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Capítulo Do Livro - A Prática Da Pesquisa

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A PRÁTICA DA PESQUISA EA PESQUISANA PRÁTICA

Silvia Maria Geraldi

Exponho brevemente o cenário que deu origem a este artigo. Como primeira
ação, um convite. Diego Pizarro, docente do Instituto Federal de Brasília (DF) e
um dos coordenadores do I Encontro Internacional de Práticas Somáticas e Dança
ocorrido em março de 2018 na mesma instituição, convidou-me a discorrer sobre o
tema da pesquisa prática no últimodia do evento. Essa atividadefoi programada para
acontecer num final de tarde de
sábado, imediatamente antes das apresentações
artísticas realizadas no Espaço Cena, em Brasilia -
uma pequeníssima, mas muito
simpática e aconchegante sala de performance. Como tradicionalmentese costuma
separar atividades de cunho teórico daquelas de caráter prático em eventos
acadêmicos, ocorreu-me que uma composição mais irregular entre a minha fala e
as performances poderia ser uma possível forma de transgredir essa "norma" e, ao
mesmo tempo, propor uma transição mais fluida entre os diferentes momentos.
Após algum debate, Diego e eu concordamos que um modo mais afetivo'
de concretizar essa exposição seria por meio da partilha de um texto aberto, mais
permeável e com potencialpara (re)criação, que se desse no entredanças eem pontos
do programa mais favoráveis àinstauraçãode diálogos com a cenadançante. Embora
não pudéssemos garantir o ixito de nosso projeto, resolvenos pesquisá-lona prática,
no calor dos acontecimentos, inspiradospela própria temática proposta para atarde.
Para além do sucesso ou fracasso, havia o desejo de protestarmos por uma lógica
que nos destituísse de toda finalidade e nos confrontassecom a aventura (BARTHES,
2000) – valores afirmados em investigaçõesque têm na prática seuponto central de
ancoragem e nos quais os acidentes de percurso, as falhas, os fracassos, as idas e
vindas são, além de constitutivos, tão válidos quanto os possiveis acertos. lsso significa
deslocar do produto para o processo o parâmetro para a definição da qualidade de
uma realização.
Assim, o texto que integra este artigo foi originalmente concebido para ser
apresentado ao vivo, como fala performativa, isto é, uma fala como performance,
feita de performed actions ou ações que se dão em espetáculo (FÉRAL, 2009). Essa
concepção não existia a priori, antes de o texto começar a tomar forma; ela foi
emergindo durante o ato de imaginá-lo,colocá-lo no papel e tornar a lê-lo enquanto
o produzia. Explico: numa daquelas sentadas para escrever, atravessada a certa altura
pelo cansaço, levantei-me com o notebook em punho para (re)conhecero que havia
produzido. Ao mesmo tempo em que caminhava pela sala e lia o texto em voz alta,
lembrei-me de prestar atenção àminha própria voz, percebendo seus ritmos, acentos,
dinâmicas - exercicio somático que minha mestra do Método Feldenkrais, Márcia
Martins de Oliveira, ensinou-me a realizar sempre que dou aulas de Consciência
pelo Movimento'. Essa atitudetem o potencial de colocar-nos num estado de escuta
interior altamente acurado, influindo diretamente sobre as relações criadas com o

texto que se fala/lê e, por extensão, em sua recepção.


O que se configurou, a partir daí, foi o desejo de repetição daquela
ocorrência totalmente fortuita. Como efeito dos exercícios de leitura que empreendi
processualmente, produziu-se uma espécie de performatividade da audição -a
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princípio, audição de mim mesma -, que acabou por me remeter ao outro lado dessa
equação: o público, leitor direto de minha fala. Paul Zumthor (2000) sublinha a relação
intrínseca entre o modo como um texto é emitido e o corpo do receptor em sua
presença ativa:

[..]de um sujeito erm sua plenitude psicofisiológica particular, sua maneiraprópria


de existir no espaço e no tempo e que ouve, vê, respira, abre-se aos perfumes,
ao tato das coisas. Que um texto seja reconhecidopor poético (literário) ou não
depende do sentimentoque nosso corpo tem. (ZUMTHOR, 2000, p. 41).

Foi justamente o desejo de provocar um tipo de afetação diferenciado na


audiência - mais
poético, digamos -
que me levou a querer transformar a práica
discursiva (meus próprios atos de fala/leitura em frente ao público) em ação cênica,
considerando todos os riscos, contradiçõese zonas de obscuridade que são próprios
do campo performativo. Ensaiei ações simples enquanto lia, atravessadas por
dinâmicas, ritmos e ocupações experimentados improvisadamente e, do mesmo
modo, postos em cena, além das interferências curtas e pontuais das/os que
artistas

se apresentaram (quepodem ser encaradas aqui como citações diretas, para usar uma
terminologia da escrita acadêmica), as quais foram combinadas in loco.
Outro elemento disparador -
esse sim, presente desde o começo da
-
elaboração desse texto foi a teoria performativa do estudiosO espanhol das artes
cênicas Öscar Cornago (2010):um conjunto de indagações abertas que integram o
artigo "Onde acaba a teoria?".O trabalho, do qual tomo emprestado alguns excertos,
um apelo
é ético, estéticoe político à reflexãosobre as artesda cena, enfocando seus
sujeitos, processOs, produtos, espaços de acontecimento e de consumo. Incorporei-o
à minha fala sob a denominação de Pausa Provocativa - um pretexto e convite ao
diálogo feitopor mim ao autor. A adesão de Cornago ao meu projeto performativo
criou um sentido todo especialna relação com a cena dançada, o que certamente não
relação com a cena escrita. No entanto, para o presente texto, recombino
persistirá na
(cri)ação, fala e escrita na tentativa de fazer ressoar minimamente, nas linhas que se
seguem, algo daquilo "que age diretamente no coração e no corpo da identidade do
performer" (FÉRAL,2009, p. 83) durante o ato performativo.

A pesquisa artística: segunda tentativa para começar esse artigo

Tratar da prática da pesquisa e de pesquisa na prática, tendo em consideração


a área de conhecimento da dança, pode parecer, àprimeiravista, uma tarefademasiado
-
evidente, quase inútil sobretudo no caso da dança contemporânea, que tem, na
(re)invenção(de corpos, poéticas, visões de mundo), um elemento definidor e um
traço mais genuíno. No entanto, num evento acadêmico, onde somática e dança se
encontram, prática e pesquisa são saberes que ganham um interesse e uma relevância
particulares.
Como primeiro aspecto, parece-me necessário enfatizaro caráter corporal,
docampoda arte-que tanto a prática quanto apesquisa
produtivo,realizativo-próprio
têm, compreendendo-os como modos de ação. Pensar na prática e na pesquisa
como modos de ação tem também um viés político, j que muitos pesquisadores

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entre os quais me incluo -têm buscado afirmar e validar os saberes do corpo
como conhecimentos de igual hierarquia em relação aos chamados conhecimentos
científicos, do meio acadêmico.
sobretudo dentro
E quando esses modos de ação encontram-se, o que se produz como
processo e como resultado? Quais são as implicações de um tipo de pesquisa que
toma a natureza da prática como o seu foco central? O soma³, seus gestos, afetos,
estados, sensações, memórias, suas práticas e interações, podem ser um agente
ativo do conhecimento? Um guia do caminho? Ou, como anunciou a historiadora da
dança Laurence Louppe (2012, p. 69), uma "admirável ferramenta de conhecimento
e sensações"? Em que medida obras artísticas podem ser consideradas projetos de
Conhecimento dentro do meio acadêmico?
Pausa provocativa:

Vejo um de Denise Stutz em "Ocanto da cabra" em um pequeno teatro


ensaio
em que fechou pouco depois. Estou sozinho na plateia. Começo a chorar,
Madri,
não consigo parar de chorar. Onde acaba a teoria? Onde começa? O choro pode
ser uma forma de teorizar sobre algo, uma forma de investigar? que você .]O
pensa? (CORNAG0, 2010, p. 233).

Ao vincular sentimento (chorar) a pensamento (teorizar) dois componentes -


inseparáveisna dinâmica de qualquer ação humana, pelo menos para os estudos
somáticos -, Cornago situa a pesquisa num lugar bastante diferente daquele
encontrado nas ciências rigorosas e em toda uma tradição investigativa científica.
Força ainda o leitor a refletir sobre planos distintos de elaboração, como o são prática
e teoria, ação e pensamento, corpo e mente, reafirmando-os como fenômenos
suficientes em si mesmos: chorar tem um pensamento próprio que não passa pelas
palavras. Pode, por isso, ser um modo distinto de investigação?

Tais questões ganham relevo ao abordar a pesquisa artística no meio


acadêmico,podendo se desdobrar em muitas novas indagações. A principio, é preciso
considerar que pesquisa não é algo comum a todos os campos de conhecimento,
que hádiferenças, muitas vezes cruciais, entre a pesquisa que se faz nas ciências
exatas, médicas, sociais e na arte. Qual seria então a diferença definidora do gesto
investigativo dos artistas? O que pensam os artistas? Como eles pensam? Que teorias
há em suas práticas? Será que existe alguma prática que não implique uma teoria?
Como se investiga (n)a prática artística dentro da universidade?
As universidades são ambientes relativamenterecentes de criação artística:
historicamente,artistas têm ocupado contextos extra-acadêmicos para produção de
sua arte. No entanto,cada vez mais, eles têm se interessadonão somente em produzir
obras de arte, mas também em pesquisar sobre o seu processo criativo, suas obras,
procedimentos e metodologias, produzindo estudos acadêmicos conhecidos como
pesquisa artística. A pesquisa artística define-se como a investigaçãoque é realizada
no campo das artesno âmbito acadêmico.
Vale destacar que a pesquisa em arte no contexto acadêmico tem recebido
diferentes denominações nos mais diversos países: nos países nórdicos e da Europa
Continentalpredomina o nome pesquisa artística, na Austrália, é denominada pesquisa
guiada pela prática (practice-led), na Inglaterra, desenvolveu-se principalmente
sob o nome de práxis como pesquisa (praxis as research) (ALARCÓN; LUDWIGS,
2014). Surgidos de diferentes filiações e contextos, estes e outros modelos têm

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se disseminado e servido de referência para os programas de pós-graduação
latino-americanosque consideram o trabalho da criação como fundamental para o
desenvolvimento investigativo. Apesar do espelhamento, as abordagens locais não
se constituem em mera reprodução de experiências estrangeiras, mas um repensar
crítico das mesmas frente a realidadescontextuaissingulares, gerando inclusive novas
e profícuas modelagens para a pesquisa em arte.
No entanto, quando se fala em pesquisa em arte dentro da academia, existe
ainda uma tendência imediata a referenciar os modelos de pesquisa científicos ou
quantitativos -também conhecidos como positivistas (GREEN; STINSON, 1999) -,
com base nas ciências rigorosas. Como professora de cursos de metodologia de
pesquisa em arte na graduação em Dança e na pós-graduação em Artes da Cena,
ambos no Instituto de Artes da Unicamp, tenho notado que a concepção de pesquisa
positivista é ainda a mais conhecida e consolidada entre os estudantes, mesmo

quando se pensa no campo da arte. Dentro do paradigma da pesquisa positivista,


concepções como "objeto de pesquisa", "objetivos","hipótese", "objetividade do
pesquisador", "coletae generalização dos dados da pesquisa" são ainda largamente
valorizadas.

Pausa provocativa:

Quem está por trás das teorias, das histórias, das investigações? [..] O que
significa fazer uma boa pesquisa? A
[...] pesquisa como cristalização de algo que
não para de se mover, de que estámudando a cada momento, da vida
algo dos
próprios atores (sociais); a pesquisa como representação efêmerado rio que corre
subterrâneo. O que me interessa mais, a investigação ou aquilo que a alimenta?
(CORNAGO, 2010, p. 232).

Abordagens de pesquisa baseadas em práticas

Mais recentemente, modelos de investigação adicionais passaram a ser


utilizados por artistas-pesquisadores em âmbito acadêmico a partir da constatação
das limitações da pesquisa científica tradicional quando aplicada ao estudo das áreas
das humanidades e das artes (GREEN; STINSON, 1999).Conhecidas como pesquisa
qualitativa, essas diferentes práticas investigativas emergiram para dar conta de um

tipo de perguntas não cobertas pelas abordagens positivistas, perguntas estas que
se referem ao estudo das experiências das pessoas - entre elas, os artistas e dos -
significados que delas se produzem.
Variados rótulos podem ser encontrados para identificar essas modalidades
de pesquisa -fenomenológica, interpretativa, hermenêutica, etnográfica, feminista,

autobiográfica,pós-moderna e tantas outras -, que foram agrupadas por alguns


autores sob o termo guarda-chuva pós-positivista, em resposta ao reconhecimento
das limitações da tradição positivista (GREEN; STINSON, 1999).
Metodologias têm se mostrado centrais para as pesquisas
qualitativas

conduzidas em educação, sociologia, antropologia,enfermagem e outras disciplinas


das áreas de humanidades, ciências sociais e médicas. Têm sidotipicamente adotadas
por pesquisadores interessadosem capturarperspectivase interpretaçõesindividuais
sobre determinado fenômeno, na tentativa de apreender os sentidosda ação humana
(GIVEN, 2008). CO propósito das pesquisas de cunho qualitativo não é responder

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perguntas do tipo verdadeiro/falsoou mesmo aceitar/rejeitar uma hipótese como
no positivismo, mas interpretar oucompreender contextos particulares e, inclusive,
desafiar ou transformar uma realidade social dominante.
Embora haja grande variabilidade metodológica dentro da tradiçãoqualitativa,
muitos desses pesquisadores têm adotado procedimentos de pesquisa baseados em
práticas, buscando, entre outros objetivos,incluir a prática no âmbito da pesquisa,
aprimorar e/ou transformar a prática, desenvolver novos conceitose metodologias a
ela ligadose, inclusive, produziruma ação para a mudança num determinado contexto
social.

Desde inícios do século XX, uma grande variedade de abordagens qualitativas,


sobretudo a interdisciplinaridade', vem dominando a pesquisa em dança, com ênfase
na sua investigação enquanto experiência corporal, objeto estético e processos
sociais e culturais. Como tais modelos de pesquisa têm em comum a não segregação

entre os diferentes paradigmas, eles mantêm entre si uma convivência mais flexível

e colaborativa, favorecendo inclusive uma salutar "bricolagem metodológica do


pesquisador em prática artística "
(FORTIN, 2010, p. 78), à qual é permitido integrar
ferramentas vindas de diferentes cenários metodológicos sem que isso, no entanto,
configure-se numasíntesealeatória, meramente oportuna e sem reflexão.
A pesquisadora Sylvie Fortin (2014), ao interrogar a contribuição de

metodologias de cunho qualitativo para a pesquisa na prática artística, destaca


a importância do artista-pesquisador como produtor daquilo que está sendo
pesquisado. Para ela, os dados da pesquisa fazem parte de um saber encarnado que
se atualiza na ação: o processo de criação do artista é uma permanente obtenção

oucomunidade ,
de conhecimento. Quanto ao registro das observações e vivências provenientes
da presença do pesquisador sobre o campo - seja ateliê, estúdio,aula, espetáculo
Fortin (2010) destaca uma nova tendência: a de considerar as

reações somáticas dos participantes, incluindo as do próprio pesquisador,como dado


empírico. Corporeidade, sernsações,emoções, comportamentos, intuiçõese atitudes
são reconhecidas como fontes de informação de igual validade em relação a outras,
tais como documentos diversos, entrevistas e observações participantes; e a estes
podem ser combinados para a realização das análises e a elaboração de reflexões.
Embora as pesquisas qualitativas em dança atualmente enfatizem a
interdisciplinaridade metodológica, existe um intenso e profícuo debate, por parte
de muitos artistas-pesquisadores, sobre a necessidade do desenvolvimento de
métodos intrínsecos à área, investindonuma definição de pesquisa em dança a partir
de tradições e rupturasvindas de dentro de seu próprio campo de fazer, ao invés da
adoção de modelos tomados de empréstimo de outros domínios do conhecimento
(GIVEN,2008).

As pesquisas guiadas pela prtica (ou a prica como pesquisa)

O que significa dizer "eu" diante dos outros, na cena de teatro ou na cena da
crítica,da pesquisa? Quando um pesquisadordiz "eu",quem estádizendo "eu"?
E se não diz "eu", -
onde estáo "eu" o eu do intelectual, do críitico, do professor
universitário, do pesquisador?Quem se esconde atrás desses personagens?
(CORNAGO, 2010, p. 230).

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Mais recentemente, no entanto,uma terceira distinçãometodológica, diferente
das abordagens quantitativase qualitativas, foi proposta por artistas-pesquisadores
no âmbito acadêmico – músicos, dançarinos,atores, praticantes e professoresde arte
-, de modo a não somente inserir a prática no âmbito do processo de pesquisa,mas,
sobretudo, guiar a pesquisa através da prática (HASEMAN, 2015). Essa tipologia de
pesquisa é conhecida também por variadas nomenclaturas: prática como pesquisa,
performance como pesquisa, prática artística como pesquisa, pesquisa guiada pela
prática, entre outras; e têm recebido a designação genérica de Pesquisa Performativa

por parte de alguns pesquisadores (HASEMAN,2015; ALARCÓN; LWDWIGS, 2014;


LORENZINI, 2013).Adoto aqui preferencialmente as designações "pesquisa guiada
pela prática" e"prática como pesquisa" (termos sinônimos)para tratar dessa categoria
de investigaçãoacadêmica,
A mais marcante dessa espécie de pesquisa é que ela encara a
característica
prática não como simples objeto de estudo, mas como o próprio método de pesquisa.
De modo geral, enquanto nas modalidades qualitativas de investigação persiste
um entendimento mais objetificado do corpo e de suas práticas - com métodos e
estratégias bem estabelecidos e a ênfase em resultados escritos -, as investigações
guiadas pela prática se caracterizam, ao contrário, por um tipo de conhecimento que
provém do corpo ede práticas encarnadas. Apreocupação principal dessa abordagem
de pesquisa não é apenas teorizar (sobre) o corpo e a prática, mas ampliar o horizonte
de conhecimento por meio do corpo e da prática.
Os pesquisadores guiados pela prática iniciam a pesquisa a partir da
experiència, isto é, eles começam a praticar para observar, perceber, descobrir
possíveis conteúdos e procedimentos que daí emergem. O conhecimento sensível
corporal (somático) é aqui prioritário, principalmente quando a área da pesquisa
são as artes da cena: é no e através do corpo, da investigação iniciada a partir da
prática, que as perguntas, problemas e desafios são identificados, desenvolvidos e
contestados (LORENZINI, 2013).
As metodologias guiadas pela prática buscam colocar em permanente fricção
trs eixosde conhecimento: o primeiro deles é a experiência do processo artístico
no corpo, como elemento preponderante; o segundo, a reflexão crítica resultante
da aproximação empirica; e o terceiro, o conhecimento teórico conceitual que irá
dialogarcom a experiênciaprática. Esse é um tripé referencial fundamental nesse tipo
de pesquisa.
Alguns dos trabalhos artísticos apresentados naquela tarde de sábado, no
Espaço Cena em Brasília, foram resultadode uma pesquisa artística conduzida dentro
do meio acadêmico. Esse é outro elemento que caracteriza a prática como pesquisa:
o produto da investigaçãose mostra na forma de linguagem simbólica que, no caso
do coreógrafo-autor-intérprete, éa dança. Usarei como exemplo mais próximo a mim

aobra Bestiário', de autoria de Luciana Hoppe, apresentada na programação do dia.


trabalho resultou dos estudos por ela conduzidos, sob minha orientação,no Curso
O

de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, no Instituto de Artes


da Unicamp. A metodologia adotada seguiu o modelo da práica como pesquisa,
com contribuiçõesda autoetnografia.Embora uma das exigências do Programa seja
a apresentação de um relatório final de pesquisa -
dissertação para o mestrado ou
tese para o doutorado -, o trabalho artistico étambém considerado como forma de
investigaçãoe apresentação: ele não somente expressa a pesquisa, mas torna-se a
própria pesquisa (HASEMAN,2015).

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Nos meios acadêmicos, persiste ainda uma certa confusão entre pesquisa e

produção de textos (papers, artigos, teses). Mesmo no campo das artes, é notável
a hegemonia do texto escrito como forma de comunicação de pesquisa. Por isso,
não é incomum associara avaliação da pesquisa artística com a dimensão reflexiva
-aquela que se dá na forma escrita -, negligenciando-se o pensamento e a reflexão
que habitam os objetos artísticos e o próprio corpo do pesquisador (ROYO, 2015).
No caso do trabalho de Luciana, a obra artística não foi uma mera ilustração da
investigação prático-teórica ou uma escolha opcional: ela foi condiço necessária

para o desenvolvimento da pesquisa, para a produço da reflexão e também para


a avaliação dos resultados. A avaliação se deu por meio da apresentação da obra
ao vivo para a banca de defesa, que pôde cotejá-la com o relatório de pesquisa já
apreciado.

Pesquisa interna àarte e pesquisa guiada pela prática

A arte não existe sem pesquisa.Seja por necessidade de lidar com a matéria, a
técnica, a temática,os meios ou processos de sua arte, o artista sempre vai à busca de
conhecimento. Mas qual seria, então, a distinção entre a pesquisa guiada pela prática
ea pura prática? Não seria exatamente o que a dança (sobretudo a contemporânea) e
uma gama imensa de artistas vêm tazendo h algum tempo, isto é, pesquisam como
parte de sua prática cotidiana? Seráque qualquer prática que envolva pesquisa pode
serconsiderada um tipo de pesquisa performativa?
Pausa provocativa:

Vejo umaobra e o que vejo além dela? Vejo a mim mesmo? Vejo o artista que
fez aobra? Encontro minha própria história, outras histórias? De onde vêm essas
histórias? [..]. Penso no artista, em quem fez a obra, naqueles que a fizeram?
Penso por que a fizeram, para quem a fizeram? [...]. Vejo uma obra e adivinho um
percurso. Como se chegou até ali? A partir de onde a obra se fez? (CORNAGO,
2010, p. 232).

Inúmeros são os artistas que têm tornado públicos seus modos de criação,

compartilhando ideias, técnicas e procedimentos utilizados na confecção de sua


arte.Por meio de seus discursos, registros e diários, épossível saber que a pesquisa
éparte substancial de sua prática diária: a aquisiço de conhecimento é algo que
se mostra necessário e que se conquista pela própria necessidade individual de
expressão (SALLES, 1993). Entretanto, no caso de um trabalho de arte, a pesquisa
estádirigidaa propósitos internos de criação da obra e do processo artistico e,
embora hajapermanente produção de conhecimento, ela é de caráter individual e
estáincontestavelmente ligada ao projeto poético do artista.
Portanto,uma distinção crucial entre a pesquisa feita pelo artista e a pesquisa
quiada pela prática é que, no caso desta última, os conhecimentos produzidos
por meio da investigaçãodevem ser inovadores não somente para o processo do
criador, mas devem também colaborar para a compreensão do fenômeno estudado

num sentido mais amplo, permitindo que outros pesquisadores possam dialogar
com ele. O mais relevante aqui não é criar uma obra ou produto artístico de valor
estético (ainda que isso possa dar-se), mas é o próprio processo de indagação e

da experimentação (LORENZINI, 2013). Épreciso que o pesquisador seja capaz de

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os entendimentos alcançados como resultado do processo de pesquisa,
transferir
forjando ferramentas, recortes conceituais e argumentos que tornem o trabalho
compreensível, passível de ser discutido e contestado por uma comunidade de pares
em
outras palavras, que se torne um bem público.
A pesquisadora e professora Lucia Santaella (2016) destaca que, embora
toda criação artística envolva investigação,quando o artista se desloca para a esfera
acadêmica, é preciso consideraras condições que legitimamente definem a pesquisa
nesse contexto, mesmo quando ela érealizada por artistas. seja, além da pesquisa"Ou
em arte, que só o artista ele mesmo pode realizar, hátambém a pesquisa sobre arte"
(SANTAELLA, 2016, p. 60, grifos da autora). É relevante o que a autora aponta a
respeito da especificidadeda pesquisa acadêmica:

Para realizar uma pesquisa sobre


por exemplo, é necessário estudar
arte,
minimamente a história da arte, conhecer o que
os pesquisadores estão fazerndo,
inteirar-se de suas teorias, familiarizar-se com os métodos que empregam e das
diferentes situações em que os empregam, contribuir, através da competência
que o tempo e a dedicação trazem, com a transformação e o aperfeiçoamento
desses métodos através de pesquisas próprias, enfim, tornar-se o membro de
uma comunidade de pessoasque idealmentedeveriam se unir em torno de um
interesse comum: promover o crescimento e a excelência das pesquisas na área

em que atuam.(SANTAELLA, 2016,p. 63).

Outra importante distinção entre a prática do artista e a do pesquisador


guiado pela prática é a forma que o conhecimento assume. No caso da prática como
pesquisa, há exigênciaem desenhar uma certa
a metodologia que, de qualquer modo,
se dará no curso da ação de pesquisa, e não a priori, como acontece em outros tipos
de pesquisa. Embora um processo de ordenação de informações seja identificável na
pesquisa interna do artista, essa experiência estámarcada pela unicidade, e não se
configura necessariamente dentro das exigências acadêmicas da pesquisa artística,
que sempre envolve a formulação de perguntas, a documentação do processo, a
sistematizaço do conhecimento produzido, a comunicação e a validaçãoda pesquisa.

Pausa provocativa final

Durante toda a semana do I Encontro Internacional de Práticas Somáticas


e Dança, falamos e ouvimos nossas/nossos colegas falarem sobre as implicações
políticas e éticas das práticas somáticas e da dança nos modos de fazer e transmitir
arte, mas também nos modos de vida, de convivência, no potencial que esses
conhecimentos sensíveis-corporais têm detransformação individual e coletiva, de ação
Nesse sentido,as pesquisas guiadas pela prática não são apenas uma proposta
social.
metodológica, mas também um projeto político (LORENZINI, 2013). Primeiramente,
porque desafiam paradigmas dominantes sobre o conhecimento, colocando o soma
no centro do saber, em contraposição a uma cultura racionalista e cientifica, que
e valida o conhecimento verbal (a linguagem) dentro da universidade no
privilegia
Ocidente. Ainda pensando no fato de a universidade latino-americanater embasado
seus modelos grandemente nas experiências europeia e americana, esse tipo de
prática de pesquisa não deixa de ser também um projeto decolonizador,na medida

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em que não só repensa o papel das práticas na academia, mas também valoriza a

emergência de modelos baseados em parâmetros próprios do nosso contexto e


realidade latino-americanos.
Para concluir essa reflexo, preferi dessa vez não recorrer à teoria performativa
de Cornago. Ela me ajudou muito a pensar e a desenhar esse texto, mas no ponto

em que me encontro, pensei em convidar outra pesquisadora para ajudar-me a


fechá-lo.Essa escolha me pareceu coerente com o processo de pensar o texto, de
escrevê-lo e de imaginá-lo durante todo o tempo a ele dedicado, considerando
ainda como eu iria me sentir ao compartilhá-lopublicamente. Escolhi, então, Victoria
Pérez Royo. Curiosamente, ela é também uma autora de lingua espanhola, mora em
Madri e estuda a pesquisa em arte, assim como Cornago. Eu poderia dizer que o
que estou tentando fazer é ter um olhar quase antropofágico em relação a esses dois
autores. Segundoo educador somático Hubert Godard (2006, p. 74), ter um olhar
antropofágico "édeixar queo outro entre em nós mesmos. Num primeiro tempo, não
-
procurar nomear, objetivar". Apenas tentar fundir-se com o outro no meu caso, por
meio da linguagem, mas, ainda assim, éuma fusão que não prescinde do soma. "E
quando de certo modo me torno essa pessoa, éa minha própria corporeidade que
me informa sobre os movimentos que acontecem no outro" (GODARD, 2006, p. 74).
Nesse caso, movimentos do pensamento.
Então, vamos à Victoria Pérez Royo. Ela diz:

Éprecisamenteesse [de pesquisar e o tempo investido] que no fim


esforço
leva a que produza seus frutos genuínos:alcançar o inesperado, o
a pesquisa
imprevisível; dar um salto qualitativo em conhecimento.O que alguém decide
-
conhecer tendo elaborado hipóteses em graus variáveis de certeza desde o
começo - revela-se menos valioso do que a experiência ou o conhecimento
imprevisível que emerge sem ter sido desejado de antemão. (ROYO, 2015, p.
538).

Ao que Barthes complementa: "Por que aquilo que é viável é um Bem? Por
que durarémelhor que inflamar?"(BARTHES, 2000, p. 35, grifo do autor).
O que você pensa?

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