03 - Depois Da Pandemima Cidades Figitais
03 - Depois Da Pandemima Cidades Figitais
03 - Depois Da Pandemima Cidades Figitais
Essa é a proposta desse texto. Um ensaio que foi lá trás, no Século XIV, buscar indícios do que nos
espera lá pelo final desse século e começo do próximo. No passado, a pandemia de 1346 a 1353
matou 40% da população da Europa, atingindo na Espanha, na França, na Inglaterra e na Itália entre
50 a 60% da população em um ou dois anos. Em 2020, o mundo conseguiu fabricar e testar vacinas
em menos de um ano. Um avanço e tanto, é verdade, que salvou muitas e muitas vidas, a despeito
daqueles que não conseguiram chegar até aqui.
E talvez seja em reconhecimento aos que se foram e em consideração aos que ficaram que temos a
obrigação de repensar nossas cidades. Saindo do modelo analógico em que se encontram e partindo
para um novo, no qual elas são plataformas. No sentido mais literal do termo. Ou seja: sistemas aos
quais terceiros podem adicionar valor, adaptando ou estendendo a base a necessidades e nichos
que os criadores da plataforma não contemplar[i]am.
Mas a plataforma da cidade pós-pandemia não é física, é figital. Mais que isso, a cidade, na
economia e para a sociedade, depois da pandemia, deveria passar a ser uma plataforma figital. E isso
é muito mais complexo do que criar um aplicativo ou renovar os sistemas de informação do e para o
lugar. É um redesenho da cidade levando em conta que os fluxos já ocorrem em um espaço de
dimensões física, digital e social. É uma transformação da cidade para habilitar novos
comportamentos, de agentes de todos os tipos, no espaço figital. É a transformação figital da cidade.
Boa leitura.
Depois da Pandemia, Cidades Figitais?...
Silvio Meira1
A pandemia de 1346 a 1353 matou 40% da população da Europa. Espanha, França, Inglaterra e Itália
perderam 50 a 60% da população em um ou dois anos. O impacto nas cidades foi uma hecatombe, e
a recuperação das cidades levou dois séculos. Dados mostram mais vilas medievais abandonadas em
regiões de baixa do que nas de alta mortalidade, especialmente entre as mais distantes das cidades.
A pandemia causou migrações, e os destinos preferenciais foram cidades de terra mais fértil em suas
zonas rurais e com melhores conexões [portos, estradas...] para negócios. Cidades desapareceram e
outras cresceram depois da peste; e há uma relação causal entre fatores fixos de produção e o
tempo de recuperação das cidades medievais.
O parágrafo anterior é um resumo de um artigo3 sobre os efeitos da peste nas cidades, na Europa.
Na pandemia que ainda vivemos, e sem dados para uma avaliação mais precisa, há um turbilhão de
opiniões sobre o futuro das cidades, vindas de todos os lados. Norman Foster diz que a pandemia
não será a causa de grandes mudanças nas cidades, no longo prazo4, mas seu acelerador: "em vez de
mudança, COVID19 apenas apressou, acelerou tendências de mudança que já eram aparentes antes
da pandemia, como cada grande crise nas cidades, no passado, acelerou e ampliou o inevitável".
Para Jan Vapaavuori, prefeito de Helsinki, “uma das maiores lições da pandemia é que as cidades
sustentáveis e resilientes foram capazes de lidar melhor com a crise”5. Mas as cidades foram onde o
impacto da pandemia foi mais sentido e mais grave. Para Sameh Wahba, do Banco Mundial, isso
“também significa que as intervenções urbanas podem ter o maior impacto” em crises similares, no
futuro.
Se boa parte do que fazemos -e uma das maiores razões pelas quais estamos- nas cidades é
trabalhar, as mudanças no trabalho, aceleradas pela pandemia, terão impacto relevante nas cidades.
E o distanciamento social deu uma mostra do que as pessoas prezam nas cidades além do trabalho:
parques, praias, restaurantes, esportes, cultura, eventos... as redes sociais presenciais, físicas. Se a
pandemia mostrou que é possível realizar trabalho fora do escritório de forma eficaz e eficiente,
nem todo trabalho pode ser deslocalizado; estudo recente6 codifica atividades e aponta, por país,
quanto do trabalho pode ser feito de forma remota. Países como Brasil [25%] tem taxa bem menor
do que a Suécia [45%], quase que como um atestado de menor sofisticação da economia. No caso de
Há muitos indícios de mudanças nas cidades. Mas há muitos sinais fracos, com muito ruído e de
difícil comparação. Por isso que devemos procurar estruturas na conjuntura, e há pelo menos duas
tendências irreversíveis7, de décadas, aceleradas pela pandemia.
É uma transição de um espaço competitivo de baixa velocidade de mudança -pois que a dimensão
puramente física da competição é muito rígida- para outro, onde o tempo da mudança é parcial e
em muitos casos principalmente- definido pela agilidade de tomada de decisões e velocidade de
escrever código nas organizações. O grande desafio para instituições legadas -que eram especialistas
no espaço e nos artefatos físicos- é entender as fundações das dimensões digital e social do espaço
figital e tratar suas três dimensões de forma articulada, integrada, fluida. As cidades, como sabemos,
são sistemas legados, típicos do mundo puramente físico. Como hão de se comportar no espaço
figital?
A segunda tendência irreversível afeta o universo do trabalho. Até porque o espaço é figital, há três
transições acontecendo no trabalho, agora. A primeira se dá em relação ao lugar de realização do
esforço, que deixa de ser essencialmente localizado [como o escritório] e se torna cada vez mais
distribuído, com cada vez mais gente em situação “remota” em relação ao lugar onde o trabalho se
dava, no passado. A segunda transição é na performance, que sai de intrinsecamente analógica,
realizada na dimensão física do espaço competitivo, para ter componentes digital e social cada vez
mais explícitas, com parte da criação e entrega de valor sendo feita com a participação cada vez
maior de artefatos digitais. Por fim, a terceira transição é nos contratos, de único para múltiplos,
com os contratantes tendo cada vez menos exclusividade sobre os contratados.
Até por causa das possibilidades criadas pelas dimensões do espaço figital, a norma será, cada vez
mais, trabalho híbrido. Numa pesquisa global8, 65% dos executivos afirmam que trabalho parcial ou
autônomo "substituirá parte substancial dos funcionários em tempo integral nos próximos 5 anos".
Não é que as empresas queiram que isso aconteça; segundo um executivo, é que a "exclusividade do
empregador está se tornando uma relíquia".
Patrick Geddes, citado na abertura, já estava certo há mais de cem anos e está, ainda mais, agora.
Cidades não são apenas lugares no espaço. Até são, sim, na dimensão física do espaço. Mas há muito
mais em jogo, e cidades, depois da pandemia, devem levar em conta as tendências irreversíveis que
ajudaram a criar e redescobrir os fundamentos da competição no espaço figital, onde cidades são
bem mais do que espaços físicos, são plataformas.
Plataformas são sistemas aos quais terceiros podem adicionar valor, adaptando ou estendendo a
base a necessidades e nichos que os criadores da plataforma não contemplar[i]am. Plataformas são
Segundo tal definição, a cidade sempre foi uma plataforma, onde a infraestrutura são ruas, parques,
passeios, criados pela “governança” da urbe, que também responde por serviços como educação,
saúde e segurança, onde terceiros criam negócios, escritórios e casas. Desde sempre, as cidades que
evoluem mais rapidamente e são mais resilientes e sustentáveis são aquelas onde a plataforma, da
qual fazem parte o conjunto de características naturais -como a posição única do Recife na logística
no nordeste do Brasil- até o conjunto de políticas públicas [a base da plataforma, como educação e
incentivos] habilitou a iniciativa privada [terceiros agregando valor] a participar dos processos de
criar e evoluir ecossistemas coopetitivos de classe regional, nacional e mundial -como é o caso do
Porto Digital, no Recife.
A cidade “era” um espaço-tempo de fluxos de pessoas e coisas, e isso mesmo depois da chegada da
internet comercial no meio da década de 1990. Mas depois de nuvem e smartphones, na metade da
década de 2000, as dimensões digital e social do espaço se estabelecem de vez e tudo, e não só as
cidades, se tornou figital. Estendendo Castells9, pode-se dizer que, hoje...
E plataformas são estruturas econômicas, políticas e simbólicas... para tudo. Mas a plataforma da
cidade pós-pandemia não é física, é figital. Mais que isso, a cidade, na economia e para a sociedade,
depois da pandemia, deveria passar a ser uma plataforma figital. E isso é muito mais complexo do
que criar um aplicativo ou renovar os sistemas de informação do e para o lugar. É um redesenho da
cidade levando em conta que os fluxos já ocorrem em um espaço de dimensões física, digital e
social. É uma transformação da cidade para habilitar novos comportamentos, de agentes de todos
os tipos, no espaço figital. É a transformação figital da cidade.
Inovação figital depende de plataformas figitais [desenhadas de acordo com lógicas e princípios
portadoras de futuros figitais10] para incentivar e|ou provocar a mudança de comportamento nos
agentes de mercado, como fornecedores [organização] e consumidores [seus atuais e potenciais
clientes] de qualquer coisa, de carros e sorvetes a investimentos e políticas públicas. Transformação
estratégica é um redesenho na arquitetura e processos de tomada de decisão e sua execução,
acompanhamento e avaliação na criação, agregação, entrega e captura de valor de qualquer
organização. No caso da cidade, da rede de organizações de gestão da cidade e, como não poderia
deixar de ser, de toda a rede de agentes da cidade, incentivados e habilitados pela sua gestão.
...uma 'plataforma' é um sistema que pode ser programado e, portanto, personalizado por
desenvolvedores externos -usuários- e, dessa forma, adaptado a inúmeras necessidades e
nichos que os desenvolvedores originais da plataforma não poderiam ter contemplado,
muito menos tiveram tempo para acomodar.
No diagrama, as duas camadas inferiores podem certamente ser providas e até “controladas” pela
gestão da cidade [o ‘sistema’], mas devem ser bases para que desenvolvedores externos possam
agir, usando suas funcionalidades essenciais. Da terceira camada para cima, quase tudo pode ser
desenvolvido em rede e ter uma governança compartilhada. Até porque, já na terceira camada, o
marketplace de dados é da cidade, literalmente, e não da gestão da cidade. Lá no topo, a camada de
habilitação, inovação e aceleração é onde se dão as conexões, relacionamentos e interações que
habilitam qualquer um a, potencialmente, programar aplicações para a cidade figital.
Aplicações que tratam de educação, saúde, segurança e outras funções críticas da cidade serão -pelo
menos em parte- escritas e operadas pela gestão do lugar. Mas há serviços privados de educação,
saúde e segurança, por exemplo, que têm suas aplicações, criam, consomem e armazenam dados,
Nas cidades figitais, na cidade que existirá no espaço figital, a governança será compartilhada, com a
participação e a licença cidadã para uso dos seus dados, nas dimensões física, digital e social. E não é
só porque, no Brasil, a LGPD14 obriga; é porque será insustentável se não for assim.
Na cidade figital, a plataforma digital da cidade será fundamental para o desenho e orquestração
dos fluxos figitais. As redes da cidade figital não são físicas [como ruas], digitais [transações] ou
sociais [encontros], separadamente. As ruas são figitais; são físicas, mas aumentadas e estendidas
pela dimensão digital, habilitadas pela plataforma digital da cidade e suas aplicações e articuladas na
dimensão social.
Ambulâncias fluem no trânsito, conversam com sinais, driblam engarrafamentos pela contramão,
que é mão para quem tem as prioridades dos serviços de emergência. E pacientes não chegam em
clínicas e hospitais que não podem atendê-los; os sistemas, do SAMU aos hospitais, conversam entre
si, mediados pela plataforma digital da cidade. Consultas de todas as especialidades são marcadas
no sistema de saúde pelo cidadão, apoiado por sistemas especialistas e atendimento distribuído, e
cada pessoa confirma a frequência dos profissionais de saúde no seu local de trabalho. E os dados,
dos serviços públicos, são públicos, abertos e estão no marketplace para qualquer um analisar.
Depois da pandemia, cidades figitais. Não porque elas queiram ou já saibam como chegar lá. Mas
porque o espaço onde está já estão é figital, e essa transição já foi feita. O problema das cidades,
agora, é como se tornarem figitais. Como criar suas plataformas. Como redesenhar suas estratégias.
Como redesenhar sua governança. Como [re]educar as pessoas e prepará-las para futuros figitais.
Na pandemia de 1346 a 1353, as cidades que se recuperaram mais rapidamente foram aquelas onde
os fatores de produção eram mais favoráveis. Desta pandemia, as cidades que sairão mais rápido e
de forma mais acelerada, sustentável e resiliente serão aquelas que entenderem que o espaço
mudou e agirem sobre tal constatação de forma estratégica. Não se trata de, puramente, considerar
fatores de produção que são digitais e sociais e manter um arcabouço de pensamento analógico ou,
no máximo, analógico digitalizado. No setor público, digitalizar analógicos é informatizar o caos...
As cidades estão noutro espaço, que já tinha duas dimensões -digital e social- agora essenciais e
incontornáveis. O espaço, o trabalho, a educação, saúde, segurança, entretenimento, esportes...
tudo será cada vez mais figital. Quem desenhar estratégias para competir -como cidade- nesta nova
configuração do mundo, tem muito maior probabilidade de sucesso continuado. Entre estas, aquelas
que tenham as competências, habilidades e recursos, como ecossistemas empreendedores públicos
e privados, para escrever e evoluir suas próprias plataformas e aplicações de classe mundial.
13 How Los Angeles took control of its mobility data. LA Times, 01/07/2020, em bit.ly/3xlaEXp.
14 Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Wikipedia, em bit.ly/3oR94ZE.