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A Construção Da Memória Da Encenação Da Fundação Da Vila de São Vicente

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Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"

Faculdade de Ciências e Letras de Assis


Departamento de História
Disciplina: Patrimônio, Educação e Ação Cultural
Docente: Paulo Henrique Martinez
Discente: Gabriele Silvério Oliveira, RA: 211240354, turno: matutino
Data: 09/10/2023

A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA NA ENCENAÇÃO DA FUNDAÇÃO DA VILA DE


SÃO VICENTE
A “Encenação da Vila de São Vicente” é um evento anual que acontece desde 1982,
salvo os anos de 2021 e 2022, devido à pandemia de Covid-19. Sempre em janeiro, o
espetáculo teatral acontece na Praia da Biquinha, um dos principais pontos turísticos da
cidade e onde estão outros atrativos, como o teleférico da cidade e o Morro da Asa Delta.
A peça, dita como o maior espetáculo de areia do mundo, começa a ser ensaiada meses
antes, com atores voluntários, em sua maioria. As roupas e o cenário também são feitos pelos
moradores, e muitos dos materiais utilizados hoje são reutilizados de anos anteriores. Na
mídia, a encenação é amplamente divulgada, e os jornais e canais locais auxiliam na
divulgação do projeto, que conta com entrada franca.
O espetáculo gera empregos para cenógrafos, fotógrafos e faxineiros, assim como de
vendedores ambulantes, artistas de rua, comerciantes de bares e restaurantes locais, etc., que
se beneficiam do evento para oferecer serviços e produtos ao público, auxiliando na economia
local. Além disso, nos dias em que a peça está em cartaz, são montadas arquibancadas, para
acomodar o público durante a exibição, empregando trabalhadores que realizam a montagem
e desmontagem dessas estruturas.
O que deixa o público estarrecido e empolgado todos os anos é a grandeza do
espetáculo. A areia da praia - o palco dos atores, possibilita que enormes cenários sejam
montados, e o maior atrativo nesse sentido é, sem dúvidas, a réplica da caravela Espírito
Santo, a primeira que chegou no Brasil no século XVI, e que faz uma entrada triunfal nos
primeiros minutos da encenação.
As páginas na Internet contam que a peça começou em janeiro de 1982, quando os
moradores locais resolveram encenar a chegada dos portugueses para comemorar o
aniversário da cidade. Esse primeiro espetáculo foi realizado na Praia do Gonzaguinha e, a
partir de 1998, por meio de investimentos do governo federal, uma arena temporária foi
construída para a encenação daquele ano, e a apresentação foi movida para a Praia da
Biquinha, por ser uma praia mais extensa e também o local onde foi, de fato, abarcada a
primeira caravela em 1532.
A narrativa da encenação é extremamente importante de ser pontuada. Para os
historiadores, trata-se do que é entendido como “historiografia tradicional”: é uma história dos
europeus descobridores, que civilizaram a região do litoral sul de São Paulo e depois todo o
país. Os indígenas são divididos em dois grupos: civilizados ou, como mais referidos no
espetáculo, aculturados, e os guerreiros, aqueles que resistiam à colonização.
Essa história conta, então, como os colonizadores se saíram melhor em relação aqueles
que foram colonizados, conseguindo adentrar no Brasil e tornando-nos sua colônia. O
espetáculo, até os dias atuais, não atuou ou repensou essa narrativa de maneira crítica, e todos
os anos vêm repetindo uma história que apaga os diversos povos indígenas que existiam, no
século XVI, em São Vicente e região.
Alguns desses povos indígenas, além disso, ainda vivem em São Vicente, e muitas
aldeias estão localizadas nas proximidades de onde acontece o espetáculo, como a aldeia
Paranapuã, localizada no bairro Japuí. Apesar disso e de outras iniciativas municipais e
estaduais promoverem a preservação e o respeito aos espaços indígenas, um dos maiores
eventos turísticos da Baixada Santista ainda silencia as vivências nativas-brasileiras.
Aliás, essas narrativas não são silenciadas apenas na romantização dos ocorridos no
século XVI e na utilização de palavras como “descobrimento”, mas na própria montagem da
peça: ela inicia com a arena completamente escura, aparentemente sem ninguém; somente
quando os colonizadores chegam, a área se ilumina e a história começa. Nenhuma passagem
anterior a isso, mostrando como os indígenas viviam e se organizavam socialmente é
mostrada na apresentação.
O roteiro do espetáculo não se preocupa em esclarecer a diversidade dos povos
indígenas que viviam na região, e todos os personagens são classificados como guaranis,
mesmo que em todo Brasil existisse, bem como existe até hoje, uma grande diversidade étnica
de povos indígenas. Ademais, quando se é colocada a questão da representatividade, os atores
indígenas que performam são minoria, e grande parte do elenco que interpreta os povos
originários não são indígenas.
Conversando com amigos e pessoas próximas que frequentaram a encenação, obtive
respostas muito parecidas: a maioria, em um primeiro momento, se lembra da grandiosidade
da apresentação, da réplica da caravela, das escunas da praia enfeitadas com a Cruz da Ordem
de Cristo e das divulgações midiáticas do espetáculo. Esse mesmo grupo, quando
questionados sobre as narrativas apresentadas na peça, relataram essa história tradicional,
contada do ponto de vista dos portugueses e apagando as vivências indígenas.
Um amigo relatou a experiência de ser um dos atores voluntários, em um dos anos da
encenação. Ele conta que, quando participou, em 2017, os ensaios começavam com oficinas
de dinâmicas grupaise de teatro amador e, após esses cursos iniciais, a coreografia do
espetáculo começava a ser montada e ensaiada. Também relata que a encenação fez parte de
sua infância como um jovem vicentino e, por conta disso, o desejo de participar da
apresentação o fez encarar o desafio anos atrás. Na conversa, ele também relata que ele, um
homem preto, foi escolhido para o papel de um nativo indígena, e aponta para a falta de atores
indígenas, profissionais e amadores, na encenação.
Atualmente, os organizadores da encenação, juntamente com a prefeitura de São
Vicente, vêm tentando inovar alguns aspectos do espetáculo, e, neste ano de 2023, a peça foi
levada também a bairros de periferia, deixando de ficar concentrada apenas no centro da
cidade. Esse tipo de ação, que visa levar a cultura a mais pessoas, tem um caráter importante
no que se diz respeito a memória do que foi a fundação da vila de São Vicente, a primeira do
Brasil, pelos moradores locais. A maioria dos cidadãos vicentinos já assistiu a peça ao menos
uma vez na vida e, por mais que a primeira lembrança seja a estrutura do evento, as narrativas
escolhidas permanecem na memória de toda uma população, geração após geração.

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