Ve Thais Silva ENSP 2019
Ve Thais Silva ENSP 2019
Ve Thais Silva ENSP 2019
Rio de Janeiro
2019
Thaís Silva Acácio
Orientadores:
Paulo Duarte de Carvalho Amarante
Ana Paula Freitas Guljor
Rio de Janeiro
2019
Catalogação na fonte
Fundação Oswaldo Cruz
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde
Biblioteca de Saúde Pública
Banca Examinadora
Rio de Janeiro
2019
Àqueles que mudaram minha visão de mundo e minha vida desde meu
primeiro contato: louco, doido, maluco, pinel, tam tam, psico, 22,
biruta, paciente psiquiátrico, portador de transtorno mental, usuário
em sofrimento psíquico, e tantos outros rótulos. Pessoas! Gente! Seres
humanos por tanto tempo subjugados, invisibilizados, enclausurados,
estigmatizados, e há tantos anos incompreendidos neste mundo
adoecido pela racionalidade.
AGRADECIMENTO
A produção deste trabalho me ensinou muito, não somente no âmbito profissional, mas
fundamentalmente no âmbito pessoal. Amadureci em aspectos que eu jamais imaginaria no
início de todo este processo. E por tudo isso, muitos são os agradecimentos a fazer:
A Deus, por essa força inexplicável, que me dá coragem e segurança em dias difíceis.
Aos meus pais, pelo apoio incondicional, desde sempre. Seja pelo o estímulo aos
estudos, ao pensamento crítico, seja pela formação ética e responsabilidade social.
Ao Daniel, por ser o melhor companheiro que eu poderia ter na vida, que acreditou em
mim quando nem eu mesma acreditava. Que quando eu tinha receio até de fazer a inscrição no
processo seletivo do mestrado, me mostrou que eu poderia ser capaz. Vibrou com muita
alegria a aprovação, aguentou com leveza a distância imposta pela mudança necessária para a
realização do curso e participou ativamente de todo o árduo processo, com muita (mas
MUITA) conversa, propostas, sugestões, e muito amor.
Aos meus irmãos, Tânios e Juliana, por estarem fisicamente tão longe, mas sempre tão
perto. Ainda que não tenham aprendido até hoje o significado de nenhuma das mil siglas que
eu uso cotidianamente, eles entendem sim de afeto, demonstrado por curiosidade e incentivo.
Aos seus respectivos companheiros, que também participaram ativamente desta construção,
seja por percepções e construções sobre a saúde mental com a Miriam, seja por diálogos e
ensinamentos de Foucault com o Iriê.
À Julia, pela amizade de uma vida, pelas palavras de apoio, pelas broncas, pelo
carinho e ajuda com meu trabalho, e que, juntamente com o Filipe, sempre me abrigaram com
muita alegria, porta-copos e Netflix. E à Lalá também, que junto com a Julia formam “minhas
comis”, as melhores “irmãs sem sangue” que alguém pode ter.
Ao grupo “Fome de Quê?”, que sempre me alimentou de amor. Tão importante saber
em um contexto de crise, das incontáveis adversidades dos últimos tempos, àqueles que
estarão ao seu lado. Seja em um bom papo com vista para o Pão de Açúcar, seja em um breve
almoço cheio de risadas na “AS[h]FOC”. Ou mesmo como ensinar a fazer capa sem
numeração e sumário automático, ou aprender a fazer notas de rodapé. Vocês são incríveis:
amo vocês!
Aos entrevistados da pesquisa, que disponibilizaram não somente tempo, mas histórias
de vida. Vocês foram fundamentais para toda a construção deste estudo. Sinto-me
extremamente honrada com a participação de cada um.
À Fiocruz, por ser esta referência que sempre me despertou admiração, e tanto
contribuiu para minha formação. Aos mestres que estiveram nesta trajetória, por serem a
ferramenta de transformação desta instituição. Ressalto aqui agradecimento àquelas que
secretamente nomeei de “musas da Fiocruz”. Pesquisadoras de garra, que fazem de seus
estudos e aulas instrumentos de mudança, e são para mim fontes de inspiração e força
feminina. Com o grave risco de esquecer alguma, são elas: Roberta Gondin, Luciana Dias de
Lima, Isabela Soares Silva, Marilene Castilho Sá, Creuza Azevedo, Lilian Miranda, Cristiani
Machado, Mônica Martins. E, em especial neste grupo, agradeço à Tatiana Wargas Baptista,
que já era para mim uma referência bibliográfica ainda na graduação, se tornou referência de
didática na especialização e mestrado, e de sensibilidade acadêmica na qualificação.
Este trabalho é fruto de um processo coletivo, amparado por afetos vindos das mais
diversas fontes: familiares, amigos, professores, e toda a complexidade que me trouxe até
aqui. E a todos os envolvidos, direta ou indiretamente para a concretização deste sonho, serei
eternamente grata.
Nem sempre tudo foi bom como é agora. Na escola, aprendemos que
antigamente, nos tempos sombrios, as pessoas não percebiam quão mortal
era a doença do amor. Durante muito tempo ela era inclusive encarada
como um sentimento bom, a ser celebrado e buscado. Claro que essa é uma
das razões que o tornam tão perigoso: afeta nossa mente, impedindo-nos de
pensar com clareza ou tomar decisões racionais sobre nosso próprio bem-
estar (...). Naquela época, as pessoas identificaram outras doenças, como
estresse, problemas cardíacos, ansiedade, depressão, hipertensão, insônia,
transtorno bipolar, sem perceber que eram, na verdade, apenas sintomas
que, na maioria dos casos, resultavam do amor deliria nervosa.
Gráfico 1 – Frequência de AIHs por Grupos de Causa em Juiz de Fora nos anos de 1994, 95 e
96. 44
Gráfico 2 – Distribuição dos Gastos com AIH do SUS/JF em 1996 44
1. Introdução ........................................................................................................................ 16
2. Alienismo, Luta Antimanicomial e Reforma Sanitária ............................................... 19
2.1. Construções da Saúde Mental e Atenção Psicossocial .............................................. 19
2.2. Recortes sobre a Saúde Pública no Brasil .................................................................. 28
3. Construções Metodológicas: uma aproximação com a Arqueologia de Foucault ..... 35
4. Uma construção histórico-documental da Reforma Psiquiátrica em Juiz de Fora .. 43
5. Olhares Sobre o Processo de Reforma Psiquiátrica em Juiz de Fora ........................ 61
5.1. O Histórico Manicomial: a dimensão teórico-conceitual .......................................... 62
5.2. A Rede de Saúde Mental de Juiz de Fora: a dimensão técnico-assistencial .............. 66
5.3. As Decisões Políticas e Normativas: a dimensão jurídico-política ........................... 76
5.4. Participação Social, Militância e Recursos Comunitários: a dimensão sociocultural 79
6. Considerações Finais ....................................................................................................... 87
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 97
APÊNDICE A - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)
USUÁRIOS E FAMILIARES .............................................................................................. 104
APÊNDICE B - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)
PROFISSIONAIS E GESTORES ....................................................................................... 106
APÊNDICE C - TERMO DE COMPROMISSO DE UTILIZAÇÃO DE DADOS
(TCUD) .................................................................................................................................. 109
APÊNDICE D - ROTEIRO DE ENTREVISTA – USUÁRIOS E FAMILIARES ......... 110
APÊNDICE E - ROTEIRO DE ENTREVISTA – PROFISSIONAIS E GESTORES .. 111
16
1. Introdução
O presente trabalho surge de questões vivenciadas por mim desde o primeiro contato
com a saúde mental, ainda na graduação em Psicologia. Durante este período tive a
oportunidade de realizar estágios e projetos de extensão nesta área, e por vezes me
questionava sobre o que ocorria neste campo em Juiz de Fora, minha cidade natal, e se as
práticas estavam em consonância com as demais no Brasil e no mundo.
Depois de formada persistiam muitas dúvidas e inquietações, que me fizeram buscar
uma especialização em saúde mental na Fiocruz. Neste momento eu pensava enquanto estudo
a possibilidade de analisar criticamente a progressão de leitos psiquiátricos do município em
tela, concomitante com o processo de desinstitucionalização. No decorrer do curso percebi
que este ainda não era meu foco. Alterei então para uma proposta de análise de serviços da
rede de saúde mental.
Ao ingressar no mestrado, através do contato com as mais diversas disciplinas, bem
como com a possibilidade de orientação, meu olhar se dirigiu para este processo, esta
construção de Reforma Psiquiátrica de Juiz de Fora. A ideia não seria mais então uma análise
de serviços, em uma tentativa de apontar erros e/ou acertos. Para além do momento
questionador do processo crítico e conceitual da assistência psiquiátrica, neste novo momento,
a proposta seria então se debruçar sobre o tema da Reforma Psiquiátrica, vislumbrando
através de diversos atores e documentos, a história possível, o processo dinâmico, com suas
contradições, incertezas e possibilidades.
Um importante ponto que fez com que estas novas possibilidades de construção
surgissem foi o contato mais próximo com as construções teóricas de Michel Foucault. Me
debruçar um pouco mais nas propostas de uma análise arqueológica trouxe sentidos (e
desrazões) que desde o início, mesmo que sem saber, eu estava a procura. Como dito pelo
próprio autor: “Uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas
condições de possibilidade; (...). Mais que de uma história no sentido tradicional da palavra,
trata-se de uma ‘arqueologia” (FOUCAULT, 2002, p. XIX).
Se uma construção metodológica se iniciava, algumas perguntas ainda permaneciam:
qual então seria o recorte a fazer? Qual seria a história a buscar? Neste árduo e maravilhoso
processo acadêmico de constante construção de minha pesquisa, me deparei com a
possibilidade de me refazer, e fundamentalmente de me “permitir o não saber”. Não somente
pelo contato com a literatura que me apontava que “A investigação arqueológica deve
desfazer-se dos vários reconhecimentos prévios do seu objeto e deixar que o movimento de
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delirante, já havia abolido. Por esta via, internar era organizar a liberdade. E para tanto, a
loucura deveria ser conduzida à razão, por meio do encontro com o médico. A reclusão de
alienados, neste momento, passa a ser definida como algo terapêutico e indispensável: isolar
estas pessoas de um mundo perturbador, de paixões irritantes. A loucura tornou-se objeto
médico: ganhou valor de doença (YASUI, 2010).
Esta era a precondição do tratamento do alienista, daquilo denominado “tratamento
moral”. Era preciso confiná-los em lugares apropriados: os asilos. Surge assim a internação
enquanto prerrogativa de tratamento (DESVIAT, 2015). Deste modo, o ato fundador de Philip
Pinel, tido como “pai da psiquiatria”, não foi somente a famosa “retirada das correntes dos
alienados”, mas sobretudo, o ordenamento do espaço hospitalar. Fato importante a se observar
neste momento é que: “Se a psiquiatria nascente vinculou seu destino ao da instituição
totalitária, e por tanto tempo, não foi só por razões técnicas nem somente por razões políticas,
mas pela conjunção estritamente regulada, no espaço e no tempo, dessas duas séries”
(CASTEL, 1978, p. 51).
Faz-se necessário aqui perceber não apenas o surgimento da psiquiatria, mas o lugar
da própria medicina neste contexto. Com o surgimento dos Estados Modernos e de maior
sistematização dos conhecimentos, as concepções de saúde e doença sofrem severas
alterações, principalmente com o engendramento da anatomopatologia. As práticas de
cuidado agora recaem não somente sobre a forma de lidar com a patologia (como segregação
para a lepra, quarentena para a cólera), mas também sobre o doente (FOUCAULT, 2017a).
Aparece assim então uma preocupação com a educação da população, com a higienização, e
estas práticas surgem também na organização dos hospitais e na normatização da medicina. O
referencial teórico passa a ser então a racionalidade biomédica, e começa a se firmar uma
aliança entre o saber médico e o Estado. Ainda segundo este autor, temos: “Para conhecer a
verdade do fato patológico, o médico deve abstrair o doente (...). Paradoxalmente, o paciente
é apenas um fato exterior em relação àquilo que sofre; a leitura médica só deve tomá-lo em
consideração para colocá-lo entre parênteses.” (FOUCAULT, 2013, p. 7).
O século XIX traz para o cenário psiquiátrico o desafio cientificista de tornar-se uma
especialidade, sobretudo uma especialidade médica respeitável. Para isto, a psiquiatria precisa
adotar métodos empíricos, baseados nas ciências naturais (OLIVEIRA, 2009). A ética da
psiquiatria incorpora o direito sobre o corpo, a vontade e o comportamento do paciente
psiquiátrico, com respaldo empregado pelo “saber científico”. De tal modo, ainda que a
hospitalização enquanto isolamento proposto por Pinel fosse de fato um marco importante e
uma mudança de olhar, buscando pela primeira vez um “propósito de cura, e não de morte”, e
22
1 Para leitura mais aprofundada desta construção no país recomenda-se as obras de Jurandir Freire
Costa: “História da Psiquiatria no Brasil” (COSTA, 2007); e de Roberto Machado e colaboradores:
“Danação da Norma: Medicina Social e constituição da psiquiatria no Brasil” (MACHADO,
LOUREIRO, et al., 1978).
24
possibilitou maior entrada da iniciativa privada, até então com pouca expressividade de
assistência neste setor. Especialmente a partir do Golpe Militar de 1964, em que passa a
vigorar um modelo econômico de crescente centralização nas mãos do Estado, proliferaram as
clínicas psiquiátricas privadas, conveniadas com o poder público. Sobre este processo há uma
importante publicação, denominada “Psiquiatria Social: problemas brasileiros de saúde
mental”, de Luiz Cerqueira (1984). Nesta o autor demonstra a seguinte progressão de leitos
psiquiátricos: de pouco mais de 3 mil leitos privados em 1941 para o alarmante salto de mais
de 78 mil leitos em 1978, ao passo que os leitos públicos, neste mesmo recorte temporal,
permaneceram praticamente inalterados, isto é, de aproximadamente 21 para pouco mais de
22 mil leitos. Assim, este autor “demonstrou de forma enfática como o processo de
privatização da assistência psiquiátrica, chamado por ele de ‘indústria da loucura’, estava em
marcha acelerada.” (PAULIN e TURATO, 2004). É preciso enfatizar também, não somente o
aumento vertiginoso no número de internações, como também da ausência de controle em
relação ao período médio de permanência. Assim, em 1975, enquanto a Organização Mundial
de Saúde (OMS) estimava um limite de 3% de internação resultante de consultas, o contexto
brasileiro apontava para 13% de internações. Desta forma, no final da década de 70 e início da
década de 80, chegou-se a ter 111 mil leitos psiquiátricos no Brasil (AMARANTE, 2010).
Frente a este cenário, o marco inicial do movimento de Reforma Psiquiátrica no país
foi um episódio denominado por “Crise da DINSAM” (Divisão Nacional de Saúde Mental).
Profissionais de unidades de tal divisão, na cidade do Rio de Janeiro, deflagram greve em
1978. Esta se deu pelas denúncias de maus-tratos realizadas por médicos destas unidades. As
repercussões não se limitam ao âmbito local, e culminam num processo que irá dar origem ao
“Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental” (MTSM) (AMARANTE, 1998).
Ocorreram então, em todo território nacional, diversos encontros e congressos decisivos na
militância do MTSM, culminando na origem da trajetória da Reforma Psiquiátrica Brasileira
(AMARANTE e TORRE, 2010). Assim, a década de 70 se torna o “período germinativo” da
reforma, nos quais se fizeram seus valores e ideais, sem se esquecer do contexto histórico de
regime de Estado autoritário (TENÓRIO, 2007). É nela que a política de exclusão começa a
ser contestada e com ela o aparato físico, o trabalho da equipe de cuidados, a superlotação
daqueles internados, dentre outros (AMANCIO, 2012).
O segundo momento deste processo de reforma se dá pela via da trajetória sanistarista,
que tem início na década de 80 (AMARANTE, 1998). Algumas questões importantes deste
momento histórico, do que se denominou de Reforma Sanitária, serão mais profundamente
abordadas no próximo tópico deste capítulo. O que vale desde já destacar é que, frente a um
25
primeiro CAPS de Juiz de Fora, como será elucidado no capítulo específico sobre a
construção histórica da cidade. Dos principais objetivos deste novo dispositivo era uma nova
possibilidade de atendimento à população, isto é, um filtro entre o hospital e a comunidade.
Há ainda proposição de atividades de inserção social e psicoterapia, funcionando oito horas ao
dia, cinco dias por semana (AMARANTE, 1998). Já em 1989, a partir de intervenção
realizada na Casa de Saúde Anchieta, na cidade de Santos, e o fechamento deste hospital
psiquiátrico privado, foi possível a criação de um novo formato de sistema psiquiátrico,
inteiramente substitutivo ao anterior, de caráter manicomial. Nesta nova modalidade, foram
realizados diversos trabalhos, como cooperativas, associações, moradias, e a concepção de
Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), em funcionamento 24h por dia. Este foi, sem
dúvida, um grande marco para a construção da saúde mental no Brasil.
Ainda no mesmo ano, através do Projeto de Lei 3657/89, apresentado ao Congresso
Nacional, inicia-se alterações crescentes nas políticas públicas (AMANCIO, 2012). No texto
de tal projeto, proposto pelo parlamentar mineiro Paulo Delgado2, havia a proibição, em todo
território nacional, da construção de novos hospitais psiquiátricos públicos e os convênios
relativos a hospitais psiquiátricos privados (DESVIAT, 2015). Frente a este processo,
algumas foram as unidades da federação a também garantir legislação específica para a
realidade da saúde mental. Em Minas Gerais foi aprovada a Lei Estadual 11.802, de 18 de
janeiro de 1995, que:
Dispõe sobre a promoção de saúde e da reintegração social do portador de
sofrimento mental; determina a implantação de ações e serviços de saúde mental
substitutivos aos hospitais psiquiátricos e a extinção progressiva destes; regulamenta
as internações, especialmente a involuntária, e dá outras providências.” (BRASIL,
2004, p. 37)
Deste modo é possível demonstrar que, no contexto estadual mineiro, este movimento
antimanicomial de resistência às antigas práticas e reformulação da assistência consegue ter
grande força política, inclusive com a garantia formal através desta nova legislação que se
estabelece. No corpo desta lei há ainda a garantia de novas práticas e a proibição de outras,
tais como psicocirurgia (procedimento mais conhecido pelo nome de “lobotomia”) e camisas
de força.
2
Válido ressaltar que curiosamente o parlamentar construiu o início sua trajetória política no
municipio de Juiz de Fora.
27
oficial, tramando suas redes no interior do aparelho estatal (YASUI, 2010). Algumas
resoluções normativas começam a ser produzidas, como Portarias e Resoluções. Como a
Portaria SNAS nº 224, de 29 de janeiro de 1992 (BRASIL, 2004, p. 243), que estabelece
diretrizes e normas para a assistência em saúde mental, contemplando, inclusive, questões
como funcionamento de NAPS/CAPS. Porém, se por um lado havia o processo democrático
consolidado neste momento em âmbito nacional, os problemas econômicos do país se
agravaram. A estabilidade econômica foi tida como prioridade fundamental, subordinando
outros aspectos da vida social a esta condição. A adoção e defesa deste modelo instaurou-se
enquanto forte obstáculo a implementação das políticas sociais propostas pela Reforma
Sanitária. “Assim, segregação, violência e exclusão continuam, mais do que nunca, sendo
pautas na agenda da discussão nacional” (YASUI, 2010).
Assim, embora o supracitado projeto de lei tenha sido rejeitado em seu texto original,
após doze anos de tramitação foi aprovada em 6 de abril de 2001 a Lei Federal 10.216
(BRASIL, 2004, p. 17). Esta é o efeito jurídico de uma série de medidas contempladas pela
reforma psiquiátrica, que pretendeu modificar o sistema de tratamento clínico da doença
mental, substituindo gradativamente a internação por serviços de saúde mental em âmbito
público-comunitário. O texto desta lei, no entanto, não assegurou algumas das intenções mais
fundamentais do projeto inicial, tais como a progressiva extinção de leitos psiquiátricos.
Ainda assim, é um decisivo marco histórico e social, sendo conhecida por muitos como a “Lei
da Reforma Psiquiátrica Brasileira” (AMARANTE, 2013), ou pelo nome do parlamentar de
autoria, isto é, a “Lei Paulo Delgado”.
Esta lei é de fato um marco e uma grande conquista para a sociedade. Mas é válido
lembrar que muito já vinha e continuou sendo feito, em termos de construções jurídicas neste
processo: Portarias, Resoluções, Leis Estaduais, como, por exemplo, a Portaria GM nº106, de
11 de fevereiro de 2000 (BRASIL, 2004, p. 100), que cria os Serviços Residenciais
Terapêuticos; a Portaria GM nº 336, de 19 de fevereiro de 2002 (BRASIL, 2004, p. 125), que
estabeleceu as modalidades e complexidade dos Centros de Atenção Psicossocial; e as
portarias seguintes de credenciamento destes serviços; o Programa de Volta Para Casa, que
institui auxílio-reabilitação para egressos de internação psiquiátricas, através da Lei Federal
10.708, de 31 de julho de 2003 (BRASIL, 2004, p. 23). Neste sentido, uma das portarias mais
recente que ganhou muito destaque em âmbito nacional foi aquela que institui a Rede de
Atenção Psicossocial, isto é, a Portaria GM/MS nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011
(BRASIL, 2011). Isto porque aborda diretrizes, objetivos gerais e específicos, descreve os
28
componentes desta rede, seus pontos de atenção, discorre sobre iniciativas de geração de
renda e trabalho.
O momento atual é de incertezas, como, dentre tantos acontecimentos, a criação da
“Frente Parlamentar Mista em Defesa da Nova Política Nacional de Saúde Mental e
Assistência Hospitalar Psiquiátrica” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2018), em novembro
de 2018. Com o discurso de modernidade e atualização científica, supostamente através de
debates e diálogos, o que na prática se visa produzir é a retomada de velhas concepções, como
o privilegiamento do setor privado, em detrimento do SUS; o retorno da concepção da saúde
enquanto meramente ausência de doenças, subjugando toda uma construção histórica de luta
social, de mudança de cultura, de produção de autonomia. É cedo, no entanto, para saber
quais serão, de fato, as propostas a serem aprovadas3, quais mudanças serão concretizadas, e,
principalmente, quais efeitos de todo esse processo mais recente. Ainda assim, é sempre
válido afirmar é que a Reforma Psiquiátrica é um processo de construção coletiva, com mais
de 30 anos de luta, que produziu efeitos imensuráveis no sentido de uma sociedade mais justa,
com garantia de direitos humanos a todos os cidadãos.
3 Durante a produção deste trabalho uma Nota Técnica, produzida pela Coordenação Geral de Saúde
Mental, Álcool e Outras Drogas, do Ministério da Saúde, foi ao ar no site deste ministério e chamou a
atenção da opinião pública. Temas como inclusão dos hospitais psiquiátricos na RAPS e
financiamento para aparelhos de eletroconvulsoterapia estavam propostos no corpo do documento, o
que gerou opiniões distintas. Frente as mais diversas críticas feitas por especialistas da área,
posteriormente o documento foi tirado do ar, com alegações por parte do governo de que o texto não
estaria pronto. Este acontecimento reforça o momento de instabilidade, incertezas, e também para qual
direcionamento aponta o governo que se encontra atualmente no poder.
29
De tal modo, através de “uma abertura lenta, gradual e segura”, passam a ser
incorporados especialistas em diferentes frentes sociais, como a saúde pública. Representantes
do movimento sanitário passam assim a ocupar cargos importantes no Ministério da Saúde e
na Previdência Social. Estes atores foram fundamentais para a transformação e organização
dos serviços de saúde que iria vir a ocorrer no país (ESCOREL, 1999). No entanto, como
proposto por Tatiana Wargas Baptista:
A variedade e natureza das políticas sociais desenvolvidas a partir de 74 demonstra
assim o duplo interesse do Estado neste momento, qual seja: a manutenção da ordem
com respaldo social e a constituição de um Estado minimamente capaz de produzir
desenvolvimento (BAPTISTA, 1997, p. 7).
30
Com o fim do regime militar e a despeito da grande mobilização pelas eleições diretas
em 1984 (sob o slogan “DIRETAS JÁ”), a eleição ocorreu de forma indireta através do
colégio eleitoral do Congresso Nacional. Foi eleito Tancredo Neves, político mineiro, no
entanto, seu falecimento antes da posse oficial, levou José Sarney ao poder entre 1985 e 1990,
novas transformações se deram no sistema de saúde. No final do regime anterior o setor saúde
já se apresentava em grande desenvolvimento. As AIS passam a ser então o eixo fundamental
da política de saúde na primeira fase do governo de transição democrática, ganhando assim, a
partir da Nova República, expressão nacional e se tornando uma importante ferramenta no
processo de descentralização (NORONHA e LEVCOVITZ, 1994).
A tentativa de unificar a saúde em um sistema único, com a incorporação do INAMPS
(Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) ao Ministério da Saúde se
deu com tensões de diferentes setores. Neste contexto, no ano de 1986, ocorreu a 8ª
Conferência Nacional de Saúde, como um grande marco da história da saúde pública
brasileira. Sustentada pela máxima de que “a saúde é dever do Estado e direito de todos” e
com significativa representatividade social, “esta passou a significar, através de seu relatório
final, a consolidação das propostas do movimento sanitário original acrescido de novos
integrantes e parceiros” (ESCOREL, 1999, p. 193).
Dos vários desdobramentos desta conferência, um marco importante foi a criação dos
Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (SUDS). Este foi concebido pela
Presidência do INAMPS e visava à descentralização dos serviços de saúde, contribuindo para
a consolidação e desenvolvimento das AIS (NORONHA e LEVCOVITZ, 1994). Esta
implementação se deu com a dependência dos dirigentes políticos, especialmente aqueles
locais; o que iniciou com amplo apoio, mas esbarrou em dificuldades com o decorrer do
processo.
O processo histórico se seguiu com a proposição de uma nova constituinte, o que fez
com que os ideais da Reforma Sanitária pudessem ser contemplados. Alguns dos mais
fundamentais princípios deste movimento passaram então a fazer parte do texto da
Constituição, o que engendrou posteriormente o Sistema Único de Saúde. No entanto, se o
governo tinha como pretensão a contemplação de políticas sociais, o modelo econômico
adotado fez com que estas políticas fossem pouco a pouco substituídas por políticas de caráter
conservador. Assim, ao final do governo Sarney, a política de saúde se deu em grande
retrocesso, especialmente quanto à descentralização e o privilegiamento do setor público
(ESCOREL, 1999).
33
Ao final de 1990 o movimento sanitário ganhou nova configuração, visto que se tinha
em cena uma nova conjuntura, com novos dilemas e desafios a enfrentar. Vários foram estes
desafios, de acordo com as diferentes vertentes contempladas por este movimento. Porém, um
desafio comum a todos se encontrava em políticas que começaram a ganhar força neste
período, não apenas no contexto brasileiro. O projeto neoliberal, que tem como principal
fundamento a não participação do Estado na economia. Este foi incorporado em diferentes
âmbitos governamentais, e se deu enquanto uma potente tensão à construção social
estabelecida até então, visto que caminha na contramão de toda luta até então popularmente
construída. Com princípios como privatização de empresas estatais e ênfase na globalização,
se instaura enquanto notável desafio até os dias atuais.
Um importante processo que ganha também força especialmente nos anos 90 é a
descentralização da saúde. Se no período ditatorial as ações eram extremamente centralizadas
na federação, as conquistas garantidas pela criação do SUS passam a trazer um processo de
maior autonomia dos demais entes federados. É válido, neste ponto, destacar a importância
das Normas Operacionais Básicas (NOBs) para o processo de municipalização da saúde
através de mecanismos de repasse de recursos federais para os municípios4. Sobre estas
normas:
Do ponto de vista formal, as NOBs são portarias do ministro da Saúde e reforçam o
poder de regulamentação da direção nacional do SUS. Tais instrumentos definem os
objetivos e diretrizes estratégicas para o processo de descentralização da política de
saúde, e contribuem para a normatização e operacionalização das relações entre as
esferas de governo (...) (LEVCOVITZ, LIMA e MACHADO, 2001, p. 273) .
Assim, através destes instrumentos, mecanismos foram criados para estes repasses,
uma vez que a criação de secretarias municipais de saúde, bem como os demais processos de
descentralização, era ainda incipiente no início da década de 90.
Com a Portaria GM/MS nº 545, de 20 de maio de 1993, que estabelece a NOB SUS
01/93, são implementado o modelos de transferência “fundo a fundo”, para estados e
municípios, através de regulação de condicionalidades para esta execução, isto é, a partir de
critérios específicos que visavam a descentralização, àqueles que se encontravam em gestão
semi-plena (ou incipiente, parcial) (BRASIL, 1993) . Posteriormente, a Portaria GM/MS nº
2.203, de 5 de novembro de 1996, que aprova a NOB SUS 01/96, faz com que se estabeleçam
critérios para gestão plena. Estes são marcos substanciais para o processo de descentralização
da saúde, produzindo autonomia e co-responsabilização entre os entes federados, em especial
4 Para melhor compreensão destas normas, mecanismos, contexto histórico, desafios e seus efeitos
práticos, recomenda-se a leitura do artigo “Política de saúde nos anos 90: relações intergovernamentais
e o papel das Normas Operacionais Básicas” (LEVCOVITZ, LIMA e MACHADO, 2001).
34
para o presente trabalho, relativo à questão municipal, visto que “a municipalização, de fato,
reduz os riscos de fragmentação dos serviços, oferece a possibilidade de compreensão das
necessidades e das faixas de risco de uma população, constituindo-se a condição ótima para
estimular a participação ativa da comunidade” (VENTURINI, 1998, p. 15)
Assim, após a breve contextualização das políticas de saúde presentes neste trabalho, é
substancial se pensar nos riscos da incorporação deste projeto neoliberal na
contemporaneidade, não apenas enquanto política econômica, que acaba por produzir
acirramento nas desigualdades, mas também enquanto desmonte de uma longa construção
social, de um histórico de lutas, que culminou com uma grande conquista (ainda que com
limitações): um sistema único, descentralizado e democrático.
35
Isto porque envolve nas pautas da Reforma Psiquiátrica, a questão de se repensar o imaginário
social sobre a loucura. De tal forma, inciativas diversas que operem diretamente na cultura,
convidando os demais atores da sociedade a participar, são primordiais ao movimento de
desinstitucionalização.
Ao abordar a Reforma Psiquiátrica enquanto um processo social complexo, com
dimensões diversas que se comunicam, o autor traz então a possibilidade de ampliação desta
abordagem, da complexidade deste objeto, e da importância de suas mais variadas facetas.
Esta construção teórica auxilia também na visibilidade de aspectos por vezes subjugados, e
articula, portanto, embasamento teórico para possibilidades deste olhar.
Ao se estabelecer a construção da complexidade desta realidade persistia ainda a
questão: por quais meios se aproximar? Qual seria então a abordagem metodológica a auxiliar
a construção deste estudo?
Acredito ser válido, neste ponto, incorrer sobre a minha própria desconstrução
enquanto pesquisadora. Os questionamentos sobre a realidade da saúde mental de Juiz de Fora
me permeiam desde o período da graduação. Estar inserida ainda enquanto estagiária já me
fazia perceber algumas questões delicadas, questionar o contexto e discordar de algumas
práticas. Assim, no início deste estudo, ainda que veladamente, minha busca era pela verdade,
ou mesmo por responsáveis. O que o aprofundamento nos estudos me permitiu foi perceber a
não linearidade da história, a complexidade da construção deste processo, que mais do que
envolver “culpados”, envolve atores múltiplos, que, com diferentes visões de mundo,
participam direta ou indiretamente desta história. Esta desconstrução pessoal foi possível
graças às aulas diversas ministradas no programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, e
fundamentalmente pelas reuniões e proposições de meus orientadores, que com formação
crítica e embasamento teórico me fizeram repensar diversas questões, ou mesmo certezas. A
ida a campo em si, através do contato com diferentes documentos e olhares, foi também de
suma importância. Para tanto, uma ferramenta se fez imprescindível: as construções teóricas
propostas por Michel Foucault.
Ainda na graduação tive oportunidade de me aproximar das proposições de análise
discursiva de Foucault. Esta noção foi fundamental para o início de uma construção de
complexidade. Assim, o presente trabalho baseia-se em uma metodologia de análise
arqueológica, também produzida por este autor.
encontradas no decorrer deste estudo, tais como artigo publicado em revista, capítulo de livro,
dissertação de mestrado e tese de doutorado (HECKERT, 1991; MELO DE PAULA,
BARROS, et al., 1991; RIBEIRO, 1991; MARQUES, 1996; BARRETO, 2003; MENDES,
2007; QUEIROZ, 2009; RODRIGUES, XAVIER, et al., 2013; SANTOS, 2013; FORTES,
2017; PINTO, 2017; TARMA, 2017). O que estes trabalhos tinham em comum era a
aproximação, em maior ou menor grau, com a saúde mental de Juiz de Fora. Seja através da
análise da realidade de trabalho de alguma categoria específica neste contexto, tal como
enfermeiro e assistente social, seja trazendo dados sobre a realidade da assistência em período
específico. No decorrer deste processo de pesquisar por publicações fui informada que houve
no final dos anos 90 e início dos anos 2000, através de parceria com a Escola de Saúde
Pública de Minas Gerais (ESP-MG), uma Especialização em Saúde Mental desta instituição
no município de Juiz de Fora. Assim, estive na cidade de Belo Horizonte em busca de
publicações produzidas naquela escola que tocassem em meu tema de pesquisa. Lá encontrei
outras importantes produções sobre esta temática (BARBOSA, 2000; GOULART, 2000;
RIBEIRO, 2000; TOMAZ, 2000; BARROS, 2015), que foram também fundamentais à
construção histórica de meu trabalho.
No intuito de encontrar então documentos, publicações técnicas, arcabouço formal,
estive algumas vezes no Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora. Apesar da
disponibilidade e incansáveis tentativas de auxílio do diretor deste serviço, poucos foram os
documentos encontrados sobre um passado mais remoto deste campo na cidade. O que
poderia, a princípio, se transformar em frustração, me fez pensar enquanto esta realidade era
em si um dado. O quanto não encontrar documentação sobre os hospitais psiquiátricos de Juiz
de Fora apontava para a própria importância da documentalidade, e o quanto isto era
subjugado por estes estabelecimentos. O lugar que a dimensão jurídico-política demonstrava
nisto tudo, que será mais amplamente elucidado no capítulo específico sobre esta construção
histórico-documental.
Ainda na intencionalidade de encontrar documentos que pudessem auxiliar esta
construção histórica, estive pesquisando no Departamento de Saúde Mental da Prefeitura
Municipal de Juiz de Fora. Neste espaço tive contato com documentos diversos,
especialmente do período pós-constituinte e implantação do Sistema Único de Saúde. Afinal,
é somente após estes marcos que a saúde se complexifica entre as três esferas de governo
(municipal, estadual e federal), e passa por processo de municipalização. Assim sendo, tomei
conhecimento de importantes acontecimentos deste processo histórico, bem como tive acesso
39
pública é que o leitor tenha arcabouço teórico para vislumbrar o que foi aqui produzido sobre
a realidade juiz-forana.
Ainda na intenção de que esta produção se tornasse de mais fácil acesso, pensou-se na
divisão deste processo de Reforma Psiquiátrica em Juiz de Fora em dois capítulos: um que
abordasse uma construção histórica mais linear e enrijecida, através dos documentos e
publicações encontradas; e outro, a partir da fluidez possível com a oralidade das entrevistas.
Apesar da proposição deste capítulo histórico-documental, é importante frisar que:
Nada seria mais falso do que ver na análise das formações discursivas uma tentativa
de periodização totalitária: a partir de um certo momento e por um certo tempo, todo
mundo pensaria da mesma forma, apesar das diferenças de superfície, diria a mesma
coisa, através de um vocabulário polimorfo, e produziria uma espécie de grande
discurso que se poderia percorrer indiferentemente em todos os sentidos.
(FOUCAULT, 2017b, p. 181)
Neste sentido, o capítulo seguinte a aquele visa justamente a complexidade desta
formação discursiva, que escapa a uma periodização formal. A história, que não segue uma
linearidade, uma progressão. Que apesar de novas produções técnicas, permanece com
práticas antigas. Que ainda que em um novo contexto, tem resquícios da construção social
engendrada anteriormente. Que não é ideal, ou mesmo absoluta, mas que como afirma
Foucault (2002), em seu nível arqueológico, é naquilo que a tornou possível. Assim, esta
análise se pretende à visibilidade dos diferentes olhares, aos tensionamentos, e não à
construção de uma teoria concreta e unitária, pois:
É um discurso sobre discursos, mas não pretende neles encontrar uma lei oculta,
uma origem recoberta que só faltaria libertar; não pretende tampouco estabelecer,
por si mesmo e a partir de si mesmo, a teoria geral da qual eles seriam modelos
concretos (FOUCAULT, 2017b, p. 247)
Com o que foi metodologicamente produzido até aqui, ainda há espaço para o seguinte
questionamento: teria, pois, este método validade científica? Teria a padronização necessária
enquanto uma produção acadêmica, que se propõe a fazer ciência? Sem o engendramento de
uma regra, um postulado, seria esta uma produção científica? Neste sentido, são válidas as
palavras do próprio Foucault, em um recorte do livro “Microfísica do Poder”, quando diz:
Antes mesmo de saber em que medida algo como marxismo ou a psicanálise é
análogo a uma prática científica em seu funcionamento cotidiano, nas regras de
construção, nos conceitos utilizados, antes mesmo de colocar a questão da analogia
formal e estrutural de um discurso marxista ou psicanalítico com o discurso
científico, não se deve antes interrogar sobre a ambição de poder que a pretensão de
ser uma ciência traz consigo? As questões a colocar são: que tipo de saber vocês
querem desqualificar no momento em que vocês dizem ‘é uma ciência’? Que sujeito
falante, que sujeito de experiência ou de saber vocês querem ‘menorizar’ quando
dizem: ‘eu que formulo esse discurso, enuncio um discurso científico e sou um
cientista? (FOUCAULT, 2017c, p. 269)
Com estas afirmações, portanto, o que se propõe com este estudo abarca experiências,
as vivências do sujeito falante; a visibilidade de saberes subjugados, desviantes; diferentes
42
Gráfico 1 – Frequência de AIHs por Grupos de Causa em Juiz de Fora nos anos de 1994, 95 e 96.
juntos representavam 90,57% dos leitos psiquiátricos de Minas Gerias (GOULART, 2000), o
que engendrou uma forte tradição manicomial à realidade juiz-forana. No ano de 1986 a
cidade contava então com 1792 leitos psiquiátricos, distribuídos em sete hospitais
psiquiátricos privados conveniados ao setor público da seguinte maneira:
Clínica São Domingos (240 leitos), Clínica São Domingos Filial (180 leitos), Casa
de Saúde Esperança (450 leitos), Hospital Aragão Vilar (380 leitos), Clínica Serro
Azul convênio (190 leitos), Clínica Pinho Masini (132 leitos) e Hospital São Marcos
(220 leitos) (MARQUES, 1996, p. 104).
Atualmente todas essas instituições foram descredenciadas do Ministério da Saúde, em
contextos históricos e com justificativas diferentes, que serão ainda contempladas neste
estudo5.
O primeiro hospital psiquiátrico da cidade data ainda de 1939, chamado Casa de Saúde
Esperança (RODRIGUES, XAVIER, et al., 2013). Este estabelecimento mudou-se para a
cidade vizinha de Matias Barbosa em 1949, e após cinco anos retornou seu funcionamento
para Juiz de Fora. Fato curioso a ressaltar é de que foi este também o último hospital
psiquiátrico descredenciado da prestação de serviço conveniado ao setor público, como será
posteriormente elucidado. No início da década de 70, mais especificamente em 1973, a Casa
de Saúde Esperança foi vendida para o Grupo São Domingos, e em maio de 1977 mudou-se
para o seu endereço final. Os demais hospitais supracitados foram construídos, em sua
maioria, especialmente após a instauração do regime militar de 1964, configurando-se
enquanto parte da “indústria da loucura” (CERQUEIRA, 1984) já previamente mencionada.
Neste contexto histórico as instituições psiquiátricas privadas em parceria com o poder
público cresceram vertiginosamente, e o número de leitos psiquiátricos acompanhou este
estrondoso crescimento. Um importante fator a ser elucidado, no entanto, é que após
exaustiva pesquisa no decorrer deste estudo em fontes diversas, pouco foi encontrado sobre a
data de construção destes. Através do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde
(CNES) foi possível extrair, da competência de “fevereiro de 2012”, o Cadastro Nacional de
Pessoa Jurídica (CNPJ) dos seguintes: Casa de Saúde Dr. Aragão Villar, Casa de Saúde
Esperança, Clínica São Domingos e Hospital São Marcos (BRASIL, 2017). Destes consta que
a referida data de abertura de seus CNPJ se deu entre 1966 e 1968 (Consulta CNPJ, 2018). É
sabido, no entanto, que a Casa de Saúde Esperança foi construída em 1939 (RODRIGUES,
XAVIER, et al., 2013). E ainda, em pesquisa documental ao arquivo histórico da Prefeitura
Municipal de Juiz de Fora (PJF), encontrei um documento relativo ao Hospital Aragão Villar
5 Ainda se encontra em funcionamento na cidade uma instituição privada com leitos psiquiátricos. Esta, no
entanto, nunca esteve vinculada ao setor público, e possui peculiaridades que fogem ao escopo deste estudo. Por
esta razão ela não foi contemplada no presente trabalho.
46
datado de 1959. Portanto a abertura do CNPJ de ambos em 1966 não condiz com o início do
funcionamento dos mesmos. Por acreditar que esta dificuldade configura-se em si enquanto
dado importante, da própria relação destes hospitais com o rigor documental, é que este tema
é aqui abordado, ainda que de maneira inconclusiva. O que a “indústria da loucura”
representou ao município, no entanto, é amplamente documentado e notório: a assistência
psiquiátrica em Juiz de Fora foi marcadamente hospitalocêntrica, sem resolutividade e com
internamento massivamente realizado na rede hospitalar privada (HECKERT, 1991;
RIBEIRO, 1991; BARBOSA, 2000; GOULART, 2000; MENDES, 2007; RODRIGUES,
XAVIER, et al, 2013; HECKERT, 2015).
A partir do avanço das Ações Integradas em Saúde (AIS), algumas possibilidades
começaram então a ser pensadas. Em dezembro de 1985 foi criado um Grupo de Trabalho
(GT)6 em Saúde Mental, da Comissão Local Interinstitucional de Saúde de Juiz de Fora
(CLIS-JF), com a proposta de criação de um projeto de reformulação de assistência. Assim,
foi organizado por este grupo, em 1986, o “1º Seminário de Assistência em Saúde Mental de
Juiz de Fora”, em que o tema abordado era a assistência em Saúde Mental nas AIS
(RIBEIRO, 1991). Como desdobramento, este GT transformou-se em Comissão Executiva de
Saúde Mental da CLIS-JF.
Algumas foram as propostas feitas neste processo, que tiveram maior ou menor nível
de aplicação e longevidade. Um importante dispositivo da rede municipal foi criado em março
de 1987, o Serviço de Urgência Psiquiátrica – SUP, junto ao Pronto Socorro Municipal, e que
ainda hoje se encontra em funcionamento, apesar de diversas modificações na assistência ou
mesmo de sua localização (HECKERT, 2015). A proposta deste serviço era ser tanto
referência de encaminhamento da atenção primária e secundária, como atendimento de
demanda espontânea. Assim, sua implementação teve como principal objetivo uma nova
possibilidade de assistência às urgências psiquiátricas, propondo, deste modo, uma triagem às
internações hospitalares, especialmente com os serviços particulares conveniados (RIBEIRO,
1991). Válido lembrar que neste momento histórico no âmbito nacional havia grande
efervescência no campo da saúde pública sobre o “plano do CONASP”, logo das Ações
Integradas em Saúde, e, mais especificamente na saúde mental, das discussões a partir do
“Programa de Reorientação da Assistência Psiquiátrica” (MPAS, 1983), produzido pelo
6 Este GT era composto pelos seguintes profissionais: uma assistente social, uma enfermeira, uma
psicóloga e quatro psiquiatras, vinculados às quatro instituições colegiadas: Prefeitura Municipal de
Juiz de Fora, Centro Regional de Saúde de Juiz de Fora, INAMPS e UFJF (RIBEIRO, 1991)
47
das ações em consonância com a política nacional de medicamentos. Outro fator chave do
contexto do município, a ser abordado posteriormente neste trabalho, já surge então no escopo
dessa conferência: o incentivo, por parte do poder público, à participação da sociedade, qual
seja, por meio de associação de familiares e pacientes (JUIZ DE FORA , 1992). Além disso,
também foi pensado já nesse momento da possibilidade da atenção secundária auxiliar na
geração de renda das pessoas assistidas. No entanto, pensava-se naquele momento neste nível
de atenção enquanto estrutura intermediária entre hospital psiquiátrico e atenção básica, em
que seu principal propósito seria de prestar assistência antes da internação (JUIZ DE FORA,
1999a). Apesar do caráter inovador de algumas propostas à época, e de muitos pontos estarem
em confluência com o discurso de Reforma Psiquiátrica no restante do país, pouco destas
proposições foram neste momento executadas. Ainda assim, o texto desta conferência
demonstra, já neste período, tentativas de mudança do cenário da assistência em saúde mental
até então oferecida.
Após esta primeira conferência e também o primeiro Plano Municipal de Saúde
Mental, ambos em 1992, passam a funcionar dois programas do setor público de atenção à
saúde mental a nível municipal: o “Programa de Atenção ao Psicótico – PAP”, e o “Programa
de Atenção a Dependência Química – PADQ” (MENDES, 2007). E, como proposta de
estrutura intermediária ao hospital e o ambulatório tradicional, foi implantado a partir do PAP,
em outubro de 1993, o primeiro Centro de Atenção Psicossocial de Juiz de Fora, que a
princípio levou o nome de CAPS/Juiz de Fora, mas que foi credenciado ao Ministério da
Saúde em 1996 como CAPS Casa Viva. O referencial teórico para sua construção passou por
outros serviços análogos já em funcionamento no país naquele momento, mas principalmente
do CAPS Luis Cerqueira, da cidade de São Paulo, inclusive com visitas técnicas do psiquiatra
deste serviço, dr. Jairo Goldberg e da equipe de Juiz de Fora à capital paulista (MARQUES,
1996). Apesar da proposta inicial, brevemente a população atendida não se constituía apenas
de pacientes psicóticos, mas também de outros quadros.
Quanto à gestão da rede de saúde mental, a coordenação passou a ser oficialmente
instituída a partir de 1994, quando da criação do Instituto de Saúde Mental – ISM. Este
passou a ter a responsabilidade da política oficial desta área (MARQUES, 1996).
Posteriormente esta nomenclatura foi alterada para Departamento de Saúde Mental, usada até
os dias atuais.
Com a entrada de um novo grupo político no poder, novas propostas foram realizadas
para a estrutura e funcionamento da assistência em saúde mental do município, e, a partir de
50
1997, um novo modelo de rede foi colocado em prática. Consta no Plano Municipal de Saúde
do referido ano:
A atual proposta de reestruturação da assistência justifica-se a partir da constatação
da inexistência de um sistema de atendimento que reverta o atual modelo,
marcadamente hospitalocêntrico, o que constitui circunstância tecnicamente
ultrapassada, ideologicamente condenável e responsável por custos insuportáveis
(JUIZ DE FORA, 1997, p. 78).
Assim, baseado na regionalização, descentralização e hierarquização, propõe-se que
ênfase deve ser dada à assistência ambulatorial. As ações interinstitucionais eram
normatizadas como se segue: atenção primária, caracterizada pelos serviços prestados pelas
Unidades Básicas de Saúde (UBS); secundária, compreendida pelos Centros Regionais de
Referência em Saúde Mental (CRRESAM)7 e os Programas Especiais em Saúde Mental
(PROESAM); e terciária, relativa ao SUP; o hospital público geral vinculado à Fundação
Hospitalar Estadual de Minas Gerais (FHEMIG), Hospital Regional Dr. João Penido (HRJP),
que possuía, já nesse período, alguns leitos psiquiátricos; o Hospital Universitário da UFJF
(HU/UFJF), e os demais hospitais privados conveniados ao serviço público. Consta ainda
proposta de desospitalização progressiva, com o planejamento do que se denominou à época
de “pensões protegidas”, bem como da possibilidade de expansão da rede de CAPS (JUIZ DE
FORA, 1997).
A princípio foi realizada avaliação destas práticas em uma área-piloto8, e posterior e
gradualmente estas foram se estendendo para as então 36 UBSs da cidade (BARBOSA,
2000). Esta proposta também foi apresentada como documento produzido pelo Instituto de
Saúde Mental na II Conferência Municipal de Saúde, ocorrida entre os dias 20 e 22 de Agosto
de 1999, com o tema de “Ética e Cidadania na Construção de uma Rede e Assistência em
Saúde Mental” (JUIZ DE FORA, 1999a). A própria temática da conferência já elucida qual
direcionamento tomado neste processo: novas proposições à rede assistencial em saúde
mental.
Com o intuito de organização e viabilidade desta rede, na conferência supracitada
foram aprovadas ainda importantes propostas, como da estruturação de uma farmácia básica,
especificamente para a saúde mental, de responsabilidade das três esferas de governo (federal,
estadual e municipal). Há ainda a proposta de uma equipe mínima de atendimento em cada
CRRESAM, composta por Psiquiatra, Enfermeiro, Assistente Social e Psicólogo. Retoma-se a
7 Algumas publicações utilizam a sigla CRRSM para este serviço. A sigla CRRESAM foi escolhida a
ser usada no presente trabalho por constar na publicação oficial sobre protocolos de organização desta
rede (INSTITUTO DE SAÚDE MENTAL, 2000).
8 Sobre este processo de implantação recomenda-se leitura da Dissertação de Mestrado:
“Reformulação da Assistência em Saúde Mental em uma Unidade Básica de Saúde de Juiz de Fora
(1997-2001)”, de Gisele Tarma (2017).
51
importância da educação continuada, mas neste contexto oferecida por esses centros de
referência aos profissionais das unidades básicas. Ponto interessante a se destacar diz respeito
ao incentivo de se implementar programa de Agentes Comunitários em Saúde, demarcando
claramente a influência e centralidade da Atenção Primária em Saúde neste modelo.
Ainda sobre as discussões e metas desta conferência foi abordado a respeito da
alocação de recursos advindos da redução das AIH’s psiquiátricas, com rubrica específica no
sentido da criação de dispositivos substitutivos ao Hospital Psiquiátrico, como “Lar
Abrigado”, e também de novos quatro CAPS, propostos para “Cidade Alta, Região Leste,
Região Norte, Região Sul”, se adequando assim a proporcionalidade de um CAPS para cada
100 mil habitantes, como sugerido pelo Ministério da Saúde (JUIZ DE FORA, 1997). Apesar
destas muitas propostas, novamente o que se viu foram boas discussões e temáticas
abordadas, mas, assim como a conferência anterior, muitos destes elementos não se
concretizaram, como a implantação dos referidos serviços substitutivos, seja residenciais, ou
mesmo destes novos CAPS.
Também no ano de 1999, outro importante acontecimento afetou o funcionamento da
rede municipal de saúde mental de Juiz de Fora. Um dos municípios componentes da
Mesorregião da Zona da Mata, Ubá, começou no ano anterior articulação para a criação de um
CAPS nesta cidade. Assim, foi realizado um levantamento de todas as internações
provenientes de toda microrregião de Ubá na cidade de Juiz de Fora, a partir da série histórica
do ano de 1998. A proposta do novo serviço em construção seria de diminuição destas
internações: o compromisso firmado era de que Ubá reduziria, em um prazo de seis meses, em
66% as internações provenientes de 30 municípios, destes 20 da microrregião de Ubá e 10 da
microrregião de Muriaé (RIBEIRO, 2000). Além disto, só seriam autorizadas internações em
Juiz de Fora de pessoas provenientes destas localidades, após avaliação da equipe técnica do
CAPS de Ubá (JUIZ DE FORA, 1999b). E, uma vez internados, uma “equipe de
acompanhamento hospitalar” da rede de saúde mental de Ubá se faria presente nos hospitais
conveniados de Juiz de Fora (RIBEIRO, 2000). Para que todo esse processo se fizesse
possível, Juiz de Fora passaria a repassar valor estipulado em vinte mil reais de seu teto
financeiro ao teto financeiro de Ubá. Assim, com apoio da Comissão Intergestora Bipartite
Regional, a pactuação entre os municípios foi realizada. O impacto já no ano de 2000 era de
aproximadamente 73,3% de redução das internações, sejam estas de pacientes agudos ou
crônicos (RIBEIRO, 2000). Esta iniciativa foi pioneira, e serviu de modelo para outros
serviços que vieram a ser construídos posteriormente na região.
52
Fonte: Protocolos de conduta do Sistema Municipal de Saúde Mental, Instituto de Saúde Mental,
2000, p. 1.
Este se apresenta enquanto uma tentativa de resumo de toda a rede. A ideia é de que o
impresso estivesse disponível em todos os pontos desta, na tentativa de desenvolvimento de
um trabalho conjunto e co-responsável. Outra proposta desta publicação era a de criação de
fluxogramas de atendimento e encaminhamento entre estes dispositivos.
Em 16 de outubro do ano seguinte ocorre nova conferência municipal de saúde, desta
vez em sua terceira edição (JUIZ DE FORA, 2001). Consta no convite do evento justificativa
da realização da mesma: fez-se necessário a concretização desta etapa municipal para eleição
de delegados para a III Conferência Estadual e, posteriormente, III Conferência Nacional de
Saúde Mental. A edição municipal precisou ser realizada em calendário apertado, e, foi para
tanto realizada em um único dia. Frente à pequena distância temporal da conferência
municipal anterior, poucos são os pontos que valem destaque. Muito do que se discutiu se
reflete especialmente na reafirmação de se efetivar as resoluções da conferência precedente:
implementação de serviço substitutivo (agora, no entanto, da criação de três e não mais quatro
CAPS), qualificação de recursos humanos, da prioridade do atendimento primário em saúde
mental, entre outros (JUIZ DE FORA, 2001).
Frente às necessidades de políticas específicas já apontadas nas conferências
municipais, estabelece-se então no dia 26 de abril de 2002 em Juiz de Fora o primeiro Serviço
Residencial Terapêutico (SRT) da cidade, na modalidade masculina (SANTOS, 2013).
Importante perceber que o surgimento desta se dá após a portaria ministerial que cria estes
serviços no âmbito do SUS, a Portaria GM nº106, de 11 de fevereiro de 2000 (BRASIL, 2004,
p. 100), novamente demonstrando influências não somente do contexto supramunicipal ao que
ocorre na cidade, mas da importância do aspecto legal à formulação do cuidado.
No início dos anos 2000 institui-se um processo a nível nacional que se constitui
enquanto marco histórico para toda a assistência hospitalar em saúde mental do Brasil: o
Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares versão Hospitais Psiquiátricos, o
PNASH/Psiquiatria. Em Juiz de Fora as primeiras avaliações já começam a ocorrer ainda no
ano de 2002 (SANTOS, 2013). Neste momento o propósito das auditorias não era
fundamentalmente de interdição, mas de avaliação e possibilidade de melhora da qualidade
dos serviços prestados. No entanto, o que se averiguou foram condições físicas e assistenciais
bastante precárias. Ainda em janeiro de 2004, estabelece-se, através das Portarias Ministeriais
52/GM (BRASIL, 2010, p. 57) e 53/GM (BRASIL, 2010, p. 63), os critérios da versão do
PNASH-Psiquiatria de 2004, bem como a clara diretriz de redução progressiva de leitos,
54
inclusive com incentivo financeiro para esta, justificada pela busca de melhor qualidade da
assistência. É neste mesmo ano de 2004 que foi criada na cidade a segunda SRT, desta vez
destinada ao público feminino (SANTOS, 2013).
Em um projeto de reestruturação produzido em 2006 pelo próprio Departamento de
Saúde Mental, a partir de uma “Comissão de Avaliação e Reestruturação da Rede de Saúde
Mental”, o retrato dos serviços prestados é o que segue:
A rede de serviços de saúde mental em Juiz de Fora está constituída por serviços
ambulatoriais, um serviço para atendimento de urgência psiquiátrica, leitos
hospitalares, atualmente, em cinco hospitais privados e alguns leitos em hospital
público, um serviço de atenção diária (CAPS Casa Viva) e duas residências
terapêuticas. Inclui as Unidades Básicas de Saúde (UBS) como parte do sistema
(JUIZ DE FORA, 2006, p. 6).
Além de descrição detalhada dos dispositivos ofertados, o projeto afirma ainda que
estes recursos demonstram ser insuficientes, e que a parcela populacional que é atendida pelos
serviços disponível não se constitui enquanto a maioria, isto é “não absorve a demanda da
rede, nem atende os casos mais graves e que são prioritários no contexto da Reforma
Psiquiátrica” (JUIZ DE FORA, 2006, p. 7). Válido ressaltar que o número de leitos já havia
reduzido drasticamente, de 1792 em 1986 (MARQUES, 1996) para 559 leitos contratados, e
com a implantação de alguns leitos públicos o número total de leitos psiquiátricos na cidade,
sejam públicos e privados, somava 589. O que se percebe, no entanto, é que este decréscimo
não acompanhou a criação de novos serviços para absorver esta demanda, haja vista que
existia neste momento no município apenas um CAPS e duas residências terapêuticas.
Data também de 2006 a criação de um serviço tanto inovador quanto necessário ao
município, o Centro de Convivência Recriar. Iniciativa esta que surgiu a partir de uma
associação usuários e familiares, que teve seu início no interior do CAPS Casa Viva, a
Associação Trabalharte (MENDES, 2007). De fundamental importância, tanto no sentido de
possibilidade de geração de renda, já apontada como necessidade ainda na I Conferência
Municipal de Saúde Mental (JUIZ DE FORA , 1992), como no sentido de controle social, por
meio de participação direta de usuários e familiares, o Centro de Convivência encontra-se
ainda hoje em funcionamento.
Este novo momento de formulação da assistência engendrou a transformação do então
Programa de Atenção à Dependência Química, PADQ, em CAPS ad, e o Programa de
Assistência à Saúde Mental da Criança, o PASMC, em CAPSi, entre os anos de 2006 e 2007.
Também em meados dos anos 2000 passa a funcionar o Centro de Atenção Psicossocial
vinculado a UFJF, que a princípio leva nome da disciplina médica “Serviço de Psiquiatria e
Psicologia Médica da UFJF”, mas este fica amplamente conhecido por “CAPS HU”. A
55
princípio este funcionava no bairro Santa Catarina, mas no ano de 2011, mudou-se para o
bairro São Mateus. Apenas recentemente este dispositivo foi credenciado ao Ministério da
Saúde, ganhando então nome de “CAPS Liberdade”.
Após revistorias realizadas por comissões técnicas do PNASH-Psiquiatria entre 2005 e
2006, o Ministério da Saúde divulga então a Portaria SAS nº501, de 13 de setembro de 2007
(BRASIL, 2007), com indicativo de descredenciamento de dois hospitais privados de Juiz de
Fora que não alcançaram nota mínima de 61% proposta pela avaliação. São estes hospitais
Clínica Psiquiátrica Pinho Masini Ltda, com nota 56,44 e Hospital São Marcos S.A., com
48,12. Assim, após intenso diálogo entre todas as esferas do poder público, em especial
estadual e municipal, no ano de 2009 foi firmada parceria do município com a Secretaria
Estadual de Saúde (SES), através da Resolução SES nº1776, de 18 de janeiro de 2009
(MINAS GERAIS, 2009). Esta estabeleceu critérios ao repasse bipartite para processo de
desospitalização destes hospitais. Assim, o município firmou contrato com estes
estabelecimentos, em que explicitava não somente o repasse realizado pelo governo estadual,
como também do prazo de seis meses, isto é, 18 de agosto de 2009, para definitivo
descredenciamento destes. Para tanto, o estado de Minas Gerais realizaria repasse diretamente
do Fundo Estadual de Saúde para o Fundo Municipal de Saúde de Juiz de Fora, no valor de
R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais), divididos em seis parcelas mensais (MINAS
GERAIS, 2009).
Apesar das notas drasticamente baixas, da sabida precarização da assistência e do
espaço físico, o processo de descredenciamento destes hospitais não se deu sem resistência e
debate. Em 26 de maio de 2009, ocorreu na câmara municipal da cidade audiência para
discutir sobre tais descredenciamentos (CÂMARA MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA, 2009).
Diversos foram os familiares de pessoas internadas que se pronunciaram quanto à apreensão
do destino destas em razão destes descredenciamentos. Alguns fizeram elogios públicos aos
serviços prestados pelos hospitais psiquiátricos, seja pelo tratamento ofertado, seja ao bom
atendimento aos familiares. A então presidente da Associação dos Familiares de Doentes
Mentais relatou preocupação de que com o fechamento dos hospitais “muitas pacientes
acabam nas ruas”, mas que a associação iria acompanhar o processo, cobrando sobre o destino
dos egressos. Algumas ponderações e questionamento foram feitas pelos demais presentes,
técnicos convidados ou mesmo vereadores ao gestor municipal da saúde mental à época. Este
elucidou em sua fala de que o referido processo daquela audiência pública era fruto de uma
portaria ministerial, publicada ainda no ano de 2007. Abordou ainda a resolução 1776,
firmada com a SES, e de que o descredenciamento seria feito de forma a recusar altas
56
bairro Santa Helena (JUIZ DE FORA, 2012b). Além da mudança do espaço físico, este
serviço muda da modalidade CAPS ad II para CAPS ad III, passando assim a ter
funcionamento 24 horas por dia, como ocorre até a presente data.
Passados os 12 meses propostos pelo TAC aos hospitais psiquiátricos, o que se
verificou nestes espaços, no entanto, foi degradação ainda maior do que a anteriormente
encontrada nos inquéritos realizados:
(...) Problemas decorrentes da falta de profissionais de saúde e de limpeza, estruturas
físicas absolutamente degradadas (paredes e portas quebradas, enfermarias sem
janelas, andares inteiros sem energia elétrica, banheiros sem tampos de vasos ou
mesmo chuveiros, infiltrações na grande maioria dos ambientes, mobiliário
deteriorado, falta de colchões, dentre outras graves situações de violação dos direitos
dos usuários), bem como desatendimento às normas de prevenção a incêndio e
pânico (BARROS, 2015, p. 26)
Frente a esta realidade, após intenso processo de reuniões e mediações entre as partes,
foi formalizado novo TAC. Desta vez foi pactuado, no entanto, que a gestão direta dos
hospitais Casa de Saúde Esperança e Clínica São Domingos, até então geridos por um mesmo
grupo da iniciativa privada, passariam ao poder público municipal. Outro fator importante foi
o compromisso firmado de que o trabalho da gestão municipal seria no sentido de
encerramento das atividades destes estabelecimentos em tempo hábil estimado. Assim, em 1º
de março de 2013 a Prefeitura Municipal de Juiz de Fora inicia intervenção nestas duas
clínicas psiquiátricas. Válido ressaltar que após as eleições municipais de 2012, novo grupo
político havia acabado de assumir a gestão municipal, incluindo secretaria de saúde e
departamento de saúde mental.
Tamanha era a degradação da Clínica São Domingos, e da dificuldade de se articular
em tão pouco tempo duas equipes de administração direta municipal para os hospitais, que a
secretaria de saúde resolveu concentrar seus esforços no estabelecimento com degradação
relativamente menor e maior espaço físico, a Casa de Saúde Esperança. Deste modo, em
exatamente uma semana, no dia 08 de março de 2013, encerrou-se em definitivo as atividades
da Clínica São Domingos (BARROS, 2015).
Passados alguns meses, no dia 19 de junho, foi alvo então de interdição cautelar o
Hospital Aragão Villar, frente novamente as condições degradantes em que se encontravam as
pessoas que lá estavam internadas. Foi produzido novo TAC entre o poder municipal e este
estabelecimento (BARROS, 2015). Neste, no entanto, a poder público não iria assumir o
papel de prestador de serviços, mas iria auxiliar na composição do quadro de profissionais,
para parametrização de equipe mínima, bem como no auxílio e fiscalização da gestão. Foi
estabelecido também nesta nova pactuação, limite máximo para funcionamento deste
estabelecimento. Deste modo, o Hospital Aragão Villar encerrou definitivamente suas
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atividades em 14 de janeiro de 2014, e foi realizada transferência das pessoas internadas neste
local para a ainda em funcionamento Casa de Saúde Esperança, já neste momento sob
administração pública municipal (BARROS, 2015). Data também de 2014 a concretização de
importante passo a para a assistência em saúde mental da cidade: a alteração do CAPS Casa
Viva para o funcionamento 24 horas, através da mudança para a modalidade CAPS III (JUIZ
DE FORA, 2014).
Apesar da contratação de novos profissionais (ARBEX, 2013), da tentativa de
humanização do espaço, a Casa de Saúde Esperança ainda representava não somente um
modelo asilar tradicional a ser superado, como, outrossim, apresentava deterioração severa de
seu espaço físico. Àqueles que ainda remanesciam internados aguardavam neste momento, a
finalização da construção/implantação de seus respectivos serviços residenciais terapêuticos.
Não se justificava, portanto, revitalização ou reforma do hospital, que passou neste período a
ser denominado Hospital Psiquiátrico Municipal. Frente a este retrato, a secretaria de saúde
resolve por reencaminhar as pessoas ali internadas para um hospital geral, Ana Nery, que na
ocasião tinha pavilhões desativados em melhores condições físicas. Ocorre então, em 2015, o
que seria a “última transinstitucionalização”, isto é, transferência do usuário de uma
instituição para outra, com o fechamento definitivo da Casa de Saúde Esperança em 10 de
fevereiro de 2015 (BARROS, 2015). Válido ressaltar que este último processo se deu para um
hospital geral privado, com características e possibilidades de assistência diferentes das que
até então ocorriam.
Durante este processo de descredenciamento dos hospitais privados, a gestão
municipal recorreu à Coordenação Nacional de Saúde Mental, então administrada pelo
médico sanitarista Roberto Tykanori, que esteve na cidade em algumas ocasiões no intuito de
acompanhamento e suporte (JUIZ DE FORA, 2015a; JUIZ DE FORA, 2015b). Ainda no ano
de 2013, frente às pactuações realizadas entre poder municipal e Ministério Público, o
Ministério da Saúde, através da Portaria nº 1.159, de 13 de junho de 2013 (BRASIL, 2013),
estabeleceu repasse de recursos extra-teto, isto e, além do limite financeiro municipal no valor
de R$ 4.273.683,84 (quatro milhões, duzentos e setenta e três mil seiscentos e oitenta e três
reais e oitenta e quatro centavos) para a viabilidade deste processo. Consta como justificativa
deste repasse, não somente “a situação emergencial do Município de Juiz de Fora (MG)
acerca do fechamento de 3 (três) hospitais psiquiátricos privados e do processo de
desinstitucionalização das pessoas com histórico de longa internação”, como também da
“necessidade ampliar e diversificar as ações de saúde mental, orientadas para a substituição
do modelo asilar” (BRASIL, 2013). Assim, o número de serviços residenciais terapêuticos
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mais do que dobrou, saltando de 12 SRTs entre 2010/2011 (BARROS, 2015), para atuais 28
SRTs.
Pela importância estratégica que o Serviço Residencial Terapêutico representa ao
processo de Reforma Psiquiátrica, este dispositivo foi material de uma cartilha organizada
pela Secretaria Municipal de Saúde, denominada “De Volta Pra Casa: Os Serviços
Residenciais Terapêuticos em Juiz de Fora” (JUIZ DE FORA, 2016b). Esta publicação,
apresentada como “marco histórico”, busca celebrar o fim de todos os leitos em hospital
psiquiátrico do município. Nesta “pequena grande” obra, são abordados ao longo de suas 20
páginas não somente explicações do que representa este processo por parte de profissionais
atuantes na desinstitucionalização, mas também depoimentos destes novos moradores, sobre o
que estes locais representam para eles e suas histórias. Como a passagem que segue:
Quando o São Domingos fechou, fui para o Esperança, e de lá para a residência
terapêutica. Achei um tratamento diferenciado. Aqui podia me manifestar,
conversar. Pude, inclusive, raciocinar sobre tudo que me aconteceu. E agradeço
muito à equipe da casa terapêutica, porque me levaram para tirar todos os
documentos. Logo que vim para a residência terapêutica eu quase não saía de casa.
Saía sempre acompanhado por alguém da equipe. Porque a pessoa, depois que passa
tanto tempo internada, não consegue retomar assim do nada. Só depois de um tempo
eu comecei a sair sozinho. Mas eu sabia que não iria encontrar aquele mundo de dez
anos atrás, de quando eu estava internado (JUIZ DE FORA, 2016b, p. 10).
Neste recorte é possível perceber alguns dos pontos mais fundamentais deste processo:
a possibilidade de produção autonomia, construída, no entanto, respeitando a subjetividade de
cada sujeito. A importância de se fazer ouvido, de haver diálogo. A fundamental noção de
cidadania, através da possibilidade de regulamentação da documentação de cada cidadão, tão
subjugada no modelo asilar oferecido nestes espaços manicomiais. E também da constatação
dos muitos anos usurpados na vida destas pessoas por tanto tempo internadas em locais de
invisibilidade e maus tratos.
E o que parecia ser o fim de uma longa história de violação de direitos humanos
ganhou novo capítulo em 2017, quando o Ministério Público recebe denúncias referentes a
falhas na assistência prestada por parte de umas das Organizações Não Governamentais
(ONG) responsáveis pela administração da maior parcela dos SRTs do município (ARBEX,
2017a). Assim, foi instaurada sindicância para averiguar estrutura física, administração e
assistência ofertadas. Segundo relatório “foram encontradas situações inadequadas referentes
aos cuidados de saúde dos moradores, má conservação em alguns imóveis, falhas no
abastecimento de alimentos e registro de assistência insuficiente por parte dos técnicos de
nível superior de referência” (ARBEX, 2017b). Foi constatado ainda por parte da gestão
pública necessidade de melhor monitoramento dos serviços prestados nestes dispositivos, com
criação de uma comissão permanente para este fim. O final desta investigação se deu
60
9 A ONG anterior administrava 17 SRTs, mas como uma das casas teve problemas com a defesa civil,
o Departamento de Saúde Mental remanejou os moradores para vagas que havia nos demais serviços.
Assim, ao final deste processo o total de residências terapêuticas somava 28, e não mais 29, como
veiculado anteriormente pela mídia local (ARBEX, 2018).
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têm seu valor e importância, optou-se por denominar cada entrevistado por ordem cronológica
da realização das entrevistas. Assim, temos os seguintes atores:
Quadro 2 – Descrição dos Entrevistados
ENTREVISTADO DESCRIÇÃO
PSQ/PRF 01 MÉDICO PSIQUIATRA E PROFESSOR
PSQ/GST 01 MÉDICO PSIQUIATRA E GESTOR
PSQ/GST 02 MÉDICO PSIQUIATRA E GESTOR
PSI/GST 01 PSICÓLOGA E GESTORA
PSI 01 PSICÓLOGA
USU/PUB 01 USUÁRIO EM TRATAMENTO EM SERVIÇO PÚBLICO
PJ 01 PROMOTOR DE JUSTIÇA
USU/PRV 01 USUÁRIA EM TRATAMENTO EM SERVIÇO PRIVADO
USU/PRV 02 USUÁRIA EM TRATAMENTO EM SERVIÇO PRIVADO
PSI/GST 02 PSICÓLOGA E GESTORA
PSQ/PRF/GST 01 MÉDICO PSIQUIATRA, PROFESSOR E GESTOR
PSI/GST 03 PSICÓLOGO E GESTOR
TO 01 TERAPEUTA OCUPACIONAL
Fonte: Elaboração própria, 2019.
Como consta nos roteiros das entrevistas (Apêndice D) (Apêndice E), foram realizadas
perguntas sobre a percepção pessoal de cada um dos entrevistados quanto a este processo de
Reforma Psiquiátrica em Juiz de Fora, e algumas foram as questões que chamaram atenção.
Levando em consideração que se trata de um processo social complexo, utilizamos aqui as
dimensões da Saúde Mental e Atenção Psicossocial propostas por Amarante (2013), não
como categorias de análise, em que os conteúdos estão ali inseridos de modo quantitativo e/ou
enrijecidos. Não se intenciona afirmar ainda que estes discursos habitam somente uma ou
outra dimensão, ou mesmo dizer que há uma percepção unânime, em conformidade, em
maioria, passível de categorização. Mas abre-se aqui então a possibilidade para que uma fala,
uma percepção, o que foi dito por apenas um sujeito de pesquisa, ganhe visibilidade e também
importância. Assim, estas dimensões se comunicam, e aqui se apresentam enquanto
embasamento teórico para possibilidades de olhar.
No decorrer do capítulo anterior foi possível perceber que Juiz de Fora teve sua
história marcada por um expressivo número de hospitais psiquiátricos. O que isto representa,
no entanto, não é necessariamente algo dado ou óbvio, afinal as possibilidades de
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consequências são diversas, e as percepções sobre estas distintas. Com intuito de se aproximar
um pouco mais desta realidade, algumas passagens são ilustrativas:
Juiz de Fora é uma cidade... é uma cidade com o histórico psiquiátrico forte. E o
histórico psiquiátrico oriundo daquela compreensão antiga, que nós sabemos, do
hospício. Não é?! Então Juiz de Fora é muito parecida, é... nesse avatar, nesse
ângulo, nessa visão, é, não é atoa. BH, Barbacena, Juiz de Fora, Rio. Sabe aquela
coisa do trem? Sabe aquela coisa dos anos 50, anos 60, até anos 70? Quer dizer, é...
Juiz de Fora tá marcada por isso. É indelével. (PSI/GST 03)
Então a minha visão é de que a gente caminhou sim, eu acho que é um sonho
realizado você ter uma cidade que não tem manicômio, mas eu acho que a gente
ainda tem que caminhar bastante para desconstruir a cultura manicomial, porque eu
acho que ela ainda persiste. E eu me policio bastante para isso, minha visão pessoal
é que muitas das vezes eu me pego ainda tento um olhar muito manicomial.
Disfarçado, assim, no discurso técnico. (PSI/GST 01).
E isso também é uma coisa que... aqui tem uma história especial em relação a isso.
Barbacena fez limonada, né?! Barbacena é referência. Barbacena mudou aquilo tudo
e aquilo é politicamente forte hoje para o município, né?! Eu acho que o município
daqui é... a saúde mental para o município de Juiz de Fora, ela não tem peso político.
(TO 01).
Este último recorte começa a introduzir uma questão marcadamente presente na
grande maioria das falas, especialmente daqueles que estiveram inseridos de maneira
profissional, “a questão política”. Esta se manifesta em diversas formas, sob diversos
aspectos, que serão gradualmente aqui apresentados.
Retornando para os efeitos do histórico manicomial, temos também:
Eu acho que são sinais de que de fato a reforma psiquiátrica aqui em Juiz de Fora
não se permitiu de que ela acontecesse. Então ela só... gerou um dos piores frutos,
que foram esses, né?! De uma demanda sem oferta de atenção, dessa restauração, eu
acho, manicomial que está acontecendo. De uma psiquiatria muito pouco sensível à
história do paciente, a dinâmica da vida... a ideia de território que é central na
reforma psiquiátrica, nunca teve presença alguma. (PSQ/PRF 01)
Mas o que a gente percebia era, de fato, que não se tinha uma decisão de mudar o
rumo, vamos dizer assim. Então o município muito manicomial, com uma cultura
manicomial instalada. (PSI/GST 01)
Eu acho que nós avançamos. Tudo, como eu disse… eu não critico nada do que
aconteceu antes da gente fechar os hospitais porque eu acho que faz parte do
processo mesmo, de amadurecimento, de engajamento de todos, dos trabalhadores,
dos familiares, enfim. (PSQ/GST 02).
64
O que a gente vê nisso tudo é que realmente houve uma mudança de cultura. Eu
acho que esse foi o grande ponto positivo na nossa região. Os gestores passaram a
entender que existia uma necessidade de uma nova política pública em relação aos
pacientes psiquiátricos. Que antes era focada na internação hospitalar e que
necessariamente deveria passar para os atendimentos extra-hospitalares. Então
houve um grande salto de qualidade nesse sentido. (PJ 01).
Chegando então na questão dos hospitais em si, muitos são os retratos desses lugares,
seja pelo ponto de vista daqueles que estiveram internados, seja daqueles que participaram
ativamente do descredenciamento enquanto técnicos ou gestores. Mas em comum
encontramos uma realidade dura, de violação de direitos humanos e exclusão às pessoas em
tratamento:
Aí eu fui internada no São Marcos. ((suspiro)). O que é muito ruim, porque aquilo lá
parecia um... um deposito de animais, sabe?! Para mal tratar animais, assim... E o
São Domingos não era muito diferente não. (USU/PRV 01)
Muita gente me perguntava, até pelo fato de eu ser psiquiatra, como é que eu ia fazer
numa cidade sem hospital para internar e tal. E hoje essas mesmas pessoas, algumas
delas ainda não acreditam, algumas delas ficam surpresas quando a gente diz que
temos lá 9 leitos e que às vezes rodamos uma, duas semanas com leito vago, porque
não precisou internar ninguém. Eu acho que isso é o trabalho que as equipes fazem
65
nos CAPS, enfim, eu acho que é isso é que faz a gente não precisar do hospital.
(PSQ/GST 02)
(...) Aí eu me dei conta de que manicômio não se modifica, manicômio a gente tem
que fechar. Você não muda manicômio. As pessoas entram lá com uma ideia e não
conseguem realizar, não conseguem. Então assim, por mais que tenha melhorado a
comida, né?! Voltaram as oficinas, os profissionais eram muito bacanas, o pessoal
assistente social e psicólogo... um pessoal animado, isso foi muito interessante,
porque as pessoas que a gente contratou, como a gente tinha que indicar, eram ex-
estagiários da rede. Pessoas que tinham acabado de se formar, pessoas que passaram
pelo CAPS, sabe?! Que tinham isso já na veia de alguma maneira. Muitos jovens,
um ou outro assim que não tinha experiência com a saúde mental, mas a maioria ex-
estagiários. Então uma equipe que a gente conhecia de CAPS e tal e que tinham essa
coisa, mas que aos poucos também foram sendo impedidos de trabalhar nessa lógica
(...). Então a gente não conseguia, por exemplo, que a usuária pegasse o seu
benefício para comprar uma cômoda para ela pôr do lado da cama dela, para por as
roupas dela, porque ela não queria usar as mesmas roupas que todo mundo... coisas
assim que nós não conseguimos fazer, entre outros absurdos mil. (PSI/GST 02)
uma estudante no início da graduação, havia uma frequente busca interna por desmascarar
culpados, encontrar a verdade. O processo de formação acadêmica, e fundamentalmente de
formação pessoal, me permitem hoje direcionar meu olhar com um pouco mais de
complexidade. Não se configura mais enquanto uma insensibilidade entender essa
temporalidade. Assim, faz-se possível perceber “a história que foi não é a história que tinha
de ser, foi a história possível e resultante dos jogos de força” (BAPTISTA, BORGES e
MATTA, 2015, p. 153, grifo dos autores). Os jogos de forças, as questões da macropolítica,
as decisões em todas as três esferas de governo, interferem diretamente nos acontecimentos.
No entanto, é sempre válido afirmar que as construções engendradas pelo modelo manicomial
são inadmissíveis em uma realidade atual. Saber então em qual contexto, e sob quais
justificativas, foi produzido tal modelo asilar e excludente, auxilia na construção de uma
realidade outra, estando então mais atento às práticas de invisibilidade e exclusão, que não
fazem parte apenas do lado de dentro dos muros do manicômio. Faz-se importante finalmente
retomar a intenção deste estudo de dar visibilidade aos arranjos, ao processo, sem a busca de
uma verdade única, demarcada e conclusiva.
Antes da PIV10 (...) o dono do hospital ele dava, ele fazia uma ‘agro-divisão’ dentro
do hospital psiquiátrico. (...) Então assim, quem dava guia, na verdade, quem podia
emitir guia para o hospício, era quem o dono do hospício dava o direito de ter
número de leitos, e quanto mais a pessoa era ‘emitidora’, ou era emissora de... de
papéis, de guias para pacientes, quanto mais clientes ele gerava para o hospício,
mais o hospício a bonificava com um número maior de leitos para que pudesse
internar e motivar, para que pudesse manter esse ‘ciclo internatório’, não é?! De
internação. (PSQ/GST 01)
E eles então eram médicos do INAMPS que trabalhavam todos nos Hospital
Psiquiátrico e todos tinham mais de 100 pacientes aos seus cuidados nesses
hospitais. A moeda de barganha daquela época era assim: você tem paciente aqui,
mas desde que você trabalhe lá para internar. Quem não trabalhava nesse
ambulatório de internação não tinha também paciente nenhum nos hospitais
psiquiátricos. Os pacientes... Não tinha critério de internação. O critério era vaga no
hospital, né?! Se tinha vaga, tinha internação, independente do quadro clínico.
(PSQ/GST 02)
10 Portaria SAS nº 408, de 30 de dezembro de 1992 (BRASIL, 2004, p. 256), que inclui o Grupo de
Procedimento “Psiquiatria IV”, para efeito de pagamento por parte do sistema público de saúde.
11 Portaria SNAS nº 224, de 29 de Janeiro de 1992 (BRASIL, 2004, p. 243), que estabelece diretrizes
e normas e Coordenação de Saúde Mental do Departamento de Programas de Saúde da Secretaria
Nacional de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde.
68
mudanças de grupo político, e, por conseguinte, da visão daqueles que ocupavam os cargos de
gestão, mas também nas próprias falas dos entrevistados:
Não sei se você conheceu um livro verde12, um livro que dava assim uns
encaminhamentos, dos serviços de saúde mental (...) eu vi essa reforma psiquiátrica
aqui do município era um equívoco, burocrática, tinha umas coisas horrorosas!
Atendimento no CAPS só paciente agendado. (...) aí tinha uma certo... uma certa...
é... regulação. Então se você faltava a duas... a dois atendimentos sem justificativa,
três atendimentos, sei lá... Aí você tinha de voltar ((riso)) lá no início. Um
atendimento primário, tinha que remarcar, ser encaminhado... Era um negócio
horroroso! (PSQ/PRF 01)
Então eu acho que essa rede, né?! E que, eu não sei. Até onde eu fui, até dois anos
atrás, essa rede ainda era uma rede formalizada só, fria, não era uma rede quente,
uma rede, né?! Que você pode acionar, e que ela vai fazer... não! Uma rede
formalizada, lógico que tudo bem que quando mudou isso tudo. A questão dos
acolhimentos, a questão dessa participação lá no... na... é.. no posto de saúde. (...)
Aproximou... mas isso foi imposto, né?! Mas a rede, eu acho, que ainda é uma rede
fria.(TO 01)
Relativo não somente ao funcionamento da rede, mas quanto às próprias práticas
estabelecidas nestes espaços, são algumas percepções:
(...) A macrorregião como um todo passou a não ter mais aquela referência de
hospitalização dos pacientes psiquiátricos. (...) Daí o fortalecimento que a gente está
colocando da rede substitutiva, né?! Os serviços de CAPS, os leitos de retaguarda, as
próprias residências terapêuticas, né?! (PJ 01)
Naturalmente já são pessoas que não convivem mais com hospital, então passam a
ter um outro olhar, eu acho que isso muda muito, mas também da gente estar sempre
repensando o nosso trabalho nesses serviços abertos porque eles podem repetir o
modelo de manicômio que cada um de nós às vezes tem na cabeça. Então o CAPS,
ele pode ser um serviço aberto e democrático, mas ele pode também ser um serviço
que viola direitos e que, enfim, não constrói cidadania e nem autonomia. (...) Eu
acho que é o desafio para o futuro para você ter o trabalho espalhado mais pela
cidade, como eu disse a gente ainda não tem. (PSQ/GST 02)
(...) a gente ainda não tem ainda uma homogeneidade do ponto de vista de pensar a
atribuição do serviço, isso foi uma coisa que eu batalhei muito, que fui muito, assim,
que foi muito difícil fazer esses enfrentamentos porque o servidor antigo ele acha
que qualquer coisa você está querendo interferir no trabalho, e a nossa rede aqui ela
era muito assim... muito pouco visível para o resto da prefeitura, sabe? Nos seus
fluxos assistenciais (...). (PSI/GST 01)
12 Como mencionado no capítulo anterior, trata-se de publicação produzida pelo Instituto de Saúde
Mental, denominado “Protocolos de Conduta do Sistema Municipal de Saúde Mental de Juiz de Fora
(INSTITUTO DE SAÚDE MENTAL, 2000).
69
Este último fragmento aborda algo de extrema relevância, apontada por alguns
entrevistados. O quanto é mais trabalhoso, da perspectiva dos trabalhadores, dos familiares e
da própria sociedade, de lidar com aqueles que necessitam de tratamento em saúde mental
fora dos muros dos manicômios. Do quanto estabelecer assistência com inserção na sociedade
requer muito mais disponibilidade dos trabalhadores, e maior compreensão por parte dos
familiares.
Existem também dificuldades no sentido da organização desta rede, apesar de algumas
tentativas. Mas falar de rede não é somente da comunicação destes serviços, mas dos próprios
serviços em si. Algumas são as percepções daqueles que trabalham ou trabalharam nestes,
como:
Do ponto de vista de lógica do funcionamento ainda precisamos trabalhar duas
questões: uma é que alguns serviços ainda são ‘CAPS-centrados’, e a gente… eu
acho que a grande sacada da RAPS13, embora ela seja criticada, é que quando você é
um ponto de atenção, você não é o centro, não é aquela coisa de CAPS para dentro.
Porque às vezes é assim ‘Ah, faz um acolhimento’, ‘Mas eu não tenho médico’...
Então assim, acolher alguém é agenciar o cuidado, e agenciar o cuidado é trabalhar o
território. Então não é CAPS para dentro ou CAPS para fora. Acho que é vencer
isso. E quando a gente está falando de fato da gente ser mais substitutivo no que se
refere à crise, ao acolhimento da crise, acho que a gente ainda tem dificuldade, a
gente ainda é um pouco ‘HPS-dependente’, sabe? ‘Ah, vamos mandar pro HPS...’ A
gente não faz ainda um manejo de crise como deveria, eu acho. (PSI/GST 01)
E... da gente contar com pessoas... é... os usuários mesmo, né?! Não é para ir vender
trabalhinho e mostrar que está tudo legal ‘olha que lindo que eu estou fazendo!
Minha pipoca, meu ‘nanana’ (sic) Não! Então eu acho que falta isso. Então falta, não
falta? E os CAPS continuam do mesmo jeito. Umas casinhas fechadas, que as
pessoas não circulam... (...) Elas... os serviços acontecem. Essa coisa da rede. Isso é
tudo muito... como eu diria? Formalizado. O serviço não tá... isso não é dispositivo,
isso não é... essa coisa do CAPS que ele... o CAPS é um lugar, não é uma função
ainda. (TO 01)
Apesar das limitações elencadas, e das críticas propostas, há quem aborde também
percepções outras, isto é, dos pontos positivos, ou mesmo da potencialidade destes serviços:
E os CAPS fazem visita ao Ana Nery, então existe uma interlocução do Ana Nery
com a rede de fato, o sujeito não é largado lá para ficar internado e depois voltar.
Então a rede está funcionando. (PSQ/GST 01)
Mas eu acho que quando ele faz isso, quando o usuário já começa a fazer isso,
começa a ver que ele está conseguindo favorecer o serviço, já tem algo assim, de
uma ruptura com essa alienação que está sendo feita aí. Primeiro que esses
dispositivos são fragilizados, depois ‘Qual o meu papel, o meu lugar nisso?’, né?!
De não recuar no momento de crise. (PSI 01)
Se aproximando então da realidade dos serviços ofertados nesta rede, a peculiaridade
de um deles chama atenção em algumas falas. Como mencionado no capítulo anterior, o
Centro de Atenção Psicossocial vinculado à UFJF tem gestão federal. Esta é uma das razões
pela qual ele tem funcionamento um pouco diferente dos demais. Tive a oportunidade de,
durante a graduação em Psicologia, realizar estágio e posteriormente fazer parte de um projeto
de extensão de visitas domiciliares neste dispositivo. Foi nele, inclusive, meu primeiro
contato acadêmico com a realidade da saúde mental. Logo, é válido destacar que foi, em
minha trajetória pessoal, uma experiência ímpar, de muito aprendizado e (des)construção. No
entanto, sabendo também que há ainda muita construção no âmbito da Reforma Psiquiátrica a
ser feita, não somente neste serviço, mas em toda a sociedade, são percepções sobre o
atualmente “CAPS Liberdade”:
Temos a experiência do CAPS universitário também, que é um pouco problemática
porque é um CAPS um pouco in/out, não é?! Ele tá dentro e fora da rede, ele faz
parte da rede, evidentemente, mas como uma instituição universitária, e uma
instituição universitária muito desligada, comandado muito sobre o modelo mais
eminentemente médico, né? Mais ‘medicalocêntrico’. E é um CAPS que não desliza
na rede com a mesma fluidez dos CAPS que são visceralmente do município. Muito
embora não seja de muita valia esse CAPS, pelo amor de Deus, é um CAPS
extremamente importante para nós, só que ele não tem o mesmo azeite, não é?! O
mesmo ‘azeitamento’ de funcionamento dos outros CAPS. (PSQ/GST 01)
Porque nas primeiras reuniões eu já questionava por que que não tinha nome,
entendeu? Foi ter nome há pouco tempo também. (...) Tem dois anos que tem nome.
Por que que não tinha nome? Por que não tinha nome? Pelo menos de saúde mental
ou alguma coisa desse tipo. E por que que chamava “Instituto de Psiquiatria e
Psicologia Médica”, entendeu?! ((riso)). Porque isso era uma disciplina. Psicologia
médica é uma disciplina. (...) o CAPS do HU, né?! Como é que pode uma coisa
dessas? O CAPS do Hospital? É... E era isso mesmo. Esse nome... quando eu olho
hoje pra trás eu percebo que esse nome ele era muito claro. Não tinha porque dizer
“Nossa! Que nome horrível!”. Não. Ele era ótimo, porque ele dizia exatamente o que
era, né?! Não adianta botar um nome lindo e realmente era aquilo, né?! (TO 01)
Mas o que eu vejo do CAPS HU, por exemplo... eu acho que... é... não pode em
absoluto, ser considerado um trabalho que tenha afinidade mínimas com a
concepção da reforma psiquiátrica. Eles têm ambulatório, atende pacientes
agendados... é... todo centrado na figura do médico... é... praticamente não tem uma
psicoterapia, a não ser de uma forma muito subsidiária. A psicoterapia quase que é
de... de... de ‘amansar’ o paciente, para ele ser mais dócil no acompanhamento
médico. Então na realidade assim... (...) essas críticas que eu tenho ao HU, ao CAPS
do HU, que eu acho que em certa medida talvez se aplique também, mas não tenho
tanta segurança, ao, ao outro CAPS, né?! Faz com que eu conclua que, de fato, o que
se chama CAPS aqui, tem muitíssimo pouco a ver com CAPS. (PSQ/PRF 01)
O exposto traz recortes de percepções deste serviço com certo afastamento do restante
da rede. Mas há de se levar em conta o trabalho deste de matriciamento realizado junto à
atenção primária. Válido também ressaltar que este foi recentemente credenciado ao
Ministério da Saúde, ganhou um novo nome, o que reforça este processo de construção, com
possibilidade (mas não garantia) de novas práticas.
71
Outro serviço que ganhou também destaque na fala dos entrevistados é o Centro de
Convivência Recriar14. Criado em 2006, a partir de um grupo de usuários e familiares que se
organizou dentro do CAPS Casa Viva no final dos anos 90, e que foi formalizado em 2001
enquanto Associação Trabalharte. Tem-se sobre este:
A gente observava que o CAPS poderia ir, deveria ir numa direção cada vez mais
assistencial, com equipe multiprofissional, e o Centro de Convivência se estabelecia
como esse local diferenciado, em que a assistência não estaria presente, mas sim
práticas de inclusão sociocultural, como o design, as artes plásticas, a comunicação,
a música, a costura, o artesanato. Quer dizer, práticas como essas que cada vez mais
aproximam esses usuários da sociedade, né?! Porque através da participação em
feiras, dos eventos, das reuniões em que eles se posicionam a respeito da dificuldade
em comercializar, e aí eles começam a pensar também que não é uma
comercialização qualquer, é comercialização em um país específico, em uma cidade
que tem “dificuldades x”. Então eu acho que isso aí coloca o usuário muito mais
engajado, muito mais presente na realidade, que é o certo, né? E eu acho que esse é
um dos objetivos da saúde mental, porque se não é assistencial o tempo todo, né?!
(PSI 01)
Assim, o que se busca esclarecer é não somente da diferença entre esse serviço e os
demais da rede, como da importância de que haja essa diferença. Ainda sobre este dispositivo
há o que segue:
Melhor que eu fiz foi vir pra cá [Centro de Convivência], né?! Eu não sabia que
existia esse lugar assim. Porque as pessoas lá... de outra cidade, de outra rua, de
outro bairro, fala que esse lugar assim todo mundo é doido. Eles falam que é doido,
né?! (...) Eles não têm procedimento que as pessoas aqui dentro faz (sic), né?! Não
tem procedimento de nada. (...) eu não sabia que aqui era maravilhoso. As pessoas,
né?! Tratam as pessoas bem, cuida, né?! É muito bom aqui. (USU/PUB 01)
Então assim, dessa proximidade com o usuário, desse trabalho com o usuário que eu
posso falar um pouco, que eu acho que desde que a gente começou a trabalhar
exatamente pensando nesses usuários que vinham melhorando, que vinham
estabilizando, que vinham contando com o dispositivo da palavra, dos grupos, das
oficinas, que isso a gente cada vez mais vê como isso funciona, como isso reabilita.
(PSI 01)
Durante minha graduação também tive oportunidade de fazer breve estágio voluntário
neste espaço. Hoje percebo que à época meu olhar era muito contaminado por uma visão
extremamente assistencialista. Lembro-me de questionar a então coordenadora sobre
diagnósticos daqueles que ali frequentavam, e ela pacientemente tentar me explicar que a
visão neste serviço era diferente da que eu estava habituada a ver no CAPS. Somente algum
tempo depois fui entender a dimensão da grandiosidade de tudo que ela tentava me esclarecer.
E também de perceber disto que vem sendo trazido neste trabalho, que mais do que uma
patologia ou código de doenças, está um sujeito e as possibilidades dele de se inserir em
sociedade. É como muito sensivelmente descreveu Basaglia, quando diz de “colocar a doença
entre parênteses” para ser assim possível vislumbrar o sujeito (BASAGLIA, 2001). Mas
14 Este dispositivo foi tema de importante dissertação de mestrado denominada “Saúde Mental e
Trabalho - Transversalidade das Políticas e o Caso de Juiz de Fora” (MENDES, 2007)
72
Porque o centro de convivência tem que estar no seu bairro, né?! Você tem que sair
de chinelo de casa e ir para o centro de convivência. Não tem centro de convivência
nos bairros. Para ninguém. Porque o centro de convivência seria para todo mundo,
né?! (...) A gente não tem. Eu acho que falta. E isso falta para todo mundo. (TO 01)
Este é um importante fator elencado em algumas falas: de que carecem recursos
comunitários na cidade como um todo, e não somente à população em tratamento em saúde
mental. A questão do território é também um importante aspecto neste contexto. Ambos serão
aprofundados posteriormente. Mas, em relação especificamente ao serviço em questão,
também foi trazida a seguinte compreensão:
Esse Centro de Convivência ele não é territorializado, porque é um Centro de
Convivência só. Eu acho que territorializar um Centro de Convivência único para
uma região da cidade acaba sendo desapropriar, desabastecer uma cidade de ter um
Centro de Convivência, de ter esse dispositivo. Eu acho que isso faz todo sentido,
principalmente assim: surgiu uma ideia em determinado momento de territorializar
para a região norte o Centro de Convivência. A região norte não tem nem CAPS,
como que um Centro de Convivência vai trabalhar já que a notícia que a gente tem é
de que o Centro de Convivência tem que trabalhar junto com o CAPS? As UAPS, o
Centro de Convivência junto com os CAPS (PSI 01)
Esta fala traz importantes aspectos deste funcionamento em rede, e fragilidades que
serão ainda elencadas: a ausência de cobertura de serviços para a zona norte da cidade, e do
trabalho em rede com a participação da atenção primária.
Retomando a questão dos serviços ofertados, um dispositivo que tem sua importância
demarcada em várias falas, enquanto fundamental e estratégico são os Serviços Residenciais
Terapêuticos. Desde o momento inicial de sua implantação15, como já visto, em 2002 no
município, passando também por aqueles mais recentes, ou até mesmo do processo de
mudança administrativa entre as ONGs que prestam serviço para a prefeitura. Sobre o
processo de criação destes serviços no contexto municipal, há a possibilidade da seguinte
percepção:
Como internava muito e como houve um processo relativamente acelerado de
desospitalização sem, evidentemente, sem criar uma rede capaz de dar sustentação,
essa rede ficou muito mal estruturada. Você não tinha centro de convivência, você
não tinha... as residências terapêuticas vieram ‘a toque de caixa’, parece, né?! Não
tinha uma estrutura de fato que tivesse amadurecido para acompanhar esse processo
de desospitalização. O que houve é que... Aí começou a aparecer uma demanda de
paciente crônico, de paciente cronificado, e se ficou meio sem saída. (PSQ/PRF 01)
É válido esclarecer que as percepções pessoais dos entrevistados que de algum modo
tiveram ligação com este processo não são apresentadas neste trabalho como “a verdade”, mas
como “formas de verdades”. Elucidar que a história não se dá de modo linear auxilia na
compreensão de que o fato de ter ocorrido discussões sobre dispositivos de moradias ainda em
1997, caracterizada por “planejamento para pensões protegidas” no corpo do texto do Plano
Municipal de Saúde (JUIZ DE FORA, 1997), ou na II Conferência Municipal de Saúde
Mental em 1999 para a “criação de dispositivos substitutivos ao Hospital Psiquiátrico”, com
exemplos como “Lar Abrigado” ou “Pensão Protegida” (JUIZ DE FORA, 1999a), não
necessariamente significa que o estabelecimento destas primeiras SRTs não se deu “a toque
de caixa”. Outro importante ponto que também já começou neste trabalho a ser brevemente
abordado é de que a constituição de serviços, sejam SRTs, CAPS, Centros de Convivência ou
quaisquer outros que foram surgindo no decorrer da Reforma Psiquiátrica, não é garantia de
práticas menos excludentes.
(...) porque o fato de você ter residência terapêutica não significa que você não faça
manicômio. O fato de você ter CAPS não significa que não seja um manicômio, não
é?! Porque a relação é a relação com o sujeito onde ele está, então você pode ter um
módulo de psiquiatria num Hospital Geral que seja um manicômio, e se você for ver
também pela cidade, é também um problema, porque o Ana Nery é uma estrutura de
manicômio. (PSQ/GST 01).
(...) A gente tenta construir novos nomes para não cair nessas velhas práticas.
Porque o manicômio, e aí são outras questões que vem, ‘ah, vocês fecharam todos os
hospitais’, mas o manicômio ele existe, né?! O manicômio não é um muro do
hospital, o manicômio é a forma como você trata o usuário (PSI/GST 01).
Eu, particularmente, penso que o ministério devesse mudar, é... as regras das
residências terapêuticas, não é?! É... acho que talvez, é... a chamada residência
terapêutica, ela pode ter um... um efetivo maior e melhor em substituição ao hospital
psiquiátrico em muitos casos, muitos casos. Então não necessariamente a residência
é para aquele morador para o resto da vida. (PSI/GST 03)
(...) Outra, a questão da própria... ele [pessoa que acompanhou enquanto profissional
de um serviço], apesar de estar sempre internado ele também tinha a casa dele.
‘Como pode essa coisa de uma mulher entrando e saindo do quarto da gente toda
hora?’, né?! Assim... As questões do privado mesmo. O privado não foi recuperado,
né?! As coisas continuaram públicas. O corpo dessa pessoa, tudo que ela faz...
nada... eu não posso, eu sozinho ir na padaria. Só quando todo mundo for. ((riso)).
Então você continua andando com turminha, entendeu?! (TO 01)
Em relação à criação das SRTs mais recentes, aquelas que foram necessárias pelo
descredenciamento dos três últimos hospitais psiquiátricos, e possíveis de se concretizarem
muito em função do apoio específico à Juiz de Fora dado pelo Ministério da Saúde (BRASIL,
2013), são elencados:
E com o Ministério [da Saúde] nós negociamos então as residências terapêuticas,
que na época a gente tinha nove só, e das nove só quatro eram credenciadas. E aí
fizemos um planejamento de até 35 residências. Felizmente não precisamos, porque
74
muitos pacientes, nós fizemos um trabalho intenso, as famílias levaram eles de volta,
então nós precisamos na verdade de 29 residências. (PSQ/GST 02)
cotidiano das pessoas através dos espaços em que estas convivem é uma ferramenta valorosa.
A noção que se apresenta em Juiz de Fora, no entanto, se aproxima mais da noção de
regionalização que territorialização. Isto porque os serviços da rede são descritos de modo a
atender determinadas regiões da cidade, mas isto não necessariamente significa que estes
estarão localizados no território a ser assistido. Auxilia na compreensão desta dinâmica o
dado de que em Juiz de Fora, até o ano de 2018, se tinha apenas 62% de cobertura de
Estratégia de Saúde da Família (GTT, 2018). Assim, sem a possibilidade de atenção básica, o
trabalho no território fica comprometido.
Quer dizer, olha a nossa dificuldade, se na atenção primária que seria o básico,
básico, mais essencial, não tá ainda a cidade toda coberta, a saúde mental então, que
sempre é o patinho feio, onde recebe a menor fatia de financiamento e tudo… Então
o desafio é muito grande para o futuro.( PSQ/GST 02)
Uma boa forma de melhor compreender esta questão é perceber que a vasta maioria
dos serviços ofertados nesta rede estão fisicamente instalados em localidades próximas, na
região central da cidade. Em um raio de aproximadamente um quilometro é possível encontrar
os seguintes serviços: CAPS Leste, CAPS ad III, Centro de Convivência e Departamento de
Saúde Mental (que funcionam separadamente na mesma construção física), e CAPS Casa
Viva. O funcionamento destes visa atender as diferentes regiões da cidade, isto é, a assistência
é organizada de maneira regionalizada. No entanto, o local onde estes estabelecimentos estão
instalados não necessariamente coincidem com estas regiões.
Outra dificuldade expressa é de uma grande região da cidade que se encontra
atualmente descoberta de serviços especializados em saúde mental, a região norte. Com
intuito de minimizar os efeitos desta realidade, acontecem no Departamento de Saúde Mental
atualmente atendimentos em modalidade de ambulatório a esta população por alguns
profissionais vinculados ao município.
Nós fizemos algumas propostas de implementação de serviços, como as unidades de
acolhimento e mais um CAPS Álcool e Drogas, para a Zona Norte principalmente,
para funcionar na Zona Norte, que é uma grande área do município, mas dada essa
crise fiscal e financeira dos municípios, do Estado e do Governo Federal não vai ser
possível implantar, pelo menos no médio prazo. Mas o projeto é esse. Que a gente
implante mais um CAPS Álcool e Drogas.( PSQ/GST 02)
O que deixou de ser implantado efetivamente foram os serviços previstos para zona
norte. Que isso não houve evolução porque o município alegou que o recurso
repassado pelo Ministério da Saúde seria insuficiente, e que o estado [de Minas
Gerais] também, apesar de ter pactuado repasse de recurso, desde 2014, nunca o fez.
Então o estado não contribuiu com sua cota-parte em termos de ser também um ente
federativo que é solidariamente responsável por este financiamento, não entrou com
essa contribuição financeira, o que certamente prejudicou os prestadores, os gestores
municipais e até os terceirizados na manutenção desse serviço. (PJ 01)
Este fragmento retoma a importância de decisões não somente a nível municipal, e do
quanto esses jogos de força são decisivos ao processo. É também importante destacar que, se
76
Com este estudo espera-se ser possível apreender, cada vez mais, que as decisões,
postulados e normativas, interferem diretamente na construção da realidade. O capítulo
anterior buscou abarcar esta dimensão através da construção de documentos produzidos, de
estratégias propostas, do aparato legal.
O que se propõe agora é dar voz aos acontecimentos presentes neste processo
normativo. E o que ficou claro em muitas falas, especialmente daqueles que ocupam ou
ocuparam cargo de gestor é da “importância da política”. Esta importância não somente da
noção de macropolítica, de decisões ministeriais e financiamentos, por exemplo, mas também
das articulações locais, dos jogos de poder, das intencionalidades e direcionamentos. Frente a
este cenário, muitos dos entrevistados questionam, ou mesmo sugerem, razões pelas quais o
descredenciamento destes hospitais se deu de maneira tardia no município:
E o município continuava com o ambulatório, esse ambulatório ainda com
supervisão. Tinha ainda uns dois ambulatórios, os ambulatórios de transtorno ainda
funcionavam, isso aí eu já estou falando agora na década de 2000. Esses
ambulatórios de transtorno ainda funcionavam, e, assim, a coisa não avançava. A
coordenação de saúde mental do município muito bem articulada com os hospitais,
uma relação muito cordial, nunca teve uma relação de enfrentamento. (PSQ/GST
02)
Então houve um processo um tanto quanto seletivo nesse fechamento que não
abarcou uma melhora na qualidade dos serviços hospitalares.(PJ 01)
No momento da reforma ser implantada aqui, acho que a correlação política tinha à
frente algumas pessoas da área que não tinham essa visão, tinha que ter o espírito da
reforma... da reforma psiquiátrica, né?! Então em função até de uma certa coerção,
vamos dizer assim, do governo federal, que todos tinham que se adequar, ia ter um...
tinha que ter um cronograma pré-estabelecido de desospitalização... então o
município teve meio que se adequar a isso, e começou a fazer isso em hospital
psiquiátrico (PSQ/PRF 01).
O foco nosso aqui sempre foi diferente do resto do Brasil inteiro, porque a gente
estava focado na atenção primária, não estava preocupado em desospitalizar. A
77
gente estava preocupado em evitar que o pessoal entrasse e em criar uma rede que
desse conta. Então assim, a desospitalização seria uma consequência da não entrada
de novos pacientes e à medida que se tivesse condição de fato de retirar pacientes, aí
na dependência de financiamento que não existia, era uma coisa que ficava para
frente. (PSQ/PRF/GST 01).
Temos com estas duas últimas passagens um aspecto de extrema relevância, que vem
sendo pouco a pouco trazida no presente estudo: as decisões federais e estaduais, e os
aspectos normativos e legais para o decorrer deste processo:
Acho que é isso que chama atenção que as vezes não é devidamente lembrado, né?!
E não subestimar isso, né?! Na verdade houve uma inflexão de modelo de
financiamento do Ministério da Saúde, e isso foi decisivo para reforma. Você
financia porque você quer. Então eles enxugaram o dinheiro do hospício e meteram
dinheiro nos CAPS, e isso foi fundamental para poder consolidar o modelo.
(PSQ/GST 01).
E... é... em 92, o fruto dessa visita do pessoal do estado que redundou na
obrigatoriedade do município de criar um serviço. Então o município teve que criar
esse serviço. (PSI/GST 03)
Assim, é notório que tanto aspectos que puderam ser considerados como positivos, ou
aqueles apontados como dificuldades, podem estar inseridos no escopo desta dimensão.
(...) Essa história não acaba, quer dizer, as pessoas em nome de vaidade, de
interesses políticos imediatos, de interesses financeiros imediatos, esquece do
principal, que é atenção a quem de fato precisa. Então às vezes fica muita ‘fogueira
das vaidades’, e o que poderia de fato avançar em termos de assistência, cai.
(PSQ/PRF/GST 01)
Não existe reforma psiquiátrica sem decisão política, essa é a grande lição que eu
aprendi. A decisão política é o que movimenta a reforma. (...) eu aprendi que quem
decide fazer é quem tem o poder. Claro, pressionado ou sensibilizado, pela mudança
dos tempos... mas... é... o poder público é que sempre foi capaz de fazer a inflexão.
A gente fica achando que a reforma veio como se fosse um efeito muito natural.
Como se fosse uma maré que foi subindo e naturalmente alagando o pântano. Não é
bem assim, existem diques muito bem construídos. Foi muito difícil romper esses
diques para água poder entrar, e eles foram rompidos com decisão política.
(PSQ/GST 01)
Quando você tem um alinhamento de uma política ministerial, que o estado apoia,
que o município apoia e que realiza, concretiza. O quanto isso realmente pode gerar,
bons movimentos, boas práticas e boas coisas e boas mudanças, né?! (...) Então a
gente, realmente, quando a gente tem uma confluência desses poderes todos, isso
ajuda muito, muito mesmo. (PSI/GST 02).
Sobre o processo mais recente de descredenciamento dos três últimos hospitais, um
fator fundamental explicitado em muitas falas é o papel decisivo do Ministério Público neste
cenário16:
Então... é... acho que Juiz de Fora deu passos muito importantes, muito relevantes.
É... com relação a... a questão hospitalar eu acho que outro passo importante. É... o
Tinha sido perdido o prazo porque os TACs duram um ano, e ele [Secretário de
Saúde] tinha sido, logo que ele assumiu, tinha sido chamado para responder sobre
isso e tinha a situação envolvendo lá os hospitais psiquiátricos. Os três que ainda
restavam no município abertos, que eram o Aragão, o Esperança e o São Domingos,
de que eles queriam aumento de diária para poder continuar funcionando e continuar
atendendo o SUS e tudo mais. (...) aí eles deram essa cartada para o Secretário
dizendo ‘olha, então já que não tem essa negociação a gente entrega os pacientes, a
gente não vai ficar mais’. E aí que houve toda aquela questão do Ministério Público
ir com a prefeitura fazer as vistorias e constatar a situação que constatou e tudo
mais. (PSI/GST 02)
Como já brevemente descrito, mas também digno de maior destaque neste contexto
mais recente, quanto à participação ativa do Ministério da Saúde no desenrolar destes
acontecimentos:
(...) e o Ministério [da Saúde] foi muito parceiro. Ajudou, assim, desde o primeiro
momento, desde essa primeira conversa. Essa primeira conversa foram (sic) com
alguns técnicos de lá, depois (...) uma segunda reunião já conversando com o
Tykanori, que era o Coordenador [Nacional de Saúde Mental], e o Tykanori falou
para mim: ‘(...) o que vocês precisarem lá, nós vamos ajudar’. E aí assim foi feito, eu
fico até muito emocionado porque foi muito… o apoio do Ministério foi o que fez
possível a gente fazer o que fez, sabe? (PSQ/GST 02)
(...) o Tykanori deu muito apoio para nós aqui, e também entregou verba para
implantação de CAPS, credenciou CAPS, verba para implantação de SRT, o
Ministério foi muito parceiro nessa administração, foi muito parceiro de Juiz de Fora
(PSQ/GST 01)
Ao tratar dos arranjos políticos, das relações supramunicipais e seus jogos de força, é
fundamental que também se perceba que nesta dimensão estão também inseridas dificuldades
como:
E é importante dizer que nesse processo todo [de descredenciamento dos três
últimos hospitais psiquiátricos] a Secretaria Estadual de Saúde não nos ajudou em
nada até hoje, absolutamente nada, nem no governo anterior e nem no atual governo.
79
Porque a saúde mental hoje ainda é muito mal financiada. (PSQ/GST 02)
As passagens supracitadas abarcam questões relacionadas a decisões política, mas
talvez não explicite que o viés político pode também ser mais amplo. Como a seguinte
percepção:
Eu acho que... que não são dificuldades, eu acho que tem uma cultura.. Eu acho que
essa não é uma luta política. Não passou por isso, entendeu? Queimou essa etapa. A
gente não foi pra rua. A gente não... não foi pra frente de hospital, nada disso. (TO
01)
Os pontos elencados são fundamentais e também estratégicos. Os aspectos normativos
sempre chamaram minha atenção. O quanto as produções legais têm um contexto
determinado, jogos de forças específicos. E o quanto são capazes de interferir na realidade.
Observar o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira sob esta ótica é perceber quanta
normatividade precisou ser construída, a partir de portarias, resoluções ou mesmo leis, na
constituição de uma importante mudança. Aparece na fala de todos os entrevistados descritos
como “profissional”, em maior ou menor grau, o papel decisivo que a política, e em última
instância, os jogos de poder, exercem na conformação da realidade, seja no sentido de
produção de novas práticas ou serviços, seja em sentido oposto. Assim, a questão da
participação da sociedade, da luta política, e da representatividade de todo este processo na
cultura é também de extrema importância para melhor compreensão deste processo.
deixar escapar, no entanto, é que este processo não se restringe a reformulação de serviços ou
assistência, mas se caracteriza enquanto uma mudança de olhar e postura. Parece-nos que,
mais importante do que “onde” esta pessoa está sendo atendida ou mesmo “se” está sendo
acompanhada por algum dispositivo específico, é quais são as construções e possibilidades
desta estar no mundo. Uma mudança que está fundamentalmente nas relações, na sociedade.
Assim, o que se percebe nas falas dos entrevistados é o quanto esta dimensão é relevante. O
imaginário da loucura está intimamente relacionado com todo este processo, como nas
seguintes passagens:
Houve a primeira [internação], né?! Por ter tido a primeira, houve a segunda, houve
a terceira, houve a quarta, houve a quinta. Porque já que houve a primeira, ‘ah, então
a [nome da entrevistada] é doida!’. Então se tem alguma oscilação no humor ‘é
porque ela tá doida, então vou interná-la de novo, porque ela precisa de tratamento
psiquiátrico e de internação’. (USU/PRV 02)
Igual aquela poesia do Carlos Drummond de Andrade: ‘Vai, Carlos! Ser gauche na
vida’. Não ter como ser ‘mais gauche’ do que ser louco, entendeu? É... e você é
louco, e você se dá conta disso, e você, pô! Você não quer ser de jeito nenhum, você
quer tudo menos isso. E hoje eu acho ótimo. Eu acho, sinceramente... (USU/PRV
01).
Diferente de olhares expressados até aqui pelo profissional e/ou gestor, o que chama
atenção enquanto dificuldade dessas pessoas que se encontram em tratamento faz mais
referência à família e à sociedade:
A família... (...) Cada um acha uma coisa, e no fim ninguém entende nada do que eu
tenho, ninguém estende a mão para... me aceitar como eu sou, entendeu? Porque
ninguém me entende de jeito nenhum, e, eu não me sinto... eu não me sinto aceita,
não me sinto compreendida, não me sinto amada, não me sinto recebida...
(USU/PRV 01)
E a minha irmã... o que ela entende na cabeça dela, é o que ela lê hoje na internet.
Então ela projeta em cima de mim uma coisa que ela lê e nem sabe se é de fato, de
direito. Lê uma informação e já age procedendo como se aquela informação fosse
correta. Então, como ela não tem o estigma, (...) como eu que sou a estigmatizada da
família, então é natural que as pessoas deem opinião e valor à opinião dela. Como
davam... Davam muita importância à opinião dela. Como ela é a correta, ela é a sã,
né?! Ela é a sã, ela não tem um diagnóstico, ela não trata, ela não faz uso
medicamentoso, quem faz sou eu. (USU/PRV 02)
Tem pessoa que quer ‘fazer raiva’ em mim. Qualquer coisa assim, mas eu saio fora.
Mas eu não ligo não, para essas coisas. Entendeu? Eu... só que... a coisa mais
simples que tem, é só sair fora. Entendeu? Eu não ligo não. Que lá em casa eu estou
acostumado com todo mundo, não tem jeito. (...) A pessoa não vai muito comigo,
mas eu deixo isso pra lá... passa... Eu não falo não. Eu sempre comprimento, mas aí
agora eu não cumprimento mais não. Eu falo, mas não cumprimento mais não.
Agora eu fico sem cumprimentar. Deixa a pessoa falar mal de mim, eu largo tudo
pra lá e venho embora ((riso)). Eu não ligo mais pra nada. (USU/PUB 01)
Como então transformar esta realidade? Talvez o ponto mais fundamental seja uma
mudança na cultura. Uma necessidade de construção coletiva, não somente das práticas
assistenciais, mas em conjunto com a sociedade.
81
Houve resistência por parte da sociedade, resistência por parte dos gestores públicos.
Porque, como a gente colocou, para a sociedade e para os gestores públicos é muito
mais cômodo você ter os hospitais psiquiátricos recebendo esses pacientes. Você
tirava aquele louco, vamos dizer assim, da rua, né?! Você tirava aquele peso da
família, levava para o hospital e abandonava aquele paciente lá. Então era muito
mais fácil, né?! (PJ 01).
Como vem sendo abordado no decorrer deste trabalho, estamos diante de um processo
complexo. Assim, é válido lembrar que a cultura manicomial está presente na sociedade em
muitos aspectos. E esta transformação não se dá de modo natural, mas sim requer tempo e
esforço. Deste modo, uma ferramenta elencada como importante diz respeito à participação
crítica das pessoas na formulação das ações:
Eu sinto falta da militância, sabe, Thaís?! Eu sinto falta disso, eu acho que Juiz de
Fora não tem militante. Acho que isso é uma herança nossa. Nós somos tímidos
ainda em pronunciar, a gente ainda tem muito medo das sansões, das consequências.
Então assim, eu sinto muita falta dessa militância. Eu acho que a gente tem que
buscar restaurar isso, esse sentimento realmente dessa luta que é muito maior, é
cultural. É mais do que o modo de fazer ali do meu serviço, é você atuar nessa
cultura. Embora eu pense que a gente avançou, não posso dizer que não, mas aí é o
que eu falei com você, a gente precisa conseguir formar pessoas para que esse
impulso seja carregado com propriedade. (PSI/GST 02)
Hoje eu olho para trás e vejo. A gente não teve uma luta política mesmo. A gente
não teve é (...) Eu acho que a gente teve essa mobilização, mas ela não... ela foi meio
que tipo “olha, agora vai ser assim”. Muito mais gente contra do que a favor. (...)
Mas isso não foi... É como se hoje assim... eu não sei. É como se tivesse acabado,
sabe?! “Ah! Agora já tem CAPS, já tem residência, né?!” Não tem a política da
coisa. (TO 01).
O contexto juiz-forano, neste ponto, se distancia da construção histórica no restante do
estado de Minas Gerais, especialmente da capital Belo Horizonte, que é nacionalmente
conhecida por sua força e representatividade na Luta Antimanicomial.
82
Nessa época a gente criou o fórum de saúde mental, mas depois a análise que a gente
faz é de que o fórum, na verdade, não foi para frente porque muitas das pessoas que
participavam do fórum, inclusive alguns psiquiatras e eu me coloco até nesse grupo,
a gente acreditava naquela época, isso aí final de 90 talvez, a gente acreditava ainda
que o hospital psiquiátrico podia ser humanizado. E aí não tinha jeito, depois acabou
todo mundo caindo na real e o fórum acabou não indo para frente. (PSQ/GST 02)
Como também abordado no capítulo anterior, já na I Conferência Municipal de Saúde
Mental da cidade aparece que “o poder público municipal deve incentivar o aumento do
número de associações de familiares e de pacientes” (JUIZ DE FORA , 1992, p. 6). O que a
história demonstrou, no entanto, foi a criação de uma associação de familiares muito próximas
das instituições psiquiátricas privadas, que reforçava um discurso manicomial, através da
afirmação da necessidade manutenção das internações psiquiátricas. Quanto a esta me recordo
de uma passagem quando eu estava ainda na faculdade, em estágio no CAPS, e fui realizar
visita a uma pessoa que era acompanhada por aquele dispositivo e havia sido internada pela
família na Casa de Saúde Aragão Villar. Lembro-me de ver fixado, na parede da recepção do
hospital, um convite para reunião da Associação dos Familiares de Doentes Mentais. Chamou
minha atenção que neste período eu já havia feito estágio em três diferentes dispositivos da
rede pública de saúde mental do município, e nunca havia visto similar convite nesses
espaços. Ao conversar com a profissional do CAPS que me acompanhava naquela visita sobre
esta percepção, ela me esclareceu que aquela era uma associação muito próxima aos hospitais
psiquiátricos (possivelmente com apoio financeiro destes), que resistia veementemente ao
processo de Reforma Psiquiátrica e a implantação de serviços substitutivos na cidade. Ainda
no capítulo anterior foi mencionado, ao se falar da audiência pública ocorrida na câmara
municipal sobre o fechamento dos hospitais São Marcos e Pinho Masine, dos elogios
prestados por estes familiares ao referidos estabelecimentos (CÂMARA MUNICIPAL DE
JUIZ DE FORA, 2009). No entanto, retomando a construção deste processo temos o seguinte:
(...) em Juiz de Fora, tem até um viés dessa coisa da Associação dos Familiares, não
é?! Porque como no Rio de Janeiro, a associação aqui também era ligada aos
hospitais, e depois, acho até que por uma série de motivos, a associação acabou se
colocando do nosso lado. Eu acho então que tudo isso faz parte de um processo, que
cada um constrói um pouco, né?! (PSQ/GST 02)
E o apoio do Ministério da Saúde foi muito importante, porque eles vinham para
criticar o processo, mas para estar junto, e eu acho importante a visão crítica, (...) eu
sempre acho que pode melhorar. E o Ministério da Saúde fez um apontamento que
eu acho também que é importante, falaram ‘Ah, vocês tem baixo protagonismo de
usuário na rede’, sabe? E eu falei ‘Meu Deus, temos mesmo’. Então assim… por
exemplo, tinham situações aqui de serviço que puniam o usuário, suspendendo o
usuário, eu tive aí uns enfrentamentos com isso, entendeu? (PSI/GST 01)
Mas estas questões, e mesmo essa construção sobre as comemorações referentes às
celebrações do dia 18 de maio, têm sofrido alterações no município. E isto se dá a partir de
uma nova construção, também muito importante e recente, que é o Grupo de Protagonismo.
Criado recentemente pelo Departamento de Saúde Mental, este grupo visa à construção de
espaço de fala, de participação ativa dos usuários, algo que aparece marcadamente como uma
carência histórica da cidade.
Então a gente criou (...) um Grupo de Protagonismo. (...) quem coordena é o Centro
de Convivência, ‘as meninas’ do centro: ‘Vamos criar um grupo com todos os
usuários para eles poderem falar sobre si, falar da rede, propor coisa e tal’. Então
esse grupo, ele tem feito algumas ações, tipo o 18 de maio, as festas, mas ainda é
incipiente. Aí um dia eu virei pra um deles e falei assim (...) ‘Oh [nome do usuário],
e esse grupo de vocês?’ (que eu não participo), aí eu falei com ele ‘Pô, vamos
chamar o pessoal da Ouvidoria pra vir falar, vamos chamar a Comissão de Saúde
Mental do Conselho’ (...). Aí ele ‘Por que, [nome da entrevistada]?’, eu falei ‘Ué
gente, protagonismo é isso! Você sabe que você tem direito de ir na Ouvidoria fazer
uma reclamação? Você sabe o que faz o Conselho Municipal de Saúde?’. Então
assim… você percebe que a coisa... ela é uma agenda que precisa ser construída
ainda, ser consolidada, sabe? (PSI/GST 01)
(...) a gente precisa, e aqui em Juiz de Fora a gente precisa investir mais nessa coisa
do protagonismo do usuário, mas um protagonismo formal. Acho que a gente tem
que investir nisso. Espaços formais de participação desses usuários. Existem
algumas coisas aqui no município, existe um grupo de protagonismo aqui no
departamento, que eu não acho que tenha… Que consegue algumas coisas bacanas,
mas que ainda não é… eles são muito dependentes do estagiário, do técnico, eles
84
não se autorizam 100% a falar em nome próprio… Acho que a gente ainda tem
muito o que fazer, assim, isso é muito claro para mim. E quando eles falam em
nome próprio existe reação, entende? Então assim, existem algumas incoerências,
até em nível de gestão mesmo, algumas incoerências, tipo a gente quer, mas quando
acontece, ‘dá cheiro de pum’, sabe? ((riso)) Dá aquele mal estar… Espera aí, pode
falar ou não pode falar? (PSI/GST 02)
Esse novo espaço então, ainda em construção, representa uma possibilidade de
inserção comunitária, de articulação social. Chamou minha atenção, no entanto, no decorrer
das entrevistas, não somente como recursos comunitários não são considerados como
integrantes desta rede de serviços, bem como o quanto iniciativas comunitárias são pouco
articuladas, ou mesmo lembradas pelos entrevistados.
Não, essa é uma das deficiências que a nossa rede tem hoje. Nós temos uma parceria
muito grande com os conselhos de saúde, mas não tem nenhum serviço de base
comunitária trabalhando junto até hoje. Até porque a assistência social, e a gente
trabalha de forma bem integrada com assistência, embora tenhamos ainda muitos
problemas. Mas, de um modo geral os nossos serviços comunitários são muito
desarticulados, então a gente tem até essa dificuldade de articular com quem está
desarticulado. Mas não temos hoje, que eu me lembre, nenhum serviço de base
comunitária que atue junto com a saúde mental não. (PSQ/GST 02)
Então eu acho que o Centro de Convivência ele articula com a comunidade que o
usuário vai escolher, entendeu? Ele vai eleger e isso vai fazer parte da vida dele. Se
for o caso, a gente não entra muito nisso, não vou procurar o fulano de tal. Se o
Sebastião não estiver bem vou procurar a família, em geral procura-se a família. Mas
esse usuário, o que a gente observa é uma expansão dessa rede comunitária a partir
de um trabalho comunitário que ele faz aqui. Agora, os recursos comunitários na
rede quando você fala isso, eu fico pensando mais nessa articulação com as UAPS e
não penso nada mais, entendeu? Na rede eu não penso nada mais. (PSI 01)
(...) porque como a gente não tem um CAPS para a Zona Norte então ele
[ambulatório em funcionamento no Departamento de Saúde Mental] acaba fazendo
essa tarefa, que faz muito bem. Os outros CAPS pouco acessam os outros serviços
do território, ainda acessam mais os serviços de saúde, CRAS e CREAS, mas não
acessam recursos comunitários, embora o município tenha o mapeamento, que foi
feito em 2012, de todos os recursos. A assistência social fez um mapeamento, um
levantamento, mas a gente não faz isso como uma tarefa assim, sabe? A gente ainda
tem uma cultura de muito ambulatório dentro dos CAPS, né?! 80% da nossa
demanda ainda são as ansiedades e depressão, são os desafios, né? (PSI/GST 01)
Esta foi a meu ver uma das passagens mais curiosas extraída das entrevistas: aquela
região que não tem cobertura de CAPS é justamente a que é percebida pela entrevistada como
a que melhor articula com recursos comunitários. Como carece deste serviço, há, pois
necessidade de articulação com a comunidade. Curioso justamente porque o que se preconiza
para os dispositivos de saúde mental é a articulação territorial e comunitária. É se inserir no
contexto das pessoas que estão sendo acompanhadas, é convidar a sociedade a também
participar deste processo. Causa minimamente estranhamento pensar que esta articulação se
dá justamente aonde estes serviços não chegam, onde possivelmente o olhar técnico
assistencial não se dá enquanto única possibilidade, abrindo margem para construções outras,
como o acionamento de recursos da comunidade. No entanto, há algumas possibilidades de
85
compreensão dos motivos pelo qual isto acontece. E uma fala que se faz presente é de que
esta não é uma carência apenas no campo da saúde mental e atenção psicossocial.
Houve um momento em que a gente tinha parcerias com... Como chama mesmo?
José Luiz Ribeiro [professor do curso de Comunicação da UFJF], o teatro, Grupo
Divulgação [grupo de teatro vinculado à UFJF]. Então a gente tinha parceria com o
Grupo Divulgação, a gente tinha parceria com o pessoal da prefeitura da parte de
artes lá do [Espaço] Mascarenhas. Então recentemente eu encontrei com um cara
que era professor, é ainda, um cara que trabalha com, ele é artista plástico, trabalha
com cerâmica, e ele veio me contar experiências que ele teve ‘Poxa que pena!’,
contando de um cara que trabalhou com ele por muito tempo, enfim, contando
histórias que fizeram parte dessas parcerias que foram perdidas (...). ‘não, acaba com
o que foi feito até aqui, vamos começar de novo. Isso não tem mais sentido, o
sentido agora é fechar hospital e criar residência terapêutica’, como se fossem coisas
de excludentes. Mas pô! Usa o que avançou e avança mais em outras áreas.
(PSQ/PRF/GST 01)
Eu... assim... eu acho que Juiz de Fora tem muito pouco recurso comunitário. Pro
povo em geral, né?! É... Mas eu lembro que quando eu trabalhava em Além Paraíba,
eu fazia reunião com pastor de Igreja, por conta de alguns usuários. Essa coisa da
medicação e tudo. Eu acho que... até esses recursos mesmo. Recurso do pastor, da
igreja... é... que eu acho que a igreja tem esse... que eu mais vejo aqui. Pelo menos
no meu bairro é o que eu mais vejo. Eu fico pensando assim ‘o que que tem de
recurso comunitário? (...) Acho que isso... a gente tem poucos recursos
comunitários. Assim, dos bairros que eu conheço, né?! Nos meus bairros lá. Acho
que cada vez menos praças são usadas. Como recurso, como espaço. As pessoas
cada vez usam menos os espaços públicos para se... né?! (TO 01)
Então, é sempre válido lembrar que a saúde mental, e não somente a de Juiz de Fora,
está inserida em uma dada realidade, e que sejam as potencialidades ou mesmo dificuldades,
não estão descoladas e não devem ser pensadas fora de um contexto mais amplo.
Com essa nova psiquiatria, com essa nova formação desse pessoal, com essa forma
de funcionamento dos novos equipamentos de assistência psiquiátrica, além da
existência da medicalização, né?! É uma coisa assustadora né? Porque aí sim...
atinge escolas, local de trabalho... está tudo sendo... passando esse furacão da
medicalização psiquiátrica nesses lugares todos, que eu acho que só piora. As
pessoas estão sendo desapropriadas da sua capacidade de gerir sua própria vida, sua
própria experiência, seu próprio sofrimento. (PSQ/PRF 01)
Mas a ideia é de ter os usuários pelo menos, assim, eu acho que essa questão política
ela é um pouco distante para todos nós, o abraçar dessa política é algo muito distante
para todo cidadão, então é claro que vai ser também para o usuário da saúde mental.
(PSI 01)
Diante desta realidade, é possível pensar que existem sim, formas e expressões, que
não necessariamente dispositivos formais:
Eu pensei aqui não é recurso comunitário, entendeu? São coisas artísticas, que não
são comunitárias. (...) Ah! O Ingoma [grupo de tambor mineiro]... Grupo de yoga...
o vôlei que eu estou jogando lá no Sport [Clube Juiz de Fora]. (USU/PRV 01)
E além destes, muitos outros, como: banda Os Impacientes, formada por usuários do
CAPS Casa Viva, a banda tem cd gravado e já se apresentou em diversos espaços, inclusive
em outras cidades; o grupo de futebol, que acontece não somente com usuários e técnicos de
serviços de saúde mental, como também pessoas da sociedade com interesse em participar;
86
Rádio Piraí e “Tivi Piraí”, iniciativas criadas a partir da oficina de comunicação do Centro de
Convivência, com planejamento de pautas, montagem, edição e todo processo criativo e
logístico da gravação organizado por membros do Centro de Convivência; e tantas outras
iniciativas nos mais diversos espaços.
Penso ser válido, então reforçar a importância estratégica desta dimensão. O processo
de Reforma Psiquiátrica é complexo, e requer um diálogo constante com a sociedade, nesta
incluída também os profissionais, os gestores, os familiares, e, igualmente, as pessoas em
tratamento.
(...) porque se você pergunta pra população, sem fazer uma discussão, a população
também quer um hospital psiquiátrico. Eu mesmo quantas vezes eu já fui hostilizado
por famílias que estavam com dificuldade, com doente em casa e falaram ‘Pra quê
que você foi fechar o hospital? Agora eu não tenho onde resolver o problema’, e aí
você tem que fazer uma discussão, dizer que tem, que o problema era que
encaminhava para o lugar errado, os mau tratos, não sei o quê, a falta de direitos…
no final a pessoa aceita, mas se você pergunta de uma maneira geral para o cidadão
ele vai falar que quer um hospital, ‘Não, tem hospital para câncer, tem hospital para
ortopedia, etc, porque que não tem pra psiquiatria?’(PSQ/GST 02)
(...) porque assim, as pessoas que estão chegando, elas não tem a dimensão do quê
que é essa luta, elas não têm. Elas têm uma dimensão, e muito bacana, construções
muito bacanas, de como deve ser, mas elas não têm a dimensão do que se a gente
não trabalhar para ser como deve ser, do que pode ser. Essa dimensão elas não têm,
e é muito fácil e voltar para isso, muito fácil, não é difícil. Então a maior dificuldade
é a gente poder conseguir transmitir isso de uma forma que a gente não seja
chamado de romântico, fanático ou nostálgico. (PSI/GST 02)
É preciso, portanto, esforço cotidiano, nas produções acadêmicas e técnicas, na
produção do cuidado, nas teorias, nas práticas, nas relações, nos olhares, visando produção de
autonomia, cidadania e a garantia de direitos de todos aqueles por tantos anos destituídos de
voz em nossa sociedade.
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6. Considerações Finais
As construções realizadas até aqui visam abordar as mais diversas complexidades
importantes e constituintes do processo de Reforma Psiquiátrica do município de Juiz de Fora.
A constituição de um paradigma psiquiátrico, que ocupa lugar de verdade através de
um suposto embasamento científico, auxilia na compreensão dos diversos fatores deste
processo, como a construção na sociedade do imaginário da loucura. Por muito tempo se
entendeu que o lugar daqueles em sofrimento psíquico seria então à margem da sociedade. No
entanto, com a justificativa de tratamento, o que se deu foi exclusão. Com o argumento de
resolução de problemas, outros tantos foram engendrados. E assim, neste processo histórico,
pessoas tidas como loucas e anormais, foram cada vez mais asiladas, destituídas de sua
cidadania, mortificadas.
O município de Juiz de Fora tem em sua história características muito peculiares em
relação a todo esse processo. Um local atravessado pelo “corredor da loucura”, em que nas
cidades mineiras de Belo Horizonte, Barbacena e Juiz de Fora estava a expressiva maioria dos
leitos psiquiátricos do estado. Também esteve fortemente inserido no que foi descrito por
Luiz Cerqueira (1984) por “indústria da loucura”, em que, como diria um dos entrevistados da
pesquisa: “depois [do Golpe Militar] de 64, virou dinheiro” (PSI/GST 03). Assim, uma cidade
que polariza atividades e serviços diversos, por ser a de maior porte de seu entorno, teve em
dado momento histórico sete hospitais psiquiátricos privados conveniados ao poder público.
Uma verdadeira “indústria”, de produção de dinheiro, poder, mas também de maus-tratos,
exclusão e invisibilidade. Neste processo, o referencial teórico se faz imprescindível, no
sentido de buscar entender que neste período histórico não somente esta prática era comum,
como por muitos legitimada. Retomando as construções foucaultianas expressas neste
trabalho, não estamos em busca de uma verdade absoluta, uma regra universal.
Frente às violações de direitos tão características destas instituições asilares, a
sociedade, das mais diversas formas e com atores distintos, voltou seu olhar para o
manicômio e passou então a questionar estas práticas. Em Juiz de Fora, estes questionamentos
começam a surgir, inclusive de maneira formal, seja em nível de publicação acadêmica ou
mesmo gestão pública, em meados dos anos 80. Mas este início de um momento questionador
não se dá sem resistência, ou mesmo estratégias de silenciamento. Como a Comissão
Executiva formada já neste período, que é por meio de um ofício destituída, sem que se
ofereçam quaisquer justificativas formais. Este acontecimento demonstra o inegável poder
que estas instituições psiquiátricas eram capazes de exercer.
88
18 Artistas de reconhecimento mundial, que têm em comum, além da genialidade, a história marcada
pelo sofrimento psíquico.
90
limitações e também ainda muito caminho a percorrer, mas que se configura enquanto
ferramenta de transformação da realidade de extrema importância.
Como visto no decorrer da construção histórica, ou mesmo nos fragmentos das
entrevistas, a rede de saúde mental de Juiz de Fora tem suas especificidades. Apesar do
credenciamento do primeiro CAPS se dar ainda há bastante tempo, se comparada com a
realidade brasileira, o que se tem de serviços preconizados hoje está há muito defasado. É um
dado importante perceber que a portaria que regulamenta o funcionamento daqueles serviços,
implementando que haja CAPS de funcionamento 24 horas para população acima de 200 mil
habitantes, data de 2004 (BRASIL, 2004, p. 125), e que o primeiro destes surge na cidade
apenas em 2012, para a população álcool e drogas. E aquele não voltado especificamente para
essa população, um “CAPS para transtornos gerais” (como alguns os nomeiam) foi ser
implementado na modalidade 24 horas apenas em 2014, isto é, 10 anos depois da regulação da
portaria. Além disso, a criação do primeiro CAPS II municipal ocorreu em 1993, quando
ainda nem havia a regulamentação dessa complexidade através da Portaria 336 (BRASIL,
2004, p. 125). No entanto, o segundo municipal desta modalidade foi ser criado apenas em
2012. É claro que neste período outros serviços foram criados, como CAPS i, CAPS ad,
Centro de Convivência, e também o CAPS HU, de gestão federal. Mas, ainda assim, são
quase 20 anos de intervalo para a criação de um novo CAPS II municipal, e mais um ano para
que um deles fosse transformado em CAPS III. Isto posto, algumas são as questões que
auxiliam na compreensão desta realidade.
Antes de qualquer outro aspecto, acredito ser adequado destacar a forte tradição
manicomial, que tinha muita força política. Assim, como foi apresentado, ainda que com
avaliações que demonstrassem as precárias condições de assistência, o processo de
descredenciamento destes nosocômios foi árduo e extenso. Neste sentido é válido lembrar que
o município de Juiz de Fora está inserido em Minas Gerais, que diferente do que foi possível
no corpo da lei federal sobre a Reforma Psiquiátrica, conseguiu aprovar ainda na década de 90
legislação estadual que versava sobre “implantação de ações e serviços de saúde mental
substitutivos aos hospitais psiquiátricos e a extinção progressiva destes” (BRASIL, 2004, p.
37). Ainda assim, esta extinção progressiva demorou, do ano em que a lei estadual foi
aprovada ao descredenciamento do último hospital psiquiátrico da cidade, exatos 20 anos.
Neste processo estes estabelecimentos eram partes integrantes da rede de saúde mental da
cidade, em que o cuidado nos demais serviços eram pensados muito mais de uma maneira
“alternativa” ao hospital, ou seja, como uma das possibilidade de assistência, e não de modo
91
“substitutivo”, isto é, que constitui práticas que não se referenciem, ainda que em momento de
crise, ao recurso do hospital psiquiátrico.
Outro fator relevante é que, com a mudança de grupo político em meados dos anos 90
e, por conseguinte, mudança de gestão do então ISM, o grupo que fez parte desta coordenação
apostava na construção desta rede sob uma ótica muito própria, diferente do que estava sendo
construído pelo movimento da Reforma Psiquiátrica no restante do país. Uma aposta
fundamentalmente embasada na atenção primária, e modelos de gestão que preconizavam
outros tipos de serviço, como a criação dos Centros Regionais de Referência em Saúde
Mental (CRRESAM) e Programas Especiais em Saúde Mental (PROESAM). Tudo isto
articulado em protocolos de conduta, modelos de encaminhamento, critérios de inclusão e
exclusão. Uma articulação que, mesmo os mais críticos ao modelo, reconhecem os esforços
de padronização e organização de serviços. Mas, se por um lado havia uma aposta em uma
maneira diferente de lidar com a realidade da saúde mental, muito embasada em construções
técnicas e epidemiológicas realizada especialmente por um grupo vinculado a UFJF, o que na
prática ocorreu foi grande burocratização desta rede. Pessoas com a urgência do sofrimento
psíquico que precisavam preencher este ou aquele critério para terem acompanhamento. E que
muitas vezes, no processo como se deu na prática, ficavam então perdidas nesta rede. Esta é
uma crítica delicada, especialmente quando se entende melhor de sua construção histórica, e
por isso se tenta aqui fazê-la com cuidado. Apostar na atenção primária é tarefa louvável, e é
compreensível que esta tenha sido uma tentativa de melhora na qualidade prestada. Mas,
esperar que uma pessoa em uso abusivo de alguma substância não possa faltar a atendimento,
sob penalidade de ser desligada do programa específico, como consta na publicação
conhecida por “Livro Verde” (INSTITUTO DE SAÚDE MENTAL, 2000), é minimamente
enrijecer, sob a ótica do olhar técnico, uma realidade complexa e delicada. Há também, ainda
na introdução das “folhas verdes”, a seguinte passagem “(...) uma versão simplificada de cada
um deles [protocolos], que possa ser rapidamente compulsada a qualquer momento que as
solicitações da prática assistencial o exijam” (INSTITUTO DE SAÚDE MENTAL, 2000, p.
10, grifo meu). Chamou então minha atenção a utilização do termo “compulsar” visto que
denota “consultar, estudar, examinar, folhear, manusear”, mas também “coagir, compelir,
forçar, obrigar, oprimir”. Em um programa destinado a pessoas em uso abusivo de substâncias
que tem como critérios de exclusão “pacientes com menos de um ano após um primeiro
abandono de tratamento” talvez se precisasse mais “consultar” que “coagir”. A também
aposta em um processo de desospitalização através da fortificação da atenção básica, que não
abarcasse o claro enfrentamento e descredenciamento dos hospitais psiquiátricos um contexto
92
de forte tradição manicomial, acabou por não atingir uma parcela importante deste processo:
aqueles tidos por pacientes crônicos. Se por um lado a busca por estratégias que reduzisse as
internações é fundamental, aqueles há anos internados acabaram, pois, por não serem
contemplados ou mesmo visibilizados.
Ainda em relação às questões que produziram esta conformidade de rede, é inegável
que para construção de novos serviços é preciso vontade e poder político. Quanto a esse
aspecto todos os profissionais, especialmente os que têm ou tiveram cargo de gestão, foram
enfáticos em afirmar desta importância. Dos que outrora estiveram na gestão e afirmaram da
dificuldade de conseguir implementar algum serviço, dos que afirmaram que só é possível
construir quando tem vontade política. Neste sentido, apesar de não ser de pequeno porte, Juiz
de Fora ainda se apresenta com pensamento demasiadamente provinciano. E isto ficou ainda
mais claro no decorrer das entrevistas, e especialmente nas conversas posteriores, quando o
gravador já estava desligado: do quanto os jogos políticos são bem mais pautados na
possibilidade de alguma projeção e notoriedade pessoal do que se esta ou aquela será a melhor
assistência a ser prestada. Como muito bem descrito por um dos entrevistados como “fogueira
das vaidades” (PSQ/PRF/GST 01). Este também foi um dos principais motivos elencados
frente à pergunta sobre a visão sobre este processo com o passar do tempo, e o que havia
mudado. Muitos disseram entender melhor das dificuldades próprias de um processo
complexo, mas fundamentalmente do quanto os jogos de poder fazem diferença ao que se
consegue alcançar, e quanto esse aspecto é forte em Juiz de Fora.
Ainda sobre as características desta rede, os acordos realizados com os demais entes
federados são também fundamentais à conformação dos serviços hoje prestados. Não somente
pelo reconhecido apoio do Ministério da Saúde, especialmente na pessoa do ex-coordenador
Roberto Tykanori, propiciando repasse de recurso, credenciamento de novos serviços, apoio
técnico; como também do descumprimento, por parte do estado de Minas Gerais, de repasse
financeiro previamente pactuado. Alguns foram os serviços pactuados, como CAPS III, CAPS
ad III e CAPS i destinados para a população da zona Norte (GTT, 2018), que não foram
concretizados, segundo os entrevistados, fundamentalmente por esse descumprimento na
transferência financeira por parte do estado de Minas Gerais. Estes são dispositivos
estratégicos, se pensarmos que atualmente os serviços oferecidos por essa rede estão todos na
região centro-sul da cidade, isto é, mesmo aqueles que têm por finalidade atendimento
ambulatorial à população da zona Norte.
Neste ponto é válido tocar novamente na delicada questão da territorialidade dos
serviços que compõem a rede de saúde mental de Juiz de Fora. A área que compõe o território
93
que acabou se conformando foi que estes “sujeitos de pesquisa” tinham níveis de escolaridade
bastante distintos: do fundamental incompleto ao superior completo. Assim, com diferentes
arcabouços teóricos e formais, o que se tem em comum é uma noção crítica deste processo.
Seja por perceber o preconceito e toda esta construção social em torno da loucura, seja na
dificuldade do cotidiano familiar. Assim, é válido retomar a importância da dimensão
sociocultural neste processo. A mudança assistencial é importante, mas não é o bastante se
não se transforma as relações sociais, se segue associada à loucura a noção de marginalidade,
periculosidade, anormalidade. Não se busca com esta construção negar a existência do
sofrimento psíquico, ou mesmo romantiza-lo. O que se visa alcançar é a possibilidade de um
processo de autonomia, de garantia de direitos, de produção de cidadania.
E para esta produção de cidadania outro fator se configura como de extrema
relevância: a visão crítica do próprio espaço do manicômio. Ainda que com a notória história
de maus tratos, de insalubridade, de violências das mais diversas, muito se lutou para que
esses espaços fossem pouco a pouco deixando de existir na cidade. É notório na fala daqueles
que participaram do descredenciamento dos últimos hospitais o horror ao se deparar com
aquela realidade até então escondida por de trás dos muros manicomiais. Lembro-me que no
meu período de graduação tive a possibilidade de estar em alguns desses estabelecimentos da
cidade, quando ainda em funcionamento. Uma prática padrão destes locais era certo tipo de
“sala para visitas”, em que a equipe de CAPS que fosse fazer o acompanhamento a algum de
seus usuários internado era direcionada. Não era permitido acesso a nenhum outro espaço. As
tais salinhas de visita eram bem preservadas, o que, apesar de inacessível, sabia-se que
destoava das demais áreas do estabelecimento. Certa vez em uma dessas visitas juntamente
com a enfermeira do CAPS HU, e hoje eu já não saberia mais explicar o motivo, tive a
autorização para entrar na Clínica São Domingos para além da tal salinha. Estava no momento
da limpeza, e me faltam palavras para descrever a cor da água que era arrastada pela
funcionária da faxina. Como se costuma dizer entre as pessoas que de alguma forma estão ou
já estiveram inseridas no contexto da saúde mental, aquele que já esteve no interior de um
manicômio saberia sempre reconhecê-lo pelo cheiro. Um forte odor, bastante característico,
de uma mistura de urina e fezes que parece estar entranhado em toda estrutura. Ainda nesta
ocasião pude ir andando até uma área externa, que hoje me faz lembrar o icônico filme “Bicho
de 7 Cabeças”: um pátio cinza, sem vida, todo cercado por paredes, onde estavam alguns
internos. Mesmo sem esta visão mais chocante, era sabido de violações de direitos diversas:
de agressões, dentes arrancados, comida rala, estragada e insossa; a episódios aparentemente
simples, como quando o usuário que eu acompanhava enquanto estagiária no CAPS Casa
95
Viva teve seu cabelo, para ele sinônimo de orgulho e muita alegria, raspado sem seu
consentimento quando este foi internado pela família na Clínica Aragão Villar.
E o que estes breves recortes tentam trazer é que esta é uma realidade muito próxima:
o último hospital descredenciado no município data de 2015. E em se tratando do cenário
nacional, em outros lugares estes estabelecimentos ainda existem. O que parece uma prática
distante, ultrapassada e opressora, consegue ainda legitimidade, especialmente em momentos
de crise. Tantas são as experiências no Brasil e no mundo para legitimar que a internação
pode ser, por vezes, uma ferramenta necessária. Mas que ela não precisa se dar em um espaço
de segregação. Muito pelo contrário: quando inserida no território, com práticas de produção
de autonomia, como a possibilidade de um CAPS III, ou mesmo dentro do funcionamento de
um hospital geral, estas internações conseguem ser mais curtas, menos traumáticas, e,
portanto, mais eficientes. No entanto, assim como práticas humanizadas são possíveis nos
hospitais psiquiátricos, é também possível que práticas manicomiais estejam presentes em
serviços comunitários. O que se percebe, no entanto, é que o espaço do hospital psiquiátrico,
pela sua própria constituição física e pelas práticas que o sustentam, torna sua humanização
insustentável.
O modelo de assistência preconizado pelo movimento da Reforma Psiquiátrica,
comunitário, participativo, cidadão, tem mais diversos exemplos por todo o país de melhora
na qualidade de vida, de produção de autonomia. Os serviços propostos são diversos,
formando uma rede bastante complexa. Muitas são as produções acadêmicas sobre o assunto,
mas são também diversas as cartilhas até aqui produzidas pelo Ministério da Saúde: Centros
de Atenção Psicossocial (BRASIL, 2004b), Serviços Residenciais Terapêuticos (BRASIL,
2004c), Matriciamento (BRASIL, 2011), entre tantos outros. Acreditar, no entanto, que este é
um modelo que está dado, finalizado, e que basta seguir categoricamente as práticas
preconizadas, é também memorizar a complexidade desta realidade. Os desafios são diversos,
e estão sempre se renovando, se reinventando. Afinal, a cultura manicomial não é
exclusividade dos hospitais psiquiátricos, ela está presente em toda a sociedade. É de suma
importância, portanto, que os profissionais que hoje estão inseridos em algum serviço da rede
de saúde mental entendam esta construção histórica, afinal, ela é recente e pela própria não
linearidade da história, não há garantias de que essas não práticas retornem, em outros
espaços, com outros nomes, mas cumprindo a mesma função. Especialmente em um contexto
de neoliberalismo em extrema ascendência, da destituição do poder do Estado, e da primazia
do lucro a qualquer custo, é fundamental reconhecer o processo histórico e estar atento aos
tensionamentos sempre presentes. De todo esse processo, fica para mim uma construção de
96
raciocínio que faz alusão a algumas falas de entrevistados específicos e que reiteram o meu
ponto de vista. Quando fui apresentada à realidade da saúde mental de Juiz de Fora, eu
acreditava que todos os problemas seriam sanados quando da construção de um CAPS III.
Posteriormente eu acreditava que era necessário fechar os hospitais e construir SRTs, e assim
tudo se resolveria. E essas mesmas SRTs estiveram envolvidas em denúncias de maus-tratos,
e novas conformações foram necessárias. Com o passar do tempo e com a possibilidade de
aprofundamento teórico, fui percebendo que novos desafios serão sempre constituídos. Que a
Reforma Psiquiátrica é portanto um processo dinâmico, como a complexidade da existência
humana, e que apesar de ter um direcionamento, uma finalidade, não tem um desfecho ideal,
um limite a ser alcançado.
Por fim, uma frase marcante, produzida pelo movimento da Luta Antimanicomial de
Minas Gerais, e que expressa com uma clareza poética a importância desta construção por
uma sociedade sem manicômios: “Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”.
97
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<https://www.pjf.mg.gov.br/noticias/view.php?modo=link2&idnoticia2=50172>. Acesso em:
Janeiro 2019.
JUIZ DE FORA. Caps Leste tem novo endereço. Portal de Notícias, 2016a. Disponivel em:
<https://www.pjf.mg.gov.br/noticias/view.php?modo=link2&idnoticia2=55420>. Acesso em:
Janeiro 2019.
LEVCOVITZ, E.; LIMA, L. D.; MACHADO, C. V. Política de saúde nos anos 90: relações
intergovernamentais e o papel das Normas Operacionais Básicas. Ciência & Saúde Coletiva,
Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 269-291, 2001.
RIBEIRO, M. S. Integração das Ações de Saúde Mental: o "caso" Juiz de Fora. HURevista,
Juiz de Fora, v. 18, n. 3, p. 205-251, Set./Dez. 1991.
TENÓRIO, F. Questões para uma tualização da agenda da Reforma Psiquiátrica. In: COUTO,
M. C. V.; MARTINEZ, G. Saúde Mental e Saúde Pública: questões para a agenda da
Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: NUPPSAM/IPUB/UFRJ, 2007. p. 11-26.
VENTURINI, E. Prefácio à primeira edição. In: AMARANTE, P. Loucos Pela Vida. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 1998. p. 13-16.
Você está sendo convidado(a) a participar da pesquisa “O Processo de Reforma Psiquiátrica em Juiz de
Fora: Uma Construção”. Esta pesquisa está sendo realizada por mim, Thaís Silva Acácio, como aluna do
Mestrado em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP) da FIOCRUZ, sob
a orientação do Professor Dr. Paulo Duarte de Carvalho Amarante e da Professora. Dra. Ana Paula Freitas
Guljor, ambos da ENSP/FIOCRUZ.
O objetivo geral da pesquisa é estudar o processo de Reforma Psiquiátrica em Juiz de Fora/MG, buscando
identificar momentos importantes, acontecimentos relevantes nesta história, e assim poder falar sobre como
se deu esta construção. A intenção deste estudo é, através de análise de diferentes documentos e entrevistas,
abarcar as mais diversas visões sobre este processo.
O convite a sua participação se deve à importância de ter feito parte desta história, seja como usuário da
rede de saúde mental de Juiz de Fora ou um familiar de uma pessoa atendida por esta rede, e assim, poder
oferecer uma visão de como este processo aconteceu e ainda acontece.
Sua participação é voluntária, isto é, ela não é obrigatória, e você tem plena autonomia para decidir se
quer ou não participar, bem como retirar sua participação a qualquer momento. Você não será penalizado de
nenhuma maneira caso decida não consentir sua participação, ou desistir da mesma. Contudo, ela é muito
importante para a execução da pesquisa.
Confidencialidade e Privacidade:
Para assegurar a confidencialidade e a privacidade das informações por você prestadas, apenas os
pesquisadores do projeto, que se comprometem com o dever de sigilo e confidencialidade, terão acesso a
seus dados. É possível desistir da pesquisa a qualquer momento, sem qualquer prejuízo ou sanção. O
participante tem direito a sempre receber informações do projeto de pesquisa.
A qualquer momento, durante a pesquisa, ou posteriormente, é possível solicitar da pesquisadora
informações sobre sua participação e/ou sobre a pesquisa, o que poderá ser feito através dos meios de
contato que estão neste Termo. Se houver algum dano, comprovadamente decorrente da presente pesquisa, o
entrevistado terá direito à indenização, através das vias judiciais, como dispõem o Código Civil, o Código de
Processo Civil e a Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
O benefício indiretamente relacionado com sua colaboração nesta pesquisa é a contribuição para a produção
de conhecimento sobre a Reforma Psiquiátrica, em especial, do processo ocorrido em Juiz de Fora.
O risco envolvido com a participação desta pesquisa é mínimo, mas vale mencionar que há o risco de
desconforto ou constrangimento devido às situações que venham a ser relembradas. Como forma de
minimizar os danos você poderá interromper temporariamente a entrevista ou desistir de participar da
mesma. Embora exista também o risco de identificação devido ao pequeno número de participantes no
estudo, alguns cuidados quanto ao anonimato serão tomados pela pesquisadora, como a não identificação
dos entrevistados na apresentação de resultados.
Ao final da pesquisa, todo material será mantido em arquivo, por pelo menos 5 anos, conforme Resolução
466/12 e orientações do CEP/ENSP e, com o fim deste prazo, será descartado. Os resultados serão
divulgados na forma de dissertação de mestrado acadêmico, artigos científicos e trabalhos publicados em
eventos científicos. A pesquisadora se compromete, ainda, em, após a conclusão da dissertação de mestrado,
tornar público os resultados para os participantes.
Este termo é redigido em duas vias, sendo uma para o participante e outra para a pesquisadora. É preciso que
todas as páginas sejam rubricadas, e que tenha a assinatura do participante e da pesquisadora na última
página.
Em caso de dúvida quanto à condução ética do estudo, você pode entrar em contato com o Comitê de Ética
em Pesquisa da ENSP (CEP/ENSP). O Comitê é formado por um grupo de pessoas que têm por objetivo
defender os interesses dos participantes das pesquisas em sua integridade e dignidade e assim, contribuir
para que sejam seguidos padrões éticos na realização de pesquisas.
CEP/ENSP
Telefone: (21) 2598-2863
E-Mail: cep@ensp.fiocruz.br
Site: http://www.ensp.fiocruz.br/etica
Endereço: Rua Leopoldo Bulhões, 1480/Térreo. Manguinhos. Rio de Janeiro/RJ - CEP: 21041-210
_________________________________
Assinatura:_________________________________________
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Rubrica pesquisador: __________________
Prezado(a) participante,
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Rubrica pesquisador: __________________
Para assegurar a confidencialidade e a privacidade das informações por você prestadas, apenas os
pesquisadores do projeto, que se comprometem com o dever de sigilo e confidencialidade, terão acesso a seus
dados.
O tempo necessário à realização da entrevista é variável, ou seja, depende de pessoa para pessoa, e
você poderá informar à pesquisadora que gostaria de encerrá-la a qualquer momento. Estima-se, no entanto,
que a duração seja de aproximadamente uma hora.
Toda pesquisa possui riscos potenciais. Maiores ou menores, de acordo com o objeto de pesquisa,
seus objetivos e a metodologia escolhida. Embora exista o risco de identificação devido ao pequeno número
de participantes no estudo, e sua representatividade no campo deste estudo em Juiz de Fora, alguns cuidados
quanto ao anonimato serão tomados pela pesquisadora, tais como a não identificação dos entrevistados na
apresentação de resultados. Os riscos de sua participação são mínimos, mas possíveis, como desconforto ou
constrangimento oriundo de situações que venham a ser relembradas. Como forma de minimizar os danos
você poderá interromper temporariamente a entrevista ou desistir de participar da mesma. No entanto, se
houver algum dano, comprovadamente decorrente da presente pesquisa, você terá direito à indenização,
através das vias judiciais, como dispõem o Código Civil, o Código de Processo Civil e a Resolução nº
466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Não há benefícios diretos para os participantes. O benefício
relacionado à sua participação é a contribuição para a produção de conhecimento sobre a Reforma
Psiquiátrica, em especial, do processo ocorrido em Juiz de Fora.
Ao final da pesquisa, todo material será mantido em arquivo, por pelo menos 5 anos, conforme
Resolução 466/12 e orientações do CEP/ENSP e, com o fim deste prazo, será descartado. Os resultados serão
divulgados na forma de dissertação de mestrado acadêmico, artigos científicos e trabalhos publicados em
eventos científicos. A pesquisadora se compromete, ainda, em, após a conclusão da dissertação de mestrado,
tornar público os resultados para os participantes.
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Rubrica pesquisador: __________________
Este termo é redigido em duas vias, sendo uma para o(a) participante, e outra para o pesquisador.
Todas as páginas deverão ser rubricadas pelo(a) participante e pela pesquisadora, com ambas as assinaturas
na última página.
Em caso de dúvida quanto à condução ética do estudo, entre em contato com o Comitê de
Ética em Pesquisa da ENSP (CEP/ENSP). O Comitê é formado por um grupo de pessoas que têm
por objetivo defender os interesses dos participantes das pesquisas em sua integridade e dignidade e
assim, contribuir para que sejam seguidos padrões éticos na realização de pesquisas.
CEP/ENSP
Telefone: (21) 2598-2863
E-Mail: cep@ensp.fiocruz.br
Site: http://www.ensp.fiocruz.br/etica
Endereço: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/ FIOCRUZ
Rua Leopoldo Bulhões, 1480/Térreo. Manguinhos. Rio de Janeiro/RJ - CEP: 21041-210
___________________________________________
Assinatura: _________________________________________
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Rubrica pesquisador: __________________
Eu, Thaís Silva Acácio, mestranda em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca – ENSP/Fiocruz, pesquisadora responsável pelo projeto intitulado O Processo
de Reforma Psiquiátrica em Juiz de Fora: uma Construção, comprometo-me com a utilização
dos dados contidos no arquivo do Departamento de Saúde Mental, da Prefeitura
Municipal de Juiz de Fora, a fim de obtenção de dados para minha pesquisa, e somente após
receber a aprovação do sistema CEP-CONEP.
Por fim, comprometo-me com a guarda, cuidado e utilização das informações apenas para
cumprimento dos objetivos previstos nesta pesquisa aqui referida.
Qualquer outra pesquisa em que eu precise coletar informações serão submetidas a nova
apreciação do CEP/ENSP.
Questões Norteadoras
1) Relação com Juiz de Fora: se é natural da cidade. Caso contrário, o motivo da
mudança e há quanto tempo.
3) Discorrer sobre o contato inicial com este campo, e como se dá o contato atual.
5) Descrever quais os recursos / dispositivos que acredita fazer parte da saúde mental.
6) Descrição dos recursos públicos (do governo) existentes para a questão do cuidado
em saúde mental na cidade de Juiz de Fora.
10) Discutir sobre o que seria necessário (se houver) para melhorar a oferta de cuidados
às pessoas que fazem tratamento em saúde mental.
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Questões Norteadoras
3) Discorrer sobre a visão que se tinha neste contato inicial, e se algo mudou com o
passar do tempo.
6) Descrição dos recursos públicos (do governo) existentes para a questão do cuidado
em saúde mental na cidade de Juiz de Fora.
10) Discutir sobre o que seria necessário (se houver) para melhorar a oferta de cuidados
em saúde mental.