conservadora por natureza, e a mudança
devido às demandas e ao impulso da vida afeta em
primeiro lugar as partes da mente que estão
diretamente envolvidas no caso.” (Op. cit.)

A luta por uma cultura humana, de companheirismo,


portanto, não acabou simplesmente depois de uma
revolução. No entanto, a revolução cria as condições
nas quais a luta unida e comum por tal cultura pode
ser desenvolvida livremente e verdadeiramente
autodeterminada. Isso foi ativamente apoiado após a
Revolução Russa, quando mulheres revolucionárias
foram enviadas a todo o país e promoveram
programas educacionais maciços e esforços
organizacionais. Esse movimento Zhenotdel foi
posteriormente encerrado por Stalin em 1930.
Trotsky disse, sobre o papel das mulheres
revolucionárias, que elas devem ser o aríete moral
nas mãos de uma sociedade socialista que rompe o
conservadorismo e velhos preconceitos.

“Mas aí, novamente, o problema é extremamente


complicado e não poderia ser resolvido apenas pelo
ensino escolar e pelos livros: as raízes das
contradições e das inconsistências psicológicas
estão na desorganização e na confusão das
condições em que as pessoas vivem. Afinal, a
psicologia é determinada pela vida. Mas a
dependência não é puramente mecânica e
automática: é ativa e recíproca. O problema em
conseqüência deve ser abordado de muitas maneiras
diferentes – a dos homens da fábrica “Comuna de
Paris” é uma delas. Desejamos a eles todo o
sucesso possível.” (Op. cit.)

Existe um enorme abismo entre as campanhas


LGBT tokenizadas e sancionadas pelo sistema de
hoje, onde a exploração de classe e a alienação
psicológica de nós mesmos ainda são mantidas, e a
campanha organizada pelos trabalhadores da fábrica
de calçados “Comuna de Paris”, que tinham controle
total sobre suas próprias condições de trabalho –
incluindo a cultura linguística! Não é difícil
imaginar qual desses dois criaria raízes mais
profundas e funcionaria mais completamente.

O objetivo de alcançar uma cultura e uma linguagem


humanas é compreensível e correto, mas a
orientação política de criar uma nova linguagem de
igualdade sem também enfrentar a real desigualdade
social é uma ilusão perigosa e, no final, um impasse.
Uma cultura verdadeiramente humana e livre
nascerá da luta comum pela emancipação da classe
trabalhadora, que moldará nossa consciência,
rompendo gerações de preconceitos e lançará a atual
e monstruosa discriminação: racismo, sexismo,
violência e degradação da mulher e das minorias na
lata de lixo da história.

Por último, mas não menos importante: devemos nos


denominar marxistas-queer?
O que explicamos acima mostrou que, começando
com uma compreensão do que o mundo realmente é,
de como (ou se) podemos mudá-lo e como as
conclusões práticas que decorrem disso, a Teoria
Queer e o marxismo são teorias irreconciliáveis.
Ainda assim, vez ou outra, tentativas são feitas para
combiná-las e retratá-las como mutuamente
compatíveis.

Raramente esses esforços são mais do que um


esforço desajeitado para se apropriar do rótulo de
marxismo para dar a si mesmo um grau de
credibilidade radical, enquanto distorce
completamente sua essência no processo. Há, no
entanto, alguns na esquerda, sem dúvida com
intenções honestas, que argumentam que devemos
adotar o rótulo de “marxismo queer”.

O argumento mais comum levantado por essas


pessoas é que há “algo faltando” no marxismo, ou
seja, que é incapaz de compreender a opressão
específica das sexualidades. Deve ser óbvio a partir
do presente artigo que fornecemos argumentos
suficientes para confrontar essas alegações.

No entanto, outro argumento popular tem a ver com


a tática, que é mais ou menos assim: deve-se
sustentar uma base marxista firme, mas para tornar o
marxismo mais atraente para pessoas de todas as
identidades, e por causa de sua má reputação,
chamar a si mesmo de marxista-queer pode enviar
um sinal claro de inclusão. E que mal poderia fazer
se não funcionar imediatamente? Se não ajudar, não
atrapalha, diz o argumento.
Uma demonstração relativamente extensa dessa
maneira de pensar é fornecida por Holly Lewis em
seu livro The politics of everybody (2016) [sem
tradução para o português], do qual, portanto,
trataremos brevemente aqui.

Em seu livro, Lewis se refere de forma bastante


autoconsciente à “abordagem antiga e fora de moda
do materialismo de Marx“, incluindo sua orientação
para a classe trabalhadora a fim de mudar o mundo
(Holly Lewis: The politics of everybody, p. 91.) Ela
escreveu seu livro supostamente para tornar o
marxismo tentador para ativistas queer e feministas
e, inversamente, para familiarizar os marxistas com
a política e as origens da política feminista, queer e
trans. (Ibidem, p. 14)

Na superfície, o marxismo-queer pode parecer para


alguns uma boa maneira de ganhar pessoas queer
para o marxismo e integrá-los na luta contra o
capitalismo. Mas afirmar que precisamos de um
“marxismo-queer” inevitavelmente leva ao caminho
de diferenciá-lo do “marxismo clássico”,
precisamente para justificar porquê deve haver um
“marxismo queer” em primeiro lugar. Isso cria uma
fissura entre os dois e abre a porta pela qual se
infiltram idéias alheias à classe trabalhadora e
concessões ideológicas.

Depois de passar um bom terço de seu livro tentando


explicar os fundamentos do marxismo, Holly Lewis
chega exatamente a esse ponto. Como uma
feminista-marxista-queer, ela deseja incorporar as
perspectivas internacionais queer, trans e intersexo
na análise materialista e marxista de sexo e gênero.
(Ibidem, p.107.)

E quais são essas perspectivas particulares que, em


sua opinião, podem explicar as formas específicas de
opressão melhor do que o marxismo “tediosamente
normal”? Aqui, todos os velhos argumentos são
desempacotados, como Marx e Engels sendo filhos
de seu tempo e, portanto, é claro, sexistas, com
Engels sendo um pouco mais sexista do que Marx.
Em seguida, ela constrói, como os revisionistas
costumam fazer, uma alegada contradição entre
Marx e Engels, com este último supostamente não
compreendendo corretamente a natureza da opressão
das mulheres, o que seu livro A Origem da Família,
da Propriedade Privada e do Estado aparentemente
confirma. Ela rejeita a compreensão marxista do
papel da família no capitalismo e gradualmente
enfraquece os próprios fundamentos do marxismo,
incluindo sua análise materialista histórica. No que
diz respeito à questão de gênero, ela finalmente
chega ao ponto de formulações vagas e pouco claras
sobre a suposta (in-)existência de gêneros.

No entanto, mesmo nessa base filosófica confusa, é


quase impossível para ela empregar qualquer
aspecto da Teoria Queer de maneira positiva. Mas
ela encontra algo ao qual se agarrar: o conceito de
performance, que postula que os papéis de gênero
são internalizados por meio de ações repetitivas.

“Longe de ser incompatível com a análise


materialista, a intervenção de Butler se encaixa
perfeitamente na concepção de ideologia de Fields3
como uma repetição de ações originadas nas
relações sociais, mas ações que continuam a ser
normalizadas pelo hábito, pela experiência e pela
lógica organizacional de uma dada sociedade.”
(Ibidem, p. 199.)
E, assim, o marxismo e a teoria queer são
apresentados, não como mutuamente exclusivos e
servindo a interesses de classe divergentes, mas
como coexistindo pacificamente, podendo-se pegar
emprestados pedaços individuais e misturá-los ao
acaso.

Precisamos ser claros aqui. O marxismo é baseado


em um conjunto de leis derivadas da natureza e,
portanto, quanto mais visão científica tivermos da
natureza, mais poderemos desenvolver essas leis
gerais. É necessário testar constantemente as
próprias análises com a realidade e, se necessário,
adaptá-la, bem como explorar novos fenômenos
profunda e completamente. No entanto, isso é
completamente diferente de capitular às ideologias
burguesas e se comprometer com o idealismo.

O maior erro de Lewis não é explicar que as


ideologias são endurecidas na mente das pessoas por
meio de rituais e performances (o que é uma
observação verdadeira, embora mundana), mas que,
a partir desse detalhe, ela faz a Teoria Queer parecer
uma “aliada”. Em última análise, o cerne da questão
é que ela não tem uma compreensão das
consequências das ideologias burguesas para a
classe trabalhadora, e do papel dos líderes
burocráticos e intelectuais, que assumem essas
ideologias dentro do movimento e das organizações
do classe trabalhadora.

A classe dominante tem muitas maneiras de


corromper a liderança do movimento dos
trabalhadores e de apoiar aqueles indivíduos dentro
do movimento que defendem e espalham ideologias
(pequeno-) burguesas. Há empregos no governo e no
aparelho de Estado a serem doados, há a chamada
“parceria social” entre capital e trabalho, por meio
da qual burocratas sindicais e partidos de
trabalhadores se encontram cara a cara com a
burguesia. Em vez de defender os interesses da
classe trabalhadora, para eles, os trabalhadores são
simplesmente peões que podem ser movidos para
defender suas próprias posições burocráticas. Eles
querem ligar e desligar as lutas dos trabalhadores
como água da torneira, a fim de fortalecer seu poder
de barganha. Ideologias pequeno-burguesas, como o
feminismo, que desviam a atenção da luta de classes,
mas têm uma “imagem de esquerda”, são
entusiasticamente assumidas pelos burocratas por
servirem bem aos seus próprios interesses. Os
intelectuais das universidades que defendem seus
financiamentos, cargos e instituições de pesquisa
desenvolvem essas ideologias para justificar sua
prática e, sabendo ou não, jogam areia nos olhos de
ativistas em busca de respostas.

Em resumo, Lewis concorda que a Teoria Queer &


Cia. pode, de fato, ser usada de maneira reacionária
e que é uma expressão de uma pequena burguesia
economicamente insegura. No entanto, ela silencia
sobre o papel concreto que essas ideologias
desempenham nos movimentos sociais. Ela, assim,
acaba servindo de folha de figueira de esquerda para
o reformismo e a burocracia. Isso se torna óbvio
sempre que ela escreve sobre eventos históricos
concretos, por exemplo, a traição da Segunda
Internacional.

Em 1914, a maioria dos partidos de trabalhadores da


Europa, que estavam então unidos na Segunda
Internacional, votaram em seus respectivos
parlamentos nacionais a favor dos créditos de guerra
para a Primeira Guerra Mundial. Assim,
sancionaram uma guerra imperialista no interesse
dos capitalistas. Apenas um punhado de
revolucionários, incluindo Lenin e Rosa
Luxemburgo, resistiu a essa onda de chauvinismo.
Como Lewis explica essa traição histórica da
liderança social-democrata?

Segundo ela, os representantes dos partidos social-


democratas concordaram com a Primeira Guerra
Mundial e capitularam ao chauvinismo nacional
porque Eduard Bernstein e Karl Kautsky, em seus
escritos como o Programa de Erfurt, popularizaram
uma compreensão superficial das ideias de Karl
Marx, e “tais distorções acabaram levando os
membros da Segunda Internacional a votarem que os
partidos socialistas deveriam apoiar suas respectivas
nações na Primeira Guerra Mundial.” (Ibidem, p. 63)

Essa representação, no entanto, vira a realidade de


ponta-cabeça, porque ignora o contexto em que as
distorções do marxismo surgiram naquela época.
Antes da Primeira Guerra Mundial, uma camada de
burocratas havia se acostumado com suas vidas
bastante confortáveis como parlamentares e, em face
de um longo período de boom econômico, declarou
a revolução desnecessária. A traição deles não foi
um simples mal-entendido dos ensinamentos
“puros” do Capital, não apenas uma batalha
ideológica em terreno igual, mas uma expressão de
uma camada burocrática dentro dos partidos dos
trabalhadores que preferiam suas posições
confortáveis a duros conflitos de classes, incluindo a
guerra revolucionária contra “seus próprios”
capitalistas nacionais. O resultado não foi apenas um
desvio ideológico, mas se traduziu em apoio
concreto ao massacre em massa de trabalhadores na
guerra e à traição de numerosos movimentos
revolucionários nos anos após a guerra: na
Alemanha, Áustria, Hungria e assim por diante. Foi
assim que a oportunidade de vencer a batalha pelo
socialismo internacional, que estava ao nosso
alcance, foi afogada em sangue e, por fim, levou ao
surgimento do fascismo na Europa.

A descrição de Lewis dos sindicatos nos EUA nas


décadas de 1980 e 1990 vai na mesma direção,
ocultando o papel negativo da burocracia dentro do
movimento. Procurando explicar por que as
organizações tradicionais da classe trabalhadora
organizam tão poucas pessoas “queer e trans”, ela
escreve:
“No entanto, o fracasso pode não estar nas políticas
ou hábitos dos sindicatos e organizações, mas no
fato de que as próprias organizações trabalhistas e
socialistas têm influência decrescente sobre a classe
trabalhadora sob o neoliberalismo. Ironicamente, as
pessoas queer e trans da classe trabalhadora podem
transformar a política da classe trabalhadora ao
fortalecer as estruturas em deterioração do poder
da classe trabalhadora” (Ibidem, p. 165.)

E:

“O offshoring de empregos causou um declínio


contínuo da filiação sindical durante as décadas de
1980 e 1990 … Apesar de todas as inadequações
dos sindicatos de negócios americanos, seria
necessário um forte movimento sindical
internacional para desafiar o neoliberalismo.”
(Ibidem, pp. 208-9.)

Então, segundo ela, quais são as razões para o


declínio da filiação sindical? Para ela, isso se deu
por causa do “neoliberalismo”, que pressionou os
sindicatos com ameaças de offshoring. A segunda
razão séria que ela dá é a fraqueza do movimento
sindical internacional, e só depois desses fatores ela
vê que é de alguma forma também relevante que os
sindicatos tenham uma postura pró-negócios.

Essa representação na verdade acaba argumentando


que qualquer luta naquela época era inútil para
começo de conversa. Também encobre o papel da
burocracia sindical de direita que observava em
silêncio uma série de grandes ataques por parte dos
patrões e do governo. Por exemplo, quando o
presidente Reagan escandalosamente quebrou a
greve dos controladores de tráfego aéreo da PATCO
em 1981 usando fura-greves militares e
posteriormente proibiu 19.000 trabalhadores de
trabalhar neste setor novamente, os líderes da AFL-
CIO nem sequer pensaram em organizar greves de
solidariedade em defesa dos trabalhadores da
PATCO. Em 1995, a direção da AFL-CIO fechou
seu departamento internacional e o substituiu por um
“centro de solidariedade”, que recebeu noventa por
cento de seu orçamento do Estado e, por exemplo,
apoiou o golpe de 2002 contra o presidente
venezuelano Hugo Chávez. Assim, contribuíram
diretamente para o mau estado em que se encontrava
o movimento internacional dos trabalhadores! Mais
dinheiro sindical foi usado para financiar a máquina
partidária dos democratas do que para organizar
campanhas pelos direitos dos trabalhadores. E a lista
continua. Isso mostra claramente que qualquer linha
de argumento que ignore o papel específico da
burocracia acaba inevitavelmente por encobrir sua
postura traiçoeira.

A falta de compreensão de como os movimentos


reais e suas lideranças progridem e de como as
ideologias (pequeno) burguesas atuam pelos
interesses contra-revolucionários dentro do
movimento, leva à conclusão errônea de que a
questão “Teoria Queer vs. Marxismo” é uma
competição justa entre duas idéias igualmente
válidas.

Mas os capitalistas não pressionam apenas as


minorias e camadas oprimidas da sociedade, mas
também os revolucionários. Nos sindicatos,
delegados sindicais críticos são isolados, nos
partidos de massa dos trabalhadores, os marxistas
são difamados ou expulsos e, no mercado de
trabalho, geralmente não é a melhor credencial ser
membro de qualquer organização revolucionária.

É de vital necessidade defender com firmeza as


ideias do marxismo se quisermos alcançar
revoluções vitoriosas, sendo a alternativa a derrota.
No entanto, temos que levar em conta o fato de que
a classe dominante e seus fantoches sempre tentarão
tornar isso o mais difícil possível. Acadêmicos que
tentam roubar o conteúdo revolucionário do
marxismo em nome de algumas idéias novas ou da
moda não servem simplesmente aos interesses da
classe dominante diretamente, assumindo o que
podem parecer “idéias inofensivas”, mas são
fundamentalmente pequeno-burguesas – como o
feminismo, com todas as suas ideias sobre culpar os
homens como um todo pela opressão das mulheres,
em vez de ver essa opressão como fluindo da divisão
da sociedade em classes. Os líderes reformistas dos
sindicatos e partidos dos trabalhadores também
aperfeiçoaram suas habilidades em fazer discursos
radicais em reuniões internas, apenas para servir
como os mais fiéis apoiadores do capital na
sociedade como um todo.
A luta unida é a arma mais importante que a classe
trabalhadora possui e que pode nos libertar. O
marxismo defende essa unidade de forma
consistente até o fim. O marxismo, portanto, luta
pela inclusão de todas as pessoas,
independentemente de suas origens étnicas, gênero,
identidade, religião, etc., na luta contra a classe
dominante, o sistema capitalista e todas as formas de
opressão que vêm com ele. Rejeitamos qualquer
ideologia que conduza a uma prática que bloqueie,
retarde ou impossibilite essa luta, por mais
“moderna” ou radical que pareça. Isso também
inclui a Teoria Queer. O chamado “aprimoramento”
do marxismo com complementos queer ou
feministas significa o enfraquecimento ideológico do
marxismo. Em última análise, esse enfraquecimento
não serve para conquistar pessoas de diferentes
identidades e orientações sexuais para o nosso
movimento. Ao contrário, é usado como um meio
pelo qual os carreiristas (pequeno) burgueses podem
se esconder atrás do que parece ser uma posição
radical enquanto usam o movimento operário e suas
organizações para promover seus próprios interesses
pessoais. Portanto, embaçar a linha divisória entre o
marxismo e a Teoria Queer é um obstáculo em nossa
luta pela emancipação da humanidade de todas as
formas de exploração e opressão.

Somente se rompermos com a burguesia em todos os


níveis (tanto o ideológico quanto a prática da
colaboração de classes e da corrupção por meio do
dinheiro do Estado e dos cargos que dele emanam)
poderemos derrubar o capitalismo e tomar nosso
destino em nossas próprias mãos. Convidamos todos
os anti-capitalistas a se juntarem a nós nesta luta.

Nota:

3 Barbara Fields, cientista social, pesquisadora sobre


o racismo.

Referências Bibliográficas:

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Vintage Books, New York. [título em português, O
Segundo Sexo]
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New York. [título em português, Problemas de
gênero: Feminismo e a subversão da identidade]
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português, Meramente Cultural]
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Classical German Philosophy. [título em português,
Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia alemã
clássica]
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português, A Dialética da Natureza]
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Works Vol. 14, Progress Publishers, Moscow. [título
em português, Materialismo e Empiriocriticismo]
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Works Vol. 38, Progress Publishers, Moscow. [título
em português, Sobre a Questão da Dialética]
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em português, Cultura e Socialismo]
Trotsky, Leon (1923): The Struggle for Cultured
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uma Linguagem Polida]
Weedon, Chris (1991): Wissen und Erfahrung:
feministische Praxis und poststrukturalistische
Theorie. efef Verlag, Zürich.
https://www.marxismo.org.br/marxismo-vs-teoria-
queer-parte-3/

“Sob o patriarcado, o sexo masculino é o opressor e


o sexo feminino o oprimido e a opressão é em base
material, dependente da exploração da biologia
feminina. É impossível articular os meios de
opressão das mulheres sem reconhecer o papel
desempenhado pela biologia e sem considerar o
GÊNERO como uma hierarquia - se formos
desprovidas da linguagem para analisar nossa
opressão, linguagem essa que a política queer
considera violenta ou preconceituosa, é impossível
para as mulheres resistirem à nossa opressão.”
- Claire Heuchan

Misoginia é revisionismo: O Problema da


Esquerda com as Mulheres
A esquerda Marxista se encontra atualmente em um
confronto com três grandes mentiras insidiosas que
ameaçam as fundações revolucionárias
emancipatórias do projeto Marxista, todas elas
relacionadas com a negligência à libertação das
mulheres; são elas

1. Mulheres Trans são mulheres.

2. Prostituição é trabalho.

3. Feminismo é burguês.

A misoginia, em suas diversas formas, tem sido um


desafio para a esquerda; não apenas a misogonia da
direita reacionaria, mas também a misoginia vinda
da própria esquerda. Mas foi apenas recentemente
que parte da esquerda misógina resolveu se
reclassificar de naturalmente progressista. Por meio
de um revisionismo abertamente descarado, os
elementos reacionários dentro da esquerda
conseguiram se alavancar como agentes do
progresso. Muito já foi escrito sobre os danos
causados por essas três mentiras, mas nenhum
esforço foi feito ainda para desbancar essas ideias
sob uma perspectiva Marxista sólida. Este é o
objetivo deste artigo; demonstrar definitivamente
que essas grandes mentiras não são apenas
retrógradas, mas inerentemente revisionistas e anti-
Marxistas em seu âmago.
A primeira dessas três grandes mentiras, “Mulheres
Trans são mulheres”, pode ser talvez a mais
prejudicial, porque ela contradiz o centro do método
Marxista: o materialismo dialético. Existem duas
principais definições usadas pelos proponentes da
transgeneridade para explicar sua narrativa. A
primeira diz que gênero se trata de uma identidade; o
estado de ser um homem ou uma mulher (ou
qualquer uma das inúmeras “identidades de gênero”)
não vem do sexo biológico (até aí, transativistas
reconhecem a existência do sexo biológico), mas de
uma identidade interna, i.e. sentimentos pessoais,
consciência própria. A segunda definição diz que
pessoas trans na verdade não são do sexo que eles
têm, mas do sexo que eles dizem que tem, porque na
verdade, essas pessoas têm um cérebro “feminino”
ou “masculino”. Ambas as definições são baseadas
no pessoal, não no material. Uma das patronas da
teoria queer, Judith Butler, diz:

“Uma coisa é dizer que gênero é performado e é


uma coisa um pouco diferente dizer que gênero é
performativo. Quando dizemos que gênero é
performado, nós geralmente queremos dizer que nós
assumimos um papel e que estamos agindo de uma
forma e que nossa ação ou nossa performance é
crucial ao gênero que nós somos e ao gênero que nós
apresentamos ao mundo. Dizer que gênero é
performativo é um pouco diferente porque para algo
ser performativo significa que produz uma série de
efeitos. Nós agimos, andamos, falamos, dizemos de
formas que consolidam as impressões de sermos um
homem ou uma mulher.”[1]

Apesar da teoria queer ser uma filosofia pós-


moderna, suas raízes vão mais profundamente do
que apenas o pós-modernismo; na verdade, esse
trecho de Butler é um exemplo do idealismo
dialético. Marxismo, enquanto uma filosofia, foi
consolidado como uma reação ao idealismo dialético
dos Jovens Hegelianos. O idealismo dialético afirma
que a realidade flui a partir da consciência. Marx, de
outro lado, argumentou que “Não é a consciência do
homem que determina a existência, mas a sua
existência social que determina sua
consciência.”[2] O que significa que não são nossos
pensamentos que moldam a realidade material, mas
a realidade material que molda nossos pensamentos.
De fato, o primeiro grande trabalho de Marx, A
Ideologia Alemã, é exclusivamente dedicado a
explicar esse conceito.

Então qual é a definição materialista de gênero? E


como a inclusão das definições idealistas sob o
disfarce de marxismo prejudica o objetivo Marxista
de libertação das mulheres? O texto marxista
fundamental que lida com a opressão das mulheres é
a obra de Engels, “A Origem da Família, da
Propriedade Privada e do Estado” . De acordo com
Engels, enquanto sempre houve uma divisão sexual
do trabalho na sociedade humana, não foi até a
ascensão da propriedade privada que essa divisão se
tornou hierárquica. Antes da ascensão da
propriedade privada, a sociedade era organizada sob
o que era chamado “o direito materno”, i.e. a a
árvore genealógica de uma família era traçada a
partir da mãe, dada a dificuldade de se identificar
com exatidão a paternidade nas sociedades
comunitárias primitivas. Mas porque a propriedade
privada cresceu do trabalho masculino, e se
concentrou em mãos masculinas, o “direito materno”
deu lugar ao “direito paterno”. E para garantir que
seu legado seria passado para seu herdeiro, o pai
precisava saber com certeza quem seus filhos eram.
Isso significava controlar o trabalho reprodutivo do
sexo feminino, e sua subordinação à supremacia
masculina; surgindo aí, o advento do patriarcado. No
capítulo II de Origens da Família, Engels chama a
tomada do direito materno de “…a histórica derrota
mundial do sexo feminino. O homem tomou o
controle dentro de casa também; a mulher foi
degradada e reduzida a servidão, ela se tornou uma
escrava da luxúria do homem e um mero
instrumento da produção de crianças.”[3] Note que
aqui, Engels está tratando de sexo, de biologia.
Mulheres não são oprimidas por conta de uma
identidade de gênero abstrata, mas por conta do seu
sexo. A sociedade de classes e o patriarcado, ambos
existem em simbiose, e precisam controlar o
trabalho reprodutivo das mulheres para se sustentar.
Para falar sem rodeios, eles precisam controlar
os meios de reprodução. Portanto, a opressão
feminina possui sua origem uma realidade material.

Mas nós ainda não lidamos com o conceitos de


gênero. No discurso atual, dominado pela teoria
queer, sexo e gênero tem sido usados em confusão a
ponto de terem se tornado quase sinônimos um do
outro. A análise de Engels sobre o patriarcado é de
várias formas incompleta, mas ela formou a base
para as futuras explorações materialistas sobre sexo
e gênero. As feministas da segunda onda
desenvolveram boa parte do pensamento sobre
gênero não revisitaram esses conceitos
fundamentais, mas os expandiram, o oposto que os
revisionistas de hoje estão fazendo. Gênero, de
acordo com a feminista radical Rebecca Reilly-
Cooper, é o “sistema de valor que determina e
proíbe formas de comportamento e aparência para
membros das diferentes classes sexuais, e atribui
valor superior a uma classe sexual em detrimento da
outra”[4] Gênero não é, portanto, a mesma coisa que
sexo biológico, mas uma forma de parasita
trapaceador acima do sexo biológico para manter a
atual hierarquia sexual, e garantir o contínuo
controle masculino sobre o trabalho reprodutivo.
Pessoas não conformistas com os padrões de gênero,
assim como os homossexuais, homens e mulheres,
são portanto “exilados” de sua comunidade de
gênero, não por conta de alguma identidade abstrata,
mas porque eles não satisfazem as funções
determinadas aos membros de suas classes sexuais;
eles são essencialmente traidores da classe. Pessoas
intersexo, que formam uma categoria material
distinta, são também empurradas a essa categoria de
“exilados” porque eles também são incapazes de
satisfazer os objetivos da hierarquia sexual
patriarcal. Tais comunidades de exilados existiram
ao longo da história, e continuam a existir até hoje
em toda parte do mundo, nas hijra da Índia,
passando pelas pessoas de dois-espíritos das tribos
nativas das Américas, até ao contemporâneo
silenciamento e violência direcionado às pessoas
não-conformistas de gênero. Mas para reiterar, nada
disso tem a ver com identidade, mas com as
estruturas materiais da sociedade de classes.

Enquanto transativistas começaram a se virar contra


as explicações biomédicas para a transgeneridade,
elas continuam vivas e na comunidade médica e
psicológica. As teorias vitorianas sobre “sexo do
cérebro”, que teriam causado a ira de Marx e Engels,
estão agora fazendo um retorno. Na melhor das
hipóteses, essas teorias são uma pseudociência
quimérica que não chegaram nem ao menos
próximas a serem conclusivamente provadas em
nenhum estudo científico legítimo. Os padrões nos
quais a disforia de gênero é diagnosticada recaem
em construtos da masculinidade e feminilidade já
discutidos. Tais teorias se arriscam a interpretar
erroneamente os papéis do gênero como sendo
baseados na natureza, em oposição a uma construção
que reforça o controle da classe dominante. Ao invés
de ser visto como uma doença, a disforia deveria ser
vista como um sintoma de uma hierarquia sexual. As
pressões da socialização engendrada são ubíquas, e
começam no nascimento. Muitas vezes, não estamos
conscientes das formas sutis que a socialização
exerce sobre nós. Para as pessoas que rejeitam essa
socialização, o que segue é uma experiência com
níveis extremos de desconforto e angústia. A
socialização engendrada não é apenas um fenômeno
abstrato, mas é, de novo, literalmente cultivado em
nós. Sob esse sistema de socialização, o pênis se
torna mais do que o órgão sexual masculino, mas o
símbolo da agressão masculina e supremacia, da
mesma maneira que a vagina se torna um símbolo da
inferioridade feminina e subjugação. Indivíduos
sensíveis que se debatem contra essa socialização
geralmente odeiam seus corpos, mas não porque
seus corpos são de alguma maneira “errados”, mas
pelo que eles são levados a acreditar que os seus
corpos significam. O que eles sofrem é com a
incapacidade de quebrar a parede que foi erguida na
frente da realidade material e ver a realidade de uma
forma objetiva. Os campos da ciência da medicina e
da psicologia não estão imunes da influência da
classe dominante. Esse é especialmente o caso no
campo da psicologia, onde o método de análise é
aplicado para isolar o paciente da sociedade ao seu
redor, preferindo ver um sofrimento interno como o
resultado de algum defeito, em oposição ao
resultado material e social de forças exercidas sobre
o indivíduo.

Enquanto o capitalismo desmantelou certos


elementos do patriarcado, e permitiu às mulheres
conseguirem alguns ganhos, ele não desmantelou o
patriarcado completamente. O capitalismo, enquanto
um sistema de classes, ainda necessita manter os
meios de reprodução. Por exemplo, leis que
restrinjam o acesso ao aborto e a contraceptivos,
mesmo tendo um efeito negativo para todas as
mulheres, têm um impacto mais devastador na vida
de mulheres pobres e das classes trabalhadoras.
Essas leis podem estar encobertas por terminologias
de moralismo, mas têm uma lógica bem mais básica;
elas garantem a produção contínua de futuros
proletariados para o benefício da máquina
capitalista.

Ao distanciar a definição de “mulher” de uma versão


materialista para uma versão idealista, nós perdemos
a capacidade de definir e lutar contra as causas da
opressão das mulheres. Em sua forma mais extrema,
ela apaga as mulheres enquanto classe, e torna
impossível falar sobre o patriarcado enquanto uma
força existente. Por que então, estão os Marxistas,
que supostamente deveriam usar do materialismo
dialético, apoiando um conjunto de ideias que são o
exato oposto do materialismo dialético? Para
responder essa pergunta, precisamos observar a
natureza do patriarcado; ele é um sistema que
antecede o capitalismo. Como já foi dito acima, o
patriarcado e o sistema de classes existem em
simbiose entre si. Um não pode ser eliminado sem
que o outro também seja. Derrubar o capitalismo não
é o mesmo que derrubar o sistema de classes. Como
Mao apontou, a dinâmica de classes ainda existe nas
sociedades socialistas, e requerem uma vigilância
contínua e combate por parte dos revolucionários. É
por isso que muitos estados socialistas ainda
restringem os direitos das mulheres em alguns
níveis, como por exemplo, as leis draconianas anti-
aborto da Romênia de Ceausescu. Todos os homens
se beneficiam de alguma forma do patriarcado, até
os homens das sociedades socialistas. Portanto,
segue-se que homens socialistas lutando contra o
capitalismo também se beneficiam do patriarcado.
Enquanto homens e mulheres possam estar em
solidariedade enquanto trabalhadores, homens
trabalhadores ainda pertencem a classe sexual
masculina, uma classe que é anterior à existência da
classe trabalhadora moderna.

E a obediência a classe pertencente é profunda. É


por isso que tantos homens socialistas e “feministas”
defendem tão rapidamente e até apoiam a linguagem
e ações violentas praticadas por alguns homens não-
conformistas de gênero contra a classe de mulheres,
independente de como esses homens não-
conformistas se identificam. Isso não nega a
discriminação sofrida por homens não-conformistas,
e a violência e abuso que eles enfrentam, mas até
como exilados da classe sexual masculina, eles ainda
se beneficiam de alguns dos privilégios concedidos a
membros de sua classe sexual. Note que eu não uso
o termo privilégio da maneira em que é comumente
usado pela esquerda retrógrada, i.e. como alguma
noção abstrata que precisa ser “checada”. Ao invés,
é na verdade uma força existente que precisa
ser combatida, assim como revolucionários brancos
devem ativamente combater a supremacia branca, e
revolucionários do mundo desenvolvido devem
ativamente combater o imperialismo de “seus”
estados.

Oportunismo e o “medo” de estar “do lado errado da


história” são também levando forças a abraçarem
esse revisionismo. A esquerda Anglofônica,
especialmente nos Estados Unidos, dada sua
fraqueza na arena política geral, há muito vem
lutado para ser vista como “aceitável” e “educada”, e
está geralmente muito disposta a pular em qualquer
comício que a ajude a avançar nessa ideia. Esse
desejo de ser aceita também carrega o medo. É
verdade que comunistas cometeram sérios erros
julgando o passado, mas essa não é uma desculpa
para se rebelar contra as filosofias centrais e abraçar
cegamente ideias e movimentos sem analisar
friamente seus conceitos e objetivos. Isso não é o
mesmo que dizer que comunistas não deveriam estar
na linha de frente da defesa dos indivíduos não-
conformistas de gênero. Uma revolução socialista
completa requer que essas estruturas opressivas
sejam deixadas de lado. Mas é possível defender as
pessoas não-conformistas de gênero sem apoiar um
revisionismo de pseudociência claramente misógino.

Mulheres não são apenas oprimidas, como


completamente exploradas. Mulheres da classe
trabalhadora consistem na possível classe mais
explorada da sociedade humana. Ao apoiar filosofias
que não apenas apagam a habilidade das mulheres
de definir e explicar as bases de sua exploração, mas
também nega a agência às mulheres de se
organizarem enquanto classe revolucionária, esses
“Marxistas” provaram que estão em direta
contradição com as ideias e a filosofia marxista. Eles
estão apoiando um revisionismo.

Na próxima parte, examinaremos a segunda grande


mentira que adoece a esquerda atualmente, a noção
de que a “prostituição é um trabalho como outro
qualquer”.

Notas:
[1] “Judith Butler: Your Behavior Creates Your
Gender.” YouTube. Big Think, 06 June 2011. Web.
29 June 2017

[2] Marx, Karl. “Economic Manuscripts: Preface to


A Contribution to the Critique of Political
Economy.” Marxists Internet Archive. Progress
Publishers, n.d. Web. 29 June 2017.

[3] Engels, Frederick. “Origins of the Family —


Chapter 2 (III).” Marxists Internet Archive. N.p.,
n.d. Web. 29 June 2017.

[4] Reilly-Cooper, Rebecca. “Gender.” Sex and


Gender. N.p., 06 Sept. 2015. Web. 29 June 2017.
Emphases present in original text.

https://qgfeminista.org/misoginia-e-revisionismo-1a-
parte-o-problema-da-esquerda-com-as-mulheres/

Misoginia é Revisionismo: A Máscara do


Cafetão Vermelho

Detalhe de Pôster soviético anti-prostituição:


“Depois da destruição do capitalismo — o
proletariado vai abolir a prostituição — a grande
escória da humanidade!”
Tradução de Ariana Amara da 2ª parte do texto de
Zachary George Najarian-Najafi

Na primeira parte desta série, nós desconstruimos a


noção de que “mulheres trans são mulheres” de uma
perspectiva Marxista. Naquele artigo, eu disse que
aquela noção era talvez a mais destrutiva que a
esquerda enfrenta atualmente, mas eu vou
reconsiderar esse argumento ao longo da explanação
sobre a segunda “grande mentira” anti-
feminista/anti-Marxista que a esquerda enfrenta
hoje: a noção de que a prostituição é um trabalho. O
Marxismo sempre reconheceu a prostituição como
uma das formas mais cruéis de exploração; todo
grande Marxista revolucionário condenou a prática
em termos inequívocos. O Manifesto Comunista
abertamente proclama que a revolução socialista vai
acabar tanto com “a prostituição pública quanto a
privada.” [1] Em seu primeiro trabalho relevante,
Nadezhda Krupskaya, descreveu como os
trabalhadores revolucionários, durante a noite das
grandes greves trabalhistas, também direcionaram
seu ódio contra os bordéis, destruindo onze deles em
uma única noite. [2] E, ainda assim, apesar dessa
grande e incontestável condenação marxista da
prostituição, a esquerda começou a beber do
milkshake do “trabalho sexual”. Essa gama de
afirmações vai desde que de que a prostituição (e a
pornografia, que é apenas a prostituição filmada) é
apenas um trabalho como outro qualquer até que ela
na verdade é libertadora para as mulheres, e é uma
afronta contra o moralismo burguês! Cafetões foram
reclassificados como “empresários” e os proxenetas
e compradores de sexo, viraram os “clientes”.
Alguns tão chamados “Marxistas” até mesmo saíram
em apoio à bordéis coletivos em regimes socialistas!
Sem surpresas, muitas dessas declarações estão
sendo feitas por homens que, perturbados com a
possibilidade da revolução retirar seus direitos sobre
o “seu pornô” e as “suas mulheres”, estão agora
tentando pegar sua parte do bolo para comê-lo ao
mesmo tempo que desvirtuam os conceitos
Marxistas de amor livre e os ataques Marxistas à
moral burguesa para adequá-los aos seus objetivos
exploratórios.
Para isso, eles têm o apoio das “Prostitutas com
PhD”, mulheres burguesas, geralmente donas de
diplomas avançados, que optam pelo estilo de vida
da prostituição como uma “escolha”. Joseph
Goebbels ficaria orgulhoso.

Por agora, vamos deixar esses elementos


reacionários cozinhando. Primeiro, é importante é
desbanquemos o argumento central de toda essa
discussão, que a “prostituição é um trabalho”. Para
analisar essa questão, devemos primeiro responder a
pergunta, o que é trabalho? Em seu primeiro grande
trabalho publicado A Ideologia Alemã, Marx define
trabalho como:

“A primeira premissa da existência humana e,


portanto, de toda a história, [é a que humanos]
devem estar em uma posição de viver de maneira
que possam “fazer história”. Mas a vida exige, antes
de tudo, comer, beber, habitar, se vestir entre várias
outras coisas. O primeiro ato histórico é então a
produção dos meios para satisfazer essas
necessidades, a produção da própria vida material. E
ao mesmo tempo, esse é um ato histórico, uma
condição fundamental de toda história, que hoje,
como há vários anos atrás, deve ser satisfeita
diariamente e hora após hora para meramente
sustentar a vida humana.”[3]

Colocando em termos mais sucintos, trabalho é o


processo pelo qual os humanos criam, e facilitam o
uso, dos produtos de valor social. O ato sexual
possui intrinsecamente um valor social? Material
pornográfico tem valor social? A resposta é não.
Relações sexuais não são uma necessidade
fundamental do ser humano, como são a comida, a
água, a vestimenta e o abrigo. Nem mesmo o sexo
em si mesmo nos ajuda a entender e interpretar o
mundo da forma que a ciência e arte fazem. As
relações sexuais tem valor social quando seu
propósito é a reprodução, e nesse caso, se torna um
trabalho reprodutivo. Elas também possuem valor
social quando se tratam de um meio de comunicação
interpessoal, como o sexo entre amantes, mas esse
não é necessariamente um trabalho, pois não produz
nada de valor social para uma comunidade. Em
Prostituição e Formas de Combatê-la, Alexandra
Kollontai disse, “prostitutas são todas aquelas que
evitam a necessidade do trabalho ao se dar a um
homem, de uma forma temporária ou pro resto da
vida.”[4] Aqui, ela claramente separa a prostituição
do trabalho, definindo a prática como o último ato
dos membros mais desesperados e rejeitados da
sociedade. O que a prostituição cria, então? Ela cria,
e amplia, a alienação e exploração da pior forma.
Kollontai também marchou contra a prostituição
porque ela “ameaça o sentimento de solidariedade e
camaradagem entre trabalhadores e trabalhadoras, os
membros da república trabalhadora. E esse
sentimento é a fundação e a base da sociedade
comunista que estamos construindo e tornando
realidade.”[5]

Mas se prostituição não é trabalho, o que é? A


resposta é simples. Escravidão sexual; estupro
contratual. Continuando em seu argumento,
Kollontai fundamenta que “A prostituição nasceu
com os primeiros estados, como a sombra inevitável
da instituição oficial do casamento, que foi projetado
para preservar os direitos da propriedade privada e
garantir a hereditariedade pela linha de herdeiros
legais.” [6] Este é uma resumo do que Engels
descreveu em A Origem da Família, Propriedade e
Estado; que a prostituição permitia aos homens
participarem de relações carnais fora do casamento.
Em uma sociedade que deu luz à prostituição,
mulheres eram ou de facto propriedade dos homens
ou sua propriedade de jure, no caso das esposas. A
prostituta era essencialmente uma escrava, com
nenhum direito ou autonomia própria; sua existência
inteira era dedicada a servir aos homens. Essa
situação continuou no período feudal, em que a
prostituição era altamente organizada e onipresente,
de forma a manter a castidade e fidelidade das filhas
e esposas dos senhores, que permaneciam sua
propriedade. Mas foi o capitalismo que impulsionou
a natureza horripilante da prostituição, em que agora
todas as mulheres são ameaçadas com a prostituição
caso elas não possam bancar o sustento próprio ou
de suas famílias, ou pagar as contas, sustentar os
estudos, ou qualquer outra necessidade que a classe
trabalhadora sofre para conseguir e manter.
Novamente vemos a separação da prostituição do
trabalho; a prostituta na sociedade capitalista é a
mulher que não consegue bancar a própria existência
por meio do trabalho. Ela não é nem mesmo
considerada um ser humano, mas uma mercadoria.
Elas estão abaixo até do lumpemproletariado, a
grande massa que contém aqueles completamente
esmagados pelo capitalismo, como os indivíduos
criminosos, que ainda são reconhecidos como
humanos. Essa é classe a qual os cafetões
pertencem. [7] O cafetão é uma paródia do
capitalista parasitário que lucra com o trabalho da
classe trabalhadora; no caso do cafetão, ele tira seu
lucro da desumanização de mulheres tornadas
mercadoria.

As revoluções industrial e tecnológica que


aconteceram sob o capitalismo apenas tornaram a
vida da prostituta pior. Com o advento da
pornografia de massa, especialmente na era moderna
da comunicação de massa instantânea, a prostituta
não é mais a mercadoria de apenas um cliente, mas
de milhares de clientes, que a penetram por indução;
em conseqüência, os lucros dos cafetões dobram,
triplicam, quadruplicam em volumes nunca vistos. E
agora não são apenas mulheres, mas também os
homossexuais e homens não conformistas com os
padrões de gênero, que enquanto “exilados” da
comunidade masculina, se encontram cada vez mais
sujeitos ao papel antigamente reservado
exclusivamente às mulheres. Quase todo site
pornográfico possui sua seção para pornô
“transexual”. Na prostituição nós podemos ver o
desenvolvimento do patriarcado e do capitalismo em
um microcosmos; a desumanização em massa de
seres humanos com o objetivo de acabar com a
solidariedade entre nós, nos deixando cada vez mais
alienados e isolados, enxergando o próximo não
como camaradas em uma luta comum, mas como
recipientes para despejar prazer individualista.

Os ativistas pró-”trabalho sexual” nos fazem


acreditar que entrar na prostituição é uma “escolha”
feita livremente por parte da prostituta, e que negar
isso é negar a “agência” da prostituta. Para ilustrar
seu argumento, eles trazem à frente as “Prostitutas
com PhD” que falei anteriormente. Mas Marxistas
deveriam estar mais atentos para levar tais
evidências em consideração. O método Marxista não
analisa a condição dos indivíduos isoladamente da
sociedade como um todo, mas analisa o indivíduo
dentro do contexto social mais amplo em que ele
existe. Um estudo conduzido pela Internacional
Sorotimista, “uma organização voluntária
internacional que trabalha para melhorar a vida de
mulheres e crianças, em comunidades locais e ao
redor do mundo” descobriu que a maioria das
prostitutas “foram sexualmente e fisicamente
abusadas enquanto crianças, privadas de condições e
coagidas a venderem sexo aos 14 anos em média” a
organização continua:

“Um dos estudos sobre mulheres prostituídas


constatou que 90 por cento das mulheres foram
fisicamente violentadas na infância; 74 por cento
foram sexualmente abusadas por alguém da família,
com 50 porcento tendo também sofrido abuso sexual
por alguém fora da família. De 123 sobreviventes no
Conselho de Alternativas para Prostituição em
Portland, Oregon (uma agência que oferece suporte,
educação, abrigo e acesso a serviços de saúde para
todas as trabalhadoras de toda indústria do sexo), 85
por cento reportou histórico de incesto, 90 por cento
reportou histórico de abuso físico e 98 por cento
citou histórico de abuso emocional.”

O estudo também reparou que mulheres negras,


mulheres dos países subdesenvolvidos e mulheres
indígenas são as mais prováveis de serem forçadas à
prostituição.[8] Adicionalmente “71 por cento
reportou ter sido fisicamente abusada e 63 por cento
reportou ter sido estuprada por um cliente. Em um
estudo rigoroso de cafetões em sete cidades dos
Estados Unidos, “58 por cento das prostitutas
relataram violência, enquanto 36 relataram clientes
abusivos”. Esses estudos também desafiam a noção
de que a prostituição de “alta classe” é mais segura
que a prostituição de rua, descobrindo que
acompanhantes são abusadas por clientes pelo
menos duas vezes ao ano. Mas talvez a evidência
mais condenatória do argumento da “escolha”, seja o
fato de que “mais de 90 por cento das mulheres
prostituídas em várias pesquisas relatam que querem
sair da prostituição, mas não têm maneiras
viáveis.”[9]

Apesar disso, a multidão pró-”trabalho-sexual”


insiste que a prostituição não é estupro contratual,
porque as prostitutas estão dando o consentimento.
Mas como “consentimento” obtido por meio de
coerção econômica pode ser um consentimento
verdadeiro? Esse soa como os argumentos postos em
defesa do capitalismo em geral; por exemplo, que
trabalhadores que não gostam de suas condições de
trabalho podem sempre “escolher” um outro
trabalho. Marxistas facilmente reconhecem esse
argumento como um desvio, uma vez que existem
circunstâncias externas que previnem os indivíduos
de simplesmente escolherem o trabalho que desejam
fazer. É o mesmo com a prostituta; seu
“consentimento” é apenas um consentimento
passivo, não o consentimento ativo reconhecido
como necessário para uma verdadeira relação sexual
consensual. As “Prostitutas de PhD” que podem
livremente escolher seus “clientes” representam uma
incrível minoria, e talvez nem devessem ser
chamadas de prostitutas, mas de diletantes burguesas
que performam alegremente o sofrimento das classes
abaixo delas.

Similarmente, abolicionistas receberam a ira da


multidão pró-trabalho sexual, sendo acusadas de
moralismo e puritanismo. Eles argumentam que a
criminalização apenas pioraria a situação das
prostitutas, enquanto trazê-las para a força de
trabalho reconhecida da legalização e dos sindicatos,
ajudaria em seu sofrimento. Na primeira parte, eles
estão certos. A criminalização da prostituta é uma
expressão não só burguesa, mas da hipocrisia
patriarcal, porque a prostituta é essencialmente
punida por tentar sobreviver, punida por satisfazer
os desejos da classe dominante. Na segunda partem
entretanto, eles estão redondamente enganados. Os
países que legalizaram a prostituição viram um
aumento dramático no tráfico humano, porque, ao
contrário do que pregam os hipócritas do argumento
da escolha para o trabalho sexual, não existem
mulheres próximas o suficiente afim de
mercantilizar os próprios corpos para atender à
demanda.[10] Na Austrália e Nova Zelândia, a
legalização diminuiu a agência das prostitutas, e
aumentou o poder dos cafetões, ao introduzir a
política do “tudo incluso”, em que uma taxa única
paga ao cafetão ao invés de diretamente à prostituta,
que basicamente priva as mulheres do pouco poder
de negociação que elas tinham.[11] Na Alemanha,
uma prostituta grávida foi coagida a fazer sexo
grupal com um grupo de homens que “queriam”
uma mulher grávida; na lei alemã, isso era
perfeitamente legal. A prostituta em questão disse
que se sentiu completamente sem poder de dizer
não, e que sua agência havia sido usurpada pelo
bordel. [12] Similarmente, os “sindicatos das
profissionais do sexo” defendidos pelos ativistas do
“trabalho sexual” são um outro veículo para cafetões
e seus apoiadores exercerem sua dominação; a
Aliança Escarlate, o maior sindicato australiano das
“profissionais do sexo” chegou até a assediar
sobreviventes da indústria do sexo.[13] Rosa
Luxemburg defendeu a formação de sindicatos
revolucionários de prostitutas, mas não para
“regular” a prostituição, mas sim para destruí-la. Na
verdade, os defensores da ampla legalização (com
ou sem regulação) estão na companhia dos fascistas,
não dos socialistas revolucionários. Os nazistas
estabeleceram sistemas extensos e centralizados de
bordéis nas cidades e nos campos militares, assim
como nos próprios campos de concentração. Quando
Franco tomou o poder na Espanha, ele reverteu as
reformas abolicionistas da República e re-legalizou a
prostituição para que os homens pudessem garantir
que suas noivas continuassem virgens e não “bens
usados”.[14]

O método mais eficaz de combate à prostituição tem


sido o Modelo Nórdico, que é composto de dois
princípios: 1) A descriminalização da venda de sexo
e a criminalização dos cafetões e clientes; e 2) A
criação e fortalecimento de recursos estatais, tais
como educação, treinamento profissional,
aconselhamento e apoio comunitário para ajudar as
pessoas prostituídas a saírem com segurança da
indústria. Países que já adotaram o Modelo Nórdico,
como a Suécia, a Noruega e a Islândia viram uma
redução dramática na prostituição. O Ministério da
Justiça Sueco descobriu que desde a adoção da Lei
do Comprador de Sexo em 1999, os índices de
prostituição caíram pela metade e continuam a
diminuir.[15]

Além disso, nenhuma evidência de que prostitutas


estejam sendo forçadas no mercado negro por conta
dessa política foi descoberta.[16] E ainda mais
importante, nenhuma prostituta foi morta por
clientes desde que a lei começou a ser aplicada. O
que os cafetões, clientes e seus apoiadores não
conseguem engolir sobre o Modelo Nórdico é que
ele acaba com seu monopólio de poder e de fato
pune a exploração que eles praticam contra as
mulheres, ao mesmo tempo que empodera suas
antigas escravas. É por isso que eles sempre tentam
ofuscar os efeitos do Modelo Nórdico, até mesmo
com lamúrias de que o modelo vimitiza os “pobres
clientes”. Alguns falsos Marxistas astuciosos
argumentam que o Modelo Nórdico aumenta o poder
do Estado burguês e da polícia; ou eles protestam
que não sentido em lutar contra a prostituição uma
vez que nenhuma reforma sob o capitalismo irá
eliminá-lo. Pelo contrário, o Modelo Nórdico
representa um perfeito exemplo de uma demanda de
transição. Trotsky definiu uma demanda de transição
como sendo a ponte entre as demandas sociais
democráticas mínimas e as demandas máximas
revolucionárias socialistas; demandas que
permitiriam à classe oprimida ganhar não apenas
reformas chaves, mas também aumentar sua força e
confiança contra o estado capitalista. Demandas de
transição não são apenas chamadas para reforma,
mas uma chamada para uma ação aberta
revolucionária que inspirará outras reformas e
fortalecerá as existentes. O Modelo Nórdico é um
exemplo perfeito porque é uma reforma que ataca o
cerce do sistema patriarcal e capitalista; ele permite
que as massas vejam exatamente quem apoia e se
beneficia da prostituição. Eugene Debs, quando foi
escriturário de Terre Haute, defendeu um tipo de
proto-Modelo Nórdico, se recusando a multar
prostitutas, porque a polícia não tomava nenhuma
medida contra cafetões ou clientes abastados.
Quantos às falsas preocupações sobre o aumento de
poder para o Estado burguês e a polícia, o Modelo
Nórdico, como qualquer boa reforma de transição,
força o Estado e a política a atuar para, e não contra,
as pessoas que eles clamam representar. Estariam
esses mesmos “socialistas”, tão preocupados com os
policiais abordando cafetões e clientes, chorando as
mesmas lágrimas quando Eisenhower enviou a
Guarda Nacional para reforçar a desegregação nas
escolas do sul dos Estados Unidos regido pela Jim
Crow? Seria, na melhor das hipóteses, muito
impressionante ver um socialista citar esse evento
como um exemplo de dar ao estado burguês “poder
demais”.

Para reiterar, toda revolução socialista lutou com


toda sua força contra a prostituição e a indústria do
sexo. Todo grande revolucionário socialista
reconhece a emancipação das mulheres da
escravidão sexual uma das tarefas básicas da
revolução. Esses “socialistas do trabalho sexual” são
mais que apenas hipócritas e revisionistas, eles são
misóginos reacionários descarados. A degeneração
da esquerda revolucionária no ocidente,
especialmente no mundo Anglofônico foi o que
permitiu que essas tendências crescessem e se
proliferassem. A influência perniciosa do
neoliberalismo e do pós-modernismo infectou o
corpo teórico da esquerda revolucionária;
Lentamente corroendo suas entranhas como um
veneno gradual. O conceito Marxista de amor livre
procura eliminar o atual sistema patriarcal de
coerção e exploração, e substituí-lo por um sistema
humano e aberto de intimidade ativa e consensual.
Os que acreditam em outros conceitos fariam um
melhor trabalho largando o manifesto e se juntando
ao Partido Liberal, porque é lá onde suas políticas
realmente se alinham. A esquerda precisa se lembrar
de sua missão; a libertação dos oprimidos do mundo,
e se posicionar ativamente contra os cafetões e
clientes que se fantasiam de comunistas.

[1] Engels, Karl Marx and Frederick. “Communist


Manifesto (Chapter 2).”Marxist Internet Archive.
Marxist Internet Archive, n.d. Web. 02 July 2017.

[2] Krupskaya, Nadezhda. “On the Workers’ Strikes


and Attacks on Brothels.”Facebook. Dmytriy
Kovalevich, 05 Dec. 2016. Web. 02 July 2017. This
portion is the only English translation of
Krupskaya’s first article available online.
[3] Marx, Karl. “The German Ideology Part I:
Feuerbach. Opposition of the Materialist and Idealist
Outlook A. Idealism and Materialism.” Marxist
Internet Archive. Marxist Internet Archive, n.d.
Web. 02 July 2017.

[4] Kollontai, Alexandra. “Prostitution and Ways of


Fighting It.” Marxist Internet Archive. Marxist
Internet Archive, n.d. Web. 02 July 2017.

[5] Ibid.

[6] Ibid.

[7] Marx summarizes the membership of the


lumpenproletariat in The Eighteenth Brumaire of
Louis Bonaparte as follows: “Alongside decayed
roués with dubious means of subsistence and of
dubious origin, alongside ruined and adventurous
offshoots of the bourgeoisie, were vagabonds,
discharged soldiers, discharged jailbirds, escaped
galley slaves, swindlers, mountebanks, lazzaroni,
pickpockets, tricksters, gamblers, maquereaux
[pimps], brothel keepers, porters, literati, organ
grinders, ragpickers, knife grinders, tinkers, beggars
— in short, the whole indefinite, disintegrated mass,
thrown hither and thither, which the French call la
bohème.” (Emphasis added.)

[8] The wide prevalence of racist porn can attest to


this. Most porn sites have their material broken
down by race. The “Asian fetish” is probably the
most egregious example of racist fetishization.

[9] “Prostitution Is Not a Choice.” Soroptimist


International of the Americas(2014): 2–6. Print.

[10] Cho, Seo-Young; Dreher, Axel; Neumayer,


Eric; “Does Legalized Prostitution Increase Human
Trafficking?” World Development, 2013, 41:67–82.

[11] Valisce, Sabrinna. “Advocating for the Nordic


Model in Australia.”Facebook. Deep Green
Resistance Australia, 03 May 2017. Web. 02 July
2017.
[12] Bindel, Julie. “Pregnant Women Are Being
Legally Pimped out for Sex — This Is the Lowest
Form of Capitalism.” The Independent. Independent
Digital News and Media, 23 Apr. 2017. Web. 02
July 2017.

[13] Davoren, Heidi. “Former Sex Workers Claim


Harassment by Pro-prostitution Groups after
Speaking out.” ABC News. N.p., 12 Oct. 2016.
Web. 02 July 2017.

[14] Morcillo, Aurora G. “Introduction: Gendered


Metaphors.” The Seduction of Modern Spain: The
Female Body and the Francoist Body Politic.
Lewisburg: Bucknell UP, 2010. 19. Print.

[15] Aleem, Zeeshan. “16 Years After


Decriminalizing Prostitution, Here’s What Sweden
Has Become.” Mic. Mic Network Inc., 25 Oct. 2015.
Web. 02 July 2017.
[16] English summary of the Evaluation of the ban
on purchase of sexual services (1999–2008),
Swedish Ministry of Justice, 2010. See also: Max
Waltman, “Prohibiting Sex Purchasing and Ending
Trafficking: The Swedish Prostitution Law,” 33
Michigan Journal of International Law 133, 133–57
(2011), pp. 146–148.
https://qgfeminista.org/misoginia-e-revisionismo-2a-
parte-a-mascara-do-cafetao-vermelho/

Em Defesa do Feminismo: Misoginia é


Revisionismo
O Feminismo se tornou a marca da discórdia para
muitos na esquerda atual. Se tornou aceitável para
muitos comunistas auto-proclamados denunciar o
feminismo tanto como burguês, quanto uma forma
de política de identidade, ou ambos. Muitas dessas
afirmações se baseiam em uma leitura errônea
deliberada dos gigantes do feminismo Marxista,
assim como um argumento semântico superficial. E
nenhuma vertente do feminismo é mais
intensamente perseguida e vilipendiada pela
esquerda “consciente” do que o feminismo radical,
que é denunciado nas afirmações acima das formas
mais viciadas e ridículas. A realidade é que o
feminismo não é apenas compatível com o
Marxismo, como é indispensável ao Marxismo. Sem
a libertação das mulheres, não há uma revolução
socialista bem sucedida. Lenin fez a afirmação
famosa de que “Não pode haver, nem vai nunca
haver uma verdadeira ‘liberdade’ enquanto não
houver liberdade para as mulheres dos privilégios
que a lei garante aos homens, enquanto não houver
liberdade para os trabalhadores do jugo do capital, e
liberdade para os camponeses do jugo dos
capitalistas, proprietários e merchands.”[1] Mas para
os reducionistas de classe que adoram o altar do
classismo, esse ponto de vista entra por um ouvido e
sai por outro. Enquanto as duas primeiras partes
dessa série foram mais focadas em teoria, esse
capítulo final é mais polêmico que teórico, e se
propõe a reafirmar como o feminismo é
indispensável ao projeto socialista revolucionário.

A afirmação de que o feminismo é burguês foi


popularizada pela Liga Comunista Internacional,
mais conhecida popularmente como Liga Espartana,
famosa por sua defesa “revolucionária” do diretor
estuprador Roman Polanski, e do clube de sexo
NAMBLA.[2] O igualmente nocivo Partido
Socialista da Igualdade, também conhecido por sua
defesa a estupradores e também por sua fama de
informantes contra os “Espiões Stalinistas”,
denunciam similarmente o feminismo como
burguês. Ambas organizações afirmam que eles
apoiam não o feminismo, mas a “libertação das
mulheres”. Enquanto esses dois setores não são
influentes nem entre si, nem na esquerda como um
todo, seu sentimento anti-feminista, e discurso pró-
”libertação das mulheres” foi adotado por muitos
auto-proclamados esquerdistas, em sua maioria
homens. Para justificar suas posições, eles citam a
obra de Alexandra Kollontai, A Base Social das
Questões das mulheres, mas esses argumentos
esquecem que Kollontai não denunciou o feminismo
em geral, mas o feminismo burguês. Kollontai, junto
com suas contemporâneas Rosa Luxemburgo e Clara
Zetkin, lutou pela radicalização e evolução do
feminismo; assim como o comunismo representou a
culminação do radicalismo esclarecido, elas
procuraram criar um feminismo que iria representar
as questões ideológicas da luta pela libertação das
mulheres, e funcionar como um guia de ações para
mulheres trabalhadoras. O que essas mulheres
revolucionárias tornaram reconhecível foi que,
enquanto há questões que unem todas as mulheres, o
colaboracionismo de classe iria ferir de ultimátum a
causa feminista, ao invés de fazê-la avançar, porque
as feministas burguesas iriam se aliar com seus
companheiros de classe econômica. Essa visão é
bem diferente da denúncia totalitarista do feminismo
enquanto ideologia. Todo esse discurso de
“libertação das mulheres e não feminismo” é apenas
uma ofuscação semântica; o que ele realmente faz é
distrair do desconforto muitos homens de esquerda
sentem ao tratar de um movimento revolucionário
exclusivamente de mulheres. Essas mulheres
revolucionárias não teorizaram, se organizaram e
agitaram a cena política para fazer os homens se
sentirem confortáveis, mas para libertar o
proletariado internacional, especialmente as
mulheres trabalhadoras do mundo.

A outra acusação de que o feminismo é uma forma


de política identitária é outro exemplo de semântica
desonesta e ofuscação ideológica. Como foi
discutido na primeira parte dessa série, mulher não é
uma identidade, mas uma realidade material de um
ser humano. Em A Origem da Família, Propriedade
Privada e Estado, Engels explicou como o advento
da propriedade privada e sua concentração em mãos
masculinas, levou à dominação das mulheres pelos
homens com o propósito de explorar o trabalho
reprodutivo para que a propriedade pudesse ser
transferida de pai para filho. O patriarcado e a
sociedade de classes existem em simbiose entre si,
um sendo dependente do outro. E o capitalismo,
apesar de permitir que mulheres consigam alguns
ganhos, ainda precisa manter o controle do trabalho
reprodutivo das mulheres para garantir a
continuação da classe proletária. O patriarcado
também serve à função de dar ao homem das classes
proletárias um “escape” para sua agressão; ao invés
de direcionar sua raiva contra um sistema que os
explora, os homens são encorajados a direcionar
essa raiva às mulheres. Mas, de novo, isso não
acontece porque mulheres são uma “identidade”.
Uma boa parte dessa raiva direcionada às mulheres é
exploração sexual; prostituição, pornografia e
escravidão sexual. (Veja a parte 2 para uma
explicação mais detalhada da exploração sexual de
mulheres pelo patriarcado e capitalismo.) A biologia
feminina, o estado de ser mulher e ter um corpo
feminino é inseparável da opressão e exploração.
Thomas Sankara falou dessa dupla opressão das
mulheres:

“O destino de uma mulher é fadado assim como o


destino de um homem explorado. Entretanto, essa
solidariedade não pode nos cegar perante às
situações específicas enfrentadas pelas mulheres na
nossa sociedade. É verdade que mulheres e homens
trabalhadores são explorados economicamente, mas
a esposa trabalhadora é também condenada ao
silêncio pelo seu marido trabalhador. Esse é o
mesmo método usado por homens para dominar
outros homens! Uma ideia foi criada de que alguns
homens, por virtude de sua origem familiar e
nascimento, ou por ‘direitos divinos’, são superiores
aos outros.”[3]

Nascer mulher é um sentença que na melhor das


hipóteses te torna um cidadão de segunda classe, e
na pior, te condena a uma vida cheia das piores
formas de escravidão e exploração. Mulheres
formam em conjunto não uma classe, mas uma
casta; É possível uma pessoa mudar da classe a qual
pertence, mas a casta é algo que alguém nasce e
nunca escapa. O Feminismo tem o objetivo de
emancipar a casta feminina; não é o mesmo que um
movimento identitário abstrato. Nós devemos nos
perguntar se essas pessoas que denunciam o
feminismo como um política identitária falam o
mesmo da libertação negra ou outros movimentos de
libertação nacional. Certamente alguns falarão, mas
suspeitamos que esses façam parte de uma minoria.
Se pode ser considerado algo, o culto pelo
“trabalhador ideal” praticado pela esquerda
reducionista de classe é um exemplo verdadeiro de
política identitária, a forma como se fetichiza e eleva
um arquétipo de trabalhador industrial como sendo o
símbolo da classe trabalhadora. Esse tipo de
reducionismo bruto de classe representa um perigo
para a esquerda que o feminismo jamais foi, mesmo
quando o feminismo foi usado de exemplo para
“políticas de identidade”. De novo, essas denúncias
servem mais para apaziguar o desconforto da
esquerda masculina do que qualquer outra coisa.
Homens das classes trabalhadoras e homens da
esquerda ainda são homens, e ao menos que eles
combatam ativamente a socialização patriarcal e
capitalista, eles estarão dando mais apoio ao status
quo do que à revolução. Se a solidariedade com as
mulheres das classes trabalhadoras não pode
persuadi-los a apoiar o feminismo, então talvez eles
deverão apoia-lo em último caso, se estiver dentro
de seus próprios interesses. Assim como o
trabalhador branco racista que se considera superior
ao seu camarada negro, o capitalismo não hesitará
em sacrificar o trabalhador homem chauvinista na
pira da acumulação e do lucro.

A esquerda anti-feminista atingiu seu ápice nos


últimos anos com seus ataques fervorosos ao
feminismo radical e às feministas radicais. Todo a
argumentação crassa direcionada ao feminismo é
também estendida ao pensamento feminista radical,
mas o linchamento público tem tomado novas
proporções de maldade. Existem também outras
acusações reservadas apenas para atacar o
feminismo radical além das usuais; que o feminismo
radical é elitista, supremacista branco, “transfóbico”,
moralista, “putafóbico”, e até fascista! Novamente,
esse argumentos demonstram um nível chocante de
ignorância quando o assunto é história e teoria.
Assim como as feministas marxistas do começo do
século XX, o feminismo radical surgiu não como um
movimento anti-esquerda, mas como um movimento
que expandia a esquerda ao seu potencial teórico e
revolucionário máximo. Carol Hanisch, a feminista
radical que, entre outras coisas, cunhou a frase “o
pessoal é político” e organizou o protesto ao Miss
America 1968, disse em um discurso que o
movimento feminista radical que ela ajudou a criar e
a desenvolver foi inspirado por Mao e a Revolução
Cultural. No mesmo discurso, ela diz:

“Para mim, a Revolução Cultural parece uma


continuação da Revolução: um meio de aprofundá-la
para que a revolução não caia nas mãos da
burocracia e da complacência que se estabelecem
assim que o poder é tomado militarmente e um novo
grupo de pessoas — incluindo oportunistas dentro
do próprio movimento revolucionário — têm a
chance de criar um novo status quo. É a continuação
de um processo do qual as massas de trabalhadores,
incluindo as mulheres e as minorias, tomam o total
poder político e econômico. É o próximo passo para
se atingir o verdadeiro comunismo; que é uma
sociedade completamente isenta de classes,
incluindo as classes sexuais e raciais. Nós
considerávamos o sexismo e o racismo mais do que
apenas uma tradição de comportamento ou um
hábito ruim ou ignorante. Sendo materialistas (no
sentido Marxista) nós nos perguntávamos, ‘Quem se
beneficia?’”[4]

Outras feministas radicais como Shulamith Firestone


e Andrea Dworkin aplicaram o materialismo
dialético exclusivamente para entender a opressão e
exploração encarada pelas mulheres. Ao invés de
ceder ao “determinismo biológico”, ou ao “fascismo
sexual”, suas críticas afirmavam, e ainda afirmam,
que foram construídas com base no trabalho de
Engels, Kollontai e outros, e aprofundado a partir
deles; a análise das feministas radicais fez com o
patriarcado o que Marx fez com o capitalismo. Nós
devemos muito do novo entendimento sobre
sociedades humanas pré-patriarcais e a história
“perdida” das mulheres à análise e pesquisa diligente
dessas mulheres. A frustração das feministas radicais
com boa parte da esquerda não foi e não deve ser
considerada como uma forma de sentimento anti-
esquerda, mas entendida pelo que realmente é, uma
frustração bastante enraizada com o chauvinismo e
senso de direito exibido pelos homens da esquerda,
assim como a dominação dos grupos de esquerda
por esses homens e a maneira como as mulheres
desses grupos foram constantemente silenciadas e
abusadas (algo que ainda acontece hoje, como
mostram os “escândalos” de estupro dentro do
Partido dos Trabalhadores Socialistas do Reino
Unido, e dentro da seção Australiana do Comitê
Internacional dos Trabalhadores). E assim como
Marx é sujeito a ataques ridículos de pessoas que
nunca leram sua obra, a mesma coisa acontece com
as feministas radicais (a afirmação errônea de que
Dworkin disse que “todo sexo é estupro” é uma das
distorções mais populares). Tirando que as
feministas radicais não são atacadas apenas pela
direita, da forma que é Marx, mas também pela
esquerda. O que isso realmente mostra é que quanto
mais direto seja um ataque a uma estrutura de poder
existente, mais amplamente insano e selvagem será
o contra-ataque.

No fim das contas, a “esquerda” anti-feminista


simplesmente trai uma completa falta de
entendimento de ambas teorias socialistas
revolucionárias e suas práticas. Todo socialista
revolucionário reconhece que para a revolução ter
sucesso, as mulheres precisam estar mobilizadas em
massa; mesmo depois que a república socialista for
estabelecida, essa mobilização deve continuar e se
aprofundar para que socialismo crie raízes e
floresça. Mulheres são mais do que decoração para a
revolução socialista, elas devem ser participantes
ativas em todo aspecto da construção da sociedade
socialista. Mao e Castro foram especialmente astutos
em reconhecer esse fato: tanto na China (pelo menos
até a era de Deng Xiaoping) e Cuba foram
proponentes ativos da libertação das mulheres em
todas as esferas da sociedade. Marx disse ele
próprio, “Qualquer pessoa que saiba o mínimo de
história sabe que grandes mudanças sociais são
impossíveis sem o fermentos das mulheres. O
progresso social pode ser medido precisamente pela
posição social do sexo justo…”[5] Essa afirmação
pode e deve ser aplicada para organizações
socialistas; os grupos socialistas mais ativos são
aqueles em que as mulheres não só são membras
ativas em todos os níveis, mas contribuidoras em
igualdade e valorizadas para o desenvolvimento da
organização e de sua prática. Esses “socialistas” que
desprezam, diminuem ou desqualificam o
feminismo, o fazem com sua própria conta em risco.

[1] Lenin, VI. “Soviet Power and the Status of


Women.” Marxist Internet Archive. Marxist Internet
Archive, 2002. Web. 06 July 2017.

[2] “Feminism vs. Marxism: Origins of the


Conflict.” International Communist League (Fourth
International). Women and Revolution, 10 June
2011. Web. 06 July 2017. The “Spart’s” key anti-
feminist manifesto.

[3] Sankara, Thomas. “7 Thomas Sankara Quotes


about Women.” MsAfropolitan. N.p., 25 Nov. 2011.
Web. 06 July 2017.
[4] Hanisch, Carol. “Impact of the Chinese Cultural
Revolution on the Women’s Liberation Movement.”
Carolhanisch.org. Carol Hanisch, 1996. Web. 06
July 2017.

[5] Marx: Letters to Dr Kugelmann, Marxist Lib. 17


(NY, International Pub., 1934), letter of December
12, 1868, p.83.
https://medium.com/qg-feminista/em-defesa-do-
feminismo-misoginia-%C3%A9-revisionismo-part-
3-2b8be00fff

Um chamado para feministas lembrarem a história


da opressão feminina baseada no sexo (Parte I)
Como tudo começou https://medium.com/qg-
feminista/um-chamado-para-feministas-lembrarem-
a-hist%C3%B3ria-e-natureza-com-base-no-sexo-da-
opress%C3%A3o-feminina-6c6eff3ce207
(Parte 2) https://medium.com/qg-feminista/um-
chamado-para-feministas-lembrarem-a-
hist%C3%B3ria-e-natureza-com-base-no-sexo-da-
opress%C3%A3o-feminina-6c6eff3ce207
“A ideia de que as diferenças convencionais de
gênero podem ser transgredidas pela performance,
leva Judith Butler e outros teóricos queer à noção de
que deveria haver um reconhecimento da existência
de muitos “gêneros”. Esta abordagem de gênero o
separa de sua base material na opressão de mulheres.
O problema passa a ser simplesmente a escassez de
oportunidades de gênero.
Abordagens feministas radicais/lésbicas de gênero
não poderiam ser mais diferentes. Em vez de ver a
tarefa política como a criação de mais e iguais
oportunidades para representar masculinidade e
feminilidade em várias variedades, feministas
radicais/lésbicas procuram abolir o que tem sido
chamado de "gênero", completamente.
Eu prefiro descrever a masculinidade como
"comportamento masculino dominante" e
feminilidade como "comportamento subordinado
feminino". Nenhuma multiplicidade de gêneros
emerge dessa perspectiva. Christine Delphy, a
feminista radical teórica francesa, expressa este
ponto de vista mais claramente (Delphy, 1993). Ela
explica que é muito errado ver o problema com o
gênero, como sendo aquele de atribuição rígida de
certas qualidades e comportamentos que poderia ser
resolvido pela androginia, em que os
comportamentos de masculinidade e feminilidade
podem ser misturados. Os dois gêneros do presente,
ela diz, são na verdade os comportamentos de
dominação masculina e a submissão das mulheres.
A compreensão do gênero como formas dominantes
e subordinadas de comportamento acaba com a ideia
de que pode haver muitos "gêneros". Só pode haver
maneiras de expressar domínio e submissão por
outros além dos atores habituais. Os gêneros
permanecem dois. A abordagem queer que celebra a
“performance” de gênero e sua diversidade
necessariamente mantém os dois gêneros em
circulação. Ao invés de eliminar comportamentos
dominantes e submissos, reproduz eles. Assim,
aqueles teóricos e ativistas queer que buscam
performar o gênero pode ser visto como leal ao
gênero, com interesse na manutenção do sistema de
gênero da supremacia masculina. Em vez de serem
de alguma forma revolucionários, eles são
anacronismos históricos. Essas pessoas também
estão se engajando em comportamentos que se opõe
ao projeto feminista de eliminação de gênero,
ajudando assim a manter a circulação de gênero.”
Destrinchando a política queer - Sheila Jeffreys

A Professora da Paródia – A Moda do


Derrotismo em Judith Butler

Por muito tempo, o feminismo acadêmico nos EUA


tem sido intimamente aliado à luta prática para
atingir justiça e equidade para mulheres. A teoria
feminista tem sido entendida por teóricas não apenas
como palavras bonitas no papel; a teoria é conectada
a propostas de mudança social. Deste modo,
acadêmicas feministas têm se engajado em muitos
projetos concretos: a reforma da legislação sobre
estupro; o ganho de atenção e reparação legal pelos
problemas da violência doméstica e assédio sexual; a
melhoria das oportunidades econômicas, condições
de trabalho e educação para mulheres; o ganho de
licença maternidade para trabalhadoras; a campanha
contra o tráfico de mulheres e meninas na
prostituição; a atuação pela igualdade política e
social para lésbicas e gays.

De fato, algumas teóricas abandonaram


completamente a academia, sentindo-se mais
confortáveis no mundo da política prática, onde
podem lidar mais diretamente com esses problemas
urgentes. Aquelas que permanecem na academia
fizeram questão de honra ser acadêmicas do tipo
engajado e prático, sempre focando nas reais
condições materiais das mulheres, escrevendo
sempre de modo a reconhecer esses corpos e seus
desafios reais. Não se pode ler uma página de
Catherine MacKinnon, por exemplo, sem se engajar
em uma questão real de direito e de mudança
institucional. Se alguém discorda de suas
proposições – e muitas feministas discordam – o
desafio apresentado pela sua obra é encontrar
alguma outra maneira de solucionar um problema
vividamente delineado.

Em alguns casos, feministas divergiram a respeito


do que é ruim e do que é necessário para melhorar as
coisas; porém todas concordaram que a situação das
mulheres é, muitas vezes, injusta e que ações
políticas e legais podem torná-la mais justa.
MacKinnon, que descreve hierarquia e subordinação
como endêmicas em toda nossa cultura, também está
comprometida, e cautelosamente otimista, com
mudanças através da lei – a lei doméstica contra
estupro e assédio sexual e a legislação internacional
sobre direitos humanos. Até Nancy Chodorow, que,
em A Reprodução da Maternidade [tradução livre],
apresentou um triste relato sobre a replicação de
categorias opressivas de gênero na criação de filhos,
argumentou que essa situação pode mudar. Homens
e mulheres podem decidir, compreendendo as
infelizes consequências desses hábitos, que passarão
a agir de modo diferente; e mudanças nas leis e
instituições podem ajudar em tais decisões.

A teoria feminista ainda se apresenta dessa maneira


em diversas partes do mundo. Na Índia, por
exemplo, feministas acadêmicas se lançaram em
lutas práticas, e o teorizar feminista está
intimamente atrelado a compromissos práticos como
a alfabetização feminina, a reforma das leis agrárias
desiguais, mudanças na lei sobre estupro (que, na
Índia atual, tem muitas das falhas atacadas pela
primeira geração de feministas americanas), o
esforço para conseguir reconhecimento social para
problemas de assédio sexual e violência doméstica.
Essas feministas sabem que vivem no meio de uma
realidade de atroz injustiça; elas não podem viver
consigo mesmas sem lidar com isso quase
diariamente na sua escrita teórica e nas suas
atividades fora da sala de seminários.

Nos Estados Unidos, no entanto, as coisas têm


mudado. Pode-se notar uma nova e inquietante
tendência. Não é só a teoria feminista que pouco se
atenta aos desafios das mulheres fora dos Estados
Unidos. (Esta sempre foi uma característica
desanimadora mesmo de muitas das melhores obras
do período inicial.) Algo mais insidioso que o
provincianismo se tornou proeminente na academia
americana. É a mudança de foco virtualmente
completa do aspecto material da vida para um tipo
de política verbal e simbólica que tem apenas tênues
ligações com a situação de mulheres reais.

As pensadoras feministas do novo tipo simbólico


parecem acreditar que a única maneira de fazer
política feminista é usando palavras de modo
subversivo, em publicações acadêmicas de
obscuridade pomposa e abstração desdenhosa. Esses
gestos simbólicos, creem elas, são por si mesmos
atos de resistência política; e, assim, evita-se engajar
em coisas mais complicadas como legislações e
movimentos para agir audaciosamente. Além disso,
o novo feminismo ensina a seus membros que existe
pouco espaço para mudança social em larga escala,
e, talvez, espaço algum. Somos todas, mais ou
menos, prisioneiras das estruturas de poder que
definiram nossa identidade como mulheres; nunca
poderemos mudar em grande escala essas estruturas,
e nunca conseguimos escapar delas. Tudo que
podemos fazer é encontrar espaços dentro das
estruturas de poder para as parodiar, escarnecer
delas, transgredi-las com o discurso. E, assim, a
política verbal simbólica, além de ser apresentada
como um tipo de política real, é considerada a única
política realmente possível.

Esses desenvolvimentos devem muito à recente


proeminência do pensamento pós-modernista
francês. Muitas jovens feministas, quaisquer que
sejam suas afiliações concretas com este ou aquele
pensador francês, tem sido influenciadas pela ideia
extremamente francesa de que o intelectual faz
política falando subversivamente, e que este é um
tipo significativo de ação política. Muitas também
derivam dos escritos de Michel Foucault (correta ou
incorretamente) a ideia fatalista de que somos
prisioneiras de uma estrutura de poder totalmente
abrangente, e que movimentos reformistas da vida
real normalmente acabam servindo ao poder de
maneiras novas e insidiosas. Tais feministas,
portanto, encontram conforto na ideia de que resta
disponível o uso subversivo das palavras para
intelectuais feministas. Despidas da esperança de
mudanças maiores e mais duradouras, ainda
podemos realizar nossa resistência através da
reformulação de categorias verbais e, desta maneira,
às margens, das identidades por elas constituídas.

Uma feminista americana tem moldado esses


desdobramentos mais do que qualquer outra. Para
muitos jovens acadêmicos, Judith Butler parece
definir o que é o feminismo atualmente. Educada
como filósofa, é frequentemente vista (mais por
pessoas na literatura do que por filósofos) como uma
importante pensadora sobre gênero, poder e o corpo.
Enquanto nos perguntamos o que aconteceu com o
antigo estilo de política feminista e as realidades
materiais com as quais estava comprometido, parece
necessário conhecer as obras e influência de Butler,
e examinar os argumentos que levaram muitos a
adotar uma postura que muito se assemelha ao
"quietismo" e à fuga.

II.

É complicado enfrentar as ideias de Butler, porque é


complicado entender o que são. Butler é muito
astuta. Em discussões públicas, ela prova que pode
falar claramente e tem uma rápida compreensão do
que é dito a ela. Seu estilo de escrita, por outro lado,
é laborioso e obscuro. Ele é repleto de alusões a
outros teóricos e é elaborado a partir de uma vasta
gama de diferentes tradições teóricas. Além de
Foucault e com um foco mais recente em Freud, a
obra de Butler depende fortemente do pensamento
de Louis Althusser, da teórica francesa lésbica
Monique Wittig, da antropóloga americana Gayle
Rubin, Jacques Lacan, J. L. Austin e do filósofo da
linguagem americano Saul Kripke. Essas
personalidades não concordam completamente umas
com a outras, para dizer o mínimo; então, um
problema inicial ao ler Butler é que aquele que tenta
fazê-lo fica aturdido ao encontrar os argumentos
dela sustentados por tantos conceitos e tantas
doutrinas contraditórias, geralmente sem nenhuma
explicação de como as aparentes contradições serão
resolvidas.

Um problema adicional reside no casual modo de


Butler de fazer alusão. As ideias desses pensadores
nunca são descritas em suficiente detalhe para
incluir os não iniciados (caso você não esteja
familiarizado com o conceito althusseriano de
“interpelação ideológica”, você ficará perdido por
capítulos) ou para explicar aos iniciados como
exatamente as difíceis ideias estão sendo
compreendidas. Claro, muito da escrita acadêmica é
alusiva de algum modo: pressupõe um conhecimento
prévio de certas doutrinas e posições. Mas em ambas
as tradições filosóficas continental e anglo-
americana, autores acadêmicos, para um público
especialista, reconhecem que as figuras que eles
mencionam são complicadas e são objeto de diversas
interpretações diferentes. Eles, portanto, tipicamente
assumem a responsabilidade de adiantar uma
interpretação definitiva entre as que estão sendo
contestadas, exibindo, através de argumentos, por
que interpretaram a figura em questão da forma que
interpretaram e por que a interpretação deles é
melhor que a de outros.

Não encontramos nada disso em Butler.


Interpretações divergentes são simplesmente
desconsideradas — até mesmo quando, nos casos de
Foucault e Freud, ela adianta interpretações
altamente contestáveis que não seriam aceitas por
muitos estudiosos. Desse modo, aquele que lê sua
obra é levado à conclusão de que as alusões feitas
em sua escrita não podem ser explicadas da maneira
usual, que seria expor um conjunto de especialistas
ávidos para debater os detalhes de uma posição
acadêmica esotérica. A escrita é simplesmente
magra demais para satisfazer tais especialistas. É
também óbvio que a obra de Butler não é
direcionada para um público não acadêmico ávido
para enfrentar injustiças reais. Tal público ficaria
simplesmente perplexo diante da espessa sopa que é
a prosa de Butler, pelo seu ar de entendimento
interno a um grupo ou pela sua extremamente alta
prevalência de nomes em relação a explicações.

Para quem, então, Butler está falando? Parece que


ela se dirige a um grupo de jovens teóricas
feministas na academia que não são estudantes de
filosofia, que se importariam com o que Althusser,
Freud ou Kripke realmente disseram; nem leigas,
que precisem ser informadas sobre a natureza dos
projetos deles e convencidas de seu valor. O público
implícito é imaginado como notoriamente dócil.
Subserviente à voz oracular do texto de Butler e
deslumbrado pela sua aparência de abstração
altamente conceitual, o leitor imaginado levanta
poucas questões, não cobra argumentos nem
definições claras dos termos.

Ainda mais estranhamente, espera-se que o leitor


implícito não se importe substancialmente com a
visão final da própria Butler em diversos assuntos.
Pois uma grande proporção de frases em qualquer
livro escrito por Butler — especialmente frases
próximas do fim de capítulos — são perguntas. Às
vezes a resposta para essas perguntas é evidente.
Mas frequentemente as coisas são muito mais
indeterminadas. Entre as frases não interrogativas,
diversas começam com “Considere que...” ou
“Alguém poderia sugerir que...” — de tal modo que
Butler nunca realmente diz ao leitor se ela aprova ou
não a opinião descrita. A mistificação, tal como a
hierarquia, são as ferramentas de sua prática; uma
mistificação que se esquiva da crítica, porque faz
poucas alegações definidas.

Observe esses dois exemplos representativos:


O que significa, para a agência de um sujeito,
pressupor sua própria subordinação? O ato de
pressupor é o mesmo que o ato de reintegração ou
existe uma descontinuidade entre o poder
pressuposto e o poder reintegrado? Considere que,
no próprio ato no qual o sujeito reproduz as
condições de sua própria subordinação, o sujeito
exemplifica uma vulnerabilidade temporalmente
baseada que pertence àquelas condições,
especificamente, às exigências da renovação delas.

E:

Tais perguntas não podem ser respondidas aqui, mas


elas indicam uma direção para o pensamento que é,
talvez, anterior à questão da consciência [moral],
isto é, a questão que preocupava Spinoza, Nietzsche
e, mais recentemente, Giorgio Agamben: Como
devemos entender o desejo como sendo um desejo
constitutivo? Ressituando a consciência e a
interpelação ideológica dentro de tal avaliação, nós
poderíamos, então, adicionar outra questão àquela:
Como é esse desejo explorado não somente por uma
lei no singular, mas por leis de vários tipos, de forma
que cedemos à subordinação de forma a manter
algum sentido de “ser” social?

Por que Butler prefere escrever dessa maneira


provocante e exasperada? O estilo certamente não é
sem precedentes. Alguns recintos da tradição
filosófica continental, embora certamente não todos
eles, têm uma infeliz tendência a prezar o filósofo
como uma estrela que fascina mais frequentemente
pela obscuridade do que como um argumentador
entre iguais. Quando as ideias são postas claramente,
afinal de contas, elas podem ser destacadas de seus
autores: alguém pode tomá-las e segui-las por conta
própria. Quando elas permanecem misteriosas (na
verdade, quando não estão bem declaradas), o leitor
permanece dependente da autoridade de origem. O
pensador ou a pensadora só ganha atenção por seu
carisma empolado. O leitor paira em suspense, ávido
pelo próximo passo. Quando Butler realmente seguir
a “direção para o pensamento”, o que ela dirá? O
que significa, diga-nos, por favor, a agência de um
sujeito pressupor sua própria subordinação?
(Nenhuma resposta clara a essa questão, tanto
quanto posso ver, está próxima.) É dada a impressão
de uma mente tão profundamente intelectual que ela
não vai se pronunciar sobre qualquer coisa
levemente: então se espera, numa reverência por sua
profundidade, que ela finalmente trate de fazê-lo.

Desse modo, a obscuridade cria uma aura de


importância. E também serve para outro propósito
relacionado. Intimida o leitor a admitir que, já que
ninguém consegue compreender o que está se
passando, então deve haver algo significativo
acontecendo, alguma complexidade de pensamento,
onde, na realidade, há noções familiares ou até
surradas sendo muitas vezes tratadas de um modo
simplório e casual demais para adicionar qualquer
nova dimensão de entendimento. Quando os leitores
intimidados pela obra de Butler reunirem a ousadia
para pensar assim, eles verão que as ideias desses
livros são magras. Quando as noções de Butler são
demonstradas de forma clara e sucinta, percebe-se
que, sem mais distinções e argumentos adicionais,
elas não vão longe nem são especialmente novas.
Assim, a obscuridade preenche o vácuo deixado pela
ausência de uma complexidade real de pensamento e
argumento.
Ano passado, Butler ganhou o primeiro lugar no
Concurso do Texto Ruim [“Bad Writing Contest”],
patrocinado pela revista acadêmica Philosophy and
Literature, pelo seguinte trecho:

A mudança de uma explicação estruturalista, na qual


entende-se que o capital estrutura as relações sociais
de maneiras relativamente homólogas, para uma
visão de hegemonia, onde as relações de poder estão
sujeitas a repetição, convergência e rearticulação,
trouxe a questão da temporalidade ao pensamento de
estrutura, e marcou uma transição de uma forma da
teoria althusseriana, que toma as totalidades
estruturais como objetos teóricos, para outra, em que
os insights sobre a possibilidade contingente da
estrutura inauguram um conceito renovado de
hegemonia, como algo associado às situações e
estratégias contingentes de rearticulação do poder.

Agora, Butler poderia ter escrito: “As considerações


marxistas, focando-se no capital como uma força
central estruturando as relações sociais, retrataram as
operações dessa força como uniforme em todo lugar.
Por outro lado, as considerações althusserianas,
focando-se no poder, veem as operações dessa força
como variadas e inconstantes ao longo do tempo”.
Ao invés disso, ela dá preferência à verborragia, que
demanda ao leitor tanto esforço em decifrar a prosa
dela que resta pouca energia para avaliar a verdade
daquelas alegações. Ao anunciar o prêmio, o editor
da revista acadêmica comentou que “foi
possivelmente a obscuridade indutora de ansiedade
de tal escrita que levou o professor Warren Hedges
da Southern Oregon University a enaltecer Judith
Butler como ‘provavelmente uma das dez pessoas
mais inteligentes do planeta’”. (Tal escrita ruim é,
aliás, de nenhuma forma ubíqua no grupo de teóricos
da “teoria queer” ao qual Butler é associada. David
Halperin, por exemplo, escreve sobre a relação entre
Foucault e Kant, e sobre a homossexualidade grega,
com clareza filosófica e precisão histórica.)

Butler obtém prestígio no mundo literário por ser


uma filósofa; muitos admiradores associam sua
maneira de escrever à profundidade filosófica. Mas
deveriam se perguntar se isso ao menos pertence à
tradição filosófica, em vez de às tradições
intimamente relacionadas, porém conflitantes, de
sofisma e retórica. Desde que Sócrates distinguiu
filosofia do que os sofistas e os retóricos estavam
fazendo, ela tem sido um discurso de iguais que
trocam argumentos e contra-argumentos sem
qualquer truque obscurantista. Dessa forma,
afirmou, a filosofia demonstra respeito pela alma,
enquanto outros métodos manipulativos demonstram
apenas o desrespeito. Numa tarde, fatigada por
Butler numa longa viagem de avião, voltei-me para
um rascunho de dissertação de uma estudante sobre
identidade pessoal na visão de Hume. Rapidamente
me senti reanimada. “Ela escreve tão claramente”,
pensei com prazer e com uma ponta de orgulho. E
Hume, que agradável e que alma graciosa: como ele
respeita a inteligência do leitor, mesmo à custa de
expor sua própria incerteza.

III.

A principal ideia de Butler, introduzida na obra


Gender Trouble em 1989 e repetida em seus livros, é
que gênero é um artifício cultural. Nossas ideias
sobre o que é ser mulher ou homem não são reflexos
de algo que exista eternamente na natureza. Ao invés
disso, derivam de nossos costumes que incorporam
as relações sociais de poder.
Essa noção, claro, não é nova. A desnaturalização
dos gêneros já estava presente em Platão, e recebeu
uma grande força de John Stuart Mill, que disse em
A Sujeição das Mulheres que “o que é chamado
agora de natureza da mulher é algo eminentemente
artificial”. Mill percebia que as alegações sobre “a
natureza da mulher” derivam de hierarquias de poder
e as fortalecem: fez-se da feminilidade qualquer
coisa que servisse para a causa de manter as
mulheres subjugadas, ou, nas palavras dele,
“dominar as mentes delas”. Tanto com a família
quanto com o feudalismo, a retórica do natural serve
à causa da escravidão. “Sendo a sujeição das
mulheres aos homens um costume universal, é bem
natural que qualquer desvio dela pareça
antinatural… Mas já houve um dia qualquer
dominação que não parecesse natural para aqueles
que a possuíam?”

Mill dificilmente foi o primeiro construtivista social.


Ideias semelhantes sobre raiva, ganância, inveja e
outras características proeminentes de nossas vidas
foram comuns na história da filosofia desde a Grécia
Antiga. E a aplicação de Mill de noções familiares
de construção social para gênero precisava, e ainda
precisa, de mais desenvolvimento; suas observações
sugestivas ainda não constituíam uma teoria de
gênero. Muito antes de Butler vir à cena, muitas
feministas contribuíram para a articulação de tal
explicação.

Em trabalhos publicados nas décadas de 1970 e


1980, Catharine MacKinnon e Andrea Dworkin
argumentaram que o entendimento convencional dos
papeis gênero é uma maneira de assegurar a
contínua dominação masculina nas relações dos
sexos, assim como na esfera pública. Elas tomaram
o cerne do insight de Mill para uma esfera da vida a
respeito da qual o filósofo vitoriano disse pouco.
(Não nada, no entanto: em 1869 Mill já havia
entendido que a falta de criminalizar o estupro
dentro do casamento definiu a mulher como uma
ferramenta para o uso masculino e negou a ela
dignidade humana.) Antes de Butler, MacKinnon e
Dworkin abordaram a fantasia feminista de uma
natureza sexual idílica da mulher que só precisava
ser “liberada”; e argumentaram que forças sociais
são tão profundas que nós não deveríamos supor que
temos acesso a uma noção de “natureza”. Antes de
Butler, elas enfatizaram os modos pelos quais as
estruturas de poder da dominação masculina
marginalizam e subordinam não só às mulheres, mas
também às pessoas que gostariam de escolher um
relacionamento homossexual. Elas entendiam que a
discriminação contra gays e lésbicas é uma forma de
fazer cumprir os familiares papéis de gênero
ordenados hierarquicamente; e então elas viam a
discriminação contra gays e lésbicas como uma
forma de discriminação sexual.

Antes de Butler, a psicóloga Nancy Chodorow deu


uma detalhada e convincente explicação de como as
diferenças de gênero replicam-se através das
gerações: ela argumentou que a ubiquidade desses
mecanismos de replicação nos permite entender
como o que é artificial pode, contudo, ser quase
onipresente. Antes de Butler, a bióloga Anne Fausto
Sterling, através de sua minuciosa crítica do trabalho
experimental que supostamente apoia a naturalidade
das distinções convencionais entre gêneros, mostrou
quão profundamente relações sociais de poder
comprometeram a objetividade dos cientistas: Mitos
de Gênero (“Myths of Gender”, 1985) foi um título
adequado para o que ela achou na biologia daquele
tempo. (Outros biólogos e primatólogos também
contribuíram para essa empreitada.) Antes de Butler,
a teórica política Sissan Moller Okin explorou o
papel da lei e do pensamento político na construção
de um destino de gênero para mulheres na família; e
esse projeto, também, foi aprofundado por um
número de feministas no direito e na filosofia
política. Antes de Butler, a importante explicação
antropológica da subordinação, O Tráfico de
Mulheres (“The Traffic in Women”, 1975), de Gayle
Rubin, forneceu uma análise valiosa sobre a relação
entre a organização social do gênero e as assimetrias
do poder.

Então, o que o trabalho de Butler adicionou para


esse corpo abundante de textos? Gender Trouble e
Bodies That Matter não contêm nenhum argumento
detalhado contra alegações biológicas de uma
diferença “natural”, nenhuma explicação dos
mecanismos da replicação de gênero, e nenhuma
explicação do modelo legal de família; nem mesmo
contêm qualquer foco detalhado nas possibilidades
de mudanças legais. O que, então, Butler oferece que
nós não possamos achar de maneira mais elaborada
em escritos feministas mais antigos? Uma alegação
relativamente original é que quando reconhecemos a
artificialidade das distinções de gênero, e abstemo-
nos de pensar nelas como expressando uma
realidade natural independente, nós também vamos
entender que não há nenhuma razão convincente
pela qual os tipos de gêneros deveriam ser dois
(correlacionados aos dois sexos biológicos), em vez
de três ou cinco ou um número indefinido. “Quando
o status construído do gênero é teorizado como
radicalmente independente do sexo, o gênero em si
torna-se um artificio que flutua livremente”, ela
escreveu.

Dessa afirmação não se segue, para Butler, que nós


podemos livremente reinventar os gêneros como nós
quisermos: ela defende, na verdade, que há limites
severos para nossa liberdade. Ela insiste que nós não
deveríamos imaginar ingenuamente que há um eu
intocado que é anterior à sociedade, pronto para
emergir completamente puro e emancipado: “Não há
nenhum eu que seja anterior à convergência ou que
mantenha uma ‘integridade’ antes de sua entrada
nesse campo cultural conflituoso. Há somente um
pegar as ferramentas onde jazem, onde o próprio
‘pegar’ é facilitado pela ferramenta que jaz ali”.
Butler de fato alega, no entanto, que podemos criar
categorias que são, de alguma maneira, novas, por
meio de habilidosas paródias das antigas. Dessa
forma, a ideia mais conhecida dela, seu conceito de
política como uma performance paródica, surge a
partir de um senso de uma (estritamente limitada)
liberdade que surge do reconhecimento que as ideias
que se tem sobre gênero foram moldadas por forças
que são sociais em vez de biológicas. Nós estamos
condenados a repetir as forças estruturais em que
nós nascemos, mas nós podemos ao menos fazer
graça delas; e algumas maneiras de fazer graça são
ataques subversivos às normas originais.

A ideia de gênero como performance é a ideia mais


famosa de Butler, então vale a pena parar para
examinar mais minuciosamente. Ela introduziu a
noção intuitivamente, em Gender Trouble, sem
invocar precedente teórico. Depois ela negou que
estava se referindo a uma performance quasi-teatral,
e em vez disso associou sua noção à descrição de
Austin dos atos de fala em How to Do Things with
Words [“Como fazer coisas com palavras”, em
tradução livre]. A categoria linguística de
“[enunciados] performativos” de Austin é uma
categoria de enunciados linguísticos que funcionam,
por e a partir de si, como ações em vez de asserções.
Quando (em cinscunstâncias sociais apropriadas) eu
digo “eu aposto dez dólares”, ou “me desculpe”, ou
“sim eu aceito” (em uma cerimônia de casamento),
ou “eu nomeio este barco...”, eu não estou relatando
uma aposta ou desculpas ou um casamento ou uma
cerimônia de nomeação, estou conduzindo essas
coisas.

A alegação análoga de Butler sobre gênero não é


obvia, pois as “performances” em questão envolvem
gestos, vestimenta, movimento e ação, assim com a
linguagem. A tese de Austin, que é restrita mais a
uma análise técnica de um certa classe de
enunciados, não é, de fato, especialmente útil para
Butler em desenvolver as suas ideias. De fato,
embora ela veementemente repudie leituras do
trabalho dela que associem a visão dela com o
teatro, pensar sobre o trabalho subversivo com
gênero do Living Theater [companhia de teatro
novaiorquina fundada em 1947] parece iluminar as
ideias dela muito mais que pensar sobre Austin.
O tratamento que Butler dá a Austin nem é muito
plausível. Ela faz a afirmação bizarra de que o fato
da cerimônia de casamento ser um das dezenas de
exemplos de performativos no texto de Austin
sugere “que a heterossexualização do laço social é a
forma paradigmática para aqueles atos de fala que
geram o que rotulam”. Dificilmente. Casamento não
é mais paradigmático para Austin do que apostas ou
dar nome a um barco ou promessas ou desculpas.
Ele está interessado em uma propriedade formal de
certas declarações, e nenhuma razão nos é dada para
supor que os conteúdos delas têm qualquer
significância para o argumento dele. Geralmente é
um erro dar significado bombástico a uma escolha
trivial de exemplos de um filósofo. Deveríamos
dizer que se Aristóteles usa uma dieta de baixa
caloria para ilustrar o silogismo prático isso sugere
que o frango está no cerne da virtude aristotélica?
Ou que o uso que Rawls faz de planos de viagem
para ilustrar o raciocínio prático mostra que A
Theory of Justice [“Uma Teoria da Justiça”] visa a
dar férias a todos nós?

Deixando essas peculiaridades de lado, o argumento


de Butler é presumivelmente este: quando agimos e
falamos de uma maneira marcada pelo gênero, nós
não estamos simplesmente relatando algo que já está
fixo no mundo, estamos ativamente constituindo-o,
replicando-o e reforçando-o. Ao nos comportarmos
como se houvesse “naturezas” masculina e feminina,
nós co-criamos a ficção social de que essa naturezas
existem. Elas nunca estão separadas de nossas
práticas; estamos sempre fazendo com que estejam
lá. Ao mesmo tempo, pela realização dessas
performances de uma forma ligeiramente diferente,
uma forma paródica, talvez possamos desfazê-las
um pouco.

Dessa forma, o único lugar para ação em um mundo


tolhido pela hierarquia são as pequenas
oportunidades que temos para nos opor aos papéis
de gênero cada vez que eles tomam forma. Quando
eu me percebo fazendo a feminilidade, eu posso
virar o jogo, zombar dela, fazê-la um pouco
diferente. Tais performances reativas e paródicas, na
visão de Butler, nunca desestabilizam o sistema
maior. Ela não tem em mente movimentos de
resistência de massa ou campanhas por reforma
política; só atos pessoais efetuados por um pequeno
número de agentes cientes. Assim como atores com
um roteiro ruim podem subvertê-lo proferindo as
linhas ruins de maneira estranha, da mesma forma se
faz com o gênero: o roteiro continua ruim, mas os
atores têm um pouquinho de liberdade. Assim nós
temos bases para o que Butler chama, em Excitable
Speech, de “uma esperança irônica”.

Até aqui, as asserções de Butler, embora


relativamente familiares, são plausíveis e até mesmo
interessantes, embora sua visão estreita das
possibilidades de mudança já seja de se perturbar.
No entanto, Butler acrescenta a essas alegações
plausíveis sobre gênero duas outras alegações que
são mais fortes e mais controversas. A primeira é
que não há um agente por trás de ou anterior às
forças sociais que produzem o eu. Se isso significa
apenas que os bebês nascem em um mundo marcado
por gênero que começa a replicar machos e fêmeas
quase imediatamente, a alegação é plausível, mas
não surpreendente: experimentos demonstraram, por
um tempo, que a maneira que os bebês são mantidos
e conversados, a maneira como os sentimentos deles
são descritos, são profundamente moldados pelo
sexo que os adultos em questão acreditam que a
criança tem. (O mesmo bebê será balançado se os
adultos pensarem que é um menino, aconchegado se
pensarem que é uma menina; seu choro será rotulado
como medo se os adultos acharem que é uma
menina, e como raiva se eles pensarem que é um
menino.) Butler mostra nenhum interesse nesses
fatos empíricos, mas eles dão apoio à opinião dela.
[N. do. T.: Mas veja a opinião do cientista Simon
Baron-Cohen sobre diferenças precoces entre
meninos e meninas aqui no Xibolete.]

Se ela quer dizer, no entanto, que os bebês entram


no mundo completamente inertes, sem quaisquer
tendências e sem habilidades que são de algum
modo anteriores à experiências deles em uma
sociedade marcada pelo gênero, isso é muito menos
pláusivel, e dificilmente sustentado empiricamente.
Butler não oferece tal sustentação, preferindo
manter-se no alto plano de abstração metafísica. (De
fato, sua recente obra freudiana pode até mesmo
repudiar essa ideia: sugere, com Freud, que há ao
menos alguns impulsos e têndencias pré-sociais,
embora, tipicamente, essa linha não seja
desenvolvida claramente.) Além disso, tal exagerada
negação de agência pré-cultural retira alguns dos
recursos que Chodorow e outros usam quando
tentam explicar a mudança cultural na direção da
melhoria.

Butler quer, ao fim, dizer que temos um tipo de


agência, uma habilidade de realizar mudanças e
resistência. Mas de onde essa habilidade surge, se
não há estruturas na personalidade que não sejam
completamente criação do poder? Não é impossível,
para Butler, responder a essa pergunta, mas ela
certamente ainda não a respondeu, não de uma
maneira que convença àqueles que acreditam que os
seres humanos têm ao menos alguns desejos pré-
culturais — por comida, por conforto, por controle
cognitivo, por sobrevivência — e que essa estrutura
na personalidade é crucial na explicação de nosso
desenvolvimento como agentes morais e políticos.
Seria desejável vê-la se engajando com as formas
mais fortes dessa visão, e dizer, claramente e sem
jargão, exatamente por que e onde ela as rejeita.
Seria também desejável ouvi-la falar sobre crianças
reais, que parecem sim manifestar uma estrutura de
empenho que influencia desde o princípio sua
recepção de formas culturais.
A segunda alegação forte de Butler é que o corpo em
si mesmo, e especialmente a distinção entre os dois
sexos, é também uma construção social. Ela não
quer só dizer que o corpo é moldado de várias
maneiras pelas normas sociais de como homens e
mulheres devem ser; ela quer dizer também que o
fato de que uma divisão binária dos sexos é tida
como fundamental, como uma chave para organizar
a sociedade, é em si uma ideia social que não é dada
na realidade corporal. O que exatamente essa
alegação significa, e o quão plausível é?

A breve exploração que Butler faz de Foucault sobre


hermafroditas nos mostra a insistência ansiosa da
sociedade em classificar cada ser humano em uma
ou outra caixa, o indivíduo se encaixando ou não em
uma; mas é claro que isso não mostra que existem
muitos desses casos indeterminados. Ela está certa
em insistir que nós poderíamos ter feito muitas
classificações diferentes dos tipos de corpos, não
necessariamente dando enfoque à divisão binária
como a mais proeminente; e ela também está certa
em insistir que, em grande medida, alegações de
diferença corporal de sexo supostamente baseadas
em pesquisas científicas foram projeções de
preconceito cultural — embora Butler não ofereça
nada aqui que seja tão convincente quanto a análise
biológica meticulosa de Fausto Sterling.

E no entanto é simples demais dizer que o poder é


tudo o que o corpo é. Nós poderíamos ter tido os
corpos de pássaros ou dinossauros ou leões, mas não
temos; e essa realidade molda nossas escolhas. A
cultura pode moldar e remodelar alguns aspectos de
nossa existência corpórea, mas não molda todos os
aspectos dela. “No homem castigado pela fome e
pela sede”, como Sexto Empírico observou muito
tempo atrás, “é impossível produzir por argumento a
convicção de que ele não está assim castigado”. Esse
é um fato importante também para o feminismo,
uma vez que as necessidades nutricionais das
mulheres (e suas necessidades especiais quando
grávidas ou lactantes) são um tópico feminista
importante. Mesmo onde a diferença entre sexos é
considerada, é certamente demasiado simples
descrever tudo como cultura; as feministas não
devem ter o afã de fazer tal gesto generalizante.
Mulheres que correm ou jogam basquete, por
exemplo, estavam certas em acolher a demolição de
mitos sobre as habilidades atléticas femininas que
eram o produto das suposições da dominação
masculina; mas elas também estavam certas em
exigir a pesquisa especializada sobre os corpos das
mulheres que promoveu uma melhor compreensão
das necessidades de treinamento e lesões das
mulheres. Em suma: o que o feminismo requer, e às
vezes consegue, é um estudo sutil da interação entre
diferença corporal e construção cultural. E os
pronunciamentos abstratos de Butler, flutuando
acima de toda a matéria, nada nos dão do que
precisamos.

IV.

Suponha que nós concedamos a Butler as suas


alegações mais interessantes até este ponto: de que a
estrutura social de gênero é ubíqua, mas que somos
capazes de resistir a ela através de atos subversivos e
de paródia. Duas significantes questões
permanecem. A que deveríamos resistir e com base
em quê? Com que os atos de resistência seriam
parecidos, e o que poderíamos esperar que eles
alcançassem?
Butler usa diversas palavras para aquilo que ela
toma como mau e, portanto, digno de resistência: o
“repressivo”, o “subordinante”, o “opressivo”. No
entanto, ela não fornece nenhuma discussão
empírica sobre resistência, do tipo que encontramos,
digamos, no fascinante estudo sociológico de Barry
Adam The Survival of Domination (1978), que
estuda a subordinação de negros, judeus, mulheres,
gays e lésbicas; e as suas maneiras de lutar contra as
formas de poder social que os oprimem. Butler
também não fornece nenhuma explicação sobre os
conceitos de resistência e opressão que nos ajude,
em caso de estarmos realmente em dúvida sobre ao
que deveríamos resistir.

Butler nesse assunto se afasta de feministas


construtivistas sociais anteriores, todas as quais
usaram ideias tais como a não-hierarquização,
igualdade, dignidade, autonomia e o tratamento [de
pessoas] como fins em vez de meios, para indicar
uma direção para a política real. Ela está ainda
menos disposta a elaborar qualquer noção normativa
positiva. Na realidade, está claro que Butler, como
Foucault, opõe-se inflexivelmente a noções
normativas, tais como dignidade humana ou tratar a
humanidade como um fim, com a justificativa de
que são inerentemente ditatoriais. Na visão dela, nós
deveríamos esperar para ver o que a própria luta
política regurgita, ao invés de prescrevê-la com
antecedência para seus participantes. Noções
normativas universais, ela diz, “colonizam sob o
signo do idêntico”.

Essa ideia de esperar para ver no que chegaremos —


em poucas palavras, essa passividade moral —
parece plausível em Butler porque ela pressupõe
tacitamente que tem um público de leitores da
mesma opinião que (meio que) concordam sobre o
que são as coisas más — discriminação contra gays
e lésbicas, o tratamento desigual e hierárquico de
mulheres — e que até (meio que) concordam sobre
por que elas são más (elas subordinam algumas
pessoas a outras, negam liberdades que as pessoas
deveriam ter). Mas tire essa pressuposição, e a
ausência de uma dimensão normativa se torna um
problema grave.

Tente ensinar Foucault numa faculdade de Direito


contemporânea, como tenho feito, e você
rapidamente perceberá que a subversão toma
diversas formas, nem todas convenientes a Butler e
os seus aliados. Como um perspicaz estudante
libertário me disse, por que não posso usar essas
ideias para resistir à estrutura tributária, ou às leis
antidiscriminação, ou talvez até mesmo para me
afiliar a milícias? Outros menos afeiçoados à
liberdade podem se engajar em performances
subversivas de fazer graça de comentários feministas
na sala de aula ou rasgar os pôsteres da associação
de lésbicas e gays estudantes de Direito. Essas coisas
acontecem. São paródicas e subversivas. Por que,
então, não são ousadas e boas?

Bem, há boas respostas para essas perguntas, mas


você não as encontrará em Foucault ou Butler.
Respondê-las requer discutir que liberdades e
oportunidades seres humanos devem ter e o que
significa para instituições sociais tratar seres
humanos como fins em vez de meios — em suma,
uma teoria normativa da justiça social e dignidade
humana. Uma coisa é dizer que deveríamos ser
humildes em relação a nossas normas universais e
estar dispostos a aprender com a experiência de
pessoas oprimidas. E outra bem diferente é dizer que
não precisamos de qualquer norma. Foucault,
diferentemente de Butler, pelo menos mostrou sinais
em seus trabalhos posteriores de que procurava lidar
com esse problema; e toda a sua escrita é animada
por um senso feroz da textura da opressão social e
do dano que esta traz.

Pensando bem, a justiça, entendida como uma


virtude pessoal, tem exatamente a estrutura do
gênero na análise butleriana: não é inata ou
“natural”, é produzida por repetidos performances
(ou, como disse Aristóteles, aprendemos fazendo),
molda nossas inclinações e força a repressão de
algumas delas. Essas performances ritualísticas e
suas repressões associadas são reforçadas por
arranjos de poder social, como crianças que não
compartilham o parquinho descobrem prontamente.
Além disso, a subversão paródica da justiça é ubíqua
na política, assim como na vida privada. Mas há uma
diferença importante. Geralmente, nós
desaprovamos atos subversivos e pensamos que os
jovens devem ser fortemente desencorajados a ver as
normas de justiça de uma maneira tão cínica. Butler
não é capaz de explicar de alguma forma puramente
estrutural ou procedimental por que a subversão de
normas de gênero é um bem social, enquanto a
subversão da justiça é um mal social. Foucault,
devemos lembrar, aplaudiu o aiatolá, e por que não?
Aquilo também foi resistência, e não existia
realmente nada no texto que nos dizia que aquela
luta era menos merecedora que uma luta por direitos
e liberdades civis.

Existe uma lacuna, então, no centro da noção de


política de Butler. Essa lacuna pode parecer
libertadora, porque o leitor a completa
implicitamente com uma teoria normativa de
igualdade e dignidade humanas. Mas que não haja
erro: tanto para Butler quanto para Foucault,
subversão é subversão, e pode em princípio levar a
qualquer direção. Na verdade, a política
ingenuamente vazia de Butler é especialmente
perigosa para as mesmas causas que preza. Para cada
amigo de Butler ávido para participar de
performances subversivas que proclamam a
repressão da heteronormatividade, existem dúzias
daqueles que gostariam de participar de atos que
zombam das normas de cumprimento de obrigações
tributárias, da não discriminação e do tratamento
digno dos próprios colegas estudantes. Para tais
pessoas devemos dizer ‘vocês não podem
simplesmente resistir como desejarem, pois há
normas de justiça, decência e dignidade que
determinam que este é um mau comportamento’.
Mas então temos que articular tais normas — e isso
Butler se recusa a fazer.

V.

O que exatamente Butler oferece quando aconselha a


subversão? Ela nos aconselha a engagar em
performances paródicas, mas adverte que o sonho de
escapar completamente de estruturas opressivas é
apenas um sonho: é dentro das estruturas opressivas
que devemos encontrar pequenos espaços para
resistência, e não se deve esperar que essa
resistência mude a situação geral. E nisso há um
perigoso quietismo.

Se Butler pretende somente nos advertir contra os


perigos de fantasiar com um mundo idílico em que o
sexo não provoque problemas sérios, é sábio da
parte dela. Entretanto, ela costuma ir muito além.
Butler sugere que as estruturas institucionais que
asseguram a marginalização de gays e lésbicas em
nossa sociedade e a contínua desigualdade das
mulheres nunca sofrerão mudanças profundas.
Assim, nossa maior esperança é tapar o nariz para
elas e encontrar alguns momentos de liberdade
pessoal. “Chamada por um nome ofensivo, eu me
torno um ser social, e porque tenho uma certa
ligação inevitável com a minha existência, porque
um certo narcisismo se apodera de qualquer termo
que confira existência, sou levada a abraçar os
termos que me ferem porque eles me constituem
socialmente”. Em outras palavras, “não posso
escapar das estruturas humilhantes a não ser que eu
deixe de existir, então o melhor a se fazer é zombar
e usar a linguagem da subordinação de forma
pungente”. Para Butler, a resistência é sempre
imaginada como pessoal, mais ou menos privada,
não envolvendo nenhum tipo de ação pública séria e
organizada em prol de mudanças legais ou
institucionais.

Não seria isso semelhante a dizer a um escravo que a


instituição da escravidão jamais mudará, mas que se
pode encontrar formas de zombá-la e subvertê-la,
encontrando liberdade pessoal em atos de
provocação cuidadosamente delimitada? No entanto,
é um fato que a instituição da escravidão pode ser
mudada, e de fato foi – mas não por pessoas que
adotam perspectivas semelhantes às de Butler
quanto às possibilidades. Houve mudança porque as
pessoas não se contentaram com a performance
paródica: elas demandaram, e até certo ponto
conseguiram, grandes transformações sociais. É
também um fato que as estruturas institucionais que
moldam a vida de mulheres mudaram. A legislação
sobre estupro, embora ainda deficiente, ao menos
melhorou; a legislação sobre assédio sexual existe
onde antes não existia; o casamento não é mais
considerado como uma forma de dar aos homens
controle monárquico sobre o corpo das mulheres.
Essas mudanças foram conquistadas por feministas
que não aceitaram a performance paródica como
resposta, mas que julgaram que o poder, quando
ruim, deveria e iria ceder perante a justiça.

Butler não apenas se abstém dessa esperança, mas


encontra prazer em sua impossibilidade. Acha
emocionante contemplar a suposta imobilidade do
poder e prever as subversões ritualísticas da escrava
que está convencida de que irá permanecer como tal.
Ela nos diz – esta é a tese principal de The Psychic
Life of Power – que todos nós erotizamos as
estruturas de poder que nos oprimem e que,
portanto, só podemos encontrar prazer sexual dentro
de seus limites. Parece ser por essa razão que Butler
prefere os atos sensuais de subversão paródica a
qualquer mudança duradoura ou institucional.
Mudanças reais iriam desestabilizar tanto nossa
psique que a satisfação sexual se tonaria impossível.
Nossas libidos são criadas pelas forças escravizantes
más, e portanto são necessariamente
sadomasoquistas em sua estrutura.

Bem, a performance paródica não é tão ruim quando


você é uma acadêmica titular poderosa em uma
universidade liberal. Mas é aqui que o foco de Butler
no simbólico, sua negligência orgulhosa do aspecto
material da vida, se torna uma cegueira fatal. Para
mulheres com fome, analfabetas, desfavorecidas,
espancadas ou estupradas, não é sedutor ou
libertador reencenar, mesmo que de forma paródica,
as condições de fome, analfabetismo,
desfavorecimento, espancamento e estupro. Essas
mulheres preferem comida, escola, direito ao voto e
a integridade de seus corpos. Eu não vejo razões pra
acreditar que elas anseiam por um retorno
sadomasoquista a suas situações deploráveis. Se
alguns indivíduos não conseguem viver sem a
eroticidade da dominação, sua situação parece triste,
mas não é da nossa conta. Só que, quando uma
teórica renomada diz a mulheres em condições
desesperadoras que a vida só lhes oferece a sujeição,
ela provê uma mentira cruel, e uma mentira que
adula o mal por lhe atribuir muito mais poder do que
ele realmente tem.

Excitable Speech, o livro mais recente de Butler, que


mostra sua análise das controvérsias legais
envolvendo pornografia e discurso de ódio, nos
mostra exatamente a quão longe seu quietismo
chega. Porque agora ela está disposta a dizer que,
mesmo onde as mudanças legais são possíveis,
mesmo onde elas já aconteceram, deveríamos
desejar que passassem, de modo a preservar o
espaço no qual o oprimido pode encenar seus rituais
sadomasoquistas de paródia.

Como trabalho sobre a legislação da liberdade de


expressão, Excitable Speech é involuntariamente um
livro ruim. Butler não demonstra domínio sobre as
principais questões teóricas da Primeira Emenda, ou
sobre os diversos casos que uma teoria dessas
precisa levar em consideração. A autora faz
afirmações absurdas sobre direito: ela diz, por
exemplo, que o único tipo de discurso que tem sido
deixado desprotegido é o discurso que foi
previamente definido como conduta em vez de
discurso. (Na verdade, há muitos tipos de discurso,
de publicidade falsa ou enganosa a declarações
difamatórias e obscenidades como agora definidas,
que nunca foram reconhecidos como ação em vez de
discurso, e que ainda assim a proteção da Primeira
Emenda lhes é negada). Butler até mesmo afirma,
erroneamente, que a obscenidade tem sido julgada
como equivalente a “palavras de incitação à
violência”. Não é como se Butler tivesse argumentos
para apoiar suas leituras novas da vasta gama de
casos de discurso desprotegido que uma explicação
da Primeira Emenda precisaria cobrir. Ela
simplesmente não notou que essa vasta gama de
casos existe, ou que sua opinião não é muito aceita
entre juristas. Ninguém interessado em direito
consegue levar o argumento dela a sério.

Mas vamos extrair, da fraca discussão de Butler


sobre discurso de ódio e pornografia, o cerne de seu
posicionamento, que é este: proibições legais de
discurso de ódio e pornografia são problemáticas
(apesar de, no fim das contas, ela não se opor
claramente a elas) porque fecham o espaço no qual
os indivíduos lesados por esse discurso podem
encenar sua resistência. Com isso, Butler parece
defender que quando se lida com o crime de discurso
de ódio através do sistema legal, haverá menos
ocasiões para protesto informal; e também, talvez,
que se o crime se tornar mais raro devido a sua
proibição, teremos menos oportunidades de protestar
contra sua presença.

Bem, sim. A lei realmente fecha esses espaços.


Discurso de ódio e pornografia são assuntos
extremamente delicados nos quais feministas podem
discordar razoavelmente. (Ainda assim, deve-se
indicar os pontos de vista conflitantes com precisão:
o relato de Butler sobre MacKinnon é mais do que
descuidado, afirmando que MacKinnon defende
"regulamentos contra pornografia" e sugerindo que,
apesar da negação explícita de MacKinnon, eles
envolvem uma forma de censura. Em lugar algum
Butler menciona que MacKinnon defende, na
verdade, uma ação de danos civis em que mulheres
específicas prejudicadas pela pornografia possam
processar seus frabricantes e distribuidores.)

Mas os argumentos de Butler têm implicações muito


além dos casos de discurso de ódio e pornografia.
Eles parecem apoiar não apenas o quietismo nessas
áreas, mas um quietismo legal e muito mais
generalizado – ou, na verdade, um libertarianismo
radical. Funciona assim: vamos acabar com tudo,
desde a criação de códigos de leis contra a
discriminação a leis contra o estupro, porque fecham
os espaços nos quais os indivíduos prejudicados, as
vítimas de discriminação e as mulheres estupradas
podem encenar sua resistência. Claro, esse não é o
mesmo argumento que libertários radicais usam para
se opor à criação de leis como as
antidiscriminatórias, e até mesmo eles veem o
estupro como um limite. Mas as conclusões
convergem.

Se Butler respondesse que seus argumentos


pertencem somente ao domínio do discurso (e não
há nenhuma razão dada em seu texto para tal
limitação, visto a assimilação de discurso violento à
conduta), então podemos responder também no
domínio do discurso. Vamos nos livrar de leis contra
publicidade enganosa e exercício ilegal da medicina,
pois elas fecham os espaços em que os
consumidores envenenados e os pacientes mutilados
podem encenar sua resistência! De novo, se Butler
não aprova essas extensões, ela precisa dar um
argumento que separe seus casos desse tipo de casos,
e não fica claro que sua posição lhe permita fazer tal
distinção.

Para Butler, o ato de subversão é tão fascinante, tão


sexy, que é um pesadelo pensar que o mundo vai se
tornar um lugar melhor. Que tédio é a igualdade!
Sem submissão, sem prazer. Nesse sentido, sua
antropologia erótica pessimista oferece apoio a uma
política anarquista amoral.

VI.

Quando consideramos o quietismo inerente aos


textos de Butler, temos algumas indicações para
entender a fascinação influente de Butler com o drag
e o crossdressing como paradigmas de resistência
feminista. Os seguidores de Butler entendem a
consideração dela sobre o drag como uma sugestão
de que tais performances são maneiras de mulheres
serem atrevidas e subversivas. Eu não tenho
conhecimento de qualquer tentativa de Butler de
repudiar tais interpretações.

Mas o que está acontecendo aqui? A mulher vestida


de forma masculinizada é dificilmente uma figura
nova. Na verdade, até quando ela era relativamente
nova, no século XIX, ela era de certo modo bem
velha, pois simplesmente replicava no mundo
lésbico os estereótipos e hierarquias existentes na
sociedade de homens e mulheres. O que, podemos
nos perguntar, seria uma subversão paródica nessa
área, e que seria um tipo de aceitação da classe
média próspera? Não seria a hierarquia no drag
ainda hierarquia? E seria realmente verdade (como o
livro The Psych Life of Power parece concluir) que
dominação e subordinação são os papéis que
mulheres devem desempenhar em toda esfera e, se
não subordinação, então dominação masculina?

Em suma, crossdressing para mulheres é um roteiro


fatigado e velho — como a própria Butler nos
informa. Ainda assim ela nos apresenta esse roteiro
como subertido, como feito novo, pelos cientes
gestos indumentários e simbólicos da crossdresser;
mas devemos novamente idagar sobre a sua
novidade e até a sua subversão. Considere a paródia
de Andrea Dworkin (em seu romance Mercy) de
uma feminista paródica butleroide, que anuncia, de
sua condição de conforto acadêmico seguro:

A noção de que coisas ruins acontecem é tão


propagandística quanto inadequada... Entender a
vida de uma mulher requer que afirmemos as
dimensões ocultas ou obscuras do prazer,
frequentemente na dor, e a escolha, frequentemente
sob coação. Deve-se desenvolver uma sensibilidade
para sinais secretos — as roupas que são mais que
roupas ou a decoração no diálogo contemporâneo,
por exemplo, ou a rebelião escondida por trás da
conformidade aparente. Não existe vítima. Há,
talvez, uma insuficiência de sinais, uma aparência
inflexível de conformidade que simplesmente
mascara o nível mais profundo em que a escolha
ocorre.

Em uma prosa bastante diferente da de Butler, essa


passagem capta a ambivalência da autora implícita
de alguns dos escritos de Butler, que se deleita em
sua prática violadora enquanto vira seu olho teórico
resolutamente para longe do sofrimento material das
mulheres que estão com fome, que são analfabetas,
violadas, espancadas. Não há vítima. Só há uma
insuficiência de sinais.

Butler sugere aos seus leitores que essa imitação


astuta do status quo é o único roteiro para a
resistência que a vida oferece. Bem, não é. Além de
oferecer muitas outras maneiras de ser humano na
vida pessoal de cada um, além de normas
tradicionais de dominação e subserviência, a vida
também oferece muitos roteiros de resistência que
não se concentram narcisicamente na
autoapresentação pessoal. Esses roteiros envolvem
feministas (e outros, é claro) na construção de leis e
instituições, sem muita preocupação de como uma
mulher mostra seu próprio corpo e sua natureza de
gênero: em suma, envolvem trabalhar para outras
pessoas que estão sofrendo.

A grande tragédia na nova teoria feminista nos


Estados Unidos é a perda de senso de
comprometimento público. Nesse sentido, o
feminismo envolvido em si mesmo de Butler é
extremamente americano, e não é surpresa que tenha
feito sucesso aqui, onde pessoas bem-sucedidas da
classe média preferem se dedicar a si mesmas em
vez de pensar em uma maneira de ajudar na
condição material dos outros. Até nos Estados
Unidos, entretanto, é possível teóricos se dedicarem
ao bem público e alcançarem algo através desse
esforço.

Muitas feministas nos Estados Unidos ainda estão


teorizando de uma maneira que apoie a mudança
material e dê uma resposta à situação dos mais
oprimidos. Cada vez mais, entretanto, a tendência
acadêmica e cultural se direciona ao flerte pessimista
representado pela teorização de Butler e seus
seguidores. O feminismo butleriano é de várias
maneiras mais fácil que o antigo feminismo. Ele diz
a várias mulheres talentosas e jovens que elas não
precisam trabalhar para mudar as leis, alimentar os
famintos ou atacar o poder através de teoria
subordinada à política material. Elas podem fazer
política na segurança dos campi, permanecendo no
nível simbólico, fazendo gestos subversivos contra o
poder através de discurso e simbolismos. Isso, a
teoria diz, é basicamente tudo o que resta disponível
para nós de qualquer maneira, pela via da ação
política, e não é excitante e sexy?

De seu modo diminuto, claro, essa é uma política


esperançosa. Ensina às pessoas que elas podem,
agora mesmo, sem arriscar sua segurança, fazer algo
ousado. Mas a ousadia é inteiramente gestual, e, na
medida em que o ideário de Butler sugere que esses
gestos simbólicos são realmente uma mudança
política, ele oferece apenas uma falsa esperança.
Mulheres famintas não se alimentam com isso,
mulheres agredidas não são acolhidas por isso,
mulheres estupradas não encontram justiça nisso e
gays e lésbicas não alcançam proteção legal através
disso.

Por fim, há desespero no centro da animada


empreitada butleriana. A grande esperança, a
esperança de um mundo de justiça real, onde as leis
e as instituições protegem a igualdade e a dignidade
de todos os cidadãos, foi banida, talvez até
ridicularizada como sexualmente tediosa. A moda do
quietismo em Judith Butler é uma resposta
compreensível à dificuldade de realizar a justiça nos
Estados Unidos. Mas é uma resposta nociva.
Colabora com o mal. O feminismo exige mais e as
mulheres merecem algo melhor.

Em The New Republic Online, 22 de fevereiro de


1999.
Tradução: Eli Vieira, Guilherme Jacob, Rodrigo
Koch, Rony Marques e dois tradutores anônimos.
https://www.xibolete.org/p/judith-butler
TEXTOS:
O backlash Queer https://qgfeminista.org/o-
backlash-queer/
Teoria queer e a violência contra a mulher
https://arquivoradical.wordpress.com/2018/01/23/teo
ria-queer-e-a-violencia-contra-a-mulher/
Liberação gay e feminismo lésbico – Unpacking
queer politics I
https://arquivoradical.wordpress.com/2018/01/06/un
packing-queer-politics-i-liberacao-gay-e-feminismo-
lesbico/
Introdução de “Unpacking Queer Politics”
https://arquivoradical.wordpress.com/2016/09/17/int
roducao-de-unpacking-queer-politics/

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