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Teste 1 Cesario Verde + FP Ortonimo

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«O Sentimento dum Ocidental» :Composição publicada em O Jornal de

Viagens, a propósito das comemorações do tricentenário da morte de


Camões (1880).
 Poema longo (44 estrofes), dividido em quatro secções, correspondentes aos
diferentes momentos do percurso do sujeito poético pela cidade de Lisboa:

PRIMEIRA PARTE: “AVE MARIAS”


Ave Marias1 De um couraçado8 inglês vogam os
Nas nossas ruas, ao anoitecer, escaleres9;
Há tal soturnidade, há tal melancolia, E em terra num tinir de louças e talheres
Que as sombras, o bulício2, o Tejo, a Flamejam10, ao jantar, alguns hotéis da
maresia moda.
Despertam-me um desejo absurdo de
sofrer.
Num trem de praça arengam dois
O céu parece baixo e de neblina, dentistas;
5
O gás extravasado enjoa-me, perturba; Um trôpego arlequim braceja numas andas;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba3 Os querubins11 do lar flutuam nas
Toldam-se duma cor monótona e londrina. varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os
Batem os carros de aluguer, ao fundo, lojistas!
Levando à via-férrea os que se vão. Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Felizes! Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as
Ocorrem-me em revista exposições, países: obreiras;
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o E num cardume negro, hercúleas,
mundo! galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as
Semelham-se a gaiolas, com viveiros, varinas.
10 As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas, Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Saltam de viga em viga os mestres Seus troncos varonis recordam-me
carpinteiros. pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas
Voltam os calafates4, aos magotes, canastras
De jaquetão5 ao ombro, enfarruscados, Os filhos que depois naufragam nas
secos; tormentas.
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões6,
por becos, Descalças! Nas descargas de carvão,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes. Desde manhã à noite, a bordo das
fragatas;
15 E evoco, então, as crónicas navais: E apinham-se num bairro aonde miam
Mouros, baixéis7, heróis, tudo gatas,
ressuscitado! E o peixe podre gera os focos de infecção!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a
nado!
Singram soberbas naus que eu não verei VERDE, Cesário, 2015. O Livro de Cesário
jamais! Verde (uma seleção).
Porto: Porto Editora (pp. 48-49)
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda! 1. Ave Marias: toque do sino que chama os fiéis para rezar as
ave-marias, ao final da tarde;

20
2. bulício: agitação, rumor;
3. turba: multidão;
4. calafates: operários;
5. jaquetão: casaco de tecido grosso que chega até abaixo da
cintura;
6. boqueirões: ruas ou travessas que dão acesso ao cais;
7. baixéis: embarcações.
8 couraçado – navio de guerra.
9 escaleres – pequenos barcos.
10 Flamejam – brilham.
11 querubins – anjos, crianças.
13. hercúleas: robustas; valentes;
14. pilastras: pilar de quatro faces
1. A primeira parte do poema – «Ave Marias» – permite, desde logo,
compreender o título de «O Sentimento dum Ocidental». Justifica a
afirmação, identificando:
a. o «ocidental» a que se faz referência e as circunstâncias em que se
encontra;
b. o «sentimento» ou sentimentos que experimenta e respetivas causas.
a. O título remete para o sujeito poético, um «ocidental » que, em Portugal, relata a
sua deambulação pelas «ruas» de Lisboa, «ao anoitecer»
b. O sujeito poético sente-se enjoado e perturbado (vv. 6, 25), comprazendo-se no seu
próprio desconforto por estar na cidade (v. 4). Esta é a causa do seu mal-estar, com a
sua «soturnidade» e a sua «melancolia» (v. 2), com a «cor monótona e londrina» (v.
8) dos seus edifícios. Paradoxalmente, a mesma cidade que «incomoda» (v. 25) o «eu»
inspira-o a denunciar as suas condições, conforme assume no verso 25.
2. Refere o efeito de sentido produzido com o uso do determinante
possessivo no v. 1.
Ao utilizar o plural, o sujeito poético remete para um grupo do qual faz parte.
Assume-se como um de entre os muitos ocidentais que vivem em contextos
semelhantes e que, por isso, conhecem a cidade descrita e partilham os sentimentos e
as perceções do «eu».
3. Explicita o valor expressivo das comparações presentes na quarta estrofe,
relacionando-o com a caracterização da cidade.
As comparações dos edifícios com «gaiolas» e dos «carpinteiros» com «morcegos»
destacam a dimensão aprisionante e sombria da cidade.
4.Nos versos 11 e 21, os verbos anunciam momentos de fuga imaginativa.
Explica em que consistem esses momentos e relaciona-os com os eventos
que os motivam.
As formas verbais «Ocorrem-me» e «evoco» introduzem breves momentos em que o
sujeito poético se evade da realidade. No primeiro caso, motivado pela visão dos
passageiros que, na estação de comboios, partem em viagem e cuja
felicidade admira, o «eu» «viaja» no espaço até cidades conotadas com o
progresso artístico e deseja (conforme a enumeração gradativa
sugere) inclusivamente «o mundo». No verso 21, a evasão do sujeito poético
ocorre numa dimensão temporal, pois, face à constatação de que, no «cais», só
existem «botes» (v. 20), recorda-se, por antítese, do tempo grandioso dos «heróis» (v.
22), de «Camões» (v. 23) e das «soberbas naus» (v. 24). Estas fugas imaginativas
permitem ao sujeito poético escapar, por instantes, do presente e, através da fantasia,
aceder a outros tempos e espaços conotados com a felicidade e com a grandeza.
5. Nos versos 35-36, o sujeito poético dirige a sua atenção para as «varinas»,
que são aproximadas a um «cardume». O recurso ao nome coletivo sugere a
coesão do grupo, valorizado também por meio dos adjetivos «hercúleas» e
«galhofeiras», que salientam a sua força e a sua alegria.
6. Mostra como a descrição das varinas, nas duas últimas quadras, contribui
para a manifestação de um olhar crítico sobre a cidade.
Na descrição das «varinas», o sujeito poético destaca a sua robustez (vv. 37-38),
insinuando a sua necessidade de resistência física, face à exigência do seu trabalho.
Destaca ainda as difíceis condições em que vivem, integrando muitas vezes
famílias dedicadas à pesca, marcadas pelos naufrágios e perda de entes queridos (vv.
39-40) e residindo em bairros insalubres (vv. 43-44).

7. Confirma, a partir da primeira parte do poema, a dimensão lírica e


narrativa de «O Sentimento dum Ocidental».
O poema apresenta uma estrutura narrativa: centra--se na deambulação do
«eu» (ação), que relata o seu passeio no espaço citadino, ao entardecer (narrador,
espaço e tempo). A subjetividade implicada nesse relato remete, contudo, para a
dimensão lírica do texto, uma vez que a realidade é descrita a partir da ótica do
sujeito poético (marcada pelo recurso à 1.ª pessoa), que expressa não apenas o
que lhe é externo, mas também as suas impressões, os seus sentimentos e as suas
reações ao meio envolvente (vv. 4, 6, 10, 25, 41...)
8.O sujeito poético deambula pela cidade, ao cair da tarde. Comprova a
afirmação.

O sujeito poético deambula pela cidade («Embrenho--me, a cismar, por boqueirões, por becos,/
Ou erro pelo cais», vv. 19-20), ao cair da tarde («ao anoitecer», v. 1), tal como anunciado no
título («Ave Marias»).
9.Destaca as características da cidade referidas nas duas primeiras estrofes.
A cidade é apresentada como sombria e tristonha («Há tal soturnidade», v. 2), melancólica
(«há tal melancolia», v. 2), com tons escuros e pardos («cor monótona e londrina», v. 8).

10.Comprova que o ambiente da cidade interfere sobre o estado de espírito


do sujeito poético.
Logo na primeira estrofe, o sujeito poético afirma que o ambiente envolvente lhe desperta «um
desejo absurdo de sofrer» (vv. 3-4). Também o gás dos candeeiros lhe provoca náuseas («O
gás extravasado enjoa-me, perturba», v. 6). O sujeito poético refere que o «céu parece baixo»
(v. 5), sugerindo que se sente aprisionado, estrangulado naquele lugar. A observação dos
botes e a constatação de que os tempos áureos do passado não voltarão contribuem para o
desencanto do sujeito poético (v. 24).

11. Mostra como, face ao real que o circunda, o sujeito poético faz intervir a
sua imaginação transfiguradora e evade-se mentalmente para outros locais
e para outro tempo.
A visão daqueles que se preparam para viajar de comboio e que imagina felizes («Levando à via-
férrea os que se vão. Felizes!», v. 10) provoca no sujeito uma «fuga imaginativa» no espaço (vv.
11-12). A evasão no tempo prende-se com a constatação de que, no cais, só existem «botes» (v.
20), o que lhe recorda o tempo grandioso dos heróis (v. 22), de «Camões» (v. 23) e das «naus»
(v. 24). Estas fugas permitem ao sujeito poético escapar da sua realidade e da cidade opressora
e melancólica. Assim, através da sua imaginação, viaja até países e cidades conotados com o
progresso artístico (vv. 11-12) e até outros tempos – os da expansão ultramarina e das
«soberbas naus» (v. 24) – conotados com a grandeza pátria e que o sujeito poético reconhece,
triste mas também criticamente, que não assistirá (v. 24).

12. Seleciona as opções de resposta adequadas para completar as


afirmações abaixo apresentadas.
O uso do determinante possessivo no primeiro verso contribui para criar no leitor uma
sensação de proximidade relativamente às situações apresentadas. Com o recurso à
comparação na quarta estrofe, o sujeito poético destaca o carácter fechado, opressivo
e escuro da cidade. Através da antítese, na quinta e sexta estrofes, estabelece-se um
contraste entre os botes atracados, do presente, e as naus que «singram» e navegam
com êxito, do passado.

Descreva o espaço referido pelo “eu”, explicitando o efeito que este produz
no sujeito lírico.
O espaço referido é o da cidade de Lisboa, apresentado como agitado – “bulício” (v. 3),
soturno, melancólico e marcado por contrastes sociais. Face à cidade onde o “eu”
poético deambula, este sente melancolia, enjoo, “um desejo absurdo de sofrer” (v. 4).
Explicite o contraste existente entre os habitantes da cidade, relacionando-o
com os versos 9 e 10.
O sujeito poético apresenta os habitantes da cidade. Refere, por um lado, o trabalho
árduo dos “mestres carpinteiros” (v. 16), e dos “calafates” (v. 17), que surgem ao final
do dia “enfarruscados, secos” (v. 18). Por outro lado, apresenta os burgueses, “os
dentistas” (v. 29) e “os lojistas” (v. 32), que conversam e se enfadam. Neste sentido,
os versos 9 e10 ilustram a felicidade (“Felizes!”) daqueles que partem da cidade para
outros locais.
Ao longo do poema, é percetível a apreciação da cidade feita por Cesário
Verde, através de uma visão subjetiva, evidenciada pelo recurso a frases
exclamativas.
Explora o efeito de sentido do subtítulo do excerto.
O subtítulo destaca a atmosfera urbana que o sujeito poético tenciona evidenciar, do
final da tarde, enquanto deambula pela cidade.
O sujeito poético deambula pela cidade de Lisboa, descrevendo os espaços e
as pessoas.
Explicita o uso das sensações na caracterização da cidade.
O sujeito poético, através da deambulação e do recurso às sensações visuais, olfativas
e auditivas, descreve de forma negativa o espaço que o rodeia, comprovando que, “ao
anoitecer”, a cidade se torna mais lúgubre. A associação destes aspetos, captados
pelas sensações do “eu”, acentua a imagem de uma cidade agoniante e opressiva.

Comenta a expressividade da enumeração do verso 12, tendo em conta o


contexto em que ocorre.
A enumeração de cidades europeias ocorre numa ordem lógica de afastamento
crescente da cidade de Lisboa, sugerindo um desejo progressivo de evasão do “eu” do
espaço urbano em que se encontra.
Ao longo deste poema, é notória a dualidade entre realidade e imaginação.
Transcreve dois exemplos em que o “eu” utiliza a imaginação como fuga à
realidade
“Ocorrem-me em revista exposições, países: / Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o
mundo!” (vv. 11-12);
“E evoco, então, as crónicas navais: / Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado! ” (vv.
21-22).
Demonstra a crítica implícita na referência aos “botes” (verso 20) e às
“soberbas naus” (verso 24) que evocam, respetivamente, o presente e o
passado.
O sujeito poético estabelece um contraste entre o passado – as “soberbas naus” – e o
presente – os “botes”. Este contraste, de natureza implicitamente crítica, acentua a
decadência do Portugal presente face ao irrepetível passado glorioso.

Justifica a alusão a Luís de Camões, na sexta estrofe.


A referência a Camões tem por objetivo convocar o imaginário épico do poema. Com
efeito, o “eu”, confrontado com uma cidade opressora, evoca momentos do passado
associados à glória do país: as navegações, as batalhas e a própria imagem de
Camões, que nada para vencer o naufrágio e salvar a sua obra maior, Os Lusíadas.
Explica o efeito de sentido da sinestesia presente nos versos 27 e 28.
A sinestesia associa sensações auditivas – “tinir” (v. 27) – e visuais – “Flamejam” (v.
28). A combinação de sensações contribui para uma perspetiva da realidade
burguesa, abastada e ociosa.
Neste excerto, estão presentes algumas características estilísticas
recorrentes em Cesário Verde, como, por exemplo, em: “E num cardume
negro, hercúleas, galhofeiras, / Correndo com firmeza, assomam as varinas”
(versos 35 e 36). Nestes versos ocorre uma metáfora e uma adjetivação,
destacando o facto de as varinas serem tristes, apesar de fortes .
SEGUNDA PARTE: “NOITE FECHADA”
II – Noite Fechada
Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras A espaços, iluminam-se os andares,
mansas! E as tascas, os cafés, as tendas, os
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e estancos
crianças, Alastram em lençol os seus reflexos
Bem raramente encerra uma mulher de brancos;
<<dom>>! E a Lua lembra o circo e os jogos
malabares.
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das Duas igrejas, num saudoso largo,
luzes; Lançam a nódoa negra e fúnebre do
À vista das prisões, da velha Sé, das clero:
Cruzes, Nelas esfumo um ermo inquisidor
Chora-me o coração que se enche e severo,
que se abisma. Assim que pela História eu me aventuro
e alargo. emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó
Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas,
iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes
subidas,
E os sinos dum tanger monástico e
devoto.

Mas, num recinto público e vulgar,


Com bancos de namoro e exíguas
pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções
guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,


Nesta acumulação de corpos
enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os
soldados;
Inflama-se um palácio em face de um
casebre.

Triste cidade! Eu temo que me avives


Uma paixão defunta! Aos lampiões
distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas
elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos
ourives.

E mais: as costureiras, as floristas


Descem dos magasins, causam-me
sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços
altos
E muitas delas são comparsas ou
coristas.

E eu, de luneta de uma lente só,


Eu acho sempre assunto a quadros
revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de
Mostra como a perturbação do sujeito poético se agrava ao cair da
noite, considerando os versos 1 a 8.
A perturbação manifestada pelo sujeito poético no início do poema e da
sua deambulação agrava-se e leva-o a sentir-se mortificado (v. 2), dominado
por «umas loucuras mansas» (v. 2) e desconfiado inclusivamente de um
problema físico (v. 5). O «eu» assume-se «mórbido» (v. 6) e em sofrimento,
como o verso 8 sintetiza.
Refere as sensações que, nas cinco primeiras estrofes, contribuem
para a representação da cidade como um espaço mórbido e
opressivo. Transcreve elementos do texto para fundamentares a
tua resposta.
As sensações que, nas cinco primeiras estrofes, contribuem para a
representação da cidade como um espaço mórbido e opressivo são:
- sensações visuais: «À vista das prisões, da velha Sé, das cruzes» (v. 7),
vv. 11-12, vv. 13-14, vv. 18-19.
- sensações auditivas: «Som / Que mortifica e deixa umas loucuras
mansas!» (vv. 1-2); «os sinos dum tanger monástico e devoto» (v. 20).
Explicita o contraste estabelecido entre as figuras mencionadas nas
quadras dos versos 21 a 28.
A estátua de Camões, o «épico de outrora» (v. 24), embora colocada «num
recinto público e vulgar» (v. 21), sem lugar de destaque e acompanhado
por «exíguas pimenteiras» (v. 22), contrasta com os «corpos enfezados» (v.
26) e com «os soldados» (v. 27) referidos na estrofe seguinte. Símbolo
da força e da glória nacionais, sugeridas pela resistência («Brônzeo», v. 23)
e pelo tamanho («monumental, de proporções guerreiras», v. 23), a estátua
evoca o cantor da grandeza do passado, que se opõe a um presente em
que apenas circulam por Lisboa seres humanos atrofiados, sombras e
reflexos dos heróis antigos («Sombrios e espetrais », v. 27).

A consciência social manifesta-se na poesia de Cesário Verde em


passagens reveladoras dos seus sentimentos face a situações e
personagens.
Assim, através da metáfora concretizada na forma verbal «Inflama-se» (v.
28), referente a «um palácio», o sujeito poético insinua o poder opressivo
das classes mais abastadas e intensifica os contrastes sociais. No verso 35,
o recurso à antítese sugere a consternação do sujeito poético perante as
mulheres conotadas com a riqueza e com a artificialidade, sentimento
distinto da preocupação que revela em relação às mulheres simples e
trabalhadoras.
Relaciona as características do espaço descrito nas duas primeiras
estrofes e os sentimentos vivenciados pelo sujeito poético.
O som do bater nas grades das cadeias (“Toca-se às grades, nas cadeias.”,
v. 1) faz o “eu” sentir-se atormentado, chocado, angustiado. Assim, o
carácter doentio e degradado da cidade provoca no sujeito poético um
estado melancólico (“E eu desconfio, até, de um aneurisma, / Tão mórbido
me sinto, ao acender das luzes”, vv. 5-6). Além disso, as prisões, a Sé e as
cruzes originam sentimentos de tristeza, sofrimento e morbidez (“À vista
das prisões, da velha Sé, das cruzes, / Chora-me o coração que se enche e
que se abisma”, vv. 7-8).
Explicita a dimensão de denúncia e de crítica social presente nos
versos 13 a 16.
O sujeito poético considera que as duas igrejas são símbolos de aspetos
reprováveis do clero, fazendo-o evocar o carácter sombrio e implacável da
Inquisição.
Transcreve versos que abordem as seguintes temáticas:
a) diferentes tipos de mulheres;
b) desigualdades sociais;
c) referência ao passado épico.
a)
“Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes, / Curvadas a sorrir às montras
dos ourives mulheresburguesas;
“E mais: as costureiras, as floristas / Descem dos magasins, causam-me
sobressaltos;” – mulheres do povo;
b)
“Inflama-se um palácio em face de um casebre.”;
c)
“Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras, / Um épico de outrora
ascende, num pilar!
Refere, fundamentando, as sensações representadas no texto.
A cidade é descrita com o contributo de:
– sensações visuais («iluminam-se os andares», v. 1; «Alastram em lençol os
seus reflexos brancos», v. 3; «Sombrios e espectrais recolhem os soldados»,
v. 19; «Inflama-se um palácio em face de um casebre», v. 2; «Aos lampiões
distantes, / Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes», vv. 26-27);
– sensações auditivas («os sinos de um tanger monástico e devoto», v. 12);
– sensações tácteis («a capital, que esfria», v. 24).
A representação sensorial da cidade coloca em evidência a sua dimensão
pouco acolhedora, ao início da noite, e realça os contrastes físicos e sociais
que nela se detetam.

Relaciona a imagem da cidade apresentada nas estrofes com os


efeitos que ela provoca no sujeito poético, confirmando a tua
resposta com elementos textuais.
Perante a imagem de uma cidade «Triste» (v. 25), espaço físico
caracterizado pelas «construções retas, iguais, crescidas» (v. 10) e pelo
toque dos sinos (v. 12) e espaço social em que contrastam os «corpos
enfezados» (v. 18) com as «elegantes, / Curvadas a sorrir às montras dos
ourives», vv. 27-28), o sujeito poético manifesta desconforto e uma
sensação de aprisionamento («Muram-me», v. 10, «Afrontam-me», v. 11).
Entristece-se perante as desigualdades sociais («Enlutam-me», v. 27) e face
à lembrança do tempo simbolicamente representado pelo «épico de
outrora» (v. 16).

Interpreta a referência ao «épico de outrora» (v. 24), no contexto


em que ocorre.
A estátua de Camões, o «épico de outrora» (v. 16), colocada «num recinto
público e vulgar» (v. 13), «Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras»
(v. 14), marca simbolicamente o contraste entre o presente e o passado
glorioso para que o autor de Os Lusíadas remete. O facto de o épico surgir
caracterizado como «Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras» (v.
15) instaura a diferença face aos «corpos enfezados» (v. 18), «Sombrios e
espetrais» (v. 19), que povoam a cidade, em que se destacam também,
depreciativamente, as «elegantes»
(v. 27). Deste modo, a alusão a Camões, enquanto símbolo da força e do
poder nacionais, acentua a perspetiva crítica do sujeito poético
relativamente à Lisboa do final do século XIX.
Nas estrofes transcritas, evidenciam-se diversas características da
linguagem e do estilo de Cesário Verde. Três dessas características
são:
– o uso expressivo do adjetivo, antepondo características e
impressões à realidade a que dizem respeito, como ocorre no verso
19
– o recurso ao verso longo conjugando, em cada estrofe, um
decassílabo com três
alexandrinos
TERCEIRA PARTE: “AO GÁS”
III- Ao Gás

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos


Passeios de lajedo arrastam-se as Longas descidas! Não poder pintar
impuras. Com versos magistrais, salubres e
Ó moles hospitais! Sai das sinceros,
embocaduras A esguia difusão dos vossos
Um sopro que arripia os ombros quase reverberos,
nus. E a vossa palidez romântica e lunar!

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso Que grande cobra, a lúbrica pessoa,


Ver círios laterais, ver filas de capelas, Que espartilhada escolhe uns xales
Com santos e fiéis, andores, ramos, com debuxo!
velas, Sua excelência atrai, magnética, entre
Em uma catedral de um comprimento luxo,
imenso. Que ao longo dos balcões de mogno
se amontoa.
As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos E aquela velha, de bandós! Por vezes,
canos; A sua trai^ne imita um leque antigo,
E lembram-me, ao chorar doente dos aberto,
pianos, Nas barras verticais, a duas tintas.
As freiras que os jejuns matavam de Perto,
histerismo. Escarvam, à vitória, os seus
mecklemburgueses.
Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, Desdobram-se tecidos estrangeiros;
rubramente; Plantas ornamentais secam nos
E de uma padaria exala-se, inda mostradores;
quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no
forno. Flocos de pós-de-arroz pairam
sufocadores,
E eu que medito um livro que E em nuvens de cetins requebram-se
exacerbe, os caixeiros.
Quisera que o real e a análise mo
dessem; Mas tudo cansa! Apagam-se nas
Casas de confecções e modas frentes
resplandecem; Os candelabros, como estrelas, pouco
Pelas vitrines olha um ratoneiro a pouco;
imberbe. Da solidão regouga um cauteleiro
rouco; repouso,
Tornam-se mausoléus as armações Pede-me esmola um homenzinho
fulgentes. idoso,
Meu velho professor nas aulas de
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem Latim!

Descreve o estado de espírito do sujeito poético, fundamentando a


tua resposta.
Na sua deambulação, o sujeito poético sente-se oprimido, esmagado pelo
ambiente sentido na cidade, à noite («A noite pesa, esmaga», v. 1;
«Cercam-me as lojas», v. 5). Manifesta ainda o seu desejo de escrever um
livro que cause impacto e de descrever a cidade com todas as suas
subtilezas, captando o real, através da análise (vv. 17-18; vv. 21-24).
Identifica as figuras humanas referidas no excerto, destacando a
importância das mencionadas na quarta estrofe.
As figuras humanas referidas na primeira estrofe são as prostitutas (vv. 2-4),
que, associadas à doença («Ó moles hospitais!», v. 3), representam a
decadência moral da sociedade («as impuras», v. 2). Na terceira estrofe, o
sujeito poético narrador refere as burguesas («burguezinhas do
Catolicismo», v. 9), devotas e beatas, submissas, que lhe lembram as
freiras, cujo histerismo religioso quase as matava. Na quinta estrofe, refere-
se um gatuno, ainda jovem («um ratoneiro imberbe», v. 20), que «Pelas
vitrines olha» (v. 20), parecendo preparar o roubo, mais um traço da
decadência moral da cidade. Na quarta estrofe, são referidos o forjador e,
de modo indireto, o padeiro. Esta estrofe transmite, ao contrário das
restantes, uma imagem de vitalidade, força e saúde, associada à figura do
forjador («Um forjador maneja um malho, rubramente», v. 14) e à sensação
despertada pelo cheiro a pão quente, elemento simbólico da vida («Um
cheiro salutar e honesto a pão no forno», v. 16). Enquanto as outras figuras
se associam ao ambiente opressivo e doentio da cidade, sugerindo-se a
doença física e moral («as impuras», v. 2; os «moles hospitais», v. 3; o
«sopro que arrepia», v. 4; o «choro doentio dos pianos», v. 11; o «ratoneiro
imberbe», v. 20; a «palidez romântica e lunar», v. 24), as figuras do forjador
e do padeiro associam-se à alegria, à honestidade e à saúde. A quarta
estrofe parece assim fazer, ainda que discretamente, o elogio das classes
trabalhadoras, que se distinguem pela sua energia saudável e pelas
qualidades morais.
A poesia de Cesário Verde explora a perceção sensorial e faz uma
transfiguração poética do real. Comprova esta afirmação, tendo por
base o excerto.
Ao longo da sua deambulação pela cidade, o sujeito lírico vai captando o
real circundante, o ambiente, através dos sentidos. São variadas as
sensações: visuais («Ver círios laterais, ver filas de capelas, / Com santos e
fiéis, andores, ramos, velas,/ Em uma catedral de um cumprimento
imenso», vv. 6-8; «Um forjador maneja o malho, rubramente», v. 14; «Casas
de confeções e modas resplandecem», v. 19; «A esguia difusão dos vossos
reverberos, / E a vossa palidez romântica e lunar!», vv. 23-24), auditivas
(«ao chorar doente dos pianos», v. 11), olfativas («Um cheiro salutar e
honesto a pão no forno», v. 16) e táteis («Um sopro que arrepia», v. 4; «as
lojas, tépidas», v. 5»). O real exterior é registado pelo seu mundo interior,
transfigurando-se poeticamente. Repare-se na estrofe dois, na qual as lojas
se transfiguram em filas de capelas, numa grande catedral, com círios,
santos, andores, ramos e velas. O comércio e a religião parecem fundir-se,
insinuando-se a cumplicidade entre a Igreja e o espírito consumista. O
sujeito poético parece denunciar a hipocrisia de certos comportamentos
sociais e religiosos também na terceira estrofe, quando compara a atitude
das burguesinhas ao histerismo das freiras. Também aqui se transfigura o
real através da comparação («E lembram-me [...] As freiras que os jejuns
matavam de histerismo», vv. 11-12). Outros recursos expressivos
contribuem para esta «pintura» impressionista da cidade: a metáfora
(«moles hospitais», v. 2), a personificação («A noite pesa, esmaga», v. 1); a
hipálage («Um cheiro salutar e honesto a pão no forno», v. 16), entre outros.
Justifica a intervenção da imaginação do sujeito poético na segunda
quadra.
Na segunda quadra, perante as ruas de lojas iluminadas, contrastando com
a escuridão da noite, o sujeito poético imagina «filas de capelas», com velas
e outros adornos associados aos rituais religiosos. Tal fuga imaginativa
permite-lhe a crítica implícita à «catedral » de consumo em que se
transforma a cidade ao cair da noite e na qual as mulheres das classes
abastadas veneram o luxo.
A quarta estrofe interrompe, por instantes, a descrição negativa da
cidade.
Explicita os valores simbólicos associados aos espaços descritos,
considerando o recurso:
▬ ao advérbio de modo, no verso 14;
▬ à sinestesia, nos versos 15-16;
▬ à adjetivação, no verso 16.
A quarta estrofe transmite, ao contrário das restantes, uma imagem de
saúde e de força associada aos espaços da cutelaria e da «padaria». No
primeiro destes locais, o «forjador» trabalha «rubramente » e, através do
advérbio, é colocada em destaque a sua robustez física e sugerido o rubor
das suas faces, resultado do esforço e sinal de energia.
Na apresentação da padaria, a sinestesia «exala-se, inda quente, / Um
cheiro [...] a pão no forno» contribui para destacar a singular perceção
positiva da realidade, em contraste com o frio da noite (vv. 4 e 5) e os
cheiros desagradáveis da cidade (I, v. 6). Através da adjetivação, as
características do pão são, por extensão, atribuídas aos padeiros, sugerindo-
se a vitalidade e a honestidade das classes trabalhadoras.
Interpreta os versos 17-18, atendendo ao modo como sintetizam os
objetivos da poesia de Cesário Verde.
O sujeito poético expressa o seu desejo em termos artísticos: a redação de
um livro capaz de incomodar. O desassossego ansiado diz respeito à
capacidade de, perante a «análise» do «real», suscitar a reflexão sobre a
cidade contemporânea e os seus contrastes para promover a mudança.
Relaciona a forma como é apresentado o «homenzinho idoso» (v.
43) com a dimensão crítica da última estrofe.
A figura humana descrita na última quadra começa por ser apresentada
pela súplica que expressa nas ruas. É, em seguida, referida através de uma
característica física («calvo») e das expressões «eterno» e «sem repouso»,
que sugerem o longo período já vivido a pedir «esmola». Deste modo, só
depois de destacar as condições de existência do «homenzinho idoso», o
sujeito poético revela a sua antiga ocupação de «professor nas aulas de
latim», expressando, através da sua solidariedade, uma crítica à sociedade
que lança na marginalidade até pessoas cultas e merecedoras de
reconhecimento.
Nesta terceira parte do poema, dá-se uma progressão temporal, à
medida que o sujeito poético percorre o espaço, deambulando pelas
ruas da cidade de Lisboa.
Explica o subtítulo “Ao Gás” e refere o momento da noite a que
realidade evocada se associa.
Com o avançar da noite, os candeeiros a gás iluminam as ruas, o que
motiva o poeta a atribuir o subtítulo “Ao Gás” a esta parte do poema.
Identifica as expressões que, na primeira estrofe, caracterizam a
perceção que o “eu” tem do espaço.
As expressões “[...] A noite pesa, esmaga [...]” (verso 1) e “Um sopro que
arrepia os ombros [...]” (verso 4) contribuem para a caracterização que o
sujeito poético faz do espaço urbano, como um local que lhe dá uma
sensação de opressão e de desconforto.
Esclarece o sentido da alegoria presente na segunda e terceira
estrofes, tendo em conta a intenção crítica do sujeito poético.
Na segunda estrofe, o “eu” apercebe-se das lojas que o rodeiam com um
ambiente confortável, tépido, por oposição ao frio que sai das
“embocaduras” (verso 3). A alegoria associa este ambiente burguês a uma
dimensão religiosa. Assim, através da imaginação, o sujeito poético
relaciona o comportamento superficial das burguesas que frequentam as
ruas das lojas de compras e as luzes e ambiente confortável que emanam
desses espaços a um ambiente de luz associado a capelas e à
religião. Deste modo, a alegoria concretiza-se pela associação dos
elementos religiosos ao desejo de consumo e à superficialidade da atitude
das senhoras burguesas que “resvalam” (verso 10) pela rua.
Comenta o efeito expressivo do diminutivo “burguezinhas” (verso
9).
O diminutivo tem como efeito retratar as burguesas de forma depreciativa,
de acordo com a intenção do “eu” – criticar as classes sociais elevadas,
menosprezando-as ou ridicularizando-as.
Refere as figuras que são retratadas de forma favorável na quarta
estrofe, tendo em conta a intenção de crítica social pretendida pelo
sujeito poético.
Na quarta estrofe, o “eu” retrata favoravelmente os trabalhadores de uma
cutelaria e de uma padaria. Deste modo, o sujeito poético valoriza as
classes baixas, que, apesar das suas dificuldades, se revelam honestas,
trabalhadoras e sofrem a sua condição sem queixume. Já as classes altas
são retratadas de forma crítica, destacando-se os seus vícios.
Explicita as sensações e o efeito expressivo da sinestesia
“rubramente” (verso 14), “quente” (verso 15) e “cheiro” (verso
16).
O “eu” faz apelo a sensações visuais (“rubramente”), térmicas (“quente”) e
olfativas (“cheiro”). Através da combinação destes sentidos, é possível
percecionar o ambiente retratado de forma mais marcante, destacando-se,
também, o efeito impressionista e realista que o recurso expressivo
provoca, no contexto.
Caracteriza as figuras humanas sobre as quais recai a atenção do s
ujeito poético e explicita os contrastes sociais que ilustram.
As figuras sobre as quais recai a atenção do sujeito poético são caracterizad
as em função do grupo social e da forma de vida que representam. Assim, n
as duas primeiras quadras, são referidas uma «lúbrica pessoa» (v. 1), sedut
ora («grande cobra», v. 1) e atraente («magnética», v. 3), e uma «velha» (v.
4) algo ridícula («de bandós!»), na decrepi- tude da sua beleza. Tratase de d
uas mulheres entrevistas no ambiente luxuoso da «ca- tedral» de consumo
e que são conotadas com a riqueza e com a opressão, sugeridas pelo ambie
nte ostentoso (vv. 9-10) e sufocante, entre «flocos de pós de arroz» e «nuve
ns de cetins» (vv. 11 e 12), das lojas. Em contraste com estas figuras femini
nas, surgem «os cai- xeiros» (v. 12) que as atendem servilmente, apesar da
hora, e «um cauteleiro» que, já «rouco» (v. 15), resiste na «solidão» (v. 15) e
no silêncio das ruas da cidade. Ambos perso- nificam as classes trabalhador
as, que sobrevivem em condições exigentes

Explica o sentido da metáfora presente no verso 16, tendo em cont


a os valores asso- ciados à cidade em «O Sentimento dum Ocidental
».
Ao aproximar «as armações fulgentes» de «mausoléus», no momento em qu
e as luzes exteriores se vão gradualmente apagando e a escuridão se instal
a na cidade, o sujeito poético salienta o progressivo desaparecimento de ma
nifestações da atividade humana no espaço urbano. Sugere também a perd
a de vida no interior das habitações, quer enquanto energia diária, quer enq
uanto existência condigna, condicionada pelo espaço opressivo e perturbad
or da cidade (de que ele próprio se vai revelando vítima, no decorrer de «O
Sentimento dum Ocidental»)
QUARTA PARTE: “HORAS MORTAS”
IV- Horas Mortas
Ó nossos filhoes! Que de sonhos
O tecto fundo de oxigénio, de ar, ágeis,
Estende-se ao comprido, ao meio Pousando, vos trarão a nitidez às
das trapeiras; vidas!
Vêm lágrimas de luz dos astros Eu quero as vossas mães e irmãs
com olheiras, estremecidas,
Enleva-me a quimera azul de Numas habitações translúcidas e
transmigrar. frágeis.

Por baixo, que portões! Que Ah! Como a raça ruiva do porvir,
arruamentos! E as frotas dos avós, e os nómadas
Um parafuso cai nas lajes, às ardentes,
escuras: Nós vamos explorar todos os
Colocam-se taipais, rangem as continentes
fechaduras, E pelas vastidões aquáticas seguir!
E os olhos dum caleche espantam-
me, sangrentos.

E eu sigo, como as linhas de Mas se vivemos, os


uma pauta emparedados,
A dupla correnteza augusta das Sem árvores, no vale escuro das
fachadas; muralhas!...
Pois sobem, no silêncio, infaustas Julgo avistar, na treva, as folhas
e trinadas, das navalhas
As notas pastoris de uma E os gritos de socorro ouvir,
longínqua flauta. estrangulados.

Se eu não morresse, nunca! E E nestes nebulosos corredores


eternamente Nauseiam-me, surgindo, os
Buscasse e conseguisse a ventres das tabernas;
perfeição das cousas! Na volta, com saudade, e aos
Esqueço-me a prever castíssimas bordos sobre as pernas,
esposas, Cantam, de braço dado, uns tristes
Que aninhem em mansões de bebedores.
vidro transparente!
Eu não receio, todavia, os Por cima, as imorais, nos seus
roubos; roupões ligeiros,
Afastam-se, a distância, os dúbios Tossem, fumando sobre a pedra
caminhantes; das sacadas.
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris,
errantes, E, enorme, nesta massa
Amareladamente, os cães irregular
parecem lobos. De prédios sepulcrais, com
dimensões de montes,
E os guardas, que revistam as A Dor humana busca os amplos
escadas, horizontes,
Caminham de lanterna e servem E tem marés, de fel, como um
de chaveiros; sinistro mar!

Mostra de que forma a sexta estrofe apela a uma dimensão


temporal, identificando os elementos que remetem para o passado
e para o futuro.

A sexta estrofe apela a uma dimensão temporal do passado, evidente em


expressões como “[…] frotas dos avós […]” (v. 2), numa referência aos
marinheiros portugueses do período dos Descobrimentos, e “[…] nómadas
ardentes […]” (v. 2), numa alusão às conquistas em África. Ao mesmo
tempo, o “eu”, suportando-se historicamente nestes elementos, projeta os
portugueses – “Nós […]” (v. 3) – para um desígnio futuro – v. 3 –, como que
revisitando o imaginário épico dos Descobrimentos.

Demonstra o tom épico da sexta estrofe, fundamentando a tua


resposta com dois elementos linguísticos.

O tom épico da sexta estrofe é evidente, por exemplo, através da utilização


da 1.ª pessoa do plural – “Nós […]” (v. 3) – da interjeição do verso 1 – “Ah!”
– e da frase exclamativa do verso 4.

Comenta a alternância entre o tom épico da sexta estrofe e o tom


disfórico da setima , explicitando a sua intencionalidade.

Ao tom épico da primeira estrofe contrapõe-se o tom disfórico da segunda,


em que o sujeito poético caracteriza a cidade como um espaço despido de
elementos da natureza – “Sem árvores […]” (v. 6) – rodeado de paredes,
como se fosse um “vale escuro” de “muralhas” (v. 6), onde os habitantes
gritam por “socorro” (v. 8). Deste modo, o “eu” evidencia a contradição
entre um desejo de evasão e um estado de espírito negativo, influenciado
pelo espaço que o rodeia.

Justifica a utilização da primeira pessoa do plural em “[…] vivemos


[…]” (verso ).
Através da utilização da primeira pessoa do plural, o “eu” identifica-se com
os habitantes da cidade e evidencia empatia relativamente aos sentimentos
que aquele ambiente provoca neles.

Identifica os tipos humanos referidos pelo “eu” para retratar o


espaço social urbano noturno.

O sujeito poético refere os bêbedos – “ […] uns tristes bebedores” (v. 12) –,
os guardas-noturnos – “ […] os guardas, que revistam as escadas,” (v. 17) –
e as prostitutas –“ […] as imorais […]” (v. 19).

Comenta o antagonismo das ideias presentes nos dois últimos


versos.

Nos dois últimos versos, existe um antagonismo, na medida em que os


habitantes da cidade, oprimidos, procuram a libertação nos “ […] amplos
horizontes […]” (v. 23), mas encontram, apenas, a dor – “ […] fel […]” (v.
24).

Aponta duas razões que, nas três primeiras quadras, justifiquem o


sentimento do sujeito poético no verso 4: «Enleva-me a quimera
azul de transmigrar».
O sujeito poético assume o desejo de se evadir e de atingir um espaço (real
ou imaginário) diferente por se sentir envolvido na escuridão do «teto
fundo» (v. 1) da noite, no qual o surpreendem as «lágrimas de luz dos
astros», «os olhos dum caleche [...] sangrentos » (v. 8) e os sons ouvidos no
silêncio (vv. 6-7), nomeadamente «um parafuso » que «cai nas lajes» (v. 6),
o ranger das «fechaduras» (v. 7) e «as notas pastoris de uma longínqua
flauta» (v. 12).

Interpreta a referência às «notas pastoris de uma longínqua flauta»


(v. 12), no contexto em que ocorre.
O som da flauta pastoril escutado ao longe introduz na descrição do espaço
urbano a referência ao ambiente campestre que se lhe opõe, sugerindo a
distância «longínqua» que o separa da cidade (em termos físicos, mas,
sobretudo, sociais e humanos) e as vidas «infaustas» de quem apenas pode
captar essa alternativa positiva à distância.

A quarta estrofe introduz a dicotomia presente/futuro.


Refere duas das características de cada um desses tempos,
fundamentando a tua resposta com elementos textuais pertinentes.

O presente é o tempo da escuridão (vv. 26, 27, 29) e da opressão, dos


«emparedados » (v. 25) que vivem «no vale escuro das muralhas» (v. 26) e
na «massa irregular / De prédios sepulcrais, com dimensões de montes» (vv.
41- -42). É marcado ainda pela decadência moral e social, exemplificada
pelos «tristes bebedores» (v. 32) e pelas «imorais» (v. 39) e pelas
referências à falta de segurança (vv. 27-28, 33 e 37). O futuro é sonhado
como um tempo de glória, de harmonia social e de pureza, em que os
descendentes da geração atual (v. 21) reconquistam o espírito épico dos
antepassados, exploram «todos os continentes» (v. 23) e as «vastidões
aquáticas» (v. 24) e privilegiam, no espaço comum, as «mansões de vidro
transparente» (v. 16) e «habitações translúcidas e frágeis» (v. 20).

Comenta o valor expressivo da adjetivação e do recurso ao


advérbio, nos versos 35-36.
Com o uso dos adjetivos («sujos», «ósseos, febris, errantes »), as
características dos cães são referidas antes da sua identificação. O advérbio
«amareladamente» sugere o efeito produzido pela visão dos cães. Ambos os
recursos contribuem para destacar a impressão causada no sujeito poético
pelo encontro com os animais, mais do que descrevê-los de forma objetiva.

Atendendo às cinco últimas estrofes do poema, descreve a imagem


final da cidade de Lisboa e refere dois recursos expressivos
utilizados na sua construção.

O poema termina com um reforço da imagem negativa da cidade que se


construíra no decorrer das suas quatro partes. Com recurso à metáfora («os
emparedados » que vivem no «vale escuro das muralhas», vv. 25-26, e em
«prédios sepulcrais», v. 42), à hipérbole (v. 42), à personificação (v. 43) e à
comparação («A Dor humana [...] tem marés, de fel, como um sinistro
mar!», vv. 43-44), as últimas referências a Lisboa remetem para o seu
ambiente escuro, sujo, imoral, violento e degradante. Assim, a cidade é
descrita como espaço de dor e sofrimento, antecâmara da morte.

Relaciona a caracterização do ambiente, tal como é percecionado


pelo sujeito poético, com os efeitos que o mesmo lhe provoca
O ambiente citadino é entrevisto pelo sujeito poético como opressor e fecha
do (vv. 5-6 e 17-18), sombrio e sufocante (vv. 6 e 9), violento (vv. 7-8) e pro
piciador da dor (vv. 19-20). Tais características da cidade provocam no sujeit
o poético a náusea (v. 10) e o desejo de evasão (vv. 3-4).

Destaca o efeito de sentido produzido pela anteposição dos adjetiv


os ao nome que caracterizam nos versos «E sujos, sem ladrar, ósseo
s, febris, errantes,/Amareladamente, os cães parecem lobos.» (vv. 1
5-16).

Com a anteposição dos adjetivos ao nome «cães», destaca-se a impressão c


ausada pela visão dos animais, à maneira impressionista, conferindo-se mai
s relevo à sensação do «eu» do que ao elemento que a provoca. Neste caso,
as sensações visuais («sujos», «ósseos», «errantes», «Amareladamente»), a
uditivas («sem ladrar») e tácteis («febris») conjugam-se numa descrição dos
cães que é reveladora da impressão que o sujeito poético tem da cidade – u
m lugar cuja decadência potencia a violência. Os cães assumem um tom am
eaçador simplesmente porque estão doentes e famintos, sem ninguém que
cuide deles.
Explica de que modo o excerto evidencia uma dicotomia presente/
porvir.
Destacando a negatividade da cidade de Lisboa, em contraponto com a épo
ca áurea celebrada por Camões, o sujeito poético sugere uma nova «raça» d
o «porvir» (vv. 1-4), gerada à imitação das «frotas dos avós» (v. 2) e que se
dedique a «explorar todos os continentes» (v. 3). Contudo, logo reconhece a
impossibilidade de voltar a seguir «pelas vastidões aquáticas» (v. 4), como a
conjunção adversativa do verso 5 sugere, uma vez que os habitantes do seu
presente (século XIX) vivem «emparedados» (v. 5), fechados no «vale escur
o das muralhas» (v. 6), que é a cidade de Lisboa, resumida a um «sinistro m
ar» com «marés, de fel» (v. 20).

A situação existencial do “eu” é a da realidade objetiva de um espaço


urbano conflituante e opressor, que contrasta com um desejo de evasão,
evidente no verso 4. Por sua vez, as sugestões sensoriais auditivas, que
contribuem para uma concretização da realidade circundante, na segunda
estrofe, opõem-se à transfiguração poética do real, evidente em verso 8.
Finalmente, o desejo impossível de uma realidade futura diverge da situação
presente do “eu”, cujo tom disfórico culmina com a manifestação de
desespero, evidente em verso 44.

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