Como Mudar o Mundo
Como Mudar o Mundo
Como Mudar o Mundo
Luís Camargo
9540302000003
ISBN 978-85-66811-03-2
9 7 8 8 5 6 6 8 1 1 0 3 2
texto de stela barbieri e fernando vilela
1ª. edição
2018
Copyright © Stela Barbieri e Fernando Vilela, 2018
Todos os direitos reservados à
EMPRESA BRASILEIRA DE SISTEMAS DE ENSINO LTDA
Rua Manoel Dutra, 225 – 6º andar
Bela Vista – CEP 01328-010 – São Paulo - SP
Tel. (0-XX-11) 3598-6300
Olá, leitor.
Os contos deste livro foram inspirados
nos Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio, propostos pela ONU, e falam
de pessoas e famílias que vivem em
diversos lugares do mundo. Cumprir
esses objetivos, relacionados ao meio
ambiente, aos direitos das mulheres,
ao desenvolvimento social, à luta
contra o racismo, entre outros temas
importantes, pode tornar nosso mundo
um lugar melhor.
Em países da África, no Japão, no Brasil,
muita gente enfrenta problemas como
a falta de comida e de água, e de uma
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) maneira bem criativa acaba encontrando
Stela Barbieri, artista plástica, foi curadora educacional
da Fundação Bienal de São Paulo de 2009 a 2014. É as-
Barbieri, Stela
Como mudar o mundo? / Stela Barbieri, Fernando
soluções para superar as dificuldades.
sessora de artes da Escola Vera Cruz, contadora de histó-
rias e autora de livros infantojuvenis. É conselheira na
Vilela; ilustrações Fernando Vilela. – 1. ed. –
São Paulo: BR Educação, 2018. Leia, comova-se, divirta-se e também
Fundação Calouste Gulbenkian desde 2012. Foi diretora ISBN 978-85-66811-03-2 reflita sobre cada uma destas histórias!
da Ação Educativa do Instituto Tomie Ohtake por 12 anos. 1. Contos - Literatura infantojuvenil I. Título.
Atualmente dirige com Fernando Vilela o Bináh Espaço
de Arte.
18-15306 CDD-028.5
41 Na sombra do baobá
51 Satiko e o vulcão
83 A ponte
96 Informações paratextuais
Pequenos gestos
Luís Camargo
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A menina do feijão suculento
N um lugar muito distante daqui, vivia uma meni-
na chamada Mahura que, além de animada e bonita,
tinha o cabelo todo cheio de fitas. Ela morava na roça,
numa casa de barro vermelho.
Mahura gostava de andar pela estrada de terra,
visitando os sítios da vizinhança para brincar com
as outras crianças. Juntas, corriam para a f loresta,
subiam nas árvores e nadavam nos rios. Lá se esque-
ciam do tempo, às vezes anoitecia e as crianças fica-
vam tão entretidas na brincadeira que nada de ir
para casa.
Os pais ficavam preocupados e iam procurar os
filhos, passavam uns nas casas dos outros perguntando
se eles estavam aqui, acolá. Quando encontravam as
crianças, ficavam bravos, e cada um levava seu filho
para casa, dando-lhe uma bronca.
No dia seguinte, as crianças iam felizes brincar de
novo e durante algum tempo tomavam mais cuidado
para chegar em casa antes do anoitecer, mas depois se
distraíam e novamente perdiam a hora.
As famílias trabalhavam com plantação e cria-
ção de animais. As crianças eram cuidadas por todos,
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almoçavam na casa mais próxima de onde estavam
brincando e em todo lugar eram tratadas com carinho.
Acontece que durante muitos e muitos dias não
choveu uma gota de água naquele lugar, e, com a
seca, as plantações de feijão, milho, abóbora foram
morrendo. Os porcos, os bois, as galinhas começaram
a definhar. Os rios caudalosos se transformaram em
fiozinhos de água. Foi ficando tudo seco. As pessoas
passavam fome, a comida era pouca. Os homens e as
mulheres que antes saíam de suas casas dispostos para
o trabalho agora se encontravam sentados, cabisbaixos,
nas portas das casas, e até as crianças estavam tristes.
A única que nunca desanimava era Mahura.
Ela continuava indo às outras roças convidar os
amigos para brincar, mas ninguém queria. Quando
estava na casa de algum amigo, na hora do almoço,
percebia que as pessoas esperavam, inquietas, que ela
fosse embora para então fazer a refeição, pois a comida
era tão pouca que, se mais uma boca comesse ali, fal-
taria para alguém. Com o passar do tempo, quando
Mahura ia à casa de seus amigos, o desânimo era tanto
que ninguém queria falar com ela.
Mahura também foi ficando triste. Um dia, ela
chegou em casa com tanta fome que começou a vas-
culhar os potes de barro, onde sua mãe guardava os
mantimentos.
Estava aflita, procurando algo que diminuísse sua
fome. Depois de procurar algo em muitos potes vazios,
encontrou no fundinho do último pote um punhado de
feijão. Ela se virou para a mãe e disse com entusiasmo:
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– Mãe, vamos plantar estes feijões? Não vamos Levadas por um impulso incontrolável, as famílias foram chegando à casa
esperar chover, nós duas regamos os feijões todos os de Mahura. Levavam o cachorro, o papagaio, os periquitos, os filhos, os avós,
dias. O que você acha? todos sem exceção queriam ver como era o prato anunciado.
A mãe a princípio achou que o trabalho seria A mãe da menina ficou assustada quando viu tanta gente chegando.
muito difícil, pois o rio era longe da casa delas, estava Chamou Mahura de lado e pediu explicações. A menina não deu explicação
com pouca água e elas teriam que buscar água todos nenhuma, pegou o maior caldeirão que tinha em casa, um caldeirão bem
os dias. Mahura insistiu com a mãe, que começou a grande e pesado, e com muita dificuldade o levou para fora.
achar uma boa ideia. Em seguida, Mahura começou a preparar o fogo, colocou o caldeirão com
Então as duas foram ao quintal, cavaram buraqui- água sobre o fogo com a ajuda da mãe, que depois trouxe os feijões. Em volta
nhos no chão e plantaram os feijões. Foram até o rio, delas estava uma grande roda de curiosas pessoas, em silêncio, olhando tudo
onde só tinha um fiozinho de água. Lá pegaram com sem perder um detalhe.
uma lata um pouquinho de água e levaram para regar Mãe e filha jogaram os feijões dentro da água, e alguém que assistia a isso
sua pequena, mas preciosa, plantação. O rio era longe, tudo suspirou profundamente. Neste momento, Mahura disse:
mas todos os dias elas traziam um pouco de água. – Ah! Este feijão ia ficar muito gostoso com linguiças.
Aqueles feijões brotaram e foram crescendo. Uma mulher gritou:
Mahura acreditava que por meio daquela roça ela – Eu tenho em casa algumas linguiças! – e saiu correndo para buscá-las.
poderia alimentar a família de todos os seus amigos. Em seguida, Mahura falou:
Acontece que o feijão cresceu, e, quando ela e a mãe – Ah! Este feijão ia ficar muito gostoso com carne-seca.
foram colher, perceberam que seria pouco. Alguém gritou:
Neste momento, Mahura teve uma ideia e a colo- – Eu tenho um pouco! – e saiu para pegar a carne-seca.
cou em prática: saiu espalhando pelas redondezas a A mãe da menina, percebendo que o feijão estava engrossando, falou
notícia de que ela e sua mãe iam fazer um feijão sucu- assim:
lento. Passou por todas as casas e falou em altos brados – Ah! Este feijão ia ficar ainda mais gostoso se tivesse toicinho.
com as crianças para que todos ouvissem: Então alguém gritou:
– Eu e minha mãe vamos fazer um feijão suculento. – Eu tenho! – e foi pegar o toicinho.
As crianças começaram a contar para os pais a Quando o cheiro do feijão já estava uma verdadeira maravilha, a mãe de
notícia, e todas as pessoas das outras roças ficaram Mahura disse:
curiosas para saber como seria esse tal feijão. Chegavam – Ah! Este feijão ia ficar mais gostoso se a gente comesse com arroz!
a ficar com água na boca de imaginar quão deliciosa Uma mulher gritou bem animada:
seria aquela comida. – Eu tenho! – e foi buscar o arroz.
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Nessa altura, as pessoas que assistiam ao preparo da comida começaram a
dar palpites. Alguém gritou:
– Ah! Este feijão ia ficar muito bom se a gente comesse com laranja!
Alguém respondeu entusiasmado:
– Eu tenho!
Outra pessoa falou:
– Ah! Este feijão ia ficar muito gostoso se a gente comesse com couve!
Aí alguém gritou:
– Eu tenho!
Quando estava tudo pronto, foram aparecendo pratos para todas as pessoas,
que, sentadas em roda, esperavam ansiosas e em silêncio para serem servidas.
Os homens ajudaram a carregar aquele caldeirão gigante, as panelas de
arroz e de couve, e a gamela com laranjas, e foram servindo as pessoas. Quando
todos estavam servidos, se olharam e, na primeira garfada, ouviu-se um enorme
suspiro seguido de uma gargalhada geral de prazer. Conversavam com uma
animação que há muito tempo não se via. Depois teve música, dança e muita
alegria!
Até hoje, naquele lugar, esse pessoal se reúne para fazer o feijão suculento,
mais conhecido como feijoada, para o qual cada um traz um ingrediente. A seca
continua por ali, chove de vez em quando, mas essa gente nunca mais passou
fome: aprendeu maneiras de regar a plantação e dividir somando a comida.
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O reino dos mamulengos
S everino era rapaz quando resolveu sair pelo
mundo em busca de sua sorte. Era especialista em
fazer e manipular mamulengos. Aprendeu com o pai
que, por sua vez, aprendeu com o avô, que aprendeu
com o bisavô, que aprendeu com o tataravô. Desse
modo, fazia parte de uma linhagem de bonequeiros,
que criavam mamulengos e interpretavam histórias
cheias de encanto e humor.
Os bonecos que Severino fazia pareciam pessoas
de verdade. Tinham articulações perfeitas, com ros-
tos expressivos. Para fazê-los, o rapaz se inspirava em
seus vizinhos e pessoas que conhecia. Trazia para seus
bonecos feições engraçadas, com características dos
personagens de seu dia a dia.
Severino se destacava entre os mestres de mamu-
lengo de sua família, pois tinha uma inteligência
admirável e um humor sem igual. Sua aparência
não mostrava esses talentos. Muito mal-ajambrado e
desastrado, vivia deixando cair tudo. Sua mala-teatro,
onde carregava bonecos, cenários, instrumentos
musicais e ferramentas, vivia se espatifando no meio
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da rua, o que fazia com que todos os que moravam no lugarejo rissem de sua daquele reino. Diziam que ela era uma moça muito
figura só de olhar para ele. triste que nunca ria. Achavam que ela podia mor-
Com uma cara desenxabida, andava pelas ruas com ar inexpressivo. No rer de tristeza. O rei, com medo de perder a filha,
entanto, aqueles que o conheciam sabiam de sua inteligência e sabedoria e espalhou proclamas por toda a cidade, dizendo que
o tratavam com distinção. Ele sempre tinha um comentário sábio e cheio de aquele que conseguisse fazer a princesa rir se casaria
humor para fazer em qualquer situação. Por isso, muitos o procuravam para com ela.
pedir conselhos. Severino resolveu se candidatar. Chegou ao cas-
Severino gostava muito das pessoas de seu lugarejo, mas, quando resolveu telo e foi recebido pelos guardas, que o encaminharam
partir, não se despediu de ninguém. Não gostava de despedidas. Todos sentiram ao salão nobre do palácio. Lá estavam o rei, a rainha e
sua falta. As crianças, principalmente, que viviam em volta dele, ficaram se a princesa, cada um sentado em seu trono.
perguntando sobre seu paradeiro. O rei perguntou ao rapaz:
Partiu sem destino, foi andando pela estrada para ver o que a vida apresen- – Como pretende fazer minha querida filha rir?
tava pelo caminho. Severino explicou:
Em cada lugar que parava fazia uma apresentação com seus divertidos – Tenho aqui esta mala e dentro dela trago mamu-
bonecos e assim ganhava dinheiro, comida, pouso e bons tratos. lengos, cenários e um mar de histórias divertidas que
No meio de sua caminhada, conheceu um grupo de artistas saltimbancos vão alegrar muito a princesa. Com certeza ela vai rir e
que faziam teatro, tocavam, dançavam e faziam apresentações em muitos luga- se casará comigo.
res, sempre viajando. Estavam acampados ao lado da estrada, e Severino gostou O rei, muito contrariado, aceitou que o rapaz se
deles. Rapidamente ficaram amigos. O líder dos saltimbancos se chamava Pepe apresentasse, mas deu indícios de que não queria que
e tinha um sotaque diferente, de gente que veio do estrangeiro. Severino e ele ele se casasse com a princesa. Foi logo dizendo:
conversavam durante horas. Pepe já tinha viajado por muitos lugares e contava – Acho que você não tem a menor chance. Já
boas histórias de suas aventuras pelo mundo. passaram por aqui sábios, artistas famosos, nobres e
Severino passou algum tempo viajando com esse grupo. Fazia suas apre- valentes e não conseguiram essa proeza. Creio que um
sentações de mamulengos no meio das peças teatrais. Juntos, eram um verda- homem como você não vai conseguir.
deiro sucesso. Severino não se abateu com o comentário do rei.
Acontece que um belo dia Severino resolveu seguir viagem sozinho e Pediu permissão para começar. Abriu sua mala-teatro
partiu. Foi andando, andando, até que chegou ao Reino das Terras Altas, onde e tirou dela alguns personagens: um rei, uma rainha,
muitas pessoas conversavam numa praça. Faziam o maior burburinho, uns uma princesa e toda a corte. Colocou um cenário de
comentavam uma coisa, outros outra. Severino ficou quieto ouvindo aque- castelo no fundo da mala e começou a contar a histó-
las conversas até que percebeu que as pessoas estavam falando da princesa ria daquele reino de modo muito engraçado:
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– Era uma vez um rei mal-humorado, que não sabia dançar xaxado e nem
tampouco comer linguado. Era chamado de “rei plumado”, pois tinha pose e
não olhava para o lado.
O rei foi ficando furioso com aquela história, achando um desrespeito.
A rainha foi ficando aflita e a princesa, se divertindo, começou a sorrir.
O rapaz continuou a história do tal rei e, em dado momento, tropeçou na
própria mala e tudo voou pelos ares. Neste instante, a princesa gargalhou, e
todos se espantaram.
O rei, furioso, mandou o rapaz começar de novo. Ele arrumou tudo e
continuou. O rei ficou a bufar de ódio, a rainha, com ar de medo e a princesa,
a gargalhar.
Quando acabou a apresentação, o rei disse sem perder tempo:
– Como palavra de rei não volta atrás, você vai se casar com minha filha, pois
conseguiu fazê-la rir. Só que, antes, terá que fazer rir gente de reinos distantes
do meu, para provar que realmente você é um sabido na arte de divertir. Escreva
aí um bilhete que vou ditar, para que leve ao rei do Vale dos Lagos, meu amigo.
(O rei das Terras Altas desconfiava que Severino não soubesse ler, nem
escrever. Por isso, fez essa proposta.)
Severino respondeu:
– Não sei ler, nem escrever. Leio no vento se vai chover, leio a madeira que
vou colher para fazer os bonecos, mas as letras nunca aprendi não, senhor.
– Está bem. Então eu mesmo vou escrever.
Dizendo isso, o rei escreveu rapidamente um bilhete, envelopou-o e entre-
gou ao rapaz, ordenando que ele partisse imediatamente. Severino e a prin-
cesa se olharam comprido. Foi só o rapaz sair pela porta para que a princesa se
fechasse em tristezas novamente.
Severino partiu em direção ao palácio do rei do Vale dos Lagos. No meio do
caminho, encontrou seus amigos saltimbancos, acampados. Contou a eles sua
aventura e mostrou a Pepe o bilhete que o rei das Terras Altas tinha enviado ao
rei do Vale dos Lagos.
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O bilhete dizia: “Assim que o portador deste che- No dia seguinte, o rei inventou outra viagem para Severino, só que agora
gar, afogue-o”. para o Reino das Grutas. Escreveu outro bilhete para o rei, seu amigo: “Assim
Pepe se assustou com aquilo. Resolveu trocar que o portador deste chegar, mate-o”.
aquele bilhete por outro, que dizia: “Assim que o por- Quando o sol nasceu, lá se foi Severino de novo estrada afora. Um temporal
tador deste chegar, dê a ele bons tratos e muito ouro, estava se armando. O rapaz saiu andando rápido, quase correndo, para encon-
pois ele se casará com minha filha”. trar abrigo antes de a chuva cair. Qual não foi sua surpresa quando, no meio do
Severino não percebeu a troca dos bilhetes. caminho, encontrou novamente o acampamento de seus amigos saltimbancos,
Despediu-se dos amigos e seguiu seu caminho. que o receberam com carinho e alegria. Puseram a conversa em dia, e Severino
Quando chegou ao palácio do rei do Vale dos explicou sua missão nessa nova viagem, que era a mesma da anterior: divertir
Lagos, foi recebido com todas as honras: cama macia um reinado em terras distantes. Também pediu a Pepe que lesse em voz alta o
com lençóis de linho, banho de banheira, banquete bilhete escrito para o rei das Grutas.
cheio de delícias e graças. Fez uma apresentação de Quando Pepe acabou de ler o bilhete, Severino estava branco de susto. O rei
mamulengos que divertiu muito a todos do reino. estava tentando matá-lo, e ele não tinha se dado conta.
Ao se despedir, o rei do Vale dos Lagos mandou Pepe então lhe contou sobre o bilhete anterior que ele trocou sem que
um recado para o rei das Terras Altas: “Seu futuro Severino percebesse. O pobre rapaz foi indo de susto em susto. O amigo então
genro é mesmo um rapaz extraordinário, um grande disse:
artista. Parabéns e obrigado por nos possibilitar con- – Severino, vou ensinar você a ler, para que nunca mais passe por isso. Você
viver com ele”. sabe ler o vento e as estrelas, sabe ler a natureza, e agora vai aprender a ler as pala-
Severino partiu muito satisfeito com seus novos vras, que podem ajudá-lo a ler o mundo de outro jeito. Vou apresentar um mundo
amigos. novo, com outras mensagens e histórias, que você pode encontrar num bilhete,
Ao chegar novamente ao Reino das Terras Altas, numa placa ou nas palavras que você pode ler em tantos livros e se inspirar.
Severino foi diretamente ao encontro da princesa, que Severino ficou vários meses com seus amigos, aprendendo a ler e escrever,
estava doente de saudades dele. Ao vê-lo, a princesa enquanto faziam espetáculos. Dias e dias se passaram, e no Reino das Terras
recobrou suas forças. Abraçou-o e deu-lhe um lindo Altas as pessoas davam-no como morto. A princesa estava numa tristeza sem
sorriso. fim, pouco comia e não saía mais da cama.
O rei, por sua vez, ficou enfurecido ao ver o jovem Muito tempo depois, Severino voltou para o Reino das Terras Altas. Qual
de volta. Estava indignado ao saber que o rei do Vale não foi sua surpresa ao ser recebido com um abraço do rei, que caiu em prantos,
dos Lagos tinha tratado Severino tão bem. Pensou com dizendo:
seus botões: “Desta vez meus planos falharam, mas – Minha filha está morrendo.
não falharão na próxima”. Arrependido e achando que havia matado Severino, o rei então lhe disse:
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– Perdoe-me por tudo o que fiz a você.
Severino olhou para o rei e perguntou onde estava a princesa.
Entrou rapidamente no quarto dela. Como por milagre, a princesa,
magra, pálida e com os olhos entreabertos, olhou para ele, deu um
sorriso e recobrou suas forças.
O reino ficou em festa com a recuperação da princesa. Foi
realizado um maravilhoso casamento da princesa com Severino. A
festa teve muitas comidas gostosas e divertidas apresentações dos
amigos saltimbancos.
O jovem casal ganhou um castelo de presente de casamento.
O castelo passou a ser conhecido como o Palácio do Rei dos
Mamulengos, pois, nas janelas do castelo, Severino e a princesa
apresentam todos os dias peças de teatro com mamulengos, música
e histórias que ele aprendeu em suas andanças pelo mundo ou leu
nos livros de sua imensa biblioteca, que pode ser usada por todo
o povo do reino. Lá as pessoas podem aprender a ler e se encantar
com o universo mágico dos livros.
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Radija e os tapetes mágicos
N o meio do deserto, onde as noites são muito frias
e os dias muito quentes, havia um pequeno lugarejo
com algumas casas. Lá vivia Radija com sua família.
Ela tinha cinco irmãos e era a mais velha de todos.
A vida no lugar em que moravam era bem tran-
quila. O pai de Radija colhia tâmaras e as entregava
aos mercadores, que as levavam para vender na cidade
de Damasco e depois voltavam para trazer o dinheiro.
Quando os amigos de seu pai chegavam, conta-
vam muitas histórias de suas andanças pelo mundo.
Radija adorava ouvi-las. Ficava escutando, enquanto a
mãe, ela e as irmãs serviam comida para todos.
Os mercadores traziam sempre algum presente
para o pai dela: tapetes, tecidos, facas, espadas, vasos,
perfumes e comidas com sabores de outras terras.
Observando os objetos recebidos pelo pai, o que mais
chamava a atenção de Radija eram os tapetes, com
belos desenhos e cores. Ficava horas olhando para eles.
Quando se dava conta, percebia que o tempo tinha
passado muito depressa. No entanto, Radija tinha a
sensação de ter estado ali apenas um instante.
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Ao olhar os desenhos nos tapetes, ficava de tal O tempo foi passando, os pais de Radija foram envelhecendo, ela e os
modo absorvida pelas imagens que se sentia vivendo irmãos foram crescendo e o lugar mais distante que a moça conseguia ir era
aventuras naquele universo. Viajava por lugares nar- até as tamareiras acompanhar seu pai para colher tâmaras. Um dia, no meio da
rados pelos homens das caravanas. Essas histórias ali- colheita, Radija disse ao pai:
mentavam em Radija um enorme desejo de conhecer – Pai, gostaria muito de sair pelo mundo vendendo tapetes.
o mundo, viajar por cidades distantes, olhar outras O pai teve logo um ataque de nervos. Disse que ela estava louca, que uma
paisagens, encontrar novas pessoas. moça jamais viajava sem o pai ou o marido.
Uma noite, quando a família estava toda reunida, As caravanas que passavam por aquele lugar vez por outra levavam rapazes
Radija resolveu contar uma história: que iam para as cidades grandes. As despedidas eram fervorosas, com choros,
– Posso contar uma história pra vocês? É a histó- abraços e beijos. Radija ficava olhando para aquela cena, que era seu sonho.
ria deste tapete – disse essas palavras abrindo um dos O pai de Radija foi envelhecendo e não conseguia mais colher tâmaras. Ela
tapetes de seu pai e se pôs a narrar uma aventura pelo e os irmãos se incumbiam dessa função.
deserto... Enquanto colhia tâmaras, Radija tinha o olhar distante, pensava que nunca
Seus pais e irmãos nem piscaram ouvindo sua his- sairia dali, que estava fadada a colher aquelas frutas até o fim de seus dias. Seus
tória, e a partir daquele momento queriam histórias irmãos faziam pequenas viagens e voltavam contando das aventuras pelo deserto,
todas as noites. A cada noite, uma nova aventura era das novidades de lugarejos próximos e de tudo que tinham visto e ouvido.
contada, sempre a partir de um tapete. Seus contos Certa vez, chegou àquele lugar uma grande caravana de amigos de seu pai,
eram tão fluentes que as pessoas tinham a impressão e muitos rapazes decidiram partir com ela. Um dos irmãos de Radija, Assam,
de que estavam escritos naqueles desenhos tecidos, e que era seu grande amigo e com quem trocava seus sonhos e suas confidências,
só Radija podia lê-los. resolveu ir também. Conversou com os pais, que o apoiaram. Ficou tudo acer-
Daí em diante, todas as vezes que os caravanei- tado: iria para Damasco procurar trabalho.
ros chegavam, a “leitora” de tapetes lhes contava uma Radija disse que queria ir com o irmão, mas os pais ficaram bravíssimos. Os
nova história. Eles ficavam encantados e a presentea- dois gritavam ao mesmo tempo dizendo que aquilo não era para moças, que ela
vam com novos tapetes a cada viagem. Acreditavam precisava achar alguém para casar e ficar quieta, que não tinha nada que viajar.
que somente ela conseguiria desvendar a magia que Radija chorou horas. Entretanto, decidiu que iria, mesmo contra a vontade
havia nos tapetes. dos pais. No meio da noite, foi falar bem baixinho com o irmão:
Radija gostava de imaginar o dia em que par- – Assam, Assam, acorde! Vou viajar com você, de qualquer maneira!
tiria com as caravanas vendendo os tapetes “mági- – Você está louca?! Nosso pai não quer de jeito nenhum que você vá.
cos”, que alimentavam sua imaginação, e contando – Mas eu vou!
histórias. – Se descobrirem, você está perdida e eu também.
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– Vamos tentar, Assam. Esse é meu sonho. Você me ajuda? Me
empresta uma roupa sua?
– Por Alá, tenho medo de que isso não dê certo, mas vou te
ajudar. Aqui está uma roupa que caberá em você.
Radija agradeceu muito e foi dormir.
No dia seguinte bem cedinho, Radija preparou seus pertences
para a viagem e saiu, sem que ninguém percebesse.
Escondeu-se no meio das tamareiras, vestiu-se com as roupas
do irmão e ficou esperando. A caravana passaria por ali e ela se
misturaria com os viajantes.
Escondida num lugar estratégico, Radija pôde ver quando a
caravana se aproximava. Seu coração batia tão forte que ela chegou
a ficar sem ar.
Estava preparada. Esperou que boa parte da caravana passasse,
localizou seu irmão e misturou-se no meio de todos aqueles homens
que vinham a pé e sobre camelos.
Ninguém percebeu nada, e a moça seguiu em silêncio ao lado
do irmão.
Andaram durante dias. À noite acampavam ao relento. Os
companheiros de viagem acreditavam que Radija fosse um rapaz.
Num final de tarde, chegaram à cidade de Damasco. Assim
que chegaram, Radija e Assam ficaram horas vagando pelas ruas da
cidade, encantados com tudo o que viam.
Foram ao mercado vender as tâmaras que trouxeram e se alo-
jaram numa hospedaria.
Passaram os dias que se seguiram procurando trabalho. Radija
já estava muito à vontade vestida de homem. Teve grande facilidade
para arrumar emprego numa loja de tapetes no mercado da cidade,
como era seu sonho. Assam arranjou emprego como vendedor de
camelos ao lado do mercado. Iam vivendo muito bem.
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Enquanto isso, distante dali, seus pais e irmãos homens das caravanas. Casou-se, teve filhos, foi visitar seu pai, sua mãe e seus
estavam preocupados com o que teria acontecido com irmãos, e lhes apresentou sua família. Foi um encontro cheio de alegria e sau-
Radija. dade. Seu pai ficou tão feliz que até voltou a colher tâmaras.
Durante muito tempo ficaram sem notícias. Radija continuou vendendo tapetes e fazendo sucesso com suas histórias
Radija, vestida de homem, era um enorme sucesso por muitos e muitos anos.
como vendedor de tapetes. Para cada tapete que ia
vender, contava uma aventura a partir das imagens
estampadas, e isso fazia com que a loja ficasse sempre
lotada e vendesse muitos tapetes.
Até aquele momento ninguém desconfiava de
que ela fosse mulher. Num dia de muito movimento,
depois que todos tinham ido embora, Radija resolveu
refazer seu turbante. Então foi surpreendida pelo
patrão, que, tendo esquecido de levar algo para casa,
voltou à loja e viu a moça de cabelos soltos. O patrão,
sentindo-se enganado, ficou furioso e mandou Radija
embora imediatamente. Ela saiu chorando e não vol-
tou mais à loja, nem passou mais em frente.
Acontece que o movimento da loja caiu. O patrão
sentia falta das histórias dela. Os clientes também
vinham perguntar onde estava o “vendedor” que con-
tava histórias. O patrão, percebendo essa situação, foi
atrás de Radija para recontratá-la.
Com o retorno da contadora de histórias, a loja
voltou a ser um grande sucesso. O dono da loja, entu-
siasmado, contratou outras mulheres. Na vizinhança,
os concorrentes, ao verem a grande quantidade de
vendas feitas por elas, também contrataram mulheres.
Radija realizou seu sonho de ser vendedora de
tapetes. Sempre mandava dinheiro para seus pais pelos
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Na sombra do baobá
N um lugar onde a terra é vermelha, toda rachada
de tão seca, onde o sol é muito quente e as chuvas cus-
tam a chegar, existia uma imensa árvore, de sombra
fresca, chamada baobá.
Perto dela ficava um povoado. As pessoas que
ali viviam acreditavam que o baobá era uma árvore
mágica, pois guardava dentro dela muita água, capaz
de matar a sede de todos os animais, das crianças e
dos adultos da região. Além disso, acreditavam que
embaixo dela estavam protegidas de todos os perigos.
O grande mal que assombrava aquele lugar era
o dragão chamado Nguma Monene, que bebia toda
a água dos rios que abasteciam o lugarejo, deixando
cheios de sede aqueles que ali viviam, restando-lhes
somente a água do baobá. Além disso, de tempos em
tempos levava embora em suas garras algumas crian-
ças, para depois devorá-las. Há anos o estranho ser
não aparecia por ali. Diziam que o dragão estava do
outro lado do mundo.
Os adultos temiam que ele voltasse e, por isso,
reunidos na sombra do baobá, ensinavam as crian-
ças que, se vissem o dragão voando nos céus ou se
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ouvissem seus urros, deveriam correr para perto da grande árvore, pois ali no meio do capim. Com agilidade, tirou o menino de
estariam protegidas. lá são e salvo.
Todos os dias, no pôr do sol, homens, mulheres e crianças se reuniam I lunga foi crescendo. Falava e andava com rapidez.
embaixo do baobá. Ali contavam histórias extraordinárias sobre onde se escon- Era engraçado e esperto, mas continuava minúsculo.
dia a vida de Nguma Monene e sobre os heróis que tinham tentado enfrentá-lo. Para se fortalecer e crescer, tinha uma alimentação
Ali também trocavam ideias sobre assuntos cotidianos, cantavam e dançavam. rica em raízes, verduras, água de baobá e frutas. Era
Era também embaixo da árvore que as pessoas amarravam fitas nos ramos, reza- surpreendente a quantidade de comida que aquele
vam e faziam suas oferendas, pedindo proteção aos deuses. menininho comia, ficando cada vez mais forte.
Mafuane, uma jovem mulher da aldeia, e seu marido queriam muito Mesmo assim, por causa do seu tamanho, as
ter um nenê. Todos os dias, iam até a grande árvore e ali faziam suas preces, outras crianças da aldeia sempre recebiam a orienta-
pedindo aos deuses que os ajudassem a ter o filho que tanto desejavam. ção de seus pais para cuidar do menino. No entanto,
Passado algum tempo, no auge da aflição, Mafuane gritou: às vezes, elas se esqueciam dele e o deixavam de lado
– Que os deuses me mandem um filho, mesmo que seja pequeno como a durante as brincadeiras.
semente de baobá! Uma tarde, quando todas as crianças voltavam
Nove meses se passaram e a mulher deu à luz um nenê muito pequenini- de um banho de rio, foram surpreendidas pelo dragão
nho. Chamou-o de Ilunga. O menininho cabia na palma da mão de sua mãe. Era Nguma Monene, que soltava urros horrorosos.
frágil e precisava de muitos cuidados para sobreviver, pois estava fraco e não As crianças correram todas em direção ao baobá,
conseguia nem ao menos chorar. mas I lunga ficou para trás. Um dos meninos voltou
Mafuane tinha pouco leite, e o nenê precisava ser alimentado com goti- correndo para salvá-lo, colocando-o no bolso de sua
nhas, de hora em hora. As outras mulheres do povoado que tinham filhos camisa.
recém-nascidos e estavam amamentando se revezavam para alimentar Ilunga. Enquanto isso, o dragão dava voos rasantes e
Aos poucos, I lunga foi se fortalecendo e alguns meses depois já estava virava a cabeça de um lado para outro procurando
engatinhando. No entanto, continuava tão pequeno que, quando engatinhava, uma presa fácil. Quem não estava debaixo do baobá
passava por baixo das portas. Os moradores do povoado viviam de olho no ou dentro das casas não conseguiria se salvar daquele
pequeno I lunga, pois qualquer buraquinho podia ser um esconderijo para o monstro. Assim, o menino com I lunga no bolso foi
minúsculo bebê. Quando ele sumia, Maf uane entrava em desespero e todos se capturado pelas garras do dragão.
punham a procurá-lo. Nguma Monene os levou ao cume de uma imensa
Uma vez foi encontrado na boca de uma vaca que, ao morder uma moita montanha toda coberta por nuvens, de onde não se
de capim, acabou levando I lunga. A sorte foi que o dono da vaca estava pró- via nada ao redor. Chegando lá, encontraram mui-
ximo, ouviu os gritos do pequeno menino e viu as perninhas dele se debatendo tos meninos de vários lugares trancados em jaulas.
44 45
O monstruoso dragão os mantinha em cativeiro para depois devorá-los. Os o cume da montanha, entrar na caverna, quebrar o cristal e assim acabar com
meninos estavam abatidos e tristes. a vida do dragão e libertar todas as crianças.
Quando viram a cabecinha de I lunga saindo do bolso da camisa de seu I lunga trazia pequenos galhos da floresta enquanto os outros meninos
amigo, a surpresa foi geral. As outras crianças nunca tinham visto um menino faziam a escada, que ficava escondida embaixo deles para que o horrendo
tão pequeno! monstro não pudesse vê-la.
I lunga, olhando para eles, perguntou: Uma vez, quando Ilunga trazia em seus braços os galhos de madeira, foi sur-
– O que todos vocês estão fazendo aqui? preendido pelo dragão. O menino, não tendo outra opção, se escondeu embaixo
– Estamos presos. Sabemos que vamos morrer. Quando Nguma Monene de uma folha, onde passou a noite toda e quase morreu de frio.
está com fome, devora um de nós. Depois fica alguns dias sem comer, só tra- Ao clarear o dia, a escada estava pronta. Assim que o dragão saiu, como de
zendo outras crianças – falou um dos meninos. costume, as crianças puseram a escada em pé e comemoraram, pois estava no
– Estamos morrendo de fome e de sede! – disse outro. tamanho exato para I lunga chegar até a pequena caverna no topo da monta-
Com sua esperteza e vivacidade, I lunga saiu do bolso e, sem que o dragão o nha. Sem perder tempo, o menininho subiu a escada. Quando já estava quase
visse, foi procurar comida, pois também estava faminto. Achou frutos e raízes. no cume da montanha, começou a ouvir os urros do dragão que se aproximava.
Comeu até se fartar. Em seguida saiu carregando com dificuldade os alimentos, Preferindo não correr o risco de ser pego, I lunga saiu da escada e se escon-
para que os outros meninos pudessem comer. deu em um buraco que havia na montanha antes de chegar ao cume. Quando
Depois de ficar um tempo andando em volta da jaula, o dragão partiu para o dragão chegou, viu a escada e, com um golpe, quebrou-a em mil pedaços. O
capturar outras crianças, mas poderia voltar a qualquer instante. I lunga pôde buraco era profundo. I lunga se escondeu bem no fundo, de modo que, mesmo
trazer os alimentos com mais tranquilidade. Ainda assim, tinha que ser rápido enfiando uma das garras lá dentro, Nguma Monene não conseguiu pegá-lo.
para não ser apanhado. Naquela noite, o dragão estava irrequieto. Não parava de olhar para todos
No fim do dia estava exausto. Voltou para o bolso de seu amigo para dormir os lados. No dia seguinte, ficou vigiando a caverna que guardava sua vida e
até o dia seguinte e depois começar tudo de novo. não saiu. Com cara de fome, olhava o tempo todo para os meninos dentro das
Passou diversos dias alimentando os outros meninos, que viviam apavora- jaulas.
dos pensando que, de uma hora para outra, poderiam ser devorados. O dragão Assim que o dia clareou, o dragão partiu e os meninos gritaram o nome de
voltava de suas viagens sempre nervoso e sacudia as jaulas, soltando urros. I lunga que, ouvindo os chamados, apareceu no buraco e escalou com dificul-
I lunga e seu amigo sabiam, pelas histórias contadas embaixo do baobá, dade a montanha até chegar à pequena caverna, onde estava escondida a vida
que a vida do dragão estava escondida numa pequena caverna no cume da do dragão.
montanha, dentro de um cristal. Como o cume era muito alto, as crianças não Quando I lunga pôs a mão no cristal, ouviu os urros do dragão que vinha
acreditavam que conseguiriam chegar lá. voando em sua direção.
Mas, um dia, quando o dragão saiu para mais um de seus passeios, os meni- Com muita agilidade, o pequeno menino bateu com toda força o cristal
nos tiveram uma ideia: fariam uma escada para que I lunga pudesse chegar até contra uma pedra, quebrando-o em mil pedaços.
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Nessa hora, o dragão caiu no chão, abrindo uma imensa cratera.
Os meninos comemoraram a morte de Nguma Monene.
As jaulas se abriram como por encanto. As nuvens se dissipa-
ram. Os meninos puderam ver, da montanha onde estavam, a vila
onde cada um deles morava, e assim se despediram e correram para
reencontrar suas famílias.
I lunga e seu amigo viajaram dias e dias andando a pé. Quando
chegaram à aldeia, foram recebidos com festa, canto e dança.
Estavam famintos e com sede. Durante um longo período, foram
cuidados por todos da vila, pois tinham medo de sair de casa e
estavam ainda muito fracos. Aos poucos foram melhorando, até
ficarem bons.
A história de Nguma Monene, I lunga e seus amigos é contada
até hoje na sombra do baobá.
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Satiko e o vulcão
E m uma aldeia que ficava nas margens do lago de
águas claras, aos pés do grande vulcão, vivia Satiko
com sua família. Numa pequena casa moravam o pai,
a mãe, o marido e ela. Satiko estava grávida de sete
meses de um nenê desejado por todos. Naquela comu-
nidade cada criança era esperada, cuidada e comemo-
rada como um presente sagrado.
Como o lugar era muito pequeno, as pessoas que
ali viviam se conheciam bastante. O pai de Satiko,
senhor Sho, era uma figura muito querida, pois con-
versava com quem encontrava e compartilhava seus
devaneios, fazia previsões e falava muito sozinho.
Ninguém dava muita importância para o que ele
falava. As pessoas o tratavam com carinho, paravam
para escutá-lo, mas depois saíam andando.
O ambiente por ali era especial, às margens do
lago e com o vulcão ao fundo, sempre soltando uma
fumaça branca e suave. Olhar o vulcão de longe era
espetacular, mas de perto era ainda mais admirável.
Os moradores da comunidade acreditavam que ele era
a morada de um deus que protegia toda a região e que
esse deus vivia feliz e em harmonia com as pessoas
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do lugar. Até onde sabiam, aquele vulcão nunca tinha em direção ao vulcão e depois repetia as mesmas pala-
entrado em erupção. vras gritando, para que todos escutassem.
Todos os dias, o senhor Sho subia a montanha e Satiko não sabia o que pensar. Será que seu pai
ficava falando com o deus que morava no vulcão. estaria fazendo uma previsão ou seria um delírio?
A vida por ali era tranquila, os homens pescavam Desde aquele dia o senhor Sho começou a deixar as
e as mulheres preparavam deliciosas comidas; as crian- embarcações de madeira prontas para que todos
ças brincavam nos campos e nadavam no lago. Havia pudessem fugir dali quando o vulcão entrasse em
no povoado todas as profissões necessárias para uma erupção. Satiko ficava horas a seu lado conversando e
comunidade viver em equilíbrio: de médicos a arte- ajudando-o em sua labuta. Os vizinhos pensavam que
sãos, de professores a agricultores, todos trabalhando ele estivesse enlouquecendo e não acreditavam que
para o bem comum. aquilo fosse acontecer realmente.
Na primavera faziam uma festa para comemorar Os dias foram passando tal qual o vento fresco
a entrada da estação, realizavam um enorme pique- passa delicadamente pela copa das árvores, cada mora-
nique, cantavam, bebiam, comiam iguarias e pendu- dor envolvido em seus afazeres. Até que, numa noite
ravam poemas nos ramos floridos dos arbustos para fria, a terra estremeceu...
saudar a natureza. Os moradores estavam dormindo e sentiram os
Naquele ano, os campos estavam mais floridos e a tremores. Acordaram perguntando-se o que estava
festa da primavera foi preparada com dedicação pelos acontecendo.
moradores. Satiko tinha uma gravidez serena, a bar- O vulcão repentinamente surpreendeu a todos.
riga crescia a cada dia e ela ajudava a fazer as comidas Lançou com violência rios de lava que invadiram o
para as comemorações. Reuniram-se para juntos feste- povoado.
jar a entrada da estação aos pés do vulcão. O velho senhor Sho tocou o sino do templo deses-
No entanto, o pai de Satiko estava inquieto, peradamente e correu para colocar as embarcações na
andava de um lado para o outro, batia palmas a toda água. Mulheres e crianças foram levadas pelos homens
hora e resmungava palavras que ninguém entendia. A para as margens do lago e entraram rapidamente nas
certa altura, preocupada, Satiko aproximou-se dele e canoas, fugindo para o outro lado. Os homens corriam
perguntou: de volta até suas casas para resgatar pertences e ani-
– Pai, por que o senhor está tão aflito? mais, quando foram violentamente arremessados por
– O deus do vulcão está bravo. Um mar de lava vai um jato de lava. Poucos conseguiram resistir, fugindo
invadir tudo isto aqui – dizia o pai com olhar parado nas canoas que restavam.
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Todos iam seguindo o senhor Sho, sem questionar.
Satiko estava muito cansada e começou a passar mal.
Então sua mãe e outras pessoas do povoado sugeriram
que parassem um pouco, pois ela precisava descansar.
Ao lado de um riacho de águas frescas se deitaram na
relva e ficaram ali em silêncio, durante um período.
As crianças tinham fome. Os homens e as mulhe-
res puseram-se a procurar frutas e raízes para alimen-
tar Satiko e as crianças. Depois fizeram para ela uma
cadeirinha de galho e seguiram viagem, se revezando
para carregá-la, até chegarem ao pé da montanha, ao
lado de um imenso bambuzal.
O senhor Sho gritou:
– Esta é nossa nova terra. O deus desta montanha
está nos saudando e nos convidando a ficar aqui sob
As mulheres do outro lado do lago olhavam aflitas à espera de seus queri- sua proteção. Vamos primeiro fazer uma cabana para
dos. Satiko procurou seu amado entre aqueles que chegavam nas embarcações. acomodar Satiko e as crianças.
Observava com olhar desesperado cada barco. Com profunda tristeza, se deu Imediatamente homens e mulheres começaram a
conta de que seu marido não estava entre eles. cortar os bambus e construir as casas.
As horas que se seguiram foram de agonia. As pessoas que conseguiram Enquanto ajudava a amarrar os bambus, Satiko
atravessar o lago andavam em direção à floresta no meio da escuridão, pois o sentou-se no chão, já sentindo as primeiras contra-
cheiro de enxofre e a fumaça que vinham do vulcão eram insuportáveis. Era ções. Todos foram ajudá-la. A parteira e o médico da
impossível permanecer nas margens do lago. Satiko queria continuar ali na comunidade, no entanto, pediram que se afastassem,
esperança de que seu marido pudesse aparecer, mas seus amigos conseguiram pois tinha chegado a hora do nascimento. Satiko,
convencê-la a seguir em frente, pois era arriscado para sua saúde permanecer acompanhada pela mãe, estava cansada e sentindo-se
naquele lugar. muito triste sem o marido. Horas se passaram até que
Quando a manhã clareou, as pessoas vagavam sem destino, tristes e perdi- um choro forte invadiu o ar. Tinha nascido Isamu para
das. O senhor Sho começou a gritar: alegrar a vida de Satiko e de todo o povoado.
– Por aqui, por aqui – guiando as pessoas em direção a uma enorme Os dias que se seguiram foram cheios de muito
montanha. trabalho. Uma cidade foi construída.
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O menino Isamu se tornou um rapaz. Frequente
mente pedia para que lhe contassem sobre seu pai, que
não havia conhecido.
Um dia o velho senhor Sho chamou Isamu para faze-
rem uma viagem ao antigo povoado, aos pés do vulcão, e
levarem uma oferenda a seu pai.
Depois de todos aqueles anos, pela primeira vez
o sábio Sho e seu neto Isamu desceram as montanhas e
cruzaram o lago de águas claras em direção à antiga vila
abandonada.
Ao longo da travessia, o senhor Sho contou muitas
histórias de sua vida para Isamu, que ouviu atentamente
enquanto remava.
O jovem entrou na vila inundada pela lava, onde só
via telhados. Emocionado, depositou a oferenda a seu pai
e voltou silencioso ao lado do avô.
Isamu se transformou no líder da comunidade, um
homem justo, corajoso, que soube governar com sabedoria.
Aos pés da grande montanha, aquela gente ainda
conta a história do senhor Sho, de Satiko e Isamu.
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O gênio do poço encantado
O lugar onde esta história acontece era conhecido
como Vila do Poço Encantado, pois havia ali um enor-
me poço que fornecia água para toda a região. A popu-
lação daquele lugar acreditava que um gênio generoso
cuidava do poço e aquele que se aproximava podia ou-
vir a bela voz do gênio se espalhando pelo vilarejo. As
mulheres, ao virem pegar água para lavar roupas ou
para dar de beber às famílias, cantavam, com o gênio,
melodias sublimes que traziam à cidade um ambiente
alegre:
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durante um dia todo só da água do poço encantado; no
entanto, as pessoas não melhoraram.
A doença foi se espalhando; a cada dia, mais e
mais homens, mulheres e crianças adoeciam, e as er-
vas e os remédios disponíveis não conseguiam curá-
-los. As pessoas iam ficando muito fracas e com o pas-
sar dos dias começaram a morrer.
Sábios e doutores foram chamados de outras ci-
dades, mas não descobriram a causa daquele mal.
Arun, o filho da lavadeira Sovann, também adoe-
ceu. Sentia muitas dores e chorava o tempo todo. Fraco
e abatido, não conseguia mais comer. Sovann, preocu-
pada, ficou vários dias cuidando dele sem poder lavar
roupas. Como não podia deixar o menino sozinho, pe-
diu a Kiri que fosse ao poço para pegar água, pois so-
mente ela poderia salvá-lo.
Kiri obedeceu e, como de costume, cantou:
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A voz continuou:
– Estou doente... preciso de outro poço para morar.
Assustada, Kiri se escondeu atrás de uma árvore, pois percebeu que quem
estava falando era o gênio e ele até então só cantava. O gênio continuou:
– Não tenha medo de mim, Kiri, eu canto com você e Arun todos os dias e
não vou lhe fazer mal.
– Por que você está doente? – perguntou Kiri, se aproximando.
– O seu povo está enterrando lixo perto de mim e eu fiquei doente. Quem
beber das minhas águas vai ficar doente também, preciso de outro poço para
morar.
Sem falar palavra, Kiri saiu correndo para contar a sua mãe o que havia
escutado.
– Mãe, o gênio do poço falou comigo!
– Que bobagem é essa, Kiri?! O gênio do poço não fala com ninguém, ele só
canta! – disse Sovann irritada. – Onde está a água, filha?
– Mãe, mas ele me disse que está doente, quer mudar pra outro poço e
quem beber da água dele vai ficar doente também.
Sovann correu para o poço e falou com o gênio:
– Kiri disse que você está doente. Você quer mudar de poço?
Nenhuma voz respondeu. Sovann, então, retirou um pouco de água e vol-
tou para casa, achando que Kiri estava imaginando coisas.
No dia seguinte, Arun estava pior. Ele já não conseguia mais se levantar,
nem falar. A mãe pediu novamente para Kiri buscar água e a menina assim o
fez. Mas dessa vez Sovann seguiu Kiri sem que ela percebesse. Ficou escondida e
pôde ouvir a conversa da menina com o gênio:
– Minha mãe não acredita que você está doente.
– Conte para outras pessoas, quem sabe alguém acredita! – disse o gênio,
com voz fraca e rouca.
Quando a pequena menina se virou para fazer o que o gênio sugerira, sua
mãe apareceu à sua frente e disse:
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– Vamos juntas falar para todos! uma nascente que há naquela montanha. Sei que é dis-
Sovann e Kiri foram de casa em casa contando às tante e a água é pouca, mas vai ser suficiente para não
pessoas que o gênio do poço estava doente. Mas nin- morrermos de sede. Vamos construir um encanamen-
guém acreditou... to com bambus para trazer a água.
– Isso não é possível, o gênio do poço nunca falou Com a falta de água, as pessoas doentes poderiam
com ninguém! É história dessa menina! piorar e ficar desidratadas. A população, então, agilizou
– Eu ouvi o gênio falar com ela! – explicava Sovann. a construção de um encanamento com bambus para tra-
Só Borey, o velho sábio do povoado, sabia que a zer água da nascente. O encanamento foi rompido pelos
mulher e a criança diziam a verdade. animais da montanha, e homens e mulheres da comu-
Borey reuniu todas as pessoas da vila na praça e nidade reconstruíram-no várias vezes, mas da água só
falou: restava um fiozinho que não dava para quase nada.
– O gênio do poço está doente; nossa água nos Ao mesmo tempo, homens, mulheres e crianças
adoece. Se não construirmos um novo poço agora mes- se juntaram e o poço começou a ser construído do ou-
mo, outras pessoas morrerão! tro lado da cidade.
O que Borey dizia era lei na vila, pois ele era o lí- A cada dia, milhares de baldes de terra eram tira-
der daquela comunidade e, em todos os momentos de dos daquele enorme buraco. Homens trabalhavam dia
crise, sempre indicava o melhor caminho. No entanto, e noite, mas a água parecia estar muito longe.
as pessoas contestaram: Como não havia quase água, passaram a consu-
– Vamos demorar muito para construir um novo mir frutas, que aos poucos também foram acabando.
poço e não podemos ficar sem água. Como faremos? – Todos estavam desesperados de sede, economi-
disse um homem do povoado. zando cada gota de água.
– Vamos trabalhar noite e dia – respondeu Borey. Para a sorte de todos, começou a chover. As pes-
– Mesmo assim vamos demorar muito e morrere- soas coletaram o máximo que conseguiram das águas
mos de sede, temos de continuar bebendo água desse pluviais, colocando bacias, baldes e panelas nas ruas.
poço! – falou uma mulher. Depois de alguns dias e muito esforço, finalmen-
Borey respondeu com firmeza: te acharam água e o poço ficou pronto.
– Quem beber dessa água ficará doente e pode- Borey chamou a todos e em volta do poço disse:
rá morrer. A partir de agora, está proibido beber água – Esta é a nova casa do gênio, o guardião das águas
desse poço. Vamos iniciar a construção do novo poço milagrosas. Agora precisamos cuidar dele e de tudo à
imediatamente e, enquanto isso, vamos trazer água de sua volta.
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Uma grande festa foi feita e muita água foi bebida.
Uma noite ouviram um canto forte, alegre, dife-
rente da música que sempre ouviam. Era o gênio de
casa nova.
As pessoas começaram a melhorar tomando água
pura do novo poço.
Mas Arun ainda não estava bem. Todos os dias sua
mãe rezava e dava a ele ervas, raízes e muita água. Aos
poucos, para a alegria de todos, ele voltou a falar e andar.
Assim que melhorou e pôde sair de casa, Arun foi
com Sovann e Kiri ao poço e lá cantaram:
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O amigo dos animais
C auã vivia numa aldeia no meio da floresta dos
tucanos. Era atento a tudo o que acontecia ali, ne-
nhuma folha caía das árvores sem que ele ouvisse,
nenhuma cigarra cantava sem que ele pudesse apre-
ciar aquele canto e nenhum animal se mexia sem que
ele percebesse. Brincava com seus amigos nos igapós
– as florestas alagadas – e com os homens e os outros
meninos saía para caçar.
Amava tanto os animais que, antes de matá-los,
lhes pedia permissão e explicava a eles que sua carne
iria alimentar toda a tribo e, assim, fazia da caça um
ritual. Naquela região, caçadores brancos matavam
milhares de animais com armas de fogo, e Cauã não
entendia o porquê, pois aquela matança poderia ali-
mentar seu povo por um ano; além disso, a cada dia a
quantidade de animais diminuía. Eles estavam desapa-
recendo da floresta.
Incomodado, Cauã perguntou ao pajé:
– Por que os homens brancos matam tantos bichos
se não vão comer todos eles?
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– O homem branco não quer a caça, quer a riqueza que a caça traz; quando a mãe de Cauã, ferindo-a gravemente. As mulheres
faz isso, não pensa nos animais ou na floresta, pensa no que vai acumular de gritaram, uma delas espantou a onça com uma tocha
riqueza – respondeu o pajé. e a onça chamuscada fugiu para a floresta.
O pajé daquela aldeia tinha um cuidado especial com Cauã, pois via nele Longos foram os dias da cura de Inaê. O pajé ficava
algo diferente, uma sabedoria incomum. o tempo todo cantando e cuidando de seus ferimentos.
Quando de noite Cauã sonhava, encontrava os animais e com eles conver- Outras tantas noites se passaram e novamente o
sava de igual para igual. Sabia quem era o líder de cada espécie: das capivaras, rugido da onça veio inquietar a aldeia que dormia.
das onças ou dos pássaros. De dia, quando o curumim se aproximava deles, os Naquela noite, em seus sonhos, Cauã se transfor-
animais o olhavam como se fossem velhos conhecidos e se aproximavam tran- mou em onça e, com as outras onças, pôde entender
quilos. Quando sonhava com aves, transformava-se em ave e entendia o que elas por que elas estavam famintas: era a matança desen-
diziam; quando sonhava com tatus, tornava-se tatu e assim por diante. freada dos caçadores brancos, não sobravam animais
Ninguém via quando Cauã virava animal, pois isso acontecia quando todos para alimentá-las.
estavam dormindo. As mulheres naquele lugar estavam sempre envolvidas com Certa vez, as onças atacaram também o acampa-
a plantação de mandioca e com o preparo da farinha, os homens caçavam e as mento dos caçadores e mataram um deles. A partir daí,
crianças brincavam. Quando todos se deitavam na rede, dormiam profunda- aquele grupo de homens armados se pôs a perseguir
mente, cansados da lida do dia a dia. todos os felinos da floresta. Cauã, em suas andanças,
De manhã, ao acordar, Cauã muitas vezes ainda estava na pele do animal encontrava dezenas de onças mortas pelos caminhos e
do sonho e as pessoas que o olhavam tinham a sensação de ter visto um ani- ficava indignado com aquilo.
mal de relance; uns dias viam um jabuti; em outros, um tamanduá... A vida na aldeia sempre fora tranquila, homens
No entanto, numa noite de lua cheia, homens, mulheres e crianças da aldeia e mulheres viviam em harmonia com a natureza e
foram acordados pelos rugidos fortes de uma onça. Naquela aldeia, eles já haviam as crianças brincavam em volta dos adultos, partici-
sofrido muitos ataques de onças famintas, por isso tinham medo e ficavam assus- pando de todas as atividades. Em cada estação do ano,
tados quando ouviam aquele som rasgando o silêncio da noite. Durante três noi- colhiam frutos da época para se alimentar, e as festas
tes, aquela gente não conseguiu dormir com o barulho do animal. e rituais eram cuidadosamente preparados para que
O pajé chamou Cauã para ver se ele tinha sonhado com algo que os pudesse todos da comunidade participassem.
ajudar a resolver aquela situação, mas o menino havia sonhado com tucanos Numa manhã de verão, quando as mulheres che-
reunidos embaixo de uma imensa árvore. Não houve nada daquele sonho que garam à plantação de mandioca, encontraram tudo
o pajé pudesse ver como uma pista para enfrentar a onça que rondava a aldeia. destruído pelos porcos-do-mato, que também, naquele
Numa manhã de sol, quando as mulheres estavam trabalhando na planta- dia, tinham invadido as casas em busca de alimentos e
ção de mandioca, foram surpreendidas pela onça, que saltou em cima de Inaê, atacado as pessoas de maneira violenta.
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Nessa mesma semana, em um de seus sonhos, Cauã encon-
trou a família de porcos-do-mato e soube que eles eram muitos,
queriam se alimentar e por isso comiam o que estava ao alcance
deles. O pajé ouviu o sonho de Cauã e percebeu que a matança de
tantas onças havia gerado um desequilíbrio na natureza. Os porcos-
-do-mato não eram mais alimento das onças, pois a maioria delas
estava morta, e por isso eles se multiplicavam a cada dia. O pajé
ficou revoltado, consultou as outras pessoas da aldeia e decidiu ir
até o acampamento dos caçadores.
Quando chegou ao acampamento, surpreendeu um homem
fazendo a barba, que gritou:
– O que você quer aqui?
– Vim falar para você parar de matar os animais desta terra.
– Não vou parar! Eu vim aqui pois quero a pele dos animais e
preciso levar trezentas peles até o próximo mês... e já estou atra-
sado com meu prazo.
A conversa se estendeu ainda por alguns minutos, mas o
homem branco, incomodado, não queria mais ouvir o pajé e enxo-
tou-o do acampamento.
O pajé chegou à aldeia atordoado e disse:
– Precisamos mudar daqui, pois este lugar não tem mais paz.
Cauã nunca tinha visto o pajé tão irritado e preocupado. Foi
para a sua rede e, ao pensar na possibilidade de mudança, chorou.
Gostava muito da floresta dos tucanos e não queria se mudar,
amava as árvores, os animais, o rio. Ficou encolhido na rede até que
adormeceu. Ainda estava de dia e, sob o olhar dos outros índios,
sonhou com as onças e se transformou em uma delas, saltou da
rede e correu para a floresta. Inaê, deitada na rede ao lado e se
recuperando do ataque sofrido, assistiu a tudo e gritou pelo pajé,
mas, quando ele chegou, Cauã já havia desaparecido na mata.
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Cauã, na pele da onça, correu pela floresta. Acuado, sem destino, indo de Naquele momento, animais surgiram de todos os lados: pernilongos, ara-
um lado ao outro, caiu numa armadilha que os caçadores prepararam para nhas, pássaros, abelhas e cobras atacaram os homens que, apavorados, fugiram.
recolher os animais, um buraco fundo no chão coberto com folhas. As pessoas na aldeia ouviram a voz de Cauã vibrando e correram ao seu
Em desespero, andava em círculos dentro do buraco, pulava e rugia e de encontro. Com cipós, conseguiram tirá-lo do buraco e voltaram para a aldeia,
nada adiantava, pois o buraco era fundo e ninguém da aldeia podia ouvi-lo. onde até hoje continuam cultivando seus alimentos e caçando o necessário à
Os caçadores que acampavam lá perto escutaram os rugidos e vieram sobrevivência de seu povo.
correndo. Quando chegaram, encontraram a onça agitada, fizeram pontaria e Quanto aos caçadores, nunca mais voltaram ali.
se prepararam para atirar. Levaram um susto, pois naquele instante a onça se A floresta dos tucanos é ainda hoje um lugar onde se pode ouvir cada folha
transformou em um menino novamente e Cauã gritou: que cai, apreciar cada cigarra que canta e perceber o ruído do movimento de
– Não atirem! Quero falar! todos os animais.
Os homens ficaram paralisados olhando aquilo tudo acontecer diante de
seus olhos.
Cauã continuou falando:
– Vocês não são bem-vindos, nenhum animal quer vocês aqui. Vão embora!
– sua voz soou tão alto quanto o barulho de um trovão e a terra tremeu.
80 81
A ponte
N um povoado distante, no alto de uma montanha,
que parecia ser bem pertinho do céu, vivia uma comu-
nidade de agricultores que plantava e vendia milho.
Para vender o milho, eles precisavam descer a mon-
tanha, atravessar de canoa um rio que havia próximo
ao povoado e carregar a carga de espigas no ombro
até chegar ao mercado, que ficava em uma cidade na
montanha do outro lado. O grande sonho das pessoas
que ali moravam era construir uma ponte para chegar
à cidade.
Guadalupe e Diego nasceram naquele lugar e
logo em seu primeiro encontro, ainda bem pequenos,
se olharam longamente em silêncio, sorriram como se
já se conhecessem e saíram brincando, mudando de
jogo a cada momento. Nunca mais se desgrudaram.
Das brincadeiras ao trabalho, dos sorrisos aos abra-
ços, aquele encontro foi se transformando a cada dia:
em amizade, namoro, até que se casaram. Ganharam
dos pais de Guadalupe um pedaço de terra. Com a
ajuda dos homens e das mulheres da comunidade,
fizeram uma casa e depois prepararam a terra para
plantar o milho.
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Todas as tardes, o jovem casal ia até um descampado que havia na parte
mais alta do povoado e ficava olhando o pôr do sol.
Dia após dia, o casal cuidava da plantação de milho: as plantas cresciam,
nasciam espigas lindas e grandes, que depois eram colhidas. Tudo o que Diego
plantava nascia forte e vigoroso. Diego tinha mãos habilidosas, com elas fazia
móveis de madeira e preparava cordas.
Naquele ano, a colheita foi muito boa e, como as canoas para atravessar o
rio eram pequenas, o movimento de idas e vindas do povoado ao mercado, na
cidade, era intenso, e as pessoas continuavam alimentando o desejo de cons-
truir uma ponte que facilitasse suas vidas.
Acontece que certo dia se armou um temporal e uma chuva graúda des-
pencou em cima daquela gente. O rio tornou-se caudaloso e difícil de atraves-
sar, a correnteza estava forte e puxava as embarcações. As chuvas não paravam
e ficou impossível chegar à outra margem do rio.
Aos poucos a comida que compravam na cidade, para completar a alimen-
tação, foi acabando. Como naquela comunidade as pessoas eram muito soli-
dárias, trocavam uma xícara de farinha por um pouco de açúcar, abacates por
feijões e assim foram passando os dias até que só tinham milho e legumes para
comer.
Os homens do povoado iam com frequência às margens do rio para ver
como estava a correnteza e voltavam desanimados, pois, além de o rio estar
puxando muito, trazia em suas águas pedaços de galhos grandes, que desciam
a correnteza com velocidade.
Passados alguns dias, porém, as chuvas foram cessando, e homens e
mulheres voltaram a atravessar o rio com dificuldade. Diego e Guadalupe,
assim como os outros, encheram a canoa de espigas de milho e remaram com
força, se equilibrando para tentar chegar à outra margem. Quando já estavam
bem próximos, foram surpreendidos por uma tora de madeira, que bateu com
toda força na embarcação, jogando Guadalupe na água. Ela não sabia nadar
e, mesmo que soubesse, não conseguiria vencer a correnteza que a arrastava
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com violência. Diego gritou o nome da mulher com – Vamos fazer a ponte de pedra, o leito do rio está cheio de pedras – disse
desespero enquanto remava veloz: um homem que trabalhava com pedras fazendo vasos.
– Guadalupe! Guadalupe! – Que tal se fizéssemos de madeira? Na floresta aqui atrás as árvores são
Ele chegou ao outro lado num instante e saiu cor- imensas e poderíamos fazer uma ponte alta, para que não fique submersa
rendo pela margem, rio abaixo, acompanhando com os quando chover forte e a água do rio aumentar – falou outro.
olhos Guadalupe, que rolava no meio das águas, até que Fizeram desenhos de como deveria ser a estrutura da ponte. Em alguns
ficou presa entre duas rochas. Diego conseguiu enfim momentos, o quarto de Guadalupe, apinhado de gente, mais parecia uma festa,
resgatá-la. Estava desacordada e cheia de ferimentos. com as pessoas entusiasmadas, falando todas ao mesmo tempo.
Diego correu com ela nos braços até a cidade para conse- – Que tal se fizéssemos a ponte de pedra e madeira? – disse Guadalupe,
guir socorro. Na cidade, Guadalupe foi atendida por um silenciando a todos. Ela estava calada até aquele momento e quando falou, em
médico que tomou todas as providências para salvá-la. voz fraca e baixa, foi ouvida e sua proposta comemorada.
Durante alguns dias, Diego e Guadalupe dormi- – Isso mesmo, Guadalupe, de pedra e madeira. Essa ponte vai ser inaugu-
ram na cidade, deixando seus amigos e parentes do rada por você, que vai ser a primeira a atravessá-la – disse Diego.
povoado muito preocupados. – É isso mesmo! – gritaram todos. – Viva Guadalupe!
Guadalupe demorou a se recuperar, pois quebrou – Viva!
uma perna. Na manhã seguinte bem cedinho, alguns homens foram à floresta cortar
Quando voltaram para casa, Guadalupe ficou árvores, e outros escolher e cortar pedras. Assim começaram a fazer a ponte e
várias semanas de cama e foi cuidada por sua mãe e trabalhavam pesado sempre que podiam, pois tinham de cuidar das plantações
pelas outras mulheres. também. A época era de chuvas, e de quando em quando interrompiam a cons-
Diego, como de costume, todos os dias no fim trução para aguardar a estiagem.
da tarde ia ver o pôr do sol no descampado e ficava
olhando o rio lá embaixo e a cidade do outro lado.
Triste, pensava que muitos poderiam morrer se vol-
tasse a chover, pois o rio estava cada dia mais perigoso.
Depois de muito refletir, Diego tomou uma decisão:
aquele era o momento de construir a ponte que seu
povo sonhava há tantos anos.
Foi correndo procurar os homens e as mulheres no
povoado, e reunidos em volta da cama de Guadalupe dis-
cutiram sobre como construir a tal ponte para a cidade:
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Depois de alguns meses, a ponte ficou pronta. Guadalupe já
estava boa e foi a primeira a passar por ela para inaugurá-la, como
estava combinado desde o início.
Houve muita festa, e até as pessoas da cidade vieram para ver
a ponte e comemorar. Todos os dias, os homens e as mulheres da
comunidade desciam a montanha e, com seus animais, atravessa-
vam a ponte levando o milho.
Até que a nova estação das chuvas chegou. Numa manhã de tra-
balho, as pessoas que estavam atravessando a ponte foram surpreen-
didas por uma torrente de água, que chegou repentinamente por
causa de uma tempestade que tinha ocorrido na cabeceira do rio.
A torrente foi tão forte que levou a ponte embora. As pessoas
que estavam em cima dela tiveram tempo de correr para as mar-
gens, mas os animais e as cargas foram levados com ela.
O desconsolo foi geral, a população estava novamente fadada
a atravessar o rio caudaloso de canoa.
Depois que a ponte ruiu, Guadalupe nunca mais foi para a
cidade, pois ficou traumatizada com o acidente que sofrera.
Diego ia à cidade sozinho vender sua colheita, enquanto sua
jovem esposa, na margem do rio, ficava olhando seu marido lutar
contra a correnteza, torcendo para que nada de mau lhe acontecesse.
Um dia, quando Diego voltava para casa, esbarrou em alguma
coisa. E, olhando contra a luz, se deu conta de que era uma imensa
teia de aranha que estava apoiada entre duas árvores.
Ficou apreciando aquela teia de aranha, admirando o trabalho
e a estrutura tecida. Enquanto estava ali distraído olhando a teia,
teve uma grande ideia: construir uma ponte pênsil de madeira,
apoiada em cordas tensionadas, ligando seu povoado diretamente
à cidade. Desse modo nem precisariam descer a montanha e se des-
locariam com facilidade de um lado para o outro.
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Correu até o descampado, onde se via o pôr do sol, para observar se sua Trabalharam todas as pessoas do povoado, dia e noite, muitos dias.
ideia era possível de realizar. Foi rapidamente contar para sua gente, primeiro Então, terminaram a obra, e ver a ponte pronta encheu aquela gente de
para Guadalupe e depois para todos os outros. Nem houve discussão do assunto, alegria.
pois todas as pessoas perceberam que aquela era a solução. Até hoje quem visita o povoado pertinho do céu passa pela ponte inspirada
Na manhã seguinte, mais um sonho começou a ser concretizado, as mulhe- em teia de aranha, que balança com o vento e enfeita a paisagem que por si só
res deram início à produção de cordas e os homens foram cortar madeira. já é majestosa.
Ficaram ali por um mês preparando tudo.
Então chegou o dia de levarem as enormes cordas pelo vale de um lado
para o outro. Desceram com as cordas atravessando o rio, subiram a montanha
do outro lado, amarrando as cordas tensionadas em pilares, e ligaram assim
um lado a outro. Depois, com pedaços de cordas menores, amarraram dezenas
de tábuas, fazendo assim uma imensa esteira de madeira suspensa.
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Fernando Vilela
Everton Ballardin
Quem é Quem é
Stela Barbieri Fernando Vilela
Nasci em Araraquara, São Paulo, em 1965. Publiquei Nasci em São Paulo, em 1973. Como autor e ilus-
20 livros para o público infantojuvenil e também trador publiquei em 8 países e recebi 5 prêmios
escrevi sobre arte e educação para adultos. Durante Jabuti e a Menção Honrosa na categoria Novos
12 anos fui diretora da Ação Educativa do Instituto Horizontes do Prêmio Bologna Ragazzi 2007. Tive
Tomie Ohtake e durante 6 anos fui curadora edu- 3 livros selecionados para o catálogo White Ravens,
cacional da Fundação Bienal de São Paulo. Sou as- da Biblioteca Internacional da Juventude, em
sessora de artes da Escola Vera Cruz, em São Paulo. Munique, Alemanha. Em 2012 ganhei o I Troféu
Atualmente dirijo com Fernando Vilela o Bináh Monteiro Lobato de Literatura Infantil.
Espaço de Arte. Para ilustrar este livro, trabalhei com dese-
Desde criança eu ficava imaginando várias nho, gravuras feitas com carimbos de borracha e
aventuras, mas só comecei a contá-las quando cres- usei o computador para aplicar as cores. Inspirei-
ci. As histórias que eu mais gosto de contar são da ‑me na arte e em elementos de diversas culturas e
tradição oral de diversas culturas. Para inventar as lugares onde acontecem as histórias.
histórias deste livro, inspirei-me em contos tradi- Nas ilustrações de “Satiko e o vulcão”, por
cionais de diversos países. exemplo, busquei dialogar com a gravura japone-
Conheça mais sobre o meu trabalho no site sa; nas ilustrações de “O reino dos mamulengos”,
<www.stelabarbieri.com.br>. inspirei-me nos tecidos e bonecos de mamulengo;
já em “Radija e os tapetes mágicos”, recriei em gra-
vura estampas de tapetes persas.
Para conhecer mais sobre minha obra, acesse
<www.fernandovilela.com.br>.
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Informações paratextuais
CONTEXTUALIZAÇÃO DO AUTOR E DA OBRA
Olá, leitor.
Agora que você já se encantou com a leitura, que tal conhe-
cer ainda melhor este livro?
Os autores escreveram os oito contos deste livro inspirados
em contos da tradição popular, mitos e costumes de diversos
países. Stela Barbieri nasceu em Araraquara, em 1965, e já pu-
blicou mais de vinte livros para crianças. Também trabalhou
como Curadora Educacional da Fundação Bienal de São Paulo.
Fernando Vilela é também artista plástico e premiado ilus-
tador. As ilustrações que acompanham os contos são resulta-
do de uma vasta pesquisa que ele realizou. Ele se inspirou na
arte e em elementos de diversas culturas, como a africana e a
persa, e lugares, como o Brasil e o Japão, onde as histórias se
passam.
Cada uma dessas narrativas tem como ponto de partida
uma das metas do relatório de Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio, proposto pela ONU, com desafios universais para
toda a humanidade e que envolvem temas como a escassez de
alimento ou de água.
A partir dessas histórias, é possível refletir sobre questões
como as diferentes formações de sociedade, práticas de cida-
dania, além de questões que remetem ao encontro com dife-
rentes culturas.
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