A Casa Dos Significados Ocultos - RuPaul Charles
A Casa Dos Significados Ocultos - RuPaul Charles
A Casa Dos Significados Ocultos - RuPaul Charles
TÍTULO ORIGINAL
The House of Hidden Meanings
COPIDESQUE
Theo Araújo
REVISÃO
Angelica Andrade
Juliana Brandt
DESIGN DE CAPA
Ploy Siripant
FOTO DE CAPA
Albert Sanchez
PRODUÇÃO DE E-BOOK
Victor Huguet
E-ISBN
978-85-510-0686-3
@intrinseca
editoraintrinseca
@intrinseca
@editoraintrinseca
intrinsecaeditora
Sumário
[Avançar para o início do texto]
Capa
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Dedicatória
Nota do autor
Prólogo
UM | Adeus
DOIS | Cerritos
TRÊS | Detalhes
QUATRO | Força
CINCO | Pertencer
SEIS | Dualidade
SETE | Snipe
OITO | Pyramid
NOVE | Saturno
DEZ | Supermodel
ONZE | Mãe
DOZE | Elevador
TREZE | Espelhos
CATORZE | Lar
Epílogo
Agradecimentos
Sobre o autor
Para o amor da minha vida, Georges LeBar. Obrigado por todo o
amor, todas as risadas, toda a ternura e a gentileza. Você é minha
pessoa favorita.
Nota do autor
Não vim aqui só para revisitar o passado. Vim para buscar algo de que preciso no
lugar em que nasci — não no hospital em San Diego onde minha mãe me deu à
luz, mas em um prédio na região sudoeste de Atlanta no qual não piso há mais de
trinta anos. Assim que estaciono o carro alugado, vejo meu velho amigo James
esperando por mim na porta. Conheci James quando aquela casa ainda era da
mãe dele. Ele morava no porão, que usávamos como boate e estúdio improvisado.
Também fumávamos maconha e gravávamos lá os episódios de uma série
chamada The American Music Show. James se aproxima da porta com a ajuda de
um andador de metal, mas me cumprimenta com a mesma alegria de sempre.
Ao entrar, vejo que, a não ser pela poeira, o porão ainda é o mesmo: há
armários abarrotados de papel, TVs, gravadores e mil e uma coisas antigas. Pego
um cartão-postal com uma foto minha e no mesmo instante me vem uma
lembrança: eu vendia aqueles cartões-postais aos 20 anos e presenteei James com
um bem ali, naquele porão. E ele o guardou naquela prateleira, como se fosse um
tesouro. Agora, mais de quarenta anos depois, o cartão-postal está exatamente no
mesmo lugar. Foi devorado pelo tempo ou por insetos, talvez os dois, mas nunca
saiu dali.
Avisto o motivo de minha visita soterrado na parte mais baixa de uma estante
de livros. Com uma camiseta velha, limpo a poeira para conseguir ler a etiqueta
colada na primeira fita que pego: the american music show, 5a TEMPORADA, EPISÓDIO 6,
1982. Há fitas VHS com muitas horas de conteúdo do programa que James e eu
gravávamos naquele mesmo porão. Começo a pegá-las da estante e percebo que
há várias outras fileiras de fitas guardadas lá atrás — dezenas, talvez centenas,
com todo o conteúdo feito ao longo de vários anos, todas devidamente
etiquetadas com as datas em que os episódios foram ao ar. As fitas são um
registro de como me tornei quem sou — uma transformação que ninguém vê há
quarenta anos e cujo único registro está bem aqui, neste porão.
— Achou? — pergunta James, lá de cima.
Respondo que sim.
Guardo as fitas em caixas de papelão e levo tudo para o andar de cima, uma de
cada vez. Antes de apagar as luzes, dou uma última olhada no porão para guardá-
lo bem na memória. Vou levar as fitas para Los Angeles e mandar digitalizá-las.
Essa missão já deveria ter sido realizada muito tempo atrás, sei disso. Mas não era
algo que eu senti que precisava fazer até então.
Sempre penso nesse momento porque foi o despertar de al-go dentro de mim: a
descoberta de que é possível criar a própria magia. Desenvolver a habilidade de
criá-la por necessidade, até mesmo por sobrevivência, ensina você a ser um
mágico pelo simples amor à coisa toda. Todos temos um pouco de magia dentro
de nós, mas a capacidade de moldá-la, de transformar uma coisa aparentemente
desimportante em algo especial e tratá-la com leveza e espontaneidade, é o que
faz a vida valer a pena.
O garotinho de San Diego que eu fui precisava disso — porque eu enxergava a
magia em mim, mas não nas coisas a meu redor. A casa onde cresci ficava em um
conjunto habitacional chamado Michelle Manor. Estávamos a pouco mais de
quinze quilômetros do oceano, mas as pessoas lá nunca iam à praia. A vizinhança
era um grande cânion na época, preenchido por casinhas como a que meus pais
compraram na Hal Street por 14.500 dólares em 1958. Se o céu estivesse sem
nuvens, era possível enxergar o México do jardim. Já em dias de céu nublado,
víamos o cinema drive-in onde exibiam filmes de blaxploitation: ainda que não
conseguíssemos ouvir o áudio, dava para entender o suficiente para acompanhar.
Era mais fácil encontrar magia na TV, que era o epicentro de possibilidades em
nossa casa. Quando eu era mais novo, o aparelho ficava no quarto de meus pais.
Nós nos amontoávamos na cama deles para assistir à televisão; me lembro até da
luz cinzenta da tela iluminando a colcha de chenile. Eu me sentava nos ombros de
meu pai e lambia o topo da cabeça dele, que sempre estava salgado;
provavelmente era suor. Talvez ele achasse o gesto bonitinho. Lembro disso muito
bem porque foi uma das únicas vezes que me senti próximo dele, fisicamente ou
não.
Na televisão, as pessoas estavam sempre fazendo coisas em lugares que
aparentavam ser muito maiores do que o mundo que eu conhecia em San Diego,
que sempre me pareceu ser um pequeno afluente afastado do fluxo do eletrizante
rio da vida. A TV era uma janela para algo maior, um portal para novos mundos.
As pessoas dos comerciais eram glamorosas e adultas, como Edie Adams em
uma propaganda dos cigarros Muriel no estilo de Mae West.
— Por que você não fuma um Muriel qualquer dia desses? — dizia ela em meio
a um set de filmagens surreal usando um vestido e um casaco de pele.
O penteado tinha formato de capacete, e ela usava batom e um delineado
longo que quase chegava às têmporas. Eu queria ser exatamente como ela: uma
pessoa deslumbrante, me sentir no controle, me apresentar para um público
extasiado. E, quem sabe, feminino, o centro das atenções de um homem. Mas, na
época, eu ainda não tinha palavras para descrever nada disso.
Anne Francis esteve em uma série de detetive chamada Honey West que durou
uma temporada e era tudo para mim: ela tinha uma jaguatirica de estimação e
não dava a mínima para as regras da sociedade. Em Missão: Impossível, os heróis,
todos membros de uma agência secreta, cercavam as pessoas com base nas
fraquezas delas, bolando planos com disfarces e armadilhas elaboradas para pegá-
las. Eu adorava o que isso queria dizer sobre o mundo e sobre nós: para se
conseguir o que quer, bastava agradar as pessoas depois de entender um pouco
sobre elas.
Mas a televisão tinha um lado ruim também, coisas que me deixavam ansioso.
Em um episódio de Mundos opostos, um bebê era mordido por um rato enquanto
dormia no berço. Por causa disso, comecei a ter medo de ratos. Havia uma mulher
chamada Irene que morava perto de nossa casa e era amiga de minha mãe. O
cheiro da casa dela era muito peculiar, de naftalina e cocô de rato, e fazia meu
estômago revirar. Além disso, eu sabia que ratos eram espertos e sorrateiros,
então eu os considerava perigosos, talvez porque me enxergava da mesma forma.
Nas telinhas, também havia um senso de justiça e progresso que era refletido
nos programas a que nós assistíamos. Os produtos dos comerciais eram avanços
tecnológicos que estavam melhorando a vida de todos, o tempo todo. Pelo que
meus pais contavam, havia mais pessoas negras na televisão do que nunca.
Minhas irmãs mais velhas me diziam que, um dia, as pessoas que estavam no
comando fariam com que todo mundo no planeta tivesse treze pares de sapato,
diferentemente de mim, que só tinha um par, ou de minhas irmãs, que tinham
três pares cada uma, no máximo. O mundo estava melhorando bem diante de
nossos olhos! Enquanto isso, nos programas aos quais assistíamos, existia um
senso moral que não se via no mundo real. Certo e errado. Bom e mau.
Eu adorava televisão. Para mim, representava um ideal platônico da realidade.
Havia um código moral acima de tudo: os mocinhos derrotando os vilões, o bem
vencendo o mal.
No entanto, mais importante ainda era o fato de que tudo era ensaiado, e nós
sabíamos disso. Tínhamos ciência de que aquelas pessoas eram atores e atrizes
interpretando papéis, porque o nome delas aparecia nos créditos. No mundo real,
as pessoas encenavam seus respectivos papéis também, mas ninguém falava
sobre isso.
Quando fizemos o piquenique, Renetta e eu desempenhamos nossos papéis
como acontecia na televisão: ela criou a magia, e eu a acolhi. Ela criou a atração e
me convidou para o palco.
Em casa, eu vivia fazendo apresentações para minha mãe. Enrolava uma toalha
ou um cachecol na cabeça e pegava a vassoura, me montando para imitar Tina
Turner, Carol Burnett ou LaWanda Page, que interpretava Tia Esther em Sanford
and Son. Também imitava pessoas de nosso bairro, como a vizinha que morava do
outro lado da rua, ou as crianças da família Wafer — Thelma, Shirley, Raleigh e
Bruce —, que tinham um sotaque carregado do interior e falavam arrastado.
Quando minha mãe parava para me assistir, eu já sabia que conseguiria fazê-la
gargalhar, mas ainda assim era uma delícia quando ela morria de rir.
Minha mãe foi uma mulher muito séria. Era conhecida no bairro como a
Malvada Senhora Charles. O nome dela era Ernestine, em homenagem à própria
mãe. Quando tinha 16 anos, durante uma discussão entre as duas, minha avó
disse a ela:
— Eu me arrependo de ter colocado meu nome em você.
— Não seja por isso — retrucou minha mãe. — De agora em diante, não me
chamo mais assim.
E dali em diante todos passaram a chamá-la de Toni.
Isso era típico de minha mãe, que era muito teimosa e orgulhosa. Ela não foi
uma mulher fácil. Mas, se gostava de alguém, gostava pra valer. E ela gostava de
mim porque eu era fácil de lidar. No entanto, a frieza dela fazia com que eu
sempre estivesse lutando para conseguir seu afeto. Ela nunca se deu bem com a
própria mãe, mas adorava o pai — era a favorita de meu avô e sabia muito bem
disso.
Minha mãe descendia de escravizados libertos, e tanto sua mãe quanto seu pai
eram frutos de relacionamentos inter--raciais; naquela época, ela teria sido
chamada de “mulata”. O cabelo dela era castanho-claro e praticamente liso,
embora tivesse alguns cachos. Ela usava bobes de modo que os cachos ficavam
virados para trás, como o penteado de Suzanne Pleshette em The Bob Newhart
Show, que nós chamávamos de Beethoven. Quando eu era mais novo, as crianças
na escola riam e diziam “Sua mãe é branca”, mas para mim ela não parecia
branca.
Talvez por ser do contra, ela gostava de pessoas de pele retinta, como meu pai,
Irving, que conheceu em Beaumont, no Texas, quando trabalhava como
secretária. Eles se conheceram em um encontro às cegas. Ele era do Exército —
havia uma base em Beaumont —, e os dois eram da Louisiana; minha mãe de uma
cidade chamada St. Martinville e meu pai de Mansfield. Os dois provavelmente
tiveram uma conexão logo de cara, algo físico proveniente da tensão entre duas
pessoas que são tão diferentes uma da outra. Ele não imaginava que fosse possível
que minha mãe ficasse grávida na primeira vez que fizessem sexo, mas ela ficou
— e teve gêmeas. Os dois se casaram assim que ele voltou da Alemanha.
Meus pais estavam fadados ao desentendimento desde o começo. Ela era
extremamente cética e parecia cansada do mundo, enquanto meu pai era
expansivo e boa-praça. Acho que, no começo, ele a encarava como um desafio: era
imensamente gratificante quando conseguia fazê-la sorrir ou dar risada. Para ela,
imagino que meu pai tenha representado um respiro de alegria e diversão. Ele a
distraía um pouco de toda a apatia que ela sentira desde pequena. Quando tudo
isso acabou, porém, não restou mais nada que pudesse mantê-los juntos.
Geralmente, quando as pessoas se unem por conta de sexo ou por um
magnetismo inexplicável, no momento em que tudo isso passa elas olham para o
lado e pensam: Como eu detesto esse filho da puta!
No período que meu pai estava servindo na Alemanha, mamãe teve minhas
duas irmãs mais velhas, Renae e Renetta. Ela não deu conta de criar duas crianças
sozinha, então, por um tempo, mandou Renae — que tinha a pele mais clara —
para morar com nossa avó. Vejo isso como um tipo de oferta de paz à mãe dela
por ter tido filhos com um homem de pele retinta. Mas isso deu origem a uma
rachadura no relacionamento de mamãe e Renae, que nunca foi reparada.
Separada da irmã gêmea por dois anos, Renae sempre teve uma relação
conturbada com nossa mãe. Renetta, por sua vez, era a favorita de mamãe, o que
era muito engraçado, porque ela sempre foi otimista até dizer chega, enquanto
mamãe era a personificação do pessimismo. Um ano depois que nasci, mamãe
teve minha irmã Rozy, cujo temperamento sempre foi o meio-termo entre as duas
extremidades. Ainda assim, nenhuma de minhas irmãs conseguia divertir nossa
mãe como eu. Eu fazia imitações, dançava, contava piadas e atuava.
Eu me sentava diante da penteadeira dela no quarto, de frente para o espelho
art déco de moldura curvada com flores entalhadas — ao menos eu acreditava ser
art déco, mas podia muito bem ser só um espelho velho —, e encenava comerciais
para os cosméticos Coty. Passava pó no rosto, enrolava uma toalha na cabeça
como se fosse um penteado volumoso e dizia:
— Isso mesmo! É Coty!
Minha mãe podia até estar de mau humor — sempre estava —, mas, quando eu
fazia isso, ela não aguentava e ria. Este era meu grande objetivo: atravessar a
nuvem de infelicidade que a cercava para distraí-la de tudo que havia de ruim.
Nunca vou saber ao certo o que aconteceu com minha mãe quando ela era jovem.
Ela não nos contou muita coisa, e tudo que disse foi cuidadosamente selecionado.
Mas eu tinha a impressão, talvez por intuição, de que ela sofrera algum tipo de
violência sexual quando era muito nova. Ela também dizia que havia caído de um
cavalo aos 14 anos e por isso tinha alguns problemas na vista esquerda, porém,
depois que morreu, descobri que durante toda a minha vida ela usou um olho de
vidro. O fato de eu nunca ter ficado sabendo disso me deixou abismado.
Ela era impetuosa, uma típica leonina. Quando ficava brava, era melhor sair de
perto. Se estivéssemos fazendo bagunça no supermercado, ela chamava nossa
atenção sem dar a mínima bola se seria constrangedor ou não.
— Calem a boca, porra! — gritava ela no corredor de enlatados.
Todos no bairro sabiam que a Malvada Senhora Charles não era de
brincadeiras e não tinha tempo para papo furado. Pobrezinhas das Testemunhas
de Jeová que apareciam lá em casa e a viam à mesa, tomando café e fumando um
cigarro, parecendo estar disponível para conversar. Batiam à porta e acenavam
para ela do outro lado da janela. Minha mãe nem sequer se levantava, apenas
olhava para elas e gritava:
— Saiam da porra da minha propriedade.
Eu sabia que ela achava justificável ser tão rígida depois de tudo que sofrera na
vida, mas isso também tinha a ver com o lugar de onde vinha: minha mãe era
francesa-acadiana. Depois de adulto, quando comecei a visitar a França, consegui
enxergar traços dela nas pessoas de lá, que por vezes agiam com ar de
superioridade e arrogância ou eram extremamente grosseiras. Naquela época,
porém, eu não sabia de nada disso. Quando a ouvia ao telefone com as irmãs,
falando francês crioulo, era como se um alienígena tivesse aterrissado bem em
nossa cozinha.
Minha mãe achava que o universo estava contra ela, e por isso era sempre tão
ríspida. Então, quando as pessoas eram pouco gentis por ela ser ríspida, mamãe
tomava isso como prova de que o universo estava contra ela. A família de meu pai
não gostava dela, pensavam que era uma pessoa desagradável de propósito e que
acreditava ser melhor do que todo mundo. E ela provavelmente dava motivos
para isso.
As desavenças entre minha mãe e a irmã de meu pai ficaram sérias em certo
Ano-Novo, quando meus pais viajaram para Los Angeles, onde minha tia morava.
Eles iam ficar na casa dela. Minha mãe havia costurado um vestido muito bonito
de crepe de lã para usar na festa — era preto e sem mangas, bordado com
pedrarias e pérolas em torno da cintura alta —; deixou o vestido em cima da cama
na manhã da véspera e saiu. Mais tarde, quando voltou para vesti-lo, o encontrou
em frangalhos — alguém o havia picotado com uma tesoura.
Ela não disse nada, apenas vestiu outra coisa. Mas guardou a afronta por anos
— inclusive os pedaços desfiados de tecido de crepe preto brilhante. Ela se
agarrou àquele vestido de todas as formas possíveis e permitiu que o rancor
crescesse dentro dela. Aquela situação representava todo o amargor que sentia
pelo mundo, era uma prova viva de que estava certa em acreditar que a vida era
terrível e cruel. E isso, a crença de que o mundo era horrível, era como uma droga
para minha mãe, algo que sempre voltava, constantemente lembrando-a de que
sempre esteve certa.
Minha mãe foi criada no catolicismo. Ela ainda lia a Bíblia, algumas vezes com
uma das amigas, a irmã Harris, e eu sabia que ela acreditava em Deus, mas
entendia que a relação dela com a fé tinha mais a ver com questões morais do que
com dogmas. Ela nunca se meteu com religiões organizadas depois de adulta e
jamais teria confiado em um pastor, por acreditar que todos não passavam de
hipócritas e charlatões. Acho que minha mãe soube que eu era gay desde muito
cedo, mas nunca me senti julgado por ela. A filosofia de vida dela era laissez-faire.
— Eu é que pago minhas contas, então ninguém tem nada a ver com a minha
vida — dizia ela.
Para mamãe, mantras como esse eram uma forma de religião: algo a ser dito
em voz alta para lembrá-la do que acreditava ser verdade. Eram como totens para
que ela não se esquecesse de onde tinha vindo e para onde estava indo, e também
para se proteger de cair na manipulação dos outros. Foi dela que herdei meu
apreço por frases de efeito, mas talvez com um pouco mais de ceticismo em
relação à Bíblia. Eu me lembro de ouvir histórias sobre a Bíblia quando era mais
novo e pensar que não faziam muito sentido. Para mim, a religião simplificava
conceitos difíceis para que as pessoas pudessem entendê-los com mais facilidade.
“O diabo” é o ego; “Deus” é uma frequência que não pode ser explicada; “Jesus” é
um termo para o potencial que todos nós temos, o potencial de transcender a
ilusão da física e de nos lembrarmos de quem somos: uma extensão da força
divina. A verdade é que acho que nenhum de nós levava as doutrinas bíblicas
muito a sério.
Com minha mãe, aprendi a ser independente e autossuficiente, aprendi a
inestimável habilidade de ficar bem sozinho, de conseguir concluir uma tarefa
sem precisar da ajuda de ninguém. Ela fazia tudo em casa: quando o gramado
precisava de manutenção, ia até lá arrancar ervas daninhas e podar arbustos,
vestindo uma túnica de poliéster resistente com uma estampa abstrata em preto e
branco que lembrava um arranjo de flores. No entanto, mesmo protegida por sua
armadura intransponível, eu sabia que a depressão às vezes conseguia ser mais
forte do que ela.
— Ru, você é sensível demais e rumina muito as coisas.
Ela me disse isso quando eu tinha apenas 5 anos.
Anos depois, finalmente entendi o que aquilo significava: ela estava falando de
si mesma. Queria evitar que eu cometesse os mesmos erros que ela. Todo o
charme de meu pai fez com que minha mãe conseguisse acessar dentro de si um
sentimentalismo que, por ser durona, ela não conseguia acessar de outra forma.
Só que, quando ele a decepcionou, ela passou a ver essa sensibilidade como um
calcanhar de Aquiles. Eu sabia que, quando estava sozinha, ela se deixava levar
pela nostalgia, pela fantasia romântica do que poderia ter acontecido se as coisas
tivessem sido diferentes, mas, olhando de fora, parecia que apenas encarava o
mundo com severidade. Meu pai me cativava da mesma forma que a tinha
encantado, e minha mãe não queria que eu caísse na mesma armadilha, que fosse
fisgado por ele e acabasse me magoando também. Queria podar as chances de
isso acontecer como se faz com uma moita no quintal.
Lembro até hoje o que ela estava vestindo quando me levou até a escolinha
Horton para meu primeiro dia de aula. Ela usava um vestido que, mais tarde,
descobri ser uma imitação da Dior: era um vestido de botão justo na cintura e
com uma saia ampla, de gola alta e manga três-quartos. O tecido tinha círculos
sobrepostos nas cores marrom-escuro, marrom-claro e bege, formando um
padrão. Eu me lembro de ter achado minha mãe lindíssima. Andei ao lado dela
segurando sua mão e olhando para seu rosto.
De certa forma, acho que eu soube que a partir daquele dia não estaria mais
com ela o tempo todo. Estava atravessando um portal para um mundo diferente, e
minha vida nunca mais seria a mesma. Para mim, ainda hoje, uma das coisas
mais difíceis de se aceitar na vida são as despedidas.
Ninguém ia parar em San Diego por acaso. Naquela época, a cidade era
predominantemente branca, muito conservadora e muito segregada. Era um lugar
pacato e provinciano, uma cidade militar. Aqueles que pretendiam ingressar nas
Forças Armadas vinham do país inteiro para morar lá.
A cultura militar entrara em conflito com a cultura das antigas missões de
quando os espanhóis dominaram o México, mas as igrejas construídas pelos
padres acabaram desaparecendo e, no lugar delas, foram construídas fábricas de
aeronaves que nos mandariam para o céu em foguetes. Na época, eu não achava
nada disso interessante; pelo contrário, considerava tudo muito entediante, mas,
em retrospecto, foi bom. Para mim, estar em San Diego foi como um longo
período de gestação para que eu me tornasse quem estava destinado a ser.
Meu pai decidira ir para San Diego durante a Grande Migração, quando
pessoas negras se mudaram para o norte e, depois, para o outro lado do país. A
migração começou em Baltimore e seguiu para o meio-oeste, para cidades como
Chicago e Detroit. A última onda da migração foi a da população negra do Texas e
da Louisiana, que seguiu para o oeste e se estabeleceu na Califórnia. Meu pai
tinha catorze irmãos e irmãs e, desses catorze, pelo menos uns dez se mudaram
para São Francisco, Los Angeles ou San Diego. Ele trabalhava na McDonnell
Douglas fabricando aviões, o que significava que ele também fazia parte da
máquina de guerra.
Todas as pessoas negras em nosso bairro eram do sul e tinham, portanto,
como herança, uma mentalidade que remetia à escravização e que era baseada no
medo. Quando se fala em estereótipos sobre pessoas negras que não sabem nadar
ou têm medo de cachorros, é porque por muitas gerações elas temiam ter que
nadar para tentar fugir, ou porque tinham medo de ser perseguidas por cachorros.
Medos como esses são epigenéticos, têm raízes profundas no subconsciente e
criam um paradigma interno de regras que por vezes esquecemos que podem ser
quebradas.
A opressão sistêmica cria muros que podem parecer impossíveis de transpor,
mas o mesmo acontece com a percepção herdada de que se é uma vítima. As
pessoas se apegam a essa mentalidade com tanto afinco, que isso se torna uma
parte importante de suas identidades. Ninguém consegue tirar isso delas, é algo
profundo demais para ser arrancado e analisado de perto.
Meu pai também era assim. Por mais carismático que fosse, no fundo ele era
fraco, sentia medo e acreditava ser impossível transcender as restrições do que
enxergava como realidade. Ele estava preso demais ao próprio medo de ser quem
realmente era e por isso não conseguia permitir que eu fosse quem era. Talvez eu
tenha feito com que ele olhasse para partes de si mesmo que eram consideradas
femininas, que desafiavam certos limites. Eu conseguia me ver em meu pai e na
família dele, no modo como riam, dançavam e se divertiam, mas isso não era
recíproco; eles não se viam em mim.
De meu pai, herdei a presença de palco. A verdade era que ele gostava da
atenção das mulheres. Mesmo em situações ensaiadas, o foco era sempre
mulheres, nunca eu. Era como se ele não soubesse ao certo como lidar comigo.
Ele me levava para Tijuana, que ficava a apenas dezenove quilômetros de onde
morávamos, mas parecia ser um mundo completamente diferente. Lá eu cortava
o cabelo por 50 centavos, e depois íamos tomar refrigerante de laranja como
recompensa. Também íamos até o Nati’s para comer tacos de frango ou de feijão,
arroz e chouriço. Era tão delicioso que fico com água na boca só de lembrar. Mas
sempre me senti distante de meu pai. Fisicamente, eu era uma réplica dele — um
espelho que ele não suportava encarar por muito tempo.
Outra lembrança da porta da garagem me vem à mente, uma de não muito tempo
depois do incidente com a tinta vermelha, mas nessa ocasião recordo de vê-la
aberta. Minha mãe estava brava com meu pai, como sempre. Renetta, Renae, Rozy
e eu estávamos do outro lado da rua, vendo uma briga que acontecia em frente à
garagem.
Mamãe tinha jogado gasolina no carro todo e estava perto da traseira, do lado
do passageiro, segurando uma caixa de fósforos.
— Vou colocar fogo nessa merda, seu filho da puta — dizia ela. — Vou tacar
fogo nessa merda.
Ele estava do outro lado do conversível, implorando para que ela se acalmasse.
— Toni, por favor. Por favor, Toni…
Várias pessoas da vizinhança se aglomeraram ao redor, assistindo à cena.
Mamãe tinha uma plateia atenta e estava disposta a incendiar a casa inteira em
sua fúria.
Quando revisito essa cena em minha memória, é como se eu fosse um
cinegrafista e estivesse filmando a mim mesmo. Depois, a imagem corta para a
expressão de choque de minhas irmãs. Há uma tomada de câmera em movimento
e, por fim, uma tomada feita do alto. Daria um filme muito bom. Anos depois,
entendi que naquele momento eu dissociei. Era muito novo para lidar com o que
estava acontecendo, teria sido devastador para mim. Então, simplesmente deixei
meu corpo.
No fim das contas, a irmã Harris veio do fim da rua e convenceu minha mãe a
largar os fósforos, os caminhões dos bombeiros foram embora e nada mais
aconteceu. Não lembro se meu pai entrou em casa ou foi para a casa de Betty, mas
estávamos acostumados a ver mamãe fazer coisas como essa.
Pouco tempo depois, ele se mudou para um pequeno bangalô na rodovia 94.
Não me recordo de ter me despedido dele, mas me lembro de visitá-lo na nova
casa. Eu não sabia que casas tão pequenas existiam; embora eu fosse criança,
ainda parecia ser muito minúscula. Era difícil até mesmo dar a volta nos móveis
na sala de estar.
Nos dias em que ele nos buscaria para passarmos um tempo juntos, eu me
sentava na varanda para esperá-lo, mas frequentemente ele não aparecia. Nosso
pai só pensava em si mesmo. Eu sabia que não éramos uma prioridade para ele.
Sempre havia sido assim. Era muito evidente para mim, pela forma como se
comportava, que ele estava determinado a não mudar seu modo de viver só
porque tinha uma esposa e filhos.
Minha mãe adorava todas as apresentações que eu fazia para ela. Até hoje,
quando subo no palco, repito um mantra mentalmente antes que a gravação
comece ou que as cortinas se abram: É só a sala de mamãe. Não tem por que ficar
nervoso. Ela vai amar tudo que você fizer. O incentivo dela foi o que me inspirou a
ser artista; eu sabia que ela estava torcendo por mim. E, quando me lembro dela,
toda e qualquer ansiedade que eu esteja sentindo simplesmente evapora; basta
que eu imagine que o público é minha mãe torcendo por mim.
Quando estou no camarim sozinho, quase sempre sinto uma vontade
repentina de estar em casa com minha mãe. O portal pode ser o espelho, ou talvez
a tela de uma TV desligada. Assim que atravesso o portal, me vejo na Hal Street
outra vez — e me despeço. Aceito que a vida sempre vai ser assim. Que sempre
vou estar arrumando minhas coisas em um camarim, me afastando da segurança
do lugar que chamo de lar. Quando era jovem, aprendi que nada é permanente.
Sei que meu lar é este momento, neste corpo. Nós temos lugares para chamar
de casa por toda parte. Por isso deixo minhas malas sempre prontas, para que eu
tenha recursos para levar a mágica aonde quer que eu vá. Solto a mão de minha
mãe. Vou para a escola. Vou para o trabalho. Subo ao palco. Saio de casa uma vez,
duas, três, depois volto. Fico sentado naquela varanda esperando por meu pai,
mesmo sabendo que ele nunca aparecerá. Então me despeço dele, uma vez, duas,
três. Digo adeus.
Como ele pôde ser tão cruel a ponto de me deixar esperando naquela varanda?
Jamais deixaria meu filho esperando por mim daquele jeito, seria muito insensível.
Mas estou projetando nele a consciência que tenho hoje. Sei que não é certo, mas
ele não sabia. Meu pai jamais levaria isso em consideração porque os olhos dele
estavam fechados. Ao contrário de minha mãe, que me enxergava, meu pai não
conseguia fazer isso. Nosso inimigo número 1 é a falta de consciência. Agora mais
velho, entendo a sabedoria que sempre esteve a minha espera, tão simples e
óbvia, mas tão difícil de aprender…
Azar o dele.
Minha mãe estava arrasada. Seu único propósito de vida era ser casada e
pertencer ao marido, ainda que o amor por ele tivesse acabado. Quando o marido
se foi, ela se sentiu abandonada. Sem meu pai, a identidade de minha mãe
desapareceu e ela teve que se reencontrar. Quando era criança, na escola
paroquial, queria ser freira — imagino que ela gostasse mais da ordem e da
hierarquia do que do dogma em si —, mas, em vez disso, acabou indo para a
escola de secretariado, onde aprendeu a digitar 65 palavras por minuto. Assim,
depois de alguns anos dentro do quarto sofrendo pelo fim do casamento, decidiu
voltar a trabalhar.
Sei que, em certa medida, ela se inspirava nas mesmas coisas que eu: nos
programas que víamos na TV. Lembro que ela assistia a Jacqueline Onassis
completamente deslumbrada, devia pensar: Essa aí é dura na queda. Jacqueline
havia superado uma das piores coisas imagináveis — ficar com o cérebro do
próprio marido nas mãos — e dado a volta por cima ao se casar com um
milionário e continuar aproveitando a vida. Talvez Jackie O fosse a mulher mais
famosa do mundo naquela época. Minha mãe tinha as mesmas proporções que
ela, parecia uma modelo, e sabia que também poderia ter aquele estilo. Então
decidiu voltar para o mundo e retomar sua vida, assim como Jackie fizera. Adeus,
túnica de poliéster. Olá, terninhos sob medida — que ela mesma costurava em
gabardine cinza.
Minha irmã Renetta, já adolescente, trabalhava na organização Paternidade
Planejada como assistente de enfermagem. Ela entrava no procedimento junto às
mulheres para que elas pudessem ter alguém ao lado e se sentirem seguras. Nossa
mãe decidiu arranjar um emprego lá também, mas na área administrativa. Aquilo
era parte de um movimento rumo ao progressismo que representava valores que
ela levava a sério e, talvez mais importante ainda, fazia com que se sentisse como
Mary Tyler Moore, uma mulher moderna que estava fazendo aquilo por si mesma.
Quando minha mãe chegava do trabalho, víamos The Flip Wilson Show juntos.
A personagem principal era uma mulher chamada Geraldine, que era
simplesmente Flip usando cílios postiços, batom e peruca. Flip interpretava
Geraldine como comissária de bordo ou atendente, e o ator convidado, alguém
tipo Dean Martin, sempre se apaixonava por ela. Quando os dois tentavam
alguma coisa, Geraldine gritava:
— Não me toque! Não coloque as mãos em mim!
Nós rolávamos de rir.
Eu sabia, já naquela época, que aquele era um evento cultural importante para
a comunidade negra: ver um comediante negro apresentar um programa de
variedades popular no horário nobre. Minha mãe sempre se sentiu excluída da
cultura negra por ter a pele clara, mas ali, enquanto ria, ela se sentia livre. Para
mim, no entanto, o mais importante era que aquela personagem era popular
mesmo sendo transgressora — um homem vestido de mulher. Flip estava
quebrando certas regras sociais e, ainda assim, triunfando, o que significava que
isso era possível.
As coisas tinham mudado e havia espaço para uma personagem como
Geraldine. Era a revolução sexual em meio ao movimento dos direitos civis. As
pessoas estavam abrindo as asas e experimentando coisas novas como nunca
antes. Ali estava uma pessoa desafiando os limites de gênero na televisão. Milton
Berle e Jonathan Winters já haviam feito drag também, mas Geraldine era uma
mulher negra — e nos era familiar. Ela tinha a piscadela que conhecíamos,
gostava de se divertir. Tinha senso de humor, mas só até certo ponto, depois
ficava irritada e indignada. Vestida de garçonete, ela anunciava:
— Ah, e só para constar, eu não estou no cardápio!
Ela não era linda, mas nos fazia acreditar que era.
Isso não significa que passei a entender o que era drag, mas aquilo certamente
expandiu minha visão de mundo — a ideia de que homens podiam se comportar
como mulheres em certas situações, bem como ver que isso podia fazer as
pessoas rirem, inclusive minha mãe. Não muito tempo depois, Renetta recortou
uma matéria de jornal sobre Christine Jorgensen, a primeira mulher trans que
ficou conhecida nos Estados Unidos por ter feito uma cirurgia de redesignação
sexual. Não entendi por que minha irmã me deu aquilo, mas tinha minhas
suspeitas. Tive a impressão de que ela estava tentando ajudar. As pessoas sempre
me confundiam com uma garota, porque eu tinha um cabelo afro volumoso e
traços delicados. Além disso, assim como Jackie Onassis e minha mãe, eu também
estava começando a desenvolver uma estrutura corporal de modelo.
Muitos de nós têm uma garota vivendo em segredo dentro de si. A minha
despertou quando eu tinha 12 anos e Cleopatra Jones foi lançado, em meio à
explosão de filmes de blaxploitation. Vi o filme na tela do cinema drive-in que
conseguíamos enxergar do jardim de nossa casa. Lá estava ela: destemida, forte,
intensa. Ela usava calça boca de sino e um casaco de pele, tinha um afro
volumoso e não pensava duas vezes antes de usar uma arma. Cleopatra Jones não
obedecia às regras, não acatava ordens. Eu amava tanto a personagem que escrevi
uma carta para a Warner Bros. perguntando quando lançariam o próximo filme.
Só depois de adulto é que entendi: era assim que eu me via. Ou melhor,
Cleopatra Jones era quem eu queria ser. Quando você entende quem é sua garota
secreta, ela pode ser de grande ajuda. Você pode conhecer melhor essa
personalidade que vive dentro de você, entendê-la a fundo, descobrir suas
características e quando e como precisa ser revelada ao mundo. No entanto, por
mais poderosa que sua garota secreta possa ser, ela é igualmente perigosa quando
você se recusa a admitir sua existência — e a entender do que ela precisa.
Também é importante descobrir quem sua garota secreta não é e o que ela não
quer. Mais ou menos na mesma época, minha mãe e uma amiga dela levaram
todos nós para assistir a uma sessão dupla de filmes: O vale das bonecas e a
sequência não oficial, De volta ao vale das bonecas, que tinham classificação X —
considerados pornográficos. Em um dos filmes, havia um homem gay
extravagante, que mais tarde revelou ser uma mulher, removendo uma faixa
apertada do peito e exibindo os seios. Em outro momento, o mesmo personagem
coloca o cano de uma arma na boca de uma garota que estava dormindo, e ela
começa a chupá-la como se fosse um pau. Depois ele aperta o gatilho.
Soube intuitivamente que aquele conteúdo era explícito demais para mim. O
humor de Flip Wilson me cativava, mas a sexualidade nua e crua daquelas cenas
foi traumática. O humor ia direto ao ponto, mas o sexo era confuso. Eu tinha pais
em quem não podia confiar e que estavam tão presos no próprio psicodrama
vampiresco que não levava em conta meu bem-estar. Em minha família, eu me
sentia como um eunuco. Não havia ninguém para dizer: “O sexo funciona assim”.
Nesse aspecto, eu teria que me virar sozinho, e nada do que via nas telas estava
ajudando.
Parecia haver diferentes maneiras de ser uma garota — mais, talvez, do que de
ser um garoto. Minha irmã Renetta se portava de forma muito graciosa, como se
ensinava na Barbizon Modeling School: uma anfitriã gentil e amável, fazendo com
que todos ficassem à vontade, sem importar o quanto ela tivesse que se desdobrar
para isso. Renae era muito diferente, muito combativa em relação a minha mãe.
Havia também as mulheres que eu via na televisão, como a elegante e sofisticada
Diana Ross, ou Cher, que minhas irmãs me contaram que nunca usava vestidos, o
que eu achava o máximo. E havia minha mãe, que era durona e destemida, mas
movida por um rancor brutal.
Algum tempo depois da separação de meus pais, a irmã de meu pai, Bea, foi
até nossa casa. Minha mãe tinha acabado de chegar e estava pendurando o
casaco quando ela bateu à porta. Bea queria conversar sobre algo relacionado à
separação deles, mas minha mãe não quis papo.
— O que você pensa que está fazendo na minha casa, porra?! — gritou mamãe.
— Quem você pensa que é para vir até a minha casa, caralho? Falar sobre meus
filhos? Suma daqui, sua vagabunda!
Usando o cabide como se fosse uma faca, ela atacou Bea, cortando o nariz
dela. Foi sangue para toda parte. Bea teve que levar dezoito pontos, mas não
prestou queixa na polícia. Se a intenção de minha mãe era ensinar a mulher a não
se meter com ela, deu certo. Mas a verdade é que não sei qual era a intenção dela:
se realmente quis machucar Bea ou se simplesmente perdeu o controle. Bea
representava tudo que ela odiava em meu pai. As irmãs dele eram como um
bando de bruxas e tinham encorajado o adultério da parte dele porque nunca
gostaram de minha mãe. Quando Bea apareceu na porta para se intrometer,
mamãe perdeu sua última gota de paciência.
Minha mãe ficou devastada com o divórcio, mas nós, os filhos, não reagimos
muito melhor. Tudo virou de cabeça para baixo. Renae, que nossa mãe tinha
mandado para morar com nossa avó, ficou do lado de nosso pai. Em seu
aniversário de 16 anos, Renetta e Renae foram jantar com ele, que levou Betty a
tiracolo. Quando voltaram para casa e nossa mãe descobriu que Betty havia ido
junto, ficou furiosa.
— Peguem as tralhas de vocês e sumam da porra da minha casa — disse ela.
Depois de expulsá-las de casa, minha mãe deu parte delas à polícia como se
tivessem fugido, embora elas não tenham deixado de ir à escola ou de trabalhar.
Acabaram indo morar com uma psicóloga da escola onde estudavam, uma
mulher chamada Alfrieda. Ela era de pele retinta e tinha um cabelo afro bem
curto. Alfrieda era muito bonita e usava roupas estilosas. Eu me lembro de um
vestido de linho vermelho-tomate, verde e azul-cobalto que ela usou certa vez.
Alfrieda era muito moderna e muito compreensiva, o que enfurecia minha mãe.
— Aquela filha da puta esnobe — dizia ela com amargura.
Minha mãe sempre colocou a educação em primeiro lugar. Quando eu era
pequeno, falei que ela devia ter me chamado de RuPaul “Estudos” Charles. Ela
morreu de rir da piada. Era a coisa mais importante do mundo para ela como
nome do meio do próprio filho.
No entanto, infelizmente, eu odiava a escola e não gostava de fazer o dever de
casa, só queria brincar pela vizinhança com meu amigo Gary. Ele tinha um irmão
mais velho que chamávamos de Joaninha. Certa noite, Gary roubou um baseado
que estava no bolso de Joaninha e levamos para um canteiro de obras a um
quarteirão de casa. Nós nos sentamos sobre um transformador de energia e
acendemos o baseado, tossindo por causa da fumaça. Depois de alguns minutos,
comecei a gargalhar. E de repente estávamos rolando de rir no chão, nos
abraçando, e, naquele momento, tudo mudou.
Senti uma liberdade que nunca tinha vivenciado antes. Todos os limites
deixaram de existir. A alegria que sempre suspeitei estar além do mundo que
percebíamos veio à tona. A ilusão de que eu conhecia o universo entrou em foco
pela primeira vez. Foi a confirmação de algo que, de certa forma, eu sempre soube:
a vida não era nada além de uma grande piada. Qualquer pessoa que a levasse a
sério não estava entendendo nada.
Gary e eu começamos a usar drogas juntos sempre que podíamos. Outras
vezes, ficávamos de butuca em um supermercado do bairro chamado Big Bear, à
espera do carregamento de bebidas. Aguardávamos pelo momento em que o
entregador deixava o caminhão aberto e entrava no estabelecimento para levar as
bebidas, então pulávamos no veículo, pegávamos uma garrafa de Bourbon cada
um e saíamos correndo para o cânion, nos sentávamos em uma casa na árvore e
bebíamos. Então teve uma noite em que bebi demais e voltei para casa aos
tropeços, indo direto para o banheiro vomitar.
Minha mãe entendeu na hora o que estava acontecendo.
— Está vendo só, seu filho da puta? — É o que eu me lembro de ouvi-la dizer
enquanto eu abraçava a porcelana fria do vaso sanitário. — Bem feito!
Houve outra ocasião em que fumei, no cânion, um baseado que tinha um
pouco de pó de anjo — que era muito fácil de ser encontrado antigamente. Fui
meio cambaleante para casa, mas não consegui passar pelo muro de contenção
do quintal para entrar; em vez disso, comecei a dar cambalhotas, me apoiando na
parede e rolando até a calçada. Minha mãe apareceu e me encarou, desconfiada.
— O que pensa que está fazendo? — perguntou ela.
— Só estou feliz — respondi.
Ela não insistiu, mas com certeza sabia que havia algo por trás daquilo.
Acho que todos estávamos tentando escapar da realidade à própria maneira.
Renae acabou indo morar com meu pai em Cerritos por um tempo; pouco depois,
entrou para a Força Aérea. Renetta se apaixonou por um rapaz chamado Gerald,
que conheceu na escola.
Eu gostava de Gerald. Naquela época, sentia que ele estava abrindo meus olhos
para as possibilidades do que eu ainda poderia fazer. Ele era muito ambicioso e
queria se tornar um empreendedor, não um funcionário qualquer. Era leonino,
inteligente e, como eu, sonhava com uma vida melhor. Aos domingos, nossa mãe,
Renetta, Rozy e eu andávamos de carro com ele, admirando as casas das pessoas
ricas de La Jolla. Gerald também queria morar em uma casa elegante um dia e
dirigir um carro chique.
— Olhe aquela ali! — dizia Renetta.
— Quero morar lá.
— Não… Essa aqui é mais bonita ainda.
Somente pessoas muito ricas moravam lá, como Dr. Seuss, Jonas Salk e Efrem
Zimbalist Jr. Passávamos de carro na frente da casa de todos eles e depois íamos
até Del Mar para ver a casa de Desi Arnaz. Os imóveis eram bonitos, mas o que
importava mesmo para mim era o ritual de fazermos isso juntos, semeando o
futuro que eu queria construir. Sentia que Gerald, assim como eu, entendia por
que fazer aquilo era tão crucial. Ele se atrevia a ter ambição e eu também.
Gerald e Renetta se casaram quando ele tinha 17 anos e ela, 18. O casamento
aconteceu na prefeitura e a festa foi na casa dos pais dele. Nas fotografias, os dois
estão com um penteado afro e ela usa um vestido branco e um colar de pérolas
em torno da cintura alta. Minha mãe telefonou para Renae logo depois do
casamento.
— Só queria avisar que sua irmã se casou hoje — disse ela, como se não fosse
nada de mais. — E estamos na casa dos Covington comendo bolo.
Ela só estava usando Renae como desculpa para dar um recado a meu pai,
provavelmente na tentativa de emasculá-lo: Sua filha se casou com um rapaz e
você nem sequer foi homem o suficiente para estar presente.
Gerald estava estudando na Universidade da Califórnia, e os recém-casados se
mudaram para um alojamento estudantil em La Jolla. Na parede do apartamento
onde moravam havia uma foto de Sylvester, cantor de disco, deitado em uma
chaise longue, usando cetim. Era luxuoso, decadente e feminino.
Apontei para a foto.
— Quem é? — perguntei à Renetta um dia em que a visitei.
— Ah, é Sylvester, um transformista de São Francisco que faz shows —
respondeu ela, distraída.
Era uma completa anarquia fazer o que ele estava fazendo. Era muito rock ‘n’
roll. E eu sabia, mesmo sendo adolescente, que aquilo era importante.
Fui morar com Renetta e Gerald do outro lado da cidade, em Tierra Santa, e me
matriculei em outra escola. Lá eu ia mais às aulas, mas, na maioria das vezes, só
ficava de bobeira e fumava maconha. Fiz amizade com uma garota hippie
chamada Belinda. Ela era branca e tinha cabelo castanho-claro, e nós matávamos
aula juntos. Certo dia, estávamos andando por um beco na cidade e um de nós
notou que havia restos de maconha espalhados pelo chão, evidentemente o que
restara de uma apreensão. Passamos a hora seguinte recolhendo os pedacinhos e
depois bolamos um baseado com o que conseguimos juntar.
— Sabia que somos todos bruxos? — perguntou ela, muito séria. Estávamos
sentados no chão, fumando. — Nosso feitiço mais potente é o riso.
Aquela foi uma lição muito mais valiosa do que qualquer coisa que eu poderia
ter aprendido na escola.
Gerald também foi um ótimo professor para mim, mas não por meio das
palavras. Eu aprendia ao observá-lo, ao admirar o modo como a ambição o
atravessava e o tornava motivado e destemido, sem querer se contentar com o
pouco que a vida oferecia. Ele ingressara na Universidade da Califórnia em San
Diego com uma bolsa de estudos e trabalhava como promotor de casas noturnas,
além de vender carros. Ganhava uma boa grana com isso, ou ao menos era o que
parecia. Pouco tempo depois de eu ter ido morar com eles, nós nos mudamos
para uma casa grande em Mount Helix. Era uma propriedade bonita e espaçosa
com vista para a cidade e garagem para três carros. Gerald sempre conseguia esse
tipo de negócio na base da autoconfiança e da cara de pau. Eu o conhecia bem o
suficiente para saber quando ele estava blefando, mas as pessoas acreditavam. Por
mais que existissem muitos sistemas em vigor para sufocar as oportunidades para
pessoas negras, havia também uma energia de mudança no ar. Estava na moda
fazer negócios com negros, era um sinal de que você era liberal e progressista a
ponto de não ter um problema com raça. Gerald se aproveitou dessa brecha e
transformou sua autoconfiança em realidade. Sabia que não estava apenas
vendendo carros — estava vendendo a si mesmo.
Depois que nos mudamos para a casa nova, troquei de escola novamente. Era
a terceira no ano e, como o esperado, acabei reprovando. Pensar em repetir o ano
inteiro me deixava muito deprimido.
Renetta ainda trabalhava na Paternidade Planejada, visitando clínicas móveis e
conhecendo pacientes. Ela foi atingida pela triste realidade de que havia muitos
bebês que ninguém queria, então ela e Gerald decidiram adotar um garotinho
chamado Scott, que chegou com 2 meses.
Ajudei a cuidar de Scott por um tempo. Ele parecia precisar de atenção o
tempo todo. Assim que aprendeu a andar, comecei a levá-lo para o shopping, e ele
saía andando sem olhar para trás, sem dar a mínima se estava sozinho ou não.
Estava sempre em busca de algo que eu temia que ele nunca fosse encontrar. Eu o
via como meu bebê; era como se ele tivesse vindo do espaço sideral, assim como
eu. E, igual a mim, aparentemente, ele era diferente. Veio ao mundo sozinho, sem
os vínculos convencionais que amarram as pessoas à normalidade.
Naquele ano, quando a primavera chegou, meu pai e Betty levaram minha irmã
Rozy e eu em uma viagem a Sequoia para vermos as árvores. Betty tinha um Ford
Gran Torino verde novinho em folha que nós abarrotamos com mochilas e
lanches antes de seguir viagem na direção norte pela I-5 de Cerritos. No caminho,
paramos no Busch Gardens, que tinha um parque em Van Nuys, para andar de
bonde e ver o espetáculo de pássaros. Detestei a experiência, como sempre
detestara essas viagens quando era criança, porque sentia que estava tudo errado,
que não nos encaixávamos como uma família.
Com meu pai, sempre existiu uma falsa sinceridade. Na-da era verdadeiro. Eu
sabia que deveríamos estar nos divertindo. Ao olhar ao redor, via as outras
famílias rindo, queimadas de sol; era nítido que a alegria fazia parte do programa.
Para nós, aquela não passava de uma oportunidade para que nosso pai ficasse
bêbado e agisse como se eu ainda fosse uma criança, não um adolescente
impaciente que já bebia e se drogava sempre que podia. Lá estávamos nós,
compensando todas as viagens em família que não haviam acontecido nos anos
em que ele estivera ausente. Isso era sufocante porque eu não era a pessoa que ele
esperava que eu fosse, mas, para poupar o ego dele, tinha que fingir ser e entrar na
onda.
Nós nunca falamos sobre a ruptura traumática de nossa família ou sobre o fato
de que ele nunca pagou pensão ou agiu como um pai. Se o assunto vinha à tona,
ele saía pela tangente, dizendo que minha mãe era difícil de lidar. Mas tudo era
sempre muito vago e havia muitas coisas não ditas.
A caminho de Tahoe, estávamos na rodovia quando, do nada, um veado pulou
no meio da estrada. O animal parou e se virou para nos encarar, os olhos
refletindo os faróis do carro. Eu estava sentado no banco da frente, perto o
bastante para enxergar a serenidade nos olhos dele. Meu pai pisou no freio e
freamos com um tranco.
Meu coração batia forte. Ficamos todos em silêncio, recuperando o fôlego
enquanto o veado fugia. Foi um milagre não termos batido. Nenhum de nós tinha
previsto aquilo, muito menos meu pai.
Aquele momento, aquela onda de adrenalina, foi a única coisa entre mim e
meu pai que parecia tangível o suficiente para ser sentida. Foi a única coisa na
viagem toda que pareceu real.
O que quero dizer com “real”? Que há momentos que nos tiram do transe,
quebram a sensação de estarmos em um sonho consciente, vivendo no mundo
que criamos. Todos nascem despertos, atentos e conscientes e, à medida que
envelhecemos, voltamos à dormência. Mas momentos como aquele, em que
quase sofremos um acidente — a sensação de ter escapado de uma tragédia, de
contornar um destino que parecia óbvio… Não há nada mais real do que isso.
Coisas assim nos despertam imediatamente, fazem com que abandonemos o
mundo dos sonhos e nos levam para uma realidade vivaz e difícil, porque o
mundo é assim, mesmo em toda a sua magia. E então sentimos um gosto amargo
na boca e sabemos que tudo é real e que somos reais também.
Essa era a diferença entre meu pai e Gerald: meu pai não sabia diferenciar o
que nele era falso e o que era verdadeiro, como se usasse uma máscara impossível
de ser removida. Gerald sabia que estava jogando um jogo, a consciência dele
sobre isso era algo real. Era exatamente o que eu buscava: a sensação de romper a
barreira, de conquistar algo mais consistente do que o teatro para o qual
estávamos sendo convocados a participar. Eu odiava aqueles papéis, tão chatos e
previsíveis. Eu, apenas uma bichinha. A escola, a coisa mais importante do
mundo. As famílias fingindo que eram unidas apesar do comportamento
deplorável de alguns familiares. Por que levávamos a vida tão a sério, afinal,
quando grande parte dela era um enorme fingimento? Eu sentia que estava na
mesa de cirurgia e que a anestesia não estava funcionando.
Tudo o que queria era sentir algo real, algo além de todas aquelas prioridades
equivocadas que eu tinha certeza de que não importavam. A sensação que tive no
carro, olhando para aquele veado depois de ter escapado de um acidente por um
triz, aquilo era real.
A filosofia de Gerald quando o assunto era carros era muito simples: comprar por
pouco, vender por muito. Fazer melhorias estéticas, não consertos mecânicos. Ele
era o intermediário que conseguia entregar carros em perfeitas condições: Rolls-
Royces, Cadillacs, Jaguares, Corvettes e, acima de tudo, Mercedes. Alguns meses
depois de nos mudarmos para Atlanta, em meu aniversário de 16 anos, tirei
minha carteira de motorista no DMV em um Porsche Targa de câmbio manual.
A habilitação passou a ser meu bem mais precioso. Simbolizava liberdade,
idade adulta e a possibilidade de ir aos lugares que sempre havia desejado,
sozinho e sem a permissão de ninguém. Não importava que eu dirigisse desde os
11 anos e que tivesse sido péssimo fazer o teste de motorista com um câmbio
manual, pois isso entregara que eu já sabia dirigir. Passei com facilidade.
Gerald entrou em contato com uma corretora de imóveis chamada Royale,
uma senhora branca que nos conduziu por toda Buckhead para ver casas. Deve
ter adorado a forma articulada como ele se expressava, sem falar na Mercedes que
ele dirigia.
— Há uma escola de artes cênicas excelente aqui perto — comentou ela. — Na
verdade, estudei lá. É a Northside School.
— Ru quer ser artista — contou Gerald.
— Sim, é verdade — concordei.
Eu escrevia músicas desde os 9 anos e fazia aulas de teatro em minha escola
em San Diego, embora ficar chapado fosse minha principal atividade
extracurricular.
Naquele momento, decidi estudar em Northside. A casa que Gerald encontrou
não ficava em Buckhead, e sim em Greentree Trail, a cerca de 35 quilômetros de
Northside, mas, se era lá que nasciam as estrelas, era para lá que eu iria.
O chefe do departamento de artes cênicas da North-side era Billy G. Densmore,
uma bicha velha sulista que lembrava Nathan Lane. Ele era sarcástico e
presunçoso, mas muitos alunos o adoravam. Fiquei surpreso por ele não ter ficado
impressionado com meu talento quando entrei para o coral logo em meus
primeiros meses na Northside, mas eu era mais irreverente e ele, mais
tradicionalista. No trimestre seguinte, em janeiro, comecei a ter aulas com um
professor de teatro chamado Bill Panell, que também tinha se formado em
Northside. Ele me contou que havia ido para Los Angeles dez anos antes com o
objetivo de ser ator, mas que não dera certo. Então lá estava ele, de volta a
Atlanta, dando aulas de teatro em sua alma mater. Ele se desentendeu com
Densmore e lecionou lá por apenas um ano, mas o impacto que teve em mim foi
inestimável.
Bill queria fazer uma peça de Tennessee Williams chamada Camino Real. Eu
conhecia Williams de filmes como Gato em teto de zinco quente e De repente, no
último verão. Também já tinha visto algumas entrevistas dele com Dick Cavett,
que recebia todos os intelectuais da época em seu programa no canal PBS. A peça
foi uma zona, mas ainda assim era Tennessee Williams, um sonho gótico e
surrealista.
— Essa não é a melhor obra de Tennessee Williams — dizia Bill, sem rodeios.
— O texto é extremamente falho, mas é uma ótima peça para colocarmos a mão
na massa.
Interpretei uma drag queen chamada Queenie.
Estar montado não me preocupou muito. O que estava me deixando ansioso
era memorizar minhas falas e o fato de que eu estaria no palco, diante da plateia.
Estar vestido com roupas femininas era só um detalhe. Era como se fosse mais
uma das apresentações que eu fazia para minha mãe na sala: estava fantasiado,
desempenhando um papel. Para mim, aquilo não tinha nenhuma dimensão
política ou sociológica, mas para Densmore a insistência de Bill Panell em
apresentar uma peça tão polêmica foi a gota d’água.
Nas aulas de teatro, fiz amizade com uma garota chamada Lynn Crank, com
quem eu ensaiava cenas da peça Hello Out There!, de William Saroyan. Ficamos
próximos e, por intermédio dela, me tornei amigo de seus irmãos, Charlie e Paul
Crank. Eles moravam em um apartamento em Buckhead não muito longe da
escola, e depois da aula de teatro íamos para a casa deles ficar chapados e ouvir
Beatles e Fleetwood Mac. Às vezes eu dormia por lá mesmo, no condomínio Cross
Creek, em vez de voltar para casa.
A matriarca da família Crank, Metta Crank, se divorciara do pai deles, dr. Paul
Crank, alguns anos antes. Depois ele se casara com Barbara, enfermeira dele,
coisa que Metta nunca engoliu. Era um cenário clássico de Alice não mora mais
aqui: uma mulher dos anos 1970 que tinha sido criada para ser dona de casa e
acabou sozinha com os filhos, emocionalmente arrasada com o fim do casamento
e sem outro propósito ou outras habilidades. Na minha memória, ela se parece
com Ellen Burstyn e está sempre tomando grandes taças de vinho Blue Nun. O
apartamento estava sempre uma bagunça e tinha cheiro do xixi dos gatos, que
viviam miando e escalando móveis por todos os lados. Eu e os irmãos Crank
ficávamos chapados e, quando já estávamos para lá de Bagdá, tentávamos
consolar Metta. Depois limpávamos os cinzeiros e levávamos as garrafas de vinho
vazias para a lixeira na calçada. Eu nunca tinha visto uma pessoa bêbada daquele
jeito, no nível de Judy Garland, beirando a crueldade.
Metta estava sempre enfurecida porque Paul demorava para mandar dinheiro
ou estava chafurdando em mágoa por tê-lo perdido para Barbara, aquela
vagabunda. Que canalha ele era!
Em pouco tempo, ela se tornou uma segunda mãe para mim, alguém que
recriava a tensão da casa de minha mãe de forma tão idêntica que era quase um
afago na alma. E ela sabia que podia contar comigo para ajudá-la, fosse para
buscar uma garrafa de vinho ou comprar um pacote de Merits.
Todos os irmãos Crank eram problemáticos, o que eu achava o máximo. Lynn
havia acabado de sair da prisão, onde foi parar depois de ter feito alguma coisa
ilegal em Milledge-ville — ela não compareceu ao próprio julgamento ou fez algo
idiota acompanhada do namorado, que era mais velho e morava em Detroit. Seja
lá o que tivesse acontecido, ela teve problemas. Paul estava no mesmo ano escolar
que eu, e Charlie era um ano mais novo. Charlie era o mais bonito dos irmãos;
tinha olhos penetrantes, um cabelo bagunçado e maxilar marcado. Além disso,
havia algo de atraente na mágoa que ele nitidamente carregava, algo que para
mim parecia muito trágico. Era evidente que, como a mãe, os irmãos tinham
ficado traumatizados com o divórcio, o que talvez explicasse o fato de eu me
sentir tão à vontade ali: eles exibiam abertamente os sinais de trauma que eu
jamais me permiti manifestar. Era possível enxergar suas feridas de uma forma
que minha mãe nos ensinou a esconder.
Também me aproximei de um garoto da escola, Charlie Meyers, que morava
nas redondezas e cujo pai pregava na igreja, então naturalmente ele era o típico
rapaz rebelde. Charlie pensava que era James Dean e até se parecia um pouco
com ele: camiseta branca, calça jeans e um cigarro entre os lábios. Parecia ser
uma alma tão incompreendida e infeliz que é óbvio que me apaixonei por ele.
Todos nós andávamos juntos — Charlie Meyers, os irmãos Crank e alguns dos
outros alunos problemáticos da aula de teatro. Nós fumávamos maconha ouvindo
música e tocando Steely Dan depois da escola. Teve uma vez que Charlie foi com
o Beetle da Volkswagen dele até onde eu morava, em Greentree Trail; ele ia passar
a noite lá. Enchemos a cara e depois começamos a brincar com um saco de
farinha de trigo, jogando o pó por todo o quintal, como se fosse neve. De manhã o
carro dele não queria ligar e descobrimos que havia farinha no motor.
Eu estava perdidamente apaixonado por Charlie, mas ele gostava de uma
garota loira e sem graça chamada Melanie. Um dia, vi o carro dele estacionado na
rua em frente à escola. Fui até lá para dizer oi, mas quando me aproximei vi que
os vidros estavam embaçados. Ele estava lá dentro dando uns amassos em
Melanie.
Fiquei arrasado. Não só porque jamais ficaríamos juntos, mas porque eu sabia
que nunca viveria aquele tipo de experiência de ensino médio por várias razões
que tinham a ver com quem eu era e com coisas sobre mim que não conseguiria
mudar nem se tentasse.
Lá no fundo, eu sabia que toda aquela narrativa de romance adolescente era
uma grande baboseira baseada em fantasias. Apesar de tudo, ser privado disso era
devastador, porque eu ansiava pela experiência mesmo assim. Eu era jovem e
muito bonito, mas só imaginava como seria ter a liberdade de ir de carro para a
escola e ficar transando com meu namorado no estacionamento o dia todo. Era
exatamente o que um adolescente deveria fazer.
Por mais que eu quisesse estar com garotos como aquele, ao mesmo tempo eu
me resignava a uma vida em que esse tipo de clichê jamais aconteceria. Em vez
disso, minha vida seria mágica, única, completamente diferente. Charlie
continuaria levando garotas para transar no banco de trás do carro, mas eu tinha
sorte, sabia disso. Jamais estaria no banco de trás; isso era fácil demais. Eu fora
escolhido a dedo, como se o universo tivesse apontado para mim e dito: Ei, você aí!
Só precisava ser paciente e esperar que o cosmo mandasse meu bar mitzvá.
Minhas notas continuaram péssimas, é óbvio, e Gerald começou a falar em me
tirar da escola. Um dia, durante a aula de teatro, eu estava choramingando para
Bill sobre o assunto, quando ele me olhou de soslaio e disse:
— RuPaul, não leve a vida tão a sério.
Parei de frequentar a escola pouco tempo depois, mas nunca esqueci o que ele
havia dito. Estava alinhado à epifania que tive na primeira vez que fiquei chapado:
que tudo é uma piada, uma ilusão, um grande show. Ao longo dos anos, as
palavras do sr. Panell se transformariam em um mantra — um talismã que eu
carregaria para sempre.
Quando se é uma pessoa atenta aos detalhes, não é difícil perceber coisas que
passam despercebidas para os outros. Carros, por exemplo, são cheios de
detalhes. A maioria de nós olha para a forma geral da coisa, à procura de sinais
óbvios de dano. Gerald me ensinou, no entanto, a prestar atenção nos cantinhos
da carroceria para saber se o carro já tinha sofrido uma batida. Eu me tornei um
especialista em detalhes que dizem tudo sobre algo ou alguém, dos pequenos
defeitos que, se analisados, podem revelar coisas ocultas das quais ninguém
suspeita.
Gerald ficou amigo de uma mulher chamada Lenore Adams, que era ligada à
sociedade negra de Atlanta e estava ascendendo socialmente. Certos dias, depois
da escola, eu ficava no escritório que ela dividia com o marido, um advogado
bem-sucedido, esperando Gerald me buscar para ir para casa. Não tinha assunto
com Lenore, que era religiosa e meio hipócrita, como muitas mulheres de Atlanta,
mas um dia, quando eu estava esperando por Gerald, ela falou comigo.
— Está vendo aqueles dois rapazes? — perguntou ela, tentando chamar minha
atenção.
Olhei para cima e vi dois homens entrando no escritório. Estavam vestidos em
um estilo que mais tarde eu associaria a Tom of Finland: calça Levi’s, camiseta
preta e colete de couro preto. Os dois tinham bigodes eriçados e olhos gentis. Ela
voltou a falar, dessa vez em tom conspiratório:
— Eles foram presos em uma operação da polícia numa livraria chamada
Underground. — Ela se aproximou ainda mais. — Estavam chupando o pau um
do outro!
— O que eles vieram fazer aqui? — perguntei.
— Meu marido é advogado deles.
Aqueles homens pertenciam a um mundo subversivo, um mundo que eu
associava a sexo, pornografia e transgressão. Naquele momento, descobri que
havia um lugar em Atlanta que era o ponto de encontro das pessoas desse mundo.
Levei quase um ano para ter coragem de ir até lá. Até que peguei emprestado o
carro de Gerald, um Mercury Montego bege de capota marrom, carro de trabalho
que ele recebera da American Express, e fui até o centro da cidade, na esquina da
Cypress com a Fifth Street. Fiquei dando voltas no quarteirão até ver um homem
que parecia estar indo para o mesmo lugar. Ele era negro, tinha cabelo afro e era
muito atraente. Chutei que ele tivesse cerca de 21 anos. Por fim, depois de mais
algumas voltas, estacionei e fui até a Underground. Assim que abri a porta, olhei
para trás e vi o mesmo rapaz atravessando a rua às pressas para entrar comigo.
O lugar era chamado Underground porque realmente parecia ter sido
construído no subsolo ou dentro de uma montanha. Ao entrar, percebi que o odor
fazia jus ao nome também. Senti cheiro de mofo, drogas e couro. Havia luzes
compridas e embutidas verticalmente ao longo de toda a parede do corredor.
Paguei 25 centavos para passar pela catraca e não pediram nenhum documento.
Eu estava nervoso. Quando virei em outro corredor, vi várias portas e diversos
homens. Havia um homem de bigode em cada porta — homens brancos com
bigodes fartos como o dos integrantes do Village People.
Comecei a entrar em pânico, mas não queria passar vergonha. Está tudo bem,
dizia a mim mesmo. Mas não queria que ninguém tocasse em mim. Não queria
sequer que me olhassem. É só para fins de pesquisa. Isso não passa de um
experimento antropológico.
Ao passar pelo corredor dos Village People, vi uma porta aberta. Parei diante
dela e, quando o fiz, o homem que eu tinha visto na rua fez um sinal para que eu
entrasse no cômodo junto com ele. Lá dentro havia um projetor que emitia um
leve zumbido. Fiquei olhando para o aparelho, porque não sabia o que fazer.
— É só colocar umas moedas — explicou o homem, paciente.
Ele colocou duas moedas de 25 centavos na máquina, primeiro uma, depois
outra, talvez percebendo o quanto eu estava nervoso, embora fingisse que não.
Então se aproximou e tocou meu cotovelo.
Nesse momento, dei um pulo e saí da sala o mais rápido possível, passando
pelos corredores e pela catraca até estar do lado de fora, em segurança.
Por mais que estivesse curioso, aquele lugar era o epítome de tudo que eu
aprendera a temer no mundo. Esse mundo alternativo e adulto movido a sexo,
tabu, prazer e transgressão coexistia com o mundo moralista que víamos por aí.
Me dar conta daquela dualidade foi mais do que eu conseguia suportar naquele
momento. Eu me senti preso entre duas dimensões. Eu não me encaixava no
grupo de garotos da igreja com suas libertinagens secretas, não me encaixava na
realidade de Charlie e de seu carro, e naquele momento descobri que mesmo ali,
naquele ambiente plenamente sexual, também não conseguia me encaixar. Se eu
não me encaixava em nada disso, qual era meu lugar no mundo?
Eu havia aprendido com meus pais que a intimidade era perigosa. Que
entregar-se a um homem era arriscado e só podia acabar em tragédia.
Não repetiria os erros de minha mãe. Seria mais esperto e não me deixaria
levar pelo desejo idiota e primitivo de estar nos braços de um garoto no banco de
trás de um carro.
Corri até o carro, abri a porta e a fechei com força. Fiquei sentado em silêncio por
alguns minutos. Havia um cheiro de produtos de limpeza no ar. Respirei fundo. O
couro macio, o painel brilhante…
Aquele carro estava um brinco.
QUATRO
Força
Depois que tirei a carteira de motorista, Gerald me colocou para trabalhar. Ele
reunia jornais do país inteiro à procura de anúncios de carros de luxo que sabia
que poderia reformar para então vender — em Kansas City, D.C., Chicago. Em
seguida, comprava uma passagem só de ida para mim, o que eu achava ótimo, já
que tinha tempo livre de sobra desde que abandonara a escola.
Minha tarefa era dar uma olhada nos carros a fim de ver se estavam em boas
condições, se as peças eram originais, se o hodômetro não havia sido adulterado
para dar a ideia de que o carro tinha menos quilômetros rodados e se não havia
rachaduras no para-brisa que desvalorizariam o automóvel. Caso estivesse tudo
certo, eu pagava o vendedor com um cheque administrativo, pegava o documento
do carro e ia embora.
Eu voltava para Atlanta com os veículos, e Gerald os reformava e polia até
ficarem perfeitos. Depois, vendia os carros na região. Sua missão, como dizia, era
colocar os Falcons, Deacons e Braves em carros importados. Depois isso se
espalhava para pilotos de avião, pastores de megaigrejas e executivos. Gerald fez
com que carros importados virassem moda na Georgia.
Às vezes, ele vendia os carros para compradores em San Diego e eu ficava
encarregado de levá-los até lá. Depois de me mudar para Atlanta, cruzei os
Estados Unidos de carro umas cinquenta vezes e sempre ficava em San Diego por
alguns dias. Às vezes eu voltava para Atlanta de avião, mas, na maioria dos casos,
esperava até que aparecesse um carro lá e depois retornava para o outro lado do
país dirigindo.
Como eu adorava dirigir! Estávamos em meados dos anos 1960, e os rádios PX
tinham se popularizado. Todo mundo estava se apaixonando por eles, embora
sempre tivessem existido. Uma música sobre rádios PX, Convoy, de C. W. McCall,
virou a música número 1 do país. E assim surgiu um romantismo renovado por
viagens de carro. Dirigir pelo país fazia com que você se sentisse parte de algo
muito bonito, de uma tradição estadunidense.
Naquela época, havia um código de conduta na rodovia: aqueles que estavam
dirigindo devagar ficavam na faixa lenta. Usávamos a pista rápida com
moderação, apenas para poder ultrapassar, e depois voltávamos para a pista lenta.
Para mim, aquele era o sistema perfeito, exemplos de papéis muito bem
designados, como o antílope e o guepardo, a pessoa segurando a arma e a outra,
atrás do cano.
Tais estruturas de poder não me pareciam opressivas; pelo contrário, eram
princípios de ordem. Uma cultura de civilidade era a base da experiência de se
estar na estrada. Deixar alguém ultrapassar você e trocar um olhar amigável fazia
com que você sentisse orgulho de ser estadunidense, de participar de um sistema
que era regido pelo respeito mútuo.
Os estadunidenses sempre foram desbravadores, pessoas abertas a novas
aventuras, e vivi isso enquanto dirigia sozinho pelo país. O trajeto de San Diego a
Dallas era deserto, mas não de um jeito monótono. No Novo México e no Arizona
havia montanhas majestosas, penhascos e paisagens magníficas. Depois, mais ao
leste, a paisagem era tomada por florestas verdes e vegetação rasteira.
Eu parava em estacionamentos para caminhões ou em postos de gasolina, às
vezes recebia multas por excesso de velocidade de policiais rodoviários, comia um
hambúrguer e olhava para o céu. A maioria dos carros tinha teto solar, que eu
deixava aberto a noite toda. Estar no meio do deserto, sem outros carros ou
pessoas ao redor, olhando para as estrelas era um tipo raro de magia para mim. E
lá estava eu, seguindo minha jornada por uma estrada escura, sabendo que
encontraria o caminho de casa.
Como eu passara a ter familiares tanto em San Diego quanto em Atlanta, vivia
entre as duas cidades. Na casa de minha mãe, as coisas eram mais ou menos as
mesmas, embora também estivessem sutilmente diferentes. Minha mãe voltara a
se sentir confiante depois de anos hibernando por conta do divórcio. Ela tinha
arranjado um emprego e se tornado mais confiável. Até mesmo aprendera a
dirigir, aos 52 anos, e comprara o carro próprio, um Volvo. Aliás, tenho esse Volvo
até hoje. Durante minha infância, mamãe dependera muito de mim e de Rozy
para fazer coisas básicas em casa, mas, comigo fora e com Rozy prestes a se
formar, se tornara autossuficiente.
Em uma família em que todos são traumatizados, existe um tipo de
solidariedade incômoda no trauma, como um olhar silencioso de compreensão
trocado entre passageiros que sobreviveram a um acidente de avião. No entanto,
com o passar do tempo, cuidamos de nossas feridas e iniciamos nosso processo
de cura. E, com a cura, as pessoas se tornam mais resilientes. Assim foi com
minha mãe, que passou a precisar menos dos filhos para coisas básicas à medida
que seu ódio por meu pai diminuiu.
Da mesma forma, ficou mais fácil para ela me apoiar em pequenas coisas. Eu
gostava de punk rock, de disco e de dançar. Em um breve período em San Diego,
decidi que queria montar uma banda e coloquei um anúncio num jornal
independente. Dois rapazes brancos de El Cajon responderam ao anúncio e
fizeram o teste. Ensaiamos algumas vezes até que decidi que deveríamos fazer um
cover da música “Because the Night”, do álbum Easter, de Patti Smith. Não tinha
um centavo, então implorei para que minha mãe comprasse o disco.
— Eu lá tenho esse dinheiro? — retrucou ela. — Até parece que vou comprar
essas coisas.
— Mas, mãe, eu preciso muito disso… — insisti. — É pelo meu futuro. Se eu
quiser me tornar uma estrela, preciso ter uma banda. Sei que essa música vai ficar
perfeita na minha voz.
No fim das contas, acho que a venci pelo cansaço; ela me deu os 7 dólares que
eu queria. Foi um sinal de que acreditava em mim.
Pouco tempo depois, ela me deu uma corrente de ouro com elos retangulares
que tenho até hoje.
— Guarde bem isso — disse ela. Então acrescentou em tom sério: — Se um dia
você se meter em confusão, pode penhorar para arranjar dinheiro.
Para mim, esses pequenos gestos demonstravam que ela não estava mais tão
distraída com a própria dor. Parecia mais compreensiva consigo mesma, o que
fazia com que estivesse mais compreensiva em relação ao mundo também.
Rozy e eu, por termos idades próximas, sempre passamos muito tempo juntos,
mas também éramos diferentes em alguns aspectos cruciais. Quando eu tinha 9
anos, me lembro de ter perguntado a ela, quase em tom de acusação:
— Você não quer ser uma estrela do pop?
— Não — respondera ela, como quem diz “Por que alguém iria querer isso?”.
Eu não conseguia imaginar alguém que não quisesse ser uma estrela. Perucas
volumosas, jatos particulares, hordas de fãs obcecados por você… O que poderia
ser melhor que isso?
Já mais velhos, tínhamos os mesmos amigos em San Diego: Lamar e Jimmy
Kendall. Os mesmos irmãos de quem eu tinha sido amigo anos antes. E, mesmo
tanto tempo depois, eu ainda era perdidamente apaixonado por Lamar. Como a
sua mãe ficava fora o dia todo, fumávamos maconha na casa deles, nadávamos na
piscina e ouvíamos discos. Eles tinham o álbum Stars, de Sylvester, cuja faixa-
título durava oito minutos e era perfeita, um eletrofunk de arrepiar. Eu teria
passado dias ouvindo se pudesse.
Comecei a me interessar por fotografia depois de herdar a antiga câmera de
Renetta, uma Nikon, e fazer um curso na escola vocacional South Fulton em meu
primeiro semestre em Atlanta. Tive uma quedinha pelo professor, um cara branco
que se chamava sr. Barnes e tinha cabelo castanho cacheado e um jeito doce de
falar e se portar. Ele me ensinou sobre iluminação e composição e a enquadrar
uma foto.
Passei a tirar fotos de Lamar, que adorava servir de modelo. Eu também
adorava fotografá-lo. O processo era íntimo e resultava em certa tensão sexual.
Sua pele era escura e brilhante, ele era alto, tinha porte atlético, nariz reto e lábios
fartos. Lamar ainda cultivava o mesmo jeito amável de quando era mais novo e
pelo qual eu tinha me apaixonado no dia em que ele passou em minha casa para
que fôssemos juntos até a escola, aquela doçura não evaporara — como acontece
às vezes quando garotos crescem. Ele era muito gentil e tinha senso de justiça,
não tentava expressar a própria masculinidade agindo como um machão.
Sempre disfarcei bem com Lamar. Ser gay, especialmente entre pessoas negras,
significava estar sempre guardando segredos, sempre fingindo. Tentar não
alimentar a serpente do desejo dentro de mim, ainda que isso partisse meu
coração, era um exercício de estoicismo.
Não lembro quando descobri que Lamar e Rozy estavam namorando. Acho
que bloqueei da memória o momento dessa descoberta. O destino foi cruel
comigo: a pessoa por quem eu me apaixonei aos 12 anos, que eu nunca poderia
ter, mas que nunca havia superado, começou a namorar minha irmã. A única
vantagem era que, por causa disso, estávamos sempre juntos.
A verdade era que reprimir um sentimento profundo era algo que já conhecia.
Em minha dinâmica familiar, sempre tive que exercitar meu lado político e ser
diplomático com minha mãe quando ela perguntava sobre meu pai e vice-versa.
Isso me ensinou a esconder minhas emoções sem nunca deixar transparecer o
que realmente sentia.
Minha mãe gostava de Lamar — e olha que ela não gostava de quase ninguém.
Considerava-o muito honesto. No entanto, houve uma noite em que dormi na
casa dos Kendall e acordei com a boca queimando: Lamar tinha colocado molho
de pimenta em minha língua enquanto eu dormia. Meus olhos lacrimejavam
enquanto eu corria para lavar a boca na pia. Aquilo me surpreendeu. Ele sempre
tinha sido tão gentil. Jamais esqueci esse momento, a primeira vez que estive em
contato com a crueldade de Lamar, quando ele permitiu que eu fosse o alvo de
uma brincadeira como aquela.
Em meio às viagens que fazia pelo país, comecei a passar cada vez mais tempo
em San Diego. Em uma dessas vezes, me inscrevi para trabalhar como voluntário
em uma rádio universitária, catalogando álbuns que o DJ tocava. Certo dia, um
cara apareceu por lá. Ele tinha uma beleza mediterrânea, pele bronzeada e
cabelos pretos cacheados, e usava um short curto que mostrava a polpa da bunda.
As pernas eram musculosas e peludas. O rapaz flertou comigo e, mais uma vez,
congelei. Repeli o desejo dele por ainda ser reprimido demais para tomar
qualquer atitude.
Outras vezes, à noite, eu ia de carro até lugares que sabia serem frequentados
por gays, mas não saía do carro nem chegava a entrar nos locais de sexo. Meu
contato com o sexo na Underground, em Atlanta, tinha sido mais do que
suficiente. Eu enfrentava um dilema: ansiava por intimidade, mas ao mesmo
tempo morria de medo de consegui-la. Mesmo assim, sabia que precisava de
alguém que me ajudasse a decifrar quem e o que eu era, algo que ninguém em
meu mundinho poderia me oferecer.
Então fui ao centro de acolhimento gay em Golden Hill, que ficava numa casa
vitoriana com chão que rangia e cheiro de mofo — uma mistura de madeira seca e
papel velho, como se tudo tivesse sido coberto com jornal. A cada passo que eu
dava, a casa inteira gemia. Disse à recepcionista que queria conversar com um
orientador, e ela me encaminhou para um homem chamado Andrew.
De cabelos compridos e traços elegantes, Andrew era do tipo que parecia
inteligente. Ele tinha 36 anos na época, segundo me disse, e havia se afirmado gay
seis anos antes. Ele me perguntou como eu me sentia em relação a ser gay e eu
respondi que me sentia alienado do mundo. Eu não conhecia muitos gays, se é
que conhecia algum, e sentia que precisava de uma comunidade. Depois
descobriria que eu não tinha tanto em comum com outros gays quanto
imaginava; o único interesse que compartilhávamos era nosso gosto por paus.
Minha turma era a das pessoas boêmias, algumas das quais eram gays e outras
não. A questão era que tínhamos um alinhamento ideológico que superava a
sexualidade, mas eu não sabia de nada disso na época.
Andrew me tranquilizou. Ele parecia muito sensato e verdadeiro, e
imediatamente me senti seguro. Tivemos encontros semanais em que eu falava
sobre minha família, meus amigos e a forma como me sentia. Em uma das
sessões, enquanto nos despedíamos, ele perguntou se podia me beijar. Um beijo
de verdade. A pergunta me pegou de surpresa, mas, como sempre, continuei
impassível.
— Aham — respondi.
O rosto dele se aproximou do meu. Ele estava de barba feita e cheirava a
desodorante Old Spice. Naquele momento, percebi que ele era alto, quase tanto
quanto eu, e, quando ele tocou os lábios nos meus, o beijo foi intenso e fez minhas
pernas bambearem. Que curioso — de repente lembrei que já tinha beijado uma
garota antes. O nome dela era Tina, e ela morava em meu bairro. Nós nos
beijamos na frente da garagem da casa de minha mãe na Hal Street. Eu estava
sentado em uma cadeira e ela, em meu colo. As crianças do bairro nos rodeavam
para assistir ao beijo; não porque havia qualquer intimidade ou luxúria, mas
porque era o que se fazia naquela idade. Beijar Andrew, porém, foi um marco para
mim. Finalmente havia passado de fase. Tinha beijado um homem. E, pela forma
que meu corpo reagira ao beijo, soube que aquilo era o que eu sempre havia
desejado.
Pouco tempo depois, Andrew e eu começamos a conversar sobre sexo.
— Temos que esperar você fazer 18 anos — dizia ele.
Para mim, isso parecia irrelevante, mas era nitidamente importante para ele.
Depois de meu aniversário de 18 anos, fui encontrá-lo em seu apartamento, que
ficava perto do centro. Ele foi gentil e cuidadoso, mas aquilo pareceu mais um
ritual do que a consumação do desejo. Eu me lembro de pensar: Então é só isso?
Eu não estava conectado o bastante com meu corpo para que sentisse qualquer
coisa além da sensação física.
Saímos mais algumas vezes depois disso.
Na última vez que transamos no apartamento dele, Andrew tinha combinado
de sair com alguns amigos depois. Perguntou se eu queria conhecê-los e eu menti:
— Adoraria, mas tenho que ir.
Sabia que nunca me encaixaria no grupo de amigos dele. Pensar nisso me
deixava triste de um jeito estranho — saber que eu poderia ter aquele tipo de
experiência com aquele homem, ser extremamente desejado por ele, e mesmo
assim jamais me encaixar no mundo dele, cheio de homens gays brancos de San
Diego que reproduziam a heteronormatividade dentro da própria bolha e os
códigos de masculinidade.
Compreendi, mesmo que de modo superficial, que havia uma divisão entre
quem era aceitável para a sociedade e quem não era. Os homens que
conseguiriam se passar por heterossexuais se quisessem tinham um privilégio que
pessoas como eu nunca teriam. Tempos depois, quando minha carreira já havia
alavancado, conheci homens gays brancos e masculinos que me olhavam com
certo ódio, uma aversão a si mesmos projetada no outro, algo parecido com
homofobia internalizada e transformada em desprezo. Para eles, eu nunca
deixaria de ser um dançarino de flamenco que interrompe a coreografia quadrada
que eles cuidadosamente ensaiaram.
Mas é óbvio que os homens gays brancos não foram os únicos a participar do
culto da masculinidade. Quando tinha 19 anos, eu estava caminhando em Balboa
Park quando passei por um rapaz negro muito bonito. Ele devia ter mais ou
menos minha idade, talvez fosse alguns anos mais velho.
— Oi, bonitão — disse ele.
Eu me virei.
— Eu?
Foi engraçado. Eu nunca tinha recebido uma cantada antes.
Ele me contou que era da Marinha e que estava na base de San Diego, mas era
de Pine Bluff, no Arkansas.
— Meu nome é John Wayne — disse ele, sorrindo. — É, eu sei. A expectativa é
alta.
O nome dele vinha de uma tradição de masculinidade. O machão dos
machões.
Passamos o resto do dia juntos e depois fomos para a casa de minha mãe para
dar uns amassos. Transamos em Balboa Park, no banco de trás do carro dela. Eu
ia buscá-lo na base naval e, certa vez, me lembro de encontrá-lo em Los Angeles
numa igreja cor-de-rosa na Vermont Avenue, onde ele estava a trabalho.
Transamos lá também. Parados no estacionamento, no banco de trás do carro.
Algumas semanas mais tarde, ele me telefonou do hospital onde estava
internado com apendicite. Fui visitá-lo no hospital dos veteranos em Balboa Park,
onde nos conhecemos.
— Depois de passar por tudo isso... — começou ele, e me perguntei o que viria
a seguir. — Pensei muito em Jesus e percebi que o que estamos fazendo não é
certo.
— Você está falando sério? — perguntei.
Ele apenas me encarou.
— Não tem nada de errado com o que estamos fazendo — falei. — Só estamos
nos divertindo.
Ele baixou o olhar, como se estivesse envergonhado.
— Tem certeza disso? — perguntei.
— Tenho — respondeu ele.
Nunca mais voltei a ver John Wayne. O machão dos machões não gostava de
transar com outros homens.
A única coisa que me restou era continuar dirigindo, então foi o que fiz. Atravessei
o país para lá e para cá, em um carro atrás do outro: um Jaguar XJ6, uma BMW
2002, um Mercedes 450SL. A cultura automotiva era um símbolo importante para
os Estados Unidos; aqueles carros inspiravam estilo e poder, e era exatamente
essa a sensação que se tinha ao dirigi-los. Certa vez, quando viajava em um
Mercedes, parei para dar carona a um rapaz negro muito bonito. Eu estava em
algum lugar do Arizona, indo para o oeste. Então, como acontecia às vezes, o
carro quebrou no meio da noite. Isso acontecia de vez em quando, e aquele carro
em questão era um veículo vintage europeu muito temperamental, portanto tive
que pensar rápido. Como fui criado em uma dinâmica familiar que priorizava a
autossuficiência, entrei em ação — o rapaz da carona não sabia fazer nada e, logo,
não ajudou. Fiquei com raiva dele por isso, pelo luxo de poder ficar de braços
cruzados enquanto eu resolvia o problema por nós dois.
Em outra ocasião, eu estava viajando com meu primo Welby, que era o único
ponto em comum de nossa família: todo mundo gostava de Welby, até mesmo
minha mãe, que detestava os parentes de meu pai. Ele era risonho, uma
companhia agradável e, como eu, adorava carros. Quando eu tinha 13 anos, ele me
buscou em San Diego em um Pantera, um carro esportivo italiano que acabara de
começar a ser vendido nos Estados Unidos, e me lembro de ficar impressionado
com o quanto era elegante.
Welby e eu tínhamos parado para visitar outro primo em Fort Worth e
estávamos na I-20 a caminho de San Diego, passando por Weatherford, quando
notamos uma luz piscando atrás de nós.
— Carteira de motorista e documento do carro — solicitou o policial.
No entanto, como havíamos comprado o carro para reforma e venda, ainda
não estávamos com o documento.
Quando isso acontecia, geralmente eu conseguia explicar a situação para o
policial e ele me dava uma colher de chá. Mas não em Weatherford, Texas. Os
policiais nos fizeram segui-los até a delegacia, onde prenderam Welby. Liguei para
a prima que tínhamos ido visitar em Fort Worth de um telefone público — como
se eu nem sequer tinha o número dela? —, e ela concordou em dirigir até
Weatherford para pagar a fiança.
A delegacia ficava em uma praça tão pitoresca, que parecia o cenário de um
estúdio. Eu me lembro de ter pensado: Deve ser legal morar aqui. Era tarde da
noite, talvez onze horas, e eu estava andando de um lado para o outro de short
jeans cortado, regata, jaqueta justa e botas e chapéu de caubói. Mais gay
impossível. Quando a liberação de Welby saiu, o juiz já tinha ido para casa, e os
policiais tiveram que telefonar para acordá-lo para que pudesse assiná-la. Assim
que a fiança foi paga, seguimos caminho. Todo o desvio durou apenas algumas
horas.
A grande transgressão, é lógico, foi sermos dois rapazes negros dirigindo um
carro tão bonito. Eu sabia muito bem disso. Mas tivemos sorte naquela noite.
Quando Welby e eu voltamos para a estrada, só queríamos tomar o máximo de
distância possível de Weatherford. Dirigimos a madrugada toda morrendo de rir
até chegar a Phoenix.
Algumas de minhas lembranças sozinho na estrada são estranhamente
afetivas. Eu era devoto de David Bowie e várias vezes escutava o álbum Scary
Monsters enquanto dirigia. Fiquei empolgado com a entrevista que ele daria para
o programa 20/20 sobre sua estreia na Broadway em O homem elefante, mas a
entrevista foi ao ar bem quando eu estava viajando, então me hospedei em um
hotel de beira de estrada em Wilcox, Arizona, a tempo de assistir. O quarto custou
11 dólares e continua sendo, até hoje, um dos hotéis mais bonitos em que já
estive: era limpo, de iluminação baixa, a cama tinha uma colcha de chenile macia
e havia um aquecedor fixo à parede que deixava o quarto quentinho e
aconchegante. Eu me sentei na cama, contente, feliz por ter apenas a mim mesmo
como companhia, e vi Bowie na TV. Tudo de que eu precisava estava bem ali.
Lamar e minha irmã haviam terminado, mas eu ainda saía com os irmãos Kendall
quando estava em San Diego. Eu tinha um plano: voltar para Atlanta, mas, dessa
vez, levando Lamar comigo. Não foi difícil convencê-lo a respeito de Atlanta: era
de conhecimento geral entre as pessoas negras que aquele era o lugar para se
estar, mais até do que Washington, Houston ou Nova York. Atlanta era o lugar
onde a cultura negra estava ganhando forma. Eu não tinha nenhum carro de
Gerald para transportar, então meu plano era que fôssemos de ônibus. Seriam
dois dias e meio de viagem.
Na véspera de nossa partida, Lamar deu para trás. Arranjou uma desculpa:
“Não estou pronto para ir agora. Preciso me organizar financeiramente” — algo
assim. Entretanto, eu sabia que, na verdade, era o medo falando mais alto. Ele não
estava pronto para se arriscar daquela forma. Mas eu estava decidido: viajaria sem
ele, e deixei isso bem evidente.
Só que por dentro eu estava arrasado. O fato de ele ter desistido do plano
solidificou a ideia que eu tinha havia muito tempo de que figuras como meu pai,
pessoas carismáticas que faziam promessas vazias, sempre me decepcionariam.
Eu sabia que mais cedo ou mais tarde teria que parar de esperar algo diferente
delas.
Já estava acostumado com esse tipo de decepção porque tinha vivido isso com
meu pai muitas vezes. Mas eu realmente acreditava que faria algo importante em
minha vida e sabia que essa crença me renderia bons frutos. Houve momentos em
que fiquei balançado, é claro, mas nunca deixei de acreditar. Muitas das pessoas
que conheci, principalmente os homens, eram mentirosos inveterados:
prometiam de mais e entregavam de menos.
Estar sozinho naquele ônibus quando eu achava que estaria com Lamar foi
como um divisor de águas. O ônibus estava passando por El Paso no momento em
que o sol se pôs em meio a uma tempestade de poeira. Tudo ficou laranja como
em um filme de Scorsese: uma paisagem surrealista e hipnotizante que parecia ter
saído de um sonho. Mal conseguia acreditar no que estava vendo. E, naquele
momento, soube que minha vida nunca mais seria a mesma, que eu estava
deixando algo para trás, por mais importante que fosse.
Em Monroe, Louisiana, um casal entrou no ônibus, um cara negro e uma
garota branca. À noite, o silêncio reinava enquanto os passageiros dormiam, mas
eu estava acordado, olhando pela janela. De repente o ouvi tentando convencê-la
a aceitar fazer um boquete.
— Não — dizia ela. — Não quero.
— Por favor, amor — insistia ele.
Ele a pressionou até que ela finalmente cedeu, então ouvi o barulho do zíper e
logo depois um estalar de lábios, molhado e barulhento.
A vida é assim às vezes. Você acha que vai viajar rumo ao pôr do sol com o
Príncipe Encantado e, em vez disso, acaba preso em um ônibus rodoviário,
obrigado a ouvir um estranho sendo chupado. Eu sabia que Lamar Kendall era
passado, e tudo bem.
Havia algo melhor esperando por mim — algo e alguém.
Atlanta continuou sendo apenas uma parada para mim. Tinha saído da escola e
meu pequeno círculo de amizades — os irmãos Crank, amigos que fiz no teatro —
havia se afastado. Eu fazia algumas viagens para Gerald e depois ficava matando
tempo na casa de minha mãe, entediado.
No feriado de Ação de Graças, Renetta e Gerald viajaram com os filhos para a
República Dominicana, e fiquei sozinho em casa com uma Ferrari amarela. Decidi
dirigir até uma discoteca chamada Numbers, que ficava na Cheshire Bridge Road.
Uma mulher chamada Crystal LaBeija estava se apresentando naquela noite.
Ela subiu no palco de camisola, lingerie e cinta-liga. Estava tão parecida com
Donna Summer que cheguei a pensar que fosse a cantora famosa, mas, quando o
número terminou, ficou evidente que não era, porque Crystal tinha uma presença
de palco que Donna jamais tivera. Ela fez lip-sync de “Bad Girls”, e eu fiquei de
queixo caído.
Na volta para casa, coloquei “Our Love”, de Donna Summer, para tocar no
carro. Nada poderia ser melhor que aquilo, aquela música, aquele carro veloz.
Aquela era a única sensação que me deixava eufórico. Senti o acelerador sob meu
pé e observei o velocímetro subir. Os graves da música vibravam nos alto-falantes.
Eu não pertencia a nada além de mim mesmo, daquele momento e daquela
batida, e isso bastava.
Pouco tempo depois, eu estava em San Diego com Renae, sentado na sala de estar
de nossa mãe. Minha irmã estava com uma expressão estranha, até que de
repente disse:
— O papai quer falar com você.
Imediatamente percebi que ela havia ensaiado aquelas palavras. Não queria
me magoar nem me colocar contra a parede, só queria me preparar para o que
estava por vir.
— Sobre o quê? — perguntei.
Eu não falava direito com nosso pai havia anos.
— Viram você em Balboa Park — respondeu ela em tom cauteloso. — Com
umas pessoas que todo mundo sabe que são gays.
Meu estômago revirou. Não tanto pela possibilidade de que eu fosse tirado do
armário, mas porque sabia que teria uma conversa de verdade com meu pai, coisa
que eu passara tanto tempo evitando, talvez toda a minha vida. O interesse dele
por mim sempre fora tão superficial, que minha primeira reação não foi me
preocupar com o fim de meu segredo, se é que era possível chamar assim. Na
verdade, a primeira coisa que pensei foi: Como ele ousa se preocupar justamente
com isso?
Ele sempre fora muito afetuoso com minhas irmãs. “Oi, filhota!”, “Oi, princesa!”,
dizia com aquele jeito charmoso e cativante, mas nunca sobrara afeto para mim,
nem mesmo uma migalha. Quanto ao fato de eu ser gay, os garotos do bairro já
haviam jogado isso na minha cara muitos anos antes. Não era possível que meu
pai não soubesse. Senti um ressentimento amargo vir à tona, e odiava o fato de ele
surtir aquele efeito em mim.
Era domingo quando meu pai apareceu para me buscar. Eu estava preparado,
sabia exatamente o que ia dizer a ele. Seguimos de carro até Golden Hill Park no
mais absoluto silêncio, estacionamos, depois caminhamos um pouco e nos
sentamos num banco.
Quando finalmente falou, seu tom era sério, e ele usou as mesmas palavras que
Renae.
— Me disseram que viram você no parque. Com pessoas que todo mundo sabe
que são gays. É verdade?
Minha resposta foi vagarosa e calculada. Eu estava calmo, não deixei minha
raiva falar mais alto.
— Como você tem coragem de me fazer perguntas sobre minha vida pessoal
quando nunca teve interesse em mim? Você nunca pagou um centavo de pensão.
Nunca recebi um pingo de afeto vindo de você. Então isso não é da sua conta.
Ele gaguejou uma resposta. Notei que ficou surpreso com minha reação, mas
não havia mais nada a ser dito. Eu nem sequer sabia se a situação que ele
descrevera era real. Queria, sim, andar com um grupo de gays pelo Balboa Park,
mas eu nem tinha amigos gays suficientes para que isso fosse verdade. Todo
aquele papo furado podia muito bem ter sido armação de algum amigo dele que
suspeitava que eu fosse gay e queria saber a verdade.
Mas o que realmente me abalou foi perceber o quanto a visão de mundo de
meu pai era limitada e egoísta. Ele jamais teria pensado em perguntar se eu estava
feliz, se meus amigos me amavam do jeito que eu era, se eu sequer era amado. Só
prestou atenção em mim quando soube que existia a chance de eu estar
manchando sua reputação, quando houve a possibilidade de eu envergonhá-lo
por ser gay.
Meu pai sempre prestou tanta atenção em minhas irmãs. Ele amava mulheres. Ele
as bajulava, elogiava e adorava.
O mundo era assim, afinal.
Como seria se eu me tornasse a garota mais bonita de todas?
Isso, sim, seria impactante.
CINCO
Pertencer
James, percebi logo de cara, era muito peculiar — maconheiro e preguiçoso, mas
um amor de pessoa. Tinha pele marrom-clara, cabelos cacheados e grisalhos e ria
de qualquer coisa que eu dizia, como se fosse um tique.
Na primeira vez que assisti ao programa, deduzi que James era irmão do
ativista de direitos civis e políticos Julian Bond, que era amigo de Martin Luther
King Jr. e se tornara quase uma celebridade. Julian foi senador e o primeiro
político negro a apresentar o Saturday Night Live, o que o tornou uma figura
famosa não apenas dentro do movimento negro, mas também para o público
geral. Os créditos de abertura do The American Music Show mostravam a sala do
“estúdio”, onde era possível ver bótons de campanha de Julian Bond para o senado,
adesivos de carro, caixas de fósforos e uma foto de Martin Luther King Jr. Todo o
movimento pelos direitos civis em Atlanta estava implicitamente presente nos
primeiros minutos de cada episódio.
O fato de haver uma relação entre o movimento pelos direitos civis e o
nascimento daquela nova cena não me passava despercebido. O grito de luta pela
igualdade racial, que começara em Atlanta, seria transmitido ali de outra forma:
uma recusa em aceitar o status quo ou em concordar com os termos estabelecidos
pela sociedade. Na verdade, as pessoas por trás do The American Music Show se
conheceram trabalhando como voluntários na campanha de George McGovern, o
candidato progressista que concorreu contra Richard Nixon nas eleições
presidenciais de 1972. Embora vários integrantes do grupo fossem brancos, me
sentia totalmente à vontade — talvez ainda mais por eu ser negro. Todos eram
progressistas e tinham consciência racial, e esse espírito de inclusão estava no
DNA do programa.
O outro apresentador do programa era Dick Richards, dono de um carisma
sem igual e a alma da coisa toda. Dick crescera na Carolina do Sul, tinha um forte
sotaque sulista e uma risada genuína, como se estivesse sempre assoviando, e um
brilho nos olhos, o olhar de alguém que conseguia enxergar a alma das pessoas.
Às vezes, ele andava pela casa fazendo flexões com um par de pequenos halteres e
tagarelando. Repartia o cabelo para o lado esquerdo um pouco baixo demais, de
modo que vivia parando para ajeitá-lo. Ao lado de James, Dick reivindicou a
missão de mostrar e divulgar a cena de Atlanta, sob um lema único: “Se não for
para se divertir, então não faça!”
A ex-namorada de James, Potsy, operava a câmera e fazia os efeitos visuais do
programa. Ela escrevia os nomes dos convidados em letras elaboradas e criava a
colagem que era exibida nos créditos de abertura. Potsy tinha uma voz grave e
melodiosa, e usava uma permanente no cabelo. Enquanto gravava os programas,
ela também mantinha uma câmera virada para si mesma, e essa câmera
alimentava uma transmissão ao vivo que passava em uma TV posicionada no set,
filmada pela primeira câmera. Era como uma casa de espelhos feita de câmeras e
TVs, uma piada em looping.
O programa era gravado nas noites de terça-feira. Todo mundo levava
maconha e comida. Então ficávamos chapados e jantávamos juntos frango frito,
purê de batatas, macarrão com queijo, vagem e torta de batata-doce. Também
havia outros convidados que apareciam no programa, todos membros da cena
mais ampla de Atlanta. Alguns deles, os mais jovens, saíam do estúdio direto para
as boates, vestidos a caráter para dançar até o nascer do sol; já outros, os mais
velhos, eram intelectuais, membros da contracultura e literatos. Muitos deles
haviam crescido no sul dos Estados Unidos, e logo percebi que aquela parte do
país produzia figuras excêntricas e extravagantes, do tipo sobre o qual Tennessee
Williams escrevera, e ninguém estranhava. Em San Diego, que era tão antiquada,
teriam sido criticados a torto e a direito, mas ali era como se flamingos selvagens
coexistissem com pessoas comuns. Era impossível prever que tipo de figura iria
aparecer — alguma combinação de artistas performáticos e profissionais do sexo,
heterossexuais e homossexuais, muitas vezes de peruca, fantasias esquisitas ou
pinturas faciais, encenando esquetes absurdas.
Eu me apresentei com Robin e Josette algumas vezes, mas logo ficou evidente
que o show business não era tão importante para elas quanto era para mim. Eu já
tinha substitutos em vista. Durante um voo, conheci uma garota chamada Susie,
que estava voltando da escola em Howard; ela havia resolvido deixar a escola,
segundo ela, porque não suportava ficar longe de casa. Percebi que se tratava de
uma criatura frágil, uma Blanche DuBois negra, mas gostei da menina mesmo
assim.
Susie trabalhava como garçonete na cafeteria da loja de departamentos
Davison’s, no Lenox Square Mall, e sua amiga Gina era a recepcionista. As duas
me ajudaram a conseguir emprego lá como cozinheiro auxiliar, porém o mais
importante é que se tornaram minhas U-Hauls e começamos a nos apresentar
semanalmente no The American Music Show, fazendo números de dança ao som
de “Groove Me”, de Fern Kinney, ou “Murphy’s Law”, de Chéri. Eu criava todos os
figurinos, que eram inspirados no espírito contemporâneo da moda urbana que
vinha sendo importada de Londres. O figurino de grupos como Bow Wow Wow e
Bananarama estava na moda, com jeans desfiados e animal print, então eu
comprava tecidos baratos e fazia vestidos, blusas e faixas para a cabeça e os
braços.
Susie estava a fim de mim, embora devesse ter sido óbvio para ela que nós
gostávamos da mesma fruta. Eu sabia que existia um tipo de mulher que se
apaixonava por homens gays para se proteger da realidade de quanto os homens
heterossexuais podiam ser agressivos; acho que gostar de mim era uma forma de
garantir a própria segurança. Mas ela não conseguia aceitar que jamais haveria
algo entre nós. Certa vez, depois que discutimos por causa disso, ela passou cocô
de cachorro no capô de meu carro. No entanto, fizemos as pazes a tempo da
apresentação seguinte — em que dançamos “In the Name of Love”, da dupla
Thompson Twins.
Como expressar a sensação de encontrar sua turma, passar a pertencer a uma
comunidade e finalmente ser compreendido, de reconhecer o elo invisível que liga
você aos outros? Cães conseguem ouvir uma frequência que não pode ser
detectada pela audição humana e insetos conseguem ver cores ultravioletas que
são imperceptíveis para nós. Assim foi para mim naqueles primeiros meses no
The American Music Show, quando eu tinha 21 anos. Mesmo quando assisto às
fitas, não consigo explicar a magia daquelas apresentações, a não ser falando
sobre o clima de diversão despreocupada e pueril, uma recusa em afundar na
areia movediça da seriedade da vida. É impossível colocar em palavras, mas,
quando penso nisso, lembro exatamente o que eu sentia na época.
Era como se aquelas pessoas tivessem parado de encenar a peça teatral
chamada de vida, ou melhor, como se tivessem percebido que tudo que a
sociedade considerava importante não passava de uma grande bobagem. Haviam
deixado de lado o pensamento fechado da vida cotidiana e ampliado o olhar, o
que as fez perceber que a vida era muito mais do que se podia ver em meio à
multidão. E depois, ao retornar à vida cotidiana, carregavam consigo o
aprendizado adquirido. Uma vez visto, aquilo não podia ser desvisto. Era
impossível continuar levando tão a sério as coisas pequenas da vida. Tudo se
tornara uma grande piada.
Mas é óbvio que uma pessoa jamais se daria ao trabalho de dar esse passo se
estivesse confortável no próprio mundinho. O que nos unia naquela cena era o
fato de sermos todos forasteiros, a dor de não nos encaixarmos no pesadelo
constante que era o mundo. Quando encontrei aquela comunidade, as coisas
começaram a se encaixar. Junto com as U-Hauls, comecei a me apresentar em
festas de universitários, depois no 40 Watt Club, em Athens, e no 688 Club, no
centro de Atlanta. Foi lá que conheci Kathy, uma lésbica muito séria que adorava
David Bowie e estava de saco cheio de morar com os nove irmãos no subúrbio de
Marietta. Juntos, decidimos alugar um apartamento perto do centro, na Charles
Allen Drive.
Em pouco tempo, eu tinha saído da casa de minha irmã e estava começando a
fazer meu nome como artista. Tudo graças àquele programa de televisão.
Todos usavam muitas substâncias, algumas de efeito anestesiante e outras que
alteravam o estado da consciência, mas todas baratas e amplamente acessíveis. O
consumo de cocaína, como eu havia feito com Gerald, era raro — um hábito caro
que só se tornaria popular quando o crack chegasse às ruas, anos mais tarde. Mas
a maconha era barata e fácil de ser encontrada; uma garrafa de Ballantine Ale
custava 2,49 dólares e até mesmo o LSD custava apenas 5 dólares.
Pouco tempo depois de começar a me apresentar no The American Music
Show, usei ácido pela primeira vez, com minha amiga Cassie Banks. Ela era magra
como uma modelo saída de uma passarela de Paris e era famosa na cidade.
Posteriormente, eu a vi dançando em meio à multidão num programa de televisão
de acesso público chamado Dance-O-Rama USA. Naquela época, meu
conhecimento sobre ácido se limitava ao senso comum. Já tinha ouvido falar de
Timothy Leary e estava ciente de que o LSD desempenhara um papel importante
no surgimento da contracultura, mas não sabia direito no que estava me
metendo.
Usei ácido em meu apartamento na Charles Allen Drive. O papelzinho tinha
uma estrela, e Cassie me disse que eu começaria a sentir o efeito após mais ou
menos quarenta minutos. No começo, senti um formigamento que começou em
minha virilha e depois se espalhou por todo o meu corpo, como a sensação de
quando se acha algo engraçado. Ergui a mão e a agitei no ar, e lá estavam os sinais
de que eu tanto ouvira falar. Lá vamos nós, pensei.
A sensação foi maravilhosa. Para mim, aquele momento foi como renascer na
vida que eu achava que teria para sempre. Era uma vida que fora negada a mim
pelas restrições da sociedade e pelo mito da realidade, e agora eu estava vendo o
outro lado da coisa. Agradeci a Deus por finalmente estar sendo libertado da
hipocrisia da vida e por poder enfim acessar o mundo absurdo que era destinado
a mim. Compreendi de corpo e alma que tudo que eu havia feito na vida até então
havia me preparado justamente para aquele momento, para minha primeira
viagem de ácido. Naquele instante, eu enxergava de verdade o que acontecia a
meu redor, as moléculas que compunham a própria matéria vibrando e
rodopiando. Aquele, sim, era o mundo real. A outra vida, a que eu vivera por 21
anos, era apenas uma ilusão. Era extraordinário, mas não assustador, porque a
anestesia do cotidiano nunca funcionara para mim. Então, aquela sensação era
mais uma confirmação de algo que eu já sabia do que uma revelação
propriamente dita.
No mesmo instante, soube que precisava sair de casa e andar por aí. Queria
explorar o mundo, vivenciá-lo plenamente. Uma curiosidade infantil renasceu
dentro de mim. Eu me lembrei de quando era criança, de como me sentia antes
de meus pais interromperem tudo com o drama que tanto me sugara ao longo da
vida, arremessando lâmpadas um no outro dentro de casa. Agora eu queria
conhecer o mundo. Queria brincar!
Então saí do apartamento e desci pela Charles Allen Drive. A maneira como o
sol se infiltrava por entre as folhas e os galhos e criava sombras na calçada era
lindíssima. Havia vida em todas as coisas. Permiti que o LSD me guiasse para
onde eu precisava ir. Conseguia enxergar cada pedacinho de grama crescendo nos
jardins. Que experiência magnífica!
Fui até a entrada do parque e virei à esquerda. Segui caminho pela Tenth
Street, ouvindo a melodia do trânsito. De repente, lembrei: A água! Então virei à
direita e fui até os bancos na margem do lago.
Havia duas pessoas em pé nas margens, um menino e uma menina, e outro
garoto sentado no banco.
A jovem tinha uma beleza de tirar o fôlego, como a de Lauren Bacall. Ela usava
um vestido dos anos 1960 e uma jaqueta jeans azul-clara. O garoto magro ao lado
dela era ruivo e sardento e parecia muito animado, um pouco efusivo até.
Eu me sentei no banco ao lado do outro garoto. Ele era alto, quase de minha
altura, bonito e loiro. Nossos joelhos se tocaram e quase arquejei. A química entre
nós foi arrebatadora.
As árvores respiravam.
Olhei para ele e pensei: Passei a vida toda procurando por você.
Nós precisamos uns dos outros, sei disso. Presenciei de perto a desconfiança de
minha mãe em relação aos outros, a maneira como as reviravoltas da vida a
endureceram, e talvez um pouco disso já tivesse se instalado em mim. Mas eu era
jovem o bastante para acreditar na bondade alheia e, portanto, o que queria era
simples: pertencer a algum lugar, ser visto, ser reconhecido. Queria sentir a
satisfação de uma peça se encaixando na outra quando você encontra pessoas
que são como você. Partira em busca de uma sensação de pertencimento e, por
um instante, senti que tinha encontrado.
Quando finalmente chegamos na casa, não conseguíamos tirar as mãos um do
outro. Mark tinha ombros largos e pele macia e sedosa, e os pelos do corpo dele
eram delicados como plumas. Aquilo era muito diferente do que acontecera com
Richard ou Jack, experiências que haviam se resumido à ânsia de satisfazer um
impulso. Com Mark, era como se estivéssemos nos conhecendo, explorando um
ao outro como eu sentira que precisava explorar o mundo depois de usar LSD.
Mark estava florescendo em sua beleza como acontece com as flores na
primavera. Ele era feito as sombras na calçada, difusas pela luz do sol. E, em meio
ao crepúsculo psicodélico, finalmente compreendi.
Eu não tinha simplesmente conseguido o que queria. Eu tinha conseguido
muito mais.
SEIS
Dualidade
A vida é cheia de dualidades: noite e dia, preto e branco, yin e yang, bem e mal,
nascimento e morte, amor e medo. Não se pode ter um sem o outro. É preciso
dois para criar a atração magnética que alimenta a vida. Essa é a ordem natural
das coisas: que tudo, em contraste, esteja em perfeito equilíbrio. Sempre me senti
tanto homem quanto mulher. Por mais estranho que fosse, eu me sentia mais
masculino montado do que desmontado, porque sabia que tinha mais poder
dessa forma, já que poder é uma moeda de troca normalmente conferida aos
homens. Como um homem negro afeminado que violava as normas da sociedade
pelo simples fato de existir, fazer drag era uma forma de recuperar o poder que
sempre me foi negado.
Naquela época, minha drag não era refinada. Era um dedo do meio para a
sociedade, um jeito de dizer: Que se danem seus padrões. Não tinha nada a ver
com identidade. De uma forma elementar, desafiava a binariedade, o preto ou
branco intrínseco a grande parte da vida. Nesse sentido, meu estilo era
provocativo porque ousava subverter a dualidade de todas as coisas e zombava do
ridículo de se escolher um gênero. Fazer drag me permitia ser um pouco dos dois,
nenhum dos dois ou ambos.
Todos na cena boêmia de Atlanta faziam alguma forma de drag, mas nada
daquilo era glamoroso. Usávamos roupas de brechó, coturnos e batom borrado.
Pintávamos bigodes e sobrancelhas, colávamos pedaços de plástico no rosto e
rabiscávamos os braços, qualquer coisa que nos posicionasse o mais distante
possível do que era considerado normal. Fazer drag era zombar do mito sagrado
da identidade e de todas as expectativas sociais que vinham junto com ele.
Aquele ato de rebeldia era uma aliança tácita que nos unia. Num sistema em que
tudo precisava ser uma coisa ou outra, fazer drag era tudo e, por isso, mágico.
As forças opostas que eu sentia com mais intensidade eram meu otimismo e
meu ceticismo, dois lados que coexistiam dentro de mim. Às vezes, sentia aquele
pessimismo tomando conta de meu ser, saindo do esconderijo em que eu o
enfiara, e eu sabia que era a mesma coisa que consumira minha mãe depois que
meu pai fora embora. Foram sua amargura e negatividade que a tornaram famosa
na vizinhança. Eu sabia que, se mostrasse aquele meu lado a alguém, seria
abandonado. A única opção era reprimir, jogar aquilo para debaixo do tapete e
escolher me divertir, e foi o que fiz. Assim como em minha infância, eu
transformava tudo em entretenimento se isso aliviasse o clima. Eu dançaria e
cantaria até ficar exausto se fosse para fazer alguém sorrir. Queria fazer isso pelo
mundo inteiro, arrancar risadas, cativar as pessoas, mas principalmente por quem
eu amava, como fazia com minha mãe.
E eu realmente amava Mark, embora não soubesse exatamente o porquê. Foi
paixão à primeira vista. No momento em que nossos joelhos se tocaram naquele
dia no parque, brotou uma energia simbiótica entre nós, uma eletricidade que
viajava entre nossos corpos. Senti algo bom, era como se fosse para ser. Por que
ele que se sentou naquele banco e não Floyd ou Anna? Eu não sabia explicar, mas
acreditava que ele chamou por mim quando saí de meu apartamento naquele dia
depois de usar LSD, que nossas frequências estavam procurando uma à outra nas
ondas de rádio, um chamado tão nítido que fui me sentar bem ao lado dele.
Ficou implícito para mim que Mark estava travando uma batalha interna: de
um lado, a parte dele que era como o pai — firme, estoico, masculino —; de outro,
a mulher que vivia dentro dele e era como a mãe — uma mulher sulista amável e
tradicional, uma pessoa gentil, mesmo que alimentasse a dinâmica tóxica que
Mark dissera existir entre os pais. Eu a via nele quando ria espontaneamente ou
quando fumava um cigarro, tão feminino e delicado — Existe uma mulher ali
dentro! E então ela desaparecia, substituída pelo homem que ele era, o outro lado
da mesma moeda. Observá-lo moldando-se dessa forma, de homem para mulher,
era um lembrete de que somos multitudinários, de que há muito dentro de nós.
Eu também tinha isso, o carisma fácil de meu pai e a amargura de minha mãe,
mas quando Mark se tornou distante descobri que eu não era minha mãe, e sim o
garotinho na sala de estar que só queria fazê-la rir.
Se a mais fundamental das dualidades é o amor e o medo, esse era o cerne da
questão: eu amava Mark, mas também tinha medo de perdê-lo.
No outono, Mark e eu viajamos de carro até Nova York para ver a Now Explosion,
banda de nossos amigos, composta por Larry Tee, Lahoma, Elouise Montague,
Clare Parker e Russ Trent, que se apresentava como Lisette.
Eles seguiam a tradição dos B-52s, ou seja, eram new wave, embora fossem
mais rudimentares na abordagem. Larry sabia tocar violão, mas o tecladista não
era tão bom, o que fazia da banda mais um grupo de garagem do que algo
profissional. Eles usavam roupas de brechó e perucas emaranhadas, os meninos
se vestiam de menina e vice-versa. Às vezes, Lahoma se vestia de Jesus Cristo e
carregava uma enorme cruz nas costas.
Eu também já vira Larry se apresentar em uma banda chamada Fans, quando
eles tocavam no 688 Club. Prestei atenção nele porque ele era bonito e também
porque o via acompanhando o ritmo com os lábios, movendo a boca junto com a
música enquanto tocava guitarra. Naquela primavera conheci Lahoma, cujo nome
verdadeiro era Jon. Eu estava na casa de Dick Richards, que ficava em Inman Park.
Se o apartamento de James representava a cafonice heterossexual com uniformes
de basquete para todos os lados, a casa de Dick, um artesão dos anos 1930, com
varanda telada, escadas de madeira e cômodos cheios de bugigangas, era o auge
da cafonice gay. Ficávamos lá de vez em quando, usando drogas e ouvindo discos.
Eu já vira Lahoma antes num festival, quando me apresentei. No começo, ele
parecia fechado, mas acabou se abrindo. Depois do festival, voltei para a casa de
Dick e fui fazer o papel de DJ, tocando discos da Motown e botando todos na pista
para dançar com músicas como “When the Lovelight Starts Shining Through His
Eyes”, das Supremes.
Larry, Lahoma e eu nos tornamos amigos e, quando convidaram a mim e às U-
Hauls para ir até Nova York e subir ao palco com eles, aceitei logo de cara.
O surgimento da contracultura no centro de Nova York nos anos 1960 levou a
um período mais sombrio nos anos 1970. No fim daquela década, a cidade de
Nova York estava à beira da falência. Havia apagões, greves de coleta de lixo, ratos
por toda parte e assaltos. Mas isso fez surgir uma camaradagem implícita
compartilhada entre nova-iorquinos, a compreensão de que todos estavam juntos
no mesmo barco; era uma mentalidade de turba, mas não para causar tumulto, e
sim para ajudar uns aos outros. Sobreviver em meio a toda aquela destruição e
decadência, tão resilientes quanto baratas, era algo admirável.
Daquele momento de trevas nasceu um dos períodos criativos mais vibrantes
da história da cidade de Nova York. Com o declínio da discoteca e o surgimento
da new wave, a experiência de Warhol ainda era sentida nos bares e boates que
lotavam o centro de Manhattan. Mesmo do ponto de vista de Atlanta, todos nós
sabíamos que Nova York era um centro de convergência cultural: eram muitas
pessoas, ideias e influências se cruzando naquela pequena ilha onde tudo era
possível.
Só tinha estado lá uma vez, em 1980, quando Renetta e eu fomos pegar um
carro para Gerald em Nova Jersey e depois encontramos Simone, uma amiga dela,
em Manhattan. Na ocasião, jantamos em um restaurante chamado Nirvana e
depois pisei em cocô de cachorro na rua: uma justaposição que resumia Nova
York perfeitamente. Mas ir com meus amigos e meu namorado, após anos, era
diferente. Gina alugou um carro compacto vermelho-tomate com seu cartão de
crédito e Chrissy, Mark e eu seguimos pela I-85. Foi uma viagem cansativa,
chegamos exaustos ao evento.
O Pyramid Club ficava na Avenue A, no East Village. Embora tivesse fachada
estreita e apenas uma porta, que servia tanto de entrada quanto de saída, o bar
era muito comprido. Um balcão de bebidas igualmente comprido corria paralelo à
entrada e logo depois havia uma máquina de gelo, ao lado da qual se via uma
porta que levava a um pequeno lounge no subsolo. Seguindo pelo corredor, via-se
uma pista de dança com uma cabine de DJ no canto e, mais à frente, um pequeno
palco com uma escada em espiral do lado direito, que conduzia a um camarim
dourado.
O Pyramid não passava de uma espelunca antes de ser descoberto por um
grupo de drag queens e se tornar o point da cena nova-iorquina, o lugar onde as
culturas boêmia, punk, queer e new wave se encontravam no início dos anos 1980.
O lugar era apertado e tinha forte cheiro de mofo, cerveja barata e cigarro.
Subimos ao palco ao lado da Now Explosion, dançando e tocando pandeiros,
dando chutes no ar e interagindo com a pista de dança lotada. Todos ali eram
semelhantes, crias de Warhol e Bowie. A linguagem corporal e o guarda-roupa os
denunciavam.
A Avenue A fora colonizada, mas era o mais longe que se podia ir; qualquer
lugar depois disso era considerado perigoso demais. Aqueles garotos, com suas
correntes, jaquetas de couro pretas e jeans pretos, estavam na linha de frente do
rock ‘n’ roll pelo simples fato de estarem ali na Avenue A. Mesmo que fosse apenas
pose, eles inegavelmente eram a turma descolada.
Estar no palco em uma boate suja em Nova York não era exatamente uma
sensação eletrizante; parecia mais uma fase necessária. Eu sabia que era o
começo de algo, um novo capítulo em minha jornada. Ao sair da boate naquela
noite, notei que havia pôsteres de diferentes artistas musicais por toda parte —
em prédios abandonados, em andaimes, nas paredes. Descobri mais tarde que
eram chamados de snipes, mas nunca os vira em Atlanta. Isso me pareceu uma
oportunidade perdida. Afinal de contas, qualquer garota espertinha sabe:
propaganda é a alma do negócio.
Em outubro, Mark e eu topamos levar dois carros de Atlanta para Phoenix. Uma
amiga de Renetta que morava na Greentree Trail estava se mudando para
Scottsdale e precisava que seus carros, um Ford Bronco e um Mercedes, fossem
transportados para lá. Dirigimos um veículo cada um e paramos num hotelzinho
no caminho. Mark tinha ficado sem cuecas limpas, então estava usando uma
sunga preta.
Deitado ao lado dele na cama, eu sentia que alguma coisa tinha mudado,
embora não soubesse o quê. A frieza que eu sempre vira entre meus pais se
instalara entre nós. O garoto divertido que ele fora até então, que ia assistir a The
Rocky Horror Picture Show, se maquiava e dançava, havia sumido.
— Anda! Vamos colocar salto alto e peruca, passar pelo drive-thru do Crystal’s e
pedir dezoito hambúrgueres fazendo sotaque mexicano! — propunha eu.
Mas então ele me afastava, e isso me deixava irritado. Afinal, como ele poderia
não querer fazer aquelas coisas? Por que se recusaria a se divertir comigo? Eu
tinha acabado de sugerir a coisa mais legal do mundo.
Anos mais tarde, entendi que minha reação tinha tudo a ver com a dinâmica
que tive com meu pai. Não havia nada que eu pudesse ter feito para que meu pai
me notasse e, da mesma forma, não havia nada que eu poderia fazer para que
Mark voltasse a ser brincalhão. Não ser o tipo de pessoa pelo qual um homem
estaria disposto a arriscar tudo, a ficar a meu lado, me entristecia muitíssimo. A
maioria dos homens e das mulheres expressava poder de maneiras que tinham a
ver com a binariedade por trás de tudo: para os homens, eram demonstrações de
dominação, força e virilidade; para as mulheres, era sexualidade, prazer e
feminilidade. Entendi desde pequeno, quando as crianças do bairro começaram a
me chamar de bichinha e quando meu pai me deixou esperando em frente a
nossa casa, que eu não tinha nenhuma dessas duas formas de poder.
Anos mais tarde, ouço a voz de minha mãe ao reviver aquele momento.
Como você pôde ser tão idiota? Minha mãe não suportava pessoas idiotas e suas
fraquezas. Foi essa fragilidade humana que permitiu que ela sucumbisse aos
encantos de meu pai, e ela odiava tanto essa fragilidade, que tentou sufocá-la
quando a viu florescer em mim durante a infância — o sentimentalismo, a
tendência ao romantismo. “Você é sensível demais e rumina muito as coisas.”
Minha mãe testemunhara isso em mim e me alertara sobre os perigos de ser
desse jeito. Eu jamais esqueceria.
Por muito tempo, acreditei em minha mãe. Vi essa parte de mim, a parte que
se apaixonou por Mark, acreditar na fantasia de que ele era bom para mim
quando nossos joelhos se tocaram no parque. Eu me odiei por permitir que esse
meu lado assumisse o controle. O medo fez com que eu me agarrasse a Mark: o
medo de ficar sozinho, o medo de que ninguém mais me visse como alguém que
merecia ser amado, o medo de que meu pai estivesse feito certo em me deixar
esperando tantos anos antes. Aquele medo me aterrorizava, era uma
vulnerabilidade humana que me fazia querer pertencer a outra pessoa. E isso me
tornava fraco, coisa da qual me envergonhava. Odiava essa parte de mim, achava
que precisava rejeitá-la para ser mais parecido com minha mãe, que não
pertencia a ninguém além dela mesma.
Mas então eu me transformo. Eu me abrando. Retorno para a casa dos
significados ocultos e procuro por algo novo. Faço a mim mesmo perguntas
diferentes.
E se não fosse do jeito que foi?
E se eu estivesse errado o tempo todo?
E se tiver sido amor, o outro lado dessa dualidade, e não medo, que fez com
que eu buscasse por Mark à noite num quarto de hotel no Novo México, numa
pista de dança no East Village, num dia ensolarado no Piedmont Park com uma
música disco tocando e nossos joelhos se tocando?
E se, na verdade, não tivesse sido idiota de minha parte esperar naquela
varanda, crente de que o próximo carro a aparecer seria o de meu pai?
E se esse não fosse meu pior instinto, mas o melhor de todos?
E se isso, essa necessidade de amar, fosse a melhor coisa em mim?
Há coisas misteriosas que existem além de uma ideia de dualidade, presas
num lugar intermediário, transcendente. E era exatamente o que acontecia
naquela situação. Eu bebera do cálice da tristeza de minha mãe — ela só estava
tentando me proteger, mas sua proteção nasceu da dualidade mais profunda de
todas: o medo mais terrível e o amor mais verdadeiro.
Não era um ou outro.
Eram os dois.
Naquele verão, fui despejado do apartamento na Charles Allen Drive, o que não foi
nenhuma surpresa. Eu não pagava aluguel havia meses. Na verdade, desde
dezembro, quando Mark tinha ido embora. Dick Richards disse que eu sempre
seria bem-vindo na casa dele e eu sabia que sempre arranjaria um sofá aqui e ali
onde dormir, mas muitas vezes acabava voltando para a casa de Renetta e Gerald,
pelo menos uma noite por semana.
As coisas não andavam bem por lá. Gerald tinha um espírito empreendedor,
mas sempre desistiu muito fácil das coisas. Ele gostava mais de fazer planos do
que de executá-los. E percebi que ele havia perdido o rumo. Eu chegava em casa e
o encontrava desmaiado no sofá, ou dormindo de cueca no chão com a língua
para fora. Lembrava uma criança que não queria dormir na cama e teimava em
ficar na sala com os adultos. A força vital de Gerald estava sendo drenada, pelas
drogas ou por outras batalhas pessoais, nunca soube ao certo. Ele não conseguia
mais convencer a si, muito menos a nós.
Renetta não falava comigo sobre os problemas de seu casamento, mas eu os
ouvia discutindo.
— Por que diabos você colocou meu nome nisso, Gerald? — gritava minha
irmã, referindo-se a algum documento ou contrato enquanto os dois brigavam na
cozinha.
No ano seguinte, eles decidiriam se separar.
Toda a empolgação por causa de minha carreira em ascensão acabou me
distraindo do fato de que, para todos os efeitos, meu coração ainda estava partido.
Eu estava saindo com um cara chamado Nate; ele era retinto, alto, bonito e bem
country, e tão amável, que não me importava o fato de ele ser um profissional do
sexo. Eu o levei para uma festa na casa de Clare cheia de gente alternativa e
imediatamente percebi que tinha cometido um erro: ele se sentiu deslocado em
meio a todas aquelas pessoas do mundo artístico e pareceu muito desconfortável.
Alguns amigos, como Floyd, falavam de encontros rápidos no Piedmont Park, o
que me deixava morrendo de medo. Eu não estava interessado em sexo com
desconhecidos. Teria que me esforçar muito para conseguir fazer esse tipo de
coisa com alguém que só estava ali para uma foda rápida. Eu queria me envolver
de verdade com quem me relacionava.
Por razões que não conseguia explicar bem, eu estava com medo. Não apenas
pela ameaça da aids, que surgiu nos noticiários no início de 1981 e instaurou
pânico. Era dito que, ao fazer sexo sem proteção, você poderia pegar a doença.
Assim, passou a ser comum ver preservativos e panfletos informativos sendo
distribuídos nas boates. Foi assustador, ainda mais porque era uma ameaça
iminente para a qual não havia cura, então o que deveríamos fazer? Fomos a
protestos, conversamos sobre isso constantemente e nos divertimos como se não
houvesse amanhã. Eu sabia que tinha muita sorte por não ter perdido mais
amigos para a epidemia, isso sem falar da minha própria vida, considerando o
quanto a aids estava devastando nossa comunidade. Mas meus medos com
relação ao sexo iam além disso. Tinha receio do que aconteceria se eu realmente
me deixasse levar e mergulhasse no reino da entrega total. Eu era tão diferente,
parecia não ser deste mundo. Muito alto, negro, artístico e afeminado. Acreditava
ser diferente demais para ser visto como alguém sexualmente desejável na
hierarquia dos homens gays, e por isso era mais seguro me fechar em minha
concha. Assim, uma coisa levou a outra: ao me recusar a permitir que eu fosse
desejado, acabei por nunca ser. Era um ciclo, minha autonegação e a negação do
mundo. Eu precisava de uma mudança de vida.
Minha drag sempre teve um visual Thunderdome apocalíptico e tribal
influenciado por Boy George, com moicano e apliques de cabelo. Mas, quando me
montei de forma feminina, algo mudou.
A Now Explosion estava fazendo um show com um tema de casamento e a
Wee Wee Pole abriria para eles, então subi ao palco com um vestido de festa
branco e rendado sem alças no estilo cintura justa do “New Look” da Dior. Estava
usando sapatos de salto que eram pequenos demais para meus pés, peruca e
maquiagem. Minha silhueta sinalizava que eu era uma mulher. Em minha mente,
eu estava sendo rebelde e punk; eu era um homem negro de 1,93 metro, com
peitoral e pernas cobertos de pelos, usando um vestido formal. Mesmo nos
bastidores, senti uma mudança de energia. O modo como os homens me olhavam
era feroz, quase agressiva. Foi a primeira vez que me lembro de sentir isso vindo
dos homens. O mais próximo daquela sensação foi quando John Wayne me pegou
no parque em San Diego, como se realmente me desejasse. Ser puramente
objetificado na hierarquia sexual, visto como alguém genuinamente sexy em vez
de ser colocado de escanteio, foi uma sensação surpreendente depois de ter sido
privado disso por tanto tempo.
Finalmente estava sendo desejado sexualmente, mas quando vestido daquela
forma. Eu fazia drag apenas para me divertir, mas de repente a brincadeira
pareceu ficar séria.
Isto acontece com homens gays que são sexualmente invisíveis: ao se tornarem
drags, de repente veem seus papéis serem estabelecidos — passam a ser algo que
pode ser fetichizado. Pela primeira vez na vida, têm espaço dentro da hierarquia
sexual.
Naquela época, minha drag ainda não era refinada. Era grosseira, punk rock e
subversiva o suficiente para reforçar meu objetivo de ser diferente. Mas eu
percebia que quanto mais sexy me sentia, mais os homens assistindo às
performances me empoderavam.
De certa forma, era decepcionante compreender que as pessoas eram
superficiais e podiam ser facilmente manipuladas. Em contrapartida, era um
poder recém-descoberto. Queria voltar a me vestir de forma feminina o mais
rápido possível para chocar toda a vizinhança.
Muitos homens gays procuram parceiros sexuais que sejam substitutos de seus
pais ou uma réplica deles mesmos. Eu jamais seria o pai de alguém e muito menos
encontraria alguém extremamente parecido comigo. Fazer drag foi a primeira
pista de que havia um lugar onde eu poderia ditar as regras.
Em setembro, a Wee Wee Pole entrou em estúdio para gravar os primeiros singles.
Um deles se chamava “Ernestine’s Rap”, que consistia em recitar algumas das
frases mais marcantes de minha mãe enquanto Robert tocava baixo. O segundo
era “In My Neighborhood”, que eu considerava nosso grande sucesso, e “Tarzan”.
Em novembro, a banda se desfez. Já se passara quase um ano e não tínhamos
conseguido contrato com nenhuma gravadora, então, de acordo com o plano
original de Robert, seguiríamos caminhos diferentes e tentaríamos algo novo.
Pouco tempo depois, eu estava em frente a um prédio no centro de Atlanta, na
Tenth and Juniper, o prédio onde Floyd e Bunny moravam, fumando um cigarro,
quando um carro passou. Percebi que o motorista estava me encarando.
— E aí! — cumprimentei-o.
Ele deu a volta e estacionou o carro. O rapaz era grego e tinha cabelos
castanhos, era muito atraente e usava jeans branco bem justo. A partir dali, as
coisas se desenrolaram depressa. Primeiro estávamos nos beijando na varanda,
depois na escada do saguão. A próxima coisa de que me lembro é de estar em
uma boate com ele, dançando. Ele simplesmente se infiltrou em nosso grupo.
Como ele era agradável e bonito, era legal tê-lo por perto, então não me importei.
Da vez seguinte que o vi, ele estava de mãos dadas com Cheryl, uma garota de
Chattanooga que era amiga de infância de Bunny. Ela morava no mesmo prédio
onde nos vimos pela primeira vez. Cheryl? Como assim?, pensei.
Teve uma vez que ele foi ver Cheryl enquanto eu esperava por Floyd e Bunny,
mas ela não estava em casa. Cheryl nunca trancava a porta, então entramos em
seu apartamento para esperar por ela. Uma coisa levou a outra e acabamos
transando na cama.
Depois que acabamos, olhei para ele.
— O que você está fazendo com ela, porra? — perguntei.
Ele deu de ombros, parecendo um pouco culpado.
— Você pode me estuprar se quiser — disse ele.
Naquele momento, compreendi a maneira que os homens lidavam com sexo,
como eram profundamente ridículos e movidos pelo desejo carnal — como minha
companhia, por exemplo, naquele momento. Como tudo isso era básico, aquela
vida de preocupações mundanas e libidinosas.
Que patético, pensei.
Cheryl podia ficar com ele.
A cartomante estava certa.
O estrelato me aguardava.
OITO
Pyramid
Assim como Madonna, Nova York não via necessidade de ser gentil comigo.
Algumas vezes eu dormia na casa de Simone, amiga de Renetta que morava no
Queens. Um dia, fui com ela para a casa de um amigo que tinha um apartamento
em Tribeca. Ele era traficante de cocaína, mas simpático. Ganhamos algumas
carreiras e nos sentamos no chão, conversando despreocupadamente. Em
determinado momento, enquanto ele estava em outro cômodo, precisei usar o
telefone para ligar para Floyd, que estava trabalhando como entregador em um
restaurante chinês no East Village.
— O telefone fica ali — disse Simone, apontando para o telefone fixo.
Quando eu estava desligando, o traficante voltou para a sala.
— Você estava usando meu telefone? — perguntou ele. Parecia furioso, a veia
saltada na testa. — Você estava usando a porra do meu telefone?
Ele começou a gritar. Toda a pressão de estar em Nova York, tão longe e sem
casa, de repente veio à tona e eu simplesmente desatei a chorar. Fazia muito
tempo que não me permitia ter uma crise como aquela. Tentava nunca me deixar
abater, mas minha convicção inocente de que colheria gentileza e bondade se as
plantasse tinha sido colocada à prova mais do que eu gostaria.
— Calma aí, cara — dizia ele enquanto eu soluçava. — Tá tudo bem.
Eu me recompus. Sabia tolerar frieza, mas apenas se houvesse amor por trás da
coisa. Quando minha mãe não era legal comigo, eu conseguia abstrair, mas só
porque sabia que ela me amava. Nova York, no entanto, não estava nem aí para
mim.
O inverno estava chegando, e Floyd e eu sabíamos que não ter onde morar em
Nova York durante aquela estação não era viável. A cidade já era terrível e ficaria
ainda mais no frio. Decidimos voltar para Atlanta por um tempo, então
empacotamos o pouco que tínhamos e seguimos para o sul. Nova York não tinha
nos derrotado, mas também não havíamos vencido a batalha. O plano de morar
ali aguardaria um pouco, em breve faríamos outra tentativa. Certamente,
pensamos, a boa vontade de todos os que tínhamos conhecido naquele ano
estaria à nossa espera quando estivéssemos prontos para voltar.
Quando retornei para Atlanta, Renetta finalmente tinha se separado de Gerald
e estava morando com os dois filhos em uma casa perto do Piedmont Plaza,
próxima da Lenox Square e do centro da cidade. Fiquei lá por um tempo, voltando
para casa em horários aleatórios com um rabo de cavalo alto e uma extensão de
cabelo comprida que chegava até a cintura, camisa branca de mangas compridas
cortada na altura do peito e calça amarela enfiada por dentro da bota. Um visual
discreto.
Mamãe continuava a amolecer, pelo menos em relação aos netos. Ela ligava
para lá, e Renetta atendia.
— Alô?
— Scott e Morgan já acordaram?
— Não — respondia Renetta. — Ainda estão dormindo.
E nossa mãe desligava sem mais uma palavra.
Certa noite, cheguei em casa da boate e havia um homem na sala de estar. Era
o cara grego com quem eu tinha saído e que depois saiu com Cheryl. Olhei para
ele, atônito, e depois para Renetta. Então me lembrei de que eles tinham se
cruzado brevemente, ainda que Renetta não estivesse próxima o suficiente para
saber que ele e eu estávamos saindo.
— Oi — cumprimentei, julgando as companhias de minha irmã.
No dia seguinte, contei a Renetta.
— Ai, não acredito que você foi para a cama com ele antes de mim — disse ela.
— Renetta, juro que fui.
— Mentira!
— Quer que eu descreva o pau dele para você? — perguntei.
Ela fez que não com a cabeça.
Eu sabia que ela estava procurando algo diferente depois do que acontecera
com Gerald. Nós dois tínhamos sido peões na vida dos sonhos criada por ele, na
fantasia de que ele conquistaria o mundo inteiro. De que, de alguma forma, com a
sorte, o carisma e o poder de persuasão dele, descobriria o grande segredo do
sucesso.
Mas o mundo tinha mudado. O otimismo do fim dos anos 1960 e dos anos
1970 se esgotara e, na era Reagan, o futuro não estava mais à disposição de
homens como Gerald. Ele já não inspirava grandes expectativas e não era mais
um prodígio. Por isso, começou a beber com mais frequência e a se drogar cada
vez mais. Assim, a distância entre ele e a esposa acabara se transformando em um
abismo. Já era hora de Renetta deixá-lo.
Comecei a trabalhar como go-go dancer na Weekends outra vez e arranjei um
apartamento para morar sozinho. Pouco tempo depois, Renetta pegou as crianças
e voltou para San Diego. Ela só havia ido morar em Atlanta por causa de Gerald, e
agora que o casamento tinha acabado não havia motivo para continuar ali.
— Tchau, Ru — disse ela ao se despedir, os olhos marejados.
Eu sabia que não nos veríamos durante um tempo. Aquela última conexão
com minha família em Atlanta, com a rede de apoio que eu tivera com minha
irmã durante todos aqueles anos, estava partindo. No entanto, se esse foi o fim de
um capítulo na história de Renetta, foi o início de outro para mim.
Quando chegamos a Nova York, senti que um clima diferente entre Larry e
Lahoma. De repente me senti distante de Larry, de quem eu era tão próximo em
Atlanta. Em viagens anteriores, ele havia feito amizade com um cara chamado
Michael Alig, um promotor que trabalhava na Tunnel, a boate na Twenty-Eighth
Street com a West Side Highway. Quando voltamos para a cidade, os dois se
aproximaram ainda mais. Então Michael deu a Larry um espaço na Tunnel
chamado Celebrity Club; certa noite, fui contratado para dançar lá e acabei
conhecendo Michael, do qual não gostei logo de cara — por algum motivo, senti
que ele não era confiável.
No fim da noite, ele sugeriu que fôssemos a uma boate concorrente para
avaliar o público — deve ter sido a Limelight. Fomos e voltamos de táxi; quando
paramos na porta, Michael saiu do carro e correu para a boate sem pagar o
motorista. Ficou subentendido que nós tínhamos que sair correndo o mais rápido
possível também e, naquele momento, tive certeza de que Michael Alig não era o
tipo de pessoa de que eu gostava — ele me mostrara tudo que precisava saber
sobre ele. Passei a evitá-lo nos lugares, mas tínhamos tantos conhecidos em
comum que era impossível não o ver.
Posteriormente, ele me contratou como go-go dancer na Tunnel. Não queria
me envolver com ele, mas precisava de dinheiro, então só falei com ele no fim da
noite, para pedir meu dinheiro.
— Vim receber meu pagamento.
— Só se você me beijar — disse ele.
— Não estou para brincadeira, Michael — retruquei. — Quero meu dinheiro.
— Só um beijinho — insistiu ele, manso.
Encarei-o, cansado.
— Ok — concordei.
Quando me inclinei para beijá-lo, ele enfiou a língua em minha boca e cuspiu
dentro dela. Recuei depressa, chocado e enojado, mas ele apenas riu. Aquela foi a
última vez que trabalhei para Michael.
Não entrava em minha cabeça que Larry estivesse passando tanto tempo com
aquele homem. Já com Lahoma, o fato de eu estar em Nova York só nos
aproximou. Na companhia um do outro, estávamos sempre bebendo. Eu sabia
que Lahoma vinha de uma família de alcoolistas — sua mãe, ex-alcoolista, tinha
ótimas histórias para contar sobre suas aventuras quando embriagada, embora
seguisse firme e forte na sobriedade. Ele sempre bebera moderadamente em
Atlanta, mas, ao chegarmos a Nova York, o ritmo e a frequência mudaram. Isso
deveria ter sido motivo de preocupação, mas eu estava no mesmo barco: para que
pudéssemos trabalhar nas boates todas as noites, precisávamos estar calibrados.
Também passei um tempo com Bunny e Floyd, que já estavam em Nova York.
No Dia de Ação de Graças daquele ano, nós três fomos ao Boy Bar, na St. Mark’s
Place. Estava vazio e éramos as únicas pessoas lá, bêbados, desordeiros e
barulhentos. Finalmente, o DJ se aproximou e disse:
— Pago 5 dólares para vocês irem embora.
Aceitei a oferta e fomos para outro lugar.
Em outra noite, me apresentei no Chameleon e ganhei apenas 18 dólares. Eram
tempos difíceis. Era um momento mais sombrio do que dois anos antes, e todas
as incursões que fizéramos para animar o ambiente pareciam ter se encerrado,
como se a frieza de Nova York estivesse vencendo. Meu otimismo começava a
ceder. Randy e Fenton, que tinham acreditado em mim, haviam voltado para a
Inglaterra para gravar um álbum e não estavam mais lá para me animar.
Por mais fria que fosse Nova York, também conheci pessoas naquele ano com
quem tive grande afinidade. Na primavera, fui convidado para fazer uma peça
chamada The Shaggy Dog Animation em Atlanta, no mesmo teatro onde havia
feito Rocky Horror alguns anos antes. A peça era perspicaz e eu gostava do diretor
musical, Jimmy Harry — ele era divertido, engraçado, e eu o achava muito
talentoso. Uma das músicas da peça era uma balada muito bonita cantada por
uma mulher negra com uma voz de arrepiar, que eu achava incrível e fazia
questão de dizer isso a ele.
No entanto, por mais empolgado que estivesse por estar naquela peça, eu era
apenas mão de obra contratada, não era algo meu. Num sábado à noite, depois de
uma apresentação, fiquei na rua a noite toda cheirando cocaína com amigos e
esqueci que tinha uma matinê na tarde do dia seguinte. Fui acordado com batidas
à minha porta — era o diretor de palco, dizendo que eu tinha vinte minutos para
chegar ao teatro, fazer a maquiagem e entrar em cena. Estava me jogando nas
drogas e nas festas para me distrair da sensação de estar estagnado.
Quando voltei para Nova York, consegui um emprego como go-go dancer em
uma boate chamada Savage com a ajuda de Kenny Kenny, personalidade da vida
noturna. Em dada ocasião, eu estava no camarote dançando quando a anfitriã da
noite chegou. Já tinha ouvido falar dela, mas nunca a vira. Seu nome era Susanne
Bartsch, e ela parecia uma fada madrinha pairando sobre a multidão, como se
estivesse flutuando — era uma pessoa adorável, nada a ver com o estilo nova-
iorquino severo e de cara fechada que eu esperava. Ela era de outro mundo.
Susanne veio até mim e me observou por um instante.
— Você é uma estrela — disse ela, sem mais nem menos.
Ela não sabia nada sobre mim. Não sabia que eu tinha feito um sucesso
considerável em Atlanta ou que já havia participado de algumas bandas.
Simplesmente me enxergou.
— Obrigado — falei.
Eu não entendia por que não conseguia transformar o potencial de sucesso
que outras pessoas viam em mim em uma recepção pública relevante. Foi assim
durante minha vida toda: desde minha mãe, que considerava meu estrelato uma
predestinação, até Ruth Polsky, que acreditou em mim e me deu espaço em Nova
York, ou até mesmo Randy, cujos olhos refletiram meu futuro. E então havia
Susanne também, que sabia que eu era especial e me disse isso. Só quem parecia
não perceber era o público.
Um amigo tinha uma passagem aérea não reembolsável para Londres que não
ia usar, então a ofereceu para mim. Talvez eu devesse ir para lá, pensei. Eu estava
mais pobre do que nunca, mas Nova York parecia não estar dando certo. Talvez as
coisas fossem diferentes em Londres.
Quando pousei no aeroporto Gatwick e tentei passar pela alfândega, eles me
pararam ao descobrir que eu não tinha passagem de volta, e é óbvio que eu não
possuía dinheiro para comprar a passagem. O agente de segurança, um homem
negro com sotaque indiano que usava uma peruca cacheada, me levou para uma
salinha e me revistou da cabeça aos pés usando um par de luvas descartáveis. Ele
foi cruel comigo e percebi que estava sentindo prazer em me humilhar. Em vez de
seguir em frente, fui colocado em um avião e mandado de volta para Nova York.
Parecia um pesadelo.
Eu estava andando em círculos e sabia disso. Só havia um lugar onde poderia
dar um tempo sem grandes expectativas: a casa de minha mãe. Onde é que eu
sempre me sentia seguro? Qual era o lugar que eu imaginava antes de entrar no
palco? A sala de estar de minha mãe.
Infelizmente, eu não tinha dinheiro para comprar uma passagem para San
Diego. Mas, naquela época, havia voos em que, nas paradas feitas antes do
destino final, os passageiros que fossem seguir podiam simplesmente permanecer
dentro do avião. Eu sabia que a Continental voava para San Diego passando por
Dallas, então pensei que, se comprasse uma passagem para Dallas com o pouco
de dinheiro que me restava e houvesse vaga no voo, eu poderia simplesmente ficar
no avião e seguir para San Diego como passageiro clandestino.
Quando estávamos aterrissando, porém, para meu grande azar, percebi que eu
tinha confundido os voos e que, na verdade, estava no avião que ia para Atlanta
depois de Dallas. Aquele era o último lugar onde eu queria estar, então voltar para
lá parecia uma piada de mau gosto.
Desci em Dallas, triste, e liguei para minha mãe.
— Onde você está? — perguntou ela.
— Estou em Dallas, mãe.
— Ah, Ru… — disse ela. — Olha, sabe de uma coisa? Renae e o marido estão
saindo de San Diego agora mesmo para visitar seu pai em Mansfield.
— Eles estão indo para Louisiana?
— Sim — respondeu ela. — Por que não vê se eles podem pegar você em
Dallas? Aí você vai até lá com eles e depois pega uma carona para a Califórnia.
Já tinha me apresentado em um lugar chamado Starck Club, em Dallas, logo
depois da colina onde John F. Kennedy foi baleado. Fui até lá para procurar
alguém que eu conhecesse e pudesse me arranjar um lugar para ficar, mas não
encontrei ninguém. Então dormi em um banco de praça no centro de Dallas à
espera de Renae; depois seguimos viagem para Mansfield.
Mansfield ficava a trinta quilômetros ao sul de Shreveport, bem no interior do
país. Havia uma rua principal com alguns estabelecimentos comerciais: uma loja
de autopeças, uma agência bancária e um açougue, e, mais adiante, ficava a
propriedade rural de meu pai, onde meu avô montara um armazém e criara os
catorze filhos. A casa onde meu pai crescera ainda existia, mas ele morava em
uma diferente, do outro lado da propriedade.
Sempre me senti seguro na Geórgia, mesmo nos lugares mais suspeitos, mas
outras partes do sul me deixavam assustado. Mansfield também. Havia uma
energia diferente no ar, como se tudo fosse assombrado. E o fato de eu ter acabado
de ir para Londres e voltar e depois ter dormido numa praça em Dallas fazia com
que eu me sentisse perdido e fora de mim mesmo, como se uma força invisível
girasse a meu redor, me balançando. Eu estava começando a ficar enjoado.
Fazia sete anos que eu não via meu pai. Temia reencontrá-lo, porque estava
determinado a não fazer o que sempre fizera, que era me transformar numa
versão de mim mesmo que eu achava que fosse deixá-lo confortável. Na verdade,
eu sentia pena dele por ter fugido daquela cidade pequena só para voltar anos
depois, por alguma conexão disfuncional com o lugar. Queria dizer: “Você foi para
a Califórnia e quis voltar para isso aqui?” Sabia que ele tinha voltado por um ideal
nostálgico e romantizado do que o lugar representava, mas isso não levava em
consideração o fato de que aquele não era um lugar para pessoas negras.
Eu estava com um de meus filmes, Starbooty III. Quando chegamos à casa de
meu pai, assistimos à fita juntos. Queria mostrar a ele quem eu realmente era.
Durante o primeiro ato inteiro, eu apenas corria. A primeira cena, inclusive, era
um take de minhas pernas enquanto percorria a Times Square.
— Essas pernas são suas? — perguntou meu pai, incrédulo. — São suas
mesmo?
Eu só descobrira que tinha pernas bonitas alguns anos antes, quando alguém
no Pyramid me viu de minissaia e disse: “Suas pernas são lindas!” Com aquele
elogio, senti que a profecia tinha se cumprido: eu me tornara a garota mais bonita
da família.
— Sabe, Ru — começou meu pai —, você foi um bebê tão bonzinho. Nunca
chorava ou reclamava. Sempre foi um bom menino.
Entendi o que ele queria dizer. Eu tinha feito a melhor coisa possível: deixá-lo
confortável, minimizar o quanto ele teria que se preocupar comigo ou cuidar de
mim. E eu nunca chorava mesmo. Quando eu tinha 6 meses, Renetta
acidentalmente quebrou meu braço enquanto tentava me dar banho, e nossos
pais só entenderam que tinha algo errado porque eu estava chorando, o que era
bastante incomum. Ele sempre contava essa história, porque exemplificava o que
meu pai achava ser uma coisa boa. Eu nunca tinha precisado de nada nem de
ninguém, muito menos dele.
Mas a verdade é que eu precisava de uma coisa naquele momento, mesmo que
não fosse algo que meu pai pudesse me dar. Eu estava perdido e não sabia como
me encontrar. Ele tinha voltado para aquele beco sem saída, que era exatamente o
que eu estava tentando fazer ao voltar para a casa de minha mãe. E se a
cartomante tivesse se enganado sobre a glória que esperava por mim?
E se, em vez disso, eu acabasse igual a ele?
Após Mansfield, fui para San Diego com Renae e depois segui para Los Angeles.
Imaginava que em L.A. conseguiria arranjar alguma coisa com as pessoas que
tinham se interessado por Starbooty. Acabei indo parar no The Gong Show, um
programa de talentos para amadores, e fiquei em segundo lugar, mas isso não me
abriu nenhuma porta.
Rozy morava em Mid-Wilshire, então pedi para ficar um tempo na casa dela
enquanto resolvia as coisas. Só que não estávamos nos dando muito bem; eu
estava velho demais para ficar de favor na casa dela e a situação era
constrangedora. Eu ficava em casa o dia todo, até terminar o programa da Oprah,
e saía antes de ela chegar do trabalho, para não termos que nos ver. Aí
perambulava pelas ruas de Los Angeles até ela estar dormindo, para só então
voltar sorrateiramente para casa. Eu era RuPaul, a superestrela destinada à fama,
e estava dormindo no sofá de minha irmã mais nova sem um centavo no bolso. O
mesmo RuPaul que sempre acreditei, desde a profecia, que chegaria ao topo do
mundo. O que acontecera? Como eu havia acabado naquela situação? Seria
aquele o fim? Nunca tinha me sentido tão para baixo, tão humilhado.
Certa vez, vi Jackée Harry filmando um comercial para a ARCO em frente ao
Century Plaza Towers. Fiquei boquiaberto ao vê-la ali, perfeita em um vestido de
gala de cetim vermelho. Ela representava tudo que eu queria ser. Afinal, eu deveria
estar fazendo a mesma coisa: sendo porta-voz de uma empresa que me pagaria
um cheque expressivo para estar de cabelo feito e maquiagem diante das câmeras.
Então, estava profundamente deprimido. Ser a única pessoa andando a pé em Los
Angeles faz isso com as pessoas.
Em outubro, fui a São Francisco para um evento do Orgulho Gay. Sylvester, o
cantor cuja foto Renetta tinha na parede, o primeiro homem que vi se vestir com
roupas femininas como um ato de rebeldia, muito rock ‘n’ roll, estava morrendo
de aids. Ele se dirigiu à multidão por telefone, e sua voz foi transmitida por um
alto-falante.
— Eu amo todos vocês — disse. — Agradeço a vocês por minha vida!
Pensei na letra da música “(Sittin’ On) The Dock of the Bay”, de Otis Redding:
Ouvir a voz tensa de Sylvester foi como presenciar a morte da música disco.
Uma época alegre de minha vida também estava morrendo.
* “Porque não tenho motivo para viver/ Parece que nada vai dar certo para mim.”
[N. da T.]
DEZ
Supermodel
Em junho, eu estava no Pyramid quando um deus grego entrou pela porta — era
alto, charmoso e tinha um corpo escultural. Ele se sentou a meu lado e nossos
joelhos se tocaram, exatamente como fora com Mark naquele dia em Atlanta,
tantos anos antes. A familiaridade era quase incômoda. Então ele se apresentou e
me entregou um panfleto.
— Meu nome é David. Vou dar uma festa, você podia aparecer lá.
David, Lahoma e eu nos tornamos amigos bem depressa. Fiquei sabendo que
ele tinha acabado de terminar com o namorado, e que todo mundo estava tão
encantado com ele quanto eu. Na época, eu estava hospedado na casa de uma
garota que morava no andar de cima do McDonald’s na First Avenue, no East
Village. Eu me lembro de David ter deixado sua bicicleta acorrentada ao corrimão
do terceiro andar e ter demorado uma eternidade para ir buscá-la, o que me
atormentou por semanas. Nós ficávamos dando uns amassos na cama, só nos
beijando. E então, quando a tal festa chegou, as coisas com David estavam
intensas demais para que eu aparecesse.
Sabia que ele me afetava, embora na época não entendesse exatamente o
porquê. Agora vejo que era a mesma história de sempre, minha kriptonita: estava
me apaixonando por um homem charmoso, atraente e emocionalmente
indisponível para mim. Era um eco do que eu sentira por Mark, que por sua vez
era um reflexo de minha relação com meu pai. Eu era autossuficiente e
inteligente; sempre conseguia me controlar e cuidar de mim mesmo, mas
relacionamentos com esse tipo de homem eram o bastante para me
desestabilizar.
Larry Tee estava inaugurando uma nova festa semanal chamada La Palace de
Beauté em um prédio na Seventeenth com a Broadway, onde a Factory de Andy
Warhol havia prosperado. Muita coisa dependia dessa festa, não apenas para
Larry, mas para todos nós: Floyd, Lahoma, Bunny e eu. Nosso prestígio na cidade
dependia do sucesso da festa, principalmente o meu. E eu sabia que, se ela fosse
bem-sucedida, eu poderia usá-la como trampolim para a próxima. Na época, o
fenômeno das festas semanais era a febre de Nova York. Em vez de cada boate ter
como foco um tema específico, contratavam-se sete promotores diferentes para
organizar noites temáticas para cada noite da semana, cada uma com a própria
identidade, como uma forma de revigorar o cenário da vida noturna. E aquela
seria a nossa. Era como se fôssemos um grupo de teatro e aquela fosse a estreia de
nosso espetáculo. Nossas cortinas se abririam na primeira terça-feira de julho.
Na noite anterior à estreia, Nelson teve um ataque cardíaco e morreu na
própria cama. O choque da morte dele repercutiu em nossa bolha; foi um
lembrete de que os termos de nossa realidade poderiam mudar, de que a qualquer
momento poderíamos perder um membro do elenco que considerávamos vital.
Ele fora nosso elo com tudo que veio antes de nós, nosso guia e mentor; sua morte
marcou o último suspiro da Nova York da era Warhol que romantizávamos. Com
a morte dele, Larry Tee e Lahoma passaram a pagar o aluguel da casa na Ninth
Avenue e eu me mudei para o antigo quarto de Nelson.
Foi estranho manter a estreia, mas decidimos fazer isso em homenagem a
Nelson. Era o que ele teria desejado. Randy e Fenton estavam inaugurando a
própria festa de terça-feira numa boate do outro lado da cidade, na mesma data.
No fim da noite, vi Randy em meio à multidão na La Palace.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei. — Eu ia passar na sua festa
depois da minha apresentação.
Ele parecia triste.
— Ninguém apareceu — respondeu ele. — Não deu certo.
Percebi que ele olhava em volta, frustrado com o fato de nossa festa estar
melhor. Todo mundo estava lá. Havia uma magia no ar.
Na época, todos éramos obcecados por modelos. Nos anos 1960 e 1970, beldades
glamorosas como Sophia Loren, Elizabeth Taylor e Marilyn Monroe haviam dado
lugar a estrelas com as quais o público poderia se identificar um pouco mais,
como Sally Field interpretando uma operária de fábrica ou Jane Fonda como
esposa de um veterano do Vietnã. As modelos se tornaram estrelas de cinema e as
estrelas de cinema evoluíram para atrizes sérias. Foi em 1978 que Cheryl Tiegs
apareceu na capa da Time com a manchete “A modelo da América”, o que me
mostrou que ser modelo — e por conseguinte a moda no geral — era algo viável,
uma indústria em que se poderia construir carreira. E todos — de pessoas como
eu a meninos e meninas de cidades conservadoras que adoravam moda — sabiam
os nomes das grandes modelos cujos rostos estampavam os anúncios por aí.
O ápice aconteceu no fim dos anos 1980, quando a moda de grife ficou maior
do que nunca: à medida que Halston, Calvin Klein e Versace se tornavam nomes
consagrados, o mesmo acontecia com as modelos que faziam com que as roupas
parecessem ainda mais glamorosas.
Naquela época, a intenção não era que o público se identificasse com as
modelos ou que estas fossem inclusivas. Elas eram, na verdade, vistas apenas
como a grande inspiração, guardiãs de uma beleza inalcançável, seres super-
humanos de membros compridos que emanavam sofisticação. No entanto, por
mais que os exemplos de beleza se tornassem cada vez mais distantes da
realidade, a moda de luxo em si era um setor em expansão que se tornara mais
acessível aos clientes. À medida que os estilistas que faziam designs para
produtos selecionados começaram a licenciar seus nomes para utensílios,
fragrâncias e acessórios, tornou-se mais possível do que nunca que os
consumidores experimentassem o luxo. A crescente disseminação das marcas de
grife só serviu para fazer com que as modelos, embaixadoras das marcas, ficassem
ainda mais famosas.
Depois que voltamos da Itália, redobrei os esforços para lançar minha carreira
musical, trabalhando com Randy e Fenton como meus empresários e compondo
demos com Jimmy Harry, o diretor musical da peça que eu fizera em Atlanta e de
quem gostava muito. Sempre achei que meu caminho para o estrelato se daria por
meio da música, não da atuação; ainda não havia um lugar em Hollywood para
alguém como eu. Hollywood não “entendia” o diferente, assim como não entende
ainda hoje. Se eu causasse impacto suficiente na indústria musical, talvez
conseguisse levar essa fama para o cinema e a TV.
Comecei a trabalhar com dois outros amigos do meio, que conheci por
Susanne: um maquiador chamado Mathu Andersen e um designer chamado
Zaldy Goco. Os dois eram estilistas de alta-costura; enquanto Mathu era um
homem da Renascença, um mestre em cabelo, maquiagem e fotografia, Zaldy era
um gigante da moda, formado pelo Fashion Insti-tute of Technology e designer de
olhar impecável. Quando me virei e vi meu reflexo no espelho pela primeira vez
depois do trabalho dos dois, senti que tinha renascido — e mal podia esperar para
que o mundo me visse.
Sabia que Randy e Fenton estavam mandando minha demo para as gravadoras,
mas também sabia que ela estava passando despercebida pela maioria. Os dois
tinham me dado uma chave da casa deles, um loft na Varick Street, e às vezes eu
dormia lá quando não queria voltar para casa e encontrar Larry e Lahoma.
Houve um dia em que eu estava acordando e ouvi a secretária eletrônica. Era a
voz de uma mulher.
— Olá, Randy e Fenton, aqui é Monica Lynch, da Tommy Boy Records — disse
ela. — Recebemos a demo de RuPaul e queremos fechar negócio.
Naquele momento, soube que minha vida iria mudar. O universo se alinhou de
modo que a mesma gravadora que havia coproduzido o New Music Seminar, um
veículo para que artistas independentes conseguissem um contrato, fosse a que
assinaria comigo.
A notícia de que eu tinha assinado um contrato com a Tommy Boy se espalhou
depressa quando comecei a gravar meu álbum. Quase no fim do processo, Larry
me ligou.
— Tenho uma música que quero que você ouça — disse ele.
Ele me falou que a escrevera inspirado pelo novo visual que Mathu e Zaldy
tinham criado para mim. As minissaias da Fourteenth Street e as perucas de
segunda mão deixaram de existir; passei a usar vestidos feitos sob medida e
sapatos de salto que, pela primeira vez, serviam em mim.
Por mais estranhas que as coisas estivessem com Larry, ele ainda era meu
amigo e eu queria ser justo com ele.
— Claro, vou ouvir — concordei.
Quando Jimmy Harry e eu a ouvimos, achamos engraçados os trechos da letra
inspirados na famosa frase de Linda Evangelista sobre se recusar a sair da cama
por menos de 10 mil dólares por dia, mas a melhor coisa da música era o título.
Pegamos aquela ideia, o que pareceu aceitável no momento, e começamos a
compor nossa própria versão como se estivéssemos engarrafando a sensação de
ver aquelas modelos desfilando na passarela em Milão. Foi mérito de Larry ter
conseguido cristalizar na letra o que eu estava me tornando, conectar os pontos
entre minha persona e a obsessão da época.
Gravei a nova versão da música que Jimmy e eu havíamos escrito — e que
Larry havia inspirado — no apartamento do produtor Eric Kupper, que ficava em
Battery Park City, no 28o andar de um prédio alto com vista panorâmica para o rio
Hudson. Enquanto gravava, eu olhava para a Estátua da Liberdade, que se erguia
sobre o porto como a maior modelo do mundo. Pensei em tudo que ela
representava: um símbolo dos Estados Unidos, o lugar onde pessoas comuns
transformavam sonhos impossíveis em realidade.
Agora vejo que tudo que aconteceu me levou àquele momento. Tudo que vivi —
os altos e baixos, os medos, as alegrias, as descobertas — me moldou para ser a
potência que eu me tornaria com aquela música e com a mudança de visual. Lá
estava a profecia da vidente, tornando-se verdade. Meu corpo, com suas
proporções de modelo, que nasceu para fazer drag, que sempre foi diferente, que
nunca foi masculino o suficiente para o mundo, agora tinha um propósito. O amor
pela atuação que eu havia aperfeiçoado quando criança para fazer minha mãe rir
passaria a ocupar seu lugar de direito no palco do mundo. Até mesmo o fato de eu
sempre ter tido uma relação desconfortável com o sexo passaria a ser um de meus
superpoderes. O meio drag em que cresci sempre foi indecente e sexualmente
intenso. E se eu pegasse tudo aquilo e transformasse em algo popular? E se eu
transformasse aquele universo em algo tão divertido, agradável e apropriado para
famílias que fosse possível mostrá-lo para sua avó? E se eu trouxesse o mesmo
glamour que me arrebatou naquele desfile da Versace para tudo que fizesse, mas
com uma piscadela, um sorriso cativante e o espírito de bondade que tentava
seguir e que sempre considerei essencial em outras pessoas?
Todas as minhas aventuras e tentativas fracassadas de me tornar alguém
foram parte do processo. Era para isso que eu tinha sido colocado no mundo. E
quando estava em uma pizzaria na Sixth Avenue e ouvi “Supermodel” tocando no
rádio, não fiquei surpreso. Pareceu a coisa mais óbvia do mundo.
O single não foi um sucesso nas rádios, não chegou nem a entrar no Top 40,
mas foi ali que a ideia RuPaul nasceu, inspirando pessoas fora de minha bolha a
falar sobre mim, sobre androginia e sobre drag como nunca antes. Pouco tempo
depois, surgiram os questionamentos: Por que você? A arte drag existia desde
sempre, então por que eu tinha conseguido alcançar o sucesso depois de tantos
obstáculos?
Mas sabia que as pessoas jamais entenderiam a delicada escolha que eu fizera
para que tudo funcionasse. Tinha dominado a arte da “ousadia suave”: duas
colheres de Diana Ross, uma pitada de Cher, um toque de Dolly Parton, tudo
arrematado com a amistosidade familiar de Walt Disney. Antes, eu era uma
confusão, um borrão que só algumas pessoas conseguiam entender. Finalmente
tinha entrado em foco, bem a tempo de ser visto pelo mundo inteiro.
Os anos 1980, com todo o excesso e a opulência, também foram marcados por
coisas sombrias: o terror do crack, a epidemia de aids e a crise das poupanças e
empréstimos. Havia um anseio por frivolidade, a mesma irreverência e o desejo de
diversão que me animaram a vida inteira.
Uma janela se abriu. Eu aproveitei a oportunidade e entrei.
As modelos daquela época não eram apenas contratadas para vestir roupas, mas
sim para trabalhar em conjunto com os estilistas. Elas trouxeram para o processo
criativo uma importância e uma influência nunca antes exercidas, e
representavam o poder que vinha da conquista da liberdade por meio da beleza e
da força. Elas eram independentes.
Passei muito tempo tentando conquistar meu próprio lugar sob os holofotes,
por isso odiava ficar no fundo do palco com a banda de Larry Tee, odiava esperar
na fila para que o mundo me visse. E, naquele momento, meu sonho estava
finalmente se realizando.
No outono seguinte, eu estava novamente em Milão para o desfile da Versace.
Não mais nos assentos do fundo com ingressos de última hora, mas, sim, para me
apresentar no pós-festa, convidado por Gianni Versace. Durante o desfile, ele me
levou aos bastidores e tirei foto com as modelos, usando uma peruca loira e
volumosa e um vestidinho justíssimo. Na foto, Naomi Campbell está a meus pés,
Christy Turlington está olhando para cima em minha direção e eu estou sorrindo,
radiante, como se nunca tivesse duvidado que aquele momento chegaria.
ONZE
Mãe
Amava a música porque adorava Martha Wash, mas também porque aquela
era uma ode à resiliência. A vida sempre tentaria nos derrubar, mas aquela
música era um lembrete para continuar lutando e jamais desistir.
Como todas as coisas mais importantes da vida, porém, esse é um paradoxo.
Às vezes precisamos desistir; aprender a dizer adeus é a coisa mais profunda que
qualquer um de nós pode fazer na vida. A morte é inevitável e faz parte da
experiência de se estar vivo, é a sombra do viver. Isso continua sendo um tabu em
nossa cultura porque somos regidos por nosso ego, e o ego quer acreditar que se
pode enganar a morte, que existe um caminho para a imortalidade. Mas, no
fundo, sabemos que estamos aqui por um curto período de tempo.
Pouco depois do lançamento de “Supermodel”, Randy e eu fomos de avião para
a Califórnia e depois de carro até San Diego. Ele era a única pessoa de minha nova
vida, da versão de mim mesmo que criei depois de sair de casa, que levei para
conhecer minha mãe. Quando chegamos à casa dela, mamãe estava andando
com uma bengala.
— Ah, não foi nada — disse ela. — É que escorreguei, caí e machuquei o
quadril.
Uma queda geralmente é o começo do fim, embora eu não soubesse disso.
Mamãe gostou de Randy e foi gentil com ele. Não me passou despercebido o
fato de que a pessoa que eu estava levando para conhecê-la era quem eu sabia que
mais acreditava em meu potencial, do mesmo jeito que minha mãe acreditava.
Era a pessoa em quem eu confiava para me ajudar a avançar para a próxima fase,
seja lá qual fosse.
Muitas coisas ficaram para trás no ano em que fiquei famoso; me despi de
muitas peles e encerrei muitos ciclos. Desde o momento em que assinei o
contrato com a Tommy Boy, por exemplo, não voltei mais a ficar sem dinheiro.
Pela primeira vez na vida, eu estava financeiramente bem, o que não queria dizer
que tinha ficado rico da noite para o dia. Mas, desde o contrato, nunca mais senti
medo de não ter onde morar ou da pobreza extrema. A diversão havia diminuído
um pouco, pelo menos da forma irresponsável e inconsequente como era antes.
Afinal, agora que eu era uma figura pública, precisava ser responsável por minhas
ações de uma maneira diferente, ciente do que estava em jogo se eu me metesse
em alguma encrenca. Havia me tornado a drag queen queridinha dos Estados
Unidos, então não poderia mais tocar o terror nas ruas.
Mas também havia coisas novas, uma nova vida, embora cada coisa que surgia
também marcasse o fim de outras. Com o dinheiro, vieram novas preocupações.
Com a fama, novas responsabilidades. A vida seguiu, na dualidade infinita de
todas as coisas, onde não se pode ter um sem o outro.
Somos responsáveis por nós mesmos. Essa é uma verdade incômoda que muitos
relutam em aceitar. Crescemos querendo acreditar que uma força benevolente,
talvez nossos pais, cuidará de nós para sempre. Mas precisamos tomar as rédeas
de nossa vida. Temos que abrir mão do colete salva-vidas, ou então parar de
procurar por um. Precisamos ficar bem por conta própria.
Às vezes, o que não conseguimos deixar para trás nem é positivo. Às vezes nos
apegamos a mágoas passadas e opiniões antiquadas, nos recusamos a esquecer o
passado. No entanto temos que permitir que isto aconteça — desapegar tanto das
coisas que desprezamos quanto das que amamos. As pessoas mais sábias sempre
dirão a mesma coisa: o ego é o que nos mantém presos, enquanto o desapego é o
caminho para a liberdade. Mas nunca fica mais fácil dizer adeus.
Depois de “Supermodel”, a MTV News quis fazer uma matéria sobre mim.
Fomos de limusine da Times Square até um shopping em Jersey City, onde falei
sobre minha filosofia para o apresentador.
— Todo mundo faz drag — declarei.
Decidi parafrasear a drag queen sobre a qual Mark havia me falado tantos anos
antes, em Atlanta.
— Nós nascemos nus e todo o resto é drag.
Depois, me colocaram para correr de salto alto por um shopping em Jersey City
enquanto as pessoas olhavam para mim como se eu fosse uma estrela do rock.
Na semana seguinte, voltei para San Diego e fui ver minha mãe, pois sabia que
ela estava morrendo. Ela estava em uma cama na sala de estar para facilitar os
cuidados médicos. Então, ligamos a TV na MTV e assistimos juntos à matéria
quando foi ao ar. Ela viu tudo, admirada, depois virou-se para mim.
— Neguinho, você é uma figura.
Era uma coisa tão simples de se dizer, parecia não haver nada por trás daquilo.
Mas, nas entrelinhas, havia um oceano de significados ocultos. Notei em sua voz a
percepção de que a profecia se tornara realidade e o reconhecimento da vitória
que ela sentia por ser minha mãe, mesmo estando à beira da morte. Ela era a mãe
da pessoa que aparecera na TV, a mãe da celebridade que eu havia me tornado.
Aquela era a mesma sala de estar em que eu dançava e cantava para ela. Que
incrível. E agora era eu que estava naquela telinha. Não conseguia pensar em nada
mais mágico do que aquilo. Naquele momento, senti que havia uma força divina
em ação que era maior do que nós e que mal conseguíamos conceber.
Minha única responsabilidade tinha sido seguir em frente, e assim o fiz, até o
ciclo se completar e me ver de volta no início de meu sonho, onde tudo começou.
Agora meu dever era aprender a dizer adeus.
Fiquei lá naquela noite, no quarto dos fundos, e acordei de madrugada com
minha mãe chamando por mim.
— Venha aqui — pediu ela. — Preciso de você.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Ru, estou morrendo de vergonha — disse ela. — Mas acho que me sujei.
Você pode me ajudar?
— Claro, mãe.
Eu a limpei, a levei até o banheiro e cuidei de tudo.
Ela tinha trocado todas as minhas fraldas quando eu era criança, e naquele
momento eu estava lá para ajudá-la. De todas as coisas que fiz em minha vida,
aquela foi uma das maiores demonstrações de amor e respeito que tive o
privilégio de expressar.
De manhã, chamei um táxi e dei um beijo nela antes de ir embora.
— Te amo, mãe.
Ela piorou depressa. Antes de morrer, pediu para minha sobrinha Morgan me
ligar.
Mamãe havia perdido a audição, mas não importava, porque bastava que ela se
fizesse ouvir.
— Ru, só quero que você saiba que eu te amo muito e tenho muito orgulho de
você.
Algumas semanas depois, fui convidado para me apresentar no encerramento
de uma marcha pelos direitos LGBTQIAP+, em Washington. Muitas pessoas
discursaram, homens e mulheres falando em tom inflamado sobre o movimento
pelos direitos da comunidade. Quando o sol estava se pondo, Cybill Shepherd
chamou meu nome e eu subi ao palco. As pessoas se acotovelavam para me ver, e
nuvens de poeira levantavam do chão, parecendo tempestades de areia.
Quando a música começou, a poeira se tornou laranja sob a luz do sol poente.
Ao longe, vi um avião decolando em Dulles, suavemente empinado para o céu, e
pensei: Minha mãe.
Quando retornei ao hotel, Randy telefonou.
— Estava te vendo na TV! — exclamou ele. — Ah, antes que eu me esqueça:
Renetta ligou para você.
Então comecei a chorar, pois já sabia o motivo da ligação.
Eu tinha acabado de começar a ganhar dinheiro quando minha mãe morreu, mas
ainda não o suficiente para comprar ternos elegantes. No funeral, usei uma calça
preta e um blazer azul-marinho. Por muitos anos me arrependi disso. Era algo
com que eu me preocupava tanto, e em grande parte por causa dela — ela com
certeza teria reparado no preto com azul-marinho. Hoje em dia, toda vez que
visto um terno bonito penso nela. É na estética vibrante e intencional de minha
mãe que sempre me inspiro ao me vestir.
A vida pode parecer uma cadeia inevitável de acontecimentos, um trem
correndo num trilho. Às vezes ele avança devagar, quase parando, e às vezes tão
depressa que parece estar desgovernado. Assim era a fama para mim,
principalmente depois de removidos os obstáculos dos trilhos: dúvidas sobre mim
mesmo, drogas, álcool e relacionamentos tóxicos (a maioria dos quais só existia
em minha cabeça). Quando me sentei na poltrona do maquinista, o trem pareceu
implacável e a vida ficou mais empolgante. Mas esses marcos, como a morte de
minha mãe, tornam-se ainda mais impactantes quando se tem o discernimento
para compreender o que significam. É preciso pisar no freio, parar e ouvir. Ouça.
Preste atenção. A vida é agora.
Minha mãe nunca cuidou de si mesma. Ela foi resiliente o bastante para sair
das garras da depressão depois que meu pai foi embora. Ela seguiu em frente.
Mas, em muitos aspectos, era frágil como um passarinho. Os médicos disseram
que minha mãe morreu de câncer, mas acredito que ela tenha morrido de rancor.
Estava calejada, com raiva, ainda que esses sentimentos tenham se suavizado
com o passar dos anos; no fim das contas, ela não conseguira se desvencilhar das
próprias trevas. Foi sua recusa em se libertar que a manteve estagnada.
Desde que me entendo por gente, minha mãe falava que queria ser cremada.
— Ou, melhor ainda, largue meu corpo na sarjeta e deixe a cidade me enterrar.
Já paguei impostos demais — dizia ela.
No entanto, quando o momento de fato chegou e ela se deparou com a morte
iminente, insistiu em ter um caixão. Entendi isso como uma última manifestação
de sua origem católica, um sinal de que ela não era tão indiferente quanto
aparentava ser.
Eu tinha que aprender com minha mãe. Precisava viver a vida de um jeito
diferente. Precisava aprender a dizer adeus — a velhas ideias, a posses e até
mesmo a algo tão fundamental como meu corpo, que um dia vai virar pó.
A vida não passa de uma fase, e a morte é a próxima. Mas isso é parte de um
todo, da verdade, da fonte de tudo que somos, manifestada para viver a
humanidade por um breve segundo. Eu sabia disso. O problema era que, quando
Renetta telefonou, eu não imaginava que chegaria tão rápido.
Ou será que imaginava? Minha mãe aguentou o máximo que pôde para ver o filho
no auge de seu potencial. Ela me amava muitíssimo e segurou as pontas até que a
profecia se cumprisse.
Pensar nisso hoje me faz dar risada. Não porque não acho que tenha sido por
amor, mas porque sei que foi também por pura obstinação. Ela viveu tempo
suficiente para provar que estava certa.
Posso até ouvi-la dizer: “Estão vendo só, seus filhos da puta? Eu avisei”.
* “Ainda me lembro de ouvir minha mãe dizer/ ‘Nunca! Nunca se deixe abalar!’”
[N. da T.]
DOZE
Elevador
Os momentos que definem uma vida nem sempre são os que se espera.
Naqueles primeiros meses com Georges, houve muitos momentos bons. Eu ia
me apresentar em várias cidades, e ele me acompanhava. Foi comigo para Los
Angeles, onde jantamos no Chateau Marmont, e para Miami, onde comemos
sanduíches cubanos e tomamos café con leche no David’s. Depois de um show no
Radio City Music Hall, eu o apresentei a Diana Ross, que o beijou na boca,
deixando uma marca de batom roxo que o extasiou. E ele foi comigo para Detroit,
onde me apresentei para Aretha Franklin e ela me deu um cheque endereçado a
“Ruth Paul”. Eu me sentia seguro com ele mais do que já tinha me sentido com
qualquer pessoa. Mesmo em meus relacionamentos mais estáveis eu me revirava
na cama à noite, inquieto. Era como se meu corpo soubesse que eu não estava
totalmente em segurança ao lado daqueles caras. Mas com Georges eu dormia
profundamente, e ele também, como se estivéssemos protegidos pelo santuário
que criamos um para o outro.
Mas aquele sentimento incômodo ainda existia em mim: a desconfiança, a
espera pelo pior. A certeza de que algo daria errado. Óbvio que daria. Isso sempre
acontecia. E, assim como fiz com Mark e depois com David, criei pequenos testes
para que ele confirmasse sua devoção a mim, umas armadilhas aqui e ali,
convencido de que ele me decepcionaria e também me deixaria esperando na
varanda.
Certa noite, depois de irmos a uma boate, discutimos na volta para casa. Lá
havíamos encontrado alguém que eu conhecia, um rapaz negro de pele clara e
sardas, e fiquei sabendo que Georges tinha saído com ele algumas vezes. Então
começamos a discutir quando estávamos no saguão do prédio.
— Não gostei de saber disso — falei, ríspido.
Por que Georges tinha me contado? Ele deveria saber que isso me deixaria
inseguro. Esse era o problema, ele era só um garoto, sem maturidade para evitar
esse tipo de gafe.
— Acho melhor você não subir — concluí.
Ding! As portas do elevador se abriram. Entrei e me virei para encará-lo, e ele
olhou no fundo de meus olhos.
— Quer que eu vá embora? — perguntou ele.
Naquele momento, percebi o quanto ele estava triste. Enxerguei com nitidez o
quanto o magoava ter me chateado. Senti tudo isso nele, e amei tudo que vi.
— Não — respondi. — Vamos subir.
Os sinais sempre estiveram lá. Eu estava chapado sempre que podia desde os 10
anos. Depois de entrar na linha no ano em que fui coroado Rainha de Manhattan,
as drogas voltaram aos poucos. Comecei a usar esporadicamente. Quando fiquei
famoso, sempre havia uma garrafa de champanhe nos bastidores e, à medida que
minha carga de trabalho aumentava, eu fumava cada vez mais maconha, até que
comecei a fumar assim que acordava.
Certa vez, estava em Monte Carlo e iria me encontrar com Elton John; ao
checar minhas malas, encontrei um pouco de maconha guardada. Estava em um
voo comercial e, se a alfândega houvesse encontrado aquilo, eu teria sido preso.
Teve também uma vez que eu estava indo para Vancouver gravar um filme e, na
fronteira canadense, revistaram minha mala e encontraram uma garrafinha com
pontas de baseado que eu nem lembrava que estava lá e uma bolsa com restos de
cocaína. Então o policial me levou para um canto e disse:
— Olhe só, nós sabemos quem você é e vamos deixar você ir embora, mas é
melhor tomar cuidado.
Naquele ano, o mesmo em que Georges estava chegando ao fundo do poço em
Miami, eu comprava cocaína do traficante mais asqueroso de Nova York — um
cara que vendia para os tabloides fotos de celebridades usando heroína — e
cheirava tudo sozinho.
Eu estava me apresentando em boates, promovendo meus produtos e
gravando filmes. Vivia exausto, e a única maneira que conhecia de me sentir
conectado com a pequena parte remanescente de mim era me drogando. Será
que, no fundo, eu não sabia que esse dia chegaria e que teria que admitir para
mim mesmo meu vício? Até mesmo minha terapeuta, em nossa terceira sessão,
me dissera:
— Quando você vem aqui chapado, só consigo acessar 60% de você.
Ou talvez eu não conseguisse enxergar isso porque não tinha consciência da
profundidade do vício de Georges. Assim que ele me contou a verdade, percebi
que eu havia estado em profunda negação. Fizera vista grossa para todas as pistas.
Isso me forçou a me perguntar: Por quê? Provavelmente porque eu tinha muito
medo de encarar o fato de que também não estava conectado comigo mesmo, de
que nunca estava totalmente presente em minha vida. Usara Georges como meu
canal para a vida, para o sucesso, para a alegria. Eu o usara desde que nos
conhecemos, desde que ele me carregou na pista de dança na Limelight, desde o
momento em que vi seu sorriso enorme e bobalhão quando ele voltou da cabine
de comando do jato particular em que estávamos. Ele era minha lente para o
mundo, os olhos que me faziam ver como minha vida tinha se tornado
maravilhosa.
Se ele estava metido em uma situação tão séria, o que isso dizia sobre mim?
Georges e eu continuamos indo juntos às reuniões enquanto ele estava em
tratamento, mas permanecíamos distantes um do outro. Ele estava com raiva de
mim e eu não entendia o porquê. Hoje vejo que ele se sentia assim por ter sido
obrigado a ficar atrás de mim, sempre à minha sombra. A metanfetamina leva
você às nuvens quando está fazendo efeito, mas, depois que você desce e o efeito
da dopamina acaba, tudo que resta é uma enorme sensação de fracasso. Ele era
tão jovem quando nos conhecemos, tinha uma vida tão promissora como
designer e artista e renunciou a tudo aquilo para carregar minha bolsa. Como ele
poderia me perdoar? Como poderíamos perdoar um ao outro?
Voltei para Los Angeles antes de Georges sair da reabilitação. Quando
telefonei, ele me pediu que procurasse por metanfetamina em todos os lugares da
casa, pois tinha escondido drogas em todos os cantos. A pedido dele, joguei tudo
fora.
Quando Georges concluiu o tratamento, pedi que fosse para Los Angeles, mas
ele não quis.
— Acho que preciso ficar aqui e continuar trabalhando em minha sobriedade.
— Não sei se é uma boa ideia, Georges — falei. — Por que continuar no olho do
furacão? Precisamos cuidar da gente, do que ainda temos.
Ele ficou em silêncio do outro lado da linha por um tempo, depois disse:
— Só acho que preciso ficar aqui.
— Então vamos ter que nos separar — repliquei. — E vamos ter que abrir mão
de tudo que construímos.
Por um tempo, ele ficou em silêncio novamente.
— Está bem.
Voltei a Miami depois de nossa separação para ver o que ain-da precisava ser
concluído no apartamento e percebi que tudo estava malfeito. Eu ligava um
interruptor e as lâmpadas se acendiam em outro cômodo; as torneiras de água
quente e fria estavam invertidas; os espelhos que cobriam uma das paredes na
intenção de refletir a água do oceano estavam quebrados, provavelmente devido à
tentativa de instalação de uma tomada que foi encaixada com força demais. Tive
um vislumbre de meu reflexo no espelho estilhaçado. Não dava mais para desviar
o olhar.
Dei um suspiro. Parecia que todo mundo que trabalhara no apartamento tinha
usado metanfetamina, não apenas Georges.
O empreiteiro nunca mais voltaria. Minha antiga vida também não.
Eu estava completamente submerso.
CATORZE
Lar
Minha separação acabou comigo da mesma forma que eu sabia que a separação
de minha mãe tinha acabado com ela. Quando eu era criança, ela acertara na
mosca ao dizer: “Ru, você é sensível demais e rumina muito as coisas”.
Esse aviso ganhara um significado mais profundo porque ela estava certa.
Quando se é tão sensível, um término como aquele é devastador. Ter me aberto
tanto para alguém foi como uma fusão: ele se tornou eu, e eu me tornei ele.
Quando fui assistir a Bea Arthur em São Francisco, estava sozinho, apesar de ter
ganhado dois ingressos. Durante todo o espetáculo, eu olhava para a poltrona
vazia a meu lado e pensava: Este é o lugar de Georges. Sentia saudade dele o tempo
todo.
Embora não estivéssemos mais juntos, Georges e eu ainda conversávamos
todos os dias. Eu sabia que ele também estava passando por um processo. Por
minha causa, ele tinha sido mantido em uma espécie de adolescência perpétua.
Quando nos separamos, no entanto, ele ficou livre para ter a própria vida em
Miami, para viver o próprio processo de recuperação, para pintar e ganhar o
próprio dinheiro trabalhando como barman, para sair com outras pessoas — o
que nós dois estávamos fazendo — e para descobrir quem queria ser. Ele vinha
me visitar e nós andávamos de patins no Moonlight Rollerway ou íamos até São
Francisco para andar de bicicleta na Golden Gate.
Às vezes, conversávamos sobre voltar a ficar juntos, mas pela primeira vez
senti que eu não tinha mais certeza do que queria. E tudo bem. Por muito tempo,
fui movido pela motivação de meu destino: a fama. Mas, agora que já tinha
alcançado isso, o que mais eu poderia fazer?
Sempre fui especial. Nas reuniões do NA, isso era chamado de singularidade
terminal, essa sensação de ser tão diferente de todos que beirava uma sentença de
morte. No entanto, eu não queria mais ser diferente — único, a pessoa que
sempre se destacava, o mais alto, o que tinha um nome que nenhum outro filho
da puta no mundo jamais teria.
Quanto mais tempo eu passava com meus amigos, em reuniões ou explorando
o mundo, mais percebia que não era tão diferente, afinal. Sempre estive ciente
disso em certo nível, de que fazia parte de um todo e que tudo estava conectado.
O ego, esse senso de separação, importância e seriedade, serve apenas para nos
alienar e afastar de tudo. E eu também tinha caído nessa armadilha. Naquele
momento, eu só precisava aprender a fazer parte do todo.
— Talvez seja hora de cair fora do show business — disse a Georges certa vez.
— Até parece — debochou ele.
— Estou falando sério. Já experimentei tudo que queria. Não tenho mais nada
a fazer nesse meio.
Eu sabia que a coisa a impulsionar minha carreira por tanto tempo tinha sido a
necessidade de aprovação de meu pai. Mas isso era passado, eu não podia mais
me permitir ser motivado por aquele desejo. Se eu retornasse ao show business,
teria que ser por um motivo diferente. O que aprendi em meu período de
afastamento foi que eu não poderia ser motivado pelo medo de não ser suficiente.
Eu tinha que ser motivado pela alegria. Pelas cores, pela música, pelo riso, pela
dança e pela criatividade — todas as coisas que faziam a vida valer a pena.
E pela capacidade de criar minha própria magia, que aprendi quando era
criança.
Pela janela, olho outra vez para o prédio que está sendo demolido e isso já não me
parece tão terrível. Afinal de contas, aprendi há muito tempo que nada na vida
deve ser levado tão a sério assim.
Dou uma risada. É só a sala da mamãe. Todo mundo vai amar você.
Fecho o zíper de minha mala.
Já estou em casa.
Agradecimentos
Este livro não seria possível sem as seguintes pessoas: Sam Lansky, Carrie
Thornton, Cait Hoyt, Ben Dey, Jonathan Swaden, Robert Minzner, Jessica
Boardman, Randy Barbato, Fenton Bailey, Tom Campbell, Thairin Smothers,
Alicia Gargaro- -Magaña, Rafael Bruno, Jay Marcus e David Petruschin.
Sobre o autor