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Tudo o Que e Ar Psicanalise and Trabalho

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RESENHAS BIBLIOGRÁFICAS

Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, 24(2), 481-486, jun 2021
http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2021v24n2p481.14

Psicanálise & Trabalho: retratos do contemporâneo


Rosana Coelho, Diego Airoso da Motta (Orgs.)
Porto Alegre, RS: Tribunal Regional do Trabalho da 4a região, 2020,
e-book 369 págs.

Tudo o que é ar:


Psicanálise & Trabalho
All that is air: Psychoanalysis & Labor
481
Pedro Brocco*1

Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar (...)


Karl Marx e Friedrich Engels

La théorie c’est bon, mais ça n’empêche pas d’exister.


Jean-Martin Charcot

A publicação do livro Psicanálise & Trabalho: retratos


do contemporâneo, em junho de 2020, organizado por Rosana
Coelho e Diego Airoso da Motta, nos revela uma iniciativa
original e arrojada e nos inspira e convoca a uma leitura atenta à
novidade e à importância que esta obra coletiva representa.

*1 Corpo Freudiano Escola de Psicanálise Seção Rio de Janeiro (Rio de


Janeiro, RJ, Brasil).
R E V I S T A
LATINOAMERICANA
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F U N D A M E N T A L

A obra contou com o apoio do Memorial da Justiça do Trabalho do


Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, no Rio Grande do Sul, que
tornou possível a publicação em formato digital, podendo ser acessada gratui-
tamente no site do Memorial,1 instituição que também organizou o lança-
mento do livro via redes sociais, em um momento delicado da pandemia de
Covid-19 no Brasil. Trata-se, então, de uma obra inovadora, com trabalhos de
autores de reconhecida importância e competência no âmbito nacional e inter-
nacional, de acesso aberto e gratuito — fato que não pode deixar de receber
menção nesta resenha.
Composto por uma coletânea de 19 capítulos escritos por psicanalistas
e pesquisadores do campo de interseção entre psicanálise e trabalho em
suas diversas manifestações, além de uma elucidativa introdução de Rosana
Coelho, o livro se divide em dois grandes eixos: 1. Sujeito e Instituições e 2.
Sociedade e Política.
O primeiro eixo se dedica a reunir capítulos que articulam a questão
do sujeito trabalhador e as instituições, no sentido amplo do termo: desde as
instituições de saúde mental e de segurança pública às empresas privadas.
Trata-se aí de uma interrogação muito produtiva sobre o atravessamento
482 que pode ter o trabalho psicanalítico e a escuta do sujeito no fazer cotidiano
dessas instituições. A psicanálise, malgrado não seja sempre convocada, tem
vocação para a escuta do sujeito em sua singularidade, podendo ocupar os
mais variados lugares institucionais, transmitindo um saber articulável desde
Freud. E de que é feito tal saber?
Freud utiliza largamente o sufixo arbeit em sua obra. Seja para o
trabalho do sonho, o trabalho de transferência, o trabalho de luto, a elabo-
ração ou perlaboração (Durcharbeiten), passando pelo importante conceito de
pulsão, que para ele está situado entre o somático e o psíquico, constituindo-
-se a partir de uma exigência incessante de trabalho feita ao aparelho psíquico
(Freud, 1905/2016). Freud sustentou que uma análise teria sucesso na medida
em que proporcionasse ao sujeito a capacidade de amar e trabalhar.2 Lacan,
por sua vez, relaciona o término da análise ao momento em que a satisfação
do sujeito encontra meios de se realizar na satisfação de todos aqueles com

1
Recuperado em 3 out. 2020 de: <https://www.trt4.jus.br/portal/portal/memorial>.
2
Marco Antonio Coutinho Jorge acrescenta ao amar e trabalhar o deliberar como capacidade
proporcionada por uma análise. O conceito de deliberação tal como trabalhado por ele é muito
importante e diz respeito ao processo de desrecalcamento (Cf. Jorge, 2017a e 2017b).

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quem se associa em uma obra humana (Lacan, 1953/1998, p. 322). Diante do


impossível da castração, cabe ao ser falante a possibilidade de realização de
um trabalho que, enquanto atividade que possui um sentido, só existe para
o humano. Em 1966, Lacan observou que o objeto da psicanálise não é o
homem, mas aquilo que lhe falta: não uma falta absoluta, mas a falta de um3
objeto (Lacan, 1966/2003, p. 218). Assim, poderíamos afirmar que o objeto
qualquer que falta é o motor de um trabalho possível, aquilo de que depende o
humano para fazer-se enquanto humano.
O trabalho tem relação íntima com o desejo na medida em que ambos
são mediados pela linguagem. Sobre este ponto, cabe observar que a psicaná-
lise tem muito a contribuir com o pensamento sobre as raízes das instituições
e o sentido de seus fundamentos, na medida em que mobiliza em sua base
teórica a presença necessária e primordial do Outro. Desde o “Projeto para
uma psicologia científica”, Freud já apresenta a importância do próximo para
os exercícios dos primeiros cuidados da criança mediante uma ação específica
direcionada ao infans,4 tendo como consequência “a importantíssima função
secundária da comunicação” (Freud, 1950[1895]/1996b, p. 241). Tais apon-
tamentos de Freud são fundamentais para a concepção das instituições em
nossas sociedades. 483
O segundo eixo de Psicanálise & Trabalho se dedica a reunir capítulos
que pensam o trabalho no aspecto social, político e filosófico em sua relação
com a psicanálise.
Os dois eixos do livro realizam, neste sentido, importantes incursões
sobre um campo no qual a psicanálise tem muito a dialogar com as huma-
nidades, desde a filosofia às ciências jurídicas e sociais. Trata-se, a meu ver,
da apresentação de um vasto campo de pesquisas em que se pode sustentar
conceitualmente e epistemologicamente a pavimentação de uma via para as
humanidades atravessada pela psicanálise, com seus inúmeros desdobra-
mentos éticos e políticos.
O acontecimento de Psicanálise & Trabalho no âmbito da Justiça do
Trabalho do Rio Grande do Sul é motivo de alegria e entusiasmo: afinal, a
psicanálise floresce e pode ocupar espaços variados, apontando para a possibi-
lidade do exercício da escuta do sujeito no seio das instituições e organizações

3
Realce meu para o artigo indefinido desta afirmação: um objeto – qualquer.
4
É neste fundamental trabalho que Freud afirma que o desamparo inicial dos seres humanos
é a fonte primordial de todos os motivos morais.

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que agenciam o trabalho. A cultura, se por um lado é formada e transmitida


pela palavra, também o é pelo trabalho. É nesse sentido que Freud aproxima o
trabalho ao amor e à criação artística em “O mal-estar na cultura”, como bem
marca Rosana Coelho em seu capítulo “Trauma, angústia e desamparo: contri-
buições da psicanálise à saúde mental no trabalho” (pp. 53-72), reverberando
a questão do trabalho e do mal-estar em concomitância com outros autores da
coletânea. É possível afirmar que, estruturalmente, toda a coletânea é atraves-
sada pelo eixo trabalho/mal-estar, em perspectivas variadas, retomando uma
questão relevante sobre o conceito de sintoma em seu enlaçamento subjetivo
que aproxima o trabalho de Freud (1930/2020) ao de Marx (1867/2013).
Em um momento histórico dramático em que a humanidade luta contra
a propagação de um vírus cujo principal efeito patogênico é a deterioração
pulmonar e a capacidade de respiração, a atuação política dos poderes cons-
tituídos na maioria dos países teve como principal meta a garantia de ar para
o maior número possível de pessoas. Este é, na verdade, o único caminho de
que dispomos: a respiração e a fala, traduzidas a partir do importante conceito
de pneuma (Abbagnano, 2012), que faz referência ao espírito e à palavra, mas
também aqui significando a entrada e a participação do ser falante no campo
484 da cultura e da linguagem, constitui uma dívida simbólica e, ao mesmo tempo,
como aponta Alain Didier-Weill (2011, p. 6), uma possibilidade de libertação
pela fala. Quando as instituições se deixam atravessar pela psicanálise, pela
escuta e pelo método clínico que ela mobiliza, há uma janela aberta para um
funcionamento institucional mais acolhedor para o sujeito e mais preparado
para elaborar as contingências e as marcas de sua singularidade. Em outras
palavras, um funcionamento voltado ao reconhecimento das diferenças e,
neste sentido, orientado por uma perspectiva de aceitação e acolhimento da
contradição.
É possível sustentar intervenções orientadas pela psicanálise nas relações
de trabalho como psicanálise em extensão, com foco na posição e nas relações
do sujeito com as instituições, no horizonte de seu acolhimento subjetivo e do
reconhecimento das diferenças e contradições inerentes à dinâmica sociopolí-
tica: perspectiva que traz para a cena, em primeiro plano, aportes sobre a ética
e a política da psicanálise.

Referências

Abbagnano, N. (2012). Dicionário de filosofia. São Paulo: WMF Martins Fontes.

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Coelho, R. (2020). Trauma, angústia e desamparo: contribuições da psicanálise à


saúde mental no trabalho. In Coelho, R., & Motta, D. A. da (Orgs.). Psicanálise
& Trabalho: retratos do contemporâneo. Porto Alegre, RS: Tribunal Regional do
Trabalho da 4ª Região.
Didier-Weill, A. (2011, jul-dez.). Psicanálise e direitos do homem. Trivium, 3(2), 1-6.
Freud, S. (1996a). Charcot. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (Vol. III). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho
original publicado em 1893).
Freud, S. (1996b). Projeto para uma psicologia científica. In Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. I). Rio de
Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1950[1895]).
Freud, S. (2016). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de
uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). In Obras completas
(Vol. 6; Paulo César de Souza, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.
(Trabalho original publicado em 1905).
Freud, S. (2020). Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos.
In Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte, MG: Autêntica.
(Trabalho original publicado em 1930).
Jorge, M. A. C. (2017a, jun.). Freud com Lacan: a psicanálise hoje. Reverso, 39(73),
15-26.
485
Jorge, M. A. C. (2017b). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan, vol. 3: a
prática analítica. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Escritos.
Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1953).
Lacan, J. (2003). Respostas a estudantes de filosofia. In Outros escritos. Rio de
Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).
Marx, K. (2013). O capital: crítica da economia política. São Paulo, SP: Boitempo.
(Trabalho original publicado em 1867).
.

Citação/Citation: Brocco, P. (2021, jun.). Tudo o que é ar: Psicanálise & Trabalho. Resenha
do livro Psicanálise & Trabalho: retratos do contemporâneo. Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental, 24(2), 481-486. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2021v-
24n2p481.14.
Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

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Submetido/Submitted: 2.4.2021 / 4.2.2021 Aceito/Accepted: 8.4.2021 / 4.8.2021


Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/
University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de
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que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted
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are credited.

Pedro broCCo
Psicanalista; Advogado; Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal
Fluminense – UFF (Niterói, RJ, Br). Associado ao Corpo Freudiano Escola de Psicanálise
Seção Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, RJ, Br).
Rua Pompeu Loureiro, 32 – Copacabana
486 22061-000 Rio de Janeiro, RJ, Br
pedrodbb@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-0690-6976

This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution,


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