Capítulo Do Livro - A Prática Da Pesquisa
Capítulo Do Livro - A Prática Da Pesquisa
Capítulo Do Livro - A Prática Da Pesquisa
Exponho brevemente o cenário que deu origem a este artigo. Como primeira
ação, um convite. Diego Pizarro, docente do Instituto Federal de Brasília (DF) e
um dos coordenadores do I Encontro Internacional de Práticas Somáticas e Dança
ocorrido em março de 2018 na mesma instituição, convidou-me a discorrer sobre o
tema da pesquisa prática no últimodia do evento. Essa atividadefoi programada para
acontecer num final de tarde de
sábado, imediatamente antes das apresentações
artísticas realizadas no Espaço Cena, em Brasilia -
uma pequeníssima, mas muito
simpática e aconchegante sala de performance. Como tradicionalmentese costuma
separar atividades de cunho teórico daquelas de caráter prático em eventos
acadêmicos, ocorreu-me que uma composição mais irregular entre a minha fala e
as performances poderia ser uma possível forma de transgredir essa "norma" e, ao
mesmo tempo, propor uma transição mais fluida entre os diferentes momentos.
Após algum debate, Diego e eu concordamos que um modo mais afetivo'
de concretizar essa exposição seria por meio da partilha de um texto aberto, mais
permeável e com potencialpara (re)criação, que se desse no entredanças eem pontos
do programa mais favoráveis àinstauraçãode diálogos com a cenadançante. Embora
não pudéssemos garantir o ixito de nosso projeto, resolvenos pesquisá-lona prática,
no calor dos acontecimentos, inspiradospela própria temática proposta para atarde.
Para além do sucesso ou fracasso, havia o desejo de protestarmos por uma lógica
que nos destituísse de toda finalidade e nos confrontassecom a aventura (BARTHES,
2000) – valores afirmados em investigaçõesque têm na prática seuponto central de
ancoragem e nos quais os acidentes de percurso, as falhas, os fracassos, as idas e
vindas são, além de constitutivos, tão válidos quanto os possiveis acertos. lsso significa
deslocar do produto para o processo o parâmetro para a definição da qualidade de
uma realização.
Assim, o texto que integra este artigo foi originalmente concebido para ser
apresentado ao vivo, como fala performativa, isto é, uma fala como performance,
feita de performed actions ou ações que se dão em espetáculo (FÉRAL, 2009). Essa
concepção não existia a priori, antes de o texto começar a tomar forma; ela foi
emergindo durante o ato de imaginá-lo,colocá-lo no papel e tornar a lê-lo enquanto
o produzia. Explico: numa daquelas sentadas para escrever, atravessada a certa altura
pelo cansaço, levantei-me com o notebook em punho para (re)conhecero que havia
produzido. Ao mesmo tempo em que caminhava pela sala e lia o texto em voz alta,
lembrei-me de prestar atenção àminha própria voz, percebendo seus ritmos, acentos,
dinâmicas - exercicio somático que minha mestra do Método Feldenkrais, Márcia
Martins de Oliveira, ensinou-me a realizar sempre que dou aulas de Consciência
pelo Movimento'. Essa atitudetem o potencial de colocar-nos num estado de escuta
interior altamente acurado, influindo diretamente sobre as relações criadas com o
se apresentaram (quepodem ser encaradas aqui como citações diretas, para usar uma
terminologia da escrita acadêmica), as quais foram combinadas in loco.
Outro elemento disparador -
esse sim, presente desde o começo da
-
elaboração desse texto foi a teoria performativa do estudiosO espanhol das artes
cênicas Öscar Cornago (2010):um conjunto de indagações abertas que integram o
artigo "Onde acaba a teoria?".O trabalho, do qual tomo emprestado alguns excertos,
um apelo
é ético, estéticoe político à reflexãosobre as artesda cena, enfocando seus
sujeitos, processOs, produtos, espaços de acontecimento e de consumo. Incorporei-o
à minha fala sob a denominação de Pausa Provocativa - um pretexto e convite ao
diálogo feitopor mim ao autor. A adesão de Cornago ao meu projeto performativo
criou um sentido todo especialna relação com a cena dançada, o que certamente não
relação com a cena escrita. No entanto, para o presente texto, recombino
persistirá na
(cri)ação, fala e escrita na tentativa de fazer ressoar minimamente, nas linhas que se
seguem, algo daquilo "que age diretamente no coração e no corpo da identidade do
performer" (FÉRAL,2009, p. 83) durante o ato performativo.
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entre os quais me incluo -têm buscado afirmar e validar os saberes do corpo
como conhecimentos de igual hierarquia em relação aos chamados conhecimentos
científicos, do meio acadêmico.
sobretudo dentro
E quando esses modos de ação encontram-se, o que se produz como
processo e como resultado? Quais são as implicações de um tipo de pesquisa que
toma a natureza da prática como o seu foco central? O soma³, seus gestos, afetos,
estados, sensações, memórias, suas práticas e interações, podem ser um agente
ativo do conhecimento? Um guia do caminho? Ou, como anunciou a historiadora da
dança Laurence Louppe (2012, p. 69), uma "admirável ferramenta de conhecimento
e sensações"? Em que medida obras artísticas podem ser consideradas projetos de
Conhecimento dentro do meio acadêmico?
Pausa provocativa:
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se disseminado e servido de referência para os programas de pós-graduação
latino-americanosque consideram o trabalho da criação como fundamental para o
desenvolvimento investigativo. Apesar do espelhamento, as abordagens locais não
se constituem em mera reprodução de experiências estrangeiras, mas um repensar
crítico das mesmas frente a realidadescontextuaissingulares, gerando inclusive novas
e profícuas modelagens para a pesquisa em arte.
No entanto, quando se fala em pesquisa em arte dentro da academia, existe
ainda uma tendência imediata a referenciar os modelos de pesquisa científicos ou
quantitativos -também conhecidos como positivistas (GREEN; STINSON, 1999) -,
com base nas ciências rigorosas. Como professora de cursos de metodologia de
pesquisa em arte na graduação em Dança e na pós-graduação em Artes da Cena,
ambos no Instituto de Artes da Unicamp, tenho notado que a concepção de pesquisa
positivista é ainda a mais conhecida e consolidada entre os estudantes, mesmo
Pausa provocativa:
Quem está por trás das teorias, das histórias, das investigações? [..] O que
significa fazer uma boa pesquisa? A
[...] pesquisa como cristalização de algo que
não para de se mover, de que estámudando a cada momento, da vida
algo dos
próprios atores (sociais); a pesquisa como representação efêmerado rio que corre
subterrâneo. O que me interessa mais, a investigação ou aquilo que a alimenta?
(CORNAGO, 2010, p. 232).
tipo de perguntas não cobertas pelas abordagens positivistas, perguntas estas que
se referem ao estudo das experiências das pessoas - entre elas, os artistas e dos -
significados que delas se produzem.
Variados rótulos podem ser encontrados para identificar essas modalidades
de pesquisa -fenomenológica, interpretativa, hermenêutica, etnográfica, feminista,
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perguntas do tipo verdadeiro/falsoou mesmo aceitar/rejeitar uma hipótese como
no positivismo, mas interpretar oucompreender contextos particulares e, inclusive,
desafiar ou transformar uma realidade social dominante.
Embora haja grande variabilidade metodológica dentro da tradiçãoqualitativa,
muitos desses pesquisadores têm adotado procedimentos de pesquisa baseados em
práticas, buscando, entre outros objetivos,incluir a prática no âmbito da pesquisa,
aprimorar e/ou transformar a prática, desenvolver novos conceitose metodologias a
ela ligadose, inclusive, produziruma ação para a mudança num determinado contexto
social.
entre os diferentes paradigmas, eles mantêm entre si uma convivência mais flexível
oucomunidade ,
de conhecimento. Quanto ao registro das observações e vivências provenientes
da presença do pesquisador sobre o campo - seja ateliê, estúdio,aula, espetáculo
Fortin (2010) destaca uma nova tendência: a de considerar as
O que significa dizer "eu" diante dos outros, na cena de teatro ou na cena da
crítica,da pesquisa? Quando um pesquisadordiz "eu",quem estádizendo "eu"?
E se não diz "eu", -
onde estáo "eu" o eu do intelectual, do críitico, do professor
universitário, do pesquisador?Quem se esconde atrás desses personagens?
(CORNAGO, 2010, p. 230).
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Mais recentemente, no entanto,uma terceira distinçãometodológica, diferente
das abordagens quantitativase qualitativas, foi proposta por artistas-pesquisadores
no âmbito acadêmico – músicos, dançarinos,atores, praticantes e professoresde arte
-, de modo a não somente inserir a prática no âmbito do processo de pesquisa,mas,
sobretudo, guiar a pesquisa através da prática (HASEMAN, 2015). Essa tipologia de
pesquisa é conhecida também por variadas nomenclaturas: prática como pesquisa,
performance como pesquisa, prática artística como pesquisa, pesquisa guiada pela
prática, entre outras; e têm recebido a designação genérica de Pesquisa Performativa
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Nos meios acadêmicos, persiste ainda uma certa confusão entre pesquisa e
produção de textos (papers, artigos, teses). Mesmo no campo das artes, é notável
a hegemonia do texto escrito como forma de comunicação de pesquisa. Por isso,
não é incomum associara avaliação da pesquisa artística com a dimensão reflexiva
-aquela que se dá na forma escrita -, negligenciando-se o pensamento e a reflexão
que habitam os objetos artísticos e o próprio corpo do pesquisador (ROYO, 2015).
No caso do trabalho de Luciana, a obra artística não foi uma mera ilustração da
investigação prático-teórica ou uma escolha opcional: ela foi condiço necessária
A arte não existe sem pesquisa.Seja por necessidade de lidar com a matéria, a
técnica, a temática,os meios ou processos de sua arte, o artista sempre vai à busca de
conhecimento. Mas qual seria, então, a distinção entre a pesquisa guiada pela prática
ea pura prática? Não seria exatamente o que a dança (sobretudo a contemporânea) e
uma gama imensa de artistas vêm tazendo h algum tempo, isto é, pesquisam como
parte de sua prática cotidiana? Seráque qualquer prática que envolva pesquisa pode
serconsiderada um tipo de pesquisa performativa?
Pausa provocativa:
Vejo umaobra e o que vejo além dela? Vejo a mim mesmo? Vejo o artista que
fez aobra? Encontro minha própria história, outras histórias? De onde vêm essas
histórias? [..]. Penso no artista, em quem fez a obra, naqueles que a fizeram?
Penso por que a fizeram, para quem a fizeram? [...]. Vejo uma obra e adivinho um
percurso. Como se chegou até ali? A partir de onde a obra se fez? (CORNAGO,
2010, p. 232).
Inúmeros são os artistas que têm tornado públicos seus modos de criação,
num sentido mais amplo, permitindo que outros pesquisadores possam dialogar
com ele. O mais relevante aqui não é criar uma obra ou produto artístico de valor
estético (ainda que isso possa dar-se), mas é o próprio processo de indagação e
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os entendimentos alcançados como resultado do processo de pesquisa,
transferir
forjando ferramentas, recortes conceituais e argumentos que tornem o trabalho
compreensível, passível de ser discutido e contestado por uma comunidade de pares
em
outras palavras, que se torne um bem público.
A pesquisadora e professora Lucia Santaella (2016) destaca que, embora
toda criação artística envolva investigação,quando o artista se desloca para a esfera
acadêmica, é preciso consideraras condições que legitimamente definem a pesquisa
nesse contexto, mesmo quando ela érealizada por artistas. seja, além da pesquisa"Ou
em arte, que só o artista ele mesmo pode realizar, hátambém a pesquisa sobre arte"
(SANTAELLA, 2016, p. 60, grifos da autora). É relevante o que a autora aponta a
respeito da especificidadeda pesquisa acadêmica:
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em que não só repensa o papel das práticas na academia, mas também valoriza a
Ao que Barthes complementa: "Por que aquilo que é viável é um Bem? Por
que durarémelhor que inflamar?"(BARTHES, 2000, p. 35, grifo do autor).
O que você pensa?
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