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Contribuições à história intelectual

do Brasil republicano

Alexandre de Sá Avelar
Daniel Barbosa Andrade Faria
Mateus Henrique de Faria Pereira
(organizadores)

2012
Reitor | João Luiz Martins
Vice-Reitor | Antenor Rodrigues Barbosa Junior

Diretor-Presidente | Gustavo Henrique Bianco de Souza


Assessor Especial | Alvimar Ambrósio

CONSELHO EDITORIAL

Adalgimar Gomes Gonçalves


André Barros Cota
Elza Conceição de Oliveira Sebastião
Fábio Faversani
Gilbert Cardoso Bouyer
Gilson Ianinni
Gustavo Henrique Bianco de Souza
Carla Mercês da Rocha Jatobá Ferreira
Hildeberto Caldas de Sousa
Leonardo Barbosa Godefroid
Rinaldo Cardoso dos Santos

Coordenador | Valdei Lopes de Araújo


Vice-Coordenadora | Cláudia Maria das Graças Chaves
Editor geral | Fábio Duarte Joly

Núcleo Editorial | Núcleo de Estudos em História da


Historiografia e Modernidade

Editora | Helena Miranda Mollo

CONSELHO EDITORIAL

Luisa Rauter Pereira (UFOP)


Valdei Lopes de Araújo (UFOP)
Helena Miranda Mollo (UFOP)
Temístocles Cezar (UFRGS)
Lucia Paschoal Guimarães (UERJ)
© EDUFOP – PPGHIS-UFOP

Projeto Gráfico
ACI - UFOP

Editoração Eletrônica
Fábio Duarte Joly

FICHA CATALOGRÁFICA

Todos os direitos reservados à


Editora UFOP
http//:www.ufop.br e-mail : editora@ufop.br
Tel.: 31 3559-1463 Telefax.: 31 3559-1255
Centro de Vivência | Sala 03 | Campus Morro do Cruzeiro
35400.000 | Ouro Preto | MG
Coleção Seminário Brasileiro de História da
Historiografia

A coleção Seminário Brasileiro de História da Historiografia vem à luz com seus


primeiros títulos, frutos de cinco de seus Simpósios Temáticos acontecidos durante o
evento em 2011, o 5SNHH, cujo tema foi a Biografia e História Intelectual.
O leitor terá acesso a contribuições que vão das perquirições sobre a história do
tempo presente, a história da historiografia religiosa, historiografia da América,
historiografia brasileira no Oitocentos e as interfaces entre a história da historiografia e a
história das ciências.
Agradecemos a todos os organizadores dos volumes e principalmente aos autores,
que responderam prontamente ao desafio de rever seus textos após as discussões durante
os dias passados em Mariana.
O Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto,
a Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH) e o Núcleo de Estudos
em História da Historiografia e Modernidade convidam o leitor a continuar o trabalho de
todos aqui presentes nesses cinco livros, e multiplicá-lo.
Desejamos a todos uma boa leitura e esperamos revê-los em mais uma edição do
Seminário Brasileiro de História da Historiografia.

Os editores
Sumário

Apresentação................................................................................................................................................11

Introdução - História Intelectual do Brasil República:


desafios contemporâneos......................................................................................................................12
Alexandre de Sá Avelar, Daniel Barbosa Andrade Faria
Mateus Henrique de Faria Pereira

Interpretações do Brasil, marxismo e coleções brasilianas:


quando a ausência diz muito (1931-1959)....................................................................................27
Fábio Franzini

Drama social e história: memória política e


historiografia da década de 1930.......................................................................................................39
Marcelo Santos de Abreu

Assimetria das transformações: Nise da Silveira


(notas de pesquisa)....................................................................................................................................50
Ana Paula Palamartchuk

Os intelectuais e a revista Atlântico...................................................................................................69


Gisella de Amorim Serrano

O sertão e a Amazônia: de Oliveira Vianna a Foot Hardman................................................101


Alexandre Pacheco & Robson Mendonça Pereira

Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda


ao pé de página de Casa-Grande & Senzala.................................................................................112
Vanessa Carnielo Ramos
1964 nos textos do Bruxo Golbery...................................................................................................124
Ana Maria Koch

Os caminhos de um cineasta...............................................................................................................133
Paulo Roberto de Azevedo Maia

Escritos autobiográficos e escrita da história: historiografia e relatos


sobre o período militar brasileiro....................................................................................................140
Telma Dias Fernandes

Atuação do IHGB do Rio de Janeiro no cenário cultural republicano:


Ditadura civil-militar, 1969-1972....................................................................................................153
Jessica Suzano Luzes

Historiografia dos intelectuais no Brasil Contemporâneo.................................................165


Ana Marília Carneiro
10
Apresentação

Este livro reúne os trabalhos apresentados no Simpósio Temático “História da


historiografia e história intelectual do Brasil e do mundo contemporâneo” durante o V
Seminário Nacional de História da Historiografia, realizado, na cidade de Mariana, em 2011,
pelo Núcleo de Estudos de História da Historiografia e Modernidade (NEHM) da
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Agradecemos aos autores que confiaram seus
textos para este empreendimento, aos colegas do Núcleo, aos colegas da Sociedade
Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH), aos demais colaboradores para a
realização do livro, em especial, Helena Miranda Mollo, Fábio Joly e Izaac Erder.
Agradecemos também à Fapemig, à Capes e ao CNPq pelo apoio sempre necessário.

11
Introdução - História Intelectual do Brasil
República: desafios contemporâneos

Alexandre de Sá Avelar*
Daniel Barbosa Andrade Faria**
Mateus Henrique de Faria Pereira***

Uma das questões mais difíceis no que se refere à história da historiografia e à


história das ideias é a relação entre contextos/experiências e textos/discursos. A
dificuldade da questão é, por um lado, teórica; nela temos que lidar com conceitos
aparentemente simples, mas complexos, como os de “realidade histórica”, “experiência”,
“linguagem” etc. Por outro lado, há ainda a dificuldade narrativa propriamente dita.
Mesmo que bem preparado conceitualmente, um historiador pode tropeçar no momento
em que for construir seu relato, dando conta das interações sutis entre discursos, textos,
ideias e contextos históricos.
Tais advertências nos aproximam da proposição de Paul Ricoeur, que entendemos
como um postulado geral para a história intelectual, qual seja: “Se a vida social não possui
uma estrutura simbólica, não é possível compreender como vivemos, como fazemos
coisas e projetamos essas atividades em ideias, não há como compreender de que modo a
realidade possa chegar a ser uma ideia, nem como a vida real possa produzir ilusões”.1
Tendo em vista essas questões, nosso objetivo nessa breve introdução é refletir sobre os

*
Alexandre de Sá Avelar, Doutor, Professor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia,
UFU.
**
Daniel Barbosa Andrade Faria, Doutor, Professor do Departamento de História da Universidade de Brasília,
UNB.
***
Mateus Henrique de Faria Pereira, Doutor, Professor no Departamento de História do Instituto de Ciências
Humanas e Sociais na Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP.

1
RICOUER, Paul. Ideología y utopia. Buenos Aires: Gedisa, 1991, p.51.

12
desafios que estão colocados aos praticantes da história intelectual do período
republicano de nossa história.

As práticas da história intelectual nos dias de hoje denotam uma ausência de


modelos teóricos e conceitos bem definidos que indiquem caminhos seguros para a
interpretação de seus objetos – panorama que, de resto, não difere do conjunto mais
amplo da historiografia. As posições dos historiadores têm oscilado entre a percepção de
que se trata de um estado provisório da disciplina histórica – a ser posteriormente
superado por uma nova síntese – e a celebração das possibilidades abertas com a chegada
do tempo das “heresias ecléticas”.2 Por enquanto, os esforços mais promissores têm
buscado redimensionar o papel dos textos, evitando as respostas mais simplificadoras
para o seu estatuto de “documentos históricos”. Os textos, usados como fontes para a
história intelectual, de acordo com as abordagens mais densas, são compreendidos como
pertencentes a gêneros fronteiriços em constante diálogo entre si (textos literários,
filosóficos, científicos, historiográficos etc) e também como eventos históricos em si
mesmos ou então deflagradores de outros eventos.3
Ao pesquisador que se dedicar à inquirição teórica da história intelectual praticada
no Brasil, alguns desafios se lançam quase de imediato. Superamos a tradição de pesquisa
que enfatizava as ideias e os seus autores colocados em uma relação de quase
transparência entre discursos e contextos tidos como previamente explicativos? Aqui, o
risco – quase nunca evitado – era, e talvez ainda seja, o estabelecimento de uma dialética
do reflexo, em que as produções do intelecto seriam mecanicamente derivadas da
“realidade social” que lhes daria forma e sentido. Esta concepção estreita ocupou, por
muito tempo, campos diversificados, abrangendo Direito, Ciência Política, Sociologia e
Filosofia. Em uma versão um pouco mais sofisticada, tem-se o agrupamento dos textos – e
de seus autores – em certas correntes de pensamento, geralmente designadas pelas
clássicas categorias do liberalismo, socialismo, positivismo, marxismo etc. Cada uma

2
BACKZO, Bronislaw. Los imaginários sociales. Buenos Aires: Nueva Visión, 1991.
3
LACAPRA, Dominick. Intellectual History and its ways. The American Historical Review, v.97, n.2. p. 430-
431.

13
destas correntes teria, portanto, seus próprios pensadores, temas, métodos e teorias. Em
que pese a importância de toda classificação, muitas vezes ela passa a funcionar como um
catálogo que, ao invés de auxiliar o estudioso a compreender determinada obra e autor,
conduz a uma interpretação empobrecida e pouco problematizadora.
As fragilidades deste tipo de história intelectual – ainda largamente praticada – se
dimensionam especialmente pela pouca atenção conferida às questões relativas ao texto,
sua linguagem e recepção. Disto emerge, mais amplamente, a determinação da autoria e a
contextualização social como fatores principais da interpretação. A figura do autor, erigida
como matriz explicativa da obra, leva a uma busca infrutífera da recuperação das
intenções primárias e mesmo psíquicas que fundamentariam a criação de determinado
texto ou a tentativa da reconstrução de um mundo mental supostamente imanente à
escrita, ou seja, “todo o conjunto de princípios linguísticos, convenções simbólicas e
suposições ideológicas nos quais o autor viveu e pensou”.4 Não se trata aqui de retomar os
debates sobre a “morte do autor”, sobretudo em sua versão mais superficial: aquela que
diz que nada se pode aprender com o estudo da figura autoral. Trata-se, isto sim, de
entender como esta mesma figura é construída, social e historicamente, e em que medida
ela se confunde com a da autoridade interpretativa da obra. Ou seja: em que medida e sob
quais circunstâncias certos grupos sociais vivem a expectativa de que o autor tem a
“última palavra” sobre o texto.
Quanto à questão contextual, estabelecer os quadros de referência dos debates
nos quais certos discursos pretendem ou pretenderam intervir é, sem dúvida, fonte de
uma salutar precaução contra o anacronismo – em sua forma mais banal de naturalização
das condições de um certo presente e projeção dessas sobre outro passado. Dentro desta
perspectiva de reflexão sobre a história intelectual, a obra de Febvre sobre o problema da
incredulidade no século XVI tornou-se uma referência para o historiador interessado em
realizar o trabalho de recuperação das convenções e ambiências a partir das quais as
intenções autorais poderiam ser decodificadas.5 Febvre acreditava que a cultura literária
do Renascimento não dispunha de um universo linguístico em que seria possível a

4
HARLAN, David. A história intelectual e o retorno da Literatura. In: RAGO, Margareth e GIMENES, Renato
Aloizio de Oliveira. Narrar o passado, repensar a história. Campinas: UNICAMP – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, 2000, p.21.
5
FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.

14
expressão de um pensamento livre das influências do cristianismo. A criação estaria,
portanto, limitada à manipulação de um sistema linguístico prévio que estabeleceria um
horizonte de problemas e valores inescapáveis. Dentro deste pressuposto, se este sistema
fosse recuperado, os historiadores teriam acesso ao repertório de significados possíveis
aos leitores e autores situados em um determinado contexto, inscrevendo-os na história.6

II

Não por acaso, essas questões acima aludidas têm sido intensamente debatidas,
em outras latitudes e contextos, ensejando as reflexões dos maiores responsáveis pela
vitalidade teórica do campo da história intelectual. Autores, de resto tão diferentes entre
si, como Koselleck, Quentin Skinner e LaCapra, dedicam boa parte de suas obras à
abordagem teórico/metodológica relativa ao problema do contexto.7 Cada um deles tem
um impacto específico na produção de história das ideias no Brasil. Se a quantidade de
citações for um critério mais ou menos válido (mais ou menos porque citar um autor não é
o mesmo que incorporar, de fato, seus conceitos), Koselleck é aquele que, de longe, tem
uma presença mais marcante no Brasil. Quentin Skinner viria em segundo lugar.
Porém, mais importante do que fazer uma mensuração (aqui meramente
impressionista) sobre o impacto de suas obras, é aqui apresentar brevemente como cada
um deles propõe uma leitura mais sutil para a relação entre texto e contexto. Mais sutil,
destaque-se, comparando com uma abordagem que considera o texto como reflexo de
um contexto bem demarcado, geralmente. entendido como um cruzamento entre
situação social e cronologia. Essa abordagem parece pressupor que a história social estaria
mais próxima do solo da história, da “realidade”, e que os discursos, os livros, os textos
seriam reações ou, algumas vezes, meras reproduções desse “real”. É esse tipo de
pressuposto que pode fazer com que se acredite que a história social é mais histórica do
que a história das ideias.

6
POCOCK. J. O conceito de linguagem e o métier d´historien. In: Linguagens do ideário político. São Paulo:
Edusp, 2003.
7
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2006; LACAPRA, Dominick. Rethinking Intellectual History: texts, contexts, language.
Londres: Cornell University Press, 1983; SKINNER, Quentin. Fundações do pensamento politico moderno.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

15
Como cada um dos autores citados pensa sobre o assunto? Koselleck reorganiza a
discussão. Teríamos não tanto uma relação entre texto e contexto quanto entre conceitos
e experiência; não haveria, ainda, uma forma de causalidade mecânica, que conduzisse
uma experiência determinada a um conceito em particular. Os conceitos funcionariam
mais como respostas, produções de sentido destinadas a orientar os agentes da história
diante de uma experiência. Mas, além disso, os conceitos criariam horizontes, interferindo
na experiência. Não se trata aqui de uma relação dialética, mas de algo mais complexo:
uma rede bastante sutil de interações entre diferentes níveis da realidade. Assim, a título
de exemplo, a experiência social da aceleração do tempo foi assimilada, entre outras
possibilidades, pelo conceito moderno de História. Este, por sua vez, instaurou um
horizonte de expectativas relativo ao futuro, que orientou e orienta os agentes históricos
em suas escolhas.
Skinner tem a mesma atenção que Koselleck no que se refere ao vocabulário, mas
seu trabalho tem perspectiva diversa. O que os aproxima é a ideia de que um vocabulário,
uma rede conceitual, não é um mero ornamento para a ação; pelo contrário, trata-se de
algo que constitui, num determinado momento, o que é pensado como possível ou
impossível, o que deve ser feito ou evitado. Por outro lado, Skinner é mais preocupado
com o aspecto conflituoso da história das ideias. Se Koselleck desenha horizontes
compartilhados, Skinner fala mais sobre debates, polêmicas, conflitos. As ideias não
seriam, assim, uma tentativa de organizar experiências, mas armas forjadas para a
intervenção num conflito. O vocabulário seria como que o conjunto de regras que criam
um terreno para os embates da história: portanto, o vocabulário como um contexto
pragmático. Um exemplo: Skinner entende que, para se compreender além do “significado
pretendido”, é necessário pensar o “modo de recepção” do mesmo texto.
Dos três, LaCapra é o mais textualista. Embora ele não recuse completamente a
ideia de contexto, em seus trabalhos este parece reduzido a um mínimo e quase toda
atenção é voltada para outro aspecto: o da intertextualidade. Segundo essa percepção,
um texto é uma montagem, uma aglomeração de textos, conceitos, os mais diversos. O
trabalho do historiador seria, no caso, delinear essa mescla, mostrar como, em sua
tessitura interna, um texto dialoga com outros, abrindo-se para a história.
Não é o caso, aqui, de optarmos por uma dessas três alternativas – tampouco
defendemos um ecletismo frouxo. Do ponto de vista dessa apresentação, o mais

16
importante é observar como diante das teorizações aqui brevemente comentadas, a
imagem do contexto como “realidade social” prévia e dos discursos como reflexos,
mecânicos ou dialéticos, dessa dita realidade soa bastante ingênua. Em primeiro lugar,
pela complexidade própria a um texto; em segundo, pela complexidade da relação entre o
texto e aquilo que lhe é exterior. Sob este aspecto, cabe a indagação do que se deve
considerar como o contexto a ser reconstruído. Certamente, deveríamos falar em
instituições, tradições literárias e religiosas e, ainda, outras fontes culturais. Não
poderíamos passar ao largo das pressões econômicas e sociais. Lacapra nos lembra, deste
modo, de uma multiplicidade de contextos, “cada um devendo conter não somente
outros escritores e leitores contemporâneos, mas também as tradições encobertas e até
mesmo os impulsos em parte reprimidos os quais não se conformam às convenções que
prevalecem numa comunidade qualquer”.8
Nesse sentido, podemos dizer que há recusas do uso do contexto no sentido
retórico, argumentativo e interpretativo na medida em que esses e outros autores, como
Jacques Revel, nos levam a pensar que não “existiria um contexto unificado, homogêneo,
dentro do qual e em função do qual os autores determinariam suas escolhas”. Portanto, “o
que é proposto, ao contrário, é construir a pluralidade dos contextos que são necessários à
compreensão dos comportamentos observados”.9 Revel destaca ainda que o uso retórico
da noção de contexto é muitas vezes apresentado no início de um estudo para produzir
um efeito de realidade em torno do objeto estudado; ao passo que o uso argumentativo
possibilitava ao pesquisador enquadrar uma realidade particular em um lugar dentro de
determinadas condições gerais; por fim, o uso interpretativo pretendia extrair do contexto
as razões gerais que explicavam situações particulares. O autor propõe inverter o
procedimento habitual que consistia de partir de um contexto geral para situar e
interpretar o texto. Toda essa discussão pode nos indicar caminhos menos ingênuos no
que se refere às relações entre texto, contexto, conceito e linguagem.

8
Apud HARLAN, David. Op.cit., p. 38.
9
REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In: _________ (org.). Jogos de escalas: a experiência
da microanálise. Rio de Janeiro: FVG, 1998, p. 27-28.

17
III

Tendo em vista a potência dessas reflexões, é desejável repensar os conceitos, as


periodizações e os problemas que têm orientado as pesquisas sobre o período
republicano? Em outras palavras, seria possível escrever uma história contemporânea
desse momento histórico? Uma história que construa uma relação com o próprio tempo,
criando uma espécie de adesão, mas ao mesmo tempo, tomando distâncias, “mais
precisamente, essa relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e
um anacronismo. (...). Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e
não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo”. 10
Como se sabe, periodizar é tomar partido sobre o que muda e quando, porém,
muitas vezes, um recorte temporal tem apenas eficácia didática e institucional
engessando a compreensão de certas complexidades.11 Nesse sentido, como ir para além
dos atuais marcos que têm conduzido a maior parte dos estudos sobre os anos que se
iniciam em 1889 e chegam até os nossos dias; ou, se quisermos em outros termos, dos
diversos contextos dos séculos XX e XXI brasileiros?
Podemos dizer que a historiografia produzida neste século contribuiu com êxito
para problematizar e superar questões que singularizam as subperiodizações do período
republicano, com exceção do período após 1985 onde há uma escassez de trabalhos.12
Mas, são raros, por exemplo, os trabalhos que se arriscam em análises estruturais e de
longa duração; além disso, nos falta uma maior relação com outras espacialidades. Por
vezes, a história do Brasil é narrada como se ela não estivesse conectada com outras

10
Sobre esse ponto ver, em especial, AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios.
Chapecó: Argos, 2009. (p. 59 e 65). Grifo no original.
11
Ver, em especial, POMIAN, Krzysztof. Periodização. Enciclopédia Einaudi, volume 29,
Tempo/temporalidade. Impressa Nacional, 1993, p. 164-213.
12
Ver, por exemplo, FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2001; CARVALHO, José
Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; FERREIRA, Jorge,
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003,
4 v.; LOPEZ, Adriana; MOTA, Carlos Guilherme. História do Brasil. Uma interpretação. São Paulo: SENAC,
2008. Dois dossiês recentes organizados pela revista Tempo mostram a vitalidade, mas também os limites,
dos estudos de alguns dos sub-períodos do Brasil república. FERREIRA, Jorge. 1945-1964: A experiência
democrática no Brasil. Apresentação. Tempo. Vol.14, n.28, 2010, p. 11-18; GOMES, Ângela de Castro e
ABREU, Martha. A nova “Velha” República: um pouco de história e historiografia. Apresentação. Tempo.
Vol.13, n.26, 2009, p. 1-14.

18
realidades nacionais em suas semelhanças e diferenças.13 Poderíamos mesmo nos
perguntar que tipo de pressuposto reside em definições, nem sempre explicitadas, sobre o
que demarcaria, afinal de contas, uma “historiografia brasileira”. Seria esta a historiografia
feita por historiadores brasileiros? E os historiadores estrangeiros que têm contribuições
significativas à história do Brasil? Ou, então, a “historiografia brasileira” seria aquela que
tem o Brasil como objeto de reflexão, conteúdo? Neste caso, historiadores brasileiros que
discutem temas internacionais seriam participantes de que tradição historiográfica? Seu
lugar seria o limbo?14 Ou, por fim, a “historiografia brasileira” seria aquela escrita em língua
nacional? Neste caso, um livro traduzido para o português passaria a fazer parte desta
historiografia?
Um exemplo de enfrentamento das limitações criadas por fronteiras geográficas
está nas recentes discussões sobre a Comissão da Verdade que, de algum modo, “conecta”
a história do Brasil à da África do Sul e de outros países da América Latina. De algum
modo, em um passado recente nesses lugares buscou-se algum tipo de resposta política
para a seguinte pergunta: é possível perdoar/anistiar os agentes de Estado que torturaram
e/ou sequestraram (criando a sinistra figura do desaparecido), a partir de ordens diretas
e/ou indiretas dos “responsáveis” de um regime autoritário?15 O quanto estas experiências
outras dizem a respeito das nossas próprias experiências com um passado que parece se
recusar a passar? As “conexões” entre temporalidades e espacialidades diversas são mais
raras ainda, mas necessárias.16
O medo do anacronismo e o mito de “comparar o comparável” tanto da nossa
“história em si”, quanto de “outras histórias” talvez possam ser elementos que expliquem o

13
Para uma tímida tentativa de problematização desse quadro, ver, por exemplo, FICO, Carlos et al..
Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 2008.
14
Exemplo: um dos melhores livros de história das ideias surgido no Brasil em tempos mais recentes soa
quase “exótico” em sua temática – o que, talvez, explique sua pouca repercussão: Sonia Lacerda. As
metamorfoses de Homero. História e Antropologia na Crítica Setecentista da Poesia Épica. Brasília: EdUnB,
2003.
15
LEFRANC, Sandrine. Politiques du pardon. Paris: PUF, 2002. Ver também, entre outros, TELES, Edson L. A.
Entre justiça e violência: estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul. In: TELES, Edson;
SAFATLE, Vladimir. (Org.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010;
ROUQUIÉ, Alain. À l’ombre des dictatures: la démocratie en Amérique Latine. Paris: Albin Michel, 2010;
SZNAJDER, Mario; RONIGER, Luis. O legado de violações dos direitos humanos no cone sul. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
16
A esse respeito ver o texto de José Otávio Nogueira neste livro.

19
atual quadro.17 Nessa direção, um desafio atual é compreender as aproximações (bem
como os distanciamentos) entre as duas experiências autoritárias e as três experiências
democráticas, bem como relativizar a dicotomia autoritarismo e democracia, fazendo
emergir novas possibilidades de análise e relativizando antigas certezas cronológicas e
conceituais.

IV

Ao reunirmos ensaios de distintas matrizes conceituais e teóricas – e confessamos


nossa predileção por esta seleção eclética – forçoso torna-se estabelecer critérios que
possam servir de guia para o leitor. Entre o arsenal de temas que fertilizaram nossa história
intelectual, o debate sobre a democracia e nação nos parece aquele capaz de concatenar
os textos aqui escolhidos. Repensar e resignificar esses conceitos centrais pode ser uma
chave para enfrentarmos alguns dos desafios contemporâneos da história intelectual.
Ao que tudo indica, a historiografia brasileira (ao menos nas notas de rodapé)
abandonou a visão ingênua do contextualismo puro. Contudo, alguns temas
insistentemente repetidos, e tomados como pressupostos dão a entender que ainda
estamos diante de grandes desafios, como já nos referimos. Vamos nos deter, mesmo que
rapidamente, em dois exemplos: a imagem da república atrasada até 1930 e a questão de
redemocratização pós 1985.
Toda uma discussão historiográfica já mostra como, em meio aos embates políticos
das décadas de 1920 e 1930, foi se cristalizando a imagem da república oligárquica,
atrasada – e, por conseguinte, da nação incompleta – cujos intelectuais seriam incapazes
de pensar por si próprios, sendo meros repetidores, “importadores de ideias”.18 O
modernismo, com o marco de 1922, seria o momento em que esse mal teria sido ou
resolvido ou enfrentado. A partir de uma luta política, cristalizou-se uma concepção sobre
o estado da sociedade (concepção, esta, bastante questionável, dados os seus

17
Sobre a utilidade do anacronismo para o historiador, ver LORAUX, Nicole. O elogio do anacronismo. In:
NOVAES, Adauto (org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992 e RANCIÈRE, Jacques. O
conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON. Marlon (org.). História, verdade e
tempo. Chapecó: Argos, 2011.
18
BRESCIANI, Maria Stela. O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre os
intérpretes do Brasil. São Paulo: UNESP, 2005.

20
pressupostos sobre a existência de uma linha evolutiva da civilização moderna, na qual o
Brasil estaria atrasado) que ainda hoje rebate na história das ideias do período. É um
pressuposto, bastante disseminado por sinal, o de que os escritores do período eram
alienados cosmopolitas. Não é difícil notar que há aqui aquela mesma visão ingênua em
relação ao contexto como matriz explicativa para a história das ideias: uma sociedade com
baixos índices de urbanização só poderia gerar uma elite intelectual importadora de
modelos, formas de pensamento e visões de mundo.
Ficamos ainda mais perplexos quando notamos, neste caso, de que contexto se
trata. Lembrando-nos que o contexto histórico é, ele também, construído
historiograficamente, o que geralmente se vê com o atributo de “realidade nacional” é um
tecido de ideias e imagens composto pela tradição dos lugares-comuns presentes nas
mais diversas “interpretações do Brasil” para as quais, segundo Stella Bresciani,
participam as ideias de que a natureza dos trópicos é adversa à civilização, de que a
população brasileira tem características sociais, culturais e psicológicas contrárias à
imagem da maturidade política cidadã atribuída ao liberalismo, de que as elites
intelectuais do país limitaram-se a importar modelos teóricos e ideias europeias, sendo
portanto incapazes de enxergar a “realidade nacional”. Monta-se assim um quadro de
carências constitutivas da história brasileira, as quais teriam como dimensão afetiva o
ressentimento com relação ao país que insistiria em “não dar certo”. Aos lugares-comuns
e ao ressentimento soma-se ainda a autoproclamada tarefa dos intelectuais como
aqueles que deveriam indicar o caminho a seguirmos, apontando falhas e vícios de
formação do país e desvelando as possibilidades da realidade encoberta.
Projetados sobre a Primeira República, tais lugares-comuns constituem as
imagens de uma época de intelectuais cosmopolitas e alienados (geralmente
pressupondo-se que o cosmopolitismo é, em si mesmo, sintoma de alienação) – os quais
seriam meros frutos de uma realidade social, ela também, atrasada. Ideia de atraso que
pressupõe a existência de um único tempo universal e homogêneo, uma escala
evolutiva determinada – pois somente assim, alguém poderia dizer que um país ou uma
nação estaria “à frente” de outro. Pressupõe, ainda, uma imagem idealizada desses
países que encarnariam a civilização no que ela teria de mais avançado. E, por fim, do
ponto de vista metodológico, aposta que as ideias estão ou deveriam estar confinadas a
contextos territoriais nacionais, indo de encontro a tudo o que se diz atualmente sobre

21
circulação e interação de discursos e tomando, como dado apriorístico, o recorte do
Estado-Nação como realidade histórica fundamental.
Quanto à redemocratização, uma estratégia muito eficaz, forjada nos debates sobre
a anistia, foi a de construir a imagem de uma ruptura radical com a ditadura de 1964: a
ditadura ficou no passado. Em 1985, o Brasil teria se tornado, repentinamente, outro.
Deste modo, seja como “feridas do passado” – e que, como tais, ali deveriam permanecer –
no discurso dos militares que recentemente se mostraram contrários à abertura dos
arquivos, seja como “memória” de um passado distante, uma vez que estaríamos numa
outra era democrática, uma determinada presença do passado brotou de estratégias
políticas bem específicas e criou a imagem de uma ruptura na experiência social e política
brasileira. O autoritarismo aparece, então, como algo bem delimitado, historicamente: em
tempos que nos parecem cada vez mais distantes.
Podemos perceber o impacto dessa imagem na questão do esquecimento a que
foram relegados os pensadores ditos autoritários brasileiros, como se eles fossem uma
anomalia em nossa tradição de pensamento. Cite-se, novamente, o caso do modernismo
em que os autores considerados “autoritários” ou “de direita” passaram a ser estudados
(quando eram) como desviantes, infiltrados e mesmo “falsos modernistas”. É como se o
autoritarismo emergisse como algo estranho, alheio e mesmo adverso às tradições
intelectuais brasileiras. Outro exemplo é a exaltação recorrente à figura pública de Getúlio
Vargas e sua política cultural, de patrimônio etc – geralmente, nos termos que ele mesmo
e seus assessores propagandistas inventaram (figura paternal, apaixonado pela brasilidade
e protetor do povo esquecido pelas elites insensíveis).
O caso da ditadura militar é um pouco diverso, porque, quanto a esta, todos
reconhecem o caráter autoritário; aqui o esquecimento (ou, dizendo melhor,
silenciamento) adotou outras estratégias: a imagem de que todos foram vítimas ou
resistiram, e de que o autoritarismo brotou de dentro das corporações militares contra a
vontade da sociedade (muito usado por jornalistas que se declaram paladinos da
democracia), a ideia de que se trata de um passado ultrapassado, quase pré-histórico,
como se não existisse mais tortura, e o problema dos desaparecidos estivesse superado.

22
Em suas Seis propostas para o próximo milênio, Italo Calvino,19 afirma que o
espelho retrovisor criou a possibilidade inédita de enxergamos o que está atrás, fora de
nosso campo natural de visão. Sendo que, justamente, a invisibilidade do que ficou para
trás seria uma das matrizes da experiência do pânico: a sensação, comum em pesadelos,
de estarmos sendo perseguidos por um desconhecido que apressa seus passos no mesmo
ritmo que nós – e, por outro lado, o alívio sentido quando passamos por uma porta e a
fechamos rapidamente. Não somente pela segurança do abrigo, mas porque fechando a
porta tiramos o que nos persegue do nosso campo de visão. Como sempre, Calvino fez
uma observação repleta de acuidade. Mas, produziu uma visão um tanto idílica do espelho
retrovisor ao não notar um problema deste artefato: o famoso ponto cego, o ponto de
invisibilidade que parece se dever a uma impossibilidade física e não apenas um problema
de melhor ou pior design (porque a única forma de vermos todo o campo que ficou para
trás seria recorrendo a um espelho que encobrisse todo nosso campo de visão. Mas, então,
não poderíamos ver o que se passa à nossa frente). A pergunta que nos vem é: ao falarmos
tanto sobre a ditadura militar, não poderíamos ter também alguns pontos cegos? Quantas
seriam e quais as durações das múltiplas formas de autoritarismo e pensamento
autoritário no Brasil? É de se notar que os regimes de exceção não se autodescrevem
como autoritários: ocultam-se em termos como “democracia social”, “estado de exceção
rumo à normalidade”, “propagação da democracia pelo mundo”, “sacrifício desinteressado
e apolítico de parte de profissionais da ordem social”, “forma de evitar o ressurgimento de
conflitos e revanchismos” etc. Estamos longe de algo fixado e bem definido.
Que tipo de implicação isso tem para a história intelectual? Podemos destacar duas.
A primeira é o pressuposto de que a cultura autêntica, ou algo como “a verdadeira
tradição intelectual brasileira” é a da resistência democrática. Não haveria um humanismo
ditatorial. Mas também não se explica porque houve tanto investimento dos órgãos
oficiais em cultura e porque intelectuais e artistas renomados participaram de ações
estatais. Não é o caso aqui de negar a existência e o valor de ações de resistência cultural,
mas apenas de questionar a naturalidade pressuposta para o campo da cultura e das
ideias como automaticamente não-autoritários. A segunda implicação retoma o assunto

19
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o novo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.

23
do “contexto histórico”. Citemos, apenas a título de exemplo, o romance Quatro-olhos de
Renato Pompeu.20 Ele foi publicado em 1976 e tem em sua trama relações evidentes com a
ditadura. O protagonista é alguém que enlouquece devido ao ambiente sufocante da
perseguição. Este romance pode ser lido como uma alegoria da ditadura? Sem dúvida.
Mas, além disso, ele pode ter outros sentidos. Mesmo nos atendo à questão da
perseguição e do autoritarismo, outras contextualizações possíveis, perfazendo outras
durações e periodizações, poderiam dar ao romance outras dimensões históricas. Não
necessariamente delimitadas à década de 1970. Isto porque um texto, em sua
complexidade, dialoga com várias historicidades, sobrepostas, misturadas, conflitantes.
Nada impede um historiador de tratar o romance de Renato Pompeu como um
documento sobre a ditadura. Mas, por outro lado, nada assegura o pressuposto de que
essa seja a única e mesmo a mais desejável leitura histórica do livro.
Ao final, poderíamos recuperar um debate que muitos davam por esgotado: o das
ideias e os seus lugares. Mas não o faremos, nos termos de Roberto Schwarz e Maria Sylvia
Carvalho Franco, a partir da avaliação da adequação ou inadequação dos discursos à nossa
“realidade” – aqui invariavelmente delimitada pelo modo de produção. Pensemos em
outros lugares para as ideias, outras possibilidades de escrita, outros locus de enunciação.
A ampliação dos contatos com a crítica literária – campo já bastante pródigo no exercício
crítico dos textos eruditos – oferece um caminho de abertura para novas reflexões e
problematizações.21 Outra chave de leitura que pode produzir estimulantes resultados é
dada pelo recurso à retórica, especialmente a partir dos estudos sobre as formas de
elocução do discurso e dos instrumentos de persuasão, sobremaneira fornecidos pelos
usos diversificados dos tropos.22 A história política renovada, sobretudo no que toca às
análises sobre os intelectuais, amplia o campo de compreensão dos processos de
constituição autoral.23 Estes campos abertos – e pelos quais os textos aqui reunidos
transitam – formatam diversificadas estratégias de enfrentamento a pelo menos três

20
Renato Pompeu. Quatro-Olhos. São Paulo: Editora Alfa-ômega, 1976.
21
Para David Harlan: “O retorno da literatura mergulhou os estudos históricos numa profunda crise
epistemológica, questionando nossa crença num passado fixo e determinável, comprometendo a
possibilidade de representação histórica e abalando nossa habilidade de nos localizarmos no tempo”. Ver
HARLAN, David. Op.cit., p.16.
22
CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi, n.1, 2000,
p.145.
23
SIRINELLI, Jean François. Intellectuels et passions françaises. Paris: Fayard, 1990.

24
desafios lançados pela crítica pós-estruturalista: a desconfiança em relação ao sentido fixo
e determinado da narrativa histórica; a convicção de que a linguagem é um sistema
autônomo de transformações não intencionais; e as incertezas quanto às capacidades
representacionais. Os impulsos mais recentes da profissão historiadora parecem nos
sinalizar em direção a uma história intelectual menos limitada a uma apreciação intrínseca
das obras e dos processos ideológicos e que possa falar não apenas sobre o nosso
passado, mas sobre o nosso presente.

25
Interpretações do Brasil, marxismo e coleções
brasilianas: quando a ausência diz muito (1931-
1959)

Fábio Franzini*

Na história da historiografia brasileira, tanto o marxismo quanto as chamadas


“coleções brasilianas” ocupam lugar de destaque, graças às obras que produziram, no caso
do primeiro, e publicaram, no caso das segundas. No entanto, ambos formam um curioso
binômio quando tomados em conjunto: embora sejam frutos da mesma época e
estivessem, de certa forma, imbuídos de propósitos semelhantes, suas ações correm em
paralelo, sem jamais se tocarem. Mais precisamente, as análises e interpretações da
história e da realidade brasileiras formuladas sob o referencial da teoria marxista nunca
encontraram lugar nos prestigiosos conjuntos de volumes publicados pelos grandes selos
do país entre as décadas de 1930 e 1950 – a Coleção Brasiliana, da Companhia Editora
Nacional, e a Coleção Documentos Brasileiros, da Livraria José Olympio Editora.
Tal desencontro poderia, a princípio, ser atribuído às tensões político-ideológicas
do período, e com certa razão; como Rodrigo Patto Sá Motta bem o demonstra (PATTO SÁ
MOTTA, 2006: 136, passim), particularmente após 1935 os livros considerados
“subversivos” – isto é, associados de alguma maneira ao comunismo – também se
tornaram vítimas do aparato repressivo estatal, preocupado, como sempre, com a
“manutenção da ordem”. Para além desse pano de fundo, contudo, há que se lembrar
outros fatores candentes e em direta associação à época, como o interesse crescente pela
compreensão da realidade e da formação brasileiras, a expansão do mercado do livro e as
demandas e vicissitudes a ela associadas, tudo isso dentro de um sistema intelectual um
tanto limitado. Um cenário bem mais multifacetado e complexo, cujo exame pode lançar

*
Fábio Franzini, Doutor, Professor da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal
de São Paulo, UNIFESP.

27
luz significativa sobre os caminhos da historiografia nacional na primeira metade do
século XX e as formas de circulação do saber por ela produzido.
Ainda que seja difícil definir com precisão o momento específico em que esse
cenário toma forma, é certo que na passagem dos anos 1920 para 1930 ele já está bem
delineado em seus contornos básicos.1 Com a revolução de 1930, o presente em ebulição
e as incertezas do futuro impuseram, entre outras coisas, a exigência pelo
aprofundamento e pela sistematização das reflexões que se desenvolviam havia algum
tempo; como escreveria um dos grandes intelectuais da época, Afonso Arinos de Melo
Franco, assistia-se então ao “contato cada vez mais estreito da inteligência com a
realidade”, algo que propiciava a “recuperação do Brasil pelo seu próprio pensamento”
(FRANCO, 1938: 121-122).
Junto aos intérpretes da realidade, também os editores ganharam papel
fundamental nesse processo: primeiro, por se multiplicarem em todos os pontos do país
(ainda que as principais empresas se concentrassem no Rio de Janeiro, por razões óbvias) a
exercer a imprescindível tarefa de converter manuscritos em impressos; depois, por
acreditarem, tal como Monteiro Lobato na década anterior, que “um país se faz com
homens e livros”, empenhando-se em por a nação em sintonia consigo mesmo e com o
mundo por meio da publicação de nossos novos autores, em diferentes gêneros, e de
traduções de títulos clássicos e contemporâneos; finalmente, por criarem produtos
diferenciados, como as coleções, que, ao reunirem obras dotadas de certa especificidade
temática,2 acabaram por se converter em “um dos espaços privilegiados para a veiculação
do pensamento da época”, segundo Heloisa Pontes (PONTES, 2001: 449).
Logo, não é por acaso que a primeira grande difusão do marxismo no Brasil e o
surgimento das “brasilianas” ocorrem praticamente ao mesmo tempo. Conforme Edgard
Carone (CARONE, 2004: 63), após 1930 acontece “a multiplicação espantosa de livros
marxistas e de editoras voltadas exclusivamente a esta linha de pensamento, ou de outras
que publicam esse gênero, por ser de venda garantida”. Editoras como Pax, Cultura
Brasileira, Calvino, Unitas, Caramuru, Nosso Livro, Alba, Editorial Trabalho e tantas outras,
em geral pequenas e efêmeras, dedicaram-se aos clássicos do marxismo (em geral

1
A este respeito, ver: FRANZINI, 2010.
2
Sobre a particularidade editorial das coleções, ver: TOLEDO, 2001: 4-8.

28
traduzidos do francês), à literatura “de esquerda” (Gorki, Tolstoi, John Reed etc.) e, em
menor proporção, a trabalhos originais de autores brasileiros, como Raul Maia e Almachio
Diniz; além disso, Carone observa – e Motta (PATTO SÁ MOTTA, 2006: 137) confirma – que,
junto aos tratados teóricos e aos romances, “pela primeira vez são publicadas obras de
viagens à Rússia, de autoria de estrangeiros e de brasileiros”, que despertavam interesse a
ponto de “o livro Rússia, de Maurício de Medeiros, ating[ir] em poucos meses seis edições
consecutivas. Verdadeiro sucesso em um país onde as edições oscilam entre 2 mil e 3 mil
exemplares e duram anos para se esgotarem” (Idem: 64).
Enquanto isso, a Companhia Editora Nacional lança, em 1931, a série que, pelo seu
sucesso, se tornaria sinônimo de uma “biblioteca metafórica do país” (SORÁ, s/d: 11): a
Coleção Brasiliana. Dirigida pelo respeitado educador Fernando de Azevedo, ela tinha por
objetivo reunir “ensaios sobre a formação histórica e social do Brasil, estudos de figuras e
de problemas nacionais (geográficos, etnológicos, políticos, econômicos, militares etc.),
reedições de obras raras de notório interesse e traduções de obras estrangeiras sobre
assuntos brasileiros”, configurando-se, dessa forma, como “a mais vasta e a mais completa
coleção e sistematização que se tentou até hoje de estudos brasileiros” (ANUÁRIO, 1938:
303). Na prática, tal perspectiva levou à publicação de autores nacionais e estrangeiros,
alguns bem conhecidos, outros novos e trabalhos tanto originais quanto reeditados; uma
miscelânea, mas da qual se sobressaía um traço marcante: o apelo à história. Desde o livro
inaugural, Figuras do Império e outros ensaios, de Batista Pereira, a sucessão dos volumes
revelava que “descobrir o Brasil aos brasileiros” equivalia a promover o encontro do
presente com o passado, fosse sob a forma de biografias e ensaios político-sociais, fosse
sob a forma de relatos históricos e obras de caráter historiográfico.3
Cinco anos depois, sob clara inspiração da Brasiliana, o editor José Olympio
também dá início à sua própria série dedicada ao “descobrimento do Brasil”, a Coleção
Documentos Brasileiros. Tendo à frente Gilberto Freyre, àquela altura já consagrado por
Casa-grande & senzala (1933), o espírito do projeto foi apresentado com precisão no
prefácio, assinado pelo próprio Freyre, ao seu primeiro volume, Raízes do Brasil, do jovem
crítico e professor Sérgio Buarque de Holanda:

3
Para o detalhamento das características da Coleção Brasiliana e de seu projeto editorial, ver: DUTRA, 2006.

29
A série que hoje se inicia com o trabalho de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes
do Brasil, vem trazer ao movimento intelectual que agita o nosso país, à ânsia de
introspecção social que é um dos traços mais vivos da nova inteligência
brasileira, uma variedade de material, em grande parte ainda virgem. Desde o
inventário à biografia; desde o documento em estado quase bruto à
interpretação sociológica em forma de ensaio.

O característico mais saliente dos trabalhos a ser [sic] publicados nesta coleção
será a objetividade. Animando-a, o jovem editor José Olympio mais uma vez se
revela bem de sua geração e do seu tempo. Ao interesse pela divulgação do
novo romance brasileiro ele junta agora o interesse pela divulgação do
documento virgem e do estudo documentado que fixe, interprete ou esclareça
aspectos significativos da nossa formação ou da nossa atualidade. Não podia ser
mais oportuna nem mais feliz a sua iniciativa (FREYRE, 1936a: V).

Como se depreende do texto de Freyre, a essência da nova coleção revelava-se em


seu comprometimento com aquilo que trazia já no próprio nome e várias vezes repetido
no texto de apresentação: o documento. Desencavado do passado ou produzido no
presente, em “estado quase bruto” ou analisado de forma criteriosa, ele estaria na base
dos trabalhos a serem publicados, como dito praticamente a cada parágrafo. O propósito
era, parece claro, a afirmação de um conhecimento verdadeiro sobre o Brasil, do
conhecimento do Brasil real, fundamentado não em reconstruções ou especulações e sim
em interpretações comprováveis a seu respeito. Numa palavra, tratava-se de afirmar o
conhecimento científico sobre o Brasil, elaborado por especialistas que davam “vida” aos
documentos para juntá-los “à história social do brasileiro” (Idem: VII).
Não é difícil perceber, assim, que o marxismo também poderia ser considerado
parte daquela “ânsia de introspecção social” que, segundo Freyre, caracterizava então a
“nova inteligência brasileira”. A repercussão do livro de estreia de Caio Prado Junior,
Evolução política do Brasil. Ensaio de interpretação materialista da história brasileira, bem
o demonstra: ainda em 1933, pouco depois do seu aparecimento, um breve comentário de
Adhemar Vidal (VIDAL, 1933: 211) nas páginas do Boletim de Ariel o qualificava como uma
obra “apressada” e a exigir revisão, “tantas as falhas injustificáveis”, mas que representava,
“assim mesmo como está, um nobre esforço mental: bem escrito e, sobretudo, muito
interessante”. Menos de um ano depois, na mesma revista, uma resenha de página e meia,

30
assinada por Raul Karacik, principiava por notar “a sede de leitura” que vinha “empolgando
o Brasil” após a “Revolução de Outubro de 1930”, apresentando a sua visão particular do
significado desse verdadeiro despertar:

Nunca se leu tanto entre nós. Aí estão as casas editoras a se multiplicarem e a


lançarem incessantemente em tradução as principais obras dos mais notáveis
escritores destes últimos anos. Stefan Zweig, Emil Ludwig, Maurois, Freud,
Havelock Ellis, Gladkov, Ilya Ehrenburg etc. vão se tornando familiares do
público que lê.

Os temas políticos e sociais, entretanto, são os que têm caído mais no nosso
agrado, principalmente as obras de Marx e Engels e seus maiores discípulos, e as
que versam sobre a Revolução Russa e suas consequências. As edições em
português das obras de Marx, Engels, Plekhánov, Lênin, Trotski, Bukhárin, Max
Beer... têm se sucedido (KARACIK, 1934: 158).

Para Karacik, o interesse pela literatura marxista devia-se, “evidentemente”, à


própria revolução de 30, a qual, “se não foi uma revolução profunda, que modificasse as
relações sociais, arrastou uma grande massa, interessando a toda população, trazendo à
superfície uma vasta messe de problemas que passavam antes despercebidos da maioria”.
Como estes problemas “não podiam deixar de suscitar nos meios intelectuais a atenção
para eles”, os “intelectuais honestos, despidos de preconceitos” acabavam por direcionar
suas preferências para “sociólogos, economistas e historiadores materialistas, sobretudo
da ala esquerda” [sic], donde o aparecimento de escritores por eles influenciados e de
edições “de obras abordando o ‘caso’ brasileiro”. Todas essas considerações, dizia o
articulista, “vieram a pelo ao concluirmos a leitura do livro do sr. Caio Prado Junior, da
aristocrática família paulista – A [sic] Evolução Política do Brasil”, autor que demonstrava
ser “um perfeito possuidor do método dialético-materialista, que maneja com
desenvoltura” (Idem: 158).
Após por em relevo os aspectos estruturantes do livro – a lógica da colonização, os
conflitos de interesses entre colônia e metrópole, a transferência da Corte e a
independência, as turbulências da Regência, o escravismo e o abolicionismo –, Karacik
concluía seu texto aconselhando “a leitura desta magnífica obra, que, como já dissemos,
com o Mauá de Castro Rebelo, constitui um dos raros ensaios sérios de interpretação

31
materialista da história tentados no Brasil” (Idem: 159). Arguta percepção, pois, de acordo
com Edgard Carone (CARONE, 2004: 170-171), enquanto Mauá, aparecido em 1932, pode
ser considerado “o primeiro livro marxista brasileiro”, Evolução política do Brasil era “o
ponto alto” de uma tendência muito recente entre nós, dentro da qual ambos se
apresentavam ainda como os únicos trabalhos sobre assuntos históricos, dado que “a
maior parte da literatura marxista [aqui] publicada trata[va] de temas atuais”.
Nada disso, contudo, tornaria nem a Brasiliana, nem a Documentos Brasileiros,
sensíveis a autores comprometidos com a interpretação materialista da história, como já
foi dito. Se, no caso da primeira, ainda seria possível apontar o conservadorismo do editor
Octalles Marcondes Ferreira como um impeditivo, o mesmo não pode se aplicar a José
Olympio. De postura liberal, ele era um dos principais fomentadores do novo e crítico
romance social que surgia à época no país, e mais adiante ainda daria guarida profissional
a autores assumidamente de esquerda perseguidos pela ditadura do Estado Novo, como
Graciliano Ramos e Jorge Amado.
Ademais, a crescente tensão política entre 1935 e 1937 e, depois, a
institucionalização da censura fizeram-no sofrer bastante – assim como outros editores e
autores – com a violência contra a livre manifestação do pensamento, que retaliava tanto
os romances tidos por “comunistas” que publicava quanto as suas edições de livros
integralistas, os quais defendiam “o tipo errado de fascismo”, na expressão de Laurence
Hallewell (HALLEWELL, 2004: 456); ainda assim, não cederia às pressões e manteria firme a
linha da “Casa”, chegando até a lançar o ensaio autobiográfico de Trotski, Minha vida, em
1943.
As orientações teóricas dos diretores de cada coleção também devem ser
consideradas no exame dessa ausência. Fernando de Azevedo não somente não
desconhecia Marx como até o cita positivamente em alguns textos, mas estava longe de
ser um marxista (cf. TOTTI, 2008); já para seu sucessor a partir de 1957, o historiador
Américo Jacobina Lacombe, este era um diálogo impossível – na década de 1960, por
exemplo, ele seria crítico ferrenho da coleção História Nova do Brasil, escrita por um grupo
de historiadores do ISEB, Nelson Werneck Sodré à frente, justamente por conta de sua
ideologia materialista (cf. LOURENÇO, 2008: 395-396). Assim, o máximo a que a série da

32
Nacional chega é à publicação de alguns poucos títulos de tom histórico-sociológico mais
crítico,4 os quais se diluem em meio ao predomínio de obras ainda inspiradas pelo
pensamento oitocentista. É importante notar, contudo, que após o Estado Novo e o
fortalecimento do grupo católico junto ao Ministério da Educação e Saúde, o prestígio de
Fernando de Azevedo foi duramente abalado, algo que teve reflexos diretos sobre as
coleções que dirigia na Nacional, como a Atualidades Pedagógicas e a Brasiliana; esta,
como mostra Maria Rita de Almeida Toledo (TOLEDO, 2001: 206), “transforma-se em uma
espécie de moeda de troca da Companhia Editora Nacional. Muitos títulos são publicados
para evitar represálias contra a editora, passando por cima das propostas editoriais das
quais a coleção nasceu”.
Quanto a Documentos Brasileiros, a reticência de Gilberto Freyre ao materialismo
histórico-dialético se explicitara já às páginas iniciais da primeira edição de Casa-grande &
senzala, nas quais, logo após anunciar que o ensaio assentava-se sobre o “critério de
diferenciação fundamental entre raça e cultura”, ele dizia:

Por menos inclinados que sejamos ao materialismo histórico, tantas vezes


exagerado nas suas generalizações – principalmente em trabalhos de sectários
e fanáticos –, temos de admitir influência considerável, embora nem sempre
preponderante, da técnica da produção econômica sobre a estrutura das
sociedades; na caracterização da sua fisionomia moral. É uma influência sujeita à
reação de outras, porém poderosa como nenhuma na capacidade de
aristocratizar ou de democratizar as sociedades; de desenvolver tendências para
a poligamia ou a monogamia; para a estratificação ou a mobilidade (FREYRE,
1936b: XI).

Como a sequência do texto demonstrava, esse reconhecimento um tanto


envergonhado não significava uma capitulação. Servia, ao contrário, para consolidar a
interpretação sociocultural que propunha, vinculada a Franz Boas, citado para lembrar
que, “admitida a possibilidade da eugenia eliminar os elementos indesejáveis de uma

4
Por exemplo: À margem da história do Brasil, de Vicente Licínio Cardoso (1933), A escravidão africana no
Brasil, de Evaristo de Moraes (1933), A primeira revolução social brasileira, de Afonso Ruy (1942).

33
sociedade, a seleção eugênica deixaria de suprimir as condições sociais responsáveis pelos
proletariados miseráveis – gente doente e mal nutrida; e, persistindo tais condições
sociais, de novo se formariam os mesmos proletariados” (Idem: XI). Mesmo que na página
seguinte expressasse, em nota de rodapé, a sua concordância com “vários pontos” do
trabalho de Caio Prado, o referencial com que trabalhava era outro, bem distante de Marx
e Engels. Uma distância cultivada com zelo e, não raro, ironia em seus trabalhos seguintes,
a começar de Sobrados e mucambos (1936), em cujo prefácio afirmava ser “ridículo” se
declarar satisfeito “com interpretações marxistas ou explicações behavioristas ou
paretistas; com puras descrições semelhantes às da história natural de comunidades
botânicas ou animais” acerca do passado humano, para o qual deveria “deixar-se espaço
para a dúvida e até para o mistério” (FREYRE, 1985: LI).
Ao deixar a direção da coleção, em 1937, Freyre é substituído por Octavio Tarquínio
de Sousa, historiador dedicado ao estudo do Império e, em especial, à biografia de suas
figuras-chave. Se tal predileção necessariamente implicava algumas diferenças ante a
interpretação materialista da história, estas, no entanto, não o colocavam em franca
oposição ao marxismo, até porque seu propósito era o de entender o homem em si
mesmo e em relação com seu meio e seu momento. Deste modo, como constatou Márcia
de Almeida Gonçalves (GONÇALVES, 2009: 300) ao analisar a introdução à História dos
fundadores do Império do Brasil, em que o próprio Marx é discutido por Tarquínio, para
ele “a luta de classes não implicava a negação da interferência de grandes personalidades,
dotadas de qualidades morais e intelectuais, no desenvolvimento das sociedades”. Mesmo
assim, essa aparente maior tolerância ao marxismo não foi suficiente para abrir a coleção à
esquerda, ainda que, aos olhos de hoje, se pudesse contra argumentar com o exemplo da
presença nada desprezível de Nelson Werneck Sodré em meio ao seu variegado conjunto:
com quatro títulos nela publicados entre 1940 e 1958, Sodré era um autor superado em
número apenas pelos próprios Gilberto Freyre, com treze, e Octavio Tarquínio, com cinco.
Nesse cenário, entretanto, Sodré – que já havia publicado um livro também na
Brasiliana, Panorama do segundo Império (1939) – significa uma perigosa armadilha e um
exemplo emblemático. Uma perigosa armadilha porque, em primeiro lugar, sua inserção
na Documentos Brasileiros devia-se, ao menos na origem, a José Olympio, que lhe
assegurara pessoalmente a publicação da História da literatura brasileira, seu primeiro
título na editora, em 1940; depois, porque ele, diferentemente de Caio Prado Junior, não

34
“nasce” um historiador marxista: para ficarmos apenas nos livros que lançou pela coleção,
a citada História da literatura brasileira, Oeste (1941) e Formação da sociedade brasileira
(1944), o que se percebe é um intelectual eclético, ainda não totalmente alinhado ao
marxismo.
Segundo Paulo Ribeiro da Cunha (DA CUNHA, 2002: 89-93, passim), nesta “primeira
fase” de sua carreira como escritor dedicado ao estudo da formação e da realidade
nacionais, compreendida entre os anos trinta e quarenta, Sodré combinava fundamentos
da análise materialista a referências e influências de vária ordem, como Azevedo Amaral,
Vilfredo Pareto, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre e Fernando de Azevedo, entre muitos
outros. Mais importante, ele o fazia de modo consciente, pragmático, como se pode
perceber logo no primeiro parágrafo da introdução à Formação da sociedade brasileira:

Escrevendo esta Formação da Sociedade Brasileira não tive outra intenção que a
de oferecer ao leitor comum, dentro das possibilidades de um levantamento tão
sumário, uma visão de conjunto de como viveu o nosso povo até os dias que
precederam a crise de 1929. Para tal me valeram os mestres, os que fizeram,
antes de mim e melhor do que eu, a descrição do processo do desenvolvimento
brasileiro. Vali-me desses mestres com frequência, e não há, pois, coisas
originais nestas páginas. Original será, se quiserem, a maneira como reuni, de
cada um, aquilo que me pareceu a respeito desta ou daquela passagem o mais
apropriado (SODRÉ, 1944: 5).

Embora dissesse, na sequência, considerar que, “entre os fatores que presidem a


evolução das sociedades, o econômico te[nha] uma importância superior”, acreditando ser
isso “ciência adquirida”, notava também ter reservado lugar “no balanço das forças” aos
“demais fatores culturais”, bem como a uma “preponderância acentuada, uma insistência
repetida, na interpretação da dinâmica social”. Com escopo tão amplo, os “mestres” a que
recorrera reconstituíam toda a espinha dorsal da historiografia brasileira até então, de
Southey a Caio Prado, passando por Varnhagen, Capistrano, Euclides da Cunha, João
Ribeiro, Oliveira Vianna, Taunay, Alcântara Machado, Gilberto Freyre...
Ao mesmo tempo, o caso de Sodré é emblemático porque a interpretação da
história e da sociedade brasileiras por ele realizada, embora indubitavelmente crítica, era
até esse momento pautada por uma série de mediações, que diluíam a sua radicalidade e

35
a tornavam “palatável” para a Coleção Documentos Brasileiros, como antes a haviam
tornado para a Brasiliana. É significativo, nesse sentido, que a introdução da mesma
Formação da sociedade brasileira registre o agradecimento do autor “aos meus amigos
Octavio Tarquínio de Sousa, Sérgio Buarque de Holanda e Hermes Lima, que leram os
originais deste trabalho e tiveram a gentileza de fornecer observações e reparos que me
foram utilíssimos” (Idem: 7-8).
Mais significativo ainda, a Introdução à revolução brasileira, de 1958, cujo título não
deixava dúvida acerca de seu caráter, seria o último livro que publicaria na Coleção
Documentos Brasileiros e na editora do também amigo José Olympio. Daí por diante, os
próximos sairiam todos sob o sinete da Civilização Brasileira de Ênio Silveira,
assumidamente progressista e uma das principais editoras voltadas à divulgação da
literatura de esquerda nas décadas de 1960 e 1970, em especial nas áreas da sociologia,
política e economia.
Pode-se afirmar, desta forma, que a incompatibilidade entre o marxismo e as
brasilianas expressa de forma concreta a célebre fórmula de Antonio Candido (2000: 101),
para quem, “se fosse possível estabelecer uma lei de evolução da nossa vida espiritual,
poderíamos talvez dizer que toda ela se rege pela dialética do localismo e do
cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos”. Ou seja, num momento em que
imperava “descobrir o Brasil”, como já foi dito, e compreender a nossa formação (outra
palavra-chave da época, como se sabe), uma teoria interpretativa que não apenas vinha de
fora, mas, sobretudo, pretendia-se universal, parecia não corresponder às expectativas de
nosso sistema intelectual, nem a ele se adequar, senão como excrescência. Inserida nesse
contexto de relações de força, a historiografia também mostrava seus limites.

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38
Drama social e história: memória política e
historiografia da década de 1930

Marcelo Santos de Abreu*

No debate contemporâneo acerca da história da historiografia, há uma


preocupação constante que remonta a um lugar comum para os historiadores: toda
história é história contemporânea (CROCE, 1962). Acusar o comprometimento da escrita
da história com o tempo de sua produção é insuficiente porque não instaura um problema
de investigação. Fazer da historiografia um problema exige ultrapassar o óbvio e
desvendar as formas pelas quais um presente torna a compreensão do passado necessária
e possível.
A preocupação deste texto toca o domínio da necessidade de se compreender o
passado: como um tema e um período tornam-se relevantes para a reflexão histórica em
certa circunstância? Pensar esse problema implica destacar as relações entre memória,
história e os usos do passado. E como os usos da história, entendida como forma
racionalizada de representação do passado, articulam-se aos imperativos de orientação
temporal que presidem a ação social (KOSELLECK, 2006: 313).
Toma-se como objeto para esta reflexão o debate que se instaura acerca da história
política dos anos de 1930, particularmente acerca da Revolução de 1930 e seus
desdobramentos – ou aquilo que foi entendido como o tempo revolucionário a
desdobrar-se em novas formas de organização do mundo político brasileiro desde 1930. A
Revolução de 1930 marcaria a emergência de novos atores no campo político e de
padrões de dominação igualmente novos estendendo-se no tempo até um ponto final: o
golpe civil-militar de 1964.

*
Marcelo Santos de Abreu, Doutor, Professor do Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas
e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto.

39
A ideia central é que, no contexto crítico dos anos 1960, figurava-se a história
política da década de 1930 como resposta adequada aos dramas do presente. Um drama
desdobrava-se em outro, requerendo interpretações que ultrapassassem os limites da
memória histórica. Tratava-se, então, de compreender o passado de forma sistemática
para dar sentidos ao presente, distinguindo as linhas de força – estruturas sociais, grupos e
projetos políticos – subjacentes aos acontecimentos e personagens singulares. Nesse
movimento, a escrita da história consagrava marcos da memória política e, ao mesmo
tempo, formulava seu questionamento. Por um lado, instituía a Revolução de 1930 como
ponto de inflexão no tempo caro à produção historiográfica (DECCA & VESENTINI, 1976;
GOMES, 1994). Por outro, o trabalho de memória, que desde 1930 se desenvolvera em
muitas frentes – de livros de memórias ao periodismo político diário –, e os usos do
passado que encerravam seriam questionados. O argumento aqui defendido é que o
questionamento fundava-se na percepção do esgotamento dos usos políticos do passado
amparados na memória dos eventos da década de 1930 porque as condições do drama
eram outras.
Drama social é uma categoria heurística para compreender situações históricas
conflituosas. Ela se articula a uma percepção da vida social como vida no tempo. Isto
implica pensar o social não como a conjugação mais ou menos orgânica de estruturas
sociais que tenderiam a certa estabilidade, a uma duração que confina um tempo imóvel.
Os grupos que constituem as sociedades aparentemente mais estáveis manipulam as
estruturas sociais e, ao fazê-lo, transformam-nas. Estas alterações ocorrem especialmente
em contextos sociais de mudança e assumem as formas de um drama: uma disposição dos
atores sociais na cena pública caracterizada pela articulação de arenas em um campo
político, espaços relacionais onde o conflito se torna manifesto. E também por outra
qualidade fundamental do drama: “a cultura prescreve os símbolos e modos de interação
antagônica” (TURNER, 1974: 134).
Poderíamos dizer: memória e história estabelecem, cada uma à sua maneira, as
representações do passado acionadas no drama social; trata-se, portanto, de qualificar
aquilo que se chamou de usos políticos do passado e os usos da história (HARTOG &
REVEL, 1998; GUIMARÃES, 2000). Não basta apontar a confluência entre cultura histórica e
cultura política que o uso do passado supõe, mas sim pensar como estes usos, enquanto
parte integrante da interação conflituosa que move a vida, acontecem: como as diversas

40
representações do passado são operadas politicamente, porque todas elas, mesmo as
racionalmente controladas, configuram repertórios simbólicos para a ação no tempo.
Relacionar as noções de usos do passado e de drama social é uma das chaves possíveis
para se compreender esta operação cultural que é fazer história no sentido moderno da
palavra – mover-se no tempo, ser por ele movido e refletir sobre tal movimento
simultaneamente (KOSELLECK, 2006: 49-58).
Estes pressupostos teóricos guiam a interpretação deste ensaio que não pretende
esgotar a análise do debate aberto nos anos de 1960 acerca da década de 1930. A
intenção é mais modesta e restringe-se a situar o debate face à produção memorialística
anterior e desvendar o tempo presente a insinuar-se em dois textos seminais: Revoluções
do Brasil Contemporâneo (1965), de Edgar Carone, e A Revolução de 1930: historiografia e
história (1969), de Boris Fausto. Entre estes estudos e os eventos que analisavam havia um
espaço de pouco mais de 30 anos: quase nenhuma distância, portanto, sobretudo se
pensarmos como a política brasileira foi marcada pelas experiências decorrentes da
Revolução de 1930.
Desde o final do Estado Novo, o campo político cindia-se em oposições binárias
como “getulistas” e “antigetulistas”. Nos anos de 1950, a estas categorias somam-se outras:
“populistas” e “antipopulistas”, “nacionalistas” e “entreguistas” (FERREIRA, 2001). À medida
que o conflito se acirrava, outras categorias seriam acionadas para qualificar os atores em
disputa. Uma das características do drama social é, justamente, a configuração de um
campo caracterizado por relações antagônicas que se materializam nestas oposições
binárias. Nesse caso, por antagonismos que tinham por referência a memória histórica da
década de 1930 e seus desdobramentos. A duração daquele passado expressava-se ainda
na presença de personagens que encarnavam as posições antagônicas originais. Era
recorrente no discurso político, por exemplo, a identificação positiva ou negativa entre
João Goulart e Getúlio Vargas, como em um editorial de O Estado de São Paulo durante as
eleições de 1955. O jornal avaliava positivamente a ideia de um golpe preventivo contra a
candidatura PSD-PTB proposta por Carlos Lacerda no Congresso Nacional. O “bravo
matutino” perguntava-se como seria possível, dentro da lei, “desentulhar o terreno” para
fazer as instituições voltarem a funcionar apropriadamente.
Depois de reconhecer os riscos que os regimes de exceção comportavam,
terminava por afirmar que não era possível não levar em “consideração os riscos maiores a

41
que nos submeteram as Forças Armadas deixando por duas vezes de “instaurar o
processo” do “estado novo” e de seu bando” (O ESTADO DE SÃO PAULO, 8 de julho de
1955). Avaliação não muito diversa e palavras não tão diferentes poderiam ser repetidas
ainda em 1964, quando, como em 1945 e 1954, havia fortes esperanças de que o
“processo do estado novo” fosse definitivamente instaurado. Para certos grupos, os fatos e
personagens da década de 1930 permaneciam obsedantes: sua lembrança remetia a um
uso exemplar do passado na luta política.
A evocação desse exemplo colhido na imprensa periódica remonta à copiosa
literatura testemunhal produzida sobre os anos de 1930. Tal produção evidenciava a
importância que os fatos políticos da década teriam para seus contemporâneos,
particularmente a revolução de outubro, apreendida de imediato como um marco das
alterações do Estado nacional por todos os grupos independentemente dos projetos
antagônicos que defendiam (OLIVEIRA, 1980: 37). Há dois traços comuns a estas obras. Em
primeiro lugar, a intenção de comunicar aos contemporâneos a experiência pessoal dos
acontecimentos.
Neste movimento, que evidenciava a confluência das experiências pessoais com a
história em transformação (ARIÈS, 1989: 87), os autores reivindicavam a condição de
expectadores e protagonistas do drama – palavra, aliás, usada com frequência nesta
literatura. Ao fazê-lo, alçavam indivíduos à condição de atores privilegiados e figuravam os
acontecimentos singulares a serem lembrados e analisados posteriormente. Em segundo
lugar, muitas vezes a narrativa dos fatos vividos era precedida por uma breve história da
República, como em dois livros que defendiam posições antagônicas acerca dos eventos:
Outubro, 1930 (FRANCO, 1980: 1-61), e A república que a revolução destruiu (CASTRO,
1982). Nos dois textos, a apreensão da história republicana imediatamente anterior à
Revolução de 1930 levaria, contudo, a imagens diferentes do evento. Tanto para Virgílio de
Melo Franco como para todos os seus companheiros de jornada revolucionária, 1930 era
um ponto de ruptura, e os homens que tomavam parte na obra revolucionária, embora
formados na “República Velha”, superariam os vícios anteriores para dar lugar ao novo.
Para Sertório de Castro, ao contrário, os protagonistas do drama de 1930 participavam dos
vícios anteriores: tinham poder porque se valeram dos mecanismos que pretensamente
desejavam destruir e a própria revolução seria evidência da continuidade do desprezo
pelas virtudes democráticas, porque afinal ela fora a reação à derrota eleitoral. Conquanto

42
os diagnósticos e prognósticos apontassem para caminhos diferentes, ambos os autores
sustentavam, embora atentos à realidade da política de massas, uma visão segundo a qual
a história era obra de indivíduos e ideias a governar o tempo em mudança.
Esta visão permeava o conjunto da literatura acera dos anos de 1930 e dava forma à
memória histórica que serviria à ação política por bastante tempo, permitindo que a
solução para os problemas da República pudesse resumir-se a “desentulhar o terreno”,
“instaurar o processo do estado novo e seu bando” ou “varrer” a corrupção. E, do outro
lado da cena, reivindicar a “herança de Vargas” e o “trabalhismo” como símbolos para se
conquistar direitos e viabilizar as reformas desejadas. Um uso do passado adequado às
condições estruturais caracterizadas pela participação restrita na vida política, isto é,
quando o drama e suas ações eram condicionados por formas autoritárias de controle
político ou pela redução dos atores na cena pública na vigência da democracia liberal
inaugurada em 1946. Mas desde os anos de 1950, estas condições vinham se alterando
significativamente. Tomam a cena atores cuja presença não se confundia com uma
personagem, mas sim com a massa anônima a exigir a difusão de direitos, estabelecendo
uma agenda que levaria às pressões por reformas de caráter redistributivo nos anos de
1960. Dessa forma, o debate público não se restringia ao universo da política institucional
estendendo-se ao campo das realidades econômicas, de forças sociais impessoais, das
estruturas sociais. Mudar o Brasil, naquela circunstância, não poderia restringir-se a
transformações nos “costumes políticos” e suas personagens, implicava antes encontrar
respostas para o seu desenvolvimento (TOLEDO, 1982).
A revisão da história contemporânea é uma delas, fornecendo as interpretações
que dariam forma ao debate público. É nesse tempo que acontece um deslocamento dos
estudos históricos: do interesse substantivo pelo período colonial, passa-se à investigação
dos períodos imperial e republicano. E, mais importante, inaugura-se a investigação
sistemática acerca da escravidão e a transição para o trabalho livre, a industrialização e a
revisão da história política republicana, como se a explicação do presente exigisse a
indagação das realidades econômicas e políticas pretéritas (LAPA, 1976).
A Revolução de 1930 ganharia destaque na revisão da história política que serviria à
compreensão das realidades presentes; as análises, no entanto, enfatizariam mais as
“forças sociais” do que as personagens e seus atos. Em Revoluções do Brasil
Contemporâneo, há uma tese implícita que se anuncia na estrutura da obra em três

43
seções: A Revolução Ascendente (1922-1927); A Revolução Triunfante (1927-1932); A
Revolução Descendente (1932-1937). Cabe perguntar: que revolução ascende, triunfa e
acaba justamente em 1937? É possível afirmar que se trata das tentativas de reforma
liberal do Estado Nacional protagonizadas pela pequena-burguesia urbana em aliança
com as “oligarquias dissidentes”. As condições que preparam o terreno para a cisão da
elite política encontravam-se nas transformações econômicas e sociais como o
crescimento do setor urbano industrial e consequente aumento do mercado interno, por
um lado, e a diversificação dos grupos sociais na arena política, como a pequena-
burguesia e o operariado. Nestas transformações, o operariado urbano forçava a discussão
da “questão social” e as frações pequeno-burguesas e oligárquicas precisavam encontrar
respostas para estas demandas. Além disso, a crítica ao liberalismo econômico sustentava
a ideia de intervenções permanentes na economia, especialmente no que se referia ao
produto de exportação por excelência. Contudo, o liberalismo político persistia como a
ideia-força a sustentar a unidade das oligarquias.
Carone qualifica a composição política vitoriosa em 1930 como uma “cristalização
paradoxal das oposições” que reunia as oligarquias dissidentes a elementos civis e
militares da pequena-burguesia urbana. Excluídos da Aliança Liberal, aos trabalhadores
urbanos cabia apenas esperar que o programa “aliancista” realizasse as vagas promessas
em torno da “questão social”. O programa era tímido nesse aspecto, tão vago quanto as
propostas de reforma do sistema eleitoral que constituíam o principal ponto na
perspectiva da pequena-burguesia urbana – sobretudo dos “democráticos” de São Paulo
e dos políticos mais jovens das oligarquias dissidentes do Rio Grande do Sul e Minas
Gerais.
A debilidade do programa político “aliancista” satisfazia as estratégias da
campanha política. Mas foram as máquinas políticas dos estados dissidentes, Minas Gerais
e Rio Grande do Sul, que garantiram o sucesso eleitoral da Aliança Liberal. Foram estas
mesmas máquinas que também asseguraram o sucesso do movimento militar. Na chefia
da revolução armada, os “tenentes” instituíram-se como representantes de outra
tendência dentro da aliança. Este grupo político caracterizava-se pela crítica aos princípios
liberais de organização do Estado, especialmente o federalismo, e defendiam a instituição
de um “governo forte” como meio de promover a integração nacional efetiva e a
incorporação controlada das “massas” à vida política. Para Carone, todo o período

44
subsequente ao da Revolução de 1930 é marcado pela luta entre os “tenentes” e a
“oligarquia” (CARONE, 1975: 89).
A Revolução de 1930: historiografia e história, apresentada como tese de
doutorado por Boris Fausto em 1969, representou uma inovação porque tomava a
historiografia existente sobre a Revolução de 1930 como base para a análise. Boris Fausto
construiu uma interpretação que se filiava ao debate sobre o populismo realizado pelos
cientistas sociais, especialmente a hipótese de Weffort acerca do “Estado de compromisso”
como forma política que caracterizaria o pacto populista. O autor contestou, então, as
teses que tomavam a Revolução de 1930 como ascensão da burguesia industrial ou da
classe média, um ataque dirigido às posições dualistas defendidas pelo ISEB e parte da
esquerda nacionalista dos anos de 1950 e 1960.
A primeira se baseava na transposição para o caso brasileiro da história europeia
vulgarizada pela ortodoxia marxista. Esta supunha a existência de etapas universais do
desenvolvimento histórico que levavam à revolução burguesa, a que se seguiria à
revolução proletária. A outra dizia respeito à percepção do tenentismo, vitorioso em 1930,
como expressão dos anseios da classe média urbana. Segundo Fausto, nenhuma das duas
hipóteses era validada pela análise cuidadosa da realidade histórica. Em primeiro lugar,
não haveria um antagonismo entre a burguesia industrial e as oligarquias agrárias, uma
vez que a industrialização incipiente fora produto das inversões do capital cafeeiro e
possibilitada por um mercado interno efetivamente vinculado à grande lavoura de
exportação. A segunda tese também não se sustentaria porque o tenentismo encontrava
explicações mais corretas na análise do próprio aparelho militar e pela subordinação da
classe média à burguesia agrária.
Para terminar a apresentação dos argumentos centrais do autor, resta definir como
ele pensou a Revolução de 1930 enquanto resultado da crise dos anos 20 que tornara
evidente as disparidades regionais e as contradições que opunham as diversas frações da
classe dominante. Explica o episódio revolucionário como evidência da “crise de
hegemonia da burguesia cafeeira”. A perda da capacidade de direção política e produção
do consenso fazem emergir a “aglutinação das oligarquias não vinculadas ao café, de
diferentes áreas militares onde a oposição à hegemonia tem características específicas”. A
estas forças se somaram as classes médias urbanas e a “presença difuso das massas
populares”. A cisão entre as classes dominantes realizava-se tendo por fundo as

45
disparidades regionais, de modo que “as divisões “puras” de fração – burguesia agrária,
burguesia industrial – não se consolidam e não explicam o episódio revolucionário”
(FAUSTO, 1969: 131).
E desta aglutinação extravagante surgiria a composição do “Estado de
compromisso” como momento da direção política que, não representando diretamente os
interesses específicos de nenhuma das frações burguesas, viria a favorecer a
modernização econômica com a industrialização e diversificação da agricultura, a
expansão do próprio aparelho estatal abrindo espaço para as “classes médias” e a
incorporação controlada dos trabalhadores urbanos à vida política pela repressão de suas
manifestações autônomas e concessão progressiva de direitos sociais.
As duas interpretações diferem, fundamentalmente, da memória política dos anos
de 1930. Os autores pertenciam a um ofício que se constituía dentro da Universidade e em
diálogo com as Ciências Sociais. A posição no campo das Ciências Humanas e o
deslocamento temporal não garantiam maior objetividade na apreensão do passado. Nas
duas obras, como em outras do mesmo período, registram-se marcas de seu próprio
tempo nas respostas que encaminham ao problema de investigação. São comprometidas
com o presente em outro sentido: integram-se às lutas políticas de então. Delas participam
de outra forma porque de outra maneira é que davam a ver o período que buscavam
compreender, sujeitando suas proposições a usos mais precisos quando se construíssem
analogias e linhas de continuidade entre os anos de 1930 e a história presente.
Nesse terreno, algumas obviedades: o reforço que estas obras e outras deram ao
papel dos “tenentes” na luta política de 1930 remetia imediatamente ao papel que os
militares desempenharam na história republicana subsequente, sobretudo nos anos de
1950 e 1960. A resposta a esta participação militar na vida política pretensamente
democrática exigia a compreensão de seus começos. Outra: a crítica que formularam
acerca da participação das “classes médias” nos anos de 1920 e 1930, acusando sua
inconsistência como grupo de pressão, apontava para uma compreensão do passado pelo
presente: isto é, do papel das classes médias na luta política acerca do nacional-
desenvolvimentismo e das reformas de base.
Ainda outra obviedade, das mais importantes: a compreensão da Revolução de
1930 como uma resposta à participação crescente dos grupos subalternos na cena pública
tinha por correlato a atuação autônoma destes mesmos grupos apesar de todos os

46
controles institucionais preservados no regime democrático inaugurado em 1946. Nesse
sentido, a tese implícita de Revoluções do Brasil Contemporâneo, isto é, a da crise do
liberalismo encontrava continuidade no presente: a incompatibilidade do liberalismo
econômico com as pressões crescentes garantidas pela vigência de um regime político
liberal-democrático.
Estas analogias eram possíveis, mas só poderiam ser confirmadas por um estudo da
recepção das obras; contudo, sua obviedade garante sua relevância, sobretudo se
pensarmos no público que leu e viria a ler as duas obras e outras que compuseram o
debate. Ao dimensionar esse público, tangenciamos a questão dos usos da história que
estas interpretações puderam suscitar: quando de sua publicação as arenas do drama
encontravam-se limitadas por séries de dispositivos autoritários. Se havia um público leitor
de história em crescimento desde os anos de 1950, é bem provável que o debate
historiográfico sobre os anos de 1930 tenha se limitado à esquerda universitária. Uma
primeira constatação se seguiu a leitura: a falha na avaliação da realidade histórica pela
esquerda mais organizada nos anos de 1950 e 1960 teria levado a uma falha estratégica
nos mesmos momentos, culminando em 1964. Um primeiro uso se anunciava: explicar
1930 para compreender 1964. O que se desdobrava em: compreender as formas de
dominação inauguradas em 1930 para criticar o populismo no presente e depois. Já nos
anos de 1980: compreender 1930 e 1964 como continuidade que poderia ser superada por
algo novo: a “verdadeira” movimentação autônoma das classes trabalhadoras desde 1978.
Foi, portanto, somente na luta pela chamada abertura política que estas interpretações
racionalmente controladas do passado ganharam novamente a vida e o tempo.

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49
Assimetria das transformações: Nise da Silveira
(notas de pesquisa)

Ana Paula Palamartchuk*

Nise Magalhães da Silveira (Maceió, Al-15/2/1905 – Rio de Janeiro, RJ-30/10/1999)


graduou-se pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1926, sendo a única mulher de uma
turma de 156 homens. Com a morte de seu pai, no ano seguinte, fixou residência na
cidade do Rio de Janeiro, tendo aí começado a frequentar a clínica de Neurologia da
Faculdade de Medicina do Distrito Federal, coordenada pelo Dr. Antônio Austrégesilo1,
onde acabou se especializando em Psiquiatria. Em 1933, participou de um concurso para a
Seção de Psiquiatria da Assistência aos Psicopatas do Hospício Nacional, no qual obteve o
3º lugar, onde, a partir de então, exerceu sua especialização.
Seu nome, no entanto, tornou-se renome depois da fundação do Museu de
Imagens do Inconsciente, criado junto ao Centro Psiquiátrico Pedro II, em 1952 e, por suas
ligações com a teoria psicanalítica de C. G. Jung, fundou, em 1955, um centro de estudos
sobre o trabalho do psicanalista. Seu pioneirismo e reconhecimento profissionais estão
vinculados à utilização de atividades expressivas, em especial, as ligadas às artes plásticas,
como principal método terapêutico na reabilitação psiquiátrica.

*
Ana Paula Palamartchuk, Doutora, Professora do Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes na
Universidade Federal de Alagoas, UFAL.
1
Antonio Austrégesilo (Recife, PE-21/4/1876-Rio de Janeiro, RJ-23/12/1960). Em 1899, formou-se na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, com a tese Estudo clínico do delírio. Em 1902, tornou-se médico da
Santa Casa de Misericórdia. No governo Rodrigues Alves (1902-1906), integrou a equipe do professor Juliano
Moreira, na Diretoria de Assistência aos Alienados. Em 1912, tornou-se professor da recém-fundada cátedra
de Neurologia na Universidade do Brasil. Principiou ali as bases de uma especialidade nova, criando a
primeira escola de Neurologia no Brasil. Fundador dos Arquivos Brasileiros de Medicina e dos Arquivos
Brasileiros de Neurologia e de Psiquiatria representou o Brasil em vários congressos internacionais de
Neurologia. Foi deputado federal por Pernambuco, de 1922 a 1930; membro da Academia Nacional de
Medicina e da Sociedade Brasileira de Neurologia, das quais foi presidente; membro correspondente da
Academia das Ciências de Lisboa; membro correspondente da Academia de Medicina de Paris e da
Academia de Medicina de Nova York; membro honorário de todas as associações médicas do Brasil e da
América do Sul; professor Honorário da Faculdade de Medicina de Pernambuco; e professor emérito da
Universidade do Brasil. Ver: Menezes, 1978. Academia Brasileira de Letras, http://www.academia.org.br/.
Caulfield, 2000. Besse, 1999.

50
Esse breve resumo de sua trajetória, ao evidenciar alguns “acontecimentos” que se
repetem na bibliografia sobre a médica, reitera como marco de decifração de suas
experiências sociais e culturais o aspecto profissional, fato contíguo ao gênero.
Frei Betto foi, talvez, o percursor ao definir Nise da Silveira como “a mulher do
século”. O poeta Ferreira Gullar, em sua biografia sobre a médica, foi um pouco mais
específico ao defini-la como “a psiquiatra rebelde”, no que foi seguido por Franklin Chang
que adicionou o adjetivo “criativa”. O tom celebrativo incomoda não tanto pela
homenagem que sugere, mas porque pressupõe a ideia de “excepcionalidade” de Nise da
Silveira em oposição a uma suposta “normalidade”; sem, no entanto, revelar-lhe. Além
disso, a ênfase na celebração recai sempre sobre um aspecto de sua experiência social, o
profissional.
Uma outra via de acesso à trajetória de Nise da Silveira que é proposta pela
bibliografia se direciona para a sua participação nas atividades do Partido Comunista e
suas relações com outros comunistas. A historiadora Dulce Pandolfi busca os elementos
que revelam a identidade do PCB ao longo de sua história. Para o período entre o fim dos
anos vinte e início dos anos trinta, Pandolfi descreve as mudanças na linha política do
partido que deram origem a um movimento interno denominado “proletarização” ou
“obreirismo”. Nise da Silveira aparece aqui, através de um depoimento colhido por
Pandolfi em 1992, ao lado dos depoimentos dos dirigentes do partido naquele período,
Heitor Ferreira Lima, Octávio Brandão e Leôncio Basbaum. Os depoimentos dos três
dirigentes, produzidos nos anos setenta, apontam para uma experiência negativa vivida
por eles nos anos trinta (PANDOLFI, 1995, pp. 97-102). Ainda que os depoimentos
demonstrem avaliação crítica da atuação do partido que originou a “proletarização” e
demonstrem a consideração de uma “distorção” da orientação política da Internacional
Comunista operada pelo PCB, o depoimento de Nise da Silveira é claro ao avaliar sua
experiência como militante negativamente:

Eu queria fazer concurso para médica do hospital. Os companheiros não


aprovavam que eu me dedicasse tanto ao concurso. Eu estudava, de manhã, de
tarde e de noite. Meu chefe de célula, um alfaiate, me repreendia fortemente.
(...) Eu lia as apostilas stalinistas, horrorosas, mal escritas, ferrenhas (...) as
pessoas da minha célula eram chatíssimas e burras. (...) Acabaram me

51
expulsando, acusada de trotskista. Eu não era trotskista... (Apud: PANDOLFI,
1995: 101)

Mas Nise da Silveira já estava integrada nos círculos intelectualizados do Rio e,


apesar de recém-formada em medicina e recém-chegada à cidade, construiu uma rede de
relações que extrapolava a militância no PCB ou o engajamento profissional. Por exemplo,
de quando era vizinha do poeta Manuel Bandeira de um lado e, de outro, do escritor e
comunista Octávio Brandão em Santa Teresa, na Rua do Curvelo, Nise da Silveira reforça o
sentido negativo de sua experiência no movimento comunista. (BEZERRA, 1995: 142).
Nesses dois trabalhos de pesquisa, há o reforço negativo da sua experiência política
partidária e o reforço positivo de sua trajetória profissional como psiquiatra.
A biografia de Nise da Silveira organizada pelo psicólogo Walter Melo vai enfatizar
as discordâncias dela em relação aos métodos de tratamento dos “doentes mentais” em
hospitais psiquiátricos. Esses desacordos foram, segundo ele, favorecidos pelo “clima
político” do início dos anos trinta. Eles consistiam na clara intenção de desvincular a
experiência da psiquiatra das teorias e práticas médicas do período, as quais definiam
como “degenerescência hereditária” os desajustes de comportamento de algumas
pessoas, que causam alteração na “ordem” social e que são considerados doentes com
distúrbios patológicos, Melo afirma:

Nise da Silveira de forma alguma compactuou com estas ideias, apesar de sua
carreira médica ter se iniciado sob o clima desses ideais. Podemos considerar
então sua tese inaugural em dois níveis: como preocupação legítima com as
pessoas que se encontram fora das normas, e como ponto teórico discordante
de suas concepções futuras. Fatores externos, com certeza, contribuíram neste
segundo ponto. O clima político da época parece ter sido um desses
acontecimentos privilegiados para uma nova tomada de atitude frente à
diversidade da cultura nacional. Seu novo posicionamento a fez se aproximar
das ideias comunistas, que eram exatamente tratadas como ideias a serem
combatidas, mesmo por profissionais do campo da saúde [...]. (MELO, 2001:
138.).

52
Pode parecer um pouco estranho ao leitor a afirmação de que esses conflitos
tenham sido vivenciados por ela com a tranquilidade descrita pelo psicólogo. É como se
ela estivesse imune aos aspectos de seu tempo, considerados, a posteriori, como
“negativos”. Assim, a monografia que Nise da Silveira escreveu como trabalho de
finalização do curso de medicina, intitulado Ensaio sobre a criminalidade da mulher na
Bahia (1926), aparece, no argumento de Mello, como um “sinal” da ruptura da médica com
o conceito de criminoso como “degenerado”. (MELO, 2001, pp. 135-136)
Ferreira Gullar apresenta outra entrevista realizada com Nise da Silveira, na qual há
um sentido etapista atribuído à sua trajetória. (GULLAR, 1996, pp. 31-53)2. Em ambas as
biografias, ela os relatos aparecem presos à “cronologia de vida”, na qual as experiências
transformam-se em uma sucessão de acontecimentos, coerentes e portadores de uma
lógica singular (BOURDIEU, 1996, pp. 183-191).
Já o trabalho do ex-diretor da Casa das Palmeiras3, o psiquiatra Franklin Chang,
marca a transformação profunda sofrida pela psiquiatria no Brasil a partir das intervenções
profissionais da médica na área de Terapia Ocupacional. Mas essas intervenções são
retratadas e explicadas por meio de uma lógica tão coerente que até mesmo sua recusa
em aplicar os métodos convencionais da psiquiatria (eletrochoques e/ou farmacoterapia)
em internos do hospital onde trabalhava torna-se um processo originário de sua essência
“rebelde e criativa” (CHANG, 2000, pp. 87-89).
“Pode-se escrever a vida de um indivíduo?” (LEVI, 1989, pp. 1325-1336) Buscando
resposta a essa pergunta, o historiador italiano Giovanni Levi organizou um balanço sobre
a produção biográfica:

É antes de tudo um problema de escala e de ponto de vista: se o acento se


coloca sobre o destino de um personagem - e não sobre o conjunto de uma
situação social - a fim de interpretar o feixe de relações e de obrigações
exteriores no qual ele se insere, é bastante possível conceber diferentemente a

2
A primeira parte da entrevista se refere à infância até sua formatura em medicina, em 1926; a segunda, à
mudança para o Rio e ao início da carreira profissional; a terceira, ao período em que se aproximou de muitos
militantes e dirigentes do PCB, à prisão e aos anos em que passou escondida; por fim, à quarta fase que
marca o período “mais importante” de sua vida: “a briga com a psiquiatria” (p.46).
3
A Casa das Palmeiras foi um espaço criado, em 1968, por Nise da Silveira para a reabilitação de egressos de
instituições psiquiátricas.

53
questão do funcionamento efetivo das normas sociais. De maneira geral, os
historiadores têm como certo que todo sistema normativo sofre transformações
no tempo, mas que em um momento dado ele se torna plenamente coerente,
transparente e estável. (LEVI, 1989: 1331)

Essa crítica aponta para a relação entre normas e práticas, entre indivíduos e grupo,
entre determinismo e liberdade, e entre racionalidade absoluta e racionalidade limitada. A
proposta de Levi é articular essas relações numa perspectiva em que a biografia pode fazer
emergir não só os conflitos que geram a constituição de redes de solidariedade e que
formam os grupos sociais, mas também o seu funcionamento, os limites e as brechas, de
um lado e de outro, suas regras.
Considerando que a produção biográfica de Nise da Silveira silencia diante dessas
contradições, proponho o deslocamento dessas descrições de sua trajetória, que estão
articuladas na sobreposição a um contexto preestabelecido, fixo, coerente, transparente,
estável e de tendência anacrônica, para um contexto limite da sua experiência. Nesse
contexto, surge na sua militância comunista, quando foi presa e proibida de exercer a
profissão.
Uma das primeiras manifestações políticas da médica ocorreu, no início dos anos
trinta, com sua assinatura ao “Manifesto dos Trabalhadores Intelectuais ao Povo Brasileiro”,
no qual compartilha da luta dos “trabalhadores” contra a “opressão e miséria”.
Acompanhada por mais vinte assinaturas de “trabalhadores intelectuais”, entre os quais
jornalistas, médicos, advogados e romancistas, residentes no Rio de Janeiro e em São
Paulo, o manifesto declarava ainda a União Soviética como uma sociedade capaz de
suprimir o desemprego, elevar o nível de vida dos trabalhadores, eliminar os
antagonismos entre a cidade e o campo, estimular um “prodigioso desenvolvimento
cultural” e obter “êxito formidável” na execução do primeiro plano econômico
(PALAMARTCHUK, 2003)4.

4
“Manifesto dos Trabalhadores Intelectuais ao Povo Brasileiro”, s/l, s/d. in: fl. 362 - Processo n.º 191/Apelação
n.º 15 - Nise da Silveira - Tribunal de Segurança Nacional - Arquivo Nacional; Pront. N.º 1945 [1933-1940] -
Oswaldo Costa - DEOPS-SP - AESP; Pront. N.º 1539 [1935-1938] - Clóvis de Gusmão - DEOPS-SP - AESP; Pront.
N.º 11 [1921-1954] - Affonso Schmidt - DEOPS-SP - AESP; Pront. N.º 1943 [1933-1954] - Nabor Cayres de Britto
- DEOPS-SP - AESP.

54
Com envolvimentos diferentes com o comunismo5, os signatários do manifesto
foram investigados pela polícia política, que os considerou “suspeitos” de envolvimento
com os movimentos políticos ilegais. Mas foi, a partir dos levantes comunistas de
novembro de 1935, que a grande maioria deles teve prontuários abertos junto aos
departamentos de ordem política e social e sofreram algum tipo de censura ou foram
presos.
Depois de pesquisar alguns desses nomes em cerca de 400 prontuários e dossiês
dos DEOPS-SP e DOPS/DESPS-RJ, fui reencontrar parte deles na lista de processados pelo
Tribunal de Segurança Nacional6. Ao analisar o processo instaurado contra Nise da Silveira
pelo TSN, reencontrei o manifesto como uma das provas materiais que a ligava a
atividades do PCB e aos levantes comunistas de 1935.
Cartas, rascunhos e anotações de pesquisas sobre filosofia, marxismo e medicina,
exemplares de panfletos e jornais de várias organizações de esquerda e até um romance
foram recolhidos pela polícia no dormitório de Nise da Silveira no hospital onde
trabalhava, e revelaram uma mulher militante do PCB, do movimento feminista, operário e
sindical. Presa em fevereiro de 1936, solta no mesmo dia e, em seguida, presa novamente
em 26 de março, Nise da Silveira foi autuada pela procuradoria como ré junto ao TSN7.
Fugiu da prisão em agosto de 1937 e foi absolvida pela “macedada”8. A
procuradoria apresentou uma nova autuação junto ao TSN. A médica, no entanto, já se
encontrava no interior da Bahia, escondida pela família Mangabeira, quando foi expedido
o novo mandato para efetuar sua prisão. O julgamento transcorreu à revelia, e Nise da
Silveira foi absolvida em 31 de janeiro de 1938; não podendo, no entanto, voltar a

5
O termo comunismo é aqui entendido como um conjunto de ideias difusas ligadas à União Soviética, à
Internacional Comunista e aos partidos comunistas nacionais, entre 1928 e 1948.
6
O Tribunal de Segurança Nacional, doravante TSN, foi criado sob a Lei nº 244, de 11 de setembro de 1936.
Resumidamente, o TSN foi criado como um órgão de exceção da Justiça, que tinha como objetivo processar
e julgar civis e militares envolvidos em “crimes contra a segurança externa da república”, “crimes contra as
instituições militares” e “crimes com finalidades subversivas das instituições políticas e sociais”. Funcionou
até 1945. Lei nº 244, de 11 de setembro de 1936. Apud: Campos: 1982, pp. 131-136. Este ainda é o melhor
trabalho sobre o funcionamento e organização do TSN. Para uma discussão sobre os escritores comunistas e
o TSN ver: Palamartchuk: 2003.
7
DESPS, Autuação, 16 de junho de 1936, volume IV - Processo de Nise da Silveira/nº 291 - Apelação nº 15 -
TSN - AN.
8
Processo em que José Carlos Macedo Soares (Ministro da Justiça e dos Negócios Interiores de 3 de junho a 9
de novembro de 1937) libertou 400 presos políticos sem processo instaurado, acusados de participação nos
levantes de novembro de 1935.

55
trabalhar no Hospício Nacional por que, segundo a sentença, “as suas tendências
ideológicas são de molde a incompatibilizá-la com o exercício de função pública”9.
De acordo com as denúncias apresentadas ao TSN, ela incorrera nos arts. 14 e 23 da
Lei nº 38 de 4 de abril de 193510, tendo-lhes sido imputada a acusação de que havia
participado de atividades que incitavam o “ódio entre as classes sociais” e de fazer
“propaganda de processos violentos para subverter a ordem política”. Nise da Silveira só
conseguiu retornar ao trabalho no Hospital Psiquiátrico Nacional em meados de 194411.
Em um momento no qual a participação na “grande política” era considerada uma
atividade masculina (não se pode esquecer que as mulheres alfabetizadas obtiveram o
direito ao voto no Brasil em 1932, tendo ainda que enfrentar a supressão das eleições pelo
Estado Novo, entre 1937 e 1945), encontrar Nise da Silveira como uma profissional em
início de carreira e participando de um grupo de intelectuais comunistas foi
surpreendente. Suas relações com outros intelectuais e com organizações políticas e
sociais como, por exemplo, a União Feminina do Brasil podem nos revelar aspectos ainda
pouco conhecidos da experiência de sujeitos que não foram integrados na história oficial
dos anos trinta.
Não se trata, no entanto, de tornar “visível”12 experiências de Nise da Silveira, o que
implicaria, necessariamente, somente uma inversão de uma história dos homens,
pressupondo uma essência feminina e outra masculina, naturalizadas como diferenças
biológicas e reforçadas através de papéis e funções sociais distintos entre homens e
mulheres13.
Já havia chamado minha atenção o detalhe de apenas duas mulheres terem
assinado o manifesto. E, quando examinei 843 processos do TSN, encontrei além de Nise
da Silveira, Patrícia Galvão, a Pagu. Essa situação excepcional em que localizamos a

9
Luiz Carlos da Costa, “Julgamento de Nise Magalhães da Silveira”. Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 1938 -
folhas 650-653 - volume IV - Processo contra Nise da Silveira/nº 291 - Apelação nº 15 - TSN - AN.
10
Lei nº 38 - Define crimes contra a ordem política e social, 4 de abril de 1935, in: Coleção de Leis do Brasil-
Actos do Poder Legislativo (1935), pp. 36-44.
11
“Anotações Diversas” - Processo contra Nise da Silveira/nº 291 - Apelação nº 15 - TSN - AN.
12
Refiro-me, aqui, a alguns estudos situados no início dos anos noventa marcados pelo debate sobre a
“história das mulheres”. Para citar apenas um trabalho, escolhi o que mais se aproxima de alguns dos temas e
do período em que se inscreve a trajetória de Nise da Silveira: Bernardes, 1995.
13
Para esse debate ver, especialmente, os artigos da Seção “Debate”, in: Cadernos Pagu, Campinas, Unicamp,
(3) 1994 e os artigos da mesma Seção, in: idem, ibidem, (11) 1998. Esses artigos expressam exemplarmente
os debates acerca da “história das mulheres” e das pesquisas que abordam as relações de gênero no Brasil.

56
experiência de Nise da Silveira pode e deve direcionar esta pesquisa para o debate acerca
da “ordem do gênero”. A antropóloga Mariza Corrêa chama a atenção para o problema da
“excepcionalidade” das trajetórias de algumas antropólogas concomitante ao surgimento
da disciplina no Brasil. E localiza, na relação entre a “ordem do gênero” e o significado de
“excepcionalidade”, as experiências de mulheres que sugerem, em alguma medida,
contestações, subversões de sentido e revisões desta hierarquia. Desta forma, aponta para
outra perspectiva:

Essas mulheres são, sim, excepcionais, mas em outro sentido - no sentido de


que é possível recuperar sua trajetória social, ainda que de maneira truncada, e
minimamente avaliar as reações da sociedade de sua época ao seu trabalho ou
a sua atuação, já que outros exemplos de contestação ou revisão dos sentidos
normativos de uma ordem do gênero são ainda escassos. E é justamente a
reação ao que parece ‘inusitado’ na época o que permite refletir sobre o que
seria usual. O usual é sempre, em todos os exemplos de discursos citados aqui,
aquilo contra o que essas personagens pareciam se insurgir, de maneira discreta
ou militante” (CORRÊA, 2003: 13).

A excepcionalidade da trajetória de Nise da Silveira pode ser pensada em termos


de ter sido a única mulher de sua turma na Faculdade de Medicina nos anos vinte, uma
das poucas médicas psiquiatras a exercer a profissão no período de surgimento desta
especialidade no Brasil dos anos trinta, uma das poucas militantes comunistas, perseguida
e presa pela polícia política de Getúlio Vargas e proibida de exercer a profissão entre 1936
e 1945, a primeira psiquiatra a trabalhar com terapia ocupacional no tratamento de
“doentes mentais” a partir de 1945, uma das primeiras médicas a trabalhar com a teoria de
Carl Gustav Jung no Brasil, ao passo que suas experiências neste sentido parecem ameaçar
uma suposta ordem institucional que se resguarda jogando-a para a “margem”14?

14
Margem aqui tem o sentido dado por: DAVIS, Natalie Zemon. Nas margens: três mulheres do século XVII.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997. pp. 195-196. Em relação ao debate sobre “invisibilidade” e
“excepcionalidade” ver, além de: CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a
antropologia no Brasil. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 1998, op. cit., Riot-Sarcey et
Varikas, pp. 77-89.

57
Sua condição marginal não foi resultado tão somente deste conjunto de eventos;
sua condição marginal foi o resultado dos conflitos que enfrentou para se formar em
medicina, para exercer a profissão, para expressar livremente suas ideias, para ser
reconhecida e colocar em prática suas concepções sobre o tratamento de “doentes
mentais”, etc. Nesse sentido, o que se percebe é que Nise da Silveira, assim como outras
mulheres, tirou vantagem ao se situar, em certos momentos e em determinadas relações
sociais, nas margens de um reconhecimento social que se articulava em âmbitos
intelectuais, profissionais, políticos e culturais.
Tomamos, como lugar privilegiado, o aspecto profissional de sua trajetória para
resgatar as tensões, contradições e conflitos de suas experiências. Nise da Silveira foi crítica
à prática médica no final do século XX:

É impressionante a persistência da influência de Descartes, dominante desde o


século XVII, no que se refere ao conceito das relações corpo-psique sobre a
medicina científica. O corpo seria uma complexa máquina e,
consequentemente, as doenças resultariam de perturbações no funcionamento
dos mecanismos que compõem essa grande máquina. A função do médico
seria, portanto, atuar por meios físicos e químicos para consertar enguiços
mecânicos. (SILVEIRA, 1992: 11)

As consequências dessa concepção geraram, segundo ela, um modelo de prática


da medicina, no qual a “razão” tem autonomia sobre o corpo e comanda as emoções e os
sentimentos. Mas, continua ela, a “razão” muitas vezes desvairava, era a loucura, que sob
esse modelo médico, passou a ser vista como epifenômeno da máquina cerebral, agora
chamada psique. Assim, foi criada a psiquiatria que, segundo seu argumento, passou a se
concentrar em descobrir as causas orgânicas para as perturbações da “razão”.
No entanto, foi sob a preponderância desse modelo de prática da medicina que
Nise da Silveira se formou e que, posteriormente, criticou. A Faculdade de Medicina da
Bahia foi a primeira instituição a formar uma médica no Brasil em 1887, a gaúcha Rita
Lobato Velho Lopes. Foi também a instituição na qual Nina Rodrigues “fez escola” e de
onde surgem, no Brasil, as concepções eugênicas, a antropometria, a criminologia, a ideia
de higienização e de reforma urbana, psiquiatria, neurologia; enfim, práticas e teorias que

58
buscavam na “identificação científica” de “elementos anômalos” um novo campo de
“conhecimento” da sociedade15.
Não é objetivo investigar este movimento mais profundo e prolongado da história
da constituição da ciência como um campo “legítimo” de poder no Brasil, muito embora a
trajetória de Nise da Silveira, a partir dos anos vinte, tenha vínculos com ele. Mas procurei
“intrometê-la” na história da psiquiatria tanto porque a sua própria história carrega
possibilidades de redimensionar nossa visão sobre a história deste campo da ciência,
quanto porque o entrelaçamento destas histórias pode escapar da dicotomia, tão cara à
própria ciência, entre “normal e anormal”.

A ciência é diferente da ficção em suas formas e estruturas discursivas, mas


também externamente, e está conectada à vida social de indivíduos e grupos de
várias maneiras e em mudança. Os cientistas são parte da sociedade em que
vivem, e como homens e mulheres, membros de determinadas classes sociais,
participantes de organizações sociais e religiosas, membros de famílias, que
participam dos valores e políticas de sua época. [...] A eugenia [por exemplo]
apelou para pessoas de esquerda, assim como as de direita, atraiu algumas
mulheres, mas também foi dirigido contra elas, foi aprovado por profissionais
mulatos, como Juliano Moreira no Brasil, mas também foi utilizada contra todos
os membros de "raças inferiores" por outros (STEPAN, 1991, 196-197).16

15
Formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1886, apesar de ter realizado grande parte de
sua formação na Faculdade de Medicina da Bahia, tornou-se posteriormente catedrático nesta última. A
publicação de As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1884) e A medicina legal no Brasil
(1885), ambos lançados na Bahia, parecem conformar um momento em que médicos e juristas uniam-se
para “esquadrinhar os corpos da nação”. Foi no campo científico e institucional que nasceu o diálogo entre a
criminologia e antropologia na virada do século XIX para o XX, não obstante a chamada “Escola Nina
Rodrigues” tenha participado da montagem ou da reformulação de várias instituições que buscavam
identificar as anomalias sociais, classificando cidadãos em bases eugênicas, num movimento que buscava a
normatização do caos urbano, vivenciado pela população através de políticas higienistas. Sobre a formação
da “Escola Nina Rodrigues ver, sobretudo: Corrêa: 1998. Para uma discussão mais geral sobre as concepções
e práticas “eugênicas” ver, em especial: STEPAN, Nancy. “The hour of eugenics”: race, gender, and Nation in
Latin America. New York: Cornell University Press, 1991. Sobre o processo de “exclusão” social dos loucos,
suas caracterizações no discurso e prática médicas e a organização de hospícios, asilos e manicômios ver:
ENGEL, Magali Gouveia. Os delírios da razão. Médicos, loucos e hospícios (Rio de Janeiro, 1830-1930). Rio de
Janeiro: Fiocruz, 2001.
16
Tradução livre do original; “Science is different from fiction in its discursive structures and forms, but it too
grows out of, and is connected to, the social life of individuals and groups in multiple and changing ways.
Scientists are part of society in which they live, and as men and womem, members of particular social classes,
participants in religious and social organizations, members of households, they participate in the values and
politics of their times. [...] Eugenics [for example] appealed to people on the left as well as the right; attracted

59
No desenrolar desses processos de “cientifização” de várias áreas do conhecimento
e do poder no Brasil entre o final do século XIX e o início do XX, a medicina se desenvolve
como um campo específico, gerando diversas ramificações. Parece, portanto, bastante útil
explorar outro aspecto profissional da trajetória de Nise da Silveira. Afinal, formou-se em
medicina em uma “escola” que se tornou metáfora da constituição de um grupo de
intelectuais que fizeram suas carreiras “predominantemente nos quadros administrativos
de instituições públicas ligadas à Educação e à Saúde” (CORRÊA, 1998: 170), cujas
implicações políticas vão de encontro a práticas policiais de exclusão social de nacionais
ou estrangeiros “indesejáveis” - que, de resto, foram práticas que não tiveram
necessariamente o resultado esperado pelas autoridades17. É isso?
Não se pressupõe, porém, que alguma “escola” tenha de forma determinante
informado a atuação profissional de Nise da Silveira, mas há a possibilidade de relacionar
sua formação acadêmica, o início de sua carreira profissional e o surgimento de uma nova
prática adotada por médicos e autoridades governamentais para abordar a “loucura”,
transformando-a em “doença mental” (ENGEL, 2001: 13). Vale ressaltar que nos anos trinta
os tratamentos de pacientes cujo diagnóstico de “demência precoce”18 ou de
“esquizofrenia”19, eram definidos a partir de uma concepção orgânica e, portanto,
hereditária da “loucura”.

some women but was also directed against them; was endorsed by mulatto professionals such as Juliano
Moreira in Brazil but was also used against all members of ‘lower races’ by others”. STEPAN, Nancy. “The hour
of eugenics”: race, gender, and Nation in Latin America. New York: Cornell University Press, 1991, pp. 196-
197.
17
No caso, por exemplo, das prostitutas residentes na cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX,
Cristiana Schettini Pereira analisa os conflitos entre essas profissionais e os policiais que tentavam controlar
seus espaços, ao mesmo tempo em que eram mediadores de conflitos locais. Schettini: 2002.
18
Emil Kraepelin (1856-1926), psiquiatra alemão, definiu em 1899 como “demência precoce” três estados da
psique: catatonia, hebefrenia e paranóia. Preocupado em descrever e classificar esses estados do
comportamento humano, entendidos como fenômenos endógenos, não direcionou seu trabalho para
análises patológicas já que, em suas conclusões, a cura desses estados estaria impossibilitada pela
precocidade da doença. Ainda assim, nesse período, discípulos de Phillippe Pinel já haviam introduzido
como prática convencional de tratamento psiquiátrico torturas, eletrochoques, camisa de força, exclusão do
convívio social, etc.
19
Eugene Bleuler (1857-1940), psiquiatra suíço que polemizou com Kraepelin redefinindo os “sintomas” da
demência precoce deste último como “esquizofrenia” enfatizando a dissociação da psique como o sintoma
determinante de um tipo de anomalia orgânica que geraria outros sintomas secundários, estes psicógenos.
Sua prática com doentes diagnosticados como dementes precoces conjugada com uma noção mais ampla
da doença, no entanto, permitiu-lhe vislumbrar processos de cura para os mesmos sintomas antes definidos
como incuráveis por Kraepelin.

60
Nesse sentido, os tratamentos adotados eram violentos e pressupunham
intervenções cirúrgicas (como, por exemplo, a lobotomia que visava “separar o
pensamento de suas ressonâncias emocionais”) ou intervenções químicas (como, por
exemplo, a utilização de substâncias como a insulina que provocam convulsões e coma
prolongado cujo objetivo seria a “desmontagem da estrutura psíquica doente”, e que
encontraria, após o coma, elementos para sua reconstrução sadia). Havia, ainda, o
eletrochoque, que cumpriria, segundo os seus adeptos, os mesmos objetivos das
intervenções químicas, além da exclusão do convívio social a que era submetido o “doente
mental” (SILVEIRA, 1992, pp. 11-25). Se esse modelo médico foi bastante criticado por Nise
da Silveira posteriormente, como todo esse debate foi percebido por ela quando cursou
medicina? Que tipo de prática médica ela encontrou no início de sua carreira?
Na mesma turma em que se formou Nise da Silveira, estava Arthur Ramos,
personagem bastante conhecido inclusive por sua participação, no início dos anos trinta,
na formulação de um projeto de construção de um manicômio judiciário, a convite do
chefe da polícia baiana (CORRÊA, 1998: 230). Nesse período, Nise da Silveira já se
encontrava no Rio e ao mesmo tempo em que frequentava a clínica de Neurologia
coordenada pelo médico Austregésilo, participava de reuniões do partido comunista. Sua
atuação profissional, sua militância junto a um partido político e seus vínculos com
organizações como o Clube dos Artistas Modernos ou como a União Feminina do Brasil
não deixam dúvidas sobre sua circulação em várias redes de interlocução social. Surge,
então, outra questão: em que medida suas relações profissionais intercambiavam com
organizações políticas?20
Levando-se em consideração os indícios da formação de uma rede de solidariedade
entre intelectuais nordestinos que moravam no Rio de Janeiro naquele período21 e a

20
As possibilidades de que Nise da Silveira já tivesse conhecimento das concepções e práticas de Osório
César, médico psiquiátrico no Hospital Juqueri-SP, eram patentes. César escreveu em 1925, A arte primitiva
dos alienados, e suas concepções médicas, o levaram a organizar junto ao Clube dos Artistas Modernos, uma
exposição da produção de seus pacientes. No início dos anos trinta, trocou correspondência com Nise da
Silveira. Ver: Processo contra Nise da Silveira - TSN (cit.), Clube dos Artistas Modernos - pront. nº 2241 e
Osório César - Pront. nº 1936 - DEOPS/SP - AESP.
21
Este aspecto é facilmente inferido pela correspondência passiva e ativa de Nise da Silveira encontrada
junto ao processo movido contra ela pelo TSN (op. cit.).

61
formação de um grupo que compartilhava concepções consideradas marxistas22, é
importante situar Nise da Silveira nessas redes.
Sua convivência, entre 1927 e 1931, com Octávio Brandão (dirigente comunista) e
sua esposa Laura na Rua do Curvelo, em Santa Tereza (RJ), onde era vizinha do casal,
possibilitou à médica, recém-chegada à cidade, uma aproximação com outros comunistas
e com a teoria marxista (BEZERRA, 1995, pp. 135-142). Esse aspecto é reforçado pela
própria médica na entrevista, já citada, realizada por Gullar, na qual Nise afirma que a
formação desse grupo deveu-se a uma espécie de rede de solidariedade entre intelectuais
nordestinos que moravam no Rio e a certa oposição que faziam aos intelectuais católicos
(GULLAR, 1997, pp. 40-41).
Nise da Silveira aproximou-se dos comunistas numa conferência realizada por
Castro Rebelo, catedrático de economia política da Faculdade de Direito. Em seguida, com
a amiga Lya Cavalcanti, fora a algumas reuniões do partido, numa das quais acabou
assinando uma ficha de filiação (BEZERRA, 1995: 143).
Mas, sem dúvida, essas relações estabelecidas por ela foram as razões encontradas
pela polícia política para abrir um prontuário em seu nome na 4ª Delegacia Auxiliar -
Secção de Ordem Social e Segurança Pública, no final de 1931. Um relatório do "serviço de
observação", elaborado por dois investigadores "auxiliares”, sobre as atividades da médica
e de seu companheiro, Mário Magalhães, informa que frequentavam a casa do casal
Enrique Tuñon, poeta argentino; Adão de Mendonça, médico que muitas vezes
acompanhou Mario à Editora Alba (responsável por publicações consideradas
"subversivas" pela polícia) quase todas as tardes do mês de novembro; Edgard de Castro
Rebelo, professor da escola de Direito e amigo de muitos comunistas; e, além de Manuel
Bandeira, seu vizinho, "um senhor de nome Raul Bope" 23.

22
Há outros exemplos na documentação de Nise da Silveira apreendida pela polícia política de Getúlio
Vargas, mas o seu estudo intitulado “Filosofia e realidade social” (anotações manuscritas) não deixam
dúvidas sobre a opção teórica por ela afirmada naquele período como “marxista”, in: fls. 138 a 195 - Processo
contra Nise Magalhães da Silveira, op. cit.
23
Relatório do Serviço de Observação, 4ª Delegacia Auxiliar-Secção de ordem Social e Segurança Pública, Rio
de Janeiro, 22 de dezembro de 1931. In: - Processo n.º 191/Apelação n.º 15 - Nise da Silveira - Tribunal de
Segurança Nacional - Arquivo Nacional. Folha 500. A referência a "Raul Bope", em verdade Raul Bopp,
conhecido poeta modernista, como um "senhor de nome", demonstra o baixo nível de informações dos
policiais designados para espionarem a vida do casal.

62
Depois dos levantes comunistas em 1935, a Aliança Nacional Libertadora sofreu
forte censura e muitos escritores, jornalistas, médicos, professores e advogados foram
presos, censurados ou interrogados sobre suas relações com o movimento. Nise da Silveira
foi, em fevereiro de 1936, presa no Hospício Nacional, sob a acusação de ter pertencido à
União Feminina Brasileira e à Ala Médica Reivindicadora da ANL. Em depoimento à
Delegacia Especial de Segurança Pública e Social, ela afirmou ter atuado como médica, na
União Feminina Brasileira (órgão fundado por mulheres comunistas, em 1933), onde
atendia, duas vezes por semana, mulheres pobres 24.
Acusada, além de comunista, de ligações internacionais com “elementos” que
defendiam o “credo vermelho”, a médica combativa, como vimos, esteve presa por um
ano e seis meses, quando fugiu25. Seu segundo advogado, Evaristo de Morais, entrou com
o pedido de apelação, no qual a médica foi absolvida; sendo, no entanto, impedida de
retornar ao seu trabalho no Hospital Nacional Psiquiátrico/RJ, por ter “ideias incompatíveis
com o serviço público”26.
A médica recorreu ao poeta Carlos Drummond de Andrade, então chefe de
gabinete do ministro da educação e saúde pública, Gustavo Capanema, ao qual solicitou o
cargo na Psiquiatria do hospital, com a alegação de que havia passado em 3º lugar no
concurso que prestara. Pedido que não foi atendido, voltando somente em 1944 a atuar
profissionalmente em instituições públicas27.
As experiências de Nise da Silveira revelam sua capacidade em agir a partir das
margens. Nos anos trinta, o campo intelectual que se formava era pequeno e de acesso
restrito. Ser mulher, nordestina, psiquiatra e comunista não lhe abriu portas; ao contrário,
não foi publicada, não foi reconhecida, foi presa e censurada profissionalmente, tendo que
sobreviver numa situação pouco favorável a sua militância profissional e político-
partidária, o que a levou a passar um grande período escondida pela família Mangabeira

24
Termo de Declarações de Nise da Silveira. Rio de Janeiro, 24 de agosto de 1936. Prontuário n.º 13990 - Nise
Magalhães da Silveira, DESPS - Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
25
Polícia do DF - DESPS, Ofício (informando ao TSN que a médica se encontrava foragida), agosto de 1937,
vol. I - Processo de Nise da Silveira/nº 291 - Apelação nº 15 - TSN - AN.
26
Ver: Ana Paula Palamartchuk, op. cit., pp. 168-171 e 202-205, onde trato especificamente da prisão e do
processo instaurado pelo TSN contra Nise da Silveira. É interessante notar que a defesa da psiquiatra passou
ao renomado jurista e advogado Evaristo de Morais, o mesmo que havia defendido prostitutas na década
anterior.
27
Cartas de Nise da Silveira a Carlos Drummond de Andrade, Rio de Janeiro, s/d (provavelmente de 1939 a
1942). Espólio: Carlos Drummond de Andrade - Arquivo Museu de Literatura - Fundação Casa de Rui Barbosa.

63
na Bahia (GULLAR, 1997, pp. 44-45). Podemos, inclusive, perceber em sua trajetória que
um certo reconhecimento profissional teve início muito tempo depois de sua formatura,
tendo começado a publicar artigos em periódicos especializados e a participar de
congressos científicos somente nos anos cinquenta.
Dessa maneira, buscando as experiências de Nise da Silveira em diferentes lugares
sociais, pode-se entender como algumas mulheres conseguiam movimentar-se num
ambiente que, de muitas maneiras, lhes era hostil, utilizando-se das margens para
questionar hierarquias sociais, profissionais e de gênero.
Neste sentido, quando este artigo se propõe a investigar, por exemplo, o processo
movido pelo Tribunal de Segurança Nacional em 1936 contra Nise da Silveira, o objetivo é
o de entender como uma ação jurídica foi vivenciada pelas pessoas envolvidas e quais
recursos essas pessoas foram capazes de mobilizar tanto para a defesa como para a
condenação. Portanto, a experiência de Nise da Silveira permite que seja articulada uma
rede de relações sociais que foram vivenciadas em termos de interações e tensões,
acordos e conflitos, e não em termos de excepcionalidade, tal como aparece na
bibliografia que reclama contra a invisibilidade a que sua trajetória tem sido relegada.

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68
Os intelectuais e a revista Atlântico

Gisella de Amorim Serrano*

Nesse capítulo iremos analisar a participação intelectual de brasileiros e


portugueses na Revista Atlântico, publicada entre 1942-1950 no interior da política
editorial do Acordo Cultural luso-brasileiro assinado em 1941 entre o governo português e
brasileiro.

“S. Paulo, 12-VIII-34

Osório de Oliveira,

Está nascendo um dia feio, desses em que o Inverno parece ter paciência de sua
invernia e se imita a si mesmo. [...] Li, reli a carta que aliás está linda de
sinceridade e sua presença. Compreendi seu estado, mas... como que não
compartilho das suas inquietações sofridas. [...] Antes de mais nada:não haverá
em você um pouco de falta de sabedoria?... Falo sabedoria naquele sentido em
que nada existe de vaidosos e consiste numa experiência digerida da existência
histórica do mundo, das finalidades do homem e da experiência bem assimilada
de sua existência pessoal, que dá muitas vezes prematuramente ao indivíduo,
essa coisa que é a velhice intelectual. [...] Você reage contras as novas formas de
governo e as novas formas do mundo. Eu as aceito e procuro na medida do meu
possível ajudar elas em sua conformação e afirmação. E apesar disso sou eu que
tenho o desgosto de acusar você de conformismo. Você é conformista, Osório,
você é conformista [...] certamente que você não é o conformista que
subrecticiamente ou deslavadamente faz coincidir suas idéias com aquilo que
lhe possa trazer os regalos da vida, dinheiro, amores fáceis, banquetes, elogios.

*
Gisella de Amorim Serrano, Doutora, Professora no Departamento de História do Instituto de Ciências
Humanas e Sociais na Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP.

69
Está claro que não é essa feição ignóbil que você é conformista. Se trata dum
conformismo mais sutil e significativo. Você é conformista naquilo em que seu
espírito é especificamente burguês e anterior à guerra. O que quer dizer sempre
que é romântico é séc. XIX. Você chega a suspirar por aquele liberalismo antigo,
que o tempo nosso já não permite mais! [...].

Mário de Andrade”1.

A missiva de Mário de Andrade a José Osório de Oliveira, um dos administradores


da revista Atlântico e, sobretudo, do SPN português, é esclarecedora dos caminhos e
meandros por onde se desdobra a situação de um intelectual moderno frente ao mundo
contemporâneo. Mário e Osório assistiram ao afirmar de doutrinas totalitárias, como o
fascismo, à rejeição de um liberalismo como saída possível à crise financeira das décadas
de 20 e 30. Eles, sobretudo, participaram ativamente de projetos culturais orquestrados no
interior de políticas autoritárias, como era o caso do governo de Salazar e Vargas. A carta
simboliza, de um lado, os desafios de um intelectual frente ao seu tempo e, acima de tudo,
sua participação frente à “situação do mundo”, e, de outro lado, incorpora e sinaliza a
profundidade de um diálogo travado entre dois intelectuais: um brasileiro e outro
português, dividindo impressões e debatendo suas posições frente às questões que
envolviam o governo, a política, a arte..., o mundo.
Esses aspectos trazem à tona posições diversas acerca da interseção entre a
instituição burocrática no Brasil pós-30 e os “homens de letras”. A crítica historiográfica
tem proposto, nas últimas décadas, uma questão pertinente quanto à relação entre os
intelectuais e o poder no Brasil. A discussão circunda a disposição dos literatos e artistas da
época em aceitar cargos administrativos num governo de feições autoritárias.
Angela de C. Gomes (GOMES, 2009) problematiza o estatuto da história, a
configuração do campo historiográfico, a intervenção dos intelectuais/historiadores por
meio da conformação de um repertório de História do Brasil vinculado à leituras políticas
específicas. A sua definição, a esse trabalho mostra-se muito pertinente quanto as
dimensões interativas entre poder/ escrita da história, entre história/memória política.

1
Mário apud SARAIVA, Arnaldo. Modernismo português e modernismo brasileiro. São Paulo: Ed. Unicamp,
2004, p.399-403.

70
Conforme afirma Ângela, o ofício do historiador estaria associado a uma produção que
envolveria o artefacto intelectual, ele não estaria dissociado da produção cultural, nem
tampouco os frutos do seu trabalho estariam desarraigados no cenário político. Para ela o
lugar e o ofício de historiador estaria em conexão com um campo político que não
descobre nem a possibilidade de intervenção na cultura nem tampouco deixa à sombra a
inserção do intelectual/historiador de se relacionar, como campo de atuação legítima- do
poder2. Nos anos de produção da Revista Atlântico, por exemplo, essa situação ainda
vigora e perceberemos que a discussão ou as dúvidas que circundam a disposição dos
literatos e artistas da época em aceitar cargos administrativos num governo de feições
autoritárias como o Estado Novo, tanto no Brasil como em Portugal não se alteraram.
Em 1940, em pleno Estado Novo no Brasil, o diretor do Museu nacional de Belas
Artes, Osvaldo Teixeira, já se adiantava em prenunciar a questão, acrescentando-lhe uma
positividade constituinte no mecenato de Vargas. Segundo Teixeira, a arte seria a
expressão primordial e indiscutível da cultura dos povos, seria pela arte que se expressaria
todas as virtudes de uma civilização3. Mas, o que seria da arte se os artistas, então
escultores da vitalidade cultural de um povo, “não pudessem contar com o apoio moral e
material de dirigentes cultos e, por vezes, geniais”4? Vargas seria, segundo o autor, um
desses gênios (como outrora o fora Péricles na Grécia, Augusto em Roma, os Médicis na
renascença, Francisco na França). Esses mecenas supostamente geniais teriam contribuído
para a realização plena das artes durante diversos momentos históricos e, por isso,
simbolizariam, nessa lógica, a forma mais “satisfatória” de ligação entre o poder e a arte. O
Estado Novo e a república receberam, na obra de Osvaldo Teixeira, um capítulo particular,
assim como os demais períodos citados acima. Na última análise do livro, ele expõe qual
tinha sido, até então, o papel de Vargas como administrador no setor das artes:

“Desde os primeiros anos de sua administração, os artistas começavam a ter um


maior incentivo e o povo a melhor compreender a produção artística. [...] O
nosso presidente cuida com sincero entusiasmo da vida dos artistas, ora dando-

2
GOMES, Angela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009.
3
TEIXEIRA, Osvaldo, Getúlio Vargas e a arte no Brasil, a influência direta dos chefes de Estado na formação
artística das pátrias. Rio de janeiro: DIP, 1940.
4
Idem, op. cit, p.07-08.

71
lhes lugares no professorado, como encomendando obras de arte,
principalmente no domínio da pintura decorativa e, ainda criando postos de
destaque na administração, em que os artistas se sentem mais à vontade e
podem assim melhor produzir”.5

Essas afirmações acentuam um tipo singular de mecenato realizado por Vargas, no


qual a inserção dos intelectuais nos quadros administrativos do Estado permite, antes de
tudo, que não se descuidem de suas funções como literatos, pintores, etc. De outro modo,
corroboram a ideia de que a arte é que mobiliza os significados, afinal, para os ideólogos
do regime, como Teixeira, a “arte é a verdadeira imagem da pátria”6. E, se assim se pensa, a
arte passa a ser um domínio de um Estado que se propôs, antes de tudo, burocratizar a
vida social em todos os seus aspectos.
Em Portugal, esse conceito de arte coadunava com as proposições fundamentais
da política do Espírito organizada por Antonio Ferro. O diretor do SPN defendia que, na
“verdadeira arte”, haveria um sentido intrínseco associado à ordem7. Para ele, a Política do
Espírito tinha por objetivo primordial defender os princípios de uma arte voltada para o
combate às inquietações artísticas, que só redundariam em uma “falsa moral”, ou melhor,
de uma “nova moral”:

“A nossa guerra, portanto, é contra essa inquietação que se sabe doentia e que
produz uma literatura e uma arte conscientemente mórbidas, tão condenáveis
como certas drogas! O que nós atacamos é a renascença duma literatura sádica,
indesejável, onde o talento perde os seus direitos e se transforma numa tara!”8.

A maior investida do SPN na arte, qual fosse a premiação literária, seria a própria
justificação dos princípios que nortearam a “Política do Espírito”9. Durante a administração

5
Idem, op.cit, p.48-51.
6
Idem, op.cit, p.11.
7
FERRO, Antonio, Prêmios literários. Lisboa: SNI, 1950.
8
Idem, op.cit, p.23.
9
Sobre a repercussão da política de Ferro, ele mesmo anota: “porque tornou-se deselegante a
despreocupação dessa política; porque artistas, escritores e pensadores são hoje chamados,
espontaneamente, onde nunca eram chamados” (discurso em maio de 1936). Ver: FERRO, Antonio. Prêmios

72
de Salazar, evidencia-se a “participação” de intelectuais como Antonio Ferro e José Osório
de Oliveira para citar apenas os funcionários da Seção Brasileira do SPN.
Para Luís Reis Torgal (TORGAL, 2009) Antonio Ferro seria um “caso paradigmático
de político orgânico”10. Para esse historiador, no caso português, embora considere que o
intelectual pode ser caracterizado por aquele que discute e se preocupa com a cultura e
por isso acaba por ser interventivo não deve naturalmente, por estar associado ao regime,
ser “enquadrado” como “orgânico”11.
Essa espécie de “enquadramento” de vários literatos, artistas, intelectuais pela
burocracia faz-nos perguntar se estavam eles cooperando com o regime (e,
evidentemente, endossando sua forma de agir), se apenas lá estavam como única opção
de sobrevivência, ou, ainda, se utilizavam da máquina administrativa para, de alguma
forma, obter lucros ou status. Mário de Andrade, mais uma vez, ilustra a questão ao referir-
se à justificativa de uma produção de artigos destinados a revistas que em nada tinham de
literatura. Ele adverte ao colega Osório de Andrade:

“[...] não se assuste de me ver escrevendo em publicações médicas. É questão de


strugle for life.(é sim, só as revistas de propaganda pagam bem os literatos). [...]
Estou só à espera que o famoso remédio brasileiro, chamado saúde da mulher,
faça revista e me peça colaboração, pra lhe escrever, em troco de alguns 300
bicos, ou também mil réis, um vasto estudo etnográfico sobre o fluxo
catamenial, que aliás terá o lindo nome de “a mulher vermelha”. A minha
situação econômica está como a do Brasil, insolúvel, com mentira e tudo. E
desconfio que se me pedirem que escreva sobre altas matemáticas nalguma
revista de engenharia, ainda arranjarei jeito na minha sabença episódica de

literários. Lisboa: SNI, 1950, p. 41.


10
TORGAL, L. R. O modernismo português na formação do Estado Novo de Salazar e Antonio Ferro e a
Semana de Arte moderna. In: SILVA, Francisco Ribeiro da; CRUZ, Maria Antonieta; RIBEIRO, Jorge Martins;
OSSWALD, Helena. (Org.). Estudos em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de
Letras da Universidade do Porto, vol. 3, 2004, p.77.
11
Idem, op.cit, p.76. Para Luís Trindade que analisa a intelectualidade portuguesa no início dos anos 1930 a
crise política verificada nesses anos, quando então havia a “iminência de uma escalada militar” teria
provocado uma necessidade de maior intervenção, ou no extremo, teria provocado também uma auto-
reflexão acerca do lugar dos intelectuais, o que redundou, a partir desse ponto, inúmeros livros acerca do
que viria ser o intelectual. Ver: TRINDADE, Luís. Introdução à vida intelectual. Intelectualidade, crise e censo
comum nos anos 30 em Portugal. Cadernos do CEIS20, n.04, 2007.

73
encontrar o que dentro dela coincida com as elevadíssimas matemáticas que o
Diabo o leve”12.

A mudança de perspectiva no Brasil, com relação à participação política dos


homens de letras13, toma contorno mais expressivo a partir da constituição de uma rede
burocrático-administrativa que deu margem à expansão do Estado, tal como já foi dito.
Alguns intelectuais sustentaram, por meio de suas ideias e programas políticos, a prática
do autoritarismo do período14. Segundo Maria Celina D’Araújo(1999), a ação do intelectual
“confere autoridade ao poder”.15 Mais do que isso, essa autora defende a ideia de que, nos
anos 30, havia uma mudança de perfil por parte da intelectualidade, então “consciente
ideologicamente e com compromisso político, religioso e social”16. Essa postura refletiria
uma “incredulidade resolvida pela união com o poder”17.
A participação da intelectualidade brasileira já se fazia acontecer desde os
primeiros anos da república. Uma insatisfação com os rumos tomados pelo país desde as
primeiras décadas republicanas foi essencialmente exacerbada nos anos 20. Essa
insatisfação, para além do reconhecimento do atraso brasileiro, representaria também a
perdição dos sonhos da República proclamada, por isso a Semana de Arte Moderna,
promovida em 1922, foi, muitas vezes, apresentada como a representação de “uma crise
social de identidade”18. Essa crise redundou na retomada, pelo modernismo, das questões

12
Mário apud SARAIVA, Arnaldo. Modernismo português e modernismo brasileiro. São Paulo: Ed. Unicamp,
2004, Op. Cit, p. 407.
13
Segundo Dutra, a preocupação dos “homens de letras”, propriamente ditos, é já notável nas últimas
décadas do século XIX, essencialmente na década de 1870 quando “um expressivo debate de idéias
acompanha as agitações do período mobilizando os intelectuais. Esses homens, militantes nas fileiras do
abolicionismo e integrantes das hostes republicanas, empenhados em refletir sobre a realidade nacional, e
em encontrar soluções para os impasses do país, são partidários de um engajamento político dos homens de
letras, ancorado na produção de um conhecimento eficaz”. Ver: DUTRA, E. F. Rebeldes Literários da
República. História e Memória no Almanaque Brasileiro Garnier. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006, p.14.
14
Entre eles é mais conhecido o caso de Oliveira Vianna. Para ilustrar citamos: MATTOS, Karin. O
Autoritarismo em Oliveira Vianna. In: Revista Metavóia, FUNREI, 2000, n.02.
15
D’ARAUJO, Maria Celina. As instituições brasileiras da era Vargas. Rio de Janeiro: UERJ, 1999, p.85.
16
Ibidem,1999, p.90.
17
Ibidem, 1999, p.90.
18
LAHUERTA, Milton. Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização. In: LORENZO, H. C.;
COSTA, W. A Década de 20 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: Unesp/FAPESP,1997. Os projetos de
“brasilidade” apresentados no início do século XX, sob o diversos matizes foram analisados por Eduardo
Jardim de Moares. Nesses projetos evidenciam-se, sobretudo as expressões conservadoras do modernismo.
Ver: MORAES, E.J. A Brasilidade Modernista . Rio de Janeiro: Graal, 1978 e PRADO, A. A.1922: itinerário de uma
falsa vanguarda, 1983 e LAHUERTA, Milton. Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista,

74
nacionais e na consequente “reinvenção” do Brasil19. Alguns dos participantes desse
movimento político-artístico prestaram serviço ao Estado autoritário varguista.
Segundo Miceli (1979), a geração desses intelectuais modernistas dos anos 20 e a
geração pós-revolução de 30 valiam-se da inserção burocrática como forma de manterem
um honorário seguro, bem como a possibilidade de garantir a aprovação de suas obras,
uma vez que “o Estado foi se tornando uma instância decisiva de difusão e consagração de
obras produzidas”20. Prova disso é que “suas obras se converteram em paradigmas do
pensamento político da época”21.
O argumento de Miceli consiste em classificar como cooptação a relação entre
Estado e intelectuais, os quais, além de incorporarem-se ao trabalho burocrático,
favoreciam o regime através da consecução de trabalhos de toda ordem (como
monumentos, projetos arquitetônicos, obras literárias, música), os quais tinham um
escopo nacionalista. Porém, a necessidade de formulação de uma cultura nacional22 e de
sua devida difusão tinha no fundamento da modernização sua defesa. Assim:

“O Estado Novo procura ganhar os intelectuais, oferecendo-lhes as condições


para a satisfação das exigências gerais que pode oferecer um governo...
mostrando-lhes um caminho seguro, evidentemente com o seu assentimento,
para a realização de seus ideais e utopias: o da construção da nação por meio do
Estado, que com ela queria se confundir. É por isso que não se trata de
cooptação, mas de constituição de um novo bloco de poder com uma
simultânea perspectiva autoritária e modernizadora, que busca consenso entre
a intelectualidade, chamando-a a participar do processo”23.

modernização. In: A Década de 20 e as origens do Brasil moderno, 1997.


19
Idem, op.cit, 1997.
20
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). (Coleção Corpo e Alma do Brasil) São
Paulo: DIFEL, 1979, p.132.
21
Ibidem, p.147.
22
Lúcia Lippi discute a distinção feita por Gentile entre nacionalismo e fascismo, e dela afirma ser o Estado
Novo muito próximo do fascismo a esse respeito. Assim, “no nacionalismo a nação existiria não em virtude
da vontade dos cidadãos, mas como um dado, um fato da natureza. Para o fascismo... o Estado e a nação
seriam criações da mente e não uma pressuposição espiritual”. Ver: OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELLOSO, Mônica
Pimenta; GOMES, Ângela de Castro. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p.27.
23
LAHUERTA, Milton. Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização. In: LORENZO, H. C.;
COSTA, W. A Década de 20 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: Unesp/FAPESP,1997, pp. 83-106.

75
Contrapondo-se então à tese central de Miceli, o autor acima citado entende que a
exigência de um Estado forte, centralizado, capaz de gerir e conduzir a nação, bem como
arrancá-la do diagnosticado de atraso em que se encontrava, é o pressuposto da anuência
da intelectualidade e de sua adesão ao regime autoritário. Isso porque, no Estado, estariam
contidas as expectativas de todos aqueles capazes de identificar o “problema nacional”.
Entretanto, a conclusão de que o compartilhamento de propostas e interesses entre
governo e intelectualidade indica ora que a relação era positiva (porque não imposta), ora
que a intelectualidade “pensava” com ou como o próprio regime. É possível que essa
relação estivesse relacionada com a preocupação mútua (Estado e intelectuais) em
fundamentar a nação brasileira e organizar um “novo” Brasil. Assim, “o discurso do
governo vai ao encontro do discurso dos intelectuais”24.
Adesão, cooptação, favorecimento, afastamento, recusa, não há como elaborar
uma regra única e geral para todos. Não podemos, contudo, desconsiderar certa feição
“missionária” dos homens de letras desse período que, tal qual o exemplo de Sérgio
Buarque, revela a quase necessidade de realizar, pela via do Estado, projetos culturais
inspirados num verdadeiro “iluminismo burguês”25. Aqueles homens, como Sérgio
estariam preocupados com a “mesma ordem de questões”, que se relacionava ao tema da
formação da nação, propuseram políticas culturais26. Entre elas, a criação de organismos
como o Instituto Nacional do Livro, instituído em 1937, sob uma inspiração claramente
“iluminista”27, assim como a criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
no mesmo ano e voltado pioneiramente às políticas de recuperação da memória e do
patrimônio brasileiro. Nesse caso, muito embora alguns intelectuais tenham se rendido às
“vantagens” do serviço público em função de problemas financeiros ou de outra ordem, é

24
CAVALCANTI, L. Modernistas na repartição, 1993. Ver também Idem. Modernistas, arquitetura e
patrimônio, 1999. Daniel Pécault (1990) afirma que o modernismo brasileiro dos anos 20-40 apresentou uma
indissociação entre o plano cultural e o político, porque predispunha a nação como sujeita. Ver PECAULT, D.
Os intelectuais e a Política no Brasil, 1990. Gomes (1999) reforça o argumento quando sentencia: “[...] os
modernistas adequaram-se à tarefa, tanto porque reinstauraram a temática da brasilidade com feições
militantes, quanto porque eram os intelectuais disponíveis [...]”.GOMES, A. C. História e historiadores. Rio de
Janeiro: FGV, 1996, p. 139.
25
BARBATO JR, Roberto. Missionários de uma utopia nacional-popular: os intelectuais e o Departamento de
Cultura de São Paulo. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2004. v. 01, p.87.
26
Ibidem, 2004, p. 89.
27
Ver: SILVA, S. B.. O Instituto Nacional do Livro e a institucionalização de organismos culturais no Estado
Novo (1937-1945): planos, idéias e realizações. 1992. 154 fl. Dissertação (Mestrado em Ciência da
informação), Universidade Federal do Rio de janeiro, Rio de janeiro.

76
possível pensar que, ainda assim, esses homens, tal como Mário de Andrade, possuíam
para além das expectativas do orçamento a expectativa da contribuição social28.
Mário de Andrade é um personagem emblemático, não somente porque trabalhou
como executor do projeto da Enciclopédia Brasileira no INL29, tendo implementado,
anteriormente, no Departamento de Cultura de São Paulo, um ousado projeto cultural – o
que o tornava, de uma forma ou de outra, um colaborador da administração do estado
vargista – mas, sobretudo, porque foi um grande elo de sociabilidade intelectual nos anos
20-40 entre Brasil e Portugal. Mário, Carlos Drumond, Cecília Meirelles, Tristão de Athaíde e
Alceu Amoroso Lima foram os únicos colaboradores brasileiros na primeira edição da
revista Atlântico30. Nas outras edições, outros artistas brasileiros aparecem31, como é o caso
de Vinicius de Moraes, Adalgisa Nery, Graciliano Ramos, Otto M. Carpeaux, Afrânio Peixoto,
José Lins do rego, Manuel bandeira, Augusto Frederico Schmidt32.
Uma carta curiosa de Alberto de Andrade a Getúlio Vargas, em 1949, sinaliza a
conflituosa relação entre os intelectuais e o poder naquele período. Ao mandar a Vargas
um recado de José Lins do Rego, Alberto afirma:

“Como estamos a falar em Zé, falemos noutro - o Lins - que me pede confirmar
recado que lhe enviou não sei por quem. Manda dizer-lhe que não é tão seu
adversário quanto o senhor pensa. O recado vem a propósito de uma frase sua
dita a não sei que gazeteiro que os escritores brasileiros continuavam a
oferecer-lhe os seus livros, mesmo os adversários como o Zé Lins. Esse cabeça
chata faz questão de ser excluído da lista dos adversários. Diz que lhe dá umas
bordoadas quando em vez, mas que não doem. São pancadas de amor. Não o

28
BARBATO, R. Op. Cit., 2004.
29
Desiludido com a sua exoneração na cidade paulista, vai ao Rio e aceita os préstimos dos amigos,
fundamentalmente de Gustavo Capanema, que lhe oferece serviços no MÊS, e de Meyer, no INL. Ver
AMARAL, Adriana F. Artífices da Reconciliação - intelectuais e vida pública no pensamento de Mário de
Andrade, 1999 (dissertação).
30
Outros colaboradores brasileiros aparecem nas edições seguintes, entre eles: Ribeiro Couto e Augusto F.
Schmidt, que receberam no livro “Estados unidos da saudade”, capítulos de homenagem. Ver FERRO, A.
Estados unidos da saudade. Lisboa: SNI, 1949, pp.184-208.
31
Ver: PAULO, H. Op. Cit., 1994 pp.171-172.
32
Embora Heloísa Paulo tenha afirmado já uma vez que os intelectuais que colaboram na Atlântico
atendessem aos mais diversos matizes, é bom relembrar que Graciliano Ramos foi também, no mesmo
período, colaborador no Instituto Nacional do Livro, assim como Vinícius de Moraes. Adalgisa Nery, como a
autora já ressaltara, era esposa de Lourival Fontes.

77
leve a mal. Num dado momento o único assunto era o senhor e o pobre do Zé
tinha de ir na onda”33.

Esse trecho demonstra quão complexa seria a relação entre os intelectuais e o


poder, sobretudo, com Vargas, um político cuja força era sempre “reforçada” pelos
mecanismos repressores e de propaganda.
Mário de Andrade, ao referir-se ao convite para o departamento de São Paulo,
enumera as dúvidas de um intelectual frente à realidade material da vida e frente aos
desafios de sua própria condição. Em carta a José Osório de Andrade, dizia:

“Imagine que me convidaram [...] o mais espantoso talvez seja contar que
aceitei. Este caso de eu ter aceitado o cargo é bastante complicação. Em sincera
e individualista análise devia ter recusado. Mas devia mesmo?... pesei os prós e
os contras, mas sempre é incontestável, já tinha aceitado o cargo.[...] na
verdade, meu caro amigo, eu estava num enorme impasse intelectual, num
beco sem saída que me obrigava desde uns dois anos pra cá um marcar de
passo no mesmo lugar, que me deixava odientamente insatisfeito de mim, ou
melhor, incompletado. Era sempre a mesma questão: comunismo,
ditatorialismo, liberalismo democrático [...] Estava de não poder mais
escrever.[...] é que toda a minha existência real, isto é, dos 25 anos em diante, eu
me dera uma finalidade bem definida sempre, modernismo, trabalho pela
espécie brasileira, folclorismo, que sempre me enchera. Mas realizado o que
tinha de realizar nesse sentido, se viera naturalmente sobrepor ou contratar a
definição pacífica, outra mais imperiosa, mais imediatamente do tempo, a
definição política. [...] Há momentos de lucidez em que não consigo ver nem
num futuro bastante remoto, qualquer possibilidade de eu voltar ao que fui,
escritor e livre de si mesmo. Mas me sinto outra vez definido e pragmatizado. O
trabalho me espera”34.

33
GV c 1949.12.28/1 acervo digital do Arquivo Getúlio Vargas. Disponível em:<HTTP://www.cpdoc.fgv.br>
Acesso em: 23 abril de 2007.
34
MARIO Apud SARAIVA, A. Op. Cit., 2004, p. 411-412.

78
Segundo Adriana F. Amaral (AMARAL, 1999), Mário de Andrade não conseguira
sobreviver imune ao sentido do ofício intelectual da sua época, então “contaminada pela
política”35. Entretanto, o discurso dessa intelectualidade, da qual Mário de Andrade fazia
parte, estaria também contaminado pelo sentimento de Falência Oligárquica36, do qual
não conseguira mesmo se esquivar37. O modernismo, assim como os avanços materiais do
mercado ocorridos nas décadas de 20 e 30 trouxe novas possibilidades relativas à função e
ao status do intelectual38. A partir de Vargas, no Brasil, a posição da intelectualidade frente
ao exercício de quadros públicos altera-se consideravelmente. Muitos artistas e
intelectuais irão trabalhar como funcionários efetivos ou temporários da burocracia de
Estado, cuja administração havia se ampliado enormemente conforme a necessidade do
plano de expansão burocrática39. Entretanto, a posição dos literatos e artistas não se
restringe, a saber, como o fez Amaral (AMARAL, 1999), em funcionários e os não
funcionários do Estado. Segundo a autora:

“[...] os que trabalham, ganham importante o importante papel de forjar o país,


recriá-lo a partir da Era Vargas. Em troca, recebem a segurança de um salário
garantido no fim do mês e a legitimação de seu discurso. [...] os que não
trabalhavam para o Estado, estavam presos ou tinham que conviver com a
ameaça de ter seus projetos esquecidos ou rejeitados”40.

Escapa a essa divisão os meandros de uma relação imbricada que extrapola a


dicotomia adesão-recusa. Mário de Andrade, por exemplo, conforme a análise da própria
autora, dispunha da leitura como ferramenta política, principalmente quando atribuía um
sentido particular por meio da operação condicionante autor-leitor: “A leitura, no livro de
Mário de Andrade, torna-se um instrumento de compreensão do mundo à sua volta”41.

35
AMARAL, A. op. cit., 1999, pp.19-20.
36
A autora recupera aqui a análise de Carlos Guilherme Motta, que atribuiu a obras clássicas dos anos 20 e 30
como Casa Grande senzala e Raízes do Brasil, uma orientação cuja função era tentar “entender a classe social
a que pertenciam e os motivos pelos quais o sistema ruiu”. MOTTA apud AMARAL, A, Op. cit., p.40.
37
AMARAL, A. Op. cit., 1999, p. 20
38
Ibidem, 1999, p. 22.
39
GOMES, A. Op. Cit., 1996, PANDOLFI, D. Repensando o Estado Novo, 1999, MICELI, S. Op. Cit. 1979.
40
AMARAL, A. Op. cit., 1999 p.35.
41
Idem, Ibidem, 1999, p.100.

79
Definindo-lhe como um político peculiar, cuja desconfiança entre cultura e política
era explícita e cuja ação de literato nunca lhe trouxera maiores dificuldades42, Mário,
segundo a mesma autora, era, ainda assim, uma espécie de “político das letras” não
declarado, afinal “nacionalismo, para Mário, significava simplesmente se relacionar com o
meio em que vivia”. Contudo, para compreender-lhe as ações de intelectual não
partidário, embora não apolítico, é preciso rever seu contexto de atuação e o próprio
sentido do modernismo, do qual Mário é, sem dúvida, uma das figuras referentes.
O modernismo no Brasil surge como uma espécie de missão nacionalista, onde a
identificação de um ser nacional era a proposta latente, embora não possamos considerar
o movimento como um perfil homogêneo. Segundo Amaral (AMARAL, 1999), “ser
moderno era ser, sobretudo, nacionalista”43. A proposta nacional do modernismo era
gestada num universo de propostas diversas e cujos desdobramentos foram múltiplos44,
um universo cuja transformação social urgia45. Uma importante compilação de estudos
acerca dos problemas brasileiros é emblema dessa aventura intelectual que buscava
compreender para transformar. A obra À margem da vida da República (1924) de Vicente
Lícinio Cardoso é organizada com esse propósito. O surto de brasilidade no meio literário
brasileiro é responsável pela organização de um ideário variado e composto que vertia
suas forças à recusa, à mudança e à proposta de um novo Brasil46. Esse era o cenário nos
anos 20, o cenário onde Mário de Andrade e Antonio Ferro irão se conhecer. Um desses
pilares de recusa destinava-se, sobretudo, às modas européias: “os modernistas queriam
fazer com o Brasil o que Rimbaud fez com a poesia: despi-lo de todos os europeísmos
adquiridos em antigas gerações, para mostrá-lo radiante, original e, sobretudo,
brasileiro”47. Além do mais, a recusa da estética européia estimulara o Manifesto pau-brasil

42
Idem, Ibidem, 1999, p.98.
43
Idem, Ibidem, 1999, p.23.
44
Maria Celina D’Araujo subdivide o movimento em três vertentes e em três fases: 1) anos 20, em que se
desenvolvem as ideias de reformulação da vida social e política brasileira; 2) a fase da “brasilidade”, que se
divide em movimento verde amarelo, antropofagia e criticismo de Mário de Andrade; 3) uma fase de
“acertos” políticos, quando há uma aproximação com o poder. D’Araujo, M. C. Op. Cit., 1999, p. 85/90).
45
D’ARAÚJO, M., Op.cit., 1999.
46
D’ARAUJO,M., op. cit., 1999.
47
AMARAL, A., Op. Cit., 1999, p.24.

80
de Oswald de Andrade: “era preciso devorar o estrangeiro, não para sua anulação, e sim
para absorção e, mais uma vez, síntese”48.
Em contrapartida às correntes de variações múltiplas no interior do modernismo
enquanto movimento, era corrente um pressuposto comum: o nacionalismo, afinal havia
novas interpretações possíveis para a estética brasileira, mas, sobretudo, para o Brasil
como uma nação, e esse sentido foi dado pelo movimento quando “ser moderno, era ter
um novo olhar sobre passado, presente e futuro”49.
Nos anos 30, com Vargas, há uma mudança significativa quando surge uma
“consciência ideológica e um compromisso político”50. Será, portanto, nos anos 30 que a
função de clerc torna-se menor, quase ausente frente a uma postura de “crítica e reforma”
por parte de muitos intelectuais brasileiros, cada qual representando, à sua maneira, uma
postura frente à nova situação com o poder e o status que o Estado garantia. Além disso,
as inúmeras interpretações para o Brasil haviam sido gestadas nos anos anteriores e
continuavam sendo até que um projeto político ideológico, por parte do Estado,
encampou-as, em parte.
Já o modernismo português surgira como fruto de uma “crise de fim de século”,
ancorado num “certo nacionalismo” e sob um “cansaço do racionalismo positivista”51. Essa
crise, tal qual parece ter sido no Brasil anos mais tarde, seria um contributo oficial para as
propostas estéticas e políticas de uma geração de intelectuais que procuravam
“redescobrir” a nação portuguesa52. Antonio Ferro é, sem dúvida, um expoente desse
modernismo português, vincado em ideais nacionalistas.
Sugestionados pelo perfil da revista, procuraremos, a partir deste ponto, analisar
dois aspectos concernentes à relação intelectuais e Estado, no Brasil e em Portugal nos
anos 30 e 40, mas, sobretudo, no cenário luso-brasileiro, compreendido aqui pelo
circuito das publicações e trocas intelectuais. Em primeiro lugar, devemos contextualizar
os aspectos que unem ou diferenciam o modernismo brasileiro e o português. Embora
Saraiva (2004) pondere que entre o modernismo português e o modernismo brasileiro

48
Idem, Ibidem, 1999, p.26.
49
Idem, Ibidem, 1999, p.23.
50
D’ARAÚJO, M., Op. Cit., 1999, p. 90.
51
TORGAL, L. O modernismo português na formação do estado Novo de Salazar ,2004. Disponível em:
<http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5038.pdf> Acesso em 10 maio 2009.
52
Idem, 2004.

81
havia uma ausência de intercâmbio cultural mais intenso”, beirando quase um
“desconhecimento mútuo”53, é que, contraditoriamente e justamente nos anos 20,
firmam-se novas amizades entre intelectuais e artistas portugueses e brasileiros, como é o
caso de Cecília Meirelles e Fernanda de Castro54. E será justamente com a vinda de Antonio
Ferro ao Brasil que essa rede de sociabilidade irá florescer, uma “verdadeira malha cultural
a que se prendem temperamentos, valores e inclinações os mais diversos”55. Essa rede de
sociabilidade entre intelectuais do período 20-40 do século XX, no Brasil e em Portugal,
está intimamente relacionada às tramas, dissensões, afinidades, intercâmbios, desajustes e
tudo o mais que englobaria um amplo diálogo letrado acerca dos mais diversos assuntos e
problemas dos dois países. Numa análise como a que pretende esta tese, coube-nos
avaliar as relações de sociabilidades voltadas para uma maior aproximação de artistas e
intelectuais ligados, ou não, diretamente ao poder, mas que propõem ou empenham
esforço literário e artístico à política de aproximação luso-brasileira do Acordo de 1941.
Nesse sentido, envolve-se um debate pertinente e não exclusivo entre intelectuais e
artistas que se tornaram pares, não, sobretudo, em razão do Acordo, mas por uma
necessidade mútua de conhecimento recíproco, que estaria supostamente relativa à
política luso-brasileira do Acordo Cultural.
É importante então esclarecer que o que nos importa aqui é tentar identificar
alguns personagens centrais desse diálogo que puderam alinhar-se num contexto de
amplo estreitamento político diretivo à união luso-brasileira, tendendo sempre à
promoção cultural, o que estaria de acordo com os propósitos daqueles que se ligam às
letras e às artes em geral. Entendemos, portanto, a rede de sociabilidade como um
diálogo, uma proposta de ligação que, nesse caso específico, empreende um esforço para

53
MARIO apud SARAIVA, A. Op. cit., 2004, p.257.
54
Ver: GOUVEA, Leila. Cecília em Portugal, RJ: Editora Iluminuras, 2001. Mais do que isso, Saraiva afirma que
certa lusofobia ainda persistia no final da década de 1920, embora ela envolvesse “quase só uma
pequeníssima parte de intelectuais na sua maioria carioca”, e ainda advertia que “na cultura portuguesa [...]
era pouco ou nada brasilófoba” (p. 77). Sobre essa aversão recíproca, compreende-se teoricamente dois
equívocos que Arnaldo saraiva intentava apagar: “[...] que o modernismo teorizou e praticou a separação
definitiva entre a cultura brasileira e a portuguesa ou que os modernistas ignoravam a literatura portuguesa”
(p.15). Essa advertência torna-se importante na medida em que relativiza, ao passo que contextualiza o
conhecimento das duas culturas entre si e colabora para advertir a pequena parte do câmbio de recusa
significante a cada uma delas naquelas décadas. Ver SARAIVA, A. op. Cit, 2004.
55
VILLAÇA, prefácio apud GOUVEA, Leila. Cecília em Portugal, RJ: Editora Iluminuras, 2001.

82
identificar traços de união, embora saibamos que um diálogo prevê, muitas vezes, a
dissensão ou o desacordo.
Arnaldo Saraiva, ao tratar das relações entre o modernismo português e o
brasileiro, não irá negar essa rede de sociabilidade, embora afirme que ela só se estreitará
nas décadas seguintes, nos anos 30 e principalmente 40. Particularmente, essa rede de
sociabilidade importa-nos no sentido de que o Acordo Cultural foi gestado e desenvolvido
num ambiente político-cultural onde as ideias (então como propostas) dos modernistas
ainda “pairavam no ar”. Há um “encontro” fortuito entre os intelectuais modernistas que
irão, no decorrer dos anos seguintes, orientar ou participar direta ou indiretamente de
algumas políticas culturais dimensionadas nas décadas de 30 e 40, como o Acordo
Cultural. Ao analisar a produção dos impressos oriundos do Acordo de 1941, veremos
alguns desses intelectuais que se uniram nos primórdios das manifestações modernistas
aqui e em Portugal56.
Ao contrário do que se pensa comumente, embora Antonio Ferro fosse um
representante do modernismo português e fosse, ao mesmo tempo, um diretor do
sistema burocrático salazarista, não é possível afirmar que ambos, o regime salazarista e o
modernismo português, tivessem uma relação direta e constante, é o que nos conta Luís R.
Torgal: “O modernismo, embora estabeleça ligações fugazes com o regime [...] não se
pode identificar com o Estado Novo, entendido como regime”57.
Entretanto, é em torno de sua casa, de seus livros e de sua atuação como literato
que o Brasil deixa-se levar a Portugal pelas letras nas décadas de 30-40. Tanto Mário de
Andrade como Cecília Meirelles, Oswald de Andrade e outros nomes conhecidos nesse
cenário modernista no Brasil tornaram-se grandes amigos do futuro diretor do SPN e de
outros futuros colaboradores do mesmo órgão em Portugal, como, por exemplo, José
Osório de Oliveira, o diretor da revista Atlântico. A troca de cartões postais com Mário e a
oferta de livros justificam a relação que Ferro nutriu com alguns intelectuais brasileiros

56
Entretanto, após analisar a participação do Brasil na Exposição do Mundo português, ele apresenta os
limites da intercessão intelectual que distanciava os dois movimentos aqui e em Portugal. Segundo ele, a
recusa em participar da Exposição, por parte de muitos artistas brasileiros, indica-nos que não havia
unanimidade na filiação à “casa materna portuguesa”. Ver LEHMKUL, L. A participação do Brasil na exposição
do mundo português. In: RAMOS, M. B.; SERPA, E. C.; PAULO, H. O Beijo através do atlântico. O lugar do Brasil
no pan-lusitanismo. Chapecó / SC: Argos, 2001, p. 74.
57
TORGAL, L.R. Op. Cit., 2004, p. 1096.

83
que surgem nas páginas da revista Atlântico. Em 1925, Ferro oferece a Mário seu A
Amadora dos fenômenos58.
Gastão de Bettencourt, em 1959, avaliava e descrevia a importância de Ferro no
estreitamento de relações intelectuais com o Brasil, segundo ele, Ferro “escancarou, por
assim dizer, as janelas por onde os dois povos se revelaram e melhor se puderam
compreender”59. Para Gastão, a vinda de Ferro ao Brasil, coincidindo com o desenrolar do
movimento modernista pós-1922, era de uma significação especial para a comunidade
luso-brasileira60. Ferro vinha com sua juventude a desabrochar, com espírito de irrequieta
curiosidade intelectual e artística61. Para além da aventura de mocidade, segundo Gastão,
a vinda de ferro ao Brasil representaria seu “primeiro serviço à sua amada pátria”62.
A Semana de Arte Moderna trazia consigo algo de renovação que se pressupunha
no espírito de Antonio Ferro63. A sua contribuição ao terceiro número da KLAXON –
mensário de arte moderna de maio de 1922 – parece ser justificada por esse ‘encontro’ de
idéias e interesses artístico-intelectuais. 64
A passagem de Menotti Del Pichia, ao relembrar a participação de Ferro naqueles
anos, deixa-nos um quadro fundamental: “inquieto, original, fascinantemente simpático,
Antonio Ferro confraternizou-se com o grupo fundido nele pela mesma mentalidade, pela
absoluta identidade de propósitos”65. Enaltecendo a participação de Ferro junto ao grupo
modernista de São Paulo66, Del Pichia procurou, na comemoração de seu cinquentenário,
assinalar um caráter lusitano no movimento por meio do escritor português em terras
brasileiras:

“Sempre Brasil e Portugal juntos. Nas letras, nas artes, nos conceitos sociais e
políticos a Semana foi o grito de Independência cultural reintegrando o Brasil

58
MARIO apud SARAIVA, A. op. Cit., 2004, p.463.
59
BETTENCOURT, G. Op. Cit., 1960, p.17.
60
Idem, Ibidem, p.19.
61
Idem, Ibidem, p.19.
62
Idem, Ibidem, p.20.
63
Idem, Ibidem, 1960, p.30
64
Idem, Ibidem, 1960.
65
Idem, Ibidem, 1960, p.45.
66
Como bem assinalara Saraiva, é preciso ressaltar que Antonio Ferro não participaria da Semana só porque
chegou ao Brasil em maio e a eclosão do movimento ocorrera em fevereiro.Ver: SARAIVA, A. op. Cit, 2004,
p.477.

84
no ritmo de sua brasilidade e reimergindo-o no espírito de sua tradição e
originalidade [...]”67.

Podemos afirmar que a vinda de Ferro ao Brasil, pela primeira vez, semeou laços
intelectuais68 que abririam portas de um intercâmbio e uma circulação de ideias, pautados
num ideal de conhecimento entre a cultura brasileira e portuguesa, e haveria de ser a
primeira chave da abertura de uma política de aproximação cultural colocada em prática
anos mais tarde. A amizade entre Ferro e os intelectuais e artistas brasileiros sedimentou-
se ao longo dos anos, como a intensa troca de correspondência poderia atestar,
entretanto é possível reconhecê-la também nas páginas dos impressos do Acordo.
O segundo ponto a ser analisado, portanto, é, sem dúvida, o do estabelecimento de
uma rede de sociabilidade luso-brasileira especificamente pautada num circuito político
editorial, cujos contornos revelam uma aproximação intelectual, cujo sentido é unívoco e
peculiar, qual seja a proposta de uma união luso-brasileira, e relacionada, de modo
exclusivo, à política do Atlântico. Nesse caso, podemos nos ater, aqui, ao intercâmbio
intelectual destinado à promoção do Acordo Cultural luso-brasileiro e/ou da política que o
animava. Nas páginas das revistas luso-brasileiras, sobretudo na revista Atlântico, definia-
se uma malha intelectual promovida, de um lado, pela presença de autores modernistas e,
de outro, pela possibilidade de conhecimento mútuo das literaturas dos dois países.
Mário de Andrade e Osório de Oliveira, um dos funcionários da seção brasileira e
chefe editor da revista Atlântico, tornaram-se amigos e correspondentes desde 1923 por
ocasião da visita do português ao Brasil69. Segundo Carvalho (CARVALHO, 2007) as as
cartas por ele trocadas tratavam de assuntos ligados aos padrões culturais de Portugal e
do Brasil. Com José Osório de Oliveira, Mário trocou cerca de 62 cartas, entre 1923 e 1942,

67
BETTENCOURT, G. Op. Cit.,1960.
68
Na revista Contemporânea de 1923, Ferro evoca o grupo de brasileiros que encontrara, citando: Graça
Aranha, Álvaro Moreyra, Ronald de carvalho, Monteiro Lobato, Oswald de Andrade, Olegário Mariano,
Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Mário de Andrade, Freitas Vale, Paulo Prado, José Carlos Macedo
Soares, Onestaldo de Pennafort, René Thiollier, Elísio de Carvalho, Renato Almeida Mário Ferreira, Francisco
lagreca, Rodrigo Octávio Filho, Paulo de Magalhães, Di Cavalcanti, Carlos Drumond, a quem convocava para
atestar seu empenho em dar conhecimento de sua pátria e de divulgá-la na ex-colônia. SARAIVA, A. Op. Cit.,
2004, p. 562. Essa lista indica, sobretudo, os pares brasileiros que Ferro instituiu um contato e por vezes certa
relação amigável mais próxima.
69
CARVALHO, R. S. . Um espelho do Brasil e de Portugal: Mário de Andrade e José Osório de Oliveira. Scripta
(PUCMG), 2007.

85
das quais 22 foram enviadas por ele e 40 recebidas de Osório70. Duas das cartas trocadas
entre Mário e José Osório foram publicadas na revista Atlântico no segundo volume da
segunda série, precisamente no ano de 1946, quando Mário já havia falecido.
Acompanhando a publicação das cartas está um busto de Mário esculpido por Bruno
Giorgi, um artista brasileiro que já tinha trabalhado para o ministro da educação e saúde
Pública, embora fosse também um ex-preso político do regime fascista. Esse busto
inaugura o segundo volume e antecede As cartas de Mário de Andrade. Mas, por que
foram publicadas, afinal, essas pequenas partes da correspondência entre os dois
intelectuais? José Osório parecia querer prestar uma homenagem a Mário, pessoa a quem
julgava com um senso crítico do mundo e uma personalidade fantástica, inteligente,
porém parecia querer “reviver” o poeta, torná-lo “vivo” na consciência dos leitores da
Atlântico ou “para dar uma idéia da espantosa personalidade de Mário de Andrade a quem
só o tenha conhecido pelas obras, como escritor”71. Saudoso do amigo, Osório expõe um
Mário embevecido com a simplicidade da natureza em viagem à Amazônia brasileira:

“Era uma verdadeira sensação de rendez-vous, o carinho meticuloso com que


eu esperava todas as noitinhas o urro dos guaribas no mato. E aquelas
conversas de terceira classe com seres duma rudimentaridade espantosa, seres
por isso mesmo perfeitamente gratuitos, naquele cheiro veemente, contagioso,
de lenha humedecida, bois e corpos semi-nus, você não imagina Osório, eu era
aquilo meio vegetal, meio água parada não sei’72.

Um Mário que deixava de ser autor para ser um humano quando anota: “A
Amazônia marcou indelevelmente, não apenas minha obra, o que é de pouca importância,
mas o meu ser”73. Osório revelaria ainda a intensa amizade que os unia, fortalecida pelas
palavras de Mário na mesma carta em que fazia anotações/impressões de viagem. Ao falar
sobre a liberdade que possuía em revelar-se com os amigos, Mário pontuava:

70
CARVALHO, R.S. Op. Cit. 2007, p. 02.
71
Revista Atlântico, Segundo volume, segunda série, p. 02. São Paulo, 01/08/1934.
72
Revista Atlântico, Segundo volume, segunda série, p. 03. São Paulo, 01/08/1934.
73
Idem, p.03. São Paulo, 01/08/1934.

86
Mas nós aqui estamos num recanto de lar, somos em dois. Ou somos mesmo em
um por esta deliciosa força de amizade em que nos compreendemos e
estimamos bem. E na amizade eu me desleixo. Abro a válvula das censuras e me
recrio na confissão. É humanamente lindo. E individualmente é esplêndido74.

A segunda carta publicada revela um espírito supersticioso, autoritário, confuso,


atormentado, um Mário que pende em muitos aspectos e acaba por findar-se numa
melancolia individual circunstanciada por confissões a um amigo paradoxalmente
próximo e distante como na passagem da longa carta, onde Mário devaneia:
“Ultimamente principia me inquietando um problema moral curioso: tenho a impressão
que tudo que escrevo é muito deletério e que a minha própria convivência é deletéria”75.
De toda forma, essas duas cartas publicadas e todo o epistolário composto entre os
dois, assim como os presentes bibliográficos, compõem um acervo indicativo da intensa
relação.
José Osório, por ser um íntimo colaborador da divulgação literária brasileira em
Portugal76, estreitara laços com alguns intelectuais brasileiros, em parte, em razão de seu
trabalho que era, sobretudo, voltado ao estudo da cultura e literatura brasileira77.
No sexto número da revista Atlântico, José Osório publica um artigo em razão da
morte prematura do amigo Mário de Andrade. Dizia ele sentir “uma dor profunda da
sensibilidade, tão grande como a que nos cansa a perda de uma pessoa muito querida”78.
Nesse mesmo artigo, Osório congratulava Mário com uma admiração revelada, afinal o
modernista brasileiro, cujo lar sediara as conversas que precederam a Semana de arte
Moderna em São Paulo, era para ele: “[...] o homem de letras que mais estimava entre
todos que tenho conhecido” (OLIVEIRA, 1945: 183).
Uma das cartas de Mário a Osório aponta a intimidade da relação e a vitalidade da
amizade:

74
Revista Atlântico, Segundo volume, segunda série, p.04. São Paulo, 01/08/1934.
75
Revista Atlântico, Idem, p. 05, 15/11/1937.
76
Ver: GOUVEA, L. Op. Cit., 2001.
77
Idem, Ibidem, 2001.
78
OLIVEIRA, J.O., 1945, p.186.

87
“S.Paulo, 10-IX-34

Meu caro Osório de Oliveira,

Detestei sua última carta. Porque era pequena. Não dizia nada. [...] Fiquei
danado como se entrevisse apenas você numa rua populosa, em hora
impossível de parar. [...] Nós já atingimos aquele estado de intimidade
intelectual que não permite mais uma vida em protocolos. Me mande plantar
batatas, se quiser, mas me mande em carta onde você apareça inteiro e fique
perto da gente”79.

Mário de Andrade é um dos anfitriões de Antonio Ferro em sua visita à cidade de


São Paulo. Com ele e sua esposa, o escritor brasileiro trocaria uma intensa
correspondência, cujo teor evoca a intensidade e o fervilhar de ideias afins, partilhadas
num cenário de efervescência literária e artística. Os domínios do poder ainda não seriam
evocados naqueles anos iniciais da década de 20 quando Antonio Ferro era ainda um
escritor iniciante, embora a maturidade de Mário de Andrade como literato já fosse
comprovada 80.
Mário de Andrade era um admirador e incentivador das letras portuguesas, como
atesta sua biblioteca81, onde se identificam obras editadas por ocasião do movimento
modernista e da latente sugestão de uma aproximação luso-brasileira, tal qual expressa
em revistas como Águia82, Portucale, Presença, entre outras83.

79
MARIO apud SARAIVA, A., op. Cit. 2004, p. 406.
80
BETTENCOURT, G. Op. Cit, 1960.
81
Embora se mostre ansioso pelas dificuldades encontradas na aquisição de novas bibliografias portuguesas,
como atesta sua correspondência. SARAIVA, A. Op. cit., 2004.
82
Sobre as páginas de evocação de uma aproximação luso-brasileira em revistas como Águia, Seara Nova e
Terra do sol, ver: SERPA, Élio. Op.cit, 2000 e idem, 2001. Num artigo acerca da revista Terra do sol Raquel
Souza analisa a participação política-literária de nomes destacados como Tasso da Silveira e Ronald de
carvalho.Esse artigo também analisa as expectativas e redes sociais em torno da aproximação luso-brasileira
ou propostas a ela correlatas. Ver SOUZA, Raquel. Terra do sol: uma revista literária entre a nação lusitana e a
América Hispânica, 2004. Disponível em:<http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Em-tese-
2003-pdfs/23-Raquel-Madanelo-Souza.pdf>. Acesso em 25 Jul 2009.
83
CARVALHO, Op. Cit, 2007. Ao que sugere Rui Moreira Leite, haveria um intercâmbio importante entre
intelectuais brasileiros expresso nos periódicos brasileiros, como o Boletim de Ariel e a revista do Brasil que
editavam artigos de autores lusos e, sobretudo, criaram seções específicas para dar publicidade aos temas
portugueses. Conforme Leite, a revista do Brasil inicia a seção Letras portuguesas sob a responsabilidade de
Lúcia Miguel Pereira.Ver LEITE, Rui M. Missão portuguesa no Brasil. In: Pro-posições, 2006, v. 17, n. 3, p. 74.
Disponível também em:<http://mail.fae.unicamp.br/~proposicoes/edicoes/texto76.html>. Acesso em 25 jul
2009.

88
Mário era um estudioso da cultura portuguesa, e por ela encontrara algumas
explicações de ordem sóciopsicológicas. Encontrara também amigos que nutriria até o
final de sua vida:

“Enquanto Mário se dedicava ao estudo da cultura popular portuguesa para


explicar a psicologia do brasileiro, José Osório era um verdadeiro representante
da literatura brasileira em terras lusas, sobre ela realizando conferências e
escrevendo artigos para a imprensa e livros84”.

A troca de correspondências foi comum também entre o escritor brasileiro e


Antonio Tavares de Almeida, Gastão de Bettencourt e Antonio Ferro, todos eles
funcionários da burocracia e do acordo luso-brasileiro. Mas a amizade, ou melhor, as
afinidades entre eles não se restringiram a trocas epistolares, elas podem ser evidenciadas
pela participação de Mário nas publicações do Acordo, fundamentalmente na revista
Atlântico, onde se encontra a edição de A Dona Ausente85.
Portanto, é possível afirmar que, entre os intelectuais brasileiros e portugueses, o
movimento modernista fora, sem dúvida, um ponto de encontro86. Isso pode ser
comprovado pela intensa circulação de ideias entre eles trazidas pelas missivas trocadas,
pelas impressões e relatos de viagens e, sobretudo, pelos artigos publicados nas revistas
lusas e/ou brasileiras.
A troca de material bibliográfico sempre foi uma prática corriqueira entre os
intelectuais do período. Não fora diferente entre Mário e Osório que trocaram
intensamente muitos livros, alguns deles de autoria própria, sobre os quais ansiavam

84
CARVALHO, R. Op. Cit., 2007, p. 208.
85
Em carta a Osório de Andrade, Mário sugere a publicação dessa obra em meio ao tumulto de funções em
que vivia à época. A justificativa dada por ele para a inclusão desse artigo em detrimento de outros que
possuía se daria porque esse “se referia tanto a Portugal como ao Brasil, e na verdade é a exposição e a
explicação de um complexo marítimo inicialmente português”. Ver SARAIVA, A., Op. Cit., 2004, p. 447. Esse
“complexo” marítimo seria tratado por Têle Ancona Lopez, que sublinha o significado de “sequestro” como
sendo “o refluir das águas que recuaram na maré” (p. 119). É Telê quem indica também que, nesse artigo,
Mário entendia a metáfora da água em seu sentido de “líquido fecundador” (p. 121). Essa explicação parece
atender à lógica temática da publicação, mas parece ressaltar à temática dos descobrimentos, tema crucial
da lógica panlusitanista que orientava o Acordo. Ver, sobre esse aspecto, o artigo de CARVALHO, R., Op. Cit.,
2007. Têle Lopez indicaria também, num outro sentido, que Mário se arrependera da publicação na
Atlântico, expondo essa satisfação numa entrevista à revista Diretrizes.
86
Embora Arnaldo Saraiva pontue algumas ressalvas quanto à influência mútua entre os dois movimentos.
Ver SARAIVA, A., Op. Cit., 2004.

89
receber críticas e comentários. A fraternidade entre eles é exemplificada pela carta de
1934 quando o português agradece a Mário:

“Recebi ontem a sua carta e o seu artigo sobre mim [...]. Aqui não cabem todas
as efusões do meu coração agradecido nem as reflexões concordantes do meu
espírito [...]. Se pudesse cortava um pedacinho do meu coração e mandava-
lho”87.

Entretanto, a intensa amizade literária trouxe desdobramentos que repercutiam,


sem dúvida, na produção intelectual de ambos. Mário, como atesta sua correspondência,
enviava seus escritos aos amigos, inclusive para Osório. Ambos permutavam suas obras e
esperavam quase sempre um comentário, uma nota, uma linha expondo pontos de vistas
relativos ao trabalho. Numa dentre muitas cartas-dedicatórias trocadas entre os dois
escritores, Osório pontuava: “A Mário este livro que eu tenho tido medo de lhe oferecer”,
referindo-se à obra Diário Romântico, de 193288.
Com Cecília Meirelles também é possível perceber a troca de confidências
intelectuais89. Cecília esteve em Portugal, sobretudo, por um convite de um amigo do casal
Antonio Ferro e Fernanda de Castro, de quem, embora não tivesse conhecido na visita ao
Brasil, pôde tornar-se amiga- correspondente90. Por meio das cartas, Fernanda de Castro e
a poetisa brasileira tornar-se-iam cúmplices na literatura, e é essa amizade que dá o ensejo
para a brasileira tornar-se conhecida em Portugal e firmar relações literárias no país além-
mar91. Entre os contatos com os “novos amigos portugueses”92, estavam Almada Negreiros,
João de Castro Osório, João de Barros, Fernando Pessoa93 e um importante funcionário da
seção brasileira do SPN e ilustre divulgador da literatura brasileira, José Osório de Oliveira.

87
OSORIO apud SARAIVA, A. Op. Cit., 2004, p.459.
88
Idem, Ibidem, 2004, p.455/457.
89
GOUVEA, L. Op. Cit, 2001.
90
Idem, Ibidem, 2001.
91
GOUVEA, L. Ibidem, 2001.
92
Segundo Leila Gouvêa, é sobre muitos desses amigos do círculo que se formava na casa de Antonio Ferro e
Fernanda de Castro que Cecília imprimira seu Poetas Novos de Portugal, editado no Rio em 1944. Ver
GOUVEA, Op. Cit, 2001.
93
Em 1934, ano em que publicara o livro Mensagem, Fernando Pessoa envia um exemplar ao casal Cecília
Meirelles e Correa Dias, distinguindo-os, respectivamente, como “alto poeta” e cúmplice (vide Águia). Ver
SARAIVA, A., Op. Cit., 2004, p. 469.

90
É, sobretudo, com esse português que Cecília “acertaria as linhas” de muitas poesias e a
quem confiava a opinião criteriosa de uma crítica literária. Cecília e José Osório tornaram-
se íntimos colaboradores, ao passo que ela chegara a se referir a ele como um irmão e
empresário português, tamanho seu esforço de divulgação do trabalho da poetisa94.
A íntima relação que nutriam trouxe a ele a iniciativa de convidar Cecília para
colaborar na revista Atlântico, da qual era o secretário. Na verdade, Leila Gouvêa chega
mesmo a afirmar que a seleção de escritores brasileiros para a Atlântico atenderia aos
propósitos de Osório de divulgação dos modernistas brasileiros, pelos quais nutria mais
que simpatia, senão uma admiração de crítico e literato.
Sobre a contratação/seleção de autores brasileiros de variadas tendências literárias
ou políticas, José Osório esclareceria em 1948:

“[...] como detesto as vagas afirmações, concretizarei dizendo que na “Atlântico”


colaboraram escritores de tendências esquerdistas, como o admirável poeta
Carlos D. de Andrade, e até comunistas militantes como o grande prosador
Graciliano Ramos e o historiador Caio Padro Junior, que foi o primeiro a aplicar o
materialismo histórico como sistema, ao estudo da formação do Brasil
contemporâneo. Não sei se pensou nesses escritores, e no inconformista Mário
de Andrade, e nos independentes Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Murilo
Mendes, Vinicius de Moraes, José Lins do rego, Érico Veríssimo, Marques
Rebello, na trotkista Rachel de Queiroz, no católico democrata Tristão de
Athayde, no liberal Alvaro Lins, não sei se pensou nesses, e em tantos outros
espíritos livres do Brasil, naquele admirável romancista-poeta Jorge Amado,
que, no prefácio de um livro de pura idolatria política, acusou os escritores
brasileiros que colaboravam na “Atlântico” de terem traído ou desonrado a sua
missão95.

Para a seleção dos autores portugueses, a ressalva se assemelhava:

94
GOUVEA, L. Op.Cit. 2001, p. 37/38.
95
OLIVEIRA, José O. Na minha qualidade de luso-brasileiro. Lisboa: [S.n.], 1948, p. 30.

91
“[...] De entre os escritores portugueses, colaboraram alguns, conhecidos como
liberais, como democratas ou como socialistas; de qualquer modo,
independentemente, quando não ideologicamente hostis ao estado Novo,
como Aquilino Ribeiro. E se não seria possível, em parte alguma, dar-se o caso
de a redação de uma Revista editada por um organismo oficial pedir a
colaboração de um doutrinário tão extremamente oposto à do Estado Novo,
como Antonio Sergio, a verdade é que foi convidado a colaborar um romancista
de tendências tão contrárias às do nacionalismo português, como Ferreira de
Castro, cujo nome só não apareceu nas páginas da Atlântico por o autor de “A
selva”, que não Antonio Ferro ou eu, ter achado isso mais conveniente, não
fossem os seus correligionários estranhar”96.

José Osório procurava, assim, desmitificar a ideia do autoritarismo que rondava a


revista e procurava fornecer-lhe uma aspecto mais democrático, entretanto, como
sabemos, nenhum dos artigos veiculados na revista Atlântico fugiu, ao fim e ao cabo, à
campanha de aproximação, o que significa que, embora a composição dos autores sugira
uma seleção em nada autoritária, os temas e os discursos – uns mais, outros menos – não
fugiam ao tema do lusitanismo. Como salientou Sirinelli (SIRINELLI, 1996), “uma revista é,
antes de tudo um lugar de fermentação intelectual e de relação afetiva, ao mesmo tempo
viveiro e espaço de sociabilidade, e pode ser, entre outras abordagens, estudada nessa
dupla dimensão”97.
A tabela abaixo acerca da participação brasileira e portuguesa na revista ascende
para novas possibilidades de investigação quanto às relações literárias naqueles anos. Ora
revelando curiosas participações como a de parentes próximos ao casal Ferro, como
Augusto Cunha, ora revelando a intensa troca luso-brasileira pelas variadas participações
do lado de cá, a Revista indica um caminho muito particular da aproximação luso-
brasileira nos anos 1940. José Osório de Oliveira havia tentado afirmar certa liberdade
assegurada aos colaboradores da Revista, possivelmente tentando seduzir outros
colaboradores ou ainda tentar forjar um aspecto positivo num projeto editorial que era,

96
OLIVEIRA, José O. Na minha qualidade de luso-brasileiro. Lisboa: [S.n.], 1948, p. 30.
97
Apud DE LUCCA, T. R. Revista do Brasil (1938-1943): um projeto alternativo?. In: DUTRA, E. F.; MOLLIER,
Jean-Yves. (Orgs.). Política, nação e edição: o lugar dos impressos na construção da vida política. Brasil,
Europa e Américas nos séculos XVIII-XIX. São Paulo: Annablume, 2006. v. 1, p. 333.

92
sobretudo, fruto de um programa político autoritário, como o era o Estado novo no Brasil e
em Portugal. Para Osório

sendo uma revista de cultura e literatura, não pode, também, deixar de


conceder, aos seus colaboradores, brasileiros e portugueses, ampla liberdade
de pensamento crítico ou de expressão literária(...) Fazendo, evidentemente,
uma seleção, de acordo com o critério que os dois diretores da Atlântico
responsáveis pela orientação dos organismos que editam esta revista,
entendem dever impor, aliás com a mais ampla visão, à escolha dos
colaboradores (...) liberdade e responsabilidade- eis a nossa regra98.

Esses índices revelam, de um lado, uma relativa preponderância da participação


portuguesa embora possamos também considerar que a participação intelectual brasileira
é também muito expressiva. Especificamente, a suave supremacia da participação
portuguesa remete-nos as dificuldades encontradas no envio de material por parte dos
brasileiros à sede da Revista em Lisboa, assim como outros fatores, como a guerra, por
exemplo, podem ter afastado uma participação mais volumosa dos brasileiros na
publicação, em determinado volume. No primeiro volume José Osório de Oliveira já

98
Revista Atlântico, volume 02, p.368.

93
indicava essas dificuldades na seção Notas quando afirmou que embora a colaboração
brasileira havia sido insuficiente no primeiro número “nem por isso deixou de ser
notável99”.
Não obstante esse percentual menor, embora muito significativo é preciso
sublinhar, a partir desses dados, a contribuição da Revista, na construção de uma relação
literária entre Brasil e Portugal nesses anos.
Os personagens nessa rede de sociabilidade em torno da revista envolvem-se nessa
política editorial por vários motivos. Entretanto, é possível supor, analisando-os que alguns
fatores foram preponderantes como por exemplo, a afinidade de conteúdos da revista, a
situação familiar e fraternal que os envolvia além de um possível status associado à
legitimidade que as publicações de Estado conferiam aos seus contribuidores.
Na revista Atlântico aparecem familiares de Antonio Ferro (como Fernanda de
Castro e seu cunhado Augusto Cunha), de José Osório de Oliveira (seu irmão João de
Castro Osório, sua esposa) e ainda o rol de seus amigos literatos não somente portugueses
quanto também brasileiros (como é o caso já citado de Mário de Andrade e Cecília
Meirelles). Adalgisa Nery era esposa, desde 1940 do chefe do DIP no Brasil. Depois de sua
participação vieram ainda a de Maria Eugênia Celso100, Dinah Silveira de Queiroz101, Clarice
Lispector e Lígia Fagundes Telles compondo a ala feminina brasileira da Atlântico. A
participação feminina brasileira é significativa embora pouco numerosa em relação à
participação portuguesa na Atlântico. Essas escritoras eram ainda jovens, algumas já
freqüentavam, como o caso de Lígia F. Telles as rodas literárias de São Paulo, participando
do grupo de intelectuais modernistas102.

99
Revista Atlântico, volume 01, p.171.
100
Maria Eugênia Celso era filho do conde Afonso Celso, autor da obra Por que me ufano do meu país e
antigo membro da Academia Brasileira de Letras, do Instituto Histórico e geográfico e, também um dos
quatro únicos representantes da Academia portuguesa de História criada em 1936 a partir de um projeto de
restauração da Academia Real de História Portuguesa de 1720. TORGAL, L.R. História da Historia em Portugal,
1998, p. 285-287). Segundo Torgal, a escolha de Afonso Celso esteve associada à sua filiação à uma
“historiografia tradicional e pelas manifestações de apoio a Portugal e ao regime Salazar” (Idem, Op.cit. 1998,
pag.287).
101
Dinah Silveira era também circundada por familiares ligados ao meio artístico literário sendo prima de
pintores e editores como Ênio da Silveira.
102
Nos anos 1940, Lígia foi aluna da faculdade de direito da faculdade do largo do São Francisco e em 1945
participa de uma passeata pelo fim do governo Vargas. Sobre esse fato e a biografia da autora
ver:<http://www.releituras.com/lftelles_bio.asp>. Acesso março 2009.

94
O caso mais curioso, talvez seja a participação, não inédita, nas publicações do
Estado Novo brasileiro, de personagens ligados ao movimento anti-Getúlio e reunidos na
revista Diretrizes(1938-1944), fechada pelo DIP após o cessamento de sua cota de
importação de papel103. Entre os colaboradores dessa revista de resistência à Getúlio
estavam alguns brasileiros cujos artigos foram editados na revista Atlântico, como por
exemplo, Graciliano Ramos104, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz105. Outra participação
curiosa é a de Aquilino Ribeiro, conhecido opositor ao regime do Estado Novo.
Supomos, por exemplo, que muitas dessas relações literárias que assumiram
feições políticas por ocasião da contribuição de artigos desses intelectuais num projeto de
Estado foram estabelecidas anteriormente à consecução do Acordo Cultural106. Era uma
prática sóciointelectual muito comum a troca de exemplares de obras entre autores
conhecidos, amigos ou com quem se pretendia estabelecer uma ligação social107. O
conhecimento dos literatos brasileiros pelos intelectuais que administravam o Acordo,
sobretudo José Osório de Oliveira e Gastão de Bettencourt, possivelmente foi formado por
meio dessa estratégia de diálogo, divulgação e amizade.
É possível distinguir ainda outros “arranjos” concernentes ao grupo que participou
na revista Atlântico, tanto brasileiros quanto portugueses, que talvez só o exame
detalhado de toda a correspondência entre todos os envolvidos dê-nos um panorama
mais eficiente no que diz respeito às inúmeras facetas da relação intelectual-Estado;
intelectual-intelectual nesse período. Certos de que, por esse grupo constituir uma rede
numerosa, não podemos trabalhar com todas as relações possíveis entre todos os seus
componentes nesse período, tomamos, portanto, alguns exemplos mais notáveis, talvez

103
DE LUCCA, T. R. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. Campinas: Ed. UNESP, 1999, p.328.
104
Graciliano Ramos foi um dos colaboradores do Instituto Nacional do Livro criado em 1937, no início do
Estado Novo, assim como Vinicius de Moraes e Cecília Meirelles, além de Mário de Andrade.
105
Ambos referência da perseguição editorial e política no fim do Estado Novo. Ver: HALLEWELL, L. O livro no
Brasil: sua história. São Paulo: EDUSP, 2005.
106
Nesse caso, podemos citar a sugestiva tabela de colaboradores organizada por De Lucca ao analisar os
intelectuais da revista do Brasil nos anos 1920, no Brasil. Uma vasta gama desses intelectuais, como José
Osório de Oliveira, Augusto Frederico Scmidt, Manuel Anselmo, entre inúmeros outros, foram também
colaboradores nessa publicação.Ver: DE LUCCA, T. Op. Cit., 2006, p. 333.
107
Nesse âmbito tomamos o artigo de Giselle M. Venâncio que analisou a experiência de troca de bilhetes e
obras estabelecida por Oliveira Vianna, um importante intelectual dos anos 1930 no Brasil, que, embora
possuísse uma postura reclusa por meio de cartas, postais e livros, comunicava-se com seus pares e
dialogava com o mundo intelectual do qual se eximia, ainda que primasse pela vida caseira. Ver VENÂNCIO,
G. Presentes de papel. In: Revista Estudos Históricos, 1999, n.28.

95
emblemáticos quanto à intriga que perpassa essa rede de sociabilidade político literária
por meio da contribuição nesse periódico.

Referências bibliográficas

BETTENCOURT, G. Temas da música brasileira. RJ: Editora A noite, 1941.

___________. Antonio Ferro e a política do atlântico: Saudade dos Estados


unidos da saudade. Pernambuco: Editora do Autor, 1960.

BARBATO JR, Roberto. Missionários de uma utopia nacional-popular: os


intelectuais e o Departamento de Cultura de São Paulo. São Paulo: Annablume/Fapesp,
2004.

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CAVALCANTI, Lauro. Modernistas, Arquitetura e Patrimônio. In: PANDOLFI, Dulce.


Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, 1999.

CARVALHO, Ricardo S. Um espelho do Brasil e Portugal: Mário de Andrade e José


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100
O sertão e a Amazônia: de Oliveira Vianna a Foot
Hardman

Alexandre Pacheco*
Robson Mendonça Pereira**

Diversas imagens e discursos acerca das relações entre o homem e a natureza no


território brasileiro foram produzidos desde o período colonial para cumprir a diferentes
objetivos e finalidades. Dos relatos descritivos efetuados pelos primeiros exploradores a
mando de El-Rey aos relatórios científicos de viajantes estrangeiros do século XIX surgiram
representações literárias que variavam do êxtase diante do paraíso edênico às
possibilidades de riqueza e oportunidade de vício além-mar.
Este conjunto de representações foi incorporado aos discursos de personalidades
políticas e acadêmico-científicas para exaltar e justificar as ações de exploração e de
ocupação dos sertões e das florestas, processos que não se limitam a dimensão sócio-
econômica, pois configuram representações simbólicas passíveis de ser apreendidas pelos
historiadores que concebem a natureza como construção cultural (MARTINEZ, 2006: 18-9).
O sociólogo e historiador Oliveira Vianna, na redação da parte introdutória ao
Recenseamento do Brasil de 1920, exalta o espírito de aventura que teria movido
colonizadores e desbravadores ao longo da história nacional. Neste discurso triunfalista, o
movimento expansivo de ocupação sem limites da fronteira é descrito de maneira épica,
em termos de uma luta entre civilização e barbárie, ao descrever e exaltar os modernos
“bandeirantes” (DOIN, 2000: 18-24).

*
Alexandre Pacheco, Doutor, Professor do Departamento de História na Universidade Federal de Rondônia,
UNIR.
**
Robson Mendonça Pereira, Doutor, Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de
Goiás, UEG.

101
Vianna considera legítimos os motivos que levam “bugreiros” e “grileiros” a
promover a destruição da paisagem natural e dos povos autóctones para abrir os sertões
ao avanço da lavoura cafeeira e as forças motrizes do progresso que se complementava na
ferrovia, no colono estrangeiro e na urbanização.
Este mesmo tipo de narrativa se repete em muitos outros relatos. É a constância de
uma visão negativa a respeito das florestas e matas. Por detrás da imagem de uma
natureza idílica e intocada, habitada por bons selvagens, que aparece nas gravuras e nos
relatos de viajantes estrangeiros que estiveram na América Portuguesa, persiste uma
tensão ambivalente: o medo e o temor diante de um mundo desconhecido e indecifrável.
Warren Dean (DEAN, 1996) em seu longo estudo a respeito da devastação da Mata
Atlântica assinalou que este sentimento estava presente na mentalidade de
conquistadores que tentavam se aventurar naquela selva tropical. A defesa da civilização
acabou por prevalecer no discurso dando legitimidade ao método que se seguiu durante
séculos do domínio do branco europeu sobre aquele cenário, transformado em “espaço
produtivo” (SANTOS, 2005: 48-9).
Em inúmeros textos produzidos por escritores, naturalistas e políticos, é possível
encontrar diversas representações subjetivas a respeito dos sertões brasileiros, sertão no
plural por suas múltiplas percepções mentais.
Nas primeiras décadas do período republicano, o discurso de matriz positivista
propunha uma clara definição geográfica e social do sertão, um imenso espaço territorial
vazio a ser mapeado e devidamente nomeado. Nesta linha, Euclides da Cunha em sua obra
Os Sertões (CUNHA, 1974), partia de uma visão dicotômica que se tornou clássica: o sertão
como lugar da negação da nacionalidade, lócus do incivilizado, da barbárie e do atraso em
contraposição ao litoral. Propunha a urgente intervenção retificadora daqueles desvios a
fim de tornar possível um projeto de nação que incorporasse o sertanejo em seu cerne.
Esta linha de proposição inspirou também diversos empreendimentos de expansão
nas chamadas “franjas pioneiras” paulistas. O novo oeste (re)descoberto pela Comissão
Geográfica e Geológica que incorporou imensas áreas “vazias” ao mapa estadual. Em 1920,
o então presidente de Estado Washington Luis, que militara décadas antes em favor da
exploração dos diversos rios caudalosos, apontando as possibilidades econômicas daquele
“sertão” paulista, de acordo com Arruda (ARRUDA, 2000: 130), vibrava com o sucesso da

102
instalação da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB) que se fizera ao custo de
formidável desmatamento e extermínio dos índios caingangues:

Há em todo esse território entre os rios Paraná, Tietê e Paranapanema, que, há


pouco mais de uma dezena de anos, ainda figurava nos mapas paulistas como
sertão pouco conhecido habitado por índios, e cuja superfície é maior que a de
muitos Estados da União Brasileira, e hoje penetrados de estradas de ferro, um
mundo novo de criar, na vida paulista. Com as medidas indicadas o êxodo que
se nota para essas terras novas, não deixara nas outras, já em exploração antiga,
o desamparo e a solidão; uma colonização sólida, fixa, continuará, por modo
diferente, a prosperidade anterior. (FONSECA; GAMA, 1921: 61).

Esta expressão do ideário do progresso demonstra um aspecto relevante: a ideia de


um sertão móvel, fugidio e constantemente em mutação. Na medida em que as forças da
civilização urbana avançavam em direção ao interior, o sertão parecia se deslocar para
frente. Nas pequenas urbes localizadas em pontas de linhas férreas nas áreas de expansão
cafeeira nos quais era difícil discernir o limite entre a ordem e a desordem, iam se
definindo os contornos imediatos de uma civilidade estreita, permeada pelo favor dos
chefes locais e pela violência de seus capangas, pela ausência da lei e território da
bandidagem (Doin et alii, 2007).
Por outro lado, a idéia do sertão como lugar da negação da civilização não foi apenas
capaz de engendrar transformações em territórios, no interior do Brasil, a partir de
intervenções proporcionadas com a ajuda do avanço técnico e científico ocorrido no
mundo ocidental: moldou também o sentido de como escritores trataram a construção da
origem e identidade de seus viventes.
Ettore Finazzi-Agrò, ao analisar a obra do fluminense Euclides da Cunha, comenta
que este teria mobilizado sua memória para a construção de uma identidade sertaneja
utilizando o recurso da substituição da História pela Geografia. Assim, por meio da
mobilização de um memorialismo geográfico procedeu-se a busca da identidade proposta
através do recolhimento de fragmentos dispersos de sua existência a partir da experiência
que Euclides teve nos sertões baianos.

103
O caso que eu considero exemplar e paradigmático é, obviamente, o de
Euclides da Cunha: brasileiro que, dentro de sua adesão inquieta ao positivismo,
teve a coragem de descobrir e denunciar aquilo que outros brasileiros tinham
escondido sob o tapete da história e das boas intenções nacionalistas. Ou seja,
que sendo, a sua Pátria, uma “terra sem pátria” (o que significa também sem pai,
sem descendência ou tradição paterna), sendo um espaço imenso e
fundamentalmente sem história, era preciso pensar o País a partir não do tempo
que ele ocupa, que ele organiza e pelo qual ele é supostamente organizado,
mas, justamente, partir do espaço – espaço fundamentalmente vácuo – que ele
realmente preenche e que lhe dá sentido. (AGRÒ, 1999: 11).

Movimento da memória, segundo Agrò (AGRÒ, 1999: 14), arqueológico e


genealógico, passível de permitir a construção da origem e destino da trajetória do
sertanejo através do recolhimento de seus “cacos coloridos e vetustos” encontrados no
espaço distante e atrasado do sertão que coexistiu de forma isolada diante de outras
regiões mais modernas do país.
Dessa forma, Euclides procura realizar a inscrição do sertanejo em um espaço
construído como geograficamente histórico, demonstrando-o como um homem
culturalmente não contemporâneo do Brasil, no início do século XX (AGRÒ, 1999: 8-12).
Assim é preciso estudar o homem de Euclides não a partir do tempo, mas do espaço
que ele ocupou já que o lugar do início seria definido “[...] a partir da forma que ele assume
e que o delimita e o institui [...]” (AGRÒ, 1999: 7).
Agrò faz o seguinte comentário a respeito do olhar de Euclides da Cunha sobre o
homem do sertão:

O Sertanejo, nesse epos negativo, é o monstrum, fascinante e terrível, que


ocupa um Centro medonho onde se manifesta e, ao mesmo tempo, se oculta o
passado nacional: ele é o mito racionalizado da Origem, ele é o ser irracional que
logicamente, como todo fundamento, “vai ao fundo e some” deixando no seu
lugar apenas e sempre um vazio. Desse espaço que está no começo dos tempos,
desse homem primordial que fica à margem da História, só um geógrafo
disfarçado de cronista, só um autor épico mascarado de cientista, tenta
recuperá-lo, justamente, como “figura”, isto é, como presença de uma ausência.
(AGRÒ, 1999:12).

104
Euclides ao retratar a vida do sertanejo frente ao processo de modernização do país,
percebeu-o antes como reminiscência das formas de ser e de viver de homens rudes
provindos de São Paulo. Homens que rumaram para o interior nordestino e se misturaram
aos indígenas que ali viviam desde tempos imemoriais. Lá ficaram “[...] divorciados do
resto do Brasil e do mundo, murados a leste pela Serra Geral, tolhidos no ocidente pelos
amplos campos gerais, que se desatam para o Piauí e que ainda hoje o sertanejo acredita
sem fins [...]” (CUNHA, 1974: 88-89).
A essa situação de isolamento geográfico, por outro lado, somar-se-ia o isolamento
que as formas de servidão –– enquanto excrescências retrógradas de nossa nação ––
imporiam ao espírito dos sertanejos ao assumirem, por exemplo, a função de vaqueiros.
Vejamos, neste sentido, as palavras do autor:

[...] o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que
nunca viu, às vezes. Herdaram velho vício histórico. Como os opulentos
sesmeiros da colônia, usufruem, parasitariamente, as rendas da sua terra, sem
divisas fixas. Os vaqueiros são lhes servos submissos. (CUNHA, 1974:108).

Por outro lado, o universo mental do homem sertanejo captado por Guimarães Rosa,
se contrapõe, frontalmente, aos dos escritores da geração de Euclides da Cunha, ao revelar
“[...] as vicissitudes sertanejas e a complexidade de uma estrutura social regida por uma
lógica própria [...]” (CORREIA, 2010: 4-5).
Para Rosa, é praticamente impossível situar o sertão em um lugar físico, uma vez que
por possuir uma natureza fugaz não se definiria por parâmetros teórico-racionais, mas a
partir da experiência de seus viventes.
Em contraposição ao que expomos até aqui sobre certas representações do sertão
brasileiro, o que dizer sobre as paisagens literárias e historiográficas voltadas à Amazônia?
Aqui novamente vemos que Euclides da Cunha possui posição vitalícia enquanto
referência intelectual que foi capaz de construir certas matrizes imagéticas a partir de seus
escritos sobre a Amazônia e que se convencionaram também como lugar da negação da
civilização. Matrizes imagéticas que, se não chegaram a engendrar transformações
decisivas no território amazônico com a ajuda do avanço técnico e científico do mundo

105
ocidental antes dos anos de 1960, moldaram o sentido de como outros intelectuais
trataram a construção cultural de sua natureza, bem como a relação e a condição de seus
viventes com os rios e a floresta hostil.
Analisemos dois autores que mais recentemente realizaram importantes estudos
sobre a Amazônia a partir da obra de Euclides da Cunha. A leitura das obras Euclides da
Cunha e o Paraíso Perdido, de Leandro Tocantins (1992), e de A vingança da Hiléia, de
Francisco Foot Hardman (2009), nos convida a pensar como ambos – a partir de suas
disposições em relação ao campo literário dos escritos sobre a Amazônia – teriam
constituído representações decisivas, respectivamente, sobre dois momentos da região: a
década de 1960 e o final do século XX ao início do século XXI.
Na primeira obra, temos a representação de um contexto em que a região se
oferecia como um mundo ainda não totalmente conhecido e ao mesmo tempo repleto de
potencialidades a serem exploradas, mundo, enfim, revelado, sobretudo por Heróis-
escritores como Euclides da Cunha. Na segunda obra, temos um movimento de
representação quase antagônico em relação à primeira.
Em A Vingança da Hiléia, Foot Hardman expõe uma Amazônia, a partir de uma
análise comparativa entre Os Sertões e os escritos amazônicos de Euclides, em que a
herança das faltas, das incompletudes já percebidas pelo escritor fluminense sobre a Hiléia
se aprofunda diante da racionalidade capitalista que, nos últimos cinquenta anos, tem
assolado e promovido a destruição da região.
Leandro Tocantins toma como referencial a obra Um Paraíso Perdido, para
constituir uma nova interpretação da Amazônia a partir de Euclides, ao mesmo tempo em
que expressa certa pretensão da elite intelectual da região em revelar as potencialidades
da Hiléia ao restante do país.
No capítulo “Adivinho, Intérprete e Artista", por exemplo, Tocantins nos dá algumas
pistas sobre o Euclides profético, ao destacar que ele havia realizado uma profunda
reflexão sobre o cerne de um dos problemas que continuava a desafiar a inteligência
brasileira:

[...] A Amazônia é, ainda hoje, sob o aspecto físico, aquela Esfinge referida por
Euclides da Cunha. Um único fato, bastante atual, pode testemunhar o acerto da
tese de Euclides da Cunha: há doze anos atrás, quando técnicos brasileiros se
reuniram em Belém para elaborar o primeiro Plano Qüinqüenal da Valorização

106
Econômica da Amazônia, chegaram a conclusão de que a região era pobre de
subsolo. Só restavam a floresta, a terra firme para as culturas permanentes, e a
várzea para as de pequeno ciclo, e, por fim, as águas, com a sua numerosa
fauna. A industrialização amazônica devia partir dessa realística. Dez anos
depois, explorava-se o manganês, a cassiterita, descobria-se o ferro, o carvão, o
sal-gema. O petróleo jorrou em alguns pontos do território. Hoje, o subsolo
amazônico é considerado uma das grandes reservas do mundo. (TOCANTINS,
1992: 131).

Mas como Leandro Tocantins ao enaltecer a percepção de Euclides sobre as


riquezas desconhecidas que a Amazônia mais cedo ou mais tarde poderia revelar ao Brasil
recepcionou a representação do homem amazônico que o escritor de Os Sertões construiu
para esse cenário repleto de mistérios e que foi revelado para o restante do país através de
obras como À Margem da História?
Em primeiro lugar, percebe que o homem amazônico de Euclides foi representado
a partir do “tempo de sua vida” geograficamente vivida distante do processo civilizatório
do centro do país. Concepção inteligível e verossímil para a apresentação histórica do
seringueiro em meio à natureza brutal da floresta amazônica; em segundo lugar, ao
demonstrar como o talento literário e científico do autor fluminense esteve a serviço da
denúncia contundente das péssimas condições de vida do seringueiro em uma sociedade
que se desenvolveu nos seringais de forma anômala; em terceiro, demonstrando-nos
como a denúncia de Euclides projetou a representação do seringueiro como um tipo
humano isolado em meio a uma região que sempre impôs condições desfavoráveis para o
desenvolvimento de um processo civilizatório (TOCANTINS, 1992: 129-163).
Neste sentido, Tocantins (TOCANTINS, 1992: 129-163) exorta o Euclides-Herói a
partir da trajetória assumida em seus escritos amazônicos, já que a força de seu estilo
literário sempre esteve a serviço da construção de um método revolucionário, estando
ambos - estilo e método –eficientemente voltados à denúncia das condições dramáticas
que envolveram o seringueiro em sua solidão.
Tocantins (TOCANTINS, 1992: 138-139) também exorta a percepção de Euclides
sobre o papel social que o Estado poderia assumir na Amazônia, através da criação de
condições que atenuassem “os quadros sociais tão anômalos” vividos pelos migrantes
nordestinos que foram transplantados para os seringais:

107
[...] Não fica adstrito ao exame diagnóstico psicológico do seringueiro e de suas
lamentáveis condições de vida. Vai à crítica aos poderes públicos que ignoravam
completamente a sorte daquelas populações tangidas pelas secas nordestinas, “uma
população adventícia de famintos assombrosos, devorados das febres e das bexigas”
que procurava salvar-se, na ilusória esperança da terra da promissão: a Amazônia.

À crítica em relação à falta de responsabilidade dos poderes públicos, Tocantins


destaca o Euclides engenheiro social. Imbuído de senso político aguçado, entendeu a
necessidade de o Estado criar condições para que os migrantes na Amazônia pudessem
viver em harmonia com o meio.
De acordo com Tocantins (TOCANTINS, 1992: 139-140), Euclides – a partir de sua
sensibilidade analítica – percebeu que os problemas que envolviam a necessidade de
harmonização entre homem e natureza deveriam ser considerados para o
estabelecimento de diretrizes que visassem integrar o homem em áreas onde ele não
havia conseguido estabelecer equilíbrio biótico.
Como notamos então, Tocantins reitera em sua recepção, na década de 1960, o
Euclides que fez uso do espaço geográfico como forma de determinar o tempo vivido por
seu homem amazônico.
Para Tocantins, Euclides por meio da mobilização de sua “História Social” foi capaz
de representar seu seringueiro como herdeiro da memória de outros seringueiros, que só
poderiam ter suas vidas reconstruídas pela análise de suas experiências na própria
contemporaneidade do mundo geográfico isolado dos seringais em que viveram no início
do século XX, sobretudo na Amazônia acreana. Tal é a história deles marcada pela “falta de
origem”, por não possuírem uma “pátria”, por estarem destituídos de descendência ou
mesmo alguma tradição.
Ao contrário da imagem do Euclides-Herói, em A vingança da Hiléia presencia-se a
tessitura de uma amadurecida crítica sobre a representação que o autor de Os Sertões
realizou da Amazônia. Foot Hardman, de acordo com Jaime Giznburg (GIZNBURG, 2010:
415), procurou analisar não só os aspectos internos da complexa e diversificada produção
de Euclides, mas também perceber suas linhas de continuidade.

108
Para Hardman, o entendimento do significado da Amazônia a partir da reflexão que
realizou sobre os recursos literários presentes na obra de Euclides, revelaria, em verdade,
as imagens representativas de um estranhamento deste em relação à região:

Quando Hardman descreve o estranhamento que Euclides vivencia em sua


experiência no espaço amazônico [...], sinaliza, em fragmento, um
estranhamento que impregna a relação da Amazônia com o Brasil, a
ambiguidade de sua inserção, sua enormidade impactante, suas precariedades,
sua constituição com tensões. (GINZBURG, 2010: 415).

Foot Hardman retoma, assim, uma critica sobre a obra de Euclides que procura
libertá-la de classificações convencionais ao perseguir as relações do autor de Os Sertões
com o contexto histórico amazônico. Isto se manifesta, sobretudo quando Ginzburg
(GIZNBURG, 2010: 416) afirma que Foot Hardman percebeu na obra amazônica de Euclides
uma “poética das ruínas” que “[...] se coloca contra a totalização estética. Nesse sentido,
um problema fundamental enfrentado, para uma crítica estética e política de imagens do
Brasil, é a análise de imagens unificadoras, mitos de unidade nacional.”
Dessa forma, semelhante a Canudos, a Amazônia também seria concebida a partir
dos excessos, dos desmedidos, de forma que Foot Hardman, de acordo com Ginzburg
(GIZNBURG, 2010: 416), sustentaria essas características a partir da percepção de um
Euclides aterrorizado ao se confrontar com a magnitude dos rios, da grande floresta e do
regime de trabalho de exploração brutal do seringueiro. Um Euclides bem diferente
daquele pintado por Tocantins.
Diante da grandiosidade apocalíptica da região em que a percepção do analista
necessita de uma nova modulação frente à natureza hiperbólica e o massacre imposto por
ela sobre os homens, a linguagem convencional não parece conseguir captar de forma
justa, a manifestação de fenômenos ligados ao homem e à natureza que ali vivem.
Diante de tudo isso, a Amazônia não se constituiria mais do que um fantasma na
memória de Euclides, assim como também não se constituiria mais do que um fantasma
na história do Brasil que passou a civilizar-se, sobretudo a partir do final do século XIX.
Neste sentido e de acordo com Ginzburg: “Creio haver em A vingança da Hileia um
movimento similar ao que Hardman atribui a Rodrigues Ferreira, uma vez que categorias

109
negativas - apocalipse, tragédia, violência, deslocamento, ruína - estabelecem fios
condutores da reflexão.” (GIZNBURG, 2010: 415).
Por tudo o que foi dito, então, podemos perceber que, se por um lado, na obra de
Leandro Tocantins, Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido, Euclides é o Herói que foi capaz
de revelar um novo Brasil amazônico dentro de uma narrativa épica, por outro, o Euclides
de Foot Hardman, em A Vingança de Hiléia, constituir-se-ia enquanto um personagem
tocado por estranhamento e assombro diante da tarefa de ter de descortinar tamanha
região representada pela Amazônia. Região que teria na incompletude de sua natureza e
da própria relação do elemento humano com esta, a sua característica histórica
fundamental.

Ao terminar nossa análise sobre as representações literárias e historiográficas que


foram tecidas sobre o sertão e a Amazônia, vimos como a produção intelectual baseada
nestas duas regiões foi decisiva não só para engendrar, em menor ou maior grau,
modificações nos seus respectivos territórios - com a ajuda do avanço técnico e científico
do mundo ocidental -, mas também influenciar e moldar o sentido da construção cultural
tanto da natureza como do elemento humano presente nestes dois espaços.

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111
Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda ao pé
de página de Casa-Grande & Senzala

Vanessa Carnielo Ramos*

Casa-Grande & Senzala, publicada inicialmente em 1933 e reeditada cinquenta e


uma vezes, trouxe um novo olhar sob a sociedade brasileira e gerou novos debates acerca
da formação da mesma. Porém, um assunto pouco discutido dentro da historiografia são
suas inúmeras notas de rodapé, as quais Gilberto Freyre pôde modificar ao longo de suas
reedições. Neste sentido, o estudo dos textos secundários (notas de rodapé) não tem
acontecido em grande número dentro da produção historiográfica como um todo mesmo
que estas mostram-se de extrema importância quando se referem à compreensão textual,
ou mesmo quando nos voltamos às fontes utilizadas ao longo do trabalho.
De acordo com Anthony Grafton:

De certo modo, elas constituem, nas ciências humanas, um equivalente das


referências a dados nos relatórios científicos: fornecem suporte empírico para as
histórias contadas e os argumentos apresentados. Sem elas, pode-se admirar ou
desaprovar as teses históricas, mas não verificá-las ou refutá-las. (GRAFTON,
1998:7)

Para Gérard Genette, as notas de pé de página fazem parte do que ele denomina
de “paratextos”. Estes, por sua vez, são formados de tudo o que está localizado em torno
do texto, ou seja, o título; prefácio, nome do autor, as mensagens na parte externa do livro
(conversas e entrevistas), as notas de rodapé, as comunicações privadas (diários,

*
Vanessa Carnielo Ramos, Mestranda em História no Departamento de História do Instituto de Ciências
Humanas e Sociais na Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP.

112
correspondências); dentre outros elementos de um livro1. Dessa forma, paratexto é o meio
pelo qual um texto se torna livro, e se apresenta a seus leitores. Assim,

O paratexto compõe-se, pois, empiricamente, de um conjunto heteróclito de práticas e


de discursos de todos os tipos e de todas as idades que agrupo sob este termo, em
nome de uma comunidade de interesse, ou convergência de efeitos, que me parece
mais importante do que sua diversidade de aspecto. (GENETTE, 2009:10)

Assim sendo, é necessário que compreendamos, primeiramente, o conceito de


nota de rodapé. Inicialmente, era chamado de “glosa”2 e utilizado desde a Idade Média
para esclarecimentos localizados no meio da página, porém, com a letra menor.
Consonante com Genette, “uma nota é um enunciado de tamanho variável (basta uma
palavra) relativo a um segmento mais ou menos determinado de um texto, e disposto seja
em frente seja como referência a esse segmento.” (GENETTE, 2009:281). Ou seja, as notas
de rodapé podem também estar localizadas em qualquer parte do livro, podendo existir
notas tanto do autor quanto do editor, bem como se referir tanto a uma palavra, frase,
parágrafo, ou até mesmo remeter-se à obra como um todo.
Posto isto, as notas de rodapé da maioria das obras historiográficas geralmente são
utilizadas para contar histórias que os autores consideram periféricos a ponto de estar no
texto principal3, para explicar conceitos utilizados ao longo da página, ou mesmo para
citar fontes que foram adotadas para construir suas hipóteses. Embora raramente se
encontre um livro específico que trate da história das notas de rodapé, bem como de sua
importância para a escrita da história, estas são utilizadas muitas vezes como artifício
retórico-argumentativo para comprovar a plausibilidade da ideia esboçada no texto

1
Para Genette, os paratextos são divididos em peritextos (título, nome do autor, prefácio e algumas notas) e
epitextos (as correspondências e tudo o que está externo ao livro).
2
Genette afirma que o aparecimento da palavra nota é datado por volta do ano de 1636.
3
É importante explicar que a nota de rodapé é uma extensão do texto principal, é a formação de um novo
texto a partir de outro, um segundo discurso que conversa com o primeiro, redimensiona-o, fortalece-o ou o
enfraquece. Dessa forma, o autor pode colocar a extensão na nota um complemento do assunto tratado no
corpo do texto, mas também pode adicionar uma informação ou narrar um conto que não caberia no corpo
principal, porém, que não perde em importância.

113
principal, ou seja, constituem-se parte fundamental da composição de uma obra
historiográfica.
Existem críticas profundas em relação às notas de rodapé, uma vez que ocorre um
processo de “interrupção”4 de uma leitura contínua para uma descontínua; ou seja, ocorre
uma quebra da leitura, uma parada no texto para se remeter a outra argumentação,
aprofundamento desta ou outra citação e, somente assim, posteriormente, o leitor pode
voltar ao texto principal e continuar sua leitura. Outra crítica concernente às notas refere-
se à influência do autor em sua construção e o entendimento do leitor, uma vez que,
segundo Grafton, a nota somente permite que o leitor entenda seu conteúdo se souber os
códigos utilizados para a escrita de notas de rodapé, ou se este tiver acesso ao
computador ou anotações do próprio autor.
De acordo com Anthony Grafton, as notas de rodapé exercem duas funções:

Em primeiro lugar, elas convencem: convencem o leitor de que o historiador


realizou uma quantidade aceitável de trabalho, o suficiente para mentir dentro
dos limites toleráveis do campo. Em segundo lugar, indicam as principais fontes
que o historiador realmente usou. Embora as notas de rodapé comumente não
expliquem o curso exato da interpretação que o historiador fez desses textos,
elas muitas vezes dão ao leitor que possui um espírito suficientemente crítico e
aberto pistas para permitir que o imagine – em parte. (GRAFTON, 1998:30)

Destarte, no presente trabalho, procuramos analisar as notas de rodapé escritas em


Casa Grande & Senzala, uma vez que seu autor abusa da escrita desta “historiografia de
segundo plano”, no sentido de utilizá-las para corroborar ou mesmo estabelecer um
diálogo de si com outros historiadores, bem como a citação de fontes utilizadas em seu
complexo trabalho. Freyre as utiliza como um complemento de suas ideias e, claro, como
evidência de sua memoriável erudição, principalmente no que diz respeito às estórias do
cotidiano. A maior parte de suas notas é utilizada para corroborar suas ideias expostas no

4
Interessante lembrar a afirmação de Ginzburg no Prefácio à edição inglesa de O queijo e os vermes: “[...]
pretende ser uma história, bem como um escritório histórico. Dirige-se, portanto, ao leitor comum, bem
como ao especialista. Provavelmente apenas o último lerá as notas, que coloquei de propósito no fim do
livro, sem referências numéricas, para não atravancar a narrativa”. Ver: GINZBURG, C. O Queijo e os Vermes.
São Paulo: Cia das Letras, 2006:10.

114
corpo principal do texto; por isso, as notas de rodapé são consideradas como artifício
retórico-argumentativo, no qual o autor pode apoiar suas hipóteses. A obra (em sua
edição final) é composta por cerca de 1/3 de partes consideradas secundárias, como
prefácio e as notas de rodapé; são cento e sessenta e oito páginas5 somente dedicadas às
notas de rodapé que estão carregadas de análises relevantes feitas por Freyre e seus
estudos.
Partiremos, então, para o segundo momento de nosso trabalho, no qual
apresentaremos de forma breve os autores em questão, Gilberto Freyre e de Sérgio
Buarque de Holanda. Vale ressaltar ainda que o diálogo entre estes dois autores não
permanece somente nas notas de Casa grande & Senzala: continuam debatendo em livros
e artigos posteriores, como veremos mais adiante.
Gilberto de Mello Freyre nasceu em 15 de março de 1900 e se tornou o autor
bastante polêmico da historiografia brasileira desde a publicação de sua obra, Casa-
Grande & Senzala, em 1933. Suas obras mais famosas são as que constituem a trilogia –
juntamente com aquela – Sobrados e Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1959).
Freyre foi bastante criticado, especialmente pela sua tese que se referia à mistura de
“raças” aqui existente6. Assim, ele recebeu e ainda recebe diversas críticas em relação à sua
teoria e até mesmo pela sua forma ensaística de escrever7, no entanto, enaltecido ou
censurado, celebrado ou contestado, Gilberto Freyre e sua primordial obra são sempre
polêmicos e sugerem debates profundos sobre a formação da sociedade brasileira.
O outro autor em questão no presente trabalho é Sérgio Buarque de Holanda. Este
nasceu em São Paulo no ano de 1902 e faleceu em 1982, tendo como destaque as obras:
Raízes do Brasil8 (1936); Monções (1945) e Cobra de vidro (1944) Caminhos e Fronteiras
(1957) e Visão do Paraíso (1959).

5
Este número se refere à edição de 2009 da obra de Freyre.
6
Assim como Freyre expressa em seu Prefácio à 1ª edição: “era como si tudo dependesse de mim e dos de
minha geração; da nossa maneira de resolver questões seculares. E dos problemas brasileiros, nenhum que
me inquietasse tanto com o da miscigenação”. Ver: FREYRE, G. Casa-Grande & Senzala. Formação da família
brasileira sob o regimen de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Naia & Schimidt Ltda., 1933:XII.
7
No entanto, nosso objetivo no presente trabalho é analisar as notas de Gilberto Freyre e não nos
aprofundar em suas críticas e elogios. Para maior esclarecimento sobre tais críticas, ver: ANDRADE (2002);
ARAÚJO (1994); DIMAS, LENHART & PESAVENTO (2007); NICOLAZZI (2008), dentre outros diversos livros que
abordam as temáticas que estão envolvidas não obras de Freyre.
8
Vale ressaltar que Raízes do Brasil foi traduzida para o italiano, espanhol, japonês, alemão e francês.

115
Sérgio Buarque entra em confronto com Freyre, tanto no que diz respeito às suas
teses quanto à forma de escrita que, por sua vez, se destoam da expressa em Casa-grande
& Senzala, assim como afirma Antônio Cândido na apresentação de Raízes do Brasil:

Nenhum romantismo, nenhuma disposição de aceitar categorias banhadas em


certa aura qualitativa – como “feudalismo” ou “família patriarcal” – mas o
desnudamento operoso dos substratos materiais. Em consequência, uma
exposição de tipo factual, inteiramente afastada do ensaísmo [...] e visando a
convencer pela massa do dado e do argumento. (CÂNDIDO, 1995:11)

Assim como Freyre, Sérgio Buarque também realiza várias mudanças em sua obra,
como podemos perceber no prefácio da segunda edição de Raízes do Brasil:

Reproduzi-lo em sua forma originária, sem qualquer retoque, seria reeditar


opiniões e pensamentos que em muitos pontos deixaram de satisfazer-me. Se
por vezes tive receio de ousar uma revisão verdadeiramente radical do texto –
mais valeria, nesse caso, escrever um livro novo – não hesitei, contudo, em
alterá-lo abundantemente onde pareceu necessário retificar, precisar ou ampliar
sua substância. (HOLANDA, 1995:25)

É importante assinalar que a primeira edição de Raízes do Brasil foi publicada pela
“Coleção Documentos Brasileiros”, da Editora José Olympio, dirigida por Gilberto Freyre e,
por isto, a apresentação, tanto da coleção quanto do livro, foi feita por ele mesmo. Esta
apresentação foi retirada na segunda edição de Raízes do Brasil, portanto, entrando nas
modificações que Sérgio Buarque bem explicita na citação acima.
Freyre e Holanda entraram em confronto em diversos outros artigos e livros. Um
exemplo é a introdução de Sobrados e Mucambos na edição de 1949, na qual Freyre tenta
responder às críticas realizadas por Holanda e, este, por sua vez, responde a ele em três
artigos9. Ou seja, à medida que suas obras foram sendo publicadas ocorreu um diálogo
entre tais autores expressos tanto em forma de artigo quanto na modificação de suas

9
Tais artigos estão publicados em nos livros de Sérgio Buarque Cobra de vidro (1978) e Tentativas de
mitologia (1979). Os artigos são intitulados “Sociedade Patriarcal”, “Formação da Sociologia” e “Panlusismo”.

116
obras que, no caso de Freyre e Casa-grande & Senzala se dá em basicamente três notas de
rodapé.
Elide Rugai Bastos (2005) destaca com precisão este debate entre Freyre e Holanda
em Sobrados & Mucambos e Raízes do Brasil, apontando para uma diferenciação de suas
teses e forma de abordagem dos temas relativos ao Brasil deste período. Uma das
diferenciações apontadas por ela seria tangente às relações Estado/Sociedade: Freyre
enxergava uma continuidade entre tais instituições enquanto que Sérgio Buarque via uma
oposição:

O primeiro vê uma continuidade entre os dois, isto é, o Estado seria resultado da


ampliação do círculo familiar, preocupando-se o autor em demonstrar a
plasticidade de setores do patriarcado que foram capazes de lutar por certas
medidas que pareciam ir contra seus próprios interesses. [...] Sérgio Buarque de
Holanda, numa perspectiva oposta, considera a existência de uma oposição
entre as duas ordens, recusando as possibilidades de gradação entre elas.
(BASTOS, 2005:29)

Em Casa-grande & Senzala, seu autor acrescenta três notas nas quais estabelece
diálogo direto com Sérgio Buarque e seu livro Cobra de vidro (1978), as notas estão
localizadas nos primeiro (nota 74), segundo (nota 159) e terceiro (nota 85) capítulos10. A
primeira e a última nota se referem ao artigo publicado neste livro, Panlusismo, e a
segunda ao artigo S. I., do mesmo livro.
Em Panlusismo, Holanda analisa os escritos de Freyre, ora elogiando-os, ora
criticando-os. Logo no início, percebemos o tom irônico do autor ao comentar uma
declaração de Freyre, na qual dizia que somente quando o autor encontra um público
capaz de acompanhar o processo de recriação é que vale a pena escrever. Sérgio Buarque,
então, escreve: “Depois disso Gilberto Freyre – então simples autor de artigos e plaquettes
– publicou uma quinzena de volumes e ficou célebre” (HOLANDA,1978:74); no entanto,
ainda no mesmo parágrafo elogia o trabalho de Freyre como estimulante para o interesse
crescente do estudo da história social e da sociologia.

10
Estas numerações referem-se à edição de 2009.

117
Em Panlusismo, Sérgio Buarque admira a tese da miscigenação de Freyre, em que
através deste, estimulando “a mistura de raças, o intercurso das culturas, teremos aberto
caminho à solução do problema, sem nos afastarmos dos princípios e dos métodos que
constituem, segundo o autor, a maior contribuição portuguesa e brasileira para melhor
ajustamento das relações entre os homens”. (Idem, 1978:77)
Posteriormente, insere uma discussão acerca da afeição do português colonizador
ao trabalho da terra. Sobre este ponto Freyre debate na nota de número 7411 no capítulo I
(Características gerais da colonização portuguesa do Brasil: formação de uma sociedade
agrária, escravocrata e híbrida). Em suas palavras:

Em um dos estudos críticos publicados em seu livro Cobra de vidro (São Paulo,
1944), o Sr. Sérgio Buarque de Holanda diz a respeito do autor do presente
ensaio, isto é, dos seus pontos de vista com relação à colonização agrária do
Brasil pelos portugueses: “Quando o autor [de Casa-grande & Senzala] critica,
por exemplo, o Sr. Sérgio Milliet, pela afirmação de que o português colonizador
não se afeiçoa muito ao trabalho da terra, penso que a razão está com o Sr.
Sérgio Milliet, não com o Sr. Gilberto Freyre”. (FREYRE, 2009:132 nota nº 74)

Holanda apresenta explicações para seu posicionamento a favor de Milliet,


afirmando que “Não faltam indícios de que a atividade dos portugueses, em quase todas
as épocas, e já antes da colonização do Brasil, se associou antes à mercearia e à milícia do
que à agricultura e às artes mecânicas.” (HOLANDA, 1978:78). Neste sentido, Gilberto
responde na nota reproduzindo o trecho da obra que ele acredita ser referida por Sérgio –
Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira – em que Freyre argumenta a favor do gosto do
português pela terra.
Freyre afirma que essa relação portuguesa de desamor para com a terra, lavoura ou
trabalho agrícola é evidente, mas que, como percebeu C. A. Taunay – Manual do agricultor
brasileiro (1839) – tais trabalhos passavam a ser desempenhados por escravos, o que
proporcionou o sucesso na lavoura de alguns grupos de colonos europeus que foram

11
Importante dizer que Freyre, além do diálogo com Sérgio Buarque de Holanda e outros críticos, também
acrescenta uma série de referência de trabalhos acerca do assunto tratado neste debate.

118
introduzidos no Brasil pelos portugueses. No entanto, Freyre declara que Taunay se
esquece de salientar o fato de que

[...] os açorianos – tanto em sua terra de origem como nas suas áreas principais
de colonização no Brasil, homens mais livres que outros portugueses da
influência do trabalho escravo – foram na América bons colonos de tipo agrário
e pastoril, em cujos descendentes se desenvolveria maior amor à terra e ao
trabalho e à vida de campo que na maioria dos descendentes de grandes
senhores de escravos por um lado, e de escravos, por outro. (FREYRE, 2009:133
nota nº 74)

Holanda afirma ainda, nessa mesma linha de raciocínio, que se o Brasil teve uma
economia rural dominante foi somente na primeira fase da colonização, justamente por
este fator de desapego do português a terra, “Se a economia rural chegou alguma vez a ter
papel dominante na formação da sociedade portuguesa foi aparentemente a primeira
dinastia” (HOLANDA, 1978: 78)
Porém, como uma cartada final Freyre faz uso das palavras de outro crítico, P.
Madureira de Pinho, para corroborar sua hipótese:

Referindo-se à divergência entre nosso critério e o de outros autores que se têm


ocupado do assunto, inclusive o Sr. Sérgio Buarque de Holanda, escreve o Sr. P.
Madureira de Pinho: “Quer nos parecer aliás que a divergência nada tem de
essencial e apenas o que pretende Gilberto Freyre é ressalvar que não foi
absoluto o desapego do português às lavouras” (Fundamentos da organização
corporativa das profissões rurais, cit, p. 9). Tanto não foi “absoluto” que os
portugueses fundaram no Brasil, sobre base principalmente agrária, a maior
civilização moderna nos trópicos, tornando-se também lavradores notáveis em
outras partes da América. (FREYRE, 2009:133 nota nº 74 grifo nosso).

Em outra nota, de número 159, no capítulo II (O indígena na formação da família


brasileira) Freyre estabelece outro diálogo com Holanda, este tratando da ação jesuítica

119
sobre a cultura dos indígenas, referenciando-se ao artigo intitulado S.I. O trecho que
Freyre cita na nota é o seguinte12:

Creio, com Gilberto Freyre, que os jesuítas tiveram realmente uma ação
desintegradora sobre a cultura dos indígenas, mas também acredito que tal
ação não caracteriza seu esforço, senão na medida em que ela é inerente a toda
atividade civilizadora, a toda transição violenta de cultura, provocada pela
influência de agentes externos. Onde os inacianos se distinguiram dos outros –
religiosos e leigos – foi, isso sim, na maior obstinação e na eficácia maior do
trabalho que desenvolveram. E, sobretudo, no zelo todo particular com que se
dedicaram, de corpo e alma, ao mister de adaptar o índio à vida civil, segundo
concepções cristãs. (HOLANDA, 1978:97)

Neste sentido, Freyre acusa existir um “excesso de generalização” nas palavras de


Holanda, uma vez que, para o intelectual recifense, existe uma diferença entre as ações
desintegradoras de culturas indígenas efetivadas por diferentes grupos missionários, ou
seja, cada um deles teve sua forma de agir sobre os indígenas, gerando formas diferentes
de dominação de cultura: “É que seus métodos de ‘adaptar o índio à vida civil’ e suas
‘concepções cristãs’ têm variado consideravelmente” (FREYRE, 2009:254 nota nº 159).
Na tentativa de validar seu argumento, o Freyre utiliza-se de Lewis Hanke, uma vez
que este demonstra a dualidade do julgamento do governo em relação aos indígenas,
pois, uns os julgavam “de bom entendimento” e outros acreditavam que eram “gente que
quer se mandada”. Assim, entre os jesuítas, acredita o sociólogo e historiador recifense,
parece que predominava a segunda opção.
Freyre destaca o trabalho do frei Basílio Rower – Páginas da história franciscana no
Brasil – em que este mostra o trabalho de missionários franciscanos em diversas aldeias,
nos quais os índios eram doutrinados em seu próprio habitat, diferentemente das missões
jesuíticas13:

12
Optamos por citar a passagem direta do livro de forma a ampliar o entendimento do leitor.
13
Entretanto, Freyre chama atenção para a importância do trabalho jesuíta para a colonização e ainda afirma
que os missionários do primeiro século de colonização chegaram a ser heróicos.

120
Os jesuítas das reduções não só afastavam os indígenas do seu habitat para
conservá-los em meios artificiais como os privaram de liberdade de expressão e
de ambiente favorável ao desenvolvimento de suas aptidões e capacidades,
fazendo-os, ao contrário, seguir vida puramente mecânica e duramente
regulada de eternas crianças, eternos aprendizes e eternos robôs, cujo trabalho
era aproveitado por seus tutores. (FREYRE, 2009:255-256 nota nº 159)

A última nota em que Freyre debate diretamente com Sérgio Buarque está
localizada no capítulo III (O colonizador português: antecedentes e predisposições) no
rodapé de número 85. Nesta, ele volta a tratar do artigo Panlusismo e sobre o mesmo
assunto anteriormente tratado, ou seja, em torno do desapego a terra por parte do
português, sendo que, para ele, esse é um dos fundadores da agricultura moderna nos
trópicos.
Neste pé de página, Gilberto faz referência à afirmação de Sérgio de que as
atividades portuguesas se associaram “antes à mercancia e à milícia do que à agricultura e
às artes mecânicas” (HOLANDA, 1978:78), e declara ser uma generalização “aceitável”, uma
vez que em Casa-grande & Senzala apresenta aspectos que favorecem a tal afirmação. Não
obstante, Freyre alerta para os excessos e, neste momento, isenta Sérgio Buarque de ser
acusado de considerar o povo português ausente de um passado agrário ou mesmo
inimigo da lavoura. Para reforçar seu alerta, ele cita diversos trabalhos que não negam ter
existido um potencial agrícola nos portugueses: “É certo que o Brasil foi colonizado por um
povo português já afastado da agricultura e empolgado por outros interesses; mas nem
por isso destituído de aptidões para a agricultura.” (FREYRE, 2009:350 nota nº 85).
Freyre apresenta um inquérito promovido no Rio de Janeiro por Carlos Malheiros
Dias sobre a aptidão do português para a colonização agrícola, a conclusão final foi
positiva para “as qualidades de atividades, de resistência física e de proliferidade essenciais
a uma missão de colonização agrícola e de povoamento” (FREYRE, 2009:351 nota nº 85).
Assim, ele conclui que “Pelas evidências e fatos apresentados nesses e em outros trabalhos
por estudiosos objetivos do assunto se vê que, sob condições sociais favoráveis, os
portugueses se têm salientado como bons colonos agrícolas, especialmente como
horticultores”. (FREYRE, 2009:352 nota nº 85)
Vale ressaltar ainda a crítica que Sérgio escreve neste mesmo artigo sobre essa
defesa de Gilberto em relação ao colonizador português:

121
Analisando o português como povo colonizador por excelência, não se cansa
Gilberto Freyre de acentuar, entre seus traços positivos, a tolerância contínua, a
constante docilidade a toda sorte de influxos externos, que o impedem de
enrijar-se numa estrutura definitiva e perfeita. (HOLANDA, 1978:79)

Feita a análise das notas argumentativas em que Freyre trava um diálogo com
Holanda, percebemos o quanto é profícua a análise das notas de pé de página da obra
Casa-grande & Senzala. Nelas encontramos não somente uma gama de referências sobre
os diversos assuntos tratados ao longo do livro, mas também, um campo de debate que
nos ajuda a compreender melhor os embates e os diálogos entre os intelectuais da época.
O debate entre Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda é apenas um dos
diálogos a serem abordados, uma vez que Freyre modifica em torno de cento e cinqüenta
e sete notas de rodapé, acrescenta de trinta e oito e retira três. Em suma, a partir destes
dados e desta análise realizada acima, ressaltamos, mais uma vez, a importância das notas
de rodapé na obra em específico.

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123
1964 nos textos do Bruxo Golbery

Ana Maria Koch*

Dupla dificuldade existiu para a aceitação no meio acadêmico, isso no final da


década de 1990, de proposta de estudo dos eventos relativos ao golpe militar de 1964
considerados a partir do papel do bruxo. Apelidado assim pela imprensa da época,
Golbery do Couto e Silva foi aparecendo como uma figura interessante para o estudo do
contexto político brasileiro das décadas de 1950 a 1980 durante o trabalho, que fiz, de dois
anos com bolsa de pesquisa (FAPERGS) em nível de Aperfeiçoamento abordando o
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e a Escola Superior de Guerra1 (ESG). Ambas
as entidades aglutinavam esforços de conduzir processos políticos tanto de doutrinação
como de ação norteada pelas respectivas ideologias adotadas, opostas entre si.
No caso do ISEB, o fechamento desse órgão do Ministério da Educação e Cultura
ocorreu em 1964 em ato assinado pelo Presidente da República Ranieri Mazzilli (de 2 a 15
abr. 1964), o marxismo era uma das linhas ideológicas importantes que perpassavam o
debate na Instituição sobre o modelo de desenvolvimento a ser adotado no Brasil. No caso
da ESG, criada por Lei em 1949 como parte da estrutura do Ministério da Defesa, havia
relação informal dela com instituições civis como a ADESG, o IPES e o IBAD, todas
anticomunistas. O exame dos textos publicados pela Escola mostrou uma injunção
estranha entre os conceitos democracia e cristianismo que não pertenciam ao conjunto do
discurso norte-americano de defesa do ocidente contra o comunismo.
A primeira dificuldade para o tratamento do tema, formulado em 1996 para uma
Dissertação, foi a de que propunha uma investigação a ser realizada a partir da produção
textual e da ação de um execrado também pela esquerda intelectual acadêmica e também

*
Ana Maria Koch, Doutora, Professora do Centro de Ciências Humanas e Letras na Universidade Federal do
Piauí, UFPI.
1
A ESG se diferencia da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), fundada como
instituição civil em 1951 por ex-alunos de curso do órgão do Ministério da Defesa.

124
vem do fato de que Golbery do Couto e Silva já havia sido exonerado do cargo que
ocupava na ESG em 1955, acusado de participação em tentativa de golpe para impedir a
posse de Juscelino Kubitschek. A segunda, porque a pesquisa tinha como um dos pontos
importantes de abordagem a verificação da biografia desse execrado personagem político
para estabelecer a relação dela com a produção de textos publicados de meados de 1950
a início da década de 1980. O exame buscava entender o modo de utilização de dois
conceitos que, justapostos, causaram o estranhamento: ocidente cristão.
Na historiografia da década de 1990, o nome de Golbery do Couto e Silva ainda era
relacionado à ESG de modo determinante, apesar da exoneração de 1955, talvez pela
participação dele na ADESG. Mais importante: a historiografia predominantemente de
recorte marxista enfatizava a influência da direita norte-americana na produção textual
dele e da mesma ESG, excluindo outras possibilidades de abordagem. Recuperando dados
biográficos em traços gerais para o esclarecimento do estudo realizado, da época da
publicação do livro Planejamento estratégico, de 1955, foi a primeira tentativa de golpe
para impedir a posse de presidente eleito pelas regras da Constituição brasileira, ano
imediatamente posterior ao do Manifesto dos coronéis, de fev. 1954. Esses militares2,
dentre eles muitos ex-tenentes de 1922, reivindicavam o “aparelhamento real do Exército
para o cumprimento, a qualquer instante, das indeclináveis missões que lhe cabem” (apud
CARONE, 1980: 558).
Golbery do Couto e Silva participou – de modo importante – da redação do
documento; além do exame do material textual produzido por ele, do projeto do grupo no
qual participou, bem como das alianças estabelecidas nas tentativas de conduzir o
processo político brasileiro no período posterior à exoneração dele da ESG, em 1955, há
outras questões da trajetória pessoal que devem ser levadas em conta: em 1961, foi
assessor de Jânio Quadros e prometeu ao Presidente apoio dos militares no evento da
renúncia, numa segunda tentativa de golpe; de 1961 a 1964 articulou militares e civis no

2
Envolvido em política desde operações militares na Revolução de 1932, Golbery do Couto e Silva fez parte
de um grupo coeso que trabalhou no III Exército, em Porto Alegre; fez estágio no exército norte-americano,
em 1944, de onde partiu para fazer parte da FEB na Itália. No imediato pós-guerra os veteranos do Realengo
propuseram a criação de um Estado Maior das Forças Armadas, organismo semelhante ao National War
College que, nos Estados Unidos, cuidava das questões de segurança do país em caso de guerra. Essa foi a
base da ESG, que passou a funcionar, em 1949, com o auxílio de uma “‘missão de assistência’ americana”
(BONES, 1978: 19).

125
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e no Instituto Brasileiro de ação democrática
(IBAD); em 1964, passou a atuar no Serviço Nacional de Informações (SNI), criado pela Lei
4.341 e assinada pelo general Castelo Branco, quando levou para o órgão “todo o fichário
do serviço de inteligência do IPES” (BONES, 1978: 20).
Fazia parte do grupo derrotado na crise da sucessão, crise envolvendo os castelistas
e o do ministro da Guerra Costa e Silva que “advogava um endurecimento total do
regime” (ADEUS, 1984: 24), o que implicou medidas de proteção a Ernesto Geisel e ao
mesmo Golbery do Couto e Silva. Na troca de governo, esse não passou o cargo para o
sucessor no Serviço Nacional de Informações, Emílio Garrastazu Médici (BONES, 1978: 21).
Golbery do Couto e Silva, que em 1967 teve publicada a coletânea de textos sob o título
Geopolítica do Brasil, a partir de 1968 “ficou afastado do Planalto até o final do governo
Médici”, já aposentado desde 1969 no cargo de ministro do Tribunal de Contas da União,
quando assumiu cargo na Dow Química (GASPARY, 1987: 24). O ostracismo político
terminou em 1974, quando foi conduzido à Chefia da Casa Civil como “o principal
conselheiro de Ernesto Geisel” (ADEUS, 1984: 24). Sempre envolvido em conflitos políticos,
renunciou em 1977; assumiu cargo no governo do general Figueiredo e demitiu-se em
1981, denunciando o grupo militar oposto que formava-se então em torno do “ministro-
chefe do Serviço Nacional de Informações, Octávio Medeiros” (ADEUS, 1984: 25). Passou
então a ser um dos coordenadores da candidatura de Paulo Maluf , o que lhe custou a
perda do título de mago da abertura; manteve o apoio a Maluf quando do comício das
diretas no Rio de Janeiro, momento em que “boa parte da cúpula militar que o chamava
de contra-revolucionário, por ajudar Geisel a acabar com a censura à imprensa, a tortura e
o AI-5, se aproximava secreta e sorridentemente de Tancredo Neves” (GASPARI, 1987: 25).
Ao lado dos dados biográficos, numa metodologia de investigação dos conceitos,
deve ser colocada em questão a leitura e análise dos textos do autor. O enquadramento
para essa leitura pode ser feito a partir da abordagem adotada por Golbery do Couto e
Silva – no caso, o surpreendente esquema evolucionista – e, ao mesmo tempo, pela
observação do estilo rebuscado de redação que contrasta com o que se espera de
formulações no âmbito militar. Um exemplo aqui pode auxiliar no entendimento da
questão, e ele vem do conteúdo da palestra realizada em 1980 na ESG, texto que contém,
paralelamente ao plano geral do propósito político exposto, a avaliação do golpe de 1964
que o autor considerava revolucionário:

126
Apelemos, agora, a uma visão dialética, Marx excluso, se quiserem. [...]

Na fase ascendente da centralização produzem-se, portanto, gérmens [sic] da


própria centralização, obstáculos que começam desde logo a opôr-se [sic] à
primeira, mas sem força de retardá-la, quanto mais de detê-la; tudo se passa
assim, até que a centralização atinja seu clímax; a partir de então, os fatores em
oposição ou obstáculos começam a preponderar, freando o processo de
centralização cada vez mais, até reduzi-lo à inoperância.

Assim, por exemplo, [...] essa tão denegrida e temida burocracia [...] acaba por se
lhes tornar um freio decisivo ao próprio crescimento [do Estado], passando [a
burocracia] a constituir obstáculo intransponível pelas dificuldades que cria e,
dia a dia, multiplica, ao cuidar muito mais de si mesma, de suas mesquinhas
querelas de poder e prestígio entre grupos influentes diversos e, [sic] de sua
preservação e continuísmo, [sic] do que do próprio processo de centralização
racionalista e planejador, a que deveu seu nascimento e a preponderância de
seu difuso, mas onipresente poder. E isso é, aliás, até confortador... (SILVA, 1993:
117)

Os textos publicados de Golbery do Couto e Silva foram: o Manifesto dos coronéis,


de 1954; o livro Planejamento estratégico, publicado pela Biblioteca do Exército e pela
Companhia Editora Americana, de 1955; o livro Geopolítica do Brasil, publicado pela
Livraria José Olympio, de 1967 e a palestra Conjuntura política nacional – o poder
executivo, apresentada em 1980, na ESG. O texto de 1954 – o manifesto – e o de 1980 – a
palestra – são curtos, com temáticas específicas. Metodologicamente, é importante
destacar que se destinavam a dois propósitos distintos no que se refere ao público e ao
comprometimento do autor. A publicação de 1955 tinha temática especificada no título
Planejamento estratégico, editado como volume 212 de coleção da Biblioteca do Exército.
O conteúdo refere textos redigidos no Rio de Janeiro pelo então tenente-coronel e,
estando circunscritos ao mesmo contexto de redação do Manifesto, podem ser lidos sob o
critério (a) de crítica quanto à crise política dupla configurada pelo final do segundo
governo Vargas: o suicídio de um presidente da República e período de campanha
eleitoral presidencial; e (b) de tentativa de subsidiar, com ideias, os esforços de um
determinado grupo por superação da crise e propondo uma direção específica a ser

127
seguida. A estrutura da publicação está constituída de quatro partes: 1.a parte, O
planejamento e a segurança nacional, de outubro de 1954, com 96 páginas; 2.a parte,
Planejamento do fortalecimento do potencial nacional, de novembro de 1954, com 68
páginas; 3.a parte, Planejamento da guerra, de novembro de 1953, com 33 páginas; 4.a
parte, Os estudos estratégicos de área, de abril de 1953, com 108 páginas.
O livro Geopolítica do Brasil, de 1967, é uma coletânea de “palestras e ensaios”
(SILVA, 1967: 3) apresentados independentemente uns dos outros durante a década de
1950 e no ano de 1960. O livro contém uma biografia elaborada pela editora e nota
introdutória assinada por Afonso Arinos de Melo Franco. Tem dedicatória do então
general ao “ilustre mestre prof. Delgado de Carvalho,[geógrafo do IBGE]” e apresentação,
na qual reafirma então tanto as ideias apresentadas em período anterior, como o prisma
sob o qual as ideias foram construídas: em 1967 “o antagonismo entre o Ocidente cristão e
o Oriente comunista domina ainda a conjuntura mundial” (SILVA, 1967: 4). A introdução –
O problema vital da segurança nacional – é constituída de texto datado de 1952, redigido
no Rio de Janeiro. Os textos, publicados em 1967, período em que o grupo político ao qual
o autor pertencia estava no governo do Estado brasileiro, são apresentados numa
reordenação3 temática.
Ao lado do primeiro levantamento quanto ao enquadramento da abordagem
adotada (ou do pressuposto teórico do sistema) nos textos estudados e do estilo de
redação, os passos dados para dar a base da verificação dos componentes dos textos de
Golbery do Couto e Silva e das relações que a partir destes podem ser estabelecidas foram,
complementarmente, o inventário da produção textual e o estabelecimento da situação
que possibilitou essa produção na biografia deste autor.
Para chegar à compreensão da produção textual deste autor, foi necessário partir
de uma distinção interna entre os diferentes textos, considerando a época da produção e
o envolvimento político do momento. Eles foram examinados, como textos, sob a ordem

3
1.a parte: Aspectos geopolíticos do Brasil (contendo os subtítulos I. Aspectos geopolíticos do Brasil, de 1952;
II. Aspectos geopolíticos do Brasil, de 1959; III. Aspectos geopolíticos do Brasil, de 1960); 2.a parte, sem título
especificado (contendo os subtítulos I. Geopolítica e geoestratégia, de 1959; II. Dois pólos da segurança
nacional na América Latina, de 1959; III. Áreas internacionais de entendimento e áreas de atrito, de 1959; e 3.a
parte: O Brasil e a defesa do ocidente, de 1958. O Anexo 1 é denominado de ensaio metodológico pelo autor,
com o título Formulação de um conceito estratégico nacional e é de 1955; o Anexo 2 foi denominado Esboço
de um plano de pesquisa geopolítica, s/d.

128
cronológica de elaboração e numa perspectiva de macrotexto, isto é, pela ordem de
publicação no conjunto formado por eles. Essas duas ordens – de elaboração e de
publicação – podem não coincidir e essa verificação têm implicação relevante no
procedimento de análise dos conceitos. Entre outros aspectos, ainda, é preciso considerar
que cada texto redigido, com a respectiva publicação dele, pode estar destinado a público
específico, o que dá a sua característica e permite observação num conjunto formado por
textos semelhantes de outros autores.
No caso, o material produzido por Golbery do Couto e Silva pode ser observado
como texto de tipo doutrinário, forma pela qual o autor se exime de justificar a cada passo
a fonte da informação ou a fonte do conjunto de conceitos adotados. As informações
estão contidas no texto e é a erudição do intérprete que possibilita a identificação quando
ela não é explícita. Por exemplo, Golbery refere textualmente Aristóteles e abomina quem
não o adota taxando tal fato como heresia tremenda4, indicando implicitamente uma
determinada linha adotada, no caso, o antiliberalismo. Referências explícitas e implícitas
são campos de observação importantes para identificar as relações no campo da História
das ideias e situá-lo nele. Minha proposta é da de observá-las sob o conceito intexto5.
Um texto, ainda, pode ser estudado a partir da abertura de determinada
perspectiva contextual. A escolha dessa perspectiva é decisão do analista; por isso, é
preciso levar em conta, sempre, que existem outras possibilidades potencialmente em
aberto para a investigação. No caso do material estudado, a perspectiva contextual foi

4
“[...]‘repudiando de frente a Aristóteles – heresia tremenda!’ – e se inspirando sobretudo em Euclides,
Thomas Hobbes descobriu e apontou, à adoração reverente e temerosa dos povos, o novo Leviatã, esse deus
potentoso, embora mortal, da soberania e do poderio absoluto. Seu raro e agudo engenho tomaria, como
ponto de partida, aquele mesmo mito fascinante e estranhamente crível do ‘contrato social’ que, na época
atraía todos os espíritos, fecundando o liberalismo nascente de que Locke se afirmaria, mais tarde intérprete
inexcedível até hoje, e, por um extraordinário passe de mágica, faria daquele mito o próprio fundamento de
sua incrível proposição derradeira – a rendição total da liberdade do indivíduo em aras de um poder [civil]
soberano, incontrastável e supremo” (sem grifo no original) Ver: SILVA, Golbery do Couto e. Geopolítica do
Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1967, p. 7.
5
Conceito desenvolvido em Pós-Doutoramento (PRODOC/UFPI 2005/2006): o trabalho textual considerado
como tecido no qual o autor borda – marca o intexto que fica integrado ao texto – que pode ou não ser
reconhecido pelo leitor; quando o trabalho feito sobre o texto é percebido, o entendimento do leitor ganha
significado além do dado pelo no texto, mas não há prejuízo de entendimento se não percebido. No caso da
citação, o liberalismo nascente é referido em textos católicos do século XIX, repetido por bispos como o
gaúcho D. João Becker na década de 1920 para expressar o antagonismo entre essa proposta e a orgânica do
catolicismo tomista, de base Aristotélica; o estilo de Golbery do Couto e Silva indica para o mesmo tipo de
formulação retórica.

129
construída levando em conta diferentes variáveis, porque a análise estava relacionada
também com a biografia e, ainda, com os eventos políticos da época.
O tipo do texto, a biografia, os eventos e os conceitos utilizados pelo autor
formaram um conjunto a subsidiar a interpretação. A proposta da minha Dissertação, por
isso, investigou as relações conceituais (a) com os capitalismos do século XX, o liberal
norte-americano e o de estado soviético (ou organicista de Estado), para compreender a
proposta de necessidade de Segurança do ocidente (Capítulo 1); (b) com a Escola Superior
de Guerra e a tradição de militar cidadão existente no exército brasileiro desde o final da
Guerra do Paraguai (Capítulo 2); (c) com a noção de Cruzada pela neocristandade dos
católicos pós Vaticano I, isto é, a cruzada contra os infiéis modernos (isto é, os liberais) na
sociedade e na ecclesia para compreender o híbrido conceitual cruzada pela democracia
interpretado por Golbery do Couto e Silva para a situação brasileira, dando sentido à
proposta de 1964 defendendo o progresso da ordem pela barganha leal - sendo a
barganha com o projeto de poder dos liberais norteamericanos para a defesa da nação na
segunda metade do século XX, e leal porque na defesa de seu projeto, este reformulado
para abertura democrática liberalizante em 1980.
A proposta de trabalho levou em conta, ainda, o critério de análise textual que
distingue, para o estudo de cada texto, o Autor do Narrador e também o Narratário do
Leitor. Tratados como instituições de construção textual, o Narrador e o Narratário
formam, com o próprio Texto, um conjunto a ser considerado para uma situação de
contexto histórico determinado e para um tipo de texto específico que veiculam as ideias
ali expressas. Considerando que o Autor pode mudar de projeto e de atuação política –
sendo ele um político – pode ocorrer que ele apresente diferente inflexão em texto de
outra época, para outro Leitor. A circunscrição do Narrador e do Narratário a um tipo de
texto determinado, com contexto histórico determinado pode iluminar a sua situação no
conjunto da obra, determinada como macrotexto.
No caso estudado, da produção textual de tipo doutrinário, esse é o recurso que
permite entender que, num novo contexto histórico, o projeto político de Golbery do
Couto e Silva que defendia como Narratário do planejamento para o Brasil na década de
1980 permaneceu o mesmo daquele da década de 1950, apresentado com vocabulário em
parte atualizado para o Narratário a quem o texto está endereçado, esse que foi o ouvinte
da palestra na ESG ou o Leitor da publicação dela.

130
Considerados os recursos da análise textual, quando relacionados ao estudo da
biografia, é possível relativizar os dados predominantes dos estudos históricos relativos ao
golpe de 1964. Primeiro, pelo exame da biografia de Golbery do Couto e Silva, é possível
verificar que os militares, no Brasil, não formavam um grupo homogêneo. As opções
políticas dos tenentes, pós 1822, vão da extrema direita à extrema esquerda, passando
pelos constitucionalistas, todos querendo conduzir o processo político. Dentro da extrema
direita, linha política na qual Golbery do Couto e Silva organizou a produção textual, é
possível ainda indicar a especificidade desse conteúdo e da ação política, causando tensão
com diferentes grupos considerando a história dos militares em contexto específicos e
com a atuação política deles no Brasil.

Referências bibliográficas

ADEUS do “Bruxo”. Isto É, Rio de Janeiro, v. 11, n. 561, p. 23-25, 23 set. 1987.

BONES, Elmar. Golbery, poder e silêncio. Coojornal, Porto Alegre, set. 1978, v. 3, n.
32, p. 19-21.

CARONE, Edgard. A quarta república: 1945-1964. São Paulo: DIFEL, 1980.

GASPARI, Elio. Golbery do Couto e Silva: 1911–1987: os papéis secretos de Golbery.


Veja, São Paulo: Abril, v. 994, p. 20-31, 23 set. 1987.

GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa: ensaio de método. Tradução de


Fernando Cabral Martins. Lisboa: Arcádia, 1979.

___________. Introdução ao arquitexto. Lisboa: Vega, 1986.

SILVA, Golbery do Couto e. Conjuntura política nacional: o poder executivo: 1980.


Revista da Escola Superior de Guerra, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 111-135, dez. 1993.

131
___________. Conjuntura política nacional e poder executivo & geopolítica do
Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981.

___________. Geopolítica do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1967.

___________. Planejamento estratégico. Rio de Janeiro: B. Exército, 1955.

132
Os caminhos de um cineasta

Paulo Roberto de Azevedo Maia*

O século XX foi do cinema. A invenção dos irmãos Lumière no final do século XIX
abriu caminho para a arte de fazer sonhos, mas também para garantir a uma parcela da
população referências audiovisuais, inclusive no campo da notícia com os cinejornais. No
Brasil um nome de destaque na produção dos informativos cinematográficos foi o do
cineasta Carlos Niemeyer. Trata-se do produtor do cinejornal Canal 100 (1959-1986) – um
dos periódicos cinematográficos mais importantes da história por encantar com sua
técnica, fazendo das imagens do futebol seu grande destaque. A abordagem
cinematográfica desse periódico foi, de forma não oficial, condizente com a proposta de
leitura do Brasil feita pelo projeto de propaganda política do regime militar que procurou
se distanciar dos tipos clássicos de propaganda.
Os grupos que atuavam com intenção de uma ação eficaz do Estado no meio
cinematográfico, na década de 50, no campo do cinejornalismo, pretendiam criar um
cinema equiparado ao tipo da indústria praticado pelos Estados Unidos, o que era
evidenciado pela influência desenvolvimentista no setor. O Brasil apresentava condições
ideais para novos empreendimentos com um Estado capaz de viabilizar um projeto de
Brasil, contemplando um grande número de empresários que se lançam à construção de
um novo país, mais moderno e que deveria ser divulgado. A imprensa, a televisão e o
cinema passam a ser importantes veículos nessa empreitada; em função disso, novos
nomes e empresas surgem.
A política desenvolvimentista de JK foi uma condição para o surgimento da "Carlos
Niemeyer Produções Ltda" e do cinejornal Cana 100: ambos surgem durante a construção
de Brasília, aliás, vários cinejornais são desenvolvidos para cobrir o nascimento da nova

*
Paulo Roberto de Azevedo Maia, Mestre pelo Departameno de História do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas na Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP.

133
capital. Porém, esse vinha para se estabelecer como o maior periódico cinematográfico,
desde o Cinejornal Brasileiro de Vargas.
Carlos Niemeyer foi o idealizador e produtor do Canal 100, deve-se a ele o
desenvolvimento de um periódico que ficou em exibição nas telas de todo o país por 27
anos (1959-1986). Ele não era do meio cinematográfico e a sua entrada no universo do
cinema aconteceu por acaso.
Carlos Niemeyer era conhecido na aeronáutica pela sua participação na Segunda
Guerra Mundial. Grande parte das classes média e alta da cidade do Rio de Janeiro o
conhecia como um grande boêmio, aliás, tratava-se de um dos maiores. Sua fama de
conquistador – ele teria namorado Carmem Miranda por um curto período na década de
40 – e de rei da noite foram reforçadas com a fundação do clube dos Cafajestes, grupo de
amigos da zona sul carioca que organizava a agitação da região. Rui Castro assim o definiu:
“Homem em permanente estado de Carnaval, ele já incendiou festas, coquetéis,
arquibancadas, boates, praias, ruas e bairros inteiros do Rio”. (CASTRO, 1999).
Niemeyer começou a viver uma nova etapa de sua vida ao deixar a carreira de
militar e passar a trabalhar na aviação civil. A experiência como piloto fez com que
conhecesse, na década de 50, o cineasta Jean Mazon. Esse contato parece ter sido de
fundamental importância para fazer nascer o ideal cinematográfico no produtor do Canal
100. De piloto, logo se transforma em cooperador nas produções de Mazon e, aos poucos,
vai adquirindo gosto pelo cinema. Segundo Niemeyer, o espírito de aventura da aviação
pode ser comparado a fazer cinema no Brasil: “No meu tempo voar era coisa de valente, de
pioneiro. O nosso cinema ainda está nessa base”.1
A afirmação se torna mais verdadeira quando existe preconceito. O cinejornalismo
era visto como uma forma inferior de se fazer cinema, principalmente quando o realizador
não tinha tradição no ramo, o que lhe conferia o título de mero cavador, sem nenhuma
preocupação estética e social. O realizador do cinema de atualidades foi, desde o início do
século XX, reconhecido como um arrivista disposto a tudo para conseguir dinheiro, não
era, portanto, considerado um artista; longe disso, era a escória, aquele que tirava do

1
Entrevista de Carlos Niemeyer no artigo “Flamengo, samba e Caju. É Carlinhos”, de Marco Aurélio Jangada,
Revista Placar, Rio, 15/01/71.

134
cinema o título de sétima arte. Ser cavador era, no meio cinematográfico, o exemplo
maior, da falta de consciência.
O Canal 100 surgiu em um momento de fecunda produção engajada, como é caso
do Cinema Novo, que criticava a falta de ação do cinema de entretenimento,
despreocupado com a força da arte como instrumento de mudança social. O periódico de
Carlos Niemeyer não ficou isento de críticas. Levar notícias às telas com um forte caráter de
entretenimento, utilizando velhos temas dos informativos cinematográficos como o
futebol em destaque era algo impensado pelos que achavam que a produção de
cinejornais era sem valor estético. Além disso, a critica política da esquerda negava o
cinema alienado, distante dos grandes temas e das mudanças que seriam necessárias para
superar sua condição de país dependente do terceiro mundo. Esse tipo de discurso teve
força na produção engajada oriunda dos Centros Populares de Cultura da UNE.
Oswaldo Caldeira, que acompanhou a trajetória do Canal 100, afirma que o
preconceito fez com que Carlos Niemeyer fosse renegado pela comunidade
cinematográfica:

Se alguém achou o nome de Carlinhos Niemeyer, do Canal 100, em alguma


enciclopédia de cinema, me diga, pois eu não consegui achar. Por quê? Eu acho
que muito preconceito tem impedido que isso que acabei de dizer seja dito com
todas as letras. Preconceito de toda ordem, o maior deles contra o esporte
mesmo. Como se o futebol focalizado apenas como esporte, enquanto show,
enquanto espetáculo, fosse uma coisa insuficiente, fosse uma coisa menor.
Como se ele pudesse ser considerado como um tema nobre apenas a partir do
momento em que estivesse associado a uma abordagem social, sociológica,
psicanalítica, antropológica, política, seja lá o que for. (CALDEIRA, 2005: 33)

A imagem do boêmio, burguês, despreocupado com a vida nacional fez com que
se fortalecesse o preconceito contra Carlos Niemeyer:

Acho que Niemeyer é subestimado por causa disso, por puro preconceito, e
porque Carlos não era um diretor de cinema, não era um intelectual na acepção
mais restrita e corrente do termo. Carlos Niemeyer estava fora desse perfil, era
um cara rico, do lendário ”clube dos cafajestes", um bon vivant, um cara que não

135
tinha nada a ver com os intelectuais, era um "mero" produtor de cinejornal.
(CALDEIRA, 2005: 33)

Caldeira afirma que o preconceito era levado ao extremo a ponto de provocar um


isolamento da equipe do Canal 100 daqueles que “realmente faziam cinema”, esse
entendido como forma superior de arte. Seu comentário exemplifica bem a forma com
que a equipe de Niemeyer chegou a ser tratada:

Uma vez eu estava comendo com o pessoal do Canal 100 no Bismarck - onde
eles almoçavam diariamente – e entrou um grande produtor de cinema e me
perguntou ao pé do ouvido: "Oswaldo, o que você está fazendo no meio dessa
gente, essa mesa não conta". Era o desprezo pelo pessoal dos cinejornais.
(CALDEIRA, 2005: 33)

As dificuldades de se fazer cinema no Brasil e as retaliações sofridas dentro da


própria comunidade cinematográfica, não impediram a sétima arte de ganhar cada vez
mais importância. Ela deixava de ser apenas uma distração, mero lazer, para se tornar um
negócio rentável que poderia aliar prazer e lucro. Assim, Carlos Niemeyer, contando com
amizades poderosas e o prestígio até mesmo de um parente próximo, Oscar Niemeyer,
arquiteto de Brasília, não teve dificuldades para conseguir um patrocínio do Estado, o que
viabilizou o Canal 100 durante toda sua existência.
Com o apoio estatal, não houve como o Canal 100 deixar de crescer. Beneficiando-
se dos recursos provenientes do Estado, já no governo JK, Niemeyer começou a fazer
reportagens sistemáticas do avanço do parque automobilístico e acompanhar a vida
presidencial. De qualquer forma, o interessante não é o fato de se conseguir patrocínio,
mas principalmente o fato de se manter um patrocínio por tanto tempo. A Caixa
Econômica Federal e o Banco do Brasil foram, de forma alternada, os investidores no
empreendimento cinejornalístico. Dentro dessa perspectiva, o Canal 100 pode ser visto,
como afirma Jean Claude Bernardet (BERNARDET, 1976: 26), mais um cavador a procurar
recursos.
O apoio estatal não foi à única fonte de recursos para as investidas
cinematográficas da produtora de Carlos Niemeyer. Muitos filmes de encomenda foram

136
realizados, o que colaborou em muito para viabilidade financeira da empresa. Aliás, a
produtora de Niemeyer foi criada a partir da compra do espolio da Líder Cine-jornal.2
A empresa se notabilizou por um caráter pluralista, sem posicionamento ideológico
claro. Não existia, dentro da produtora de Niemeyer, um ideal direitista ou esquerdista, o
posicionamento ideológico não era uma preocupação. O que prevalecia era o ideal de
acumulação de capital, ou seja, o mesmo ideal dos cavadores do início do século XX.
Assim, foi possível uma produção que atendesse grupos de tendências diferentes. Um
exemplo é a realização do documentário Os Sem Terra que abordava a questão da reforma
agrária, a pedido do governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, e acontecia, ao
mesmo tempo, em que eram produzidos filmes de conteúdo conservador como A Boa
Empresa, discurso favorável à boa imagem do patrão com claro interesse de ocultar os
3
conflitos nas relações de trabalho e Asas da Democracia, uma apologia a Força Aérea
Brasileira, ambos encomendados pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - IPES.
O IPES era uma organização de empresários do Rio de Janeiro e de São Paulo,
fundada em 1961, que desenvolveu intensa propaganda anticomunista através de cursos,
conferências públicas e artigos publicados em jornais. Apesar de ser uma instituição de
cunho civil, muitos militares faziam parte de seus quadros, a saber: Golbery do Couto e
Silva, João Baptista Leopoldo Figueiredo, João José Batista Tubino, Heitor Aquino Herrera,
Nelson Reynaldo de Carvalho. Os empresários de destaque eram Israel Klabin, Antônio
Gallotti, José Ermírio de Morais e Gilbert Hubert Jr, além de profissionais liberais, como
Mário Henrique Simonsen, Cândido Mendes, Jorge Oscar de Melo Flores e Paulo Assis
Ribeiro. (CORRÊA: 2005: 26).
O IPES nasceu tentando se distanciar do modelo clássico dos grupos
anticomunistas. A experiência do IBAD4, que acabou chamando muita atenção com a

2
Depoimento de Carlos Niemayer para Luiz Octávio Câmara de Mello Coimbra em dezembro de 1986. Ver:
COIMBRA, Octávio Câmara de Melo. Canal 100: Um cinejornal e a memória social.1988. 116 f. Dissertação
(Mestrado em Historia) – Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 73.
3
Essas observações são feitas a partir da leitura do roteiro dos filmes A Boa Empresa e Asas da Democracia
elaborada pela equipe do Canal 100.
4
O Instituto Brasileiro de ação Democrática – IBAD – foi fundado em maio de 1959 e passou a receber
contribuições de empresários brasileiros e estrangeiros, críticos do estilo populista de JK, tinham como
objetivo o combate ao comunismo no Brasil e participação no debate econômico, político e social do país. O
IBAD pretendia uma ação efetiva política: produziu e difundiu grande número de programas de rádio e de
televisão e matérias nos jornais, com conteúdo anticomunista. A organização foi, a partir de 1961, um agente

137
abertura de uma CPI para investigar suas atividades, fez com que o tom da nova
organização fosse outro: procurar desenvolver estratégias de convencimento utilizando
recursos e meios variados como a imprensa e até mesmo o cinema, mas sem manter
influência direta e pública na política. A organização fez dura oposição ao governo Goulart
e foi um dos grandes incentivadores do golpe militar de 1964.
Os filmes da produtora de Niemeyer para o IPES, produzidos entre 1962 e 1964,
tinham o intuito de cultuar os valores capitalistas, católicos e militares e contavam com a
direção de Carlos Niemeyer, além da tradicional narração de Cid Moreira que se tornaria
clássica nas edições do Canal 100.5
O futebol foi o tema preferido do Canal 100. Depois do noticiário, era esse assunto
que finalizava cada edição, trazendo imagens surpreendentes, diferentes daquelas
trazidas pelos outros periódicos cinematográficos e da televisão. O Maracanã lotado em
dia de Fla-Flu ou o último jogo da seleção brasileira eram de encher os olhos dos
espectadores. A última partida do técnico João Saldanha no comando da seleção brasileira
em 1970 exemplifica a importância do cinejornal. Em um Maracanã, quase no escuro, foi
possível salvar a partida e ver Pelé fazer um gol memorável, graças às lentes de Niemeyer.
O início dos anos 80 trouxe grandes mudanças, tanto para realidade política
brasileira quanto para os cinejornais, e o fim do governo militar coincide com o fim do
Canal 100. A experiência do jornalismo cinematográfico atingia um desgaste limite. Sem o
auxílio econômico das instituições governamentais não era mais possível manter um
cinejornal em um mundo dominado pela televisão.
Muitos anos se passaram desde a última exibição do Canal 100 em 1986. Carlos
Niemeyer morreu em 1999. O acervo do cinejornal se encontra na empresa Carlos
Niemeyer Produções que agora é comandada pelos seus familiares. O Canal 100 se
converteu em uma experiência histórica, forte na memória coletiva e representativa no
sentido de exaltar imagens do Brasil em três décadas.

de conciliação entre deputados golpistas e militares. Em 1963, passou por uma série de investigações com a
abertura de uma CPI e acabou sendo fechada pelo poder judiciário. CHIAVENATO, Júlio José, O Golpe de 64 e
a Ditadura Militar. São Paulo: Editora Moderna, 1994, p.32.
5
Uma referência à ligação das produções Carlos Niemeyer com o IPES pode ser visto no livro: DREIFUSS,
Rene. A conquista do Estado, Petrópolis, Editora Vozes, 1985. Ver também O discurso golpista nos
documentários de Jean Manzon para o IPES (1962/1963) / Marcos Corrêa. -- Campinas, SP: [s.n.], 2005.

138
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SAMPAIO, Walter. Jornalismo Audio Visual: Rádio, Tv e Cinema. Petrópolis:


Editora Vozes, 1971.

139
Escritos autobiográficos e escrita da história:
historiografia e relatos sobre o período militar
brasileiro*

Telma Dias Fernandes**

A despeito do receio de valorização da dimensão individual, as biografias não


perdem o efeito de encantamento sobre os historiadores. Os limites e os riscos nos são
bem conhecidos; nem por isso, a tarefa é menos instigante. Já muito longe dos embates
contra a influência positivista na história, sobremaneira refutada pelas mais diversas
correntes historiográficas, nós, historiadores, ainda tememos o debruçar sobre biografias
ou narrativas confessionais, memorialísticas.
Quaisquer que sejam os traços que individualizem os testemunhos e nos
possibilitem uma inscrição que pulverize a experiência humana podem significar o
abandono do território próprio do historiador. O nosso temor é um atávico e visceral: de
sermos banidos do reino da ciência e de não sermos mais socialmente necessários. Ainda
assim, os relatos de vidas, escritos ou não por quem as vive, atravessam as narrativas
historiográficas. Escritas confessionais parecem emprestar fidedignidade ao relato
historiográfico e torna nossos desconhecidos personagens figuras mais próximas de nós
mesmos.

Essas práticas de produção de si podem ser entendidas como englobando um


diversificado conjunto de ações, desde aquelas mais diretamente ligadas à
escrita de si propriamente dita – como é o caso das autobiografias e dos diários
-, até a da constituição de uma memória de si, realizada pelo recolhimento de

*
Este texto é parte dos resultados de uma pesquisa em fase de finalização que problematiza aspectos de
uma historicidade do período autoritário militar brasileiro (1964/1985), a partir do cruzamento entre história
e literatura. Neste texto, não abordo com profundidade questões teóricas e sim teço comentários acerca das
representações produzidas por Herbert Daniel, um dos autores enfocados na pesquisa.
** Doutora, Professora do Departamento de História na Universidade Federal da Paraíba, UFPB.

140
objetos materiais, com ou sem a intenção de resultar em coleções. [...] Em todos
esses exemplos do que se pode considerar atos biográficos, os indivíduos e os
grupos evidenciam a relevância de dotar o mundo que os rodeia de significados
especiais, relacionados com suas próprias vidas, que de forma alguma precisam
ter qualquer característica excepcional para serem dignas de ser lembradas.
(GOMES, 2004:11)

Esse temor não impede que a historiografia apresente vários exemplos, inclusive de
tendências historiográficas diversas, que tratam das biografias como fontes e como modos
de problematizar a história. A escolha pelas escritas de si em suas facetas plurais
aproximam os historiadores da literatura, das práticas com testemunhos orais e de uma
valorização das sensibilidades na história.
A partir, principalmente da década de 1970 do século XX, a historiografia ocidental
tem revelado facetas de uma dinâmica de resignificações que permeiam o ofício dos
historiadores. Não sendo possível negar as subjetivações presentes na história, não sendo
possível omitir do ofício de historiador a narrativa e o nexo próprio à arte da escrita, restou
a necessidade de pensar e reconfigurar o que faz e com que fazem – os historiadores – a
história.
Essas novas emergências epistemológicas possibilitam novas visibilidades para o
que antes era interditado aos historiadores. O sensível pode ser tão fundante para
pensarmos a historicidade quanto a produção e o governo ou a diplomacia. Podemos nos
ocupar das lágrimas, paixões, saberes e odores, amor, erotismo, corpo e biografias ou
autobiografias. Estas últimas estão, sobremaneira, inscritas nas tecituras das sensibilidades
e concorrem para a emergência dos sentidos que atribuímos à vivência.

Os registros de memórias dos indivíduos modernos são, de forma geral e por


definição, subjetivos, fragmentados e ordinários como suas vidas. Seu valor
como documento histórico, é identificado justamente nessas características, e
também em uma qualidade decorrente de uma nova concepção de verdade,
próprias às sociedades individualistas. Sociedades que separaram o espaço
público do privado, a vida laica da religiosa, mas que, em todos os casos,
afirmaram o triunfo do indivíduo como um sujeito voltado para si, para sua
razão e seus sentimentos. Uma sociedade em cuja cultura importa aos

141
indivíduos sobreviver na memória dos outros, pois a vida individual tem valor e
autonomia em relação ao todo. E dos indivíduos que nasce a organização social
e não o inverso. (Idem, p: 13)

Histórias de vidas ganham notoriedade em momentos de maior dramaticidade


social e ou individual. O período marcado pela experiência da ditadura civil-militar no
Brasil (1964-1985) tem suscitado muitos relatos de memórias, ficções confessionais, filmes,
documentários e textos de historiadores. Muitos desses relatos (ficcionais ou não)
remetem com muita intensidade para um exercício catártico. Alguém poderia questionar:
será que todos os escritos não compartilham dessa condição de operar catarses? É
possível, até mesmo para a narrativa dos historiadores, considerando o quanto do
indivíduo participa da produção do ofício. Entretanto, esses momentos limites da
experiência individual/social encontram, nesse exercício, a possibilidade de sobreviver à
dor e ao espanto e de denunciar o que se considera como socialmente inaceitável. “A
humilhação é uma experiência da impotência” (ANSART, 2005:15) e do sofrimento,
continua este autor. As experiências vivenciadas nos momentos de autoritarismo são
atravessadas por humilhações. Contar, recontar, (re)atribuir sentidos para reminiscências,
jogar com a memória são formas de continuar vivendo.
O período da história brasileira posterior ao golpe militar de 1964 e até alguns anos
pós-abertura política oficial conheceu momentos de profundas violências, violências e sob
diversos matizes: contra a liberdade cidadã e contra a liberdade física por meio de torturas
sobre os que eram aprisionados como subversivos. Uma violência que atingiu a muitos:
militantes e seus parentes, amigos e amores; não militantes alienados das atrocidades que
se perpetravam, mas que viviam numa relação de sociabilidade entranhada de
autoritarismo. Em Casulo das águas, uma dona de casa expressa o medo e a raiva:

Essa vida tá uma loucura, meu Deus! Esse medo dentro da gente, esse clima
pesado, esse ar de morte, cheirando à morte e sangue. O dinheiro não dá para
mais nada. Reclamar não se pode. É tanto medo enfiado dentro da boca da
gente, que a gente se borra só de pensar que está pensando que as coisas estão
uma merda [...] desconfiada, desconfiando de todo mundo, até da sombra [...], a
qualquer momento podem invadir a sua casa e matar seus filhos, ou você e seu

142
marido. [...]. E fica aquele silêncio morno e incômodo, compartilhado por todos
nós, nenhuma palavra [...]. (ALMEIDA, 1983:89)

A violência dos governos militares não se constituiu apenas na tortura física e nas
prisões; era também moral, ética e estética. Era uma experiência do perverso.

Alguns meses depois, Marcelo saiu de casa pela primeira vez. Fazia então um
ano que não vira o sol ou pessoas na rua. [...] Custou muito para conseguir sair e
sentir-se seguro. No início, tremia de pânico – e não era absolutamente medo
da polícia ou de ser reconhecido, apenas. A multidão era um monstro ruidoso e
devorador. (DANIEL, 1984:233-234).

O momento mais crucial dessa história de restrições parece pertencer mesmo ao


período pós 1968, com o AI5 e até a Abertura Política, que trouxe de volta muitos exilados,
mas não parece pertencer a um projeto social pertinente a um grupo dotado de uma
essência da maldade. A experiência de momentos autoritários aponta para uma
historicidade, uma cultura histórica que se constrói nas dobras de um sentido autoritário
de sociabilidade e isto está bem delineado na literatura de Herbert Daniel.
Essas histórias dos que viveram todos ou quase todos – seus anos de juventude sob
as tensões da ditadura militar suscitam o interesse do contemporâneo. As narrativas de si,
nas suas variadas facetas, foram recorrentes durante os anos logo posteriores ao
movimento de abertura que, paulatinamente, devolveu aos expurgados pelo sistema
ditatorial civil-militar, o direito a cidadania brasileira, mas que, por si só, não garantiu a
resignificação da experiência dos autoritarismos e exílios. Os relatos parecem dizer em
linhas e entrelinhas, em ditos e insinuados o quanto aquelas pessoas logravam
compreender as razões pelas quais se viram mobilizados pelas causas revolucionárias ou
se poderiam não ter militado, ter adormecido. Falar de si era como liberar um dispositivo
que permitisse a compreensão da experiência turbulenta. A possibilidade de construir
vidas depois de tantas mortes anunciadas, mesmo para os que se mantiveram vivos.

Se falar ou escrever sobre si é um dispositivo crucial da modernidade - como


postulado por Giddens, Calligaris, Tourraine, entre outros -, uma necessidade
cultural, o ato biográfico faria parte do processo de reconstrução de si e do

143
mundo, [...]. O sujeito inventaria maneiras de narrar a si para repovoar um
mundo abandonado pela voz da tradição e inaugura uma aventura pela qual o
sujeito moderno aprende a si dizer, criando as condições de sua existência.
(NÓBREGA, 2006:107)1

Neste artigo, teço considerações acerca de um relato entre os que fazem parte de
uma pesquisa mais ampla, que privilegia narrativas – em forma de ficção, ou em forma de
memórias, com traços autobiográficos –, sob o enfoque da relação desses autores com o
autoritarismo civil-militar. Busco problematizar aspectos da historicidade que cartografa
esse período. Trato de um romance de Herbert Daniel Meu corpo daria um romance.
Escritor de uma escrita de si, memorialística, ele se permitiu virar o estilo literário
pelo avesso. A sua é uma literatura rizomática, permitindo a produção de uma
reflexividade aberta.2 No início do livro Meu corpo daria um romance, como aviso
preliminar, afirma:

A armação do corpo do livro:

*reunir sombras e elipses onde se delineiam noções de corpo

- portanto de política.

*visitar um porão de encantos e ferimentos, mas um porão com direitos a


janelas para assombros, banalidades e novas linhas de fuga: para o horizonte.

*viajar sem temer escalas, em veículos que sejam frações impróprias. Estas não
correspondem aos capítulos, parcelamentos ou estações ... Marcadas por
fraturas, são eixos da espiral, ou correntes de muitos elos, que atravessam de
ponta a ponta a narrativa. Frações: memória, ficção e fragmentos. (DANIEL,
1984:10)

1
Esta citação faz parte da Tese de Doutorado de NÓBREGA, Elisa Mariana de Medeiros, quando esta trata de
uma emergência da modernidade no sentido da construção do sujeito moderno. Apropriei-me, entretanto,
do sentido de repovoar o mundo de sentidos, quando as referências perdem os nexos compreensivos. O que
me parece constituir grande parte das experiências dos militantes em movimentos de resistências que
permaneceram vivos e deram depoimentos sobre as suas experiências.
2
Quanto ao conceito de rizomático ver: DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e
esquizofrenia. Vol.1. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004.

144
Escreveu obras de ficção e libelos políticos. Militou no Partido dos Trabalhadores
(PT) e no Partido Verde (PV); também contra a discriminação das pessoas portadoras do
HIV. Quando militante contra o regime civil-militar, participou de vários grupos de
resistência armada e, muitas vezes, foi caçado pela repressão da qual conseguiu sempre
escapar. Nem ele sabe muito bem como

Cláudio e Daniel, por uma sorte fantástica, escaparam por pouco da prisão.
Todo o resto da família sofreu a repressão. E muito violentamente. Queriam a
todo custo saber de Daniel – e ninguém poderia dar nenhuma informação.
Aqueles familiares sofreram uma tortura desmesurada. E quanto mais provavam
no seu susto o desconhecimento, mais parecia aos torturadores estarem
blefando. (DANIEL, 1984:234)

Permaneceu no Brasil um tempo ainda como clandestino e deixou o país passando


pela Argentina, França, Portugal até voltar à França e ser oficialmente um exilado.
Desistiu das reuniões dos exilados de esquerda. Pra ele, o sectarismo e o
dogmatismo não mudaram com o exílio dos militantes de esquerda, e não se reconhecia
mais naquela espacialidade, que entendia agora como uma armadilha, uma seita. Outros
exílios o mobilizaram, sentia-se estrangeiro em si mesmo. Emudecera a linguagem afetiva
e o passaporte para um reencontro com seus afetos passou a constituir sua prioridade. Tal
decisão não implicou abandono das causas sociais: Daniel se fez engajado até sua morte
em decorrência do HIV.
Durante o período de resistência aos governos militares, para aqueles que se
envolviam com a luta armada, com a revolução proletária -, pensar os afetos, os papéis
culturalmente construídos para homens e mulheres era algo de somenos importância.
Antes das filigranas, como eram interpretados os afetos, (ou sentimentos pequeno-
burgueses) era preciso casa, comida, trabalho. E era mesmo preciso casa, comida e
trabalho. Também educação, saúde. Mas não sem lazer, mas sem abdicar do lúdico e da
libidinagem. A luta de classes não contemplava todas as relações autoritárias; essas
perpassavam a convivência familiar, o ambiente educacional, as relações amorosas. No
exílio, escrevendo sobre o seu envolvimento e dos seus “companheiros” de militância,
Daniel expressa essa angústia:

145
Quis extirpar o sexo antigo. Aos poucos, naquele ano, adotei um sexo futuro,
novo, que naquele instante se tornava pura abstinência. A última vez que trepei
com alguém deve ter sido em meados de 67. Abstinente, passei toda a
clandestinidade. Sete anos (Não posso deixar de escrever o prometido elogio à
punheta, senão dificilmente poderei fazer alguém compreender a minha
clandestinidade. Porque creio que se tivesse apagado meu sexo nunca teria
acreditado na militância. Um militante sem sexo é um totalitário perigoso. Um
punheteiro é apenas um confuso ingênuo e esperançoso) [...]. Com meu sexo
militante e transcendente bastaria, eu me afirmava, o gozo do corpo abstrato, o
corpo do guerrilheiro heróico em conjugação heróica com a utopia. Negava-me
aos esquisitos prazeres da terra e combatia fisicamente pela criação da Grande
Terra do Prazer. (DANIEL, 1984:164)

Negou todas as suas paixões por companheiros de militância, Ângelo, Renzo e até
mesmo por Cláudio que se tornou seu companheiro por duas décadas e até sua morte. Em
dado momento da vida de revolucionário, Daniel resolveu negar todo o sexo
compartilhado já que não seria aceito e não se aceitava fora da sexualidade hetero.
Parte significativa da juventude nos anos 1970/1980 tencionava a criação de
mundos plurais e com outros padrões de normatividade, inclusive no sentido de absorver
diversidades, perfis multifacetados. Sofriam, existencialmente, a ousadia de (re)criar
sentidos. Podiam aderir à militância política, mas se viam exprimidos pela normatividade
que lhes tolhiam os comportamentos sexuais dentro e fora dessa militância. E não só
sexuais, mas também uma normatividade dos cânones artísticos ou das prerrogativas
revolucionárias: arte clássica ou engajada. Mais que em outros momentos, o mundo da
segunda metade do século XX, pensando especialmente na experiência da sociabilidade
brasileira, vivenciou suas perspectivas predominantes atravessadas pelos maniqueísmos:
esquerda / direita; clássico / engajada; moral / imoral.
Em Meu corpo daria um romance, Herbert Daniel constrói diversos planos
narrativos que vão formando uma colcha de retalhos, um mosaico maleável apontando
para várias possibilidades de associações.

[...] Posso contar todo um romance de conflitos entre minhas vontades e meu
desejo, ou seja, um romance com uma tessitura política – que exclui, portanto,

146
uma trama regular e linear. Posso contar um romance que apresenta
capacidades em confronto com poderes, exercícios físicos, através das variações
do meu corpo. (DANIEL, 1984:277)

Desse relato, emergem suas lembranças de infância e adolescência: a relação


familiar e amorosa, a descoberta de uma sexualidade não normatizada socialmente, e que
conhece interdições nas mais diversas sociabilidades, inclusive na militância política. Esta
última parece significar para o próprio Daniel a chance de esconder-se do desejo. Como
militante ele projetava a aspiração de um mundo mais justo e se fazia injusto com o seu
desejo de amar.
As histórias desses corpos subjetivadas em um corpo plural não se constituem em
denúncia social direta, nem propõem respostas às interdições, venham essas interdições
dos sentimentos do autor ou dos nichos de sociabilidade pelos quais circulara. O livro foi
escrito no exílio, na França, e publicado depois do seu retorno ao Brasil. A sua narrativa
emerge como um olhar posto sobre sua própria memória entrelaçada com o seu presente.
Fala de tudo, de si e do outro. De outro livro de Daniel, o primeiro autobiográfico que
escreveu – Passagem para o próximo sonho – retirei sua autoapresentação:

Herbert, nome de pia e registro; Daniel, nome de guerra que pegou. Estudante
de Medicina na UFMG; 1,64m; crítico de cinema no rádio, Belô; dispensado do
exército (regular) por insuficiência física (miopia? pé-chato?); autor de teatro
estudantil; cabelos muito enrolados, olhos castanhos e semicerrados, chato
nariz; vice-presidente do DCE da UFMG; gordinho; militante sucessivamente da
Polop, Colina, Var-Palmares e VPR; clandestino durante seis anos, sem nunca ter
sido preso; homossexual, já não mais clandestino; assaltante de banco, puxador
de carro, planejador de sabotagem, guerrilheiro em Ribeira, seqüestrador de
embaixador (em número de dois), remanescente; leitor, sempre, sempre;
escritor de panfletos, aprendiz de ginasta; tímido não dançarino; jornalista em
Portugal, em revista feminina; em Lisboa, estudante de Medicina reincidente;
casado com homem, claro, homossexual; calça 39, usa 40; massagista, garçom,
caixa, leão-de-chácara, gerente, porteiro de saunas de pegação de viados, em
Paris, capitale de France, voilà; discurseiro, falador trilingüe inveterado,
pensante tanto quanto, com sotaque - não se nasce em Minas impunemente.
Descoberta de saber fazer quase nada de quase tudo: ocupação de vagabundo.

147
Penúltimo exilado em Paris: escapou da "anistia". Sem indulto (escapou por
insulto), foi prescrito: reparou em vida alheia. Escritor. (Disponível
em:<http://reocities.com/Athens/acropolis/7051/exilio1.html>. Acesso junho 2011).

Seu retorno ao Brasil foi custoso, não recebeu anistia, coube-lhe esperar a
prescrição de suas penas e mais um pouquinho pra atender a burocracia. Passagem de ida
ou de volta? “(Digo às vezes volta. Mas essa é um restolho da ilusão. Sempre se vai)”
(DANIEL, 1984:348). Passou por aeroportos: Paris, Genebra. Aeroporto do Rio:

Tremia cada vez mais, mas não queria chorar.

O rapaz do computador, quando a máquina apitou, bateu de novo os dados.


Novo apito. Ele me diz:

-Você estava lá fora NE?

-É ....

-Você saiu naquela época, na foi?

- Foi.

Um tempo. Ele me encarava ternamente. E declamou:

- Tempos duros aqueles heim?

Uma lágrima rolou nos olhos dele. Ele saiu apressado para ir buscar não sei
quem que poderia resolver rapidamente o meu caso. Aquela lágrima foi a
melhor recepção que já tive na vida. Não sei quem é aquele amigo. Mas é um
amigo que amo muito. (DANIEL, 1984:330)

As pertinentes argumentações de Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 1996) quanto à


“ilusão biográfica”, sobremaneira discutida e citada em várias obras historiografias, coloca
em pauta o risco de se perceber, nas histórias de vida, uma cronologia, um projeto
coerente.
A presença do imponderável, da não resposta, das alteridades é intensa nos
escritos ficcionais de Herbert Daniel, seja na construção narrativa seja nos sentidos de vida
atribuídos aos seus personagens. A literatura de Herbert Daniel já dimensiona um lugar da
multiplicidade e do relato de si como forma de interação com a memória.

148
Compartilho a perspectiva de cruzamento da história e literatura como uma prática
relacional entre duas construções de saberes, não a literatura como um documento
histórico no sentido de documento portador de um nicho de informações. Tanto quanto a
história, a literatura estabelece uma interface entre passado e presente e produz uma
compreensão das interpenetrações temporais/espaciais. Somos obreiros no âmbito das
simbologias e nestes ofícios atribuímos sentidos para as experiências.
A autobiografia, mesmo quando narrada através do recurso à arte literária, revela
uma tensão entre o presente e o passado do protagonista e o inscreve em temporalidades,
historicidades plurais. O personagem que diz de si mesmo o que deseja que de si fique
registrado também revela possibilidades das espacialidades nas quais vive/viveu. Esse
campo de tensão, a partir do qual os historiadores podem problematizar a relação entre o
passado e o presente não se deixa ver com nitidez de uma equação matemática. Se o
protagonista/narrador exprime aspectos das sociabilidades da qual fez/faz parte também
exprime o que os diferencia, singulariza. 3
Não temos um projeto fechado nas histórias de vidas, uma cronologia pré-
estabelecida; também não os temos na história. Escritos como os de Herbert Daniel
participam da prática de problematizar, historicamente, a experiência da ditadura militar
no Brasil e perceber as pluralidades nem sempre visíveis. São momentos de uma
reflexividade que permitem a emergência de alteridades e a desnaturalização dos eventos
ou do que deles se diz.

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3
Sobre a relação entre personagem/narrador e a historicidade que representa ver, entre outros, BOURDIEU,
P (2005); LEVI, G (1996); ALBUQUERQUE JÚNIOR (2007)

149
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151
VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. São Paulo: Círculo do livro,
1990.

152
Atuação do IHGB do Rio de Janeiro no cenário
cultural republicano: Ditadura civil-militar, 1969-
1972

Jessica Suzano Luzes*

Introdução

Este trabalho apresenta reflexões a respeito do Instituto Histórico e Geográfico do


Brasil (IHGB) do Rio de Janeiro na República, em especial no período da ditadura militar
(1969-1972). Para tal, analisaremos a atuação do IHGB a partir das discussões e
deliberações internas do Conselho Federal de Cultura, órgão responsável pelas políticas
oficiais de cultura da Ditadura Militar.

Transformações na produção científica do IHGB

Alguns pesquisadores1 têm se preocupado em contextualizar as atividades do


IHGB, apontando as transformações na estrutura interna do IHGB e na produção científica.
Com isso, buscam compreender as diferentes atuações na cultura brasileira conforme o
momento histórico.
Lilia Moritz Schwarcz (SCHWARCZ, 1989:5) entende o IHGB como um espaço de
saber característico do século XIX e alternativo perante outros estabelecimentos
contemporâneos “como os museus de história natural, as academias de direito e de
medicina, entre outros... ”

*
Jessica Suzano Luzes, Pós-graduada em Arte e Cultura pela Universidade Cândido Mendes, UCAM.
1
GOMES, Ângela Maria de Castro (2009), GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado (1988), SCHWARCZ, Lilia K. Moritz
(1988).

153
Com a concretização da Independência política, em 1822, desenvolvem-se
instituições responsáveis por auxiliar a organização do Estado Nacional Brasileiro, como a
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SIAN) e o Instituto Histórico e Geográfico do
Brasil (IHGB).
De acordo com Schwarcz (SCHWARCZ,1989:07), a SIAN, criada em 28 de fevereiro
de 1827, auxiliaria o Estado Nacional Brasileiro a realizar a “centralização do país e seu
desenvolvimento enquanto Nação”. Ainda dessa fonte é a informação de que, a partir das
reuniões dos membros do SIAN surgiu a idéia de uma “associação científica destinada a
coligir, metodizar, publicar ou arquivar documentos necessários à história e geografia do
Brasil”, o IHGB, cuja primeira sessão ordinária data em 1º de dezembro de 1838.
Manoel Salgado Guimarães (GUIMARÃES, 1988) afirmou que tanto o SAIN quanto o
IHGB desenvolveram projetos de natureza global, procurando viabilizar a integração das
diversas regiões do país.
Desta forma, ressaltou que o IHGB do Rio de Janeiro não se mantinha isolado, pois
pretendia manter vínculo com as instituições congêneres, quer nacionais, quer
internacionais; assim, construía um discurso não apenas de um estabelecimento carioca,
mas principalmente como representante oficial diante de outros discursos tidos como
parciais.
Schwarcz (SCHWARCZ, 1989:07) analisou a produção científica do IHGB, e destacou
que de 1838 até a primeira década da República, o instituto tinha os textos de geografia
como a sua segunda maior produção científica.
Estes documentos eram utilizados em conflitos diversos, litígios em andamento na
época, que envolviam demarcação de territórios. Como por exemplo, a disputa pela região
do Acre, que envolvia diversas nações estrangeiras, cuja contenda fora dada a favor do
Brasil, integrando tal território à Nação brasileira, causa esta defendida pelo barão do Rio
Branco, sócio efetivo do IHGB.
Desta maneira, constatamos que tal instituto, muita das vezes, produzia pesquisas
a favor de questões imperiais, sendo utilizadas até em conflitos exteriores. Logo, este
sempre fora financiado pelo Estado Imperial, conforme assinalou Guimarães:

Cinco anos após a sua fundação, as verbas do estado Imperial já representavam


75% do orçamento do IHGB, porcentagem que tendeu a se manter constante ao
longo do século XIX. Tendo em vista, para a realização de seus projetos

154
especiais, tais como viagens exploratórias, pesquisas e coletas de material em
arquivos estrangeiros, o IHGB se via obrigado a recorrer ao Estado com o pedido
de verbas extras, pode-se avaliar como decisiva a ajuda do estado para sua
existência material. (GUIMARÃES, 1988: 9)

Tal aproximação foi apontada por Ângela de Castro Gomes (GOMES, 2009) como
causa de problemas organizacionais e políticos do IHGB, no início da República, haja vista
o estreito vínculo com o regime monárquico e com o próprio Imperador Dom Pedro II.
É interessante destacar que o início da República2 é marcado pelo intenso debate
entre intelectuais em torno da imagem do novo regime, havendo disputas para alcançar o
imaginário popular, e recriá-lo dentro dos valores republicanos.
José Murilo de Carvalho (CARVALHO, 1990) afirmou que intelectuais dotados de
diferentes concepções de república buscavam expandir suas percepções para o mundo
extraelite, enfocando um público de baixo nível de educação formal. Para alcançá-los,
adotaram, ao invés de discursos requintados, sinais universais, de ‘leitura mais fácil, como
as imagens, as alegorias, os símbolos, os mitos’.
Esse autor acrescenta que o imaginário social é um dos elementos relevantes para a
legitimação de qualquer regime político, alcançando as ‘aspirações, medos e esperanças
de um povo’. Sendo assim, a manipulação deste é fundamental em momentos de
transformação política e social, nos quais se redefinem as identidades, objetivos, e se
reorganizam o passado, presente e futuro.
Neste novo regime político, segundo Gomes (GOMES, 2009), os sócios do IHGB
passaram a reformular a produção do conhecimento histórico. Ela revela ainda que, apesar
das dificuldades vivenciadas pela instituição, o IHGB era um local relevante para a época,
já que neste eram realizadas discussões sobre como deveria ser a história, e importantes
reflexões sobre possíveis projetos de futuro que buscavam a modernização do país.

2
Havia no Brasil pelo menos três correntes que disputavam a definição da natureza do novo regime: o
liberalismo à americana, o jacobinismo à francesa, e o positivismo. As três correntes combateram-se
intensamente nos anos iniciais da República, até a vitória da primeira delas, por volta da virada do século.
(Carvalho, 1990:9)

155
Diferenciou a produção histórica construída na monarquia, cujas discussões eram
direcionadas ao imperador, da República, na qual se assumiram outros compromissos,
conforme se verifica no trecho:

Exatamente por isso, como ocorreu em inúmeros casos de formação de Estados


nacionais ‘modernos’, o destinatário dos discursos científicos era outro, o que
ganhava especial força no caso da história do Brasil, por seu sabido e acreditado
valor pedagógico. Sem descurar da educação das elites governantes, que
tinham muito o que aprender com os ‘heróis’ e os grandes eventos da história
privada, o interlocutor privilegiado da narrativa era o próprio ‘povo brasileiro’, a
ser criado em um movimento simultâneo ao da construção de uma história, em
que ele era também um protagonista, além de destinatário.(GOMES, 1990: 13)

Neste segmento do texto, Gomes apresenta um aspecto inovador, o povo como


interlocutor privilegiado, contudo salientou que não houve uma ruptura total, pois os
sócios desejavam manter como característica central a relação entre o saber erudito
dahistória e seu ‘valor pedagógico, ou pragmático’ nos anos iniciais da República.
Esta relação era considerada pelos sócios da instituição, como a principal distinção
entre a história e as ciências sociais, já que aquela tinha como ‘missão’ fazer conhecer o
‘passado comum’ de uma nação e, desta forma, incentivar o amor à pátria de seus
cidadãos.
Desta maneira, tais intelectuais3 são considerados ‘profissionais’ responsáveis pela
produção de bens simbólicos, fundamentais à consolidação de regimes políticos
modernos, que se estruturam cada vez menos no uso da força.
Sendo assim, uma das tarefas do historiador é a produção de um ‘passado comum’
a uma determinada sociedade, elaborando referenciais que garantam a ‘origem’, e
‘continuidade’ no tempo, muita das vezes à revelia das mudanças que possam ter
efetivamente ocorrido.

3
Gomes (2009- 26) mencionou que a noção de intelectual não definida, na época, não tem caráter negativo
para a sociedade brasileira e para seus intelectuais, já que “mesmo na Europa do século XIX, onde há muito
existiam instituições como universidades, museus, arquivos, associações literárias e científicas, essa distinção
em andamento.”

156
Gomes (GOMES, 2009) constatou que nas três primeiras décadas do século XX, o
IHGB passou por um sistemático investimento político e intelectual que buscava reerguer
a instituição e reconduzir as discussões sobre a ‘produção da história e das memórias
nacionais’.

O investimento em políticas públicas de cultura no período da Ditadura


Militar (1964-1984)

A literatura4 tem mostrado que o investimento maior na área da cultura se encontra


nos períodos autoritários, em especial, na Era Vargas (1930-1945) e a Ditadura Militar
(1964-1984).
Em 30 de novembro de 1937, temos a criação da Secretaria de Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (SPHAN)5, agência federal de proteção ao patrimônio, período em que
a Educação e Cultura tornam-se responsabilidade do governo federal.
A história do SPHAN costuma ser definida em três fases. A primeira de 1937 a 1967.
Uma segunda seria de 1967 a 1979, gestão de Renato Soeiro, não muito lembrada pela
historiografia do patrimônio, é tida como continuista da fase anterior. A terceira fase, de
1979 a 1982, dirigida por Aloísio Magalhães é classificada como renovadora, onde novas
frentes são adotadas, como a valorização da cultura popular.
José Reginaldo Gonçalves (GONÇALVES, 1996) examinou os discursos políticos de
Rodrigo de Melo Franco de Andrade e do antigo Sphan (Secretaria de Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional), no período de 1937 até final da década de 1970, ressaltando o
empenho deste para a preservação da tradição brasileira, entendida como singular por ser
resultado da interação de índios, africanos e europeus. E a renovação ideológica e
institucional desta política, defendida por Aloísio Magalhães, que ao invés de valorizar a

4
Miceli (1984), Gomes (2000), Lippi (2008), Calabre (2009)
5
Atentamos a variada denominação referente a tal órgão. De 1946 a 1970 mudou para Diretoria do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN); no período seguinte, 1970 a 1979, recebeu o nome de
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); entre 1979 a 1990, tornou-se Secretaria
(SPHAN) que em 1990 foi extinta por decreto, e passou a funcionar como Instituto Brasileiro de Patrimônio
Cultural (IBPC) até 1994; deste ano em diante, voltou a ser Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN).

157
“tradição”6, o passado, enfatizava a forma como as populações locais lidavam com sua
realidade.7
Gonçalves alertou que desde o período imperial já havia discussões sobre a
identidade nacional, sendo que no século XIX enfocava-se a ideia de raça, mas no início do
século XX passou-se a valorizar questões culturais, buscando a ‘brasilidade’, ‘essência’, a
‘identidade’ da nação brasileira.
É interessante destacar, que nesta análise, as narrativas, algumas vezes, opostas
tratam-se de diferentes estratégias de atuação no cenário cultura, conforme se observa no
trecho:

“A partir da segundo metade dos anos setenta, a narrativa assumida por


Rodrigo e pelo antigo SPHAN veio a ser desafiada por Aloísio e seus seguidores,
que faziam uso de uma nova estratégia de narração da identidade nacional
brasileira e, consequentemente, assumiam uma concepção diversa do
patrimônio cultural. As posições assumidas nesse debate podem ser
interpretadas como efeitos de diferentes estratégias de autenticação da
identidade nacional.” (GONÇALVES, 1996: 37)

Ao investigarmos o período da ditadura militar (1964-1984) verificamos que esta


estimulou a construção institucional de uma política de cultura em finais de 1960 e início
de 1970, especialmente nas gestões dos ministros da educação e cultura Tarso Dutra,
Jarbas Passarinho e Ney Braga. (MICELI, 1984)
O Conselho Federal de Cultura (CFC) foi instituído pelo Decreto n° 74, de 21 de
novembro de 1966, cuja atribuição principal era a elaboração da política nacional de
cultura.

6
Como Rodrigo, Aloísio defende a formação brasileira em ameríndios, africanos e europeus. Contudo, os
ameríndios e os africanos não estão inseridos numa lógica de evolução universal em direção à civilização,
mas sim como formas de vida social e cultural atuais, diversificadas e em constante alteração.
7
Aloísio Magalhães não enfatizava apenas a “tradição”, remetendo ao passado, mas principalmente o
presente, chegando a substituir a noção de ‘patrimônio histórico e artístico’ de Rodrigo pela noção de ‘bens
culturais’ (Magalhães [1979] 1984:40-44)”.Os bens culturais referem-se à produção do cotidiano da
população, sendo necessária a aproximação dos profissionais que lidam com o patrimônio com as
populações locais, e desta forma o entendimento da forma como estes constroem a sua realidade.

158
Integravam tal Conselho, historiadores, literatos e antropólogos pertencentes,
principalmente, à Academia Brasileira de Letras e ao Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro.
A questão do patrimônio é enfatizada no decreto de criação do CFC, conforme se
verifica nos estudos de Lia Calabre (CALABRE, 2009) a respeito das atribuições do Conselho
em relação às organizações da área cultural:

[...] conceder auxílio às instituições culturais oficiais e particulares de utilidade


pública, tendo em vista a conservação e a guarda do seu patrimônio artístico e
biográfico e a execução de projetos específicos para a difusão da cultura
científica, literária e artística, [...] (Decreto-lei n°74, de 24 de novembro de 1966,
artigo 2º, alínea e)

Além disto, Calabre (CALABRE, 2009) menciona a existência de um artigo especial


para a Câmara do Patrimônio, que considerava não apenas o patrimônio edificado, sendo
também objetos de atenção acervos e documentos bibliográficos, como por exemplo, os
preservados pelos institutos históricos e geográficos espalhados pelo país.
O CFC estava dividido em quatro câmaras: artes, letras, ciências humanas,
patrimônio histórico e artístico nacional, sendo que também havia uma comissão de
legislação e normas exercendo o papel de uma quinta câmara. Inicialmente havia vinte e
quatro membros designados pelo presidente da república, distribuídos por tais câmaras.8
Calabre (CALABRE, 2006) afirma que, já na segunda metade do ano de 1972, o
órgão passava por dificuldades financeiras, fazendo com que inúmeros projetos não
fossem apoiados na íntegra, chegando a negar auxílio para a maioria destes. Mesmo com
problemas, o CFC teve um papel relevante, no que se refere à vida cultural do país, pois
ajudou na regularização e institucionalização da cultura brasileira, ocasionando em
mudanças significativas nos programas e políticas culturais.

8
Cada uma delas recebia solicitações diversas como: pedidos de auxílio, reconhecimento, apoio, estudos,
etc. Essas eram distribuídas, sendo analisadas pelas respectivas áreas. Após uma avaliação inicial, emitiam-se
pareceres para serem votados em reunião plenária.

159
No mapa demonstrativo dos convênios celebrados entre CFC e o IHGB, no período
de 1969 a 1970, encontramos um total de 11 convênios, sendo que sete eram para a
manutenção e custeio do Instituto.

Fonte: Mapa demonstrativo dos convênios celebrados pelo Conselho Federal


de Cultura no período de 1969-1972. Conselho Federal de Cultura - Ministério
da Educação e Cultura

A investigação minuciosa dos convênios9e dos pareceres publicados nos


periódicos10permite a análise dos intelectuais envolvidos e de seus argumentos. Como
exemplo, podemos mencionar o convênio de 196911, cuja finalidade era o aumento de
subsídio ao IHGB do Rio de Janeiro, sob a alegação de que tal estabelecimento se
encontrava em crise.

9
Os processos, ofícios expedidos e recebidos, correspondências expedidas e recebidas, memorandos,
pareceres, telegramas, portarias e convênios estão arquivados no Palácio Capanema, sendo higienizados,
avaliados, identificados, descritos, organizados e acondicionados pela equipe, da qual eu fiz parte, orientada
pela historiadora Lia Calabre, Chefe do Setor de Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa.
10
O CFC editou mensalmente a revista Cultura, entre 1967-1970, este divulgava as diretrizes do MEC e os
artigos dos membros do Conselho, e em 1971, este periódico fora nomeado de Boletim do Conselho Federal
de Cultura.
11
Foram encontrados o convênio e a prestação de contas no Palácio Gustavo Capanema e o parecer na
Revista Cultura, do Conselho Federal de Cultura (CFC) - Ministério da Cultura e da Educação (MEC) no ano 3,
1969 – Mês de Agosto. Número 547 - Processo n° 853/69 - Auxílio.

160
No processo, Américo Jacobina Lacombe12, presidente do IHGB, mencionou
documentos históricos no seu apelo, como o Almanaque Laemmert13. Conforme se
constata no trecho:

[...] à guisa de justificativa do interêsse que o Conselho deve dispensar ao caso,


dois documentos significativos, um, fotocópia de página do Almanaque
Laemmert para 1868, em que o Instituto figura entre as entidades
subvencionadas pelo poder Público, com 7 contos de réis, entre a Biblioteca
Nacional e a Academia de Medicina, e outros trecho do Relatório do Ministro do
Império em 1855, em que as suas atividades se capitulam entre as dos órgãos da
administração nacional; porque, em verdade, sempre teve o seu relevo de uma
instituição diretamente amparada pelo Estado. (Processo n° 853/69 – Auxílio)

Neste trecho, o IHGB buscou rememorar o seu lugar historicamente junto ao


Estado, ressalvando estar entre os estabelecimentos resguardados aos cuidados do Estado
deste desde o Brasil Império. A Câmara do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(CPHAN) aprovou tal pedido, sendo este relatado por Hélio Vianna, conselheiro, que, no
parecer final, o CFC defendeu a ampliação do subsídio ao IHGB alegando a “importância
considerada indispensável para a subsistência, durante o ano, de tão benemérito
estabelecimento, ligado através de 130 anos de trabalho à vida cívica e cultural da
Nação.”14

12
Américo Jacobina Lacombe fora convidado pelo Ministro Gustavo Capanema a ser diretor da Casa de Rui
Barbosa em 1939. Esta fora inaugurada em 1930, sendo na sua origem era apenas um museu, destinado a
guardar a memória do ilustre brasileiro que ali viveu de 1895 a 1923. Ficou na direção até 1967, quando se dá
a transformação desse órgão do antigo Ministério da Educação e Cultura em Fundação A partir de então,
tornou-se presidente desta Fundação até 1993. Como presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa,
transformou o museu, destinado a preservar a antiga residência, os móveis, a biblioteca e o arquivo do
grande brasileiro, posteriormente tornou-se centro de pesquisas e editora.
13
Almanaque administrativo, mercantil e industrial da Corte e da Província do Rio de Janeiro (1848-1889)
Este era uma revista de notabilidades profissionais, comerciais e industriais e continha a relação dos nomes
de fazendeiros, comerciantes, negociantes, vereadores e membros da guarda nacional. Citações e
referências a documentos eletrônicos. Online: disponível na Internet via: www.crl.edu/content;pindex.htm.
14
Revista Cultura, do Conselho Federal de Cultura (CFC) - Ministério da Cultura e da Educação (MEC) no ano
3, 1969 – Mês de Agosto.

161
Em 1969, a Câmara do Patrimônio Histórico e Artístico era formada por Pedro
Calmon (presidente), Afonso Arinos de Melo Franco, Augusto Meyer, Hélio Vianna, Dom
Marcos Barbosa e Renato Soeiro.
Destes seis conselheiros, três ocupavam duas funções no CFC, ou seja, pertenciam
tanto a Câmara do Patrimônio Histórico e Artístico a Comissão de Legislação e Normas,
sendo que dois eram sócios do IHGB: Afonso Arinos de Melo Franco e Pedro Calmon.15
Maria Madalena Diegues Quintella (MICELI, 1984:115) desenvolveu um estudo
sobre as elites culturais no Brasil. Em sua pesquisa, Quintella optou por instituições que
atuavam em diferentes campos do saber, e que possuíam períodos de vida diferentes no
panorama cultural, como o IHGB e o CFC. Nesta investigação, a autora procurou
compreender a correlação entre o tipo de instituição e as metas culturais a que elas se
propunham.
Para ela, as instituições relativamente antigas, como IHGB, tendiam a uma
autoculturação – voltam-se para si mesmas, girando esta introspecção em torno de seus
membros.
Desta forma, o IHGB “reverencia o passado para legitimar sua posição no universo
cultural” (idem, ibidem, 133), e uma das formas de garantir este prestígio era salvaguardar
fontes inacessíveis, protegendo assim documentos que continham informações sobre o
passado da Nação.
Desta forma, o IHGB vive de sua memória e para a preservação de seu patrimônio
cultural. Enquanto as mais recentes, como o CFC, demonstram maior exteriorização e,
sobretudo, se dedicam a “conciliar seus objetivos com os objetivos públicos”. (idem,
ibidem, 116)

Considerações finais

Neste estudo pretendemos mostrar os contextos de maior investimento em


politicas culturais: ditadura Vargas (1930-1945) e a ditadura militar (1964-1984). Segundo
Gonçalves (1996), nestes momentos temos a elaboração de diferentes concepçõesde

15
Idem.

162
patrimônio, havendo preocupações e atividades específicas, implicando assim em
diferentes formas de atuação das instituições.
Ao enfatizarmos o período da ditadura militar em finas da década de 1960 e início
da década de 1970, verificamos que oórgão responsável pelas políticas públicas de cultura
da ditadura militar, o CFC,considerava os documentos do IHGB enquanto patrimônio a ser
resguardado pelo Estado.
Desta forma, o IHGB recorria ao CFCbuscando diversos tipos de auxílio, sendo que
no período de 1969 a 1972, encontramos, em sua maioria, pedidos referentes ao custeio e
manutenção da Instituição.

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163
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SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. Os Guardiões da Nossa História Oficial - os Institutos


Históricos e geográficos brasileiros. São Paulo: IDESP, 1989.

164
Historiografia dos intelectuais no Brasil
Contemporâneo

Ana Marília Carneiro*

As últimas décadas do século XX foram palco de novas abordagens na história dos


intelectuais, notadamente na historiografia francesa. Esse novo fôlego de renovação da
história dos intelectuais se situa no movimento de renovação da história política e da
chamada Nova História Cultural. Nessa configuração, o estudo dos intelectuais se deu a
partir de novas contribuições e desafios teóricos metodológicos, como a noção de
sociabilidade e geração, as questões postas pela história do tempo presente, as novas
reflexões acerca das relações dos intelectuais com o Estado e o papel das “elites culturais”.
O objetivo é perceber, através de um panorama historiográfico, de que maneira a
produção brasileira dialogou com essa literatura produzida sobre os intelectuais,
sobretudo no domínio da política, delineando que tipo de abordagens e perspectivas
foram manipuladas com o propósito de examinar as especificidades da intelectualidade
brasileira.
A própria noção de intelectual é tributária da tradição francesa e gestada em uma
configuração espacial e temporal específica. Vale lembrar que estamos tratando da
concepção de intelectual moderno, que começa a se configurar na segunda metade do
século XIX, tendo como um dos seus pressupostos fundamentais a conformação de um
espaço público e da imprensa. Naturalmente, as diversas conjunturas históricas ao longo
do século XX conformaram gerações intelectuais distintas; no entanto, procura-se aqui
primeiramente delinear a noção de intelectual a partir de alguns aspectos invariantes.
A referência clássica nos estudos sobre intelectuais remete ao caso Dreyfus, famoso
episódio ocorrido em fins do século XIX envolvendo Alfred Dreyfus, judeu, capitão do

*
Ana Marília Carneiro, especialização em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas
Gerais, UFMG.

165
exército francês acusado injustamente por crime de espionagem política. As contradições
que envolveram seu julgamento provocaram grande polêmica na sociedade francesa,
polarizando a opinião pública. Um marco importante desses debates é a publicação de
uma petição que viria a se tornar um manifesto intelectual: J´accuse, do escritor Émile
Zola, onde os assinantes demandavam a revisão do processo de Dreyfus em nome da
justiça. Aqueles que defendiam Dreyfus ficaram conhecidos como dreyfusards (esquerda
progressista), e foram designados pejorativamente pelos antidreyfusards (direita
conservadora) como intelectuais.
A descrição desse caso é importante na medida em que traz à tona aspectos
importantes na definição de intelectual. O primeiro deles é a questão da existência de uma
esfera pública: o termo intelectual é vinculado à ideia de intervenção no espaço público.
Se as primeiras décadas do século XX constituíram-se em um importante marco pra
conformação de uma espécie de intelectual francês, as décadas de 1950 e 1960 também
representam a gestação de outro tipo de intelectual, que se pode chamar de político-
revolucionário. Pode-se dizer que Jean-Paul Sartre se tornou um símbolo por excelência
desse modelo de intelectual engajado. Apesar dos contextos distintos e processos
particulares de cada região, a intelectualidade francesa e brasileira desse período partilhou
de muitos referenciais comuns.
Proponho uma reflexão sobre a intelectualidade brasileira da década de 1960 e
1970, mais precisamente, de uma cultura revolucionária partilhada em grande medida
pelos meios intelectuais de esquerda. Nessa análise, pretendo perceber de que maneira a
historiografia brasileira consegue dialogar com a literatura, principalmente francesa,
produzida sobre os intelectuais. Nesse sentido, os intelectuais brasileiros e sua proposta
revolucionária através do teatro, literatura, artes plásticas, cinema, música, estavam
articulados em um movimento contestatório mais amplo, cujo marco simbólico foi
justamente o maio de 1968 na França.
Os historiadores Jean-François Sirinelli e Pascal Ory (SIRINELLI; ORY, 2002: 218-224),
para assinalar a amplitude e a intensidade tomada pelo movimento, percebe no Maio de
1968 a formação de uma “internacional das referências”. Os movimentos, dos quais o maio
francês se tornou a expressão mais difundida, ocorriam em diversas partes do globo e se
interligavam de múltiplas formas. Atitudes, experiências e visões de mundo que
assumiram formas diversas, propostas distintas e alcances variados, encampadas,

166
basicamente por setores diversos da juventude de esquerda. Maio de 1968 configura-se
em um momento emblemático aonde se cruzam mais do que referências culturais; de
forma mais ampla, conforma-se uma nova maneira de ver e agir sobre o mundo, a recusa
das hierarquias, da autoridade, de poderes instituídos. Tratar de 1968 implica em não se
aprisionar a um limite cronológico preciso, mas simboliza a compreensão de um espírito
de época de âmbito mundial; partindo dessa concepção de balizas móveis, podemos
pensar também o contexto da guerra do Vietnã, a Revolução Cubana de 1959, a Primavera
de Praga, o movimento hippie e pacifista nos EUA. Naturalmente, não podemos afirmar
que esse horizonte de expectativas conformado por 1968 foi hegemônico; ocorreram,
simultaneamente, outras propostas e visões de mundo que não exprimiram esse viés
contestador – podemos citar aqui a produção da bossa nova e da jovem guarda, em que
parte significativa dos seus integrantes não assumiram um tom politizado.
O Brasil da década de 1960 vivenciou essa atmosfera revolucionária através do
sentimento de possibilidade de mudanças profundas na sociedade brasileira, apostando
em uma modernidade alternativa àquela proposta pelo capitalismo norte-americano ou
pela modernização conservadora impelida pela ditadura civil militar instaurada no país.
Alguns artistas-intelectuais, em geral militantes ou simpatizantes da esquerda, foram os
porta-vozes dessa possibilidade de transformação. A arte revolucionária passou a ser
produzida como instrumento privilegiado para agir no espaço público e na política, como
meio de se atingir a revolução social. Em particular, os escritores, dramaturgos, cineastas e
demais artistas ligados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) tinham como objetivo a
popularização da arte, procurando expressar os supostos interesses do povo. Na esquerda
mais radicalizada, essa proposta carregava consigo a concepção de uma vanguarda que
teria como tarefa a conscientização do povo para a emancipação.
Ao longo da sua obra, o sociólogo e historiador Marcelo Ridenti (RIDENTI, 1993;
2000; 2010), inspirado na formulação teórica de Raymond Williams, se vale do conceito de
“estruturas de sentimentos” para pensar, especialmente referindo-se às artes, o
surgimento de um imaginário crítico – a brasilidade revolucionária – nos meios artísticos e
intelectuais brasileiros nas décadas de 1950 e 1960 e depois sua transformação e
(re)inserção institucional a partir de 1970 (década que assiste ao declínio dessa expressão
político-ideológico-identitária). Pode-se dizer que a brasilidade revolucionária seria uma
forma peculiar de articular uma identidade nacional brasileira com um projeto de

167
revolução socialista ou nacional-democrático cuja ocorrência foi notada por Marcelo
Ridenti em amplos setores da esquerda. Uma visão de mundo gestada antes da resistência
à ditadura, tendo um período de incubação entre 1946 e 1964, quando diversos artistas e
intelectuais brasileiros estavam à frente de uma proposta revolucionária para o Brasil. Em
particular, os membros do PCB foram agentes expressivos na construção da brasilidade
revolucionária. De acordo com Ridenti, somente na década de 1960,

paradoxalmente junto com o desenvolvimento da indústria cultural e com o


crescimento das possibilidades de institucionalização profissional nos meios
intelectualizados – a brasilidade revolucionária chegaria ao apogeu como
construção de artistas e intelectuais, consolidando-se como estrutura de
sentimento. (RIDENTI, 2010: 12)

Algumas das manifestações na década de 1960 mais expressivas do meio artístico e


intelectual que carregavam um teor contestatório seriam as obras clássicas produzidas no
início do Cinema Novo: Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos; Deus e o Diabo na Terra
do Sol, de Glauber Rocha; Os Fuzis, de Ruy Guerra; a dramaturgia produzida pelo Teatro
Oficina e pelo Teatro de Arena (autores como Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho,
Gianfrancesco Guarnieri e peças e espetáculos como Arena conta Zumbi, Arena conta
Tiradentes e o show Opinião) e também a obra de Dias Gomes; na música, a canção
engajada de Edu Lobo, Geraldo Vandré e depois – em claro desacordo em algumas
questões mais ortodoxas, embora partilhando uma espécie de substrato subversivo –, os
tropicalistas e os mutantes; na literatura. Todas essas produções, à sua maneira, imbuídas
se um sentimento de nostalgia e de mal-estar com o presente procurava no passado uma
raiz popular para construir uma nova nação, muitas delas idealizavam o homem do povo,
sobretudo do campo, como símbolo da revolução brasileira. Os temas recorrentes eram a
denúncia da exploração e da pobreza, sobretudo no campo, a condição de vida subumana
dos camponeses; a reforma agrária, a conclamação do povo brasileiro a lutar em uma
revolução, ao lado dos povos oprimidos do Terceiro Mundo e da América Latina.
Esses anseios tinham como pano de fundo mudanças que estavam em curso na
sociedade brasileira. O Brasil foi o palco de um acelerado processo de urbanização entre os
anos de 1950 e 1970, quando a maioria da população, antes difusa na zona rural, se

168
concentra nas cidades. Em 1964, com a derrubada de Goulart pelo golpe civil-militar, se
instaurava um dos períodos mais repressivos da história brasileira; as manifestações
depois de 1968 no Brasil (ano em que a ditadura recrudescia a repressão, com a
instauração do AI-5) passaram a ser pautadas pelo combate contra a ditadura. Foi em 1968
que ocorreu a passeata dos cem mil, quando estudantes, professores, intelectuais
tomaram as ruas para protestar contra a ditadura. Também em 1968, fortaleciam-se as
demandas do movimento estudantil, pelo ensino público e gratuito e por amplo acesso ao
ensino superior. Essa proposta contestatória estava ligada a mudanças comuns que
ocorriam no cenário internacional, que incluíam a luta pelo acesso ao ensino superior por
uma camada mais ampla da população, mas também o surgimento da televisão e a
incorporação de eletrodomésticos na vida cotidiana, o aumento das camadas médias, a
urbanização, a liberação sexual.
Algumas considerações interessantes podem ser extraídas da leitura de Ridenti.
Primeiramente, o autor chama atenção para a aproximação de afinidades entre os artistas
e a política na América Latina: “no campo literário, houve um processo de conversão dos
escritores em intelectuais, no sentido de se tornarem homens públicos. Eles se valiam de
revistas político-culturais para difundir suas ideias para um público amplo” (RIDENTI, 2010:
97). No Brasil aconteceu algo semelhante, não só no campo literário. Em diversas áreas os
artistas passaram a ter um estatuto de intelectual, como Caetano Veloso e Chico Buarque.
A Revista Civilização Brasileira, de grande tiragem, principalmente depois do golpe de
1964, passou a publicar debates de escritores, cineastas, dramaturgos e outros artistas.
Ao trazer a noção de intervenção no espaço público para pensar a concepção do
artista-intelectual, Ridenti traz a tona um dos elementos fundamentais da configuração do
intelectual moderno.
Nesse sentido, de acordo com Sirinelli (SIRINELLI, 1998: 261), sob o signo de
homens de cultura, estão reunidos os criadores culturais (os que participam da criação
artístico-literária) e os mediadores culturais (aqueles que difundem os conhecimentos
dessa criação). Essas elites culturais se definiriam principalmente pelo reconhecimento
(pelos pares e pela sociedade) e pela sua capacidade de ressonância e de amplificação, ou
seja, pelo seu poder de influência. Naturalmente, nem todo mediador cultural é um
intelectual. Importa, além de se tratar de uma elite cultural, pensarmos a principal função
social a ser desempenhada pelo intelectual: a intervenção no espaço público.

169
A noção de engajamento articulada à noção de elites culturais fica mais clara na
definição de intelectual proposta por Sirinelli: a primeira definição de intelectual, mais
ampla, de natureza sociocultural, abrange mediadores e criadores culturais, articulados em
torno da produção, difusão e recepção da cultura. Nessa categoria estão o jornalista, o
escritor, o professor secundário, enfim, todos aqueles que produzem e divulgam
conhecimento. A segunda definição, mais estreita, de natureza política, é baseada na
noção de engajamento do intelectual na vida da cidade. As duas definições parecem ser
complementares; Sirinelli afirma que a acepção política não é autônoma da sociocultural,
uma vez que as duas englobam tanto a notoriedade e a especialização, atribuições sociais
que o intelectual põe a serviço de uma causa. Nesse sentido, “o debate entre as duas
definições é em grande medida um falso problema, e o historiador do político deve partir
da definição ampla, sob a condição de, em determinados momentos, fechar a lente, no
sentido fotográfico do termo” (SIRINELLI, 1996: 246). Vale ressaltar que a aproximação
entre intelectuais da década de 1960 e as culturas políticas de esquerda se constitui uma
relação contingente de uma configuração específica, e não essencial. Embora a concepção
de intelectual moderno, tributária da tradição francesa, esteja associada à esquerda
progressista francesa envolvida no caso Dreyfus (os dreyfusards), a natureza do
engajamento e perspectiva de intervenção na sociedade, seja conservadora, reformista ou
revolucionária, não qualifica a condição de intelectual.
Ao comentar o engajamento de artistas-intelectuais através da veiculação das suas
ideias em uma revista, Ridenti remete a um conceito caro à história dos intelectuais: as
estruturas de sociabilidade, expressão desenvolvida por Sirinelli. As estruturas de
sociabilidade seriam as redes aos quais os intelectuais aderem, como uma revista, um
conselho editorial, os partidos políticos, manifestos, abaixo-assinados, bares, cafés, saraus,
cine-clubes, etc. Esses lugares, naturalmente, variam de acordo com cada época e o grupo
de intelectuais específico. O estudo de uma revista, por exemplo, poderia ser abordado a
partir de duas dimensões: além de permitir um estudo do espaço de sociabilidade e das
relações afetivas, servem como lugar para análise do movimento das ideias que se
propagam em determinada época. Na década de 1960, embora tenha já perdido muito da
sua influência de anos anteriores, o PCB pode ser tratado como um lugar de sociabilidade
de muitos artistas-intelectuais. Na mesma época, a Editora Civilização Brasileira e seus

170
periódicos conseguiram formar um espaço de discussão acessível aos intelectuais de
esquerda.
Ao tratar os artistas-intelectuais da década de 1960, embora não empregue o
termo, Marcelo Ridenti empreende um estudo que poderia ser pensado a partir do
conceito de geração, elaborado por Sirinelli. Para o autor, a brasilidade revolucionária
compartilhada por artistas e intelectuais na década de 1960 não surgiu do nada, tem raízes
na década de 1920, foi tributária de experiências anteriores, herdeira de lutas sociais
diversas que envolveram anarquistas, comunistas, positivistas, tenentistas e outras
inspirações intelectuais e políticas, e teve o seu amadurecimento no final dos anos 1950. A
ideia de geração permite trabalhar justamente com a ideia da incubação, gestação.
Aprofunda a noção de processo, dando-lhe sentido em um conjunto específico de atores
sociais que correspondem a um mesmo parâmetro de idade, partilham experiências e
pode ser “compreendida no sentido de estrato demográfico, unido por um acontecimento
fundador que por isso mesmo adquiriu uma existência autônoma” (SIRINELLI, 1996: 255).
O conceito de geração, para além da proposta de Sirinelli, articulada em redes locais,
permite pensar os intelectuais em 1960 no Brasil em diálogo com outros intelectuais fora
do país. Havia um trânsito, não só de pessoas (Glauber Rocha morou em Havana, Jorge
Amado passou um longo período na União soviética, Caetano Veloso morou em Londres,
etc), mas de ideias que não ficavam encerradas no interior das fronteiras nacionais. A
geração de 1960 no Brasil estava em sintonia com os intelectuais de outros países que se
preocupavam com questões semelhantes, como intelectuais europeus de esquerda, como
os filósofos Jean Paul Sartre, Louis Althusser, Michel Foucault e Hebert Marcuse ou o
cineasta comunista Pier Paolo Pasolini.
Na historiografia brasileira que trata sobre os intelectuais nesse período, percebe-
se o estabelecimento de um relativo consenso em relação ao declínio, a partir de 1970,
dessa geração de artistas-intelectuais brasileiros que estiveram, nos anos 1960, marcados
pela arte engajada. A partir da década 1970, aos poucos o sentimento revolucionário que
animava o cenário artístico intelectual foi perdendo força, começou a se conformar a um
novo ambiente. Os motivos dessa mudança – ou crise, para alguns – são de diversas
ordens, mas, de modo geral, seriam relativos à modernização conservadora promovida
pelo regime militar, à inserção do bem cultural em uma sociedade capitalista e
mercantilizada, à cooptação/institucionalização do intelectual de esquerda.

171
Esse sentimento de crise foi uma questão posta também na França. Sirinelli
questiona a ideia de crise dos intelectuais franceses de esquerda, mas assinala uma
mudança ou mutação. De acordo com o historiador, a partir da década de 1970, as
grandes ideologias que alimentaram o debate francês conheceram um refluxo,
desencadeando uma crise política, intelectual e cultural, conduzindo a uma
reconfiguração ideológica e identitária de um modelo que havia sido dominante por
muitos anos entre o meio intelectual de esquerda. Alguns dos sintomas dessa crise
envolviam o recuo do marxismo, o desgaste dos modelos revolucionários de Cuba e China,
a reavaliação do fenômeno totalitarista, ao poder de influência crescente da mídia na vida
social. Para Sirinelli, a essa “depressão ideológica dos intelectuais de esquerda – até então
dominantes na França, veio somar-se ao longo dos anos 1980, a uma crise identitária ainda
maior, porque dizia respeito à categoria como um todo” (SIRINELLI, 2009: 50).
Pode-se perceber que alguns sintomas apontados por Sirinelli também estiveram
presentes na recomposição da paisagem intelectual brasileira. Um dos mais próximos é a
questão do aparecimento da indústria cultural e da mercantilização da arte. Sirinelli afirma
que durante muito tempo a era do impresso, suporte privilegiado de expressão do
intelectual da linha dreyfusardiana do início do século XX e do intelectual revolucionário,
passa por uma mudança em fins do século XX, e agora tem concorrer com a dimensão da
mídia. Ocorre uma mudança em larga escala dos meios de difusão e mediação cultural. A
leitura de Yves Zarka (2010) para esse fenômeno é a do mundo tomado por predadores-
midiáticos, do descrédito do discurso intelectual, as obras culturais são reduzidas a mero
entretenimento e a espetacularização pasteurizada da cultura bombardeia os cidadãos
(tornados consumidores) inertes através da tela da televisão. No entanto, a leitura de
Sirinelli não retira da imprensa, rádio, televisão, ou da internet a possibilidade de se
constituírem como potenciais veículos de contestação e espaço de engajamento
intelectual.
Passemos mais detidamente para as interpretações desse fenômeno na sociedade
brasileira.
Marcos Napolitano problematiza a tese que aponta o estabelecimento da
hegemonia da indústria cultural sobre a cultura engajada devido a essa perplexidade
paralisante que toma conta dos intelectuais de esquerda no pós-golpe e ao isolamento do
artista-intelectual do resto da sociedade. A produção e inserção do artista-intelectual de

172
esquerda, cada vez mais vinculado a formas mercantilizadas não seria resultado somente
da mudança que sofreram os espaços em que tradicionalmente transitavam esses
intelectuais, como círculos literários, universidades, instituições da burocracia oficial;
muito menos de uma “cooptação” pelas classes dominantes e pelas empresas. Esse
processo seria mais complexo, e envolveria a crise político-ideológica do intelectual acerca
da sua função na sociedade e, ao mesmo tempo, o aumento da demanda de profissionais,
artistas e técnicos por parte da indústria cultural.
Em relação à noção de cooptação dos intelectuais no âmbito da indústria cultural,
para Marcos Napolitano “não houve cooptação, como processo estrutural e massivo, em
função de um isolamento do artista intelectual. A ida ao mercado parece ter sido parte de
uma estratégia, nem sempre de consequências satisfatórias do ponto de vista político, por
parte do artista de esquerda” (NAPOLITANO, 2004: 315). Essa é a mesma linha de
argumentação partilhada por Marcelo Ridenti, que, ao analisar a relação dos artistas-
intelectuais com o PCB, descarta a noção de cooptação dos intelectuais pelo partido como
instrumentos para fins políticos e empreende uma análise mais complexa dessa dinâmica.
Por um lado, muitos intelectuais aderiam ao partido porque acreditavam que esse era um
caminho viável para contestar a ordem estabelecida. Por outro, a questão da cooptação,
via de mão única, cai por terra quando se pensa que a adesão ao partido muitas vezes
beneficiava o artista-intelectual, que emprestava o seu prestígio ao partido e se favorecia
com as redes de contatos internacionais, com as possibilidades de divulgação da sua obra
em países comunistas. Esse foi o caso de Jorge Amado, que ao mesmo tempo em que –
como filiado ao PCB – emprestava seu nome ao partido, teve sua obra divulgada em
diversos países de orientação comunista; no fim de 1940, com a proibição do PCB, através
do partido conseguiu exílio e viajou por vários países europeus, beneficiando-se das
relações estabelecidas com outros intelectuais.
Em meados dos anos 1970, com a indústria cultural desenvolvendo-se a passos
largos, começava a se delinear a possibilidade da institucionalização e inserção de muitos
artistas-intelectuais revolucionários da geração de 1960 em diversas áreas. Em grande
medida essa indústria cultural – muitas vezes com apoio estatal – estava disposta a
comercializar os produtos culturais de oposição à ditadura, a exemplo do grande sucesso
dos festivais de canção veiculados pela televisão, em emissoras como Globo e Record. A
música conhecida como hino de resistência contra a ditadura, Pra não dizer que não falei

173
das flores, de Geraldo Vandré, foi exibida pelo Festival da Canção de 1968, promovido pela
Rede Globo.
A dinâmica dessas mudanças que estavam em curso envolvia relações ambíguas
também com o governo militar. Alguns artistas-intelectuais colaboraram com instituições
governamentais, como a Embrafilme, e muitos filmes, ao mesmo tempo em que eram
financiados pela Embrafilme, eram censurados pelo Departamento de Censura às
Diversões Públicas.
Outros artistas-intelectuais foram acusados de se vender aos meios de
comunicação, notadamente à Rede Globo. Esse foi o caso do dramaturgo comunista Dias
Gomes, que se tornou um grande roteirista de novelas de sucesso para Globo.
Naturalmente, partilho aqui da compreensão de que sua inserção na emissora não o
impediria, necessariamente, de assumir uma postura crítica e engajada, de interferir na
esfera pública. Obviamente, essa relação entre autonomia intelectual e inserção na grande
mídia como forma de atingir a esfera pública é sempre carregada de tensões. Com efeito, é
importante notar que muitos dos temas tratados em suas novelas eram tidos como
progressistas, e incomodavam o regime militar.
Em parte, a reacomodação institucional dos artistas-intelectuais aos poucos minaria
os seus anseios revolucionários. O artista-intelectual de esquerda, principalmente
comunista, passa a reavaliar a sua função social perante o povo. Nos anos 1980 há um
deslocamento da ideia de vanguarda intelectual, na medida em que a revolução passa a
ser encarada como iniciativa que deve ser assumida pelas classes populares, operários,
sindicalistas.
Na verdade, em fins da década de 1970 e início da de 1980, o cenário brasileiro está
completamente mudado, envolvido em um controvertido processo de distensão política.
O país já era predominantemente urbano, o movimento pela anistia ganhava impulso, os
temas dos produtos culturais estavam mudando, o nacional popular estava superado, o
partido comunista foi legalizado, a esquerda empreendeu uma autocrítica. Enfim, a
sociedade brasileira ganhava nova feição, assim como desaparecia, aos poucos, a
conformação do artista intelectual de esquerda.
Apesar de muitas questões ainda precisem ser discutidas mais detidamente
buscou-se, através desse ensaio, explorar algumas das especificidades dos artistas-
intelectuais brasileiros a partir das questões colocadas pela historiografia produzida sobre

174
o tema. Em grande medida, dialogar com os conceitos teórico-metodológicos e
preocupações apresentados pela historiografia francesa sobre os intelectuais serve
também para pensarmos a experiência brasileira.

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