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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES


DEPARTAMENTO DE MÚSICA

ANA LUISA FRIDMAN

Diálogos com a música de culturas não ocidentais:


Um percurso para a elaboração de propostas de improvisação

São Paulo
2013
ii
iii

ANA LUISA FRIDMAN

Diálogos com a música de culturas não ocidentais:


Um percurso para a elaboração de propostas de improvisação

Tese apresentada ao Departamento


de Música (Escola de Comunicações
e Artes) da Universidade de São
Paulo para a obtenção do título de
Doutor em Música

Área de Concentração: Processos de


Criação Musical

Orientador: Prof. Dr. Rogério Luiz


Moraes Costa

São Paulo
2013
iv

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
v

Nome: FRIDMAN, Ana Luisa


Título: Diálogos com a música de culturas não ocidentais: um percurso
para a elaboração de propostas de improvisação

Tese apresentada ao Departamento


de Música (Escola de Comunicações
e Artes) da Universidade de São
Paulo para a obtenção do título de
Doutor em Música

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. _____________________Instituição______________________


Julgamento: __________________Assinatura: _____________________

Prof. Dr. _____________________Instituição______________________


Julgamento: __________________Assinatura: _____________________

Prof. Dr. _____________________Instituição______________________


Julgamento: __________________Assinatura: _____________________

Prof. Dr. _____________________Instituição______________________


Julgamento: __________________Assinatura: _____________________

Prof. Dr. _____________________Instituição______________________


Julgamento: __________________Assinatura: _____________________
vi
vii

Para Gil e Davi,


que fazem meu percurso ter
mais sentido e sentimento.
viii
ix

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Nilva e Maurício, que imprimiram a música e a dança já logo em meu
nome, em homenagem a uma bailarina da compania de dança de Renée Gumiel, que
dançava ao som de Erik Satie.

Ao meu orientador, o Prof. Dr. Rogério Luiz Moraes Costa, por sua orientação precisa
e presente, pelas sessões inesquecíveis de improvisação – nas quais tive a sorte de
interagir com ele também como musicista – e por sempre me incentivar e me ajudar a
crescer no decorrer deste trabalho.

À CAPES, cujo suporte foi imprescindível para o desenvolvimento e a evolução deste


trabalho a seu tempo, com o vagar e com o carinho que eu queria dispender a ele.

Aos Professores Doutores Marcos Branda Lacerda e Ivan Vilela, pelas valiosas
contribuições em minha Banca de Qualificação, sob as quais me debrucei e, mais uma
vez, aprendi.

Aos Professores Doutores integrantes da Banca de Defesa, por seu tempo dispendido
à leitura e avaliação deste trabalho.

Ao Prof. Dr. Jônatas Manzolli – que tive o prazer de conhecer durante um de meus
workshops – por fornecer novas fontes de fundamentação para minha pesquisa e
contribuir com seu depoimento.

À Pró Reitoria de Pós-graduação, pelos auxílios para o Congresso Performa em


Aveiro e o estágio na Guildhall School of Music and Drama, ambos de extrema
importância para este trabalho.

Ao diretor do Departamento de Música da Guildhall School of Music and Drama


Sean Gregory e toda sua equipe, que me receberam em sua instituição de forma tão
especial, fornecendo um espaço de experimentação e de música essencial para a
finalização desta pesquisa.

Ao secretário do Serviço de Pós-graduação do Departamento de Música, João


Norberto Catarino, que tantas vezes solicitei por tantos motivos diferentes, e que
sempre me atendeu prontamente, com uma disposição e bom humor infalíveis.

A todos os alunos e músicos que foram (e continuam sendo) “cobaias” de minhas


experiências assimétricas. Estão todos em meu coração musical para sempre.

Ao músico e educador Ricardo Breim, por ceder seu Espaço Musical para minhas
experimentações.

Ao querido mestre e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, por tantos momentos de pura


interação dança/música.

Ao meu marido e parceiro musical Gilberto Assis, pelas inúmeras horas pacientes
dedicadas à leitura deste trabalho. Não há palavras que façam jus à minha gratidão
neste caso.
x
xi

RESUMO

Neste trabalho elaboramos um percurso de estudo para abordar as relações


estabelecidas a partir do contato do músico de formação tradicional europeia com os
fazeres musicais de culturas não ocidentais. Para tal propósito, traçamos uma linha do
tempo que se inicia na aproximação com a música não ocidental pelos compositores
europeus do início do século XX e segue até os contextos formativos da atualidade no
ocidente. Neste percurso, analisamos inicialmente os materiais expressivos e
procedimentos da música não ocidental utilizados por compositores europeus do
início do século XX, em seguida estudamos as contribuições dos materiais da música
não ocidental para se pensar a performance e, por fim, apontamos algumas iniciativas
multiculturais e a criação de ambientes híbridos em contextos formativos da
atualidade. Após este estudo, elaboramos algumas propostas em formato de
workshops, nas quais propomos que o diálogo e as transformações ocorridas a partir
do contato com a música não ocidental estendam-se à prática e ao estudo específico
da improvisação. Sob este foco, foram elaborados e aplicados quatro workshops com
a temática da conexão corpo/instrumento sob parâmetros rítmicos complexos
utilizados como ambientação para a prática da improvisação.
Neste trabalho sugerimos que a diversidade de fazeres musicais encontrada
nas culturas não ocidentais pode ser inserida no currículo de formação do músico do
ocidente sob diversas abordagens. Sob este aspecto, a proposta que apresentamos ao
final de nosso estudo representa uma das abordagens possíveis, sendo que nossa
intenção é despertar o olhar para a inserção da ideia de hibridismo em contextos
formativos do ocidente, além de valorizar prática da improvisação na formação do
músico em geral.
xii
xiii

ABSTRACT

In this work we elaborated a path of study to address the relationships


established from the contact of traditional European trained musicians with the music
making of non-Western cultures. For this purpose, we draw a timeline that begins
with the approach to non-Western music by European composers of the early
twentieth century and continues until the present educational contexts in the West. In
this way, we analyzed initially the use of expressive materials and procedures found
in non-Western music by European composers of the early twentieth century, then we
study the contributions of non-Western music materials to think about the
performance and finally point out some multicultural initiatives and hybrid
environments in current educational contexts. After this study, we make some
proposals in the form of workshops, in which we propose that the dialogue and the
changes occurred from the contact with non-Western music materials could be
extended specifically to the practice and study of music improvisation. Under this
focus, we have developed and applied four workshops with the theme of the body/
instrument connection under complex rhythmic parameters used as ambiance for the
practice of music improvisation.
Here we suggest that the music making diversity found in non-Western
cultures can be inserted into the educational curriculum of western musicians in
various approaches. In this regard, the proposal that we presented at the end of our
study represents just one of the possible approaches, and our intention is to draw the
attention for the idea of hybridity in educational contexts of the West, as well as
enhancing the practice of improvisation in the musician training in general.
xiv
xv

LISTA DE FIGURAS

Fig.1.1 Syrinx, tema e notas de apoio 24


Fig.1.2 Syrinx, possível configuração resultante das notas de apoio do tema 24
Fig.1.3 Syrinx, linha melódica, compasso 4 24
Fig.1.4 Syrinx, notas apoiadas no compasso 4 24
Fig.1.5 Syrinx, configuração pentatônica 24
Fig.1.6 Syrinx, linha melódica, compasso 20 25
Fig.1.7 Syrinx, configuração em modo dórico 25
Fig.1.8 Syrinx, configuração de tons inteiros 25
Fig.1.9 Syrinx, configuração que estabelece um arpejo dominante 25
Fig.1.10 Tema de Prélude à l’aprés midi d’un faune 26
Fig.1.11 Prélude à l’aprés midi d’un faune, melodia e harmonia resultante 27
Fig.1.12 Prélude à l’aprés midi d’un faune, mesma melodia sob outra harmonia 27
Fig.1.13 Prélude à l’aprés midi d’un faune, configurações cromática e modal 27
Fig.1.14 Prélude à l’aprés midi d’un faune, configuração modal com função harmônica 27
dominante
Fig.1.15 Béla Bartók, tema da Dança Romena nº 4 29
Fig.1.16 Béla Bartók, variação do tema da Dança Romena nº 4,combinação dos modos 30
frígio e frígio maior
Fig.1.17 e Configurações utilizadas no tema e variação da Dança Romena nº 4 30
Fig.1.18
Fig.1.19 Dança Romena nº 4, Cromatismo Modal formado pela junção de configurações 30
escalares nas camadas superior e inferior no trecho final da peça
Fig.1.20 Dança Romena nº 4, configuração resultante no trecho final 30
Fig.1.21 Pélog, escala original 31
Fig.1.22 e Escala pélog sob outros centros, utilizadas por Béla Bartók na peça From the 31
Fig.1.23 Island of Bali, Mikrokosmos, vol.4
Fig.1.24 From the Island of Bali, camadas complementares utilizando a escala pélog sob 31
dois centros
Fig.1.25 Fig.1.25- From the Island of Bali, linha melódica criada com a escala pélog com 32
centro na nota “ré”
Fig.1.26 From the Island of Bali, trama criada a partir das variações de centro da escala 32
pélog
Fig.1.27 Dance of the Coachmen and the Grooms, movimento de Petruschka 34
Fig.1.28 Canção russa compilada por Rimsky-Korsakov (1877) 34
Fig.1.29 Lullaby, Pássaro de Fogo: tema construído sob um ostinato 35
Fig.1.30 Sagração da Primavera, acentuações sob diferentes combinações métricas no 35
trecho final
Fig.1.31 História de um soldado, trama envolvendo duas esferas rítmicas 36
Fig.1.32 Base rítmica de Gahu, Gana 37
Fig.1.33 Base rítmica de Drumming, de Steve Reich 38
Fig.1.34 Drumming, substituição gradativa de pausas por notas 39
Fig.1.35 Drumming, deslocamento métrico de motivos rímicos 39
Fig.2.1 Tabela comparativa sobre aspectos gerais da música ocidental e não ocidental 54
Fig.2.2 Tabela com aspectos gerais sobre a improvisação não ocidental 63
Fig.2.3 Escala sléndro, utilizada no gamelão javanês 66
Fig.2.4 Tetracorde e Pentacorde utilizados nos maqams árabes. 66
Fig.2.5 Escala Nawa A thar, utilizada nos maqams árabes 67
Fig.2.6 Escala Hijaz Kar, utilizada nos maqams árabes 67
Fig.2.7 Escalas utilizadas em canções de Botswana, tribo de pigmeus, no Kalahari 67
Fig.2.8 Escalas de sete notas (thãts) utilizados como base melódica no raga 67
Fig.2.9 Tihais da tala indiana 71
Fig.2.10 Tihai no contexto da tala 71
Fig.2.11 Associações silábicas da tala indiana, sistema Bol, Norte da Índia 72
Fig.2.12 Associações silábicas do sistema Solkatu/Konokol, sul da Índia 73
Fig.2.13 Ritmo construído a partir de duas pulsações simultâneas, Venda, África 73
xvi

Fig.2.14 Ritmo construído a partir de três pulsações simultâneas, Venda, África 73


Fig.2.15 Textura rítmica de Solegebe, culto Fon, Benin 74
Fig.2.16 Cross-rhythm encontrado na primeira parte do ritmo Gahu 75
Fig.2.17 Afinação do balafon 75
Fig.2.18 Ostinato criado para improvisação de Neba Solo 75
Fig.3.1 Exercício de tempo-ritmo associado ao movimento, proposto por Laban 90
Fig.3.2 Exercício proposto durante o curso TaKeTiNa 99
Fig.4.1 Estrutura básica do blues 112
Fig.4.2 Tune up, peça utilizada para estudo da improvisação no jazz 114
Fig.4.3 Ostinato em modo dórico utilizado para improvisação em compassos assimétricos 115
Fig.4.4 Ostinato em modo lídio utilizado para improvisação em compassos assimétricos 115
Fig.4.5 “Blues assimétrico” elaborado como base para improvisação 119
Fig.4.6 Escala utilizada para improvisação no “blues assimétrico” 119
Fig.4.7 Padrões rítmicos de apoio para improvisação no “blues assimétrico” 121
Fig.4.8 Padrão rítmico realizado na forma no “blues assimétrico” 121
Fig.4.9 Padrão rítmico para improvisação vocal coletiva sob a base do “blues assimétrico” 120
Fig.4.10 Arranjo vocal elaborado pelos alunos da Guildhall School 130
Fig.5.1 Exercício de preparação corpo/ritmo 139
Fig.5.2 Ostinato corporal para improvisação 140
Fig.5.3 Canção Kalêle 140
Fig.5.4 Variação de Kalêle, utilizada como base para improvisação 141
Fig.5.5 Exercício utilizando parâmetro rítmico de diminuição 143
Fig.5.6 Estrutura rítmica tema do workshop 2 143
Fig.5.7 Estrutura criada para improvisação utilizando o movimento e percussão vocal 144
Fig.5.8 Estrutura para improvisação vocal 145
Fig.5.9 Acompanhamento sugerido para improvisação no instrumento 146
Fig.5.10 Ostinato em 15/4 com parte fixa e trecho para improvisação utilizando o 148
movimento
Fig.5.11 Ostinato em 10/4 com parte fixa e trecho para improvisação utilizando o 148
movimento
Fig.5.12 Ostinato em 15/4 com parte melódica no modo mixolídio 148
Fig.5.13 Ostinato em 10/4 com parte melódica no modo mixolídio com 4# 149
Fig.5.14 Ostinatos em 15/4 e em 10/4 ocorrendo simultaneamente 149
Fig.5.15 Padrões rítmicos em compasso ternário 150
Fig.5.16 Arranjo vocal feito a partir do tema Cravo e Canela 151
Fig.5.17 Ostinato corporal em compasso assimétrico de 7/8 151
Fig.5.18 Trecho melódico da peça Tempoqueleva, utilizada como base para improvisação 152
vocal e instrumental
Fig.5.19 Acompanhamento utilizado como base harmônica para trecho de Tempoqueleva 152
xvii

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO……………………………………………………………………..1

CAPÍTULO 1

A INFLUÊNCIA DE MATERIAIS DA MÚSICA NÃO OCIDENTAL


NA OBRA DE COMPOSITORES DO SÉCULO XX................................................13

1.1.Considerações sobre a relação dos músicos do século XX


com a música não ocidental: linhas gerais.......................................15

1.2.Amostragens da inserção e transformação de materiais da


música não ocidental na música europeia do início do século
XX.................................................................................................................21
1.2.1.Procedimentos melódico-harmônicos....................................................23
1.2.2.Procedimentos rítmicos..........................................................................33

CAPÍTULO 2

A MÚSICA DE CULTURAS NÃO OCIDENTAIS E A PERFORMANCE:


INTERAÇÕES TRANSCULTURAIS........................................................................41

2.1.A música de outras culturas e sua recontextualização................. 43


2.2.O contato com outras culturas e seus reflexos na
performance musical...............................................................................46
2.3.A música não ocidental e seus parâmetros de improvisação......55
2.4.Conceitos e procedimentos de improvisação...................................57
2.5.Materiais expressivos: aspectos melódicos e rítmicos.................63
2.6.O aspecto da corporalidade...................................................................76

CAPÍTULO 3

DESDOBRAMENTOS DOS MATERIAIS DA MÚSICA NÃO OCIDENTAL


EM CONTEXTOS FORMATIVOS DO OCIDENTE: CORPORALIDADE,
HIBRIDISMO E IMPROVISAÇÃO...........................................................................79

3.1.A corporalidade associada à processos cognitivos:


affordance, embodied mind e cognição situada..............................81
3.2.A ideia da corporalidade na música: ritmo, embodied mind e
domínio do movimento...........................................................................83
3.2.1.Laban e o domínio do movimento: transposições para a música..........88
xviii

3.3.Contextos formativos multiculturais..................................................91


3.3.1. Institutos de Artes com foco multicultural...........................................94
3.3.2. Iniciativas isoladas: a proposta do curso TaKeTiNa............................97

3.4.A improvisação na formação do músico adulto:


conceitos e iniciativas transculturais...............................................101

CAPÍTULO 4

EXPERIÊNCIAS PRÉVIAS EM AMBIENTES HÍBRIDOS


DE CRIAÇÃO E PERFORMANCE.........................................................................107

4.1.Inside the sound, uma proposta de construção e


desconstrução gradativa.......................................................................109
4.1.1.Elaboração...........................................................................................109
4.1.2.Atividades propostas...........................................................................111

4.2.O curso de Assimetrias temporais.....................................................120


4.2.1.Etapas da aula para improvisação no “blues assimétrico”..................120

4.3.Estágio na Guildhall School of Music and Drama.......................125


4.3.1.Aplicação de workshops e contribuição para a pesquisa....................132

CAPÍTULO 5

A CONEXÃO CORPO/INSTRUMENTO SOB PARÂMETROS RÍTMICOS


COMPLEXOS: UMA PROPOSTA PARA AMBIENTES HÍBRIDOS DE
IMPROVISAÇÃO.....................................................................................................134

5.1.Princípios de elaboração dos workshops........................................136


5.2.Descrição dos workshops.....................................................................138
5.3.Resultados e considerações sobre a aplicação
dos workshops.........................................................................................153
5.3.1.Reflexões a partir de relatos dos participantes...................................155

CONSIDERAÇÕES FINAIS…………………………………………………..160

BIBLIOGRAFIA…………………………………………………………………163
1

INTRODUÇÃO

“Nossas visões de mundo e de nós


mesmos não guardam registros de suas
origens. A s palavras na linguagem (na
reflexão linguística) passam a ser objetos
que ocultam as coordenações
comportamentais que as constituem
operacionalmente no domínio linguístico.
Por isso, nossos “pontos cegos”
cognitivos são continuamente renovados
e não vemos que não vemos, não
percebemos que ignoramos. Só quando
alguma interação nos tira do óbvio – por
exemplo, quando somos bruscamente
transportados a um meio cultural
diferente – , e nos permitimos refletir, é
que nos damos conta da imensa
quantidade de relações que consideramos
como garantidas.”

(MA TURA NA , V A RELA , A Á rvore do


Conhecimento, 1984, p.264)
2

Outras músicas

Desde o início de sua história, a música do ocidente vem passando por


transformações através de ideias e materiais que serviram tanto para ampliar as
possibilidades de exploração do som quanto para romper com um conceito estético ou
um gênero musical predominante de um determinado período. Apesar de muitos
sistemas musicais terem sido contestados ou mesmo deixados de lado neste percurso
da música ocidental, o que vemos na atualidade parece mais próximo de uma série de
gêneros musicais convivendo juntos em um mesmo momento.
Pensando também neste percurso no contexto da música não ocidental,
embora esta pareça mais ligada à uma tradição aparentemente mais estática –
pensando na música tradicional do sul da Índia ou na música do gamelão javanês da
Indonésia – seus fazeres musicais também vem passando por mudanças1 a partir do
contato com outras culturas. Olhando este contato com outras músicas na atualidade,
tanto o Ocidente quanto o Oriente vem sofrendo transformações sob diversos
aspectos, estabelecendo um ambiente de interação multicultural na música.
Embora o contato do Ocidente com o Oriente tenha ocorrido antes do início do
século XX, foi nessa época que este contato se intensificou na música europeia. Nesse
período, se por um lado ocorria uma grande ruptura com o sistema tonal por conta do
serialismo de Arnold Schoenberg (1874-1951), por outro, compositores como Claude
Debussy (1862-1918) e Béla Bartók (1881-1945) buscavam materiais da música não
ocidental como uma forma de expandir seus trabalhos para além dos moldes
construídos pela tradição europeia até então.

Se olharmos para outros desenvolvimentos do modernismo na


música no início do século XX, antes e concomitante com o
desenvolvimento do serialismo de Schoenberg, diferentes
estratégias estéticas se tornam evidentes: não uma negação formal
absoluta e autônoma, mas várias tentativas para recorrer a outras
músicas, para representar o outro, trazendo para a órbita da música
modernista os sons do outro 2 . (BORN; HESMONDHALGH,
2000, p.12)

1
Abordaremos este assunto com mais detalhamento em nosso segundo capítulo.
2
“If we look at other developments in early-twentieth-century musical modernism, before and
concurrent with Schoenberg’s development of serialism, different aesthetic strategies become evident:
not absolute and autonomous formal negation, but various attempts to draw upon other musics, to
represent the other, to bring into the orbit of modernist music the sounds of the other.”
3

O contato específico com as outras músicas das culturas não ocidentais incitou
vários tipos de estudos e abordagens, como os estudos da Etnomusicologia e uma
série de visões sobre o contato do Ocidente com o Oriente. Um dos estudos mais
críticos a respeito desse contato foi feito por Edward Said, em sua publicação
Orientalismo (lançada em 1978), na qual o autor defende a ideia de que a “visão de
Oriente” construída no Ocidente alimenta traços de colonialismo, que acabam por
subjugar a cultura oriental à cultura ocidental, criando uma falsa representação do
Oriente.

O orientalismo tem suas premissas na exterioridade, ou seja, no


fato de que o orientalista, poeta ou erudito, faz com que o Oriente
fale, descreve o Oriente, torna seus mistérios simples por e para o
Ocidente. Ele nunca se preocupa com o Oriente a não ser como
causa primeira do que ele diz. O que ele diz e escreve, devido ao
fato de ser dito e escrito, quer indicar que o orientalista está fora
do Oriente, tanto existencial como moralmente. [...] O valor, a
eficácia, a força e a aparente veracidade de uma declaração escrita
sobre o Oriente, portanto baseiam-se muito pouco no próprio
Oriente e não poderiam instrumentalmente depender dele como
tal. (SAID, 1990, p. 51).

Em outras abordagens, os estudos sobre o contato com a música não ocidental


sugeriram uma espécie de divisão entre “cultura popular” e “arte de elite” nos
movimentos musicais do modernismo na Europa. A partir disso estabeleceu-se uma
dicotomia, na qual os trabalhos influenciados pelo contato com a música não
ocidental representavam uma espécie de arte “primitiva” e os trabalhos ligados ao
movimento serialista representavam uma arte “erudita”. Considerando que estas
supostas relações hoje encontram-se mais diluídas, o que se vê atualmente é uma
intensa movimentação entre fazeres musicais diversos, sendo que presenciamos um
momento de grande fusão estética, representado pelo que Georgina Born e David
Hesmondhalgh denominam como um “desejo de hibridismo” em nível global (2000,
p.19). Nesse contato com a “música do outro”, podemos inclusive dizer que vivemos
em um tempo onde esse “outro” está presente em uma única cultura ou localização
geográfica, e que os ambientes híbridos na música fazem parte de nossa realidade,
colocando diversos fazeres musicais em fluxo constante de transformação.
Este “desejo de hibridismo” e as relações estabelecidas a partir dele
constituem parte da motivação inicial de nosso trabalho.
4

A Música, ela mesma

Apesar de que a produção musical, em sua diversidade, apresenta


estruturas organizadas a partir de sistemas assimilados,
reconhecidos e reproduzidos pela maioria dos sujeitos envolvidos,
é importante atentar para o fato de que o grau de estabilidade
adquirido por um ou outro sistema de criação musical não deve
(nem pode) ser confundido com a Música, ela mesma. (BRITO,
2004, p. 55)

Corroborando com as palavras da educadora Maria Teresa A. Brito em sua


tese Por uma educação musical do pensamento (2004) e suas ideias de música
expostas na introdução de seu trabalho, utilizamos o conceito de hibridismo e a
proposta de diálogo com a música não ocidental, expostos anteriormente, em prol da
música, ela mesma. Nosso intuito é estabelecer um ambiente de diálogo entre diversos
fazeres musicais, no qual o contato que sugerimos com a música não ocidental refere-
se aos seus materiais de expressão artística apenas como parte de um fato musical3. A
partir dessa proposta de diálogo, trazemos estes materiais para fora de seu contexto de
origem para se criar mais ideias de música. Desse modo, trazemos para estudo e
reflexão elementos encontrados na música não ocidental, como os estados de imersão
na performance – tratada muitas vezes como ritual – , a noção de tempo circular na
prática da improvisação, a riqueza timbrística, a grande variedade de configurações
escalares, os procedimentos rítmicos e a integração corpo/música.
No recorte específico de nosso estudo, temos como foco principal o contato do
músico de formação tradicional europeia com outras músicas. Nesse contato, uma de
suas constantes é uma certa desestabilização desse músico ao se deparar com outros
formatos de performance, como veremos em nosso segundo capítulo. Como exemplo,
observamos que o aprendizado de um instrumento em alguns formatos da música não
ocidental difere da abordagem ligada à formatos da tradição europeia. Observamos
também que a forma de se pensar a performance em alguns contextos da música não
ocidental oferece contribuições conceituais importantes nessa área, principalmente ao

3
Conforme formulação de Jean Molino, incluída no trabalho Semiologia da Música, este assim define
o fato musical: "Como tantos fatos sociais, a música parece carregar-se de elementos heterogêneos - e,
aos nossos olhos, não musicais -, à medida que nos afastamos no espaço e no tempo…O próprio campo
do fato musical, tal como é reconhecido e delimitado pela prática social, nunca recobre exatamente o
que entendemos por música: de fato, a música está em toda a parte mas não ocupa nunca o mesmo
lugar…o fato musical aparece sempre não apenas ligado mas estreitamente misturado com o conjunto
de fatos humanos…Não há, pois, uma música, mas músicas. Não há a música, mas um fato musical.”
(MOLINO, s.d., p.112 -114)
5

se pensar em elementos como o aspecto técnico e o envolvimento do ouvinte durante


uma performance.
Outro aspecto também tratado em nossos estudos envolve a valorização da
improvisação e as abordagens sobre esta prática em alguns contextos da música não
ocidental – como na música indiana e em algumas regiões da África – e as relações
envolvendo a corporalidade do músico, principalmente no que diz respeito ao corpo
como meio para a cognição e incorporação de parâmetros rítmicos4. Estes fatores são
detalhados ao longo de nosso trabalho, pensando em estabelecer uma ponte de
comunicação entre estas outras ideias de música para elaborar uma proposta que se
valha de um diálogo entre Ocidente e Oriente. Citando o compositor Hans-Joachim
Koellreutter (1915-2005), este atenta para o fato de que tal diálogo pode trazer um
novo tipo de unidade para os fazeres musicais e contextos formativos “considerando
que a integração entre o pensamento oriental e ocidental seria a pedra angular de uma
nova cultura que traz a promessa de união da humanidade e de um novo humanismo”
(1968, p.7). Pensando em trazer uma contribuição para a construção desta nova
cultura em relação à música, ela mesma, sugerimos aqui um percurso de estudo dessa
integração.
Como motivação direta para a elaboração deste trabalho, partimos de uma
vivência formativa pessoal que, aos poucos, acabou por estabelecer um diálogo
bastante próximo ao que propomos e estudamos aqui. Nessas vivências citamos
inicialmente a formação acadêmica em duas áreas das artes – música e dança – pelo
Instituto de Artes da UNICAMP, fato este que estabeleceu um percurso profissional
multidisciplinar desde então. A partir daí, trabalhos com este caráter multidisciplinar
marcaram nossa trajetória em processos de criação envolvendo essas duas áreas –
como o trabalho de mais de doze anos ao lado do coreógrafo Ivaldo Bertazzo – e
trabalhos que integram o corpo e a música em contextos formativos. Sobre o contato
multicultural, este se estabeleceu a partir do mestrado em composição e performance
no California Institute of the A rts, instituição que citaremos com mais vagar em nosso
terceiro capítulo, detalhando aspectos que trazem uma contribuição significativa para
a abordagem proposta em nosso estudo. A partir das ideias e vivências expostas aqui,
abarcamos o estudo de ideias de música em contextos híbridos a partir do diálogo
com materiais da música não ocidental para o direcionamento de nosso trabalho.

4
Este conceito do corpo como meio de cognição é conhecido por embodied mind, e será detalhado em
nosso terceiro capítulo.
6

Contextos formativos

Um currículo musical centrado no ensino e aprendizagem prática


de uma gama razoável de culturas musicais (durante um período
de meses a anos) oferece aos estudantes a oportunidade de
alcançar um objetivo central da educação humanista: o auto
conhecimento através da "compreensão do conhecimento dos
outros”5. (TITON, 2005, p.35)

Lançando nosso olhar sobre o que se construiu no ensino formal do ocidente,


podemos observar que a diversidade musical que encontramos hoje e a acessibilidade
facilitada a uma série de fazeres musicais de culturas diversas não estão
necessariamente incluídos no currículo de formação do músico do século XXI.
Mesmo constatando a existência de um processo de assimilação de materiais
da música não ocidental na composição, na performance e em outros fazeres
musicais 6 desde o início do século XX 7 , podemos dizer que grande parte das
universidades e institutos de artes que formam os músicos do ocidente não absorveu
este processo em sua grade formativa. Desse modo, verificamos que muitos elementos
que não fazem parte da tradição clássica europeia – como configurações escalares
fora do sistema tonal, parâmetros rítmicos complexos, a valorização da prática da
improvisação8 e a integração entre corpo e música – não costumam ser abordados nos
cursos de formação em música.
Apesar disso, verificamos o crescimento da inserção destes elementos em
algumas instituições, como pudemos verificar no California Institute of the A rts e na
Guildhall School of Music and Drama, de Londres 9 . Considerando que estes

5
“A Music curriculum centered on the praxial teaching and learning of a reasonable range of music
cultures (over a span of months and years) offers students the opportunity to achieve a central goal of
humanistic education: self-understanding through “other-understanding”.
6
Com fazeres musicais referimo-nos à práticas que envolvem processos criativos de caráter
colaborativo, atividades multidisciplinares – como intervenções artísticas que integram elementos
como música e imagem, por exemplo – e relações que envolvem o conceito de musicking, discutido em
nosso terceiro capítulo, e outros.
7
Aqui poderíamos citar uma extensa lista: compositores europeus como Claude Debussy, Béla Bartók
Maurice Ravel (1875-1937), Edgar Varèse (1883-1965) e Olivier Messiaen (1908-1992), compositores
americanos como Henry Cowell (1897-1965), John Cage (1912-1992) e Steve Reich, músicos de jazz
como o saxofonista John Coltrane (1926-1967) e o pianista David Brubeck, músicos de improvisação
livre como o guitarrista Derek Bailey (1930-2005) e o saxofonista John Zorn, e outros músicos que
direta ou indiretamente se valeram desta influência, como o compositor Heitor Villa Lobos (1887-
1959) e músicos ligados à outros gêneros, como Frank Zappa (1940-1993), Brian Eno, Hermeto
Pascoal e outros.
8
Observando que esta prática existe na música do ocidente, como nos gêneros de jazz, blues e choro e
vem crescendo em práticas como a improvisação livre ou mesmo na retomada da improvisação de
estilo clássico, como veremos em nosso terceiro capítulo.
9
Notando que não estamos aqui nos referindo a contextos formativos relacionados à área de
7

elementos são cada vez mais encontrados na performance, na composição e em outros


fazeres musicais em um contexto global, a ampliação dos estudos sobre os materiais
da música não ocidental sob uma abordagem híbrida e multicultural pode trazer uma
contribuição relevante para o músico da atualidade.
Tecendo algumas considerações sobre o músico performer, o psicólogo John
Sloboda, especializado em psicologia aplicada à música, ao criticar o sistema de
educação formal nessa área, diz que o instrumentista é tão exigido em seu aspecto
técnico que, muitas vezes este músico é um sobrevivente de situações de humilhação
e ansiedade. O autor nos diz que, para remediar essa situação no ensino formal,
devemos lembrar que na música, como em nenhum outro lugar, tanto as experiências
prazerosas e as emoções profundas quanto o trabalho árduo e as habilidades técnicas
tem igual valor (2005, p. 271). Pensando que o sistema de educação formal a que o
autor se refere está em grande parte pautado nas tradições da música europeia – que
prima principalmente pela técnica e pelo virtuosismo – uma abordagem de formação
que também explore aspectos ligados à imersão sonora encontrada na prática da
improvisação musical, por exemplo, pode trazer um redimensionamento para a área
da performance musical. Sob este aspecto, mencionamos o surgimento de novos
contextos de formação que passam a fazer parte das opções do músico do ocidente da
atualidade, como aqueles relacionados aos estudos da música contemporânea, à
formação jazzística e às iniciativas de formação que promovem interações
multiculturais e multidisciplinares. Entretanto, destacamos que estes ainda
representam uma pequena parcela se comparados aos contextos formativos
embasados na tradição europeia oferecidos ao músico do ocidente.
Observamos ainda que, na formação musical direcionada para crianças –
frequentemente associada à propostas de iniciação musical – existe um vasto
ambiente de experimentação, englobando propostas de foco multicultural. Neste
aspecto, destacamos que muitos dos educadores que renovaram o ensino musical e
defenderam a ideia da interação do ocidente com outras músicas dirigiram grande
parte de sua pesquisa à educação musical infantil. Entre estes educadores estão Carl
Orff (1895-1982), Zoltán Kodály (1882-1967), Émile Jacques-Dalcroze (1869-1950)
e, mais recentemente, Murray Schafer, Keith Swanwick, Maria Teresa A. Brito, Pedro

Etnomusicologia, mas sim a contextos multiculturais que promovem a interação de fazeres musicais
diversos em propostas híbridas de formação, sendo estas voltadas especificamente para o aspecto
musical, como mencionamos anteriormente.
8

Paulo Salles, Maurice Martenot, John Paynter, Violeta Gainza, e outros. Talvez então
sejam as crianças as mais bem sucedidas no processo de excursionar pelo universo
musical quando nos referimos às possibilidades criadas pela inserção de materiais de
outras músicas em contextos formativos.

Problemática e hipóteses do trabalho

Problemática central sugerida no trabalho:

• Os materiais expressivos e os procedimentos musicais encontrados nas


culturas não ocidentais – que influenciaram o trabalho de músicos desde o
século passado – não foram absorvidas no currículo de formação do músico do
ocidente até os dias de hoje.

A partir desta problemática, levantamos as seguintes questões:

• Quais são os materiais da música não ocidental que podem favorecer o


desenvolvimento de novas perspectivas para conduzir processos criativos e
valorizar a prática da improvisação? Os materiais e procedimentos musicais
que permeiam a música não ocidental – incluindo configurações escalares fora
do padrão tonal, procedimentos rítmicos complexos e a interação da música
com o movimento para processos de cognição rítmica – podem contribuir com
essa prática e para a formação do músico em geral?

Visando responder estas questões, preparamos um percurso de estudo que


aborda o contato com a música de culturas não ocidentais partindo do trabalho de
compositores europeus do início do século XX até as influências multiculturais mais
recentes em contextos formativos do ocidente. Sob este foco híbrido e multicultural,
também elaboramos e aplicamos quatro workshops com a temática da conexão
corpo/instrumento sob parâmetros rítmicos complexos utilizados como ambientação
para a prática da improvisação. Nestes workshops, recontextualizamos alguns
materiais da música não ocidental – como processos mnemônicos de associação
rítmica e configurações escalares fora do sistema tonal – e propomos que os materiais
9

utilizados para a prática da improvisação sejam incorporados inicialmente através de


uma vivência que envolva a coordenação motora, o deslocamento no espaço e a
integração em grupo. Após este processo, os participantes passam para a
improvisação em seu instrumento, utilizando os mesmos materiais incorporados pelo
movimento, como detalharemos em nosso último capítulo.
Acreditamos que a elaboração de propostas de improvisação baseada na
inserção de materiais e procedimentos da música não ocidental em contextos híbridos
pode gerar novos estímulos para o desenvolvimento de processos criativos, além de
explorar elementos que ainda tem pouco registro na formação musical vigente no
ocidente. Consideramos ainda que a ideia da transição do corpo para o instrumento
em propostas de improvisação sob parâmetros rítmicos complexos gera um tipo de
percepção incorporada, ou seja, ao improvisar no instrumento, o músico já tem os
materiais expressivos internalizados pelas vias do movimento. Nosso intuito será que
este tipo de transição contribua para um processo de imersão sonora sensível e atenta,
indispensável para a prática da improvisação.

Considerações sobre os objetivos específicos do trabalho

Explorar as complexidades da diversidade cultural no ensino de


música, muitas vezes levanta mais perguntas do que respostas.
Mas as perguntas ficam melhores, e em campos como este, boas
perguntas podem ser preferíveis à respostas banais 10 .
(SCHIPPERS, 2012, p.14)

Pensando em estabelecer um ambiente de diálogo muito mais do que trazer


uma resposta estática à questão do contato com outras músicas, é importante ressaltar
que este trabalho não tem por objetivo romper com a escola tradicional europeia, mas
sim, trazer uma reflexão sobre o diálogo com outros fazeres musicais e ampliar os
materiais de formação musical existentes no ocidente, como citamos anteriormente.
Sem pensar em nenhum juízo de valor ou estabelecer uma abordagem ideal
para a formação do músico do ocidente, aqui queremos refletir sob estes aspectos e
criar uma ponte de comunicação entre fazeres musicais diversos, trazendo, ao final de
nosso estudo, uma contribuição sob este mesmo olhar para a prática da improvisação.

10
“Exploring the complexities of cultural diversity in music education often raises more questions than
it answers. But the questions get better; and in fields such as this, good questions may be preferable to
poor answers.”
10

Pensando em estabelecer uma visão permeável, dinâmica e abrangente para


nosso trabalho, observamos que todo sistema ou cânone musical trouxe importantes
contribuições para se pensar a música, e que os materiais e procedimentos da música
não ocidental aos quais nos referimos podem ampliar e enriquecer os objetos de
estudo oferecidos no ensino formal. Sob este aspecto, é importante destacar que nosso
trabalho não se refere estritamente ao campo da Etnomusicologia, embora utilizemos
pesquisas desta área para estudarmos alguns materiais e procedimentos musicais em
seu contexto de origem.
Por último e não menos importante, ressaltamos que nossa proposta final para
a prática da improvisação, com a ideia da conexão corpo/instrumento sob parâmetros
rítmicos complexos, representa uma abordagem inédita para tal prática.

Descrição dos capítulos da tese

No primeiro capítulo de nosso trabalho observamos, através de amostragem


feita a partir da análise de partituras, gravações e referências bibliográficas, como
alguns compositores do século XX incorporaram materiais da música não ocidental
em seus trabalhos. Como exemplo dessa amostragem, citamos a influência de ritmos
africanos na obra de Steve Reich e a utilização de configurações escalares diversas e
suas implicações no trabalho de Claude Debussy.
Em nosso segundo capítulo, abordamos as contribuições da música não
ocidental para se pensar a performance musical, estudando o contato do músico
performer de formação tradicional europeia com a música de outras culturas. Nessa
abordagem também comparamos e refletimos sobre parâmetros de improvisação em
alguns ambientes da música não ocidental, utilizando estes estudos para se pensar na
recontextualização destes materiais.
No terceiro capítulo de nosso trabalho atentamos para os possíveis
desdobramentos dos materiais da música não ocidental em contextos formativos do
ocidente, incluindo a ideia da corporalidade do músico e conceitos sobre a
improvisação. Nesse capítulo observamos como alguns institutos de artes
incorporaram elementos da música não ocidental em sua grade curricular, incluindo
cursos de graduação em música, cursos de especialização e iniciativas isoladas.
Em nosso quarto capítulo, relatamos experiências prévias diretamente
relacionadas à elaboração dos workshops de improvisação que apresentamos como
11

resultado de nosso estudo. Aqui incluímos o estágio realizado na disciplina de


improvisação oferecida na graduação em Música da ECA/USP, ministrada pelo
professor Rogério Luiz Moraes Costa, o curso de A ssimetrias Temporais, ministrado
no segundo semestre de 2011 na escola Espaço Musical e o estágio de 20 dias
realizado em janeiro de 2012 na Guildhall School of Music and Drama.
Em nosso último capítulo detalhamos as atividades propostas nos workshops
que elaboramos a partir das experiências descritas no capítulo anterior. O processo de
trabalho que estabelecemos para nossos workshops foi denominado de conexão
corpo/instrumento, que consiste na transição de propostas de improvisação utilizando
o movimento e a coordenação motora para a improvisação com o mesmo enfoque no
instrumento. As propostas de improvisação que elaboramos ao final de nosso trabalho
foram aplicadas no período de 2010 à 2012, sendo nossa última experiência realizada
com alunos de mestrado da Guildhall School of Music and Drama, Londres, durante
intercâmbio de 20 dias em janeiro de 2012. A descrição destas experiências, incluindo
relatos feitos por alguns dos participantes dos workshops que realizamos encontram-
se em nosso último capítulo. Os workshops estão também registrados em vídeo em
versão editada, sendo que esse registro faz parte do material apresentado neste
trabalho.

Revisão Bibliográfica

Para elaborar este trabalho, utilizamos referências teóricas já consagradas


sobre a abordagem do contato com outros fazeres musicais e buscamos também as
referências mais recentes sobre a inserção destes fazeres em contextos formativos do
ocidente. Desse modo, utilizamos estudos de etnomusicologistas e antropólogos como
Bruno Nettl, Georgina Born, Marcos Branda Lacerda, Ruth Stone, Jeff Titon, John
Blacking, e outros. Sobre os estudos mais recentes, destacamos os livros Musical
Improvisation: art, education and society (SOLIS; NETTL, 2009), The Improvising
Mind (BERKOWITZ, 2010) e Facing the Music: Shaping Music Education from a
Global perspective (SCHIPPERS, 2010), sendo este último uma referência bastante
utilizada neste trabalho.
Para elaborar uma amostragem da influência da música não ocidental no
trabalho de compositores do século XX, utilizamos os estudos de Richard Taruskin,
Simon Trezise, Alex Suchoff, Andre Boucurechliev, Paul Hillier, Paul Griffiths, Alex
12

Ross, Stephen Kostka, Sérgio Molina, e outros, além de partituras, gravações e


registros em vídeo sobre os compositores do século XX.
Para a fundamentação teórica de nosso trabalho, buscamos estudos que
abordam a cognição sob seu aspecto neurológico e científico, incluindo os estudos
específicos que envolvem os conceitos de embodied mind, affordance e cognição
situada. Sob esse aspecto utilizamos os estudos de Humberto Varela, Francisco
Maturana, Aaron Berkowitz, Liora Bresler, James Gibson, John Sloboda e George
Lakoff, além de estudos complementares e conceitos filosóficos formulados por
Christhopher Small, Friedrich Nietzsche, Jean Molino e John Dewey.
Para tratar dos materiais expressivos, procedimentais e conceituais da música
não ocidental, destacamos os livros Drum Gahu (LOCKE, 1998), A frican polyphony
and polyrhythm (SIMHA, 2004) , Time in Indian Music (CLAYTON, 2008) e The
Rãgs of North Indian Music (JAIRAZBHOY, 2011), que contribuem para formar uma
imagem não etnocêntrica destes materiais, trazendo uma compreensão mais
abrangente e não hierárquica dos mesmos.
Para tratar especificamente de conceitos ligados à prática da improvisação e
abordar sua inclusão em contextos formativos, citamos os trabalhos de Rogério Luiz
Moraes Costa, David Borgo, Cheffa Alonso, Tom Hall, Paul Berliner, Lee Higgins,
Edward Sarath e outros, além de contribuições a esse respeito encontradas nos
trabalhos de educadores como Maria Teresa A. Brito, Marisa Fonterrada, Keith
Swanwick, Lisa Ullman, Elsa Findlay e Patricia Campbell.
13

CAPÍTULO 1

A INFLUÊNCIA DE MATERIAIS DA MÚSICA NÃO OCIDENTAL


NA OBRA DE COMPOSITORES DO SÉCULO XX

“Se houvesse uma nova versão da


música, esta não viria do ocidente, mas
sim do oriente11”

(GRIFFITHS, 1994, p.116)

11
“If there were to be a new release in music, it would come not from the west but from the east”
14

O que há na música do oriente que tanto fascina o mundo ocidental?


Aspectos como os estados de imersão na performance – tratada muitas vezes
de forma ritualística – , a noção de tempo circular na prática da improvisação, os
materiais expressivos, a variedade timbrística de seus instrumentos musicais, os
procedimentos rítmicos e a integração corpo/música, entre outros, tem chamado a
atenção de músicos e estudiosos do mundo ocidental, a começar pelos compositores
europeus do início do século XX.
Pensando nessa questão, iniciaremos nosso capítulo descrevendo aspectos
gerais relativos ao processo de incorporação e transformação de materiais da música
não ocidental pelos compositores do século XX. Nessa descrição tratamos dos
processos de diálogo e transformação em seu aspecto histórico e conceitual,
fornecendo um panorama geral dessa influência. Em um segundo momento vamos
descrever como os materiais da música não ocidental foram incorporados e
recontextualizados na obra de alguns compositores do século XX através de análises
de trechos de suas obras. Em nossa análise, vamos abordar os procedimentos de
transformação e recontextualização a partir dos materiais da música não ocidental
tanto no sentido escalar, com implicações diretas no aspecto harmônico/vertical -
configurando o que consideramos como uma expansão tonal/modal - quanto no
sentido rítmico, estudando procedimentos que envolvem parâmetros como a
polimetria e a polirritmia, definidos a seguir.
Antes de iniciarmos é importante ressaltarmos que trata-se de uma
amostragem referindo-se especificamente à relação dos compositores do século XX
com os materiais da música não ocidental, não objetivando uma análise completa de
suas obras. A esse respeito, observamos também que o trabalho dos compositores do
século XX até hoje suscita estudos analíticos diversos, o que sugere que este material
composicional ainda é passível de abordagens em diferentes perspectivas ao longo do
tempo.
15

1.1.Considerações sobre a relação dos músicos do século XX com a


música não ocidental: linhas gerais

Em suma, em parte estimulada pelo antagonismo em direção a


Alemanha, em parte por um interesse em tradições indígenas
negligenciadas, e em parte influenciados por movimentos que
ocorriam simultaneamente na literatura e na pintura, os músicos
franceses começaram a cultivar um tipo muito diferente de
modernismo em relação aos alemães, incluindo uma técnica
musical muito diferente para lhe dar corpo.12 (TARUSKIN, 2011,
p.59)

Como vimos na introdução deste trabalho, enquanto os compositores de


origem germânica desenvolviam sistemas como o dodecafonismo e o serialismo, os
compositores das nações latinas e eslavas – incluindo França, Espanha, Itália, Rússia
e países da Europa Oriental – buscavam, como cita Taruskin, um outro tipo de
modernismo. Nessa busca, encabeçada pelos compositores franceses, a relação com a
música não ocidental representou uma das formas para a criação do que Didier
Guigue chama de Estética da Sonoridade.

De Debussy à música contemporânea deste início de séc. XXI, do


rock à eletrônica, dos objetos sonoros da primeira música concreta
à eletroacústica atual, do poema eletrônico às mais recentes
tentativas interartísticas, o “som” tornou-se uma das apostas
centrais da música (e das artes). Reler a história da música desde o
século passado significa em parte, ler a história movimentada da
emergência do som, uma história plural, pois que composta de
várias evoluções paralelas, as quais, todas, levam de uma
civilização do tom para uma civilização do som. (SOLOMOS In:
GUIGUE, 2012, p.19)

No prefácio ao livro de Guigue, Solomos cita as diversas manifestações que


ocorreram a partir do início do século XX em direção à estética da sonoridade. Nestas
manifestações estão a inclusão do ruído, as questões sonoras que envolvem o timbre e
a ressonância, as novas concepções sobre os modos de escuta e outros, sendo o legado
em busca da estética da sonoridade deixado por Debussy o tema de estudo do livro de
Guigue. Embora o autor não estude especificamente a relação da obra de Debussy e
de compositores influenciados por ele com a música não ocidental, esta relação

12
“In short, stimulated in part by antagonism toward Germany, in part by an interest in neglected
indigenous traditions, and in part by concurrent literary and painterly movements, French musicians
began to cultivate a very different sort of modernism from the Germans, and a very different musical
technique for embodying it.”
16

certamente foi uma fonte de materiais para que uma das vertentes em direção à
estética da sonoridade fosse instaurada.
Ainda sobre nosso objeto de estudo envolvendo outras músicas e outras
sonoridades, é importante estabelecer que, neste nosso primeiro capítulo, quando
falamos da música não ocidental, referimo-nos a toda música fora do contexto da
música europeia que, desde o século XIX, configurava uma hegemonia de percurso da
música erudita, com predominância germânica13. Fora dessa hegemonia, a partir do
início do século XX, especialmente na França, houve um contato dos compositores
com outras músicas, tendo estas vindo tanto por intermédio de compositores que
migraram da Europa oriental para o ocidente (como Béla Bartók [1881-1945], da
Hungria e Igor Stravinsky [1882-1971], da Rússia), quanto pelo contato com culturas
ancestrais, como as da Índia, África e Indonésia. Esse contato foi possível tanto pelo
advento do fonógrafo, em que compositores como Bela Bartók saíram em pesquisa de
campo, utilizando o aparato para registros de música folclórica da Europa oriental, da
Índia e da África, quanto em iniciativas como a Exposição Universal de Paris, em
1889, além de acervos e coletâneas da música não ocidental que começaram a se
propagar a partir dessa iniciativa, período que também marca o início dos estudos da
Etnomusicologia. Sobre os estudos que fomentam esta área, ao nos reportarmos à
música não ocidental, é comum associá-la a contextos unicamente vinculados à
música folclórica de caráter oral e popular. Sem excluirmos essa possibilidade,
observamos que a música não ocidental também abarca sistemas elaborados, ponto
sobre o qual Lacerda tece o seguinte comentário:

Ambientes orientalistas, vistos de fora, possuem uma natureza


peculiar. Muitas vezes não se trata de culturas de transmissão oral,
ou então, trata-se de culturas marcadas pela presença de vários
componentes estruturais que as destinam a priori para um domínio
comparável ao erudito. Foi, por sinal, na relação com estas
culturas, que se manifestou na música, muito da índole
etnocêntrica da velha Europa. Por outro lado, nutrindo-se destas
culturas, estes compositores 14 evitavam uma indesejável
proximidade com seu próprio elemento nacional. (LACERDA in:
FERRAZ, 2007, p.26)

13
Voltaremos a comentar sobre o termo música não ocidental em nosso segundo capítulo.
14
O autor está mencionando autores que tiveram influências étnicas em sua obra, como Bartók,
Debussy, Stravinsky, Stockhausen (1928-2007), Scelsi (1905-1988) e Koellreuter (1915-2005).
17

Pensando nos materiais e procedimentos da música não ocidental, podemos


encontrar estruturas complexas, como as organizações rítmicas das talas da música
indiana, a variedade timbrística da orquestra de gamelão javanês, as polirritmias
africanas e as diversas configurações escalares fora do sistema tonal, incluindo desde
configurações pentatônicas até configurações que trabalham os micro-tons em escalas
com mais de vinte notas. Essas estruturas mais complexas, diretamente relacionadas
aos aspectos da música que afetaram questões relacionadas às organizações
melódicas, à textura e ao ritmo e que foram absorvidas em procedimentos como o
polimodalismo, o politonalismo e as assimetrias rítmicas contidas nas combinações
métricas e polirritmias, são as que vamos detalhar neste capítulo.
Quanto ao etnocentrismo que se manifestou na relação dos compositores
europeus com a música de outras culturas – como mencionado por Lacerda – ainda
que nosso trabalho parta da relação destes compositores com materiais expressivos e
procedimentos da música não ocidental, nossa intenção será, na medida do possível,
trazer uma visão não hierarquizada e não etnocêntrica destes materiais no decorrer de
nossa pesquisa.

Até o momento, porém, nenhum compositor havia feito um estudo


sério da música oriental, nem fez muito mais do que aplicar
recursos da música oriental em obras de forma e estilo ocidental.
As coisas começam a mudar na década de trinta, quando a música
do leste passa a ser amplamente divulgada e conhecida através de
gravações, estudos e relatos de etnomusicólogos15. (GRIFFITHS,
1994, p.116)

Como menciona Griffiths, o contato de compositores com materiais musicais


de seu próprio folclore e de outras culturas já existia antes do início do século XX e
dava sinais de possíveis releituras. Como exemplo deste procedimento, Mahler
compôs e orquestrou algumas melodias a partir de uma coletânea de letras de músicas
folclóricas alemãs denominada Des Knabem W uderhorn (1805) sob uma ótica
modernista, e chegou a incorporar algumas destas composições em suas sinfonias,
como a canção Urlicht16, utilizada em um trecho de sua segunda sinfonia.

15
“As yet, however, no composer had made a serious study of eastern music, nor done much more than
apply oriental features to Works of western form and style. Things begin to change in the thirties, when
the music of the east started to become more widely and thoroughly known through recordings and the
reports of music ethnologists.”
16
Segundo Debussy, em carta à Andre Caplet, Urlicht era “ música primitiva com todas as
conveniências da modernidade” (tradução nossa), (LESURE; NICHOLS, 1987, p.270), sendo que este
tipo de releitura de músicas folclóricas é também conhecido por neoprimitivismo.
18

O que passa a ocorrer com a intensificação do contato dos compositores


europeus com os materiais do oriente, é uma transformação mais profunda, na qual os
compositores passam a ser influenciados também na esfera conceitual a partir da
relação com novos formatos e procedimentos musicais.
Nesse sentido, Claude Debussy, um dos pioneiros da incursão pela música não
ocidental, provavelmente conheceu a escala hexafônica de tons inteiros através da
obra de Mikhail Glinka (1804-1857) e foi influenciado pelas configurações escalares
octatônicas que alternavam tons e semitons, utilizada por Rimsky-Korsakov (1844-
1908) 17 . Aliados às configurações escalares de Bali e Java, a utilização e a
combinação destas organizações melódicas foi um dos procedimentos composicionais
utilizados por Debussy em busca de sua sonoridade.
Béla Bartók e Stravinsky, cada qual a seu modo, buscaram sua sonoridade em
suas origens musicais, além de incorporarem materiais de outras músicas ao longo de
seu trabalho. Longe de se aterem apenas ao papel de pesquisadores do folclore,
Bartók e Stravinsky utilizaram suas pesquisas etnográficas para criar, como Debussy,
suas próprias leituras deste material. Bartók utilizou a assimetria rítmica das canções
do folclore húngaro, utilizou configurações escalares em estruturas polimodais e
também sofreu influência das polirritmias da música africana e assimetrias das
canções do folclore húngaro. Igor Stravinsky sofreu influências semelhantes às de
Bartók, tendo desenvolvido estruturas rítmicas envolvendo a utilização de ostinatos,
mudanças de acentuação, polimetrias e polirritmias.
Corroborando com a ideia do diálogo e da transformação dos materiais de
outras músicas pelos compositores europeus do início do século XX – indo além da
busca por uma música nacionalista ou da reprodução de uma determinada sonoridade
– Béla Bartók compara sua relação com a música folclórica com o aprendizado de
uma outra língua:

17
Glinka foi precursor do movimento que buscava criar uma música nacionalista a partir de elementos
do folclore russo. Deste movimento formou-se o grupo dos cinco, formado pelos compositores russos
Mily Balakirev (1837-1910), Aleksandr Borodin (1833-1887), César Cui (1835-1918), Modest
Mussorgsky (1839-1881) e Nikolai Rimsky-Korsakov, que influenciou a próxima geração de
compositores russos como Prokofiev (1891-1953), Stravinsky e Shostakovich (1906-1975).
19

A referência de Bartók à "língua materna" é significativa,


precisamente a partir do momento em que ele reconhece que
compositores urbanos como ele não só devem aprender o idioma
da música camponesa de suas mães, mas devem dominá-lo
através de sua aplicação deliberada, como um adulto aprende uma
língua estrangeira.18 (TARUSKIN, 2011, p.378)

A partir da iniciativa de Charles Seeger (1886-1979), que em 1912 fundou o


primeiro departamento de Etnomusicologia na Universidade de Berkeley, Califórnia,
foi possível estudar a música não ocidental pela primeira vez em um contexto
acadêmico (ROSS, 2008, p.501). Junto com essa iniciativa, verificamos um segundo
momento de transformação a partir da influência da música não ocidental no trabalho
dos compositores do século XX, no qual encontramos compositores como Henry
Cowell (1897-1965), Olivier Messiaen (1908-1992), John Cage (1912-1992) e Steve
Reich. Henry Cowell foi um dos primeiros compositores a se beneficiar desses
estudos, utilizando instrumentos do Japão como o koto19 e a flauta sakuhachi e
instrumentos do gamelão javanês em seus trabalhos. Messiaen acrescentou em seu
tratado sobre suas técnicas composicionais uma compilação sobre os modos de
20
transposição limitada baseado nos modos gregos, nos estudos sobre as
configurações escalares utilizadas pelos compositores do início do século XX e em
estudos que realizou a partir da música de Bali, Índia, Japão e dos Andes,
formalizando as organizações melódicas utilizadas pelos compositores citados
anteriormente. Messiaen foi também influenciado pela música não ocidental no
aspecto rítmico, sendo que o compositor utilizou organizações rítmicas semelhantes
às da tala indiana em algumas de suas obras. Cage também foi influenciado pelo
aspecto rítmico da música indiana e por um viés conceitual através das filosofias
asiáticas como o Zen-budismo e o livro chinês I Ching. Dentre as influências a partir
destes elementos, Cage inaugurou o conceito de música aleatória, incorporou
instrumentos de outras músicas em seus trabalhos e estabeleceu uma utilização não
convencional de instrumentos convencionais, como o piano preparado, inicialmente
utilizado por Cowell (de quem Cage foi aluno). Steve Reich utilizou e sistematizou

18
“Bartok’s reference to the “mother tongue” is significant, precisely since he recognizes that urban
composers like himself do not learn the idiom of peasant music from their mothers but must master it
through deliberate application, as an adult learns a foreign language.”
19
Instrumento bastante popular no Japão, composto de uma caixa de ressonância com diversas cordas,
semelhante a uma grande cítara.
20
O detalhamento sobre a construção destes modos pode ser encontrado em Technique de mon langage
musical (MESSIAEN, 1966).
20

procedimentos como a polirritmia e a assimetria influenciado pela música africana


ganense, além de utilizar o procedimento rítmico da defasagem a partir de
experimentos com a fita magnética. Assim como Bartók, Reich também demonstra
sua preocupação em utilizar os materiais de outras músicas não para apenas
reproduzir um tipo de sonoridade, mas para uma compreensão conceitual em busca do
desenvolvimento de uma linguagem composicional própria.

Surge então a questão de como, em geral, este conhecimento da


música não ocidental pode influenciar o compositor. A influência
menos interessante, a meu ver, é imitar o som de algumas das
manifestações da música não ocidental. [...] Alternativamente,
pode-se criar uma música de sonoridade própria, construída à luz
do conhecimento que o compositor possui sobre estruturas da
música não ocidental.21 (REICH apud HILLIER, 2002, p.70)

Partindo do princípio que os compositores do século XX fizeram muito mais


do que apenas incorporar a sonoridade da música não ocidental em seus trabalhos,
como nos menciona Steve Reich, faremos a amostragem de alguns procedimentos que
demonstram o diálogo e a transformação de materiais de outras músicas.
Relembramos que nosso objetivo é apontar sob qual aspecto a música não
ocidental influenciou os trechos que vamos amostrar, sem a intenção de fazer uma
análise detalhada da obra dos compositores que elencamos, já que há uma extensa
bibliografia para tal finalidade. Observamos ainda que os exemplos utilizados aqui
representam apenas uma amostragem geral dessa influência, havendo portanto outros
compositores que fizeram parte direta ou indiretamente do processo de contato,
diálogo, transformação e recontextualização dos materiais da música não ocidental.
Para nosso trabalho, vamos analisar a influência dos materiais da música não
ocidental em trechos das obras de Debussy, Bartók, Stravinsky e Reich, com o foco
nos desdobramentos que vamos propor em nosso último capítulo.

21
“The question then arises as to how, if at all, this knowledge of non-Western music influences a
composer. The least interesting form of influence, to my mind, is that of imitating sound of some non-
Western music. [...] Alternatively, one can create a music with own’s sound that is constructed in the
light of one’s knowledge of non-Western structures.”
21

1.2.Amostragens da inserção e transformação de materiais da música


não ocidental na música europeia do início do século XX

Para estudar e amostrar a relação dos compositores do século XX com os


materiais da música não ocidental, vamos adotar a seguinte terminologia, combinando
definições de Béla Bartók (1881-1945), Vincent Persichetti (1915-1987), Stefan
Kostka e David Locke, com adaptações específicas para este trabalho:

Aspectos relativos à utilização de configurações escalares 22

• Politonalidade: aqui vamos considerar tal fenômeno como a utilização


simultânea de dois ou mais centros tonais. É interessante verificar que Bartók
aplicava este termo para definir qualquer procedimento que trabalhasse com
mais de um centro, incluindo também as configurações escalares modais.

• Polimodalidade: em nossos estudos, o termo refere-se à utilização simultânea


(polimodalidade vertical) ou sucessiva (polimodalidade horizontal) de várias
configurações escalares modais sob o mesmo centro.

• Cromatismo modal: termo que utilizamos quando a configuração resultante da


polimodalidade simultânea (dois modos sob o mesmo centro em duas ou mais
vozes distintas ouvidas simultaneamente) tem por resultante, pela adição das
notas dos dois modos, uma configuração escalar cromática.

• Poliescalar ou policonfigurativo: termo criado para abarcar a diversidade de


configurações escalares utilizadas pelos compositores do século XX. Como
exemplo temos a escala hexafônica, os modos de transposição limitada, as
configurações escalares da música da Indonésia como sléndro e pélog, e a
escala octatônica, entre outras possibilidades. Também utilizaremos este termo
em fenômenos simultâneos ou sucessivos.

22
Aqui combinamos as definições de Béla Bartók (BARTÓK apud SUCHOFF, 1976, p.354) e Vincent
Persichetti (PERSICHETTI, 1985, p. 257). A utilização de eventos simultâneos e sucessivos na
polimodalidade e os termos poliescalar e policonfigurativo são termos adaptados em definições que
julgamos necessárias para este trabalho.
22

Aspectos relativos à construção rítmica23

• Métricas combinadas: procedimento de caráter sucessivo/horizontal que


envolve a mudança de acentuação rítmica no decorrer de uma peça. Tais
mudanças podem ser evidenciadas tanto por acentuações marcadas em uma
mesma fórmula de compasso como na troca de fórmulas de compasso durante
a peça.

• A ssimetria: termo que se refere à utilização de compassos de numerador


ímpar, como 5/8, 11/8, 7/4, que sugerem uma pulsação resultante de
proporções irregulares.

• Polimetria: definimos a polimetria como qualquer fenômeno rítmico em que


se possa distinguir auditivamente a utilização simultânea de mais de uma
fórmula de compasso, sendo este então um fenômeno restrito ao aspecto
vertical. Há vários tipos de polimetria, sendo a defasagem 24 um exemplo deste
procedimento.

• Polirritmia: também um fenômeno relacionado ao aspecto vertical, onde


também será possível detectar dois ou mais padrões rítmicos ocorrendo
simultaneamente, mas todos estarão baseados em uma mesma fórmula de
compasso. É bastante frequente a utilização de quiálteras nos procedimentos
polirrítmicos, como os encontrados na música africana em geral, podendo
haver também uma série de combinações possíveis para este procedimento.

23
Neste item combinamos as definições de David Locke (LOCKE, 1982, p.123) e Stefan Kostka
(KOSTKA, 2006, p.117), também com adaptações específicas para este trabalho.
24
A defasagem rítmica é um procedimento que consiste em um cânone gradual feito a partir de duas ou
mais camadas onde uma estrutura rítmica permanece estática e outra mantém o mesmo padrão rítmico,
mas afasta-se para depois reencontrar a voz que fica fixa (no cânone as camadas nunca se encontram).
23

1.2.1.Procedimentos melódico-harmônicos

Debussy e a recombinação de configurações escalares

Heterofonia é um termo aplicado de diversas maneiras a diferentes


fenômenos musicais, mas talvez seja encontrado na maioria das
vezes nas descrições da música instrumental não ocidental,
significando as variantes simultâneas de uma melodia dada, as
quais são muitas vezes ornamentadas e improvisadas por dois ou
mais instrumentistas. [...] usaremos o termo um pouco mais
livremente para abarcar de forma generalizada a complexidade e
as rápidas mudanças de colorido das texturas de Debussy,
incluindo sua tendência a borrar linhas melódicas, mas a tempo de
reforçá-las pela adição de ornamentações e timbres variados.25
(TREZISE, 2003, p.181)

Na citação de Trezise, na qual o autor explica a utilização do termo


heterofonia para sua análise da obra orquestral de Debussy, destacamos a relação do
termo com a música não ocidental e a relação do mesmo com o trabalho de Debussy
na elaboração de suas linhas melódicas, que será tema de nossa amostragem sobre o
compositor. As ornamentações de Debussy e o aspecto ligado à pintura
impressionista, quando as ornamentações e variações tímbricas são associadas à
“borrões” são um aspecto presente em sua obra. O aspecto policonfigurativo da obra
de Debussy, ou seja, a utilização de diversas configurações escalares para elaborar
linhas melódicas, é um processo que corrobora com a ideia da heterofonia proposta
por Trezise. Enquanto na música ocidental do período romântico os temas eram
frequentemente baseados em uma ou duas configurações escalares, Debussy se utiliza
de várias combinações de configurações escalares ao mesmo tempo, seja para
“borrar” ou ornamentar linhas melódicas ou, antes de mais nada, como um dos
recursos em busca de sua sonoridade.
Tomando como primeiro exemplo a peça Syrinx, escrita para flauta solo, a
combinação das várias configurações escalares encontradas na peça cria uma
atmosfera tímbrica caracterizada por suas aproximações ornamentais sinuosas, que
podem nos remeter ao canto oriental. Também nessa peça, assim como em várias

25
“Heterophony is a term variously applied to different musical phenomena, but perhaps most often it
is encountered in descriptions of non-Western instrumental music, where it means the simultaneous
variants of a given melody, often ornamented and improvised on by two or more players. We will use
the term here somewhat more freely to cover the general complexity and rapid colouristic changes of
Debussy’s textures, as well as his tendency to blur the melodic line, but at the time to strengthen it with
added ornamentation in mixed timbres”.
24

peças de Debussy, verificamos uma ambientação sob uma atmosfera harmônica


peculiar, considerando que cada configuração escalar pode determinar um campo
harmônico provável. Ao apresentar o tema de Syrinx, já nos deparamos com uma
configuração escalar modificada ou expandida. Poderíamos dizer que o autor se
utiliza de uma escala cromática para criar o tema da peça, mas faltam duas notas para
tal afirmação ser completa (as notas ré e mib). Outras análises citam a escala
octatônica como base do tema, que tampouco se completa pela omissão da nota mib
(também no tema não está a nota sol, mas esta será citada em complementação ao
tema nos compassos que seguem). Uma das configurações escalares também provável
do tema seria uma expansão do modo eólio, com uma 4ª aumentada (sib do reb mi fa
solb lab), que podem ser encontradas em canções do folclore húngaro e foram
também utilizadas por Bartók.

Fig.1.1-Syrinx, tema e notas de apoio Fig.1.2-Syrinx, possível configuração


resultante das notas de apoio do tema

A exemplo da utilização de várias configurações escalares, resultando em uma


combinação que nos proporciona uma sonoridade única, tão característica de
Debussy, ressaltamos as seguintes configurações, também encontradas em Syrinx:

Fig1.3-Syrinx, linha melódica, compasso4 Fig.1.4-Syrinx, notas apoiadas no compasso 4

Fig.1.5- Syrinx, configuração pentatônica


25

Fig.1.6- Syrinx, linha melódica, compasso 20

Fig.1.7- Syrinx, configuração em modo dórico

Fig.1.8- Syrinx, configuração de tons inteiros

É importante notar que Syrinx traz, assim como em outras peças de Debussy,
elementos remanescentes da harmonia tonal, que o autor também combina de forma
única. Sendo esta uma peça para flauta solo, muitas vezes ouvimos alusões ao trítono
e arpejos dominantes que servem como polarização ao material escalar apresentado
em seguida, como este trecho que precede a configuração escalar da figura 1.5 :

Fig.1.9- Syrinx, configuração que estabelece um arpejo dominante


26

Em Syrinx, podemos dizer que Debussy explora amplamente o aspecto


policonfigurativo em uma única linha melódica. A partir da influência de uma
sonoridade de traços orientalistas, Debussy constrói esta linha costurando cada
configuração de uma forma única e pouco explorada na música europeia até então.
Essa combinação de elementos faz com que Debussy crie linhas melódicas
que remetem, ao mesmo tempo, às sonoridades do oriente e a uma expansão destas
sonoridades (considerando que em grande parte da música não ocidental, ainda que se
encontre uma grande variedade de configurações escalares, utiliza-se apenas uma ou
duas configurações para a construção de linhas melódicas).
Em um segundo exemplo, vamos amostrar configurações escalares utilizadas
nos primeiros compassos da peça Prélude à l’aprés midi d’un faune, sendo que
focaremos nossa amostragem na parte da flauta, relacionando as configurações
escalares de suas linhas melódicas com o contexto harmônico da peça. Na parte da
flauta desta peça verificamos também uma linha melódica sinuosa como em Syrinx,
criando uma ambiência de flutuação e suspensão que acabou por ser uma das marcas
da sonoridade de Debussy. A diversidade escalar criada pelas estruturas
policonfigurativas e pelas implicações harmônicas resultantes, estabelece uma espécie
de caleidoscópio escalar, também característico da obra do compositor.
Vejamos o tema da peça exposto na flauta, notando que este é construído a
partir de um motivo cromático e uma configuração escalar modal:

Fig.1.10- tema de Prélude à l’aprés midi d’un faune

No Prélude à l’aprés midi d’un faune, escrito para orquestra sinfônica,


verificamos que a melodia apresentada na flauta relaciona-se diretamente com o
contexto harmônico implícito nas outras vozes da orquestra (reduzida para piano nos
exemplos abaixo). A mesma melodia é apresentada sob harmonias distintas, criando
diferentes ambiências para as notas de apoio do tema, como vemos nos exemplos
apresentados:
27

Fig.1.11- Prélude à l’aprés midi d’un faune, Fig.1.12- Prélude à l’aprés midi d’un faune,
melodia e harmonia resultante mesma melodia sob outra harmonia

Debussy faz variações do tema utilizando-se da combinação de diversas


configurações escalares, que no início da peça são feitas com escalas cromáticas e
modais, como vemos na variação do tema:

Fig.1.13- Prélude à l’aprés midi d’un faune, configurações cromática e modal

Através de nossa amostragem verificamos que podemos encontrar no Prélude


à l’aprés-midi d’un faune configurações escalares diversas. Como em Syrinx, há
também configurações escalares que funcionam como procedimento de polarização
para o compasso seguinte, como no exemplo abaixo:

Fig.1.14- Prélude à l’aprés midi d’un faune, configuração modal com função harmônica dominante
28

Comparando as duas peças, vemos que Syrinx apresenta uma variedade maior
de configurações escalares expandidas, ou seja, com notas que apresentam variações
sob estruturas modais, tonais e cromáticas. Em contrapartida, por ser uma peça
orquestral, a gama de “cores e nuances” do Prélude à l’aprés-midi d’un faune fica não
só por conta da variação e combinação única que Claude Debussy faz das
configurações escalares, mas também por conta da resultante de uma configuração
escalar em relação à novos contextos harmônicos.
Pensando na ideia da expansão de materiais da música não ocidental nas obras
de Debussy, ao compararmos as duas peças, podemos dizer que o Prélude à l’aprés-
midi d’un faune apresenta a ornamentação e o colorido que remetem a uma
sonoridade orientalista também em sua linha horizontal. Desta forma, podemos
perceber as mudanças harmônicas sob uma mesma linha melódica como uma maneira
de estabelecer uma trama com pequenas variações de nuances entre as linhas
horizontal e vertical. Neste procedimento, cada nuance ou colorido imprime uma
sonoridade na qual uma parte permanece fixa (a linha melódica) e a outra flutuante (a
linha harmônica). Tal procedimento traz uma sonoridade mais estática em relação à
encontrada nas progressões harmônicas da música tradicional europeia, sendo que
este aspecto mais estático pode ser associado a um caráter hipnótico ou
contemplativo, obtido por pequenas variações sob um elemento fixo. Este
procedimento também pode ser encontrada na música não ocidental, como no raga
indiano e na música javanesa, predominantemente pela variação de uma linha
melódica sob uma harmonia fixa. No caso de Debussy, podemos dizer portanto que o
compositor encontra em Prélude à l’aprés-midi d’un faune, uma maneira particular de
reproduzir este caráter26.

26
Lembrando aqui que não estamos reduzindo os movimentos harmônicos da peça à esta única relação,
pois, como menciona Guigue sobre a harmonia de Debussy, “seria extremamente redutor contentar-se
com o termo colorista para definir a função da harmonia na sua música [...] suas estruturas funcionais
conseguem nunca satisfazer as expectativas inerentes ao sistema ao qual, no entanto, ele se refere
constantemente” (2012, p.97)
29

Bartók e as camadas polimodais e politonais

Mais do que um sistema de composição, como são conhecidos os


sistemas modal, tonal, dodecafônico, etc., Bartók lança sua criação
para o âmbito da sobreposição de diversos sistemas conjugados,
regidos por um único maestro à procura de uma sonoridade
específica resultante. (MOLINA, 2004, p.43)

Considerando que os procedimentos melódico-harmônicos que estamos


amostrando aqui são apenas parte dos diversos recursos utilizados por Debussy,
Bartók e outros compositores em busca de uma sonoridade própria, podemos estender
a ideia de Molina para outros compositores do início do século XX (embora Bartók
tenha sido um dos poucos compositores desse período que sistematizou seus
procedimentos composicionais). Bartók, assim como Debussy, lidou com as
configurações escalares extraídas da cultura não ocidental à sua maneira. Enquanto
Debussy utilizava linhas melódicas expandidas pelo aspecto policonfigurativo, Bartók
utilizava configurações escalares em procedimentos de complementaridade, criando
camadas simultâneas que envolviam cada qual uma determinada configuração
melódica. Tais camadas eram combinadas de formas diversas para se criar uma trama
resultante, como veremos adiante.
Na peça que vamos utilizar como primeira amostragem, a Dança Romena nº4,
uma peça escrita para piano, vamos verificar como Bartók trabalha com estruturas
polimodais. Como já mencionamos em nossas definições procedimentais no início
deste trecho, Bartók considerava como procedimento polimodal aquele que trabalha
com mais de um modo sob apenas um único centro. No caso da Dança Romena nº 4,
verificamos, na linha melódica apresentada ao longo da peça, a presença de dois
modos a partir do centro “lá”. Podemos observar na peça que seu primeiro tema é
apresentado em Lá frígio com 3ª maior, conhecido por modo frígio maior ou escala
cigana27 e um segundo tema combinando o modo frígio com o modo frígio maior.

Fig.1.15- Béla Bartók, tema da Dança Romena nº 4

27
Este modo pode ser obtido através da configuração escalar extraída a partir do 5ºgrau da escala
menor harmônica.
30

Fig.1.16- Béla Bartók, variação do tema da Dança Romena nº 4,


combinação dos modos frígio e frígio maior

Fig.1.17 e Fig.1.18- configurações utilizadas no tema


e variação da Dança Romena nº 4

Ao longo da peça o compositor vai introduzindo, pouco a pouco, outras notas


não pertencentes aos modos frígio e frígio maior no acompanhamento da melodia.
Neste procedimento, ao final da Dança Romena nº4, podemos verificar que a
junção do acompanhamento com o tema formará uma configuração escalar muito
próxima da escala cromática, sendo que definimos tal procedimento como
cromatismo modal. Verificamos também que a configuração mais próxima dos
últimos compassos aproxima-se do modo Jônio em “lá”, a partir das notas assinaladas
das figuras abaixo:

Fig.1.19- Dança Romena nº 4, Cromatismo Modal formado pela junção de


configurações escalares nas camadas superior e inferior no trecho final da peça

Fig.1.20- Dança Romena nº 4, configuração resultante no trecho final


31

Como próximo exemplo, utilizamos a peça intitulada From the Island of Bali,
extraída do vol. 4 da coleção Mikrokosmos, em que Bartók utiliza uma configuração
escalar chamada pélog, originária do gamelão javanês em Bali. A escala pélog
original possui apenas uma afinação (podendo variar um pouco de região para região),
mas Bartók utiliza esta configuração mudando seu centro ao longo da peça, utilizando
os centros amostrados a seguir:

Fig.1.21- pélog, escala original

Fig.1.22 e Fig.1.23- escala pélog sob outros centros, utilizadas por


Béla Bartók na peça From the Island of Bali, Mikrokosmos, vol.4

Bartók introduz as duas configurações da peça utilizando apenas 4 notas de


cada uma em sua primeira exposição, omitindo a nota do meio e utilizando as duas
primeiras e as duas últimas. A nota que falta em cada configuração é encontrada na
camada oposta, como ilustrado:

Fig. 1.24- From the Island of Bali, camadas complementares


utilizando a escala pélog sob dois centros

Ao longo da peça, Bartók vai desenvolvendo motivos a partir da configuração


escalar pélog, criando desenhos nos quais as camadas ora estão em uníssono, ora
formam uma trama já bem distante da maneira que a configuração é utilizada em seu
32

contexto original (especialmente pelo politonalismo resultante dos procedimentos


utilizados por Bartók). Vejamos alguns destes procedimentos:

figura 1.25- From the Island of Bali, linha melódica


criada com a escala pélog com centro em “ré”

fig. 1.26- From the Island of Bali, trama criada a partir


das variações de centro da escala pélog

Bartók utilizou estruturas polimodais e politonais (segundo o próprio Bartók,


as estruturas politonais são aquelas que tem diferentes centros) em grande parte de
suas peças, que aqui consideramos também como uma maneira de incorporar,
transformar e recontextualizar configurações escalares encontradas na música não
ocidental. Através do polimodalismo sucessivo e simultâneo, muitas vezes resultando
em cromatismos modais, Bartók cria camadas que se interpolam e que, como
Debussy, afetam diretamente aspectos harmônicos e timbrísticos ao longo de sua
obra. Em relação à Debussy, podemos dizer que Bartók utilizou as configurações
escalares da música não ocidental de forma mais explícita, deixando claras as
referências extraídas das melodias encontradas no folclore húngaro e das
configurações escalares da música não ocidental em grande parte de suas peças.
Bartók trabalha com as configurações escalares de uma forma sistemática,
construindo as relações de complementaridade que estudamos anteriormente sob um
pensamento lógico, criando relações combinatórias entre estes materiais escalares28.

28
Sob este mesmo tipo de pensamento, Bartók se baseava em relações matemáticas como a Proporção
33

Sobre os procedimentos utilizados por Bartók em relação às configurações


escalares, é importante ainda pontuar que o compositor via seu trabalho com os
materiais da música folclórica de culturas fora da tradição clássica europeia como
uma “manipulação” de elementos da natureza, já que ele mesmo considerava que “a
arte camponesa é um fenômeno da natureza” (SUCHOFF, 1976, p.338).

1.2.2.Procedimentos rítmicos

Stravinsky e as relações entre o hipnótico e o imprevisível

Particularmente fascinante e inovador (e portanto influente) era a


forma inventada por Stravinsky para combinar duas
rítmicas/métricas diferentes – o ostinato "passivo" e os constantes
deslocamentos rítmicos – coexistindo dentro de uma única textura
[...] Nenhum destes elementos está sincopado em relação ao outro,
por não possuir o que poderia ser chamado de um ritmo definidor
ou dominante contra a qual o outro pode ser construído desta
forma, eles simplesmente ficam dentro ou fora de fase um com o
outro, sendo que fixidez e mutabilidade coexistem em esferas
simultâneas e independentes.29 (TARUSKIN, 2011, p.183)

De acordo com Taruskin, o procedimento rítmico que envolve a combinação


dos ostinatos de Stravinsky com as mudanças imprevisíveis de acentuação métrica em
uma segunda esfera (e sobre estas mudanças, segundo o mesmo autor, “seja qual for a
variação, ela é levada ao seu extremo!30”, 2011, p.183) é a chave para se entender as
inovações deste compositor no aspecto rítmico. Na utilização do ostinato,
procedimento frequentemente utilizado na música não ocidental, Stravinsky cria uma
sensação que remete a um estado hipnótico e ritualístico semelhante ao encontrado
nestas músicas, como a que o compositor elaborou no seguinte trecho de Petrushka:

Áurea, estudada desde os primeiros filósofos gregos; e pela Série de Fibonacci, elaborada pelo italiano
Leonardo de Pisa (1175-1250), que traduziam as proporções do “belo”. Bartók utilizou estas relações
como instrumento composicional para buscar equilíbrio e simetria em suas obras, especialmente em
seu aspecto formal (MOLINA, 2004, p.86).
29
“Particularly fascinating and innovative (hence influential) was the way in which Stravinsky
contrived to have his two rhythmic/metric types – the “passive” ostinato and the active shifting stress –
coexist within a single texture [...] Neither element is in syncopation with respect of the other, for
neither possesses what could be called the defining or dominant rhythm against which the other could
be constructed as syncopated, They merely go in an out of phase with one another, fixity and
mutability coexisting in concurrent, independent strata.”
30
“Whatever is variable gets variable to the hilt!”
34

Fig.1.27- Dance of the Coachmen and the Grooms,


movimento de Petruschka

Criando seu segundo elemento rítmico, utilizando as combinações métricas e


as assimetrias que não eram comuns na música clássica europeia, mas comuns nas
melodias do folclore russo, Stravinsky trabalha com o imprevisível, no qual uma
combinação métrica nunca era igual à outra. Vejamos um trecho de uma canção típica
do folclore russo, no qual Stravinsky se inspirou para criar essa segunda esfera
rítmica:

Fig.1.28- canção russa compilada por Rimsky-Korsakov


(100 Russian Folk Songs, 1877)

Em relação ao elemento mais relacionado à imprevisibilidade e à surpresa,


Stravinsky costumava utilizar grandes blocos harmônicos em diferentes acentuações
35

rítmicas em momentos de ápice de suas peças, a exemplo do trecho final da Sagração


da Primavera. Em contraste com o elemento da imprevisibilidade podemos também
verificar a construção de temas que se estabelecem a partir de um ostinato, causando
uma sensação hipnótica, como no caso do tema do penúltimo movimento de Pássaro
de Fogo. Vejamos então exemplos destes dois procedimentos rítmicos utilizados
separadamente:

Fig.1.29- Lullaby, Pássaro de Fogo: tema construído sob um ostinato

Fig.1.30- Sagração da Primavera, acentuações sob


diferentes combinações métricas no trecho final
36

Finalizando nossa amostragem sobre os procedimentos utilizados por


Stravinsky, vejamos um exemplo da combinação que estabelece o procedimento que
faz coexistir as duas esferas rítmicas trabalhadas por Stravinsky, em um trecho de
História de um soldado:

Fig.1.31- História de um soldado, trama envolvendo duas esferas rítmicas

Visualizando os procedimentos rítmicos utilizados por Stravinsky como uma


transformação ou recontextualização de procedimentos da música não ocidental,
podemos então destacar dois aspectos que denotam o trabalho feito pelo compositor:

• O primeiro, a expansão do caráter rítmico da assimetria. Detalharemos este


aspecto rítmico mais adiante (p.68), mas destacamos a utilização deste aspecto
para imprimir o elemento da imprevisibilidade nas peças de Stravinsky, o que
consideramos como uma mudança de contexto para esta qualidade rítmica.
• O segundo aspecto, também explorado por outros compositores, é a
superposição simultânea de diferentes qualidades rítmicas, e, no caso de
Stravinsky, qualidades rítmicas opostas (uma ligada ao elemento estático, e
outra ao elemento do imprevisto, portanto, mais dinâmico)
37

Steve Reich e a mobilidade de padrões rítmicos

O processo implícito nas primeiras obras de Reich consistia na


repetição simultânea de duas ou mais vozes com um padrão auto-
ajustável de mudança. Normalmente isso consistia em um padrão
melódico/rítmico, que, em um dado momento, parecia fixo ou
estático, embora cheio de energia. Através de várias técnicas, um
processo de mudança gradual era estabelecido, o que o ouvido
rapidamente reconhecia como a própria obra em andamento. A
realização da obra consistia no desdobramento desse processo.31
(HILLIER, 2002, p.4)

Em nossa amostragem dos processos de expansão de estruturas da música não


ocidental, vamos finalizar nossos exemplos com trechos da peça Drumming,
concebida por Steve Reich para 4 pares de bongôs, 3 glockenspiels, 3 marimbas e
duas vozes femininas. Em alguns momentos da peça os instrumentistas também
utilizavam o assobio como recurso instrumental. Em Drumming Reich consagra o
procedimento rítmico que chamamos de defasagem, utilizado em seus primeiros
trabalhos. Nesta peça especificamente, o compositor utiliza a substituição de notas por
pausas e pausas por notas como procedimento rítmico (fig.1.34). Drumming foi
composta em 1971, logo após um curto período em que o compositor passou em
Gana, África, estudando a percussão africana, incluindo o ritmo conhecido por Gahu,
característico da tribo Ewe, que foi uma das inspirações de Reich para compor a peça
que vamos utilizar. Segundo David Locke, a base rítmica do Gahu, é formada da
seguinte maneira:

Fig. 1.32- Base rítmica de Gahu, Gana (LOCKE, p.36)

31
“The underlying process in all of Reich’s earlier music is the simultaneous repetition in two or more
voices of a pattern with self-regulating changes. Normally this consists of a melodic/rhythm pattern,
which at any given moment appears fixed or static but full of energy. Through various techniques a
process of gradual change is established, which the ear soon recognizes as the work itself in progress.
The unfolding of this process constitutes the work’s fulfillment.”
38

Abaixo o único motivo rítmico sob a qual a peça Drumming foi construída:

Fig. 1.33- Base rítmica de Drumming, de Steve Reich

Embora não haja relação direta entre os dois ritmos, há princípios inerentes ao
ritmo Gahu e outros ritmos africanos e à construção da peça Drumming a partir do
motivo rítmico que mostramos, descritos nos tópicos a seguir:

• A pulsação utilizada como estrutura básica para construção da peça. Tanto a


estrutura rítmica do Gahu quanto a de Drumming é feita a partir de camadas
rítmicas que, independente do recurso rítmico empregado para sua elaboração
(polirritmia, polimetria ou defasagem, entre outros), tem por estrutura básica
uma unidade mínima de pulsação.
• A periodicidade rítmica, sendo tanto no ritmo africano quanto em Drumming a
essência da técnica musical empregada consiste na utilização de células
rítmicas que se repetem.
• A mobilidade dos padrões rítmicos, sendo que seu início não ocorre sempre no
início do compasso, tanto nos ritmos africanos quanto na música de Reich.
Esse procedimento sugere ao ouvinte a impressão de que a música tem vários
“começos”, sendo mesmo difícil estabelecer em ambas as formas, aonde seria
o verdadeiro “downbeat”32.

Vamos utilizar dois trechos de Drumming para ilustrar dois procedimentos


rítmicos utilizados por Steve Reich. O primeiro, logo no início da peça mostra oito
variações feitas para a percussão, utilizando a substituição gradativa de pausas por
notas; o segundo ilustra um procedimento de deslocamento do início do motivo
rítmico principal, resultando em defasagem, que consideramos anteriormente como
um tipo de polimetria:

32
Itens elaborados a partir do artigo African Polyrhythmics and Steve Reich’s Drumming (MOMENI,
2001).
39

Fig.1.34- Drumming, substituição gradativa de pausas por notas

Fig. 1.35- Drumming, deslocamento de motivos rímicos


40

Como em nossas outras amostragens, também vamos considerar os


procedimentos relativos à construção rítmica utilizados por Steve Reich como uma
recontextualização de materiais de outras músicas a partir do contato com estruturas
rítmicas encontradas na música não ocidental. Embora o procedimento da defasagem
não tenha vindo da música não ocidental, mas sim das experiências do compositor
com a fita magnética, há grande influência de estruturas da música africana na obra de
Steve Reich, como a construção de uma estrutura rítmica a partir de pequenos padrões
rítmicos e a mobilidade deste padrões, observados tanto na construção do ritmo Gahu
quanto em Drumming. Se compararmos os padrões rítmicos utilizados no ritmo
africano com os utilizados na peça de Reich, observamos uma maior complexidade
destes padrões no ritmo Gahu. Em contrapartida, ao observarmos a mobilidade destes
padrões, incluindo o procedimento de defasagem utilizado por Reich, a complexidade
– ou maior variação, neste caso – fica por conta de Drumming. Podemos então dizer
que Steve Reich dialoga com os materiais da música africana principalmente de forma
conceitual: o compositor não reproduz o material propriamente dito, mas reproduz a
ideia contida por trás deste material.

xxx

É importante relembrar que, embora tenhamos nos concentrado em


exemplificar apenas um procedimento por compositor, todos os compositores aos
quais nos referimos utilizaram vários materiais e procedimentos combinados,
incluindo os que mencionamos neste capítulo. Desta forma, observamos que Debussy,
além de se utilizar de configurações escalares diversas, utilizou-se também da
polirritmia, Bartók, além de usar estruturas polimodais, utilizou também
combinações métricas em seus trabalhos; e assim por diante.
Iniciando nosso diálogo com os materiais expressivos, procedimentos e
conceitos da música não ocidental, fechamos nosso capítulo, sendo que muitos dos
conceitos impressos nos procedimentos amostrados aqui – ou seja, a forma de se
dialogar e trabalhar com estes matérias – serão retomados na última parte deste
trabalho.
41

CAPÍTULO 2

A MÚSICA DE CULTURAS NÃO OCIDENTAIS E A


PERFORMANCE: INTERAÇÕES TRANSCULTURAIS

“Hoje temos acesso retrospectivo a toda


produção de música no ocidente e mais
toda a música feita em outros lugares do
mundo e de origem não europeia. Esta
situação cria condições para um
desenraizamento da música atual. Este
desenraizamento parece apontar
positivamente para o advento de novos
tempos onde as estruturas mais
profundas da arte, da linguagem e do
pensamento se desprendem de suas
especificidades idiomáticas para
expressar formas mais sutis da
existência: o "molecular", o cósmico.”

(COSTA , 2003, p.29)


42

Neste segundo capítulo abordaremos as contribuições da música não ocidental


na performance musical, estudando principalmente o contato do músico performer
com formação baseada na didática ocidental pautada na tradição europeia com a
música provinda de outras culturas. Nessa abordagem vamos também estudar,
comparar e refletir sobre parâmetros de improvisação em alguns ambientes da música
não ocidental, para depois abordarmos diretamente a transformação e
recontextualização de materiais e procedimentos da música não ocidental dentro de
um contexto formativo para o músico adulto.
Nosso trajeto parte de considerações gerais sobre o contato com outras
culturas para depois abordar aspectos específicos relativos à performance musical nas
culturas não ocidentais. Nestes aspectos damos especial atenção para a improvisação,
trazendo conceitos e procedimentos que podem enriquecer a abordagem dessa prática,
almejando a criação de contextos híbridos e transculturais de formação musical.
Evitando estabelecer uma visão etnocêntrica em nossos estudos, escolhemos
como fundamentação o trabalho de autores que vivenciaram abordagens
multiculturais na performance e autores de origem não ocidental que trouxeram
conceitos de suas culturas para contextos formativos de música encontrados no
ocidente.
43

2.1.A música de outras culturas e sua recontextualização

Em nosso primeiro capítulo, quando analisamos o trabalho de alguns


compositores do século XX e suas relações particulares com a música não ocidental,
nosso principal foco de estudo foi a interação estabelecida a partir do contato com
outras culturas e materiais musicais. Nessa abordagem, vimos de que forma alguns
compositores estabeleceram uma conversa com essa “outra” música e como
elaboraram e transformaram seu trabalho a partir desse contato. Aqui seguimos nesse
mesmo caminho, agora pensando no músico performer.
Neste segundo capítulo de nosso trabalho, concentramo-nos na possível
ampliação de possibilidades no campo de ação de um músico performer quando se
depara com fazeres musicais advindos de outras culturas. Para esse estudo específico,
baseamos nossa pesquisa nos relatos de músicos e etnomusicólogos como Huib
Schippers, Bruno Nettl, John Blacking (1928-1990) e Derek Bailey, que se
preocuparam com as relações multiculturais na música, especialmente na
performance, na improvisação e no aspecto formativo do músico da atualidade.
Para melhor compreensão de nosso estudo, vamos estabelecer alguns
conceitos de acordo com as definições propostas por Schippers (2010, p.30-31),
acrescentando alguns elementos que julgamos pertinentes para nosso trabalho:

• Tradição: Schippers menciona que a tradição pode ser tratada tanto de forma
mais estática quanto de forma mais dinâmica, especialmente em se tratando de
tradições musicais. O autor cita o exemplo do termo “música clássica”,
emprestado do classicismo grego, no qual “clássico” está ligado a uma
expressão que traduz um padrão estético de beleza, de natureza estática e
imutável, e, portanto, traduz uma tradição musical de caráter semelhante. Em
outros fazeres musicais ligados às tradições musicais, como o maqam árabe e
o raga indiano, apesar de representarem tradições milenares profundamente
enraizadas, estes possuem uma natureza mais fluida, como veremos adiante
neste mesmo capítulo. A princípio, Schippers considera tradição tudo que foi
criado pelo homem e pode ser passado de uma geração para outra,
independente da forma como isto é feito. Nessa interpretação, a tradição pode
ser abordada de uma forma mais dinâmica e pode se adaptar à novos
contextos.
44

• Contexto: conjunto que insere uma atividade dentro de sua cultura e seu
território de origem. O termo pode se referir também a ambientes criados
especificamente para um determinado aprendizado, como o contexto
acadêmico de formação em música.
• Recontextualização: uma atividade realizada fora de seu território original,
trazida para outros ambientes por motivos diversos (como o estudo de uma
determinada prática musical fora de seu território de origem em um contexto
acadêmico).
• Multicultural: termo referente à existência de várias culturas ao mesmo
tempo, mas não necessariamente em relações de interação. Uma realidade
multicultural na música é aquela em que constatamos a existência de vários
fazeres musicais provindos de culturas diversas.
• Transcultural: Troca e intercâmbio de informações em um aspecto
profundo. Em música, as relações transculturais implicam em estudos e
práticas envolvendo diferentes procedimentos musicais sem nenhum aspecto
hierárquico, nas quais todas as manifestações musicais são tratadas com igual
importância para se discutir a música como um todo.
• Hibridismo: está relacionado a um “terceiro espaço” formado pelas relações
transculturais, no qual cria-se algo novo. Em música, os ambientes híbridos
podem ser criados a partir de uma profunda interação entre fazeres musicais
de culturas, gêneros e procedimentos diversos.

Neste segundo capítulo, seguimos utilizando o termo música não


ocidental 33 , com a ressalva de que nosso foco principal é a constatação da

33
Em relação ao termo, Schippers cita a dificuldade de tratar a diversidade cultural em termos como
world music, música indiana, música africana, música oriental e música não ocidental. O autor
menciona por exemplo que, quando falamos de música indiana, estamos em geral referindo-nos à
música tradicional do norte da Índia, enquanto existe a música mais ligada à religião feita no sul e a
música popular dos filmes que hoje figuram no circuito chamado de Bollywood music. Quando nos
referimos à música africana, alguns estudiosos podem desaprovar o termo, considerando as diferentes
regiões da África e suas peculiaridades musicais, como a música do Marrocos, da Gâmbia e da
Tanzânia. O termo música oriental é mais aplicado para referências à música da Arábia e da Ásia,
também relacionadas à uma qualidade exótica, carregada de um certo olhar de estranhamento, como se
a música do Ocidente fosse normal e a do Oriente fosse diferente. Sobre o termo música não ocidental,
Schippers cita um colega indiano que chamou a música de Mozart de “não indiana”, chamando a
atenção para os diferentes pontos de vista que estes termos podem suscitar. Referindo-se ao termo
world music, o autor observa que este termo determina em geral a música de uma outra região ou
cultura que não aquele da qual se faz parte, ou seja, na África, a música que se faz na França é
considerada world music e vice-versa. O autor menciona ainda a utilização do termo world musics,
45

diversidade cultural e musical na qual nos encontramos hoje. A partir dessa


diversidade, vamos estudar formas de nos relacionarmos com outras músicas, sob a
perspectiva do performer com formação musical nos moldes da tradição europeia.
Antes de apresentarmos este estudo, queremos ressaltar que tanto a música
proveniente da escola europeia quanto a música não ocidental são terrenos amplos e
em constante transformação. Neste último ponto é comum pensarmos a música não
ocidental como uma música mais estática, relacionada à preservação de uma tradição
quase sempre transmitida de forma oral, mas tal ideia não reflete o que se encontra
hoje na música não ocidental. Na verdade, verifica-se que transformação e a
recontextualização das práticas relacionadas às tradições da música não ocidental,
mesmo em seu contexto de origem, acontecem com muito mais frequência do que se
imagina.

Muitos estudiosos estiveram predominantemente interessados nas


tradições como sistemas relativamente estáticos [...] Entretanto,
tradições que seguem mudando de acordo com as exigências dos
novos tempos, de uma maneira orgânica, ou em um esforço
consciente de manter sua relevância para seus ouvintes são
provavelmente mais uma regra do que uma exceção 34 .
(SCHIPPERS, 2010, p.45)

Em relação à recontextualização da música não ocidental, Schippers observa,


por exemplo, que a música do gamelão javanês ou a percussão africana não são
apenas encontradas em cortes da Indonésia e vilarejos da África, mas também em
escolas e institutos de artes da Inglaterra e dos Estados Unidos (2010, p.13).
Frente ao crescente desenvolvimento tecnológico dos últimos cinquenta anos,
o músico performer passou a ter largo acesso aos fazeres musicais em nível global,
diferentemente da situação do músico do início do século XX, cujo acesso era mais
restrito. No passado, a migração entre os continentes era lenta e limitada e seus
habitantes eram pessoas extremamente ligadas aos traços culturais de origem, sendo a
música ligada em grande parte à sua tradição. Sendo assim, um músico da época de
Debussy ouviu muito menos música e entrou em contato com muito menos
possibilidades em relação ao fazer musical de outras culturas do que o músico de

atentando para a diversidade cultural existente na atualidade. (Schippers, 2010, p. 17-27).


34
“Many scholars have been predominantly interested in traditions as relatively static phenomena [...]
However, traditions that keep changing with the demands of the times, in an organic way, or in a
conscious effort to retain relevance to their audiences are probably rule rather than exception.”
46

hoje. Por isso mesmo, a consciência de uma realidade multicultural e os diálogos


transculturais tendem a ser cada vez mais prolíficos para a criação de territórios
híbridos em contextos musicais formativos e na performance musical como um todo.

2.2.O contato com outras culturas e seus reflexos na performance


musical

Para falar do músico em contato com outros procedimentos e fazeres musicais,


utilizaremos as experiências e relatos dos etnomusicólogos Huib Schippers e John
Blacking, referindo-se às suas experiências em aprendizados referentes à performance
em culturas não ocidentais.
Huib Schippers é diretor do departamento de música e do centro de pesquisas
em Etnomusicologia da Griffith University, em Queensland, Austrália. Baseamos as
informações contidas nesse trecho nos relatos de seu livro Facing the Music: Shaping
Music Education from a Global perspective (2010), no qual o autor descreve seu
contato com a música de outras culturas no âmbito da performance, para depois
discorrer sobre a transposição de alguns dos aspectos observados para a formação do
músico. Tendo crescido em um ambiente de formação tradicional europeia, Schippers
conta que começou suas experiências de aprendizado e contato com outras culturas
com as ideias pré-concebidas que tinha de sua formação anterior. Sendo assim,
Schippers iniciou um longo estudo para aprender a tocar cítara, assumindo que
passaria pela progressão do simples ao complexo, embasado por exercícios técnicos e
notação musical.

Eu supunha que uma progressão gradual do simples ao complexo,


embasada por exercícios técnicos, notação musical e aulas
individuais regulares, era a forma de se aprender música ao redor
do mundo. [...] Trabalhar com músicos altamente qualificados de
diversas culturas com histórias muito diferentes desafiou
profundamente minhas noções pré-concebidas e me levou a uma
jornada conceitual estimulante, confusa, educativa e inspiradora
sobre a natureza do aprendizado e do ensino musical. 35
(SCHIPPERS, 2010, p.4)

35
“I assumed that gradual progression from simple to complex, supported by technical exercises,
notated music, and regular individual lessons, was the way people learned music across the world. [...]
Working with highly proficient musicians with very different stories challenged those preconceptions
profoundly and took me on a conceptual journey that stimulated, confused, educated, and inspired new
insights into the nature of learning and teaching music.”
47

Como exemplo da mudança conceitual sobre o aprendizado musical a partir do


contato com formatos de aprendizado de outras músicas, Schippers discorre sobre seu
estudo de quase vinte anos com o citarista Jamaluddin Bhartiya, observando que sua
formação anterior não o preparou de forma alguma para esta experiência. Schippers
conta que, a partir de um processo de desestabilização e desestruturação em relação às
suas noções de aprendizado musical, deparou-se com um universo totalmente distinto
do seu. Nesse processo, a própria casa de seu guru já representava um portal de
passagem para outra cultura: ali não era permitido usar sapatos, havia fotos de
ancestrais por toda a casa, sentia-se o cheiro de comida indiana e escutava-se sempre
o som da música clássica indiana. O autor comenta que seus primeiros cinco anos de
estudo foram marcados por uma imersão nesse ambiente e uma certa frustração, pois
seu guru apenas mostrava trechos de músicas clássicas indianas sem explicar sua
estrutura. Após doze anos de estudos, em um processo nem sempre fácil ou prazeroso,
Schippers diz que finalmente se viu tocando sem se preocupar tanto com a afinação
do instrumento (observando que a afinação da cítara é difícil e complexa), mas sim
com a sensação de estar projetando notas no espaço. Da mesma forma com o aspecto
rítmico, o autor relata que parou de se preocupar com cada acentuação do ciclo
rítmico da tala, mas sentiu um grande prazer ao explorar os espaços de uma unidade
rítmica como um todo. Desta experiência, Schippers percebeu que aprender música de
outras culturas nem sempre significava caminhar logicamente passo a passo, sendo
que esse processo desestruturou seu conceito de como a música funciona.
A partir dessa experiência, a princípio marcada pela frustração em um
processo de desestabilização e desconstrução, seguido mais tarde pela descoberta de
outros formatos de aprendizado musical – incluindo outras experiências de caráter
multicultural vivenciadas pelo autor – Schippers percebeu que vários aspectos
conceituais da música mudavam de cultura para cultura e não podiam ser transpostos
de forma única para diferentes contextos musicais.
Discorrendo sobre seu contato com colegas que tiveram experiências
similares, o autor menciona a experiência do suíço Andreas Gutzwiller, um dos
primeiros mestres em sakuhachi36. Gutzwiller relata que, ao assistir uma aula de
sakuhachi para crianças no Japão, o professor colocava uma partitura na lousa baixa e
todos sentavam-se no chão. Em seguida o professor começava a tocar e as crianças

36
Espécie de flauta utilizada na música tradicional do Japão.
48

tentavam acompanhá-lo como podiam. Quando a peça terminava, o professor seguia


repetindo este procedimento diversas vezes.
Ainda sobre as experiências de Schippers, o autor relata a visita que fez ao
California Institute of the A rts37 e sua conversa com o professor ganense Alfred
Ladzekpo. O professor conta que tinha acabado de chegar da África e que começou a
ensinar os ritmos africanos de Gana para os alunos, mostrando alguns padrões
rítmicos e como eles se relacionavam. Ele achava que tudo estava indo bem até um
aluno perguntar “aonde era o primeiro tempo no ritmo que ele estava ensinando”.
Imediatamente ele foi perguntar ao seu irmão Kobla Ladzekpo, que já estava
na escola há mais tempo que ele, sobre qual aspecto os alunos estavam se referindo,
porque na África não se entende o ritmo começando de algum ponto, mas sim
como um todo. Ao final, os irmãos Ladzekpo decidiram estabelecer que o primeiro
tempo estava em um determinado toque do gankogui 38, e então os alunos ficaram
satisfeitos. Refletindo sobre o relato de Schippers, podemos elencar alguns pontos
importantes para o desenrolar de nossa pesquisa:

• A noção de aprendizado de um instrumento pensada não só como uma


sequência lógica partindo do “menos complexo” para o “mais complexo”, mas
sim construída pela comparação e pela vivência com outras abordagens.
Quando o músico de formação tradicional europeia se depara com processos
que enfocam outros aspectos, tal confronto gera uma desestruturação e
instabilidade iniciais que podem contribuir para abordar o som em sua
essência.
• A ideia da performance envolvida em um todo, representada pelo som sem sua
referência teórica, pelo ritmo sem divisão rígida de compassos, e pela
performance sentida como uma grande unidade sonora39.
• As diversas possibilidades de aprendizado e a flexibilidade dos conceitos
musicais em contextos multiculturais.

37
O California Institute of the Arts, mais conhecida por Calarts, possui um extenso programa em
música indiana, percussão africana e gamelão javanês. O Instituto, que oferece cursos de graduação e
pós-graduação, é também um exemplo de ambiente multicultural, oferecendo estudos em música
contemporânea, jazz e world music. Voltaremos a mencionar esta instituição em nosso próximo
capítulo.
38
Espécie de agogô utilizado na música africana das regiões de Gana, Togo e Benin.
39
Esta ideia da unidade sonora nos remete às observações de nossa introdução (p.4), quando
mencionamos as ideias sobre a música, ela mesma (BRITO, 2004) e do fato musical (MOLINO, s.d).
49

Nestes itens, é importante definir as ideias de formação holística e atomística40


que caracterizam a música não ocidental em contraponto com a ocidental. Na
formação musical de caráter mais holístico, encontrada em grande parte da cultura
não ocidental, a música é ensinada como um todo. Nesse processo, exemplificado
pela aula de sakuhachi citada por Schippers, o professor não toca mais lentamente ou
explica os detalhes técnicos de sua execução, os alunos tem que entender um processo
a partir de seu todo. Outra característica do aprendizado de caráter holístico é o
contato quase que diário com a música que se vai aprender, bastante comum nas
culturas não ocidentais, mas também presente em outros contextos. Neste tipo de
aprendizado, podemos citar as canções que as crianças do ocidente aprendem ouvindo
rádio, TV e outras mídias, ou mesmo canções bastante complexas que crianças do
oriente aprendem pelo fato de conviverem com esta música em seu cotidiano.
Também podemos pensar no aprendizado de práticas como a improvisação musical
mais associado à uma experiência de caráter predominantemente holístico. Na
formação musical de caráter atomístico – que pode ser exemplificado pela escola
tradicional europeia – a música é dividida em tópicos como harmonia, análise,
apreciação e performance para ser melhor compreendida em um contexto gradativo.

Uma abordagem atomística / analítica corresponde mais de perto a


uma didática com ênfase unidirecional ensinando uma "verdade
única", enquanto uma abordagem holística deixa mais espaço para
os alunos construírem seu próprio conhecimento musical, levando
a uma abordagem mais individual, mesmo se o campo de
conhecimento (um cânone ou tradição) está bem definido. 41
(SCHIPPERS, 2010, p.85)

Comparando estas duas abordagens, podemos dizer que são raros os formatos
de aprendizado musical puramente holísticos ou atomísticos, e mais comuns os
formatos que possuem diferentes gradações destas abordagens. Citando o exemplo da
notação musical, esta costuma ser mais utilizada nos formatos de aprendizado mais
atomísticos, como na música tradicional europeia. Em culturas como a africana, com
aprendizado musical de caráter mais holístico, o aprendizado é baseado na tradição
oral. Entretanto, no Japão, aonde a música é frequentemente ensinada sob um caráter

40
Termos cunhados na educação desde o século passado, principalmente a partir das ideias do alemão
J. Pestalozzi, que introduziu uma abordagem de educação baseada em princípios atomísticos.
41
“An atomistic/analytical approach corresponds more closely to an emphasis on mono-directional
didactic teaching of a “single truth”, while a holistic approach leaves more room for learners to
construct their own musical knowing, leading to a more individual approach, even if the body of
knowledge (the canon or tradition) is quite close defined.”
50

mais holístico, o aprendizado também é baseado na utilização da notação musical.


Ainda sob um outro aspecto dos aprendizados de caráter holístico e
atomístico, é mais fácil aprender a música com a qual se está familiarizado (como é o
caso dos exemplos de aprendizado holístico citados anteriormente), portanto, ensinar
outras músicas, ou mesmo ter contato com outros fazeres musicais, pode consistir em
um redimensionamento destas formas de aprendizado. Sobre este ponto, é interessante
observar que o enfoque holístico de aprendizado da cítara citado por Schippers
inicialmente trouxe uma certa instabilidade e desestruturação, devido à sua formação
anterior baseada em um processo atomístico, aparentemente mais seguro e previsível.
A imprevisibilidade do processo holístico é o que mais nos interessa aqui, já
que nossa pesquisa vai se afunilar na prática da improvisação. Entretanto, acreditamos
que um contexto híbrido seja enriquecedor para o aprendizado musical adulto de
forma geral, sendo que o que queremos é sugerir um possível equilíbrio entre estas
duas formas de abordagem musical. Considerando que falamos sob a perspectiva de
um contexto formativo baseado na tradição musical europeia, em grande parte
atomística, queremos então trazer mais procedimentos de caráter holístico para
fomentar este equilíbrio, pensando que a essência de um contexto formativo atual em
música pode estar na reflexão a respeito do equilíbrio entre estes dois conceitos.
Seguindo nossos estudos sobre o contato com outras culturas, passamos para o
relato do musicólogo inglês John Blacking (1928-1990) em seu livro How musical is
man? (1974). Esta publicação teve uma grande repercussão no trabalho de
musicólogos do mundo inteiro e até hoje é uma importante referência no campo da
Etnomusicologia. Neste livro, Blacking relata sua experiência a partir do contato com
a música da tribo de Venda, no Sul da África, e traz reflexões importantes para se
pensar a música e a performance em uma realidade multicultural.
Assim como Schippers, Blacking relata inicialmente a desconstrução de
conceitos provindos de sua formação tradicional europeia ao entrar em contato com a
música da tribo de Venda. Sua primeira observação em relação à performance é que,
em culturas que cultuam a transmissão oral como forma de passar o conhecimento
musical adiante, há uma grande valorização da sensibilidade e memória auditivas, por
serem estas as únicas formas de propagar esse conhecimento. Blacking faz a ressalva
de que, apesar da sensibilidade e a memória auditivas estarem presentes em todas as
manifestações musicais, o fato destas serem as únicas formas de reter e repassar os
conhecimentos musicais nas culturas de tradição oral, faz com que estas qualidades
51

sejam indispensáveis e extremamente valorizadas.

Quando eu digo que a música não pode existir sem a percepção de


uma organização dentro do universo sonoro, não estou
argumentando que algum tipo de teoria da música tenha que
preceder a composição musical e a performance.[...] Estou
sugerindo que a percepção de uma organização sonora, seja esta
inata ou adquirida, ou ambas, deve estar na mente antes de ser
considerada como música42. (BLACKING, 1974, p.11)

Observamos aqui que o autor sugere a valorização de todas as formas de


percepção sonora, seja esta adquirida ou inata. Sendo assim, a tradição construída pela
escola europeia, ou mesmo a tradição formada a partir dos registros teóricos da
música não ocidental43 contribuem – conjuntamente com os estados de percepção
sonora anteriores ao conhecimento – para observar e perceber a música sob diversos
pontos de vista. Pensando nos conceitos de aprendizado holístico e atomístico
mencionados anteriormente, podemos pensar na percepção ligada às tradições orais
mais relacionada ao aspecto holístico e a adquirida relacionada ao aspecto atomístico,
sendo que a citação de Blacking pode nos levar a mais reflexões sobre o equilíbrio
holístico/atomístico também em relação ao aspecto da percepção auditiva. Sobre as
características gerais da música da tribo de Venda, Blacking observa que o ritmo e o
movimento corporal são mais importantes do que a melodia:

A música de Venda é baseada não na melodia, mas em um


envolvimento rítmico de todo o corpo na qual o cantar é apenas
uma extensão. Portanto, quando sentimos que há alguma pausa
entre duas batidas rítmicas, devemos perceber que, para quem está
tocando, não é uma pausa: cada batida rítmica faz parte de um
todo envolvendo o movimento corporal no qual as mãos ou
baquetas tocam a pele de um tambor44. (BLACKING, 1974, p.27)

42
“When I say that music cannot exist without the perception of order in the realm of sound, I am not
arguing that some kind of theory of music must precede musical composition and performance. [...] I
am suggesting that a perception of sonic order, whether it be innate or learned, or both, must be in the
mind before it emerges as music.”
43
Nesse trecho estamos nos referindo à tratados e referências teóricas utilizadas na música não
ocidental, como os tratados que mencionamos da música árabe e os estudos da música indiana. Estes
estudos envolvem procedimentos musicais e parâmetros melódicos e rítmicos, como referências de
solfejo como o Solkatu e o Bol indianos, descritos mais adiante neste capítulo.
44
“Venda music is founded not on melody, but on a rhythmical stirring of the whole body of which
singing is but an extension. Therefore, when we seem to hear a rest between two drumbeats, we must
realize that for the player it is not a rest: each drumbeat is the part of a total body movement in which
the hand or a stick strikes the drum skin.”
52

Sobre o aspecto melódico, Blacking cita sua experiência ao aprender uma


canção infantil. O autor relata que, enquanto tentava reproduzir com exatidão as
alturas melódicas que lhe eram ensinadas, o nativo de Venda que lhe ensinava a
canção não parecia satisfeito. Ao final, Blacking percebeu que não era a afinação
exata que importava, mas sim a relação intervalar da canção como um todo. Neste
caso, as pequenas “desafinações” não representavam um problema, mas sim uma
maneira de sentir a música de uma forma mais internalizada e pessoal. Desse modo,
em muitos rituais da tribo de Venda que utilizam música, a altura melódica não é fixa,
ela pode variar de acordo com o envolvimento e a intensidade emocional do
performer. Ainda sobre o canto, é comum que a letra de uma canção seja aos poucos
substituída por fonemas como ee, ahee, huwelele, wee, para dar ao músico mais
liberdade interpretativa ao longo de sua performance.
Por último, Blacking observa que a performance na tribo de Venda nunca é
um evento à parte, como uma apresentação musical nos moldes europeus. Em Venda
a performance está ligada à rituais, contextos sociais e rotineiros da vida de seus
habitantes. Sendo assim, a atividade musical é para todos, e não apenas para um grupo
de músicos com aptidões especiais, como acontece no ocidente.
Sobre o relato de Blacking, destacamos os seguintes pontos:

• A valorização da sensibilidade e memória auditivas para a compreensão e


transmissão de conceitos musicais.
• A ideia da música a partir do ritmo e da corporalidade.
• A performance em um contexto de apresentação musical em contraponto com
a performance ligada ao cotidiano.

Sobre o primeiro tópico, além de nossas observações anteriores, ressaltamos


mais uma vez a importância da sensibilidade e a memória auditivas em todas as
práticas musicais. Pensando sob esse aspecto, é comum encontrar músicos que se
utilizam da notação musical bastante dependentes de uma partitura e com dificuldade
para decorar peças, por exemplo. Em uma tradição oral, não há outra maneira de
registro senão saber reproduzir o que se ouve a partir da escuta, mas podemos ainda
mencionar que músicos com boa memória nem sempre possuem boa leitura e destreza
com a notação musical. Defendemos então que tanto a notação musical quanto a
53

transmissão oral trazem contribuições importantes, mas que a sensibilidade e a


memória auditivas são sem dúvida aspectos relevantes na performance em ambos os
casos. Mais uma vez reforçamos então o aspecto holístico/atomístico no sentido de
considerar a importância destes conceitos de aprendizado e transmissão musical em
seu âmbito geral.
A questão da música a partir do ritmo e da corporalidade, com a performance
baseada na extensão destes impulsos é de grande interesse para nossa pesquisa. Sobre
este ponto, podemos dizer que a performance ligada ao aspecto corporal, com a
interação estreita entre a dança e a música está bastante presente nas culturas não
ocidentais45. Pensando nessa interação, consideramos que o músico performer com
treinamento formal baseado na escola europeia não tem tanto acesso ao aspecto da
corporalidade durante sua formação. A partir desta consideração, ao final de nosso
trabalho vamos elaborar propostas de improvisação em que este aspecto seja
trabalhado.
Finalizando nossas observações, relembramos as considerações do psicólogo
John Sloboda, citado em nossa introdução sobre as exigências técnicas do performer
formado nos moldes da escola europeia e sobre a grande tensão que circunda esse
performer por conta dessas exigências. No fazer musical presenciado por Blacking, a
performance é maleável, podendo “alterar-se” pela intensidade de sua execução. A
música é parte de um cotidiano e o performer tem mais liberdade para se expressar
musicalmente, sem nenhum tipo de compromisso que não seja o de estar de “corpo
inteiro” durante uma performance. Isto nos faz pensar em uma certa “rigidez”
impressa na performance ligada à tradição europeia comparada à flexibilidade da
performance em outros contextos. A flexibilidade interpretativa para nós é um aspecto
que almejamos, tanto quanto a proposta do músico de “corpo inteiro”, em um grande
estado de imersão durante o ato da performance musical.

45
Observando que podemos hoje encontrar a performance musical ligada à corporalidade e à dança em
regiões do Brasil, América Latina e Estados Unidos, por conta das influência trazidas pela cultura
africana, pelas culturas indígenas e pelas tradições trazidas pelos imigrantes. Ainda assim, esse tipo de
abordagem não se encontra com frequência em contextos de formação musical adulta no ocidente,
considerando grande parte de seus contextos formativos em Música estão pautados na tradição
europeia, que não prevê tal abordagem.
54

Vejamos abaixo uma tabela comparativa para resumir ideias que consideramos
importantes sobre a performance e seu aprendizado na música ocidental e não
ocidental, a partir dos relatos de Schippers e Blacking:

Aspectos gerais mais encontrados na Aspectos gerais mais encontrados na


música ocidental música não ocidental

Aprendizado musical gradativo, do mais Aprendizado musical holístico, não previsível


simples ao mais complexo e não gradativo.
Estudo da tradição através de materiais Tradição em grande parte oral (com materiais
teórico-analíticos e utilização da notação teóricos referenciais), reproduzida a partir da
musical. memória e sensibilidade auditivas.
Em seu formato mais tradicional de Em muitos formatos tradicionais o ritmo e a
performance, o músico não costuma utilizar a corporalidade são primordiais à performance
movimentação corporal. musical.
O músico performer é bastante exigido A imersão na performance em alguns gêneros
quanto ao aspecto técnico, gerando uma – como no raga indiano – pode gerar gestos
grande tensão e responsabilidade deste virtuosísticos, sendo o músico também
quanto ao seu desempenho. bastante valorizado por este aspecto.

Fig.2.1- Tabela comparativa sobre aspectos gerais da música ocidental e não ocidental

Obviamente não queremos tecer generalizações definitivas a respeito dos


formatos da música ocidental e não ocidental, mas queremos sim observar a
performance e seu aprendizado sob aspectos que podem parecer, a princípio,
antagônicos. Em nosso trabalho, o que nos interessa é justamente a combinação destes
aspectos de forma que se possa refletir sobre o equilíbrio entre os mesmos em
contextos formativos. Com tal finalidade, ouvimos relatos que atentam para outros
fazeres e conceitos musicais, pensando em reverberar estes aspectos da música não
ocidental em contextos de formação adulta existentes na música ocidental.
Considerando então as diversas contribuições da música não ocidental na
performance e pensando em seus possíveis desdobramentos, finalizamos este trecho
com a citação de Schippers:
55

Os desafios estabelecidos pela música viajando através do tempo,


por diferentes lugares e contextos, vem caminhando em direção ao
que parece ser seu verdadeiro destino: estudos fascinantes sob a
dinâmica da vida, da cultura e da educação46. (SCHIPPERS, 2010,
p.147)

2.3.A música não ocidental e seus parâmetros de improvisação

Seguindo nossos estudos sobre a performance, vamos afunilar nossa pesquisa


na prática da improvisação. Pensando em contribuir para a abordagem dessa prática,
vamos destacar alguns materiais e procedimentos encontrados na música não
ocidental e discutir sobre seus possíveis desdobramentos. Veremos que é possível
encontrar muitos elementos na música não ocidental – como configurações escalares
fora do sistema tonal, procedimentos rítmicos como o uso da polirritmia e de
compassos assimétricos, e a integração corpo/música – que podem ser expandidos
para a prática da improvisação em contextos diversos. Além destes elementos, há
aspectos conceituais sobre a improvisação encontrada na música não ocidental que
podem trazer uma contribuição relevante para refletir sobre esta prática em um
contexto global.
Antes de amostrarmos algumas formas de improvisação encontradas na
música não ocidental, queremos ainda ressaltar a relevância desta prática para a
formação do músico. Embora em nosso trabalho tenhamos assumido sua importância
como ponto de partida para seu estudo, lembramos que esta prática tem pouco espaço
nos currículos de formação musical adulta. Corroborando com nossa última
observação, o etnomusicólogo Bruno Nettl, um dos estudiosos sobre o assunto,
considera que, na história da musicologia, a improvisação sempre teve um papel
menor. Citando os crescentes avanços dos estudos da etnomusicologia – aliados aos
avanços da tecnologia a partir dos anos 50 em relação às possibilidades de registro
sonoro e videográfico – o autor observa que os estudos relativos à improvisação ainda
representam uma parte menos significativa das pesquisas que abordam processos
musicais em geral47 (NETTL In: RUSSEL; NETTL, 2009, p.1-4).

46
“The challenges posed by music traveling through time, place, and different contexts are on their
way to being addressed for what they are: fascinating studies in the dynamics of life of music, culture,
and education.”
47
Tendo em mente que, apesar da observação de Nettl, o estudo da improvisação vem ganhando
espaço em trabalhos como os de Nettl, Campbell, Bailey, Berliner, Berkowitz e Costa, embora ainda
56

Com relação à definição do conceito de improvisação, embora Nettl tenha


citado definições como “a criação musical feita no decorrer de uma performance” e
“uma composição ouvida no exato momento de sua concepção”, o guitarrista inglês
Derek Bailey discorre justamente sobre a dificuldade de se estabelecer uma única
definição para essa prática:

A improvisação possui o aspecto curioso de ser ao mesmo tempo a


mais praticada de todas as atividades musicais e a menos
reconhecida e compreendida [...] A improvisação está em
constante mudança e reajuste, nunca é fixa, muito evasiva para
qualquer análise ou descrição precisa [...] Qualquer tentativa de
descrever a improvisação deve ser, sob um certo aspecto, uma
representação deturpada.48 (BAILEY, 1993, p. ix)

Embora nosso objetivo não seja encontrar uma definição exata para a prática
da improvisação, queremos reunir alguns pontos que reforcem sua importância e que
contribuam para repensar sua abordagem. Pensando nesse aspecto, observamos que,
em grande parte da performance na música não ocidental, a improvisação é
considerada como um ápice na performance, sendo que a habilidade de improvisar é
tida como o estágio máximo que um músico pode atingir.
Em estudo sobre a performance musical a partir de tratados musicais
elaborados por antigos49 teóricos persas e árabes, Stephen Blum cita a passagem do
teórico árabe Al-Farãbi em seu tratado Kitãb al-musiqi al-kabir sobre os três estágios
pelos quais o músico passa até atingir sua maturidade (adaptação nossa):

• Estágio 1: Em seu primeiro estágio, os músicos são dependentes dos hábitos


que adquiriram tanto em relação a um instrumento quanto às circunstâncias
que envolveram esse aprendizado. Nesse estágio o músico tenta imitar artistas
reconhecidos e ainda não pode criar nem interpretar nada novo.
• Estágio 2: Nesse estágio o músico ainda é dependente de seu ambiente de
formação, mas já é capaz de elaborar pequenas melodias. Como exemplo, o

não haja reflexos significativos destes estudos na formação do músico adulto.


48
“Improvisation enjoys the curious distinction of being both the most widely practiced of all musical
activities and the least acknowledged and understood [...] Improvisation is always changing and
adjusting, never fixed, too elusive for analysis and precise description [...] any attempt to describe
improvisation must be, in some respects, a misrepresentation.”
49
Referimo-nos aqui a tratados escritos nos anos de 1.400 a 1.500, embora o estudo ao qual nos
referimos cite tratados anteriores a este período.
57

autor cita uma prática da Pérsia50 conhecida como javãb-e avãz, na qual o
instrumentista improvisa uma resposta após cada frase do cantor.
• Estágio 3: Nesse último estágio o músico domina a habilidade da imaginação,
o que lhe permite total autonomia criativa e fortalece suas interações sociais.
Neste terceiro nível o músico é capaz de desenvolver coerentemente tudo que
sua imaginação possa conceber.
(FARÃBI apud BLUM In: RUSSEL, NETTL, 1998, p.33)

Corroborando com o trecho acima, concordamos que a improvisação é uma


atividade que exige uma grande habilidade do músico e, ao mesmo tempo, tal
habilidade pode conectar este músico a um processo que requer um grande estado de
imersão. Nesse processo, acreditamos que a improvisação plena deve incluir o saber,
o pensar e o deixar-se levar pelo desejo51, guiado por uma grande potência criativa.

2.4.Conceitos e procedimentos de improvisação

Tomando como exemplo a música feita no Norte da Índia52 (Hindustani),


observamos que sua natureza é maleável e que a improvisação para os músicos
indianos é um fato, um elemento primordial na performance musical. A estrutura
principal na qual a música Hindustani se desenvolve é chamada de raga e o ciclo
rítmico que se estabelece dentro do raga é conhecido por tala. As configurações
melódicas da música Hindustani variam bastante, sendo que há configurações
escalares com até 24 notas definidas por um intervalo mínimo chamando de sruti, e
configurações de 7 notas baseadas em um intervalo chamado svala. Todos esses
elementos são flexíveis e variam bastante de acordo com a performance.
É interessante aqui observar que, em estudos da música ocidental, o raga é
muitas vezes tomado por uma configuração escalar, já que cada raga é baseado em

50
A antiga Pérsia é atualmente o Irã.
51
Rogério Luiz Moraes Costa, em sua tese O Músico enquanto meio e os territórios da livre
improvisação, cita o desejo como grande propulsor da improvisação livre. Para Costa o “engajamento
efetivo e afetivo” possibilita a ação do performer, que deve estar imerso no desejo (COSTA, 2003,
p.83). Em nosso trabalho estendemos este conceito para a prática da improvisação como um todo.
52
A música do sul da Índia (música Carnática) e a música do norte (música Hindustani) tem
características bem distintas. A música do sul é mais estática, ligada a uma tradição milenar e mais
utilizada em contextos religiosos. A música do norte, embora também ligada à tradição, vem de uma
região de intensa invasão e migração, incluindo a colonização alemã e inglesa. Entre os reflexos destas
diferenças, observa-se que a prática da improvisação musical, embora exista nas duas regiões, é mais
encontrada na música Hindustani.
58

uma determinada organização melódica. Mas, como explica o músico Nazir Ali
Jairazbhoy, nascido na Índia e atual professor do departamento de Etnomusicologia
da UCLA, em Los Angeles, o raga vai além do conceito de escala e de organização
melódica, em noções que não encontram equivalência na música ocidental:

O termo raga não tem nenhuma equivalência na teoria da música


ocidental. O conceito de raga é baseado na ideia de que alguns
padrões que caracterizam as notas evocam um estado emocional
elevado. Estes padrões de notas são compostos por uma fusão de
elementos escalares e melódicos, bem como suas figuras
melódicas características, nas quais certos intervalos são
enfatizados e algumas notas em particular tem um maior foco de
atenção.53 (JAIRAZBHOY, 2011, p.28)

Desse modo, cada raga busca emanar um determinado estado emocional


através da combinação e do tratamento do material melódico, repassando este estado
emocional para o ouvinte. A ideia em si pode nos conduzir a diferentes formas de
pensar nas configurações escalares e na organização do material melódico nos
processos criativos. Certamente não queremos aqui idealizar estados emocionais
específicos para a prática da improvisação, mas sim pensar nos desdobramentos desta
ideia na música ocidental. Neste caso, estamos interessados na imersão emocional na
prática da improvisação, pensando em suas possíveis combinações com materiais de
improvisação da música ocidental. Também nos parece interessante considerar o
ouvinte como participante do processo de improvisação, seja ativamente, ou como
receptor de um estado emocional profundo, compartilhado com o performer.
Sobre a improvisação inserida na performance do raga, em seus estudos sobre
a música Hindustani, o guitarrista inglês Derek Bailey cita a aula demonstrativa que
teve na Inglaterra com o citarista Viram Jasani, na qual o citarista, acompanhado pelo
tablista Esmail Sheikh, exemplificam a execução de um raga. Segundo Jasani, o raga
começa lentamente, já com ênfase na improvisação, como descrito na citação:

53
“The term rãg has no counterpart in Western musical theory. The concept of rãg is based on the idea
that certain characteristic patterns of notes evoque a heightened state of emotion. These patterns of
notes are a fusion of scalar and melodic elements, as well as, its characteristic melodic figures in which
certain intervals are emphasized and attention is focused in particular notes.”
59

Quando começamos a performance do raga, iniciamos o processo


bem devagar. Tocamos então o que chamamos de alapa. O
propósito da alapa é explorar as possibilidades melódicas dentro
do raga, o que não tem nada a ver com ritmo ou estilo. A primeira
coisa a fazer é estabelecer uma nota como ponto de partida. [...]
Isto pode ser feito com um drone (nota pedal) ou apenas tocando
uma frase a partir de uma nota mais grave como ponto de partida.
[...] Você então se concentra nessa única nota. Dessa forma você
começa a elaborar uma maneira para percorrer a escala em
movimento ascendente. Todo esse processo é então repetido com
base em um ritmo criado pela cítara [...] Então você escolhe cada
nota dessa escala conforme você vai caminhando em movimento
ascendente e suas frases são criadas e improvisadas a partir de
cada uma dessas notas, e isso é o que faz a performance demorar
bastante tempo, talvez, para se conseguir um bom resultado na
performance54. (JASANI apud BAILEY, 1993, p.6)

Em seguida, Jasani descreve a entrada da tabla na performance, mostrando


como o ciclo da tala se estabelece através de um tema fixo e, por fim, como o raga
chega à seu ápice na improvisação:

Quando a percussão entra, e esta é a parte na qual se improvisa um


pouco menos, é onde temos uma parte composta e fixa – o
instrumentista pode tocar algo de sua autoria ou pode tocar uma
melodia tradicional provinda do seu estilo de música; como
alguma melodia pela qual o seu professor é famoso, por exemplo.
E esta melodia deve ter uma certa duração de tempo, na qual se
estabelece um ponto culminante que determina o tempo do ciclo
rítmico. [...] Enquanto toco essa melodia repetidas vezes, continuo
mantendo o ciclo rítmico, o que deixa o instrumentista de tabla
livre para improvisar, sendo que ao final de sua improvisação, nós
nos encontraremos no ponto culminante da melodia ao fim do
ciclo. [...] Então o tablista mantém este mesmo ciclo rítmico e eu
fico livre para improvisar na cítara. Começamos a alternar a
improvisação, tendendo a tocar frases cada vez mais rápidas (no
sentido virtuosístico), o que pode parecer uma contradição para a
atmosfera lenta do raga. Mas isso é música indiana. Cheia de
contradições, eu temo55. (JASANI apud BAILEY, 1993, p.6)

54
“When we start a performance of the raga we start very slowly. We play what is called alapa. And
the purpose of alapa is to explore the melodic possibilities within that raga, which has nothing to do
with rhythm or style. And the first thing we do is to establish the keynote. [...] This can be done with a
drone or just by playing a phrase up the keynote. And you take out one note and concentrate on that
one note. And in this way you work your way up to the scale. The whole thing is then repeated on the
basis of a rhythm created, in this case on the sitar [...] And you pick out each note of this scale as you
go up to the scale and your phrases are created and improvised around each particular note, and this is
why it takes such a long time, perhaps, to play a good performance.”
55
“Where the drums come in, and this is where improvisation perhaps begin to get a little less, is where
one has a fixed composition-one can either make up a composition or you can play a traditional tune
from your style of music; one which your teacher is famous for, perhaps. And this tune may have a
certain length of time, and there is an emphasized point in that tune which corresponds to the
emphasized point in the time cycle. [...] While I repeat this tune over and over I’m maintaining this
time cycle, which leaves the tabla player free to improvise and he will come back and end his
60

A partir do relato de Jasani, ressaltamos os seguintes pontos:

• A exploração inicial do som através da improvisação antes de se estabelecer


um ciclo de improvisação a partir de um tema.
• A maneira de relacionar o aspecto sonoro ao aspecto temporal.
• Os reflexos da prática mencionada para se pensar a improvisação e a
performance em um contexto global.

Observando o processo inicial do raga, vemos que sua primeira parte é de


pura exploração do som para estabelecer pouco a pouco uma configuração escalar
como material sonoro a ser trabalhado ao longo da performance. É interessante
portanto ressaltar o processo de improvisação previamente ligado ao som como
material bruto, antes que se estabeleça uma configuração escalar, um tema melódico e
um ciclo rítmico56. Dentro deste contexto de exploração do som destacamos também
como Jasani se refere ao aspecto temporal, dizendo que o performer tende a levar um
certo tempo para explorar todos os sons possíveis e que sua busca por uma boa
performance pode demorar, não tem duração prevista, nem um tempo pré-
determinado. O tempo aqui é aquele em que o performer se dá por satisfeito, quando
esgotou suas possibilidades de exploração dentro da improvisação. Podemos então
observar que, embora seja comum encontrar a improvisação baseada em um tema
com uma duração fixa (como no blues e no jazz, por exemplo), este aspecto de
exploração inicial antes que se estabeleça uma estrutura é mais encontrado no raga
indiano.
Em relação à “contradição” citada por Jasani, podemos relacionar o ápice da
improvisação aqui mencionada com o ápice da performance da tribo de Venda, citada
anteriormente por Blacking. Podemos notar que os movimentos escalares ascendentes
(em Venda representados pela reprodução melódica em alturas cada vez mais agudas)
e a velocidade virtuosística no raga, representam momentos de ápice. Embora estes
sejam considerados contraditórios por Jasani, em função do aspecto de exploração

improvisations at the same point of emphasis...Then he maintains the cycle and I am free to improvise,
and we alternate, tending to play much faster phrases, which might seem a contradiction, to its slower
atmosphere. But that’s Indian music. Full of contradiction, I am afraid.”
56
Tal ideia pode nos remeter ao significado do termo molecular para Deleuze (1997), também citado
por Costa (2003), ou ainda, expressa na ideia da escuta reduzida proposta por Schaeffer (1994): o som
puro, ainda desvinculado de algum contexto.
61

lenta e gradual do raga , o percurso que se inicia lentamente e sempre chega a um tipo
de ápice está presente nos dois exemplos que mencionamos. Este tipo de
procedimento pode ser encontrado em diversos contextos de performance e
improvisação da música não ocidental. Com essa última observação queremos
ressaltar a qualidade de envolvimento gradual na performance e na improvisação,
com a ideia de tempo maleável. Em nossos exemplos o performer tem seu próprio
tempo para explorar o som e chegar ao seu ápice, em um processo que tanto pode
envolver uma performance ou improvisação em um grande grupo – como acontece
em Venda – ou envolver formações instrumentais menores.
Podemos ainda observar que a performance do raga acontece de forma
semelhante à performance na música ocidental, ou seja, dentro de um local específico
para uma apresentação, sendo que o performer/improvisador é reconhecido como um
artista de qualidades únicas. Atentando para essa proximidade com o conceito
ocidental de performance, a ideia do tempo flexível e não pré-determinado modifica
não apenas a atuação do performer/improvisador, mas também modifica o ouvinte
que participa desse evento. Assim, a relação com o tempo trazida pelo raga indiano
pode acrescentar elementos a um contexto atualmente conhecido por musicking57,
pensando a música de forma mais global e ampla como material de estudo.
Contribuindo um pouco mais para pensar nas relações entre o improvisador e
seu ouvinte, citamos o exemplo do tarab, um dos gêneros encontrados na música
tradicional árabe. A palavra tarab pode referir-se tanto ao gênero da música
tradicional árabe quanto a uma sensação geral relacionada ao êxtase, que é a
característica marcante desse tipo de manifestação musical. No tarab o ouvinte é
considerado como um participante ativo e primordial para alcançar esse êxtase58 junto
ao performer. Nos moldes da música tradicional europeia, é comum pensar o ouvinte
que vai a um concerto, por exemplo, relacionando a escuta ao seu aspecto cerebral, ou
seja, o ouvinte pode ter conhecimentos teóricos sobre o gênero musical que está
escutando. Isso estabelece a diferença entre o estágio inicial de apenas ouvir sem
conhecimentos prévios e o escutar relacionado aos conhecimentos sobre o que se
ouve. No gênero tarab não existe essa distinção, sendo que a palavra sama, que define

57
Segundo Christopher Small, musicking é um conceito para se entender e estudar a música em um
contexto amplo e significa “fazer parte de uma performance musical, seja tocando, ouvindo, ensaiando,
compondo ou dançando”. (1998)
58
Na música árabe, o êxtase atingido especificamente pelo performer é denominado de saltanah.
62

a escuta, envolve os estágios de ouvir e escutar ao mesmo tempo59.


Neste gênero o ouvinte participa ativamente de um processo criativo e pode
se expressar livremente durante uma performance. No ápice da participação do
ouvinte o público pode bater palmas, cantar e dançar durante uma performance, para
que esta termine em um estado de êxtase absoluto. A improvisação no tarab, tem
portanto um papel crucial nesse processo, sendo que, nesse caso, a improvisação é
associada ao ato de compor durante a performance.

Efetivamente, na forma completa do tarab, seu desempenho


depende de três fatores inter-relacionados: primeiro, um repertório
emocionalmente significativo de recursos de composição
partilhados pelos participantes no processo de tarab, em segundo
lugar, a habilidade do artista de tarab de possuir "alma" e ser
capaz de conduzir seu desempenho a um estado adequado de
êxtase, e terceiro, a disposição musical do ouvinte e sua
sensibilidade de comunicação através de intervenções afetivo-
musicais durante a performance.60 (RACY in: RUSSEL, NETTL,
1998, p.103)

Ressaltamos nesse trecho não só o conceito de participação do ouvinte na


performance de tarab, mas também os critérios que envolvem essa participação. Nesse
gênero o ouvinte precisa de conhecimentos prévios e sua intervenção não é feita
aleatoriamente, mas sim de uma forma emocionalmente comprometida com um
estado de êxtase almejado tanto pelo ouvinte quanto pelo performer. O ouvinte tem
então recursos para interagir de acordo com suas emoções, mas há regras para estas
intervenções, incluindo o respeito mútuo entre performer e ouvinte para chegarem
juntos ao êxtase.
Com estas observações não estamos sugerindo diretamente esse tipo de
manifestação de uma audiência durante uma performance, mas sim a participação de
um ouvinte comprometido com uma escuta atenta. Dessa forma, sugerimos que o
ouvinte possa ter mais acesso ao próprio conceito da improvisação (ou às várias

59
Nesse trecho é interessante citar a contraposição da ideia de escuta em sua totalidade – incutida na
palavra sama – com os estágios de escuta propostos por Pierre Schaeffer, em seu Traité des objets
musicaux (1966), descritos como: ouvir, escutar, entender e compreender. A comparação ressalta mais
uma vez o aspecto holístico da música não ocidental e o atomístico da música ocidental, embora chame
a atenção para a importância de ambos os aspectos para se pensar a escuta musical, a nosso ver/ouvir.
60
“In effect, the full shape of a tarab, performance depends on three interrelated factors: first, an
emotionally meaninful stock of compositional devices shared by participants in the tarab process;
second, the skill of the tarab artist who possesses “soul” and may be able to render his performance in
an appropriate ecstatic state; and third, the listener’s musical disposition and sensitivity communicated
through direct emotional-musical input.”
63

formas de se pensar sobre esta prática) assim como a performance que envolve a
prática da improvisação possa ter uma ambiência gerada pelas interações entre
performer e ouvinte. Consequentemente, tanto o performer quanto o ouvinte podem se
preparar para uma performance.
Como exemplos da recontextualização de tais interações, citamos os
formatos de conferência/recital, praticados em congressos de música e apresentações
que incluem uma sessão de diálogo entre performer e público após a performance.
Podemos citar também apresentações que envolvem a participação dos
ouvintes durante a performance no modo de se dispor no espaço, como apresentações
em que o ouvinte pode caminhar livremente pelo espaço durante a performance, ou
também interagir sonoramente, como no gênero tarab.
Vemos a seguir um pequeno resumo das principais características da
improvisação na música não ocidental, notando que algumas destas características
podem ser encontradas em gêneros da música ocidental nos quais a prática da
improvisação também é utilizada:

Aspectos mais frequentes da improvisação na música não ocidental

Improvisação considerada como estágio máximo da performance


Aspecto exploratório do som, à exemplo do raga indiano e do tarab árabe
Maleabilidade do tempo em função de se alcançar uma boa performance
Imersão e envolvimento do performer, sempre atingindo um clímax emocional durante a
improvisação e a performance.
Diferentes formas de envolvimento e participação do ouvinte na performance em geral

Fig.2.2- Tabela com aspectos gerais sobre a improvisação não ocidental

2.5.Materiais expressivos: aspectos melódicos e rítmicos

Para finalizar nossas observações sobre alguns formatos de improvisação


encontrados na música não ocidental, amostraremos aqui alguns materiais de
expressão que consideramos passíveis de recontextualização. Lembramos que nosso
estudo consiste em uma pequena amostragem diretamente relacionada à nossa
proposta, mas é importante ressaltar que existem mais manifestações ligadas à
64

improvisação musical nas culturas não ocidentais. Nesse sentido, não temos a
intenção de abarcar todas as manifestações musicais registradas pelos estudos da
Etnomusicologia, mas sim de elencar conceitos e materiais relevantes para nossa
proposta. Lembramos também que os materiais amostrados adiante estão isolados de
seu contexto social e cultural, por ser de nosso interesse observá-los em sua essência
musical. Os materiais da música não ocidental que vamos amostrar aqui, costumam
ser encontrados nos seguintes formatos de improvisação61:

• Improvisação interpretativa 62: nesse tipo de improvisação, o performer


cria pequenas variações a partir de um tema pré-existente. Como exemplo
deste tipo de improvisação podemos citar os formatos de improvisação da
música javanesa, na qual os intérpretes não criam temas novos, mas utilizam
esse formato de improvisação para “personalizar” sua interpretação de um
tema. Podemos citar também o exemplo mencionado por Farãbi ao citar os
estágios da improvisação, na qual o instrumentista responde nos intervalos do
canto com uma pequena variação do tema cantado e a improvisação a partir de
módulos rítmicos e melódicos da música árabe. Tais módulos são chamados
de maqams, e o performer improvisa explorando as transições e as possíveis
combinações entre estes módulos, sendo que este formato modular foi
denominado por Bruno Nettl de building blocks (1998, p.15). Podemos notar
portanto que a improvisação interpretativa contém gradações importantes em
seus diversos formatos, que representam diferentes estágios criativos do
performer.
• Improvisação criativa: nesse caso, o performer cria algo novo, mas
observamos que há também algumas gradações desse formato, considerando
que estas criações são realizadas a partir de um vocabulário musical pré-
existente (incluindo configurações escalares, procedimentos rítmicos e outros
materiais que amostraremos em seguida). Nesse sentido, na música não
ocidental, a improvisação mais próxima de criar algo totalmente desvinculado

61
Observando que tais formatos também são encontrados em gêneros da música ocidental como na
música barroca, no jazz, no blues e na improvisação livre (esta última em aspectos diretamente
relacionados à exploração do som em sua essência, como no estágio inicial do raga indiano, que
citamos anteriormente).
62
Os termos utilizados aqui são adaptações dos termos utilizados no estudo feito por Ali Jihad Racy,
em seu texto sobre a improvisação na música árabe. (RACY In: RUSSEL, NETTL, 1998)
65

de um material prévio, mais ligado à essência sonora, é o estágio inicial do


raga, chamado alapa. Ainda assim, o objetivo da alapa é estabelecer uma
configuração escalar para seguir a improvisação dentro de uma configuração
melódica e de um padrão rítmico. Podemos também citar a improvisação
criativa a partir de ostinatos rítmicos, ou rítmico-melódicos. Nesse tipo de
improvisação temos uma estrutura fixa, em geral sustentada por um ou mais
instrumentistas, enquanto outro instrumentista ou cantor improvisa
criativamente. Como último exemplo desse formato de improvisação citamos
o formato conhecido por canto responsorial, encontrado em regiões da África
e em outras práticas, como a capoeira encontrada no Brasil. No canto
responsorial, um único cantor cria temas melódicos e um grande grupo repete
suas criações, em geral acompanhado por instrumentos de percussão.

Configurações escalares

Ao mencionarmos o raga indiano, vimos sua maneira peculiar de tratar o


aspecto melódico, especialmente na improvisação. Podemos citar também a
construção modular de caráter melódico dos maqams árabes e as polifonias
encontradas na África, entre uma série de materiais relacionados aos aspectos
melódicos da música não ocidental. Para nossa pesquisa, entre os diversos materiais
que envolvem este aspecto, ressaltamos a variedade de configurações escalares
encontradas nestas culturas, especialmente as que conduzem a escuta para uma
dimensão extra-tonal. Nestas organizações melódicas criam-se novas relações com o
som, com as notas e com seu entorno. Consequentemente, criam-se novas percepções
contextuais para o ouvinte ocidental, como aconteceu desde o inicio do século XX, no
trabalho dos compositores europeus que tiveram contato com materiais melódicos da
música de culturas não ocidentais.
Vejamos alguns exemplos destas configurações escalares, observando que os
exemplos são, em alguns casos, aproximações das escalas originais, por estas não
estarem inseridas em um sistema temperado de afinação. É interessante relembrar que
as configurações fora do padrão tonal trazem uma ambientação harmônica implícita
que pode ser explorada em propostas ligadas à processos criativos, como nos
exemplos que vimos na primeira parte de nosso trabalho. Muitas destas configurações
foram criadas com instrumentos peculiares das culturas não ocidentais, como os
66

metalofones do gamelão javanês, a cítara indiana, o balafon63 africano e o buzuq64


árabe. Pensando na combinação das configurações escalares fora do padrão tonal com
estes instrumentos, ressaltamos o aspecto tímbrico65 resultante, que muitas vezes
identifica cada uma dessas culturas.
Em relação às configurações escalares utilizadas no raga , chamadas de thãts66,
podemos observar sua correspondência com os modos gregos e variações dos mesmos
em versões híbridas 67 . Seguem então alguns exemplos de algumas destas
configurações:

Fig.2.3- Escala sléndro68, utilizada no gamelão javanês


(obs: esta configuração também pode ser encontrada com sete notas)
(TITON, 2005, p.234)

Fig.2.4- Tetracorde e Pentacorde utilizados nos


maqams árabes. (RUSSEL; NETTL, 1998, p.375)

63
Utilizado no oeste da África, o balafon é uma espécie de xilofone que possui formato curvo,
amarrações em couro e cordas, utilizando cabaças como ressonadores. É tocado com duas baquetas.
64
Mais utilizado na Síria e no Líbano, o buzuq é um tipo de alaúde similar ao bandolim.
65
Podemos expandir essa ideia tímbrica pensando em alguns aspectos explorados pela música
contemporânea, como o piano preparado, a exploração dos sons multifônicos em instrumentos de
sopro, a incorporação do ruído, os processamentos sonoros e a criação de instrumentos híbridos, entre
outros.
66
Os thãts são escalas base para a execução de cada raga, mas outras notas podem ser utilizadas
durante a performance, fato que, mais uma vez, reforça a maleabilidade da música indiana. Os thãts são
escalas de 7 notas, e, diferentemente do raga, não tem nenhuma “qualidade emocional”
(JARAZBHOY, 2011, p.46).
67
Devemos aqui mencionar que alguns thãts correspondem aos modos gregos, e outros podem ser
considerados como modos híbridos, ou seja, o modo com uma ou duas notas diferenciais. Paulo Tiné,
em sua tese Procedimentos Modais na Música Brasileira, faz uma correspondência dos modos com as
escalas do raga indiano e cita o aspecto híbrido encontrado em sua organização escalar (TINÉ, 2008,
p.41).
68
Junto com a escala pélog, amostrada em nosso primeiro capítulo, estas são as duas configurações
utilizadas no gamelão javanês.
67

Fig.2.5- Escala Nawa A thar, utilizada nos maqams árabes


(RUSSEL; NETTL, 1998, p.375)

Fig.2.6- Escala Hijaz Kar, utilizada nos maqams árabes


(RUSSEL; NETTL, 1998, p.375)

Fig.2.7- Escalas utilizadas em canções de Botswana,


tribo de pigmeus, no Kalahari (ENGLAND apud BLACKING, 1987, p.11)

Fig.2.8- Escalas de sete notas (thãts) utilizados como base melódica no raga
(JAIRAZBHOY, 2011, p.46)

Procedimentos rítmicos

Embasados nos estudos de David Locke, Marcos Branda Lacerda, Martin


Clayton e Simha Arom, a primeira observação que devemos fazer acerca dos
procedimentos rítmicos utilizados na música não ocidental é de que há certas
concepções rítmicas que diferem bastante das concepções da música ocidental. Nem
sempre podemos relacionar estes procedimentos com a ideia ocidental de compasso
68

ou métrica, por exemplo, mas podemos pensar em como reorganizar alguns destes
procedimentos em contextos híbridos, como faremos adiante. Para ilustrar esta nossa
primeira consideração, podemos citar o exemplo do raga indiano, na qual o tempo,
além de maleável, tem um caráter circular, representada pelo ciclo da tala:

[...] na tala, o tempo 1 representa tanto o fim de um ciclo quanto o


início do próximo ciclo; na verdade, os princípios do ciclo da tala
contrastam fortemente com a maioria dos princípios rítmicos da
música ocidental, que geralmente termina no último tempo. A tala
tende a sugerir um nível de movimento contínuo, característico
dos ciclos69. (CLAYTON, 2008, p.15)

Pensando ainda sobre o uso da métrica na tala indiana, Clayton observa que,
por um lado, a métrica construída pela utilização de compassos serve como
localizador (quando apontamos algum evento em um determinado compasso), o que
acontece também na música ocidental. Por outro lado, na tala indiana, a organização
métrica também envolve a ideia de recorrência de padrões rítmicos, sendo que a
música parece estar voltando sempre ao mesmo lugar no tempo, mas de uma forma
cíclica, evolutiva (CLAYTON, 2008, p.19)
Completando a ideia de organização métrica, citamos também os padrões
rítmicos da música africana, que nem sempre se baseiam em compassos, sendo muitas
vezes construídos a partir de uma unidade rítmica formada por relações de
periodicidade. Tais relações são frequentemente construídas através da polirritmia, a
partir de uma cadeia de padrões interligados, organizados a partir de um pulso
primário. Simha Arom, em seus estudos sobre a polirritmia encontrada na região
central da África, adota a expressão isoperiodicidade no lugar de compassos, ao se
referir à organização métrica africana. Para Arom, a ideia de compassos implica em
uma organização formada por tempos fortes, fracos e acentuações, conceitos que não
se aplicam à música africana (2004, p.211). Ainda sobre as relações de
isoperiodicidade na música africana, Lacerda cita as tramas complexas que partem
desta relação utilizando-se também do recurso de offbeat timing, no qual, segundo o
autor, “cria-se um plano métrico não coincidente com o plano métrico
hierarquicamente definido como básico” (2005).

69
“[...] in a tala, beat 1 represents both the end of the cycle and the beginning of the next; indeed, the
principles of the tala cycle contrasts sharply with the rhythmic principles of most Western music which
generally ends on the last beat. The tala tends to provide a degree of perpetual motion characteristic of
cycles.”
69

Sobre as assimetrias e construções métricas irregulares encontradas na


música não ocidental, podemos dizer que o conceito ocidental de assimetria também
pode ser interpretado de diferentes maneiras. Na tala indiana, por exemplo, há ciclos
de 1670, 14, 12, 10, 9 e 7 tempos71, sendo que alguns destes ciclos, sob o ponto de
vista da música ocidental, podem ser considerados assimétricos, embora representem
a duração regular de um ciclo.
Na música africana, a noção de pulsação também pode ser vista de uma
forma diferenciada: na música ocidental, quando falamos em pulsação, pensamos em
células de igual duração, representadas por uma determinada figura musical (uma
semínima como pulsação de um compasso quaternário, por exemplo). Em algumas
regiões da África, a pulsação pode ser composta por mais de uma figura musical,
marcando uma periodicidade (duas semínimas e uma colcheia, por exemplo), o que
pode também ser visto como um padrão rítmico irregular na música ocidental. Neste
último caso, o que determina a métrica na percussão africana é um ciclo estabelecido
pela variação da duração das células rítmicas, utilizando uma combinação de células
mais longas com células mais curtas. Este tipo de diferenciação, na qual sentimos a
pulsação através da combinação entre células mais curtas e mais longas, pode ser
também estendida à forma de agrupar os ciclos da tala indiana, como vemos nos
exemplos abaixo:

- Ciclo Matta, 9 tempos formados pelo agrupamento de 2+3+4


- Ciclo Jhaptal, 10 tempos formados pelo agrupamento de 2+3+2+3
- Ciclo Brahma, 14 tempos formados pelo agrupamento de 2+3+4+5

Esse procedimento, em termos ocidentais, pode ser considerado irregular ou


assimétrico, mas ocorre como consequência natural de fatores ligados à expressão e à
performance, como vemos nas observações de Clayton:

70
O ciclo de 16 tempos é bastante utilizado e é chamado de Tintal.
71
Os tempos no raga indiano são chamados de mãtras.
70

A diferença é que na música indiana (como, aliás, na maioria da


Ásia central e ocidental, e na música dos Balcãs), um dos principais
níveis de pulsação que contribui para uma sensação métrica pode
ser, em termos ocidentais, irregular [...] na qual alguns pulsos
parecem ser mais longos do que outros. [...] Esse tipo de construção
métrica pode estar relacionada a uma série de outros fenômenos, em
particular, ao uso de métricas nos Balcãs e no Oriente Médio
aparentemente ligados a ritmos de dança, nos quais batidas longas
estão relacionadas a passos mais lentos, e a distinção entre sílabas
longas e curtas está relacionada à prosódia de algumas línguas.72
(CLAYTON, 2008, p.40)

É interessante portanto notar que, na música não ocidental, a assimetria foi


construída a partir de uma expressão ligada à corporalidade – pensando também na
estreita relação entre música e dança – , ao canto e à exploração de combinações
métricas ligadas ao aspecto cíclico.

É provável, portanto, que o uso de pulsações “irregulares” como


parte integrante de uma estrutura métrica seja bastante difundida,
sendo encontrada na Índia e em várias outras regiões da Ásia, em
grande parte da África e Europa Oriental (e, provavelmente
ausente em grande parte da música tonal da tradição europeia).73
(CLAYTON, 2008, p.41)

Sobre a citação acima, vimos que muitos compositores que fazem parte da
tradição europeia foram influenciados pelo contato com procedimentos rítmicos da
música não ocidental e recontextualizaram de forma particular estes procedimentos
em seus trabalhos. Ainda assim, tais procedimentos, incluindo parâmetros rítmicos
assimétricos, não são tão comuns na música tradicional encontrada no ocidente,
principalmente quando pensamos em contextos formativos direcionados para o
músico adulto74. Pensando na assimetria rítmica, nossa consideração nesse trecho é
observar que, sob o ponto de vista da música tradicional ocidental, considerando os
contextos formativos que trabalham com esse repertório ou com a música popular

72
“The difference is that in Indian music (as, incidentally, in much West and Central Asian, and
Balkan music) one of the principal pulse levels which contributes to a sense of metre may be, in
Western terms, irregular [...] at which some pulses appear to be longer than others. [...] This kind of
metrical construction may be related to one or more of a number of other phenomena in particular, the
use of apparently related metres in the Balkans and the Middle East as dance rhythms, where long beats
correlate to heavy dance steps; and the distinction between long and short syllables in the prosody of
some languages.”
73
“It may be, therefore, that the use of “unequal” beats as an integral part of metric structure is actually
rather widespread, being found in India and several other regions of Asia, much of Africa, and Eastern
Europe (and, perhaps, rather unusually absent from most tonal music in the European tradition).”
74
Observando que na música contemporânea este tipo de procedimento é amplamente utilizado.
71

ocidental, muitos dos procedimentos rítmicos da música não ocidental podem ser
considerados assimétricos e irregulares. Entretanto, a assimetria nos casos que
citamos, é consequência natural de uma determinada organização rítmica, em prol de
uma fluência musical. Em outras palavras, estamos dizendo que a assimetria e as
métricas complexas baseadas na polirritmia podem ser tratadas de maneira orgânica,
não artificial. Tal abordagem pode contribuir para trazer, da mesma forma orgânica, o
conceito de assimetria e o estudo de parâmetros rítmicos complexos para o
aprendizado musical, pensando em um contexto global de formação.
Feitas estas considerações, vamos amostrar alguns procedimentos rítmicos
encontrados na música não ocidental. Vamos concentrar nossos exemplos na música
indiana e africana, mas lembramos que há mais materiais que podem ser explorados
na música de culturas que não se baseiam na tradição europeia.

Tihai

O Tihai é um recurso rítmico utilizado na música hindustani (norte da Índia)


que consiste na utilização de um padrão rítmico que é repetido 3 vezes, indicando o
fim de uma improvisação rítmica no ciclo da tala. Existem vários tihais, que, quando
tocados, são imediatamente identificados e servem como referência para os
performers do raga indiano. Vejamos alguns exemplos de tihais:

Fig.2.9- Tihais da tala indiana (CLAYTON, 2008, p.167)

Os tihais nem sempre são tocados no início de um compasso (ou da


combinação métrica da tala em que ele está inserido), podendo aparecer em pulsos
deslocados, como no exemplo a seguir:

Fig.2.10- Tihai no contexto da tala (CLAYTON, 2008, p.168)


72

Sistemas mnemônicos 75 por associação silábica

Na música indiana, é comum associar determinados padrões silábicos –


geralmente correspondentes às onomatopeias que representam os sons da percussão –
aos padrões rítmicos dos ciclos da tala, como auxiliar para sua memorização.
Este procedimento pode ser também estendido à dança, como no estilo do sul
da Índia denominado Katak. No raga hindustani, esse sistema de associação silábica é
conhecido por Bol e no Sul da Índia, é conhecido por Solkatu ou Konokol76.
Nas duas regiões da Índia são utilizados diferentes fonemas, como veremos
abaixo. O primeiro exemplo mostra a associação silábica em alguns ciclos da tala do
norte da Índia (música Hindustani) e o segundo exemplo mostra algumas associações
silábicas e suas células rítmicas correspondentes, utilizadas no sistema Konokol, do
Sul (música Carnática):

Fig.2.11- Associações silábicas da tala indiana, sistema Bol, Norte da Índia


(CLAYTON, 2008, p.41)

75
O processo mnemônico é aquele que se utiliza de associações imagéticas ou sonoras como suporte
para a memorização. Em nosso caso, estamos citando o processo que associa sílabas com padrões
rítmicos.
76
Observando que o Solkatu se refere apenas às sílabas isoladamente, e o Konokol considera as sílabas
utilizadas dentro de um contexto de concerto musical ou performance. (NELSON, 2008, p.3)
73

Fig.2.12- Associações silábicas do sistema Solkatu/Konokol, sul da Índia


(NELSON, 2008, p.15)

Construções de pulsação e tramas rítmicas

Citado por John Blacking em seus estudos sobre a música da tribo de Venda,
esse procedimento consiste em construir uma estrutura rítmica a partir de um sistema
de pulsações resultante da interação entre dois ou mais performers (no caso,
instrumentistas de percussão). Vejamos os dois exemplos abaixo, lembrando que
utilizamos aqui a noção não ocidental de pulsação (também é considerada pulsação
aquela construída por pulsos longos e curtos), especialmente no segundo exemplo:

Fig.2.13- Ritmo construído a partir de duas pulsações simultâneas, Venda, África


(BLACKING, 1974, p.28)

Fig.2.14- Ritmo construído a partir de três pulsações simultâneas, Venda, África


(BLACKING, 1974, p.29)
74

Em seus estudos sobre o ritmo Solegebe, praticado no culto Fon, da cidade de


Oueridah, Benin, Lacerda descreve sua textura rítmica básica, na qual observamos a
construção de uma estrutura rítmica por padrões rítmicos de isoperiodicidade. Nesta
estrutura, o padrão tocado pelo Gan é composto pela combinação de mais de um valor
rítmico e a utilização do offbeat timing estabelece uma segunda pulsação defasada em
uma colcheia em relação à pulsação principal.

Fig.2.15- Textura rítmica de Solegebe, culto Fon, Benin


(LACERDA, 2005)

Polirritmias e cross-rhythm

David Locke, em seus estudos sobre o ritmo chamado de Gahu, encontrado


nas regiões africanas de Gana, Togo e Benin, mostra a primeira parte da estrutura do
Gahu, chamado de call. Nessa parte, um tambor que tem a função de liderança (o
papel de leading drum, geralmente realizado nos tambores denominados boba e
atsimevu) faz o primeiro chamado para iniciar a percussão e também a dança que é
associada a este ritmo. No call da percussão, Locke atenta para o procedimento
chamado de cross-rhythm, um tipo de polirritmia resultante da superposição entre
duas ou mais linhas rítmicas constantes baseadas em valores diferentes, construídos
sob um ponto de convergência. Nesse procedimento pode também haver uma
sensação de múltiplas acentuações fraseológicas em uma única linha durante sua
execução, como vemos no exemplo:
75

Fig.2.16- Cross-rhythm encontrado na primeira parte do ritmo Gahu


(LOCKE, 1998, p. 83)

Ostinatos rítmicos e melódicos

Aqui exemplificamos uma estrutura feita a partir de um ostinato que combina


ritmo e melodia, servindo de base para que a improvisação aconteça. Comparado com
os outros procedimentos, o exemplo que vamos amostrar aqui possui estrutura
simples, mas muitos ostinatos encontrados na música não ocidental podem ser
também associados à parâmetros rítmicos assimétricos e complexos, com ou sem o
apoio de uma configuração melódica. Vejamos então um exemplo de uma estrutura
baseada em um ostinato, utilizada em Mali, na África ocidental, por Souleymane
Traoré (conhecido por Neba Solo), instrumentista de balafon:

Fig.2.17- Afinação do balafon

Fig.2.18- Ostinato criado para improvisação de Neba Solo


(MONSON In: SOLIS; NETTL, 2009, p.28)
76

2.6.O aspecto da corporalidade

Como vimos nos estudos de John Blacking, a forte corporalidade do músico é


uma característica marcante na performance africana, sendo que podemos estender
esta consideração à maioria das culturas não ocidentais. Nesse aspecto da
corporalidade, há três formas de integração corpo/música que consideramos
relevantes para nosso trabalho:

• O instrumentista ligado fisicamente ao seu instrumento, sendo o instrumento


tratado como uma extensão do performer.
• A ligação estreita entre a dança e a música em algumas das práticas
encontradas das culturas não ocidentais.
• O aspecto da espacialidade, implícito nas práticas que envolvem a dança.

Sobre o primeiro item, vejamos o trecho abaixo, no qual um instrumentista de


taiko menciona sua relação com o instrumento:

Acreditamos que o taiko para nós não é apenas um tambor: mas


sim a conexão entre o tambor e o instrumentista. Dessa forma, se
em um dado momento nos concentramos muito em aspectos
técnicos e perdemos aquele sentimento ou espírito inerente ao fato
de tocar, então o tocar se resume apenas a um tambor.
Instrumentista e instrumento ficam separados. Nesse caso, o
instrumentista está apenas usando o tambor no lugar de
estabelecer uma relação com o instrumento. 77 (WISA apud
POWELL In: BRESLER, 2004, p.183)

Em relação a este depoimento, citamos mais uma vez a importância do


aspectos de imersão na performance, aqui estabelecido pela profunda relação do
performer com seu instrumento e seu envolvimento emocional ao tocá-lo. Na música
não ocidental, os aspectos ligados ao sentimento, ao envolvimento emocional e à
interação física do músico com seu instrumento parecem estar acima do aspecto
técnico. A corporalidade, no caso da música não ocidental, é portanto mais um

77
“We believe that taiko for us is not just the drum: but it’s the connection between the drum and the
player. So at a certain point if we concentrate too much on technicality and we lose that feeling or that
spirit behind the playing then it becomes just the drum. They become separated. The player is just
using the drum rather than creating the relationship with it.”
77

elemento a contribuir para um maior envolvimento do músico durante sua


performance. Sobre este envolvimento do músico e seu corpo como meio ativo na
prática da improvisação, Costa, no artigo A ideia do corpo na improvisação,
acrescenta:

Quando falamos sobre os efeitos da performance em tempo real


no próprio corpo dos músicos e as afetividades ativadas antes e
durante a performance pensamos em algo muito forte, ligado à
noção de prazer físico e lúdico que percorre, como um vetor de
vital importância, toda prática de improvisação. A relação com o
instrumento, neste caso, seja qual for, a gestualidade, o prazer
motor, a escuta do som produzido, a possibilidade de
manipulação, o prazer da enunciação, da expressão; tudo isso gera
uma espécie de “gozo”. (2008,p.90)

Sobre as considerações de Costa, lembramos sobre o envolvimento impresso


na prática da improvisação como uma espécie de apogeu da performance, sendo que a
corporalidade do músico está bastante presente em alguns gêneros de improvisação
do ocidente e do oriente. Ainda, segundo Costa78, “quando o instrumentista improvisa
ele entra em contato direto, criativo e corporal com os elementos sonoros e musicais
constituintes das “linguagens” em que ele atua” (2008,p.92), corroborando para nossa
ideia anterior sobre o músico de “corpo inteiro” na performance, acrescida da ideia de
que um improvisador tem uma relação de extremo conhecimento e fluência sob os
materiais expressivos e procedimentos musicais dos quais se utiliza.

Sobre a estreita ligação da música com a dança, observamos que, em algumas


das culturas não ocidentais as duas não existem separadamente. Este é o caso do
ritmo Gahu, citado anteriormente; do gamelão javanês, que envolve um ensemble de
música e dança; do Katak do sul da Índia, que consiste em uma dança de aspecto
extremamente rítmico e que costuma ser acompanhada por instrumentos de percussão
como a tabla; e o taiko japonês, no qual os percussionistas executam uma
movimentação associada à dança, entre outros exemplos. Citamos ainda o aspecto da
espacialidade, considerando que a dança produz o movimento no espaço, o
deslocamento, e, consequentemente, novas relações com os aspectos sonoros. Sendo
assim, o som de um músico em movimento, ou de um músico que toca baseado na
movimentação de um bailarino, por exemplo, pode ser diferente do som emitido por

78
Embora o texto de Costa esteja mais voltado para a prática da improvisação livre, aqui estendemos
suas considerações para a improvisação como um todo.
78

um músico que está parado ou de um músico que não toca pensando nessa
associação. A emissão sonora na performance pode portanto decorrer de estímulos
provindos do movimento, aspecto este que exploraremos mais adiante.

xxx

Por mais que tenhamos abarcado diversos conceitos e materiais, podemos


dizer que esta foi apenas uma pequena amostragem em relação aos procedimentos
musicais encontrados na culturas não ocidentais. Ainda assim, consideramos que
tratamos de aspectos fundamentais relativos à performance e à improvisação musical
para, em seguida, investigar como estes foram trazidos para contextos formativos da
música ocidental. Nossa intenção vai em direção a contextos híbridos, que
estabelecem ambientes multiculturais e promovem conversas transculturais, além de
trazer elementos para se pensar a música em sua essência e como um todo, retomando
mais uma vez a ideia da epígrafe deste capítulo.
Como já nos mencionou Steve Reich no capítulo anterior, nossa intenção não
é propor a reprodução de contextos e sonoridades da música não ocidental ou
defender a criação de uma nova escola musical no ocidente sob padrões orientais (até
porque, teríamos que decidir, entre muitos, qual o padrão a seguir...). Pensando que o
contexto de formação adulta encontrado no ocidente segue, em grande parte, a
tradição europeia, queremos observar como os procedimentos, conceitos e materiais
da música não ocidental podem dialogar e interagir com essa realidade. Ressaltamos
ainda que tal interação existe hoje tanto do oriente para o ocidente como do ocidente
para o oriente, embora nosso estudo consista na abordagem da primeira situação.
Nesse contexto, nosso foco daqui em diante é o estudo da performance e da
prática da improvisação em contextos formativos híbridos para o músico adulto.
79

CAPÍTULO 3

DESDOBRAMENTOS DOS MATERIAIS DA MÚSICA NÃO


OCIDENTAL EM CONTEXTOS FORMATIVOS DO OCIDENTE:
CORPORALIDADE, HIBRIDISMO E IMPROVISAÇÃO

“A cultura humana não é algo para ser


apenas transmitido, perpetuado ou
conservado, e sim algo que está sob
constante reinterpretação. Como um
elemento vital do processo cultural, a
música é, no melhor sentido do termo,
recriacional: ajudando para que nós e as
nossas culturas sejam renovadas,
79
transformadas .”

(SW A NW ICK, 2005/1998, p.119)

79
“Human culture is not something to be merely transmitted, perpetuated or preserved but is constantly
being re-interpreted. As a vital element of the cultural process, music is, in the best sense of the term,
re-creational: helping us and our cultures to become renewed, transformed.”
80

Pensando nos procedimentos e conceitos que permeiam a música de culturas


não ocidentais, vamos atentar para a diversidade desses materiais e seus possíveis
desdobramentos. Em uma realidade cada vez mais propícia para iniciativas
multiculturais, o diálogo com os materiais, procedimentos e conceitos amostrados no
capítulo anterior pode ser significativo se aplicado em contextos formativos para o
músico adulto. Neste terceiro capítulo, nosso foco principal será então novamente o
diálogo, a transformação e a recontextualização de elementos da música não
ocidental, agora em contextos formativos do ocidente.
Começando pela ideia da corporalidade, forte marca das culturas não
ocidentais, primeiramente veremos que esta pode estar associada a processos
cognitivos nos estudos mais recentes sobre o conhecimento dinâmico e sua relação
com o ambiente. Para relacionar a ideia da corporalidade aos estudos atuais sobre a
cognição humana, traçaremos um panorama geral sobre o assunto, discorrendo sobre
os conceitos de affordance, embodied mind e cognição situada. Transpondo estes
conceitos para a música sob o mesmo enfoque, veremos também como alguns
educadores do ocidente abordaram a ideia da corporalidade em propostas de formação
musical. Após os estudos acima descritos, abordaremos contextos formativos de
caráter híbrido e multicultural, observando como alguns Institutos de Artes do
ocidente absorveram e continuam a absorver elementos da música não ocidental em
sua grade curricular, incluindo cursos de graduação em música, cursos de
especialização e iniciativas isoladas. Embora nossa proposta final se concentre na
prática da improvisação, veremos como materiais e conceitos provindos da música
não ocidental influenciaram contextos formativos que envolvem a performance
musical e processos criativos em geral.
Ainda sob este foco, discorreremos sobre a prática da improvisação em
contextos formativos em nível superior, incluindo estudos de educadores que
abordaram o tema da improvisação sob diversos aspectos, defendendo, inclusive, a
importância desta prática em contextos de formação musical no ocidente. Por fim,
vamos consolidar o conceito da transculturalidade utilizada em contextos formativos,
incluindo a ideia da criação de ambientes híbridos para a prática da improvisação.
81

3.1.A corporalidade associada à processos cognitivos: affordance,


embodied mind e cognição situada

Você diz “Eu” e fica orgulhoso dessa palavra. Mas melhor do que
isso – embora você não acredite – é seu corpo e sua grande
inteligência, que não diz “Eu”, mas interpreta o “Eu”. 80
(NIETZSCHE, 1961, p.62)

Iniciando nosso terceiro capítulo, vamos delinear um panorama resumido


sobre as ideias associadas ao aspecto da corporalidade na atualidade e suas aplicações
a partir da proposta de diálogo com os materiais da música não ocidental. O aspecto
da corporalidade nos estudos sobre o conhecimento humano é hoje bastante discutido
em reflexões sobre o corpo como mediador do conhecimento de um indivíduo através
de seu contato com um determinado meio. A ideia de interação com o meio foi
estabelecida no conceito de affordance, proposto por Gibson, segundo o qual “As
affordances do ambiente são os materiais que este oferece ao indivíduo, e que estes
podem ser utilizados para o bem ou para o mal81” (1979, p.127). Sobre as possíveis
reflexões a partir das interações entre o indivíduo e um determinado ambiente,
considerando suas affordances “Gibson propõe que, em qualquer interação entre um
agente e um determinado ambiente, as condições ou qualidades inerentes a cada
ambiente definem as ações que o agente vai executar neste ambiente82” (GREENO,
1994). Desse modo, o ambiente modifica o indivíduo, que por sua vez modifica o
ambiente, estabelecendo relações cognitivas dinâmicas, baseadas na ação e na
incorporação do que é oferecido em um determinado ambiente. Esta ideia de Gibson
modificou o conceito que se tinha do conhecimento, tratado anteriormente como
estático e independente de suas possíveis interações contextuais. Nessa abordagem do
conhecimento em ação e reação com um determinado ambiente, o corpo do indivíduo
passou a ter um papel de extrema importância nessa inter-relação.
A ideia do corpo como meio ativo para a construção do conhecimento é
conhecida hoje por embodied mind, sendo que esta concepção tem sido amplamente
discutida na atualidade. O conceito da embodied mind começou a ser tratado na

80
You say “I” and you are proud of this word. But greater than this – although you will not believe in it
– is your body and its great intelligence, which does not say “I” but performs “I”.
81
“The affordances of the environment are what it offers the animal, what it provides or furnishes,
either for good or ill”
82
“Gibson proposed that in any interaction between an agent and the environment, inherent conditions
or qualities of the environment allow the agent to perform certain actions with the environment”
82

metade do século XX em áreas do conhecimento como a filosofia, a fenomenologia,


a educação e a sociologia.
No campo da filosofia, a ideia da integração corpo/mente surgiu em oposição
às ideias de Platão (427-347 a.C.) que, ao discorrer sobre a educação, defendia a
supremacia do intelecto sobre o corpo (BRESLER, 2004, p.14). O primeiro filósofo
que concebeu o corpo como parte atuante do conhecimento, chamando a atenção para
uma forma “corporificada” de inteligência foi o alemão Friedrich Nietzsche (1844-
1900). Outros estudiosos retomaram o assunto, como o filósofo, psicólogo e educador
americano John Dewey (1859-1952), que debateu a divisão entre corpo e mente e as
várias formas de segregação em geral, e os filósofos franceses Paul Sartre (1905-
1980) e Merleau Ponty (1908-1961), que promoveram o ressurgimento dos estudos da
fenomenologia do corpo no campo da filosofia.

O grande problema da mente e do corpo é a sugestão de uma


divisão: eu não conheço nada tão desastrosamente afetado pelo
hábito de divisão como este tema em particular. [...] Os males que
sofremos na educação, na religião, no materialismo dos negócios e
na indiferença dos "intelectuais" perante a vida real, em toda a
separação existente entre conhecimento e a prática – todas essas
divisões testemunham a necessidade de ver mente-corpo como um
todo integral.83 (DEWEY, 2008, p.248)

A questão da divisão mencionada por Dewey também nos faz pensar nos
aspectos holístico e atomístico discutidos no capítulo anterior. Ao sugerir um
processo de cognição através de uma mente corporificada não podemos deixar de
associar esta ideia com um todo cognitivo de caráter holístico. Retomando nossas
considerações acerca destes aspectos, podemos considerar as iniciativas e os estudos
que estamos citando neste trecho como mais uma forma de propor um novo equilíbrio
entre as abordagens de enfoque holístico e atomístico. Nesse sentido, o corpo como
meio ativo para a cognição associado à ideia da embodied mind vem se ampliando em
trabalhos de diversos estudiosos, ganhando espaço também em contextos formativos.
Citando ainda os estudos da neurociência, o conceito de embodiment ou
corporificação foi recentemente tratado em estudos de Francisco Varela (1946-2001),

83
“The very problem of mind and body suggests division: I do not know of anything so disastrously
affected by the habit of division as this particularly theme. [...] The evils, which we suffer in education,
in religion, in the materialism of business and the aloofness of “intellectuals” from life, in the whole
separation of knowledge and practice – all testify to the necessity of seeing mind-body as an integral
whole.”
83

George Lakoff (1941- ), Robert Turner (1946- ) e Steven Johnson (1968- ), entre
outros, sendo definido como a integração entre corpo físico ou biológico com o corpo
fenomenológico ou experiencial, sugerindo uma junção entre corpo e mente, numa
rede que integra o pensar, o ser e o interagir com o mundo ao seu redor (VARELA,
THOMPSON e ROSCH, 2001, p. xviii).
Fechando nossas observações sobre diferentes enfoques em uma perspectiva
que considera o corpo como agente ativo no processo cognitivo, citamos ainda o
termo cognição situada apresentado em meados de 1987-88 pela pesquisadora e
antropóloga Jean Lave e Suchman. A ideia da cognição situada abrange os conceitos
de affordances e embodied mind discutidos anteriormente, sendo que “a cognição
situada surge para apresentar um olhar que coloca a aprendizagem e formação do
conhecimento como atividades dinâmicas, que estão em constantes reavaliações para
possibilitar ao indivíduo uma vivência adaptativa” (Schneider, 2011). Sobre a
cognição situada relacionada aos nossos estudos, destacamos a ideia de hibridismo
exposta desde nossa introdução. Pensando nos ambientes híbridos e multiculturais que
podem ser criados a partir de diálogos e interações com materiais de outras músicas,
podemos também associar esses ambientes à ideia de cognição situada. Desta forma,
a recontextualização de materiais de outras músicas pode gerar outros ambientes de
aprendizado, outras affordances e outras corporificações ou mesmo ressignificações
destes materiais em ambientes de aprendizado e performance musical. Pensando então
nesses conceitos em relação às novas concepções de cognição e no papel do corpo
como meio ativo nesse processo, passamos a estudar a ideia da corporalidade aplicada
especificamente ao conhecimento relacionado a aspectos rítmicos e à performance
musical.

3.2.A ideia da corporalidade na música: ritmo, embodied mind e domínio


do movimento

Transpondo as ideias que expusemos anteriormente para a música, podemos


dizer que o ritmo representa um dos primeiros aspectos musicais diretamente
relacionados ao conceito da embodied mind.
84

Provavelmente, a prova mais evidente e amplamente citada sobre


a ligação entre música e corpo vem de um caráter temporal ou
processual da música, um caráter que se manifesta em coisas
como pulso, tempo, ritmo: um conjunto de fenômenos muitas
vezes descritos como um movimento ou sentimento rítmico. [...]
As teorias de Dalcroze há muito salientaram a importância da
experiência corporal associada à percepção e aptidão musical, e o
movimento é uma consideração fundamental em muitos, ou
mesmo na grande maioria das abordagens pedagógicas sobre o
ritmo.84 (BOWMAN In: BRESLER, 2004, p. 38)

Com respeito à associação do conceito da embodied mind à cognição rítmica,


podemos observar que em muitas culturas não ocidentais esta cognição está
fortemente associada à corporalidade. Na África, por exemplo, o aspecto corporal está
tradicionalmente ligado ao aprendizado musical – especialmente quando relacionado
à cognição rítmica – utilizadas para tocar instrumentos de percussão, na dança ou no
mesmo em situações do cotidiano. Sobre a dança na África, esta é uma manifestação
relevante deste tipo de cognição, sendo que os dançarinos africanos “dançam e
cantam seu mundo com seus corpos” (MANS In: BRESLER, p.91).

No passado, muitos processos de aprendizado de origem indígena


aconteceram através da transmissão corporal e da imersão cultural.
[...] A percussão era ensinada por um mestre percussionista que
demonstrava fisicamente ou mesmo "trabalhava" as mãos do
aprendiz, de modo a imprimir a correta relação entre
tensão/relaxamento, utilização de energia e precisão rítmica. Esse
sentido de corporificação é, eventualmente, internalizado e torna-
se uma forma de corpo consciente.85 (MANS In: BRESLER, p.90)

Ainda sobre a corporalidade utilizada para processos cognitivos em geral, a


mesma autora que citamos acima observa a importância deste tipo de enfoque, com a
ressalva de que este poderia ser muito mais utilizado em contextos formativos:

84
“Probably the most conspicuous and oft-cited evidence of linkage between music and body comes
from music’s temporal or procedural character, a character that manifests itself in things like pulse,
tempo, rhythm: a cluster of phenomena often described as movement or time-feel [...] The theories of
Dalcroze have long stressed the importance of bodily experience to musical perception and aptitude,
and movement is a major consideration in many if not most pedagogical approaches to rhythm.”
85
“In the past, much indigenous learning took place through bodily transmission and cultural
immersion. [...] Drumming was taught by a master drummer physically demonstrating or even
“working” the apprentice’s hands so as to inculcate the right tension-release, energy input and timing.
This embodied sense is eventually internalized and becomes a form of mindful body.”
85

Quando a dicotomia mente-corpo é superada e utilizamos um


corpo pensante, toda uma gama de possibilidades de ensino-
aprendizagem se abre para nós. [...] Nas escolas, no entanto, o
sentido proprioceptivo raramente é utilizado em sua totalidade
como um meio de aprendizagem. A razão pela qual este
importante raciocínio espacial permaneça subvalorizado e
subaproveitado na educação é um mistério86. (Ibidem, p.91)

Um outro ponto incutido no conceito de embodied mind é a ideia de que o


conhecimento é adquirido de forma particular, ou seja, cada indivíduo pode ter uma
relação corpo/mente diferenciada a partir de um mesmo conceito. Cada indivíduo
pode incorporar, traduzir e expressar conceitos de forma única, na qual a
“compreensão corporificada é sempre aquela formada a partir de um determinado
ponto de vista, e portanto sempre parcial, ainda que esta compreensão permaneça
profundamente nossa87” (BOWMAN In: BRESLER, 2004, p.30). O conhecimento
corporificado, portanto, está sempre em constante movimento e transformação.
Aplicando tal observação para a performance e a improvisação musical,
podemos pensar na ideia da embodied mind para explicar as diferentes interpretações
de uma mesma peça e ressaltar a improvisação como uma forma de expressão única.
Dessa forma, a performance e a improvisação são manifestações bastante
vinculadas à corporalidade em seus diversos aspectos, sendo a improvisação a
expressão máxima do músico como indivíduo único em seu processo de incorporação
e expressão sonora 88 . Especificamente sobre a corporalidade e o conceito de
embodied mind aplicados aos sistemas cognitivos relacionados à música, vejamos
alguns de seus desdobramentos no ocidente:
Começando pelo trabalho do educador franco-suíço Emile-Jacques Dalcroze
(1865-1950), este criou sua metodologia pensando a princípio em desfazer certa
rigidez corporal do músico erudito de sua época, proporcionando a este músico um
fazer musical mais prazeroso e mais conectado com seu corpo, sendo uma

86
“When the mind-body dichotomy is overcome and we utilize a thinking body, a whole realm of
teaching-learning possibilities opens up to us. [...] In schools, however, the proprioceptive sense is
seldom fully utilized as a medium of learning. The reason why this important spatial sense remains
undervalued and underutilized in education is a mystery.”
87
“Embodied understanding is always the view from somewhere, and therefore always partial; yet it
remains profoundly ours”
88
Apesar da composição (quando pensada individualmente) também ser uma manifestação relacionada
a uma expressão única de cada músico, em nosso trabalho, não estamos considerando esta atividade
como diretamente relacionada ao conceito de embodied mind. Observamos, entretanto, que a
composição sob contextos híbridos e as gradações existentes no percurso da improvisação à
composição podem eventualmente ser relacionadas a este conceito.
86

metodologia inicialmente elaborada para músicos adultos. Com este enfoque,


Dalcroze elaborou propostas ligadas ao desenvolvimento rítmico pelo movimento e
incluiu a improvisação sob diversos aspectos em suas propostas, inserindo práticas
que não faziam parte dos materiais disponíveis para a formação do músico erudito do
início do século XX. Nestas práticas, a corporalidade, a acuidade rítmica e a
improvisação, representaram elementos-chave para a elaboração de sua metodologia.

Foi Émile-Jacques Dalcroze quem primeiro associou o ritmo


musical à consciência motora para sua expressão mais plena. Suas
pesquisas levaram-no à elaboração de um sistema de integração
entre movimento e ritmo projetado para desenvolver o domínio do
ritmo musical. Este sistema de educação musical utiliza o corpo
como intérprete do ritmo musical e é conhecido em todo o mundo
como Euritmia89. (FINDLAY,1999, p.2)

Sobre Dalcroze, podemos também observar que o educador baseou-se na


música ligada à tradição clássica europeia e em um universo de caráter tonal na
grande maioria de suas propostas, considerando que sua metodologia foi criada para
músicos inseridos nesse contexto. Como observa a educadora Marisa Fonterrada “é
possível perceber que Dalcroze estava inteiramente engajado nas questões de seu
tempo, mas seus instrumentos de interpretação da realidade permaneciam inseridos no
pensamento romântico 90 ” (2008, p.126). O direcionamento da metodologia de
Dalcroze para o pensamento romântico e para a música de tradição europeia pode ser
observada até hoje em cursos de formação em sua metodologia difundidos em vários
países do ocidente 91 oferecendo uma forma orgânica de entender, interiorizar e
incorporar conceitos musicais dentro desse contexto. Sob este aspecto, se
considerarmos a variedade de configurações escalares e procedimentos rítmicos da
música de culturas não ocidentais amostrados em nosso capítulo anterior, podemos
atentar para o fato de que a proposta deste educador pode ainda ter desdobramentos

89
“It was Emile-Jacques Dalcroze who first realized that musical rhythm depends absolutely on motor
consciousness for its fuller expression. His researches led him to evolve a system of rhythm movement
designed to develop mastery of musical rhythm. This system of music education uses the body as the
interpreter of musical rhythm and is known the world over by eurhythmics”
90
Este tipo de pensamento sugere que a arte seja fortemente atrelada à expressão de sentimentos e
defende a criação de métodos racionais e definitivos (FONTERRADA, 2008).
91
O principal centro de estudos no método Dalcroze é o Institut Jacques-Dalcroze em Genebra, Suíça,
sendo que há vários cursos de especialização oferecidos nos Estados Unidos, Europa, Reino Unido e
Austrália. O brasileiro naturalizado na Suíça Iramar Rodrigues – formado pelo instituto de Genebra,
aonde trabalha há mais de 30 anos – costuma vir anualmente ao Brasil para dar cursos sobre esta
metodologia.
87

em contextos diversos. Ressaltamos portanto a importância da contribuição de


Dalcroze em materiais didáticos e conceitos que alavancaram uma série de
transformações em contextos formativos de música a partir da metade do século XX.
Depois de Dalcroze, outros educadores criaram metodologias envolvendo a
prática corporal como ferramenta de ensino. Entre estes educadores podemos citar
Edgar Willems (1890 - 1978), Carl Orff (1895-1982), Violeta Gainza (1930- ) e
Murray Schafer (1933- ). Estes educadores defenderam/defendem a ideia da utilização
do corpo para sensibilizar o aluno que estuda música, sendo que seus trabalhos
enfatizam a proximidade entre a prática corporal e o desenvolvimento de estruturas
cognitivas. Os educadores em questão também valorizam a ação corporal em seu
aspecto mais amplo, destacando que o verdadeiro ritmo está presente em ações
cotidianas do ser humano, tais como: andar, respirar, o pulsar do sistema circulatório
e movimentos sutis causados pela emoção ou por pensamentos. Por fim, tais
educadores defendem que os movimentos instintivos que nos são inerentes podem ser
utilizados para despertar a vivência interior do ritmo, como exemplificado abaixo na
citação sobre a metodologia criada por Carl Orff:

Na metodologia Orff, o movimento é uma ajuda indispensável


para o desenvolvimento de habilidades musicais e a formação de
conceitos. Ele ajuda o aluno a assimilar vários aspectos rítmicos
como o pulso, modelos ou padrões, medidas e tempos. A direção
melódica e qualidades como dinâmicas e cores podem ser
expressas em movimento e este pode ilustrar texturas, formas e
situações dramáticas de modo concreto. (LIMA; RUGER, 2007,
p.105)

Pensando nas diversas abordagens citadas referentes à utilização do corpo no


aprendizado musical e em sua importância, destacamos também que tal abordagem é
até hoje bastante explorada na educação infantil, mas pouco utilizada nos cursos de
graduação em música, assim como a prática da improvisação. Sobre esta questão,
podemos observar que a maioria dos educadores com propostas de inovação na
educação musical, mesmo os que iniciaram seu trabalho com adultos, acabaram
direcionando grande parte de suas propostas para crianças.
Como exemplo observamos que Orff, assim como Dalcroze, iniciou seu
trabalho com adultos92. No caso de Orff, o educador começou seu trabalho ao lado da
dançarina Dorothea Gunter na Gunter Schule, na qual os dois desenvolveram uma

92
Lembrando que Dalcroze direcionou sua metodologia para músicos com formação prévia.
88

proposta criativa da integração de música e movimento para professores de educação


física. Nesta escola Orff criou instrumentos de percussão, conhecidos hoje por
“instrumentos Orff”, sendo que a ideia era que os participantes trocassem os papéis
utilizando esses instrumentos, para que todos pudessem tocar e dançar. A escola foi
destruída na 2º guerra, sendo que, anos depois, Orff retomou suas pesquisas, iniciando
um trabalho dirigido para crianças, deixando peças para serem executadas em cinco
volumes intitulados Orff-Schulwerk. (FONTERRADA, 2008, p.160).
Voltando ao tema da corporalidade, considerando ainda a impossibilidade de
abordar toda sua amplitude, nosso recorte neste trabalho será o de abordar apenas a
conexão corpo/música mais voltada para o aspecto rítmico. Neste aspecto,
relembramos que essa mesma conexão é bastante frequente na música não ocidental,
como na música africana e na indiana, nas quais existe uma profunda relação entre
dança e música sob o aspecto rítmico em geral.

3.2.1.Laban e o domínio do movimento: transposições para a


música

O último aspecto que queremos tratar a respeito do tema da corporalidade é o


movimento corporal em si, ou seja, considerando o movimento corporal como
instrumento para um processo cognitivo do qual o músico possa se valer. Embora
nosso trabalho se concentre apenas na exploração do tema da corporalidade no
aspecto ligado à cognição rítmica e suas aplicações na improvisação musical,
podemos pensar em alguns conceitos a respeito do movimento que possam auxiliar o
músico a explorar com maior profundidade experiências que envolvam a integração
corpo/música sob a abordagem que estamos propondo.
Um dos grandes estudiosos do movimento corporal e responsável por uma
contribuição relevante na forma de se pensar o movimento foi o dançarino austro-
húngaro Rudolf Laban (1879- 1958). Embora Laban tenha direcionado seus estudos e
sua metodologia para bailarinos, atores e cantores93, encontramos muitos elementos
que podem ser transpostos para nossa proposta. Quando pensamos no movimento
relacionado ao aspecto rítmico, parece-nos comum pensar em movimentos
relacionados à coordenação motora, como batidas de pés e de mãos, associados a

93
Para Laban, estes artistas eram os que mais se valiam do movimento quando estavam no palco.
89

movimentos percussivos em geral. Menos comum, a nosso ver, seria pensar na ideia
de deslocamento no espaço, na exploração de planos e direções, na consciência do uso
de diferentes articulações do corpo e na exploração de qualidades de movimento
como o deslizar, torcer, pular e girar, por exemplo.
Nas propostas de Laban, vários aspectos como os descritos acima são tratados
com o objetivo do profundo domínio do movimento, pensando em trazer a máxima
consciência do movimento para o artista. Essa consciência vem através de um longo
processo de estudo, que consiste na observação de movimentos cotidianos, na
exploração do movimento espontâneo e numa série de propostas que fortalecem a
transposição do movimento para o palco. Nessa última ação, segundo Laban, o artista
com profundo domínio de seu movimento pode proporcionar um maior envolvimento
do espectador durante uma performance. Sendo assim, “o poder de fazer com que as
pessoas acreditem em coisas quase que inefáveis reside inteiramente na capacidade
bem cultivada do artista para o movimento” (LABAN apud ULLMANN, 1978,
p.233).
Em relação às propostas de Laban diretamente ligadas à integração
corpo/ritmo, citamos abaixo um exercício que associa pulsações formadas pela
combinação de valores rítmicos mais longos e mais curtos – denominados pelo autor
como tempo-ritmo – com a movimentação no espaço. Laban utiliza esses pequenos
padrões rítmicos inspirado em padrões das danças gregas, que, segundo estudos do
autor, eram formadas por determinadas combinações de pulsos mais longos e mais
curtos94. Cada uma dessas danças representava um tipo de emoção ou caraterística
humana – como graciosidade, solenidade ou excitação – e era utilizada para diferentes
ocasiões. Tais danças costumavam também ser combinadas com configurações
escalares que originaram as configurações modais que conhecemos no ocidente. Vale
então lembrar a semelhança desse tipo de formação de pulsação com os exemplos que
vimos da música africana no capítulo anterior. Também lembramos dos vários ragas
indianos associadas a determinados estados emocionais, assim como nas danças
gregas citadas por Laban.

94
No livro Domínio do Movimento, Laban menciona os ritmos fundamentais das danças gregas
formados pela variação de agrupamentos de duas a seis unidades rítmicas longas e curtas, como
troqueu, anapesto, dáctilo e jâmbico. (LABAN apud ULLMANN, 1978, p.198-199).
90

Exemplo de exercício proposto por Laban

Crie desenhos de passos95 usando os seguintes ritmos várias vezes seguidas:

Fig.3.1- Exercício de tempo-ritmo associado ao movimento, proposto por Laban

a. Compare os desenhos dos passos que você criou uns com os outros e
acentue as ações corporais características de cada um.
b. Produza variações de cada desenho de passo introduzindo gestos de pernas
sem alterar o ritmo original.
c. Invente sequências de gestos de braços em cada ritmo, com o uso claro das
diversas articulações (ombro, cotovelo, punho e dedos), tanto simultânea
quanto sucessivamente.
d. Observe mudanças de direções e planos em relação a cada ritmo e produza
variações fazendo trocas de cada um pelo seu oposto, ou seja, o ir à frente é
substituído pelo ir para trás; para cima é trocado para baixo, etc.
(LABAN apud ULLMANN, 1978, p. 74)

O exercício proposto por Laban trabalha ao mesmo tempo a precisão rítmica, a


utilização do espaço, a consciência corporal, a interação/observação em grupo e o
processo criativo pelas vias do movimento. Consideramos tais aspectos fundamentais
para se tratar a corporalidade em conjunto com a música, e vamos nos valer de
ferramentas semelhantes para abordar a improvisação musical em contextos híbridos.
Devemos ainda observar que educadores que abordaram o movimento na
música – como Dalcroze e Orff – exploraram aspectos como o deslocamento no
espaço, a interpretação corporal a partir de impulsos musicais e a
criação/improvisação baseada na conexão entre movimento e música, mas foi Rudolf
Laban quem definiu conceitos que até hoje são utilizados para a consciência de
qualidades mais específicas do movimento96.

95
Neste trecho Laban refere-se a passos que marcam direções como frente, trás, diagonal, lateral, ou
desenhos como círculos, triângulos e quadrados, sendo que o autor vai propondo outros movimentos
complementares para acentuar o ritmo proposto ao longo do exercício.
96
Sobre a difusão da metodologia de Laban no Brasil, esta foi trazida pela primeira vez pela bailarina e
educadora Maria Duschenes, formando bailarinos como Denilto Gomes (1954-1994), Juliana Carneiro
91

Fechando nossas considerações sobre a corporalidade e tendo em mente todos


os contextos que abordamos nesse primeiro trecho, ressaltamos então a necessidade
de se tratar o performer/músico como um artista de corpo inteiro, imerso em sua ação
e atento para seu entorno.

3.3.Contextos formativos multiculturais

Se a MÚSICA consiste em uma variedade de culturas musicais,


então a MÚSICA é inerentemente multicultural. E se a MÚSICA é
inerentemente multicultural, então a educação musical deveria ser
multicultural em sua essência.97 (ELLIOT, 1995, p.207)

Tendo em mente a ideia de multiculturalidade citada por Elliot e considerando


nossas observações acerca da cognição, da corporalidade e do contato com outras
culturas musicais, podemos dizer que vivemos atualmente uma realidade bastante
propícia para tal abordagem. O aumento da acessibilidade à outras culturas musicais
proporcionado pelos meios de comunicação, as iniciativas multiculturais que
encontramos nos ambientes de performance musical e os trabalhos que propõem
interações multimidiáticas entre as artes podem ser expandidos em contextos
formativos para o músico adulto do ocidente.
Observamos que é possível abordar os materiais que hoje encontramos nos
cursos de formação de músicos sob um viés multicultural, propondo o diálogo com
materiais musicais diversos em interações transculturais. Retomando as ideias do
compositor Steve Reich – para quem parece ser mais interessante entender a música
de outras culturas de forma mais conceitual e ampla, pensando no diálogo com outros
materiais, procedimentos e conceitos musicais em lugar de apenas tentar reproduzir
uma determinada sonoridade – o ambiente multicultural e as interações transculturais
podem contribuir de maneira significativa para processos criativos e de performance.
Entre os pesquisadores que defenderam uma abordagem que considerasse a
diversidade cultural na educação musical – formando uma segunda geração de
educadores com propostas de renovação na educação musical a partir da metade do

da Cunha, Lala Deheinzelin, Patrícia Noronha e J.C. Violla, que trouxeram importantes contribuições
na dança. Destacamos também os estudos recentes sobre Laban elaborados pela bailarina e
pesquisadora Lenira Rengel, também ex-aluna de Duschenes, além de reflexos das concepções de
Laban em outras áreas de artes.
97
“If MUSIC consists in a variety of music cultures, then MUSIC is inherently multicultural. And if
MUSIC is inherently multicultural, then music education ought to be multicultural in essence.”
92

século XX – estão Hans Joaquim Koellreutter (1915-2005), Christopher Small (1927-


2011) e John Paynter (1931-2010). O assunto continua sendo abordado na atualidade
por educadores e pesquisadores como Keith Swanwick, Bruno Nettl, David Elliott,
Maria Teresa A. Brito, Marisa Fonterrada, Pedro P. Salles, Patricia Campbell, Jeff
Titon e Huib Schippers.
Dentre estes educadores, Swanwick foi um dos primeiros a abordar este tema,
principalmente na defesa da multiculturalidade tratada de forma não-hierárquica na
educação, reagindo contra o que ele considerou como forte preconceito incutido na
maioria das práticas de educação musical que abordam a diversidade cultural.
Segundo o educador, “professores, músicos e, até recentemente, musicólogos
do ocidente, tendem a adotar certos rótulos culturais talvez com demasiada facilidade,
por acreditarem que certos idiomas sejam intrinsecamente inferiores, ou,
eventualmente, subdesenvolvidos98” (SWANWICK, 2005/1988, p.103). Defendendo
o estudo da música de outras culturas inserida na formação do músico do ocidente,
Swanwick sugere que “músicos de excelência deveriam sair fora de seus idiomas bem
desenvolvidos, deixando a relativa segurança de suas habilidades especiais duramente
conquistadas para refinar sua sensibilidade99” (Ibidem, p.104).
Tratando ainda das necessidades de formação do músico da atualidade sob
este foco multicultural, Schippers, mencionado em nosso capítulo anterior, atenta para
o fato de que a formação que o músico recebe atualmente, muitas vezes não condiz
exatamente com o que este precisa. Como exemplo, Schippers cita o caso da
formação que jovens músicos recebem em conservatórios, que costumam preparar o
músico para uma audição para integrar uma orquestra, por exemplo, mas que
raramente preparam este músico para estar dentro desta orquestra em seu complexo
contexto social e de performance. Citando também um exemplo fora da música
ocidental, Schippers menciona que, mesmo na música clássica indiana – na qual a
improvisação representa grande parte de uma performance – os professores costumam
ensinar apenas pequenas composições ou trechos fixos de improvisação, sem nunca
tratar explicitamente da improvisação em si.

98
“Teachers, musicians and, until recently, western musicologists, have tended to subscribe to cultural
labeling, perhaps too easily believing certain idioms to be intrinsically inferior, or possibly
undeveloped”
99
“Accomplished musicians should step outside of a well-developed idiom, leaving the relative
security of hard-won special skills and finely tuned sensitivity”
93

A improvisação não parece ser uma questão fundamental na


instrução dos músicos clássicos indianos, embora a maioria destes
músicos pareça ser capaz de lidar com os desafios que esta impõe.
Se, no entanto, a experiência de cada músico pode ser diferente,
como no caso de “não indianos” aprendendo música indiana, cada
tipo de músico pode precisar de um determinado treinamento.
Mais do que nunca estes conceitos estão surgindo à luz da
dinâmica de transmissão da música e da aprendizagem, na qual
mais de uma influência cultural desempenha um importante papel.
Isso pode ser constatado através da música clássica ocidental
viajando para outros continentes, mas, talvez os casos mais
interessantes para se estudar este fenômeno sejam encontrados
quando a world music entra em conservatórios e escolas de
música, já que este fenômeno expõe totalmente o contato e o
confronto entre diferentes abordagens de performance, criação e
aprendizagem musical100. (SCHIPPERS, p.113)

Tendo em mente estas considerações, podemos dizer que o “confronto” com a


música de outras culturas pode ser enriquecedor na formação do músico, não só para
entender outras formas de se pensar a música, mas para entender melhor seu próprio
entorno. Expandindo essa ideia, podemos pensar que o diálogo com materiais e
procedimentos musicais de outras culturas promove práticas pouco abordadas em
grande parte dos cursos de graduação em música do ocidente. Defendendo a ideia de
que a formação do músico pode ser enriquecida se tratada em contextos multiculturais
e em ambientes híbridos de formação – em nosso caso, com a música de culturas não
ocidentais interagindo em contextos de formação no ocidente – mencionamos a seguir
alguns institutos de artes que apontam para essa direção em suas grades curriculares
de formação em música.

100
“Improvisation does not seem to be a key issue in the instruction of Indian classical musicians, yet
most musicians seem to be able to deal with the challenges it poses. If, however, the background of the
musician is different, as in the case of non-indians learning Indian music, he or she might need
different training. These concepts are emerging more than ever in the light of dynamics of music
transmission and learning where more than one cultural influence plays a role. This can be trough
Western classical music traveling to other continents, but perhaps the most interesting cases for
studying this phenomenon can be found when world music enters conservatories and schools of music,
as this fully exposes the meeting and confrontation among various approaches to music making and
learning.”
94

3.3.1.Institutos de Artes com foco multicultural

Um currículo musical centrado no ensino e aprendizagem prática


de uma gama razoável de culturas musicais (durante um período
de meses a anos) oferece aos estudantes a oportunidade de
alcançar um objetivo central da educação humanista: o auto
conhecimento através da "compreensão do conhecimento dos
outros”101. (TITON, 2005, p.35)

A música de culturas não ocidentais – denominada também por world music


em contextos formativos – começou a fazer parte dos programas de escolas de música
e institutos de artes a partir dos anos 60. Entre as instituições pioneiras a abordar a
música de outras culturas em seus programas estão a W esleyan University, Columbia
e California Institute of the A rts nos Estados Unidos; SOA S e Dartington College of
A rts na Inglaterra; Musikhochschule Basel na Suíça; e o Rotterdam Conservatory na
Holanda. Pelo fato de termos realizado uma vivência anterior no California Institute
of the A rts 102 , vamos discorrer um pouco sobre seu programa e sobre as
peculiaridades deste instituto, tendo por foco a abordagem multicultural e a formação
de ambientes híbridos. A CalA rts – como o instituto é mais conhecido – é uma escola
com o foco principal nas áreas de artes plásticas, dança, música, teatro, cinema e
literatura, sendo que cada uma destas áreas tem diversas especializações. Na área de
música, a escola oferece os seguintes programas103:

Programas de Performance
• Música e Dança Africana (mestrado)
• Música e Dança Javanesa e Balinesa (mestrado)
• Baixo e Guitarra (bacharelado e mestrado)
• Harpa (bacharelado e mestrado)
• Música do Norte da Índia (mestrado)
• Percussão (bacharelado e mestrado)

101
A Music curriculum centered on the praxial teaching and learning of a reasonable range of music
cultures (over a span of months and years) offers students the opportunity to achieve a central goal of
humanistic education: self-understanding through “other-understanding”.
102
Foi realizado curso de mestrado em composição e performance nessa instituição nos anos de 1999-
2000.
103
O trecho a seguir é de adaptação nossa. As informações sobre os programas da CalArts e seu
detalhamento em sua versão original encontram-se em: http://calarts.edu/academics/programs-and-
degrees
95

• Piano/teclados (bacharelado e mestrado)- com especialização em Processos


Colaborativos com Teclados (mestrado)
• Cordas (bacharelado e mestrado)
• Canto (bacharelado e mestrado)
• Sopros (bacharelado e mestrado)

Programas Específicos
• World Music (bacharelado)
• World Music/percussão (mestrado)
• Composição e performance (bacharelado, mestrado e doutorado), com
especialização em Música e Improvisação A fro-americana (mestrado)
• Composição (bacharelado e mestrado), com especialização em Práticas
Sonoras Experimentais (mestrado)
• Estudos jazzísticos (bacharelado e mestrado)
• Música e Tecnologia (bacharelado)
• Artes Musicais (bacharelado)

Para termos uma ideia do tipo de abordagem dos cursos da CalA rts, vejamos
algumas especificações sobre o programa de Composição e Performance:

O programa de Composição e Performance não enfatiza nem


prescreve nenhum estilo ou gênero musical em especial. Em vez
disso, a escola oferece um plano de curso altamente
individualizado – envolvendo um treinamento abrangente com o
que há de mais atual em composição e performance, em um curso
sob medida para os interesses criativos de cada estudante, sendo o
curso continuamente avaliado por seu corpo docente. Os estudos
deste curso podem incluir o domínio de sistemas originais de
improvisação, métodos especiais de notação, técnicas inovadoras
de performance e o estudo de novas tecnologias. Além de recitais
solo, os estudantes frequentemente organizam grupos, muitas
vezes com a participação do corpo docente, dedicados à
exploração de linguagens musicais emergentes. Corroborando
com a valorização da arte interdisciplinar proposta pela CalArts, o
Programa de Composição e Performance também apoia
fortemente os estudantes que desejam explorar e integrar seu
trabalho com outras disciplinas além da música.104 (2012)

104
“The Performer-Composer Program does not prescribe any particular style or direction or point of
emphasis. Instead, it provides highly individualized courses of study – comprehensive training regimens
in cutting-edge composition and performance that are custom-tailored to the creative interests of each
96

Observamos que, apesar dos programas de música da CalA rts oferecerem


disciplinas específicas para cada curso, estas podem ser combinadas com disciplinas
eletivas de outros programas, de acordo com o perfil de cada aluno. Isto ocorre tanto
nos programas de graduação quanto de pós-graduação. O que pudemos constatar
durante a estadia nesta instituição, foi o grande intercâmbio entre os alunos de todas
as áreas de artes em seus trabalhos. O ambiente multicultural observado nas
disciplinas oferecidas pelo departamento de música também propiciava a criação de
contextos híbridos e relações transculturais. De tal modo, verificamos que a maioria
dos alunos do departamento de música, independente de sua especialização,
frequentava as disciplinas de dança africana e javanesa; os alunos de composição do
departamento de música contemporânea frequentemente assistiam disciplinas do
departamento de estudos jazzísticos ou participavam de ensembles de gamelão
javanês; os alunos de performance, além de terem aulas de seu instrumento específico
costumavam frequentar as aulas de tabla indiana ou de percussão africana, e assim por
diante. A diversidade oferecida pelo departamento de música deste instituto refletia
diretamente sobre o processo criativo de seus alunos. Notamos que não havia
fronteiras nem divisões delimitadas entre os diversos gêneros, estilos, universos
musicais e materiais oferecidos pelo instituto. A Calarts representa até hoje um espaço
de livre experimentação, no qual cada aluno é estimulado para ir ao encontro de sua
própria forma de expressão e criação musical. Vale ainda observar que, além da
grande diversidade cultural encontrada na Calarts, o aspecto da corporalidade, da
improvisação e o incentivo de processos de criação em geral são elementos bastante
presentes e valorizados nesta instituição.
O fato da Calarts não ser apenas uma escola voltada para o estudo da world
music, mas de integrar esses estudos com outros programas de música e oferecer um
currículo flexível, faz dessa instituição um exemplo do hibridismo que temos
mencionado. Acreditamos que as relações transculturais e as interações entre diversos

student and assessed continuously by the faculty. Studies may include mastering original systems of
improvisation, special methods for notation, unique performance techniques and new music
technologies. Students in this program give recitals and other performances centered on original music.
In addition to solo performances, they often organize ensembles, sometimes with faculty participation,
that are dedicated to exploring emerging musical languages. In keeping with the value CalArts places
on interdisciplinary art, the Performer-Composer Program also strongly supports students who wish to
explore – and link their work with – disciplines beyond music.”
97

gêneros musicais pode contribuir de forma única para processos de criação,


fornecendo materiais ricos para a formação do performer e do músico em geral.

3.3.2.Iniciativas isoladas: a proposta do curso TaKeTiNa

Para exemplificar a ideia de contextos híbridos que refletem iniciativas de


caráter transcultural no que se refere a contextos formativos, citamos a proposta do
curso TaKeTiNa, embora este não esteja inserido em um contexto acadêmico de
formação em nível superior. Com este exemplo, queremos chamar a atenção para a
possibilidade de expansão desse tipo de proposta e, mais uma vez, observar que
iniciativas transculturais e interdisciplinares – que abordam a integração corpo/ritmo,
estimulam a criação musical por meio de interações multiculturais e utilizam a prática
da improvisação em suas propostas – são mais encontradas em contextos formativos
de iniciação musical direcionados para o público infantil, infanto-juvenil e adultos
sem formação musical prévia. O curso TaKeTiNa foi idealizado em 1970 pelo
músico, percussionista e educador alemão Reinhard Flatischler (1950- ) e foi criado
para estudar aspectos relativos ao ritmo tanto para músicos quanto para não músicos.
Em 1990 Reinhard e Cornelia Flatischer criaram na Alemanha o TaKeTiNa
Institute for Rhythm Education and Rhythm Research, que promove vários cursos
com o enfoque no estudo do ritmo e a abordagem deste estudo para fins terapêuticos.
O curso se vale de propostas que envolvem a coordenação motora em parâmetros
rítmicos complexos, o deslocamento no espaço e propostas que promovem a interação
em grupo. Os módulos avulsos deste curso, ministrados em várias partes do mundo,
são abertos a qualquer tipo de interessado – músicos, bailarinos, atores ou
interessados sem formação musical prévia – embora o Instituto na Alemanha ofereça
também cursos de longa duração para músicos profissionais.
Tivemos a oportunidade de vivenciar um pouco da proposta deste curso em
2011 em São Paulo, durante festival de música corporal organizado pelo
percussionista e educador americano Keith Terry em parceria com Fernando Barboza,
diretor do grupo brasileiro de percussão corporal Barbatuques. A proposta do curso
TaKeTiNa é um exemplo de ambientação híbrida já pela escolha dos instrumentos de
percussão utilizados pelos monitores do curso: bumbos, caxixis, guizos amarrados nos
tornozelos e um berimbau servindo de pedal melódico (como o drone do raga indiano)
para práticas que envolvem o canto responsorial, como o encontrado na música
98

africana. As estruturas rítmicas construídas neste curso são baseadas em processos


mnemônicos por associação silábica, similares ao que vimos no sistemas Bol e
Solkatu, encontrados na Índia. O curso propõe exercícios baseados em estruturas
rítmicas complexas e utiliza o deslocamento no espaço e a coordenação motora –
envolvendo a voz, o movimento e a coordenação palmas/pés – para sua compreensão
e fluência dentro destas estruturas. Após a compreensão de uma estrutura rítmica, é
proposto um exercício de canto responsorial, no qual o facilitador 105 improvisa
melodias criadas a partir de um pedal melódico gerado pelo berimbau – sendo este
acompanhado por outros instrumentos de percussão executados por um monitor – e o
grupo responde a essas melodias efetuando a coordenação rítmica de palmas/pés ao
mesmo tempo. Essa etapa é bastante longa e propõe uma profunda imersão do grupo
na atividade do canto responsorial, envolvendo um aspecto ritualístico semelhante ao
encontrado na música de culturas não ocidentais. Para Flatischler, o domínio do
aspecto rítmico e da corporalidade sob um viés multicultural pode transformar a
maneira de se relacionar com a música, como podemos ver no trecho que segue:

Antes de encontrar o ritmo como meu caminho, tentei aprender


música através do estudo do piano, mas algo parecia inibir o fluxo
de meus dedos e a música raramente parecia soar bem para mim.
Mais tarde, quando comecei a aprender diferentes estilos rítmicos,
minha experiência foi bem diferente, e o estudo de diversos tipos de
instrumentos de percussão ao mesmo tempo revelou uma qualidade
totalmente nova de aprendizado [...] comecei então a executar e
memorizar os ritmos com o meu corpo de modo que, após
memorizados, tudo o que tinha que fazer era transportá-los para os
instrumentos. Minha performance no piano também mudou quando
eu descobri que meus problemas técnicos eram simplesmente uma
falta de consciência corporal do ritmo106 . (FLATISCHLER, 1992,
p.92)

105
De acordo com a definição de Higgins e Campbell, o facilitador não é apenas o professor de música,
mas também o músico-terapeuta ou demais músicos envolvidos em projetos comunitários, que tenham
por objetivo promover uma interação social através da música (2010,p.6).
106
Before I found rhythm as my path, I attempted to learn music by studying the piano, but something
seemed to inhibit the flow of my fingers and the music seldom sounded right to me. Later on, when I
began learning different styles of drumming, my experience was quite different, and the study of
several types of drums at once revealed a whole new quality of learning [...] I started to play and
memorize rhythms with my body so that all then had to do was transpose them to the drums. My piano
playing also changed when I discovered that my technical problems had been simply a lack of rhythmic
body consciousness.”
99

Vejamos um exemplo de exercício proposto no curso TaKeTiNa. O exemplo


amostra o resultado de um processo que leva à coordenação entre a voz (associação
silábica para o ritmo), palmas e pés, sendo que cada parte é trabalhada separadamente
antes de se chegar ao resultado abaixo. Depois que o grupo consegue coordenar estes
elementos, inicia-se a parte de canto responsorial, sendo que as sílabas são então
substituídas pelo canto de resposta às melodias improvisadas com a nota base
estabelecida pelo berimbau.

Fig.3.2- Exercício proposto durante o curso TaKeTiNa

O propósito do curso não é adquirir a exata consciência dos parâmetros


rítmicos abordados, mas sim participar de um processo em grupo, no qual o erro e o
acerto, a estabilidade e a instabilidade, o “estar dentro ou estar fora do ritmo”, fazem
parte de um processo de integração e imersão do grupo em um percurso musical.
Mesmo assim, não pudemos deixar de notar que os participantes que possuíam
uma formação musical prévia eram os que tinham mais possibilidade de realizar tal
imersão. Isso nos faz voltar à reflexão sobre o equilíbrio entre os processos holístico e
atomístico, pensando que a consciência de cada etapa pode trazer uma imersão e uma
entrega maior quando o processo vira um todo e se traduz em performance. Sobre esta
reflexão aplicada à vivência realizada neste curso, podemos elencar as seguintes
questões para discussão:

• O participante que já tem conhecimentos prévios sobre os aspectos rítmicos


desenvolvidos é capaz de se entregar ao processo de imersão e de
envolvimento emocional proposto neste curso?
100

• O participante sem qualquer conhecimento musical prévio é capaz de realizar


com precisão e consciência os ritmos complexos propostos?
• Existe um ponto de equilíbrio entre a compreensão exata dos parâmetros
rítmicos propostos que ainda possibilite a imersão sob um estado de “êxtase”
ou de profundo envolvimento emocional dentro da proposta do curso?

Não queremos aqui estabelecer respostas exatas para tais perguntas, por
acreditarmos que o questionamento proposto é muito mais interessante em si, e que
uma única resposta não seria suficientemente satisfatória107. O que podemos observar
sobre estas perguntas é que, se considerarmos os diferentes embodiments envolvidos
em um curso como este, ou seja, considerando que cada participante pode incorporar
os aspectos rítmicos propostos à sua maneira, podemos talvez obter diferentes
respostas para as perguntas que colocamos. Dessa forma, apesar de termos observado
que as pessoas com conhecimento prévio tinham mais facilidade em compreender e
realizar o que era proposto, não podemos deixar de notar que a movimentação
corporal tornava a realização dos parâmetros rítmicos mais acessível, mesmo para os
participantes leigos. Por outro lado, observamos que músicos que não tem uma
relação tão próxima com o movimento em si, mesmo conscientes musicalmente dos
parâmetros rítmicos propostos, podem ter dificuldades para transpor aspectos rítmicos
para movimentos corporais.
Em relação ao curso TaKeTiNa, uma de suas propostas é justamente que
pessoas sem conhecimento prévio possam realizar parâmetros rítmicos complexos,
mesmo sem sua total consciência. Nas propostas que formularemos ao final de nosso
trabalho, por se tratar de um material para músicos em formação, nosso foco está
direcionado para pessoas com conhecimentos prévios. De qualquer forma, julgamos a
proposta do curso TaKeTiNa um exemplo que contribui de forma relevante para se
pensar em iniciativas transculturais em contextos formativos relacionados à
performance e à cognição em contextos híbridos.

107
Lembrando aqui da consideração de Schippers citada em nossa introdução, atentando para o fato de
que “explorar as complexidades da diversidade cultural no ensino de música, muitas vezes levanta mais
perguntas do que respostas” (2010), sendo que as perguntas tendem a se aprimorar e a gerar discussões
relevantes.
101

3.4.A improvisação na formação do músico adulto: conceitos e


iniciativas transculturais

Finalizando nossas observações acerca dos desdobramentos de materiais da


música não ocidental em contextos formativos, vamos discorrer sobre a prática da
improvisação sob este enfoque. Como vimos anteriormente, em muitas culturas não
ocidentais a improvisação é considerada como uma das práticas primordiais na
performance e na formação do músico108, mesmo que em diferentes gradações.
Transpondo essa ideia para a elaboração de contextos formativos,
encontramos muitos educadores que defendem a abordagem da improvisação sob um
aspecto multicultural e institutos de artes que abarcam alguns formatos de
improvisação para o desenvolvimento de processos criativos em geral, como
menciona a musicóloga americana Patrícia Campbell.

O objetivo primordial na formação do músico deve ser encontrar o


equilíbrio entre a “nossa música” e “a música dos outros”, entre o velho e
o novo, entre o que é notado e o que não é, entre a tradição e seu potencial
para a mudança. Improvisação dentro de um contexto de formação
musical, seja aprendendo para improvisar ou improvisando para aprender,
109
deve ser o foco central para a construção de um músico de expressão.
(CAMPBEL in: SOLIS; NETTL, 2009, p.140)

Começando pelas ideias de Campbel, vamos considerar a improvisação como


uma prática enriquecedora na formação do músico, especialmente quando tratada sob
um panorama multicultural. Citando ainda a mesma autora, Campbell observa que,
como em nenhuma outra prática, a improvisação proporciona aos estudantes uma
experiência musical integral, aonde a criação, a teoria musical, a percepção e a
performance se encontram em uma única prática (CAMPBEL in: SOLLIS; NETTL,
2009, p.133). Reforçando ainda mais esta ideia, o guitarrista e pesquisador inglês
Derek Bailey considera que a improvisação “está presente em algum grau em quase
todas as atividades musicais, portanto, a capacidade para improvisar deveria ser um

108
Observando que a improvisação também tem igual importância em diversos contextos e gêneros da
música ocidental, como no jazz, no blues, no choro brasileiro e em trabalhos ligados à música
contemporânea.
109
“The ultimate aim of a musical education may be to give balance to “our music” and “their music”,
to the old and the new music, to what’s notated and what is not, to traditions and their potential to
change. Improvisation within a musical education, whether it is learning to improvise or improvise to
learn, may be central to making an expressive musician.”
102

requisito básico de formação para todo músico110” (1993, p.66)


Assim como Campbell e Bailey, outros educadores defendem a importância da
improvisação em contextos formativos. O etnomusicólogo Bruno Nettl observa que,
mesmo que a improvisação seja encontrada em contextos diversos de performance,
essa prática até hoje não é considerada com sua devida relevância em contextos
formativos, mencionando a improvisação como “uma arte negligenciada” (1998, p.4).
Apesar da observação de Nettl, observamos que a prática da improvisação vem
ganhando certa projeção em algumas iniciativas isoladas, mas já inseridas em
contextos acadêmicos. Além da improvisação jazzística, uma das mais difundidas em
contextos formativos do ocidente, observamos o crescimento de práticas como a
improvisação livre e da improvisação dentro de contextos da música clássica
europeia.
Nos trabalhos envolvendo a improvisação livre em contextos acadêmicos,
destacamos o trabalho do prof. Dr. Rogério Luiz Moraes Costa no departamento de
música da Escola de Comunicações e Artes, ECA/USP. Entre sua diversificada
atuação relacionada à improvisação livre, destacamos seu trabalho ministrando
disciplinas sobre improvisação, a coordenação do grupo de pesquisa e performance
de improvisação livre denominado Orquestra Errante e sua participação como
pesquisador-colaborador do projeto MOBILE – um projeto que trata de estudos e
pesquisas sobre música e interatividade – coordenado pelo prof. Dr. Fernando
Iazzeta. Integrado ao projeto temático MOBILE destacamos ainda o grupo
MusicaFicta, constituído por César Villavicenzio na flauta doce, Rogério Costa nos
saxofones e flautas e Fernando Iazzetta na programação e operação do aparato
eletrônico. O grupo existe desde o final de 2008 e tem se apresentado em eventos de
música contemporânea e eletroacústica.
Citando outras iniciativas envolvendo a prática da improvisação livre e sua
contribuição para contextos formativos, mencionamos também o trabalho do músico e
pesquisador americano Tom Hall. Entre seus trabalhos mais recentes, destacamos o
livro Free Improvisation: a practical guide (2009) e o lançamento em 2012 de um site
dedicado a explorar, documentar e compartilhar materiais, informações e estudos
sobre a improvisação livre. No site recém-lançado111 e coordenado por Tom Hall, há

110
“As improvisation is present in some degree in almost all music activities it would seem that the
ability to improvise might be a basic part of every player’s musicianship.”
111
Acessível no endereço eletrônico: http://www.freeimprovisation.com
103

uma série de entrevistas e exemplos de performances de improvisação livre, sendo


que podemos observar performers e educadores de formações diversas reunidos em
pesquisas sobre esse tema. Desta forma, improvisadores de formação jazzística –
como o pianista Tim Ray, ou músicos provindos de outras culturas musicais, como o
percussionista senegalês Lamine Toure, além de artistas plásticos, dançarinos, poetas
e psicólogos, discorrem sobre a improvisação livre de forma abrangente.
Citando trechos de uma das entrevistas lançadas diariamente no site dirigido
por Tom Hall, o saxofonista, compositor e educador Jorrit Dijkstra faz menções a
respeito da diversidade dos performers envolvidos em processos de improvisação
livre e tece importantes reflexões a respeito da prática da improvisação como um
todo:

A única conclusão que podemos tirar de tudo isso é que você tem
que encontrar sua própria voz, sentindo até quais extremos você
pode ir e ainda assim se sentir confortável fazendo isso. Você deve
tocar buscando a si mesmo, encontrando a si mesmo [...] isso é o
que grandes improvisadores fazem. [...] Também podemos pensar
nas pessoas de formações diversas. Tenho ensembles onde você
sempre encontra pessoas de diferentes países, formações
diferentes e você sempre se depara com essa questão de como
você está lidando com sua própria formação e origem. Mesmo
quando há somente americanos, eles podem ser afro-americanos,
judeus americanos [...] considerando portanto os diferentes
backgrounds nós nos perguntamos: como lidar com isso em sua
própria música?112
(DIJKSTRA In:http://blip.tv/improvlive365/episode-180-extreme-
corners-6229114, 28-06-2012)

É interessante ressaltar, a partir das palavras de Dijkstra, a constatação de que,


mesmo dentro de uma determinada cultura ou território geográfico, há um confronto
de diversas biografias individuais, pensando que cada performer é um indivíduo único
e que a multiculturalidade está cada vez mais impressa em nossas origens. Pensar na
multiculturalidade em conversas de improvisação, seja esta de qualquer gênero,
parece ser então um caminho condizente com nossa atual diversidade. Ainda neste
trecho, Dijkstra chega a um dos fatores essenciais da improvisação: a busca de sua

112
“The only conclusion you can draw from all that is that you have to find your own voice and see
what extreme corners you can go into and still feel confortable doing it. Play like yourself, find
yourself […] that is what great improvisers do [...] Also about people from different backgrounds. I
have ensembles where you always have people from different countries, different backgrounds and you
constantly have this questions of how are you dealing with your own backgrounds. Even if there are
Americans, there are African Americans, Jewish Americans [...] they have different backgrounds and
we ask: how do you deal with that in your own music?”
104

própria expressão, de sua própria voz.


Citando também as iniciativas envolvendo a improvisação na música clássica
europeia, retomando uma prática que era bastante utilizada pelos compositores deste
gênero, destacamos o trabalho do prof. Dr. David Nolan no departamento de música
da Guildhall School of Music and Drama e do pesquisador americano com formação
em música e medicina Aaron Berkowitz, que no livro The Improvising Mind (2010)
estuda este tipo de improvisação e discorre sobre esta prática sob aspectos históricos,
neurofisiológicos e cognitivos. Embora o ponto central dos estudos de Berkowitz
resida na análise da improvisação clássica europeia e em sua retomada, o autor
também trata da improvisação em outros contextos culturais e observa que a
improvisação é uma ação necessária e presente em nosso cotidiano.

Quer se trate de uma conversa espontânea, ou da escolha de um


caminho alternativo para o desvio de uma rota, ou da adaptação de
nossos passos para determinadas características de um terreno
sobre o qual caminhamos, a criatividade espontânea e a interação
dentro dos limites do nosso corpo, mente e ambiente é essencial.
A capacidade de improvisar soluções criativas para situações
novas é de fato um comportamento adaptativo por excelência,
considerando a sobrevivência de um organismo dentro de um
ambiente em fluxo constante113 . (BERKOWITZ, 2010, p.182)

Citando ainda referências metodológicas recentes para a abordagem da


improvisação, além do livro de Tom Hall, citamos os livros Free to be Musical (2010)
de Higgins e Campbell e Music theory through improvisation (2010), de Sarath.
Embora estes dois últimos trabalhos abordem a improvisação em contextos
formativos de iniciação musical infantil e infanto-juvenil, verificamos contribuições
importantes para se pensar a prática da improvisação em contextos formativos para o
músico adulto. Pensando também na improvisação abordada em contextos
acadêmicos sob um enfoque multicultural, promovendo interações transculturais e a
criação de territórios híbridos, citamos a disciplina de improvisation generative
ministrada pelo professor Alain Savouret, pensada como ferramenta para o
desenvolvimento do que Savouret chama de solfége de l’audible, criada em 1993 no
Conservatório Nacional de Paris, e os cursos de extensão chamados de CPD
113
“Whether it is spontaneous conversation, taking an alternative driving route to a detour, or adapting
our steps to the grade and characteristics of the terrain over which we walk, spontaneous creativity
within the constraints of our body, mind, environment, and their interaction is essential. The ability to
improvise creative solutions to novel scenarios is indeed a quintessential adaptive behavior if an
organism is to survive in an environment constantly in flux.”
105

(Continuing Professional Development) e de Mestrado em Leadership, ambos


oferecidos pela Guildhall School of Music and Drama e criados respectivamente em
2001 e 2010. Considerando que realizamos uma vivência recente nessa última
instituição e que tal atividade teve uma relação direta com a proposta final de nosso
trabalho, detalharemos alguns aspectos dessa instituição em nosso próximo capítulo.
Finalizando nossas considerações sobre a prática da improvisação –
observando que tal prática está presente em períodos e contextos diversos da música –
ressaltamos mais uma vez a importância da utilização da improvisação para a
formação do músico adulto. Mesmo considerando que esta prática pode ser mais
associada a cursos de performance musical, referimo-nos aqui a todo e qualquer curso
de graduação em música, independente de sua área de estudo. Estamos então
sugerindo a prática e o estudo da improvisação para todo e qualquer músico que
ingressa no ensino formal do ocidente, sendo que, em nosso trabalho, o foco principal
é o diálogo e a transformação que podem ocorrer nesta prática a partir do contato com
materiais musicais de culturas não ocidentais.

xxx

Neste capítulo tratamos de algumas abordagens para a recontextualização de


materiais da música não ocidental que representam, a nosso ver, uma importante
contribuição para contextos formativos de música do ocidente. Embora tenhamos
defendido o estudo da improvisação nos cursos de graduação em música, não estamos
sugerindo necessariamente que toda formação em música deva tratar de aspectos
ligados à corporalidade e à improvisação em contextos híbridos e transculturais.
Ao mesmo tempo, estamos defendendo a ideia de que um aumento deste tipo
de abordagem em cursos de música pode ampliar o leque de possibilidades formativas
para o músico adulto. Dessa maneira, embora tenhamos encontrado exemplos de
iniciativas com o foco que sugerimos, temos que concordar com Bruno Nettl quando
este diz que práticas como a improvisação musical, embora abundantemente
encontrada em contextos de performance, costumam ser subestimadas em contextos
formativos. Enquanto a educação musical infantil e infanto-juvenil vem ganhando
novos territórios de exploração em música – envolvendo iniciativas multiculturais,
multimidiáticas e experimentais – indagamo-nos se o músico adulto não poderia se
valer também deste mesmo tipo de iniciativa.
106

Quando tratamos de aspectos relacionados à música contemporânea,


encontramos contextos formativos que apontam para ambientes de maior
experimentação. Todavia, quando pensamos nos aspectos específicos da
corporalidade e da improvisação em contextos híbridos e transculturais, pensamos que
pode ainda haver um território de exploração mais abrangente do que o encontrado
em contextos formativos da atualidade. Dando então continuidade ao nosso percurso
em direção a uma proposta que possa contribuir com a abordagem que sugerimos,
relatamos a seguir nossas experiências mais recentes que apontam para esse caminho.
107

CAPÍTULO 4

EXPERIÊNCIAS PRÉVIAS EM AMBIENTES HÍBRIDOS DE


CRIAÇÃO E PERFORMANCE

“Em grande parte, o que ouvimos,


aprendemos e ensinamos é o resultado do
que acreditamos sobre música114”

(SCHIPPERS, 2010, p.xvi)

114
“To a large extent, what we hear, learn and teach is the product of what we believe about music.”
108

Nesta parte de nosso trabalho, relataremos e comentaremos experiências


realizadas entre os anos de 2010 e 2012 que serviram como base para a elaboração
dos workshops de improvisação que apresentaremos em nosso último capítulo. A
primeira experiência que vamos descrever parte da monitoria realizada no curso de
improvisação oferecida na graduação em Música da ECA/USP, ministrado pelo
professor Rogério Luiz Moraes Costa no segundo semestre de 2010. Durante o curso,
o professor Costa elaborou um caminho para se chegar na prática da improvisação
livre baseado na ideia de percorrer alguns gêneros musicais e formatos de
improvisação. A partir desse curso elaboramos em conjunto o artigo Inside the Sound:
a path to improvisation with no borders, que foi apresentado em formato
conferência/recital no congresso PERFORMA, em Aveiro, Portugal, em maio de
2011. Mostramos aqui uma adaptação e discussão a partir desse artigo, para que se
tenha uma ideia do processo de elaboração escolhido pelo professor Costa e suas
influências neste trabalho.
A segunda experiência que vamos relatar refere-se ao curso de A ssimetrias
Temporais, ministrado pela autora no segundo semestre de 2011 na escola Espaço
Musical, sendo que algumas das ideias para a elaboração desse curso foram
reformuladas e reutilizadas nos workshops que vamos detalhar no último capítulo.
A terceira experiência detalhará as etapas do estágio de vinte dias realizado
em janeiro de 2012 na Guildhall School of Music and Drama sediada em Londres,
sendo que esta exerceu grande influência sob os aspectos conceituais e processuais
deste trabalho.
109

4.1.Inside the sound, uma proposta de construção e desconstrução


gradativa

A improvisação livre coloca na mão dos músicos participantes toda a


responsabilidade e plenitude de um fazer musical criativo e socializado, não se
apoiando necessariamente em sistemas pré-estabelecidos. No ambiente da livre
improvisação há uma intensificação do presente e o que importa é o processo. Neste
tipo de prática é possível explorar todo e qualquer aspecto do som e estabelecer um
trânsito livre entre os diferentes territórios musicais, trabalhando tanto dentro de um
determinado gênero musical quanto nas fronteiras idiomáticas, em processos de
transterritorialização115.
Mas o que dá consistência a esta prática? O que torna a improvisação
“eficiente”? Há alguns requisitos fundamentais: o desejo de criar e interagir e a escuta
intensa, reduzida, direcionada para o devir sonoro e para o som tomado como matéria
bruta da música. Partindo da ideia de elaborar um caminho que crie um ambiente
propício para a prática da improvisação livre, vamos sugerir que esta seja estudada a
partir de alguns territórios idiomáticos ou gêneros musicais. O caminho a ser
percorrido parte de gêneros conhecidos – como o blues, o jazz – para depois explorar
ambientes híbridos – como a improvisação modal em compassos assimétricos – até
chegar na livre improvisação. Nesta proposta, fornecemos ao músico um processo de
construção e desconstrução gradativa, desvinculando-o pouco a pouco de regras de
conduta e materiais musicais pré-estabelecidos, para que ele ao fim transcenda a
noção de território e se encontre livre para o devir criativo a partir de um mergulho no
som.

4.1.1.Elaboração

Como ponto de partida para elaborar nosso caminho, consideramos o fato de


que existem muitos músicos fortemente vinculados aos seus territórios musicais de
formação. Em nossa proposta, consideramos que estes músicos precisam de uma
115
Aqui referimo-nos aos processos criativos que envolvem mais de um gênero musical e o livre
trânsito entre os territórios idiomáticos que envolvem os diversos formatos de improvisação. Sobre o
termo territórios idiomáticos, este está relacionado com os elementos que traduzem e delimitam uma
identidade musical. O termo é uma alusão a Gilles Deleuze em Mil Platôs, vol.4., que utilizou a ideia
de território estendida a todas as artes e culturas.
110

preparação para chegar à improvisação livre transpassando as fronteiras destes


gêneros musicais. Nosso caminho portanto tendeu a ir da nota para o som, do jogo
com regras para o jogo sem regras, da improvisação idiomática para a improvisação
livre. Como exemplo desse tipo de abordagem, podemos citar a transição que ocorreu
nos anos cinquenta, representada pelo free-jazz, como reportada por Derek Bailey, em
entrevista com Steve Lacy. Nessa entrevista Lacy refere-se ao grande impacto
causado pelo saxofonista Ornette Coleman sobre a forma como ele lidou com a
improvisação no jazz:

De um lado havia todos os músicos acadêmicos, os


instrumentistas de bebop, os instrumentistas de blues, as pessoas
famosas, e eles faziam coisas que pareciam evoluir pouco a pouco.
Mas quando Ornette aparecia em cena, era o fim das teorias. Eu
me lembro que naquela época ele dizia, cuidadosamente: “Bem,
você tem apenas uma quantidade de espaço e pode colocar o que
você quiser lá dentro116”. (Lacy apud Bailey 1992, p.55)

Assim como Coleman, outros improvisadores de jazz passaram a buscar sua


própria sonoridade na prática da improvisação sem se ater a uma estética sonora pré-
estabelecida, sendo que muitas vezes “a história dos músicos se confunde com a
própria história do jazz” (BERENDT, 1975, p.58). Ainda sobre essa busca pela
própria sonoridade no jazz, Berendt discorre sobre a ideia da personalização do timbre
no jazz em oposição à homogeneização do som da orquestra clássica/romântica, como
vemos abaixo:

A concepção geral de “beleza musical” europeia moldou uma


sonoridade que se aplica a todo instrumentista, seja ele solista ou
integrante de um conjunto […] Quando se iniciou a edificação do
jazz, os executantes, mesmo usando instrumentos oriundos da
tradição europeia, não procuraram se integrar em nenhum conceito
estético, ou modalidade sonora já existente. Cada músico criava
seu próprio som […] Por essa razão, o jazz conheceu, em sua curta
história, tantos diferentes padrões de sonoridades, tantos diferentes
toques e entoações vocais e tantos estilos. (1975, p.113-114)

A proposta Inside the sound não tem por objetivo estudar especificamente as
sonoridades construídas no estilo jazzístico, mas a ideia da busca de uma sonoridade

116
“On the one hand there were all the academic players, the hard-boppers, the ‘blue-note’ people, the
‘prestige’ people, and they were doing stuff which had slight progressive in it. But when Ornette hit the
scene that was the end of the theories. I remember at that time he said, very carefully, “Well, you just
have a certain amount of space and you put what you want in it”.”
111

própria, ou mesmo do som em sua essência117, permeia as atividades sugeridas aos


participantes. Pensando portanto em construir um caminho que proporcione este tipo
de encontro do intérprete com sua própria sonoridade na prática da improvisação,
seguimos para a experiência que realizamos.

4.1.2.Atividades propostas

Em um primeiro momento de nossa prática de improvisação consideramos


tanto aspectos culturais e históricos quanto gestos musicais típicos de cada gênero
musical, para depois extrairmos o que foi essencial de cada experiência, expandindo
conceitos estruturais para além de seus territórios de origem. Vale lembrar que a
menção aos formatos de improvisação aqui propostos são apenas referenciais, sendo
que cada item pode ser amplamente aprofundado em suas respectivas práticas de
improvisação.

Improvisação no Blues

Em nossa proposta, escolhemos o blues como ponto de partida pelo fato de


que podemos – na sua estrutura harmônica mais simplificada – utilizar apenas uma
única configuração escalar para a improvisação, além do blues ser um gênero bastante
familiar para se iniciar esta prática. Nesta primeira proposta de improvisação
enfatizamos os procedimentos de improvisação relacionados ao aspecto melódico,
com o foco nas frases típicas do blues e a utilização da escala blues e suas
particularidades. Também prestamos especial atenção às possibilidades de ação de
cada instrumentista em relação às peculiaridades de cada instrumento, sendo que a
improvisação foi proposta individualmente sob o suporte harmônico do grupo. Neste
primeiro estágio é importante deixar claro que não seria possível abordar com total
profundidade os gestos típicos do blues, já que estes demandam uma imersão e um
tempo maior de estudo. Nosso propósito aqui foi estabelecer uma primeira
consciência formal dentro da improvisação (no caso, uma estrutura formada por doze

117
Além de nos reportarmos novamente à ideia do fato musical e da música, ela mesma – expostas em
nossa introdução – podemos relacionar a ideia de uma essência sonora à ideia de objeto sonoro e de
escuta reduzida propostos por Pierre Schaeffer em seu Tratado dos objetos sonoros (1994), que tratam
a escuta e o som livres de seus significados e de seus contextos.
112

compassos) e trabalhar com uma única configuração escalar como primeira


experiência. Propusemos então algumas improvisações baseadas na estrutura mais
simples do blues, como vemos no exemplo:

Fig.4.1- Estrutura básica do blues

Quando propusemos esta primeira experiência, notamos que alguns


participantes achavam difícil aterem-se apenas às notas da configuração da escala
blues, sendo que este material parecia limitar o espectro criativo de alguns
participantes. Por outro lado, outros participantes lidaram com a limitação como uma
possibilidade de saber se expressar, mesmo com poucos materiais. De qualquer
forma, o questionamento advindo desta primeira proposta fez com que os
participantes partissem em busca de sonoridades e de materiais de expressão na
prática da improvisação.

Improvisação em standards de jazz

No início da história do jazz, assim como em outros territórios idiomáticos


aonde ocorre a prática da improvisação, os músicos costumavam se reunir para tocar
juntos e trocar informações musicais. Esses encontros eram ambientes prolíficos para
a prática da improvisação, muitas vezes feita a partir dos standards118 de jazz, que
acabaram servindo como estruturas básicas para esta prática.

118
Os standards eram, em sua maioria, músicas compostas por músicos do show business americano,
como Cole Porter, Rodgers and Hart, Gershwin etc., que os jazzistas interpretavam e utilizavam como
base para improvisar.
113

Ao mesmo tempo, os processos de interpretação e improvisação


combinados tem o potencial de levar os músicos muito próximos
de criar uma outra peça a partir do tema original, no âmbito de
outra melodia. Tal situação ressalta que as peças tocadas pelos
músicos de jazz não serviam apenas como um fim em si, mas
funcionavam como veículos para a invenção. 119 (BERLINER,
1994, p.71)

Mesmo com a predominância do pensamento melódico/harmônico na


improvisação dos diferentes períodos do jazz, questões relativas ao timbre e à busca
de uma sonoridade única também foram amplamente exploradas, sendo que músicos
como o pianista Thelonius Monk, o saxofonista Charlie Parker e o trompetista Chet
Baker, entre muitos outros, criaram suas próprias relações de sonoridade com seu
instrumento. Pensando neste aspecto, partimos para nossa segunda experiência de
improvisação. Considerando que nosso território de ação no módulo anterior estava
previamente delineado na dimensão horizontal, ou seja, na utilização de uma única
configuração escalar, aqui enfatizamos um pouco mais o aspecto harmônico/vertical,
utilizando mais variações harmônicas e melódicas durante a improvisação. Mesmo
considerando que o jazz possui uma estrutura harmônica mais complexa do que a do
blues, também começamos a prestar especial atenção ao aspecto tímbrico que pode
surgir nesse tipo de improvisação. Neste módulo a improvisação foi proposta também
individualmente, com o suporte rítmico/harmônico do grupo em um processo
semelhante ao do blues, mas começamos a prestar atenção também na dimensão
coletiva da improvisação e nas interações do grupo como um todo. Propusemos nesse
item algumas improvisações sob standards de estrutura harmônica mais simples,
como o tema Tune up, de Miles Davis. Considerando que nas progressões do tipo II-
V-I jazzísticas é possível utilizar a configuração escalar do primeiro grau (I) como
material de improvisação, em Tune up, utilizamos três escalas maiores nesta etapa
(Ré Maior, Dó Maior e Sib Maior), como exemplificado adiante:

119
“At the same time, the combined operations from interpretation to improvisation have the potential
to carry musicians more than halfway to creating a new song within the framework of another melody.
Such situations underscore the extent to which pieces serve jazz musicians not simply as ends in
themselves but as vehicles for invention.”
114

Fig.4.2- Tune up, peça utilizada para estudo da improvisação no jazz

Nesta etapa, pelo fato de nem todos os participantes estarem familiarizados


com a improvisação jazzística, inicialmente estes ficaram mais concentrados em
dominar as mudanças escalares ao longo de Tune Up e, consequentemente, estar
cientes do aspecto formal deste standard. Ao longo desta proposta, porém, alguns
participantes começaram a explorar mais possibilidades em relação à busca de novas
sonoridades em seu instrumento. Nesta etapa o grupo já se conhecia melhor e pode
observar algumas particularidades de cada instrumentista na relação com seu
instrumento. Ao final de cada improvisação os participantes começaram a comentar
mais sobre estas particularidades, colaborando para um processo que levaria primeiro
a um auto conhecimento de cada participante, para depois passar à interação do grupo.

Improvisação modal em compassos assimétricos

Este módulo representou o início das experiências que culminaram nos


workshops que vamos detalhar ao final deste trabalho de doutoramento. Como vimos
anteriormente no segundo capítulo deste trabalho, podemos encontrar materiais e
procedimentos bastante complexos para a improvisação provindas da música não
ocidental tais como a estrutura do raga indiano, as configurações escalares do
gamelão javanês e a polirritmia africana. Além destes elementos, podemos pensar
também na ideia de improvisação circular e não discursiva, que nos leva para um
caminho um pouco diferente dos módulos anteriores.
115

Pensando em criar um território híbrido de improvisação, utilizamos alguns


materiais como configurações escalares modais, medidas assimétricas e a utilização
de ostinatos como base para as propostas de improvisação. Neste estágio trabalhamos
na interface de alguns idiomas, tentando imprimir um distanciamento gradual de
parâmetros de improvisação em seu contexto de origem até chegarmos à
improvisação livre. Neste módulo também enfatizamos aspectos mais relacionados às
propriedades do som, como timbre e construções de texturas sonoras. Aqui o grupo
fornecia uma estrutura rítmica e harmônica para que cada participante explorasse os
materiais propostos individualmente.

Fig.4.3- Ostinato utilizado para improvisação em compassos assimétricos

Fig.4.4- Ostinato utilizado para improvisação em compassos assimétricos

Nesta etapa podemos verificar um certo hibridismo com os materiais e


procedimentos utilizados nas propostas anteriores. Não há mais uma preocupação em
seguir uma forma, com um determinado número de compassos, mas existe um
formato rítmico fixo que não é tão comum nos gêneros anteriores, o que gera um
estado de concentração semelhante ao das outras etapas de improvisação. Quanto à
configuração escalar, voltamos a propor apenas uma única escala, o que poderia
representar uma limitação, mas a combinação entre as configurações modais e os
compassos assimétricos forneceu possibilidades de exploração de materiais
expressivos que contribuíram para explorar outras sonoridades.
Segundo alguns participantes, esta etapa trouxe outros estímulos para a
improvisação e contribuiu de forma relevante para se chegar a um primeiro
“mergulho no som”, que objetivou a proposta Inside the sound como um todo. Nesta
etapa havia também a atenção para a relação individual de cada instrumentista com
seu instrumento, sendo que a proposta de improvisar sob compassos assimétricos
trouxe alguns desafios para os participantes. Nem todos foram bem sucedidos, à
116

princípio, neste tipo de improvisação baseada em assimetrias rítmicas, mas o


elemento do ostinato – feito por todo o grupo durante as improvisações individuais –
trouxe uma interação musical maior entre os participantes e acabou fornecendo um
bom suporte para vencer esta dificuldade inicial.

Improvisação livre com base rítmica fixa de ritmos brasileiros

Estabelecendo um outro contexto híbrido para a prática da improvisação, neste


módulo sugerimos a improvisação sem delimitação de materiais expressivos – no caso
configurações melódicas ou formas harmônicas – sob um contexto rítmico fixo, em
bases pré-gravadas de ritmos brasileiros. A despeito da predominância do aspecto
rítmico nesta experiência, os participantes puderam vivenciar o som em seus mais
diversos aspectos. A base rítmica – mesmo mantendo um vínculo idiomático com a
performance – foi aberta o suficiente para servir como meio para explorar um amplo
espectro de experiências sonoras na prática da improvisação, aproximando-nos pouco
a pouco da prática da improvisação livre. Aqui propusemos a improvisação individual
sob esta base rítmica enquanto o restante do grupo observava e depois comentava
sobre a improvisação de cada participante.
Nesta etapa, temos a utilização livre de materiais expressivos diversos sob
uma estrutura rítmica fixa, o que, se por um lado trouxe novos estímulos para a
prática da improvisação, por outro, mostrou-se também desafiadora em alguns
sentidos. Alguns participantes encontraram bastante dificuldade em seguir os ritmos
propostos conjuntamente com uma utilização livre de materiais de expressão diversos
(como escalas, modos, acordes, clusters, sons e ruídos) e outros depararam-se com a
“utilização livre” como um empecilho, ou seja, o fato de não haver um material pré-
estabelecido também começou a gerar uma certa instabilidade e desconstrução no
processo criativo. A maioria dos participantes começou a improvisação utilizando
pequenas frases melódicas e progressões harmônicas (no caso de instrumentos com
este recurso) até conhecer melhor a base rítmica utilizada. A partir de um dado
momento, quando os instrumentistas se sentiram mais familiarizados com a base
rítmica, alguns começaram também a explorar outros materiais como os sons mais
ligados ao ruído e às possibilidades de extensão em cada instrumento. No caso da
proposta Inside the sound, a instabilidade provocada pelo uso livre dos materiais era
desejada, e o questionamento criado a partir deste momento foi relevante para se
117

pensar nas características dos formatos de improvisação e na busca de uma expressão


sonora dentro (ou fora) destes formatos.
Neste etapa surgiram perguntas sobre qual improvisação seria mais eficaz, que
tipo de material expressivo poderia trazer mais eficácia neste caso (notas, frases ou
sons? sequências de acordes, tramas sonoras ou ruídos? que tipo de material se
encaixaria melhor neste contexto rítmico?). Não houve um consenso sobre estas
questões, mas parecia haver participantes que atingiram uma maior fluência e
“eficácia” durante a improvisação, de acordo com depoimento dos próprios
participantes.

Improvisação livre

O guitarrista inglês Derek Bailey, um dos representantes da prática da


improvisação livre, menciona justamente a dificuldade de se definir o que é
improvisação livre. Bailey destaca que, um dos elementos que dificulta tal definição é
o fato de que, nesta prática, músicos com formações muito distintas e com atitudes
musicais totalmente diversas são colocados em um mesmo ambiente, como descreve
o autor:

A música totalmente improvisada […] sofre com a dificuldade de


ser definida, como sua própria resistência à ser rotulada indica. É
uma situação lógica: a música totalmente improvisada é uma
atividade que abrange muitos tipos diferentes de instrumentistas,
muitas atitudes diferentes em relação à música, muitos conceitos
diferentes do que a improvisação pode ser, sendo difícil abarcar
tudo isso em uma única definição [...] a falta de precisão sobre a
sua definição aumenta ainda mais se nos concentrarmos no
acontecimento em si. A diversidade é sua característica mais
consistente. Não tem nenhum compromisso estilístico ou
idiomático. Não tem idioma sonoro pré-estabelecido. As
características da música totalmente improvisada são estabelecidas
apenas pela identidade sonoro-musical das pessoas que estão
tocando120. (BAILEY, 1992, p.83)

120
“Freely improvised music [...] suffers from the confused identity which its resistance to labeling
indicates. It is a logical situation: freely improvised is an activity which encompasses too many
different kinds of players, too many different attitudes to music, too many different concepts of what
improvisation is, even, for it all to be subsumed under one name [...] The lack of precision over its
naming is, if anything, increased when we come the thing itself. Diversity is its most consistent
characteristic. It has no stylistic or idiomatic commitment. It has no prescribed idiomatic sound. The
characteristics of freely improvised music are established only by the sonic-musical identity of the
persons playing it.”
118

Independente de sua definição, entretanto, nos diversos gêneros nos quais a


improvisação ocorre, e, especialmente no ambiente da improvisação livre, há uma
grande valorização do processo, mais do que do resultado em si. No caso da
improvisação livre, é também possível explorar múltiplos aspectos do som e ainda
estabelecer um trânsito livre entre diferentes territórios musicais.
Voltando ao curso ministrado, quando propusemos a prática da improvisação
livre para os participantes, foi importante considerar que os materiais expressivos, os
procedimentos, as técnicas e os sistemas do qual estes se valeram em sua formação
musical estavam presentes em sua biografia. Entretanto, para a prática da
improvisação livre consideramos que é necessário desestruturar esses materiais,
técnicas e sistemas tradicionais, criando um novo ambiente para a improvisação.
Nesta prática, propusemos portanto que elementos como a escuta atenta, a
interação com o grupo e a relação com o próprio instrumento sejam essenciais para
sua realização. O que importava nesse processo era a plena exploração do aspecto
sonoro e a comunicação estabelecida em grupo. De alguma forma, todas as
linguagens e territórios explorados na proposta deste curso de improvisação estiveram
presentes na biografia de cada participante, mas nossa intenção principal foi que este
nosso caminho tenha sido um parâmetro para um processo de construção e
desconstrução. Nosso objetivo aqui foi explorar o som e sua ação nos processos
criativos na improvisação livre em grupo, tendo por objetivo principal a exploração
dos elementos que propulsionam qualquer processo de improvisação: o desejo, a
atenção, a escuta, a interação e o poder de criação.

A livre improvisação é, para nós, uma possibilidade no mundo


contemporâneo: cada vez mais integrado e onde as "membranas" –
linguísticas, culturais, sociais – e as fronteiras, devido à intensa
interação, eventualmente se dissolvem ou ao menos perdem sua
rigidez. Neste contexto, os territórios se interpenetram e os
sistemas interagem cada vez mais, de maneira que os idiomas
tornam-se mais permeáveis. (COSTA, 2003, p.28)

Quando chegamos a esta prática, observamos que houve uma mudança de


conduta dos participantes nas atividades propostas, principalmente pelo fato da
improvisação neste módulo ter sido realizada em grupo, diferentemente dos outros
módulos, nos quais o grupo (ou uma gravação de bases rítmicas, no caso da etapa
anterior) fornecia um suporte para a improvisação individual. O fato do grupo todo
119

estar em busca de uma sonoridade com a utilização livre de materiais expressivos


despertou outros estados de atenção e concentração, outrora delimitados pelos
materiais propostos anteriormente. Na prática, foram realizadas algumas
improvisações que, aos poucos, foram levando o grupo para um processo no qual os
materiais em si não eram mais tão importantes. Ao final de cada improvisação foi se
alcançando algo como uma nova dimensão musical dentro do processo, na qual um
processo bem sucedido significava estar atento para o entorno e sair em busca de uma
sonoridade do grupo, o que parece ter sido alcançado, embora não aprofundado, pelo
pouco tempo que havia para realizar esta etapa.
Discutimos também, ao final de todo o processo, sobre a possibilidade de se
elaborar um caminho de desconstrução apenas pelo aprofundamento da prática da
improvisação livre, sem nos valermos de outros gêneros e formatos de improvisação,
o que também nos pareceu passível de experimentação. De qualquer forma, a
proposta Inside the Sound forneceu um importante material de estudo e reflexão sobre
a improvisação e as possibilidades de abordagem para a realização desta prática.
Sobre as influências desta experiência em nosso trabalho, dois aspectos
influenciaram as propostas que apresentaremos no próximo capítulo:

• O fator construção/desconstrução, incluindo a ideia de instabilidade e de


recontextualização de materiais expressivos.
• A interação entre diversos idiomas através de sua possível permeabilidade, tal
qual nos menciona o professor Costa.

Em nossa proposta, também iremos nos afastando gradativamente de um


contexto original para criar ambientes híbridos de improvisação, sendo que tais
ambientes deverão ser permeáveis com outros formatos de improvisação, como a
experiência que descrevemos aqui. Por fim, após esta experiência, consideramos a
ideia de um processo movido pelo desejo121, pela escuta atenta, pela potência criativa
e pela interação em grupo fundamental para qualquer prática de improvisação em seus
diversos formatos.

121
Aqui mais uma vez nos reportamos à ideia de Costa – citada no nosso segundo capítulo – na qual “o
engajamento efetivo e afetivo” possibilita a ação do performer, que deve estar imerso no desejo (2003,
p.83).
120

4.2.O curso de Assimetrias temporais

Consideramos importante citar o curso ministrado no segundo semestre de


2011 na escola Espaço Musical, intitulado A ssimetrias Temporais, parte do programa
de Formação de Músicos Educadores (FME) oferecido pela escola. No decorrer dessa
atividade foi possível elaborar e testar um vasto material para a prática da
improvisação, principalmente os materiais diretamente vinculados à improvisação a
partir de parâmetros rítmicos complexos. No curso, ministrado pela autora, foram
criados ostinatos para a improvisação em medidas assimétricas e foram aplicadas
propostas que se utilizaram da corporalidade para a internalização de parâmetros
rítmicos, além de processos criativos em grupo que foram desenvolvidos a partir
desse enfoque. A improvisação nesse caso foi proposta individualmente, em duplas,
em pequenos grupos e para o grupo todo, sendo que os participantes que não
realizavam a improvisação observavam e comentavam o processo de improvisação
dos colegas. No curso de A ssimetrias Temporais a improvisação passou por quatro
meios de expressão: o corpo, a voz, o teclado e o instrumento de cada participante.
Muitas das propostas realizadas durante a disciplina foram aprofundadas nos
workshops que vamos descrever adiante.
Como exemplo, vamos detalhar uma das propostas do curso: a descrição de
uma aula para desenvolver a improvisação em um “blues assimétrico”, criado
especialmente para essa disciplina. Essa foi uma das primeiras experiências do grupo
a partir de um idioma musical conhecido com alguns parâmetros rítmicos que
utilizamos para a improvisação.

4.2.1. Etapas da aula para improvisação no “blues assimétrico”

Objetivos

Nosso objetivo nessa aula foi o de fornecer elementos para que os alunos
pudessem improvisar nessa combinação métrica, utilizando uma única configuração
escalar (a mesma escala blues ilustrada no artigo Inside the sound, agora em Dó) com
a ajuda de alguns padrões rítmicos descritos nas etapas a seguir.
121

Etapa 1

Primeiro realizamos a forma básica do “blues assimétrico” nos teclados (a sala


para essa disciplina dispunha de um teclado para cada aluno), que no caso era
composto por uma combinação métrica de 5/4 + 4/4, como vemos no exemplo:

Fig.4.5- “Blues assimétrico” elaborado como base para improvisação

Fig.4.6- Escala utilizada para improvisação no “blues assimétrico”

Etapa 2

Nesta etapa propusemos um exercício com pequenos padrões rítmicos,


realizado com passos e palmas. A princípio realizamos o exercício apenas com
palmas, logo depois de tocar o blues nos teclados. A seguir os alunos realizaram o
mesmo exercício com palmas e andando pela sala, sendo que nas mudanças de 5 para
4, foi solicitado aos alunos que mudassem de direção. Por exemplo: 5 passos para
frente, 4 para trás, 5 para o lado direito, 4 em direção a um colega, e assim por diante,
enquanto faziam os padrões rítmicos com palmas. Cada padrão rítmico foi realizado
duas vezes, sendo os padrões realizados os seguintes:
122

Fig.4.7- Padrões rítmicos de apoio para improvisação no “blues assimétrico”

Etapa 3

Na etapa seguinte, realizamos os mesmos padrões acima na forma do blues


assimétrico, resultando no seguinte exercício (o exemplo mostra o blues realizado
com o padrão rítmico 2):

Fig.4.8- Padrão rítmico realizado na forma no “blues assimétrico”

Etapa 4

Neste exercício o grupo formou um círculo ao redor do piano (aqui apenas o


professor tocava a base do blues assimétrico). Foi pedido aos alunos que, dentro da
escala blues, cada um escolhesse uma nota para cantar, sendo que esta poderia variar
a cada compasso. Nesse exercício o grupo cantava todos os padrões rítmicos do
mesmo modo do exercício anterior, mas com as notas soando ao mesmo tempo,
variando as alturas dentro da escala blues, formando “clusters” no decorrer da forma,
como ilustra a figura abaixo (o exemplo mostra o blues com improvisação vocal em
grupo realizada com o padrão rítmico 3):
123

Fig.4.9- Padrão rítmico para improvisação vocal coletiva sob a base do “blues assimétrico”

Etapa 5

Na última etapa desse processo, cada aluno voltou para o teclado e a


improvisação foi sugerida individualmente, sendo que os outros alunos podiam
realizar a base blues ou apenas escutar o colega, enquanto o professor seguia fazendo
a base. Para aqueles que tiveram mais dificuldade de improvisar no teclado nesse
contexto rítmico, foi sugerido que continuassem a utilizar os padrões rítmicos dos
exercícios anteriores, escolhendo notas da escala blues, até conseguirem improvisar
livremente dentro da combinação métrica proposta.
As etapas que descrevemos aqui foram realizadas no período de um mês,
totalizando cinco aulas sobre o assunto. Desde a primeira etapa do “blues
assimétrico”, verificamos que a combinação métrica sugerida provocou uma
instabilidade inicial, por não se tratar de um blues em seu formato mais tradicional, ou
seja, em um compasso quaternário. Por isso mesmo, houve a necessidade de muitas
repetições da base principal sugerida como acompanhamento, para que os
participantes internalizassem a estrutura como um todo. Com este mesmo propósito
124

de internalização da estrutura rítmica proposta, consideramos que a segunda etapa foi


fundamental para que isto ocorresse, o que acabou por sedimentar a ideia de que um
processo vivenciado pelo corpo, ou corporificado, gera novas affordances122 para o
processo de improvisação. Uma das contribuições mais significativas ao ministrar a
disciplina A ssimetrias Temporais foi portanto a constatação de que a abordagem da
improvisação pela corporalidade pode configurar em um procedimento eficaz para a
internalização dos parâmetros123 rítmicos propostos na improvisação, além do fato da
improvisação, neste caso, também estar sendo utilizada como ferramenta para a
aquisição de habilidades. Também a utilização de pequenos padrões rítmicos como
base para uma improvisação sob uma estrutura rítmica mais complexa forneceu aos
participantes uma base estável para a improvisação, ou seja, no caso da
impossibilidade de expressar-se fluentemente dentro desta estrutura rítmica, era ainda
possível improvisar utilizando como base um padrão rítmico associado ao uso livre de
uma configuração melódica. Observando portanto os resultados práticos alcançados
neste curso, constatamos que houve um primeiro momento de instabilidade e
estranhamento, pela recontextualização de um elemento conhecido (um blues em
formato assimétrico) seguido por um segundo momento de absorção deste novo
contexto. Neste segundo momento, verificamos que fornecemos aos participantes
materiais de apoio para este tipo de improvisação baseada em assimetrias rítmicas,
mas nenhum dos participantes alcançou total fluência nesta improvisação. Assim
como a proposta Inside the Sound, percebemos que é preciso tempo para absorver
propostas de improvisação sob contextos diversos, mas, ainda assim, consideramos a
proposta bem sucedida como primeiro contato com as assimetrias rítmicas.
A ideia da improvisação sob estruturas fixas – baseadas em combinações
métricas e outros procedimentos rítmicos mais complexos desenvolvidos neste e em
outros cursos que ministramos – está diretamente relacionada com nossa proposta
final.

122
Lembrando então das ideias detalhadas em nosso capítulo anterior sobre as relações da
corporalidade com os processos cognitivos.
123
Em nosso trabalho, o termo parâmetro rítmico designa um conjunto de materiais rítmicos que,
quando associados, estabelecem uma organização ou uma estrutura rítmica. O termo padrão rítmico
designa um único material que pode ser trabalhado isoladamente, como um ostinato, por exemplo.
125

4.3.Estágio na Guildhall School of Music and Drama, Londres

A Guildhall School of Music and Drama é um instituto de artes situado em


Londres, especializado na formação artística nas áreas de Música e Teatro. Nos
programas de Mestrado que a instituição oferece, existe o curso de Leadership, que
tem seu foco principal no desenvolvimento de processos criativos para trabalhos
realizados em grupo. O curso envolve atividades multiculturais, como encontros de
compositores com músicos africanos e workshops em comunidades e institutos de
artes diversos ao redor do mundo.

O programa de Leadership inicialmente fornece uma formação de


base para desenvolver técnicas de trabalho em processos
colaborativos, performance estendida e técnicas de comunicação e
liderança em grupo. Isso inclui o estudo da improvisação, da voz,
do corpo e da percussão, a exploração de enfoques não europeus e
folclóricos para práticas artísticas; introdução à projetos
multidisciplinares, composição em grupo; projetos para
desenvolver repertórios de criação, performances e organização de
workshops em contextos diversos. A partir desta experiência, os
alunos planejam, dirigem e apresentam seu próprio material em
uma variedade de grupos e projetos comunitários. Os alunos terão
a chance de trabalhar em projetos interdisciplinares e
multiculturais em parceria com artistas e performers provindos de
formações e áreas diversas, culminando em performances de
trabalhos inéditos.124 (GUILDHALL SCHOOL OF MUSIC AND
DRAMA, 2012)

O mestrado em Leadership nasceu de um módulo que ainda hoje é chamado


de CPD (Continuing Professional Development) e que hoje serve como curso
introdutório e de preparação ao curso de mestrado. O curso CPD tem por objetivo
proporcionar ferramentas para o desenvolvimento dos seguintes aspectos:

124
“The Leadership Programme primarily provides a foundation for fundamental skills in creative
collaboration, flexible performance and also communication/leadership skills. This includes a focus on
improvisation; voice; body and percussion skills; exploration of non-European and folk-based
approaches to arts practice; introduction to cross-arts collaboration; group composition; creative and
repertoire-linked projects; performance and workshop-leading for different contexts. Building on this
experience, students will devise, direct and perform their own material in a variety of ensemble and
community settings. Students are then given the opportunity to work on Inter-Disciplinary and Inter-
Cultural Collaborations with artists and practitioners from a range of disciplines and backgrounds,
culminating in performances of newly created work.”
126

• Liderança de Workshops
• Composição em grupo
• Trabalhos de criação colaborativa
• Improvisação
• Habilidades vocais e percussivas

O curso é atualmente dividido em quatro partes, que são ministradas em


quatro finais de semana dispostos ao longo de um semestre. Os módulos do curso
CPD são divididos da seguinte maneira:

Módulo 1- Introdução ao curso


• Aquecimentos
• Improvisação
• Percussão
• Técnica vocal
• Composição em grupo

Módulo 2- Processos Criativos


• Pontos de partida para processos criativos
• Organização de materiais musicais
• Técnicas para desenvolvimento de materiais musicais
• Trabalhando com modos
• Processos criativos em grupo
• Abordagens sobre trabalhos com estrutura e forma
• Explorando a musica não-cíclica
• Elaborando um plano de trabalho para processos criativos

Módulo 3- Improvisação
• Como partir de exercícios de aquecimento para processos colaborativos de
criação
• Técnicas de percussão
• Técnica vocal
• Construindo ostinatos e linhas melódicas
127

• Trabalhando com sequências harmônicas


• Improvisação

Módulo 4- Liderança de workshops


• Organização e regência
• Organização do grupo
• Sugestão de pontos de partida
• Preparação e planejamento
• Arranjo para bandas e grupos vocais de habilidades diversas

A experiência do curso CPD foi vivenciada pela autora pela primeira vez em
125
2001 e uma segunda vez em janeiro de 2012, em intercâmbio de vinte dias como
parte de sua pesquisa de doutorado. Nessa última experiência, além do módulo do
curso CPD, foram realizadas outras atividades que descrevemos e comentamos em
seguida.

Experiência no curso CPD

O módulo realizado no curso CPD teve como seu foco principal a discussão
sobre pontos de partida para processos criativos e o desenvolvimento das habilidades
de liderança para trabalhos em grupo. Neste módulo, os participantes foram
solicitados diversas vezes para liderar e organizar um processo criativo a partir de
uma ideia dada. Como exemplo, podemos citar a seguinte proposta:
O grupo foi dividido em três partes, numa disposição em círculo. Para cada
parte foi ensinada um pequeno ostinato vocal, para realizarmos simultaneamente nas
três vozes propostas. A tarefa que nos foi proposta a seguir foi que voluntários (um
por vez) se posicionassem no meio do círculo e sugerissem uma mudança em uma
destas vozes, conduzindo esta mudança até que obtivéssemos um novo resultado
sonoro em conjunto. Esta mudança podia ser melódica, rítmica ou uma combinação
de ambas. Cada voluntário então se posicionava no meio do círculo e realizava sua
mudança, sendo que, ao final desta atividade, o grupo chegou a um resultado sonoro

125
O curso CPD, oferecido na Guildhall School of Music and Drama com duração de oito meses na
época, foi realizado sob a vigência da Bolsa Virtuose em Composição, concedida pelo Ministério da
Cultura no ano de 2001.
128

completamente distinto do inicial. Nesta atividade um dos propósitos da mesma era


trabalhar o aspecto de liderança dos participantes, sendo que cada voluntário deveria
encontrar sua própria maneira de conduzir o grupo, além de criar uma mudança
sonora sem muito tempo para elaborá-la. Ressaltamos então os paralelos da busca
pela sonoridade com a busca de uma maneira de comunicá-la claramente em um
processo de criação em grupo, incluindo a busca de um gestual próprio de regência e
liderança. Muitos dos participantes tiveram dificuldade em realizar essa proposta, não
se sentindo seguros para executá-la, mas o suporte oferecido pelo grupo e a
ambientação de cooperação impressa pelos professores envolvidos foi favorável para
que todos os participantes tomassem a iniciativa de ir no meio do círculo executar a
proposta. Uma dificuldade bastante comum era a clareza da regência no aspecto
rítmico, o que nos levou também a uma proposta que trabalhasse com a aquisição de
habilidades nesse sentido.
Outro ponto abordado no curso foi o desenvolvimento de processos criativos a
partir de um processo colaborativo, no qual alguns participantes voluntários
propunham materiais musicais e organizavam a construção e elaboração de uma
composição em grupo. Nas peças que foram construídas era bastante comum a
utilização de ostinatos melódicos e rítmicos, cadências harmônicas modais,
harmonizações feitas a partir de abertura de vozes sugeridas pelos participantes e
sessões de improvisação como parte do material final. Aqui mais uma vez ressaltamos
a disposição do grupo para realizar processos colaborativos em geral, sem nenhuma
inclinação de gosto ou valor para um determinado material musical. As propostas
possuíam características muito diferentes umas das outras, sendo que algumas eram
sugeridas através de notação musical (um trecho fixo para que se trabalhasse a partir
dele), ideias para arranjos vocais, pequenos trechos instrumentais ou mesmo uma
única linha melódica que seria trabalhada pelo grupo. Em todas as propostas, a
participação do grupo alterou bastante as ideias iniciais, sendo que o grupo como um
todo se apropriou de cada peça, na qual já não importava mais sua autoria, mas sim o
processo que levava à construção e à pesquisa de novas sonoridades para o grupo.

Participação no curso Creative Ensemble

O curso Creative Ensemble faz parte do mestrado em Leadership, e consiste


em um grande espaço para o desenvolvimento de processos criativos. Em cada sessão
129

dessa disciplina um aluno apresentava seu projeto de composição, sendo que os


demais participantes estavam disponíveis para realizar experiências a partir dessa
proposta e ajudar o aluno na realização e conclusão de seu projeto. As sessões eram
monitoradas por professores do curso e muitas vezes professores de outros
departamentos eram convidados para colaborar nesse processo.
No período em que passamos na escola, presenciamos a colaboração de Oren
Marshall, instrumentista de tuba na orquestra BBC de Londres, de reconhecida
competência nas áreas de jazz e música africana, e de Dinah Perry, professora do
departamento de artes cênicas da Guildhall School of Music and Drama. As duas
participações contribuíram muito para o desenvolvimento do trabalho criativo dos
alunos, sob óticas completamente distintas. Em especial, aqui observamos que a
participação da professora Perry contribuiu com elementos bastante relevantes e
inusitados, trazendo à tona a importância de intervenções de artistas de áreas distintas
em processos criativos. A professora Perry abordou a composição sob aspectos que os
alunos não haviam pensado anteriormente, desde os objetivos de cada aluno com suas
composições – como ela observava a composição e como o aluno queria que esta
fosse entendida, por exemplo – até sugestões sob a disposição espacial da peça para o
momento da performance. Sua contribuição fez com que alguns trabalhos tomassem
um rumo completamente diferente do inicial, sendo que pudemos presenciar a
apresentação final de algumas dessas composições. Para termos uma ideia da
intervenção da professora Dinah Perry, citamos uma das sessões de criação que
pudemos presenciar:
Nessa sessão cada grupo tinha que elaborar uma composição a partir de um
pequeno texto de livre escolha. Este texto poderia ser extraído de algum material
existente ou criado pelo grupo. Em um dos grupos com o qual a professora Perry
trabalhou, foi trazido o seguinte trecho, elaborado pelos participantes:

"Daqui de cima, todos parecem brinquedos de corda”126

O grupo, formado por três cantoras, uma flautista, um oboísta e um pianista,


apresentou uma versão vocal a três vozes feita a partir do trecho. Em seguida, a

126 "From above, everybody look like wind-up toys"


130

flautista, o oboísta e o pianista faziam uma improvisação instrumental que dava


continuidade ao canto. Amostramos o trecho em versão vocal apresentada pelo grupo:

Fig.4.10 - Arranjo vocal elaborado pelos alunos da Guildhall School

A professora Perry então pediu para que o grupo discorresse sobre o que
gostaria que a peça representasse, que imagem cada um via a partir da frase que havia
escolhido. A imagem geral desse grupo era de pessoas observando o movimento de
uma grande cidade, do distanciamento, de uma certa melancolia que o tema trazia.
Dinah Perry pediu então para que os demais alunos que assistiam ao processo
de criação desse grupo incorporassem uma personagem, pensando em pessoas que
andam pela cidade. Depois, a professora Perry pediu que, enquanto o grupo realizasse
a peça, as outras pessoas interferissem e interagissem sonoramente utilizando as
personagens como inspiração, movimentando-se entre os instrumentistas. Depois
dessa aula, os integrantes desse grupo repensaram a peça e trabalharam
separadamente até o momento de apresentação final desse processo, um evento que
reuniu composições de todos os alunos do mestrado em Leadership. No dia da
apresentação a plateia foi convidada a andar no palco e assistir a apresentação em
movimento, interagindo sonoramente se assim o desejasse. As cantoras realizaram a
primeira parte da peça em cima de cadeiras e, na improvisação instrumental que se
seguia, os dois instrumentistas de sopro andavam também ao redor do palco, junto
com os ouvintes/participantes da plateia, e convidavam todos para se sentarem
livremente no palco até a improvisação terminar. Ao final, o som e o movimento
foram cessando aos poucos, até que todos – músicos e plateia – sentissem o final da
peça como um todo. Observamos que a plateia envolveu-se totalmente com a
performance desse grupo, sendo que houve uma sensação geral de que todos estavam
participando da peça colaborativamente, interferindo em sua sonoridade final.
Tanto neste processo que acabamos de descrever, quanto nos outros
131

vivenciados na Guildhall School, chamaram nossa atenção as transformações


ocorridas nos processos criativos em geral. Em um primeiro momento, observamos as
mudanças que envolvem a interação em grupo a partir de uma ideia individual, depois
as mudanças sugeridas por um artista de outra área que não a música e, por último, a
intervenção do ouvinte, que, neste último processo, também influenciava o resultado
sonoro final 127 . Nestas mudanças observamos também como o aspecto da
espacialidade pode alterar o resultado sonoro, ou mesmo gerar novos estímulos –
tanto do instrumentista como do ouvinte – para uma peça já concebida.

Acompanhamento de trabalhos colaborativos e workshops em escolas


de ensino fundamental e médio

Pudemos acompanhar também alguns projetos de criação musical realizados


em escolas, em geral escolas públicas localizadas nas periferias de Londres. Nestes
projetos sempre participavam uma equipe formada por alunos do curso de Leadership,
junto com alguns professores, como a coordenadora Sigrun Griffiths e o professor Jan
Hendrickse. Sempre com a ideia colaborativa em mente, eram formados corais e
bandas de instrumentos, além de projetos para criação de canções a partir da vivência
das crianças, sob orientação da equipe. A equipe sempre começava os processos de
criação a partir de uma ideia ou material musical trazido para aquele dia, deixando um
espaço para a colaboração do grupo para se chegar a um resultado final, culminando
sempre em alguma apresentação ou evento 128 . Como exemplo do processo,
presenciamos a apresentação de um coral formado pelos alunos de uma escola de
ensino fundamental e seus pais, a partir de canções do folclore da Islândia trazidos
pela coordenadora Sigrun Griffiths, e da formação de um grupo de percussão que se
inspirou em materiais rítmicos da música indiana trazidos por uma aluna do curso de
Leadership para construir seus trabalhos. Nestes projetos havia sempre uma
preocupação em abarcar uma certa pluralidade cultural a partir de materiais de
culturas musicais diversas, sendo estes trazidos tanto pelos coordenadores destas
atividades quanto pelos participantes e seus familiares. Tal característica
127
Podemos também associar esta ideia da intervenção do ouvinte na performance aos nossos estudos
sobre o tarab árabe e os formatos de conferência/recital que citamos no segundo capítulo.
128
É interessante observar que durante nossa estadia em 2001/2002, um grande evento em homenagem
aos 50 anos de coroação da rainha foi coordenado pela Guildhall School of Music and Drama, num
projeto em que as crianças elaboraram canções para serem apresentadas durante a comemoração, com
o apoio de uma equipe de músicos.
132

proporcionava também um maior envolvimento dos grupos nas atividades musicais


propostas, já que todos se sentiam “coautores” do que estava sendo realizado.

Participação nos ensaios do grupo Creative Sinfonietta

O Creative Sinfonietta é um grupo formado por ex-alunos do curso de


Leadership, que se reúne semanalmente para trocar ideias sobre processos criativos e
para realizar propostas de criação, como sessões de improvisação livre e processos
colaborativos de composição. Durante nossa visita ao grupo tivemos a oportunidade
de sugerir propostas rítmicas para iniciar processos criativos, que foram
posteriormente aplicadas nos workshops ministrados para os alunos do curso de
Leadership. As propostas que trouxemos nesse encontro foram mescladas com
propostas de improvisação livre que foram sugeridas pelos integrantes do Creative
Sinfonietta. Esta vivência foi bastante importante para experimentar e amadurecer a
ideia dos workshops que foram aplicados na semana seguinte a partir da resposta e da
contribuição deste grupo. O grupo que visitamos estava bastante acostumado a
participar de processos criativos que envolvem a improvisação e a composição em
caráter colaborativo, em grande parte pela formação e vivências oferecidas pelo curso
da Guildhall School. Mais uma vez vivenciamos a disposição dos músicos com
formação no curso de Leadership para participar de processos de criação de caráter
colaborativo, sendo que pudemos observar as primeiras interações com os materiais
que trabalharíamos em seguida com os alunos de mestrado. Neste caso, nossa
proposta serviu como mote para um processo de improvisação livre, o que nos fez
caminhar em direção a uma proposta que acreditamos ser permeável com outros
formatos de improvisação.

4.3.1.Aplicação dos workshops e contribuição para a pesquisa

Após participar das atividades mencionadas, conhecer melhor o trabalho


realizado na Guildhall School e conhecer mais de perto o perfil dos alunos do curso
de Mestrado em Leadership, pudemos aplicar dois workshops nessa instituição, que
detalharemos mais adiante. A estadia nessa instituição trouxe uma contribuição
marcante para o desenvolvimento de nossa pesquisa, trazendo novos materiais
musicais para a realização e para a organização de processos criativos. A experiência
133

na Guildhall School trouxe também novos desafios para que elaborássemos uma
proposta original e inédita, considerando que os alunos dessa instituição já estavam
bastante familiarizados com diversos formatos de processos criativos. Sob este
aspecto, veremos que nossa proposta contém materiais e procedimentos que trazem
uma abordagem diferenciada para a prática da improvisação, especialmente pelo
enfoque que demos à corporalidade aplicada a esta prática e pela ludicidade trazida
pela utilização do espaço.

xxx

Todas as experiências descritas aqui tiveram influência direta nos workshops


que descreveremos no nosso último capítulo. A convivência com professores,
pesquisadores e músicos em formação durante processos que envolveram a criação
suscitou questionamentos importantes, dos quais destacamos:

• A utilização híbrida de materiais expressivos para a elaboração de práticas que


envolvem processos criativos.
• A utilização da corporalidade e do movimento associados à ideia de embodied
mind para abordar processos criativos que envolvem a cognição rítmica.
• Os estímulos gerados na improvisação sob parâmetros rítmicos complexos
• Os procedimentos que incentivam a interação de um grupo em processos de
criação colaborativos, como a improvisação em grupo.
• Os resultados sonoros quando há a participação de artistas de mais de uma
área em processos de criação musical.

Conjuntamente com as experiências e vivências profissionais descritas em


nossa introdução, acrescidas ainda às ideias e conceitos discutidos neste trabalho até
aqui, julgamos ter construído o suporte teórico e prático que envolve nosso trabalho,
que, a partir deste momento, afunila-se em propostas para a prática da improvisação
musical.
134

CAPÍTULO 5

A CONEXÃO CORPO/INSTRUMENTO SOB PARÂMETROS


RÍTMICOS COMPLEXOS: UMA PROPOSTA PARA AMBIENTES
HÍBRIDOS DE IMPROVISAÇÃO

“Temos um dever para com a música, ou


seja, inventá-la”

(STRA V INSKY , 1971, p.72).


135

Neste último capítulo vamos detalhar os princípios, os objetivos gerais e as


atividades propostas em quatro workshops de improvisação que elaboramos a partir
dos estudos apresentados aqui e das experiências discutidas no capítulo anterior.
Os workshops que vamos descrever tiveram por foco principal a improvisação
em contextos híbridos sob a base fixa de estruturas rítmicas complexas e a
internalização de tais estruturas pelas vias do movimento. Ao final da descrição dos
workshops, vamos comentar os resultados da aplicação dos mesmos, tecendo
considerações a respeito dos temas abordados a partir de alguns depoimentos dos
músicos participantes. Para melhor compreender e visualizar as atividades propostas
nos workshops, além da descrição dos mesmos, preparamos um registro
videográfico, que pode ser encontrado no endereço http://goo.gl/JvcF5. Neste
endereço são encontrados cinco vídeos: um de apresentação, contendo trechos de
todos os workshops ministrados, e mais quatro vídeos, contendo um resumo das
atividades propostas nas etapas de cada workshop. Alguns dos momentos destes
vídeos estarão também referenciados na descrição dos workshops a seguir.
136

5.1.Princípios de elaboração dos workshops

Após os estudos descritos nas partes anteriores, incluindo o trabalho dos


compositores do século XX e seu diálogo com os materiais da música de culturas não
ocidentais, os desdobramentos da abordagem multicultural e transcultural em
contextos formativos e a ideia da corporalidade aplicada a processos cognitivos
relativos à performance, neste momento nos deparamos com a seguinte questão:

Como contribuir de maneira consistente e colaborativa para a prática da


improvisação, pensando em participantes adultos, em plena formação musical?

Não quisemos instituir, sobremaneira, uma abordagem não inclusiva, ou seja,


uma abordagem que não trabalhasse de maneira permeável com outros formatos de
improvisação. Quisemos sim abarcar uma proposta que conversasse em um rico
diálogo com outras abordagens, que fosse passível de transformação e que estivesse
sempre em movimento constante. Partindo deste princípio e considerando as
influências da música não ocidental sob a ótica descrita nas partes anteriores deste
trabalho, buscamos elementos que consideramos menos utilizados para a prática da
improvisação sob contextos híbridos. Nestes elementos incluímos parâmetros rítmicos
complexos, configurações escalares fora do padrão tonal, a ideia da improvisação
não-discursiva e a utilização da corporalidade e da espacialidade aliadas à cognição
como ponto de partida. Nossa escolha partiu do princípio de que o diálogo e a
recontextualização de tais elementos pode trazer uma contribuição para o
desenvolvimento de processos criativos em geral. A palavra workshop é aqui utilizada
a partir das ideias que surgiram em torno desse conceito na década de 60:

O termo workshop está diretamente relacionado com a


experimentação, a criação e o conceito de trabalho coletivo (em
oposição ao individual), essenciais ao desenvolvimento das
habilidades musicais de maneira pessoalmente e socialmente
gratificantes. Esse termo foi reaproveitado pela educação há meio
século atrás e queremos recuperar seu sentido inicial: trabalhar
assuntos relativos à expressão musical e encontrar soluções (através
da experimentação com materiais sonoros ) que satisfaçam o
coletivo129. (HIGGINS; CAMPBELL, 2010, p.5)

129
“As a term, workshop is associated with experimentation, creativity, and group (vs. individual)
work-concepts that are critical to the development of musical skills and understanding in ways that are
137

Os workshops que vamos amostrar baseiam-se principalmente na


improvisação sob parâmetros rítmicos complexos. Durante os workshops, os
participantes vivenciam propostas de improvisação utilizando-se do movimento e da
coordenação motora em ambientes rítmicos diversos, para depois passarem para a
prática da improvisação com o mesmo enfoque em seu próprio instrumento, transição
esta que denominamos Conexão corpo/instrumento. Baseados nesta proposta, todos os
quatro workshops estão divididos nas seguintes etapas, com pequenas variações:

• Etapa 1: propostas que abordam a corporalidade e a coordenação motora


associadas à incorporação de um primeiro parâmetro rítmico, estabelecendo
um primeiro nível de concentração e de interação em grupo.

• Etapa 2: proposta com o parâmetro rítmico tema do workshop, com a


exploração da espacialidade, da coordenação motora e da improvisação
utilizando o movimento no espaço.

• Etapa 3: introdução do aspecto configurativo escalar e contextos harmônicos


combinados com propostas que envolvem parâmetros rítmicos. Esta etapa
pode ser realizada a partir da transformação de elementos da música não
ocidental, como a releitura de uma canção africana ou a utilização de padrões
rítmicos da música indiana, como veremos adiante.

• Etapa 4: proposta de improvisação vocal e percussiva em grupo a partir dos


parâmetros rítmicos trabalhados nas propostas anteriores.

• Etapa 5: proposta de improvisação no instrumento, individualmente, em


duplas, em pequenas formações e em grupo, a partir do trabalho realizado
anteriormente.

both personally and socially gratifying. The term was hijacked by education half-century ago, and we
are reclaiming and putting it to use for what is originally intended: working out the pieces of a musical
expression. And coming up (through experimentation with musical sounds) with a solution that
satisfies the collective group.”
138

Os objetivos gerais de nossos workshops, resumidamente, são:

• Estabelecer a comunicação em grupo em propostas de improvisação, a partir


de um ambiente convidativo, porém desafiador no aspecto rítmico.

• Desenvolver a acuidade rítmica e musical através de propostas de


improvisação em contextos híbridos e transculturais.

• Explorar o movimento no espaço e a coordenação motora aliados a processos


de cognição musical, abarcando as ideias de embodied mind, affordances e
cognição situada, detalhadas em nosso terceiro capítulo.

• Estabelecer a conexão corpo/instrumento em processos que envolvam


parâmetros rítmicos complexos, ou seja, quando no instrumento, o músico tem
uma referência prévia e corporificada para a improvisação nesses parâmetros.

• Promover a utilização de materiais musicais que consideramos menos


utilizados nas práticas de improvisação no contexto de formação do músico
em nível superior.

• Trazer à tona a ludicidade implícita pela utilização do movimento no espaço e


incorporá-la na prática da improvisação instrumental em grupo.

5.2.Descrição dos workshops

Os workshops que vamos descrever foram aplicados na seguinte ordem


cronológica: o primeiro workshop foi aplicado no congresso em Aveiro e em alunos
da escola Espaço Musical, o segundo foi aplicado em workshop ministrado no
Departamento de Música da ECA/USP em dezembro de 2011 e também em alunos da
escola Espaço Musical na mesma época. O terceiro e quarto workshops foram
aplicados durante o estágio de vinte dias em janeiro de 2012, na Guildhall School of
Music and Drama.
139

WORKSHOP 1

Foco central do workshop

No workshop 1, nosso foco central foi fornecer materiais para improvisar sob
um parâmetro rítmico composto por uma combinação métrica formada por
3/4+3/4+4/4. Inicialmente trabalhamos a proposta com exercícios que envolveram o
movimento e a coordenação motora, para depois trabalharmos o mesmo parâmetro a
partir da releitura e transformação de uma canção africana.

Etapas

1.Preparação corpo/ritmo

Neste primeiro exercício propusemos a realização de alguns padrões rítmicos


em um contexto onde um pulso é subtraído a cada dois compassos, começando pelo
compasso de 5/4 até chegar em 2/4. Os participantes andam para frente e para trás,
usando a pulsação de cada compasso (por exemplo: se o compasso for de 5/4, os
participantes dão cinco passos para frente e cinco para trás), sendo que os padrões
rítmicos descritos abaixo foram realizados com palmas. Dependendo da resposta do
grupo, este mesmo exercício pôde ser proposto em formato de cânone, podendo ainda
ser realizado por dois grupos ou mais, com diferentes medidas de defasagem.

Fig.5.1- Exercício de preparação corpo/ritmo


140

2.Improvisação vocal a partir de um ostinato corporal

Neste segundo exercício propusemos uma improvisação vocal em grupo a


partir de um ostinato com um padrão rítmico realizado no compasso de 7/4 (3/4+4/4).
Este ostinato foi realizado em forma de percussão corporal (fig. 5.2), sendo
que os participantes caminhavam pelo espaço livremente, realizando o ostinato e a
improvisação vocal ao mesmo tempo. Em um primeiro momento sugerimos que os
participantes realizassem apenas o ostinato, até se sentirem confortáveis para que, aos
poucos, tentassem realizar a improvisação vocal, coordenando o movimento com
suas vozes. Neste exercício a improvisação vocal era livre, podendo ser conduzida por
estímulos vocais mais percussivos ou mais melódicos, dependendo do grupo com o
qual estávamos trabalhando.

Fig.5.2- Ostinato corporal para improvisação

3.Improvisação a partir de uma canção adaptada para compassos


assimétricos

Depois das propostas de aquecimento e preparação para a improvisação,


propusemos um exercício baseado em uma melodia africana da Tanzânia, chamada
Kalêle 130 . Nosso primeiro passo nesta proposta foi cantar um trecho da canção
original, como descrito abaixo:

Fig.5.3- Canção Kalêle

Depois de cantar a versão original, apresentamos a versão “composta” da


mesma canção, que construímos a partir de uma estrutura de dois compassos ternários
130
Em um dos cursos realizados na Guildhall School, a doutoranda participou de um trabalho de
composição com músicos da Tanzânia, onde a melodia de Kalêle foi ensinada para o grupo.
141

e um quaternário (3/4+3/4+4/4), usando pés e palmas em lugares determinados


(fig.5.4). Propusemos então que cada participante tentasse improvisar usando a voz e
ritmos corporais enquanto o grupo cantava o Kalêle composto. Quando o grupo era
muito numeroso, propusemos que a improvisação fosse feita pelo grupo todo, nos
espaços entre cada Kalêle, também com dois compassos ternários e um quaternário.
Sugerimos que a escala utilizada para essa improvisação fosse a de Fá Dórico,
embora outras configurações escalares e elementos de improvisação fossem sempre
bem vindos. Neste estágio de nossa proposta, observamos que os grupos que
passaram por essa experiência adquiriram uma boa interação entre corpo, ritmo,
movimento e improvisação, como podemos verificar aos 2:40 min. do vídeo
W orkshop 1.

Fig.5.4- Variação de Kalêle, utilizada como base para improvisação

4.Improvisação em compassos assimétricos no instrumento

Nesta última etapa sugerimos que a mesma improvisação que realizamos com
a melodia Kalêle fosse realizada com instrumentos musicais. Aqui a melodia
funcionava como um pequeno ostinato, sendo que, dependendo dos instrumentistas
envolvidos, acrescentamos elementos harmônicos de acordo com a sugestão dos
participantes. Propusemos também a utilização de configurações escalares fora do
padrão tonal – como escalas hexafônicas, escalas pentatônicas e configurações modais
– para a realização da improvisação. A improvisação nesta etapa também foi
construída a partir de compassos assimétricos, dando continuidade ao trabalho de
preparação realizado nos primeiros exercícios. Esta improvisação foi realizada
individualmente e em grupo. Quando proposta individualmente, o grupo tocava a
melodia/ostinato e cada músico improvisava de acordo com uma ordem previamente
142

estabelecida, mantendo o mesmo número de compassos de ostinato/melodia e de


silêncio. As palmas e os pés do Kalêle, que antes eram parte da improvisação vocal,
nesta etapa foram percutidos no instrumento, nos espaços entre os ostinatos/melodias.
Na improvisação em grupo, todo o grupo tocava o ostinato/melodia do Kalêle e
improvisava no mesmo intervalo de tempo. Nesta improvisação sugerimos que os
participantes explorassem aspectos referentes à exploração de sonoridades, aspectos
fraseológicos e, principalmente, a interação com o grupo, mesmo quando a
improvisação era proposta individualmente ou em duplas, como observamos aos 5:00
min. do vídeo W orkshop 1.

WORKSHOP 2

Foco central do workshop

O foco central deste workshop foi a improvisação sob um parâmetro rítmico


construído pela combinação métrica de 13/8+13/8+10/8+10/8+7/8+7/8, estabelecendo
um parâmetro de diminuição de três colcheias a cada dois compassos. Para auxiliar no
processo de internalização desta estrutura rítmica foram utilizados fonemas do
sistema Solkatu, do sul da Índia (fig.5.6), mencionado em nosso segundo capítulo.
Neste workshop foi também sugerida a utilização de configurações modais
expandidas, como a configuração do modo mixolídio com 4ªaum e 6ªm (Dó, Ré, Mi,
Fa#, Sol, Láb, Sib) na improvisação sob cadências harmônicas modais (neste caso: I e
Vm).

Etapas

1.Preparação corpo/ritmo a partir de um parâmetro de diminuição

A fim de que os participantes cheguem gradativamente à estrutura métrica


supra citada de forma gradativa, neste primeiro exercício introduzimos um pequeno
parâmetro de diminuição, baseado na estrutura métrica de 5+4+3+2, 4+3+2, 3+2.
Dispondo os participantes em um grande círculo, pedimos que estes
acentuassem o tempo forte desta estrutura com palmas, marcando a pulsação com os
pés. Depois acrescentamos a acentuação feita com dois sons (duas colcheias) e
143

pedimos que o exercício fosse realizado com deslocamento livre, sendo que os passos
continuavam marcando a pulsação. Em seguida, pedimos aos participantes que
interagissem entre si e marcassem essa acentuação (com um som e dois sons da
segunda vez) com movimentos em dupla, mudando de dupla à medida que se moviam
pela sala.

Fig.5.5- Exercício utilizando parâmetro rítmico de diminuição

2.Estrutura rítmica com fonemas extraídos da música indiana

Nesta etapa introduzimos o parâmetro rítmico que foi trabalhado


posteriormente na improvisação, utilizando os fonemas do sistema Solkatu. Fizemos
este exercício em círculo, apenas utilizando a voz. Em seguida, dividimos o grupo em
dois e propusemos a realização desta estrutura em cânone, com defasagem de seis
colcheias.

Fig.5.6- Estrutura rítmica tema do workshop 2

3.Improvisação utilizando voz e movimento

Neste exercício, primeiro realizamos uma combinação do parâmetro rítmico


de diminuição alternando os fonemas do exercício anterior com um padrão rítmico
composto por palmas e pés (fig.5.7). Fizemos o exercício na disposição do grupo em
144

círculo e em seguida pedimos para que a parte dos pés fosse feita com deslocamento
livre pela sala. Quando a estrutura rítmica foi internalizada, propusemos a
improvisação vocal, percussiva ou pelo movimento no espaço sob o trecho em que
antes realizamos o padrão rítmico. Como não estabelecemos nenhuma configuração
escalar para a improvisação, nesse momento o material utilizado na voz era livre,
incluindo melodias, frases faladas, frases percussivas e demais possibilidades, como
podemos observar em 1:40 min. do vídeo W orkshop 2.

Fig.5.7- Estrutura criada para improvisação utilizando o movimento e percussão vocal

4.Improvisação vocal com configurações escalares modais expandidas

Neste exercício estabelecemos algumas configurações escalares para serem


utilizadas sob uma mesma base harmônica na improvisação (I e Vm). As
configurações que propusemos eram derivadas do modo mixolídio, sendo a
configuração utilizada formada pela variação deste modo com 4ªaum e 6ªm (Dó, Ré,
Mi, Fa#, Sol, Láb, Sib). Assim como no exercício anterior, primeiro realizamos uma
estrutura de duas partes: uma contendo os vocábulos dentro de uma configuração
escalar e outra com o mesmo padrão rítmico do exercício anterior, utilizando a mesma
escala proposta para a improvisação no mesmo trecho. Na estrutura proposta também
estava contido o parâmetro rítmico de diminuição sugerido desde o início, sendo que
fizemos a base ao piano (fig.5.9) e os participantes dispuseram-se em círculo ao redor
145

dele. Depois de repetirmos a estrutura completa até sua internalização, pedimos que o
espaço antes utilizado para a configuração escalar fosse utilizado para a improvisação
vocal em grupo, sempre voltando para os vocábulos ao final de cada ciclo. Para os
participantes que tiveram mais dificuldade em improvisar sob a estrutura proposta,
sugerimos que variassem as notas da configuração escalar, mantendo o padrão rítmico
da segunda parte (compassos 3-4, 7-8, 11-12 da fig.5.8), até que se sentissem
confortáveis para realizar mais variações em sua improvisação.

Fig.5.8- Estrutura para improvisação vocal

5.Improvisação no instrumento

Na última etapa deste workshop, todos os participantes realizaram as mesmas


etapas do exercício 4 em seus instrumentos. Na primeira parte desta última etapa, os
instrumentistas podiam realizar a configuração escalar, a base harmônica (podendo
ser apenas a linha do baixo ou os acordes propostos) e variações que os levassem
pouco a pouco para a improvisação. A princípio utilizamos sempre a volta para os
vocábulos ao fim de cada ciclo, para depois, também pouco a pouco, transformarmos
a estrutura toda em improvisação (mantendo o parâmetro de diminuição, em um ciclo
de 12 compassos). Para iniciar esta etapa, sugerimos um acompanhamento de base
(fig.5.9), sendo que, aos poucos, cada participante ia encontrando outras formas de
elaborar esta base fixa para depois realizar a parte de improvisação, como amostrado
146

aos 6:22 min. do vídeo W orkshop 2.

Fig.5.9-Acompanhamento sugerido para improvisação no instrumento

WORKSHOP 3

Foco central do workshop

Neste workshop nosso foco específico foi fornecer materiais para trabalhar a
improvisação a partir de dois parâmetros que ocorriam simultaneamente, o que vamos
chamar aqui de improvisação sob combinações métricas simultâneas, que também
podem ser consideradas como um tipo de cross-rhythm 131 . Nesse workshop
trabalhamos com agrupamentos ternários e quaternários para criar duas métricas: uma
em 15/4 (4+4+4+3) e outra em 10/4 (3+3+4). Para que as duas métricas pudessem
ocorrer simultaneamente, tendo um ponto de encontro no começo de um de seus
ciclos, precisamos de dois compassos da primeira combinação ocorrendo com três
compassos da segunda combinação métrica, perfazendo um total de 30/4 no ciclo
completo. Como material escalar para a improvisação, elaboramos dois pequenos

131
Aqui estamos utilizando o termo cross-rhythm a partir do estudo feito por David Locke sobre o
ritmo Gahu da tribo Ewe na música africana (LOCKE, 1998, p.34 e 35)
147

ostinatos em modo mixolídio (Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Sib), utilizando as duas
métricas e sugerimos também o modo mixolídio com 4# (Dó, Ré, Mi, Fá#, Sol, Lá,
Sib) e a configuração pentatônica com 6m (Dó, Ré, Mi, Sol, Láb 132 ) para a
improvisação instrumental.

Etapas

1.Trabalhando com nomes

Com a disposição do grupo em um grande círculo, sugerimos um exercício de


“pergunta e resposta” utilizando os nomes dos participantes. O exercício consistia em
sempre dar quatro passos para frente e três para trás. Ao caminharmos para frente em
quatro tempos, uma pessoa do grupo dizia seu nome. Ao caminharmos para trás todo
o grupo respondia com o nome dessa pessoa, utilizando apenas três tempos e assim
por diante, até que todos os participantes dissessem seu nome.

2.Movimento e improvisação no espaço

Nesse exercício introduzimos as duas métricas em 15/4 e 10/4, utilizando


sempre uma parte fixa, com um ritmo pré-determinado que vamos descrever abaixo, e
uma parte em que os participantes podiam explorar o espaço e interagir livremente
entre si. Sendo assim, o exercício tem uma parte fixa e uma outra improvisada, indo
sempre de uma para outra durante todo o exercício. Primeiramente todo o grupo
realiza o exercício com cada uma das métricas, depois dividimos o grupo em dois,
para que o exercício seja realizado utilizando as duas métricas simultaneamente. Aos
3:50 min. do vídeo W orkshop 3, podemos ver os dois grupos dispostos em círculo,
intercalando os ostinatos e a improvisação sob as duas métricas simultaneamente.

132
Esta configuração escalar foi criada a partir de uma espécie de variação maior da escala pentatônica
javanesa chamado de pélog.
148

Fig.5.10- Ostinato em 15/4 com parte fixa e trecho


para improvisação utilizando o movimento

Fig.5.11- Ostinato em 10/4 com parte fixa e trecho


para improvisação utilizando o movimento

3.Ostinatos para improvisação vocal

Aqui criamos dois ostinatos que ocorriam simultaneamente nas duas métricas
que trabalhamos no exercício anterior. Primeiro, todo o grupo realizava o primeiro
ostinato com a voz. Quando o ostinato fosse internalizado, sugerimos que todo o
grupo fizesse duas sequências do ostinato (dois compassos de 15/4) e duas sequências
de improvisação vocal, podendo utilizar elementos percussivos e configurações
escalares sugeridas. Repetimos o mesmo procedimento com o segundo ostinato,
sendo que dessa vez o grupo realizava três sequências do ostinato (três compassos de
10/4) e três sequências de improvisação em grupo. Ao final deste exercício dividimos
novamente o grupo e realizamos os dois ostinatos com as respectivas improvisações
simultaneamente. Observamos aqui que o início da parte fixa e da parte improvisada
dos dois ostinatos sempre coincidem.

Fig.5.12- Ostinato em 15/4 com parte melódica no modo mixolídio


149

Fig.5.13- Ostinato em 10/4 com parte melódica no modo mixolídio com 4#

4.Improvisação no instrumento

No início da proposta de improvisação no instrumento, repetimos os ostinatos


do exercício anterior já com o grupo dividido em dois – cada grupo realizando um dos
ostinatos – até que todos estivessem realizando os dois ostinatos simultaneamente em
seus instrumentos de forma fluente. Os instrumentistas podiam também fazer
contribuições rítmicas e harmônicas para complementar os ostinatos. Neste último
exercício propusemos uma improvisação com materiais melódicos e rítmicos de uso
livre sob uma base fixa formada a partir dos ostinatos, sendo que nosso objetivo era
voltar para os dois ostinatos simultâneos ao final da improvisação. Aqui deixamos que
os instrumentistas utilizassem materiais musicais livremente, sem determinar padrões
rítmicos ou escalares, como podemos ver aos 8:40 min. do vídeo W orkshop 3. Aqui
nosso objetivo era deixar que os participantes vivenciassem a improvisação como um
evento que dependia da sensibilização musical, da comunicação e da interação do
grupo.

Fig.5.14- Ostinatos em 15/4 e em 10/4 ocorrendo simultaneamente


150

WORKSHOP 4

Foco central do workshop

Este workshop foi elaborado a partir das últimas experiências realizadas com
os alunos da Guildhall School. O foco central desse workshop foi expandir ao
máximo a ideia da utilização do movimento no espaço aliado à propostas de
improvisação. Neste workshop utilizamos combinações rítmicas ternárias e
assimétricas, sendo que, mesmo as propostas de improvisação no instrumento foram
também associadas ao movimento, como veremos a seguir.

Etapas

1.Movimento corporal sob parâmetros rítmicos ternários

Nesse primeiro exercício propusemos dois padrões rítmicos realizados com


palmas em um compasso ternário (3/4), enquanto os pés inicialmente marcavam a
pulsação. Em seguida, pedimos que os participantes explorassem todo o espaço da
sala enquanto realizavam os padrões rítmicos com palmas, sendo que os passos
podiam continuar marcando a pulsação do compasso ternário (representado por
semínimas), ou movimentando-se em suas derivações: o agrupamento ou as
subdivisões dessa pulsação (respectivamente uma mínima pontuada ou três pares de
colcheias para cada compasso).

Fig.5.15- Padrões rítmicos em compasso ternário

2.Tema vocal/ostinato para improvisação

Neste exercício fizemos um pequeno arranjo vocal para um trecho da canção


Cravo e Canela, de Milton Nascimento, e sugerimos que os participantes alternassem
151

sua execução com a improvisação vocal (cantando uma vez o trecho e improvisando
no mesmo número de compassos do tema, sendo oito compassos para o tema e oito
compassos para a improvisação). Para a improvisação vocal foi sugerido o modo lídio
em Dó (Dó, Ré, Mi, Fá#, Sol, La, Si) , além de intervenções vocais de caráter
percussivo, sendo que todo o exercício foi realizado em movimento ao redor da sala.

Fig.5.16- Arranjo vocal feito a partir do tema Cravo e Canela

3.Ostinato corporal em parâmetro rítmico assimétrico

Depois dos exercícios anteriores envolvendo o deslocamento no espaço,


propusemos um pequeno ostinato corporal no compasso de 7/8 que utilizava a
coordenação entre pés, palmas e batidas no peito (alternando mão esquerda e direita).
Na parte dos pés, pedimos para que os participantes continuassem se
deslocando pela sala, parando sempre em frente à outro participante para realizarem a
parte do ostinato com palmas e batidas no peito parados, em relação com o outro
participante. Podemos observar os participantes explorando a movimentação no
espaço, alternando ostinato e improvisação em 1:18 min. do vídeo W orkshop 4.

Fig.5.17- Ostinato corporal em compasso assimétrico de 7/8.


152

4.Tema em 7/8 para improvisação vocal

Nesta etapa introduzimos um novo tema vocal, extraído de composição


133
autoral . O tema foi utilizado para improvisação vocal, nos mesmos moldes do
exercício 2, alternando tema e improvisação. Propusemos a escala pentatônica de Sol
M para a improvisação (Sol, Lá, Si, Ré, Mi) e realizamos essa etapa ao redor do piano
(o piano fazia a base descrita na fig. 5.19).

Fig.5.18- Trecho melódico da peça Tempoqueleva,


utilizada como base para improvisação vocal e instrumental

Fig.5.19- Acompanhamento utilizado como


base harmônica para trecho de Tempoqueleva

133
Extraímos um trecho da composição intitulada Tempoqueleva, do álbum Notas de um sem tempo,
com gravação financiada pela Secretaria de Cultura de São Paulo, pelo Edital ProAC, em 2009. A
performance desta composição é encontrada em: http://www.youtube.com/watch?v=npkVAPzcNOw
153

5.Improvisação instrumental em movimento

Nesta última etapa, sugerimos o mesmo tema do exercício anterior como base
para a improvisação instrumental. Depois de tocarmos várias vezes o trecho – sendo
que os instrumentistas podiam escolher entre fazer a melodia ou o acompanhamento –
os participantes foram trazendo pouco a pouco contribuições melódicas e harmônicas
para realizarmos o exercício proposto. Em seguida, propusemos a improvisação em
duplas, com a seguinte disposição espacial: o grupo se dispôs em um grande círculo,
de modo que cada dupla que fosse improvisar se posicionava voluntariamente no
centro do círculo no momento da improvisação, saindo deste centro para dar lugar à
próxima dupla, sendo que esta improvisação não tinha um tempo estipulado. No final
desta etapa, os participantes começaram espontaneamente também a mover o círculo
em sentido horário, sendo que a dinâmica da improvisação com o movimento foi
ficando cada vez mais fluente, transição esta que podemos observar a partir dos 8:30
min. do vídeo W orkshop 4.

5.3.Resultados e considerações sobre a aplicação dos workshops

Quando iniciamos o processo de elaboração dos workshops, nosso foco


principal foi interagir com linguagens musicais fora de contextos comumente
estabelecidos para o estudo e a prática da improvisação. Assim, nosso objetivo foi
propor conversas musicais pautadas em compassos assimétricos e configurações
melódicas peculiares e incentivar esta prática partindo de outros estímulos, a exemplo
da ideia de iniciar um processo de improvisação pelo movimento corporal. Nesse
nosso percurso, é importante frisar que nossa intenção não foi sugerir uma
“metodologia ideal” para a prática da improvisação, nem tampouco resumir em
alguns poucos eventos ou etapas um processo de aprendizado quase sempre longo e
que demanda tempo para que o performer adquira um certo grau de fluência.
O que pretendemos aqui, foi despertar a atenção do músico para um leque
maior de possibilidades e, principalmente, convidar mais músicos em formação para a
prática e o estudo da improvisação. Para tal objetivo, propusemos o livre trânsito entre
os diversos formatos de improvisação, chamando a atenção para o fato de que o
instrumental de base para a prática da improvisação pode ser adquirido a partir do
hibridismo e do diálogo com os fazeres musicais fora do ocidente. Pensando também
154

no estudo da improvisação como um todo, podemos dizer que nossa proposta pode
contribuir para o enriquecimento dos materiais já existentes, como os utilizados pela
sólida escola de improvisação direcionada aos estudos e práticas jazzísticas e as
iniciativas crescentes da prática da improvisação livre, entre outros.
Em virtude das diferenças existentes entre os grupos com os quais
trabalhamos, certamente ocorreram pequenas variações na aplicação das propostas de
improvisação, considerando que cada grupo possuía uma dinâmica de trabalho
distinta. Tal fato nos leva a crer que nossa proposta deve ser maleável e passível de
adaptações em função do contexto em que esta será aplicada. Tendo por base os
resultados da prática dos exercícios aqui amostrados, pudemos constatar que a
abordagem sugerida pôde contribuir para a reflexão e para o desenvolvimento de
aspectos tais como: concentração ou estados de atenção, coordenação motora e
acuidade rítmica a partir do movimento corporal e interação em grupo fundamental
para a vivência do músico. Além disso, consideramos que, mais do que o
desenvolvimento de materiais expressivos para a prática da improvisação em
ambientes e contextos diversos, despertamos a atenção para o fato de que não existem
limites geográficos ou contextuais para a busca destes materiais.
É importante ressaltar também que a proposta de iniciar a prática da
improvisação a partir do movimento corporal contribuiu para que os participantes
chegassem ao fim do processo com os materiais propostos internalizados,
favorecendo uma maior concentração e fluência nos aspectos ligados à criação
espontânea, ou seja, à improvisação propriamente dita. Observamos ainda que,
durante o período de aplicação de nossas propostas, fomos aprimorando a maneira de
conduzir os workshops, ou seja, ao final do período houve uma maior fluência e
desenvoltura também de nossa parte.
Em relação aos resultados alcançados em cada workshop, podemos dizer de
forma generalizada, que fomos bem sucedidos na proposta de interação em grupo na
improvisação, mas que nem todos os participantes conseguiram alcançar uma fluência
musical dentro dos parâmetros rítmicos propostos. Neste ponto, constatamos que
algumas das improvisações “mais bem sucedidas” (em que os participantes
alcançaram uma boa interação em grupo e conseguiram uma boa fluência na
improvisação, compreendendo e lidando com os materiais rítmicos propostos)
ocorreram nos dois últimos workshops ministrados na Guildhall School of Music and
Drama, em parte por termos passado mais tempo com estes participantes do que com
155

os participantes dos outros workshops.


Em relação às dificuldades encontradas, podemos portanto citar o pouco
tempo que tivemos para a aplicação de cada workshop. No segundo workshop, por
exemplo, que propunha a improvisação sob um parâmetro rítmico de diminuição,
conseguimos realizar esta improvisação apenas utilizando vozes e percussão corporal,
não havendo tempo hábil para realizar a proposta no instrumento. Neste caso,
considerando a complexidade exigida pelo parâmetro rítmico em questão, optamos
por propor a improvisação sob cada combinação métrica isoladamente, quando no
instrumento.
De uma forma geral, concluímos que a improvisação baseada em parâmetros
rítmicos mais complexos demanda mais tempo do que um workshop para ser
realizada de forma fluente. Entretanto veremos, por intermédio do depoimento dos
participantes, que o processo em si abriu uma nova possibilidade de abordagem para a
improvisação em geral e, neste ponto, consideramos que nossa proposta foi bem
sucedida.

5.3.1.Reflexões a partir de relatos dos participantes

Uma das contribuições em relação a aplicação de nossa proposta foi a


observação acerca dos processos cognitivos que utilizamos, feita pelo professor Dr.
Jônatas Manzolli, que participou do primeiro de nossos workshops. Em seus
comentários, Manzolli cita os conceitos de affordance e cognição situada –
aprofundados em nosso terceiro capítulo – e sua relação ao processo que elaboramos.
Partindo de suas considerações, remetemo-nos às questões sobre a consciência e não
consciência dos parâmetros rítmicos pelas vias da corporalidade, tendo estas sido
inicialmente mencionadas a partir do curso TaKeTiNa, também discutidas no terceiro
capítulo. Veremos que Manzolli optou por deixar o aspecto corporal conduzi-lo, sem
nenhuma preocupação em compreender racionalmente os parâmetros rítmicos
propostos, lembrando também nossas considerações sobre os processos de
aprendizado relacionados a um contexto holístico, descritos em nosso segundo
capítulo. É então interessante observar as diferentes apropriações do aspecto corporal
sob o ponto de vista dos participantes. Manzolli atenta para a possibilidade de deixar-
se levar sem a exata consciência do parâmetro rítmico proposto. Isso significa que a
corporalidade torna essa complexidade rítmica acessível, mesmo sem essa mediação
156

racional. Também será possível utilizar essa mesma proposta de corporalidade para a
situação oposta, ou seja, utilizar o corpo para tomar consciência mais rápida e
incorporada de parâmetros de difícil assimilação. Aqui ainda relembramos a ideia de
Dewey (p.82), que junto com outros pesquisadores, defende a interação corpo/mente
como uma unidade de cognição. Nesse aspecto, não acreditamos em uma situação
ideal, mas sim que a corporalidade favorece a execução e a compreensão de
parâmetros rítmicos sob diferentes maneiras de recepção.

Sob o ponto de vista da percepção pessoal, senti que o processo


utilizado favoreceu em mim uma interação/jogo direto com o
ritmo. Não fiquei preocupado com a estrutura, ou seja, se era cinco
ou quatro ou três. Gostei de projetar o movimento do meu corpo
no pulso rítmico e deixar que este impulso natural me levasse.
Sobre as ideias que relacionei com o workshop, depois da oficina,
a maneira que o trabalho foi desenvolvido lembrou-me da noção
de affordance de Gibson e o método utilizado na oficina poderia
estar vinculado a noção de cognição situada. Ou seja, o processo
foi como se construísse uma mediação que propiciou uma
affordance para cada estrutura rítmica através da incorporação do
pulso utilizando-se o movimento do corpo. O jogo viabilizou
affordances diferentes.
Prof. Dr. Jônatas Manzolli, coordenador do Núcleo
Interdisciplinar de Comunicação Sonora (NICS) da UNICAMP

Em relação ao processo que descrevemos em nossos workshops e sua relação


com a ressignificação de materiais expressivos em processos de criação, obtivemos
uma importante contribuição feita pela participante Maria Rita Brandão. Entre outras
observações, a participante relata o processo que elaboramos sob os focos da
construção da atenção, da percepção, da interação em grupo e da incorporação e
transformação dos parâmetros rítmicos propostos através da movimentação no
espaço. Outro aspecto importante citado por Maria Rita Brandão é o fator do
descondicionamento, que será retomado por outra participante ao final destes
depoimentos. Brandão volta a comentar sobre a mediação pelas vias da razão dando
lugar à mediação cognitiva pelo movimento e traz à tona a ressignificação da
assimetria rítmica, corroborando com a ideia de que a assimetria pode ser trabalhada
de forma mais orgânica quando abordada pelas vias da corporalidade.
157

A percepção do individual relacionado com o coletivo e com o


espaço despertou um estado de atenção aberto; disponibilizou o
corpo para a incorporação dos ritmos assimétricos. O
deslocamento, o caminhar sobre o compasso, a sensação de
direção contribuíram para que a conexão se estabelecesse sem a
mediação do racional. A ideia de assimetria pareceu ser
ressignificada, à medida em que o corpo se apropriava do gesto
rítmico, transformando em movimento a percepção do pulso, dos
acentos, da emoção de cada ritmo. O processo de incorporação
despertou uma predisposição ao descondicionamento, criou uma
disponibilidade, que se manifestava tanto na execução de um gesto
rítmico quanto na exploração criativa dos conteúdos musicais
propostos. Foi possível manipular o material musical com certo
conforto na medida da apropriação corporal do mesmo. O estado
de disponibilidade, ou mesmo de atenção aberta, facilitou o acesso
consciente dos conteúdos musicais e sua interação com a
memória. Para mim o processo foi ao mesmo tempo claro, seguro
e surpreendente. Pude recuperar essa experiência em outras
situações de ensaio, estudo e performance, e percebo o quanto
influencia na sonoridade, na percepção e na maneira de fazer.
Maria Rita Brandão- Licenciatura em Música- ECA/USP

Mais uma importante observação sobre as propostas que elaboramos é o fato


destas poderem ser permeáveis e passíveis de transformação. Sob este aspecto,
devemos lembrar que nossa proposta deve ser aberta o suficiente para que outros
profissionais possam adaptá-la de acordo com suas necessidades. Vejamos então o
relato do professor Dr. César Traldi, atentando para essa possibilidade:

Fiquei muito empolgado no workshop com a dinâmica de trabalho


e aprendizagem. Tenho notado que o ensino de aspectos rítmicos
(simples e complexos) normalmente é realizado através de
exercícios complexos e chatos de serem realizados e estudados. A
minha sensação durante o workshop foi de estar realizando e
trabalhando exercícios rítmicos e estudos de improvisação
complexos de uma maneira muito dinâmica e divertida. Eu trouxe
os exercícios e os trabalhei com meus alunos na disciplina de
Percepção Rítmica. Senti uma grande empolgação dos alunos
durante a realização dos exercícios, mesmo daqueles que estavam
com grande dificuldade de realizá-los. Senti a necessidade durante
as aulas e acabei criando e realizando exercícios preparatórios.
Acredito que nos workshops isso é inviável pelo pouco tempo,
mas acho que poderiam ser pensados alguns exercícios mais
básicos para auxiliar alunos com maior dificuldade.
Prof. Dr. César Adriano Traldi- Professor de percussão e rítmica
da Universidade Federal de Uberlândia
158

Quando aplicamos nossas propostas na Guildhall School, estávamos


finalizando o processo de elaboração e aplicação dos workshops descritos. Tal fato,
aliado ao fato de termos passado mais tempo com estes participantes, como
mencionado anteriormente, contribuiu para que as propostas nesta instituição
atingissem o objetivo da aquisição de uma maior fluência sobre a improvisação em
parâmetros rítmicos complexos. Nestas propostas, nossa “conexão corpo/instrumento”
estava mais consolidada, e o resultado dessa última etapa de improvisação pode ser
verificado no depoimento dos participantes destes últimos workshops. Aqui
destacamos a criação de um ambiente ao mesmo tempo seguro e desafiador para a
prática da improvisação, além da observação de que a introdução a esta prática pelo
movimento representa um aspecto diferencial e eficiente em nossa proposta. Ainda
citamos a importância do processo em grupo, no qual a colaboração de cada
participante e a receptividade para esta colaboração são cruciais para o desenrolar das
atividades propostas nos workshops.

Quando eu li que nós iríamos improvisar em fórmulas de


compassos como 15/4, não imaginei que isto fosse possível em
apenas um único workshop. Fiquei fascinada com a facilidade
com que uma coisa fluiu para a outra e, quando menos
esperávamos, havíamos realizado o que imaginei não ser possível.
A utilização do movimento corporal ajudou a resolver muitas
lacunas e superar barreiras do conhecimento musical, além de nos
deixar livres para a improvisação134 .
Karla Powell- Bacharelado em Música, GSMD135

Eu acho que a utilização do movimento como introdução à


improvisação foi fantástica. Ela nos tirou do foco específico do
som e nos levou para um lugar de extrema liberdade para nos
expressarmos. Fiquei realmente inspirada pelo uso do ritmo como
ponto de partida para a música. Isso deu ao grupo uma energia
ótima e permitiu que a música fosse em qualquer direção
conforme a improvisação progredia136.”
Lindsey Peacock- Mestrado em Leadership, GSMD

134
“When I read that we would be improvising over time signatures such as 15/4 I didn't believe it
would be possible in just one workshop. I was amazed at how easily one thing flowed to another and
before we knew it we had done it. The use of body movements made the gaps between milestones in
the music easy to work out and also freed us up for improvisation.”
135
Guildhall School of Music and Drama.
136
“I think the use of movement as an introduction to improvisation was fantastic, it took away focus
from sounds and got us in a place of freedom to be expressive. I was really inspired by the use of
rhythm as a starting point for the music. It gave the group a really great energy and allowed the music
to go in any direction as the improvisations progressed.”
159

Você criou uma atmosfera segura e estava aberta para nossas


contribuições. Os exercícios estavam no nível ideal (desafiadores,
mas possíveis de serem realizados) e eu tive muito prazer em
integrar a movimentação e a dança com a improvisação sob uma
base musical convidativa e cativante.137
Mirjam de Wit- Mestrado em Leadership, GSMD

Finalizando nossas considerações a partir do relato dos participantes dos


workshops, voltamos ao tema do condicionamento e descondicionamento, aqui
retomado por Jacqueline Oshima, que participou de nosso segundo workshop. Em seu
depoimento há também a ideia de construção e desconstrução – citada em nosso
quarto capítulo, na proposta Inside the Sound – a partir de uma instabilidade
provocada pela saída da “zona de conforto” dos participantes. Neste depoimento,
observamos que nossa proposta forneceu uma transformação não só durante o evento,
mas reverberou em um tipo de pensamento sobre uma busca de sonoridades,
transpondo os ambientes que faziam parte do cotidiano de cada músico. O
depoimento deixa um desejo138 de desdobramento e continuidade, o que nos parece
uma finalização condizente com o que almejamos em nosso trabalho.

A sensação ao finalizar o workshop era de que este não tinha


terminado. Por mais que tivéssemos que voltar para o mundo real
das correrias e compromissos, nosso corpo ainda estava em transe
para o resto do dia, em comoção, no tempo dos tempos irregulares,
desestabilizadores. Tempos estes que começaram tirando-nos do
lugar de conforto e se transformando em novos parâmetros ao
longo do workshop. O fato de utilizarmos extensivamente o corpo
nos exercícios nos fez engolir, absorver pela pele e pelo suor, todo
aquele mundo musical de outros acentos, outras ênfases e outras
visões. Apesar da timidez, todos se soltaram bastante e, já ao final,
estávamos muito à vontade. A sensação era de não querer ir
embora, queríamos continuar no takita takita takita takadimi
incansavelmente... Em mim, foi despertada a importância de sair
dos nossos padrões rítmicos e melódicos, alertou para o fato de
como estamos CONDICIONADOS (talvez até presos) ao habitual,
e para o fato do improviso em termos de compassos assimétricos
poder ser infinito e libertador...
Jacqueline Oshima - Licenciatura em Educação Musical- UNESP

x x x x

137
“You created a safe atmosphere and were open to our input. The exercises were on the right level
(challenging but doable) and I enjoyed moving and dancing in combination with improvising on
cheerful and catching music.”
138
Aqui, mais uma vez, o desejo no sentido descrito por Costa.
160

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depois de traçar nosso percurso, chegando às propostas de improvisação


detalhadas anteriormente, voltamos às questões colocadas no início de nosso trabalho:

• Quais são os materiais da música não ocidental que podem favorecer o


desenvolvimento de novas perspectivas para conduzir processos criativos e
valorizar a prática da improvisação? Os materiais e procedimentos musicais
que permeiam a música não ocidental – incluindo configurações escalares fora
do padrão tonal, procedimentos rítmicos complexos e a interação da música
com o movimento para processos de cognição rítmica – podem contribuir com
essa prática e para a formação do músico em geral?

Vimos, ao longo de nosso estudo, que as possibilidades em relação aos


materiais citados e suas possíveis contribuições são inúmeras, incluindo as áreas da
composição, da performance, da improvisação e as reflexões a respeito de contextos
formativos para o músico no ocidente. Começando pela composição, vimos que a
relação e o contato com os materiais expressivos, procedimentos e conceitos que
permeiam a música das culturas não ocidentais influenciaram a música do ocidente
desde antes do século passado. Pensando nas primeiras transformações destes
materiais no ocidente, podemos mencionar as contribuições dos compositores do
início do século XX que citamos como as primeiras que estabelecem um diálogo mais
profundo com estes materiais. Nesse aspecto, consideramos como cada músico
dialogou com outros formatos e fazeres musicais quando estes estão fora de seus
contextos de origem e vimos que este diálogo representou uma importante
contribuição para a elaboração e exploração de novas sonoridades.
Sobre a primeira pergunta que formulamos a respeito da contribuição dos
materiais e fazeres musicais que estudamos para a prática e a valorização da
improvisação, podemos dizer que, sobretudo esta valorização está presente em grande
parte dos procedimentos encontrados na música não ocidental. É claro que tal
valorização está também presente no ocidente em estudos sobre a improvisação
jazzística, na prática crescente da improvisação livre e na retomada da improvisação
clássica europeia em contextos formativos, como verificamos anteriormente. Mas
nosso intuito é trazer mais uma visão sobre a importância da prática da improvisação
161

– aqui sob a ótica da música não ocidental – pensando em aumentar a incidência e a


valorização desta prática na formação do músico em geral sob uma ótica mais
diversificada. A respeito do desenvolvimento de processos criativos a partir do
redimensionamento de materiais e procedimentos encontrados fora do ocidente,
podemos afirmar que os fazeres musicais que estudamos aqui representam um rico
depositário de possibilidades para tal finalidade. Embora há muito tempo se dialogue
com estes elementos, nossos estudos mostram que há mais possibilidades de
desenvolvimento deste diálogo, sobretudo em contextos de formação em nível
superior no ocidente. Sobre novas perspectivas e abordagens acerca dos processos de
criação musical em contextos formativos, ressaltamos portanto a ideia do hibridismo
como mote para que se abram mais reflexões em torno do ensino da composição, da
performance e da improvisação, sendo que nossa abordagem final concentra-se neste
último item.
Sobre nosso enfoque acerca da corporalidade, embora a abordagem do corpo
como meio para a cognição esteja presente desde as metodologias propostas por
Dalcroze e Orff, podemos dizer que a proposta de transição do corpo para o
instrumento voltada para a prática da improvisação representa um desdobramento que
traz em si um grau de ineditismo e mostrou-se, por intermédio dos workshops,
bastante eficaz. Combinados à ideia da espacialidade e do movimento, da utilização
de ambientes melódicos e harmônicos igualmente híbridos e da interação de um grupo
em processos de improvisação, consideramos que nossa proposta cumpriu o seu
percurso. Ainda assim, observamos mais uma vez que nossa abordagem foi elaborada
para ser permeável com outros formatos de improvisação, relembrando então que não
quisemos imprimir uma metodologia, mas ampliar a gama de possibilidades para esta
prática.
Em relação à absorção e transformação dos materiais, procedimentos e
conceitos da música não ocidental, vimos que o contato com outros fazeres musicais
contribuiu também para um aprofundamento maior acerca da compreensão da música
como um todo, ou a música, ela mesma, como menciona Brito (2004). Nesse sentido,
entender outros fazeres musicais amparados pelos estudos da Etnomusicologia, pelo
relato de músicos do ocidente sobre o contato com estes fazeres in loco, ou pelas
iniciativas multiculturais na performance e em contextos formativos, só tem a
contribuir para um desejo (ou mesmo necessidade) de hibridismo. Sendo assim,
lembramos que esta ideia do som ou da música em si por trás de todos os fazeres
162

musicais (incluindo gêneros e sistemas constituídos através destes fazeres) é o que


possibilita a recombinação, a ressignificacão e o hibridismo dos materiais musicais
que permeiam nosso trabalho. Portanto, apesar de focarmos nossos estudos na música
de culturas não ocidentais, estamos, antes de mais nada, falando da música dentro de
um cenário híbrido e globalizado, na qual existe – tal qual proposto na música
contemporânea e em práticas como a improvisação livre – a substituição do
paradigma da nota (que consiste em sistemas de organização das alturas – como o
tonalismo, modalismo e dodecafonismo) pelo paradigma do som (no qual o som é
tratado como matéria primordial que precede a constituição dos sistemas musicais).
Aqui portanto, chegamos ao final de nosso percurso. Com o caminho que
elaboramos, esperamos ter despertado a ideia do músico como um artista aberto e
atento para diversos fazeres musicais. Um músico sem fronteiras estéticas, de corpo
inteiro em suas ações e disposto a qualquer diálogo em torno da criação que nos
move. Convidamos então os colegas que queiram se juntar a nós nessa empreitada,
para que formemos um único corpo pulsante em busca do hibridismo sob todos seus
aspectos, para reinventar a música que converse com nosso tempo.

x x x x x
163

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